Acompanhamento Espiritual

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O ACOMPANHAMENTO

ESPIRITUAL

FABIO ATTARD MIGUEL NGEL GARCA

O ACOMPANHAMENTO
ESPIRITUAL
Itinerrio pedaggico-espiritual em chave salesiana
a servio dos jovens

Traduo:
P. Jos Antenor Velho

Coleo Espiritualidade e Pedagogia Salesiana

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)


Bibliotecria Juliana Farias Motta CRB7- 5880
A883c Attard, Fbio

O acompanhamento espiritual: Itinerrio pedaggico-espiritual em chave salesiana a
a servio dos jovens. - LAccompagnamento Spirituale - Itinerario pedagogico spirituale in
chiave salesiana al servizio dei giovani / Fbio Attard; Miguel ngel Garca; Traduo P. Jos
Antenor Velho. -- Braslia, DF: EDB, 2015.


436 p.; 23,5 x 16,5 cm


(Espiritualidade e Pedagogia Salesiana)
Inclui referncias bibliogrficas

ISBN: 978-85-7741-276-1


1. Salesianos - Vida espiritual. 2. Direo espiritual. 3. Bosco, Joo, Santo,1815-1888
- Ensinamentos. 4. Francisco, de Sales, Santo, 1567-1622. 5.Vida crist. 6. F I. ngel Garca,
Miguel. II. Velho, P. Jos Antenor, trad. III. Ttulo. IV. Itinerrio pedaggico-espiritual em
chave salesiana a servio dos jovens.
CDD 248.482

ndice para catlogo sistemtico:


1. Salesianos - Vida espiritual
2. Direo espiritual
3. Bosco, Joo, Santo,1815-1888 Ensinamentos
4. Francisco, de Sales, Santo, 1567-1622
5. Vida crist
6. F
Reviso : Zeneida Cereja da Silva
Diagramao: Helkton Gomes
Todos os direitos reservados
EDITORA DOM BOSCO
SHCS - Quadra 505, Bloco B, sala 65
Asa Sul - Braslia-DF-70350-525
Tel.: (61) 3214-2300
www.edbbrasil.org.br

SUMRIO
Agradecimentos .............................................................................................................. 13
Introduo ..................................................................................................................... 15
1. Alguns pontos iniciais de referncia.......................................................................... 16
2. Os desafios e as necessidades do acompanhamento espiritual................................... 17
3. Os temas de estudo..................................................................................................... 19
3.1. Acompanhamento espiritual e So Francisco de Sales....................................... 19
3.2. Acompanhamento espiritual e Dom Bosco......................................................... 20
3.3. Acompanhamento espiritual e desafios pastorais................................................ 21
4. Guiados pela Palavra.................................................................................................. 25
5. Concluso................................................................................................................... 25
PRIMEIRA PARTE
So Francisco de Sales e o acompanhamento espiritual............................................. 27
So Francisco de Sales como diretor espiritual.
Prxis pastoral da direo espiritual do Bispo de Genebra
(Eugenio Alburquerque Frutos, sdb)............................................................................... 28
1. Pastor zeloso............................................................................................................... 29
2. O dom do discernimento............................................................................................ 31
3. Caractersticas da direo espiritual do bispo de Genebra......................................... 35
3.1. Direo personalizada......................................................................................... 35
3.2. Direo humanista............................................................................................... 37
3.3. Direo de amizade............................................................................................. 43

A pessoa do diretor espiritual segundo So Francisco de Sales.
(Jzef Stru, sdb).............................................................................................................. 48
1. Pressuposto teolgico do tema................................................................................... 50
2. Formao da personalidade de Francisco de Sales.................................................... 54
2.1. Itinerrio da vida espiritual................................................................................. 54
2.2. Formao escolar de Francisco de Sales............................................................. 61
3. Francisco de Sales de pessoa dirigida a diretor espiritual.......................................... 63
3.1. Importncia do diretor espiritual......................................................................... 63
3.2 Prevenir interpretaes excessivas...................................................................... 65
O nmero de pessoas acompanhadas................................................................. 67
Circunstncias que no se devem esquecer ao estudar a direo espiritual
segundo S. Francisco de Sales............................................................................ 68

Textos de apoio................................................................................................... 68
Respeito singularidade das pessoas................................................................ 69
Destinatrios procurados ou sem preferncia?.................................................. 70
Motivaes espirituais do ministrio de direo espiritual................................ 71
4. Tarefas prprias do diretor espiritual. ....................................................................... 72
4.1. A figura de diretor espiritual................................................................................ 72
4.2. O diretor espiritual deve estar cheio de caridade, de cincia e de prudncia......... 74
Cheio de caridade............................................................................................... 74
Cheio de cincia e de prudncia......................................................................... 80
4.3. Francisco de Sales, diretor espiritual carismtico............................................... 87
5. Concluso..................................................................................................................... 92
A direo espiritual em So Francisco de Sales.
Linhas fundamentais do mtodo espiritual e pedaggico na perspectiva salesiana
(Eunan McDonnell, sdb).................................................................................................. 94
1. Os objetivos da direo espiritual na tradio salesiana............................................ 95
2. A centralidade do corao.......................................................................................... 98
3. H um mtodo salesiano de direo espiritual?.................................................... 104
4. Iniciar a partir do corao......................................................................................... 108
5. A natureza dissipada do corao humano................................................................ 109
5.1. A resistncia do corao humano...................................................................... 112
Afeto pelo pecado.............................................................................................. 113
O amor de si...................................................................................................... 115
Desejos desordenados....................................................................................... 117
5.2. As atraes do corao humano: as inspiraes............................................... 121
5.3. A orao de corao a corao...................................................................... 124
5.4. O xtase da ao: o amor desinteressado.......................................................... 130
6. Concluso................................................................................................................. 132
BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL
So Francisco de Sales e o acompanhamento espiritual........................................... 134
Fontes de So Francisco de Sales.................................................................................. 134
Ensaios e estudos........................................................................................................... 134
SEGUNDA PARTE
So Joo Bosco e o acompanhamento espiritual....................................................... 139
A experincia da direo espiritual vivida por Dom Bosco nos anos do Colgio
Eclesistico de Turim (1841-1844).
(Giuseppe Buccellato, sdb)............................................................................................ 141

1. As origens do Colgio Eclesistico de Turim.......................................................... 143


1.1. Pio Bruno Lanteri.............................................................................................. 146
1.2. Os exerccios espirituais e o Santurio de Santo Incio no alto de Lanzo.......... 148
2. O projeto formativo do Colgio Eclesistico: contedos e mtodo......................... 150
2.1. O estudo da moral prtica................................................................................. 150
2.2. As exercitaes de sagrada eloquncia............................................................. 153
2.3. As exercitaes apostlicas.............................................................................. 155
3. O pai do nosso pai.................................................................................................... 156
3.1.- O dom do Conselho......................................................................................... 158
3.2. P. Cafasso e Dom Bosco................................................................................... 160
3.3. A Biografia do Padre Jos Cafasso de 1860.................................................... 164
4. O juzo de Dom Bosco sobre a experincia do Colgio Eclesistico ...................... 168
5. Os trs anos em que Dom Bosco se tornou Dom Bosco.......................................... 170
5.1. Aqui se aprende a ser padre.......................................................................... 171
5.2. Caridade pastoral, jovens das camadas populares e primeiros
catecismos......................................................................................................... 173
5.3. Uma Sociedade de leigos e eclesisticos.......................................................... 175
5.4. A pregao dos Exerccios Espirituais como escopo apostlico da
Congregao..................................................................................................... 176
5.5. Dom Bosco pede para ser admitido entre os Oblatos de Pio Bruno
Lanteri. ............................................................................................................. 178
5.6. O recolhimento na experincia espiritual de Dom Bosco............................. 179
5.7. O empenho no apostolado da boa imprensa..................................................... 182
5.8. Homem de orao............................................................................................. 183
5.9. O influxo de S. Afonso Maria de Ligrio......................................................... 185
O patrono dos confessores e dos moralistas..................................................... 185
Uma santidade ao alcance da mo................................................................... 186
A devoo ao SS. Sacramento e a comunho frequente................................... 187
A doutrina dos Novssimos................................................................................ 188
A devoo Virgem Maria. ............................................................................. 189
O amor msica e ao canto. ........................................................................... 189
A concepo de vida religiosa.......................................................................... 190
5.10.O sentire cum Ecclesia e a obedincia ao Papa................................................ 191
6. Concluso................................................................................................................. 192
Direo espiritual em So Joo Bosco.
Caractersticas peculiares da direo espiritual oferecida por Dom Bosco aos
jovens (Aldo Giraudo, sdb)........................................................................................... 195
1. Dom Bosco acompanhante no ambiente educativo salesiano.................................. 195
2. As atitudes do acompanhante e do acompanhado.................................................... 201

Direo espiritual em So Joo Bosco.


Contedos e itinerrios do acompanhamento espiritual dos jovens na praxe de
Dom Bosco (Aldo Giraudo, sdb)................................................................................... 212
1. Um itinerrio batismal............................................................................................... 212
2. A unio com Deus e a pedagogia da orao............................................................... 214
3. As duas colunas da vida espiritual............................................................................. 215
4. A mortificao dos sentidos e a construo das virtudes........................................... 219
5. O servio, o apostolado e o discernimento vocacional.............................................. 221
6. O discernimento vocacional....................................................................................... 222
BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL
So Joo Bosco e o acompanhamento espiritual....................................................... 227
Obras de So Joo Bosco e So Jos Cafasso................................................................ 227
Ensaios e estudos........................................................................................................... 228
TERCEIRA PARTE
Acompanhamento espiritual salesiano: desafios e propostas................................... 231
Acompanhamento espiritual.
Os desafios do ps-moderno e do ps-secular no Ocidente contemporneo
(Jack Finnegan, sdb)...................................................................................................... 233
1. Modernidade, secularismo e ps-secularismo.......................................................... 235
1.1. A Secularizao clssica................................................................................... 237
1.2. O desafio da secularizao ocidental ao acompanhamento espiritual.............. 239
1.3. Modernidades mltiplas.................................................................................... 241
1.4. Alguns pontos crticos...................................................................................... 244
2. Explorando o ps-moderno...................................................................................... 245
2.1. Espiritualidade ps-moderna: pensamentos iniciais......................................... 249
2.2. Espiritualidade ps-moderna e ps-secular: os novos desafios........................ 253
2.3. O acompanhamento espiritual salesiano: um mtodo sem mtodo.................. 257
2.4.
Vive Jsus.......................................................................................................... 259
2.5. Acompanhamento ps-moderno e pedagogia da emancipao........................ 262
2.6. O acompanhamento espiritual: uma arte e um dom......................................... 265
2.7. Acompanhamento espiritual ps-secular: oportunidade ou desafio?................ 266
2.8. A orao ps-secular......................................................................................... 269
3. Caminhando para uma concluso: os novos desafios espirituais............................. 270

O acompanhamento espiritual dos jovens em cenrios multirreligiosos:
contextos, possibilidades, limites, propostas
(Joe Mannath, sdb)........................................................................................................ 273

1. Introduo: o contexto.............................................................................................. 273


2. Elementos positivos na situao atual...................................................................... 277
3. Fragilidades e elementos negativos.......................................................................... 279
4. Oportunidades.......................................................................................................... 283
5. Limites / riscos......................................................................................................... 289
6. Algumas propostas................................................................................................... 290
7. Concluses............................................................................................................... 293
Os desafios na formao de diretores espirituais na Vida Religiosa.
(Adrin Lpez, s.j.)........................................................................................................ 296
1. Em que consiste o acompanhamento espiritual? ..................................................... 296
2. Tipos de acompanhamento....................................................................................... 300
3. Desafios para a formao do diretor espiritual, que derivam de algumas chaves
antropolgicas da pessoa em discernimento vocacional.......................................... 302
3.1. A primeira abordagem da pessoa acompanhada............................................... 303
Os valores......................................................................................................... 304
As carncias...................................................................................................... 306
A motivao central e a tenso resultante........................................................ 307
3.2. Para uma avaliao estrutural, segundo as trs dimenses............................... 307
Virtude contra incoerncia de valores religiosos: a primeira dimenso.......... 308
Consistncia contra inconsistncia vocacional: a segunda dimenso............. 308
Normalidade contra patologia psquica: a terceira dimenso......................... 310
4. Desafios na formao dos acompanhantes a partir dos contedos do
acompanhamento. A castidade................................................................................. 313
4.1. Acompanhar algumas fragilidades afetivo-sexuais.......................................... 313
4.2. Situao inicial das pessoas no itinerrio de formao castidade.................. 314
4.3. Dificuldades do acompanhante a respeito do acompanhamento da
castidade............................................................................................................ 317
4.4. Linhas-guia para a pessoa que acompanha fragilidades afetivas e sexuais......... 318
4.5. Alguns problemas frequentes nos formandos................................................... 320
O autoerotismo ................................................................................................. 321
A homossexualidade ......................................................................................... 322
O enamoramento............................................................................................... 324
As amizades heterossexuais.............................................................................. 325
5. Concluso................................................................................................................. 326
Considerao inicial................................................................................................. 326
Elementos que preciso pr em jogo no processo de acompanhamento................. 327
Campos de ao e de ateno................................................................................... 329
Dificuldades a superar.............................................................................................. 330

Anexo 1
Jerarquia de valores........................................................................................................ 332
Anexo 2
Definio de necessidade............................................................................................... 334
O acompanhamento pessoal na proposta educativo-pastoral salesiana.
(Miguel Angel Garca Morcuende, sdb)........................................................................ 337
1. A f alcana a maturidade espiritual no acompanhamento...................................... 337
1.1. Uma nova gramtica da f................................................................................ 337
1.2. Janelas que abrem horizontes: o acompanhamento pastoral............................ 340
1.3. Um itinerrio espiritual com proposta pedaggica........................................... 342
2. Harmonizar os protagonistas do acompanhamento.................................................. 345
2.1. Acompanhantes abertos mais s surpresas do Esprito do que s atividades... 345
2.2. Entrar numa nova lgica na formao das novas geraes........................... 347
2.3. Acompanhantes expostos a novidades imprevisveis....................................... 350
A melhor palavra: o testemunho....................................................................... 350
Propor alguma coisa sem precedentes: acompanhar um apostolado........... 352
Crer no cuidado com a pessoa que acompanha............................................... 354
Visitar, mas no permanecer l dentro............................................................. 355
3. Itinerrios plurais e diferenciados para o acompanhamento na Pastoral
Juvenil Salesiana...................................................................................................... 356
3.1. Acompanhar para descobrir o complexo mundo interior.................................. 357
3.2. Acompanhar para aprender a rezar e celebrar................................................... 359
3.3. Acompanhar para viver a f em comunidade................................................... 361
3.4. Acompanhar experincias que promovam o servio e o amor pelo que
essencial............................................................................................................ 362
4. Concluso................................................................................................................... 364
BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL.................................................................................. 365
O ps-moderno e ps-secular no Ocidente contemporneo.......................................... 365
A formao dos diretores espirituais na vida religiosa.................................................. 369
O acompanhamento espiritual dos jovens em cenrios multirreligiosos....................... 370
A proposta educativo-pastoral salesiana........................................................................ 372
QUARTA PARTE
Lectio Divina................................................................................................................. 373
Jesus, mestre de discpulos.
Algumas etapas do seu magistrio (Juan Jos Bartolom, sdb)................................. 377

Apresentao................................................................................................................ 377
1 PARTE: SEGUIR JESUS, um servio imposto: sua motivao e suas
consequncias............................................................................................ 378
2 PARTE: VIVER COM JESUS a tarefa dos homens livres de seus bens

e da prpria vida........................................................................................ 378
3 PARTE: ACABAR COMO JESUS no garantido ao discpulo que o


acompanhou at o fim............................................................................... 379
Seguir Jesus, para que ele continue conosco.
O porqu de uma vocao (Mc 2,14-17)..................................................................... 380
1. Ler o texto................................................................................................................ 381
2. Compreender o texto................................................................................................ 382
O quinto, um pecador............................................................................................... 382
Jesus, em ms companhias.................................................................................... 384
Seguir Jesus, para que continue entre os nossos..................................................... 385
3. Convite orao pessoal.......................................................................................... 387
A liberdade que resulta do estar com Jesus.
Como se deve viver no seguimento de Jesus (Mc 2,18-28)........................................ 388
Livres para jejuar, mas nem tanto (Mc 2,18-22)................................................... 389
1. Ler o texto................................................................................................................ 389
2. Compreender o texto................................................................................................ 390
Enquanto o esposo est com eles, impossvel jejuar............................................. 390
O jejum do discpulo................................................................................................ 391
A liberdade como novidade a defender.................................................................... 392
Livres do sbado (Mc 2,23-28)................................................................................ 392
1.
2.



3.

Ler o texto................................................................................................................ 393


Compreender o texto................................................................................................ 394
Lei de Deus versus necessidade do homem.............................................................. 394
O sbado, dom de Deus............................................................................................ 395
O poder de Cristo a servio da liberdade do cristo............................................... 396
Convite orao pessoal.......................................................................................... 397

Quem quiser seguir Jesus dever pagar um preo muito elevado.


Quando se anuncia a cruz, seguir Jesus uma opo (Mc 8,34-38)........................ 398
1. Ler o texto................................................................................................................ 398
2. Compreender o texto................................................................................................ 400
Condies para segui-lo........................................................................................... 400
O desprezo da prpria vida como salvao............................................................. 401

Conquistar o mundo e perder a vida........................................................................ 402


A vergonha de ser cristo......................................................................................... 403
3. Convite orao pessoal.......................................................................................... 405
Jesus s um bem para quem nada possui.
Crnica de uma vocao frustrada (Mc 10,17-22).................................................... 406
1. Ler o texto................................................................................................................ 406
2. Compreender o texto................................................................................................ 408
O bem que Deus quer fazer o bem ao prximo.................................................... 408
O que ainda falta ao jovem realmente bom............................................................. 409
A impossvel salvao do rico............................................................................. 410
S Cristo e o evangelho merecem as nossas renncias........................................... 412
O cntuplo de tudo, por qualquer coisa................................................................... 412
3. Convite orao pessoal.......................................................................................... 414
Tomar a prpria cruz, prova no superada pelo discpulo.
O Filho de Deus vive a agonia rezando enquanto seus discpulos dormem
(Mc 14,32-42)................................................................................................................ 416
1. Ler o texto................................................................................................................ 416
2. Compreender o texto................................................................................................ 418
Escolhidos para serem testemunhas do seu sofrimento........................................... 418
Jesus os teria querido bem acordados!.................................................................... 419
A orao do Filho, um exerccio de obedincia....................................................... 420
Enquanto os discpulos prediletos preferiram refugiar-se no sono......................... 421
O abandono de si, tentao e graa......................................................................... 422
S o traidor despertou!............................................................................................ 423
O perigo de dormir enquanto Jesus agoniza........................................................... 424
3. Aplicar/viver o texto................................................................................................. 425
4. Rezar o texto............................................................................................................. 425
Traidores: no s os ntimos.
A falncia de Jesus na educao dos discpulos (Mc 14, 10-52)............................... 427
1. Ler o texto................................................................................................................ 427
A traio arquitetada (Mc 14,10-11)........................................................................ 427
A traio anunciada (Mc 14,17-21)......................................................................... 428
A traio consumada (Mc 14,43-52)........................................................................ 430
2. Aplicar / viver o texto............................................................................................... 433
4. Rezar com o texto..................................................................................................... 435

AGRADECIMENTOS


O resultado global desta publicao fruto de quatro Seminrios de estudo
realizados de 2010 a 2014. A atividade de seminrio reuniu e conectou um grupo
de pessoas qualificadas atravs de uma metodologia ativa de escuta, participao
e confronto. Explorar argumentos, relacionar diversos pontos de vista e apresentar questes relevantes to importante quanto responder a essas mesmas
questes. Por isso, oportuno ressaltar o fato desta publicao no pretender
limitar-se transmisso de um conjunto de estudos. Ela quer oferecer, sobretudo, uma inspirao, convidando o leitor a novos horizontes. As sugestes de
reflexes, as intuies, os pontos de vista e os questionamentos dos participantes foram postos plenamente disposio dos relatores, gerando constantemente
propostas de ampliao e modificaes do texto original. Por isso, colhemos a
ocasio para agradecer a todos os participantes dos Seminrios pelo interesse e
pelas numerosas contribuies:
Adrin Lpez, sj
Aldo Giraudo, sdb
Artur Lenti, sdb
Carlos Rey, sdb
Costanza Aranjo, fma
David T. da Costa, sdb
Elena Rastello, fma
Eugenio Alburquerque, sdb
Eunan McDonnell, sdb
Fabio Attard, sdb
Fidel Yamanuochi, sdb
Francisco Santos, sdb
Giuseppe Buccellato, sdb
Giuseppina del Core, fma
Ivana Milesi, fma
Jack Finnegan, sdb
Jesmond Apap, sdb
13

Joe Mannath, sdb


John Roche, sdb
Jos Pastor Ramrez, sdb
Joseph Boenzi, sdb
Jzef Strus, sdb
Juan Crespo, sdb
Juan Jos Bartolom, sdb
Luca Barone, sdb
Maria del Carmen Canales, fma
Mario Llanos, sdb
Mario Olmos, sdb
Michael Pace, sdb
Miguel Angel Garcia, sdb
Olivier Robin, sdb
Peter Bui, sdb
Rafael Borges, sdb
Robert Simon, sdb
Rosanna Costantini, fma
Runita Borja, fma
Srgio Augusto Baldin Jnior, sdb

14

Introduo


Este volume o fruto maduro de um itinerrio que encontra forte motivao no Captulo Geral 26, de 2008 (CG26), dos Salesianos de Dom Bosco.
Durante aquele Captulo, foi expressa em vrios momentos a grande preocupao com o tema do acompanhamento espiritual. De fato, resulta de uma leitura
atenta do documento final no qual o termo acompanhar / acompanhamento
aparece mais de trinta vezes a propsito do acompanhamento espiritual nas vrias
situaes pastorais. Trata-se de uma preocupao em torno da fase que prepara
os coraes para o anncio da boa-nova, mas tambm das fases marcadas pelo
empenho da f e da busca vocacional apostlica.

No terceiro ncleo do CG26, Necessidade de convocar, o tema do acompanhamento espiritual apresentado em termos que apresentam bem o desafio
pastoral:
Encontra-se, s vezes, no acompanhamento espiritual, uma falta de preparao nos salesianos. Alm disso, ainda se notam fragilidades, quer em nvel
inspetorial quer local, na organizao das iniciativas e propostas vocacionais.
Quando no h continuidade de projeto, a mudana de encargo dos irmos que
trabalham na animao vocacional torna-se particularmente delicada. Em algumas Inspetorias, no h comunidades de acompanhamento vocacional (CG26,
n. 58).


Encontramos ainda no mesmo ncleo o convite para que cada inspetoria
favorea a atualizao dos salesianos e dos leigos corresponsveis a respeito do
discernimento e do acompanhamento vocacional (CG26 n. 68). So duas citaes que, como a ponta de um iceberg, miram uma urgncia que deve ser levada
a srio.

O contedo desta publicao uma resposta urgncia pastoral to claramente evidenciada pelo CG26. Entretanto, por sua vez, o contedo fruto de um
itinerrio que, por si mesmo, j desejava oferecer uma metodologia bem precisa.

15

1. ALGUNS PONTOS INICIAIS DE REFERNCIA



O itinerrio de reflexo foi traado por uma equipe de Salesianos e Filhas
de Maria Auxiliadora que trabalham na formao de acompanhantes espirituais.
A equipe individualizou alguns desafios e traou uma orientao de estudo que
responde s seguintes questes: como se deve enfrentar hoje o desafio do acompanhamento espiritual salesiano? Qual o contedo em que preciso refletir e fazer refletir ao redor do tema do acompanhamento espiritual? Enfim, como propor
itinerrios de reflexo e formao para o acompanhamento espiritual?

Estas questes surgiram logo no primeiro encontro da equipe. Individualizaram-se trs aspectos que deveriam iluminar o itinerrio de estudo: primeiro,
a urgncia de oferecer oportunidades e itinerrios que preparem para o acompanhamento espiritual no interior da Pastoral Juvenil Salesiana. fcil analisar o
problema e indicar o vazio existente, mas isso no basta. Condenar o que h de
vazio no adianta para nada se, depois, no se procura acender uma lmpada!

O segundo aspecto era entender o desafio do acompanhamento espiritual
a partir da perspectiva pastoral salesiana. O que significa refletir sobre o acompanhamento espiritual a partir da perspectiva carismtica e da pastoral enquanto
ambiente e estilo de caminhar com os jovens. O acompanhamento espiritual, na
sua compreenso mais ampla no ao isolada, mas insere-se no interior de um
itinerrio. Para ns salesianos, insere-se tambm num ambiente em que os jovens
encontram pessoas que so companheiros de viagem, ajudando-os na escuta da
voz do Esprito.

O terceiro aspecto competia diretamente pessoa que acompanha espiritualmente. Como a pessoa do acompanhante no secundria, perguntou-se:
quais os desafios que, em nvel muito pessoal, devem ser indicados e descobertos?

Posteriormente, ao redor destes trs aspectos tambm surgiram os desafios
que tocam diretamente as opes fundamentais de quem chamado a viver o
ministrio do acompanhamento espiritual: a importncia de viver realmente enraizado na orao e o quo real o risco de as nossas ideias serem terrivelmente
diferentes do que, de fato, Deus nos est pedindo.

fundamental a questo sobre como a realidade juvenil provoca o acompanhante, isto , o quo importante partir da histria dos jovens e no de categorias pr-constitudas. verdade que pouqussimos jovens nos pedem acom16

panhamento espiritual desde o incio do nosso encontro com eles. Isso, todavia,
no significa que no haja no corao deles o desejo, oculto e ainda no bem
expressado, de serem acompanhados espiritualmente.

O acompanhamento responde busca dos jovens. Se o acompanhamento
espiritual, desperta a conscincia vocacional e explicita a necessidade de um
itinerrio espiritual mais profundo e sistemtico. No interior desta peregrinao,
portanto, no podemos deixar de levar em conta o humano, arriscando conduzir
unicamente para uma dimenso espiritual que no se conecta ao humano e nem o
ilumina. O acompanhamento orienta os jovens abertura e confiana.

2. OS DESAFIOS E AS NECESSIDADES DO ACOMPANHAMENTO ESPIRITUAL



Na fase inicial deste itinerrio de reflexo, detivemo-nos na situao atual
do acompanhamento espiritual. Os pontos frgeis podem ser reduzidos a trs: o
primeiro a urgncia de uma convico sem reservas sobre o acompanhamento
espiritual, seguida de uma densa experincia pessoal de acompanhamento. No
possvel oferecer ao outro aquilo que no se tem. O segundo ponto trata da compreenso carismtica do acompanhamento espiritual, o conhecimento de Dom
Bosco como diretor espiritual dos jovens, do estudo da riqueza do humanismo
cristo como o de S. Francisco de Sales e como esse tesouro deu consistncia a
itinerrios de crescimento integral dos jovens. O terceiro o da proposta formativa que, enquanto de um lado oferea iniciativas de formao sistemtica, de outro, ajude os salesianos, ainda nas fases iniciais, a apreciarem o acompanhamento
espiritual como experincia pessoal imprescindvel. S a formao concebida nos
dois sentidos da vivncia pessoal e da vivncia pastoral poder desprender tanta
riqueza no corao dos jovens que, de outra forma, permanece inexplorada.

Ao lado destes pontos frgeis, devem-se elencar tambm os pontos fortes
existentes. O primeiro que os jovens respondem bem quando tm a oportunidade de viver a proposta formativa. Eles percebem que o dom oferecido a eles
uma arte que os ajuda a crescer. As relaes pessoais passam do limiar puramente
horizontal ao espiritual.

O nosso ser educadores encontra neste ministrio o ponto privilegiado de
uma evangelizao que abre horizontes antes imprevistos. A experincia positiva
17

em algumas partes da Congregao est a nos confirmar que a proposta original


de Valdocco vivida como era num ambiente que acompanhava espiritualmente,
ainda uma proposta vlida e atual.

Eis, ento, o passo para uma proposta de estudo e reflexo que possa colher
as oportunidades existentes. Antes de tudo, sente-se a necessidade de conhecer
a experincia pastoral de Dom Bosco: descobrir o quanto o ambiente de uma
comunidade que educa era para ele, e ainda o , o espao privilegiado de acompanhamento. A necessidade de personalizar as relaes com os jovens, de interessar-se pela sua histria como uma narrao de grandes horizontes so aspectos
aos quais no podemos renunciar.

A formao para o acompanhamento refora a vocao pessoal e recupera
a espiritualidade salesiana que nos apresenta um Dom Bosco homem de Deus,
profundamente santo e profundamente homem. Reconhecemos com alegria que
no h oposio terica ao acompanhamento espiritual, embora ele no faa parte
do horizonte prtico. A oportunidade mais significativa aquela em que os jovens, sentindo-se envolvidos por um ambiente acolhedor e pastoralmente vlido,
tornam-se abertos e desejosos desta experincia. O itinerrio de pastoral juvenil,
baseado em propostas pastorais que tm o acompanhamento espiritual como parte integrante, vivido em vrias inspetorias como um perodo feliz, rico de uma
cultura vocacional bem evidente.

Encontramos tambm ameaas e perigos inerentes a esta proposta. O discurso cultural que marca as nossas culturas e as nossas histrias no deve ser subestimado porque constitui o ar que respiramos. Em suas vrias formas, o desafio
cultural deve ser encontrado, entendido e administrado com inteligncia e criatividade pastoral. Numa cultura que a todos considera como consumidores, ns,
que recebemos o chamado para sermos educadores, precisamos fazer propostas
que testemunhem um salto de qualidade, propostas que sejam vividas com esprito autntico e compartilhadas sem temor. A clareza das nossas propostas deve ser
evidenciada em dois nveis: primeiro, no nvel de uma educao que no seja apenas transmisso de informao, mas tambm educao que forma; e, depois, no
nvel da proposta evangelizadora, pois as nossas propostas no devem reduzir-se
transmisso dos dados da f, mas a oferecer itinerrios de crescimento na f. O
acompanhamento espiritual uma mediao em que a relao ao mesmo tempo
de ajuda efetiva, humana e pedaggica, encontra gradualmente e com liberdade a
sua plenitude numa relao de ajuda afetiva e espiritual.
18


Como salesianos, temos a grande oportunidade de caminhar com os jovens. O caminho que fazemos com eles o nosso Emas. No podemos falhar na
escuta. No podemos renunciar participao. No podemos recusar o convite
para habitar as suas casas e estar com eles na noite da sua existncia.

3. OS TEMAS DE ESTUDO

Os participantes deste itinerrio de estudo e reflexo individualizaram trs
reas a serem enfrentadas de maneira profunda. A lgica desta escolha era justificada pela motivao principal, surgida no incio do itinerrio dos nossos Seminrios. Ou seja, procurou-se oferecer uma reflexo ampla que ilumina aquilo que
constitui a alma do acompanhamento espiritual salesiano. importante evocar
aqui o motivo subjacente a este itinerrio: a formao de todos os que esto empenhados no acompanhamento espiritual e so chamados a viver esse ministrio.

As trs reas individualizadas so estas:

1. Acompanhamento espiritual e S. Francisco de Sales;

2. Acompanhamento espiritual e Dom Bosco;

3. Acompanhamento espiritual e desafios pastorais

A escolha dos temas, como se ver depois, ao final deste itinerrio, no era
entendida como opo exaustiva e sem continuidade. De fato, a perspectiva desta
modalidade de estudo no se esgota nestes trs seminrios. Ativou-se um itinerrio que valorize a continuidade deste caminho nos prximos anos, quando outras
reas podero ser tratadas. O seu estudo ajudar ulteriormente a reflexo sobre o
tema do acompanhamento espiritual.

3.1. Acompanhamento espiritual e S. Francisco de Sales

Advertimos, antes de tudo, que preciso alargar o conhecimento da figura
de S. Francisco de Sales. Como se ver nas relaes oferecidas, o conhecimento
deste nosso santo protetor tem muito a nos dizer. A sua histria tem uma grande
capacidade de iluminar-nos em nossa pastoral. O tema da caridade pastoral, central para entender Dom Bosco, fruto do amor de Deus como revelado em Cristo
Bom Pastor. Caridade pastoral que suscita e educa no corao dos jovens alguns
19

frutos como a liberdade e o amor enquanto aes do Esprito, e que se tornam


pilares do discernimento. De S. Francisco de Sales aprendemos que o caminho
espiritual, iniciado com a purificao dos sentimentos, progride num ambiente
preocupado com dois elementos: o ambiente marcado pela amizade espiritual e
a personalizao das relaes humanas, e o itinerrio gradual e progressivo mediante a orao, os sacramentos, o empenho na caridade.

Trs relaes aprofundam a rica contribuio de S. Francisco de Sales
desde a perspectiva do acompanhamento espiritual. Aprofundaram-se as linhas
fundamentais do seu mtodo espiritual e pedaggico e examinou-se o perfil do
diretor espiritual que se manifesta nos seus escritos. Enfim, apresentam-se os
critrios da prxis pastoral de direo espiritual praticada pelo bispo de Genebra.
3.2. Acompanhamento espiritual e Dom Bosco

O aprofundamento da experincia espiritual e educativa de Dom Bosco
deu grande oportunidade para focalizar o tema do acompanhamento to urgente
atualmente. A reflexo teve trs momentos de interesse. O primeiro deteve-se
na experincia de direo espiritual vivida por Dom Bosco nos anos do Colgio
Eclesistico de Turim. O segundo apresentava as especificidades peculiares da
direo espiritual oferecida por Dom Bosco aos jovens. O terceiro oferecia de
maneira sistemtica os contedos e as estratgias do acompanhamento espiritual
dos jovens no ser e no agir de Dom Bosco.

Ponto fundamental indicado por estas trs intervenes so, primeiramente, a presena de sbios diretores espirituais durante todo o tempo da vida de Dom
Bosco. Em todos os momentos decisivos da sua vida, h pontualmente quem o
acompanhe. Um acompanhamento marcado por profunda amizade espiritual. No
interior dessa amizade, que evolui de modo harmonioso, h o desenvolvimento
da prpria f como tambm o amadurecimento das grandes opes de vida. De
fato, podemos traar o perfil espiritual de Dom Bosco a partir da figura dos seus
diretores espirituais. Nota-se grande ateno liberdade de quem acompanhado. evidente a capacidade de abrir horizontes sem fechar minimamente os espaos da liberdade humana. H uma forte nfase da humildade que dispe escuta
da voz do Esprito, facilitando assim o espao sagrado para um confronto sereno
e enriquecedor.
20


Outra caracterstica assinalada nas reflexes oferecidas a dimenso comunitria. O clima espiritual sustentado por uma comunidade que vive o que prope determinante para o crescimento integral da pessoa. Esta uma caracterstica que, no devido tempo, marcar intensamente o ambiente de Valdocco, onde o
acompanhamento concreto no cotidiano era vivido na modalidade pedaggica da
amizade, da proximidade e da empatia. As relaes humanas eram como trilhas
capazes de transmitir e fazer chegar fora, coragem e luz ao itinerrio de vida dos
jovens.
3.3. Acompanhamento espiritual e desafios pastorais

A ltima rea de estudo era a dos desafios pastorais. O que, substancialmente, significa hoje empenhar-nos na formao de acompanhantes espirituais?
Abre-se aqui uma reflexo com um campo muito vasto. O terceiro seminrio de
estudo procurou examinar o tema desde trs aspectos complementares:

o desafio da ps-modernidade;

o desafio da multiculturalidade;

os desafios na formao dos diretores espirituais salesianos.

Pareceu-nos oportuno deter-nos num aspecto que complementa todo o itinerrio incluindo uma quarta reflexo sobre o acompanhamento pessoal na proposta educativo-pastoral salesiana. Trata-se de uma contribuio que refora em
sntese pastoral o valor das contribuies em vista de uma meta bem definida.

Antes de apresentar alguns pontos surgidos do estudo das relaes, creio
ser importante assinalar que nestas quatro relaes h um fio condutor muito
importante: o apelo para ler o tempo e a histria com atitude respeitosa, marcado pela leitura crente do que acontece no mundo. prprio de Dom Bosco, da
sua experincia pastoral, colocar-se escuta antes de fazer qualquer interveno.
Cabe a ns, ainda hoje, recuperar esta atitude que no apenas sinal do respeito
devido, mas principalmente atitude de um corao crente que deseja ver os sinais
do amor e da misericrdia de Deus nos acontecimentos da vida.


[a] Entre os desafios oferecidos pelo ambiente ps-moderno reconhecemse aqueles que tocam a indiferena ou a oposio s formas institucionais da re21

ligio ou a ausncia total de uma experincia crist bsica. So realidades sociais


que podem desencadear concepes incorretas dos jovens, como se os jovens
fossem a priori contrrios f. Nesse contexto, continua o desafio e a dificuldade
de como se comunicar com os jovens, especialmente nas fases mais crticas de
sua vida. Sua vida uma vida em que o rumor externo, real e metafrico, no
favorece de modo algum a interioridade e a reflexo. A estes desafios, acrescentase o da fragmentao das experincias vividas pelos jovens em todos os nveis, a
comear da famlia, com as consequentes dificuldades de construir uma identidade prpria.

Nossas prprias comunidades religiosas, ao sofrer o impacto da ps-modernidade, correm o risco de uma atitude imediata negativa acrtica. Ou, algumas
vezes, por medo ou cansao, oferecem formas de pensamento e propostas frgeis.
Com atitude semelhante, escapam-nos elementos fundamentais como as novas
sensibilidades apresentadas pelos jovens: o discurso da opo, a busca e a necessidade de respostas aos problemas da vida, a nova sensibilidade pelo espiritual,
a abertura do corao de muitos jovens. A questo esta: como aproveitar e estimular esta sede implcita na vida dos jovens?

Sente-se aqui a urgncia de uma proposta que tenha contedo. No basta
que os jovens consumam o tempo. A f no um produto a consumir, mas uma
experincia a viver. Favorecer a abertura transcendncia, mirar sacramentalidade da vida, ao sentido da cruz e vocao so desafios que pedem de todos os
educadores/educadoras uma vida bem enraizada na pessoa de Cristo. O mesmo
vale para a iniciao orao crist.

Tem-se, s vezes, a impresso de que possumos grande capacidade para
acolher, estabelecer relaes cordiais e fazer propostas de grupo ou de massa,
mas de no conseguirmos ir alm, isto , dar respostas s questes mais profundas
ou s necessidades mais significativas de suas vidas. Nesta situao, inserir uma
proposta de acompanhamento pessoal dos jovens , no mnimo, difcil.

O desafio sobre o tema do vazio ps-moderno e do desejo e a fome de
espiritualidade dos jovens no s nos aproximam da necessidade de despertar os
jovens da apatia para o reconhecimento desta fome do espiritual, mas tambm
nos desafiam a uma presena proftica autntica. S a profecia marca um corao
em busca e acende a luz que facilita os primeiros passos.

Um ponto que retorna aqui como nos dois seminrios anteriores o tema
do ambiente. A preocupao com o ambiente educativo e o aspecto da assistn22

cia salesiana, entendida como presena positiva e estimuladora entre os jovens,


constituem um recurso tipicamente salesiano. Uma dimenso que torna possveis
as relaes significativas e favorece a possibilidade do acompanhamento. O ambiente no apenas espao fsico, institucional, mas espao relacional.

Enfim, a urgncia de elaborar e propor experincias de vida crist, de orao e de contato vivo com a pessoa de Cristo. Propostas que, de um lado devem
levar em conta a situao concreta dos jovens e, de outro, devem ser iniciadas
com gradualidade. O itinerrio educativo-evangelizador orienta-se sempre para
um objetivo claro com envolvimento crescente.


[b] Os desafios na formao dos diretores espirituais em contextos multirreligiosos e multiculturais evocam como ponto central o apelo a traar itinerrios personalizados de formao. O grande horizonte desta urgncia deriva do
fato que num contexto multirreligioso o testemunho proftico o mais das vezes
silencioso e annimo, mas constante e autntico, e tem o poder de incidir nas
pessoas.

O grande desafio, ento, como favorecer um processo de iniciao espiritual e de encontro com o Senhor, que seja assumido como itinerrio pessoal.
Um dos maiores riscos que encontramos o de interpretar a nossa identidade e
a nossa contribuio Igreja e sociedade apenas em nvel de organizao social. Em contextos nos quais a pobreza grande, somos muito apreciados, como
gente de f, pela contribuio que damos e pela qualidade e dedicao com que o
fazemos. Nesta compreenso fcil identificar a maturidade humana e espiritual
com a responsabilidade administrativa e a criatividade de uma proposta atraente.
Isso leva a supor em muitos casos que os jovens em formao, na medida em que
se mostram capazes de fazer funcionar experincias e estruturas, j possuem um
corao evangelizado. Concluso que tem repercusses inquietantes.

A falta de personalizao no itinerrio formativo pode resultar apenas
numa vida vocacionalmente frgil, uma vida em que o ambiente educativo administrado, mas no interpretado como espao para uma proposta educativa e
evangelizadora. O fenmeno de pessoas indispostas ou mal preparadas se verem
na necessidade de acompanhar espiritualmente os jovens deve ser visto na lgica
de que ningum pode facilitar um acompanhamento se jamais o viveu e assumiu
como experincia pessoal.
23


Decorre desta lgica a importncia de uma ligao entre o campo formativo e o campo pastoral. O objetivo exato e requer empenho: esta sinergia tornase indispensvel enquanto facilita o enriquecimento recproco.
[c] Os desafios na formao dos diretores espirituais na vida religiosa
representam uma passagem muito significativa no itinerrio proposto at agora.
Examina-se um tema que abre um leque de desafios, a comear da adequada
compreenso do acompanhamento espiritual e dos seus vrios tipos de existir. O
ponto central deste tema foi individualizado na importncia do discernimento vocacional. Quem acompanha espiritualmente chamado a educar familiaridade
com o mistrio de Deus, no pleno respeito da liberdade da pessoa, para que esta
possa responder progressivamente e sempre melhor. Um segundo tema ao qual se
deu muita ateno foi o da afetividade: como acompanhar os desafios no campo
afetivo-sexual.

A formao para o acompanhamento espiritual deve ser lida tendo como
pano de fundo a vida religiosa hoje, num momento no fcil. Esta situao tem a
sua influncia no acompanhamento e na formao. Por isso, importante o papel
das pessoas chamadas ao ministrio do acompanhamento espiritual. Uma frase
desta relao sintetiza muito bem o tema do acompanhamento espiritual neste
momento histrico: O elemento determinante para ter ou no casas de formao
se elas tm ou no formadores. O acompanhante assemelha-se imagem do
mestre. -lhe pedido algo alm de segurana num momento em que no a do
as estruturas e as instituies. A formao torna-se mais complexa e, por isso, o
papel de quem acompanha torna-se sempre mais relevante.


[d] A ltima reflexo quer oferecer motivaes, apoio, luz, guia para o
caminho do acompanhamento que o Senhor nos convida a percorrer na Pastoral Juvenil Salesiana neste momento histrico. Confluem para estas pginas as
contribuies de reflexes corajosas e lcidas dos diversos participantes dos Seminrios de estudo. A amplitude das matrias tratadas e o cuidado com que foram
estudadas fazem com que se possa encontrar neste ltimo tema algumas sugestes
para um adequado servio Pastoral Juvenil Salesiana. Realmente, a necessidade
e a demanda de acompanhamento, que brotam principalmente do mundo juvenil,
interpelam a nossa proposta educativo-pastoral e pedem respostas adequadas.
Educar f uma exigncia no s realizvel, mas imprescindvel e urgente no
24

interior da Pastoral Juvenil Salesiana. Ampliamos o conceito de acompanhamento realidade dos adolescentes e jovens com a certeza de que eles buscam adultos
competentes e dispostos a prestar este servio. O acompanhamento na Congregao assumiu ao longo dos anos muitas formas e intervenes; o itinerrio aqui
traado exprime algumas modalidades que nos fazem repensar novos tempos e
espaos para este ministrio apostlico.

4. GUIADOS PELA PALAVRA



Os vrios momentos deste itinerrio de estudo e reflexo foram vividos
num clima em que a centralidade era dada Palavra de Deus. O nosso itinerrio
encontra sua fonte na Palavra de Deus. E tambm aqui vivemos um esquema que
iluminava o estudo e a reflexo de maneira harmoniosa.

Seguir Jesus uma experincia que deve levar a t-Lo continuamente conosco. S aqui encontramos a resposta ao por que de qualquer vocao (Mc
2,14-17). Um chamado marcado pela liberdade o Filho do homem Senhor
tambm do sbado (Mc 2,18-28), mas vivido pagando um preo: o preo da cruz
(Mc 8,34-38).

O chamado tambm pode ser uma experincia de frustrao, porque Jesus
no um bem a ser adquirido; ele s um bem para quem ainda nada possui:
ficou triste com aquelas palavras, e foi embora aflito, pois tinha muitos bens (Mc
10,17-22). Entretanto, tambm para aqueles que aceitam permanecer com Jesus
com estas condies, assumir a cruz sempre exige empenho. Participar da sua
misso continua a ser um desafio permanente: o desafio de no se deixar vencer
pelo sono (Mc 14,32-35), ou ser arrastado pela traio ou pela falta de fidelidade (Mc 14,1-72).

A vivncia da lectio divina quer ser um sinal e tambm um paradigma pastoral e espiritual que testemunha a centralidade da Palavra de Deus. Aqui est o
hmus que nutre e d fora experincia do acompanhamento espiritual.

5. CONCLUSO

Gostaria de concluir com o pensamento de um autor que marcou a reflexo
sobre o acompanhamento espiritual no perodo ps-Conclio, Andr Louf. Em
25

seu livro Generati dallo Spirito. Lacompagnamento spirituale oggi (Gerados


pelo Esprito. O acompanhamento espiritual hoje), o autor conclui o primeiro
captulo, O acompanhamento espiritual na experincia crist de hoje, com uma
reflexo presente neste itinerrio de estudo e reflexo.

Louf escreve que o acompanhamento espiritual oferece um desafio vida
religiosa num perodo em que preciso empenhar-se para suscitar processos de
f. Precisamos dar ateno ao fato de existirem alguns jovens que se aproximam
para fazer o itinerrio de discernimento sem terem feito uma experincia de f em
suas famlias. Muitos formadores constatam que a transmisso da f no se deu
corretamente no ncleo de origem:
Os formadores encontram-se frequentemente diante de certas pginas inteiramente virgens que jamais foram preenchidas. verdade que em muitos casos
elas ainda devem s-lo, ao menos em parte, assim como demonstrado que
o acompanhamento espiritual pode compensar com certo sucesso o que no
aconteceu no momento devido. Esta constatao s faz confirmar a importncia do papel dos pais e, como primeira etapa importante do acompanhamento
espiritual, deveria chegar ao interior da famlia crist.1


Outro ponto toca o desafio de um acompanhamento que saiba suscitar processos de crescimento integral, no tanto mediante palavras proclamadas, mas
atravs da ao de uma testemunha (que) se presta de modo transparente ao
de Deus por meio dela. A pessoa, ento, d testemunho das maravilhas que Deus
realizou em si, e que podem ser realizadas tambm em seus irmos. Esta transmisso, fundamentada no testemunho de uma experincia vivida, remete-nos novamente ao discernimento espiritual e nova sensibilidade que o Esprito nos
d para permitir-nos perceber corretamente o que Deus realiza em ns. Neste
sentido, a prtica renovada do acompanhamento espiritual uma chance para a
Igreja de hoje. Ela coloca em termos novos, mas particularmente adequados, o
problema de uma autntica pedagogia da vida de f e da experincia espiritual.2

O desejo que este itinerrio aqui apresentado possa servir para redescobrir o tesouro do acompanhamento espiritual, renovando a sua prtica em vista de
uma autntica pedagogia que ajude os jovens em sua busca da verdadeira alegria.
Andr LOUF, Generati dallo Spirito. Laccompagnamento spirituale oggi, Edizioni Qiqajon, Magnano 1992, 18.
2
Ibid.
1

26

PRIMEIRA PARTE
So Francisco de Sales
e o acompanhamento espiritual

So Francisco de Sales como diretor espiritual


Prxis pastoral da direo espiritual do Bispo de Genebra

Eugenio Alburquerque Frutos, sdb


A finalidade desta contribuio apresentar Francisco de Sales, bispo e
pastor de Genebra, diretor espiritual, enquadrando o exerccio da direo espiritual em sua prxis pastoral, esclarecer o que ela significou em sua vida e em sua
extraordinria atividade episcopal, indicar como ele a exerceu e quais foram os
seus principais aspectos especficos. As fontes primrias deste estudo no foram
outras seno a mesma vida do santo e as suas obras: Introduo vida devota,
Tratado do amor de Deus e, especialmente, o seu epistolrio.1

Dom Bosco, ao longo de sua vida, interessa-se por muitos santos, admira-os
e inspira-se em muitos deles (S. Afonso, S. Felipe Neri, S. Vicente de Paulo, S.
Lus Gonzaga etc.). Sente-se, contudo, especialmente atrado por S. Francisco de
Sales, cujo retrato pde contemplar desde seus anos de seminarista na capela do
seminrio de Chieri.

impossvel determinar o nvel do conhecimento de Dom Bosco
sobre a personalidade e os escritos do Bispo de Genebra. Todavia, h algo que
necessariamente se impe. Dom Bosco um homem prtico, que consegue aferrar
o essencial das coisas. E consegue apreender tambm o essencial da vida e dos escritos de Francisco de Sales. O que mais o impressiona e mais influi sobre ele , de
um lado, o exemplo do apstolo ardoroso do Chablais calvinista; e, de outro, a mansido e a doura do seu corao. Ou seja, Dom Bosco concentra a mensagem de
Francisco de Sales na caridade pastoral e na amabilidade; Dom Bosco v Francisco
de Sales como pastor zeloso, sempre animado pelo esprito de doura, mansido e
bondade.2
Os escritos de S. Francisco de Sales esto reunidos nos XXVI volumes da edio Oeuvres de saint
Franois de Sales. vque et Prince de Genve et Docteur de lglise. dition complte daprs les
autographes et les ditions originals, enrichie de nombreuses pices indites, 27 vols.; Lettres XIXXI, Monastre de La Visitation, Annecy 1892-1932, na abreviao OEA, tomo e pgina [N.d.E.].
2
Cf. SO JOO BOSCO, Storia ecclesiastica ad uso delle scuole, Turim 1845; Memrias do
Oratrio de So Francisco de Sales, Editora Dom Bosco, Braslia 2012; E. ALBURQUERQUE,
Don Bosco y San Francisco de Sales, Editorial CCS, Madri 2007; A. PEDRINI, San Francesco di
Sales e Don Bosco, Roma 1986.
1

28

1. Pastor zeloso

o que Francisco de Sales realmente foi: pastor zeloso, ardoroso. Ao contemplar sua figura e sua espiritualidade, estamos habituados, s vezes, a admirar
de modo especial o modo com que viveu o amor com a doura e a mansido
da ao. Apesar disso, madre Chantal, talvez a pessoa que conheceu o santo no
modo mais profundo e elevado, no duvidou em afirmar que nele havia uma virtude mais dominante ainda: o zelo pela salvao das almas.3

Hoje, na Igreja, falamos de caridade pastoral. Isso significa que a participao no amor de Deus se manifesta no servio e no amor ao prximo. Ou seja,
como todo amor, a caridade pastoral tem origem no amor de Deus, e este amor
se manifesta ativamente no servio pastoral. Trata-se de um amor segundo Deus,
vivido na participao da misso salvfica de Cristo Pastor, enviado pelo Pai para
a salvao de todos os homens.

Embora nos tempos do Bispo de Genebra a expresso ainda no tivesse
sido criada, pode-se garantir que a sua espiritualidade orientada totalmente pela
corrente vital do amor divino que se transforma em caridade pastoral, motor do
dinamismo que vive e demonstra em suas obras. Francisco de Sales ama a Deus
e s deseja que todas as criaturas o amem. Talvez o seu ensinamento mais importante seja precisamente este: quem chega a amar e experimentar o amor de Deus,
no pode deixar de convert-Lo e o seu Reino em objetivo da prpria existncia.
Francisco de Sales vive imerso no amor de Deus, e toda a sua vida no outra
coisa seno uma resposta reconhecida ao Amor. Nesse sentido, o mesmo Santo
escreve:
Esta divina paixo aquela que deu origem a tantos empreendimentos apostlicos; aquela que semeou de tantas aventuras as vidas de Xavier, Berceo e
Antonio, com a multido de jesutas, capuchinhos, religiosos e eclesisticos de
todas as classes nas ndias, no Japo, no [rio] Maranho, enviados a difundir e
fazer adorar o nome sagrado de Jesus em meio a to grandes povos; aquela que
ditou to grandes livros de piedade, construiu tantas igrejas, altares e casas de
piedade; enfim, aquela que faz vigiar, trabalhar e morrer tantos servos de Deus
entre as chamas do zelo que os consome e devora.4
Declarao da madre Joana Francisca Frmyot de Chantal na causa de beatificao e canonizao,
in F. M. CHAUGY, Juana Francisca Frmyot de Chantal. Su vida y sus obras III, Madri 1929, 234-237.
4
Tratado del amor de Dios, V, 9.
3

29


Para Francisco de Sales, zelo sinnimo de amor ardente ou, melhor,
de amor amante. Quando procura descrev-lo, ele afirma: O verdadeiro zelo
filho da caridade sendo, como , o seu ardor. Esta a sua caracterstica peculiar; e essa filiao o reveste de todos os aspectos que acompanham o verdadeiro amor:
Como a caridade, paciente, benigna, sem desordem, sem disputas, sem dio,
sem inveja, e alegra-se na verdade. O ardor do verdadeiro zelo como o do
caador diligente, solcito, ativo, laborioso e muito afeioado caa, mas sem
clera, sem ira, sem agitao; se o trabalho dos caadores fosse colrico, irado
ou penoso, no seria to amado nem estimado. O verdadeiro zelo possui ardores muito abrasadores, mas constantes, firmes, afetuosos, laboriosos, amveis
e incansveis.5


Assim brilhava nele de modo singular. Sua alegria era incomparvel quando podia constatar a converso operada por Deus no corao dos pecadores; e
a sua aflio era amarga diante da dureza dos que se fechavam graa. Estava
disposto a abandonar at mesmo a orao e o servio direto de Deus pelo servio
do prximo. Foi, realmente, um apstolo incansvel, sempre disposto a suportar
aflies e fadigas, dificuldades, sofrimentos, calnias, perseguies pelo Reino
de Deus e pela salvao das almas.

Estimulado pela caridade de Cristo, entregou-se inteiramente salvao
das almas, colocando sempre a ao pastoral no corao de Cristo, prolongando
e participando da sua mesma atividade de Bom Pastor. Assim o v Dom Bosco
na misso do Chablais, misso realmente difcil, que lhe causou muitas aflies
e sofrimentos; e assim o viram muitos que compararam a sua misso com a de
Francisco Xavier na ndia. Ao final da misso, o Duque de Saboia, Carlos Emanuel, apresenta-o ao Card. Alexandre de Medici (futuro papa Leo X) com estas
palavras:
Monsenhor, apresento-vos o apstolo do Chablais; eis um homem enviado
por Deus que, inflamado por um grandssimo zelo pela salvao das almas, no
sem grave perigo para a prpria vida, propagou nesta provncia a palavra de
Deus e implantou a Cruz de Nosso Senhor.6

5
6

Tratado del amor de Dios, X, 16.


Cit. in A. RAVIER, Franois de Sales. Un sage et un saint, Nouvelle Cit, Paris 1985, 78-79.

30


A caridade pastoral praticada pelo apstolo do Chablais acompanha a vida
inteira de Francisco de Sales e define tambm a sua atividade episcopal. O Bispo de Genebra entrega-se inteiramente prpria diocese; durante vinte anos de
episcopado consagra-lhe os seus dias e as suas noites. Enquanto bispo, sente-se
e reconhece-se especialmente pastor: pastor das ovelhas mais carentes, mdico
daqueles que sofrem, declara. Est to convencido de que a salvao das almas
faz parte da sua prpria salvao, que escreve: parte to grande que equivale quase ao todo; tem conscincia, portanto, de trabalhar pela prpria salvao
quando busca a dos outros. Todas as preocupaes parecem-lhe poucas quando
se trata de levar o evangelho, construir a Igreja de Cristo, promover a reforma
catlica desejada pelo Conclio de Trento.

No podemos nos deter na atividade pastoral ingente deste exmio pastor,
simplesmente porque no este o tema principal de nossa reflexo. Deveramos
observar, sem dvida, a importncia de suas visitas pastorais a todas as parquias
da vasta diocese de Genebra, as suas iniciativas de reforma eclesial no campo da
liturgia, da catequese, da educao, do ensino e da formao religiosa do povo, no
ministrio da palavra, nos snodos diocesanos etc. Foi-nos pedido para nos determos na atividade pastoral praticada por Francisco de Sales na direo espiritual.
Ela , sem dvida, um aspecto fundamental da sua atividade pastoral cotidiana.
Ele acompanhou espiritualmente religiosas e sacerdotes, importantes personalidades histricas, pessoas da alta sociedade e muita gente simples atravs do
sacramento da reconciliao, do colquio pessoal e de milhares de cartas escritas
com essa finalidade.

Historicamente, dois casos tm importncia especial: a direo espiritual
de Luisa Duchastel, senhora de Charmoist, que deu origem ao seu livro mais
famoso, Introduo vida devota, e a direo de Joana Francisca Frmyot, baronesa de Chantal, que ele acompanha espiritualmente da viuvez fundao da
Ordem da Visitao e santidade, e cuja experincia espiritual palpita como pano
de fundo no Tratado do Amor de Deus. Como afirma Lajeunie, Francisco de Sales
tornou a arte da direo espiritual realmente popular no mundo.

2. O dom do discernimento

Para Francisco de Sales, a direo espiritual constitui uma das atividades
mais estimadas do seu ministrio episcopal. Ele acredita que, sobretudo ao Bispo,
31

cabe levar as almas perfeio, e confessa que, embora se tratando de trabalho


difcil, empresa consoladora:
Confesso que muito trabalhoso dirigir almas em particular, mas trabalho
consolador, semelhante ao dos semeadores e colhedores que nunca esto to
alegres como quando esto muito empenhados. Trabalho que alarga o corao, o reconforta e reaviva com a suavidade que comunica a quem o inicia,
semelhante ao efeito do cinamomo sobre aqueles que o transportam atravs da
Arbia Feliz.7



O Bispo de Genebra foi e certamente reconhecido como um dos grandes
mestres da direo espiritual. Para isso preparado por toda a sua formao. Nos
anos de estudante em Paris, alm do acompanhamento do seu preceptor e tutor, o
abade Dage, teve provavelmente um diretor espiritual, embora no conheamos
o seu nome, escolhido entre os jesutas do Colgio Clermont. Em Pdua, desde
a sua chegada, confiou-se ao padre Antonio Possevino. De retorno Saboia, nos
momentos to importantes de discernimento e luta vocacional, foi acompanhado
pelo padre Amadeo Bouvard. Nos incios do episcopado confia-se ao padre Fourier, reitor do colgio dos jesutas de Chambry. Durante alguns anos, confessa-se
regularmente com Felipe de Quoex, penitencirio de sua catedral. Desde 1608
confia a prpria conscincia a Miguel Favre, jovem sacerdote recm-ordenado.

Contudo, alm desta longa experincia de ser orientado e da sua acurada
preparao intelectual, possua de forma elevada o dom da direo dos espritos.
Todos os seus bigrafos garantem que Deus lhe dera uma lucidez particular para
a direo das almas. Segundo A. Hamon, poucas pessoas possuram de modo to
elevado a viso, to fina e profunda, de penetrar na intimidade das conscincias,
aquela espcie de intuio sobrenatural que a alma de uma sbia direo.8 No
processo de canonizao, madre Chantal declarou:
Entre todos os dons que o nosso Bem-aventurado Fundador recebeu de Deus,
o de discernimento dos espritos foi um dos mais eminentes; e esta uma das
verdades que jamais foi colocada em dvida por quem quer que o tenha frequentado e tratado pessoalmente. Por isso, recorriam a ele de diversos lugares
com a finalidade de obter esclarecimentos para suas dvidas de conscincia
(...). O nmero das almas que acompanhou ao longo do caminho da perfeio
Introduction La vie dvote, in uvres, III. [N.d.T.: Arbia Feliz, ou Arabia Felix, em latim, era o nome
dado regio hoje correspondente ao Imen e Om.]
8
A. HAMON, Vida de San Francisco de Sales II, Difusin, Buenos Aires 1948, 356.
7

32

crist, em diversos lugares, quase inumervel (...). Tinha uma viso to penetrante que, quando lhe falavam ou lhe escreviam sobre a prpria conscincia,
discernia com delicadeza e clareza sem iguais as inclinaes, moes e todos
os segredos das almas, e falava em termos to precisos, claros e inteligveis,
que fazia compreender com grande facilidade as coisas mais delicadas e elevadas da vida espiritual.9


Dotado de dons de natureza e graa, atraa de modo simples e natural muitas almas desejosas de perfeio. Desde a ordenao sacerdotal em 1593, confessa muitas pessoas de todas as classes e condies, inclusive vrios familiares.
Sua prpria me chega a consider-lo como seu diretor espiritual. Era normal
encontr-lo na catedral de So Pedro, disponvel por longas horas escuta dos
penitentes. Acolhia a todos com grande amor e doura; a muitos, ele seguia e
acompanhava na tarefa da direo espiritual, quer atravs do colquio pessoal
quer atravs da correspondncia epistolar.

certamente indispensvel referir-nos sua correspondncia epistolar ao
tratar da direo espiritual do Bispo de Genebra. Talvez possamos conhecer melhor a importncia dada por ele direo espiritual e a sua prxis pastoral precisamente atravs das muitas cartas que escreveu. Francisco de Sales sempre foi um
homem sumamente ocupado; isso, porm, no o impedia, segundo a confisso de
seus ntimos, de dedicar todos os dias um bom tempo para escrever cartas; muitas delas so de direo espiritual.10 O prprio Bispo fala de milhares de cartas
que recebe11 e do dilvio de cartas que est para escrever.12 Com elas, o Bispo
de Genebra desenvolve uma atividade ingente de direo espiritual. Nas cartas,
palpita tambm o corao de Francisco de Sales, um corao de carne, terno,
sensvel, apaixonado, feito para amar e ser amado; e nelas pode-se perceber a
densidade espiritual do santo Bispo. So muitos os que pensam que a sua correspondncia epistolar represente a histria de sua vida, a mais completa e a mais
fiel. Efetivamente, nas Cartas ele se manifesta no modo mais vivo e transparente;
melhor do que em nenhuma outra de suas obras, possvel contemplar nelas toda
a sua rica personalidade. Se a Introduo vida devota ou o Tratado do Amor
Declarao de madre Joana Francisca Frmyot de Chantal na causa de beatificao e canonizao,
in: Juana Francisca Frmyot de Chantal. Su vida y sus obras III, Madri 1929. Pode-se ver o texto em: E. ALBURQUERQUE, Una espiritualidad del amor: San Francisco de Sales, Editorial CCS, Madri 2007, 217-218.
10
Segundo afirma Michel Favre: no passava um s dia em que ele no escrevesse vinte ou vinte e
cinco cartas, respondendo a todo tipo de pessoas: Oeuvres de saint Franois de Sales (OEA XI, p. XIX).
11
OEA XIX, 353.
12
OEA XX, 245.
9

33

de Deus fazem-nos admirar o telogo, o doutor, o santo, as Cartas revelam-nos


o homem, um homem dotado de natureza sensvel, delicada e, ao mesmo tempo,
de extraordinria profundidade espiritual; revelam-nos um Francisco de Sales
perfeitamente humano e perfeitamente homem de Deus.

Embora sua atividade epistolar tenha comeado quando ainda era estudante, parece que o epistolrio espiritual tem incio depois da sua permanncia
em Paris, em 1602; aumenta depois da pregao da quaresma em Dijon (1604)
e, desde ento, mantm uma importncia decisiva na atividade cotidiana do Bispo at o fim de sua vida. Efetivamente, durante sua permanncia em Paris, em
1602, Francisco de Sales estabelece uma relao espiritual muito consistente com
diversas personalidades e comunidades parisienses, especialmente com as que
fazem parte do crculo da senhora Acarie. Muitos recebem os seus conselhos e
muitos comeam a admir-lo como extraordinrio diretor de almas. Depois, aps
o encontro com Joana Francisca de Chantal, nos anos em que prepara a fundao
da Visitao e a nova famlia religiosa caminha, essa tarefa ocupa grande parte
dos seus dias.

Atualmente, esto publicadas mais de duas mil cartas salesianas. A edio
principal continua aquela em onze volumes da edio das Obras Completas, do
Mosteiro da Visitao de Annecy; a partir desta edio foram publicados vrios
volumes de seleo de cartas.13 Tm certamente um notvel interesse histrico,
tambm pelo fato de dirigir-se a um crculo muito amplo de correspondentes e
pela importncia de alguns deles no seu tempo (Clemente VII; Paulo V; Gregrio
XV; Bellarmino; Brulle; Carlos Emanuel, Duque de Saboia; Antonio Favre, Presidente do Senado de Chambery; Vicente de Paulo; a senhora Acarie; Anglica
Arnaud). Todavia sua importncia principalmente espiritual: so cartas espirituais. Com elas, de modo personalizado, Francisco de Sales dirige muitas almas,
transmite o seu pensamento e experincia espiritual.

O Bispo de Genebra serve-se deste gnero literrio para dirigir e acompanhar espiritualmente muitas almas com as quais estabelece relao em suas
pregaes quaresmais em lugares muito diversos (Paris, Dijon, La Roche, Chambry, Grenoble etc.) ou nas visitas pastorais s parquias de sua diocese. Dentre
os correspondentes, acompanhou alguns at o fim de sua vida (a senhora de la
13
Cf. E. LE COUTURIER, Lettres de direction et Spiritualit de Saint Franois de Sales, Vitte, Lion 1952; A.
RAVIER, Correspondence. Les lettres damiti spirituelle, Descle de Brouwer, Paris 1980 (trad. italiana); J.
GUTIERREZ, San Francisco de Sales. Cartas espirituales, Editorial Litrgica Espaola, Barcelona 1945; E.
ALBURQUERQUE, Direccin y amistad espiritual, Cartas de san Francisco de Sales a santa Juana Francisca de
Chantal, Editorial CCS, Madri 20092.

34

Flchere, a senhora Brlart), acompanhando muito de perto o seu progresso espiritual, as suas batalhas, os seus sucessos e falncias; outros, porm, mudaram
de direo; alguns, apenas iniciado o itinerrio, desistiram. Entre todos tem importncia muito especial a viva baronesa Joana Francisca de Chantal, que se
transformou na filha predileta do Bispo e na obra mestra da sua direo espiritual.

Sintetizando, parece-me que se possa afirmar que as cartas salesianas constituem um testemunho irrefutvel da importncia da direo espiritual na vida e
ao pastoral de S. Francisco de Sales. Manifestam de modo claro e contundente
a sua atividade intensa nesse campo, refletem a figura de diretor espiritual que ele
encarna, fazendo ressaltar, tambm, as linhas prprias da direo espiritual conduzida pelo Bispo de Genebra. Mostram-nos, na verdade, o Francisco de Sales
diretor e guia espiritual.
3. CARACTERSTICAS da direo espiritual do Bispo
de Genebra

A partir, sobretudo das cartas, procurarei traar o perfil de Francisco de
Sales diretor espiritual, indicando as caractersticas que me parecem mais importantes na sua atividade de guia e acompanhante no itinerrio da perfeio
crist. Agrupo-as ao redor de trs eixos: personalizao, humanismo e amizade.
Parece-me que a direo espiritual realizada pelo Bispo de Genebra em sua prxis
pastoral especialmente uma direo personalizada, humanista e colocada na
perspectiva da amizade espiritual.

3.1. Direo personalizada



Se observarmos as suas cartas de direo espiritual, notamos antes de tudo
que, para Francisco de Sales, cada uma delas era algo muito pessoal, muito ntimo. O Bispo de Genebra jamais pensou que as suas cartas espirituais seriam
publicadas; desagradava-lhe at mesmo que alguns de seus fragmentos passassem de mo em mo. Ele as escrevia respondendo a situaes pessoais de seus
destinatrios. Francisco de Sales tem o dom de personalizar cada carta. Para ele,
nenhum de seus correspondentes idntico aos demais e nenhum deles sempre
o mesmo. Cada carta adapta-se, ento, no s pessoa, mas at mesmo s dife35

rentes situaes vividas por ela. Ele aceita a pessoa que est dirigindo tal como
ela e, a partir da situao espiritual concreta em que se encontra, ele a orienta e
acompanha no caminho da perfeio. Obtm realmente uma admirvel sintonia
e empatia com cada uma das almas, porque chega profunda percepo e ao
conhecimento do corao humano, dos valores espirituais, das aflies e reaes
interiores. Tudo isso parece visvel e tangvel a Francisco de Sales.

Ou seja, Francisco de Sales demonstra sempre grande sensibilidade pela
individualidade e subjetividade da pessoa; procura a sua verdade com simplicidade e quer resgat-la do automatismo, da rotina e do temor que ameaam com
muita frequncia as almas desejosas de iniciar o itinerrio da sequela e do amor
de Deus. Ele possui o dom de uma observao penetrante do corao humano no
qual fixa a ateno para buscar as razes do bem e do mal. Segundo o testemunho
de Joana Francisca de Chantal, a primeira coisa que ele fazia era informar-se bem
das disposies das almas com as quais tratava. Para iniciar a obra de direo,
queria-as dispostas e desejosas de chegar devoo, ao amor divino:
Se no as encontrava dispostas, parava imediatamente, no querendo desperdiar palavras onde no h ouvintes; mas, to logo reconhecia a uno do esprito de Deus, dispensava s almas as instrues e os ensinamentos necessrios
para a sua salvao.14


Este extraordinrio sentido pedaggico, que inicia tomando as almas
na situao em que elas se encontram, manifesta-se especialmente em sua capacidade de guia e em oferecer a cada uma o alimento conveniente prpria
personalidade, carter e situao espiritual. Nada mais admirvel do que a
flexibilidade e capacidade de adaptao da sua direo. Ele adapta a orientao e os conselhos situao pessoal, familiar, social, buscando sempre a
realizao perfeita dos prprios deveres.15 Exemplo paradigmtico o projeto
de vida que prope numa de suas cartas baronesa de Chantal.16

Por trs e como pano de fundo desta sensibilidade e capacidade de adaptao, h no Bispo de Genebra um sagrado respeito pela pessoa como indivduo.17
Declarao de madre Chantal no processo de santidade e milagres, in F. M. CHAUGY, Juana Francisca
Frmyot de Chantal, cit., 219.
15
Cf. J. STRUS, Il metodo della direzione spirituale nellinsegnamento e nella pratica di San Francesco
di Sales, Salesianum 40 (1978) 289-306.
16
Cf. Carta CCXXXIV, OEA XII, 352-370.
17
Cf. M. WIRTH, Franois de Sales et leducation. Formation humaine et humanisme integral, ditions Don
Bosco, Paris 2005, 299-310.
14

36

Acusou-se com frequncia a direo espiritual tradicional de controlar, tutelar e


direcionar excessivamente. No essa a perspectiva nem a orientao em que
se coloca a ao pastoral concreta de Francisco de Sales. Ao contrrio, ele se
demonstra sempre sumamente respeitoso da pessoa, da sua autonomia, da sua
conscincia. Inclina-se sobre ela e a ela se adapta. So muitos os seus dirigidos
e correspondentes, e muitssimo diferentes as suas condies e situaes sociais e
espirituais. O Bispo de Genebra sempre se esfora para adequar-se, e consegue-o,
ao temperamento de seus dirigidos, aos seus deveres de estado, ao seu nvel de
progresso na perfeio crist. Na Introduo vida devota, ele proclama que
Deus ordena aos cristos, plantas vivas da sua Igreja, que produzam frutos de
devoo de acordo com a prpria qualidade e estilo e, por isso, a devoo deve
ser praticada diferentemente pelo cavalheiro, pelo operrio, pelo servo, pelo prncipe, pela viva, pela donzela, pela casada e, tambm, preciso adaptar a sua
prtica s foras, s ocupaes e aos deveres de cada estado.18

Toda a sua prxis pastoral confirma esse ensinamento. E esse o segredo
e a mais admirvel arte de Francisco de Sales como diretor espiritual. A finalidade da direo espiritual sempre a mesma para todos: orientar para a perfeio
crist. A verdadeira arte est em conseguir indicar exatamente o itinerrio especfico que a ela conduz. Esta a arte do Bispo de Genebra, sabedor de que cada
planta e cada flor precisa de um cuidado especial num jardim,19 ele penetra na
intimidade da pessoa, chega ao conhecimento profundo da sua situao espiritual
e adapta-se individualidade, condio, ao carter e s foras de cada uma.
3.2. Direo humanista

F. Strowski escreveu que a direo espiritual em Francisco de Sales , sobretudo, uma pedagogia.20 E. J. Lajeunie explica a pedagogia espiritual a partir
da dialtica dos desejos. Segundo o conhecido bigrafo do santo, a alavanca em
que se apoiava a direo espiritual de Francisco de Sales era a tendncia ao desejo
de Deus escondido no desenvolvimento dos desejos contrrios.21 Um texto do
Tratado do Amor de Deus pode ajudar-nos a entend-lo:
Introduccin a la vie dvote, in OEA I, 4.
Carta MCXXVII (a Madre Favre), OEA XVII, 81.
20
Cf. F. STROWSKI, Saint Franois de Sales. Introduction lhistoire du sentiments religieux en France au dixseptime sicle, Plon, Paris 1928, 171.
21
Cf. E. J. LAJEUNIE, San Francisco de Sales. El hombre, el pensamiento, la accin II. Monasterio de la Visitacin de Santa Mara, Salamanca 2001, 253-255.
18
19

37

A nossa alma, portanto, considerando que nada pode satisfaz-la plenamente,


nem a sua capacidade pode ser preenchida por alguma coisa deste mundo, e
vendo que a inteligncia sente uma contnua necessidade de saber sempre mais
e a vontade, um apetite insacivel de querer encontrar o bem, tem razo em
exclamar: Eu, ento, no sou feita para este mundo! Existe um bem real do
qual eu dependo, artfice infinito que inseriu em mim este desejo ilimitado, este
apetite insaciado; necessrio que tenda para ele a fim de unir-me intimamente sua bondade qual perteno, da qual eu sou. Essa a relao que temos
com Deus.22


O texto alude espiritualidade de tenso e de extenso, uma espiritualidade que parte do corao humano, inquieto porque foi criado por Deus e para
Deus, e no encontra repouso enquanto no se unir intimamente sua bondade e
ao seu amor.

Por isso, a partir desta perspectiva de direo espiritual, a primeira preocupao para o Bispo de Genebra ajudar a alma a tomar conscincia deste desejo
real. Assim, no incio da direo espiritual da baronesa de Chantal, pede a Deus
que se compraza em aperfeioar nela a sua boa obra, ou seja, o desejo e o propsito de alcanar a perfeio crist; desejo que deve amar e alimentar no prprio
corao com ternura, como uma tarefa do Esprito Santo e uma centelha do seu
fogo divino.23

Esta pedagogia espiritual de suscitar e aperfeioar os santos desejos comea a partir da resistncia a qualquer desejo contrrio, subordinando todos os
desejos ignbeis, submetendo-os e dominando-os. Numa imagem muito bela, o
Doutor do Amor compara o corao humano ao ninho de um pssaro singular, o
martim-pescador, ninho construdo junto ao mar, mas compacto e bem calafetado
em todos os seus lados, deixando apenas no lado superior uma pequena abertura
para respirar, de modo que, se o mar o surpreender, poder navegar e flutuar sobre as ondas sem se encher de gua ou submergir. S. Francisco de Sales comenta
alegremente esta imagem:

Filha, desejo muito que os nossos coraes sejam assim, perfeitamente compactos, bem calafetados de todos os lados para que, se sobrevierem as tormentas e tempestades do mundo, no penetrem e no tenham nenhuma abertura a
no ser para o Cu, para aspirar e respirar o Salvador.24
Trait de lAmour de Dieu, in OEA IV, 76.
Carta CCXVI, OEA XII, 263.
24
Carta CCCXXI, OEA XIII, 127.
22
23

38


O corao humano, ento, corao para o amor, para aspirar e respirar
sem descanso em direo a Deus; mas necessrio cuidar e reforar este santo
desejo, submetendo e subordinando a ele todos os demais.

Encontramos, tambm aqui, nesta pedagogia dos desejos, uma verdadeira
pedagogia positiva. No se trata de cortar e suprimir, mas de dominar, controlar,
subordinar. De um lado, emerge o humanismo salesiano, que nunca uma simples teoria, mas se fundamenta numa prxis pastoral que tem influxo decisivo
em todo o pensamento espiritual. Contrariamente ao jansenismo, que condena
o que humano e atribui um sentimento de culpa ao desejo de amar, de saber,
de sentir, Francisco de Sales aceita tudo o que pertena ao homem e o ajude
a crescer e amadurecer como pessoa. Este sentido humanista tambm uma
das caractersticas da direo espiritual salesiana. Nasce da grande estima que
atribui a um conjunto de valores muito ligados pessoa humana, manifesta-se
no respeito ao corpo, vida afetiva, cincia e cultura, beleza e elegncia,
e tambm na distenso alegre e na ascese.

Para Francisco de Sales, a alma da direo espiritual , certamente, o amor
de Deus e por Deus. E assim como o Esprito Santo o amor por excelncia, Ele
a luz e a graa que pode ajudar cada pessoa a compreender e transformar em
realidade as coisas necessrias para o prprio bem espiritual. A convico profunda da ao do Esprito no corao dos homens, guiando-os e acompanhando-os
no caminho da vida crist, est muito presente e viva na prxis e no pensamento
salesiano.25

No me referirei diretamente a este aspecto, que suponho estar muito presente nestes dias ao tratar da pessoa do diretor espiritual e do mtodo. Quero
sublinhar, porm, na perspectiva humanista da direo espiritual salesiana que,
segundo o Bispo de Genebra, o Esprito age na alma atravs de inspiraes, sem
violent-la.

Para Francisco de Sales, a ao do Esprito em nosso interior um chamado liberdade. Para ser realmente eficaz em nossa vida crist precisamos de
escuta, obedincia e docilidade: Deixo-lhe o esprito de liberdade, no aquele
que exclui a obedincia, porque ele liberdade da carne, mas aquele que exclui a
coao e o escrpulo ou a agitao imoderada, escreve baronesa de Chantal.26
Com razo e pela prpria experincia, ela pde testemunhar no processo de beatificao e canonizao:
Cf. J. STRUS, I protagonisti della direzione spirituale secondo linsegnamento e la pratica di San
Francesco di Sales, Salesianum 40 (1978) 293-342.
26
Carta CCXXXIV senhora de Chantal, OEA XII, 359.
25

39

Era totalmente admirvel e incomparvel em treinar os espritos segundo as


prprias capacidades, sem jamais apress-los, mas dava e imprimia nos coraes uma liberdade que dissolvia qualquer escrpulo e objeo, e elevava as
almas a um amor to suave em relao a Deus, que dissipava todas as dificuldades que se pensa encontrar na vida devota.27


A busca da liberdade dos filhos de Deus constitui, sem dvida, uma caracterstica prpria da direo espiritual; todo diretor espiritual deve deixar livres
os seus dirigidos e penitentes e acompanhar os processos de amadurecimento da
sua liberdade. Mas no menos verdade que esta uma das caractersticas mais
relevantes em Francisco de Sales, uma das principais orientaes que segue pessoalmente e que prope queles que se entregam sua ao pastoral. Escrevia
senhora de Chantal: necessrio que reine a liberdade e a franqueza, e que no
tenhamos outra lei nem sujeio seno a do amor.28

Fala o santo Doutor da liberdade do amor (tudo por amor, nada por fora),
ou seja, da liberdade submetida s exigncias do Amor, lei de Deus, que a lei da
caridade. Por isso, o verdadeiro esprito de liberdade no exclui a obedincia, mas
a coao e a violncia. O esprito de liberdade preocupa-se apenas para que na terra
se faa a vontade de Deus, venha o seu Reino e seu nome seja santificado. Ser livre
espiritualmente significa escolher sempre o bem. Por isso, priva-se da liberdade
quem no capaz de escolher entre os bens que se apresentam.

De maneira muito concreta, Francisco de Sales explica em que consiste
a liberdade de esprito, indicando os critrios para reconhec-la: o corao livre
no se submete s consolaes, nem s prticas espirituais, nem aos resultados,
nem aos prprios gostos. Escreve de forma muito detalhada, sugerindo os sinais
indicadores da liberdade de esprito:
O corao que possui esta liberdade no se apega s consolaes e recebe
os sofrimentos com toda a doura que a carne pode permitir... No coloca seu
afeto nos exerccios espirituais, de modo que se vendo contrastado tanto pela
doena quanto por qualquer outra circunstncia, no fica aborrecido. No digo
que no os ame, mas que no se apega a eles. No perde a alegria, porque nenhuma privao aflige quem no tem o corao apegado a nada.29

27
Declarao de madre Chantal no processo sobre a santidade e os milagres, in F. M. CHAUGY, Juana
Francisca Frmiot de Chantal, cit.., 219.
28
Carta CCXXXIV, OEA XII.
29
Ibidem, 363.

40


E, para chegar a uma compreenso mais completa destes critrios, apresenta na mesma carta dois exemplos: do cardeal Borromeu e do bispo Espiridio.
Descreve o primeiro como o esprito mais perfeito, rgido e austero que se possa imaginar: bebia somente gua a comia apenas po. Entretanto, comendo
frequentemente com os suos, seus vizinhos, para incentiv-los a comportar-se
melhor, no tinha nenhuma dificuldade em fazer com eles dois brindes em cada
refeio. Isso, diz-nos o doutor do Amor, um trao de santa liberdade: um esprito caprichoso teria exagerado; um esprito constrangido acreditaria ter pecado
mortalmente; um esprito de liberdade o fez por caridade. Igualmente, o velho
bispo Espiridio, tendo acolhido um peregrino quase morto de fome no tempo
da Quaresma e num lugar onde havia somente carne salgada, f-la cozinhar e
ofereceu-a ao peregrino. Este no queria com-la malgrado a sua necessidade.
Espiridio, que no tinha qualquer necessidade, comeu-a por primeiro para libertar o peregrino dos escrpulos. Esta a liberdade caridosa de um homem santo.

A unio entre amor e liberdade talvez seja a chave para compreender que
na prxis salesiana no h contradio entre liberdade e fidelidade: a liberdade de
esprito no contrria fidelidade aos deveres, s obrigaes e aos preceitos. No
caso em que estes no possam ser realizados, a liberdade impede perturbaes ou
inquietaes da alma. Na verdade, a liberdade favorece a verdadeira fidelidade, a
fidelidade feliz e alegre; sobretudo tendo pela mo a liberdade e o amor, a pessoa
caminha para a maturidade humana e espiritual e cresce na perfeio crist.

Todavia, para chegar verdadeira liberdade de esprito, o Bispo de Genebra ensina que se devem evitar dois vcios ou defeitos que a corrompem ou
impedem: a instabilidade ou capricho e a coao ou servilismo. A instabilidade
de esprito o excesso de liberdade que move a pessoa a mudar exerccios, propsitos, projetos, estado de vida sem motivo nem conhecimento de que essa a
vontade de Deus. Contrariamente, a coao ou o servilismo demonstra falta de
liberdade: diante da impossibilidade de pr em prtica o que foi decidido, o esprito se atormenta ou se perturba. Para explicar estes defeitos, recorre tambm a
um exemplo:
Decidi fazer a meditao todos os dias pela manh. Se possuo o esprito de
instabilidade ou capricho, na menor ocasio a deixarei para a noite (por causa
do co que no me deixou dormir, pela carta mesmo no urgente que devo escrever). Ao contrrio, se possuo o esprito de coao ou servilismo no deixarei
a meditao, mesmo que um doente precise do meu auxlio naquele momento,

41

mesmo que uma obrigao urgente no possa ser adiada, e o mesmo em outros
casos.30


No pensamento salesiano aparece com clareza que a caridade e a vontade
de Deus aconselham e permitem abandonar determinados deveres e obrigaes
para empenhar-se em outros, se isso for exigido pela mesma vontade de Deus.

Para o diretor espiritual, a educao liberdade representa uma das tarefas
essenciais, porque s a pessoa livre de esprito capaz de iniciar com alegria o
caminho da perfeio crist. Seus frutos e efeitos so realmente admirveis: uma
grande suavidade de esprito, uma grande doura e condescendncia por tudo
que no seja pecado ou perigo de pecado, uma inclinao para os atos de virtude
e de caridade. Sumamente respeitoso da liberdade de cada um, servia-se para
isso de diversos mtodos. Sua finalidade resulta muito clara de uma carta abadessa de Puits- dOrbe. Francisco fala-lhe da reforma necessria da comunidade,
mas aconselha a superiora a no imp-la nem prop-la diretamente s religiosas
que, talvez, pudessem opor-se. Segundo o Bispo de Genebra, necessrio que
as religiosas, vendo e seguindo a conduta da superiora, se reformem e se unam
mais estritamente obedincia e pobreza.31 Ele quer que as prprias pessoas
sejam levadas a escolher e decidir, sem imposio do diretor espiritual. Evita,
pois, qualquer imposio, mesmo correndo o risco de as pessoas dirigidas por
ele parecerem independentes. No expressa conselhos de modo impositivo, mas
exortativo. So frequentes em suas cartas expresses do tipo: agradar-me-ia,
aprovaria, aconselharia, parecer-me-ia bom... Com fino humorismo, coisa por outro verso muito presente em sua correspondncia espiritual, escreve a
uma religiosa: Esforce-se por manter o seu corao em paz. No lhe digo que o
mantenha em paz, mas: esforce-se por mant-lo em paz.32 Ou seja, ele no quer
impor a prpria vontade, prefere motivar a pessoa acompanhada, de modo que ela
chegue a tomar as decises necessrias. Aparece claro, ento, o respeito pessoa
e sua liberdade, assim como tambm o sentido da direo espiritual na prxis
de Francisco de Sales: ele no pretende dominar as almas ou as conscincias,
mas ajudar, motivar, ensinar pessoa dirigida o domnio pessoal no processo de
perfeio.

Ibidem, 364.
Cf. Carta CCXXXI, OEA XII, 337.
32
Carta MDXLIX, OEA XIX, 12.
30
31

42

3.3. Direo de amizade



Talvez o trao que mais bem caracterize a direo espiritual salesiana o
clima de amizade recproca que une o diretor e a pessoa por ele dirigida. Pareceme que se possa afirmar que para Francisco de Sales no h verdadeira direo
espiritual se no houver verdadeira amizade, ou seja, comunicao, influxo recproco; e trata-se de uma amizade que chega a ser verdadeiramente espiritual.

O Amor de Deus est no centro do pensamento, da vida e da ao de S. Francisco de Sales. Segundo Ravier, toda a sua espiritualidade apoia-se no corao. A
nossa relao com Deus deve ser um incessante corao a corao; a mesma coisa
com as relaes recprocas.33 Fora dessa perspectiva no poderamos entrar no corao nem conseguir entend-lo, como a ele era impossvel entender o evangelho
sem ver a admirvel histria do amor de Deus pelo homem. Do amor de Deus nasce
o amor dos homens a Deus e ao prximo. O amor a vida do corao:
Assim como o pndulo d movimento a todas as engrenagens do relgio,
tambm o amor d alma todos os movimentos que possui. Todos os nossos
afetos seguem o nosso amor e, de acordo com ele, desejamos, nos deliciamos,
esperamos e desesperamos, tememos, criamos coragem, odiamos, fugimos, entristecemo-nos, iramo-nos, sentimo-nos triunfantes....34


O homem entrega-se inteiramente por amor, e entrega-se tanto quanto ama;
abandona-se totalmente a Deus quando o ama totalmente e reflete o seu amor nos
homens, criados imagem e semelhana do mesmo Deus. E o amor ao prximo,
lei fundamental da vida e da perfeio crist, manifesta-se especialmente buscando o maior bem para sua alma e para seu corpo, buscando a sua perfeio e
salvao.

Para isso tende a direo espiritual e, nela, segundo o pensamento e a prxis do Doutor do Amor, o amor do prximo converte-se em amizade espiritual.
Entende-a de forma muito simples: mediante a amizade espiritual duas, trs ou
mais almas comunicam-se a prpria devoo, os prprios afetos espirituais e formam entre si um nico esprito; ento, o blsamo da devoo comunica-se de
corao a corao por meio da participao contnua.35 Trata-se, pois, de um
amor comunicativo, recproco, unificando, chegando comunicao da devoo,
da intimidade espiritual.
Cf. A. RAVIER, Franois de Sales. Un sage et un saint, cit., 128.
Trait de lAmour de Dieu, in OEA V, 309.
35
Introduction la vie dvote, in OEA III, 203.
33
34

43


H, em Francisco de Sales, uma predisposio natural relao pessoal, ao
colquio ntimo; e nisso sente sempre um grande prazer. Tanto seu trato ordinrio
como seus escritos so impregnados de uma tonalidade afetuosa, quer nas expresses com que se dirige queles aos quais escreve (carssima filha, carssimo
irmo, minha cara irm, caro irmo), quer nos termos abundantes de comunho
(ns, a nossa alma, o nosso corao) e no desenvolvimento das ideias e dos
conselhos que prope. Quando v que algum dos correspondentes dirige-se a
ele usando o termo monsenhor,36 diz-lhe com simplicidade que prefere apenas o
termo senhor37 ou pai. Ele julga este ltimo como o mais conveniente nas relaes criadas pela direo espiritual, pois pensa que corresponde melhor atitude
crist: no quero em suas cartas escreve senhora de Chantal outro ttulo
de honra que no seja o de pai; para mim o mais seguro, o mais amvel, o mais
santo, o mais glorioso.38

O tom afetuoso envolve as suas relaes, as suas cartas de direo num
clima de familiaridade e simplicidade evanglica, capaz de exprimir as ideias
mais profundas atravs de episdios significativos, de confidncias ntimas e at
mesmo de refinado humorismo. Para alguns, tudo isso simplesmente expresso
do seu temperamento, como ele mesmo parece reconhecer.39 No obstante, alm
das disposies naturais, tudo parece indicar que uma questo de f e de uma
vivncia espiritual muito rica e profunda. O amor de Deus, que preenchia a sua
vida, transformava-se em efuses de caridade transbordante de afeto e ternura.

A amizade espiritual sempre recproca e tambm tende ao intercmbio
espiritual, ao influxo recproco entre diretor e dirigido. H na personalidade de
Francisco de Sales um dado que vale a pena ressaltar. Mesmo sem estar em pleno acordo com a observao de H. Bremond para quem, a respeito de Joana
de Chantal, Francisco de Sales ter-se-ia comportado mais como dirigido do que
como diretor, preciso reconhecer o influxo recproco entre estas duas almas
privilegiadas. De fato, as cartas do Bispo de Genebra, atravs de suas confidncias, de seus conselhos e sentimentos, permitem-nos entrar em sua intimidade e
perceber as maravilhas daquela santa amizade, o crescimento espiritual de duas
almas gmeas. um itinerrio de confiana mtua, de liberdade e de amor.
Carta CCXL senhora de Chantal, in OEA XII, 380.
Carta CCXCI senhora De Limojon, in OEA, XIII 59.
38
Carta CCCIV senhora de Chantal, in OEA XIII, 85. Cf. tambm a carta CMVI ao duque de
Bellegarde, in OEA XVI, 57; carta MDXXIV abadessa de Port Royal, in OEA XVIII, 388; Carta
MDCLXXV presidente De Herse, in OEA XIX, 271.
39
Cf. Carta MDCCCLXVII, in OEA XX, 216.
36
37

44

Os apelos do Bispo de Genebra confiana so insistentes:


Escrevei-me com a maior frequncia possvel, com toda a confiana de que
sois capaz, pois o grande desejo que tenho do vosso bem e do vosso progresso
me afligir se no souber com frequncia em que situao vos encontrais.40
Amo tanto a vossa alma porque creio que Deus a ama, e a amo ternamente
porque a vejo ainda frgil e jovem. Tende, pois, plena confiana e liberdade de
escrever-me e pedir-me o que julgardes necessrio para o vosso bem.41
Escrevei-me sempre o que desejardes, com absoluta confiana e sem cerimnias, pois assim que se deve caminhar nesta amizade.42



E o itinerrio fruto da amizade. Francisco de Sales pede-a e concede-a,
promove-a sempre, comeando ele mesmo a confiar no outro de modo total e
generoso.

Contudo, alm disso, o carter paterno-filial recproco das relaes mtuas
cresce e enriquece-se de tal modo que Francisco de Sales no s manifesta a
prpria preocupao pelo progresso espiritual de quem ele dirige como tambm
estende a sua solicitude, alm do que pertence ao mbito da direo espiritual,
tambm famlia, sade, aos negcios, s coisas materiais. De maneira muito
simples, ele exprime o sentido do amor recproco escrevendo ao duque de Bellegarde, seu dirigido: Sei muito bem que os bons filhos pensam com frequncia
em seus pais, mas os pais pensam nos filhos no s frequentemente, mas sempre.43 Para ele, este amor de amizade efeito da ao de Deus: Ele entrega um
ao outro; e precisamente por ser fundamentado em Deus imutvel, resiste
separao fsica ou ao passar do tempo.

O amor recproco deve exprimir-se e manifestar-se necessariamente na
direo espiritual, porque s manifestando o seu amor o diretor espiritual pode
conquistar a confiana do dirigido. Francisco de Sales nunca duvida em dar a
conhecer a prpria dedicao e entrega ao servio das almas: nunca rezo ou
celebro sem vs, e no o digo para vangloriar-me, mas porque me sinto imensamente obrigado a faz-lo.44 Quer que saibam que os ama, que est sempre
Carta CCXVI, in OEA XII, 263-267.
Carta CLXXIV, in OEA XII, 163
42
Carta CDXC, in OEA XIV, 85.
43
Carta MCLVI ao duque de Bellegarde 6 de janeiro de 1616, in OEA XVII, 129.
44
Carta CMI abadessa de Puits-dOrbe, 16 de julho de 1613, in OEA XVI, 46.
40
41

45

disposio deles, que podem recorrer a ele em qualquer momento. Mas, talvez,
no surpreenda tanto que o Bispo de Genebra ame os seus filhos espirituais com
um amor que manifesta de mil maneiras, quanto que tambm deseje e procure ser
amado igualmente por eles. assim; trata-se de um amor que quer ser correspondido.

Enfim, a amizade sempre comunicativa e condicionada precisamente
pelos bens que se trocam e comunicam. A comunicao dos bens espirituais
prpria da amizade espiritual. o aspecto enfatizado pelo Bispo de Genebra especialmente quando, na Introduo vida devota, descreve o seu verdadeiro sentido: comunicao da devoo e dos afetos espirituais. A comunicao espiritual
leva a formar um s esprito entre si. Neste sentido, apresenta o exemplo da
amizade de S. Baslio e S. Gregrio Nazianzeno descrita por este:
Parecia que ns dois no fssemos seno uma s alma em dois corpos...; ns
dois formvamos uma s coisa, permanecendo um no outro; tnhamos uma
nica pretenso: cultivar a virtude e adequar os projetos da nossa vida s esperana futuras.45


Em sua prxis pastoral, o Bispo de Genebra serve-se de qualquer ocasio
possvel para sugerir bons propsitos com o fim de manter no caminho da perfeio. Mesmo quando escreve cartas ocasionais, junto com a solicitude e interesse pelas questes familiares, no perde ocasio de auspiciar os bens espirituais,
aconselhar e encorajar. E vale a pena observar tambm que a verdadeira amizade
espiritual se preocupa com a correo fraterna. O modo com que se exprime
sempre delicado, humilde e amvel.46 Talvez, por isso, ele no se desencoraje
diante das pequenas infidelidades no progresso espiritual. A amizade espiritual
cr na pessoa e valoriza at mesmo os pequenos esforos e progressos. sempre
um amor que confia no outro.

Muito sinteticamente, poderamos resumir o sentido da amizade espiritual
com estas palavras que o Bispo de Genebra escreve sua grande filha, Joana
Francisca de Chantal:
Sei que tendes total e plena confiana no meu afeto. Credeme, deveis saber
que tenho a mais viva e extraordinria vontade de ajudar a vossa alma com
Serm. 43, 20, in IVD III, 19.
Cf. Carta MCCCXCVI abadessa de Puits-dOrbe, in OEA XVIII, 162; Carta DCXX senhora De
la Flchre, in OEA XIV 347; Carta CCLXXVII presidente Brlart, in OEA XIII, 20.
45
46

46

todas as minhas foras. No saberia explicar-vos nem a qualidade nem a grandeza deste meu interesse de ajudar-vos espiritualmente: dir-vos-ei apenas que
creio ser coisa de Deus e que, portanto, o conservarei com afeto e que o vejo
crescer e aumentar notavelmente a cada dia... Sou todo vosso... Deus me entregou a vs; conservai-me nEle como vosso.47


Como na amizade espiritual entre S. Baslio e S. Gregrio Nazianzeno, na
direo espiritual de Francisco de Sales e Joana Francisca de Chantal a amizade
alcanou tal profundidade e qualidade que o Doutor do Amor escreveu insistentemente que foi o mesmo amor divino a unir e reunir os seus coraes. Trata-se
de uma amizade de ordem sobrenatural:
Nosso Senhor escreve o Bispo de Genebra a madre Chantal nunca infunde em vosso corao inspiraes veementes de pureza e de perfeio sem dar
a mim a mesma vontade, para fazer-nos conhecer que basta a inspirao de
uma mesma coisa a um mesmo corao e que, graas unidade da inspirao,
sabemos que esta soberana Providncia quer que sejamos uma s alma, para
continuar uma nica obra e para a pureza da nossa perfeio.48

47
48

Carta CCXXIII senhora de Chantal, in OEA XII, 284-285.


Carta DCCXIII a madre Chantal, in OEA XV, 102.

47

A pessoa
do diretor Espiritual
SEGUNDO so Francisco de Sales

Jzef Stru, sdb



O homem, o pensamento, a ao o subttulo de uma importante obra de
um historiador1 que, em suas pesquisas, esteve atento a todas as possveis fontes
para colher a verdade de S. Francisco de Sales no contexto do seu tempo. Apesar
dos resultados dessa pesquisa bem documentada e das de outros estudiosos de
S. Francisco de Sales,2 difcil fazer uma leitura da sua pessoa enquanto diretor
espiritual.

Os dados disponveis para essa leitura so parciais, tanto da parte do prprio S. Francisco de Sales, como de seus contemporneos. Nesta situao de escassez documentria tem-se a impresso de que falar da pessoa do diretor espiritual em S. Francisco de Sales seria mais fcil se ao menos pudssemos conhecer
o seu conceito de pessoa. Infelizmente, no encontramos nada sobre o tema em
seus escritos, embora em grande parte completos e bem editados.3 Acrescenta-se
a esta dificuldade o fato de ele, apresentado frequentemente por muitos admiradores como figura de grande diretor espiritual, at hoje no tenha sido objeto de
uma reflexo atenta ao conjunto da sua ao concreta de direo espiritual. E,
mais ainda, falta uma histria da direo espiritual que o apresente no contexto
de outros diretores espirituais.4 s vezes, a grandeza de S. Francisco de Sales,
E. J. Lajeunie, Saint Franois de Sales. LHomme, la Pense, lAction, Paris, ditions Guy
Victor 1966, vol. I, 532 pp.; vol. II, 490 pp.
2
A referncia vai, de modo especial, a A. RAVIER, Un sage et un saint. Franois de Sales, Paris,
Nouvelle Cit 1985, 249 pp. e G. PAPSOGLI, Come piace a Dio. Francesco di Sales e la sua
grande figlia, Roma, Citt Nuova Editrice 1985, 573 pp.
3
Est presente, porm, o tema homem sob os seguintes aspectos: o homem em si mesmo, o
homem em relao ao mundo, o homem diante de Deus.
4
Esta necessidade no foi satisfeita nem mesmo com a recente Storia della Direzione Spirituale, de
Giovanni Filoramo (ed.) da Editora Morcelliana, que publicou em 2006 o vol. I - Let antica,
em 2008 o vol. III - Let moderna, em 2010 o vol. II - Let medievale. Nem mesmo o III volume
(edio de Gabriella Zarri) que nos interessa de modo particular pela poca da qual se ocupa e pela
contribuio dedicada a S. Francisco de Sales, fez outra coisa seno recolher algumas histrias e experincias de direo espiritual. Em relao ao que se encontra sobre S. Francisco de Sales difcil
1

48

enquanto diretor espiritual, no se apoia no conhecimento das fontes e da literatura autorizada. Consequentemente, a sua popularidade no campo da direo
espiritual deve-se mais ao ouvir dizer.

Tendo a inteno de chegar ao ensinamento espiritual de S. Francisco de
Sales, necessrio passar atravs da sua rica herana literria. Primeiramente,
deve-se dar ateno s suas cartas de direo espiritual.5 Na histria da direo
espiritual ele, de fato, faz parte do grupo de diretores espirituais que souberam
desfrutar do gnero epistolar como instrumento de comunicao.6 Com suas cartas, tambm devem ser considerados os volumes dedicados ao progresso que o
homem chamado a fazer na vida espiritual: Introduo Vida devota (Filoteia)
e Tratado do Amor de Deus (Tetimo).

Para uma leitura da pessoa do diretor espiritual em S. Francisco de Sales,
enumera-se entre as dificuldades objetivas tambm o fato de, salvo poucas excees, continuarem desconhecidos os incios da direo espiritual seguida por ele.
Conhecemos muitas histrias pessoais desta direo espiritual quando j tinham
sido iniciadas. Consequentemente, no temos a possibilidade de colher o momento preciso em que ele iniciava o processo de direo espiritual.

Ao fazer uma leitura da pessoa de S. Francisco de Sales diretor espiritual,
necessrio levar em conta o fato de ele, sacerdote e bispo ser ao mesmo tempo
pregador, confessor, diretor e autor espiritual, fundador de um instituto de vida
religiosa, conselheiro espiritual (reformador) de outros institutos de vida religiosa.7 Consequentemente, a sua pessoa de diretor espiritual como tal deve ser
encontrada no s quando acompanha espiritualmente e reza pelas pessoas que
considerar representativo do seu trabalho de diretor espiritual. Cf. Anna Scattigno, Di due un
cuore solo. Franois de Sales e Jeanne de Chantal, in Giovanni FILORAMO (ed.), Storia della
direzione spirituale. Vol. III, Let moderna, ed. por G. ZARRI, Brescia, Morcelliana, 355-383.
5
Seus escritos so recolhidos nos 26 volumes da edio uvres de saint Franois de Sales. vque
et Prince de Genve et Docteur de lglise. dition complte. Publie par les soins des Religieuses de la Visitation du ler Monastre dAnnecy, Annecy 1892-1932. As Cartas ocupam os
volumes de XI a XXI. De acordo com esta edio so aqui citados os escritos de S. Francisco de
Sales, indicando o ttulo do escrito, em: OEA com o nmero do volume correspondente e a pgina
de que se trata.
6
Uma informao sobre alguns diretores espirituais que se serviram de cartas no acompanhamento
das pessoas pelos caminhos espirituais pode ser encontrada em Raoul Plus, La direction daprs les
matres spirituels, Editions Spes, Paris 1933. O livro oferece estas informaes s indiretamente.
Seu objetivo principal expor problemas relacionados com o sentido da direo espiritual.
7
Sem descer a detalhes, que neste campo se referem a algumas de suas iniciativas, veja-se a exigncia devida falta de esprito religioso e da correspondente disciplina nos diversos mosteiros de sua
diocese, que apresentou respectivamente ao Papa e ao Duque de Saboia: Carta a sa saintet Clment
VIII, Annecy, 27 octobre 1604, in OEA XII, 371-374; Carta au duc de Savoie, Charles-Emmanuel
ler, Annecy, 27 octobre 1604, in OEA XII, 374-375.

49

a ele se dirigem, mas tambm quando celebra os sacramentos, prega, confessa,


escreve. Este esclarecimento recorda que no caso da direo espiritual dada por
ele preciso ter presentes:

- a identidade sacerdotal, normalmente no exigida como condio para
ser diretor espiritual;

- a possibilidade da formao comunitria, quando lhe era possvel.

Para algumas questes especficas relativas tanto aos esforos da orao
mental quanto identidade do ministrio de diretor espiritual, sabemos que S.
Francisco de Sales frequentou com prazer a escola de S. Teresa de vila. Mencionada muitas vezes em seus escritos, a Santa era para ele ponto autorizado
de referncia enquanto diretor espiritual iluminado. Ele, por exemplo, bebia do
seu ensinamento quando se pronunciava sobre a unicidade da direo espiritual.
Como ela, S. Francisco de Sales era do parecer de que, em casos especficos, nada
impede que as pessoas em direo recorram ao parecer de diversos guias espirituais. Seguindo o ensinamento da Santa, ele recordava que esses pareceres devem
ser submetidos ao julgamento do prprio diretor espiritual e a pessoa interessada
deveria adequar-se s suas orientaes.8

1. Pressuposto teolgico do tema



indispensvel acenar meta da direo espiritual. Conhecendo a
finalidade do itinerrio espiritual ao longo do qual S. Francisco de Sales acompanha as pessoas, colheremos mais facilmente a originalidade da sua mesma pessoa
dedicada a este ministrio:
Tendes um grande desejo da perfeio crist. Este desejo o mais generoso
que podeis ter. Nutri-o, portanto, e fazei-o crescer a cada dia. Os meios com
que se deve chegar perfeio so diversos, conforme a vocao de cada um:
religiosos, vivas e casados, todos devem buscar a perfeio, mas nem todos do
mesmo modo. A vs, senhora, que sois casada, os meios so a unio com Deus
e a unio com o prximo, com tudo o que estas unies comportam.9

8
9

Cf. Carta la baronne de Chantal, Annecy, 24 juin 1604, in OEA XII, 282-288.
Carta la prsidente Brulart, Annecy, 3 mai 1604, in OEA XII, 268.

50

Conservai sempre [...] a coragem de crescer continuamente no amor de


Deus.10
Basta ser determinado na busca da perfeio do amor divino, de modo que o
amor seja perfeito, pois o amor que busca qualquer outra coisa inferior perfeio, no pode ser perfeito.11
A vossa alma comporta-se muito bem, pois pretende avanar no santo amor de
nosso Senhor [...]. E assim como o amor no vive seno na paz, tende sempre
o cuidado de conservar a santa tranquilidade do corao, que vos recomendo
to frequentemente. Somos bem afortunados, [...] quando temos sofrimentos,
aflies e contrariedades: se os soubermos consagrar a Deus, so caminhos do
cu.12
[...] amo-vos e honro-vos perfeitamente, dado que agradou a nosso Senhor
fazer-me ver o vosso corao e, nele, o santo desejo de amar constantemente
a divina Bondade [...]. Crede-me bem [...], que se minhas recomendaes forem acolhidas, progredireis continuamente neste santo amor, porque jamais me
esquecerei de suplic-lo de Deus e de oferecer-lhe muitos sacrifcios com esta
inteno.13


A esta apresentao da meta da direo espiritual, feita com palavras de S.
Francisco de Sales, deve-se unir uma nota sobre os dois principais impedimentos
que retardam o progresso no amor de Deus e, no pior dos casos, tornam-no intil. A experincia ensina que o carter nocivo desses impedimentos diminui nas
pessoas a fora interior com que decidiram seguir em tudo a vontade de Deus. Os
esclarecimentos dados por S. Francisco de Sales sobre esse tema so teis tanto
para o contedo teolgico e asctico do autntico itinerrio espiritual que exprimem, quanto porque so adequados para sustentar as pessoas em seu desejo de
progredir espiritualmente.

O primeiro impedimento faz-se sentir quando as pessoas decidem percorrer o itinerrio da santidade no modo no indicado pela vontade de Deus, mas
segundo as convices pessoais. Isso acontece quando estas pessoas mudam a
prpria vocao, ou o lugar de trabalho, sem um necessrio discernimento espiritual. digno de nota o fato que, dos esclarecimentos aqui apresentados, provocaCarta madame de Charmoisy, Saint-Rambert, 21 aot 1608, in OEA XIV, 59.
Carta la baronne de Thorens, sa belle-sur, Viuz-en-Sallaz, 30 juin 1617, in OEA XVIII, 35.
12
Carta la prsidente Favre, Annecy, 18 novembre 1612, in OEA XV, 301-302.
13
Carta madame Anglique Arnauld, Abbesse de Port-Royal Maubisson, Paris, 26 avril 1619,
in OEA XVIII, 368-369.
10
11

51

dos pelas tentaes recordadas h pouco, as primeiras quatro explicaes foram


dirigidas mesma destinatria; a quinta endereada a um sacerdote:
[...] preciso procurar conhecer o que Deus quer e, uma vez conhecido, procurar faz-lo com alegria ou ao menos com coragem. Isso, porm, no basta. preciso amar a vontade de Deus e a obrigao que ela supe em ns, fosse mesmo
a de cuidar dos porcos ou realizar os atos mais humildes por toda a vida [...]. Eu
sempre temo que, nestes desejos que no so essenciais para a nossa salvao e
perfeio, esconda-se algum elemento do nosso amor prprio e da nossa vontade
[...].14
Confirmai-vos, cada dia mais, na resoluo que tomastes com tanto amor, de
servir a Deus segundo o seu beneplcito e ser inteiramente sua, sem reservar
absolutamente nada para vs. Abraai a sua vontade, como ela se apresentar,
e jamais pensai ter alcanado a pureza de corao que lhe deveis oferecer at
que a vossa vontade seja no s de tudo, mas tambm em tudo, at mesmo nas
coisas mais repugnantes, submetida livre e alegremente sua vontade santssima. E, para chegar a isso, no dai importncia s aparncias das coisas, mas dai
ateno quele que as ordena.15
Sejamos aquilo que Deus quer, dado que somos propriedade sua; e no sejamos aquilo que ns queremos contra a sua vontade porque, mesmo que fssemos as mais belas criaturas do cu, de que nos haveria de servir, se no
vivermos de acordo com a vontade de Deus?16
[...] no se deve julgar as coisas segundo o nosso gosto, mas segundo o gosto
de Deus. [...] se formos santos segundo a nossa vontade, jamais seremos santos
como se deve: devemos s-lo conforme a vontade de Deus [...].17
Digo-vos, de novo, insistentemente, que deveis servir a Deus onde vos encontrais et facere quod facis. No, meu caro Irmo, que eu deseje impedir-vos
a multiplicao das prticas de piedade ou a contnua purificao do vosso
corao, mas fac quod facis, et melius quam non facis. [...] Crede-me: permanecei no lugar em que vos encontrais, fazei livremente tudo o que vos moralmente possvel e vereis que, si crederis, videbis gloriam Dei. E, se quereis
fazer o bem, considerai como tentao todas as sugestes de mudar do lugar
Carta la prsidente Brulart, [La Roche, mars] 1605, in OEA XIII, 20-21.
Carta la prsidente Brulart, [sem local], vers le 20 avril 1605, in OEA XIII, 38-39.
16
Carta la prsidente Brulart, Annecy, 10 juin 1605, in OEA XIII, 54.
17
Carta la prsidente Brulart, [senza lugar], Mi-septembre 1606, in OEA XIII, 214.
14
15

52

que podeis receber, pois, enquanto o vosso esprito estiver voltado para outro
lugar diferente daquele que ocupais, ele jamais se concentrar bem, e no fareis
com proveito o que estais a fazer.18


O segundo impedimento, relacionado com o precedente, nasce da propenso a querer santificar-se segundo as prprias regras, o que revela a convico
de que para alcanar a meta da direo espiritual, possvel acelerar o ritmo do
caminho e, portanto, reduzir os tempos de espera:
A purificao [...] s acontece gradualmente, de uma melhora a outra, de um
progresso ao outro, com esforo e tempo....19
[...] no possvel chegar aonde aspirais num dia: preciso conquistar hoje
este ponto, amanh o outro, e assim, um passo depois do outro, chegaremos a
ser senhores de ns mesmos; e no ser uma pequena conquista.20
[...] sei que tendes sempre no corao a imutvel resoluo de viver inteiramente para Deus; mas sei tambm que a vossa grande atividade natural vos
faz experimentar uma grande variedade de impulsos. Oh, no [...], vo-lo peo:
no acrediteis que a obra que iniciamos em vs possa ser concluda em pouco
tempo. As cerejas do logo os seus frutos, porque os seus frutos no so seno
cerejas que duram pouco [...]; uma vida medocre pode ser adquirida em um
ano, mas a perfeio qual aspiramos [...] pode vir, supondo que venha pela via
ordinria, apenas em muitos anos.21
[...] no vos admireis, se ainda no notais qualquer melhora em vossas questes
espirituais ou temporais. Nem todas as rvores [...] frutificam na mesma estao:
as que produzem frutos melhores amadurecem-nos sempre mais tarde... Deus
escondeu no segredo da sua Providncia o tempo em que entende atender-vos e
o modo com que vos atender; e, talvez, vos atender de modo excelente no vos
atendendo segundo os vossos planos, mas segundo os dele.22

Carta m. tienne Dunant, cur de Gex, Sales, 25 septembre 1608, OEA XIV, 66-67.
Introduction la Vie dvote, in OEA III, 26.
20
Carta madame de Limojon, Annecy, 28 juin 1605, in OEA XIII, 58-59.
21
Carta madame Anglique Arnauld, abbesse de Port-Royal Maubuisson, Annecy, 16 dcembre
1619, in OEA XIX, 74-75.
22
Carta une Dame de Paris, Annecy, 20 septembre 1621, in OEA XX, 148.
18
19

53

2. Formao da personalidade de S. Francisco de Sales


2.1. Itinerrio da vida espiritual

Seria impossvel percorrer passo a passo o processo de formao da personalidade de S. Francisco de Sales, devido ao tipo de fontes que se possuem.
Segundo algumas notas escritas como jovem estudante, podemos entrever, porm, alguns de seus grandes momentos na vida espiritual. Como tais, devem-se
enumerar as vrias regras de vida que ele criou para si e os subsdios espirituais
que elaborou, e nos quais se percebe o clima religioso que o atraa.23 No contexto
da leitura que estamos fazendo, no se toma em considerao o seu rendimento
escolar e acadmico, porque os resultados alcanados foram timos e notificados
sem demora.

Quanto ao processo de desenvolvimento da sua personalidade, lanam um
facho de luz as poucas informaes que, embora concisas, nos dizem algo sobre
seus pais e irmos, juntamente com o seu itinerrio de desenvolvimento humano,
espiritual e intelectual. Acreditamos que uma anotao histrica sobre seus pais,
embora breve, de grande significado para o papel que tiveram na crescente personalidade do filho.

Na histria de cada homem e mulher, as razes afetivas postas base da sua
posterior relao com os homens tm um peso significativo. Isso acontece particularmente na infncia e na pr-adolescncia. Em seguida, estas razes podero
servir de ajuda ou de obstculo tambm na relao que o indivduo viver com
Deus. A base afetiva igualmente importante para a educao humana e religiosa
da pessoa. Segundo o que conseguimos apreender dos bigrafos de S. Francisco
de Sales e de seus acenos pessoais, embora muito raros, ele viveu uma relao
intensa e estvel com seus pais.24
Cf. Rgles pour la rception de la sainte Communion. La Communion spirituelle (avant 1586), in
OEA XXII, 11-13; Fragment dcrit intimes se rapportant la tentation de dsespoir 1586 ou 1587,
in OEA XXII, 14-20. Pertencem a estes fragmentos: I Recueil doraisons jaculatoires tires des
Psaumes, Ivi, 14-18; 2 - Aspirations et prires, Ivi, 18-19; Acte dabandon hroque, Ivi, 19-20;
Exercices spirituels 1590, in OEA XXII, 21-44. Fazem parte dela: 1 - Exercices spirituels 1590, Ivi,
21-26; 2 - Conduite particulire pour bien passer la journe, Ivi, 27-33; 3 - Exercice du sommeil ou
repos spirituel, Ivi, 33-37; 4 - Rgles pour les conversations et rencontres, Ivi, 37-42; 5 - Communion frquente. Prparation et action de grces [1590], Ivi, 43-44.
24
Sobre os recentes bigrafos historiadores que confirmam substancialmente os dados precedentes
recolhidos dos primeiros bigrafos de S. Francisco de Sales, cf. E.J. Lajeunie, Saint Franois de
Sales. LHomme, la Pense, lAction, Paris, ditions Guy Victor 1966, vol. I, 97-105; A. Ravier,
Un sage et un saint. Franois de Sales, Paris, Nouvelle Cit 1985, 11-14.
23

54


Ao nascimento de Francisco, filho primognito, seu pai tinha quarenta e
seis anos de idade25 e sua me, no que se consegue constatar, entre os catorze e
dezesseis anos.26 A grande diferena de idade entre os pais, normal para muitos
casais de esposos de famlias nobres daqueles tempos, no parece ter influenciado
negativamente a vida familiar.
O status social da famlia de S. Francisco de Sales no era sustentado
apenas pelos bens econmicos que possuam, nem pela anterior longa carreira
militar do pai no exrcito francs, nem pelos seus conhecimentos na corte real de
Paris e nem mesmo pelos encargos ocasionais que lhe eram confiados na Saboia
pelo duque Carlos Emanuel I.27 Antes disso tudo, os pais de S. Francisco de Sales
distinguiam-se por uma profunda retido moral.

Os bigrafos de S. Francisco de Sales, quando acenam aos seus pais, ressaltam o seu modo de viver em harmonia na famlia e na sociedade. Com a incorruptibilidade moral, caracterizava-os um elevado esprito de sociabilidade, de
ateno aos pobres, de amor religio catlica e ptria.28 conhecido que na
Saboia, nos tempos de S. Francisco de Sales menino, os calvinistas de Genebra
procuraram conquistar as pessoas de nvel social elevado para suas ideias religiosas. Naquele clima de antagonismo religioso entre calvinistas e catlicos, dizem
os historiadores, registrou-se sabiamente a declarao feita pelo pai de S. Francisco de Sales; ele afirmava que no teria sentido aderir a uma religio doze anos
mais jovem do que ele.29

S. Francisco de Sales, em muitas circunstncias, tambm deu testemunho
de retido moral de nvel elevado. Baste pensar em quantas vezes se viu vtima de
suspeitas ou acusaes de infidelidade autoridade do Duque de Saboia. Numa
dessas situaes, ao explicar ao governador da Saboia o prprio distanciamento
dos fatos que lhe eram atribudos, deu este esclarecimento:
... direi ao senhor, com esprito de liberdade, que nasci, fui educado e formado
e, logo, poderei dizer que envelheci numa slida fidelidade ao meu Prncipe
soberano, fidelidade qual me mantm ligado, mais ainda do que todas as consideraes humanas que se poderiam fazer, o meu ofcio. Sou essencialmente
Cf. Nota (I), in OEA XI, 117.
Cf. Nota (I), in OEA XI, 117.
27
Cf. Nota (I), in OEA XI, 117.
28
Cf. E.J. Lajeunie, Saint Franois de Sales. LHomme, la Pense, lAction, vol. I, 102-104.
29
Cf. Ibi, 114. Os doze anos so os transcorridos entre 1522, ano do seu nascimento, e 1534, ano
em que os calvinistas se apossaram de Genebra expulsando o bispo, o clero e todas as instituies
eclesisticas catlicas.
25
26

55

saboiano como todos os meus, e jamais poderia ser outra coisa. No vejo, portanto, como possa suscitar sombras de suspeio, especialmente se levando em
conta a minha vida....30


Para entender bem a personalidade de S. Francisco de Sales preciso ter
em conta que sempre est presente em seus pais a conscincia de serem paiseducadores no s dele, mas tambm de seus irmos. Dos treze filhos, conhece-se
a histria de oito.31 Dos demais, no se sabe a data nem do nascimento nem da
morte.

O modo de agir dos pais diante do filho, segundo o nosso conhecimento da
educao de Francisco em famlia, era orientado ao seu interesse: torn-lo capaz
de navegar autonomamente no mundo; ensinando-lhe, portanto, a ser independente em relao aos pais. De fato, as decises dos pais, de modo particular do
pai, de mandar Francisco escola, fazem pensar que estas intervenes serviam
para favorecer a autonomia do menino, pondo limite dependncia de si mesmo,
dos outros e do aborrecimento.

O ambiente educativo da famlia de S. Francisco de Sales permite-nos
constatar quo mirada fora a ateno dos pais em relao ao filho. Eles notavam
que no faltavam impulsos positivos ao menino. Ele crescia no s sob os olhares
atentos dos pais, mas tambm com seus primos.32 Na companhia desses mesmos
primos e do preceptor, Francisco frequentar depois a escola em La Roche, Annecy, Paris. A ele, desde pequeno, como a qualquer criana, podia faltar constncia
e perseverana. Cabia, portanto, orientao atenta e constante dos pais premuni-lo de um crescimento demasiado espontneo, para que, condicionado por um
crescimento desordenado, no seguisse os instintos e as reaes incontroladas em
seus comportamentos e aes.
Carta au marquis Sigismondo de Lans, Annecy, 15 novembre 1615, in OEA XVII, 91.
Em ordem de nascimento: Francisco 15671622, Gallois 15761614, Lus 15771654, Joo
Francisco 15781635, Bernardo 15831617, Gasparde? - 1629, Janus 15881640, Joana 1593
1607. Quanto filha Gasparde, a data de nascimento desconhecida. Os Editores das OEA consideram-na a sexta entre os filhos. No claro se a sexta levando-se em conta tambm os filhos
mortos ou s os vivos. Tratando-se apenas dos vivos, seria realmente curiosa a notcia que se l na
nica Carta que se tem de S. Francisco de Sales estudante em Paris: ... assim como um amigo me
informou da honra e do favor que fizestes a uma de minhas irms...; em nota correspondente a esta
informao, os Editores dizem que, talvez, tenha se tratado de um projeto de casamento. Cf. Carta
au baron DHermance, Paris, 26 novembre 1585, in OEA XI, 1.
32
Filhos do tio paterno. As duas famlias viviam em grande harmonia morando por bastante tempo
no mesmo castelo.
30
31

56


A educao que Francisco recebeu dos pais na infncia e pr-adolescncia
levava em considerao os valores bsicos da existncia e, portanto, de um comportamento adequado. Sua educao era, ao mesmo tempo, educao f.

Desejando entender o corao de S. Francisco de Sales do ponto de vista
cristo, no seria secundrio conhecer o surgimento da sua relao com Deus,
como tambm a sua imagem de Deus e a sucessiva reviso dessa imagem, e o seu
crescimento na relao ntima com Deus. Infelizmente, as fontes documentais
que possumos sobre isso no nos permitem reconstruir todas as suas experincias de f anteriores intensa crise espiritual devida, como resulta, interpretao do tema da predestinao.33 O ato heroico do seu abandono total em Deus,
feito em Paris pelos vinte anos, aqui apresentado parcialmente, demonstra a sua
profundidade espiritual e teolgica:
[...] Qualquer coisa que tenhais decidido, Senhor, no eterno decreto da vossa
predestinao e da vossa condenao, vs, cujos juzos so um abismo profundo [...], eu vos amarei, Senhor, ao menos nesta vida, se no me for concedido
amar-vos na vida eterna [...] se, como exigem os meus merecimentos, eu deva
ser amaldioado entre os amaldioados que jamais vero a vossa dulcssima
face, concedei-me ao menos no estar entre os que amaldioaro o vosso santo
nome.34


O testemunho de vida espiritual dado por S. Francisco de Sales no perodo
escolar e universitrio leva a pensar que a sua formao religiosa, desde quando
se encontrava em famlia, foi um itinerrio que o fez crescer na amizade com
Deus. Sua relao com Deus, j muito pessoal, depois da prova/crise espiritual
vivida em Paris e novamente em Pdua ser, de fato, sempre mais profunda e
estvel com o passar dos anos.

Ao seu exemplo, podemos reconhecer que crescer na f e no amor de Deus
significa ter uma vida espiritual que no outra coisa seno uma profunda experincia de relao pessoal com Deus. Experincia que, como acontecer em Pdua,
exigir dele novos esclarecimentos sobre o tema da predestinao. Superada essa
etapa, o seu constante abandonar-se a Deus sem reservas ser a expresso mais
convincente da sua crescente relao com Ele.
O tema das suas crises, depois de cuidadosa pesquisa est bem exposto in E. J. LAJEUNIE, Saint
Franois de Sales. LHomme, la Pense, lAction, Paris, ditions Guy Victor 1966, vol. I, 130-145.
151-156.
34
Acte dhabandon hroique, in OEA XXII, 19-20.
33

57


O itinerrio espiritual de S. Francisco de Sales, como natural, foi muito
pessoal desde a juventude, no condicionado nem pelos pais nem por algum da
famlia. Deve-se atribuir grande significado qualidade de suas relaes com
os pais no desenvolvimento da personalidade, como tambm no progresso da
experincia pessoal de f.35 Ele foi afortunado por ter o pai e a me como duas
figuras de referncia significativa, antes de tudo para ele, mas no menos para
seus irmos. Vendo-o agir como adulto diante dos pais, podemos dizer que desde
criana ele interiorizou a figura materna e paterna como pessoas disponveis e
capazes de estarem prximos dele com intenso afeto. Ele, por sua vez, no teve
dificuldade em comunicar-lhes as prprias necessidades e sentir-se respeitado em
sua posio de filho.

O estilo relacional com os pais, estabelecido na infncia, serviu-lhe certamente de modelo na pr-adolescncia e em todas as demais etapas de crescimento. Este modelo relacional, sem perceb-lo, foi proposto por ele em todas as
experincias relacionais com os coetneos, com os adultos e na mesma relao
com Deus. No nos admiremos, pois, que a relao com Deus vivida na idade
adulta tenha sido para ele uma relao muito sentida, cheia de amor. Nosso modo
de ler S. Francisco de Sales autoriza-nos a interpretar a doena e a morte dos pais
como dois momentos muito intensos de sua vida do ponto de vista humano, mas
ainda mais do ponto de vista da f.

Encontrando-se na casa paterna para assistir seu pai enfermo, doena da
qual no se curaria, Francisco escreve:
[...] permaneo aqui, para cumprir meu dever a servio de meu pai que, dia
aps dia, caminha a largos passos para a outra vida. De fato, est to enfraquecido que, se Deus no nos der sua mo milagrosa, j me vejo privado, em
poucos dias, da consolao que a presena deste bom pai sempre deu a mim e
a toda esta casa. Deus, que Senhor de todas as vidas, seja sempre louvado por
todas as suas vontades.36

35
Anos depois, a uma de suas filhas espirituais que, com oraes e sacrifcios espirituais, obter
para o prprio pai a graa de morrer reconciliado com Deus, S. Francisco de Sales escrever: eis
que estais, pois, junto de vosso senhor pai, que considerais como uma imagem viva do Pai eterno,
pois nesta veste devemos honrar e servir aqueles dos quais Ele se serviu para nos dar a vida. Carta
mademoiselle De Brchard, Annecy, [mi-mai 1609], in OEA XIV, 160.
36
Carta monseigneur Claude De Granier, vque de Genve, Sales, 19 janvier 1601, in OEA XII,
53-54.

58


O carter objetivo que queremos respeitar, nesta leitura de S. Francisco de
Sales, no permite interpretar o seu pensamento de maneira imposta previamente.
No fcil, contudo, renunciar pergunta, antes ser til procurar entender, se
e em que medida, a figura paterna o tenha ajudado a sentir-se pai espiritual de
muitas pessoas. Est bem claro que seria difcil, a quem em sua vida no experimentou a bondade e a grandeza da figura do prprio pai, dizer as palavras de
S. Francisco de Sales a um filho espiritual: ...exalta-me o nome de pai com que
vos agradou honrar-me. Este nome penetrou profundamente em meu corao, e
os meus afetos adequaram-se s leis do amor que ele representa: o maior, o mais
vivo, o mais forte entre todos os amores. 37 Um ano depois, quando escrevia ao
mesmo destinatrio, sem estarmos seguros disto, acreditamos que ele tivesse presente a figura do pai diante de seus olhos: ... o amor paterno, em geral, muito
poderoso, porque como um rio que tem a sua origem muito acima....38

Com a morte da me, que aconteceu nove anos depois da do pai, S. Francisco de Sales escrevia:
Experimentei uma grande dor por essa separao [...], mas devo dizer tambm
[...] que foi uma dor tranquila, embora viva, porque disse como Davi: calo-me,
Senhor, e no abro minha boca, porque sois vs que o fizestes; se no fosse
por isso, teria gritado pelo golpe recebido; contudo, parece-me no ter ousado
gritar ou demonstrar insatisfao sob os golpes daquela mo paterna que, na
verdade, graas sua Bondade aprendera a amar desde a minha juventude.39


Para perceber a profundidade do testemunho de f de S. Francisco de Sales
preciso levar em conta o testemunho de f que seus pais davam aos filhos, mediante o clima religioso vivido por eles em famlia e a participao ativa e convicta
na vida paroquial. A experincia religiosa pessoal de Francisco apoiando-se no
testemunho de f e de religiosidade dos pais permitiu-lhe levar adiante, particularmente em Paris e em Pdua, a construo do prprio edifcio espiritual. As provas
de fidelidade f e moral catlica, como ele dir, no lhe faltaram. Como bispo,
abrasado por um triste acontecimento que terminou felizmente com o retorno
Igreja de alguns sacerdotes que se tinham tornado calvinistas, escrever:
Carta au duc de Bellegarde, Annecy, 24 aot 1613, in OEA XVI, 57.
Carta au duc de Bellegarde, Annecy, 19 aot 1614, in OEA XVI, 212.
39
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 11 mars 1610, in OEA XIV, 261.
37
38

59

Deus! Que graa recebi, eu que to jovem e to miservel permaneci por


tanto tempo entre os herticos e fui convidado com muita frequncia a entender-me com eles, sem que o meu olhar tenha jamais aceitado pousar, mesmo
rapidamente nos bens miserveis e infelizes que me eram oferecidos! Seja bendita a mo amvel do meu Deus que me manteve firme neste rebanho.40


Poucos meses depois deste fato, aflito pela falta de fidelidade a Deus de
uma jovem religiosa que decidiu passar vida matrimonial, outra confidncia:
Quanto devemos agradecer a este grande Deus [...]. Eu em particular, que fui
exortado por muitos meios, e numa idade inclinada fraqueza e a inconstncia,
a passar heresia, e que jamais nem sequer aceitei olh-la de frente, se no
para cuspir-lhe no nariz; eu que, mesmo lendo todos aqueles livros pestilentos,
jamais experimentei no meu frgil e jovem esprito a menor inclinao para
aquele terrvel mal [...].41



Para concluir o quadro da situao religiosa na famlia de S. Francisco de
Sales, devemos saber que, como bispo, ele foi confessor de sua me e de seus
irmos com suas famlias. Temos a confirmao disso em suas prprias palavras.
Ontem, dia de todos os santos, fui o grande confessor da famlia [...],42 escrevia
contando como a me e os irmos com seus familiares estavam vivendo pela morte da jovem Joana de Sales, a irm mais nova de S. Francisco de Sales. Em outra
ocasio, a uma senhora que lhe perguntava se fazia bem em confessar-se com um
sacerdote seu primo, Francisco confidenciava: [...] minha me, quando ainda
vivia, fez-me ouvir sua confisso geral e, desde ento, todos os anos, prestavame contas da sua vida com grande humildade; e a minha pobre cunhada, de cuja
morte irm Prrone Maria vos informar, fez o mesmo.43 A me de Francisco,
no leito de morte, vendo-o chegar para assisti-la, disse: Este meu filho e meu
pai.44

Os fatos aqui evocados e as reflexes feitas dizem-nos que na famlia de S.
Francisco de Sales, a educao dos filhos f no era uma realidade setorial em
relao ao resto de suas vidas. A f ali atravessava todas as expresses da vida
pessoal, cvica, poltica. Alm de algumas expresses usuais da religiosidade dos
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 25 juin 1608, in OEA XIV, 37-38.
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 10 ou 19 dcembre 1608, in OEA XIV, 94.
42
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 2 novembre 1607, in OEA XIII,329.
43
Carta madame de Granieu, Annecy, 19 juillet 1618, in OEA XVIII, 251.
44
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 11 mars 1610, in OEA XIV, 262.
40
41

60

pais de S. Francisco de Sales como a orao cotidiana, a ateno aos pobres, a


missa dominical e festiva, alguma peregrinao religiosa nada sabemos da sua
preparao ou no preparao para a tarefa de educar os filhos na f. Todavia, vemos que no delegaram essa tarefa a ningum. Os pais de Francisco encontraram,
portanto, a prpria realizao pessoal ao dar a vida aos filhos mediante a gerao
e ao educ-los.
2.2. Formao escolar de S. Francisco de Sales

Francisco foi enviado, aos seis anos, escola em La Roche, passando a viver fora de casa. Embora no distante mais de uma dezena de quilmetros da casa
paterna, s retornava em famlia para as frias. Dois anos depois, ser transferido
para o colgio de Annecy, ali permanecendo por trs anos. Em relao escola de
La Roche, a de Annecy era um pouco mais distante da casa paterna.

O fato de iniciar a escola aos seis anos, morando fora de casa, deixa-nos
um tanto perplexos, sabendo que aos pais no faltavam possibilidades de faz-lo
estudar em casa. Giorgio Papsogli, que recolheu informaes sobre a opo dos
pais apresenta esta explicao: o pai de Francisco quando via a esposa derramarse em carcias por aquela criana magnfica, bela como uma pintura [...] conservava-se reservado. Quando se falou de estudos, eis as vrias opinies: [segundo
a me] Pode estudar em casa, todos ns o ajudaremos. [O pai:] A escola [...] a
grande formadora do carter. [...] Eu desaprovo a vossa excessiva ternura e que
vos demonstreis demasiadamente afetuosa com nosso filho. Eu tenho por ele um
afeto muito concreto e dirijo para ele um interesse conforme os grandes planos
que considero para sua ascenso [...].45

Atualmente, os psiclogos recomendam aos pais a no fazerem projees
sobre os filhos, para evitar carreg-los de muitas responsabilidades ou de excessivas aspiraes, ou de infundir neles os prprios desejos. Conforme este parecer,
para no condicionar gravemente o destino dos filhos, s vezes de modo irreversvel, os pais devem ajudar os filhos a fazerem opes e no se submeterem
vontade deles.

Francisco, embora ainda criana, segundo o que apresentam os seus bigrafos, teria participado intensamente do projeto de faz-lo estudar fora de casa.46
45
46

G. PAPSOGLI, Come piace a Dio, cit, 45.


Cf. Ibid., 46.

61

Dada a sua idade, no sabemos o quanto ele estivesse consciente das efetivas
expectativas do pai sobre ele. Sabemos, contudo, que a escola de La Roche, onde
estudavam prevalentemente os filhos de famlias nobres, garantia um discreto
nvel de ensino.47 Depois, o grande empenho que Francisco levou adiante e com
sucesso, foi o estudo do latim. Indo para La Roche ele j sabia ler e escrever.48

Em Annecy, depois, em trs anos de escola (1575-1578), ele aprender tudo
o que a Saboia lhe podia ensinar, sustenta o bigrafo.49 Nos anos passados em Annecy, Francisco recebeu a primeira comunho e a crisma. Ele levou muito a srio
os dois sacramentos: desde ento, comungou ao menos uma vez por ms, inscreveu-se na confraria do Rosrio e, enfim, decidiu ler nos perodos de frias, a Vie des
Saints. [...] Pediu ao Pai a permisso de receber a tonsura. [] O pai cedeu: afinal,
a tonsura no empenhava para sempre, [] antes [] poderia faz-lo ascender
aos afortunados benefcios eclesisticos.50

Aos doze anos de vida, Francisco partir para Paris onde estudar segundo os programas escolares para, no futuro, chegar aos estudos universitrios de
jurisprudncia.51 Durante os longos anos de permanncia em Paris coisa impensvel hoje Francisco no retornar famlia nem receber a visita de seus
pais. Embora distante de sua presena fsica, ele no se sentir subtrado ao afeto
deles. Desse perodo, infelizmente, no conhecemos qualquer carta escrita aos
pais, nem deles recebida.

Ao partir para Paris, Francisco conhecia apenas trs de seus irmos. Conhecer os outros quando retornar famlia.

Aps termos acompanhado Francisco, adolescente e jovem, at Paris, notamos que ao seu retorno/passagem Saboia e sucessivamente em seus estudos
de Pdua,52 a relao com os pais manteve os mesmos aspectos de espontaneidade e harmonia, assim como a vivera na infncia.
Cf. E.J. LAJEUNIE, Saint Franois de Sales. LHomme, la Pense, lAction, Paris, ditions Guy
Victor, 1966, vol. I, 106-107.
48
Cf. Ibid, 107.
49
Cf. Ibid.
50
A. RAVIER, Un sage et un saint. Franois de Sales, Paris, Nouvelle Cit 1985, 16-17.
51
Ao pai interessava que com os estudos previstos pelo programa do Colgio de Paris, Francisco
frequentasse as artes da nobreza: equitao, esgrima, ginstica, dana e tudo o que no futuro lhe
serviria para poder mover-se livremente na alta sociedade. Sabendo que Francisco no era por nada
levado a este tipo de prticas, o pai obrigara o preceptor a no deixar que Francisco faltasse a esses
cursos.
52
Entre as seis cartas de S. Francisco de Sales do perodo paduano de estudos, nenhuma endereada aos pais. Os bigrafos acenam ao contato epistolar entre ele e os pais, regular e no apressado.
47

62


A formao intelectual e cultural de Francisco em Paris e em Pdua tinha
por finalidade a carreira poltica.53 Sua vocao sacerdotal, em certo sentido, poderia ser considerada um incidente de percurso. Muito provavelmente, alm do
confessor e do diretor espiritual, ningum sabia que amadurecia nele a vocao
sacerdotal. No sabemos nem mesmo como a sua profunda relao com Deus se
fazia notar e como podia ser interpretada exteriormente.

3. Francisco de Sales, DE pessoa dirigida A direTOR


espiritual
3.1. Importncia do diretor espiritual

Uma das condies essenciais para ser um bom diretor espiritual ou um
bom confessor ser interessado, por primeiro, no prprio progresso espiritual, vivendo, como bom cristo, como penitente ou como pessoa em direo espiritual.
Este itinerrio, atento s dinmicas apropriadas, pode ajudar os futuros confessores e diretores espirituais a superarem os seus problemas, viverem mais livres de
si mesmos e das coisas e crescerem na disponibilidade ao servio de quem precisa
dele.

Damos por certo, embora deste ponto de vista a documentao seja escassa, que em Paris e em Pdua S. Francisco de Sales tivesse um diretor espiritual.
H mais informaes para o perodo paduano do que para o parisiense.54 Da importncia do diretor espiritual na vida de S. Francisco de Sales, antes de ser bispo,
fala o fato de ele se fazer ajudar por esta forma de enfoque espiritual.55
As trs confidncias aqui apresentadas confirmam, cada uma sua maneira, a
necessidade que ele sentia de fazer-se acompanhar espiritualmente nos momentos
importantes de sua vida e nos perodos de intensa atividade pastoral.
Comprovam-no os presentes recebidos do pai quando retornou aps a obteno do doutorado in
utroque iure: uma biblioteca de direito, a recomendao ao duque de Saboia, concluda com a nomeao de Francisco como senador do senado de Chambrry, um encontro com a famlia da jovem
que o pai escolhera para ele pensando em seu casamento.
54
Cf. E. J. Lajeunie, Saint Franois de Sales. LHomme, la Pense, lAction, cit. vol. I, 49-50.
55
O diretor espiritual de S. Francisco de Sales era uma pessoa diversa de seu confessor. Seus
confessores eram os padres: Philippe de Quoex (OEA XII, 30, nota I; OEA XVIII, 156, nota 2) e
Michel Favre (OEA XVII, 208, nota I).
53

63

Antes da consagrao, tive a fortuna de dedicar alguns dias ao recolhimento


e aos Exerccios espirituais sob a direo do P. Fourier, um dos homens mais
excelentes que conheci entre os Jesutas. Digo-vos isso para perceberdes o meu
esprito, como vs me dais conta do vosso, dizendo que continueis a viver em
meio a uma grande variedade de ocupaes e uma multido de imperfeies.
No h remdio: temos sempre a necessidade de lavar os ps, pois caminhamos
na poeira.56
[...] devendo partir amanh, antes do alvorecer, para ir a Chambry. L, esperam-me o P. Reitor dos Jesutas (P. Fourier), que me hospedar nestes cinco ou
seis dias que precedem a Quaresma, dias que me reservei para pr em ordem o
meu pobre esprito, agitado por tantos trabalhos. [...] Os trabalhos desta diocese
no so guas, mas torrentes [...].57
O Padre-Reitor de Chambry estava aqui; e, com ele, pude rever a minha
pobre alma, a comear de quando fui elevado a este cargo. Parece-me, porm,
no me ter humilhado o quanto fosse necessrio. certo que preciso da santa
humildade. Deus meu, quem sou eu? Pouca coisa, [...]; menos do que nada.
Mas, avante! preciso fazer mais de agora em diante.58


Ao ler estes testemunhos, notamos que no arco de cinco anos houve trs
encontros importantes com o mesmo diretor espiritual. Parece que no s o primeiro e o segundo desses encontros, mas tambm o terceiro teve a durao de
vrios dias. A possibilidade de dirigir-se ao diretor espiritual no parece ter favorecido nele uma dependncia desta forma de ajuda espiritual. Isso realmente no
resulta de seus escritos e estaria em contraste com a capacidade que tinha de fazer
uma autoleitura e de agir em consequncia.
Comprova-o uma confidncia sua, que data dos mesmos anos, com que fazia ver
as consequncias humanas e espirituais de sua caridade espiritual:
Ao retornar da visita, quando quis examinar bem a minha alma, senti compaixo de mim: encontrei-a to magra e desfeita, que parecia a morte. Desafio! Por
quatro ou cinco meses, no tivera um momento para respirar. Estarei junto dela
por todo o prximo inverno e procurarei trat-la bem; no pregarei, a no ser
para um auditrio bem limitado, permanecendo sentado na ctedra. Ouvirei a
palavra de um virtuoso e fervoroso Capuchinho, ensinarei o catecismo s crianCarta m. Pierre de Brulle, Annecy, 18 dcembre 1602, in OEA XII, 156.
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 30 janvier 1606, in OEA XIII, 139.
58
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 9 aot 1607, in OEA XIII, 308.
56
57

64

as e ouvirei suas confisses; e, assim, dedicar-me-ei apenas a trabalhos leves,


que no desorientaro o corao, mas serviro apenas para excit-lo. Tenho um
grande desejo de torn-lo bom, para que sirva a muitos outros, a servio dos
quais me consagrei....59


Tenhamos presente que para realizar a sua misso de bispo, S. Francisco
de Sales no se subtraa a nenhum de seus compromissos. As visitas pastorais,
devido extenso territorial da diocese, prolongavam-se por longos perodos e
tornavam-lhe impossvel a regularidade com que se dedicava habitualmente aos
compromissos cotidianos de orao. Todavia, como disse, aquilo que o surpreendeu depois de um dos imensos esforos no se referia ao cansao fsico, mas
prpria exausto espiritual.60

Esta autodiagnose deve ser interpretada, ao menos em parte, como seu
tpico gnero literrio. A relao entre orao e trabalho era um tema apresentado
frequentemente pelos seus filhos/as espirituais para avaliao. A resposta dada a
algum exprime o modo como entendia esta relao com um intenso sentido de
praticidade:
Deveis adequar a durao das vossas oraes quantidade das vossas ocupaes. Assim como agradou a nosso Senhor colocar-vos na condio de vida em
que deveis ter contnuas distraes, ser preciso que vos entregueis a oraes
breves, mas que as torneis to habituais que jamais as deixeis, a no ser por
grave necessidade.61

3.2. Prevenir interpretaes excessivas



fcil pensar em S. Francisco de Sales como diretor espiritual nato, que
se tenha dedicado desde sempre ao ministrio da direo espiritual. No encontramos qualquer indcio a favor dessa convico. Durante os quase nove anos de
Carta la baronne de Chantal, Annecy, fin doctobre 1606, in OEA XIII, 222-223.
Tenhamos presente aqui esta confidncia: [durante as visitas s parquias] Sinto-me bem [...],
embora empenhado em tal quantidade de problemas e de ocupaes que no se poderiam imaginar
outros mais. um pequeno milagre que o bom Deus est realizando porque todas as noites, quando
me retiro, no consigo mais mover o corpo nem o esprito, to cansado me sinto em todos os membros. Contudo, vejo-me todas as manhs mais alegre do que nunca, Carta la baronne de Chantal,
Bonneville, 2 octobre 1606, in OEA XIII, 221.
61
Carta madame de Travernay, Annecy, 29 septembre 1612, in OEA XV, 268-269.
59
60

65

sacerdcio, no parece que ele tenha se empenhado em dirigir algum espiritualmente.



Acompanhando sua atividade sacerdotal e episcopal, em ordem cronolgica, parecia que a carta de 22 de novembro de 1602 endereada s Religiosas
do Mosteiro de Filhas de Deus, depois de sua permanncia em Paris naquele
ano, pudesse ser tomada como incio do seu ministrio de direo espiritual.62
distncia de alguns anos desta carta, escrever a uma religiosa que h pouco
comeara a assistir espiritualmente: Se tivesse aqui os meus papis, vos mandaria um tratado que compus em Paris sobre este argumento em favor de uma filha
espiritual, religiosa de um mosteiro respeitvel, que dele precisava para si e para
as demais. Se o encontrar, vos mandarei na primeira ocasio.63 Infelizmente, no
se conhecem nem o texto ao qual alude, nem a data em que o compilou e nem
mesmo a destinatria. Contudo, esta ao de direo espiritual, no momento atual
do nosso conhecimento, seria o verdadeiro incio do seu ministrio de direo
espiritual. Embora no conhecendo a data exata, o ano sempre o mesmo: 1602.

A ningum possvel saber, antecipadamente, de quais temas e de quais
aspectos de vida crist S. Francisco de Sales tenha tratado com as pessoas servindo-as na direo espiritual. Para sab-lo, o nico caminho a percorrer a leitura
de suas cartas, da Introduo vida devota, do Tratado do Amor de Deus, mas
tambm de suas pregaes e colquios mantidos com a comunidade-me das
Irms da Visitao. preciso distinguir, na leitura, as consideraes teolgicas
sobre a vida espiritual dos problemas pessoais de cada homem e mulher em direo espiritual. A quantidade de temas ou aspectos de vida crist dos quais ele
tratou depende, em grande parte, do nmero de pessoas em direo espiritual e
do nmero total de problemas que essas pessoas lhe apresentaram. No contexto
da dedicao de S. Francisco de Sales direo espiritual encontraremos tambm
algum material que nos ajuda a conhec-lo em seus traos de intensa humanidade, de rica espiritualidade, de profunda teologia. Desde o incio do nosso contato
com seus escritos de direo espiritual, por motivos de objetividade que queremos garantir nossa leitura, importante ter presente que as atenes dadas por
ele s pessoas no eram ditadas por preferncias pessoais, mas pelas necessidades
Carta aux Religieuses du Monastre des Filles- Dieu, Sales, 22 novembre 1602, in OEA XII,
136-152.
63
Carta madame Bourgeois, Abbesse du Puits-dOrbe, Sales, 15-18 avril 1605, in OEA XIII, 31.
A permanncia em Paris de que fala, aconteceu de 22 de janeiro a 20 de setembro de 1602.
62

66

espirituais de cada um e da vontade que Deus lhe demonstrava diante de cada


pessoa acompanhada por ele. De fato, a ajuda que a direo espiritual chamada
a dar deve ser precedida de um atento discernimento espiritual. Agindo assim,
ele mesmo estava convencido de que as pessoas autenticamente espirituais so
aquelas que no tm outro corao fora do de Jesus, nenhum outro esprito fora
do seu, nenhuma outra vontade fora da sua, nenhum outro afeto fora dos seus,
nem outros desejos fora dos dele; enfim, so totalmente suas.64
O nmero de pessoas acompanhadas

Um dado da experincia de direo espiritual de S. Francisco de Sales,
que exige uma leitura atenta justamente o nmero de pessoas das quais ele era
diretor espiritual. Ao falar dele como diretor espiritual, no falta quem o considere diretor espiritual unicamente da senhora de Chantal. difcil conhecer todas as
pessoas que o buscaram como diretor espiritual. Atualmente, a nica estimativa
que nos ajuda a ter uma ideia da quantidade de pessoas acompanhadas por ele
a quantidade de cartas de direo espiritual. A distino entre estas e as demais
cartas escritas por ele deixa-se perceber sem dificuldade.

Apesar de tudo, de acordo com estas cartas, no o nmero exato das
pessoas dirigidas espiritualmente por S. Francisco de Sales que gostaramos de
individualizar. Interessa-nos mais a tipologia dos grupos de pessoas s quais as
cartas eram dirigidas:

- eram muitas as religiosas de vrios institutos. Este grupo de destinatrias de suas cartas de direo espiritual compreende tambm as Irms
da Visitao;

- eram poucos os religiosos e eclesisticos que lhe pediam assistncia
espiritual;

- as leigas: mulheres solteiras, casadas, vivas, em relao ao nmero de
cartas, prevalecem sobre as demais categorias de pessoas;

- os leigos, entretanto, jovens, adultos, casados e solteiros, eram raros.
Entre estes estava Roger de Saint-Lary e de Termes, duque de Bellegarde (1563-1646), uma das grandes figuras da vida poltica francesa sob
Henrique III, Enrique IV e Lus XIII.
64

Sermon pour la fte de saint Jean Porte-Latine, 6 mai 1616 ou 1617, in OEA IX, 80.

67

Circunstncias que no se devem esquecer ao estudar a direo espiritual


segundo S. Francisco de Sales

A leitura dos destinatrios das cartas de direo espiritual de S. Francisco
de Sales exige muita ateno. Isso se deve s seguintes peculiaridades que se
deve levar em conta:

- no possumos todas as cartas de direo espiritual escritas por S. Francisco de Sales;

- estamos diante de um nmero variado de cartas endereadas a cada
destinatrio. O elevado nmero de leigas, destinatrias de suas cartas,
significa duas coisas: a primeira, que um elevado nmero de pessoas
recebia suas cartas, e a segunda, que muitas pessoas receberam apenas
uma carta. Apenas uma dezena de pessoas recebeu certo nmero de
cartas enviadas por S. Francisco de Sales, algumas delas um nmero
muito elevado;

- algumas destinatrias de suas cartas, no muitas, estavam em contato
epistolar com ele ainda antes de ele abraar a vocao religiosa;

- de algumas destinatrias, S. Francisco de Sales resulta diretor espiritual
ao lado de outro diretor;

- com algumas dessas pessoas, o contato epistolar era regular, notvel e
de longa durao. Essa regularidade no lhe seria possvel manter em
relao aos encontros pessoais.
Textos de apoio

Em alguns casos de direo espiritual, enquanto as pessoas davam os primeiros passos no caminho espiritual, S. Francisco de Sales, de acordo com as
necessidades especficas, fazia acompanhar as suas cartas pessoais com subsdios
sobre temas especiais de vida espiritual.65 Tambm acontecia que, para temas
concretos ou trabalhos espirituais, o diretor espiritual encaminhava a pessoa a
livros ou captulos de autores conhecidos. Ajuda anloga era individualizada, alCf. o subsdio que preparara e enviara ao Duque de Bellegarde: Memorial pour bien faire la
confession adress au Duc de Bellegarde le 24 aot 1613, in OEA XXVI, 244-266. No mesmo
volume XXVI das OEA encontramos outros subsdios preparados para diversos destinatrios.

65

68

gumas vezes, na Introduo vida devota, publicada em 1609, sem, porm que
lhe fosse dado um peso excessivo.
Respeito singularidade das pessoas

O nmero elevado dos destinatrios das cartas de direo espiritual no fez
o Autor esquecer-se da singularidade de cada um. Esta realidade, individualizada
em cada pessoa, mesmo quando exige muito tempo, de importncia fundamental na direo espiritual. singularidade de cada cristo/, alm das caractersticas psicolgicas e temperamentais individuais, pertence igualmente a sua
especificidade histrica devida:

- pertena a uma determinada categoria de pessoas pelo seu estado de
vida e profisso;

- ao seu progresso ou retrocesso espiritual na vida crist.

A atitude de S. Francisco de Sales, relativa singularidade de cada pessoa
em direo espiritual, era a mesma que encontramos na Introduo vida devota.
Muitas pessoas, no s ento, pensam que h um nico modo de tender santidade crist. S. Francisco de Sales, todavia, sustenta que o caminho de santidade
deve ser percorrido de maneiras diversas pelo nobre, pelo operrio, pelo servo,
pelo prncipe, pela viva, pela filha, pela mulher casada; isso no basta, mas ser
preciso ainda adaptar a prtica de vida espiritual s foras, aos trabalhos e aos
deveres dos indivduos. [...] Seria correto que o bispo desejasse viver isolado
como os Cartuxos? E se os casados no quisessem renunciar a nada, como fazem
os Capuchinos, se o operrio estivesse o dia todo na igreja como o religioso e o
religioso estivesse continuamente exposto a todo tipo de encontros no servio
do prximo, como o bispo, esta vida espiritual no seria ridcula, desajustada e
insuportvel? [...] um erro, antes uma heresia, querer banir a vida espiritual da
legio dos militares, da oficina do operrio, da corte do prncipe, da vida cotidiana das pessoas casadas. [...] Onde quer que vivamos, podemos e devemos aspirar
vida perfeita.66

A ateno singularidade de cada pessoa, segundo ele, exigida tambm
em nvel de direo espiritual comunitria, como o caso dos religiosos e religiosas. S. Francisco de Sales dera superiora da Visitao em Lyon, primeira
66

Introduction la vie dvote, in OEA III, 19-21.

69

casa fundada fora da Saboia, uma recomendao implcita, acompanhada de uma


sentena de sabor sapiencial: No deis ateno quantidade de imperfeies
existentes em vs e em todas as filhas que nosso Senhor e nossa Senhora vos
confiaram... pois no o caso de admirar-se se, num jardim, cada planta e cada
flor exijam um cuidado especial.67

Anos antes, ele dera conselho semelhante a uma superiora jovem, dinmica, segura das prprias decises, que iniciara com determinao a reforma da
vida religiosa em seu mosteiro:
Eu apresento frequentemente no altar este vosso ideal quele que vo-lo sugeriu e que vos deu a boa vontade de prop-lo, para que vos conceda a graa
de lev-lo a cumprimento. Parece-me entrever a porta aberta. S vos peo,
Senhora..., que recordeis que a porta estreita e difcil de ser superada e que,
portanto, deveis ter a esperteza e a pacincia de fazer entrar por ela todas as
vossas irms, mas uma depois da outra. Querer faz-las passar todas em multido e em breve tempo, coisa que, eu acredito, no haveria de ter sucesso. Algumas delas no podem caminhar rapidamente como as outras. preciso dar as
devidas atenes s idosas, que no poderiam adaptar-se com facilidade: elas
so muito pouco maleveis, porque os nervos do esprito, como os do corpo, j
esto contrados. Toda atividade que consagrais a esta obra, deve ser carinhosa, graciosa, compreensiva e tolerante. Deveis impor-vos isso quer pela vossa
idade quer pela vossa ndole, dado que a severidade no vai bem aos jovens.
E, crede-me, Senhora: o governo mais perfeito aquele que mais se aproxima
daquele que o bom Deus exerce sobre ns, que todo tranquilidade e paz, que
tem uma atividade intensssima, mas sem agitao, e que, embora sendo nico,
se adapta a todos e a todas as coisas. Sobretudo, vo-lo peo, servi-vos dos conselhos de pessoas espirituais...68

Destinatrios procurados ou sem preferncia?



Por que S. Francisco de Sales se dirigia prevalentemente a pessoas de condio social elevada, como se deduz do elenco dos destinatrios de suas cartas de
direo espiritual? Trata-se de um fato facilmente explicvel. Em seu tempo, as
pessoas culturalmente simples eram, em geral, desprovidas de instrumentos para
poder recorrer correspondncia epistolar. No se esquea, em todo caso, que S.
Carta la mre Favre, suprieure de la Visitation de Lyon, Annecy, fin octobre ou commencement
de novembre 1615, in OEA XVII, 81.
68
Carta madame de Beauvilliers, abbesse de Montmatre, Annecy, [janvier] 1603, in OEA XII,
172-173.
67

70

Francisco de Sales bispo se dedicava no s s visitas pastorais, pregao, catequese das crianas, mas tambm confisso, especialmente de gente simples. No
possvel dizer qualquer coisa sobre esta eventual modalidade de direo espiritual.
Motivaes espirituais do ministrio de direo espiritual

A documentao de que dispomos para algumas histrias de direo espiritual, acompanhadas por S. Francisco de Sales, apresenta provas de suas declaraes explcitas de ser vontade Deus que ele se empenhasse nessa misso. Das
mais caractersticas, e como exemplo, apresento algumas:
[...] a escolha que fizestes tem todos os sinais de ser boa e legtima; e disso
vos peo que jamais duvideis [...]. A longa reflexo que me impus antes de vos
dar o meu assentimento; o fato de que nem vs nem eu confiamos apenas em
ns mesmos, mas recorremos ao juzo do vosso confessor bom, douto e prudente; o fato de termos dado s primeiras agitaes da vossa conscincia todo
o tempo para acalmar-se, caso tivessem algum fundamento; as oraes, no
de um dia ou dois, mas de vrios meses, que precederam a vossa escolha, so
sinais infalveis que nos permitem afirmar sem sombra de dvida, que era essa
a vontade de Deus.69
Suplico-vos, pelo amor de nosso Senhor, que creiais sem a menor dvida que
eu estou inteiro e irrevocavelmente a servio da vossa alma e que me empenharei neste servio com todas as minhas foras e com toda a fidelidade que
podereis desejar. Deus o quer e eu o sei muito bem: nada mais posso dizer.70
[...] no [haja] mais qualquer cerimnia entre ns: os vnculos que nos unem
no so formados por cordas daquela espcie. Eles so invariveis, incorruptveis e eternos, pois nos amaremos no cu com o mesmo amor de Jesus Cristo
que une de corao e de alma aqui embaixo e que faz de mim o vosso humilssimo e afeioadssimo servo.71
Carta la baronne de Chantal, Sales, 14 octobre 1604, in OEA XII, 353. Em relao senhora de
Chantal, quando em 1604 ela se encontrou com S. Francisco de Sales, no se tratou de uma simples
escolha do diretor espiritual, mas de uma mudana de diretor espiritual. Sobre este fato, vejam-se
as pginas 324-328 do meu artigo: J. Stru, I protagonisti della direzione spirituale secondo linsegnamento e la pratica di san Francesco di Sales, in Salesianum 2(1978 aprilis-iunius), 293-342.
70
Carta madame Bourgeois, abbesse du Puits-dOrbe, Sales, 13 octobre 1604, in OEA XII, 341.
71
Carta la prsidente Brulart, [sem indicar o local], vers le 20 avril 1605, in OEA XIII, 39.
69

71

Deus tornou-me vosso, e eu o serei imutavelmente para sempre, totalmente e


sem reservas [...], eu serei vosso mais de quanto se possa dizer.72


A intensidade da profunda convico com que S. Francisco de Sales faz estas declaraes recorda a importncia indiscutvel da vontade de Deus, indicada
por ele como condio de qualquer itinerrio autntico de santidade. No contexto
das quatro declaraes apresentadas acima sobre sua disponibilidade de servir na
direo espiritual, porque essa a vontade de Deus, no nos deve levar suspeita
de um desejo de querer apossar-se das pessoas. Justamente nesse contexto, til
ver a sua reao ao temor expressado pela senhora de Chantal, preocupada em se
ver algum dia sem diretor espiritual, caso ele morresse: sem dvida um bem
desejar a vida quele que Deus vos deu como guia para a vossa; mas [...] Deus
tem centenas de meios, ou melhor, infinitos meios para guiar-vos sem mim:
Ele que vos conduz como uma ovelha (Sl 79,2). Peo-vos: tende o vosso corao
muito elevado; apegai-o indissoluvelmente vontade soberana daquele dulcssimo corao paterno do nosso Deus, e que Ele seja sempre obedecido e obedecido
suavemente pelas nossas almas.73

4. TAREFAS prpriAs do diretor espiritual


4.1. A figura do diretor espiritual

No captulo IV da Primeira Parte da Introduo vida devota, S. Francisco
de Sales diz que, para iniciar O caminho espiritual e continuar ao longo do seu
percurso, preciso ter um guia.74 Sua tarefa ser:
amigo fiel... que orienta as nossas aes com suas advertncias e seus conselhos, e assim nos salva das emboscadas e armadilhas do maligno;
um tesouro de sabedoria nas aflies, tristezas e quedas;

Carta madame Anglique Arnauld, abbesse de Port-Royal Maubuisson, Annecy, 5-7 juillet
1620, in OEA XIX, 271.
73
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 29 septembre 1608, in OEA XIV, 68.
74
Introduction la vie dvote, in OEA III, 22-25.
72

72

remdio para aliviar e consolar os nossos coraes no tempo das doenas espirituais; preservar-nos- do mal e tornar melhor o nosso bem; e quando nos
acontecer alguma enfermidade, impedir que ela nos faa morrer, pois nos colocar novamente em p.


No fcil dizer se alguma destas trs funes a principal em relao s
demais. luz das palavras conclusivas de S. Francisco de Sales sobre a responsabilidade do diretor espiritual, no mesmo captulo, no parece possvel preferir
qualquer uma delas transcurando as demais. Em seu modo de ver, o diretor espiritual deve estar cheio de caridade, de cincia e de prudncia; se lhe faltar uma
das trs, a misso se tornar perigosa.

A verdadeira dificuldade derivada desta tipologia da figura do diretor espiritual refere-se escolha dessa pessoa, onde e como encontr-la. A escolha
de um diretor espiritual com essas qualidades torna-se rdua, seno impossvel,
justamente pela importncia atribuda s suas trs funes. A dificuldade desta
escolha faz-se ainda mais sentida quando, de modo imparcial, S. Francisco de
Sales reporta o conselho de S. Joo de vila: escolhei um entre mil. O nvel de
dificuldade continua a crescer de modo exorbitante quando, com senso de profundo realismo, S. Francisco de Sales declara: Um entre dez mil, digo eu; dado que
os homens altura dessa responsabilidade so menos de quanto se pense.

Como, portanto, encontrar um diretor espiritual segundo os requisitos humanos e espirituais indicados por S. Francisco de Sales? De acordo com o que
ele mesmo sugere, cabe pessoa interessada dirigir-se a Deus com insistncia e
pedir que lhe envie algum segundo o seu corao.

A grande importncia que S. Francisco de Sales reconhece ao papel do
diretor espiritual na vida de pessoas interessadas em iniciar o itinerrio espiritual
poderia ser impossvel na prtica, pela dificuldade de encontr-lo. Entendemos de
uma resposta de S. Francisco de Sales que essa eventualidade no quereria dizer
que se est fora da graa de Deus:
Ser vossa fortuna no ter outro diretor seno o doce Jesus que, como no quer
que se despreze a guia de seus servos, quando se pode t-la, assim tambm est
pronto a substitu-la em tudo quando esta venha a faltar. Mas o faz somente em
ltimo caso, como podereis experimentar caso vos acontecesse de no poder
ter um diretor.75
75

Carta mademoiselle de Soulfour, Annecy, 22 juillet 1603, in OEA XII, 206.

73

4.2. O diretor espiritual deve estar cheio de caridade, de cincia e de


prudncia...

Se a juzo de S. Francisco de Sales os parmetros para avaliar a idoneidade
de um diretor espiritual so ... estar cheio de caridade, de cincia e de prudncia..., por que estas mesmas medidas no deveriam ser usadas para ler o seu
perfil humano, espiritual e pastoral? Levando-se em conta a abordagem dada a
este texto, os modos de ser e de fazer de S. Francisco de Sales diretor espiritual,
em grande parte j vistos, ns o vemos coerentes com as medidas indicadas por
ele. Em seguida, sero assinalados alguns de seus outros modos de pensar e agir
como diretor espiritual.
Cheio de caridade

Procuremos perceber o sentido da especificidade cheio de caridade, exigida para o diretor espiritual, recorrendo:

- ao comentrio de S. Francisco de Sales sobre alguns incidentes acontecidos por ocasio de encontros de direo espiritual;

- aos convites feitos por ele mesmo a quais virtudes praticar e por que,
com a finalidade de progredir na perfeio.

Em ordem cronolgica, o primeiro fato que ele comenta foi-lhe apresentado por uma pessoa que ele mesmo acompanhava espiritualmente; essa pessoa,
devido grande distncia, devia fazer-se ajudar por um conselheiro espiritual do
lugar. O conselheiro, experiente em direo espiritual, conhecido e estimado por
S. Francisco de Sales, mostrou-se exato em identificar na personalidade da penitente os pontos que exigiam ateno especial. A penitente, porm, sofreu pelo fato
de ter sido reconhecida como carente de correo, convencida de no gozar de sua
confiana. S. Francisco de Sales, sabendo do acontecido, procurou evidenciar as
vantagens que ela teria obtido das observaes do seu guia espiritual. As observaes, segundo seu modo de ver, quando acontecem na amizade espiritual, embora
parecendo acidentais, no deveriam ser motivo de preocupao porque ... o conselheiro de almas que sabe ser discreto no se admira de nada, acolhe tudo com
caridade, desculpa tudo e bem sabe que o esprito do homem est sujeito vaidade
(Rm 8,20) e desordem, se no tiver uma assistncia especial da Verdade.76
76

Carta la prsidente Brulart, 29 avril 1606, in OEA XIII, 175.

74


O segundo fato refere-se ao prprio S. Francisco de Sales. Ao saber da
superiora de um mosteiro em dificuldade que, devido ao nvel de vida espiritual,
S. Francisco de Sales procurava ajudar a renascer, eram-lhe atribudas palavras
jamais ditas, confidenciou irm que o informou: [...] a experincia ensinara-me
a no ser duro com as almas rebeldes enquanto houvesse esperana de conquistlas pela doura [...]. Aqueles que pretendem servir s almas devem ser pacientes,
porque elas sempre so, como nos incios, caprichosas, bizarras e vendedoras de
palavras. Quem se deixasse desencorajar por isso, jamais faria alguma coisa.77

No itinerrio que estamos percorrendo em busca do sentido da especificidade cheio de caridade do diretor espiritual ser til contemplar, como j
acenado, as virtudes que S. Francisco de Sales recomendava s pessoas dirigidas
por ele:
[Preferir] as duas caras e amantssimas virtudes que resplendiam na santa Pessoa de Nosso Senhor, virtudes que, de modo todo particular, nos recomendou
[...]: Aprendei de mim... que sou manso e humilde de corao. A humildade
torna perfeito diante de Deus; a doura, diante do prximo.78
A doura e a humildade so as bases da santidade.79
Tende grande cuidado em praticar bem a humilde doura, que deveis usar para
com vosso caro marido e com todos, porque a virtude que nosso Senhor to
vivamente nos recomendou.80
Recomendo-vos principalmente o esprito de doura, que aquele que atrai e
conquista as almas.81
Devemos permanecer sempre bem firmes na prtica de nossas duas caras virtudes: a doura em relao ao prximo e a amabilssima humildade em relao
a Deus.82

Carta madame de la Forest, religieuse de lAbbaye de Bons, Annecy, 2 octobre 1609, in OEA
XIV, 205.
78
Parte III, captulo VIII da Introduction la vie dvote, in OEA III, 161-165.
79
Carta la soeur Fichet, religieuse de la Visitation dAnnecy, Annecy, 31 dcembre [entre as cartas
sem data], in OEA XXI, 1.
80
Carta madame de Villesavin, Parios, juillet-aot 1619, in OEA XVIII, 417.
81
Carta madame Bourgeoise, Abbesse du Puits-dOrbe, Annecy, 3 mai 1604, in OEA XII, 272.
82
Carta madame de la Valbonne, [1515-1617], in OEA XVIII, 135.
77

75


A ndole prpria da humildade e da doura, as duas caras e amantssimas
virtudes que resplendiam na santa Pessoa de Nosso Senhor, inscreve-se perfeitamente no objetivo da direo espiritual: crescer no amor de Deus.

Caminhar pelo itinerrio espiritual, segundo S. Francisco de Sales, quer
dizer empenhar-se de modo a alcanar a prpria liberdade em relao aos pecados e aos vcios, como tambm crescer na orao pessoal e litrgica, para ser
homem ou mulher de orao atravs de uma profunda comunho com Deus. Faz
parte deste programa o esforo que vise conquistar as virtudes adequadas para
contribuir ao autntico crescimento espiritual da pessoa.
Deus [...] guia a alma, que fez sair do Egito do pecado, de amor em amor,
como de etapa em etapa, at introduzi-la na terra prometida, ou seja, na santa
caridade, que amizade, no amor interessado.83


O itinerrio espiritual assim entendido, com esta articulao coerente, exprime a sua capacidade de poder forjar o homem interiormente. Neste contexto,
preciso perguntar-se: qual o papel do diretor espiritual? De que modo ele pode
acompanhar a pessoa em direo espiritual? Como ele prprio pode corresponder
ao dever de estar cheio de caridade? Se o amor de Deus a motivao fundamental de todo itinerrio espiritual, no deveria o mesmo amor de Deus ser tambm a motivao do ter de estar cheio de caridade, indicada por S. Francisco de
Sales juntamente com as outras duas qualidades do diretor espiritual?

S. Francisco de Sales no explicita os caminhos pelos quais o diretor espiritual pode alcanar a qualificao de cheio de caridade. A nica lio que nos
d o testemunho de sua vida. Em fora desse testemunho, parece justificado
pensar que o diretor espiritual deveria buscar uma contribuio qualificadora para
o crescimento do seu viver cheio de caridade praticando as mesmas virtudes
aconselhadas por S. Francisco de Sales s pessoas acompanhadas por ele.

No programa de vida espiritual realizado segundo a dinmica desse itinerrio, as virtudes no so um corpo estranho. importante que a vida de orao
e a luta contra os pecados e os vcios pessoais se associem prtica das virtudes. S. Francisco de Sales esclarece o quo normal seja a ligao entre a prtica
das virtudes e os outros trabalhos espirituais na vida crist, com este exemplo
prtico:
83

Traitt de lAmour de Dieu, in OEA IV, 163-164.

76

[...] muitos fazem profisso de querer ser virtuosos filosoficamente, mas, na


realidade, no so virtuosos de modo algum. Eles no so outra coisa seno
fantasmas de virtude, que, com um comportamento cerimonioso e um rio de
palavras, escondem a sua vida m e os seus humores aos olhos daqueles com os
quais devem tratar. Mas ns, que bem sabemos no podermos ter um mnimo
de virtude sem a graa de nosso Senhor, devemos procurar viver virtuosamente
recorrendo piedade e santa devoo; caso contrrio, no seremos virtuosos
a no ser na imaginao e nas aparncias.84


O lugar das virtudes no interior de um autntico programa de vida espiritual torna-se natural em fora da relao igualmente natural que existe entre a
caridade e as virtudes. Sobre esta relao S. Francisco de Sales diz:
... a caridade jamais entra num corao a no ser arrastando atrs de si as
demais virtudes, que alinha e adestra como um capito faz com seus soldados;
mas no as faz entrar em ao todas juntas, todas do mesmo modo, ao mesmo
tempo e em todos os lugares... a caridade, irrigando uma alma, produz nela
obras virtuosas, mas cada uma na sua estao.85
... caminhai sempre corajosamente de virtude em virtude at alcanardes o
grau mais elevado do amor divino. Mas jamais o alcanareis, pois este amor
sagrado infinito como o seu objeto, que a divina Bondade.86


luz deste pronunciamento de S. Francisco de Sales preciso recordar
os critrios segundo os quais se escolhem as virtudes a praticar. As razes mais
fundamentais que deveriam regular essa escolha so estas, segundo ele:
Entre as vrias prticas das virtudes, devemos preferir aquelas que esto mais
alinhadas com o nosso dever e no com o nosso gosto [...]. Cada estado de
vida precisa praticar esta ou aquela virtude especial: so de um tipo as virtudes
do prelado, de outro as do prncipe e, ainda de outro as do soldado, da mulher
casada ou da viva; e assim como todos devem ter todas as virtudes, nem todos
devem pratic-las da mesma maneira, mas cada um deve dedicar-se de modo
particular s exigidas pelo gnero de vida ao qual chamado.87
Carta madame Celse-Bnigne de Chantal, Annecy, 8 dcembre 1610, in OEA XIV, 378.
Introduction la vie dvote, in OEA III, 123.
86
Carta mademoiselle de Brchard, Annecy, [fin mai 1609), in OEA XIV, 165.
87
Introduction la vie dvote, in OEA III, 124-125.
84
85

77

[...] para o exerccio das virtudes, no preciso estar [...] atentos para praticar
todas elas [...]. A humildade e a caridade so as cordas mestras s quais esto
amarradas todas as outras. Basta comportar-se bem a respeito dessas duas: uma
a mais inferior, a outra a mais elevada de todas. [...] Mantendo o corao
voltado para o exerccio dessas duas virtudes, no se podero encontrar grandes
dificuldades na prtica das demais. Elas so como mes para as demais virtudes, que a seguem [...].88

Tendo presente a linguagem que S. Francisco de Sales usa com as pessoas por ele acompanhadas, notamos que se trata de uma linguagem imediata,
mas adequada para comunicar que o principal Ator deste itinerrio de perfeio
Deus / o Esprito Santo; por outro lado, esta linguagem interpela o prprio diretor
espiritual, perguntando-lhe qual a sua tarefa enquanto acompanha algum pelo
caminho da perfeio:
[...] por vontade de Deus, sinto por vs todo afeto que podereis desejar, e no
saberia proibir-me de senti-lo. Amo profundamente o vosso esprito, porque
penso que Deus o quer, e o amo ternamente, porque vos vejo ainda frgil e
muito jovem.89
[no penseis que eu] entenda deixar de contribuir para convosco com toda a
luz e fora que Deus me der, porque no seria possvel desfazer as ligaes com
que Deus nos uniu.90
Recomendo-vos a Deus [...], ao mesmo Deus que adoro e que me tornou to
unicamente e to intimamente vosso.91
Suplico-vos [...] que jamais abandoneis os santos propsitos que fizestes, porque Deus, que os sugeriu ao vosso corao, vos pedir conta deles. E para
coloc-los bem em prtica, vivei prxima do Salvador, porque a sua sombra
salutar para o surgimento e a conservao desses frutos.92
Deus vos guia com sua santa mo e confirma sempre mais o generoso e celeste propsito que vos sugeriu de consagrar toda a vossa vida a Ele. justo
e razovel que aqueles que vivem, no vivam mais para si mesmos, mas para
Carta la baronne de Chantal, Annecy, 11 fvrier 1607, in OEA XIII, 263-264.
Carta la soeur de Soulfour, novice au Monastre des Filles-Dieu, Annecy, 16 janvier 1603, in
OEA XII, 163.
90
Carta la prsidente Brulart, [sem indicar o local], vers le 20 avril 1605, in OEA XIII, 38.
91
Carta la baronne de Chantal, Thonon, 10 juillet 1607, in OEA XIII, 297.
92
Carta une Dame, [sem indicar o local e a data], in OEA XXI, 20.
88
89

78

Aquele que morreu e ressuscitou por eles (2Cor 5,15). Uma alma grande, Senhor, impulsiona todos os seus melhores pensamentos, os seus afetos e os seus
ideais at o infinito da eternidade....93
Acrescento apenas que vos peo para crerdes firmemente que vos amo de um
amor perfeito e verdadeiramente paterno, porque a Deus agradou dar-vos uma
confiana ilimitada e filial em relao a mim. Continuai, pois, minha carssima
Filha, a amar-me cordialmente.94


O modo de S. Francisco de Sales exprimir-se em relao s pessoas encaminhadas perfeio faz ver que o estar cheio de caridade do diretor espiritual se
impe como necessidade: para a pessoa em direo espiritual, o diretor espiritual
deveria ser o reflexo do amor de Deus. Consequentemente, embora sendo apenas
mediador entre a pessoa em direo espiritual e Deus que a guia, a presena do
diretor espiritual jamais deveria ser fraca, insignificante.

As facetas da caridade e suas funes, ns o sabemos, so muitas. No esprito da terminologia de S. Francisco de Sales, porm, o vocbulo que exprime
o modo e o estilo de estar cheio de caridade do diretor espiritual na direo
espiritual amizade. Qual a utilidade derivada disso para a direo espiritual?
A resposta dada com a apresentao do conceito de amizade de S. Francisco de
Sales.95 Conhecendo seu modo de entender a amizade, no ser difcil entender
a atmosfera humana e espiritual de suas cartas. Atmosfera que, s vezes, pode
parecer excessiva pelo calor afetivo que exprimem.

A amizade, diz S. Francisco de Sales, amor por sua natureza, mas amor
que no pode viver sem comunicao. Segundo ele, nem todo amor amizade.
Porque possvel amar e no ser amado. O amor amizade se for recproco.
Alm do mais, as pessoas que se amam reciprocamente devem conhecer o seu
afeto recproco. Se no o conhecem, haver amor entre elas, mas no amizade.
preciso, ento, que entre elas exista algum tipo de comunicao que sirva de base
para a amizade.

Ao ilustrar o conceito de amizade preciso saber, sublinha S. Francisco de
Sales, que seus tipos dependem dos bens que os amigos se comunicam:

- a amizade falsa e intil se os bens forem falsos e inteis;
Carta au duc de Bellegarde, Annecy, 19 aot 1614, in OEA XVI, 213.
Carta madame Guillet de Monthoux, Annecy, 16 novembre 1616, in OEA XVII, 306.
95
Introduction la vie dvote, in OEA III, 194-216.
93
94

79

- a amizade verdadeira se os bens forem verdadeiros;


- a amizade espiritual se os bens forem espirituais etc.


Os esclarecimentos sobre o conceito de amizade e suas possveis categorias evidenciam o sentido da comunicao obrigatria, que muito importante na
direo espiritual. Os mesmos esclarecimentos, de algum modo, querem fazernos pensar nos eventuais perigos, caso os bens comunicados no correspondessem aos fins da amizade que deveria existir na direo espiritual.
Escrevi-vos dias atrs, mas o meu corao, que vos ama ternamente, no pode
sentir-se satisfeito, se no vos der ao menos este delicado testemunho de afeto
escrevendo-vos o mais frequentemente possvel.96
Sinto [...] um afeto to intenso e to sincero pela vossa alma que, se me permitsseis, eu vos desafiaria a ter uma benevolncia bastante grande para correspond-lo. Deus vos far sab-lo, o mais tardar depois desta vida mortal, porque
justamente diante dEle e de seus santos, darei as mais belas provas da santa
amizade que Ele me deu por vs, endereando muito frequentemente os meus
humildes votos sua eterna Bondade, para que encha o vosso corao do seu
amor mais perfeito.97
[...] no h no mundo homem que tenha um corao mais terno e mais sedento
de amizade do que o meu, ou que sinta mais dolorosamente do que eu as separaes [devido morte]; e, contudo, dou to pouca importncia s vaidades da
nossa vida presente, que jamais me dirijo a Deus com tanto amor como quando
me feriu ou permitiu que fosse ferido.98

Cheio de cincia e de prudncia



Concluda a apresentao da primeira qualidade do diretor espiritual, acenar-se- rapidamente aos outros dois requisitos, ou seja, a cincia e a prudncia.
No por querer diminuir a sua importncia em relao ao primeiro requisito. Parece, segundo uma convico pessoal, que em relao a estes dois requisitos seja
suficiente dizer as coisas de sua exclusiva pertinncia, sem repetir as que j foram
ditas anteriormente. Permanece firme a persuaso relativa a todos os requisitos de
Carta mademoiselle de Brchard, Annecy, [fin mai 1609), in OEA XIV, 164-165.
Carta madame de Grandmaison, Annecy, 25 octobre 1612, in OEA XV, 283.
98
Carta une Dame [sem indicar o local e a data], in OEA XXI, 33.
96
97

80

um diretor espiritual: deve estar cheio de caridade, de cincia e de prudncia: se


lhe faltar uma das trs, a questo se torna perigosa.

Estar cheio de cincia e de prudncia e estar cheio de caridade, significa ser capaz de servir a/as pessoa/as em linha com as finalidades prprias da
direo espiritual salesiana. a capacidade que permite ao diretor espiritual agir
no mximo respeito dos fins da direo espiritual, mas tambm das necessidades
individuais das pessoas que deve acompanhar. Antes de deter-me em cada um dos
dois requisitos do diretor espiritual, necessrio dizer em que sentido eles so
importantes.

Salvo raras excees, toda solicitao de direo espiritual feita pelas pessoas a um diretor espiritual demonstra na quase totalidade dos casos que elas so
levadas pelo desejo de um significativo progresso espiritual. A aceitao de cada
solicitao pelo diretor espiritual abre diante dos interessados um horizonte novo
e um caminho indito a percorrer, embora este incio no os liberte de modo automtico de seus problemas.

Observando o modo de agir de S. Francisco de Sales, aprende-se que a
tarefa da direo espiritual diante das pessoas interessadas faz-las caminhar
para o horizonte espiritual a alcanar e no resolver seus problemas e dificuldades. Em contato com as pessoas em direo espiritual, S. Francisco de Sales no
toma distncia de seus problemas, mas se mostra ciente de que em certos casos,
dar toda a ateno aos problemas e s dificuldades que as afligem, poderia depois
tornar difcil encaminhar para a meta devida. As pessoas, sozinhas, nem sempre
percebem que, fixando-se excessivamente nas dificuldades a enfrentar e nos problemas a resolver, poderiam correr o risco de se verem num impasse; permanecendo bloqueadas num imobilismo psicolgico, ver-se-iam bloqueadas tambm
no espiritual.

Um sbio conselho que lemos na Introduo vida devota, dado repetidas
vezes a muitas pessoas, faz saber em que consiste o itinerrio espiritual:
No nos perturbemos com nossas imperfeies, porque a nossa perfeio est
justamente em combat-las, e no poderamos combat-las se no as percebssemos, nem venc-las se no as encontrssemos. A vitria no est em no
experiment-las, mas em no consenti-las; todavia sentir-nos atormentados por
elas no significa consenti-las.99

99

Introduction la Vie dvote, in OEA III, 27.

81


S. Francisco de Sales oferecera uma lio prtica, convincente, senhora
de Chantal:
[...] louvo a Deus pela constncia com que suportais as tribulaes. Contudo,
ainda noto certa inquietude e um pouco de pressa, que impedem os ltimos frutos da vossa pacincia. Com a vossa pacincia, diz o Filho de Deus, salvareis as
vossas almas. O efeito da pacincia , portanto, possuir bem a prpria alma; e,
quanto mais a pacincia for perfeita, tanto mais a posse da alma torna-se completa e excelente. E a pacincia to mais perfeita quanto mais estiver livre da
inquietao e da pressa. Queira Deus, portanto, libertar-vos desses dois impedimentos, para que possais bem depressa estar libertada do outro. Todavia, tende
coragem, eu vos peo [...], tendes suportado as dificuldades da viagem apenas
por trs anos, e j quereis o repouso. Recordai-vos de duas coisas. Primeira: que
os filhos de Israel permaneceram quarenta anos no deserto antes de chegarem
terra da morada que lhes fora prometida, embora seis semanas fossem suficientes para fazer toda a viagem muito comodamente. E no lhes foi permitido
inquietar-se pelo fato de Deus obrig-los a fazer tantos giros e conduzi-los atravs de caminhos to difceis; e todos os que murmuraram, morreram antes de
chegar meta. Segunda: que Moiss, o maior amigo de Deus entre aquela multido, morreu no limiar da terra do seu repouso, contemplando-a com os olhos,
mas sem poder dela gozar. , agradasse a Deus que no nos preocupssemos
tanto com as condies do caminho que percorremos, mas tivssemos os olhos
fixos nAquele que nos conduz e em seu felicssimo pas para o qual nos guia!
Que nos deveria importar se caminhamos por desertos ou atravs dos campos,
quando Deus est conosco e caminhamos para o Paraso?.100

a) Cheio de cincia

No fcil entender antecipadamente o requisito de o diretor espiritual
estar cheio de cincia em vista do bem espiritual das pessoas que ele deve
servir, sabendo ainda que o verdadeiro guia espiritual Deus. Fica-se realmente
desconcertado ao ouvir o juzo que o prprio S. Francisco de Sales expressou
sobre um sacerdote religioso, tido por ele como incapaz de guiar espiritualmente
as pessoas:
Dados os limites de seus conhecimentos, ele tem uma discreta prtica dos
casos de conscincia; mas, dado que ele no tem aquele delicado discernimento
100

Carta la baronne de Chantal, Annecy, 18 fvrier 1605, in OEA XIII, 5.

82

que seria exigido, no percais tempo escutando seus conselhos. Podeis, porm,
confessar-vos com ele, tanto vs como os demais.101

Quando sublinhamos que para um diretor espiritual estar cheio de cincia condio sem a qual no pode realizar a sua misso de guia espiritual,
significa que suas possibilidades efetivas e a competncia de acompanhar espiritualmente so aquelas que lhe permitem agir sob a orientao de Deus.

Ningum, porm, ousaria negar em S. Francisco de Sales a presena do
requisito cheio de cincia. Alm do mais, no h provas de qualquer incompetncia sua na direo espiritual. Dele, causa maior admirao o contrrio, no se
sabendo quando pde estudar a Bblia sistematicamente, para conhec-la, interpret-la, aplic-la com tanta agilidade; quando pde ler os doutores da Igreja, os telogos, os autores espirituais, para servir-se deles com surpreendente abundncia.

Admira igualmente quando, poucos anos aps iniciar o ministrio da direo espiritual, o ouvimos apelar para sua experincia. Sabemos que como pessoa
humilde que era no teria sido capaz de ostentar os seus sucessos. Por outro lado,
no novidade que ao falar de experincia, ele tinha em conta todo o ministrio
sacerdotal que exercera desde o incio em favor dos fiis. Vemos o quanto se
sentia discpulo da escola da experincia pastoral, quando convida um de seus
dirigidos constncia em nutrir-se do sacramento da Eucaristia:

102

Nos vinte e cinco anos desde que estou a servio das almas, a experincia fezme tocar com a mo a virtude onipotente deste divino Sacramento que fortifica
os coraes no bem, imuniza-os contra o mal, consola-os e, numa palavra,
diviniza-os neste mundo, naturalmente, desde que seja recebido com f, pureza
e devoo convenientes.103

Carta la baronne de Chantal, Annecy, 25 juin 1608, in OEA XIV, 36.


S. Francisco de Sales falou especificamente dos riscos que a cincia pode causar quando no
acompanhada da caridade e da humildade, ao receber a notcia de que um de seus padres, sobrinho
do bispo seu predecessor na diocese de Genebra, havia apostatado da Igreja catlica unindo-se
anglicana. , quanto perigosa a cincia, por maior que seja, quando age sem a caridade e a
humildade! E quanto mais perigosa se torna quando limitada e arrogante! O pobre jovem sempre
teve, como o sabeis, um esprito muito audacioso e sempre foi muito pouco amado, Carta la
mre de Chantal, [sans lieu], 22 novembre 1620, in OEA XXI, 178. Esta Carta um fragmento da
Carta la mre de Chantal, Annecy, 22 novembre 1620, in OEA XIX, 387-389. Sobre a dor que S.
Francisco de Sales experimentou pela deciso do sacerdote apstata, cf. outras duas cartas escritas
no mesmo dia amonseignuer Jean-Franois de Sales, son frre vque nomm de Chalcdoine,
Annecy, 21 novembre 1620, in OEA XIX, 381-384. 384-397.
103
Carta au Duc de Bellegarde, Annecy, 24 aot 1613, in OEA XVI, 57-58.
101
102

83

Entre suas cartas de direo espiritual seria impossvel encontrar respostas


apressadas, sem profundidade espiritual. Vendo o entusiasmo com que respondia
s cartas de seus filhos/as espirituais, tem-se muitas vezes a impresso de que ele
no tivesse outra coisa a fazer seno se ocupar deles. S em raros casos ele acenava questo do tempo, que lhe impunha rapidez e brevidade nas respostas que
dava. Entre essas cartas, no faltam muitas delas cheias de sabedoria, prprias
dos bons pastores e guias espirituais ricos de experincia. Evoco rapidamente
duas situaes:

[...] vossa imaginao vos sugerira a ideia de uma perfeio absoluta qual
vossa vontade desejava chegar; mas, assustada pela grande dificuldade, ou melhor, pela impossibilidade de alcan-la, sentia-se como aquela que est prxima do parto, mas no pode dar luz. [...] Concedei-vos agora, portanto, uma
pequena pausa; [...]. Considerai como suspeitos todos os desejos que, segundo
o parecer das pessoas de bem, no podem ser realizados. Trata-se dos desejos
de uma perfeio crist que pode ser imaginada, mas no praticada, e que muitos podem ensinar com as palavras, mas ningum sabe ensinar com os fatos.104
Eu vo-lo digo, Senhora, e vo-lo escrevo agora: no quero, em absoluto, uma
devoo fantstica, turbulenta, melanclica, introvertida e triste, mas uma devoo doce, suave, agradvel, pacfica e, numa palavra, uma piedade extremamente franca, que se faa amar por Deus em primeiro lugar, mas tambm pelos
homens.105

b) Cheio de prudncia

Vemos como lgico que a prudncia, que para ns significa ser equilibrado,
no precipitado, cauteloso nos julgamentos ou nas avaliaes, seja uma das trs
qualidades fundamentais do diretor espiritual. Como consequncia, no nos
fcil perceber o sentido do pronunciamento de S. Francisco de Sales quando
diz: Eu no sou muito prudente; e, ainda mais, a prudncia uma virtude que
no amo muito. Amo-a apenas por fora, porque necessria, antes muitssimo
necessria. Prefiro proceder livremente, ao abrigo da Providncia de Deus. De
fato, no sou absolutamente simples, mas amo a simplicidade de um amor indiz104
105

Carta mademoiselle de Soulfour, Annecy, 22 juillet 1603, in OEA XII, 202-203.


Carta Madame De Limojon, Annecy, 28 juin 1605, in OEA XIII, 59.

84

vel.106 Esta considerao sobre a prudncia no fato isolado. Em seus escritos,


encontram-se outros momentos nos quais ele tem uma atitude crtica. Embora
parea ser contra a prudncia ele , na verdade, apenas contra um determinado
tipo de prudncia.

A prudncia como tema destinado aos diretores espirituais no est presente em seus escritos. Este argumento, todavia, est presente quando ele acena
aos seus modos pessoais de perceb-la e viv-la, ou quando instrui as Irms da
Visitao sobre o modo de agir em determinadas situaes. Como consequncia,
o diretor espiritual, para ter um confronto com o esprito de S. Francisco de Sales
do ponto de vista do requisito estar cheio de prudncia deveria colocar-se primeiramente em busca deste seu magistrio e, depois, escut-lo.107

Conhecemos os termos com que S. Francisco de Sales considerava o valor
da virtude da prudncia atravs das intervenes feitas nos encontros de formao com as Irms da Visitao:
[...] existem dois tipos de prudncia, ou seja, a natural e a sobrenatural. Quanto natural, preciso mortific-la, enquanto no completamente boa, porque
nos sugere muitas consideraes e previses no necessrias, que mantm os
nossos espritos muito longe da simplicidade. A verdadeira virtude da prudncia deve ser realmente praticada, enquanto como sal espiritual, que d gosto e sabor a todas as outras virtudes... [viver segundo o esprito da prudncia
significa] ter uma confiana completamente simples que nos faa permanecer
tranquilos nos braos do Pai celeste [...].108


A distino entre prudncia natural e sobrenatural expressa, algumas vezes, como prudncia segundo a carne e segundo o esprito.

Fazendo agora uma leitura de cada uma das situaes verificadas no interior do Instituto da Visitao, queremos evocar algumas delas em que S. Francisco de Sales exprime suas reservas pelo tipo de prudncia. Um primeiro fato
refere-se admisso ou no admisso profisso religiosa de uma candidata com
problemas relacionados ao equilbrio emocional. Neste caso, madre de Chantal
Carta la baronne de Chantal, Viuz-en-Sallaz, 24 juillet 1607, in OEA XIII, 303-304.
Aqui, merece ateno: Fragments sur les vertus cardinales et morales 1614 e, de modo particular: Comme lamour imploye les vertus cardinales et premierment la prudence, in OEA XXVI,
44-54.
108
Douziesme Entretien. De la simplicit et prudence religieuse, in OEA VI, 221-222.
106
107

85

consultou um padre jesuta, amigo de S. Francisco de Sales, submetendo depois


o resultado ao juzo do Fundador. Qual foi o seu parecer?
Compartilho plenamente o vosso parecer e o do nosso bom P. Binet [...]. Uma
jovem pode ser de ndole m o quanto se queira, mas, quando nas linhas essenciais de sua conduta ela age segundo a graa e no segundo a natureza, merece
ser acolhida com amor e respeito como templo do Esprito Santo. Lobo por natureza, mas ovelha por graa [...]; eu temo tremendamente a prudncia natural
nos juzos sobre as coisas da graa; e a prudncia da serpente, se no estiver
unida simplicidade da pomba do Esprito Santo, totalmente venenosa.109


Outros dois fatos referem-se deciso tomada por ele como fundador, com
que pediu ao Instituto um sacrifcio de sabor heroico:
Ser, agora, meu firme parecer que no se deixe de admitir na Congregao
as filhas enfermas, excetuando-se as enfermidades que so expressamente recordadas nas Regras. Mas no essa a enfermidade desta filha que no pode
fazer uso das pernas, porque, mesmo sem as pernas, ela pode realizar todos
os exerccios essenciais da Regra: obedecer, rezar, cantar, observar o silncio,
costurar, comer e, sobretudo, ter pacincia com as Irms que a transportam
quando no estiverem logo dispostas e prontas a fazer este gesto de caridade.
Ser preciso, de fato, que suporte muitas vezes as que a transportaro se estas
no forem, por sua vez, transportadas pelo esprito de caridade. Se, portanto,
ela no for aleijada no corao, no vejo razo que impea a sua admisso; e
mais, amo esta jovem filha com toda a minha alma.110

Era do mesmo teor o seu parecer dado a outra superiora do Instituto:


A jovem que tem um brao curto deve ser admitida se no tiver o crebro
curto, porque tais deformidades exteriores no so nada aos olhos de Deus.111


Acrescente-se outro fato a estes, doloroso, da histria da Visitao. Ele fala
das dificuldades causadas s Irms da Visitao por alguns habitantes de Nevers,
depois de as Irms terem ali se estabelecido h pouco. Aps a calorosa recepo
das Irms sua chegada, o tempo de serenidade durou pouco. Uma hostilidade
Carta la mre de Chantal Paris, Annecy, 5 ou 6 juillet 1620, in OEA XIX, 264-265.
Carta la mre de Chantal Bourges, Paris, 19 janvier 1619, in OEA XVIII, 346.
111
Carta la mre de Montoux, suprieure de la Visitation de Nevers, Annecy, 9 novembre 1620,
in OEA XIX, 379.
109
110

86

aberta contra as Irms, que explodiu com grande intensidade, chegou a tal ponto
que no havia mais novas vocaes. Vejamos de quanto esprito evanglico esto
embebidas as palavras de encorajamento de S. Francisco de Sales escritas s Irms, convidando-as a terem confiana em Deus:
Louvo a Deus [...] pelo fato desta pobre e pequena comunidade de servas da
divina Majestade ser muito caluniada. certo que deploro os pecados dos caluniadores, mas a afronta que recebestes um dos melhores sinais da aprovao
do cu. para que ns pudssemos entender este segredo: de quantos modos o
nosso prprio Salvador foi caluniado! [...].112
Como doloroso [...] observar os efeitos da prudncia humana nas almas sobre as quais me escreveis! [...]. , como tudo isso est longe da pura caridade,
que no invejosa, no se vangloria e no busca o prprio interesse! [...]. Esta
prudncia contrria quele doce repouso que os filhos de Deus devem encontrar na Providncia celeste.113


Os fatos e as decises que estamos revendo seguem o modo de S. Francisco de Sales entregar-se a Deus apesar das sugestes que poderiam vir do bomsenso. Eis como se expressou sobre este seu modo de agir:
[...] tomei algumas decises muito importantes: repousar inteiramente em
Deus, seguir tranquilamente a sua Providncia e no ter grande considerao
pela prudncia natural, especialmente nas coisas que dependem da graa celeste como so as vocaes de nossas Irms, a ereo das casas, o seu governo.114

4.3. Francisco de Sales, diretor espiritual carismtico



Inspirando-se no magistrio e no testemunho de S. Francisco de Sales, os
diretores espirituais no deveriam ter dificuldade em perceber que so chamados
por Deus no como simples indicadores do caminho. Antes de propor itinerrios de santidade para os outros percorrerem, deveriam saber que, segundo a es112
Carta la mre de Montoux, suprieure de la Visitation de Nevers, Annecy, mars-mai 1621, in
OEA XX, 65.
113
Carta la mre de Montoux, suprieure de la Visitation de Nevers, Annecy, 24 juillet 1621, in
OEA XX, 109.
114
Carta une Suprieure de la Visitation, [1621-1622], in OEA XXI,130-131.

87

piritualidade crist, esses itinerrios existem para serem trilhados tambm pelos
prprios diretores espirituais.

Esta exigncia impe-se pela lgica do significado da santidade. Ela nos
une a Cristo no viver os seus mistrios, no fazer nossas as suas atitudes, os seus
pensamentos, os seus comportamentos. Iniciar o itinerrio de santidade quer dizer
modelar toda a nossa vida na vida de Cristo sob a guia do Esprito Santo. Como
consequncia, a medida da santidade dada pela estatura que Cristo alcana em
ns. A santidade no , principalmente, fruto do esforo humano embora assim
possa parecer. Deus que em Cristo nos faz santos mediante a ao do Esprito
Santo que em ns opera e nos transforma.

Para entender S. Francisco de Sales homem batizado, crismado, ordenado
sacerdote e bispo, necessrio ouvi-lo falar sobre a sua relao pessoal com Deus
e como deveria ser a dos outros:
Deus seja sempre o vosso corao, o vosso esprito e o vosso repouso [...].115
[...] pertencemos a Deus e a Deus somente porque, fora dEle e sem Ele, no
queremos nada, nem a ns mesmos que, fora dEle e sem Ele, somos verdadeiros nada.116
A Deus, portanto, pertencemos para sempre, sem fim, sem medida e sem reservas.117
[...] Quando acontecer que busquemos to somente a Deus? , quo afortunados seremos quando chegarmos a esse ponto! Ento, teremos em todos os
lugares o que procuramos, e procuraremos em todos os lugares o que temos.
Deus vos faa crescer sempre mais no seu puro amor [...].118


O adjetivo carismtico, no ttulo deste pargrafo, em relao a S. Francisco de Sales diretor espiritual significa, segundo o sentido teolgico da palavra,
favorecido por um dom especial de Deus para servir as pessoas em seu itinerrio
espiritual. Ningum, nem por iniciativa prpria nem pelo mrito de dons naturais,
pode ser carismtico ou mais carismtico. No caso de S. Francisco de Sales, conCarta la baronne de Chantal, Annecy, 21 novembre 1604, in OEA XII, 389.
Carta la baronne de Chantal, Annecy, fin avril ou 1er mai 1607, in OEA XIII, 287.
117
Carta la baronne de Chantal, Thonon, 7 juillet 1607, in OEA XIII, 296.
118
Carta la mre de Blonay, suprieure de la Visitation de Lyon, Annecy, 2 fvrier 1622, in OEA
XX, 265.
115
116

88

triburam ao mesmo tempo para sua grandeza de diretor espiritual os seus dotes
naturais, as virtudes morais adquiridas, a graa que lhe foi concedida por Deus
para a misso de pastor e diretor espiritual.

Consideramo-lo diretor espiritual carismtico no sentido da concepo da
cura de almas que se tem desde os tempos de S. Gregrio Magno. Este, na Regra
Pastoral, ocupa-se no da direo espiritual como tal, mas dos homens chamados ao ministrio pastoral que, em relao ao prprio ministrio, deveriam estar
cientes de que o governo das almas a arte das artes [ars artium].119 O nvel
elevado de qualidades no exerccio deste ministrio depende justamente da santidade evanglica de cada pastor. O carter carismtico do ministrio de direo
espiritual de S. Francisco de Sales, pensemos, foi autorizadamente confirmado
com o juzo que o definia sapientssimo diretor de almas.120

Tendo inteligncia elevada e personalidade genial, S. Francisco de Sales
pde obter sucessos na direo espiritual graas sua profunda f, ao seu intenso
amor por Deus, sua reta conscincia e ao seu zelo apostlico dinmico. Ser
diretor espiritual carismtico significa, nele, ter sido capaz de fazer com que as
pessoas sentissem em suas vidas a presena do Deus-Amor.

O adjetivo carismtico, no caso de S. Francisco de Sales diretor espiritual, tambm mostra claramente outra consequncia. O diretor espiritual nunca
ser carismtico s por escrever livros de direo espiritual apreciados pelos leitores. necessrio que, como homem de Deus, ele entre em contato direto com
as pessoas, ajudando-as, uma a uma, segundo suas reais possibilidades de crescimento espiritual.

A figura de S. Francisco de Sales diretor espiritual carismtico no permite
que o seu modo de dirigir espiritualmente e o seu sucesso nesse campo sejam
interpretados como capacidade de levar as pessoas para o seu lado, ou de suscitar
estima e simpatia em relao a si, nem impressionar os outros. Os motivos so
muitos, mas o principal expresso nesta sua confidncia:
Ars est artium regimen animarum a qualificao do ministrio dos eclesisticos com que
Gregrio Magno nos introduz na Parte Primeira, intitulada Requisitos do pastor de almas da sua
Regula Pastoralis.
120
Com o Breve Apostlico Dives in misericordia Deus de 16 de novembro de 1877, Pio IX ao
declarar S. Francisco de Sales Doutor da Igreja, ressaltava que h tempo os Papas bebiam da sabedoria do novo doutor: Bento XIV, de santa memria, concordando com seus Predecessores, no
hesitou em afirmar que os livros do Bispo de Genebra eram escritos com doutrina divinamente recebida; bebendo do seu pensamento resolveram questes difceis, e o definiu sapientssimo diretor
de almas, OEA I, p. XVII-XVIII.
119

89

Uma quantidade de almas recorre a mim, para saber como preciso servir a
Deus. Ajudai-me muito com as vossas oraes, porque, quanto ao ardor, sinto-o
mais forte do que nunca; mas, vede, lanam-se em meus braos e sugam-me
o seio muitos filhos, de tal forma que, se o amor de Deus no me revigorasse,
perderia toda capacidade de nutri-los.121


S. Francisco de Sales tido por muitas pessoas como exemplo de bondade e mansido. Para interpretar corretamente essa sua caracterstica no se
deve esquecer ou calar-se sobre a presena de alguns momentos em sua vida nos
quais precisou assumir uma posio clara para exprimir a prpria desaprovao
de modo decidido. Ele sempre sabia apresentar essas reaes como necessidade
para advertir as pessoas sobre o desacordo que fora criado entre sua vida e o
Evangelho ou para defender a glria de Deus e o bom nome da Igreja.

Para poder apreciar estes seus modos decididos, justamente porque era diretor espiritual carismtico, seria til reler a carta inteira que ele escreveu a uma
comunidade religiosa que precisava urgentemente de renovao espiritual. Desta
carta, apresento o trecho que permite v-lo quando reage a uma desordem em
contraste com o esprito religioso:
[...] foi-me referido que h em vossa casa pequenas penses pessoais e pequenas propriedades das quais as doentes no gozam de igual maneira, que as
sadias recebem suplementos especiais de alimentos e de roupas, do que no
tm necessidade, e que suas comodidades e recreaes no so muito devotas.
Foi-me referido tudo isso e muitas outras coisas que so suas consequncias
[...]. Minhas boas irms! Deveis limpar a vossa casa de todos os defeitos que,
sem dvida, so contrrios perfeio da vida religiosa.122


A esta histria, acrescenta-se um caso incomum relativo a uma professa
num mosteiro de clausura que ali estava no por vocao, mas por imposio dos
pais. A leitura da Introduo vida devota encorajou-a a procurar conhecer pessoalmente o novo Instituto de vida religiosa, fundado por S. Francisco de Sales.
Chegando Visitao para o primeiro contato, suas ligaes prolongaram-se por
oito anos. As dificuldades para obter a dispensa pontifcia dos votos anteriormente emitidos foram a causa principal, mas no a nica, pela qual no se tornou
121
122

Fragments de Lettres sainte Jeanne-Franoise de Chantal 1604-1622, in OEA XXI, 182.


Carta aux Religieuses du Monastre des Filles-Dieu, Sales, 22 novembre 1602, in OEA XII, 139.

90

membro efetivo do Instituto da Visitao. Ela recordada na histria do Instituto


pela colaborao dada para abrir novas casas da Visitao, pelas interferncias
na vida dessas casas, pelas condies que projetava apresentar caso pudesse ser
acolhida no Instituto. Ao mesmo tempo, estava combatendo, com interminveis
processos judiciais, uma causa em vista de melhor tratamento econmico que
desejava obter dos prprios familiares. A reao de S. Francisco de Sales chegou
depois de muitos anos de pacincia.
Quantas duplicidades, quantos subterfgios, quantas palavras seculares e,
talvez, mentiras, quantas pequenas injustias, edulcoradas e bem encobertas,
quantas bem camufladas calnias ou ao menos semicalnias so usadas na confuso dos processos e dos procedimentos legais! [...] Deixai, deixai aos mundanos o seu mundo! Devendo apenas passar por este mundo, do que precisais?
Dois mil escudos, e at menos, sero mais do que suficientes para uma filha que
ama a nosso Senhor crucificado [...]. Minha filha carssima: eu bem sabia que a
vossa piedade to piedosamente humana, que serve de trampolim para o amor
prprio. Na prtica, no amamos as cruzes, se no forem de ouro e cravejadas
de prolas e esmeraldas. uma humilhao muito rica, embora devotssima e
admiravelmente espiritual, ser considerada como fundadora ou ao menos benfeitora numa comunidade religiosa. Nestas condies, Lcifer teria aceitado
permanecer no cu [...].123


Deve-se atribuir um valor carismtico tambm s respostas dadas a uma
novia que, encontrando-se distante alguns quilmetros de S. Francisco de Sales,
queria t-lo como diretor espiritual:
[...] quando em vs surgirem dvidas quanto ao caminho que comeastes a
percorrer, recomendo-vos a no ter-me como referncia, porque eu estou to
distante de vs, que no vos posso assistir, obrigando-vos a afadigar-vos por
longo tempo. No faltam, certamente, padres espirituais que vos possam ajudar: recorrei a eles com confiana. No o digo pelo desejo de no receber vossas cartas que, ao contrrio, me do muita consolao [...].124
[...] peo-vos para crer fielmente que a ideia que formastes de no querer
receber qualquer conforto de Deus, a no ser atravs de minha pessoa, pura
Carta madame des Gouffiers, Annecy, commencement de mai 1621, in OEA XXI, 72-73.
Carta la sur de Soulfour, novice au monastre de Filles-Dieu, Annecy, 16 janvier 1603, in
OEA XII, 169-170.

123
124

91

tentao daquele que procura induzir-nos a fixar a nossa ateno em objetos


distantes para impedir-nos de usar os que temos por perto [...]. No se devem
desejar coisas impossveis e incertas. No basta crer que Deus nos possa ajudar
com todos os tipos de instrumentos; preciso crer tambm que Ele no quer
usar, para ajudar-nos, os que colocou longe de ns, mas os que esto perto de
ns. Enquanto permanecestes assim, no desaprovaria vosso modo de pensar;
mas agora, devo dizer que est totalmente fora de lugar.125

5. Concluso

Embora considerando que a experincia da direo espiritual de S. Francisco de Sales muito pessoal e limitada a um determinado nmero de pessoas,
e que faltam estudos profundos sobre este mbito da sua atividade, creio que se
possa colocar um duplo questionamento:

- em que medida ele indicou o modo de fazer direo espiritual?

- em que medida a sua ao e o seu magistrio neste mbito do ministrio
da Igreja constituram ou no um divisor de guas na histria da direo
espiritual, a ponto de poder falar de antes e depois de S. Francisco de
Sales?

Segundo o que recolhemos durante a leitura da pessoa do diretor espiritual
em S. Francisco de Sales, creio que lcito fazer uma hiptese sobre a sua contribuio para a histria da direo espiritual, mesmo que ainda seja preciso esperar
muito tempo para se ter uma resposta fundamentada.

Uma contribuio sria para o conhecimento da figura de S. Francisco de
Sales diretor espiritual poderia ser dada pela leitura completa da sua personalidade do ponto de vista psicolgico. Infelizmente, essa leitura no foi feita at agora.
O material para tais pesquisas, sem dvida, seria consistente.

Mesmo no tendo a competncia exigida para tal leitura, permito-me fazer, como observador atento, algumas consideraes gerais, para sustentar a ideia
desta chave de leitura de S. Francisco de Sales diretor espiritual.

Quanto ao seu esprito e estilo de relao com as pessoas, no s com
aquelas em direo espiritual, nota-se logo que essas relaes distinguiam-se por
afetos intensos e estveis. Como confirmao deste juzo, seria possvel citar os
125

Carta mademoiselle de Soulfour, Annecy, [avril-mai] 1603, in OEA XII, 181.

92

seus modos de colocar-se diante de pessoas simples e de pessoas dos mais elevados nveis da escala social.

Jamais uma atitude de superioridade, nem de submisso psicolgica, nem
de insegurana. S. Francisco de Sales no era algum que, com seus modos de
viver e agir, estando continuamente em contato com as pessoas e seus problemas,
muitos e inditos, copiasse dos outros os seus modos de viver e agir. Ele tinha
uma personalidade nada frgil. Distinguiu-se sempre pelo modo de ser dinmico
e capaz de equilbrio interior. o exemplo de uma personalidade propensa a
seguir ao mesmo tempo os sonhos e a realidade da vida concreta; uma personalidade atenta verdade cujo autor Deus-Amor; uma personalidade atenta ao bem
espiritual do prximo.

S. Vicente de Paulo, em sua deposio no processo de beatificao de S.
Francisco de Sales, disse:
Repassando no meu esprito as palavras do Servo de Deus, experimentei tal
admirao que era levado a ver nele o homem que melhor reproduziu o Filho
de Deus vivo na terra. Aquilo que potenciava a minha admirao era ver um
personagem to grande e to considerado como ele, ocupado nos negcios mais
difceis de que obrigatoriamente devia ocupar-se, estar disposto a entregar-se, e
por longo tempo, a todas as pessoas, sem se preocupar com suas condies humildes, no economizando nenhum esforo enquanto no as tivesse satisfeito,
porque ele respeitava a tal ponto a paz e a tranquilidade da alma.126

Roger Devos (ed.), Saint Franois de Sales par Les Tmoins de sa vie. Textes extraits des Procs
de batification choisis et prsents par, Gardet diteur Annecy 1967, 263-264.

126

93

A direo espiritual
em so Francisco de Sales
Linhas fundamentais do mtodo espiritual e
pedaggicona perspectiva salesiana

Eunan McDonnell, sdb


A direo espiritual na tradio salesiana particularmente adequada para
os jovens. A fim de entrar no mundo juvenil neste nvel h necessidade de flexibilidade, pois a nossa interveno depende das necessidades dos jovens. Consequentemente, a viagem tem incio normalmente com situaes informais, nas
quais o diretor espiritual e o jovem atuam em atividades sem relao direta com a
direo espiritual. De modo particular, no incio da relao de direo espiritual,
preciso, da parte do diretor, uma grande flexibilidade para sintonizar-se com o
jovem. Esta espiritualidade da disponibilidade essencial, pois quem orienta
deixa de lado os projetos pessoais para dar espao s necessidades do jovem. Nas
etapas iniciais, enquanto cresce a relao de confiana, os encontros podem ser
breves e frequentes na vida cotidiana. Mais adiante, os encontros podem ser mais
formais, regulares na frequncia e tambm agendados.

Para responder s necessidades dos jovens, no podemos prejulgar pelos
contextos culturais e, consequentemente, devemos compreender as vrias influncias (por exemplo, o grupo, as mdias, a situao familiar, a histria pessoal,
as normas culturais etc.), que modificam seus valores e seu ponto de vista. A
espiritualidade salesiana sabe adequar-se para responder a estes desafios, porque
tem um estilo pessoal e relacional, que procura encontrar o jovem onde ele/ela
est. Isso se exprime, sobretudo, com a simbologia do corao. Como diz Power:
As espiritualidades que se fundamentam em um modo especfico de orao ou
ao redor de um servio concreto ou estilo de vida, no podem ter a flexibilidade
de uma espiritualidade que se constri a partir do corao.1


J. F. POWER, Francis de Sales: Finding God Wherever You Are, New City Press, Nova Iorque
1993, 17.

94

No obstante, antes de aprofundar a centralidade do corao na direo espiritual


salesiana, preciso estabelecer claramente os objetivos da direo espiritual na
tradio salesiana.

1. Os objetivos da direo espiritual na tradio


salesiana

O objetivo para o qual tendemos, desde a perspectiva salesiana, claramente expresso no programa salesiano: viver Jesus. Esta locuo, simples na
aparncia, manifesta o desenvolvimento de um modelo de crescimento que se
amplia na espiritualidade salesiana. De fato, Deus no pode crescer, mas pode
crescer em ns.2 Na perspectiva teolgica salesiana, a encarnao no apenas
uma realidade histrica acontecida no passado, mas um acontecimento metafsico e pessoal contnuo [...]. um acontecimento que se renova perpetuamente no corao de cada pessoa [...]. Somos formados de novo, no como servos,
mas como amigos, pela sua divina Complacncia.3 Assim se realiza a promessa
joanina: Rogo, Pai, para que todos sejam um, assim como tu ests em mim e
eu estou em ti; para que eles sejam um em ns, a fim de que o mundo creia que
tu me enviaste (Jo 17,21). Jesus Cristo no simplesmente um modelo exterior
a imitar, mas Ele mesmo imprime o seu mistrio em nosso corao.
Se seguimos as suas sugestes e comeamos a nos unir a Ele [...], [Ele] sustenta os nossos frgeis esforos e une-se a ns de maneira que possamos perceber
que Ele entrou em ns, em nosso corao, com incomparvel doura.4


Dessa forma, a imagem de Deus assume em ns configurao cristolgica.
Mediante a encarnao, o nosso ser humano reveste-se da beleza do Filho que, tambm mediante a encarnao, restabelece a nossa imagem na sua beleza originria,
readquirindo, atravs da sua morte, a imagem e semelhana impressas em ns.5
OEA IV, 277. Os escritos de S. Francisco de Sales esto recolhidos nos XXVI volumes da edio
Oeuvres de saint Franois de Sales. vque et Prince de Genve et Docteur de lglise. dition
complete daprs les autographes et les editions originals, enrichie de nombreuses pices indites,
27 vols.; Lettres XI-XXI, Monastre de la Visitation, Annecy 1892-1932, abreviado como: OEA,
tomo e pagina [N.d.C].
3
C.F. KELLEY, The Spirit of Love, Harper & Bro, Nova Iorque 1951, 59.
4
OEA V,11.
5
OEA X, 273.
2

95


A nossa comunho com o Corpo de Cristo prolonga o mistrio da Encarnao na medida em que vivemos Jesus. Numa homilia de Natal, S. Francisco
afirma que assim como Jesus nasceu de Maria Virgem por obra do Esprito Santo,6 assim tambm Jesus quer nascer nesta noite em nossos coraes humanos
por obra do Esprito Santo.7 Portanto, a Encarnao, para Francisco de Sales,
continua nos coraes dos seres humanos atravs da ao do Esprito. Como
afirma a beata Isabel da Trindade:
O Esprito de Amor [...] cria em minha alma uma espcie de encarnao da
Palavra; dessa forma, cria em mim outra humanidade para Jesus, em que Ele
possa renovar o seu Mistrio.8


Mediante a transformao em Cristo, quando comeamos a viver Jesus,
somos renovados na mente e no esprito, revestidos do homem novo, criado
segundo Deus (Ef 4,23-24). A meta do itinerrio espiritual, e tambm a tarefa do
diretor espiritual, facilitar uma abertura ao Esprito Santo que permita a nossa
transformao em Cristo.9 Esta transformao precisa especialmente da unio
da nossa vontade com a de Deus mediante um abandono por amor imitao
dAquele cujo alimento fazer a vontade dAquele que me enviou (Jo 4, 34).10

A espiritualidade do abandono por amor principalmente prtica; de
fato, ela consiste num morrer contnuo de si mesmo para responder s exigncias
concretas da vida cotidiana mediante a humildade, a bondade (amorevolezza)
OEA VIII, 125 Sermon of Christmas Vigil, 24th December 1613.
D. MANALEL, Holy Spirit: A Salesian understanding: Indian Journal of Spirituality, 11 (1998)
347.
8
ELIZABETH OF THE TRINITY, I Have Found God: Complete Works. Vol. I: General Introduction, Major Spiritual Writings, ed. Conrad de Meester, Carmelite. Trans. by Sister Aletheia
Kane, O.C.D., ICS Publications, Washington 1984, 183-184.
6
7

9
Quando esta unio de vontade perfeita, a pessoa chegou perfeio crist, transformao em
Deus atravs do amor, um matrimnio espiritual com o cnjuge da nossa alma, Jesus Cristo. Para
S. Joo da Cruz e S. Teresa dvila, esta unio de vontade o estado de perfeio nesta vida.
tambm o matrimnio espiritual. tambm a transformao da pessoa em Deus atravs do amor.
S. Joo da Cruz do parecer de que bem poucos chegam ao estado final no qual so, assim, completamente transformados em Deus.
10
No Getsmani, quando sua alma estava triste at a morte, [Ele] rezava para que o clice da
paixo lhe pudesse ser tirado. Mesmo se esteve inclinado a evitar a dor e o sofrimento, contudo, na
parte superior do seu esprito aderiu constantemente vontade eterna e ao decreto de seu Pai celeste
[...]. Apesar da repugnncia da parte inferior da razo, ele disse: Ah, no, meu Pai, no se faa a
minha, mas a tua vontade (Traitt de lAmour de Dieu, in OEA, IV, 63).

96

e a simplicidade.11 A ateno presena de Deus no cotidiano est no centro


da espiritualidade salesiana. No devemos esperar ocasies extraordinrias para
manifestar o nosso amor a Deus, mas somos convidados de maneira prtica s
exigncias que vm ao nosso encontro, pois no as escolhemos ns mesmos,
mas as aceitamos como enviadas por Deus, e o seu Projeto sempre melhor do
que o nosso.12 A pequenez das virtudes salesianas oculta a sua profundidade; na
verdade, vividas em unio com Deus, elas adquirem um significado redentor. A
ascenso nas virtudes transforma-se, mediante o amor, na prtica mstica de reviver em nosso corao e reproduzir em nossa vida, a mesma e nica adeso de
Cristo ao Pai e ao prximo atravs da bondade (amorevolezza) e da humildade13.
O que nos permite compreender porque o convite de Jesus no evangelho de Mateus est no corao do projeto salesiano: Aprendei de mim, que sou manso e
humilde de corao (Mt 11,29-30). Mediante a fidelidade s pequenas virtudes,
S. Francisco de Sales ensina que o corao passa atravs de uma grandssima
transformao at a imagem e semelhana do corao de Cristo e, libertando-se
por meio da prtica do desapego, torna-se cheio de mansido e de humildade.14
Mediante a nossa participao em Cristo, por meio da vida da graa, recebemos
aquilo que Ele possui por natureza: a divinizao. Como um m, ns somos
atrados por Deus, nosso m dos coraes. 15 Em consequncia, como o metal
recebe do m as suas qualidades, assim tambm ns somos imantados por
Deus. Se nos deixamos tocar por Deus, nos divinizamos, compartilhando as
mesmas qualidades de Deus. Esta divinizao, no obstante, condicionada
resposta da nossa vontade livre graa de Deus, que procura conduzir-nos a uma
relao ntima com Ele.

Brezzi observa que no interior da espiritualidade salesiana as mortificaes corporais devem ser
substitudas por mortificaes de si mesmo atravs da doura e da humildade. Assim fazendo, ele
insiste que o verdadeiro fulcro de toda a ascese est na mortificao da vontade e que sem a vida
interior, os atos exteriores perdem o seu significado (cf. P. BREZZI, San Francesco di Sales e il
suo Tempo: Salesianum, 30 (1968) 433-434).
12
OEA III, 154.
13
T. A. Mc HUGH, The Distinctive Salesian Virtues: Humility and Gentleness: Salesian Studies
(October 1963) 53. Cf. Introduzione, parte III cap.4-10; Conferenze Spirituali, cap. XIII. Cartas
in OEA XII, 271; XIII, 58,194; XIV, 5, 237-238; XV, 51; XVIII, 390; XXI, 1.
14
G. POCHAT, Franois de Sales et la Pauvret, ditions S.O.S., Paris 1988, 129.
11

15

S um m para o meu corao (OEA V, 19). Isso explica o motivo pelo qual ele faz uso constante de termos expressivos como unio, adeso e atrair. Veja-se tambm OEA VIII, 153.

97

2. A centralidade do corao
A maneira de proceder, como se encontra na Introduo Vida Devota, inicia
com o corao. S. Francisco ctico diante dos que se detm no exterior, e escreve:
Quanto a mim, jamais fui capaz de aprovar o mtodo de quem, para reformar
algum, comea a partir de fora, pela aparncia, pela maneira de vestir, pelos
cabelos. Ao contrrio, eu sinto que necessrio iniciar a partir de dentro.16


S. Francisco de Sales estava convencido de que aqueles que tm Jesus
em seu corao, logo o tero em todas as suas manifestaes exteriores. Por isso,
quero apresentar-vos o lema Viva Jesus!. Se o nosso carssimo Jesus vive em
vosso corao, Ele logo viver tambm em vossa conduta, e se manifestar em
vossos olhos, boca, mos; em todos os lugares. Com S. Paulo, sois capaz de dizer:
No sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim (Gl 2,20).17 Ao mesmo
tempo, Francisco tambm ctico diante daqueles que proclamam ter entregado
seus coraes a Jesus e, apesar disso, no esto prontos a fazer com que a sua
vontade coincida com a do Senhor.18 A prova de que vivemos Jesus em ns
no medida pelos sentimentos piedosos ou pelas experincias religiosas, mas
pela realizao da vontade de Deus segundo a nossa vocao ou estado de vida.

Por isso, no deve surpreender que a espiritualidade salesiana deseje sublinhar a importncia da interioridade.19 Como diz Franois Corrignan, a interioridade , ao mesmo tempo, um princpio de vida crist e um mtodo apostlico.20
A interioridade no sinnimo de introspeco ou emotividade religiosa; S.
Francisco fala mais de interioridade bem ordenada, onde reina a razo. O corao
deve ser guiado pela razo.21 A razo uma ajuda importante para impedir que
OEA III, 23. Encontra-se tema semelhante no incio dos Exerccios Espirituais em que S. Incio
estabelece a finalidade fundamental da orao. Ele escreve: De fato, no saber muito que sacia e
satisfaz a alma, mas sentir e apreciar as coisas interiormente (Esercizi Spirituali, 2).
17
OEA III, 27.
18
OEA XII, 348. Letter to Prsidente Brlart, 13th October 1604.
19
Cf. M. BERGAMO, LAnatomie de lme: de Franois de Sales Fenelon, Jerome Millon, Paris,
1994, 714.
20
F. CORRIGNAN, The Spirituality of Francis de Sales a way of Life, S.F.S Publications, Bangalore 1992, 24.
16

21

Cf. L. FIORELLI, Holiness Today in <www.oblates.org/spirituality/online_articles/holiness_


today.doc>.

98

tomemos decises impulsivas e para distinguir o que realmente bom do que


apenas nos parece bom. Evita que tomemos decises guiadas s pelo nosso modo
de pensar e pela interpretao errada dos fatos, como tambm pelos juzos feitos
segundo um discernimento superficial dos espritos. Corrignan distingue entre ser
racional e ser razovel: o racional refere-se lgica, o razovel tambm lgico, mas nunca se detm no abstrato, deve sempre estabelecer uma relao com a
vida.22 A nfase na razo no nega o valor das emoes; antes, as emoes so
como uma harpa,23 que ressoa belas melodias se for bem afinada, mas dissonante se no for guiada pela razo e, consequentemente, torna-se desordenada.24
Mesmo quando reconhecemos nossas faltas e fragilidades, devemos utilizar a
razo para corrigir-nos, porque quando um juiz se deixa guiar em suas decises pela razo e procede serenamente, pode castigar os delinquentes com muito
maior justia do que quando age guiado pela violncia e pela paixo.25 Este
um princpio fundamental da direo espiritual salesiana, que recorda o sistema
preventivo de Dom Bosco na educao, no qual devemos atuar sempre com bondade (amorevolezza), porque garante assim um sucesso razovel que promove o
crescimento e o desenvolvimento. S. Francisco escreve:
No devemos dar muito valor a correes fundamentadas na paixo, mesmo
quando acompanhadas pela razo, mas quelas fundamentadas apenas na razo. 26


A razo permite-nos agir equilibradamente, e os jovens em processo de desenvolvimento humano e espiritual precisam de acompanhamento para ser moderados e evitar os excessos. Seguindo apenas as nossas tendncias naturais, corremos
o risco de enfatizar nossos defeitos e erros, e isso ter um impacto negativo sobre o
equilbrio da nossa vida. S. Francisco convida os que tendem muito ao intelectual,
racional e lgico a cultivarem a sua parte cordial, afetiva e intuitiva. Por outro lado,
os que tendem mais afetividade, emoo e aos sentimentos deveriam cultivar
F. CORRIGNAN, The Spirituality of Francis de Sales, cit., 36.
OEA VIII, 355.
24
S. Francisco compartilha este ponto de vista com Toms de Aquino, que considerava at mesmo a
experincia das emoes como parte da nossa perfeio moral, porque o controle dos movimentos
dos nossos apetites sensveis pertence virtude. S. Francisco insiste nesta ideia quando afirma que
as paixes so boas ou ms conforme o amor do qual procedem (cf. Traitt de lAmour de Dieu, in
OEA, IV, 32-34).
25
OEA III, 166-167, 150. Veja-se tambm, OEA III, 167, 169.
26
OEA III, 163.
22
23

99

a prpria dimenso racional e razovel. Se fores lento e distrado, procura caminhar com maior ateno. Se, porm, s hiperativo, toma as coisas com serenidade
e tranquilidade. Dessa maneira, cada um de ns obter, com o tempo, um maior
equilbrio. Tudo isso prev que vivamos de maneira racional, o que para Francisco
significa viver buscando sempre o centro do nosso ser, o nosso corao.

Este viver a partir do corao tem suas razes na tradio monstica. S.
Francisco reconhecido como aquele que soube tirar a espiritualidade crist do
contexto monstico em que fora encerrada ao longo de muitos sculos.27 A separao monstica em relao ao mundo foi substituda pelo convite para Filoteia
entrar no prprio corao durante suas atividades. Escreve: Nossos trabalhos
nem sempre so to importantes a ponto de nos impedirem de desligar o nosso
corao para retirar-nos na solido com Deus.28 Em todo caso, o movimento
para o interior deve ser acompanhado pelo movimento para o exterior, segundo
a imagem da distole e sstole do corao. Encontramos esquema semelhante
quando aconselha S. Joana Francisca, enquanto Abadessa do mosteiro, a viver
interiormente como Maria a vida de religiosa e cuidar ao mesmo tempo de sua
famlia enfrentando os trabalhos de casa.29 Retirar-se no corao coincide com a
tradio monstica; s muda o cenrio: agora, o mundo substitui o mosteiro.
O reditus ad cor (retorno ao corao) monstico o eixo da tradio salesiana da direo espiritual. Como afirma Jean-Marie Howe:
A viagem para casa uma viagem para o corao. A vida monstica como
um dedo que aponta para mais alm, indicando o caminho que leva ao centro
mais profundo, o verdadeiro eu: o caminho do reditus ad cor. Quando retornamos ao nosso corao, retornamos a ns mesmos; garantimos a paisagem interior do corao como nossa. A vida monstica essencialmente um processo
que desperta o corao adormecido, libertando a vida que h dentro de ns, e
seguindo a sua orientao.30


Trata-se de uma das primeiras finalidades da direo espiritual salesiana:
colocar os jovens na situao de poderem religar-se ao centro do prprio ser, o
27

J. AUMANN, Christian Spirituality in the Catholic Tradition, Sheed & Ward, Londres 1985, 212.

OEA III, 93, 97. A Segunda Parte da Introduo, cap. 12, dedicada ao tema do retirar-se
ou entrar no prprio corao para estar em unio com o Senhor.
29
Letter to Jane Frances de Chantal, June 8th 1606, OEA, XIII, 181-192, Carta CCCLI.
28

30

J-M. HOWE, Secret of the Heart: Spiritual Being, Cistercian Publications, Kalamazoo, Michigan 2005, 35.

100

prprio corao, a fim de tomarem as decises com o corao. Mas o que este
corao?

No fcil definir o corao na espiritualidade salesiana, porque o prprio Francisco nem sempre utiliza este vocbulo para entender a mesma realidade.31 Assim tambm Wright:
Em nenhuma parte dos escritos de S. Francisco ou da Chantal h o propsito
de definir o termo corao ou conduzir uma teologia ou antropologia sistemtica fundamentada na compreenso do que signifique a imagem do corao.
Trata-se mais de uma imagem de riqueza polivalente, que leva ao significado
da dinmica central das duas pessoas, a humana e Deus. 32


Morand Wirth considera que o primado do corao na espiritualidade salesiana testemunho da originalidade do humanismo cristo de Francisco de Sales. Ele afirma que os humanismos contemporneos a Francisco, que conheciam
como ele as ideias e a linguagem da antiguidade, no evidenciaram o significado
do corao. Conclui que a importncia do corao no vocabulrio salesiano deriva de alguma maneira do uso comum e universal do corao para descrever
a sensibilidade e a interioridade da pessoa; mas tambm devedor da tradio
bblica, compartilhada por S. Francisco, na qual o corao considerado como
sede das faculdades, especialmente do amor, da vontade e da inteligncia.33 Esta
ltima maneira de entender coloca a espiritualidade salesiana decididamente no
mbito da espiritualidade crist clssica.

S. Teresa de vila tem um pensamento semelhante quando nos apresenta
em seu Castelo seis etapas ou moradas, que percorremos em nosso itinerrio
para a unio com Deus: Ele vive justamente na stima morada, no centro da pessoa humana. S. Joo da Cruz, no incio do Cntico, reserva aos seus leitores estas
palavras:

R. MERCIER, Spiritual Direction: Prophetic Insight and Pastoral Guidance Methods of


Prayer according to St Francis de Sales: Indian Journal of Spirituality 18 (2005) 350.
32
W. M. WRIGHT, That is What it is Made for: The Image of the Heart in the Spirituality
of Francis de Sales and Jane de Chantal, in Spiritualities of the Heart, ed. A. Callahan, Paulist
Press, New York & Mahwah (NJ) 1990, 143-144.
33
M. WIRTH, Francesco di Sales e lEducazione: Formazione umana e umanesimo integrale,
Las, Roma 2006, 351.
31

101

alma belssima entre todas as criaturas, que tanto desejas conhecer o lugar
onde se encontra o teu Dileto, para encontr-lo e unir-te a Ele! J te foi dito
que tu mesma s o lugar no qual Ele habita e o refgio onde se oculta. Podes
alegrar-te ao saber que todo o teu bem e toda a tua esperana est to prxima
de ti, a ponto de habitar dentro de ti ou, dizendo melhor, que tu no podes viver
sem Ele: Sabei diz o Esposo que o reino de Deus est dentro de vs (Lc
17,21).34


Aquilo que estes escritores espirituais testemunham, e S. Francisco de Sales evidencia, que o Deus com quem queremos estar unidos no est distante ou
alm de ns, mas no interior do nosso verdadeiro ser. S. Francisco proclama, at
mesmo de maneira audaciosa, que a pessoa humana o paraso dos parasos,
porque se o paraso terrestre foi criado para ser a nossa morada, ns mesmos fomos criados para ser morada de Deus. um tema que aparece frequentemente
em Francisco. Deus fez o nosso corao para que fosse o seu paraso.35 O itinerrio espiritual, consequentemente, uma viagem para o interior no qual, na f,
atravessamos as vrias etapas de unio com o Deus que mora nas profundezas do
nosso ser; em linguagem salesiana, no nosso corao. Uma das convices fundamentais da espiritualidade salesiana , portanto, a de no pensar que levamos aos
jovens um Deus distante deles, mas caminhamos com eles na descoberta do Deus
que habita em seus coraes. Evidentemente, pressupe-se que o acompanhante
ou diretor espiritual j tenha feito essa viagem para dentro do prprio corao, de
modo que possa caminhar com os jovens na descoberta da presena de Deus.

Este misterioso centro da pessoa humana onde Deus habita foi imaginado
de maneiras variadas por diversos escritores espirituais. S. Paulo apresenta brevemente esta realidade espiritual como as profundezas da pessoa humana: vs
sois o templo de Deus (1Cor 3,16). S. Francisco continua na mesma linha e
serve-se da imagem do Templo de Jerusalm para ajudar a compreender a misteriosa realidade do corao humano, onde mais claramente revelamos a Deus,
imagem e semelhana de quem fomos criados. Assim como no templo judaico era
preciso atravessar diversas salas para chegar ao santurio mais interior, o Santo
dos Santos, tambm acontece com a pessoa humana: precisamos passar atravs
The Spiritual Canticle,stanza 1, pars 7 and 8 in: K. KAVANAUGH, O. RODRIGUEZ [transcr.], The Collected Works of St. John of the Cross, ICS. Publications, Washington 1991, 480.
35
No projeto original do livro Cinco do Tratado, quando S. Francisco escreve sobre o modo com
que o amor se vale das virtudes cardeais, ele usa a imagem dos quatro rios do paraso. neste contexto que ele descreve o corao humano como morada, paraso de Deus.
34

102

dos tabernculos externos do corpo, alm dos sentidos, at o tabernculo interior


da alma ou do corao. No corao h tambm outra srie de salas que devemos
atravessar para chegar ao ponto supremo do nosso esprito. o nosso santurio
interior, o nosso Santo dos Santos onde habitam o Pai, o Filho e o Esprito
Santo. Para indicar o carter sagrado do ponto supremo do nosso esprito, que se
assemelha ao santurio interior do templo, onde ningum podia entrar a no ser o
Sumo Sacerdote; a nica luz permitida era a que passava atravs da porta, porque
no havia nenhuma janela. Assim como no interior desse santurio se encontra o
lugar onde Deus habita de maneira especial, assim tambm o ponto supremo do
nosso esprito o lugar onde se exprime maximamente a imago Dei. Francisco
afirma: Como o corao do teu corao, a tua alma o templo de Deus.
esse o lugar aonde Francisco convida Filoteia a retirar-se, mesmo em meio aos
seus trabalhos, para abeno-lo, invoc-lo com sentimentos ocultos, oraes espontneas e bons pensamentos. No importa o que possamos sentir (alegria ou
tristeza, amargura ou paz), Francisco afirma que este ponto supremo do nosso
esprito deve ser a tua bssola, que te permita ver e tender para o amor de Deus,
o teu Criador, nico e soberano Bem. 36

Quando Francisco fala do ponto supremo da alma, no se refere a uma
disposio natural, mas a uma realidade sobrenatural que recebemos mediante o
dom do Esprito que brota do peito aberto de Jesus, de modo que o seu Esprito
derramado nos nossos coraes (Rm 5,5). Referimo-nos s virtudes teologais da
f, da esperana e da caridade, que recebemos no batismo, como dons do Esprito
Santo. Francisco afirma explicitamente:
Eu falo neste Tratado sobre o amor sobrenatural que, em sua Bondade, Deus
derrama nos nossos coraes, e que se encontra no ponto mais elevado do nosso esprito, ponto que est acima do que resta da nossa alma, e que independente da nossa disposio natural.37


Isso est a indicar que se trata de uma realidade sobrenatural, de um dom
da nossa vida em Cristo; e envolve um despertar do nosso corao diante do dom
que recebemos no batismo.

36
37

OEA III, 317.


Ibid.

103

3. H um mtodo salesiano de direo espiritual?




Falamos do ponto inicial e da meta da direo espiritual na tradio salesiana: comear do corao, de maneira que possamos alcanar a meta, que a
nossa transformao, quando, ento, deixamos Jesus viver em ns, mediante a
unio da nossa vontade com a de Deus. No obstante, h um mtodo salesiano
especfico de direo espiritual, que nos leve do ponto inicial meta que indicamos? verdade que Francisco de Sales apresenta diversas recomendaes em
suas cartas de direo espiritual, e tambm a Vida Devota nos apresenta de algum
modo um mtodo que no diferente dos Exerccios Espirituais de Santo Incio.38 Sobre isso, Francisco escreve:
Pode acontecer algumas vezes que, logo aps a preparao, sentes que teus
afetos caminham todos para Deus. Nesse caso, deves deix-los livres, e no seguir o mtodo que te apresentei. Habitualmente, a considerao deve preceder
os afetos e as resolues. Embora o Esprito Santo te conceda os afetos antes
das consideraes, no deves preocupar-te com a considerao; esta serve, de
fato, apenas para despertar os afetos. Numa palavra, no momento em que os
afetos se apresentam, deves aceit-los e dar-lhes espao, quer venham antes ou
depois da considerao.39


H, na direo espiritual salesiana, uma forte hesitao em seguir um mtodo. S. Joana Francisca de Chantal escreve: O melhor mtodo de orao
aquele de no ter nenhum mtodo, porque no se obtm a orao atravs de uma
tcnica, mas atravs da graa.40 S. Francisco critica os mtodos, quando declara:
um erro frequente pensar que devemos fazer uma srie de coisas, utilizar
diversos mtodos para poder rezar bem. Encontrars gente realmente ansiosa
para utilizar todos os meios possveis a fim de adquirir alguma arte especial
que acreditam ser essencial para rezar adequadamente. Nunca terminam de
buscar e explorar na prpria orao, para ver se podem fazer com que coincida
com a prpria satisfao. Alguns pensam at mesmo que no deveriam nem
sequer tossir ou fazer o menor movimento, por temor de que o Esprito Santo
Para a apresentao completa de uma metodologia salesiana de direo espiritual que chegue
amplamente a todas estas fontes, veja-se D. MANALEL, Spiritual Direction: A Methodology, SFS
Publications, Bangalore 2005.
39
OEA III, 85.
40
Cit. in J. PHILIPPE, Time For God: A Guide to Prayer, St Pauls Press, Londres 2005, 12.
38

104

v embora. Que grande disparate! Como se o Esprito Santo fosse to delicado,


e quisesse exigir um mtodo particular ou posies especiais das pessoas em
suas oraes.41


A averso salesiana a um mtodo ser uma maneira de reconhecer que
Deus quem toma a iniciativa, convidando-nos a segui-lo? Esta compreenso
freia-nos na tendncia humana de controlar o seu processo. Em outras palavras,
a falta de mtodo evoca a vigilncia bblica, na qual o corao convidado a
permanecer atento para responder s emoes espirituais, quando estas se manifestam. Diversamente de outros autores espirituais, que descrevem com clareza
as etapas do itinerrio espiritual, S. Francisco declara que a pessoa sempre um
principiante porque no mosteiro da vida devota, cada qual sabe que sempre um
novio, e que a vida inteira uma prova.42 O que tem a vantagem de prevenir
aqueles que so dirigidos de se focarem sobre si mesmos, procurando, por outro
lado, colocar-se no itinerrio espiritual. S. Francisco aconselha:
Queres contemplar a Deus? Orienta, ento, o teu olhar para Ele, e permanece
atento. Se voltas, porm, o teu olhar sobre ti mesmo para veres como s, ento
no ests mais atento a Deus, mas tua conduta, a ti mesmo.43


A ausncia de mtodo e o esforo de estar atento a Deus incentiva a abertura para ser conduzido pelo Esprito Santo. Se o Esprito nos orienta por um
caminho diferente, ento devemos seguir este ltimo, percebendo que plenamente verdade que nem todos ns caminhamos pela mesma estrada.44 S. Francisco sublinha, como consequncia, a liberdade de esprito.45 Como toda virtude,
a liberdade de esprito leva-nos por um caminho intermdio entre dois polos: de
um lado, evita a instabilidade, que excesso de liberdade; de outro, afasta-nos
da obrigao, que perda de liberdade.46 Um dos princpios fundamentais da
espiritualidade salesiana evidencia a sua importncia, quando escreve a S. Joana
Francisca em letras maisculas:
41
42

OEA IV, 337.


OEA V, 130.

43

Ibid., pp. 140-141.


OEA VI, 207.
45
Para uma exposio detalhada sobre lsprit de liberte veja-se: Eunan Mc DONNELL, The
Concept of Freedom in the Writings of St Francis de Sales, Peter Lang, Berna 2009, 406-410.
46
OEA XII, 363-7.
44

105

FAZE TUDO POR AMOR, NADA POR FORA; AMA MAIS A OBEDINCIA DO QUE TEMAS A DESOBEDINCIA.47


No centro desta insistncia salesiana, mais na doura do que na coao,
est a convico fundamental de que tudo deve ser feito por amor e no por obrigao, porque a vontade no pode ser forada a mover-se numa direo que lhe
seja oposta. A gentileza, se quisermos, corresponde liberdade de esprito.

A liberdade de esprito uma das caractersticas da direo espiritual salesiana, reconhecida universalmente pelos comentaristas de S. Francisco. Wright
e Power afirmam que os diretores no devem ater-se a mtodos especiais de
orao, mas promover uma ateno especial aos diversos movimentos que Deus
suscita na diversidade das pessoas.48 William Marceau acrescenta que S. Francisco no pretendia impor ideias ou mtodos queles a quem ele dirigia, mas considerava a direo espiritual como uma discreta e respeitosa colaborao na obra
de Deus.49 Este tipo de direo espiritual foi praticado de maneira extraordinria
por S. Francisco, e S. Joana Francisca de Chantal evidencia:

Preferia deixar as almas plenamente livres, para que o Esprito pudesse guilas, enquanto ele mesmo as acompanhava, deixando que as almas agissem
movidas por inspirao divina mais do que por suas instrues pessoais.50


O diretor tem um papel privilegiado: estar atento conversao estabelecida entre Deus e o jovem compartilhando o itinerrio espiritual de seus discpulos
enquanto, ao mesmo tempo, permanece como observador respeitoso.51 A referncia oportuna ao papel do diretor na direo espiritual recorda-nos que o verdadeiro diretor o Esprito Santo. Se quisermos identificar um mtodo especfico de
direo espiritual na tradio salesiana, precisamos dizer claramente que no h
47

Ibid., p. 359.

W. WRIGHT, J. F. POWER (editores), Francis de Sales, Jane de Chantal: Letters of Spiritual


Direction, Paulist Press, Nova Iorque 1988, 51.
49
W. MARCEAU, Francis de Sales Spiritual Director: Salesian Studies (n.6, 1969) 91.
Pensamento semelhante expresso por S. Joo da Cruz, afirmando que os guias espirituais no
deveriam adequar as almas ao seu prprio mtodo e condio, mas deveriam observar o longo
caminho pelo qual Deus as est conduzindo. Se eles no a reconhecem, deveriam deixar a alma
sozinha e sem perturb-la. Cf. The Living Flame of Love,Stanza 3parte 46 e tambm parte 28
62, The Collected Works of St. John of the Cross, cit., 684-698.
50
E. STOPP, St Francis de Sales: A Testimony by St Chantal, Faber and Faber, Londres 1976, 2.
51
S. MUTO, A. van KAAM, Dynamics of Spiritual Direction, Epiphany, Pittsburgh, Pensilvnia
2003, 344.
48

106

uma frmula particular ou um programa que possamos seguir. verdade que as


recomendaes na Introduo Vida Devota e as prolas de sabedoria, contidas
em muitas cartas de direo espiritual, podem ser utilizadas frutuosamente no
acompanhamento dos jovens em seu itinerrio espiritual. Entretanto, prevalece a
insistncia salesiana na flexibilidade e na liberdade de esprito.

A relao do diretor com o jovem, na direo espiritual salesiana, no
secundria ao longo do processo; ela essencial para sua recuperao e seu crescimento. O papel do guia espiritual, que seguindo a tradio chamamos de pai
ou me, porque implica uma plenitude capaz de gerar vida, consiste em facilitar
a escuta do que dito pelo Esprito e como o Esprito Santo nos quer conduzir.52
Esta ateno paterna ou materna pode referir-se ao modo extraordinrio de direo espiritual de S. Francisco e de S. Joana Francisca, no qual eles conservavam
os seus discpulos no prprio corao. Wright e Power concluem afirmando que,
na tradio salesiana, o processo de direo tem relao com a paternidade espiritual.53 Quando falamos de direo, entendida como paternidade, tambm significa que o diretor deve estar atento ao processo de transfert ou contro-transfert
que pode acontecer.

H particularmente na sociedade ocidental uma ruptura na vida familiar e
principalmente, a partir da minha experincia, na direo dos jovens, que chamaria de a ferida paterna. Muitos jovens rfos de pai ou cuja experincia paterna
emocionalmente ausente, procuram um substituto da figura paterna no diretor.
O que no isento de perigos; de fato, se essa relao no for bem cuidada,
pode desenvolver uma possvel relao de codependncia em que pode existir
at mesmo seduo e/ou abuso. O centro deve ser encontrado sempre na relao
do jovem com Deus; no nos sentimentos ou na situao pessoal do jovem, mas
naquilo que Deus quer comunicar atravs dessas experincias. O que exige uma
compreenso adequada da amizade espiritual que outro elemento indispensvel na direo espiritual segundo a tradio salesiana. Uma das caractersticas
que define a amizade espiritual, e a distingue da amizade natural, o fato de
52
M. B. PENNINGTON, Who Do You Say I am?, New City Press, New York 2005, 53. O termo direo espiritual chegou tarde Igreja, durante a poca racionalista quando os itinerrios espirituais
eram expostos detalhadamente e se sentia a necessidade de algum que dirigisse atravs do labirinto
do castelo ou ao longo do caminho tortuoso da montanha. O perigo que sejamos influenciados
pelas palavras que usamos. O diretor espiritual pode comear a dirigir esquecendo-se de que, na
verdade h um s diretor: o Esprito Santo.
53
W. WRIGHT, J. F. POWER (editores), Francis de Sales, Jane de Chantal: Letters of Spiritual
Direction, cit., 58.

107

encontrar o seu centro no amor de Deus. Sendo o amor de Deus a relao fundamental que devemos compartilhar com os outros, essa relao sempre triangular, porque implica o diretor, o jovem e, sobretudo, Deus. S. Francisco conclui
dizendo que o Esprito Santo o autor dessas amizades, e as pessoas que tm
o prprio corao no corao de Deus podem atrair os outros para viverem essa
unio.54 Esta abordagem precisa de uma precauo contnua, para evitar o perigo
de uma relao na direo espiritual que possa converter-se em autogratificao
para o diretor em busca de satisfao para as prprias carncias.

4. INICIAR A PARTIR do corao



Os jovens vm, com frequncia, at ns no tanto em busca de direo
espiritual, mas principalmente de ajuda para resolver problemas ou dificuldades
momentneas. E, quase sempre, esses problemas tm a ver com as relaes interpessoais. Enquanto seres humanos, somos seres relacionais diante de Deus, dos
outros, de ns mesmos, do mundo. A nossa relao com Deus influi em todas as
outras relaes, e manifesta-se em nossa interao com os outros. Um princpio
fundamental da espiritualidade salesiana a afirmao de que no temos dois coraes, um para amar a Deus e outro para amar o prximo, mas temos um s corao e devemos aprender a amar ao mesmo tempo a Deus e ao prximo.55 Quando
a relao se torna problemtica, a abordagem salesiana na direo espiritual leva
a individuar o que Deus nos quer dizer atravs dessa relao. O que Ele est me
revelando sobre o meu corao? Estou buscando a minha autogratificao, -me
pedido para esquecer-me de mim mesmo para buscar o bem dos outros, sou chamado tolerncia, pacincia, ao perdo? A atitude de nos concentrarmos naquilo que Deus nos quer dizer atravs dessa relao distingue a direo espiritual do
counselling ou de outros tipos de ajuda.56

Mesmo iniciando pelo que interessa ao jovem, quanto mais caminhamos
mais o problema enfrentado perde importncia, desde o momento em que comeamos a nos perguntar o que Deus nos quer dizer atravs da situao. No
centro da insatisfao, frustrao ou impasse encontra-se frequentemente uma
Ibid., p. 59.
E. Mc DONNELL, God Desires You, Desales Resource Center, Stella Niagra (NY) 20082, 117.
56
Sobre o modo de o diretor espiritual beneficiar-se da pesquisa contempornea, veja-se: C.
GRATTON, The Art of Spiritual Guidance, Claretian Publications, Bangalore 1996.
54
55

108

desconexo com o corao. Isso pode parecer estranho, mas verdade que no
raramente podemos viver distantes de ns mesmos. No estamos em casa com
Deus, que habita dentro de ns; por isso, sentimo-nos sem casa. O que particularmente verdade nos jovens, nos quais a influncia dos companheiros to forte
que muitos deles se sentem obrigados a viver de maneira a poderem responder s
expectativas alheias. Esse pode ser um modo muito natural de buscar a aprovao
dos outros, preocupados sobre como os outros nos veem, procurando evitar a
desaprovao deles ou desejosos da sua admirao. S poderemos alcanar a
verdadeira liberdade interior se comearmos a aprender a olhar para ns mesmos
como o Senhor nos v atravs do seu Filho, sob o olhar amorosamente misericordioso do Senhor.57

Desconectado do prprio corao, sem esse porto interior, o jovem v-se
sem bssola no mar da vida, e acaba sentindo-se perdido, o que particularmente
verdade no mbito das relaes humanas. Os jovens que buscam o amor frequentemente se contentam com pouco, acomodando-se nos desejos da outra pessoa,
justamente porque precisam ser amados. Por isso, veem-se fechados em relaes
infelizes ou tm a sensao de serem explorados; acabam, assim, feridos pela experincia. Para qualquer experincia vivida pelo jovem, provocadora dessa alienao em relao ao prprio corao, a espiritualidade salesiana sempre oferece
um caminho que leva adiante. Essa abordagem, porm, exige que, antes de tudo
e acima de tudo, procuremos compreender teologicamente por que o corao
humano tende a desviar-se.

5. A natureza dissipada do corao humano



Um princpio fundamental da teologia salesiana afirma que o corao foi
criado bom, porque Deus, que nos criou, bom. O corao humano no s
orientado para o bem,58 mas foi criado para amar o Bem infinito.59 Essa a
base do otimismo salesiano, ao qual no interessa o quanto seja imoral a conduta
de um jovem; no seu ncleo, o corao permanece bom, mesmo que possa estar
afastado da bondade. S. Francisco explica:

J. PHILIPPE, Time for God, cit., 46.


OEA IV, 145.
59
OEA V, 321. Cf. OEA IV, 169; OEA V, 321, 342.
57
58

109

Nem toda ao de um pecador pecado; embora o pecado provoque a doena da alma e a torne incapaz de realizar grandes e poderosas obras, ela, sem
dvida, pode fazer coisas pequenas; de fato, nem todas as aes de uma pessoa
doente so aes doentias.60


Se o corao foi criado bom, como explicar as tendncias pecaminosas?
S. Francisco recorda-nos que enquanto fomos criados como imagem de Deus,
recebemos dEle tudo o que bom em ns; mas, tendo sido criados do nada, sempre permanece em ns alguma imperfeio.61 Apesar disso, continua a existir na
natureza humana uma semente de bondade, podendo ser redimida e libertada. S.
Francisco pode sustentar esta convico porque, diversamente de Calvino, no
considera que a natureza humana seja corrompida pelo pecado.62 Ele faz uma
leitura mais benvola da natureza humana atingida pelo pecado, descrevendo-a
como frgil por estar ferida; e sendo frgil, torna-se facilmente escrava dos
prprios desejos.63

Mesmo sendo o corao humano orientado para o bem, e no fim das contas
para Deus, que o Bem infinito, ele pode desviar-se nesse caminho e contentar-se
com o que parece bom, em vez de s-lo realmente. Todavia, nem tudo est perdido: o corao humano deseja o infinito, e no pode sentir-se satisfeito com alguma coisa inferior. Evocando a famosa frase de S. Agostinho, Francisco tambm
declara que os nossos coraes esto inquietos e no repousaro enquanto no
retornarem a Ti.64 E apresenta uma parbola para ilustrar a natureza dissipada do
nosso corao.
Acontece algumas vezes entre as perdizes que uma delas rouba os ovos de
outra para choc-los. Mas to logo a pequena perdiz que foi sequestrada e
alimentada, escuta pela primeira vez a voz da sua verdadeira me, retorna para
ela [...]. O mesmo acontece com o nosso corao. 65

Ibid., p. 237.
OEA X, 345, Sermon for Palm Sunday 20th March 1622.
62
S. Francisco acompanha a teologia oriental que considera os nossos hbitos, no a nossa natureza,
a serem arruinados pelo pecado original, o que mudou a nossa natureza. por isso que os telogos
orientais no falam de natureza decada (natura lapsa), mas veem a converso como retorno nossa
primeira natureza. T. PIDLK, The Spirituality of the Christian East: A Systematic Handbook,
transcr. por Anthony P. Gythiel, Cistercian Publications Inc., Kalamazoo, Michigan 1986, 63.
63
Para uma apresentao mais detalhada sobre a nossa natureza chtive, veja-se: E. Mc
DONNELL, The Concept of Freedom, cit., 191-193.
64
OEA XXII, 7.
65
OEA IV, 78-79.
60
61

110


Embora em meio ao pecado, mesmo que a nossa inclinao para amar a
Deus esteja soterrada, ela jamais cancelada. O nosso corao, quando se torna
insatisfeito, sentir o anseio do bem verdadeiro e despertar novamente. Uma das
tarefas da direo espiritual consiste em acompanhar o jovem, com bondade (amorevolezza), pelos becos sem sada para onde suas aes o conduzem, e quando o
seu corao despertar novamente, haver de ajud-lo no caminho de purificao,
tornando mais forte a sua vontade de tomar decises segundo a Vontade de Deus.

O problema, infelizmente, permanece com o nosso corao dissipado:
como podemos prevenir a ns mesmos de sermos atrados para aquilo que Deus
criou, esquecendo-nos do seu Criador? Mesmo com a inclinao natural para
amar a Deus acima de todas as coisas, no temos o poder de faz-lo, e camos
continuamente. Como podemos ir adiante, como pode o corao humano encontrar a sua verdadeira casa em Deus, sendo como : ferido, arrtmico e, portanto,
no podendo conformar-se com o ritmo de Deus?66 As respostas a estas questes
levam-nos a descobrir na pessoa humana um duplo movimento: uma atrao para
o bem e uma contra-atrao que resiste ao Bem verdadeiro e se contenta com
alguma coisa que no Deus. Na terminologia salesiana, trata-se de uma expresso da nossa natureza exttica, que tende a levar-nos para fora de ns,67 em duas
direes: o xtase sensual, que nos leva para baixo, para o egosmo,68 e o xtase
transcendente, que nos torna capazes de sair de ns mesmos para a caridade.
Na direo espiritual, precisamos discernir este duplo movimento de resistncia
diante do bem (egosmo) e de atrao para o bem (caridade), e tambm entender se o jovem est crescendo no amor, que o movimento do corao para
o bem.69 primeira vista, parece algo muito simplista, mas os dois polos de
W. M. WRIGHT, Heart Speaks to Heart: The Salesian Tradition, Darton, Longman & Todd,
Londres 2004, 33.
67
E. J. LAJEUNIE, Saint Francis de Sales. The Man, the Thinker, His Influence, trans. by Rory
OSullivan, SFS Publications, Bangalore 1987, vol. II, 365.
68
Sensual neste contexto no deve ser entendido como negao do ertico, mas onde se usa o outro
para autogratificao, mais do que oferecer a si mesmo como dom. Cf. BENTO XVI, Carta encclica Deus Caritas Est, Stampa Vaticana, Roma 2005, n.9-11.
69
No Tratado, livro um, captulo stimo, S. Francisco d-nos uma Descrio de amor em geral,
em que alterna a descrio do amor como movimento da vontade ou movimento do corao
para o bem (OEA IV, 40-46). Segundo Downey, a tendncia de identificar o corao e a vontade
tambm est presente na escola francesa de espiritualidade do sculo XVII. Para eles, o termo corao associado com a vontade, e mais em particular com as emoes. Ao longo de toda a histria
da espiritualidade crist, o corao visto como a base e o fundamento unificador no interior da
pessoa humana. tambm entendido como afetivo enquanto est aberto fora atrativa do amor
de Deus atravs da inabitao do Esprito Santo (M. DOWNEY, The heart in Jean Vanier and
LArche: Spiritualities of the Heart, cit., 195).
66

111

resistncia e atrao oferecem-nos um paradigma til para orientar os jovens no


itinerrio espiritual para viver Jesus, onde as nossas vontades se unem com a
de Deus.
5.1. A resistncia do corao humano

Dissemos que, mesmo se o corao foi criado bom e com uma inclinao
fundamental para Deus, o Sumo Bem, s vezes, infelizmente, o itinerrio espiritual no tem sucesso; a razo pela qual no alcanamos a meta que Deus destinou para ns, que, em vez de escolher o bem verdadeiro, detemo-nos naquele
que apenas parece bom. Nossa inteligncia fica ofuscada em seu discernimento
quanto ao verdadeiro Bem, e a nossa vontade torna-se fraca para escolher o Bem
autntico. Esta luta no interior da pessoa humana no pode reduzir-se a simples
interpretao dualista da batalha entre esprito e carne. Em vez disso, devemos
entend-la, no sentido paulino, como conflito entre dois amores, o amor de Deus
e o amor de si mesmo. S. Francisco escreve:
O nosso corao foi criado para Deus, e Ele procura atra-lo continuamente;
jamais deixa de pr diante de seus olhos a beleza do seu Amor celeste. Apesar
disso, h cinco realidades que impedem a ao da santa atrao: 1) o pecado,
que nos afasta de Deus; 2) a afeio s riquezas; 3) os prazeres dos sentidos; 4)
o orgulho e a vaidade; 5) o amor-prprio, o egosmo com a multido de paixes
desordenadas que vm com ele, que so como um fardo pesado que nos arrasta
para baixo. 70


A nossa natureza frgil deixa-se seduzir facilmente pelo pecado, atravs
das decises motivadas pelo egosmo e os desejos desordenados que a levam
para a escravido. Estas tendncias devem ser identificadas e vencidas, se quisermos cooperar com a vontade de Deus em vista da nossa verdadeira liberdade.
S. Francisco escreve na Introduo: A tarefa de purificar a alma no pode e no
deve terminar a no ser com a prpria vida.71 Diversamente de outros escritores
70
71

OEA V, 56.
OEA III, 27, 48.

112

espirituais, portanto, o trabalho de ascese72 no apenas para principiantes,


mas tambm para aqueles que se consideram adiantados no itinerrio espiritual.
A direo espiritual salesiana, consequentemente, est convencida de que nesta
vida jamais chegaremos meta, mas que precisamos ser vigilantes em nossa
luta contnua contra as tendncias que levam ao pecado. Finalidade das prticas
ascticas a libertao das nossas paixes desordenadas e dos afetos destrutivos,
de tal maneira que possamos gozar da pureza do corao. Este reajuste do nosso
corao permite que nos unamos nossa origem autntica e mais profunda, que
o amor.

Em meu livro, Concetto di libert (Conceito de liberdade) aprofundei
a compreenso salesiana de pecado,73 de amor-prprio74 e de desejos desordenados.75 Apresentarei aqui apenas de maneira sucinta estes trs aspectos em sua
relao com os jovens, como podem surgir no processo de direo espiritual.
Afeto pelo pecado

Sobre o pecado, S. Francisco escreve: No nos devemos deixar perturbar
pelas nossas imperfeies, pois para ns a perfeio consiste em lutar contra elas.
No podemos lutar contra elas se no as compreendermos, ou super-las se no
nos colocarmos diante delas.76 A atitude salesiana diante do pecado no consiste
em ignor-lo, mas em colocar-nos realmente diante dele. Igualmente, no devemos nos desencorajar77 por causa da nossa fragilidade, mas reconhecer as nossas
faltas com humildade.
72
A ascese a luta para superar as profundas divises no interior da nossa natureza, a reorganizao
dos nossos desejos, de modo que as nossas vidas possam ser vividas em harmonia com as exigncias da f crist. No sentido mais geral, pode-se dizer da ascese como a representao de todos os
elementos da vida espiritual que comportam um esforo unitrio contra os aspectos pecaminosos de
si e contra as tentaes externas, assim como os esforos positivos voltados para a perfeio da nossa atividade espiritual (J. de GUIBERT, Ascse, asctisme. I: La notion dascse, dasctisme, in
Dictionnaire de spiritualit, asctique et mystique, Besauchesne, Paris 1974, 938).
73
E. Mc DONNELL, The Concept of Freedom, cit., 181-197.
74
Ibid., pp. 198-202.
75
Ibid., pp. 203-210.
76
OEA III, 27. Ver tambm: suficiente que tenhamos o virtuoso desejo de combater valorosamente com a plena confiana de que o Esprito de Deus nos ajudar quando se apresentar a ocasio
de us-la (OEA IV, 253).
77
S. Francisco aconselha contra o desnimo, porque justamente como as aranhas fazem a sua teia
apenas quando o tempo est escuro e nublado, assim tambm, as foras do mal podem no encontrar
momento melhor para colocar as insdias (OEA V, 315-316). Para um resumo mais detalhado dos
perigos do desnimo e da ansiedade, veja-se: E. Mc DONNELL, God Desires You, cit., 113-116.

113

Eleva teu corao sempre que cares, mas f-lo serenamente, humilhando-te
diante de Deus atravs do conhecimento da tua misria, e no te surpreendas
se cares. No de admirar que a doena nos torne doentes, a fragilidade enfraquea-nos ou a misria faa-nos miserveis. Apesar disso, procura detestar
com todas as tuas foras a ofensa que Deus recebeu de ti, e com grande coragem e confiana em sua misericrdia retorna ao caminho da virtude, do qual
te afastaste. 78


S. Francisco reconhece que nem todos ns nos afligimos com os mesmos
pecados, e que h pecados que tendemos a repetir, tornando-se assim hbitos. Jamais poderamos superar esses pecados habituais se no identificssemos a afeio que temos especificamente por esses pecados. 79 Escreve:
Mesmo que todos os israelitas tenham deixado efetivamente o Egito, 80 nem
todos o deixaram afetivamente, e no deserto muitos lamentavam a falta das cebolas e das panelas de carne do Egito. Se no erradicarmos o afeto pelo pecado,
seremos semelhantes ao homem infeliz, que foi libertado do pecado e, apesar
disso, ainda continua enredado no afeto por ele. Mesmo estando efetivamente
longe do Egito, ainda est l pelo seu apetite e pelo seu desejo dos alhos e das
cebolas dos quais ento se alimentava. como uma mulher que deseja deixar
as relaes ilcitas de amor, mas agrada-lhe ser acompanhada e cortejada. 81


Nesta luta contnua de libertao do afeto aos pecados, S. Francisco de
Sales recomenda os seguintes exerccios:

a. aprender a cultivar o afeto contrrio aos pecados, para que possamos
corrigi-los e reprimi-los, tambm nos purificando e libertando totalmente deles,82

b. fazer meditaes que, com a ajuda da graa de Deus, sero de grande
ajuda para erradicar do nosso corao ao mesmo tempo o pecado e os
principais afetos em sua direo, 83

OEA III, 168. Ver tambm OEA XIV, 79; OEA XIV, 120; OEA XV, 37.
Para um breve resumo dos ensinamentos de S. Francisco de Sales sobre a necessidade de purificao da afeio pelo pecado, veja-se: R. MARTIN, The Fulfillment of all Desire, Emmaus Road
Publishing, Steubenville 2006, 109-110.
80
OEA III, 30.
81
Ibid., p. 31.
82
Ibid., p. 67.
83
Ibid., p. 33.
78
79

114

c. receber o sacramento da Reconciliao porque no importa se a contrio no profunda; o que conta que seja autntica, e de modo particular quando se v reforada pela fora dos sacramentos, purifica-nos
realmente do pecado, e quando grande e profunda, liberta-nos de todo
afeto pelo pecado.84

O amor de si

A resistncia vontade de Deus vem, sobretudo, do amor-prprio.85 necessrio, desde o incio, estabelecer uma distino entre o amor-prprio e o amor
de si. O amor honesto de si defendido por S. Francisco de Sales,86 mas o amor
-prprio usurpa para si o papel do amor verdadeiro e leva autoadorao, afastando-nos do amor de Deus. O amor-prprio apresenta-se claramente como obstculo
para o amor de Deus87 e no morre nunca, at a nossa morte; h mil maneiras de
entrincheirar-se em nossa alma, mas no podemos jog-lo fora completamente.88
Os escritos de S. Francisco sobejam nos exemplos do amor-prprio que estimula
a autogratificao baseando-nos naquilo que nos agrada ou nos desagrada, os
preconceitos e as paixes; em outras palavras, por causa do nosso prprio autointeresse. Quando me vejo mais orientado para uma opinio e no para outra,
escreve a Felipe de Quoeux, espero que Deus me d a graa de no ser influenciado e arruinado pelo amor-prprio, como irritar-me com quem no quer estar
de acordo com a minha opinio.89

Ibid., p. 32.
Esta distino, antes de ser feita por S. Francisco de Sales, foi feita por Toms de Aquino: o
amor de si, bem ordenado, desejado pelo homem bom e natural; mas o amor desordenado de si,
levando ao desprezo de Deus, que Agostinho v como causa do pecado (STh, I II q.77 art.4 ad. 1,
2:937). Nos escritos de S. Francisco de Sales, o amor-prprio (amour prope) visto negativamente
enquanto o amor de si mesmo (amour de nous mesme) visto como um amor bom e merecedor,
ordenado para Deus e subordinado ao amor de Deus. O amor-prprio deve ser entendido como um
amor que est em oposio ao amor de Deus (cf. OEA V, 202).
86
A justificao para o amor de si mesmo que somos feitos imagem e semelhana de Deus.
Veja-se OEA V, 204.
87
S. Incio exigia do exercitante, desde o incio da segunda semana, nos Exerccios Espirituais,
uma oblao total de si, uma oblao ativa que chega ao holocausto de todo amor-prprio (cf. F.
CHARMOT, Ignatius Loyola and Francis de Sales: Two Masters, One Spirituality, Herder Book
Co., Londres 1966, 60).
88
OEA XII, 383.
89
OEA XVI, 114.
84
85

115


O egosmo perigoso devido sua natureza insidiosa, que ignora a voz
da razo e nos leva a fazer um amontoado de atos pequenos, mas perigosos, de
injustia e de pecado.90 Justamente porque nos parecem pequenos, habituamo-nos
a desculp-los, mas sendo muitos, podem provocar um grave dano. Por exemplo,
criticamos o nosso prximo pelas coisas pequenas, mas nos desculpamos a ns
mesmos por coisas ainda maiores. Queremos vender produtos para ter um grande
lucro, mas desejamos adquiri-los a bom preo. Insistimos na justia estrita para
os outros, mas queremos misericrdia para ns. Com facilidade, nos lamentamos
dos nossos vizinhos, mas no queremos escutar os lamentos sobre ns. S. Francisco continua: Em poucas palavras, temos dois coraes: um amvel, gentil e
misericordioso para conosco, e outro, estreito e rigoroso para com nossos prximos.91 Quando agimos assim, no somos justos e razoveis. Deixamo-nos levar
pelos nossos sentimentos, emoes e paixes, que nos mantm centrados em ns
mesmos.

A doura na direo espiritual salesiana o princpio a ser utilizado para
identificar e buscar a superao do amor-prprio. Frequentemente, os jovens se
sentem desencorajados porque percebem dentro de si atitudes de egosmo, mas,
para Francisco, isso ainda outra expresso de amor-prprio. No nos devemos
surpreender com nossas quedas; antes devemos surpreender-nos por no faz-lo
mais frequentemente. Isso nos convida a colocar-nos diante da realidade fundamental da necessidade de sermos salvos: no podemos salvar-nos a ns mesmos.
S. Francisco escreve:
A pessoa orgulhosa, que confia em si mesma, tem boas razes para nada empreender. A pessoa humilde a mais valorosa, aquela que percebe ser impotente; quanto mais se percebe como indigna, mais empreendedora se torna, porque
coloca toda a sua confiana em Deus.92


Sempre prtico em sua direo espiritual, Francisco oferece-nos um mtodo para adquirir um corao razovel. Ele convida-nos a trocar o nosso lugar
OEA III, 258. Para Francisco, e tambm para S. Joo Bosco, os nossos coraes precisam ser
iluminados e orientados pela razo. Porque s a razo faz com que sejamos humanos e nos d a
capacidade de pensar e escolher e de enderear os nossos instintos, emoes e paixes para o fim
correto prprio dos seres humanos. S. Francisco adverte que somos humanos porque possumos a
razo, mas encontrar uma pessoa racional realmente raro (Ibid., p. 257).
91
Ibid., p. 258.
92
Ibid., p. 149.
90

116

com o do prximo, e nos comportaremos de maneira adequada em qualquer situao.93 difcil sermos objetivos diante da nossa realidade; e por isso que,
citando S. Bernardo, Francisco aconselha a ter um diretor espiritual, porque, caso
contrrio, quem quer seguir a si mesmo, tem um estpido por guia.94
Desejos desordenados

Sendo difcil para ns identificar os aspectos do amor-prprio em nossa
conduta, ainda mais difcil ser identificar os nossos desejos desordenados, justamente porque as emoes podem reforar a nossa vontade de autogratificao.
As percepes humanas so coloridas pelo cime, pela rivalidade, pela inveja,
pelo orgulho, pela dor e muitssimas outras emoes negativas. Precisamos
avaliar essas percepes com precauo. Elas podem nos enfraquecer e impedir o reconhecimento da nossa verdadeira grandeza enquanto pessoas divinizadas em Cristo, amadas por Deus e por Ele cheias de graas.95


No se trata de eliminar as nossas paixes ou emoes, porque tambm
elas so um dom positivo de Deus. Antes a tarefa ordenar as nossas emoes
de modo que a fora da alma se oriente para o amor e o servio de Deus. O que
deves mudar ou remover no so os apetites enquanto tais, mas a sua ao desordenada.96 claro que, mesmo se as paixes so um dom de Deus, ns somos
pessoalmente responsveis pela sua desordem, que brota do amor-prprio. Embora o desejo atue segundo o princpio da busca do bem, ele pode errar porque
dos muitos amores apresentados diante da vontade, esta pode apegar-se quele
que apenas parece bom.97 A raiz da desordem presente em nossos desejos est no
amor-prprio que, como indicamos anteriormente, pode falsear o uso das nossas
faculdades racionais. Como consequncia, a nossa razo fica aprisionada no seu
discernimento por causa do apetite. O que leva a uma inverso da ordem natural,
fazendo com que nossos apetites dominem a nossa razo, quando a razo deveria
orientar os apetites para sua justa finalidade.
Ibid., p. 259.
OEA IX, 244.
95
M. B. PENNINGTON, Who Do You Say I Am?, cit., 54.
96
N. CUMMINS, Freedom to Rejoice, Harper Collins, Londres 1991, 119.
97
OEA IV, 34.
93
94

117


Isso nos leva a enfrentar um dos elementos essenciais da direo espiritual,
ou seja, o discernimento dos nossos pensamentos.98 Entendemos por pensamentos qualquer coisa que surja no monitor da nossa conscincia, por exemplo, sentimentos, emoes, conceitos, imagens ou recordaes. H uma progresso em
relao a estes pensamentos. Eles aparecem num primeiro momento, mas desaparecero se eu simplesmente os contemplar, sem lhes dar importncia. Quando um pensamento se apresenta, ele faz um convite: queres? nesse momento
que a nossa vontade chamada em causa e a liberdade entra em jogo atravs da
nossa aceitao. nesse momento que podemos orientar os nossos pensamentos,
que levam a decises e atitudes. Se eu me deixo levar por eles uma vez h uma
ao virtuosa ou viciosa, mas se o fao repetidamente, torna-se um hbito. Devemos aprender a observar os nossos pensamentos justamente quando eles surgem,
identificando a sua fonte, se procedem do interior ou do exterior, se vm de mim
mesmo, da minha memria, ou se vm de Deus ou de uma fonte maligna. Devemos seguir os pensamentos que se apresentam como fontes de graa, e cultiv-los
mediante a orao.

medida que a relao de direo espiritual se torna mais profunda,
comeam a surgir os modelos de pensamento que esto, sem dvida, ligados
experincia vivida pelo jovem. Nossa maneira de pensar influi significativamente
sobre a nossa maneira de atuar.
Os pensamentos que aceitamos tornam-se desejos. Os desejos assimilados
tornam-se paixes. Os bons pensamentos tornam-se virtudes. Os maus pensamentos tornam-se maus desejos; as paixes ou hbitos de aes negativas
levam ao vcio.99


muito mais fcil det-los no processo da reflexo antes de permitir-lhes
que se tornem hbitos, porque neste caso muito mais difcil erradic-los. A
alterao da nossa conduta pode ser controlada, mas muito mais fcil prevenir
antes de se tornarem hbitos. Precisamos desmontar com delicadeza alguns
desses modelos de pensamento, porque podem ser de obstculo para o crescimento humano e espiritual. O processo de direo espiritual implica tanto em
O termo original para o discernimento, tomado da espiritualidade do deserto, diakrisis que,
literalmente, significa organizar os nossos pensamentos.
99
M. M. FUNK, Thoughts Matter: The Practice of the Spiritual Life, Continuum, Nova Iorque
2005, 20.
98

118

aprender quanto em desaprender, justamente para submeter todos os nossos


pensamentos obedincia a Cristo (2Cor 10,5).

Este mtodo preventivo de discernir os pensamentos essencial para que
a pessoa cresa no amor de Deus. Por exemplo, se o jovem sofre devido imagem
empobrecida de si ou autoestima muito baixa, isso pode travar at mesmo a sua
percepo da Sagrada Escritura, pois a contemplar atravs de culos escuros.
Frequentemente, eles projetam tambm em Deus os seus sentimentos de no serem amados, e isso os impede de encontrar o Deus vivo e verdadeiro. Sentindose autocondenados, e o jovem fala que ele/ela percebe Deus como ameaador,
irado ou vingativo, as nossas antenas tornam-se mais atentas, suspeitando que se
trate aqui de uma projeo.100 Recomenda-se normalmente aos jovens que sofrem de pouca autoestima, que faam esforos para elev-la. Mas no realmente
difcil que algum possa dar a si mesmo o que lhe falta? A direo espiritual salesiana orientada a falar mais de aceitao do que de autoestima. A aceitao
vem, antes de tudo, da convico de que Deus nos ama. Deus continua a nos
amar mesmo em meio s nossas fraquezas, e a aceitao incondicional deve ser
experimentada pelo jovem atravs da bondade (amorevolezza) e da aceitao do
diretor espiritual. Ao mesmo tempo, o jovem pode viver certo mal-estar por levar
uma vida incompatvel com o Evangelho, e a prpria conscincia que o acusa. Nessas circunstncias, devemos invocar novamente o princpio da bondade
(amorevolezza), de tal modo que o seu arrependimento seja sincero e duradouro.

Nas cartas em que Francisco trata com as pessoas sobre as situaes da
vida concreta delas, ele previne contra a multiplicidade dos nossos desejos que,
no sendo ordenados pela razo, entram em conflito entre si. Este um fenmeno
comum entre os jovens que desejam fazer muitas coisas diferentes ao mesmo
tempo e, afinal de contas, no fazem nenhuma delas, ou no as fazem bem. Outra
consequncia desta falta de harmonia a diviso interior, a insatisfao e a inquietao contnua que provoca inconstncia e desejo continuado de mudana. A
multiplicidade dos desejos nos quais todas as possibilidades permanecem abertas
impede que o jovem desenvolva a capacidade de empenhar-se. O que particularmente importante para os jovens que se encontram diante de decises relevan100
Para ns, Deus sempre o Deus de Jesus, o Pai prdigo, que vem zelosamente ao nosso encontro,
filhos rebeldes, para acolher-nos na famlia (Lc 15,1-32). Se a experincia de condenao de quem
dirigido espiritualmente no for relacional e no levar reconciliao, ento podemos estar relativamente certos de que no de Deus, e ns poderemos ajudar a pessoa dirigida a aprofundar o discernimento (cf. W. BARRY, Our True Selves and Spiritual Direction: Presence 17 (n.2, 2011) 8).

119

tes, que determinaro a orientao de suas vidas. Se o jovem vive afastado do seu
corao, muito provavelmente buscar apoio fora dele ou sofrer a tentao de
imitar os outros. S. Francisco sugere:
No deves semear os teus desejos em jardins alheios; cultiva o teu, o melhor
possvel; no queiras ser diferente do que s, mas procura, sobretudo, ser o
melhor de ti mesmo [...]. Cr-me, este o ponto mais importante e menos compreendido na vida espiritual.101


No mbito da espiritualidade salesiana, a relao com Deus no nem um
luxo nem um extra opcional, mas uma necessidade essencial. S crescendo no
amor de Deus podemos aprender a tomar decises que no esto apenas em harmonia com a vontade de Deus, mas tambm nos permitem alcanar a meta para
a qual fomos criados. Apesar disso, devido aos nossos desejos desordenados, h
uma luta dentro da pessoa entre o amor-prprio e o amor de Deus, que Francisco
descreve como verdadeiro martrio da vontade.102 Essa luta continua ao longo
de toda a nossa vida, pois s no cu teremos de verdade um corao plenamente
livre da paixo, uma alma totalmente purificada da distrao, um esprito livre de
contradies, e no haver nenhum conflito entre as nossas faculdades.103

Entretanto, a questo permanece: Que mtodo eu devo seguir para conduzir os meus afetos e paixes a servio do Amor divino?. S. Francisco de Sales
responde: Lutemos contra as paixes, para opor-lhes paixes contrrias, mas
tambm para estabelecer afetos mais intensos.104 quilo a que damos maior
ateno tambm damos todas as nossas energias. Portanto, mais importante
colocar o nosso esforo no desenvolvimento das virtudes do que s insistir em
nossas fraquezas. Na medida em que nos movemos sempre mais profundamente
dos sentidos para o reino do esprito, comeamos a reconhecer que os prazeres
corporais despertam o desejo antes de satisfaz-los, mas tornam-se desgostosos
quando os obtivemos. Ao contrrio, os prazeres espirituais provocam desprazer
antes de obt-los, mas, uma vez obtidos, provocam prazer.105 primeira vista,
esta doutrina parece restringir a nossa liberdade e negar o valor dos sentidos. A
OEA XIII, 289-292, Letter to Prsidente Brulart, June, 1607.
OEA IX, 79.
103
OEA V, 169-179.
104
Ibid., pp. 311-312.
105
OEA IV, 61.
101
102

120

finalidade de Francisco, porm, a verdadeira liberdade, a liberdade de amar; no


s de amar a Deus, mas tambm de amar e gozar do mundo criado por Ele, como
deve ser amado e desfrutado. O amor de Deus o princpio ordenador que orienta
os nossos desejos para o verdadeiro bem e, em consequncia, para a liberdade.
Como escreve Francisco:
O amor de Deus assume e toma sob o seu domnio os afetos e as paixes,
fazendo-os afastar-se da finalidade qual o amor de si os levaria e dirigindo-os
para a sua prpria inteno espiritual.106


O que coerente com a finalidade que identificamos na direo espiritual
salesiana, que consiste na unio de nossas vontades com a vontade de Deus, de
maneira que Jesus possa viver em ns. necessrio dizer, porm, que este abandono amoroso imitao de Jesus s uma opo plausvel quando a mente
e o corao so libertados de imagens distorcidas e de emoes desordenadas a
respeito da prpria identidade, e so percebidas justamente como so na presena
de Deus.107
5.2. As atraes do corao humano: as inspiraes

Juntamente com a anlise das resistncias vontade de Deus no corao
humano, a direo espiritual na tradio salesiana leva o diretor a estar atento
para perceber os bons desejos no corao do jovem, procurar estimular esses
desejos e ajudar a lev-los sua realizao. Numa carta a S. Joana Francisca, S.
Francisco escreve:
Jamais deixarei de pedir ao Senhor que leve a cumprimento a sua obra na senhora, ou seja, que a senhora sempre caminhe no seu excelente desejo e projeto de
alcanar a plenitude da vida crist, um desejo que a senhora deve estimular e fazer
crescer com ternura em seu corao. Considere que isso obra do Esprito Santo e
uma centelha de sua Chama divina.108

OEA V, 312.
F. X. CLOONEY, Beyond Compare: St Francis de Sales and r Vednta Deika on Loving
Surrender to God, Georgetown University Press, Washington 2008, 22.
108
OEA XII, 263-264. Letter to Jane Frances de Chantal, 3rd May 1604.
106
107

121


O que est em jogo aqui o reconhecimento da obra do Esprito de Deus
nos bons desejos do jovem que, na espiritualidade salesiana, se chama inspiraes.109 Com maior frequncia, familiarizamo-nos mais com o papel das tentaes do que com o da contraparte, isto , as inspiraes.110 Deus, nosso bem
supremo, capaz de levar-nos at Ele mediante a atrao de suas inspiraes.
Essa a misso especial do Esprito Santo, que derrama em nossos coraes os
primeiros raios de sua luz e de seu calor de vida.111 A inspirao, ento, para o
ser humano o que a luz e o calor do sol so para a terra. Neste caso, as inspiraes, pelas quais Deus revela a sua vontade, esto presentes mediante a metfora
da luz e do calor. So descritas psicologicamente segundo a maneira com que
se manifestam em nossa conscincia. Depende de nossa vontade livre resistir ou
responder ao despertar divino. Note-se que no somos ns a nos despertamos a
ns mesmos; causar o despertar caracterstica destas inspiraes. Como S. Francisco indica:
Eu no posso despertar-me, nem posso mover-me a mim mesmo, se no s Tu
a mover-me. Mas, quando tu me moves, ento, Esposo amado de minha alma,
corremos juntos, os dois. Tu corres adiante, e sempre queres atrair-me, e eu,
de minha parte, quero seguir o teu caminho, respondendo ao teu chamado.112


Uma das tarefas principais no processo de direo consiste em discernir os
movimentos interiores das inspiraes de Deus no corao do jovem. O que, por
outro lado, implica que ns mesmos nos deixemos conduzir pelo Esprito Santo, porque as inspiraes so sempre iniciativa de Deus. Evidentemente, mesmo
atrados pela divina Bondade, ela sempre nos deixa livres para responder:
Apesar da fora onipotente da mo amorosa de Deus que toca, cobre e envolve a alma com tantas inspiraes [...] a graa no tem o poder de dominar, mas
de atrair o nosso corao.113
Cf. E. Mc DONNELL, The Concept of Freedom, cit., 280-301.
Inspiraes so [] todas as atraes interiores, moes, atos de autorreprovao e de remorso,
luzes e concepes que Deus atua em ns e predispe os nossos coraes com as suas bnos, o
cuidado paterno e o amor para nos despertar, estimular, solicitar e atrair s santas virtudes, ao amor
celeste, aos bons propsitos, a tudo o que encoraje a nossa viagem para o nosso bem-estar eterno
(OEA III, 108; cf. ed. A. Callahan, Paulist Press, Nova Iorque & Mahwah (NJ) 1990, 109).
109
110

111

OEA IV, 130.

Ibid., p. 132.
113
Ibid., pp. 126-127.
112

122


A essncia da inspirao o caminho pelo qual Deus nos conduz intimamente, e revela, a cada um, a sua Vontade. Como diz S. Francisco, seu sopro vital chamado de inspirao porque, atravs dele, a Bondade suprema sopra sobre
ns e inspira em ns os desejos e as intenes do seu Corao.114 A inspirao
propicia a amizade recproca entre Deus e ns, porque Jesus revela as intenes
do seu corao, e fala aos nossos coraes. A inspirao, assim entendida, expresso daquilo que a vontade de Deus significa. Como comenta Andr Brix:
O mtodo salesiano coloca-se no nvel da liberdade e da inspirao pessoal.
A inspirao revela que Deus quer atuar de maneira absolutamente original e
autntica com toda liberdade. No se trata de formar um exrcito de robs submissos. A inspirao refere-se minha atuao numa situao concreta em que
ningum mais pode ocupar o meu lugar. Devemos deixar que o exterior possa
nascer do interior.115


Dessa forma, mediante as inspiraes, somos convidados a uma resposta
pessoal, que nos leva divinizao atravs da nossa participao na vida de Cristo. Por isso, Francisco procura infundir em ns a abertura ou disponibilidade interior a essas inspiraes divinas. O jovem, portanto, conduzido continuamente
pelo Deus vivo atravs dessas inspiraes. Francisco afirma que s se aceitarmos as suas inspiraes em toda a extenso do seu poder, faremos logo grandes
progressos na santidade.116

Mesmo que as inspiraes permaneam sempre iniciativa da graa de
Deus, ns podemos, de nossa parte, fazer crescer uma disposio interior que nos
torne vigilantes e prontos para responder quando surge o momento adequado.
Recordando a nossa meta, viver Jesus atravs da unio da nossa vontade com a
vontade de Deus, vemos claramente que as inspiraes so um elemento decisivo
na realizao desta meta. Retornando ao nosso corao como ponto de partida,
uma chave fundamental fixar e estabelecer a inteno do nosso corao de
modo que o exterior possa fluir do interior.117 Cultivar essas disposies permite
114

OEA V, 90.

A. BRIX, Initiation la lecture du Trait de LAmour de Dieu, Texte tabli daprs lenregistrement des confrences donnes au cours de plusieurs weekends en 19801981 Ellezelles (Blgica),
287.
116
OEA IV, 121.
117
On Inward Peace, in Lorenzo SCUOPLI, Spiritual Combat, Together with the Treatise of Inward
Peace, Burns & Oates, Londres 1963, 207.
115

123

ao jovem responder-lhes com cuidado, frequncia e prontido,118 enquanto leva


uma vida que, aos olhos dos outros, plenamente normal.119 Isso propicia a virtude da devoo que no outra coisa seno a inclinao geral da disposio
da alma para fazer o que sabe agradar a Deus. a este alargamento do corao
que se refere Davi, quando diz: Correrei pela estrada de teus Mandamentos, pois
me dilataste o corao. S. Francisco convida-nos a fazer tudo por amor, porque
sabe que o amor alarga o corao, permanecendo, ao mesmo tempo, simples e
senhor de si mesmo.120 Para este alargamento do nosso corao fundamental,
na direo espiritual salesiana, o desenvolvimento da nossa amizade com Jesus
na orao e na autotranscendncia atravs do servio desinteressado. Dediquemo-nos ainda a estes dois aspectos, a fim de completar a nossa apresentao da
direo espiritual salesiana com os jovens.
5.3. A orao de corao a corao

atravs da orao que nos podemos preparar melhor para a obra de Deus
em nossa vida. O dilogo da orao comea no Corao de Deus, que se nos comunica mediante suas inspiraes. As inspiraes, que so dom do Esprito Santo, iluminam a nossa mente e movem a nossa vontade para responder bondade
de Deus. A orao, ento, o movimento de resposta s inspiraes que Deus
comunica ao nosso corao. atravs dessas inspiraes que podemos elevar a
nossa mente e o nosso corao a Deus na orao. S. Francisco escreve:
Estamos em comunicao contnua com Ele, que jamais cessa de falar aos
nossos coraes atravs de suas inspiraes, sedues e movimentos sagrados
[...]. Ele revelou plenamente todos os seus segredos a ns, como seus amigos
mais ntimos [...]. De nossa parte, temos a liberdade de falar com Ele em orao
devota sempre que o quisermos fazer, porque temos toda a nossa vida, todo o
nosso agir e todo o nosso ser no s com Ele, mas tambm nEle e por Ele.121

OEA III, 15.


Ibid., p. 6.
120
F. CORRIGNAN, The Spirituality of Francis de Sales, cit., 143.
121
OEA IV, 164. Para um aprofundamento desta relao de orao como corao a corao, vejase E. Mc DONNELL, God Desires You, cit., 45-55.
118
119

124


Profundamente influenciado pelo comentrio de Gilbert Gnbrard ao
Cntico dos Cnticos, que revela o desenvolvimento da histria de amor entre
Deus e a humanidade, a orao entendida, em consequncia, no como algo
que ns fazemos, mas como resposta a Deus, que nos atrai continuamente. Deus
Aquele que toma a iniciativa. Somos convidados a responder a Deus no amor;
Ele nos amou por primeiro. Como afirma S. Teresinha do Menino Jesus, a orao no , primeiramente, uma atividade, mas uma maneira de estar com Deus.
A orao tem a ver com o lugar em que o nosso corao est em cada momento
da nossa vida, tanto nas provaes como nas alegrias.122 Em poucas palavras,
a orao consiste em deixar-se possuir pelo amor de Deus. Ele quer estabelecer
uma profunda amizade recproca conosco.

Seguindo a tradio de S. Teresa de vila, S. Francisco considera a orao
principalmente como uma amizade com Cristo,123 porque Deus o amigo do
corao humano.124 Para estabelecer essa amizade, precisamos no s de tempo
para a orao, mas tambm de vivermos cientes de que certos estilos de vida facilitam ou tornam mais difcil a orao. A tradio salesiana de direo espiritual
recomenda intensamente a Sagrada Escritura como instrumento privilegiado atravs do qual podemos encontrar a pessoa de Jesus. A nfase teresiana na pessoa
de Jesus, proposta por S. Francisco, leva-nos necessidade de voltar frequentemente o nosso olhar para Ele na meditao, de modo a aprender os seus caminhos
e realizar todas as nossas aes segundo o seu exemplo.125

Nas primeiras etapas da orao, necessrio que o diretor seja mais diretivo, ajudando o jovem na prtica da orao. Considerando o que foi dito anteriormente sobre o perigo do mtodo de orao e a necessidade da liberdade de
esprito em que o jovem guiado pelo Esprito Santo , contudo, til oferecer
algumas diretrizes para quem iniciado na orao. Sob o influxo da prpria experincia em relao aos Exerccios Espirituais, S. Francisco sugere algumas estruturas e paradigmas para a prtica da meditao e da orao. As meditaes so,
em grande medida, variaes dos Exerccios Espirituais que, no mtodo inaciano,
122
A. REGO, Holiness for all: Themes from St Thrse of Lisieux, Teresian Press, Oxford 2009,
100.
123
Para mim, a orao mental no outra coisa seno uma relao de amizade, um encontrar-se
frequentemente a ss com quem sabemos que nos ama (Santa Teresa de vila, La vita, cap. 8, par.
5).
124
OEA IV, 163-164. Cf. IV, 295; IV, 319; IV, 331; V, 19; V, 196.
125
OEA III, 70.

125

assumem os cinco sentidos levando-os a participar da contemplao.126 Algumas


das meditaes na Introduo Vida Devota talvez possam parecer anacrnicas
para o leitor moderno; entretanto, apesar disso, procuram envolver todas as capacidades do jovem: inteligncia, vontade, imaginao e emoes. Mediante o
uso da imaginao, a pessoa que medita afetivamente envolvida e estimulada
para poder dar uma resposta. Por outro lado, as boas intenes surgidas mediante
a meditao devem ser colocadas em prtica; caso contrrio, no produziro nenhum fruto. Isso explica por que S. Francisco, como tambm S. Incio, convidam
a tomar alguma resoluo no final da prtica da meditao, a fim de levar a orao
vida.

S. Francisco sugere seis etapas como orientao para caminhar durante o
tempo da orao:

1. Procura colocar-te na presena de Deus. Recorda que Deus est prximo de ti, no distante. Ele o verdadeiro centro do teu corao, do
teu esprito. Inicia todas as oraes, sejam elas mentais ou vocais, na
presena de Deus. Observa esta regra sem exceo, e logo vers como
til.127 A orientao de nos colocarmos na presena de Deus como
preparao orao no opcional na orao salesiana. Modo til de
orientar os jovens para se colocarem na presena de Deus comear
com o mantra Eu tambm te amo. Parece-me que na espiritualidade
salesiana, quando nos aproximamos de Deus realmente no podemos
dizer Eu te amo, porque a iniciativa sempre dEle; s a partir dEle
podemos dizer que existimos porque Ele nos amou. Portanto, creio que
a nica resposta adequada a dar a Deus dizer: Eu tambm te amo.
Este mantra tem o efeito de permitir ao jovem sintonizar-se com o amor
derramado por Deus no seu corao antes de poder dirigir-se a Ele. Por
meio do mantra, o jovem imerge logo na orao enquanto resposta.

2. Seguindo S. Teresa de vila, S. Francisco considera que as nossas dificuldades na orao dependem, sobretudo, do erro de crer que Deus
est distante de ns. Colocando-nos na presena de Deus, convida-nos
a pedir ao Senhor que nos ajude a estarmos atentos, a abrir-nos a ns
mesmos sua Palavra e sua Presena.

3. Escolhe um texto da Escritura, seleciona uma cena do Evangelho, um
mistrio da f, ou algum trecho de um livro de espiritualidade. Se o
126
127

Ver Applicazione dei Sensi in Esercizi Spirituali, 121-126.


OEA III, 71.

126

tema for adequado, imagina-te no lugar em que a ao ou o fato est se


desenvolvendo. Por exemplo, imagina-te no meio daquela cena, perto
de Jesus ou com seus discpulos. A alguns jovens, o uso da imaginao
na orao muito frutuoso, enquanto outros, desde o incio, tm dificuldade com a meditao discursiva. S. Teresa de vila lamentava-se
de que Deus no lhe tinha dado capacidade para o pensamento discursivo ou para utilizar a imaginao com proveito.128 Seu itinerrio de
orao era a concentrao e a ateno na presena de Cristo, estando
convencida, mediante a f, de que Ele estava presente no seu corao.
Como uma pessoa cega num quarto, no qual sabe que algum est presente, mesmo se no pode v-lo com seus olhos.129 Se a nossa mente
comear a distrair-se, podemos lev-la amorosamente de volta a um
trecho da Escritura, a uma imagem ou a um ato de f e amor na presena de Jesus em nosso interior. Segundo S. Francisco, no nos devemos
preocupar com as distraes, mas sempre recomear: sempre que recomeamos, damos alegria ao Senhor.
4. A meditao, para Francisco de Sales, no consiste em estudar ou adquirir conhecimentos, mas em crer no nosso amor por Deus e entrar
mais plenamente no seu discipulado. Novamente, como S. Teresa, a
orao no consiste em pensar muito, mas em amar muito, estando
diante de Cristo, que sabemos que nos ama.
5. Se chegarmos aos bons afetos agradecimento pela misericrdia de
Deus, temor diante da sua Majestade, dor dos pecados, desejo de crescer na f, por exemplo aceit-los com prazer.
6. Vemos claramente na Introduo Vida Devota o quanto S. Francisco de Sales insiste em transformar o simples desejo da Filoteia de viver o evangelho com firme resoluo de faz-lo. Por isso, sublinha a
necessidade das resolues que nascem dos afetos vividos na orao.
Por exemplo, decidir-se a ser mais crente na orao, ou mais pronto ao
perdo, ou mais disposto a compartilhar a prpria f com os outros, ou
decidido a resistir diante do pecado, no modo mais prtico e concreto
possvel.

Santa Teresa de vila, La vita, cap.9, par 6.


S. Teresa escreve: Era este o meu mtodo de orao: no podendo discorrer com o intelecto,
procurava representar-me Cristo no meu esprito (La vita, cap.9, par 4).
128
129

127

Sobretudo depois de ter concludo a meditao, deves recordar as resolues e


decises que tomaste e, no mesmo dia, coloc-las atentamente em prtica. Esse
o grande fruto da meditao e sem ele a meditao no apenas intil, mas
pode tornar-se at mesmo danosa. As virtudes meditadas, no sendo praticadas,
apenas enfatuam a nossa mente e o nosso esprito, e acabamos por pensar que
realmente s seremos o que pensamos ou decidimos ser.130


So Francisco recomenda concluir o tempo da meditao-orao com expresses de gratido a Deus pelas luzes e pelos afetos que nos concedeu no tempo
de orao; depois, oferecer a ns mesmos ao Senhor em unio com a oferta de Jesus; e, em terceiro lugar, fazer um momento de intercesso por ns e pelos outros.

Rezar, ento, falar de corao a corao. Consequentemente, a orao
no tem nada a ver com tcnicas, mas trata-se de uma relao. Por isso, S. Francisco recomenda intensamente a orao do corao, ou seja, as aspiraes, que
so oraes espontneas. Com muita frequncia, tendemos a deixar Deus fora
das coisas ordinrias. Convidar os jovens a praticar estas oraes espontneas
tem uma dupla finalidade: em primeiro lugar, propiciar o aumento da amizade
com Cristo; em segundo lugar, comear a reconhecer mais claramente a presena
constante de Deus em nossa vida cotidiana. Segundo a minha experincia, difcil envolver os jovens numa forma constante de oraes de aspirao sem o
fundamento de uma orao mental regular, como dissemos acima.

A experincia de aridez ou secura espiritual na orao vivida, s vezes,
tambm pelos jovens, em particular por aqueles que se habituaram a rezar regularmente. Com frequncia, a falta de sentimentos na orao interpretada pelo
jovem como se no mais rezasse como deveria faz-lo, ou, ento, sentindo a tentao de deixar de rezar. S. Francisco escreve:

No percas tempo durante a orao, procurando compreender com exatido o que
ests a fazer ou como ests rezando; porque a melhor orao aquela que nos permite estar to empenhados com Deus, a ponto de nem mesmo pensarmos em ns,
ou naquilo que estamos fazendo [...]. No devemos ser como a esposa que se
detm a contemplar o anel, sem contemplar o esposo que o deu.131


Entretanto, devemos explicar ao jovem que a aridez um fenmeno normal no itinerrio da orao. um convite a viver com maior profundidade a con130
131

OEA III, 83.


OEA IV, 336.

128

vico de que Deus leva adiante a sua obra na penumbra; e a falta de emoes no
deve ser considerada como termmetro da orao. um movimento que vai dos
sentidos ao esprito, em que a parte sensorial da pessoa (gratificao sensvel) comea a desaparecer enquanto as riquezas da alma so transferidas para o esprito.
Mais do que um sinal de diminuio da orao, esta experincia indica que Deus
comea a ser sempre mais o Agente, e a pessoa humana, aquela que recebe. Indica uma maior pureza da orao, na medida em que esta no avaliada por aquilo
que dela recebemos, justamente porque procuramos o Deus das consolaes, e
no as consolaes de Deus.132

Bom exemplo disso a descrio da experincia de aridez na orao vivida
por S. Joana Francisca, feita por S. Francisco atravs da parbola do msico surdo.133 Recorda-lhe que ela como um msico surdo, chamado para tocar diante
do rei. O msico alegra-se vendo como o rei aprecia a sua msica, mas quando o
rei vai embora, -lhe pedido para continuar a tocar, mesmo no podendo escutar
a si mesmo ou perceber as reaes do rei. Esta experincia leva a pessoa que reza
por um caminho sempre mais profundo em vista do puro amor.

Para S. Francisco, a orao e a vida so uma s coisa, muito semelhante maneira com que o espirar segue o respirar. Ns respiramos no amor de
Deus mediante a orao (amor afetivo) e espiramos, emitindo o amor por meio
do servio aos nossos irmos (amor efetivo).134 A orao autntica leva-nos de
modo plenamente normal ao servio desinteressado, inflamando um amor que
realmente caridade. Semelhante a qualquer relao humana, somos transformados e modelados por Deus por meio da orao, permanecendo em comunicao
com Ele. A orao expande-nos para alm dos limites do amor e assim fazendo
transforma-nos ainda mais semelhana de Jesus, mediante a unio com Ele,135
permitindo-nos compreender por que a orao essencial no itinerrio espiritual
salesiano para deixar que Jesus viva em ns. Por meio da orao, transformamo-nos em Deus por meio do amor, assumindo o mesmo corao de Cristo, de
modo que podemos responder s situaes da vida com o amor e a compaixo de
Jesus. Na terminologia salesiana, este movimento exttico que nos leva a sair de
ns mesmos atravs do amor para os outros chamado de o xtase da ao.
OEA V, 142.
Ibid., pp. 137-138.
134
OEA IV, 301-302.
135
A. REGO, Holiness for all, cit., 100.
132
133

129

5.4. O xtase da ao: o amor desinteressado


Sendo o corao a fonte de todas as nossas aes, estas sero como o corao.136


S. Francisco comea a partir de dentro, da vontade e do corao, mas apressa-se a indicar que a vontade conduz ao amor e, consequentemente, o amor no
pode permanecer como desejo interior, devendo manifestar-se na ao. H uma
relao visvel entre o interior e o exterior: aquilo que eu fao revela quem eu sou.
A espiritualidade salesiana envolve-se em todas as nossas aes. Nenhuma ao
em si mesma trivial. Todas as nossas aes podem e devem ser inspiradas pelo
amor. Uma das tarefas da direo espiritual na tradio salesiana justamente
animar os jovens a irem mais alm de si mesmos, pelos atos de amor que se apresentam normalmente em nossa vida cotidiana.

O amor sempre e ao mesmo tempo interior e exterior, assim como
sempre afetivo e efetivo. Esta verdade sintetizada na frase salesiana, tirada
do Cntico dos Cnticos: Guarda-me como o sinete sobre teu corao, como o
sinete sobre teu brao (Ct 8,6). O que S. Francisco entende com esta expresso
que a espiritualidade verdadeira e autntica a do amor que se manifesta na ao.
Por isso, Francisco muito cauteloso diante daqueles que concebem a espiritualidade mais em termos de alterao da conscincia ou de um simples sentir-se
bem. No somos capazes de controlar como nos sentimos, mas podemos controlar aquilo que decidimos fazer. No precisamos sentir amor para fazer obras de
amor. Sentir-nos bem ou ter uma experincia religiosa extraordinria no critrio para julgar a autenticidade da prpria espiritualidade. Para pr os ps no cho,
S. Francisco recorda-nos que no o voo das experincias msticas que garante
a santidade, mas o fazer as coisas por amor. Portanto, a pessoa a quem menos
sentimos amar aquela que constitui um desafio para o nosso amor, mais do que
qualquer outro sentimento mstico que possamos ter. Sobre isso, est muito de
acordo com S. Teresa de vila; ela repetia que a garantia da santidade no so as
experincias msticas, mas as boas obras.137
OEA III, 23.
Em S. Teresa, a tarefa mais elevada da orao idntica ao xtase atravs da caridade em Francisco: Se a alma se entretm frequentemente com Ele, como seria obrigatrio, acaba por esquecerse de si mesma para esgotar todas as suas preocupaes na busca do melhor modo de satisfaz-lo e
em saber em quais coisas e por quais caminhos possa demonstrar-lhe o amor que lhe tem [...]. A isto
tende o matrimnio espiritual: produzir obras e obras []. Rezemos no para nos deleitarmos, mas
com o objetivo de recolher novas energias para servir ao Senhor. [...] Marta e Maria devem manter
136
137

130


A pedra angular, qual sempre retornamos, o lema salesiano viver Jesus. Isso constitui a maneira de viver a nossa vocao batismal, atravs da qual
vivemos unidos com Cristo. A nossa vida toda consiste em fazer com que esta
realidade se torne sempre mais viva. Devemos procurar ser, cada dia mais, aquilo
que j somos pelo batismo e aquilo que Jesus por natureza: o Filho de Deus.138
Viver Jesus no , pois, apenas um pensamento piedoso, mas deve ser entendido, antes de tudo, como o mesmo amor de Jesus que se esvazia de si mesmo,
alcanando seu pice na entrega sobre a cruz, em plena conformidade com a vontade do Pai. Ao diretor espiritual confiada a misso de conduzir o jovem para o
mistrio da morte e ressurreio de Jesus. Isso envolve o abandono amoroso,
que s possvel se o seu Amor vive em ns e se estamos certos de sermos os
amados, nos quais o Pai se compraz. Essa a liberdade dos filhos que so profundamente amados, de modo que possamos afastar o nosso corao cristo de
todas as coisas, para poder conhecer e seguir a vontade de Deus.139

Se desapegarmos o nosso corao, ser apenas para uni-lo mais plenamente a Jesus; por isso, a espiritualidade salesiana pode ser considerada de vrias
formas como espiritualidade da unio. Ns no nos centramos naquilo que renunciamos, mas em Jesus; por Ele que queremos sacrificar-nos. Como Jesus,
isso se d atravs do caminho da cruz, porque envolve morrer para ns mesmos,
o que s se torna evidente no servio desinteressado. por essa razo que aquilo
que indica o nosso crescimento espiritual no est apenas nos sentimentos intensamente religiosos, mas no esvaziar-nos a ns mesmos para servir aos outros.
Como tal, o xtase da ao pode existir sem o xtase na orao.140 O contrrio,
porm, no verdadeiro, pois jamais existiu um santo que no tivesse o xtase
da vida e das aes, obtido mediante o ir alm de si mesmo e das prprias inclinaes naturais.141 Por meio desta transformao em Cristo, obtida atravs do
fogo do Esprito, o jovem comea a perceber a chama que atua em si. Entra mais
plenamente no itinerrio da santidade, por meio do qual Jesus vive nele.

o ritmo; para a verdadeira hospitalidade tambm devem dar algo de comer ao Senhor. [...] Por que a
alma da orao a caridade, sempre em busca de oportunidades providenciais de agir ou sofrer, de
modo que possa agradar ao Senhor (Il Castello Interiore, Settime Mansioni, cap. 4, pars. 6 e 12).
138
F. CORRIGNAN, The Spirituality of St Francis de Sales, cit., 12.
139
OEA XII, 363. Carta to Jane Frances de Chantal, 14th October, 1604.
140
J. S. LANGELAAN, Ecstasy of Action: Review for Religious 36 (1977) 270.
141
OEA V, 30.

131

Concluso

H, sem dvida, guias espirituais na tradio salesiana; mas podemos falar
de um mtodo caracterstico que seja claramente reconhecido como salesiano?
O que h um itinerrio inaciano de direo espiritual, baseado fundamentalmente no esquema e nos paradigmas dos Exerccios Espirituais.142 Os amplos
escritos de S. Francisco de Sales, particularmente as suas Cartas, a Introduo
Vida Devota e o Tratado do Amor de Deus oferecem uma extraordinria sabedoria para o itinerrio espiritual, mas no um mtodo enquanto tal. Mais ainda: a
insistncia na liberdade de esprito atravs da exaltao da simplicidade, com a
sua desconfiana natural por um mtodo, parecem ir contra todo mtodo estruturado de direo espiritual. O que se torna ainda mais evidente levando-se em conta a sua insistncia no corao como ponto de partida para o itinerrio espiritual.
O que pode ser mais pessoal e nico do que o corao humano? Mesmo que j
saibamos tudo isso, procurei, no obstante, oferecer um modelo que corresponda
direo espiritual na tradio salesiana.

O ponto de partida claro: comear com o corao. A meta que se quer
alcanar igualmente clara: a unio da nossa vontade com a vontade do Pai, imitando Jesus. Como podemos caminhar, a partir do corao at a unio com Deus?
S. Francisco no nos oferece uma abordagem estruturada, mas indiquei alguns
de seus aspectos essenciais que podem ser utilizados como um mapa nessa viagem. Sublinhei especialmente os dois polos da resistncia e da atrao. A nossa
resistncia vontade de Deus procede, sobretudo, do pecado, do amor-prprio
e dos desejos desordenados. Se quisermos levar a cumprimento o crescimento
espiritual preciso que tudo isso seja identificado, estando cientes disso e procurando super-lo por meio da caracterstica bondade (amorevolezza) salesiana. Ao
mesmo tempo, o caminho pelo qual Deus procura atrair o nosso corao com suas
inspiraes deve ser identificado e levado adiante por meio de decises concretas
na vida cotidiana do jovem. A abertura a estas inspiraes torna-se possvel atravs da orao do corao (vocal e mental) e do servio desinteressado (o xtase
da ao). Atuando dessa maneira, sob a orientao do Esprito Santo, o corao
do jovem transforma-se progressivamente, de modo que Jesus possa viver nele/
nela. Nossa verdadeira vida, portanto, est escondida em Cristo, a ponto de se
M. WRAY, The Map of the inner journey: Spiritual Direction from a Carmelite perspective:
Mount Carmel 59 (Jan-March, 2011) 24.
142

132

viver uma vida que normal em todas as suas expresses exteriores.143 Atravs deste processo ns nos descentramos de maneira progressiva, pois o nosso
centro de gravidade orienta-se de ns para Jesus, que comea a viver em nosso
interior. Isso nos leva meta da direo espiritual na tradio salesiana que consiste em deixar que a nossa vida se encontre no corao, onde habita Deus.144 A
transformao interior revela-se na vida do jovem como uma superabundncia de
amor em favor dos outros, com um esprito de compaixo que manifeste Cristo.

143
144

OEA III, 6.
So Bernardo, De Diversis, 5,4.

133

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So Francisco de Sales e o acompanhamento espiritual


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137

SEGUNDA PARTE
So Joo Bosco
e o acompanhamento espiritual

A experincia
da direo espiritual vivida
por Dom Bosco nos anos do
Colgio eclesistico de Turim
(1841-1844)

Giuseppe Buccellato, sdb


Antes de tomar uma resoluo definitiva fui a Turim para aconselhar-me com
o padre Cafasso, que se tornara desde alguns anos meu guia nas coisas espirituais e temporais. O santo sacerdote ouviu tudo, as ofertas de remunerao, a
insistncia de parentes e amigos, meu grande desejo de trabalhar. Sem hesitar
um instante dirigiu-me estas palavras: O senhor tem necessidade de estudar
moral e pregao. Recuse por ora qualquer proposta e venha ao Colgio Eclesistico. Segui prazerosamente o sbio conselho, e a 3 de novembro de 1841
entrei para o referido Colgio.1


Nos meses aps a sua ordenao presbiteral, Dom Bosco, como muitos
outros jovens presbteros da sua diocese e do seu tempo, tem pela frente um difcil discernimento. A necessidade de encontrar o necessrio sustento leva alguns
a aceitarem encargos ocasionais, expondo-se ao risco de perderem o esprito
eclesistico. Vrios deles que, por talento, piedade e virtude, davam esperanas
de se tornarem zelosos operrios lia-se num dos primeiros esboos de Regulamento do Colgio Eclesistico , depois de ordenados sacerdotes, no espao fatal
entre a ordenao e a destinao a uma ocupao fixa, perdem o fervor e o zelo,
e se tornam inteis.2

A obedincia ao sbio conselho de Cafasso assinala o incio do tempo
forte mais fecundo da experincia espiritual e apostlica de Dom Bosco.
1
SO JOO BOSCO, Memrias do Oratrio de so Francisco de Sales 1815-1855, Traduo de
Fausto Santa Catarina, 3 edio, revista e ampliada, aos cuidados de Antnio da Silva Ferreira,
Editora Salesiana, So Paulo 2005, 116-117. A seguir, abreviaremos este texto com a sigla MO.
2
Arquivo dos Oblatos de Maria Virgem (AOMV) [II Reg.] S. II, 255. Os escritos editados e inditos,
conservados no Arquivo dos Oblatos de Maria Virgem na casa geral em Roma, foram reproduzidos
por meios eletrnicos do banco de dados do Centre Informatique et Biblede Maredsous (Blgica) e
publicados impressos: P. B. Lanteri,Scritti e documenti darchivio, I-IV, Roma-Fossano 2002.

141


Sabemos pelas Memrias do Oratrio que o primeiro verdadeiro guia
espiritual de Dom Bosco foi o padre Calosso. Embora Joo Bosco fosse ainda
adolescente, a conscincia reflexa daquela relao de acompanhamento marcou
indelevelmente a sua memria. Fiquei sabendo, assim, quanto vale um guia estvel escreve Dom Bosco nos anos da maturidade , um fiel amigo da alma, que
at ento eu no tivera.3

O acompanhamento de Cafasso, especialmente no contexto do Colgio
Eclesistico de Turim, decisivo e muito concreto para o amadurecimento espiritual e apostlico de Dom Bosco. Se fiz algum bem escrever ele mesmo ,
devo-o a este digno eclesistico, em cujas mos coloquei minhas decises, estudos e atividades.4

Para compreender o quanto esta relao foi fecunda e determinante, procuraremos reconstruir alguns elementos essenciais das origens e do projeto formativo do Colgio, alm de iluminar a figura de quem, por vinte e cinco anos, foi
sua alma, S. Jos Cafasso; alis, o prprio Cafasso frequentou o Colgio a partir
de 1833, ano da sua ordenao presbiteral. Os ensinamentos de Cafasso fundemse de forma vital com o projeto do Colgio e com o esprito de S. Afonso Maria
de Ligrio, e representam as linhas fundamentais da especfica pedagogia da
santidade que est na base deste influxo de relaes ntimas, que duraram pelo
espao de trinta anos.5 Esta a primeira razo, realmente objetiva, pela qual a
espiritualidade de Cafasso se transfundiu em So Joo Bosco.6

Na primeira parte, de natureza histrico-analtica, acenaremos s origens
do Colgio, ao seu projeto formativo, figura de Cafasso, s impresses subjetivas de Dom Bosco muitos anos aps a sua experincia como interno. Na segunda parte poremos em relevo alguns elementos fundamentais da experincia
espiritual e apostlica de Dom Bosco, cujas razes afundam na relao de acompanhamento espiritual pessoal, vivida no especfico contexto dos trs anos transcorridos como aluno interno do Colgio. Finalmente, no apndice, acenaremos
a algumas questes abertas, a partir da experincia concreta e histrica de Dom
Bosco, mas relacionadas com o contexto atual e as condies sociais e culturais
de hoje.
MO 43.
Ibid. 120.
5
E. Valentini, Presentazione in San Giuseppe Cafasso. Memorie pubblicate nel 1860 da San
Giovanni Bosco, Turim 1960, 6.
6
Ibid,
3
4

142

1. AS ORIGENS DO COLGIO ECLESISTICO DE TURIM



O Colgio Eclesistico de Turim surge em 1817,7 por inspirao do venervel Pio Bruno Lanteri e por iniciativa do telogo Lus Fortunato Guala, nos locais
anexos igreja de S. Francisco, em Turim, na rua que ainda hoje traz o nome do
poverello de Assis.

A abertura do Colgio foi um acontecimento denso de consequncias para
a igreja piemontesa;8 de fato, com o Colgio nascia em Turim uma nova escola
espiritual de sacerdotes, dotada de clara identidade, que os distinguia daqueles
formados pela Rgia Universidade de Teologia. Ao rigorismo desta no mbito da
teologia moral, contrapunha-se da parte dos formadores do Colgio o desejo de eliminar os ltimos resduos de jansenismo (ou daquilo que, com ou sem razo, assim
era chamado)9 e uma defesa sem reservas da autoridade do Papa. Esta diferena de
perspectiva levar Dom Gastaldi, em 1878, deciso de fechar o Colgio, acusado
por alguns de laxismo; ser reaberto pelo sobrinho de Cafasso, o cnego Jos Allamano, fundador dos Missionrios da Consolata, em 1882.10

O colgio Eclesistico de Turim deve o seu prestgio ao papel exercido por
ele no Piemonte e tambm em outras partes11 na difuso da teologia moral de S.
Afonso, e a algumas eminentes figuras de reitores, como S. Jos Cafasso e seu
sobrinho, o beato Jos Allamano, ou de alunos, como S. Joo Bosco, S. Leonardo
Murialdo, o beato Clemente Marchisio.

O escopo declarado do Colgio era reunir, por dois ou trs anos, jovens
sacerdotes, ordenados havia pouco, para uma preparao mais prxima ao ministrio presbiteral, em particular com vistas pregao e habilitao ao ministrio das confisses. Uma incisiva expresso de Colombero, ex-aluno do Colgio e
bigrafo de Cafasso, descreve-o como um grupo de sacerdotes que precisam de
uma ltima demo para se solidificar na virtude, revestir-se do esprito eclesistico e sair preparados para o exerccio do sagrado ministrio.12
O decreto oficial da aprovao por parte de Dom Chiaverotti traz a data de 23 de fevereiro de 1821.
Para o aprofundamento da histria e do papel exercido pelo Colgio Eclesistico e, em particular,
por Cafasso na Igreja piemontesa, veja-se a rica bibliografia em G. TUNINETTI, San Giuseppe
Cafasso. Nota storico-biografica, em G. CAFASSO, Esercizi Spirituali al clero, aos cuidados de L.
Casto, Effat, Cantalupa (TO), 2003, 28-33.
9
Cf. G. PENCO, Storia della Chiesa in Italia, II, Milo, 1977, 266.
10
Para aprofundar os motivos que levaram crise e ao fechamento do Colgio, Cf. G. TUNINETTI,
Lorenzo Gastaldi 1815-1883, II, Roma, 1988,165-184.
11
Cf. J. Guerber, Le ralliement du clerg franais la morale liguorienne, Universit Gregoriana, Roma, 1973.
12
G. COLOMBERO, Vita del servo di Dio D. Giuseppe Cafasso, con cenni storici sul Convitto
ecclesiastico di Torino, Turim 1895, 79-80.
7
8

143


luz dos documentos que acompanham a sua fundao, a ideia de instituir
um Colgio nos locais anexos igreja de S. Francisco de Assis do venervel Pio
Bruno Lanteri. Um memorial redigido por ele,13 entre novembro e dezembro de
1816, conservado em Pinerolo no arquivo geral dos Oblatos de Maria Virgem e
dirigido ao vigrio capitular monsenhor Gonetti,14 esclarece as intenes do fundador de implantar em Turim uma comunidade de Oblatos, aos quais confiaria,
alm da pregao de Exerccios Espirituais, das confisses e da assistncia aos
enfermos, a gesto de um Colgio para jovens eclesisticos.15
O estabelecimento da dita Congregao afirma Lanteri nesse memorial ofereceria aos novis sacerdotes, que ainda devem dedicar-se ao estudo da moral
prtica e que so obrigados a morar em casas de famlia com prejuzo para o
esprito eclesistico [], a vantagem de uma mdica penso, de acordo com
o seminrio que a Congregao erigiria por conta prpria.16 Sem [um Colgio]
acrescenta mais adiante , desaparecem as esperanas dos superiores e se
tornam inteis as despesas feitas num quinqunio para a juventude.17


O primeiro projeto de Lanteri no recebeu a necessria aprovao, no
sabemos se por oposio da autoridade eclesistica ou da civil.18 Em todo caso,
nesta altura, entra em jogo o telogo Guala, amigo de Lanteri, e apresenta ao rgio ecnomo dos bens eclesistico, Andr Palazzi, um novo memorial, que traz a
data de 8 de agosto de 1817.19

Tornando-se reitor da Igreja de S. Francisco em 1808, com a idade de trinta
e trs anos, Lus Maria Fortunato Guala, j havia algum tempo, tinha comeado
a acolher na pequena hospedaria de que dispunha, uns dez jovens sacerdotes,
O texto integral deste memorial reproduzido por Mario ROSSINO, em apndice, no seu artigo Il
Convitto Ecclesiastico di S. Francesco dAssisi. La sua fondazione, in Archivio Teologico Torinese,
I (1995) 473-475.
14
Mons. Emanuel Gonetti fora vigrio capitular da diocese de Turim no perodo que vai da morte
de dom Jacinto della Torre (1814) at a nomeao de dom Columbano Chiaverotti.
15
Cf. G. USSEGLIO, Il Teologo Guala e il convitto ecclesiastico di Torino, Turim 1948, 11.
16
Arquivo dos Oblatos de Maria Virgem (AOMV) S. I, vol. VII, fasc. 3, doc. 289.
17
Ibid,
18
Para aprofundar a questo, veja-se a contribuio de Mario ROSSINO, j citado, em particular
s pginas 458-461.
19
Cf. SACRA RITUUM CONGREGATIO, Beatificationis et canonizationis servi Dei Pii Brunonis
Lanteri, fundatoris Congregationis Oblatorum M.V. positio super introductione causae et super
virtutibus ex officio compilata, Roma, 1945, 213.
13

144

com o objetivo de integrar a formao recebida no seminrio, por meio de conferncias dirias sobre a teologia moral prtica.20 Esta era, portanto, a situao
pessoal do Telogo Guala quando, trs anos aps este reconhecimento que testemunha a estima e a aprovao das autoridades civis e eclesisticas, apresenta a
Andr Palazzi uma solicitao a fim de obter o uso dos locais para o Colgio.
Neste novo documento ele no acena Congregao dos Oblatos; um documento dramtico, at mesmo apaixonado. Guala refere que o jovem clero, sem
uma adequada assistncia nos primeiros anos depois da ordenao, corre o risco
de perder o esprito eclesistico. Ele escreve:
Muitssimas daquelas plantas, que no quinqunio davam esperanas de timo
xito, tornam-se estreis pela falta de ulterior cultivo [...]. Embora no seja
possvel descrever, no entanto pode-se toc-lo com as mos, quo grande seja
o dano que da deriva para as almas e quanto ele deva ser lamentado nestes
tempos de tanta penria de ministros sagrados.21


A resposta de Palazzi, que traz a mesma data, positiva. Assim, o terceiro
andar do convento de S. Francisco de Assis cedido ao uso proposto, para utilidade da religio.22

A ideia do Colgio, promovida por Lanteri e compartilhada por Guala, que
aproximadamente dezesseis anos mais novo do que ele, a partir deste momento
tem um s protagonista e promotor, o telogo Guala.23 Lanteri, embora mantendo
sempre timas relaes24 com o seu amigo e discpulo, se dedicar sua nascente
Congregao dos Oblatos.
Cf. G. USSEGLIO, Il teologo Guala e il Convitto Ecclesiastico di Torino, cit., 14.
SACRA RITUUM CONGREGATIO, Beatificationis et canonizationis servi Dei Pii Brunonis
Lanteri, cit., 213.
22
Cf. SACRA RITUUM CONGREGATIO, Beatificationis et canonizationis servi Dei Pii Brunonis
Lanteri, cit., 215. O decreto oficial de aprovao eclesistica traz a data de 23 de fevereiro de 1821
e assinado por dom Columbano Chiaverotti; dois anos antes, o Vigrio Gonetti tinha aprovado a
primeira redao do Regulamento.
20
21

23

A questo controversa sobre a paternidade do Colgio Eclesistico, que animou durante anos
o debate entre os partidrios de Guala e os de Lanteri, depois da leitura destes documentos, a
ns parece esclarecida. Em todo caso, sobre este tema, veja-se o artigo j citado do padre Mario
ROSSINO Il Convitto Ecclesiastico di S. Francesco dAssisi, em particular s pginas 470-471.

24

Como prova desta afirmao, vejam-se as cartas que Guala e Lanteri continuaro a trocar entre si,
muitas das quais se conservam na positio Lanteri. No testamento de Lanteri, o Colgio, na pessoa
de Guala, nomeado herdeiro universal, caso nesse meio tempo a Congregao dos Oblatos fosse
extinta (Cf. P. CALLIARI (ed.), Carteggio del Venerabile Pio Brunone Lanteri (1759-1830) fondatore della Congregazione degli Oblati di Maria Vergine, V, Turim, 1976, 413.

145


Tambm possvel, segundo afirma Calliari, que alguns motivos de prudncia impedissem Lanteri de expor-se em primeira pessoa na fundao, da
qual, com toda probabilidade, era o verdadeiro idealizador e inspirador; Guala, na
verdade, era discpulo de Lanteri, assim como este era discpulo de Diessbach,25
conforme exporemos.

O fato que o ideal no qual o Colgio se inspira e que anima Guala o
mesmo de Lanteri e deriva certamente do programa da Amizade Sacerdotal,26
associao de sacerdotes fundada em torno de 1783 por Nicolau von Diessbach,
da qual tanto Lanteri quanto Guala fizeram parte. Depois, a partir de 1815, os
encontros da Amizade Sacerdotal foram realizados no Colgio e tiveram como
animador o prprio telogo Guala.27
1.1. Pio Bruno Lanteri

Pio Bruno Lanteri nasceu em Cuneo em 12 de maio de 1759. Stimo filho
de um mdico, conhecido por algumas publicaes sobre medicina, mas tambm
pela sua bondade crist para com os pobres entrara ainda jovem para a Ordem dos
Cartuxos, talvez preocupado pelo tema da salvao eterna, to apreciado pelos
pregadores do tempo; no suportando, porm, a rigidez da regra, teve que sair
pouco tempo depois.

Estabeleceu-se em Turim, onde frequentou a faculdade de Teologia da Rgia Universidade, e teve como professor Nicolau Jos Alberto von Diessbach.

Diessbach tinha nascido em 1732 em Berna. Ficando vivo, em 1759 entrou para a Companhia de Jesus na cidade de Turim; nesta cidade continuou a
trabalhar, mesmo depois da supresso da Companhia em 1773. Amigo do redentorista checo S. Clemente Maria Hofbauer, conhecera S. Afonso Maria de Ligrio
e era um ligoriano entusiasta. Entre 1778 e 1780 fundou em Turim a Amizade
Dessa opinio Paolo CALLIARI quando escreve: Eis um ponto de referncia certo, ao qual
preciso retornar sempre que se buscam as verdadeiras origens do Colgio Eclesistico: o trinmio
Diessbach-Lanteri-Guala (P. CALLIARI, Gli Oblati di Maria. Fondazione a Carignano. Primi
quattro anni di vita. 1816-1820, San Vittorino 1980, 123). E mais adiante: (Lanteri), homem de
ponta, que enfrenta com coragem as situaes mais rduas e intrincadas quando se trata de um
bem a realizar ou de um mal a impedir, sabe eclipsar-se em tempo para no aparecer em pblico
(163). O estudo de CALLIARI sobre o Colgio rico e documentado (Cf. em particular as pginas
118-174).
26
Os estatutos da Amizade Sacerdotal so referidos por C. Bona, Le Amicizie. Societ segrete
e rinascita religiosa (1770-1830), Turim, 1962, 503-511.
27
Cf. G. USSEGLIO, Il teologo Guala e il Convitto Ecclesiastico di Torino, cit., 17.
25

146

Crist, uma associao secreta de clrigos e leigos, ligados por votos, tendo por
escopo a perfeio crist, a promoo da difuso da boa imprensa e a luta contra
o jansenismo e o regalismo ou jurisdicionalismo, e uma adeso convicta ao Papa
no contexto do ultramontanismo.28

O mesmo Diessbach fundara em 1783 a Amizade Sacerdotal, uma escola
de perfeio evanglica e de preparao ao apostolado mediante a pregao, a
teologia moral prtica e a difuso da boa imprensa.

escola de Diessbach, Lanteri conseguir envolver tambm muitos leigos
na ao de reconquista cultural da sociedade, utilizando como instrumento privilegiado a propagao do livro em todos os ambientes, por meio da leitura, do
estudo e do exame de cada obra, e a sua difuso nas diversas classes sociais; em
particular, sua melhor arma para opor-se difuso de ideias e atitudes jansenistas
no seio do mundo catlico era a difuso das obras de S. Afonso Maria de Ligrio.

Envolvido nos trgicos acontecimentos das relaes entre Napoleo e Pio
VII, defendeu com fora a autoridade e o primado pontifcio e, por isso, foi vigiado pela polcia francesa.29 Depois de 1814 retomou seu apostolado, reorganizando a Amizade Crist em duas diferentes associaes, a Amizade Catlica,
reservada aos leigos, e a Amizade Sacerdotal.

Neste contexto social e religioso, amadurecer a ideia da fundao dos
Oblatos de Maria Virgem. Em 1816, Lanteri, atento aos sinais dos tempos e em
continuidade com o programa da Amizade Sacerdotal, funda em Carignano uma
Congregao que tem como finalidade difundir a boa imprensa, lutar contra os
erros mais comuns, sobretudo aqueles contra o Papa e a Santa S, formar bons
eclesisticos e eficazes pregadores. Instrumento apostlico privilegiado a pregao dos Exerccios Espirituais pelo mtodo de santo Incio.30 Lanteri fora iniciado nesse tipo de obra por Diessbach.31
Cf. G. De Rosa, Il movimento cattolico in Italia. Dalla Restaurazione allet giolittiana, Bari,
19882, 3-4. A obra mais completa sobre o tema das Amizades continua sendo a j citada do padre
Candido Bona.
29
Cf. G. De Rosa, Il movimento cattolico in Italia, cit., 6-7. Veja-se tambm o cap. 27, sob o ttulo Un prete temuto da Napoleone, di P. CALLIARI, Servire la Chiesa. Il Venerabile Pio Brunone
Lanteri (1759-1830), Caltanissetta 1989, 120-124.
30
O padre Timteo Gallagher demonstrou amplamente a centralidade dos Exerccios de S. Incio na
espiritualidade e no carisma do fundador dos oblatos; estes, ainda mais que os jesutas, que Lanteri
via empenhados em outras obras educativas, se consagravam pregao dos exerccios segundo
o mtodo de Santo Incio, para benefcio dos padres e dos leigos de qualquer categoria ou classe
(Cf. T. Gallagher, Gli Esercizi di S. Ignazio nella spiritualit e carisma di fondatore di Pio
Brunone Lanteri, Roma, 1983, 37-47).
31
Cf. C. Bona, Le Amicizie, cit., 283.
28

147


Sua Congregao, dissolvida quatro anos mais tarde por causa de algumas
incompreenses com o ento arcebispo dom Chiaverotti, foi reconstituda em
1826 com a aprovao do Papa. Lanteri falecer em Pinerolo, no Piemonte, em
1830.32
1.2. Os Exerccios Espirituais e o santurio de Santo Incio no alto de Lanzo

Outro elemento indispensvel para compreender a experincia espiritual
de Dom Bosco e a identidade formativa do Colgio a sua relao com o santurio de S. Incio, no alto do municpio de Lanzo, perto de Turim.

A prtica dos Exerccios Espirituais uma das caractersticas mais interessantes da espiritualidade do sculo XIX. Embora j existindo na Europa nos
dois sculos anteriores, ela se difundiu e quase generalizou no sculo XIX, no
somente para as ordens religiosas, mas tambm para o clero secular, os leigos
devotos e os alunos das escolas.33

Mais especificamente, a piedade dos leigos sustentada e animada pelas
misses populares, que podem ser consideradas como uma especial adaptao
dos exerccios;34 ao passo que os retiros anuais, fechados ou abertos, so praticados obrigatoriamente nas casas religiosas e nos seminrios a partir do fim do
sculo XVII, por disposio de Clemente XI e Bento XIV.35

A obra de Lanteri, propagador entusiasta do mtodo de S. Incio, recebeu
de certa forma sua confirmao oficial na diocese de Turim desde 1807, quando, junto com o telogo Lus Guala, foi encarregado de pregar aos sacerdotes da
diocese.

Guala e Lanteri decidiram restaurar e adaptar para essa finalidade os locais
anexos a um antigo santurio que, depois da supresso da Companhia de Jesus
em 1773, fora anexado cria arquiepiscopal de Turim e cara em estado de quase completo abandono.
Sobre a espiritualidade de Lanteri e suas relaes com Diessbach, veja-se tambm A. Brustolon, Alle origini della Congregazione degli Oblati di Maria Vergine. Punti chiari e punti oscuri,
Turim 1995, em particular s pginas 82-90.
33
Cf. J. de Guibert, La spiritualit della Compagnia di Ges. Saggio storico, Roma, 1992,
386-387.
34
Sobre os pregadores neste perodo da histria da espiritualidade italiana, veja-se G. TUNINETTI,
Predicabili: nellotto-novecento, em Dizionario di omiletica, aos cuidados de M. Sodi e A. M.
Triacca, Elledici-Velar, Leumann-Gorle 2002, 1172-1177.
35
Cf. Enchiridion clericorum nn. 139 ss; G. Nicolai, Il buon rettore del seminario, Turim, 1863.
32

148


A construo do santurio de S. Incio,36 aproximadamente a 920 metros
de altitude, pouco distante da cidade de Lanzo, uns quarenta quilmetros a noroeste de Turim, fora completada em 1727 pelos Jesutas, que desde 1677 se tornaram proprietrios de uma capelinha onde se venerava o Santo,37 e dos terrenos
circunstantes.

Nos primeiros anos, as experincias no foram isentas de incmodos e
dificuldades materiais, mas j em 1808 a casa foi aberta oficialmente.

Depois, em 1814, o telogo Lus Guala que alguns anos antes fora nomeado reitor da igreja de S. Francisco de Assis, tornou-se administrador do santurio
por nomeao do arcebispo de Turim, dom Jacinto della Torre;38 nomeao que
ser confirmada em 1836 por dom Fransoni.

Esta circunstncia particular liga as vicissitudes do santurio s do Colgio
Eclesistico e enriquece de grande concretude o projeto formativo do Colgio. O
apostolado dos Exerccios permanece como um horizonte constantemente presente e uma proposta-sntese que recolhe os esforos relacionados ao itinerrio
formativo do Colgio e como diremos ao modelo de presbtero que o projeto do
Colgio tende a formar.

O regulamento do Colgio previa que cada ano escolar fosse concludo
com os Exerccios no santurio de S. Incio;39 ser precisamente no fim do primeiro ano como interno que Dom Bosco far, pela primeira vez, os seus Exerccios em S. Incio.
Para estas e outras notcias histricas sobre o santurio, veja-se: G. TUNINETTI, Il Santuario di
SantIgnazio presso Lanzo. Religiosit, vita ecclesiale e devozione (1622 - 1991), Pinerolo (TO)
1992; F. DESRAMAUT, Don Bosco en son temps (1815-1888), Turim 1996, 160-163; Storia del
Santuario di SantIgnazio di Loyola presso Lanzo Torinese, Turim, 1894; L. NICOLIS DI ROBILANT, Vita del Venerabile Giuseppe Cafasso, II, Turim 1912, 265-273.
37
Em 1622, Incio de Loyola foi proclamado santo. Seis anos mais tarde, na vila de Mezzenile in
Val di Lanzo, uma novena ao Santo pusera fim a uma perigosa invaso de lobos; no ano seguinte,
uma mulher de um povoado vizinho, prximo ao lugar onde depois surgir o santurio de S. Incio
na colina de Lanzo, viu uma misteriosa apario, que depois se repetiu. Naquele lugar, a devoo
popular quis erigir uma capelinha dedicada a S. Incio; o pequeno templo foi teatro de numerosas
peregrinaes e de fatos prodigiosos atribudos intercesso do Santo (Cf. L. NICOLIS DI ROBILANT, Vita del Venerabile Giuseppe Cafasso, II, cit., 264-268).
38
Em apndice ao texto de Tiago COLOMBERO, j citado, possvel encontrar tambm as Normas
para a direo dos Exerccios Espirituais no santurio de S. Incio, compiladas pelo prprio telogo Guala (367-379). No difcil notar os numerosos pontos de contato entre este regulamento e o
compilado pelo padre Rua, logo depois do terceiro Captulo Geral dos Salesianos (1883), que tinha
dedicado ampla reflexo ao tema dos exerccios. O texto manuscrito compe-se de treze grandes
pginas e contm numerosas correes do prprio Dom Bosco (Cf. G. BUCCELLATO, Gli esercizi
spirituali nellesperienza di Don Bosco e alle origini della societ di San Francesco di Sales, em
M. Ko (ed.), tempo di ravvivare il fuoco, Roma 2000, 128-132).
39
G. COLOMBERO, Vita del servo di Dio D. Giuseppe Cafasso, cit., 361.
36

149


Colgio e santurio de S. Incio adquiriram, assim, um papel central na
formao teolgica e na vida espiritual do clero piemonts do sculo XIX. Em
particular, o santurio foi um pouco o corao pulsante de toda a diocese de
Turim durante os anos difceis do Ressurgimento italiano.

morte de Guala, Cafasso, que havia vrios anos j iniciara seu
apostolado pregando exerccios no santurio, assumiu sua administrao. O
sucesso de suas pregaes assim nos informa o padre Lucio Casto comumente atestado por muitssimos testemunhos: o mais das vezes, em S. Incio
no havia lugar para todos que desejavam fazer os Exerccios Espirituais com
ele.40

2. O PROJETO FORMATIVO DO COLGIO ECLESISTICO:


CONTEDOS E MTODO

Aps iluminar a origem e as instncias que esto na base da existncia do
Colgio, vamos sintetizar as linhas mestras do seu projeto formativo. Pensamos poder isolar pelo menos trs ingredientes principais deste composto:

- estudo da moral prtica;

- exercitaes de sagrada eloquncia;

- exercitaes apostlicas.

Vamos examinar um por um desses ingredientes, procurando evidenciar,
de forma analtica, a metodologia adotada e os contedos a transmitir.
2.1. O estudo da moral prtica

O objetivo mais imediato das conferncias de moral era a preparao
para o exerccio do ministrio das confisses; durante a permanncia no Colgio, os jovens presbteros faziam apenas um exame, destinado a obter a faculdade de confessar.

Conforme o terceiro regulamento e o testemunho dos internos, podemos
afirmar que as conferncias de moral eram ordinariamente duas, uma pela manh, em torno das 11 horas, e uma noite, s 19 horas, que se conclua com uma

L. Casto, Introduzione alle Meditazioni al clero, em G. CAFASSO, Esercizi spirituali al clero.


Meditazioni, Turim 2003, 36.
40

150

confisso prtica.41 A conferncia da manh era reservada s para os internos


e ministrada por um repetidor; a conferncia da tarde era pblica e conduzida
pelo telogo Guala (at 1844), ao passo que Cafasso, que antes de suceder a
Guala fora repetidor de moral, no fim da conferncia da tarde, geralmente fazia
o papel de penitente na simulao de uma confisso.42

O texto oficial adotado ou, deveramos dizer imposto, nas conferncias
de Turim era o Commentaria theologiae moralis de Antnio Jos Alasia,43 de
orientao probabiliorista; ou um seu compndio em quatro volumes, editado
pelo turinense ngelo Stuardi, com o ttulo de Theologia Moralis breviori ac
faciliori methodo in quattuor tomos distribuita,44 dito familiarmente Alasiotto;
deve-se notar, porm, que o texto de Alasia, no Colgio, era apresentado e explicado em sentido afonsiano.

De fato, j desde 1828, o telogo Guala enviara a Roma uma splica para
tentar obter uma resposta oficial da Santa S, declarando segura e conveniente
a doutrina de S. Afonso de Ligrio, que, alis, fora beatificado em 1816; seu pedido, porm, no recebeu resposta.45 O esprito da obra afonsiana no obtivera
muito xito entre os moralistas piemonteses.

O fato de no Piemonte prevalecer o rigorismo moral esta a opinio de
Francis Desramaut, bigrafo e estudioso de Joo Bosco no Colgio cremos
que, em parte, se explica sem a necessidade de invocar derivaes jansenistas, mas a partir da reforma dos estudos em favor do tomismo e do agostinismo, reforma que levava afirmao de um probabiliorismo exigente.46


G. COLOMBERO, Vita del servo di Dio D. Giuseppe Cafasso, cit., 359.
Cf. M. ROSSINO, Gli inizi del Convitto ecclesiastico di S. Francesco dAssisi, cap. IV, B, 1, b.
Trata-se de uma pesquisa, nunca publicada, que tenta reconstruir a histria dos primeiros trinta anos
de vida dessa instituio. Uma cpia dos captulos IV e V desse estudo, que tratam em particular
da vida e do ideal sacerdotal do Colgio, foi gentilmente posta nossa disposio pelo autor com
vistas consulta; dado que tal cpia no tem as pginas numeradas, havendo necessidade de cit-la,
mencionaremos o captulo e o pargrafo.
43
Antnio Jos Alasia (1731-1812) foi chefe das Conferncias de Teologia Moral em Turim desde
1871. Em 1783 deu incio a um detalhado tratado de Teologia Moral em 10 volumes, obra concluda
somente vinte anos mais tarde.
44
O texto foi editado pela primeira vez nos anos de 1826-1827 em Turim pela tipografia Alliana e
Paravia.
45
Cf. F. DESRAMAUT, Don Bosco en son temps, cit., 148.
46
Ibid., 148 [trad. nossa.].
41
42

151


A obra de Afonso que melhor se teria prestado para um curso de preparao para o ministrio da confisso era, com toda probabilidade, aquele Homo
Apostolicus que o prprio Pio Bruno Lanteri difundira no Piemonte,47 despendendo muitas energias e dinheiro.48

Em todo caso, a orientao do Colgio tendia a formar um pastor de almas benigno na doutrina e amvel no trato.49

De fato, o objetivo fundamental que brota do pensamento teolgico de S.
Afonso50 o de nunca permitir que o penitente desanime, embora sem renunciar
a desempenhar o papel de juiz.51
Quanto ao sistema teolgico atesta o padre Reviglio no processo de Cafasso
, quer ele professasse o probabilismo ou o probabiliorismo, o certo que
adotava aquele sistema que, nas circunstncias concretas, promovia melhor
a glria de Deus, a converso dos pecadores e a perfeio das almas devotas;
de tal modo que, sem agarrar-se a uma opinio definida, declarava que mudaria a cada momento seu modo de ver, contanto que pudesse promover o bem
dos seus penitentes.52


Conforme atesta um estudo de Rossino, no plano metodolgico, ordinariamente, a conferncia se desenvolvia segundo um esquema prefixado.
Segundo Jos Cacciatore o clculo, mesmo aproximativo, dos exemplares das obras de S.
Afonso que (Lanteri) difundiu, sobretudo do Homo Apostolicus, revela-se impossvel. Pode-se dizer que todas as edies particulares desta obra e de outras obras ascticas e polmicas de Ligrio,
publicadas no Piemonte entre 1790 e 1830, foram feitas por iniciativa e com o concurso financeiro
de Lanteri e das suas trs Amizades (G. Cacciatore, S. Alfonso de Liguori e il giansenismo,
Florena, 1942, 430).
48
Cf. F. DESRAMAUT, Don Bosco en son temps, cit., 174.
49
P. Braido, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libert, I, Roma, 2003, 163. Gioberti
no Gesuita moderno acusar o Colgio de laxismo, alm de jesuitismo (Cf. V. Gioberti, Il gesuita moderno, IV, Npoles 1848, 279-281). Na realidade, a posio do Colgio e em particular de
Cafasso, apresenta-se moderada e se, s vezes, parece inclinar-se mais para o probabilismo do que
para o probabiliorismo, s por contraste com a posio rigorista dominante.
50
Pode-se fazer remontar essa perspectiva prpria espiritualidade de S. Incio. No deixem partir
ningum com o corao amargurado, escrevia S. Incio a Simo Rodrguez. Na segunda regra
sobre o discernimento dos espritos antes da semana dos Exerccios, lemos: prprio do bom esprito transmitir coragem e energias, consolaes e lgrimas, inspiraes e serenidade, diminuindo
e removendo toda dificuldade, para continuar caminhando pelos caminhos do bem.
51
Segundo S. Afonso, as atitudes que um bom confessor deve adotar so quatro: as de um pai, de
um mdico, de um doutor e de um juiz (citado em F. DESRAMAUT, Don Bosco en son temps,
cit., 149).
52
O testemunho referido por M. ROSSINO, Gli inizi del Convitto, cit., cap. V, 5, b.
47

152

Depois da orao, iniciava-se com a leitura do texto de Alasia ou do compndio elaborado por Stuardi; parece que a leitura do texto era confiada a
um dos internos. Em seguida, explicava-se o texto, sem prolongar-se em demasia. Propunha-se um ou mais casos. Solicitava-se a opinio dos presentes.
Intervinha o professor para dar esclarecimentos e a soluo final. Pelo menos
a cada quinze dias propunha-se um caso a ser resolvido por escrito []. A
conferncia pblica distinguia-se por uma particularidade a mais: o exerccio
prtico da confisso.53


Uma curiosidade: alguns testemunhos afirmam que Cafasso, nas conferncias pblicas, no se sentia acanhado em recorrer ao dialeto piemonts para
fazer-se compreender melhor pelos seus ouvintes.54
2.2. As exercitaes de Sagrada Eloquncia

Este outro elemento bsico do projeto formativo do Colgio, em cujo
regulamento declarado ter-se sempre considerado necessrios exerccios de
preparao para o plpito nos jovens Eclesisticos, antes que sejam obrigados
a isso por razes de emprego; por esta razo, j foram emanados pelos nossos
reverendssimos arcebispos providncias a respeito.55

Embora no fosse uma prerrogativa absoluta sua, a escola de eloquncia
parte vital do projeto formativo do Colgio, sobretudo com relao experincia dos Exerccios inacianos. No nos surpreende, portanto, encontrar os
nomes dos jesutas Minini,56 Grossi, Sagrini entre os docentes de eloquncia no
Colgio, em particular nos anos que precederam o reitorado de Cafasso.57
M. ROSSINO, Gli inizi del Convitto, cit., cap. IV, B, 1, d.
Cf. IBID., cap. IV, B, 1, e.
55
G. COLOMBERO, Vita del servo di Dio D. Giuseppe Cafasso, cit., 357. O primeiro dos decretos
ao qual aqui se faz referncia , provavelmente, uma carta de dom Jacinto della Torre, de 26 de
novembro de 1811, publicada novamente no ano sucessivo com algumas especificaes, conforme
afirma o salesiano Pietro Stella (P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosit cattolica, II,
cit., 26). Nas pginas precedentes, o padre Pietro Stella tambm nos informa a respeito da instituio, em 1816, de uma ctedra de eloquncia na Universidade de Turim. A carta dedicada quase
exclusivamente pregao, cuja importncia afirma Tuninetti era sublinhada pela instituio
no seminrio de um trinio de teologia moral prtica e de eloquncia, obrigatrio para o clero depois do quinqunio de teologia (G. TUNINETTI, Predicazione nellOtto-Novecento in Dizionario
di Omiletica, M. Sodi - A. M. Triacca (ed.), cit., 2002, 1240).
56
O padre Fernando Minini pregou as instrues nos primeiros Exerccios Espirituais dos quais
participou em 1842 o jovem sacerdote Joo Bosco, na concluso do seu primeiro ano no Colgio
(Cf. MB II, 122).
57
Cf. M. ROSSINO, Gli inizi del Convitto, cit., cap. IV, II, B, 2, b.
53
54

153


Do testemunho de alguns antigos alunos possvel deduzir que no se
tratava somente de lies tericas, mas tambm de exerccios do plpito,
caracterizados pela proposta de um esboo que depois era posto por escrito e
submetido ao parecer dos professores e, s vezes, tambm dos colegas.58 Cafasso costumava propor um tema de pregao escreve Colombero ou parte de
um sermo a ser composto no espao de quinze dias e, depois, devia ser lido em
pblico na Conferncia, se no erro, aos sbados.59

Para compreender a importncia dada ao ministrio da pregao por Cafasso, que gradativamente assumiu a responsabilidade tambm da escola de
sagrada eloquncia, temos disposio uma instruo preparada por ele para
um curso de Exerccios Espirituais ao clero, inteiramente dedicada a esse tema.
Longe de privilegiar a forma mais que o contedo60 ou de considerar a eloquncia sagrada como pura arte oratria, Cafasso quer que as pregaes no sejam
abstratas, mas prticas e prximas da realidade de quem as ouve.
Deixemos de lado aquilo que nunca ou muito raramente pode acontecer ao
nosso povo escreve na sobredita instruo e falemos o mais que pudermos
das virtudes, dos pecados e dos defeitos em famlia e de todos os dias, da
orao, dos sacramentos, da paz, dos sofrimentos em famlia []; e tratemos
esses pontos de forma adaptada e prtica, de tal modo que todos possam observar em si mesmos a situao que o pregador descreve, mostrando onde se
encontra o mal, e aprender a maneira de remedi-lo.61


Embora o tom moralizante fosse claro, todavia, tambm evidente a
preocupao em evitar certo tipo de pregao intelectual, especulativa, pobre
de afinidades com a vida do auditrio. Ao mesmo tempo, no faltam nesta instruo de Cafasso certo otimismo benvolo e a exortao para encorajar o auditrio, mais do que inquiet-lo, apresentando a virtude e a santidade como
inatingveis.
Ibid. Conservam-se no arquivo da Casa Geral dos Salesianos algumas exercitaes de Dom Bosco compiladas nos anos transcorridos no Colgio (1841-1844). Muitos dos temas tratados so de
evidente provenincia inaciana (Introduo aos Exerccios Espirituais, a morte, o pecado, o fim do
homem, os dois estandartes, a comunho frequente...). Cf. ACS A 225.
59
G. COLOMBERO, Vita del servo di Dio D. Giuseppe Cafasso, cit., 89.
60
Cf. G. TUNINETTI, Predicazione nellOtto-Novecento, cit., 1241.
61
O texto referido por Lucio Casto em Gli Esercizi Spirituali al clero di San Giuseppe Cafasso,
in Archivio Teologico Torinese I (1995) 496.
58

154

No sei donde provm escreve Cafasso , mas ns pregadores temos o


costume e a tendncia de falar com mais frequncia e de boa mente da parte mais difcil que a lei do Senhor pode apresentar e de pr em relevo as
dificuldades em observ-la, mais do que procurar aplainar (as dificuldades)
que se encontram... [] e que, por isso, difcil observar os mandamentos,
difcil fazer uma boa confisso, difcil receber bem a santa comunho, difcil at mesmo ouvir missa com devoo, difcil rezar como se deve, difcil,
sobretudo, chegar a salvar-se, e que so bem poucos os que se salvam; e o
que acontece com tantas dificuldades que, se no so exageradas, pelo menos
so repetidas com frequncia? Os bons se inquietam e desanimam, os maus
perdem a esperana e quase nem mais se preocupam.62

2.3. As exercitaes apostlicas



Outro elemento formativo do Colgio Eclesistico de Turim constitudo pelas oportunidades oferecidas aos jovens sacerdotes de vivenciarem
experincias apostlicas conduzidas em ambientes particularmente difceis,
experincias que lhes permitiam aumentar a bagagem humana e espiritual e, ao
mesmo tempo, orientar-se na escolha do apostolado mais conveniente para eles,
com vistas a um compromisso definitivo.

O objetivo de Cafasso era duplo. Alm de educar os seus discpulos
vida sacerdotal esclarece Colombero , o nosso sbio preceptor na direo do
Colgio aplicava sua criatividade a outro objetivo importante, isto , ao estudo
dos prprios alunos, do seu carter, das suas disposies, das suas tendncias
com o fim de dar-lhes uma conveniente colocao depois de dois anos de conferncias. Ele fazia este tipo de estudo tanto nas conversas em particular, quanto
no quarto de hora de recreio que passava conosco ou ento mesa, ora aqui, ora
ali, durante o correr do ano.63 O melhor recurso para o conhecimento, a guia e
o discernimento destes jovens, portanto, era o simples compartilhamento da sua
vida cotidiana.

62
63

Ibidem 496-497.
G. COLOMBERO, Vita del servo di Dio D. Giuseppe Cafasso, cit., 93-94.

155

3. O PAI DO NOSSO PAI



Jos Cafasso nasceu no dia 11 de janeiro de 1811 em Castelnuovo dAsti, o
mesmo municpio onde, aproximadamente quatro anos mais tarde, nascer Dom
Bosco.64

Fisicamente pouco dotado, pequena estatura, olhos cintilantes, aparncia
afvel, rosto anglico,65 Cafasso foi um dos primeiros alunos do novo seminrio
de Chieri no ano de 1827.

Em 1833, logo aps a ordenao presbiteral, entrou para o Colgio Eclesistico de Turim, onde permaneceu, primeiro como estudante, depois como repetidor e docente de teologia moral66 e, finalmente, como reitor aps a morte do
telogo Guala em 1848; manteve este encargo at a morte, ocorrida em 23 de
junho de 1860.

Alm do ensino da moral, dedicou-se de modo especial pastoral dos presos e dos condenados morte e pregao de Exerccios Espirituais ao clero e a
leigos; este ltimo aspecto fundamental do seu apostolado sacerdotal ter reflexos na experincia espiritual e apostlica de Dom Bosco.
Para um estudo biogrfico e espiritual de Cafasso, vejam-se: Taurinen. Beatificationis et canonizationis Servi Dei Josephi Cafasso sacerdotis saecularis collegii ecclesiastici taurinensis moderatoris,5 vv., Roma 1906-1922; G. COLOMBERO, Vita del Servo di Dio D. Giuseppe Cafasso,
Turim 1895; L. N. Di Robilant, Vita del venerabile Giuseppe Cafasso, 2 vv., Turim 1912;
L. Zanzi, Lo spirito interiore del beato Giuseppe Cafasso : proposto ai sacerdoti e ai militanti nellAzione cattolica, Bassano del Grappa 1928; C. Salotti, Il santo Giuseppe Cafasso. La
perla del clero italiano, Turim 19473; A. Grazioli, La pratica dei confessori nello spirito di
san Giuseppe Cafasso, Colle Don Bosco (AT) 1953; F. Accornero, La dottrina spirituale di
san Giuseppe Cafasso, Turim 1958; aa.VV., San Giuseppe Cafasso maestro e modello del clero, Chieri 1960; AA.VV., Morale e pastorale alla luce di san Giuseppe Cafasso, Turim 1961; L.
Mugnai, S. Giuseppe Cafasso prete torinese, Sena 1972; S. Quinzio, Domande sulla santit :
Don Bosco, Cafasso, Cottolengo, Turim 1986; G. BUCCELLATO (ed.)., San Giuseppe Cafasso. Il
direttore spirituale di Don Bosco, Roma 2008. Vejam-se tambm as introdues s edies crticas
da Edio Nacional das obras de S. Jos Cafasso. Trata-se de seis volumes de recente publicao
pela editora Effata de Turim, editados entre 2002 e 2009: Esercizi spirituali al clero. Meditazioni,
Missioni al popolo. Meditazioni, Predicazione varia al popolo. Istruzione e discorsi, Epistolario e
testamento, Esercizi spirituali al clero. Istruzioni, Scritti di morale.
65
A descrio do prprio Dom Bosco em MO 47.
66
Cafasso, por 24 anos, lecionou teologia moral prtica, usando como referncia fundamental a
doutrina de santo Afonso Maria de Ligrio, enquanto em boa parte do ensino oficial ainda dominasse uma orientao rigorista. Apstolo eminentemente prtico, no pretendeu fundar uma escola
de teologia moral, nem defender um sistema mais do que outro, embora, precisamente para ser fiel
ao seu propsito de buscar todos os meios para a salvao das almas, aceitasse serenamente o probabilismo (Dicastero per la Formazione, Sussidi 2, Roma 1988, 246).
64

156


Cafasso recolheu minuciosamente seus apontamentos em numerosos cadernos, mas no publicou nada; seu sobrinho, o cnego Jos Allamano,67 no incio do sculo passado, cuidou da impresso de alguns volumes de meditaes e
instrues para o povo e o clero com objetivos pastorais.68

A partir de 2002 iniciou-se a edio crtica dos escritos de Cafasso. Na
Edizione Nazionale delle opere di San Giuseppe Cafasso, com a contribuio de
alguns valentes estudiosos turinenses, j foram publicados seis volumes de meditaes, instrues, conferncias, ensinamentos do Santo de Castelnuovo. Esses
volumes so um instrumento indispensvel para compreender que tipo de padre e
de cristo Cafasso se propunha formar.
Aqui mais do que nunca sublinhava o padre Lucio Casto, presidente da comisso cientfica que cuidou desta Edio Nacional emerge claramente o
pensamento de Cafasso a respeito do padre, do seu ser e do seu agir, e, ao
mesmo tempo, em transparncia, uma crtica sutil a outros modelos ou estilos
de vida sacerdotal, no s imaginados por Cafasso, mas vivos e reais no seu
tempo.69

67
O beato Jos Allamano, que foi reitor do santurio da Consolata em Turim e do Colgio Eclesistico, e fundador das Misses Estrangeiras da Consolata, era filho de uma irm de Cafasso. Como
testemunhou ele mesmo durante a causa de beatificao, viu o tio somente uma vez, na idade de
seis anos. Seu testemunho, alm de apoiar-se em notcias conservadas em famlia, baseou-se tambm em pregaes e confidncias de Dom Bosco, que ele conheceu durante a sua permanncia de
quatro anos no Oratrio de S. Francisco de Sales, onde fez seus estudos ginasiais (Cf. Taurinen.
Beatificationis et canonizationis Servi Dei Josephi Cafasso, Positio super introductione causae,
9-10). Sobre a figura do Servo de Deus, veja-se I. Tubaldo, Giuseppe Allamano, Il suo tempo,
la sua opera, Turim 1982.
68
Cf. G. CAFASSO, Meditazioni per esercizi spirituali al clero. Pubblicate per cura del Can. Giuseppe Allamano, Canonica, Turim 1892; G. CAFASSO, Istruzioni per esercizi spirituali al clero.
Pubblicate per cura del can. Giuseppe Allamano, Turim 1893; G. CAFASSO, Sacre missioni al
popolo, Turim 1923. Estes escritos fazem parte da coleo em cinco volumes das Obras completas
editadas em Turim pelo Instituto-Colgio Internacional da Consolata para as Misses Estrangeiras
de 1923 a 1925.
69
L. Casto, Gli Esercizi Spirituali al clero di San Giuseppe Cafasso, cit., 483. Neste artigo, Casto
evidencia, coerentemente com esta premissa, algumas imagens negativas de sacerdote, tais como
as estigmatizou Cafasso, como a do padre ocioso, exemplo de inatividade e de vida cmoda, ou a
do padre anfbio, isto , do padre que passa com desenvoltura dos compromissos do ministrio a
ocupaes seculares ou mundanas (Cf. 490-491).

157

3.1. O dom do Conselho70


O influxo exercido pela doutrina e pelo zelo pastoral de S. Jos Cafasso
sobre o clero turinense foi muito forte. Embora seu raio de ao possa parecer
limitado aos alunos do Colgio, ele, como afirma o salesiano padre Flavio
Accornero, foi mestre de sacerdotes e, portanto, multiplicou o seu influxo sobre
a Igreja do Piemonte:

Foi um homem capaz de opor-se ao mal escreve Accornero e, como sacerdote e


mestre de sacerdotes, soube conduzir a batalha do Senhor, desenvolvendo com zelo
indizvel a sua atividade em favor das almas. Precisamente o fato de ter trabalhado
num campo restrito e fechado, como o do confessionrio, do plpito e da escola de
um colgio, acabou resultando para Cafasso num fato de indiscutvel penetrao,
pois ele trabalhou com multiplicadores: todo o clero do Piemonte, pode-se dizer,
teve-o como inspirador e animador dos novos caminhos, todos os diretores de almas tiveram-no como diretor. E as suas doutrinas, as suas palavras, as suas ideias
passaram de sacerdote a sacerdote, de parquia a parquia, de alma a alma [].
Por isso, pode-se admirar uma florao de alunos, de fundadores de instituies
religiosas, de orientaes ascticas e morais, de santidades iniciadas. O quanto h
de Cafasso em suas atividades e em sua santidade? Certamente, muitos elementos
que brotaram da fonte do nosso Santo penetraram na vida desses homens que representam as personalidades mais espiritualmente conhecidas do sculo piemonts
e que na sua gigantesca estatura espiritual provam a bondade e a fora da semente
da qual germinaram.71


As duas primeiras biografias de Cafasso, a de Colombero (1895) e a de Di
Robilant (1912), dedicam muitas pginas ao dom do conselho.72

O dom do conselho considerado, na tradio catlica, um dos sete dons do Esprito Santo: os
outros seis so: sabedoria, inteligncia, fortaleza, cincia, piedade, temor de Deus. Este termo nos
proporciona uma chave de leitura importante sobre a verdadeira natureza da relao de acompanhamento espiritual, isto , de acompanhamento no, atravs e com o dom do Esprito Santo, que assiste
os dois protagonistas da relao.
71
F. Accornero, La dottrina spirituale di san Giuseppe Cafasso, cit., 155. 157.
72
Na obra citada de Colombero encontramos um captulo com o ttulo Padre Cafasso e o dom do
conselho (s pginas 167-187) e, em Di Robilant, o Livro VI, com o ttulo O conselheiro, subdividido nos captulos: Dom do conselho, Os Bispos, Os Procos, Os Sacerdotes, Os Clrigos, Os
Fundadores, Padre Joo Bosco, As famlias crists, As pessoas de servio, num total de 76 pginas
(149-225).
70

158

Aconselhar os duvidosos escreve o primeiro uma das mais belas obras de


misericrdia, mas isso no dado a todos: para exerc-la necessrio possuir
uma aptido especial. O nosso servo de Deus tinha abundantemente tal aptido,
como atestam de forma unnime os que o conheceram. Ela provinha de estudos
srios jamais interrompidos, de certa facilidade natural em aplicar as teorias
a casos especficos, de uma consumada experincia dos homens e das coisas,
de um fino bom-senso que nele nunca falhava, da penetrao dos coraes, de
certo inexplicvel intuito sobrenatural, de que a amorosa Providncia o dotara
de forma abundante.73


A biografia de Di Robilant, em particular, aponta, entre tantos discpulos
que gozaram dos dons do discernimento de Cafasso, bispos, sacerdotes, fundadores, homens de toda classe social e cultural; entre os fundadores, o bigrafo
assinala alm do padre Aglesio, primeiro sucessor de Cottolengo, a bem
conhecida marquesa Julieta Falletti di Barolo, padre Joo Cocchi, Domingos
Sartori, fundador das Filhas de Santa Clara, Francisco Fa di Bruno, o telogo
Gaspar Saccarelli, fundador do Instituto da Sagrada Famlia, Francisco Bono,
fundador das Filhas de So Jos e Loureno Prinotti, fundador do Instituto dos
Surdos-mudos pobres;74 finalmente, o nosso Dom Bosco, a cujo relacionamento
com Cafasso Di Robilant dedica um captulo inteiro.75
Alm de doutor escreve Di Robilant , responsvel pela comunidade, confessor e apstolo, o Venervel ainda era chamado de Vir consiliorum. De fato,
foi escrito por ocasio de sua morte, sabe-se que tanto na Capital quanto
fora, qualquer membro do clero ou do laicato que precisasse de conselhos e de
orientao para acertar assuntos da prpria conscincia [] recorria ao padre
Cafasso como a fonte segura. Comeando pelos bispos e passando por todas
as classes da sociedade, at aqueles que o mundo considera como pessoas sem
importncia [], todos encontravam nele aquela palavra que, por estar isenta
de qualquer desejo humano, se revestia da marca divina da verdade e se adaptava a todas as medidas sociais.76

G. COLOMBERO, Vita del Servo di Dio D. Giuseppe Cafasso, cit., 166.


Cf. L. N. Di Robilant, Vita del venerabile Giuseppe Cafasso, II, cit., 202-208.
75
Cf. ibidem 208-230.
76
Ibidem 149-150. As duas citaes referidas so extradas de dois jornais da poca, Larmonia e
Il campanile.
73
74

159


Entre as muitas consideraes e testemunhos que enriquecem a figura de
Cafasso como diretor espiritual e depositrio do dom do conselho, limitamo-nos
a sublinhar duas ocorrncias:

a. O dom de ler no corao de quem lhe falava. Di Robilant, referindo
um testemunho de P. Bargetto, atesta: Todos declaravam [] que o
padre Cafasso conhecia o ntimo da alma antes ainda que as pessoas
tivessem terminado de lhe falar. Muitas delas diziam que ele lia no corao e nos sentimentos daqueles que recorriam a ele.77

b. Outra caracterstica do acompanhamento de Cafasso a sua autoridade:
As respostas do nosso Venervel, alm de claras, prontas e incisivas, eram eminentemente autorizadas []. Tanta segurana unida a outros dotes no deixava
a mnima hesitao em quem o interrogava; por isso, as suas respostas, enquanto comunicavam serena persuaso ao corao, eram consideradas como um
orculo por quem as tinha provocado.78


Desta persuaso acrescenta o bigrafo mais adiante de que ele fosse
assistido por luzes sobrenaturais ao aconselhar, nascia a confiana acima acenada
por parte daqueles que a ele recorriam.79
3.2. Padre Cafasso e Dom Bosco

Jos Cafasso (1811) e Joo Bosco (1815) nasceram a poucos anos de distncia, em Castelnuovo dAsti, que, a partir de 1817, passar a fazer parte da diocese de Turim. Ambos foram alunos do seminrio filosfico-teolgico de Chieri;
o primeiro no trinio 1830-1833 (ano da ordenao; Cafasso tem 22 anos...) e o
segundo nos anos 1835-1841.

Seu primeiro encontro narrado nas Memrias do Oratrio pelo prprio
Dom Bosco distncia de mais de quarenta e cinco anos do acontecimento.
Segundo a lembrana do autor das Memrias, era o segundo domingo do ms
de outubro de 1827; os habitantes de Morialdo, vilarejo de Castelnuovo dAsti,
celebravam a festa da Maternidade de Maria. Dom Bosco escreve:
Ibid. 152.
Ibid.153.
79
Ibid.156.
77
78

160

Muitos andavam atarefados em casa ou na igreja, enquanto outros se mantinham como espectadores ou tomavam parte em jogos ou brinquedos diversos.
S vi uma pessoa longe de qualquer espetculo. Era um clrigo de pequena
estatura, olhos cintilantes, aparncia afvel, rosto anglico. Apoiava-se porta
da Igreja. Fiquei como fascinado pela sua figura, e apesar de ter apenas doze
anos, movido pelo desejo de falar-lhe, aproximei-me e dirigi-lhe estas palavras:
Senhor cura, quer ver algum espetculo da nossa festa? Eu o levo com muito
gosto aonde desejar. Ele fez gentilmente um sinal para que me aproximasse e
comeou a perguntar sobre minha idade, sobre o estudo, se j havia recebido a
sagrada comunho, com que frequncia me confessava, aonde ia ao catecismo
e coisas assim. Fiquei encantado por aquela maneira edificante de falar, respondi com satisfao a todas as perguntas e depois, como para agradecer-lhe
a afabilidade, renovei o oferecimento de acompanh-lo para ver algum espetculo ou novidade. Meu caro amigo replicou , os espetculos dos padres
so as funes de Igreja; quanto mais devotamente se celebrarem, tanto mais
agradveis sero. Nossas novidades so as prticas da religio, que so sempre
novas e, por isso, deve-se frequent-las com assiduidade. Estou s esperando
que se abra a igreja para poder entrar. Criei coragem para continuar a conversar
e acrescentei: verdade tudo quanto me diz. Mas h tempo para tudo: tempo
para ir igreja e tempo para divertir-se. Ele se ps a rir e concluiu com estas
memorveis palavras, que foram como o programa de toda a sua vida: Quem
abraa o estado eclesistico entrega-se ao Senhor, e nada do mundo deve interessar-lhe, a no ser o que pode redundar em maior glria de Deus e proveito
das almas.80


quase suprfluo sublinhar que as lembranas de Dom Bosco so entregues a uma Congregao apenas nascida para servir de norma para superar as
dificuldades futuras e como penhor do seu carinho paterno.81 A viso austera
que emerge da resposta final de Cafasso uma clara indicao de Dom Bosco
para os seus Salesianos.

O influxo exercido pela personalidade de Cafasso sobre Dom Bosco, mais
jovem do que ele aproximadamente quatro anos e meio, foi decisivo. Dom Bosco
mesmo no nos deixa dvidas a respeito: Se fiz algum bem, devo-o a este digno
eclesistico.82
80
MO 47-48. O encontro, na realidade, teria ocorrido em 1829, segundo o estudo dos salesianos
Klein e Valentini (Cf. J. Klein E. Valentini, Una rettificazione cronologica delle Memorie
di San Giovanni Bosco, em Salesianum 17 (1955) 3-4, 581-610).
81
Ibid. 23.
82
Ibid. 120.

161


Quanto s relaes entre os dois santos, assim testemunhou o salesiano
Joo Cagliero, ento arcebispo titular de Sebaste e vigrio apostlico da Patagnia, no processo de beatificao de Cafasso:
O nosso venervel Dom Bosco tinha uma estima muito especial pelo venervel
Cafasso, estima ntima e unida a um santo afeto que o ligava a ele e que o tornava seu humilde discpulo, perante a bondade e santidade do seu grande mestre,
durante 20 anos que o teve como diretor espiritual, como seu nico confidente
e conselheiro. Ns, que tnhamos um grandssimo conceito da bondade e das
virtudes de Dom Bosco, junto com o maior afeto e a profunda venerao pela
sua santidade, tnhamos um conceito ainda maior a respeito do seu mestre padre Cafasso quanto sua bondade, s suas virtudes e sua santidade. Eu mesmo, em diversas ocasies, nas quais tive a oportunidade de apresentar-me ao
venervel Cafasso e ouvir suas calorosas exortaes, persuadi-me do que Dom
Bosco nos referia.83


A este propsito, o padre Eugnio Valentini, na apresentao da reedio
da Biografia do Padre Jos Cafasso,84 por ocasio do ano centenrio da sua morte, em 1960, escreveu:
Humanamente falando, sem S. Jos Cafasso, ns no teramos S. Joo Bosco
e provavelmente nem mesmo a Congregao Salesiana. Foi ele que o aconselhou, guiou na opo do seu estado de vida, formou no Colgio Eclesistico e
depois o dirigiu, defendeu e apoiou nos momentos difceis da vida. A espiritualidade do mestre se transfundiu em boa parte no discpulo, e ns, hoje, relendo
estas pginas distncia de um sculo, percebemos facilmente o entrelaado e,
por assim dizer, a fuso destas duas espiritualidades... O padre Cafasso foi para
Dom Bosco o mestre, o diretor espiritual, o confessor, o benfeitor por excelncia. Ora, este influxo de relaes ntimas, que duraram pelo espao de trinta
anos, no podia no deixar uma marca e que marca! na vida do discpulo.
Esta a razo, realmente objetiva, pela qual a espiritualidade de Cafasso se
transfundiu em So Joo Bosco.85

SACRA RITUUM CONGREGATIO, Taurinen. Beatificationis et canonizationis Servi Dei


Josephi Cafasso Positio super introductione causae, 482.
84
A referncia completa G. Bosco, Biografia del Sacerdote Giuseppe Caffasso esposta in due
ragionamenti funebri, Turim 1860.
85
E. Valentini, Presentazione, in San Giuseppe Cafasso. Memorie pubblicate nel 1860 da San
Giovanni Bosco, Turim 1960, 6.
83

162


Relembrar rapidamente alguns episdios e momentos nos quais as vidas
destes dois santos se encontraram til para proporcionar-nos uma percepo
mais clara do que realmente foi decisivo na vida de Dom Bosco, este influxo de
relaes ntimas de que fala o padre Valentini;86 procuremos pelo menos recordar algumas etapas fundamentais.

Depois do primeiro encontro, ocorrido muito provavelmente em 1829, o
guia e o apoio do padre Cafasso foram decisivos, na conscincia reflexa de Dom
Bosco, em algumas situaes de discernimento, em particular:

- na deciso de no abandonar os estudos para poder abraar o estado
eclesistico (cf. MO 47-48; MB I, 287);

- na deciso de no entrar para o noviciado dos Menores Reformados de
Nossa Senhora dos Anjos (cfr. MB I, 303);

- na deciso de entrar para o seminrio di Chieri (cf. MB I, 305);

- na dissipao das dvidas que precederam a vestidura clerical e o pedido para ser admitido s ordens (cf. MB I, 363-364; MO 110);

- na deciso de entrar para o Colgio Eclesistico logo depois da ordenao sacerdotal (cf. MO 116; MB II, 38-39), e na primeira missa, celebrada por Dom Bosco na igreja de S. Francisco de Assis, anexa ao
Colgio Eclesistico, onde o Cafasso era chefe de conferncias (cf.
MO 111);

- na orientao das suas primeiras experincias pastorais (cf. MO 116117. 120. 127-128);

- na persuaso decidida de no partir para as misses e de no entrar
para a vida religiosa na Congregao dos Oblatos de Maria Virgem, no
fim de um curso de Exerccios Espirituais;87

- na contribuio para a orientao geral da sua vida apostlica tambm
no que concerne ao apostolado da boa imprensa;88

- na orientao de alguns projetos particulares da vida do nascente Oratrio de S. Francisco de Sales.89
Para uma sntese dos principais acontecimentos, vejam-se as pginas 208-230 do segundo volume
da j citada Vita del Venerabile Giuseppe Cafasso de Di Robilant e a biografia de Colombero Vita
del Servo di Dio s pginas 188-198.
87
Cf. MB II, 203: L. N. Di Robilant, Vita del Venerabile Giuseppe, cit., 215-216.
88
Cf. L. N. Di Robilant, Vita del Venerabile Giuseppe Cafasso, II, cit., 222.
89
Cf. Ibid., 216-221. Padre Cafasso apoiou desde o incio a obra de Dom Bosco, no s espiritualmente, mas tambm como generoso benfeitor. Ao morrer, Cafasso era ainda proprietrio de uma
parte do Oratrio de S. Francisco de Sales que deixou em herana a Dom Bosco, junto com uma
oferta em dinheiro e o perdo de todas as dvidas (Cf. G. COLOMBERO, Vita del Servo di Dio
D.Giuseppe Cafasso, cit., 198).
86

163


O afeto, a estima e o reconhecimento de Dom Bosco para com seu mestre
e benfeitor so testemunhados pelo agudo sofrimento que lhe causou o seu desaparecimento90 e pelo seu desejo de guardar e perpetuar a sua memria.

O padre Jos Allamano testemunha:
Por sugesto do servo de Deus padre Joo Bosco, um ano antes de sua morte,
para conservar a memria do venervel [Cafasso], mandei uma circular a todas
as pessoas que julguei tivessem tido alguma relao com ele, para colher notcias a respeito de sua vida. Estas memrias, eu as entreguei depois ao cnego
Colombero, proco de santa Brbara em Turim.91


A biografia de Cafasso escrita por Colombero, da qual j falamos, ser a
primeira biografia verdadeira e documentada. Dom Bosco, antes de Colombero,
por longo tempo, acariciara a ideia de escrever uma; foi o que testemunhou seu
sobrinho, padre Jos Alamano, afirmando tambm que o projeto no teve xito,
conforme as palavras do Santo, por causa do misterioso desaparecimento dos
documentos que estavam guardados num armrio do Oratrio.92
3.3. A Biografia do Padre Jos Cafasso de 1860

Em 23 de junho de 1860 morre o padre Cafasso. Dom Bosco, ento, tinha
quase cinquenta anos.

Duas semanas depois, na igreja do Oratrio, com a voz interrompida diversas vezes pela emoo,93 celebra uma missa de sufrgio. Aproximadamente dois
meses mais tarde, no dia 30 de agosto, celebrada outra Eucaristia na igreja de S.
Francisco de Assis, anexa ao Colgio Eclesistico; tambm naquela ocasio Dom
Bosco pronuncia o elogio fnebre.

No fim do ano, os dois discursos so reunidos num fascculo das Leituras
Catlicas. Dom Bosco acrescenta-lhes uma introduo, os avisos sacros expostos
Cf. E. Valentini, Presentazione in San Giuseppe Cafasso. Memorie pubblicate, cit., 30-32.
SACRA RITUUM CONGREGATIO, Taurinen. Beatificationis et canonizationis Servi Dei
Josephi Cafasso Positio super introductione causae, 10. Esta confidncia ele a teria recebido do
prprio Dom Bosco j prximo da sua morte (Cf. E. Valentini, Presentazione in San Giuseppe
Cafasso. Memorie pubblicate, cit., 33-34).
92
Esta confidncia ele a teria recebido do prprio Dom Bosco j prximo da sua morte (Cf. E. Valentini, Presentazione in San Giuseppe Cafasso. Memorie pubblicate, cit., 33-34).
93
Cf. D. Ruffino, Cronache dellOratorio di S. Francesco di Sales. n. 1, 1860, 10.
90
91

164

por ocasio da morte do seu mestre, algumas devoes promovidas por Cafasso,
comprometendo-se a redigir, num segundo tempo, uma verdadeira e prpria biografia.

A frequncia e a profundidade das relaes entre estes dois santos obriganos a folhear estas pginas com particular ateno.
Quem s tu, pergunto a mim mesmo afirma Dom Bosco em certo ponto que
pretendes expor os maravilhosos feitos deste heri? No sabes que suas mais
belas aes somente Deus as conhece?94


Apesar desta premissa, precisamente nesta vida particular que Dom
Bosco quer concentrar a ateno do leitor. Por vida particular entendo, de maneira especial, o exerccio das virtudes praticadas nas suas ocupaes familiares
que, em geral, pouco aparecem diante dos olhares do mundo, mas que talvez
sejam as mais meritrias aos olhos de Deus.95

O que mais impressiona nesses dois discursos a capacidade de Dom Bosco de colher, na experincia espiritual de Cafasso, a especfica sntese de caridade
apostlica e de ascese, de trabalho incansvel e de orao.

Da vida juvenil de Cafasso, o nosso autor observa:
Com que assiduidade ele vai igreja, toma parte nas sagradas funes, frequenta os santos sacramentos! Desde ento comeam as maravilhas. Vai ouvir
a palavra de Deus, depois a repete a seus companheiros e amigos. Trabalha,
mas suas fadigas se misturam com jaculatrias, com atos de pacincia, com
ofertas contnuas do seu corao a Deus.96

caridade heroica, o padre Cafasso soma seu profundo esprito de orao:


O padre Cafasso dedica-se incansavelmente ao estudo da histria sagrada, da
histria eclesistica, dos santos padres, da teologia moral, dogmtica, asctica,
mstica, da pregao, prepara casos de moral para o curso das parquias, toma
exames de confisso. Quando eu venho a esta igreja, vejo-o de joelhos a rezar,
ora diante do altar de Maria, ou prostrado diante do SS. Sacramento, em adora-

G. Bosco, Biografia del Sacerdote Giuseppe Caffasso esposta in due ragionamenti funebri, cit.,
18.
95
Ibid., 25.
96
Ibid., 68.
94

165

o; ou ento est no confessionrio, rodeado de longa fila de fiis, ansiosos por


expor-lhe as angstias da sua conscincia, por receber dele normas para viver
bem: vo ao santurio da Consolata e encontram o padre Cafasso cumprindo
exerccios de devoo; visitem as igrejas onde se fazem as Quarenta Horas, e
l est ele prostrado, desafogando seus doces afetos para com o amado Jesus.97

Sobre o mesmo tema, no discurso fnebre, Dom Bosco dizia:


Por isso, mesmo no frio do inverno mais rgido, quando sofria de dor de estmago, de cabea, de dentes, a tal ponto que com dificuldade podia manter-se
de p, antes das quatro da manh, j estava de joelhos a rezar, a meditar ou a
cumprir alguma de suas obrigaes.98


Qual o segredo desta maravilhosa quantidade de aes diversificadas que, apesar disso, no distraem o Santo da sua vida de orao? Dom Bosco
indica, no uma, mas cinco:99 a sua constante tranquilidade, a longa prtica de
seus afazeres unida grande confiana em Deus, a exata e constante ocupao
do tempo, a sua temperana, a moderao no repouso. Quanto a este ponto, Dom
Bosco escreve:
O padre Cafasso ganhou tempo ao moderar-se no repouso. O nico descanso
para seu frgil corpo que ele se permitia durante o dia eram os trs quartos
de hora depois do almoo, no quais, fechado em seu quarto, em geral rezava,
meditava ou se ocupava em alguma prtica especial de piedade. De noite, era
sempre o ltimo a deitar e de manh o primeiro a levantar-se. A durao do
repouso noturno nunca excedia s cinco horas, muitas vezes eram quatro e
s vezes at mesmo trs. Ele costumava dizer que um homem de Igreja deve
acordar uma s vez durante a noite. Com estas palavras ele nos garante que,
acordando, independentemente da hora, logo se levantava da cama para rezar,
meditar ou realizar algum outro trabalho.100


Estes segredos, que ele no conseguiu manter suficientemente escondidos
para que no fossem conhecidos por quem admirava as suas santas aes e nele se
Ibid., 89-90.
Ibid., 33 .
99
Cf. Ibid., 91-97.
100
Ibid., 95 .
97
98

166

espelhava por causa das suas preciosas virtudes,101 e que suscitam a reconhecida
admirao do seu discpulo, permitem ainda uma vez conhecer em maior profundidade o modo de sentir de Dom Bosco.102

O padre Valentini, a propsito desta Biografia e da afinidade espiritual
entre os dois santos, escreve:
H um motivo [...] pelo qual ns encontramos nessas pginas to admirveis
coincidncias. que cada homem, ao retratar os outros, de certa forma retrata
a si mesmo. De fato, nos outros, ns somente notamos os aspectos que nos impressionam, que se situam no espao dos nossos interesses, que revelam parte
das solues dos problemas que nos preocupam.103


Esta sugestiva hiptese parece encontrar confirmao em alguns testemunhos da tradio.

Em 29 de setembro de 1926, o padre Felipe Rinaldi, ento Reitor-Mor da
Congregao Salesiana, escrevia ao cardeal Antnio Vico, prefeito da Sagrada
Congregao dos Ritos, uma carta em que, vinculando-se com juramento, entre
outras coisas afirmava sobre Dom Bosco:
Nos ltimos anos [...], todos os dias, ele costumava retirar-se para o quarto,
das 14 s 15 horas, e os superiores no permitiam que algum o incomodasse
naquela hora. Todavia, sendo eu, de 1883 at a morte do Servo de Deus, encarregado de uma casa de formao de aspirantes ao sacerdcio e tendo-me ele
dito, que, precisando, eu o procurasse, talvez por indiscrio, certamente para
poder me encontrar com ele com maior comodidade, rompi vrias vezes a norma. No s no Oratrio, mas tambm em Lanzo e em San Benigno, aonde ele ia
frequentemente, em Mathi e na casa de S. Joo Evangelista em Turim, muitas
vezes eu fui ter com ele precisamente naquela hora para falar-lhe. Em toda parte e sempre, eu o surpreendi recolhido, com as mos juntas, em meditao.104
Ibid., 92.
H uma singular incongruncia numa citao que o padre Juan Vecchi fez destas pginas, na
carta Quando rezardes, dizei Pai nosso de 2001. Dom Bosco escreve: Com estes cinco segredos, o padre Cafasso encontrava o modo de realizar muitas e variadas coisas em pouco tempo
e assim levar a caridade ao mais sublime grau de perfeio.... Ao passo que na citao do padre
Vecchi l-se: Com estes quatro segredos conclui Dom Bosco encontrava o modo de realizar
muitas e variadas coisas em pouco tempo e assim levar a caridade ao mais sublime grau de perfeio. O segredo que desaparece na carta do Reitor-Mor precisamente o do seu hbito de rezar
durante a noite...
103
E. Valentini, Presentazione em San Giuseppe Cafasso. Memorie pubblicate , cit., 6-7 .
104
A carta, datada de 29/9/1926, anexada em apndice aos documentos da causa.
101
102

167


A correspondncia singular, mas, afinal, no surpreendente; nada mais
natural que o discpulo tenha assimilado os hbitos do mestre em cujas mos depositara, por tantos anos, todas as decises, estudos e atividades.105

Tambm relativamente aos hbitos noturnos de Cafasso possvel encontrar uma correspondncia na vida de Dom Bosco. At a idade de 45 anos, de
fato, segundo confidncia feita por ele mesmo ao padre Lemoyne no dia 5 de abril
de 1884, Dom Bosco no dormia mais do que cinco horas por noite, saltando toda
semana uma noite inteira;106 somente depois, fragilizado pela doena, mitigou
este intenso estilo de vida.

O conhecimento dos escritos do fundador, neste como em muitos outros
casos, revela-se como um instrumento indireto, mas precioso, para conhecer a
sua experincia espiritual.

4. O JUZO DE DOM BOSCO SOBRE A EXPERINCIA DO COLGIO


ECLESISTICO

Que ressonncia tiveram, subjetivamente, em Dom Bosco, esses trs anos
de permanncia no Colgio? Qual seu juzo na idade madura? Leiamo-lo nas
Memrias do Oratrio:
O Colgio Eclesistico vem a ser um complemento dos estudos teolgicos,
porquanto nos nossos seminrios estuda-se somente a dogmtica especulativa; na moral, estudam-se apenas as questes disputadas. Nele aprende-se a ser
padre. Meditao, leitura, duas conferncias por dia, aulas de pregao, vida
recolhida, toda a comodidade para estudar, leituras de bons autores, eram as
ocupaes s quais qualquer um devia aplicar-se a fundo.107


Num dos primeiros esboos do regulamento do Colgio podia-se ler entre
linhas a mesma instncia: Observa-se tambm que depois do estudo das cincias
Cf. MO 120.
G. B. Lemoyne, Ricordi di gabinetto, abril de 1884; o contedo desta confidncia depois foi
inserido por ele mesmo nas Memrias Biogrficas (Cf. IV, 187). Em outro lugar, o prprio padre
Lemoyne escreve: O fervor na orao incessante mantinha Dom Bosco sempre unido com Deus.
Ascnio Savio estava persuadido que Dom Bosco passasse em viglia muitas horas da noite e s
vezes a noite inteira, rezando (MB III, 589).
107
MO 117.
105
106

168

dogmticas e especulativas por um quinqunio nos seminrios, os jovens, quando


so ordenados sacerdotes, pouco ou nada sabem da prtica do confessionrio, da
cincia do plpito, da maneira de comportar-se saudavelmente com o mundo,
particularmente nas dificuldades atuais que o exerccio do ministrio encontra,
nas quais necessria maior cincia e prudncia.108

Os trs protagonistas da experincia formativa do Colgio, Guala, Golzio e Cafasso, emergem assim das lembranas do fundador dos Salesianos:
Duas celebridades estavam naquele tempo frente de to til instituto: o telogo Lus Guala e o padre Jos Cafasso. O telogo Guala era o fundador da obra.
Homem desinteressado, rico de cincia, prudncia e coragem, fizera-se tudo
para todos no tempo do governo de Napoleo I. Para que os jovens levitas, ao
terminar os estudos, pudessem aprender a vida prtica do sagrado ministrio,
fundou aquele maravilhoso viveiro, que tanto bem fez Igreja, sobretudo extirpando algumas razes de jansenismo que ainda persistiam entre ns. Entre
outras questes agitava-se muito a do probabilismo e do probabiliorismo... O
telogo Guala situou-se com firmeza entre os dois partidos, e, pondo como
centro de qualquer opinio a caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, conseguiu
aproximar os extremos. As coisas chegaram a tal ponto que, graas ao telogo
Guala, santo Afonso tornou-se o mestre das nossas escolas, com as vantagens
por tanto tempo desejadas, cujos salutares efeitos hoje experimentamos. Brao
direito de Guala era o padre Cafasso. Com sua virtude a toda a prova, com sua
calma prodigiosa, sua perspiccia e prudncia, pde suavizar as asperezas que
ainda permaneciam em alguns probabilioristas com relao aos seguidores de
santo Afonso. No padre turinense telogo Flix Golzio,109 tambm do Colgio,
escondia-se verdadeira mina de ouro. Na sua vida modesta, pouco barulho fez;
mas com seu trabalho indefesso, com sua humildade e cincia era um verdadeiro apoio, ou melhor, o brao direito de Guala e Cafasso. Prises, hospitais,
plpitos, institutos de beneficncia, doentes em suas prprias casas, cidades,
povoados e, podemos dizer, os palcios dos grandes e os tugrios dos pobres
experimentaram os salutares efeitos do zelo desses trs luminares do clero de
Turim. Eram eles os trs modelos que a divina Providncia me oferecia, e dependia s de mim seguir suas pegadas, doutrina e virtudes.110
ARQUIVO DOS OBLATOS DE MARIA VIRGEM (AOMV) [II Reg.] S. II, 255.
Flix Golzio (1807-1873) foi diretor espiritual do Colgio, onde fora aluno de Cafasso, de quem
posteriormente se tornou confessor (cf. N. DI ROBILANT, Vita del venerabile Giuseppe Cafasso,
cit. vol. II, 196). Era dotado de grande humildade e cincia, como testemunha Dom Bosco. Depois
da morte de Cafasso, em 1860, foi confessor de Dom Bosco at 1873, ano da sua morte.
110
MO 118-120.
108
109

169


Este juzo decididamente positivo pronunciado por Dom Bosco nos mesmos anos da aprovao definitiva das Constituies (1874) e da consolidao da
Sociedade, faz emergir indiretamente uma espcie de indicao programtica a
respeito de como se aprende a ser padre: meditao, leitura, duas conferncias
por dia, exerccios de pregao, vida retirada...

Ainda uma vez, a releitura das Memrias do Oratrio neste particular nvel cronolgico, isto , como documento histrico que nos permite reconhecer
o projeto de vida sacerdotal proposto em idade madura na Congregao por ele
fundada, permite enriquecer o conhecimento do juzo de Dom Bosco a respeito
de um programa formativo de bom xito e, em particular, a respeito da funo
atribuda vida de orao e ao recolhimento.

5. OS TRS ANOS EM QUE DOM BOSCO SE TORNOU DOM BOSCO

Em novembro de 1841, Dom Bosco entra, ento, para o Colgio Eclesistico de Turim, onde permanecer por quase trs anos, como era permitido aos
jovens que mais se distinguiam por piedade e por estudo.111

O modelo formativo do Colgio cavou um sulco indelvel na sua experincia humana e religiosa; de fato, parece-nos poder afirmar que no possvel
conhecer Dom Bosco sem percorrer novamente um por um os elementos fundamentais do projeto formativo do Colgio turinense e ali reencontrar os reflexos
da sua experincia espiritual e pastoral.

Em particular, o padre Cafasso, exercendo o dom do discernimento, acompanha Dom Bosco na elaborao de um projeto de vida em que a caridade para
com Deus e para com os jovens se fundem numa coerente pedagogia da santidade.

Agora tentaremos, de forma sincrnica, pr em evidncia alguns elementos deste projeto, sem a pretenso de sermos exaustivos, mas com o desejo de
reconhecer, de conhecer a origem de alguns elementos caractersticos da vida e
da proposta espiritual do nosso fundador.

111

Cf. G. COLOMBERO, Vita del Servo di Dio D. Giuseppe Cafasso, cit., 190.

170

5.1. Aqui se aprende a ser padre



O modelo proposto pelo Colgio o que surgiu no fim do Conclio de
Trento, embora com acentuaes caractersticas e originais; confirma-o implicitamente tambm o segundo regulamento quando confia este Colgio especial
proteo de So Francisco de Sales e de So Carlos Borromeu, que criaram e
promoveram instituies semelhantes.112 Os regulamentos tendem substancialmente a formar um eclesistico reservado e afastado do mundo.

Os propsitos tomados por Dom Bosco na sua ordenao sacerdotal revelam, j antes de seu ingresso no Colgio, uma concepo austera da vida presbiteral. Como sabemos, estes propsitos no se encontram nas Memrias do Oratrio, mas num caderno autgrafo cujo contedo conhecido pelos Salesianos
pelo nome de Testamento espiritual, mas cujo verdadeiro ttulo, este tambm
autgrafo, Memrias de 1841 a 1884-5-6 pelo Sacerdote Joo Bosco para os
seus filhos Salesianos.113

A redao deste importante documento autobiogrfico comeou em 1884 e
foi finalizada em 24 de dezembro de 1887, pouco mais de um ms antes da concluso da experincia terrena de Dom Bosco, dia em que o caderno passou para
as mos do seu secretrio de ento, padre Carlos Viglietti.

No incio deste livreto, prevalentemente dedicado a uma srie de disposies, conselhos e recomendaes para depois de sua morte, Dom Bosco retorna
ao perodo da sua ordenao presbiteral e aos propsitos feitos ento:
Comecei os Exerccios Espirituais na casa da Misso no dia 26 de maio, festa
de So Felipe Neri, de 1841.
A sagrada ordenao foi ministrada por Dom Lus Fransoni, nosso arcebispo,
na capela de sua residncia, no dia 5 de junho daquele ano.
A primeira missa foi celebrada em S. Francisco de Assis, assistida pelo meu
insigne benfeitor e diretor padre Jos Cafasso, de Castelnuovo dAsti, no dia 6
de junho, domingo da SS. Trindade.
Concluso dos exerccios feitos em preparao celebrao da primeira santa
missa foi: o padre no vai sozinho para ou cu, ou no vai sozinho para o inferAOMV S. II, 255.
O padre Francesco Motto cuidou da edio crtica deste caderno de aproximadamente 140 pginas. Cf. G. Bosco, Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel Sac. Gio Bosco a suoi figliuoli salesiani a
cura di F. Motto, LAS, Roma 1985.
112
113

171

no. Se fizer o bem, ir para o cu com as almas salvas por ele por meio do seu
bom exemplo; se fizer o mal, se der escndalo, ir para a perdio com as almas
condenadas pelo seu escndalo.
Resolues:
1 Nunca fazer passeios, a no ser por grave necessidade: visitas a doentes etc.
2 Ocupar rigorosamente bem o tempo.
3 Sofrer, fazer, humilhar-se em tudo e sempre, quando se trata de salvar almas.
4 A caridade e a doura de S. Francisco de Sales me guiem em tudo.
5 Mostrar-me-ei sempre contente pela comida que me ser preparada, contanto que no seja prejudicial sade.
6 Tomarei vinho misturado com gua e somente como remdio: isto , somente quando e quanto for exigido pela sade.
7 O trabalho uma arma poderosa contra os inimigos da alma, por isso, no
concederei ao corpo mais do que cinco horas de sono cada noite. Durante o dia,
especialmente depois do almoo, no descansarei. Farei alguma exceo em
casos de doena.
8 Todos os dias dedicarei certo tempo meditao, leitura espiritual. Durante o dia farei uma breve visita ou pelo menos uma orao ao SS. Sacramento.
Farei pelo menos um quarto de hora de preparao e outro quarto de hora de
agradecimento da santa missa.
9 Nunca manterei conversas com mulheres, a no ser no caso de ouvi-las em
confisso e de qualquer outra necessidade espiritual.
Estas memrias foram escritas em 1841.114


Esta concepo da vida presbiteral encontra autorizada confirmao nos
ensinamentos de Cafasso, que tendem a despertar nos jovens presbteros uma
grande conscincia da sua dignidade, mas, ao mesmo tempo, tambm da sua
diversidade em relao aos outros homens.

Nesta perspectiva, modelo e tipo do sacerdote o prprio Jesus:
Se os meus pensamentos afirma o padre Cafasso numa meditao ao clero
os meus afetos, as minhas obras no so as do Divino Salvador, devo desiludirme: terei o nome, o ttulo, o carter de sacerdote, mas na realidade no o sou;
serei sacerdote, sim, mas afastado, separado do princpio que deve me animar;
sacerdote, mas cpia disforme, degenerada do tipo e do modelo.115

114
115

FdB 748 D 7-10.


G. CAFASSO, Manoscritti [Copia Camisassa], Medit. X, f. 1.

172


Seria anacrnico imaginar, no projeto do Colgio, uma reflexo teolgica
sobre o sacerdcio comum ou uma fundamentao do sacerdcio ministerial a
partir do de Jesus Cristo.

Analogamente, assim como Jesus o modelo do padre, tambm o padre
deve tornar-se modelo do seu rebanho; se ele for santo, sua prpria vida se torna,
tambm ela, o mais eficaz instrumento de pregao. Nada dispe com maior
eficcia os outros piedade e ao culto assduo de Deus afirmara o Conclio de
Trento do que a vida e o exemplo daqueles que se dedicam ao ministrio divino.116
5.2. Caridade pastoral, jovens das camadas populares e primeiros
catecismos
Da identidade do padre deriva sua tarefa no mundo. A imagem que mais
se destaca a do padre-pastor, que faz as vezes de Jesus Cristo na terra, dado
pregao e ao confessionrio, tomado de ardente zelo pelas almas, que o torna
criativo, para responder aos desafios e s necessidades do territrio.
Uma contribuio qualificada para a formao do padre-pastor escreve a este propsito Tuninetti provm sem dvida alguma do
Colgio Eclesistico de S. Francisco de Assis, primeiro sob a direo do telogo Lus Guala e, sobretudo depois, sob a guia e o exemplo de Jos Cafasso; em seguida, tambm do Colgio Eclesistico da
Consolata, sob a guia do padre Jos Allamano. Ambos foram escolas
de pastoral, cujos responsveis tambm souberam intuir e propor
caminhos novos e horizontes mais vastos diante das necessidades
imprevistas que a pastoral paroquial no parecia estar em condies
de satisfazer: eis ento o padre Cafasso, vice de Guala, perante a
imigrao de tantos jovens que ficavam abandonados, sugerir a um
grupo de jovens sacerdotes do Colgio, entre os quais Dom Bosco, o
caminho novo dos oratrios festivos e a obra dos limpa-chamins117.

SS. Conc. Tridentini decreta, sess. XXII, 17 de setembro de 1562.


G. TUNINETTI, Il prete e i preti nellottocento piemontese, in Rivista Diocesana Torinese 74
(1997) 572.
116
117

173

J no primeiro memorial, de autoria de Pio Bruno Lanteri, esta perspectiva est


muito bem evidenciada. A propsito dos escopos da nascente Congregao dos
Oblatos, diz-se:
Assistir os enfermos nos hospitais e os encarcerados, o povo simples, isto ,
os empregados domsticos, os aprendizes etc., que em torno de 5 mil por ano
saem curados dos hospitais, depois de receber neles certo cultivo da alma pela
meditao das mximas eternas, e ajudando-os em seguida na meditao dessas mximas por meio das confisses, poderiam tornar-se bons cristos e teis
cidados.118


Bons cristos e teis cidados... Esta citao justifica a inspirao que est
na base de uma das mais caractersticas snteses do projeto educativo salesiano.
Esta ateno aos encarcerados e s camadas populares, aos aprendizes, caracteriza, em continuidade com o projeto de Lanteri, as experincias apostlicas do
Colgio. conhecida a atividade de Cafasso na assistncia dos jovens presos e
dos condenados morte. Dom Bosco refere:
Comeou primeiro por levar-me s prises, onde pude logo verificar como
grande a malcia e a misria dos homens. Ver turmas de jovens, de 12 a 18 anos,
todos eles sadios, robustos, e de vivo engenho, mas sem nada fazer, picados
pelos insetos, mngua de po espiritual e temporal, foi algo que me horrorizou. A vergonha da ptria, a desonra das famlias, a infmia aos prprios olhos
personificavam-se naqueles infelizes.119


Outra iniciativa promovida ou sustentada pelo Colgio a atividade catequtica e de animao dos meninos e adolescentes. Di Robilant, recolhendo
numerosos testemunhos, afirma com absoluta certeza que (os catecismos) comearam antes de 1841120 e, portanto, antes daquele 8 de dezembro que os filhos de
Dom Bosco sempre consideraram como o incio ideal da obra do Oratrio.121
Ibid.
MO 120-121.
120
L. NICOLIS DI ROBILANT, Vita del venerabile Giuseppe Cafasso, II, cit., 8.
121
Pietro Stella, portanto, conclui: O catecismo que Dom Bosco fez a Bartolomeu Garelli em
dezembro de 1841, algumas semanas depois de sua chegada a Turim, foi decisivo para ele, jovem
sacerdote, mas no foi o primeiro que houve no Colgio Eclesistico turinense. De fato, pelo
que parece, o ensino da doutrina aos jovens j fazia parte do programa de formao pastoral dos
sacerdotes internos (P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosit cattolica, I, cit. 95).
118
119

174

5.3. Uma Sociedade de leigos e eclesisticos



Como se pode facilmente deduzir dos primeiros textos constitucionais,
Dom Bosco imaginava dar vida a uma nica Sociedade, composta de eclesisticos e de membros externos, isto , sacerdotes e leigos que, embora continuando
a viver em famlia, eram ligados pelas mesmas Regras e juntos colaboravam na
educao da juventude pobre.

Em 1873, no dilogo com os consultores que tinham a tarefa de examinar o
texto das Constituies da nascente Sociedade, foi decidida de modo definitivo a
excluso do captulo das Constituies sobre os membros externos. Este dilogo
fora difcil desde o incio; apesar das observaes recebidas, Dom Bosco no
queria renunciar ao seu projeto originrio, reapresentando-o obstinadamente.

No ano seguinte aprovao das Constituies da Sociedade, 1875, ele
comeou a traar as grandes linhas de uma associao laical, qual de incio deu
o nome de Unio de S. Francisco de Sales, mas que dois anos depois foi reconhecida por um Breve pontifcio de Pio IX de 9 de maio de 1876 com o ttulo de
Unio dos Cooperadores Salesianos. Seu primeiro regulamento afirmava:
Aos Cooperadores Salesianos prope-se a mesma misso da Congregao de S.
Francisco de Sales, qual entendem associar-se. 1. Promover novenas, trduos,
Exerccios Espirituais e catecismos, sobretudo nos lugares onde h falta de
meios materiais e morais. 2. Dado que nestes tempos faz-se sentir gravemente
a penria de vocaes ao estado eclesistico, assim, os que puderem, dedicaro cuidados especiais aos jovens e tambm adultos que tiverem as qualidades
morais necessrias e as aptides ao estudo ou mostrarem indcios de serem chamados []. 3. Opor a boa imprensa imprensa irreligiosa, por meio da difuso
de bons livros, volantes, folhetos impressos de todo tipo, nos lugares e entre
as famlias onde parecer prudente faz-lo. 4. Finalmente, a caridade para com
os jovens em perigo, recolh-los e instru-los na f, encaminh-los s sagradas
funes, aconselh-los nos perigos, lev-los para onde podem ser instrudos na
religio, so todas iniciativas apropriadas para os Cooperadores Salesianos.122


O projeto de fundao dos Salesianos Cooperadores, portanto, apresentase historicamente como caracterizado por inevitvel improvisao.

Tambm a ideia deste particular liame com os leigos certamente fruto da
formao recebida no Colgio. Nas Constituies da Congregao dos Oblatos
122

MB XI, 542.

175

de Maria Virgem, de Pio Bruno Lanteri, possvel encontrar algo anlogo.


escola de Diessbach, Lanteri quer envolver tambm os leigos na ao de reconquista cultural da sociedade, utilizando como instrumento privilegiado de apostolado a difuso do livro em todos os ambientes, por meio da leitura, do estudo
e do exame de cada obra nas diversas classes sociais. Por isso, quando em 1816
fundou a Congregao dos Oblatos de Maria Virgem, dissolvida quatro anos depois e posteriormente reconstituda em 1826 com a aprovao do Papa, ele previu
nas Constituies a adeso dos assim chamados scios externos.123

Este conceito e esta terminologia sero retomados por Dom Bosco que
usar amplamente o texto constitucional dos Oblatos na redao das Constituies da Sociedade de S. Francisco de Sales.
5.4. A pregao dos Exerccios Espirituais como escopo apostlico da
Congregao124
As Memrias Biogrficas testemunham que a tradio dos exerccios
anuais se tornou, desde os incios, um dos pontos fundamentais da obra salesiana
de educao dos jovens f.125

O primeiro esboo das Constituies da Sociedade de S. Francisco de Sales, conhecida como Autgrafo Rua,126 enuncia os escopos da nascente Sociedade. Os dois primeiros so a santificao dos membros e a imitao de Cristo; logo
em seguida so elencados trs objetivos apostlicos:127

- recolher jovens pobres e abandonados para instru-los na religio, particularmente nos dias festivos;

- recolher alguns em casas de acolhida e instru-los numa arte ou num
ofcio;

Cf. Costituzioni e regole della Congregazione degli Oblati di Maria V., Turim 1851.
Sobre este tema veja-se o nosso estudo: G. BUCCELLATO, Gli esercizi spirituali nellesperienza di Don Bosco e alle origini della societ di San Francesco di Sales, cit., 101-134.
125
As citaes poderiam ser numerosssimas. A ttulo de exemplo, vejam-se: MB III, 537ss. 603 ss;
IV, 122 ss; 4, 178 ss. 474 ss; V, 62. 215 ss. 925 ss; VI, 513. 892 ss; VII, 419. 647 ss; VIII, 473; X,
31. 49; XII, 138. 163 ss; XIII, 419 ss. 752.
126
Trata-se do mais antigo manuscrito das Constituies, ditado por Dom Bosco ao padre Rua; por
este motivo, convencionalmente traz o nome de Autografo Rua. Remonta provavelmente a 1858
(Cf. G. Bosco, Costituzioni della Societ di S.Francesco di Sales [1858] 1875, Textos crticos
editados de Francesco Motto, Roma 1992, 17). As citaes sucessivas das Constituies so tiradas
desta edio crtica.
127
Cf. G. Bosco, Costituzioni, cit., 72-79.
123
124

176

- realizar Exerccios Espirituais e difundir bons livros. A este propsito,


l-se no primeiro texto constitucional:
A necessidade de apoiar a religio catlica atualmente sentida tambm entre
os adultos do povo simples e especialmente nas povoaes do interior, por
isso os congregados se dedicaro a pregar Exerccios Espirituais, a difundir
bons livros, a usar todos os meios sugeridos pela caridade industriosa para que,
por meio da palavra ou de escritos, se oponha um obstculo impiedade e
heresia.


Esta referncia ficar substancialmente intocada durante toda a vida de
Dom Bosco, como fcil verificar pelo prospecto sintico da edio crtica aos
cuidados do padre Francesco Motto em relao a estes artigos sobre o Escopo da
Sociedade de S. Francisco de Sales.128

Nas ltimas trs edies redigidas por Dom Bosco possvel encontrar
uma referncia obrigatria, para os irmos clrigos, de compor um curso de Exerccios Espirituais como complemento dos estudos em funo da ordenao presbiteral. Cada scio l-se na verso de 1875 , para completar seus estudos,
alm das conferncias morais cotidianas, componha tambm um curso de pregaes e meditaes, em primeiro lugar para uso da juventude, depois, adaptado
inteligncia de todos os fiis cristos.129 No difcil verificar que a praxe da
jovem Congregao era coerente com estas indicaes130.

Esta ltima referncia ao texto constitucional primitivo leva-nos Amizade
Sacerdotal de Diessbach. Os estatutos da Amizade, descrevendo os meios apostlicos dos quais os amigos sacerdotes se serviro para submeter toda a terra a
Jesus Cristo, afirmavam:
Para difundi-la eficazmente (a santa palavra de Deus), cada um compor com
muito cuidado, para o prprio uso, um curso completo de misses e um de
Exerccios Espirituais.131

Ibid., 72-81.
Ibid., 181.
130
No Arquivo Central da Congregao conservam-se muitas dessas colees de meditaes compiladas pelos primeiros salesianos.
131
Cf. C. Bona, Le Amicizie. Societ segrete e rinascita religiosa (1770-1830), Turim 1962,
503-511.
128
129

177


As Constituies dos Oblatos tambm continham, ento, uma referncia
anloga no primeiro artigo do captulo segundo, intitulado Acerca da prpria
santificao:
(Os scios) tambm se dedicam a compor um conjunto de meditaes e instrues para realizar os Exerccios Espirituais segundo o mtodo de S. Incio.132

5.5. Dom Bosco pede para ser admitido entre os Oblatos de Pio Bruno Lanteri

Outra circunstncia nos testemunha a importncia dada por Dom Bosco
pregao dos Exerccios Espirituais. As Memrias Biogrficas narram que no fim
dos trs anos de permanncia no Colgio, Dom Bosco manteve contatos com os
Oblatos de Maria Virgem e, por certo perodo, nutriu o desejo de entrar para a
vida religiosa naquela Congregao133 e, portanto, de dedicar toda a sua vida
pregao dos exerccios de S. Incio.

A circunstncia confirmada pela biografia de Cafasso, publicada em 1912
por Nicolis Di Robilant,134 e por uma pgina autgrafa da Cronichetta anteriore
do padre Jlio Barberis, primeiro mestre dos novios da Congregao Salesiana,
que escreve:
Eis, portanto, algumas particularidades da vida de Dom Bosco que ele mesmo confidenciou a algum [...]. Terminado o terceiro ano de moral, eu estava
decidido a entrar para os Oblatos de Maria Virgem; j tinha acertado tudo, somente me faltava ir a S. Incio para fazer os Exerccios Espirituais. Quando os
terminei, falei com o padre Cafasso para que me desse uma resposta decisiva,
Costituzioni e regole della Congregazione degli Oblati di Maria V., Turim 1851,17. H muitos
outros elementos de contato entre a espiritualidade da Companhia de Jesus e a tradio salesiana
das origens: a primeira frmula de profisso e a ideia do rendiconto derivam das Constituies da
Companhia; o prprio lema dos jesutas AMDG (Ad Maiorem Dei Gloriam) continuamente repetido nos documentos das origens; as principais devoes e as prticas de piedade (ms de maio,
exerccio da boa morte, devoo ao Sagrado Corao) so de inspirao inaciana; os ensinamentos e os textos para a meditao das primeiras geraes de salesianos (Rodrguez e Da Ponte)
so uma evidente referncia ao mtodo inaciano; a escolha de S. Lus Gonzaga como patrono da
Sociedade; as timas relaes mantidas constantemente por Dom Bosco com os jesutas, seus contemporneos. Sobre este tema, que exigiria ulterior aprofundamento no plano cientfico, veja-se G.
BUCCELLATO, Appunti per una storia spirituale del sacerdote Gio Bosco, Turim 2008, 144-148.
133
Cf. MB II, 203-207.
134
Cf. L. N. Di Robilant, Vita del venerabile Giuseppe Cafasso, II, cit., 215-216.
132

178

e ele me disse que no. Esta resposta foi para mim um golpe terrvel, mas eu
nem quis perguntar-lhe o motivo; voltei para o Colgio e continuei a estudar,
pregar e confessar.135


Cafasso, com quem Dom Bosco continuava a se orientar, segundo o relato
do padre Lemoyne e a narrao de Di Robilant, teria sido francamente decidido
em guiar o discernimento do seu discpulo. Em junho de 1844, por conselho do
mesmo padre Cafasso, depois de ter ido a S. Incio para pensar melhor diante do
Senhor, tomada a deciso de ir para o noviciado dos Oblatos, preparou suas malas e se apresentou ao seu mestre para saud-lo. Mas o bom padre, com seu doce
sorriso nos lbios, lhe disse: Oh! Que pressa! E quem pensar nos seus jovens?
No estava praticando o bem trabalhando por eles? [] Meu caro Dom Bosco,
deixe de lado a ideia de vocao religiosa, v desfazer as malas e continue a sua
obra em favor da juventude. Esta a vontade de Deus, e no outra coisa.136

Numa carta Sagrada Congregao dos Bispos e Regulares, com vistas
aprovao das Constituies, Pio Bruno Lanteri, fundador dos Oblatos, relatando
o primeiro perodo da fundao, escreve:
Os Oblatos de Maria, a este respeito, informam que, pelas suas Constituies
e Regras [...], consta que o seu fim primeiro o de pregar os exerccios de S.
Incio, de graa, como sempre fizeram, obra a que se dedicaram incansavelmente. Nos primeiros anos, isto , de novembro de 1817 at todo o ms de maio
de 1820, pregaram exerccios a 61 grupos, e, nos 4 anos posteriores, embora
reduzidos a pequenssimo nmero, pregaram a outros 115 grupos.137


Este era, portanto, o apostolado que Dom Bosco, perto de completar 29
anos de idade, tinha imaginado exercer por toda a vida.
5.6. O recolhimento na experincia espiritual de Dom Bosco

A expresso recolhimento aparece seis vezes nas Memrias do Oratrio.
Dom Bosco, falando de dois membros da Sociedade da Alegria, Guilherme Garigliano e Paulo Braje, escreve:
ACS A 003.01.01, 15.17.
L. N. Di Robilant L., Vita del venerabile Giuseppe Cafasso, II, cit., 216.
137
T. Gallagher, Gli Esercizi di S. Ignazio nella spiritualit e carisma di fondatore di Pio
Brunone Lanteri, Roma 1983, 33.
135
136

179

Ambos apreciavam o recolhimento e a piedade, e constantemente me davam


bons conselhos. Nos dias santos, aps a reunio regulamentar do colgio, amos igreja de S. Antnio, onde os jesutas explicavam estupendamente a doutrina.138


Com o recolhimento e a comunho frequente o precioso conselho do
telogo Borel se aperfeioa e se conserva a vocao e se forma um verdadeiro
eclesistico.139
A expresso consta tambm dos propsitos feitos por ocasio da vestidura clerical: Procurarei amar e praticar o recolhimento.140


No difcil determinar o exato valor semntico da palavra recolhimento
no pensamento de Dom Bosco. Cerca de um ano antes do incio da redao das
Memrias do Oratrio, ele mesmo escrevia a uma senhora:
A senhora se preocupa com a escolha do estado e faz bem... A orao, a comunho frequente, o recolhimento so as bases.141


O termo nos traz mente as numerosas renncias feitas por Dom Bosco em
termos de jogos e divertimentos profanos, mas parece que ele queria se referir
particularmente vida interior, a uma solido fecunda que deve ser cultivada no
segredo do prprio quarto e que favorece o recolhimento e a orao.

Quanto a isto, pregando aos sacerdotes, Cafasso dizia:
O divino Redentor, Senhor e Mestre de todos os sacerdotes, sempre que podia
gozar de algum momento de respiro das suas contnuas fadigas, como lemos
no Evangelho, se retirava em lugar parte e rezava. Retiro e orao, eis duas
asas que devem elevar o sacerdote to alto a ponto de torn-lo como um Deus
na terra. Retiro e orao so duas qualidades inseparveis: uma deriva da outra; falo de um retiro pio e virtuoso, e no meramente natural e caprichoso. O
homem retirado naturalmente amante da orao, o homem que reza se afasta
necessariamente do barulho do mundo e busca a tranquilidade e a solido. ReMO 57.
MO 107.
140
MO 91.
141
Trata-se de uma carta de 24 de maro de 1872; o original desta carta, ainda no inserida na edio
crtica do Epistolrio, em vias de preparao, encontra-se na casa salesiana de Chiari (Brescia).
138
139

180

tiro e orao so duas virtudes suficientes a si mesmas, porque trazem consigo


e supem o que se exige para formar um digno e santo sacerdote. Quem vive
retirado e reza, impossvel que no tenha o corao desapegado deste mundo
e repleto do esprito do Senhor.142


O primeiro e principal lugar que Cafasso indica para este retiro cotidiano o quarto. S no quarto encontraremos aquela calma afirma to
necessria para formar um bom sacerdote.143 esta cela que o sacerdote deve
aprender a amar: Amor cela, onde o ar puro para a alma, o cu mais aberto,
o Senhor mais prximo e familiar.144

Sado do Colgio Eclesistico, Dom Bosco continuou a confessar-se semanalmente com o padre Cafasso at a sua morte, ocorrida em 1860. Por longos
perodos, foi todos os dias at o Colgio para estudar e retirar-se num quarto
reservado para ele, em particular para a preparao das Leituras Catlicas, para
cuja redao se servia com frequncia da biblioteca.145 De fato, nos ensinamentos
de Cafasso, tambm o estudo considerado um dos deveres especficos da vocao eclesistica.146

Ainda mais significativo o hbito de Dom Bosco de se retirar todos os
anos no santurio de S. Incio para os Exerccios Espirituais; mesmo depois que
a nascente Congregao, em 1864, institucionalizou a prtica dos Exerccios
para os salesianos, que se realizaram nos primeiros anos na casa de Trofarello,
especificamente dedicada a esta finalidade.

A partir de 1842, Dom Bosco frequentou assiduamente o santurio. De
fato, foi para ali quase sem interrupo147 todos os anos e por mais de trinta anos,
at 1874. Falecido Cafasso (1860), sucedeu-lhe como reitor do Colgio e do santurio o cnego Eugnio Galletti; depois, em 1864, o telogo Flix Golzio, confessor de Dom Bosco de 1860 a 1873, ano da sua morte. Aps a morte deste, Dom
G. CAFASSO, Istruzioni per Esercizi Spirituali al clero pubblicate per cura del Can. Giuseppe
Allamano, Turim 1893, 88-89.
143
G. CAFASSO, Manoscritti, vol. V, 2085 B [85]. Para esta citao e para a sucessiva, servimo-nos
do trabalho de Flavio Accornero, reproduzindo a citao tal como registrada pelo autor, e, entre
colchetes, a pgina do texto onde encontramos a citao. As anotaes A e B se referem ao fato
de as pginas do manuscrito muitas vezes apresentarem dois textos diferentes, separados por uma
linha horizontal.
144
G. CAFASSO, Manoscritti, vol. V, 1951 A [85].
145
Cf. L. N. Di Robilant, Vita del Venerabile Giuseppe Cafasso, II, cit., 222-223.
146
F. Accornero, La dottrina spirituale di S. Giuseppe Cafasso, cit., 90.
147
nica exceo foram os anos de 1848 e 1849, porque, devido aos movimentos polticos pela
unidade da Itlia, os exerccios em S. Incio foram cancelados.
142

181

Bosco ainda esteve no santurio para os exerccios em 1874; a fria acolhida do


novo reitor do santurio recebida naquele ano, segundo um dos bigrafos, padre
ngelo Amadei, o convenceram a no mais voltar nos anos seguintes.148
5.7. O empenho no apostolado da boa imprensa

Tambm o empenho no apostolado da boa imprensa que, como vimos,
um dos objetivos apostlicos da nascente Congregao, inspira-se no ambiente
do Colgio.

J Diessbach, mestre de Pio Bruno Lanteri, se propusera responder propaganda dos adversrios por meio da boa imprensa e da unio secreta de
homens de boa vontade, fundando as Amizades Crists. Lanteri, em seguida, contribui bastante difuso da boa imprensa, em particular das obras de S. Afonso,
mantendo-se em contato com os livreiros e tipgrafos de muitos pases europeus.
Ao esprito jansenista e regalista, Lanteri opunha a doutrina de Afonso de Ligrio, difundindo, por iniciativa pessoal ou graas s Amizades e ao apostolado de
leigos e sacerdotes, a obra do santo Doutor,149 que definiu como uma biblioteca
de todos os moralistas.

O padre Pietro Stella escreveu:
Dom Bosco nunca se cansou de ser escritor, editor e propagandista, porque estava pessoalmente convencido de que pregar a boa nova por meio da imprensa
era um servio que, sem falta, ele devia prestar Religio, uma explicitao
necessria da sua vocao de educador da juventude e do povo. Esta foi uma
convico que ele teve em comum com muitos dos seus contemporneos.150


Alm do seu empenho pessoal, deve-se sublinhar o dos seus primeiros
colaboradores. So muitssimas as publicaes dos primeiros Salesianos que se
podem encontrar entre as Leituras Catlicas e tambm em outras edies. O empenho na difuso da boa imprensa era entendido por todos, conforme consta do
Cf. DICASTRIO PARA A FORMAO, Sussidi 2, cit., 172; MB X, 1277 ss.
difcil fazer um clculo aproximativo das cpias das obras do santo Doutor que Pio Bruno propagou no Piemonte e fora. Toms Piatti escreve que s das Mximas eternas ele difundiu, numa s
edio, sem contar outras menores, 36.000 cpias (T. Piatti, Il servo di Dio Pio Brunone Lanteri,
Turim 1934, 109).
150
P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosit cattolica, I, cit., 247.
148
149

182

texto constitucional, como um elemento imprescindvel da misso e do carisma


da nascente Congregao.
5.8. Homem de orao

O padre formado pelo Colgio homem de orao. A orao, para Cafasso, deve considerar-se o dever fundamental para um eclesistico:
Entre os deveres e os ofcios do sacerdote, pode-se dizer francamente que o
primeiro o de rezar: omnis pontifex pro hominibus constituitur in iis quae
sunt ad Deum. O meio principal, alis, nico, pelo qual ele deve manter aberto este caminho, esta relao, esta comunicao com Deus, o modo com que
deve cumprir esta grande misso e embaixada, a orao: eliminai a orao
e tambm tereis eliminado todo comrcio entre o cu e a terra, entre Deus e o
homem.151


Ele deve ser mestre desta grande arte de rezar: E como conseguireis, se
o padre no aprender devidamente e no a exercer consigo mesmo?152

Os escritos e ensinamentos de Dom Bosco sobre a orao testemunhamnos os resultados da formao recebida.153

Numa memria escrita por ele em 16 de abril de 1843, pelo fim do seu
segundo ano de permanncia no Colgio, a respeito de um seu colega de estudos
no seminrio de Chieri, o jovem Jos Burzio,154 que depois se tornou Oblato de
Maria Virgem e faleceu precocemente em 1842, lemos:
G. CAFASSO, Manoscritti, [Copia Corgiatti] VII, 2679.
Ibid., VII, 2681.
153
Para um aprofundamento do tema da orao e, em particular, da orao mental em Dom Bosco,
veja-se a tese doutoral de G. BUCCELLATO, Alla presenza di Dio. Ruolo dellorazione mentale
nel carisma di fondazione di San Giovanni Bosco fondatore della Societ di San Francesco di Sales, Roma 2004, publicada pela editora da Pontifcia Universidade Gregoriana.
154
Jos Burzio (1822-1842) chegou ao seminrio de Chieri no incio do ltimo ano de teologia
do clrigo Joo Bosco, em novembro de 1840. Dom Bosco, ordenado subdicono em setembro
daquele ano, fora nomeado prefeito do dormitrio e logo fez uma boa amizade espiritual com
Burzio. Em setembro de 1841, Jos Burzio ingressou na Congregao de Lanteri; adoecendo gravemente, morreu com fama de santidade em 1842. Um seu coirmo, padre Flix Giordano, quis
recolher alguns testemunhos dos que o tinham conhecido durante sua breve existncia para compor
uma biografia, que foi publicada em 1846. O padre Giordano pediu tambm a Dom Bosco que lhe
enviasse algum testemunho a respeito do colega, com esta finalidade; o testemunho de Dom Bosco
est distribudo passim na pequena biografia. possvel encontr-la em G. Bosco, Epistolario,
editado por F. Motto, I, Roma 1991, 48-53.
151
152

183

Grande foi seu empenho na piedade, na qual se tornou verdadeiramente singular; eu s posso relatar o que aconteceu diante dos olhos de todos; mas quem
conheceu a sinceridade desse clrigo e sua constncia no bem, facilmente pode
imaginar o mais e o melhor dos atos ocultos das suas virtudes interiores. Assim,
jamais aconteceu que nas prticas de piedade ele se comportasse de forma indiferente ou por mera rotina; pelo contrrio, era admirvel a alegria e satisfao
que lhe transparecia no rosto; alis, apenas comeava alguma funo sagrada
ou exerccio de piedade, por exemplo, a orao ou a meditao, ou o simples
fato de entrar na capela, imediatamente recolhia todos os seus sentidos em
santa atitude, de tal modo que todos viam, pelo seu devoto comportamento,
quanto participava da orao com o seu corao e quo grande era o esprito de
f que o animava. Estivessem ou no presentes os superiores, o piedoso comportamento de Burzio era invariavelmente o mesmo, pois bem se pode dizer
que ambulabat coram Deo [...]. Alm das prticas religiosas, comuns a todos e
realizadas por ele com grande fervor, pude constatar, pelas suas palavras e pelo
seu comportamento, que era devotssimo de Jesus sacramentado e de Nossa Senhora, aos quais, se lhe sobrava algum tempo, logo o empregava para consagrlo a eles em afetos de amor e gratido. Eu vi muitas vezes no tempo do recreio,
particularmente nos dias de frias, afastar-se com muito jeito da companhia dos
colegas e ir igreja entreter-se em doces colquios com Jesus sacramentado e
com sua piedosssima me.155


Dom Bosco tem quase vinte e oito anos e est no fim de sua experincia no
Colgio; a considerao e a estima que mostra para com aquele entreter-se em
doces colquios tambm no tempo de recreio nos revela o seu modo de sentir,
o seu ideal de vida crist e sacerdotal.

O tempo da orao, do colquio pessoal e silencioso com Deus, jamais ser
julgado por ele excessivo ou inoportuno; o que Dom Bosco atesta tambm ao
relatar a vida dos jovens dos quais escreveu a biografia, que ele continuar a apresentar por toda a vida como autnticos modelos de virtudes crists e de santidade.

F. Giordano, Cenni istruttivi di perfezione proposti a giovani desiderosi della medesima nella
vita edificante di Giuseppe Burzio, Turim 1846, 139-140. A longa carta de Dom Bosco ao padre
Giordano transcrita por inteiro em G. Bosco, Epistolario, editado por F. Motto, I, 48-53; traz a
data de 16 de abril de 1843.
155

184

5.9. O influxo de S. Afonso Maria de Ligrio156


O primeiro encontro de Dom Bosco com os escritos e a espiritualidade de
Afonso intermediado, provavelmente, pela figura do seu primeiro diretor espiritual, padre Joo Calosso, capelo de Morialdo, povoado a poucos quilmetros de
distncia de Castelnuovo. Segundo as Memrias Biogrficas, foi o prprio padre
Calosso a dar a Dom Bosco as obras ascticas de S. Afonso (cf. MB I, 238); mas
o encontro mais profundo com a doutrina e a figura espiritual de Afonso ocorreu
certamente nos anos do Colgio.

Parece-nos poder dizer que a figura e a obra de S. Afonso, conhecida diretamente ou por meio dos ensinamentos de Cafasso, desempenham um papel mais
importante, se comparado com o de outros autores espirituais, nos escritos de
Dom Bosco, na sua pedagogia espiritual, na prpria concepo da vida religiosa.
Alm disso, muitas so as obras de Afonso citadas explcita ou implicitamente,
ou publicadas por Dom Bosco nas Leituras Catlicas.

O patrono dos confessores e dos moralistas



O esprito da obra afonsiana no tinha muitos seguidores entre os moralistas piemonteses; os mais convictos defensores dessa perspectiva eram somente os
jesutas. Ao rigorismo do seminrio maior de Turim se contrapunha a orientao
do Colgio, que tendia a formar um pastor de almas benigno na doutrina e amorvel no trato.157

A opo pela benignidade orientada principalmente para a praxe do sacramento da penitncia e da formao dos confessores. O patrono dos confessores e moralistas realizou neste campo uma revoluo copernicana, enquanto soube colocar a pastoral em relao com a fragilidade humana, fazer depender o
perdo mais da misericrdia do que da lei e restituir confisso e ao confessor
a tarefa de um ato de amor. Das pginas ricas de concretude das suas obras
156
A respeito das relaes entre Dom Bosco e S. Afonso, vejam-se, em particular, A. Pedrini,
Don Bosco e SantAlfonso M. De Liguori. La dottrina salesiana e alfonsiana nella luce delle
celebrazioni centenarie, in Palestra del clero 67 (1988) 921-936; E. Valentini, Don Bosco e
SantAlfonso. Con aggiunta Vita cronologica di S. Alfonso M. dei Liguori Dottore della Chiesa a
cura di Alfonso Maria Santonicola, Pagani (SA) 1972.
157
P. Braido, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libert, I, Roma 2003, 163. Gioberti
no Gesuita moderno acusar o Colgio de laxismo, alm de jesuitismo (Cf. V. Gioberti, Il gesuita
moderno, IV, Napoles 1848, 279-281).

185

emerge um tipo de ministrio em que a fidelidade misericrdia de Deus faz do


confessor, antes de tudo, um pai e um mdico, depois doutor e juiz.158

quase suprfluo sublinhar o quanto a experincia pastoral de Dom Bosco
tenha sido influenciada por este ensinamento. Nesta perspectiva, mais compreensvel tambm a firme oposio ao seu arcebispo, diante da possibilidade de
os seus clrigos serem obrigados a estudar no seminrio maior de Turim.159
Uma santidade ao alcance da mo

Na poca em que viveu Afonso Maria de Ligrio, a santidade parecia quase um privilgio ligado a outros privilgios: classe social, profisso, dinheiro,
estudo. O santo napolitano, tambm sob este aspecto, foi um inovador e precursor
dos tempos porque se empenhou na socializao da santidade, isto , para tornla universal e igualitria.
Deus quer que todos sejam santos repetia Afonso , cada qual no prprio estado de vida: o religioso como religioso, o leigo como leigo, o sacerdote como
sacerdote, o casado como casado, o comerciante como comerciante, o militar
como militar e assim por diante.160


Podemos sintetizar a sua concepo com uma sua eficaz expresso: trata-se
de uma santidade ao alcance da mo,161 isto , uma santidade acessvel a todas
as categorias de pessoas, de qualquer idade, cultura ou classe social.

Sobre estes fundamentos que se funda a pedagogia de Dom Bosco santidade. Na introduo ao Jovem Instrudo, Dom Bosco escreve:

Cf. M. Vidal, Nuova morale fondamentale, Bolonha 2004, 416; S. Majorano, Il confessore, pastore ideale nelle opere di SantAlfonso, in SM 38 (2000) 329.
159
Entre as vrias razes aduzidas por Dom Bosco para rejeitar a obrigao da permanncia dos
clrigos salesianos como internos no seminrio, h explicitamente a de que os professores do seminrio no eram confiveis, em particular, no campo da teologia moral, da hermenutica sagrada e
da histria sagrada e da histria eclesistica (Cf. G. TUNINETTI, Gli arcivescovi di Torino e Don
Bosco fondatore in DICASTRIO PARA A FORMAO, Don Bosco fondatore della famiglia
salesiana, Roma 1989, 263).
160
Alfonso M. de Liguori, Pratica di amare Ges Cristo, em Opere ascetiche, Roma 1996,
90.
161
Alfonso M. de Liguori, Lettere, I, Introduo, aos cuidados de S. Brugnano, Roma 1887,
95.
158

186

Apresento-lhes um mtodo breve e fcil para viver, mas suficiente para que
possam tornar-se a consolao dos seus pais, a honra da ptria, bons cidados
na terra para serem depois afortunados habitantes do cu.162


A preocupao principal de Dom Bosco a salvao de todos os jovens;
mas a sua proposta espiritual vai mais alm. De fato, seu olhar e seu el educativo miram muito mais alto, isto , a indicar com clareza que no s a salvao,
mas a prpria santidade possvel para todos.

As biografias de Comollo, Savio, Besucco e Miguel Magone so exemplos
de santidade realizada, que Dom Bosco prope a todos como possveis modelos
a imitar; precisamente a categoria da imitao a chave para reler estas e outras
biografias como proposta e projeto para uma vida de santidade.
A devoo ao SS. Sacramento e a comunho frequente

A prtica da assim dita breve visita ao SS. Sacramento, que Dom Bosco
tanto recomendava aos seus jovens, foi tirada do conhecido opsculo de S. Afonso Visitas ao SS. Sacramento e a Maria SS. para cada dia do ms.163 Este livreto
teve tal sucesso que Jos Cacciatore chegou a escrever:
Podemos afirmar sem medo de errar que o despertar eucarstico na segunda
metade do sculo xviii e durante todo o sculo xix devido a este pequeno
livro, verdadeiro cdigo da piedade afonsiana e da mais sincera religiosidade
catlica.164

A este propsito, Carlos Keusch afirma:


No foi Afonso quem introduziu na Igreja o piedoso costume da visita ao SS.
Sacramento do altar. Todas as almas pias, todos os santos de Deus, foi nela que
alimentaram a sua f, aumentaram suas foras. Todavia, cabe ao nosso Santo
o mrito de ter dado uma forma precisa a esta santa prtica com as suas visitas

162
G. Bosco, Il Giovane Provveduto per la pratica de suoi doveri degli esercizi di cristiana piet
per la recita delluffizio della Beata Vergine e de principali Vespri dellanno collaggiunta di una
scelta di laudi sacre ecc., Turim 1847, 7.
163
Trata-se de uma reimpresso de 1748 da publicao original de 1745, que tinha como ttulo
Pensamentos e afetos devotos nas visitas ao SS. Sacramento e sempre Imaculada SS. Virgem.
164
G. Cacciatore, S. Alfonso de Liguori e il giansenismo. Le ultime fortune del moto giansenistico e la restituzione del pensiero cattolico nel secolo xviii, Florena 1942, 295.

187

bastante afetuosas e clssicas. Dotadas agora de uma forma fixa, definiu para
elas ao longo do dia e no plano de todas as obras destinadas perfeio um
lugar e um tempo determinado.165


Dom Bosco no seu Pequeno Tratado sobre o Sistema Preventivo escreveu:
A confisso e a comunho frequentes, a missa cotidiana so as colunas que devem sustentar um edifcio educativo do qual se queiram manter distantes a ameaa e a vara. Tambm nas biografias dos jovens Savio, Besucco e Magone, Dom
Bosco abriu espao para tratar da doutrina ligoriana da frequncia sacramental,
servindo-se particularmente do texto de S. Afonso A Religiosa Santa; entre os demais textos relativos a este tema lembramos: O Ms de Maio, O Jovem Instrudo
e dois pequenos opsculos publicados nas Leituras Catlicas, respectivamente
em 1866 e 1870, intitulados, o primeiro, Prticas devotas para a adorao ao SS.
Sacramento, o segundo, Nove dias consagrados a Maria Auxiliadora.
A doutrina dos Novssimos

Entre os temas mais visitados pela pedagogia de Dom Bosco em vista da
santidade ocupam lugar importante os novssimos: morte, juzo, inferno, paraso.
Um dos enganos da pedagogia moderna dizia o santo educador a de no
querer que na educao se fale das mximas eternas e, sobretudo do inferno.166

Em algumas obras de Dom Bosco, dedicadas a este assunto, pode-se reconhecer o influxo dos ensinamentos de Afonso, facilmente constatveis por meio
do confronto entre as obras dos dois autores. Em particular, dois escritos de Dom
Bosco nos quais podemos evidenciar a dependncia direta do pensamento de
Afonso so O Jovem Instrudo e O Ms de Maio, ligados respectivamente s Mximas Eternas e Preparao para a Boa Morte.

No pequeno captulo introdutrio de O Jovem Instrudo, intitulado Coisas
necessrias para um jovem a fim de se tornar virtuoso, o autor tambm convida
explicitamente os jovens, destinatrios da obra, a dedicar-se a ler algum livro
que trate de coisas espirituais, como Preparao para a Morte, de Santo Afonso.167 O salesiano padre Eugnio Valentini, no seu Dom Bosco e Santo Afonso,
K. Keusch, La dottrina spirituale di S. Alfonso, Milo 1931, 413.
MB II, 214.
167
G. Bosco, Cose necessarie ad un giovane per diventare virtuoso, introduo a Il Giovane
Provveduto, cit., 18.
165
166

188

de 1972, demonstrou amplamente a dependncia do Ms de Maio da obra afonsiana.168


A devoo Virgem Maria

Tambm quanto devoo a Maria, como afirma o padre Valentini, Dom
Bosco, nas formas e no fervor era decididamente afonsiano.169 No fascculo
Nove dias consagrados a Maria Auxiliadora, por exemplo, Dom Bosco, por sete
vezes, cita as Glrias de Maria,170 a primeira grande obra de S. Afonso, de 1750.

Tambm no Exerccio de devoo misericrdia de Deus encontramos
splicas a Maria de clara inspirao ligoriana, como esta: amorosa Me das
misericrdias, doura e conforto dos pecadores, fazei que eu seja atendido, pois
jamais por vs foi pedida uma graa a Deus que ela no vos tenha sido concedida.171 O texto a Preparao para uma Boa Morte, onde lemos na Considerao
XVI, Da Misericrdia de Deus: Maria, minha esperana, vs sois a me da
misericrdia, pedi a Deus por mim e tende piedade de mim.172
O amor msica e ao canto

Afonso comps e musicou muitas loas sacras, algumas difundidas na Itlia
e no mbito eclesial, outras se tornaram famosas em todo o mundo: A sua aptido potica escreve padre Pichler devia merecer a Afonso artista os louros
mais belos para cingi-lo fronte. As suas canes foram traduzidas em latim e
em alemo, em parte tambm em francs, em ingls e holands. Na literatura
mundial lhe est assegurado um lugar de honra.173

Tambm Dom Bosco amou a msica e o canto. Publicou alguns fascculos
como Seleo de loas sacras e Harpa catlica ou Coleo de loas sacras em honra de Maria Santssima,174 em que inseriu algumas canes extradas de autores
168
169

Cf. E. Valentini, Don Bosco e SantAlfonso, cit., 58-59.


Ibid., 61.

170

Ibid.
G. Bosco, Esercizio di divozione alla misericordia di Dio, Turim 1846, 38.
172
Alfonso M. de Liguori, Apparecchio alla morte, in Opere ascetiche, ii, Turim 1846, 154.
173
K. Keusch, La dottrina spirituale di S. Alfonso, cit., 125-126.
174
G. Bosco, Scelta di laudi sacre ad uso delle missioni e di altre opportunit della Chiesa, Turim
18793; id., Arpa cattolica o Raccolta di laudi sacre in onore di Maria Santissima, S. Pier dArena
1882.
171

189

conhecidos; entre estas, uma dezena que Afonso tinha publicado nas suas Glrias
de Maria.175 Finalmente, entre os hinos inseridos no Jovem Instrudo, pode-se
mencionar o celebrrimo Tu scendi dalle stelle, que Afonso tinha publicado nas
suas Obras Espirituais.176
A concepo de vida religiosa

J desde 1854 Joo Bosco tinha reunido os seus mais estreitos colaboradores para manifestar-lhes o projeto de dar estabilidade duradoura obra comeada,
havia um decnio, de cuidar dos meninos mais pobres e abandonados. No dia 18
de dezembro de 1859 era constituda oficialmente a Sociedade de S. Francisco de
Sales.

Em 1866 comeou para a nascente Congregao a experincia dos Exerccios Espirituais por conta prpria em Trofarello; Dom Bosco naquele ano e
nos anos sucessivos pregou as instrues, tendo como ponto de referncia os
escritos ascticos de S. Afonso.177

Um texto significativo para confirmar a clara influncia de Afonso sobre
Dom Bosco fundador so as Constituies da Sociedade de S. Francisco de Sales,
aprovadas definitivamente em 3 de abril de 1874, nas quais segundo o parecer
do padre Pietro Braido do ponto de vista das dependncias literrias S. Afonso
prevalecia de forma absoluta.178 A introduo Aos Scios Salesianos179 da edio
impressa em 1877, que se apresenta notavelmente ampliada, se comparada de
1875, e que contm diversas integraes atribuveis ao padre Jlio Barberis,180
de evidente derivao afonsiana. Escreveu o padre Braido:
As fontes das quais Dom Bosco hauriu de forma mais abundante e explcita ao
compor as pginas Aos Scios Salesianos, sem dvida alguma, so o Exerccio de
Cf. E. Valentini, Don Bosco e SantAlfonso, cit., 64.
Alfonso M. de Liguori, Canzoncine spirituali, 239-240; podem ser encontradas no site da
Biblioteca Afonsiana IntraText no endereo http://www.intratext.com/ixt/ITASA0000/P 9J.HTM
(visitado em 27.12.2010).
177
Cf. E. Valentini, Don Bosco e SantAlfonso, cit., 38.
178
P. Braido, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libert, II, Roma 2003, 269.
179
Esta introduo fundamental porque torna explcito o quadro teolgico de fundo e a particular
concepo de vida religiosa que constitui a chave hermenutica do texto constitucional.
180
Os acrscimos do padre Jlio Barberis, primeiro mestre dos novios da Congregao Salesiana,
foram revistos e corrigidos pelo prprio Dom Bosco, como possvel verificar pelo manuscrito
conservado no arquivo da Casa Geral (Cf. ACS D 473.02.10).
175
176

190

perfeio e de virtudes crists (virtudes religiosas, no terceiro volume, que o que


mais interessa) do jesuta Afonso Rodrguez (1541-1616) e A verdadeira esposa de
Jesus Cristo e os Opsculos sobre o estado religioso do fundador dos Redentoristas, S. Afonso M. de Ligrio (1696-1787).181


Uma ltima considerao importante deve ser feita a respeito de um apndice inserido no fim da terceira e ltima edio em italiano das Constituies,
a de 1885, quando Dom Bosco ainda vivia. Nesse apndice constava uma carta
circular de S. Vicente de Paulo e seis cartas de Santo Afonso Maria de Ligrio
dirigidas aos seus religiosos e muito teis tambm para os Salesianos.182

Um estudo aprofundado dessas sete cartas nos permitiria reconhecer o projeto, as expectativas e, particularmente, as preocupaes do fundador dos Salesianos nos anos da consolidao da nova fundao.
5.10. O sentire cum Ecclesia e a obedincia ao Papa

No campo eclesiolgico, as ideias do Colgio se moviam no sulco do ultramontanismo que caracterizara o surgimento das Amizades. A autoridade e o prestgio do Papa eram defendidos contra os inimigos do primado e as doutrinas
no ortodoxas, mas tambm, por consequncia, contra qualquer possvel abertura
para a modernidade.

A criar este clima de fervor em relao ao Papa tinham contribudo alguns
fatores concomitantes ao evento da Revoluo Francesa. Antes de tudo, o galicanismo que, relevando a peculiaridade da Igreja francesa em antagonismo romana, esfriara as relaes recprocas; em segundo lugar, o prprio jansenismo, que
sempre se mostrou polmico em relao cria romana. J Diessbach, tomando
distncia em relao a essas atitudes, tinha fundado as Amizades com base num
programa de adeso sem reservas Santa Igreja Catlica Apostlica Romana.183
P.Braido, Don Bosco fondatore. Ai Soci salesiani (1875-1885). Introduzione e testi critici,
Roma 1995, 37.
182
G. Bosco, Regole o Costituzioni della Societ di S. Francesco di Sales secondo il Decreto di
approvazione del 3 aprile 1874, Turim 18853, 87.
183
Cf. P. Zovatto, La spiritualit dellottocento italiano, in Storia della spiritualit italiana,
editado por P. Zovatto, Citt Nuova, Roma 2002, 508-511.
181

191


O presbtero formado no Colgio, portanto, capaz de sentire cum ecclesia; alis, marcadamente filorromano em todas as questes, no s religiosas,
mas tambm polticas, em atitude crtica quanto a todas as tenses sociais que
naqueles anos veem o Papa como um possvel antagonista.

No difcil reconhecer, nesta descrio, a posio poltica que Dom
Bosco manteve constantemente, tambm durante os anos difceis das guerras de
independncia, e os traos caractersticos do seu amor e da sua dedicao ao
Papa.

CONCLUSO
Meus irmos, nunca esqueamos que a nossa vida consiste mais no esprito, do
que nas obras []; que, se quisermos que reine em ns este esprito, que no se
esfrie, pelo contrrio, que aumente e se inflame, necessria, indispensvel
uma contnua e constante vigilncia sobre ns mesmos; inclusive, indispensvel um lugar, um tempo de retiro, de estudo, de exame de conscincia do
nosso dia; caso contrrio, o que acontece, o que resulta? Estuda-se, prega-se,
confessa-se, entretanto, como vai o nosso interior, que proveito faz e como
esto as coisas do corao?184


Como concluso do nosso estudo parece oportuno fazer algumas reflexes.

A primeira considerao de carter semntico. Desde o incio da nossa
contribuio, decidimos usar expresses como direo espiritual, acompanhamento espiritual, guia espiritual e outras semelhantes, considerando-as equivalentes, sem preocupar-nos com a reflexo atual que, como sabemos, confere a
estes termos conotaes e acentuaes diversas.

Pelo que afirmamos, bastante evidente que a relao que liga Dom Bosco
ao padre Cafasso fortemente marcada em sentido assimtrico, apesar da diferena de idade entre os dois ser relativamente modesta. A expresso acompanhamento espiritual, de origem recente, tende a salvaguardar o papel do helped
(ajudado) como protagonista da relao e no pertence linguagem do sculo
XIX.

suficiente afirmar que a obedincia ao diretor espiritual no implica
necessariamente passividade, mas, fundando-se numa tradio muito antiga na
184

G. CAFASSO, Manoscritti, [Copia Corgiatti], 5, 1874-1875.

192

histria da espiritualidade, contm em si uma aceitao ativa na f, de um projeto


e de uma tarefa, alm de um guia; analogamente, a natureza dessa relao no implica uma distncia afetiva ou um afastamento emotivo. Talvez, neste tempo de
subjetivismo radical, em que cada um parece ter-se tornado norma de si mesmo,
essa relao constitua uma ocasio de reflexo e uma espcie de provocao.

No curso do nosso estudo pudemos colher quo grande a dvida que o
fundador dos Salesianos e a sua famlia espiritual tm para com o padre Cafasso
e para com a formao recebida no Colgio Eclesistico; uma dvida que, talvez,
nunca foi totalmente paga, nem mesmo pelas primeiras geraes de Salesianos,
fascinadas pela figura extraordinria do fundador e levadas mais a exaltar sua
originalidade, alm de suas virtudes e mritos. Nesta linha, sempre nos pareceu
singular o esquecimento do santurio de S. Incio, poucas vezes inserido nos itinerrios dos lugares salesianos, o qual, sem dvida alguma, representa uma dimenso que no pode ser descuidada da experincia espiritual de Dom Bosco.185

No fim de junho de 2007, quando o pequeno Centro de Estudos de Espiritualidade Salesiana Santo Alfio (CT) organizou o encontro sobre o tema So Jos
Cafasso, o diretor espiritual de Dom Bosco186, tinha a inteno precisa de enfocar
a figura do Santo de Castelnuovo e suas relaes com o fundador dos Salesianos,
alm de penetrar de forma mais viva e pessoal na experincia espiritual de Dom
Bosco. A pesquisa sobre a espiritualidade de Dom Bosco e dos Salesianos, hoje
escrevera o padre Stella j em 1973 talvez no esteja to adiantada como a do
sistema educativo. Este fato se impe ao estudo do historiador e de quem desejar
prognosticar os possveis prximos desenvolvimentos do acontecimento salesiano []. Pode-se afirmar que o emergir ou no de uma reflexo espiritual, interna
ou contgua ao movimento salesiano, poder ser entendido como um sintoma do
que ser no futuro a Famlia Salesiana.187
Dom Bosco esteve no santurio de S. Incio por mais de trinta anos para fazer os seus Exerccios Espirituais, mas tambm muitas outras vezes, primeiro com Cafasso e depois com Golzio,
como colaborador na animao dos Exerccios para leigos e como confessor. A ttulo de exemplo,
vejam-se MB II, 478; III, 536; X, 892. No santurio, Dom Bosco ocupava quase sempre o mesmo
quarto, onde agora se encontra um elevador; somente a partir de 2007 uma pequena placa recorda
esta presena.
186
Os atos do encontro foram publicados no ano seguinte pela LAS com o mesmo ttulo. O volume,
cuidado por ns, contm tambm as relaes dos padres Giuseppe Tuninetti, Lucio Casto e Raimondo Frattallone.
187
P. Stella, Don Bosco e le trasformazioni sociali e religiose del suo tempo in La Famiglia
salesiana riflette sulla sua vocazione nella chiesa di oggi, aos cuidados dos padres P. Brocardo e
M. Midali, Elledici, Turim-Leumann 1973, 167-168.
185

193


A memria viva de Dom Bosco exige a amorosa escuta do fundador, a meditao dos seus escritos, o interesse pela sua interioridade, o estudo, a orao, a
reflexo; isso deve acontecer sem aproximaes simplistas, sem operar perigosas
redues do carisma e a partir de critrios hermenuticos consolidados, a fim de
reconhecer e valorizar alguns traos carismticos irrenunciveis.

194

Direo espiritual em S. Joo Bosco


Caractersticas peculiares da direo espiritual
oferecida por Dom Bosco aos jovens

Aldo Giraudo, sdb


Quando nos aproximamos de Dom Bosco para estud-lo na perspectiva
do acompanhamento espiritual dos jovens, logo descobrimos a dificuldade de
nele distinguir as atitudes, os mtodos e os contedos que o qualificam como
educador dos que o caracterizam no exerccio do ministrio da direo espiritual.

Nesta primeira parte da minha interveno apresentarei algumas reflexes sobre o estreitssimo liame que existe entre a misso educativa de Dom
Bosco e a orientao espiritual dos jovens, e as consequncias que esse liame
comporta para a misso formativa salesiana.

1. Dom Bosco acompanhante no ambiente educativo


salesiano

Como identificar os traos que caracterizam o modelo de acompanhamento espiritual praticado e ensinado por Dom Bosco? Observando o santo educador em ao, no ambiente formativo global do Oratrio, e o seu modo de relacionar-se com os jovens.

1. Dom Bosco um pastor-educador, que no se limitou a atividades tradicionais (pregao, catecismo, confisses e celebrao eucarstica) ou ao contato
ministerial pessoal com cada um dos jovens. Preocupou-se imediatamente em
criar um ambiente educativo bem ordenado, rico de propostas formativas e de
relaes humanas. Nesse tipo de ambiente que ele procurava inserir meninos e
jovens (de preferncia adolescentes) a fim de poder conquist-los para Deus,
para depois acompanh-los, passo a passo, na formao crist da prpria personalidade, por meio de um processo educativo pleno. No Oratrio e nas outras
obras educativas salesianas o encontro entre o formador e o jovem acontece no
contexto de uma comunidade educativo-pastoral variada.
195

Nesse ambiente formativo global, o acompanhamento no se limita ao


momento do dilogo ntimo e do sacramento, mas se conecta, integra e mistura
com os demais estmulos formativos comunitrios postos em ao. Est estreitamente ligado com a ao educativa e os ritmos da vida quotidiana. Na perspectiva
de Dom Bosco e no seu modelo de comunidade, acompanhante e acompanhado
encontram-se diariamente e de modo informal nos ambientes de vida, estabelecem frequentes trocas de ideias, compartilham momentos de trabalho e de recreao, numa relao de recproco conhecimento, muitas vezes tambm de intensa
amizade, que prepara e dispe confiana, entrega e docilidade.

A relao de paternidade espiritual o prolongamento de uma paternidade educativa feita de ensinamentos comunitrios, de doao, de presena amorosa, de entendimentos e cumplicidade. Para cada jovem, Dom Bosco confessor
e diretor espiritual tambm aquele que o acolheu com afeto, que o sustenta,
instrui e educa, e estimula a dar o melhor de si na comunidade e no trabalho cotidiano. A seu lado esto os assistentes, os formadores e os jovens amigos com
os quais pode compartilhar a mesma tenso tica, os mesmos valores espirituais,
num dilogo estimulante e fecundo.

preciso dizer tambm que, na perspectiva e na prtica educativa de
Dom Bosco, tudo que ele faz orientado para a educao crist dos jovens.
Portanto, a sua ao educativa, o cuidado pela relao paternal e amigvel no se
reduz dimenso pedaggica e assistencial: tende a um acompanhamento formativo que tem o seu vrtice no acompanhamento espiritual. Se privarmos o sistema
preventivo de Dom Bosco desta tenso, reduzimo-lo a um simples servio social
e a um conjunto mais ou menos eficaz de conselhos orientados para a prtica educativa. Dessa forma perde-se algo essencial para a compreenso da fecundidade
histrica da sua pedagogia e corre-se o risco de comprometer de sada a eficcia
de qualquer experincia educativa que hoje queira se inspirar nele. O acompanhamento espiritual com vistas perfeio crist parte essencial e necessria
da pedagogia salesiana.

2. A relao de acompanhamento entre o Santo e os jovens tem tonalidades e graduaes diversas: de certo tipo a relao que ele consegue estabelecer
com os jovens do Oratrio festivo, com os quais se encontra quase somente aos
domingos e na confisso; de outro tipo a ligao que consegue construir com
aqueles que moram dia e noite na comunidade educativa; de maior intensidade
196

e profundidade o entendimento que tende a se estabelecer com aqueles jovens


que mostram disponibilidade diante de percursos formativos de qualidade em
perspectiva vocacional; muito profunda e confidencial a amizade espiritual que
o liga com aqueles que decidem unir-se a ele na misso salesiana. Com todos,
como amigo fiel da alma, Dom Bosco procura criar as condies favorveis
para um tipo de encontro confidencial e ntimo que se torna mais intenso e eficaz
no sacramento da penitncia.

Sabemos, todavia, que o seu mtodo educativo no elitista nem seletivo, porque se caracteriza por forte tenso missionria. Se possvel, ele quereria
atingir todos os jovens de um territrio, comeando pelos mais pobres e abandonados, pelos dissipados e em perigo, pelos distantes, a fim de levar a todos para
Deus, atravs de percursos graduais e adaptados a cada um. Dom Bosco tende a
criar comunidades de vida nas quais, por meio do encontro cordial e da presena contnua, da proximidade emptica dos educadores (assistncia salesiana), se
possam estabelecer relaes de confiana e de amizade. Ele mira a conquista dos
coraes. Para isto, emprega instrumentos comunicativos, linguagens e experincias tais que, por um lado, todos possam sentir o Oratrio ou a obra salesiana
como a sua casa, onde esto vontade e, por outra, todos possam dar-se conta
do fascnio e da atrao da proposta crist, a ponto de amadurecer o desejo de
romper com o demnio1, entregar-se a Deus e buscar a perfeio.

3. Alm disso, tambm neste mbito, a preveno coessencial ao modelo formativo de Dom Bosco e ao seu mtodo, tanto para proteger, quanto para
promover. Est historicamente documentado que houve uma gradual reduo da
idade dos destinatrios da obra de Dom Bosco. O Oratrio dos primeiros anos
(1843-1849) destina-se a tirar da rua nos dias festivos os jovens operrios entre
os 14 e os 20 anos. Ao passo que, a partir de 1850, vo para o Oratrio, de preferncia, meninos pr-adolescentes, entre os 11 e 15 anos. No foi somente um fato
sociolgico (tinham surgido outras realidades agregativas que atraam os jovens
mais crescidos), foi uma opo amadurecida por Dom Bosco com a experincia
que o levou a compreender a importncia da preveno espiritual. Progressivamente, ele se deu conta de que a formao crist dos jovens tanto mais garantida
e slida quanto antes se der incio ao acompanhamento espiritual. Como tantos
Cf. G. Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele allievo dellOrat. di S. Franc.
di Sales. Segunda edio aumentada, Turim, Tip. dellOrat. di S. Franc. di Sales 1866, 18.
1

197

outros no seu tempo, ele descobre a receptividade dos meninos e dos pr-adolescentes e a importncia de uma ao formativa, de um acompanhamento espiritual adequado. Eles so capazes de el generoso e de doao total, facilmente
impressionveis, positivamente abertos aos valores do esprito, converso do
corao, prontos a assumir os compromissos batismais e a deixar-se guiar pelo
Esprito Santo, a abrir-se sem condies a Deus e ao da sua graa. Um dia
teria dito: Deem-me um menino que ainda no tem 14 anos, e eu farei dele o que
quiser.2 Com os pr-adolescentes, Dom Bosco obteve os resultados espirituais
mais surpreendentes. As vidas de Domingos Savio, Miguel Magone e Francisco
Besucco do testemunho disso. Demonstram-no tambm os discpulos mais fiis,
Rua, Cagliero, Francesia, Bonetti e outros, que foram conquistados e plasmados
por ele precisamente a partir da pr-adolescncia, numa relao de intimidade
afetuosa e de acompanhamento espiritual atento e extremamente eficaz.
uma grande ventura escreve a propsito do esprito de orao na vida de
Francisco Besucco para quem desde pequeno orientado na orao e toma
gosto por ela. Pela orao, est sempre aberta a fonte das bnos divinas.
Besucco pertenceu ao belo nmero desses jovens. A assistncia que os pais lhe
prestaram desde os mais tenros anos, o cuidado que teve com ele seu professor
e especialmente o seu proco produziram o fruto desejado no nosso jovem.3


Entre os grandes diretores espirituais carismticos da histria da Igreja,
pode-se dizer que Dom Bosco aquele que, de modo mais explcito, se dedicou
de preferncia aos pr-adolescentes e elaborou um mtodo para o seu acompanhamento espiritual, dando incio a uma escola de formao espiritual para meninos que teve grande repercusso histrica, dentro e fora da obra salesiana.

4. Naturalmente, o caminho formativo, to bem fundado na pr-adolescncia, posteriormente consolidado com um tipo de acompanhamento sbrio,
mas muito eficaz, graas ao entendimento profundo e cumplicidade espiritual
que se criou nos anos precedentes entre o diretor-confessor e os jovens, mas tambm em virtude da qualidade do ambiente educativo no qual os jovens so inse2
G. Albertotti, Chi era Don Bosco ossia biografia fisio-psico-patologica di Don Bosco scritta
dal suo medico Dott. Albertotti, pubblicata dal figlio, Gnova, Poligrafica San Giorgio 1929, 13-14.
3
G. Bosco, Il pastorello delle Alpi ovvero vita del giovane Besucco Francesco dArgentera. Edizione seconda, Turim, Tipografia e Libreria salesiana 1878, 95-96.

198

ridos e pelo papel ativo que lhes confiado. Por isso, Dom Bosco queria comunidades educativas conscientes da sua funo prioritria, sensveis s instncias do
nimo juvenil e que fossem fervorosas. Queria salesianos presentes, dedicados,
exemplares, formadores ardentes e ao mesmo tempo respeitosos, abertos, pacientes e constantes. Insistia para que cuidassem dos detalhes, se multiplicassem as
propostas e as ocasies formativas, num clima de grande liberdade. Exortava a
falar com frequncia da beleza da virtude e da alegria que deriva de uma vida na
graa, a encorajar a todos a entregar-se totalmente ao Senhor e a empreender
um caminho espiritual. O desejo de progredir e a deciso de confiar-se a um guia
espiritual so fruto conjunto da ao do Esprito Santo no corao, do empenho
dos educadores, dos estmulos oferecidos pelo ambiente, do exemplo dos colegas, da qualidade e da intensidade de algumas experincias privilegiadas (retiros,
exerccios espirituais, encontros...).

Por muitos aspectos, estamos longe das modalidades da direo espiritual clssica, a do discpulo que vai ao encontro do mestre e abre-se com ele.
Aqui, a funo principal desempenhada pelo clima estimulante do ambiente
educativo e pelo zelo do pastor-educador, que se dedica busca das suas ovelhas
com mil iniciativas, instaura relaes recprocas significativas e cordiais, cuida de
tudo o que pode ajudar a predispor o nimo ao desejo da vida espiritual.

Tudo isto transmitido na tradio salesiana at tempos relativamente recentes. Por mais de cem anos o acompanhamento espiritual dos pr-adolescentes
e dos adolescentes foi uma prioridade, a tal ponto que cada obra salesiana tinha
um irmo especificamente dedicado a isto, o catequista (que no era simplesmente um animador pastoral). Era escolhido com muito cuidado, com base em
qualidades humanas e apostlicas especficas. Tinha a tarefa de ajudar o diretor
na conduo espiritual comunitria e no trabalho formativo personalizado. Devia vigiar sobre a moralidade do ambiente, cuidar da qualidade da formao crist: catequese, vida de orao, sacramentos, preparao das festas, retiros mensais
e exerccios espirituais anuais. Devia favorecer as Companhias (associaes) religiosas e garantir sua dimenso formativa. Era convidado a buscar oportunidades
de dilogo pessoal com cada um, a sugerir textos de meditao e de leitura espiritual, a assumir o cuidado especial pelas vocaes. Quantos de ns, educados
desde meninos nas casas salesianas, antes de 1971, experimentamos a eficcia
desta metodologia de acompanhamento e, provavelmente, devemos precisamente
aos cuidados do catequista a ventura de empreender um caminho espiritual, de
199

adquirir o gosto pela meditao e pela orao, a opo de abraar a vocao salesiana.

5. Com o Captulo Geral Especial (1971) desaparece das Constituies
e dos Regulamentos renovados (1972) a articulao das figuras educativas tradicionais (a partir do prprio governo central da Congregao), em nome de
uma renovao pastoral e de um redimensionamento corajoso e profundo que
atribui toda a responsabilidade comunidade educativa, constituda em corresponsabilidade por educadores religiosos e leigos, de jovens e suas famlias, e
programao e reviso anual, mas j sem responsveis referenciais de setor. Cai,
assim, uma praxe educativa e pastoral consolidada e concretizada em encargos
institucionais, em atividades e iniciativas compartilhadas em todo o mundo salesiano. Tudo descentralizado e deixado iniciativa local.

A Congregao, por meio dos Captulos gerais e de outros documentos, limita-se a formular princpios inspiradores, sem descer a detalhes, a sugerir
a elaborao de projetos educativo-pastorais, a fazer declaraes de princpio.
Hoje, distncia de quarenta anos, a leitura daqueles textos deixa entrever as
instncias e as aspiraes sinceras que orientaram aquelas opes, mas tambm o
abstraimento daqueles enunciados e das prprias orientaes operativas. Hoje
estamos em condies de fazer um balancete, de olhar com maior serenidade para
uma tradio educativa e uma articulao formativa que ento podia ser entendida como pesada e formal, no mais adaptada s novas situaes. Enquanto tal,
ela foi abandonada, sem, porm, ser substituda pela definio concreta de figuras
e processos formativos que pudessem recuperar a tenso pastoral e os aspectos
carismticos de que era portadora.

Em sntese, creio que hoje no basta dizer que importante voltar a
cuidar de forma mais atenta e sistemtica da formao crist dos jovens e do
acompanhamento espiritual; no basta fazer seminrios, instituir mestrado e criar
laboratrios de direo espiritual. preciso voltar a refletir sobre as pessoas explicitamente encarregadas deste ministrio nas comunidades educativas, sobre
os tempos, os modos, as formas, as iniciativas. E isto deve ser traduzido em opes de governo, em reviso da organizao e da regulamentao das obras, em
definies de encargos e tarefas bem detalhados. Diversamente, tudo acabar em
pias exortaes e boas intenes; tudo ser deixado boa vontade e sensibilidade de cada salesiano, que se ver obrigado a beber de outras fontes, a sair em
busca de outras prticas pastorais e reservar-se retalhos de espaos formativos
200

fora dos espaos oficiais e dos ritmos educativos praticados nas obras salesianas.
Nestes ltimos anos assistimos confortados, mas tambm receosos a vrias
iniciativas significativas de alguns irmos ou irms mais zelosos, que se sentiram
na obrigao de fundar escolas de orao, constituir grupos de formao ou movimentos, fundar centros de espiritualidade, osis e comunidades contemplativas,
fora, porm, das instituies salesianas.

Em sntese:
- o acompanhamento espiritual dos jovens por parte de Dom Bosco ocorre no interior de um ambiente formativo global e de um processo educativo voltado para a educao crist, e que se encarna na interao
educativa; a paternidade espiritual o prolongamento da paternidade
educativa;
- o tipo de acompanhamento praticado por Dom Bosco possui diversas
graduaes, conforme os destinatrios e a sua situao pessoal; tem seu
momento central no sacramento da penitncia; tende a alcanar a todos,
para lev-los a Deus e entusiasm-los pela perfeio crist;
- sua direo tem carter marcadamente preventivo, por isso privilegia
os adolescentes, com os quais obtm os resultados espirituais mais surpreendentes;
- o caminho formativo continua na adolescncia graas relao confessor/diretor, qualidade do ambiente educativo e participao ativa
confiada aos jovens; tudo isso requer comunidades conscientes e fervorosas, salesianos dedicados e presentes, pluralidade de propostas, capacidade de apresentar de forma atraente a vida espiritual; para alcanar
este objetivo, Dom Bosco tinha definido encargos e tarefas formativas
bem definidas, que so abandonadas depois do CG XX;
- hoje tempo de avaliao: no bastam exortaes, so necessrias tambm decises institucionais.

2. As atitudes do acompanhante e do acompanhado



Podemos dizer que o acompanhamento espiritual parte essencial da assistncia salesiana, da forma como era entendida por Dom Bosco. S. Francisco
201

de Sales, no prefcio da Introduo vida devota, por duas vezes usa o termo
assistncia (assistance) para qualificar a funo do diretor espiritual, que ele
qualifica ora como condutor (conducteur) e amigo fiel, ora como guia e
anjo da guarda: de fato, deve indicar o caminho e conduzir, avisar, aconselhar,
medicar, consolar, preservar do mal e consolidar no bem. Sua tarefa vai alm de
um acompanhamento amigvel ou do counseling, porque compartilhamento de
experincias vividas pessoalmente e mira a oferecer estmulos apaixonados para
encorajar a enveredar com determinao, ardor do corao e alegria do esprito
na estrada da vida interior. Descobrimos uma grande sintonia com o modelo de
acompanhamento apresentado por Dom Bosco.

1. As atitudes do acompanhante espiritual coincidem com os traos que
caracterizam o educador salesiano, delineados nos escritos sobre o Sistema Preventivo. Trata-se de textos que vale a pena retomar na perspectiva do acompanhamento espiritual. Os resultados formativos esto garantidos, diz Dom Bosco,
somente se o educador se dedicar com zelo sua obra; ele um indivduo consagrado ao bem dos seus jovens, por isso deve estar pronto a enfrentar qualquer
incmodo, qualquer fadiga para alcanar sua finalidade. O diretor e os assistentes, quais pais amorosos falem, sirvam de guia em tudo, deem conselhos e amorosamente corrijam, inspirando a prpria interveno e suas atitudes na caridade
crist, que benigna e paciente, sofre tudo, mas espera tudo e suporta qualquer
contrariedade. O diretor, portanto, deve consagrar-se aos seus educandos, nem
deve assumir compromissos que o afastem da sua funo, pelo contrrio, deve
estar sempre com seus jovens. Assim, depois de conquistar seu corao, ele
poder exercer sobre eles um grande domnio, orient-los, aconselh-los e corrigi-los.4 A relao entre formador salesiano e jovem deve caracterizar-se pela
maior cordialidade, porque a familiaridade leva ao amor, e o amor cria confiana. assim que ela abre os coraes, e os jovens manifestam tudo sem medo
[], tornam-se sinceros na confisso e fora da confisso, e atendem docilmente
a tudo o que determinar aquele do qual esto certos de serem amados. Mas a
familiaridade se constri especialmente no recreio:5
G. Bosco, Il sistema preventivo nelleducazione della giovent, in P. Braido (ed.), Don Bosco
educatore. Scritti e testimonianze, Roma, LAS 1997, 258-266.
5
G. Bosco, Due lettere da Roma, 10 maggio 1884, in Braido (ed.), Don Bosco educatore, 378
e 384.
4

202

Jesus Cristo fez-se pequeno com os pequenos e carregou as nossas fraquezas.


A est o mestre da familiaridade! O professor visto apenas na ctedra professor e nada mais, mas se est no recreio com os jovens torna-se irmo. Se
algum visto somente a pregar do plpito, dir-se- que est fazendo apenas
o prprio dever; mas se diz uma palavra no recreio, palavra de algum que
ama. Quantas converses no provocaram algumas palavras suas ditas ocasionalmente aos ouvidos de um jovem enquanto brincava! Quem sabe que
amado, ama; e quem amado alcana tudo, especialmente dos jovens. A confiana estabelece uma corrente eltrica entre jovens e superiores. Os coraes
se abrem e do a conhecer suas necessidades e manifestam seus defeitos. Esse
amor faz os superiores suportarem canseiras, aborrecimento, ingratides, desordens, faltas e negligncias dos meninos. Jesus Cristo no quebrou a cana j
partida, nem apagou a mecha que fumega. Eis vosso modelo [...]. Se houver
esse verdadeiro amor, no se haver de procurar seno a glria de Deus e a
salvao das almas.6

Esta vizinhana amiga e paterna entendida por Dom Bosco como


essencial para o modelo salesiano de pastor de almas. Nas Memrias do Oratrio
acena sua reao diante do estilo de relacionamento distante dos padres de Castelnuovo.7 Tambm o comportamento dos superiores do seminrio, que, sabemos,
o amavam, no o satisfaz: Quantas vezes queria falar, pedir-lhes conselho ou soluo de dvidas; eram muito austeros, distantes e isso alimentava o seu desejo
de ser quanto antes padre para ficar no meio dos jovens, assisti-los e ajud-los
no que fosse preciso.8

2. Nas Memrias do Oratrio encontramos tambm as atitudes que caracterizam o modelo ideal de acompanhante espiritual segundo Dom Bosco. Ele as
encarna em alguns personagens postos em cena. Em primeiro lugar, quando fala
da assistncia espiritual que sua me lhe proporcionou: dela recebe a primeira
instruo religiosa, por ela encaminhado orao, apoiado com delicada ateno na primeira confisso e na primeira comunho. O relato enfatiza sua funo
Ibid.
Se eu fosse padre, agiria de outro jeito. Gostaria de aproximar-me dos meninos, dizer-lhes uma
boa palavra, dar-lhes bons conselhos, SO JOO BOSCO, Memrias do Oratrio de So Francisco de Sales 1815-1855, Traduo de Fausto Santa Catarina, 3 edio, revista e ampliada, aos
cuidados de Antnio da Silva Ferreira, Editora Salesiana, So Paulo 2005, 49. [N.T. A seguir, sero
citadas como J. BOSCO, Memrias].
8
J. Bosco, Memrias, 93.
6
7

203

formativa, apresentando-a como emblema da orientao espiritual personalizada. Esta descrita como uma relao educativa capaz de estabelecer, por meio da
razo, da religio e da amabilidade, um fluxo comunicativo intenso que atinge a
mente, o corao e a conscincia do filho.
Mame assistiu-me vrios dias ele escreve lembrando os cuidados para com
ele aos onze anos , e durante a quaresma levou-me trs vezes para confessarme. Meu Joo, disse repetidamente, Deus est preparando um grande presente
para ti, mas procura preparar-te bem, confessar, no calar nada na confisso.
Confessa tudo, arrepende-te de tudo, e promete a Deus ser melhor para o futuro [...]. Em casa fazia-me rezar, ler um bom livro, dando-me os conselhos
que uma me industriosa julga oportunos para seus filhos. Na noite daquele
dia, entre muitas outras coisas, mame repetiu-me vrias vezes estas palavras:
Meu filho, este foi um grande dia para ti. Estou certa de que Deus tomou realmente posse do teu corao. Promete-lhe agora que fars o que puderes para
te conservares bom at o fim da vida. Para o futuro, comunga frequentemente,
mas jamais cometas sacrilgio. Diz sempre tudo na confisso. S sempre obediente, vai de boa vontade doutrina e aos sermes, mas, por amor de Deus,
foge como da peste dos que tm ms conversas. Guardei as recomendaes
da minha piedosa me e esforcei-me por pratic-las, e parece-me que desde
esse dia houve alguma melhora em minha vida, especialmente na obedincia e
submisso aos outros, o que antes me custava muito.9


Poder-se-ia objetar que a ao de mame Margarida deve ser entendida
mais como educao religiosa do que como acompanhamento espiritual. Todavia, o contexto geral em que Dom Bosco produz sua memria autobiogrfica,
seus objetivos e os destinatrios da narrao, induzem a pensar que no seu modo
de ver, esta ao educativa se apresenta como uma iniciao espiritual verdadeira
e prpria, e a assistncia materna entendida por ele como o primeiro e importante ato de acompanhamento espiritual. De fato, da arte pedaggica ele amplia o
discurso para a mistagogia espiritual e o testemunho pessoal. Nas Memrias do
Oratrio, Margarida emerge como cone daquele tipo de pastoral familiar em que
se inspira o mtodo formativo de Oratrio.

3. Mais tarde, perto da adolescncia, o encontro com o corao paterno
do padre Calosso determinar um progresso decisivo na vida espiritual de Joo.
9

Ibid.

204

O velho sacerdote o introduz nos dinamismos da vida interior. Lendo o relato do


encontro e do dilogo entre os dois, vm mente tantos outros colquios entre
Dom Bosco e os jovens, e o seu jeito tpico de olhar amorosamente para eles, a
ponto de abrir a mente e o corao a uma recproca empatia comunicativa. Dom
Bosco d grande relevo aos efeitos positivos da amizade educativa com o padre
Calosso e ao valor simblico a ela atribudo.
Coloquei-me logo nos mos do padre Calosso [...]. Abri-me inteiramente
com ele. Manifestava-lhe prontamente qualquer palavra, pensamento e ao.
Isso muito lhe agradou, porque dessa maneira podia orientar-me com segurana no espiritual e no temporal. Fiquei sabendo assim quanto vale um guia
estvel, um fiel amigo da alma, que at ento no tivera.10


No comportamento do velho sacerdote que se aproxima do jovem com
corao pastoral e se responsabiliza por ele, no intenso vnculo de paternidade-filiao que progressivamente se amplia entre eles, na confiante entrega do
discpulo que se abre plena revelao dos pensamentos e obedincia filial,
podemos identificar alguns traos tpicos do acompanhamento espiritual. Os bons
resultados obtidos fazem-nos intuir o impacto da acolhida paterna e a assistncia
formativa do padre Calosso na alma de Joo: A partir desse tempo comecei a
perceber o que a vida espiritual, pois antes agira de maneira um tanto material,
qual mquina que faz uma coisa sem saber por qu.11 Ele vive uma espcie de
gerao espiritual que desperta a sua conscincia interior. H comunicao de
vida entre um pai generosamente acolhedor e um filho que se sente felizmente
amado e prova no seu ntimo, de forma incisiva, um nascimento para Deus e para
si mesmo. Joo, que tem entre 14 e 15 anos, ajudado a penetrar num nvel mais
profundo do prprio esprito, no qual saboreia a beleza e a alegria da vida espiritual. Nesse tipo de acompanhamento existe tambm uma componente de instruo, de correo e de estmulo, tpica de uma correta relao educativa: Entre
outras coisas, proibiu-me logo uma penitncia que eu costumava fazer e que no
era apropriada minha idade e condio. Animou-me a frequentar a confisso e a
comunho, e ensinou-me a fazer todos os dias uma breve meditao, ou melhor,
uma pequena leitura espiritual.12 No se trata de uma simples catequese sobre
Ibid.
Ibid.
12
Ibid.
10
11

205

Deus, a vida virtuosa ou moral, mas de um acompanhamento do jovem rumo


a uma f sempre mais consciente e ardente. O adolescente ajudado a tomar
conscincia de si mesmo, dos seus desejos profundos; sustentado no esforo de
purific-los, retific-los e orient-los para Deus. Nisto ele prova uma satisfao,
uma alegria, uma iluminao e um gosto de vida completamente novos...

4. Importantssimo, segundo Dom Bosco, tambm o aspecto exterior, o
modo de ser e de se apresentar, de entrar em relao com os jovens. O telogo
Borel entra em cena nas Memrias como modelo deste estilo relacional salesiano, simptico e jovial, unindo a profundidade interior e o ardor comunicativo:
Entrou na sacristia com ar alegre, com gracejos temperados sempre de pensamentos morais. Quando lhe observei a preparao e a ao de graas da missa,
a atitude, o fervor na celebrao, percebi de golpe que era um digno sacerdote
[]. Quando, ento, comeou as pregaes, impressionando pela simplicidade, vivacidade, clareza e inflamada caridade, que transparecia de todas as
suas palavras, todos repetiam que era um santo. O resultado foi que todos
porfiavam em confessar-se com ele, em conversar com ele sobre a vocao e
receber alguma lembrana especial. Eu tambm quis tratar com ele das coisas
da alma.13


5. Nas biografias edificantes de Domingos Savio, Miguel Magone e Francisco Besucco emergem indicadores interessantes de mtodo a respeito da maneira de preparar o terreno para o acompanhamento espiritual. Desde o primeiro
encontro, Dom Bosco procura criar as condies favorveis para a relao formativa, instituindo com os jovens um canal comunicativo de tonalidade afetiva.
Com inteligncia e intuito, pe em ao processos psicolgicos que miram desfazer preconceitos e desconfianas, criar confiana e simpatia recprocas. Estabelece um dilogo sereno, orientado para o conhecimento da pessoa. Quer conhecer
a sua histria, sua situao, seu carter e suas aspiraes. Procura compreender
os desejos, as necessidades. Ajuda a levantar o olhar, abre-lhe horizontes significativos repletos de sentido. Finalmente oferece sua ajuda concreta para a soluo
de um problema, para a realizao de um desejo. Assim, o jovem se sente compreendido, acolhido, amado e apoiado. Surge nele o reconhecimento, a confiana,
a tendncia a entregar-se e a colaborao educativa.
13

J. Bosco, Memrias, cit. 116.

206


O resto vir depois, quando, inserido no ambiente educativo do Oratrio,
rico de propostas formativas, de relaes humanas significativas, de vivacidade,
de liberdade de expresso, o jovem chegar progressivamente a tomar conscincia da prpria interioridade, nas suas luzes e sombras, de necessidades e desejos
indistintos como vemos no caso de Miguel Magone. Ento a confiana no amigo educador o levar abertura do corao sem resistncias, a uma disponibilidade mais profunda. O acompanhante, assim, poder abrir horizontes interiores,
indicar os percursos e os passos para libertar-se dos condicionamentos e aceder
aos nveis superiores do esprito, na resposta aos apelos de Deus. As biografias
dos trs jovens, como o relato da amizade com o padre Calosso, delineiam esse
momento exaltante no qual o menino comea a ver a realidade sob uma nova luz:
valores e experincias religiosas, antes vividas superficialmente ou s de forma
mecnica, agora adquirem significado e ele levado a empreender sem demora e
com alegria o caminho espiritual.

Por exemplo, a descrio da mudana ocorrida no modo de sentir e de agir
de Miguel Magone, depois da confisso geral, a expresso concreta da eficcia
da assistncia espiritual realizada por Dom Bosco. No curso do primeiro ms
transcorrido em Valdocco, fiel promessa feita, ele procurava cumprir seus deveres dirios, mas sem nenhum entusiasmo. Seu corao estava em outros lugares,
como escreve Dom Bosco: Quase no sentia gosto em nada durante a recreao.
Cantar, gritar, correr, pular, fazer estardalhao, era tudo o que agradava a seu temperamento fogoso e vivaz.14 Pouco a pouco, a proximidade e a amizade de um
bom companheiro, o tom elevado e estimulante do ambiente, o confronto com a
qualidade moral e espiritual dos outros jovens, levam-no a tomar conscincia do
prprio estado interior e o mergulham numa crise desconfortvel. Acompanhado
com sabedoria educativa e delicadeza por Dom Bosco, encaminhado a realizar
uma converso do corao.15 Assim ele pode passar de um angustiante e indistinto sentimento de culpa conscincia crist da misericrdia de Deus. Decide
romper com o demnio. O temor se traduz em amor, em entrega generosa de
si mesmo ao Senhor e ele se descobre feliz e conscientemente introduzido no
mundo da vida espiritual. Dom Bosco descreve com eficcia a serenidade provada pelo jovem, sua alegre experincia de libertao interior. A partir daquele
G. Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele allievo dellOratorio di S. Francesco
di Sales, Turim, Tip. G.B. Paravia e Comp., 1861, 15.
15
Ibid. 16-24.
14

207

momento, tudo para ele adquire luminosidade e significado. Acontece como uma
transfigurao no modo de entender a si mesmo e a vida. Miguel continua a ser
muito vivaz no recreio, mas tambm o primeiro no cumprimento dos deveres de
cada dia, mais atento e servial para com os colegas.16 Dom Bosco mostra como
a nova atitude de Miguel caminhou para um esprito de f viva, uma exemplar solicitude, um comportamento edificante em todas as prticas de piedade,
vividas no recolhimento e no fervor: o amor de Deus que tomou posse do seu
corao e o transfigurou.17 Depois deste primeiro passo decisivo, que no outra
coisa seno a apropriao batismal, abre-se larga a estrada da vida espiritual.

6. Nas biografias dos seus jovens, Dom Bosco acena explicitamente s
atitudes que podem tornar fecunda uma relao de acompanhamento espiritual.
Dirigindo-se aos jovens, em primeiro lugar ele insiste na importncia de escolher
um fiel amigo da alma com o qual possam viver em filial confiana. Sobre
este ponto ele insiste com frequncia porque o considera qualificador da sua proposta educativa. Ele se refere ao clima de sereno relacionamento necessrio para
celebrar dignamente e com fruto o sacramento.
Lembrem-se escreve na vida de Magone de que o confessor um pai que
deseja ardentemente fazer-lhes todo o bem possvel, e procura afastar de vocs
toda espcie de mal [...]. Posso garantir-lhes que quanto mais forem sinceros e
tiverem confiana nele, tambm ele aumentar sua confiana em vocs e ter
sempre mais condies de lhes dar os conselhos e avisos que lhe parecero
mais necessrios e oportunos para as suas almas [...]. Eu quis dizer-lhes estas
coisas para que no se deixem enganar pelo demnio, calando por vergonha
algum pecado na confisso.18


o primeiro passo. Mas Dom Bosco tende a identificar educador, confessor e diretor espiritual. Por isso, insiste num relacionamento marcado pela
confiana. Procurem com frequncia seu confessor, rezem por ele, sigam seus
conselhos. Depois, quando tiverem escolhido um confessor que percebam ser
adaptado s necessidades de sua alma, no mudem mais sem necessidade. Enquanto no tiverem um confessor estvel no qual vocs depositam toda a sua
confiana, sempre lhes faltar o amigo da alma.19
Cf. Ibid., 33-39.
Ibid., 29.
18
Ibid., 25.
19
Ibid., 26.
16
17

208


O discurso depois dirigido aos confessores, com o convite a acolher
com amabilidade os jovens penitentes, ajud-los a expor os problemas da sua
conscincia, insistir que venham confessar-se com frequncia, apoi-los com
todo empenho para que ponham em prtica os conselhos, corrigir com bondade sem jamais repreend-los. Conclui-se com um conselho, fruto da experincia,
para eliminar qualquer possvel perturbao psicolgica quanto ao passado e todo
sentimento de culpa que deforme o olhar objetivo sobre si mesmo e comprometa
a serenidade necessria para uma slida construo interior: Quando tiverdes
conquistado a confiana, com prudncia abri o caminho para indagar se as confisses do passado foram bem feitas [...]. Convide-se o jovem a examinar bem o
estado da prpria conscincia, particularmente dos sete aos dez anos.20 Nunca
se deve esquecer que, no ambiente formativo de Valdocco, o convite confiana
vai alm de um momento e do objeto do sacramento, abrange toda a vivncia e
as mltiplas ocasies quotidianas de encontro entre o jovem e o educador. Para
Dom Bosco a relao entre confessor e jovem nunca pode ser separada do processo educativo, e deve estender-se a um acompanhamento formativo em sentido
amplo.

Nas vidas de Domingos Savio, Miguel Magone e Francisco Besucco,
encontramos indicaes mais especficas. Em Domingos Savio, sublinha-se de
preferncia a entrega confiante e confidencial. J desde o primeiro encontro, impaciente para saber o parecer de Dom Bosco, com o qual tinha imediatamente
sintonizado em plena confidncia, Domingos pergunta: Ento, o que acha?
Levar-me- a Turim para estudar? Eh! Parece-me que temos aqui uma bela
fazenda. Para o que pode servir essa fazenda? Para fazer uma bela roupa
para oferecer a Deus. Ento, eu sou a fazenda; o senhor o alfaiate; por isso,
leve-me junto e far uma bela roupa para Deus.21 Dom Bosco mais explcito
quando apresenta as disposies manifestadas pelo jovem no segundo encontro,
quase sugerindo que este foi o segredo dos sucessivos progressos espirituais. Ao
chegar casa do Oratrio, veio at os [meus] aposentos para entregar-se inteiramente nas mos dos seus superiores, como ele dizia.22
Ibid., 27-28.
G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico allievo dellOratorio di San Francesco di Sales,
Turim, Tip. G.B. Paravia e Comp., 1859, 35.
22
Ibid.
20
21

209


Idntica a atitude de Francisco Besucco, o qual, vindo para Valdocco,
quis fazer uma confisso geral: como eu quero colocar a minha alma em suas
mos, assim desejo manifestar-lhe toda a minha conscincia, para que possa conhecer-me melhor e com mais segurana dar-me os conselhos que sero mais
convenientes para salvar a minha alma.23 Trata-se de uma manifestao de si
mesmo sem reservas. A confiana no educador, percebido como amigo e pai afetuoso, gera a entrega e a disponibilidade. Sabemos que a entrega confiante de
si mesmo por parte do educando, no sistema de Dom Bosco, em grande parte
fruto de um modo de ser e de posicionar-se do educador: da sua caridade ardente,
da sua ativa e afetuosa disponibilidade, da sua capacidade de empatia, da generosa e cordial disponibilidade a doar-se pelo bem do jovem. a qualidade da sua
pessoa, so seus gestos concretos que conquistam o corao do jovem, o induzem
confiana e confidncia. A essas disposies ele atribua um valor determinante. Recomendava-as continuamente aos salesianos e as apresentou tambm na
narrao autobiogrfica do itinerrio pessoal na realizao da misso oratoriana.
Tambm o fez evocando o intenso liame juvenil com o padre Calosso. Colocouo em relevo com maior intensidade ao acenar direo do padre Cafasso: O
padre Cafasso, meu guia havia seis anos, foi tambm meu diretor espiritual, e se
fiz algum bem, devo-o a este digno eclesistico, em cujas mos coloquei minhas
decises, estudos e atividades.24 A reconstruo do dilogo com o mestre, ao
final dos estudos no Colgio eclesistico, evidencia de forma impressionante a
qualidade de obedincia incondicional e de santa indiferena que ele configura
como expresso plena da vocao crist, pressuposto para a realizao plena e
amorosa da vontade divina: Quero reconhecer a vontade de Deus na sua deliberao e no quero que nela entre a minha vontade.25

Em sntese:

- o acompanhamento parte integrante da assistncia salesiana; as atitudes do acompanhante salesiano so as que caracterizam o Sistema
Preventivo;


23
G. Bosco, Il pastorello delle Alpi ovvero vita del giovane Besucco Francesco dArgentera, Turim,
Tip. dellOrat. di S. Franc. di Sales, 1864, 101.
24
J. Bosco, Memrias, 120.
25
Ibid. 131.

210

- um trao bsico o do cuidado personalizado, da intimidade materna


que se torna mistagogia espiritual;
- outra caracterstica a da adoo paterna, do responsabilizar-se, da
amizade educativa por meio da qual iluminar, introduzir nas dinmicas
da vida interior e gerar a Deus e a si mesmos;
- importante tambm um modo de ser e um estilo relacional simptico e
jovial, unido ao testemunho de profundidade interior e paixo comunicativa.


Dom Bosco modelo: ele tende a identificar em si o educador, o confessor
e o diretor espiritual; insiste na acolhida afetuosa, na bondade, na magnanimidade
e no cuidado dos particulares, na intensidade do afeto demonstrado, de modo que
os jovens se entreguem e se abram, colaborem com a ao formativa com uma
obedincia pronta e cordial.

211

Direo espiritual em So Joo Bosco


Contedos e itinerrios do acompanhamento espiritual
dos jovens na praxe de Dom Bosco

Aldo Giraudo, sdb



Nesta segunda parte indicarei alguns contedos privilegiados por Dom
Bosco no acompanhamento espiritual dos jovens e os itinerrios pelos quais os
orienta para a santidade.

1. Um ITINERRIO batismal

1. Os contedos e os itinerrios percorridos pelo acompanhamento espiritual pessoal correspondem aos da proposta educativa comunitria, adaptados
sensibilidade de cada um. Dom Bosco inspira-se na tradio espiritual que tem
como pontos de referncia S. Afonso de Ligrio, S. Francisco de Sales, S. Felipe
Neri e a escola espiritual da Reforma catlica. Encontramos em suas intervenes grande sintonia com as indicaes oferecidas pelo Homo apostolicus e por
outras obras ascticas, onde S. Afonso expe a meta e os caminhos que o diretor
espiritual deve indicar para alcanar a santidade: consolidar a converso por meio
das armas necessrias para vencer as tentaes, dominar as paixes, mortificar os
sentidos e purificar o corao; formar orao e prtica sacramental; orientar
perfeio moral segundo o prprio estado de vida, no exerccio das virtudes;
verificar a concretude dos progressos. Em particular, Dom Bosco se inspira na
Instruo da juventude na piedade crist de Carlos Gobinet,1 no Guia anglico,2
e nas Consideraes de Pascoal de Mattei para celebrar os seis domingos de S.

C. Gobinet, Istruzione della giovent nella piet cristiana, Turim, Maspero e Serra 1831; o
texto original, Instruction de la jeunesse en la piet chrtienne, de 1655; o autor, que era telogo,
educador e reitor do Collge du Plessis-Sorbonne, entre as disputas do seu tempo, mantm-se
distncia das posies dos jansenistas e dos jesutas e prefere inspirar-se em S. Francisco de Sales
e no dominicano Lus de Granada.
2
Guida angelica ossiano pratiche istruzioni per la giovent, Turim, Stamperia Reale 1767.
1

212

Lus.3 Trata-se de livros escritos entre 1600 e 1700, elaborados por educadores
experientes, ricos de indicaes concretas, aptos para apresentar de forma atraente a vida crist, que Dom Bosco considerava convergentes com o prprio modo
de pensar.

2. O Jovem instrudo contm as linhas mestras da proposta formativa de
Dom Bosco. Nas meditaes introdutrias sublinha temticas que traam um itinerrio para o acompanhamento espiritual: 1) formar uma ideia exata de Deus
Criador e da finalidade pela qual fomos criados; 2) considerar o amor preferencial de Deus pelos jovens e o dever de corresponder-lhe; 3) tomar conscincia
da importncia da juventude como momento propcio para iniciar o caminho da
virtude; 4) compreender o valor da obedincia como virtude primeira, em perspectiva educativa e cristolgica; 5) adquirir o sentido do sagrado, o respeito pelo
templo do Senhor, lugar de santidade, casa de orao, e pelos ministros sagrados; 6) vencer o respeito humano e viver abertamente a prpria f; 7) exercitar-se
na meditao, na leitura espiritual, no estudo do catecismo, na ateno Palavra
de Deus que alimento da alma.4 Dom Bosco ensina tambm algumas tcnicas
defensivas: 1) no se dar ao cio; 2) evitar as ms companhias e escolher amigos
bons, estimulantes; 3) fugir das conversas ms ou desonestas; 4) afastar-se de
pessoas e lugares imorais.5 Depois sugere a maneira de comportar-se nas tentaes, de reagir s objees contra o empenho na prtica da virtude na juventude.6
Prope breves meditaes dirias para alimentar a perseverana no bem.7

Tambm as devoes so orientadas em funo formativa. Maria Santssima, um grande apoio para os jovens, concede aos seus devotos todas as graas
teis para o seu bem. A Ela se deve recorrer para nunca cometer pecado mortal, para conservar a santa e preciosa virtude da pureza, para fugir dos maus
companheiros.8 S. Lus apresentado como modelo de vida crist, que mostra
aos jovens: 1) em que consiste o arrependimento perfeito; 2) como importante
P. de Mattei, Considerazioni e pratiche divote per celebrare con frutto le sei domeniche in
onore di San Luigi Gonzaga della Compagnia di Geu accresciute di tre domeniche, che servono
per compire la novena di detto santo, Novara, Rusconi 1843 (edio original: 1766).
4
G. Bosco, Il giovane provveduto per la pratica de suoi doveri degli esercizi di cristiana piet,
Turim, Tipografia Paravia e Comp. 1847, 5-19.
5
Ibid., pp. 20-26.
6
Ibid., pp. 26-29.
7
Ibid., pp. 31-50.
8
Ibid., pp. 51-54.
3

213

a mortificao dos sentidos e o esprito de penitncia; 3) como se defende a virtude da pureza; 4) como preciso desapegar-se do amor desordenado aos bens
terrenos; 5) como se pratica o mandamento da caridade material e espiritual
para com o prximo; 6) a que nvel devem chegar o amor de Deus e o fervor pelas
coisas espirituais; 7) como importante entregar-se a Deus logo e de forma plena; 8) como viver em unio com Deus; 9) como enfrentar serenamente a morte.9

3. Como alicerce de todo o caminho, Dom Bosco coloca a deciso resoluta
de dar-se a Deus. O jovem convidado a no se demorar em consideraes, a
converter-se e entrar num processo de apropriao batismal. As frmulas usadas
so simples (Servite Domino in laetitia; Alegria, Estudo, Piedade), mas os
contedos so exigentes e elevados. O diretor, antes de tudo, deve criar as condies para que os jovens resolvam logo entregar-se a Deus, a ser bons na
juventude, a observar os mandamentos desde a adolescncia. Trata-se de levar
converso radical, ao desapego drstico do corao em relao ao pecado e
generosa adeso batismal. No Jovem instrudo e nos textos narrativos de Dom
Bosco, encontramos esta dinmica de radicalidade, adaptada e tornada significativa para os jovens do seu Oratrio. uma passagem obrigatria para serem introduzidos na vida interior. O que vem depois um acompanhamento em funo
da consolidao, da progressiva abertura incondicionada guia do Esprito, do
servio a Deus in laetitia (na alegria) e em tenso de contnuo aperfeioamento.

2. A unio com Deus e a pedagogia da orao



1. Outro empenho qualificador do acompanhamento de Dom Bosco a
formao para o sentido da presena de Deus. A sua tradio espiritual considera
o exerccio da presena de Deus como primeiro passo de toda forma de orao,
que permite entrar na intimidade divina, viver constantemente na presena do
Senhor, tambm em meio s atividades mais variadas. Como transparece de suas
intervenes educativas, Dom Bosco quer impregnar os jovens por meio desse
exerccio, que leva a uma leitura de f dos acontecimentos e da histria humana.
A presena de Deus percebida na beleza da criao, provada na intimidade
da orao e da comunho eucarstica; reconhecida nos acontecimentos da vida
9

Ibid., pp. 56-71.

214

pessoal, na histria da Igreja e da humanidade. O sentido de Deus que Pai, presente e operante, domina e polariza a mente e o corao de Dom Bosco e dos seus
jovens.

2. Nessa linha que o Santo desenvolve a sua pedagogia da orao. As
prticas de piedade so o caminho para alcanar o esprito de orao. No Jovem Instrudo, ele oferece instrumentos simples para santificar cada ao do dia;
ensina a fazer tudo por amor a Deus, atendendo diligentemente aos prprios
deveres e fazendo tudo pelo Senhor; exorta a imitar Lus Gonzaga, modelo
de orao desde a infncia, o seu esprito de orao e de devoo. Valoriza a
sensibilidade dos adolescentes e os gostos romnticos do tempo, mas mira exclusivamente a formar nos jovens a unio com Deus em tonalidade afetiva e unitiva.
Entende lev-los a viver em estado de orao, por meio de prticas de piedade
ordinrias, jaculatrias, visitas, exames de conscincia... Este esprito orante,
animado de ardente caridade, esta permanente unio de amor, a ponto de impregnar os pensamentos, unificar os afetos, orientar as atividades dirias, e as
relaes humanas, a meta da sua conduo espiritual. Os prprios recreios so
apresentados como atividades agradveis ao Senhor. Nas trs Vidas dos jovens
do Oratrio, este um dos aspectos registrados com maior eficcia. Por exemplo,
a respeito de Domingos Savio, escreve: Seu esprito estava to habituado a falar
com Deus que, em qualquer lugar que estivesse, mesmo em meio maior balbrdia, recolhia seus pensamentos e com pios afetos elevava o corao a Deus.10

3. As duas colunas da vida espiritual



1. A experincia de formao dos adolescentes reforara a convico de
Dom Bosco a respeito das potencialidades da pedagogia sacramental. Os sacramentos so para ele os mais adequados apoios da juventude: Dai-me um
jovem que frequente estes sacramentos, e vs o vereis crescer na idade juvenil
e chegar idade viril, se for do agrado de Deus, at a idade mais avanada, com
um comportamento que de exemplo para todos os que o conhecem.11 Esses
G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico allievo dellOratorio di San Francesco di Sales,
Tip. G. B. Paravia e Comp., Turim 1859, 62.
11
Ibid., pp. 68.
10

215

sacramentos so a base segura, o fundamento imprescindvel do seu sistema


educativo: Creio no dizer demais afirmando que, se esses dois elementos forem
omitidos, a moralidade ruir.12 A insistncia de Dom Bosco deriva da considerao da situao dos seus meninos: pr-adolescentes e adolescentes que precisam
de serenidade interior e de apoio moral constante contra as tentaes, os desnimos, o sentido de culpa e o dobrar-se sobre si mesmos; que devem ser treinados
para frear as paixes, defender e solidificar a pureza, construir as virtudes e
alcanar um estado de serenidade interior em funo da construo da prpria
personalidade.

Os jovens devem aprender a usar bem o sacramento da Penitncia: modo
fcil para acertar as coisas da alma, readquirir a paz com Deus e a vida da
graa. Para isso, oferece sugestes prticas sobre o exame de conscincia, sobre o melhor modo de chegar ao arrependimento perfeito, sobre a confiana no
confessor, sobre o que se deve fazer depois da confisso para torn-la fecunda e
frutuosa.13 A confiana ilimitada no confessor (um pai, que deseja ardentemente
fazer-lhes todo o bem possvel e procura afastar de vocs todo tipo de mal), ir
procur-lo com frequncia e seguir docilmente os seus conselhos so fatores
estratgicos para o progresso na virtude e na santidade.14 No ambiente educativo
de Valdocco, a confisso sacramental momento privilegiado para o acompanhamento personalizado, para verificar os progressos ou as resistncias interiores,
para oferecer estmulos.15 Por este motivo, como observa Pietro Stella, no Jovem
instrudo a Confisso tem um rico contorno de prticas e frmulas devotas, que
servem para conferir a adequada importncia ao Sacramento.16
G. Bosco, Il pastorello delle Alpi ovvero vita del giovane Besucco Francesco dArgentera, Turim, Tip. dellOrat. di S. Fran. di Sales, Turim 1864, 100; cf. tambm G. Bosco, Cenno biografico
sul giovanetto Magone Michele allievo dellOratorio di S. Francesco di Sales, Turim, G.B. Paravia
e Comp. 1861, 24-29.
13
Cf. G. Bosco, Il giovane provveduto, cit. 94-97.
14
G. Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele, cit. 24-27.
15
nesta perspectiva que Dom Bosco apresenta a relao entre Domingos Savio e o confessor-diretor: Ele comeou por escolher um confessor, que conservou durante todo o tempo que esteve entre
ns. Para que ele pudesse ter uma adequada viso da sua conscincia, como dissemos, quis fazer
a confisso geral. Comeou por confessar-se a cada quinze dias, depois a cada oito, comungando
com a mesma frequncia. O confessor, vendo o grande proveito que obtinha nas coisas do esprito, aconselhou-o a comungar trs vezes por semana e, depois de um ano, permitiu-lhe inclusive a
comunho diria. [] Tinha para com ele uma confiana ilimitada. Alis, falava com ele com toda
simplicidade dos assuntos de conscincia tambm fora da confisso (Bosco, Vita del giovanetto
Savio Domenico, cit. 68-69).
16
P. Stella, Valori spirituali nel Giovane provveduto di san Giovanni Bosco, PAS, Roma
1960, 116.
12

216


2. A segunda coluna da vida espiritual para Dom Bosco a piedade eucarstica. Por um lado, ele est convencido da eficcia da graa sacramental, e,
por outro, ele atua uma pedagogia que pe em relao de mtua fecundao a
comunho frequente, o compromisso moral e o crescimento na santidade. Por
exemplo, os fervores eucarsticos de Domingos Savio so apresentados como resultantes do encontro entre a ao da graa e os dinamismos de um corao educado na f e tornado sensvel aos apelos interiores do Esprito, que procura viver
de modo sempre mais digno da comunho eucarstica. A primeira comunho
de Domingos descrita como o encontro festivo entre dois amantes, num clima
interior de recolhimento absorto, que no se esgota na intensidade emotiva do
momento. De fato, as lembranas formuladas naquele dia aparecem como uma
afirmao do primado absoluto do amor de Deus e uma sua traduo operativa
entendida como amizade afetuosa e opo batismal indiscutida e irremovvel:
Antes morrer que pecar. Certamente, no h resposta mais adequada ao dom
que Cristo faz na Eucaristia do que a entrega perene de si, que aqui expressa em
frmulas tpicas da simplicidade de um menino. Dom Bosco est convencido de
que a compreenso adequada da Eucaristia e sua conveniente recepo com as
devidas disposies gera uma mentalidade nova, uma deciso irremovvel, uma
fecunda tenso para o bem e para a perfeio.

3. Nesse contexto, deve-se relevar a insistncia sobre a participao diria missa e a devoo eucarstica, derivada do sentido vivo da presena real
e de um desejo de grande intimidade amorosa com Jesus. Seguindo uma praxe
consolidada, o Santo delineia uma forma de participao da missa consciente do
significado moral dos diversos ritos e momentos; educa os jovens a viv-los por
meio da recitao de oraes que, parafraseando os textos do missal, visam ao
envolvimento da f e dos sentimentos com vistas a uma vivncia crist coerente.
Assim, por exemplo, o jovem convidado a entregar-se a si mesmo junto com o
po e o vinho: Ofereo-vos ao mesmo tempo o meu corao e a minha lngua,
para que, no futuro, no deseje outra coisa, nem fale de outra coisa, seno do que
se refere ao vosso santo servio.17 Depois o jovem exortado a comungar ou
pelo menos a fazer a comunho espiritual, que consiste num ardente desejo de
receber Jesus:
17

G. Bosco, Il giovane provveduto, 89.

217

Meu querido e bom Jesus, visto que nesta manh eu no pude receber-vos na
Santa Hstia, vinde pelo menos tomar posse de mim com a vossa graa, de tal
modo que eu viva sempre no vosso santo amor. A graa que especialmente vos
peo a de poder manter-me longe dos maus companheiros, porque se tiver a
ventura de frequentar bons companheiros, eu tambm serei bom e poderei salvar
a minha alma.18

O mesmo dinamismo est presente na preparao e na ao de graas da
comunho: so aconselhados atos de adorao, de f e caridade, promessas e oferecimentos para configurar em profundidade a conscincia e os afetos em relao
de entrega de si mesmo a Deus:
Amo-vos com todo o meu corao acima de tudo, e por vosso amor, amo o
prximo como a mim mesmo, e perdoo de bom corao a quem me ofendeu.19
Prometo que no futuro vs sereis sempre a minha esperana, o meu conforto,
somente vs sereis a minha riqueza []. Ofereo-me totalmente a vs; ofereo-vos esta minha vontade para que no queira outra coisa seno o que vos
agrada; ofereo-vos as minhas mos, os meus ps, os olhos, a lngua, a boca, a
mente, o corao, tudo ofereo a vs; guardai estes meus sentimentos a fim de
que todos os meus pensamentos, todas as minhas aes no tenham nada mais
em vista a no ser o que for para a vossa maior glria e proveito espiritual para
a minha alma.20


Pensamentos anlogos so expostos nos Atos para a visita ao SS. Sacramento, todos culminando no intento de orientar para uma sempre mais consistente adeso a Deus e uma transformao e transfigurao da vida.21

So textos hauridos da literatura devota do tempo, mas, projetados no contexto dos esforos formativos praticados por Dom Bosco e seu modelo educativo,
adquirem um valor particular e nos iluminam a respeito dos itinerrios seguidos
Ibid, 91.
Ibid, 100.
20
Ibid, 102.
21
Eu vos adoro humildemente e vos agradeo []. Meu Jesus, eu vos amo com todo o meu corao: arrependo-me de no passado ter desgostado tantas vezes a vossa infinita bondade. Proponho
com a vossa graa nunca mais vos ofender. De hoje em diante quero ser todo vosso; fazei de mim
o que vos agradar, s imploro o vosso amor, a perseverana no bem e o cumprimento perfeito da
vossa vontade (G. Bosco, Il giovane provveduto, 104-105).
18
19

218

pelo santo educador para o envolvimento interior dos seus jovens quanto relao com Deus e perfeio crist.

4. A mortificao dos sentidos e a construo daS


virtudeS

1. Outro setor importante da orientao espiritual o reservado guarda e
mortificao dos sentidos. Na segunda edio da vida de Domingos Savio, Dom
Bosco insere um captulo inteiro sobre este assunto,22 para que no houvesse
equvocos sobre a proibio de penitncias aflitivas apresentada no captulo anterior. Ele afirma que a verdadeira penitncia no consiste em fazer coisas extraordinrias, mas no exato cumprimento dos prprios deveres por amor do Senhor.
Na biografia de Lus Comollo (1844) descreve o gosto do amigo por penitncias,
observando, porm, que os atos de penitncia externa revelavam o fervor do
jovem, pois, se as aes exteriores derivavam sempre da abundncia do corao,
todavia, preciso dizer que o nimo de Comollo estava continuamente ocupado
por ternos afetos de amor de Deus, de viva caridade para com o prximo e de
ardente desejo de sofrer por amor de Jesus Cristo23. Estas expresses nos oferecem a chave interpretativa do sentido atribudo penitncia e s mortificaes na
sensibilidade religiosa do tempo. De fato, a impresso geral que resulta da leitura
do livro precisamente a de uma vivncia crist integral e virtuosa, animada de
ardente caridade e de uma inspirao evanglica operativa que tende a expressarse na vida cotidiana como tenso moral e espiritual. Mortificaes e penitncias
no so louvadas por si mesmas, mas pela sua funo instrumental e asctica:
elas servem para manter distantes as paixes, para corrigir os defeitos, crescer nas
virtudes, alimentar o amor de Deus. Precisamente o desejo de pr em relevo esta
integralidade crist exemplar levar Dom Bosco a reimprimir, dez anos depois,
adaptando-a, a vida de Lus Comollo, para fazer compreender aos jovens que
quem teme a Deus no descuida nada do que pode contribuir para avanar nos
Cap. XVI: Mortificazione in tutti i sensi esterni, in G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico (18602), 76-83.
23
G. Bosco, Cenni storici sulla vita del chierico Luigi Comollo morto nel seminario di Chieri
ammirato da tutti per le sue singolari virt scritti da un suo collega, Tipografia Speirani e Ferrero,
Turim 1844, 37.
22

219

caminhos do Senhor.24 Tambm os escritos sucessivos do Santo orientam nesta


linha: a mortificao antes de tudo um instrumento asctico e pedaggico para
o domnio de si, o controle dos sentidos, a correo dos defeitos e a constuo das
virtudes. Mas a mortificao deve ser vivida na perspectiva de um amor a Deus
sempre mais intenso: no se trata de castigar a carne, mas de restituir ao prprio
corpo o equilbrio e a fora que fazem dele um meio de fidelidade vocao crist
e de relao mais autntica com Deus e com o prximo.

2. Na espiritualidade de Dom Bosco, a lio da asctica clssica reformulada numa perspectiva mais adequada para os adolescentes, corrigindo possveis
desvios, chamando-os continuamente concretude da vivncia diria, que no
somente tolerada, mas abraada com alegria, segundo o prprio estado de vida.
Ele aplica condio juvenil os ensinamentos de S. Francisco de Sales. Assim,
apresenta a mortificao positiva, da qual excluda toda rigidez intil, toda
centrada nas condies de vida, nos deveres do prprio estado. Este um dos
pontos que caracterizam a proposta formativa de Dom Bosco. Ele no apresenta
o cumprimento exato dos prprios deveres a partir de um imperativo tico,
mas no contexto de um horizonte de transcendncia prprio de quem, vivendo a
f em Jesus Cristo, quer se conformar a Ele em livre obedincia de amor. Dom
Bosco considera um leque muito vasto de deveres, todos derivados da prpria
condio.25 Por consequncia, ele sugere aos jovens que evitem jejuns e atitudes
de rigidez; pelo contrrio, que cuidem da diligncia no estudo, da ateno na
aula, da obedincia aos superiores, da pacincia em suportar os incmodos da
vida, como o calor, o frio, o vento, a fome, a sede, enfrentando esses incmodos
no como necessidades de fora maior, mas aceitando-os serenamente por
amor de Deus.26 No mesmo nvel ele situa os deveres que derivam do preceito
evanglico da caridade: usar muita bondade e caridade para com o prximo,
suportar os seus defeitos, dar boas recomendaes e bons conselhos; fazer favores aos colegas, levar-lhes gua, limpar os sapatos, servir mesa [], varrer o
refeitrio, o dormitrio, levar o lixo, carregar pacotes, bas. Todas essas coisas,
segundo Dom Bosco, sejam feitas com alegria e com satisfao. De fato,
a verdadeira penitncia no consiste em fazer o que nos agrada, mas em fazer o
que agrada ao Senhor e que serve para promover a sua glria.27
G. Bosco, Cenni sulla vita del giovane Luigi Comollo, Turim, Tipografia P. De-Agostini 1854, 7.
Cf. G. Bosco, Il pastorello delle Alpi ovvero vita del goiovane Besucco Francesco dArgentera,
cit., 1864, 120.
26
Ibid., Il pastorello delle Alpi, 120.
27
Ibid, Il pastorello delle Alpi, 123.
24

25

220


A qualidade asctica dessas situaes existenciais garantida pela inteno
com que so feitas: O que deverias sofrer por necessidade, oferece-o a Deus, e
se tornar virtude e merecimento para a tua alma.28 Assim Dom Bosco ensina a
dar um significado superior quilo que a vida exige, assumindo-o serenamente e
orientando-o para um fim espiritual.

5. O servio, o apostolado e o discernimento vocacional



1. Faz parte dessa adequao ao quotidiano tambm a caridade para com
o prximo, seja no sentido da acolhida amorvel, da tolerncia, do suportamento
paciente, do perdo, seja na perspectiva de um servio generoso e desinteressado,
feito com boas maneiras e com alegria.
Engraxar os sapatos, escovar as roupas dos colegas, prestar aos doentes os
servios mais humildes, varrer e outros trabalhos semelhantes era para ele [Domingos Savio] um agradvel passatempo.29

Dom Bosco evidencia de modo particular a ateno delicada de Domingos


para com os que so postos de lado pelos colegas porque rudes, ignorantes,
menos educados ou amargurados por algum desprazer, que sofrem o peso do
abandono quando teriam maior necessidade do conforto de um amigo: aproximava-se, distraa-os com alguma boa conversa, dava-lhes bons conselhos. []
Todos que tinham algum incmodo de sade queriam Domingos como enfermeiro, e os que tinham alguma mgoa sentiam-se aliviados contando-a a ele.30
Parece-me significativo que Dom Bosco acrescente s regras da Companhia da
Imaculada um codicilo sobre o servio na comunidade,31 e ponha em relevo o
empenho dos irmos no cuidado dos colegas:

G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico, (18591), cit., 75.


G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico, (18592), cit., 82.
30
G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico, cit., 61-62.
31
Nas reunies se estabelea alguma obra externa de caridade, como a limpeza da igreja, a assistncia de algum menino mais ignorante (G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico, cit., 83).
28
29

221

[Os membros da companhia] confiavam-se respectivamente aqueles jovens


que precisavam de maior assistncia moral, e cada um o fazia seu cliente, ou
ento, protegido, e usavam todos os meios que a caridade crist sugere para
encaminh-lo virtude.32


Tambm na vida de Miguel Magone dada importncia caridade industriosa para com os colegas, com uma anotao importante para fins de acompanhamento espiritual: o exerccio desta virtude o meio mais eficaz para aumentar
em ns o amor de Deus.33

2. Junto com a caridade temporal, Dom Bosco sugere o exerccio da caridade espiritual, isto , a ao apostlica. Na sua viso formativa, o cuidado pelo
bem espiritual dos colegas parte integrante do caminho de perfeio crist.
A primeira coisa que lhe foi recomendada para tornar-se santo escreve na vida
de Domingos Savio foi de empenhar-se para ganhar almas para Deus; pois no
h nada mais santo no mundo do que cooperar para o bem das almas, por cuja
salvao Jesus Cristo derramou at a ltima gota seu sangue precioso.34 Esta observao revela amplamente a viso que Dom Bosco tem da vida espiritual: no
se trata somente de cuidar da prpria vida interior num processo de purificao,
crescimento virtuoso e unio com Deus, mas de conformar-se perfeitamente ao
Divino Salvador tambm na sua tenso salvfica universal e na oferenda oblativa
da prpria vida.

Dom Bosco diretor espiritual comunica aos jovens a sua mesma paixo
missionria e ensina o seu mtodo marcado pela mansido salesiana que procura
conquistar os coraes entrelaando a cordialidade, a alegria, o servio operativo,
a assistncia educativa, a instruo escolstica e profissional, a catequese, o cuidado espiritual.

6. O discernimento vocacional

1. Neste contexto que se realiza o discernimento vocacional. A ateno
posta fundamentalmente sobre alguns critrios, enunciados de forma sumria
G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico, cit., 84.
G. Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele, cit. 47.
34
G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico, 53.
32
33

222

na vida de Miguel Magone. Quanto a ser padre ou outra coisa, isso depender
do teu progresso no estudo, da tua conduta moral, e dos sinais que apresentars
de ser de fato chamado ao estado eclesistico.35 O testemunho autobiogrfico a
respeito das dvidas juvenis, introduz outros indicadores para o discernimento:
a verificao do estilo de vida, dos apegos do corao, da presena ou da falta
de virtudes apropriadas.36 Dom Bosco conhecia tambm os princpios clssicos
do discernimento inaciano, que sintetiza no Catlico instrudo (1868), publicado
com o seu nome, mas compilado pelo padre Joo Bonetti.37

O tema do discernimento vocacional entrou muito mais tarde no Jovem
instrudo. Na primeira edio no encontramos nenhum aceno ao assunto; na
edio renovada de 1863 inserida uma Orao Bem-aventurada Virgem para
conhecer a prpria vocao; somente em 1878, Dom Bosco acrescentou um captulo especfico: O jovem na escolha do seu estado de vida.38 Ele fixa esquematicamente os elementos essenciais do discernimento vocacional. O objetivo
simplesmente a busca da vontade de Deus, imitando Jesus Cristo que protestava
ter vindo para realizar a vontade do Pai eterno. Os meios oportunos para uma
prudente determinao indicados por ele so trs: 1) passar a infncia e a juventude de forma ilibada, ou repar-la com uma sincera penitncia; 2) a orao
humilde e perseverante; 3) o aconselhamento com pessoas tementes a Deus e
sbias, especialmente o confessor, declarando com plena simplicidade o caso e as
tuas disposies.39 Alm disso, no momento de chegar a uma deciso, Dom Bosco sugere um incremento da orao: dirige-te a Deus com oraes especiais e
mais frequentes; participa da santa Missa com esta inteno; faze alguma Comunho com esta finalidade. Podes tambm fazer alguma novena, um trduo, uma
abstinncia, visitar algum santurio insigne. Recorre a Maria, que a me do bom
G. Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele, cit. 14.
Cf. G. Bosco, Memrias do Oratrio de S. Francisco de Sales de 1815 a 1855, Traduo de
Fausto Santa Catarina, 3 edio, revista e ampliada, aos cuidados de Antnio da Silva Ferreira,
Editora Salesiana, So Paulo 2005, 79). Apesar do desejo de tornar-se padre cultivado desde a infncia e a sua propenso ao estado eclesistico, tinha fortes dvidas: A pouca f nos sonhos, meu
estilo de vida, certos hbitos do meu corao e a falta absoluta de virtudes necessrias para esse
estado tornavam duvidosa e bastante difcil a deciso nesse sentido.
37
G. Bosco, Il cattolico provveduto per le pratiche di piet con analoghe istruzioni secondo il
bisogno dei tempi, Tip. dellOrat. di S. Franc. di Sales, Turim 1868, 585-587; a dependncia de Incio
de Loyola evidente (cf. Ignazio di Loyola, Esercizi spirituali, nn. 169-187, 318-319).
38
G. Bosco, Il giovane provveduto per la pratica de suoi doveri..., Nova edio aumentada,
Tipografia Salesiana Turim, 1878, 75-77.
39
Ibid., 75-76.
35
36

223

conselho, a S. Jos, seu esposo, ao Anjo da Guarda e aos teus santos protetores.
Seria timo, podendo, fazer preceder essa deciso to importante dos Exerccios
espirituais ou algum dia de retiro. Depois necessrio superar com deciso e
coragem qualquer demora, entregando-se com adeso incondicionada vontade
divina:
Prope-te seguir a vontade de Deus, seja l o que for que possa acontecer e
apesar da desaprovao de quem opinasse de acordo com a mentalidade do
mundo.40


3. Portanto, no corao do discernimento vocacional est o mesmo dinamismo batismal ao qual o diretor espiritual deve constantemente conduzir o jovem para garantir a solidez do seu caminho espiritual. A leitura dos passos dados
pelo jovem Bosco para chegar escolha do estado e do esprito com que fez a
vestidura instrutiva para colher o seu ponto de vista. Ele nos ensina como deve
ser ntida a orientao para Deus, completa a entrega a Ele, decidido o desapego
de si mesmo. No relato da vestidura emergem dois movimentos do esprito: despojar-se do homem velho e revestir-se do homem novo, purificar o corao e a
mente (Quanta coisa velha preciso jogar fora!) para uma mudana radical de
perspectiva (Vestir um homem novo, comear uma vida nova, toda ela segundo
a vontade divina). Trata-se de uma segunda converso na linha de uma plena
e incondicionada conformao vontade de Deus, subtraindo qualquer pequeno
espao ao velho homem para que a justia e a santidade sejam o objeto constante de pensamentos, palavras e aes.41 O relato do seu mal-estar pelo banquete
daquele dia, ilumina o contraste entre as exigncias radicais da vocao eclesistica e o estilo de vida precedente que, agora, aparece em toda a sua vacuidade:
Aquelas pessoas, que tipo de afinidade podiam ter com algum que na manh
daquele mesmo dia tinha vestido o hbito de santidade para entregar-se por completo ao Senhor?.

Mas os entusiasmos do nefito se concretizam num decidido programa
de vida: A vida levada at ento devia ser radicalmente reformada. Nos anos
passados no havia sido propriamente mau, mas dispersivo, vaidoso, dado a partidas, jogos, saltos, brinquedos e coisas assim, que alegravam no momento, mas
40
41

Ibid., 76.
G. Bosco, Memrias do Oratrio, 89.

224

no satisfaziam o corao. Para traar um teor de vida estvel e no o esquecer,


escrevi os seguintes propsitos. As resolues tratam de atitudes ascticas
julgadas por ele irrenunciveis para uma efetiva totalidade: fuga das ocasies de
pecado, da dissipao e da vanglria; retiro praticado e amado; temperana e
sobriedade, empenho para adquirir uma cultura e mentalidade crists em contraposio ao esprito mundano; salvaguarda da virtude da castidade com todas
as foras; esprito de orao; exerccio cotidiano da comunicao pastoral para
a edificao e a evangelizao, como uma das tarefas fundamentais da misso
abraada.42

Estes propsitos continuam valendo como indicaes preciosas para o
acompanhamento espiritual dos jovens.

42

Em sntese:
- Dom Bosco haure da tradio catlica as tarefas e os mbitos de ao
do diretor espiritual, adaptando-os formao dos jovens; no Jovem
instrudo oferece aos jovens indicaes prticas para um caminho espiritual que tem como ncleo dinmico um processo de apropriao
batismal;
- mbito fundamental de acompanhamento a formao orao que,
partindo do exerccio da presena de Deus e das prticas de piedade,
conduz aquisio do esprito de orao, unio com Deus e ao estado
de orao vivido no dia a dia;
- outra tarefa do diretor espiritual a formao prtica sacramental.
Dom Bosco insiste sobre a importncia da Confisso para a graa do
sacramento e para a intimidade confidencial que se pode instaurar com
o confessor-amigo. Tambm a importncia atribuda Eucaristia tem
valor pedaggico: o Santo situa numa relao de recproca fecundao
a comunho frequente, o empenho moral e o crescimento na caridade;
alm disso, o seu sentido vivo da presena real o leva a acentuar a dimenso afetiva e mstica da devoo eucarstica;
- faz parte da direo espiritual o mbito da mortificao dos sentidos,
que Dom Bosco orienta para a vida cotidiana (pedagogia dos deveres)
como instrumento de temperana: para um equilibrado e sereno domnio do corpo e dos sentidos; para a consolidao das virtudes, como
via de unificao e expresso da oferta para Deus;
Cf. G. Bosco, Memrias do Oratrio, cit. 90-91.

225

- alm disso, a direo de Dom Bosco orienta os jovens ao exerccio da


caridade para com o prximo e ao servio operoso, seja no mbito temporal, seja no espiritual, por meio do empenho para conquistar almas
para Deus;
- Dom Bosco fornece tambm alguns critrios para o discernimento vocacional, com grande insistncia sobre a disponibilidade absoluta
vontade de Deus e sobre o seguimento integral que postula uma reforma de vida radical.

226

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL
So Joo Bosco e o acompanhamento espiritual

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230

TERCEIRA PARTE
Acompanhamento espiritual salesiano:
desafios e propostas

Acompanhamento espiritual
Os desafios do ps-moderno e do ps-secular
no Ocidente contemporneo

Jack Finnegan, sdb


Nem todos possuem a f
2Ts 3, 2


Kallistos Ware conta a histria de um padre do deserto do IV sculo, S. Serapio Sindonita, que iniciou uma peregrinao a Roma. Tendo chegado meta,
foi-lhe narrado sobre uma estimada eremita que passara toda a sua vida numa
pequena cela. Serapio, ctico a respeito do estilo de vida da eremita, to em contraste com o seu que, ao contrrio, inclua uma grande viagem, fez-lhe uma visita
e perguntou-lhe: Por que est sentada aqui?. Ela respondeu: No estou sentada, estou em viagem.1 Nesta apresentao, tambm ns estamos em viagem,
uma viagem no desafio do pensamento ps-moderno e ps-secular e no impacto
que eles tm na vida prtica e na compreenso do acompanhamento espiritual no
Ocidente. Esperamos que a viagem seja para uma espiritualidade libertadora, que
possa mudar os coraes, uma espiritualidade que nos aproxime dos outros, e que
torne possvel o sentido autntico de pertena, especialmente para os jovens.2

Como descrever, ento, que tipo de viagem o acompanhamento espiritual
no Ocidente contemporneo? Para a Famlia Salesiana, ele evoca uma prtica
festiva e um mtodo dotado de um conjunto claro de valores, vises e objetivos
para a viagem humana em direo plenitude da vida (Joo 10,10). maneira de
Dom Bosco, suas prticas so intuitivas e envolventes, enraizadas na f e na graa
do Esprito Santo, e tentam ser racionais, delicadas, sbias, cheias de bondade generosa e de bom humor. Por trs destas prticas h uma viso de mundo em ntido
contraste com as ideologias superficiais que informam o pensamento e o comportamento consumista ps-moderno no Ocidente contemporneo, uma viso de
mundo cheia de promessas e de riscos: ela v um florescimento do interesse pela
K. WARE, The Orthodox Way, St. Vladimirs Seminary Press, Crestwood (Nova Iorque) 1979, 7.
Ver: Papa FRANCISCO, Exortao apostlica Evangelii Gaudium, Stampa Vaticana, Roma 2013,
nn. 105, 262, 272.
1
2

233

espiritualidade, mas tambm a falta de conexo entre f e espiritualidade pelas


formas institucionais da religio.

A religio tornou-se, no Ocidente, uma questo de opo pessoal, mais do
que obrigao familiar. Muitos acreditam que a religio s digna de interesse
quando se ocupa em fazer o bem ao mundo. Quando a religio no se afirma mais
como transcendental na sociedade, ela sempre mais percebida em termos instrumentais. Religio e espiritualidade tornam-se instrumentos para o crescimento
espiritual e o desenvolvimento, um produto ao lado de uma vasta gama de bens
espirituais e religiosos e prticas para uso individualista num mundo consumista. Isso suscita, ento, uma ulterior questo fortemente enraizada. O quanto ns
estamos conscientes de que no Ocidente estamos oferecendo acompanhamento
espiritual em tempo de importantssimas mudanas histricas?

Ns vivemos num chaosmos,3 um mundo de complexidades em vrios nveis, dos quais emergem ideias novas, estilos novos, modos novos de comunicar,
espiritualidades novas, vises novas da mstica e personalidades novas, novos
eus. O mundo no mais a mquina amedrontada imaginada pelo modernismo
limitador antirreligioso. O eu no est mais isolado e aprisionado no seu mundo
ilusrio e defensivo; e mesmo as vises redutivas que marginalizaram a religio
no passado esto sujeitas desconstruo e suspeita. Como nos recorda Huston
Smith, a mente moderna tem origem na viso de mundo introduzida pela cincia,
mas a cincia do sculo XXI abandonou no s aquela viso de mundo, como
tambm as vises de mundo em geral.4 O mesmo pode acontecer conosco. Num
mundo ps-secular torna-se possvel rever a questo da nossa natureza original,
a nossa verdadeira identidade, o nosso destino csmico, para relacionar-nos com
a natureza do verdadeiro eu. O acompanhamento espiritual no Ocidente contemporneo est numa posio nova de apoio inclinao para relaes transformadoras com Deus em Cristo, inclinao ao Esprito, ao outro, ao diverso e
marginalizado, a modos que favoream um amor transformador e a promessa de
plenitude num mundo dividido por muitos conflitos.

O termo foi utilizado por James Joyce e usado tambm por Umberto Eco. Ele implica que no
mundo fragmentado do ps-modernismo e do ps-secularismo as opes definitivas so adiadas.
4
H. SMITH, Beyond the Postmodern Mind: The Place of Meaning in a Global Civilization, The
Theosophical Publishing House, Wheaton (IL) 20033.
3

234

1. MODERNIDADE, SECULARISMO E PS-SECULARISMO5



A modernidade, que influenciou a sociedade ocidental desde o sculo
XVII, evoca um perodo de mudana turbulenta do mundo na histria europeia.
Foi modelado pelo iluminismo e teve um impacto definitivo atravs da revoluo francesa e industrial. O resultado foi um mundo eurocntrico dominado
pela reviravolta para a autonomia da razo humana. importante entender que a
modernidade fixa uma ideologia racionalista e histrica em busca de algo bom: a
libertao do sujeito humano.

O problema que procurou realiz-lo fazendo da religio o bode expiatrio
e atuando para o desencanto espiritual do mundo. A f foi superada pela razo e
a razo posta em clara oposio religio. Confinada na deciso de viver apenas
atravs da razo, a cincia racional tornou-se a nica base da certeza humana.
Tudo que no pudesse ser cientificamente explicado de maneira satisfatria por
um secularista racional era recusado sem sequer pensar sobre o assunto. Muitas
pessoas vivem pelos princpios desta ideologia.

No Ocidente, a modernidade redesenhou percepes da vida e das atitudes
para questes da alma e do esprito: a sua realidade, as suas necessidades, as suas
modalidades de expresso, nicas e compartilhadas. Influenciadas pela ordem do
dia da modernidade, as democracias ocidentais procuram remover de variadas
maneiras a religio da arena pblica fazendo dela uma questo puramente privada, uma questo de gosto e boas intenes. A religio e a espiritualidade foram
revistas como negcios privados de pouca importncia pblica. Em nome da liberdade e do progresso, o dogma racionalista substituiu a doutrina religiosa. A
cincia tornou-se o princpio definitivo, o idioma dominante, o credo prevalente.
O que segue foi influenciado por P. NYNS, M. LASSANDER and T. UTRIAINEN (editors),
Post-Secular Society, Transaction Publishers, New Brunswick (NJ) 2012; M. RATTI, The Postsecular Imagination: Postcolonialism, Religion, and Culture, Routledge, Nova Iorque 2013; P.
LOSONCZI and A. SINGH (editors), Discoursing the Post-Secular: Essays on the Habermasian
Post-Secular Turn, Lit Verlag, Berlim, Viena 2010; J. D. CAPUTO, On Religion: Thinking in
Action, Routledge, Londres e Nova Iorque 2001; S. D. KUNIN, Religion: The Modern Theories, The Johns Hopkins University Press, Baltimore e Londres 2003; J. RATZINGER, Europa: I
suoi fondamenti oggi e domain, Edizioni San Paolo, Milo 2003; S.N. EISENSTADT, Multiple
Modernities: Daedalus 129 (2000) 1, 1-29; S. N. EISENSTADT (editor), Multiple Modernities,
Transaction Publishers, New Brunswick (NJ) 20052; M. ROSATTI and K. STOECKL, Multiple
Modernities and Postsecular Societies, Ashgate Publishing, Farnham 2012; P. S. GORSKI, D. K.
KIM, J. TORPEY and J. Van ANTHWERPEN (editors), The Post-Secular in Question: Religion in
Contemporary Society, University Press, New York and London 2012; G. GIORDAN and E. PACE
(editors), Mapping Religion and Spirituality in a Postsecular World, Brill, Leiden 2012.
5

235


O modernismo , em si, uma realidade situada em termos histricos, culturais e geogrficos, um fenmeno de determinado perodo que ainda tem pretenses universais, um fenmeno que no reconhece prontamente a sua imperfeio
e as suas consequncias histricas. Pense-se na natureza e nas implicaes do
individualismo e do consumismo como so sentidos hoje. Pense-se no mito da
pesquisa cientfica desinteressada e considerem-se, depois, as ligaes da cincia com as produes de armas, o controle industrial e as racionalizaes dos
enormes lucros. Pense-se no que foi perdido pela sociedade e pela cultura como
resultou do lado escuro e violento do sculo XX. Pense-se nas implicaes para o
bem-estar do esprito humano, quando a alma desesperadamente plasmada pelo
sofrimento causado pelas poderosas ambies de elites privilegiadas.

Desde os anos Oitenta, o mito modernista encontrou uma forte hermenutica de suspeita. Tornou-se sujeito de desconstrues crticas consistentes de filsofos e telogos e de outros estudiosos das cincias humanas. Por exemplo,
Nicholas Lash recordou-nos habilmente que a palavra religio, pelo modo como
a recebemos, nos usos recentes, uma inveno terica dos sculos XVII e XVIII
e filha do iluminismo.6 A noo inicial de religio como atmosfera ou condio de
venerao, encanto e unio, foi removida em favor de uma forma de experincia
limitada, intensamente privada. Segundo Lash, as razes deste modelo circunscrito
esto nas assim chamadas Guerras de Religio, quando os estados nacionais europeus se projetaram exercendo o controle e a soberania, inventando para si o que
ns agora pensamos ser religio e servindo-se dela como meio de controle social.

A modernidade, contudo, no se limitou a voltar as costas religio. Ela
rechaou a espiritualidade como produto de um contato obscuro e errneo com
a realidade. Ela considerava a religio e suas expresses espirituais como loucura, iluso confortante ou panaceia de evaso, mas mais certamente como um
srio obstculo aos fins sociopolticos e econmicos da modernidade. Na viso
de mundo da modernidade, os valores e as convices so legitimados apenas
quando so aprovados pela cincia racionalista em acordo com o pensamento
iluminista, as suas razes nutridas pela filosofia cartesiana e a fsica de Newton.
So estas as bases do mito, graas s quais as elites do poder ocidental procuram
plasmar e comandar as vidas humanas.
N. LASH, The Church in the State Were In, in L. G. JONES and J.J. BUCKLEY (editors),
Spirituality and Social Embodiment, Blackwell Publishers, Oxford 1997, 121137.

236


As convices triunfalistas da modernidade sobre o desaparecimento da
religio e o desaparecimento da criatividade espiritual da humanidade, as suas
seguranas racionalistas a respeito do desencanto do mundo, a dessacralizao e
a secularizao da vida no Ocidente, so hoje postas em discusso em todas as
frentes. A religio, sobretudo em suas manifestaes espirituais e msticas, reivindica a sua liberdade atravs da audcia do esprito, pedindo alma que se liberte
do leito uniformizador de Procrustes que o Iluminismo idealizou com sabedoria
para domesticar a religio e servir a finalidades polticas.

Esta mudana d vida a novas questes. Como a religio libertada consegue, reconectada apesar de tudo com a venerao, falar s vozes da tica contempornea, ao poder econmico e poltico cujos fins ainda exigem a marginalizao da religio, a sua submisso e conformidade com as hegemonias polticas e
econmicas? Como recuperar o interesse eficaz pela vida humana e pelo planeta
que compartilhamos? Com isso, perderam-se muitos valores, no por ltimo o
corajoso esprito do no abuso, da venerao madura e da admirao. No deveria surpreender, portanto, que surjam novas espiritualidades como reao ao
racionalismo da modernidade destitudo de sentimentos, e a sua relao de amor
unilateral com a eficincia econmica e o progresso material. As decorrncias
para o acompanhamento espiritual no so difceis de perceber.
1.1. A secularizao clssica

A secularizao entendida em sentido tradicional revela uma confiana na
vitria inevitvel dos princpios do Renascimento e do Iluminismo sobre a religio nas sociedades modernas do Ocidente. Central ao projeto de secularizao
foi o princpio de separao e distino entre Igreja e Estado. Todavia, a secularizao como teoria explicativa ou viso do mundo moderno no tudo. Por trs
do princpio da separao permanece outra pretenso de autoridade e verdade: o
desaparecimento da influncia da religio em todos os aspectos da vida e em vantagem da racionalidade cientfica. As estatsticas, porm, suportam realmente esta
reivindicao? Mais precisamente, esto tambm em jogo as foras ideolgicas
que servem s finalidades totalitrias de um poder civil e secular sem Deus? So
questes difceis de responder.
237


Segundo Swatos e Christiano em seu artigo sobre o desenvolvimento da
secularizao de meados dos anos sessenta ao final dos anos noventa, a validade
deste princpio revelou-se muito mais complexo na Europa do que nos Estados
Unidos.
Na Europa, Igreja, Estado, educao, sade e cuidados sanitrios, lei e semelhantes estavam to entrelaados que a sua separao haveria de causar um
choque significativo em todos os setores do sistema dos quais a religio no
estava imune. Os Estados Unidos, por contraste, eram caracterizados por um
relativo pluralismo desde os seus primeiros anos.7


Note-se que o secular e a secularidade sempre foram definidos como oposio em relao religio. A mudana de significado do secular est sempre em
correlao aos modos com que a religio vivida e definida, e sempre se encontram provas a seu favor no passado.

Ainda em 1967, o professor Larry Shiner8 identificou seis tipos de interaes negativas com que a secularizao entendida de maneira clssica agia em
relao religio:

- o primeiro sustenta o declnio da religio, enquanto o segundo exige
conformidade com o mundo;

- o terceiro, favorece a separao da sociedade em relao religio,
enquanto o quarto fala em nome de uma migrao de valores religiosos
e instituies esfera secular;

- o quinto afirma um mundo dessacralizado, vazio de mistrio e de espiritualidade, enquanto o sexto prefere o movimento de uma sociedade sacra a outra totalmente secular. O vu do sagrado abolido e os templos
so postos a nu.

Comprovaes destes seis pontos so evidentes nas culturas ocidentais,
no por ltimo na desvalorizao e marginalizao do mistrio, do sagrado e do
santo. Reconheceis estes programas interagentes? Encontraste-os (pessoalmente)
na prtica? Encontraste-os nas histrias compartilhadas no acompanhamento espiritual? Como reagistes a eles?
W. H. SWATOS, Jr., KEVIN and J. CHRISTIANO, Secularization Theory: The Course of a
Concept: Sociology of Religion 60 (1999) 3, 209-228, 213.
8
L. SHINER, The Concept of Secularization in Empirical Research: Journal for the Scientific
Study of Religion 6 (1967) 2, 207-220.
7

238


A anlise crtica, depois, revela que a teoria da secularizao uma mistura
de ideias vagamente definidas, insustentveis luz dos fatos. Mais ideologia do
que teoria cientfica, a secularizao liga-se a alguns processos insidiosos:

- reduo ideolgica ao silncio da f;

- privatizao e marginalizao da religio;

- transferncia do papel da religio a representantes da secularidade em
relao vida das pessoas;

- silenciar a sua voz pblica em nome do projeto iluminista.

O ponto de vista da religio tratado, no mximo, como um entre os muitos com pretenses de verdade e autoridade. As explicaes que se referem s
foras transcendentais fora do mundo material so constantemente ridicularizadas
e postas de lado. O papel dos padres, dos sacerdotes, dos rabinos, dos monges e
das freiras reduzido em importncia e o seu lugar assumido por counselors,
assistentes sociais, psicoterapeutas e mdicos. Ser, ento, uma surpresa estarmos
a enfrentar uma crise de vocaes na Europa ocidental? Como o socilogo Peter
Berger notou h anos revela-se falsa a tese dominante de que estamos vivendo
num mundo secularizado.9 A religio e a espiritualidade no desapareceram. O
interesse pela mstica no desapareceu. O mundo permaneceu religioso, embora a
Europa, a Austrlia, Nova Iorque, o Canad, e em menor medida os Estados Unidos
permaneam uma exceo. Novas formas e novas expresses de espiritualidade
esto evoluindo diante de esforos orientados e explcitos de manter o domnio
poltico do secularismo. O atrativo espiritual tem lugar apesar do manifesto desencanto espiritual e religioso na Europa e das claras demonstraes de mudana
social e cultural. A audcia do esprito revelou-se de modos variados.
1.2. O desafio da secularizao ocidental ao acompanhamento espiritual

Aps o Conclio Vaticano II, o acompanhamento espiritual entrou numa
crise que foi reconhecida por Paulo VI em seu discurso ao IV Congresso sobre
as Vocaes (1971). Ele precisava de uma renovao, realidade reconhecida pelo
P. L. BERGER, The Desecularization of the World: A Global Overview, in P.L. BERGER (editor), The Desecularization of the World: Resurgent Religion and World Politics, Eerdmans, Grand
Rapids (MN) 1999, 2.

239

nosso Pedro Brocardo num artigo publicado em 1974 e pela Congregao Salesiana em 1975.10 As razes desta crise esto no perodo anterior ao Conclio, e
tm a ver com a forte influncia da modernidade e do impacto da secularizao,
a escassez de diretores espirituais preparados para o momento e a falta de uma
adequada preparao cultural, teolgica e psicolgica do clero.

A espiritualidade tradicional e, em senso lato, as abordagens tradicionais
do acompanhamento espiritual eram consideradas prticas a servio da imaturidade e adequadas para reforar a ingenuidade. Hegel identificara na subjetividade
do esprito humano o princpio-guia do tempo moderno. Como o esprito, o sujeito humano absoluto; estando assim as coisas, como se explica a relao com
Deus? Abre-se aqui a hermenutica da suspeita. Marx pensou a religio como um
processo de autoalienao, um impedimento libertao. Nesse contexto, como
podemos compreender a libertao espiritual? Nietzsche proclamou a morte de
Deus, certamente do Deus da filosofia e da metafsica. Haver aqui algo de til
para ns, a oportunidade de redescobrir o Deus das Escrituras? Infelizmente, no
tremendo mundo de Nietzsche s o super-homem pode sobreviver e a religio
reduzida a servir a mediocridade e o medo. Freud concebeu a religio como uma
forma de neurose, uma iluso e, sob a influncia do pensamento psicanaltico, o
papel do pai colocado sempre mais em discusso.

O termo direo espiritual tornou-se decididamente insustentvel depois
desta mudana de interesse pelo sujeito humano. Uma nova linguagem e uma nova
terminologia comearam a surgir: dilogo espiritual, acompanhamento espiritual,
e foram redescobertos alguns termos originais como amigo da alma. Hoje, nas
sociedades modernizadas fortemente influenciadas pelos processos de secularizao, as prticas religiosas so inevitavelmente expostas suspeita, vistas muitas
vezes como impedimento liberdade e criatividade da pessoa e como prticas
manipuladoras. Aqueles que atualmente esto envolvidos no acompanhamento
espiritual no Ocidente devem estar preparados para esses desafios.

Outras necessidades foram identificadas mais recentemente devido privatizao da religio no Ocidente e ao contnuo impacto do individualismo sobre
a espiritualidade. Por exemplo, devemos viver vigilantes a qualquer abordagem
do acompanhamento espiritual que preserve ou reforce pensamentos e aes duaP. BROCARDO, La direzione spirituale si rinnova: Seminarium 14 (1974) 157-172; ID., Il
rinnovamento degli esercizi spirituali. Simposio salesiano europeo, Elle Di Ci, Leuman (Turim)
1975.
10

240

listas. Assim iluminados, considerem-se, por exemplo, a ruptura entre formas de


vida interiores e exteriores ou entre vida pessoal e sociopoltica. Considerem-se
os processos que mantm e reforam os modelos dicotmicos de desigualdade,
assim como os conceitos de gnero, etnia e outras contraposies relacionadas ao
poder daqueles que, na pior das hipteses, tornam possveis o abuso e o trfico
humano.

A espiritualidade salesiana e as formas de acompanhamento espiritual que
privilegiamos deveriam estar atentas, por definio, a essas distores e lacunas.
Fazemos o bastante concentrando-nos no bem-estar e no crescimento, quando
tantas pessoas so aprisionadas pelos sistemas opressivos e pela pobreza? Fazemos o bastante quando encorajamos a paz interior e ignoramos um mundo
cheio de conflitos? Vivemos em mundos desestruturados, em sistemas civis e
instituies religiosas. Vivemos em culturas e sociedades abertas escurido e
tragdia. Ningum de ns vive em total isolamento, imune ao que acontece na sociedade e no mundo que nos rodeia. O que mais, ento, pode significar que Dom
Bosco nos desafie a sermos bons cristos e honestos cidados?

Outro desafio comporta a luta contra o otimismo da razo, que conserva
muito do pensamento secular. E isso levanta novo desafio. O crente representa
na modernidade secular ocidental uma dupla ausncia da mente secular. H duas
razes para isso. A narrativa religiosa representa o passado, algo ausente e irrelevante. Representa ainda o transcendente, tambm ele algo ausente e irrelevante.
Na modernidade secular ocidental, o subentendido desafio prtica religiosa no
, ento, outra coisa a no ser a redefinio da mesma racionalidade. Talvez seja
este o motivo pelo qual T. S. Eliott (1885-1965) escreveu The Wast Land (A terra
desolada) depois da primeira guerra mundial: para debitar civilizao europeia
ocidental a sua bancarrota espiritual.
1.3. Modernidades mltiplas

O conceito de modernidade mltipla, de Shmuel Eisenstadt,11 surge como
resultado da crtica anlise sociolgica clssica e convico de que na Europa
o programa de modernizao posto em movimento pelo Iluminismo e as estruturas que se desenvolveram a partir dela prevalecero em todas as sociedades
11

S. N. EISENSTADT, Multiple Modernities, cit.

241

modernizadas. A realidade faliu na confirmao dessas convices e ideias. Ao


contrrio, tornou manifestos dois aspectos:

- as aplicaes e as interpretaes ideolgicas e institucionais da teoria
secular baseada no Iluminismo;

- os muitos modos com que a religio continua a jogar papis decisivos
nos processos de modernizao.

A teoria da secularizao clssica no consegue perceber seriamente, como
deveria, a presena da diversidade na religio e na cultura. No obstante, o contexto sociopoltico tanto da espiritualidade como do acompanhamento espiritual
mudaram radicalmente. Considere-se, por exemplo, o impacto da ideologia secular sobre as estruturas bsicas da sociedade: a vida de famlia, as estruturas
econmicas, sociais e polticas, a urbanizao, a relao entre educao e necessidades da economia, a comunicao de massa, a tica de opo, a guinada
para o sujeito humano e as tendncias individualistas que agora prevalecem no
Ocidente.

O conceito de modernidade mltipla sugere que o melhor modo de conceber atualmente o mundo contemporneo e entender a histria da modernidade
visto como uma histria da criao e recriao de programas culturais mltiplos,
de instituies e modelos ideolgicos que buscam poder e/ou influncia sobre o
mundo. O processo apresentado por uma variedade de testemunhos sociopolticos e vrias formas de ativismo social, religioso, poltico e intelectual. De uma
parte a outra da Europa e do Ocidente est em ato uma vasta gama de movimentos sociais, polticos, religiosos, cada um busca de diversas ideias de mudana,
bem-estar sociocultural, justia e solidariedade compassiva.

Na Amrica Latina, por exemplo, novos sistemas de confiana e segurana entre os lderes religiosos catlicos (no Peru) e evanglicos (na Guatemala)
criaram um capital social no qual o equilbrio criado a partir de baixo, no
imposto do alto. Representantes e ativistas da mudana atuam numa variedade
de movimentos seculares e religiosos, tornando possvel a presena de modernidades mltiplas. Os movimentos de emancipao e ecolgicos dos ltimos anos
so exemplos tpicos. Eles so indicativos da mudana de uma viso de poltica
orientada pelo Estado a outra que seja mais significativa em nvel local e cultural. A ao a partir de baixo destes movimentos empenha-se tambm na busca
242

de novos espaos religiosos e civis de interesse, honestidade, responsabilidade


e emancipao. O acompanhamento espiritual e pastoral, especialmente entre os
jovens e oprimidos, tambm um exemplo de ao a partir de baixo. O que se
exige compreenso, sabedoria e a coragem de se deixar envolver.

Tambm os movimentos fundamentalistas participam da cena local e internacional nos contextos cristos, hebraicos, muulmanos, budistas e hindustas.
Assim como o so as expresses polticas dos fundamentalismos que caracterizam os partidos de extrema direita. O que estes movimentos tm em comum so
as ideias antiocidentais, antimodernas e antiliberais capazes de determinar protestos violentos. Algo semelhante pode ser dito sobre os grupos de extrema esquerda. Os eventos recentes no Oriente Mdio so indicadores do potencial violento
desses movimentos e o perigo que representam para as religies minoritrias. Os
movimentos tnicos tambm foram levados recentemente crnica.

O cerne da questo que no so a mesma coisa modernidade e processo
de ocidentalizao. Nem se pode afirmar que os modelos ocidentais sejam os
nicos modelos para as modernidades autnticas. O acompanhamento espiritual sempre convidado a uma luta aliada com a busca da verdadeira vida, do
verdadeiro eu e da sua liberdade humana e difcil: liberdade que se manifesta
de muitas maneiras numa multiplicidade de contextos. Aqui, no h nada de
etreo, nada de sobrenatural, nada de relaxante. O que encontramos no acompanhamento espiritual so os esforos individuais e de grupo com a interioridade
tica. O eu ps-moderno e tardo-moderno um eu individualista, um ator
num espetculo de individualismos utilitaristas: eu s valorizo a mim mesmo, eu concedo autoridade e interesso-me apenas por mim mesmo. A finalidade no mais o bem comum, mas a simples satisfao de desejos individuais,
interesses e vontades. Mais do que qualquer outra coisa, a tarda modernidade
d sustento busca para descobrir e exprimir os aspectos mais verdadeiros e
profundos do eu individual. O que, de per si no perigoso, pois descobrir
o verdadeiro eu um objetivo espiritual adequado. O problema outro. Em
busca do eu, o mundo externo como vetor-portador de valor tico e espiritual
e de significado desaparece com muita facilidade. Num mundo que foi privado
de tradio cultural e religiosa, a busca do verdadeiro eu, o eu tocado por
Deus, pode se dispersar facilmente.

243

1.4. Alguns pontos crticos



A modernidade buscou um novo fundamento para a sua abordagem, favorecendo o princpio de organizao humana autnoma. As premissas tradicionais
e a sua legitimidade, pela primeira vez, foram postos em discusso e depois substitudas atravs de processos organizados de rebelio e movimentos de protesto;
processos evidentes ainda hoje. Tudo foi reorganizado ao redor da centralidade
da pessoa humana e da sua emancipao das opresses como percebido pela
autoridade poltica, cultural e religiosa. Muitos aspectos desta histria ainda esto em ato nas democracias ocidentais e na comunidade europeia assim como
o esto as suas consequncias para o acompanhamento vocacional e espiritual.
No Ocidente, esta mesma histria representa tambm um grande desafio Nova
Evangelizao.

fcil sustentar que nos ltimos dois sculos a modernidade, especialmente
a tarda modernidade, tornou-se cmplice daquela que a eroso da religio nas
culturas ocidentais. Esta reivindicao viu uma acelerao depois da segunda
guerra mundial, quando as pessoas se tornaram aparentemente menos crentes.
Aqui, porm, surgem ao menos dois problemas. Primeiro: como podemos definir a religio e o crente? Por exemplo, o que significa quando as pessoas dizem
Sou espiritual, mas no religioso? Quais vises de secular, de religioso e de
espiritual esto em ao nestas declaraes regidas pelas mdias? Como devemos
compreender o prprio acompanhamento espiritual neste contexto?

No acompanhamento espiritual, queremos apoiar as pessoas na busca e na
construo de itinerrios de significado mesmo no caso em que elas se coloquem
nos limites da ortodoxia. O encontro com o sagrado, com o Cristo vivo, o incio
da viagem, no a sua concluso. Esses encontros no podem ser impostos; eles
chegam como propostas misericordiosas e como puro dom de transformao.
Nossa tarefa no acompanhamento espiritual, sobretudo com os jovens, o convite, a proposta e o encorajamento, no a ordem e a obrigao. E, como nos recorda
o papa Francisco, as respostas autnticas a Deus esto sempre fora das categorias
do mercado.12 H um segundo grupo de questes que tm a ver com a nostalgia
por uma idade de ouro da f e com a imagem dos mosteiros e da comunidade
religiosa como lugares de fuga. As duas vises ignoram o realismo social e as
responsabilidades do Evangelho no aqui e agora e so historicamente opinveis.
12

Papa FRANCISCO, Evangelii Gaudium, n. 57.

244

2. EXPLORANDO O PS-MODERNO

No existe uma definio comum para o ps-moderno, apesar de Umberto
Eco t-lo descrito como categoria espiritual fundada mais na ironia do que
na inocncia. Para Eco, o ps-moderno envolve uma abordagem da vida, uma
viso de mundo, um tipo de comportamento religioso e poltico, um modo de
construo do ego psicolgico e cultural.13 Anthony Giddens tambm se refere a
um estado do ser, a mudanas nas instituies e a um novo tipo de ordem social
caracterizado por novos movimentos com novos programas polticos e sociais.14
Zygmunt Bauman resume o conceito de ps-moderno como modernidade libertada da falsa conscincia, um novo tipo de condio social marcado precisamente
pelo retorno daquilo que a modernidade procurou eliminar e esconder.15

O termo ps-moderno foi introduzido pela primeira vez pelo artista britnico John Watkins Chapman nos anos setenta do sculo dezenove. O termo ficou
inativo at 1932 quando foi usado na acepo em que agora estamos habituados
por Charles Grey Shaw (1871-1949) e, dois anos depois, por Federico de Ons
(1885-1977).16 Desde ento, seu uso passou da arte arquitetura, cultura, literatura, msica e, mais recentemente, espiritualidade e religio. Escritos influentes
incluem o romance do poeta e escritor argentino Jorge Lus Borges (1899-1986),
do romancista russo Vladimir Nabokov (1899-1977), do jornalista e escritor
italiano Italo Calvino (1923-1985) e do escritor alemo Gnter Grass. Tambm
deveria ser reconhecida a influncia de pensadores como David Bohm (19171992) e Henri Bortoft (1938-2012), que distinguiram entre integridade simulada
e autntica. Outros trabalhos autorizados incluem a Opera Aperta17 de Umberto
Eco, lments de smiologie18 de Roland Barthes, o famoso Stucture, Sign and
Play in the Human Sciences19 de Jacques Derrida, uma clebre conferncia feita
na Universidade Johns Hopkins de Baltimore em 1966. A famosa descrio do
S. ROSSO, A correspondance with Umberto Eco tradotto da Carolyn Springer: Boundary 2 12
(1983) 1, 1-13.
14
A. GIDDENS, The Consequences of Modernity, Polity Press, Cambridge 1990, 46-47.
15
Z. BAUMAN, Intimations of Postmodernity, Routledge, Abingdon 1992 (reprinted 2000), 188.
16
L. SHAWVER, Nostalgic Postmodernism: Postmodern Therapy Volume One, Paralogic Press,
Oakland (CA) 2005, 70-78.
17
U. ECO, Opera aperta. Forma e indeterminazione nelle poetiche contemporanee, Bompiani,
Milo 1962.
18
R. BARTHES, lments de semiologie: Communications 4 (1964) 4, 91-135.
19
J. DERRIDA, Structure, Sign and Play in the Discourse of the Human Sciences, in Writing
and Difference, Routledge & Kegan Paul, London 1978; ID., La structure, le signe et le jeu dans
le discours des sciences humaines, in Lcriture et la diffrence, Editions du Seuil, Paris 1967.
13

245

ps-moderno como incredulidade versus metanarrativa de Lyotard baseia-se no


trabalho de Barthes e Derrida.20

Deriva de Derrida a noo pela qual o significado de ps-moderno sempre adiado ou postergado, porque a mente humana est num constante estado
de fluxo que implica mudanas constantes de um contexto ou interpretao a
outro. H nisso implicaes para a redescoberta do silncio, da quietude contemplativa e do itinerrio da teologia negativa (apophatic path) na espiritualidade ocidental. Dada natureza fluida, aberta, flexvel, fragmentada, irnica e
indeterminada das descries de ps-moderno, optei por oferecer uma lista de
caractersticas-chave mais do que tentar uma descrio coesa. No ps-moderno,
esta coeso tambm suspeita como exerccio potencial de hegemonia cultural.21
Todavia, o ps-moderno indica:

- distanciamento crtico dos proclamas fundamentais do Iluminismo e a
sua desconstruo;

- distanciamento fragmentado dos valores de domnio pblico para as
culturas e convices culturais individualistas;

- crtica da habilidade abrangente da razo;

- confiana nas solues perfeitas e nas exigncias de perfeio;

- a ideia de que qualquer conhecimento parcial e contextual;
W.W. HBLING and M. FUCHS, The Structurality of Poststructure: The Foundations of Postmodernism, in P. ECKHARD, M. FUCHS, W.W. HBLING (editors), Landscapes of Postmodernity: Concepts and Paradigms of Critical Theory, LIT Verlag, Viena e Berlim 2010, 23-28.
21
Ver, por exemplo, C. DICKINSON (editor), The Postmodern Saints of France: Refiguring The
Holy in Contemporary French Philosophy, Bloomsbury T & T Clark, Londres e Nova Iorque 2013;
S. YORE, The Mystic Way in Postmodernity: Transcending Theological Boundaries in the Writings
of Iris Murdoch, Denise Levertov and Annie Dillard, Peter Lang, Oxford, Berna 2009; G. WARD,
The Politics of Discipleship: Becoming Postmaterial Citizens, Baker Academic, Grand Rapids (MI)
2009; D.ANTISERI e G. VATTIMO, Ragione filosofica e fede religiosa, Rubbettino Editore, Soveria Mannelli 2009; J. N. FERRER and J. H. SHERMAN (editors), The Participatory Turn: Spirituality, Mysticism, Religious Studies, State University of New York Press, Albany (Nova Iorque)
2008; G. PADRONI, Aspetti della complessit e sensibilit postmoderna nelle dinamiche organizzative e del capitale umano, Giuff Editore, Milo 2007; R. RADFORD REUTHER and M.
GRAU (editors), Interpreting the Postmodern: Responses to Radical Orthodoxy, T & T Clark
International, Nova Iorque, Londres 2006; J.L. HEFT, SM (editor), Believing Scholars: Ten Catholic Intellectuals, Fordham University Press, Nova Iorque 2005; D. BENTLEY HART, The Beauty
of the Infinite: The Aesthetics of Christian Truth, William B. Eerdmans Publishing, Grand Rapids
and Cambridge 2003; H. SMITH, Beyond the Postmodern Mind, cit.; V. TASI, Mathematics and
the roots of Postmodern Thought, Oxford University Press, Oxford 2001; J. HAWLEY (editor), Divine Aporia: Postmodern Conversations about the Other, Associated University Presses, Cranbury,
Londres 2000; M. C. GREY, Prophecy and Mysticism: The Heart of the Postmodern Church, T &
T Clark Ltd, Edimburgo 1997.
20

246

- crtica da perda da admirao e do encanto sagrado no mundo moderno;


- emergncia de novos tipos de sensibilidades cultural, espiritual e religiosa;
- inclinao para o discurso religioso como fonte de radicalismo social e
poltico;
- apoio aos movimentos de libertao e emancipao
- maior revalorizao da natureza, da ecologia e do cosmo, e crtica paralela indstria pesada e tecnologia (o fracking, a reduo hdrica,
um bom exemplo);
- capacidade de superar o subjetivismo restritivo, exclusivo e intolerante;
- uma poca caracterizada pela desintegrao e desconstruo das instituies religiosas, polticas e sociais juntamente com os modelos, princpios e comportamentos que elas reivindicam;
- o pressuposto de que no existe significado antes da ou fora da linguagem ou do texto (usando as palavras de Derrida, nada existe fora do
texto);
- retorno ao concreto e observvel na natureza, na cultura, na religio, na
histria e na humanidade;
- primado da prtica sobre a teoria;
- primado da retrica sobre a dialtica (e a possibilidade de uma retrica
crist que fale das maravilhas da paz e da beleza da verdade);
- retorno a formas de discurso que sejam sempre abertas autocorreo e
crtica;
- mudana crtica e desconstruo de formas ideolgicas de autoridade
baseadas no pensamento jerrquico opressivo e hegemnico;
- liberdade de ultrapassar as fronteiras e entrar em contato com os marginalizados e seus ambientes;
- revalorizao das diversidades;
- crise de valores;
- retorno ao eu;
- desconfiana em relao aos raciocnios que impem diferenas de gnero, que sejam no histricas, no etnocntricas, no contextuais;
- recusa de acusaes de relativismo e niilismo (fragmentao, transgresso, diferena, heterogeneidade e indeterminao so vistas como foras positivas no discurso cultural ps-moderno);
247

- aceitao do desafio que outras tradies e opes religiosas apresentam s religies crists e abramicas;
- perda de centralidade do macho ocidental branco e ascenso dos deserdados devido ao gnero, classe e raa;
- crtica ao pensamento eurocntrico;
- sensibilidade apocalptica por vivermos entre dois holocaustos, o judaico e o nuclear;
- crescente conscincia da interconexo de todas as coisas.




Precisamos compreender, no acompanhamento espiritual, os muitos modos com que o ps-moderno focaliza a ateno na fragmentao, na desconexo,
na complexidade e no pluralismo: uma focalizao voltada mais para a superfcie
do que para a profundidade.22 Dada sua genealogia secular e poltica, o psmoderno favorece abordagens autnomas das realidades religiosas e espirituais
no confessionais, no institucionais, desregulamentadas; a est o desafio radical
para as expresses institucionais da espiritualidade, especialmente em contextos
locais nos quais a famlia humana caminha tateando para Deus atravs das discrepncias muitas vezes violentas e miserveis num mundo cruel,23 um mundo que
facilmente camufla Deus com o pensamento.24

A distino ps-moderna entre f e formas institucionalizadas de religio
outro fator empenhativo. A f pode ser til, sadia e necessria, mas as instituies religiosas e suas grandes histrias esto sujeitas ironia e desconfiana; so
vistas como entidades falimentares e decepcionantes. O ps-moderno parece preferir as religies mnimas. Considere-se, por exemplo, o vasto impacto atual do
consumismo da imagem (onde as reprodues assumem o lugar das obras de arte
originais) e a emergncia da imitao de estilo especialmente entre os jovens.25

Com efeito, o ps-moderno tornou possvel o surgimento de um novo tipo
de conhecedor, algum que v o conhecimento e tudo o mais como objetos
de consumo. O conhecimento tornou-se uma fora produtiva. As consequncias
so imensas para um acompanhamento espiritual sbio e consciente.
22
D. BHNKE, Shades of Grey: Science Fiction, History and the Problem of Postmodernism in the
Work of Alasdair Grey, Galda and Wilch Verlag, Berlim 2004, 26.
23
Ver: R. YAEL PAZ, A Gateway Between a Distant God and a Cruel World: The Contribution of
Jewish German-speaking Scholars to International Law, Brill/Nijhoff, Leiden 2013, xii.
24
Ibid., p. 132.
25
R. APPIGNANESI & C. GARRATT, with Z. SARDAR & P. CURRY, Introducing Postmodernism: A Graphic Guide, Icon Books, Cambridge 2007, 48-50.

248


O ps-moderno tambm indica o surgimento de um mundo inclusivo que
respeita a autonomia e a propriedade, mas as ultrapassa no interesse pelas pessoas e o ambiente. Ele protesta contra os sistemas organizados para devorar tudo
o que crie obstculo ao lucro. Ele procura proteger tudo o que frgil e indefeso
dos interesses dos mercados divinizados do grande capitalismo, que se tornaram
regra nica.26 O ps-moderno , ento, um mito ou uma metfora organizativa,
ou uma condio social assumida por escritores, jornalistas, telogos e comentaristas influenciados pelas modas na filosofia, teologia, espiritualidade e cincias
oferecidas pela crise no pensamento iluminista. Eles buscam uma espiritualidade
de plenitude num mundo ferido pelo narcisismo, pela avidez, pelo individualismo
disfuncional.
2.1. Espiritualidade ps-moderna: pensamentos iniciais

A espiritualidade ps-moderna tem incio com a passagem do sculo XX
para o consumismo como princpio organizador nas economias ocidentais, na
vida cultural e religiosa. Comea a surgir enquanto foras uniformizadoras encontram desejos discordantes de autoexpresso. Nas culturas ps-modernas em
que vivemos, muitas formas de espiritualidade procuram florescer e deixar que
suas sementes acompanhem os ventos da mudana. A espiritualidade crist encontra, em suas mltiplas expresses, muitas manifestaes diferentes de espiritualidade: eclticas, evanescentes, desfocadas, vagamente religiosas, fragmentadas, efmeras, diletantes, que socializam com espiritualidades que parecem no
ter um centro organizador. As espiritualidades que parecem carecer de qualquer
referncia pessoa humana ou ao sofrimento humano ou solidariedade social
se defrontam com espiritualidades sem referncia ao divino.

Espiritualidades conservadoras, resistentes ao mundo e que o renegam encontram-se com espiritualidades que afirmam o mundo e com aquelas que submetem e reciclam as prticas orientais para o pblico ocidental. Formas esotricas de espiritualidade se encontram com outras que parecem ser nada mais do
que prticas teis e rituais tomadas de emprstimo da psicologia com finalidades
teraputicas. E outras, ainda, encarnam formas clssicas de fidesmo que renegam como totalmente falso tudo o que esteja fora de suas vises particulares
26

Cf. Papa FRANCISCO, Evangelii Gaudium, n. 56.

249

de f e de seu quadro teolgico de referncia. Uma crescente maioria de novas


espiritualidades parece representar reaes emotivas ao racionalismo sem alma
da tarda modernidade e a sua relao sentimental unilateral com a eficincia econmica produtiva e o progresso material. Esta escolha potencialmente intrincada
de possibilidades sugere que no pluralismo ocidental emergente a unanimidade
espiritual possa ser ilusria.

Os homens e as mulheres da ps-modernidade tendem a ser muito mais
abertos ao sobrenatural e espiritualidade em relao aos seus predecessores modernistas. O resultado uma incrvel diversidade de espiritualidades, at mesmo
no interior do cristianismo, sobretudo onde a nfase sobre o indivduo levou a
uma perceptvel diminuio de interesses compartilhados.

No interior dos contextos ps-modernos, a espiritualidade crist convidada a descobrir um novo modo de exprimir a santidade, um novo modo de abraar
a grandeza de Deus no novo mercado espiritual e ao longo de suas rotas comerciais, frequentemente virtuais.

Os escritos seculares sobre a espiritualidade respondem habitualmente de
modo criativo aos desafios e s oportunidades oferecidas pelo pensamento psmoderno, mas com modos que muitas vezes no conseguem evocar uma viso
completa e levam perda de ateno sobre a interioridade humana tanto como
realidade relacional quanto social. Esta ltima vista geralmente em chave humanista com nfase til nas prticas de desenvolvimento, mas h tambm uma
relutncia ao uso da linguagem religiosa, levando marginalizao de facto da f
e ao empobrecimento teolgico que dela deriva. Os elementos eclticos, alm do
individualismo fragmentado e isolado que caracteriza o contexto ps-moderno,
tendem a dominar a viso global.

Por outro lado, a natureza ecltica da espiritualidade secular no deveria
surpreender. O multiculturalismo como discurso global parece ser herdeiro do
humanismo iluminista: ao deixar de lado os antigos valores e relaes, a busca do
consumidor de novos ideais integrativos torna-se muito cativante.27 Esse o desafio enfrentado hoje pela espiritualidade: esto em perigo nada menos do que os
valores fundamentais da espiritualidade humana e crist. A espiritualidade crist
convidada a repensar e reimaginar a sua mesma realidade. Em nossa prtica de
Cf. I. DUSSEL, What Can Multiculturalism Tell Us About Difference? The Reception of Multicultural Discourses in France and Argentina, in C. A. GRANT & J. L. LEI (editors), Global
Constructions of Multicultural Education: Theories and Realities, Lawrence Erlbaum Associates,
Mahwah (NJ) 2001, 93114.

27

250

acompanhamento espiritual ou abraamos com vivacidade a novidade do Esprito


de que os tempos precisam ou nos agarramos s seguranas falazes de um passado j ultrapassado?

O dilogo pluralista e inter-religioso j um fato em muitos pases ocidentais, encorajado pela imigrao e pela difuso das novas mdias. Isso particularmente verdade desde o momento que experimentamos a passagem para a
pertena religiosa voluntria ou intencional e o colapso de monoplios religiosos,
especialmente nos pases europeus com igrejas de Estado e institucionais. H
aqui implicaes complexas para as instituies religiosas especialmente aquelas
que creem seriamente na concepo de liberdade religiosa. Na Europa, porm,
as instituies, inclusive as instituies religiosas tradicionais so vistas com
suspeio diversamente da experincia pessoal e da escolha individual que so
grandemente favorecidas, explicando assim a poderosa imagem de Grace Davie
do crer sem pertencer.28

H dois desafios. O primeiro, de particular interesse cristo, tem a ver com
a complexa interao, determinada pelo consumidor, entre o esprito humano,
o esprito do tempo e o Esprito divino no novo mercado espiritual. Tem a ver
tambm com a diversidade de expresso espiritual e estilo que caracteriza essa
complexidade em que as pessoas buscam uma sensao vibrante do divino, muitas vezes de maneiras no tradicionais.29 O segundo desafio tem a ver com o
contestado papel da razo crtica no interior do contexto ps-moderno e nas diversas espiritualidades modeladas pelas foras ps-modernas. Se o Iluminismo
enfrentava o tema do uso pblico da razo era chamada de idade da razo , o
ps-moderno corre o risco de ser o seu oposto, um mercado romntico no qual a
razo est sempre mais ausente.

Ser aceitvel que a nova espiritualidade permanea como a exaltao superficial do efmero e do momentneo, uma dana carnavalesca ou um festival
de repeties de escassas consequncias sociais e ticas? As consequncias para
a humanidade so imensas, no por ltimo nos termos de morte do sujeito num
turbilho de identidades fragmentadas; embora seja tambm importante considerar o que a palavra sujeito significa neste contexto.30 O que acontece quando, nas
G. DAVIE, Religion in Britain Since 1945: Believing Without Belonging, Blackwell, Oxford
1994.
29
Cf. J. M. ASHLEY, Interruptions: Mysticism, Politics, and Theology in the Work of Johann
Baptist Metz, University of Notre Dame Press, Notre Dame (IN) 2002, 112. 197198.
30
Cf. M. A. McINTOSH, Mystical Theology: The Integrity of Spirituality and Theology, Blackwell
Publishing, Oxford 2005, 216219.
28

251

areias movedias da ps-modernidade, um eu em dissoluo torna-se lugar de


encontro com um Deus em dissoluo?31

A espiritualidade ps-moderna tem preferncia pelo pleno florescimento
da vida humana plasmada pelo Esprito em todas as suas variedades. Trata-se de
uma espiritualidade de vida neste mundo, que se deixa interrogar pelo outro, pelo
marginalizado e pelo diverso. A espiritualidade crist redescobre-se viva diante
de Jesus Cristo, o marginalizado, o Outro reduzido a suprfluo, mas que ainda encarna o sofrimento e oferece a esperana numa comunidade de pessoas, nenhuma
delas perfeita, mas que, apesar disso, busca algo alm de si mesma.

A espiritualidade ps-moderna empenha-se em prticas modeladas pela
vida. Facilita a redescoberta de smbolos e sacramentos, e o papel de uma participao fisicamente intensa na orao e no culto. Ela confirma as prticas que
respeitam as caractersticas de idade, gnero, cultura, lngua, raa, classe e todos
os demais modos atravs dos quais se exprimem as legtimas diferenas e as
autenticidades individuais. Ela sustenta prticas que afirmam a beleza de cada
ser humano diante de Deus e est aberta diversidade de espiritualidades que tal
afirmao implica.

A espiritualidade ps-moderna, paradoxalmente, tambm cria espaos para
a liturgia, a orao, o culto. As novas abordagens da Escritura, da lectio divina, da
meditao, do dilogo espiritual, da construo de comunidade e fraternidade tornaram-se possveis. Ela tambm torna possveis novos e diversos apelos a aes
ticas e de mstica empenhada, orientando a vida para o reino de Deus enquanto
se vive imerso nas contingncias da histria e da imprevisibilidade da vida humana.

Entretanto, ainda h outro aspecto da espiritualidade ps-moderna. O psmoderno um mundo potencialmente muito solipsista e narcisista, autorreferencial e egocntrico. um mundo feito de fragmentos e, num mundo de fragmentos, encontramos identidades fragmentadas que seguem desejos fragmentados
que privam de identidades coerentes e uniformes. Em termos psicanalticos, vivemos numa idade em que o princpio do prazer est em aumento. A espiritualidade facilmente diminuda como se fosse um passatempo, e a promiscuidade de
estilos, modas e miscelneas espirituais sem confronto exterior recusam pr em
discusso o seu universo autorreferencial.
D. TRACY, On Naming the Present: God, Hermeneutics, and Church, Orbis Books, Maryknoll
(Nova Iorque) 1994, 4.
31

252


Deslizamos pelas superfcies e empenhamo-nos numa instruo superficial
sem profundidade. Danamos com o desespero que tem medo da transformao,
satisfeitos em imitar a liberdade em ambientes fragmentados e flutuantes onde
lampejam as luzes estroboscpicas e os tambores batem ritmos frenticos. Tornamo-nos portadores de transformaes virtuais em espaos virtuais, portadores
de esprito ilusrio e almas vazias; mas, ento, quem decide o que virtual? Em
mundos achatados, fragmentados, flutuantes, o conhecimento tende a ser incerto,
complexo, e nem sempre racional, especialmente quando se anulam os limites
entre realidade e fico.
2.2. Espiritualidade ps-moderna e ps-secular: os novos desafios

Seguindo as pegadas de Dom Bosco, de S. Francisco de Sales e dos grandes santos da tradio salesiana, os membros da Famlia Salesiana no Ocidente
esto a enfrentar uma rede de novos desafios. Eles acreditam que a espiritualidade
vital para o crescimento humano autntico e essencial para suportar com tenacidade os problemas da vida. E reconhecem que h muitas pessoas no Ocidente,
jovens e idosos, que escolheram iniciar itinerrios individuais de crescimento
espiritual. Como nota o psiclogo Len Sperr, durante a viagem, alguns descobrem que suas vidas se tornam mais equilibradas e recompensadas. Outros,
porm, veem-se aprisionados em antigos sentimentos, inclinaes e hbitos que
parecem anular o seu progresso espiritual.

Entretanto, at aqueles que fazem progressos encontram obstculos ao longo do caminho para o prprio crescimento.32 justamente aqui que o acompanhamento espiritual atento, compassivo e que no julga, demonstra o seu valor.
Num ambiente pluralista, ps-moderno e ps-secular de mltiplas modernidades,
ideologias seculares rivais, globalizao, consumismo difuso e polticas de opes pessoais, o encanto do evangelho repelido por muitos daqueles que ainda
devem descobrir que a alegria renasce nos encontros vivos com Cristo.33 Nem
todos possuem a f, e como nos recorda o papa Francisco, a busca da espirituaL. SPERRY, Spiritual Direction and Psychotherapy: Conceptual Issues, in G.W. MOON and
D.G. BENNER (editors), Spiritual Direction and the Care of Souls, InterVarsity Press, Downers
Grove (IL) 2004, 171-186.

32

33

Papa FRANCISCO, Evangelii Gaudium, n. 1.

253

lidade no contexto ps-moderno e ps-secular um fenmeno ambguo.34 Contudo, h uma vantagem paradoxal neste dilema.

Na sociedade ps-moderna e ps-secular possvel reconsiderar a questo
fundamental da nossa natureza original, da nossa verdadeira identidade, da nossa
viagem csmica e do nosso destino escatolgico em Cristo. possvel relacionar-se com as origens sagradas do verdadeiro eu, a imago Dei (Gnesis 1,26) e
buscar maneiras para faz-lo emergir no mundo. O acompanhamento espiritual
no Ocidente contemporneo est numa nova posio para apoiar essa reviravolta.
Est tambm na posio de encorajar as relaes transformadoras com Deus e
poder apoiar a abertura para o encontro pessoal com o Cristo vivo.35

O acompanhamento espiritual tambm assume uma posio para responder nfase contempornea sobre o esprito, o outro, o diverso, o marginalizado
favorecendo o amor transformador e a promessa de plenitude num mundo fragmentado e desconexo por muitas rivalidades ideolgicas e por muitos conflitos.
Usando a terminologia de Umberto Eco, o acompanhamento espiritual assume
um lugar entre a ordem e a desordem, entre liberdade e regra, entre nostalgia de
um mundo perdido e a tentativa de imaginar algo de novo.36

No Ocidente ps-moderno e ps-secular, a espiritualidade tornou-se matriz
de muitos mbitos, matriz potencialmente transformadora em que esto em ato
muitas e diversas influncias religiosas, seculares, sociais, filosficas e teolgicas. Apesar disso, difcil esquecer que vivemos em terrenos de interferncias
e convergncias inevitveis e imprevisveis, que vivemos presos no fulgor de
ideias desordenadas de vida, descentradas, anrquicas e de sonhos destrudos.
Num mundo que prefere a ao, a prtica, as velocidades, os protestos e as revoltas, as pessoas buscam uma espiritualidade que seja libertadora e curativa. Num
mundo desordenado, elas buscam a espiritualidade do bem-estar, como indica
Papa Francisco.37

Nem tudo que faa parte do contexto ps-moderno e ps-secular positivo. Papa Francisco recorda-nos que a era do individualismo prefere estilos de
vida que enfraquecem o desenvolvimento e a estabilidade das relaes pessoais
e das ligaes familiares. Mas a oportunidade de encorajar uma comunho com
Ibid., n. 89.
Ibid., n. 3.
36
U. ECO, The Aesthetics of Chaosmos: The Middle Ages of James Joyce, Harvard University
Press, Harvard 1989.
37
Papa FRANCISCO, Evangelii Gaudium, nn. 89-90.
34
35

254

Deus em Cristo que cure, promova e reforce as ligaes interpessoais existe para
aqueles que tm a coragem missionria de lev-lo a srio apesar do ceticismo e
do cinismo que tambm podem encontrar.38

No h lugar aqui para uma f restrita, mesquinha ou evasiva.39 Em Cristo,
somos convidados a dar a vida pelos outros, no a prend-los nas prises de mentes amedrontadas ou fechadas.40

O mistrio permanece. Assim como as aporias e os silncios da vida negativa. Os conceitos de Deus so libertados das constries da filosofia racional
e da necessidade moderna de justificar a f em termos puramente racionais. Uma
teologia negativa, uma teologia que aprecie a escurido ofuscante do pensamento ps-moderno suportada porque reconhece a nossa incapacidade humana de
compreender a plenitude e a glria da presena de Deus na vida e no cosmo. O
que o pensamento ps-moderno torna possvel uma indiscutvel viso do Deus
vivo, um Deus que quer ser amante de todas as coisas, um Deus interessado intimamente na renovao e realizao do cosmo e de cada indivduo.41 No contexto
ps-moderno e ps-secular a espiritualidade tende a focalizar-se na imanncia de
Deus, enquanto a religio sublinha a transcendncia de Deus.

A nfase, na espiritualidade ps-moderna e ps-secular, claramente posta
na experincia e na prtica; contrria, porm, ideologia e difidente em relao
doutrina. Por exemplo, ao rezar pela paz e pela justia, e rezando pelos direitos
humanos, os interesses civis e espirituais convergem ao exigirem ao. A orao
performativa, porque leva ao pela sua prpria natureza. Isso tambm verdade para o que se refere contemplao. Tambm ela deve levar ao e solidariedade. Nos ambientes ps-modernos e ps-seculares o que realmente conta
o que, de fato, a espiritualidade realiza, e no tanto como ela definida. A prxis
sai a descoberto para favorecer a ao tica e a solidariedade para com o outro.
Como recorda Huston Smith, a mente moderna foi modelada pela viso de mundo introduzida pela cincia, mas a cincia do sculo vinte e um abandonou no
s aquela viso de mundo, como tambm as vises de mundo em geral.42 Ns
podemos fazer o mesmo. A intuio ps-moderna desconfia de toda proposta que
Cf. ibid., nn. 67, 78-79.
Ibid., n. 83.
40
Ibid., n. 10.
41
Cf. R. VALANTASIS, Centuries of Holiness: Ancient Spirituality Refracted for a Postmodern
Age, Continuum International Publishing Group, Nova Iorque 2005, 74.
42
H. SMITH, Beyond the Postmodern Mind, cit.
38
39

255

ilustre as diversas experincias espirituais s com o falar delas. Tanto na espiritualidade quanto no acompanhamento espiritual somos desafiados por uma gama
de narraes e experincias diversas. O ps-moderno e o ps-secular recordamnos tambm que existem muitas tradies espirituais no interior do cristianismo e
das demais religies do mundo, todas com a prpria validade experiencial e todas
merecedoras de dilogo e respeito.

Enquanto o acompanhamento espiritual tem seus fundamentos teolgicos,
as prticas ps-modernas rompem facilmente os limites tradicionalmente reconhecidos. O corpo, o ambiente, o gnero, a raa, a camada social jogam papis
positivos no acompanhamento espiritual ps-moderno. O desafio imaginar a
santidade e o ascetismo de maneira que vejam a corporeidade sob uma luz positiva e possam celebrar as maravilhas do cosmo prximo plenitude gloriosa em
Cristo. Estamos prontos para trabalhar com uma nova viso da pessoa humana
integrada no contexto de vida?43 Estamos prontos para os desafios do ps-moderno e da espiritualidade ps-secular? Vai aqui um elenco de alguns deles:44

- retorno s espiritualidades subjetivas e ao abandono das religies organizadas;

- atrao pelo que teatralidade fugaz, superficialidade, gosto pelo extico e excitante;

- arriscada separao entre o sagrado e o secular, que pode levar tanto ao
fundamentalismo e recusa da cultura moderna quanto tentativa de
assimilar a religio e a espiritualidade como normas culturais;

- confiana na intuio e no sentimento exasperado, em que a mstica
entendida como atitude ou estilo de vida que v a transcendncia de
Deus como algo alm da compreenso humana;

- espiritualidades que prometem evaso;

- espiritualidades que subtraem a realidade ao outro;

- espiritualidades que nos permitem afastar-nos das certezas e das
preocupaes do mundo e resistir s prticas da modernidade;

- relao da espiritualidade e da mstica com a luta da comunidade;

- mstica como resistncia proftica a todas as injustias e experincia de
alegria e plenitude da presena do sagrado na vida encarnada de toda a
criao;
43
44

Cf. R. VALANTASIS, Centuries of Holiness, cit., 22.


Ver as notas 5 e 21.

256

- o sagrado em tenso criativa com a realidade viva num mundo contingente;


- espiritualidade e mstica vistas como aprofundamento do ser, como processo de vida e modalidade de ser ativos no mundo;
- formas de espiritualidade e de mstica sem metafsica ou sem pretenses de conhecimento especial;
- formas de espiritualidade libertadas da bagagem metafsica;
- espiritualidade baseada na desconfiana em relao ontoteologia
(Heidegger: a ontoteologia leva a um Deus diante do qual ningum
pode falar, danar ou rezar. O Deus da Bblia o Deus da filosofia?)
- vazio ps-moderno e hermenutica de fome e desejo espiritual;
- espiritualidade e msticas como modos de conceber alternativas fragmentao e desconexo das vidas ps-modernas;
- espiritualidade e mstica capazes de abranger diferenas e distncias;
- dvida de que as definies escondem e encobrem tanto quanto revelam;
- a realidade do fim.

2.3. O acompanhamento espiritual salesiano: um mtodo sem mtodo



A prtica salesiana do acompanhamento espiritual, tanto de grupo como
individual, delicada, mas dinmica na sua natureza. realizada num espao de
compaixo, entre o bate-papo e a amizade, caracterizada pela relao perspicaz
mais do que por uma metodologia estruturada. Baseia-se em ligaes de amizade
e aberta ao intercmbio, ao dilogo autntico, influncia recproca. O acompanhamento espiritual salesiano nunca um monlogo, nem manipulador nem
autoritrio. Ele procura deixar-se guiar pelo Esprito, atento aos suspiros da alma
e aos traos do divino nas vidas das pessoas, no aqui e agora.

As imagens que melhor resumem a tradio salesiana so as do companheiro de viagem ou do amigo espiritual dotado de respeito contemplativo, consciente, compassivo e acolhedor da excepcional liberdade de esprito do outro diante
de Deus. Este respeito amigvel procura ser sensato e religiosamente fundado no
Esprito. expresso de maneira gentil e delicada, caracterizada pelo humanismo
cristo sensatamente otimista, alegre e sensvel ao do Esprito Santo.
257


A espiritualidade salesiana realizada em lugares aonde convergem a intensa energia interior e a solidariedade social. Atravs da arte da conversa amigvel, o acompanhamento espiritual salesiano encoraja e apoia essa convergncia dinmica. Atravs do dilogo delicado busca, identifica e promove mtodos
sbios e racionais de harmonizar prticas interiores e sociais com as habilidades
e os conceitos dos que so acompanhados. A espiritualidade salesiana busca a
Deus de modo ordinrio nas atividades ordinrias da vida, mtodos centrados no
corao e guiados por ele, um corao aberto e generoso, humilde, gentil, que se
deixa envolver.

S. Francisco de Sales alerta sobre abordagens perfeccionistas em relao
ao crescimento espiritual. Aconselha a calma e a liberdade de esprito no qual
as pessoas agem em boa f sem estmulos ou exageros, um pouco por vez.45 O
acompanhamento espiritual salesiano percorre ainda hoje o mesmo caminho. O
fator-chave o equilbrio, no o rigor, a mansido de corao, no a severidade de
esprito. compassivo, atraente e autntico. No exigente, terico ou perfeccionista. Aquilo que S. Francisco de Sales e Dom Bosco favoreciam em sua prtica
de acompanhamento espiritual era uma vida simples, mas dinamicamente vivida
na presena amvel de Deus, e um corao cheio de alegria que no se afasta do
Esprito.

Para Dom Bosco, influenciado pelo P. Cafasso e pelo estilo do Colgio
Eclesistico, a prtica do acompanhamento espiritual salesiano sempre procura
responder s realidades em que vivem as pessoas comuns. Dom Bosco mesmo
respondeu aos desafios da imigrao de massa de pobres agricultores, muitos
dos quais jovens que se transferiam das zonas rurais pobres a Turim durante a
revoluo industrial. Viveu na pele o perodo do Ressurgimento e o aparecimento
do estado liberal na Itlia. As origens e os mtodos do envolvimento espiritual,
educativo e pastoral de Dom Bosco, particularmente com os jovens em situao
de risco, nasceu no tempo de transformaes radicais. Para Dom Bosco, o acompanhamento espiritual e pastoral permaneceu sempre essencial para uma resposta
crist vlida para as realidades sociais em constante evoluo. Trata-se de encontrar um espao plasmado por Cristo para que Jesus viva.
San Francesco di Sales, Lettera 1 Novembre 1604 a Giovanna Francesca Frmyot de Chantal. Cf.
A. RAVIER, Correspondance: Les lettres damiti spirituelle, Descle de Brouwer, Paris 1988,
180-181; A. SCATTIGNO, Di Due Un Cuore Solo: Franois de Sales e Jeanne de Chantal, in G.
FILORAMO (ed.) Storia della direzione spirituale. Vol. III: Let moderna, editado por Gabriella
Zarri, Brescia, Morcelliana, 2008, 355-383.

45

258

2.4. Vive Jsus



O lema do acompanhamento espiritual salesiano Vive Jsus, Viva Jesus.
Contudo, Viva Jesus mais do que um lema. um cone e um resumo experiencial da profecia salesiana, da mstica e do servio. Resume e descreve uma espiritualidade do ordinrio, que viva e necessria hoje, impregnada do imaginrio
de um meigo Jesus, o Bom Pastor que oferece repouso alma cansada e um doce
jugo ao esprito dinmico (Mt 11,28-30). espao plasmado por Cristo, mxima,
lema, prxis, programa, afirmao espiritual, aspirao, celebrao, processo liberatrio estruturado. intuio de presena, experincia de Deus, realidade de
graa, capacidade de conhecimento, alma que se reaviva ao sopro do Esprito.

Vive Jsus, Viva Jesus um mtodo de empenho, um ritmo vivo, um apelo
metanoia e ao silncio contemplativo, uma regra de vida. o eixo da graa divina ao redor da qual gira toda a vida, o esprito dana e a alma canta. a sntese de
um percurso espiritual, expresso de uma ideia espiritual, processo de abertura e
de abandono, indcio de uma vida transformada e de um empenho cheio de graa
com o amor que nasce danando a partir do centro profundo do corao da espiritualidade crist e canta modestamente ao mundo o seu poder libertador. Fazer
Jesus viver abraar o divino e ser transformado, totalmente transformado, porque faz-lo significa confrontar a condio relacional e dialogal e a consistncia
da prpria vida cotidiana, permitindo ser tocado pela imensa santidade de Deus.

Qual espao plasmado por Cristo Viva Jesus coloca Jesus e o itinerrio
iniciado por Ele no centro da vida espiritual. Ilumina justamente o corao da
gentil, sensvel e estimulante prtica do acompanhamento espiritual salesiano.
Espera de maneira contemplativa a alegria autntica e cheia de graa de Deus
em conscincia vigilante. Abandona-se docemente ao silncio sem medidas que
canta o sagrado. Na msica desta cano, o acompanhamento espiritual evoca
uma dana de servio compassivo e uma solidariedade ardente com o outro. Vive
Jsus significa que no desejamos nada mais do que aquilo que Deus deseja de
ns, aqui e agora, na graa, e nisso est um profundo desafio para os contemporneos que vivem vidas fragmentadas e desconexas em sociedades consumistas e
insatisfeitas.

Neste espao plasmado por Cristo, as vidas autorreferenciais, empenhadas
em constantes atividades de consumo, atarefadas, rumorosas so transformadas
por um paradoxal, sereno sentido de saudvel inutilidade, uma espcie de ativida259

de-passividade de mos vazias, um repouso silencioso, uma doce pacincia, uma


simplicidade misericordiosamente apagada, mas corajosa, que permite a Jesus
viver e danar e cantar no mundo. A expresso Viva Jesus canta com a melodia de
um texto paulino: no sou mais eu que vivo, mas Cristo vive em mim (Gl 2,20).

Vive Jsus, Viva Jesus revela um ncleo transformado, uma mente transformada, um corao transformado, lugares em que Jesus procura viver na graa
transformante e do qual brota o acompanhamento espiritual profundo. Aqui no
h espao para a contemplao isolada. E se h sofrimento na permisso para
que Jesus viva em ns, este o sofrimento do amor, da gentileza rejeitada e da
pacincia compreensiva exigida, um amor que produz frutos na paz do esprito,
respondendo com o corao que ama.46

Com o corao como metfora-guia, o apelo a deixar Jesus viver tornase um princpio organizador no acompanhamento espiritual. Ele caracterizado
pelo equilbrio entre a autonomia e a inter-relao, devidas presena criativa e
interao das energias masculinas e femininas, e as influncias em seus incios
e desenvolvimentos. A prtica deste equilbrio requer do guia espiritual o cultivo
de uma discreta sensibilidade diversidade e unicidade dos modos de agir do
Esprito nas diversas pessoas e nos diversos contextos.

Na tradio salesiana, particularmente no sculo XIX, com o reflorescer
da tradio iniciada por Dom Bosco, impossvel para o diretor espiritual consciente tratar duas pessoas do mesmo modo: Svio no era Magone, Cagliero no
era Rua. E h sempre um lugar especial no acompanhamento espiritual para os
pobres e abandonados, os perdidos e os sofredores. O diretor responde alegria
com alegria e esprito alegre. Ele responde dor com compreenso e sbia consolao. A tarefa sempre a de fazer Jesus viver nas experincias e nas opes
de estilo de vida das pessoas. Os tempos e as sociedades em que vivemos exigem
que redescubramos uma espiritualidade gentil, cheia de amor, compassiva, que
brote da autntica considerao do outro e da solidariedade para com o outro.

Como Dom Bosco, proclamemos o outro e a liberdade do outro como terreno sagrado de servio autntico e lugar onde o mstico e o profeta emergem
como seres humanos abertos, atentos, interessados, solcitos, sensveis e responsveis. Neste contexto, o ponto-chave fundamental afirmado por S. Francisco de
Cf. W. M. WRIGHT and J. F. POWER (editors), Francis de Sales, Jane de Chantal: Letters of
Spiritual Direction. Trans. by Pronne Marie Thiebert with a Preface by Henri J.M. Nouwen, Paulist Press, Nova Iorque/Mahwah (NJ) 1988; W. M. WRIGHT, Heart Speaks to Heart: The Salesian
Tradition, Orbis Books, Maryknoll (Nova Iorque) 2004.

46

260

Sales merece ateno perene. No seu modo de ver, o papel do diretor consiste em
aconselhar mais do que ordenar: quando damos ordens, usamos a autoridade
para impor uma obrigao; quando aconselhamos, usamos a amizade para convencer e encorajar.47 Na tradio salesiana, os bons diretores espirituais no so
gurus que exigem submisso, mas amigos da alma que respeitam a unicidade do
outro. A paixo pela mudana no autorizao para impor-se sobre os outros ou
comprometer com sobrecargas de culpa. Um mtodo sem mtodo caracterizado
pela simplicidade, pela sabedoria, pelo discernimento, pela alegria, pela doura,
pela bondade, pelo bom-senso e por um corao encorajador: isso que nos contextos salesianos privilegiado exatamente porque respeita a liberdade daquele
que acompanhado na descoberta de modos pessoalmente nicos de esperar a
Deus, honrar a Deus e responder a Deus; numa palavra, fazer Jesus viver. Durante o acompanhamento espiritual, a tarefa do guia seguir o alternante fluir de
graa e resposta individual dando ateno e examinando as suas reaes e resistncias, assim como os mecanismos de transferncia e contratransferncia ou os
movimentos espirituais e contraespirituais, que surgem inevitavelmente. O bom
diretor espiritual tambm capaz de sabedoria e interesse pelo outro, qualidades
visveis na mesma vida de Dom Bosco em seu trabalho com Svio, Magone,
Besucco e muitos outros.

Dom Bosco aprendeu do P. Cafasso uma abordagem prtica, contextual no
acompanhamento espiritual. Aprendeu que um bom acompanhamento espiritual
acontece no espao privilegiado em que a f encontra a graa, espao que requer
humildade e inteligncia como tambm cuidado e interesse se quiser ser estimado, sbio e compreensivo. Dom Bosco jamais perdeu de vista o fim ltimo do
acompanhamento espiritual salesiano: um empenho crescente em vista da unio
com Deus, uma ascenso a Deus cheia de amor nas atividades de todos os dias, e
uma descida s profundezas espirituais e psicolgicas do corao humano.

Para Dom Bosco, assim como para o P. Cafasso, a vida espiritual e de orao das pessoas que se dirigiam a eles para serem acompanhadas espiritualmente
transcendia sempre o seu interesse pessoal. Isso nos recorda que o bom acompanhamento espiritual requer um carter vigilante e aberto de confiana em Deus.
Mas requer tambm uma autntica empatia e amorevolezza (carinho) assim como
uma inteligente e desenvolvida capacidade de escuta contemplativa.
47

Traitt de lAmour de Dieu, in Oeuvres, VIII, 6.

261


Dom Bosco e o P. Cafasso preocuparam-se em ir alm do eu, intimidade
transformadora do divino, enraizado na abertura contemplativa, no empenho e no
conhecimento. Toda ao espiritual e oraes derivam implicitamente da unio
com Deus e do-lhe expresso. A experincia unitiva influencia todo empenho
e todo aspecto do empenho e da opo tica. Esta a razo pela qual podemos
reivindicar que a espiritualidade salesiana unitiva, por sua mesma natureza. Assim como o so as prxis que as exprimem. Toda a riqueza e criatividade da vida
espiritual fluem livremente das fontes da unio com Deus.48 Assim faz a abertura
otimista e a sabedoria do bom acompanhamento espiritual maneira de Dom
Bosco. Aqueles que se ocupam do acompanhamento espiritual so, eles mesmos,
convidados a aprofundar a prpria experincia de unio contemplativa com Deus.

luz da unio com Deus, a abordagem espiritual do acompanhamento
espiritual , em seu profundo, instintivamente interpretativa e convidativa. um
processo amvel, normalmente realizado atravs de narraes autobiogrficas
que se abrem presena encorajadora de um ouvinte contemplativo guiado pela
sabedoria de um corao que sabe discernir, tocado pelo Esprito Santo. O guia
espiritual responde mediante um processo emptico, enraizado no silncio interior compartilhado no calor de uma relao respeitosa e da delicada arte do
dilogo. Porquanto as pessoas feridas possam ser imperfeitas e angustiadas, elas
conservam uma tendncia natural para o divino, e essa inclinao o terreno privilegiado em que podem florescer as sementes da transformao unitiva.

O resultado um modelo de acompanhamento espiritual com um toque/
trao delicado, muito humano, liberatrio e dotado de bom-senso. A humanidade
de cada pessoa reconhecida como meio de ocasio divina. J existimos imagem de Deus. Mediante o acompanhamento espiritual somos encorajados a ser
imagem de Deus no mundo, para permitir mente de Deus reavivar-se na integridade unitiva no mundo real da histria e da poltica: numa palavra, fazer Jesus
viver. Foi o que Dom Bosco fez com Svio e com todos os outros.

2.5. Acompanhamento ps-moderno e pedagogia da emancipao

Formar-se na arte do acompanhamento espiritual significa inevitavelmente
reconhecer e ter a ver com os paradoxos do poder e da autonomia presentes nas
Cf. F. ACCORNERO, La dottrina spirituale di S. Giuseppe Cafasso, Libreria Dottrina Cristiana,
Turim 1958, 97-106.

48

262

culturas ps-modernas.49 O primeiro paradoxo refere-se relao entre poder,


conceitos, desconfianas e manipulaes de pontos de vista no pensamento psmoderno. O segundo paradoxo, para a pedagogia e o acompanhamento espiritual,
relacionado ao primeiro refere-se famosa declarao ps-moderna pela qual o
conhecimento e as pretenses de verdade escondem muitas vezes o impulso para
o domnio dos outros.

O terceiro paradoxo refere-se autoridade poltica e viso filosfica pela
qual o poder absoluto. Implicitamente, as relaes de poder no podem ser neutralizadas, dando vida a uma questo essencial para os educadores e aqueles que
esto empenhados no acompanhamento espiritual no interior da Famlia Salesiana. Como podem, ento, os marginalizados obterem o privilgio de formar pessoas honestas e compassivas? Esta a verso ps-moderna de desafio que Dom
Bosco encontrou em sua ao para formar honestos cidados e bons cristos.

Reconhecemos as sedues do poder escondido na mesma relao do
acompanhamento espiritual? Como preparamos realmente homens e mulheres
para se empenharem no acompanhamento espiritual ps-iluminista? As respostas
a estas questes levam-nos esfera de competncia da tica, a uma tica orientada especificamente para o outro mais do que para o eu. A liberdade manifesta-se
apenas em relao a outro sujeito, com modalidades que do origem ao discernimento e ao conhecimento pessoal tornando possvel a confiana; confiana que
se torna a base para uma f sensvel e responsvel.

Colocamo-nos menos como mestres de verdade e transformao e mais
como criadores de espaos onde o autntico crescimento e a transformao tornam-se possveis, onde a Verdade que liberta pode realmente florescer? (Jo 8,3132).

Sabemos como ajudar indivduos e grupos a reconhecerem as estruturas
de significado e de condicionamento que no conseguem responsabilizar? Empenhamo-nos numa pedagogia autenticamente libertadora? Uma resposta a estes
paradoxos encontrada na prtica da pedagogia emancipadora.50
H. ALEXANDER, Postmodernism Paradoxes: After Enlightenment Jewish Education and the
Paradoxes of Post Modernism, in H. MILLER, L. D. GRANT, A. POMSON (editors), International Handbook of Jewish Education Part One, Springer, Dordrecht 2011, 285-300.
50
Cf. P. LATHER, Staying Dumb? Feminist Research and Pedagogy With/in the Postmodern, in
H. W. SIMONS and M. BRILLIG (editors), After Postmodernism: Reconstructing Ideology Critique, Sage Publications, Londres 2004, 101-132.
49

263


So dois os pressupostos-base da pedagogia emancipadora que importam
no acompanhamento espiritual: h reciprocidade entre poder, conhecimento, diversidade e controle; e as ideias de poder como poder com e no poder sobre.
Quem oferece acompanhamento espiritual no usurpa a autonomia e a responsabilidade da pessoa acompanhada. A pedagogia emancipadora permite que a
transformao acontea atravs do desenvolvimento de um processo respeitoso
de busca relacional aberta compreenso libertadora, surpresa, ao sentido do
sagrado, meditao e densa conscincia de orao, adorao autntica e
prtica com outros, responsabilidade e solidariedade comuns, especialmente
para com os marginalizados, ao amor e cuidado do ambiente, ao trabalho por um
mundo melhor, mais justo e em paz.

A pedagogia emancipadora convida-nos, no acompanhamento espiritual, a
nos preocuparmos com os sistemas culturais e seu impacto no desenvolvimento
de autnticas prticas espirituais e de cidadania crtica, temas prximos ao fulcro
dos conceitos de Dom Bosco sobre a educao e o acompanhamento espiritual.
Desafia-nos reflexo crtica sobre as dinmicas que bloqueiam ou impedem o
desenvolvimento espiritual, as percepes, as representaes e a prxis. Convidanos tambm a refletir criticamente sobre as foras polticas, econmicas, socioculturais e religiosas que bloqueiam o desenvolvimento harmonioso de valores,
confiana, abertura, com os temas e questes a eles relacionados. A pedagogia
emancipadora procura conectar e reconectar o corao, a alma, a mente, as emoes e a criatividade do esprito humano a todos os aspectos da realidade.

Estas abordagens geram no acompanhamento espiritual autntico um espao que exorta aprendizagem profunda, com um efeito transformador no modo
de ver o mundo e nos modos de comportar-se. A pedagogia emancipadora ainda
convida as duas partes que compem a relao de acompanhamento espiritual a
reconhecerem tambm a presena de foras, muitas vezes imperceptveis, que
impedem a abertura mudana e transformao. A prtica do autoconhecimento crtico torna possvel s duas partes identificar e analisar os obstculos
graa surgidos no interior da prpria relao de acompanhamento espiritual, em
si mesmos e no mundo.

A pedagogia emancipadora encoraja o envolvimento em movimentos que
promovem o esprito humano e favorecem a essncia das prticas espirituais de
meditao, reflexo crtica, celebrao, amor e respeito pelo outro, e abertura
beleza de todas as criaturas de Deus. Contrape-se s formas de espiritualidade
264

escassamente reativas e apoia ativamente o trabalho pela justia social e o respeito recproco num mundo pluralista ps-moderno e ps-secular. Recusa uma viso
puramente individualista da religio e da espiritualidade e privilegia um espao
de criao de significado recproco, onde os potenciais transformadores do poder
simblico vm luz.51
2.6. O acompanhamento espiritual: uma arte e um dom

O acompanhamento espiritual um dom carismtico, um apelo vocacional, uma solicitude proftica de Deus. tambm uma arte relacional que tem
necessidade de um cdigo tico, de sensibilidade aos limites individuais e de
grupo. A arte precisa de exerccio e prtica, empenho, monitoramento, transparncia e responsabilidade. O dom precisa do esforo de autoconhecimento, autodisciplina, orao, contemplao, e de um empenho pessoal de crescimento e
transformao. O exerccio refina o dom. Oferece-lhe tambm pontos de vista e
ambientao para verificar e discernir a idoneidade pelas suas prticas. O dom
precisa de um sentido de humildade e habilidade para reconhecer e colocar de
lado os mecanismos de interesse pessoal e o desejo: uma habilidade que requer
disciplina contemplativa.

As Escrituras esto cheias de histrias de fragilidade espiritual e de falncia, histrias de dvidas e de lutas. Assim so o acompanhamento espiritual
e as vidas daqueles que o praticam. Eles sabem que trazem a concretude de suas
ideias e da sua. Trazem tambm suas esperanas pelo que fazem. Trazem consigo
as prprias histrias de desnimo, dor, perda, luto, raiva, frustrao, solido, fragilidade, tentao, medo, dvida e ansiedade, os erros e preconceitos que distorcem a sua viso da realidade. Tm os seus problemas e as suas resistncias; so
pecadores carentes de misericrdia e tm seus ramos para podar e queimar (cf.
Jo 15,1-4). Tm perguntas que buscam respostas que se intrometem e tiram a
ateno dos mecanismos do Esprito Santo.

A preparao acadmica e uma boa exercitao na arte do acompanhamento espiritual afinam, desenvolvem e oferecem o benefcio de uma sempre mais
acurada profundidade e da conscincia no sentido do dom. O dom, contudo, deve
Cf. E. TISDELL, Exploring Spirituality and Culture in Adult and Higher Education, John Wiley
& Sons, San Francisco 2003; E. SCHSSLER FIORENZA, Democratizing Biblical Studies:
Toward an Emancipatory Educational Space, Westminster John Knox Press, Louisville (KY) 2009.

51

265

estar em primeiro lugar. Em certo sentido, diretor espiritual se nasce, no se faz,


mas, em todo caso, todos eles precisam de preparao, melhoramento e prtica.
Considere-se a capacidade de escuta: escutar o silncio do outro com amor e
compaixo, sem julgamento ou interferncias; escutar os temores do outro com
a autntica sabedoria livre da capacidade humana de reagir e criticar; escutar a
histria do outro ou a crise ou o dilema sem interrupes ditadas pela curiosidade.
Todas estas habilidades tiram benefcios da prtica.

Escutar a experincia de Deus feita pelo outro, sem resistncias ou invejas ou crtica interna e com compreenso espiritual e discernimento, um dom
e um apelo, algo enraizado na santidade de Deus e no sopro do Esprito Santo.
Mas tambm uma habilidade aberta ao melhoramento. Por exemplo, a escuta
contemplativa e emptica so disciplinas profundamente espirituais associadas
paradoxalmente presena, hospitalidade, amizade, espera, e a prticas fundamentais, memria, orao de tranquila e silenciosa meditao, competncias a
desenvolver e potenciadas na orao e no abrao caloroso do Esprito Santo. Tanto a arte como o dom comportam prticas empricas, coisas a aprender, melhorar,
potenciar e enriquecer no tempo: a graa interage com a natureza.

Quando a nfase colocada unilateralmente no dom ou na arte do acompanhamento espiritual, aqueles que so acompanhados esto em perigo. As evidncias empricas sugerem que muitas das violaes dos limites no acompanhamento espiritual acontecem entre aqueles que declaram ter um dom, mas cuja prtica
semelhante a outras formas de responsabilidade ou superviso pastoral. Uma
das vantagens de um bom programa de exercitao a sua habilidade de levar
estas questes e estes perigos ateno das pessoas. Uma prtica unilateral leva
muito facilmente aqueles que oferecem acompanhamento espiritual a impor as
suas vises restritas aos outros. Exigindo submisso apenas a si mesmos, eles se
tornam obstculos reais livre ao de Deus nas vidas das pessoas. Uma prtica
sbia torna-nos atentos a estes perigos.
2.7. Acompanhamento espiritual ps-secular: oportunidade ou desafio?

O ps-moderno e o ps-secular representam um desafio e uma oportunidade para o acompanhamento espiritual sbio e equilibrado. O principal desafio
refere-se revoluo acontecida no campo do conhecimento, sobre a sua produ266

o e aquisio em nossos dias. Todos os tipos de dados, os blogs, os stios web


e os textos sobre os tipos de espiritualidade esto disponveis apertando uma
simples tecla. Lidamos com uma abordagem totalmente distinta do conhecimento
num mundo em que diversas abordagens geram tipos diversos de conhecedores.
Os membros da Famlia Salesiana no Ocidente, especialmente os mais velhos,
gostam de trabalhar com diversos tipos de conhecimento e de conhecedores no
acompanhamento espiritual e vocacional? Estamos cientes de que o acompanhamento ps-moderno e ps-secular acontece num campo dinmico, para o qual
convergem muitos mbitos de interesse, especialmente aqueles influenciados pelas filosofias e pelas cincias sociais e humanas, que do a prpria contribuio
para determinar o que significa ser uma pessoa nas culturas de hoje em mudana
to rpida?

A oportunidade tem a ver com a viso ps-moderna pela qual tudo incompleto, pela qual toda pessoa e qualquer coisa esto em viagem, uma viagem
feita de muitos desfechos. As possibilidades de uma escatologia gentil e amvel
so difceis de serem percebidas numa poca que dana com os desfechos, com
as finalidades temporrias e com a recusa da Divina Providncia. Ns podemos
ajudar as pessoas a encontrarem Jesus na fulgurante penumbra do pensamento
ps-moderno. Podemos sugerir uma abordagem para um desfecho no esplendor
de Cristo. Podemos sugerir que Ele a nossa destinao at mesmo numa realidade cultural que se afastou da imagem da destinao humano-sagrada em sua
desconfiana com tudo que determinstico. Alm disso, podemos redefinir o
acompanhamento espiritual ps-secular como a arte de encontrar pessoas incompletas em sua obscuridade e incompletude, ajudando-as a encontrar em Cristo
a luminosa promessa de plenitude csmica. Ele muito mais do que um guia
motivacional para a viagem da vida.52

Existem outros desafios e outras oportunidades a levar em conta. Podem o
Ocidente europeu contemporneo e as outras democracias ocidentais recuperar a
sua alma espiritual sem a presena afetuosa da mente religiosa? Podem redescobrir a f? Ou continuaremos a cantar, usando as palavras de Elliot, como cisternas vazias e poos secos? Jeremias utiliza a mesma imagem: Pois o meu povo
cometeu dois males: abandonou-me, a fonte de gua viva, e cavou cisternas para
Cf. B. WATERS, From Human to Posthuman: Christian Theology and Technology in a Postmodern World, Ashgate Publishing, Aldershot 2006; C. DICKINSON (editor), The Postmodern Saints
of France, cit.

52

267

si, cisternas rompidas, que no possuem gua. Como pode a prtica do acompanhamento espiritual cuidar das cisternas vazias e rompidas do Ocidente? Como
pode aproximar os poos sem gua s fontes de gua viva? Como possvel recuperar a racionalidade sem entrar em contato com os potenciais transformadores
intrnsecos autntica mstica, profecia e ao servio? Estes desafios devem ser
enfrentados tambm por aqueles que se ocupam de nova evangelizao.

Pensar de maneira secular significa pensar no interior de um sistema de
referncia ligado pelos limites da vida na terra: significa manter os prprios raciocnios e convices enraizados nos critrios mundanos. Pensar de maneira
crist significa a aceitao direta ou indireta de todas as coisas em relao ao
nosso destino eterno de filhos e filhas do Rei.53 Pensar de maneira crist significa
empenhar-se com a totalidade da vida e do cosmo; ver a totalidade num pedao de
po e no vinho, para apreciar e alegrar-se na sua promessa sacramental. Pensar de
maneira crist significa voltar-se para a vida, beber saciedade da fonte de gua
viva, danar com o difusor de estrelas.

A redefinio de racionalidade est implcita em tudo o que fazemos to
logo alargamos o acompanhamento espiritual a tudo que compe a vida: a luz e
as trevas, o sagrado e o secular, a superfcie e a profundidade, o dentro e o fora,
o belo e o feio. A redefinio da racionalidade, o encontro com novos modos de
conhecer e novas formas de conhecimento, o abrao completo da vida com a
plenitude, ou ao menos com a promessa dela, ou a escolha de deixar Jesus viver,
algo que fazemos quando nos vemos face a face com o outro. Do mesmo modo,
o encontro empenhativo com a incompletude e o seu fim humano. Todos eles requerem a redefinio e o aprofundamento da viso e ao que se tornam possveis
atravs de uma viso integral.

O trabalho de redefinio um elemento essencial tanto do acompanhamento espiritual como da nova evangelizao. Como poderia, quem quer que se
encontre empenhado no acompanhamento espiritual, na evangelizao, na educao f, no perceber a simultnea presena de Atenas e Jerusalm naquilo
que fazem? Quantos de ns estamos preparados para a constncia do desafio?
Ou tambm ns, como muitos outros no turbulento sculo XX, nos esconderemos tranquilos e temerosos do frum pblico e votaremos tambm, silenciosa e
Cf. D. N. ENTWISTLE, Integrative Approaches to Psychology and Christianity: An Introduction
to Worldview Issues, Philosophical Foundations, and Models of Integration, Wipf and Stock
Publishers, Eugene (OR) 2004, 11-13.

53

268

temerosamente, para a bancarrota espiritual do Ocidente, e a morte de uma ideia


sublime de humanidade? O que seria, ento, do apelo a ser mticos, profetas e
servos?
2.8. A orao ps-secular

A orao filha do seu tempo e o nosso um tempo em que a orao redescobriu o seu lado pblico. No contexto ps-secular, a orao usada tanto de
maneira tradicional quanto como instrumento de educao e mobilizao da ao
pblica em bases espirituais e teolgicas, sociais e polticas. A ligao com ideias
positivas de empenho, de ascetismo e de espiritualidade no difcil de encontrar,
nem o que se deva desejar. A orao sempre foi um instrumento transformador
e asctico, mas agora usada de maneiras novas e fantasiosas para favorecer
mudana social, tica, poltica, religiosa e psicolgica. Assim como uma forma
de comunicao, de prtica universal e um significativo mtodo retrico e discursivo, a orao pblica, que envolve grandes nmeros de pessoas em escala
mundial, tornou-se uma modalidade espiritual adequada ao contexto ps-secular.

Sob a guia do Papa Francisco, a orao universal j reivindicou a sua
influncia sobre a busca ps-secular para transformar a sociedade e abrir-se s
preocupaes do esprito. Tambm os encontros e as reunies de orao de muitos tipos, muitos dos quais pequenos e locais e atuantes em contextos diversos
so indicativos desta virada polidrica. Ao mesmo tempo, podemos considerar
o aumento de interesse pela lectio divina e pela meditao, e a busca atual por
um novo monaquismo e por uma espiritualidade urbana. A orao e a ao convergem de maneiras relativas a todos os tipos de interesses, envolvendo todos os
tipos de participantes e suas modalidades de ateno, e compartilha as mesmas
qualidades motivadoras de evento, presena e encontro transformador. O mbito
dos direitos humanos um desses contextos, como a solidariedade com o outro,
os marginalizados, os excludos. Como a ateno e a preocupao com o ambiente. O mesmo pode ser dito das iniciativas pela paz baseadas na orao e na emancipao, para no falar da gama de todas as outras iniciativas baseadas na orao,
que importunam, se intrometem, perturbam e desafiam um mundo desiludido e
indiferente, que est comeando a compreender que a religio autntica se recusa
a ser silenciada. E aqui no deveriam existir surpresas.
269


A orao performativa, orientada para a ao comunicativa, uma invocao e um convite. sempre ao e relao, uma conquista alm do eu. Como
ao, revela o seu carter de encarnao. Preenche o vazio entre o interior e o exterior, o sagrado e o secular, o eu e o outro, o conhecido e o ainda desconhecido.
A orao no uma decorao, um extra a mais. Como comunicao, a orao
uma significativa prtica cognitiva, social. Convida-nos a ver o mundo com
olhares diversos, a erguer o vu da iluso do indivduo e da comunidade para
poder ver as coisas de um ponto de vista mais divino, escutando o Esprito.

A orao, especialmente a orao unitiva, brota de um lugar de profunda
compaixo, de um espao humano iluminado onde cessa o julgamento (Mt 7,15). E permanece um mtodo privilegiado para servir e encorajar a viva, o rfo
e o estrangeiro. A generosa orao crist conhece a consolao de palavras cheias
de vida pelas pessoas feridas e o dom de um curador ferido que revela a presena
de um Salvador ferido. Mesmo no silncio dos que foram silenciados, a orao
encontra traos de beleza e verdade libertadora. Como a liturgia, a orao unitiva liga-nos a uma fonte coletiva de significado em Cristo, e desde ali podemos
iniciar a ver a bancarrota do projeto secular com olhos novos. Onde prospera a
orao, o amor e a bondade no esto distantes.

A orao unitiva encoraja um ato de amor em espaos ignorados e marginalizados pela recusa secular de abraar o mistrio. A orao acontece no espao
humano entre a esperana e o terror, espao mortal onde dominam o desespero
e o suicdio. A orao abre caminhos nas paisagens do dom, da hospitalidade e
do perdo tanto na esfera pessoal como pblica. Dom Bosco sabia que a orao
unitiva nos leva a acompanhar os ritmos da Trindade. Sabia que nesse espao descobrimos a vida como um continuum de tudo o que fazemos, revelando a imensa
alegria de ser com e pelo outro, mas a orao que resiste mudana um caminho
sem sada. Desonra a Deus. A orao autntica sempre, por si s, um pedido de
justia. Como poderia um bom acompanhamento espiritual no estar atento ao
convite e ao desafio escondidos na orao unitiva?

4. CAMINHANDO PARA UMA CONCLUSO: OS NOVOS DESAFIOS


ESPIRITUAIS

O sculo XX herdeiro de grandes alteraes no panorama da religio e da
espiritualidade ocidental. Houve um quase declnio universal de adeses ativas
nas igrejas institucionais, acompanhadas de um aumento equilibrado no nmero
270

de pessoas busca de um itinerrio espiritual mais personalizado e subjetivo.


Nas sociedades ocidentais contemporneas, muitas pessoas no reconhecem nem
mesmo o dilema que os investe em sua busca de significado. Alguns perderam
contato com a linguagem religiosa e espiritual. Outros no conseguiram questionar suas ideias sobre a vida, o mundo, o esprito humano, e nunca as puseram em
discusso. E muitos perderam de vista o modo, s vezes criativo, s vezes destrutivo, s vezes secular, s vezes espiritual, com que o esprito humano busca uma
forma mediante a ao no mundo.54

Muitas pessoas esto em fuga das igrejas institucionais devido aos escndalos, s feridas pessoais, escassa sensibilidade dos cristos e do clero, s desiluses, ou at mesmo falta de compreenso. Muitos, sobretudo entre os jovens, so
simplesmente indiferentes. Outros ainda, principalmente aqueles que buscam o
equilbrio, foram influenciados pela falta de encontro com o santo e o sagrado nas
comunidades de f em que nasceram, ou pela sensao de que as igrejas ocidentais
so incapazes de responder s suas necessidades espirituais mais profundas. As
pesquisas sugerem que os jovens no Ocidente querem gozar a vida. Querem experimentar relaes emocionais intensas. Querem se sentir atraentes. Querem viver
relaxados, sem estresse, livres; e desejam ajuda quando seu bem-estar est em
perigo. J entendemos h tempos que existe uma escassa evidncia da ligao entre estes desejos e os sistemas religiosos ou sistemas de crenas espirituais, especialmente no mundo de lngua inglesa.55 A situao que prevalece entre os jovens
em muitas democracias ocidentais alarmante, porque pode ser facilmente um
terreno frtil para a desiluso e o desespero. As estatsticas relativas ao aumento do
nmero de suicdio, de bulismo, e as intimidaes via internet especialmente entre
os jovens caminham nessa direo. Como respondem a esses desafios a educao
salesiana e o acompanhamento espiritual? Como respondemos ns aos desejos
que os jovens tm de significado, de esperana, de encontros vivos com Deus, de
transcendncia, de fins ltimos? Onde esto os sinais de Deus nas culturas ocidentais? Onde esto as promessas de uma vida nova? Onde esto as vocaes? Esta
mesma situao nos ajuda a perceber uma questo e uma necessidade camufladas
no mundo religioso que a modernidade transcurou como irracional.
Numa sondagem no Reino Unido, por ocasio do batismo do Prncipe Jorge, a maior parte dos
adultos (52%) no considerava o batismo como algo importante. Depois, os dados sobem a 57%
para os homens e 57% para o grupo na faixa entre 25 e 59 anos (idade-chave para o desenvolvimento das crianas); 66% dos escoceses no consideravam o batismo como importante. Ver: <http://
www.brin.ac.uk/news/2013/from-st-george-to-prince-george/ (12/12/13)>.
55
Cf. D. CHANEY, Culture and Everyday Life, Palgrave, Londres 2002.
54

271


Esta questo irracional, ps-secular, recusa os contornos ntidos, as ideias
claras e distintas da racionalidade secular. Prefere os contornos do mistrio, do
santo, do sagrado, do belo, da admirao e do prazer. Defrontamo-nos com um
questionamento pessoal que recusa ser reservado, com uma questo coletiva que
se torna pessoal e recusa ser reduzida a processos econmicos ou de mercado.
Trata-se de um questionamento sobre o mundo que recusa ser simplificado a polticas de partido ou econmicas. Trata-se de uma questo que abre novas possibilidades: pelo personalismo autntico, a socialidade e a solidariedade; pelo dilogo
interconfessional e inter-religioso; pelo ecumenismo, a mstica, a profecia e o
servio; pela interconexo e a universalidade, pelo respeito e a igualdade; pela
sensibilidade ecolgica e a conscincia ambiental; pela alegria na vida.

Muitos acreditam que estamos entrando em um novo perodo axial, que
v o cristianismo moderno sair de um ciclo que persistiu por trezentos anos e
teve incio com o Iluminismo. Estamos preparados para nos adequarmos aos desafios de uma nova era axial, uma idade de pensamento revolucionrio? Estamos cientes de que, no Ocidente, oferecemos acompanhamento espiritual num
momento de importantssimas mudanas histricas, um tempo de respostas e um
tempo de reao, um tempo de possibilidades estridentes?56 Estamos preparados
para termos alguma coisa a ver com novos modos de conhecimentos e novos tipos de conhecedores quando tudo est mudando e nenhuma tradio religiosa ou
espiritual pode afastar-se do que est acontecendo?

Existem desafios inevitveis no Ocidente. s portas de uma nova idade
axial, que pe tudo em discusso, a nossa vocao corresponde a sermos construtores de pontes para as fontes profundas do ser e da transcendncia, no mundo
e nas profundidades da alma humana. Estamos prontos para olhar mais longe e
buscar em profundidade, para servir f e aceitarmos os seus desafios de presena compassiva, amvel e esperanosa enquanto nos aproximamos das margens
de um futuro no programado? Estamos prontos, com Dom Bosco, para servir o
mistrio do amor de Deus? Estamos prontos para sermos testemunhas de Deus
em lugares nos quais nem todos tm f? Estamos prontos para sermos reservas
espirituais compassivas a servio dos jovens, felizes como Dom Bosco, se tudo o
que podemos fazer ajud-los a serem bons cristos e honestos cidados, e evitar
os muitos perigos que se encontram no caminho deles?

Cf. R. N. BELLAH and H. JOAS (editors), The Axial Age and its Consequences, Harvard University Press, Harvard 2012.

56

272

O acompanhamento espiritual
dos jovens em cenrios
multirreligiosos: contextos,
possibilidades, limites, propostas

Joe Mannath, sdb


1. INTRODUO: O CONTEXTO

Imagino que um dos motivos pelos quais me foi pedido para apresentar
um artigo sobre este subtema fosse o fato de provir de um cenrio multicultural e
multirreligioso; por isso, tenho a inteno de basear-me justamente no que aprendi da minha experincia nesse contexto, e no que aprendi no contato com ele.
O multiculturalismo e o contexto multirreligioso so mais bem compreendidos
vivendo neles, mais do que lendo textos que falam deles, especialmente quando
escritos por um outsider.

A minha formao em poucas palavras: nasci na ndia, entrei na Congregao Salesiana em outro estado, sempre na ndia. As lnguas dos dois estados
so diferentes, at mesmo o alfabeto. Estudei filosofia e continuei at o doutorado
na UPS de Roma (onde, mais tarde, fui professor por breve perodo) e realizei os
estudos teolgicos no Ateneu jesuta de Pune, na ndia. Fiz pesquisa em psicologia e teologia na Universidade de Oxford e, depois, o ps-doutorado nos Estados
Unidos, na Weston Jesuit School of Theology, na Universidade de Harvard e no
Boston College (universidade jesuta), especializando-me em psicologia e espiritualidade. Meu ministrio concentrou-se principalmente na experincia na ndia
e nos Estados Unidos. Minha experincia: 21 anos de trabalho na formao, 20
anos como professor numa universidade estatal, muitos seminrios para padres,
religiosos e educadores, um pouco de ministrio paroquial, escritor (alguns livros
e centenas de artigos). Fui professor por 20 anos nos Estados Unidos durante o
vero, em institutos de ensino superior, ensinando nas reas da espiritualidade
e da psicologia da religio. Tenho alguma familiaridade com o Japo, a Coreia,
Hong Kong, Singapura, Sri Lanka e Tailndia, amadurecida atravs do ensino e
273

dos contatos pessoais, mas no posso falar de suas culturas baseando-me numa
experincia de grande durao.

Os contextos multiculturais dos quais posso falar, portanto, so os da ndia,
dos USA e, at certo ponto, da Europa. Em relao sia, as culturas da sia
oriental so um contexto muito diferente da ndia ou do sul da sia. As culturas
asiticas so influenciadas por duas grandes e antigas civilizaes, a chinesa e a
indiana, que diferem profundamente e se desenvolveram sem grandes interaes
recprocas nem interesse recproco. A atitude quanto religio, por exemplo,
muito diversa na China em relao quela que se encontra na ndia. As interaes
religiosas no Japo so muito diversas das do Sri Lanka. As civilizaes definemse diversamente. O modo com que um japons v a identidade nacional (atravs
de conceitos como raa e lngua em geral) muito diferente de como a percebe
um indiano (atravs de lugares sagrados, textos sacros etc.).1

No se pode viver na ndia sem se expor ao multiculturalismo e ser posto
prova por ele todos os dias. A ndia a ptria de todas as maiores religies do
mundo. Seguindo o que emerge do recenseamento da ndia, os cidados indianos
so: 80,5 % Hindus, 13,4% Muulmanos, 2,3% Cristos (dos quais 1,6% so Catlicos), 1,9% Siquistas, 0,8% Budistas, 0,4% Jainistas e 0,6% outras religies.2
A ndia tambm apresenta diversidades lingusticas extremas: 1652 lnguas e
dialetos, 300 grupos lingusticos, 18 lnguas oficiais, cada uma com o seu sistema prprio de escrever (15 deles esto na rpia, moeda oficial indiana)! Vrias
lnguas da ndia so faladas por mais nativos do que a maior parte das lnguas europeias, o hindi por cerca de 425 milhes de pessoas, o bengals por 84 milhes,
o telugu por 74 milhes, o tmil por 61 milhes e assim por diante. normal,
para um indiano instrudo, falar duas ou trs lnguas. Muitos indianos tm famiS. KAKAR and K. KAKAR, The Indians: Portrait of a People, Penguin/Viking, Londres e Nova
Dlhi 2007, 181: Olhando para a China (e as sociedades chinesas no mundo) podemos definir
como dominantes, na viso do mundo do confucionismo, os seguintes elementos: no existem
outros mundos a no ser este em que vivemos. O significado ltimo da vida insere-se nas prticas
da vida de todos os dias, e no separado delas. O significado da vida realizado no interior da comunidade atravs da ajuda recproca na famlia, no cl, na escola e no local de trabalho. O que une
a sociedade no a lei, mas aquilo que os chineses chamam de li, um mtodo de comportamento
civilizado. Uma caracterstica predominante do mundo chins o sentido do dever, mais do que a
exigncia de direitos. A viso indiana da vida e do seu significado muito diferente desta. Na ndia,
a viso predominante de mundo considera mais real o mundo espiritual invisvel, do que o visvel.
Aqueles que experimentaram o outro mundo espiritual so levados muito a srio na ndia, e so
considerados e venerados acima dos demais. Veja-se mais adiante nas notas o que afirmo sobre os
homens-deus e as mulheres-deus.
2
Recenseamento da ndia, 2011.
1

274

liaridade com o ingls, que envolve a exposio a livros ingleses e americanos,


a filmes, universidade. O The Times of India o jornal em lngua inglesa com
maior difuso no mundo.

Os Estados Unidos tambm so cultural, religiosa e linguisticamente diversos, apesar de uma lngua e uma religio oficiais. Em Nova Iorque falam-se
800 lnguas, fazendo com que seja a cidade com maior diversidade lingustica no
mundo. Na Los Angeles County falam-se 135 lnguas; nessa arquidiocese, a missa
celebrada em 46 lnguas.

Na Europa, um vasto nmero de imigrantes (quase 40% para citar uma
fonte) formado de muulmanos, com grupos mais reduzidos de outras religies.3 Os contextos multiculturais e multirreligiosos esto se tornando a norma
em muitas partes do mundo, levando tanto a um enriquecimento recproco como
a uma desconfiana recproca que fomenta o dio.

O multiculturalismo deveria ser visto como fora, no como problema.
Ele certamente pode fazer com que surjam problemas, mas por isso mesmo
uma fonte de vitalidade e dinamismo. algo que se deve festejar, como vemos
acontecer nos Estados Unidos e no Canad. A eleio de Barack Obama, como
presidente de uma nao de maioria branca, mostra a vontade de um grande grupo de americanos querer ir alm, querer ultrapassar os preconceitos do passado e
aceitar o outro. Do mesmo modo, Nelson Mandela obteve em todos os lugares
a admirao das pessoas pelo seu esforo de criar a nao arco-ris, na qual as
pessoas de todas as cores pudessem viver juntas em harmonia. No quis que ao
regime do Apartheid dominado pelos brancos seguisse uma nao negra dominada pelos negros. Na verdade, para alguns africanos que queriam afastar os brancos do time nacional de rgbi, ele disse: No, surpreendamo-los com a nossa
generosidade e o nosso equilbrio.

O multiculturalismo, porm, precisa de uma nova mentalidade e sensibilidade, diversamente do modo como funciona em ambientes muito monoculturais e monorreligiosos. Ele pode apresentar desafios e criar tenses, at mesmo
violncias. No existem respostas fceis. Nada se obtm negando a realidade ou
escondendo-se num mundo de fantasia em que reina a uniformidade cultural,
religiosa, lingustica e racial.
Cf. O. VITO, Attenzione ai migranti e missioni salesiana nelle societ multiculturali dEuropa,
LAS, Roma 2012.

275


Deixai-me dar alguns exemplos de como isso pode envolver as prticas
religiosas e espirituais. Seria normal para uma freira ou religioso indiano (exceto
para aqueles que habitam o nordeste da ndia) iniciar o dia fazendo ioga, entrar
na capela com os ps descalos ou sentar-se no cho (mais do que numa cadeira)
para a orao, ou cantar oraes usando invocaes em snscrito (e, portanto,
originariamente hindu). Alguns de ns assistimos/frequentamos o retiro budista
de meditao vipassana e achamo-lo realmente til. Alguns centros catlicos ensinam essas prticas. Quando os psiclogos norte-americanos estudam o impacto
da meditao sobre a sade fsica e emocional, as prticas de meditao que estudam no so as beneditinas ou jesuticas, mas indianas (ioga, vipassana, meditao transcendental e outras).4 Mesmo os nossos melhores amigos ou vizinhos
de casa, o nosso mdico ou o nosso cozinheiro, os engenheiros e os melhores
professores sero muitas vezes pessoas de outras concepes de f e de outros
grupos lingusticos. A grande maioria de alunos nas escolas catlicas e salesianas da ndia pertencem a outras formas de f. As diferenas religiosas, em seu
conjunto, no causam problemas. Na vertente negativa, as dioceses indianas e as
ordens religiosas esto frequentemente divididas por questes relativas lngua,
casta ou tribo.5

Percebe-se tambm uma crescente conscincia de que a ordem econmica profundamente injusta, e como as potncias ocidentais desfrutam, empobrecem e humilham as outras culturas. Por longo tempo as duas economias
mais ricas eram a China e a ndia. Quando a East India Company (que, depois, foi adquirida pela ndia) foi formada, a ndia possua 22% do comrcio
mundial e a Gr Bretanha, 5%. Depois de quatrocentos anos de domnio britnico, a ndia estava reduzida a uma das mais pobres naes do mundo, enquanto a
Gr Bretanha tornara-se poderosa e rica. As atitudes das pessoas em relao ao
ocidente e, por isso, em muitos casos ao cristianismo, mudaram. H uma nova
autoafirmao cultural entre as pessoas no pertencentes s culturas e religies
ocidentais. Uma das principais razes pelas violentas reaes dos muulmanos
contra o ocidente (enquanto alguns deles colocam-se em relao com o cristianismo) a sua percepo de que a modernidade contrria sua religio, como
tambm imoral e ateia. Igualmente na China, sabemos que h relutncia em
4
Veja-se, por exemplo, D. H. WULFF, Psychology of Religion: Classic and Contemporary, Wiley,
Nova Iorque 19972.
5
Cf. P. ARUL RAJ A., A Socio-religious Study of the Members of the Catholic Religious Orders
in Tamilnadu, with Special Reference to Multiculturalism, University of Madras, Chennai 2008.

276

relao a uma entidade estrangeira ter poder sobre cidados chineses (como no
caso da Igreja Catlica).

Para compreender melhor este cenrio multicultural e multirreligioso, permiti-me que vos oferea uma rpida anlise da situao, uma anlise SWOT um
rpido olhar aos seus considerveis pontos de fora (Strengths), s suas inegveis fragilidades (Weaknesses), s oportunidades (Opportunities) que apresenta e
aos obstculos estruturais (Threats) que precisamos ter em mente. A partir disso,
continuarei a oferecer algumas sugestes a ns salesianos, empenhados no acompanhamento espiritual dos jovens. O contexto direto ao qual estou olhando aqui
o sul da sia, especialmente a ndia. No teria sentido falar de contextos multiculturais em abstrato, como se os desafios ao pastoral com os jovens fossem
os mesmos enfrentados em Nova Iorque e Londres como em Novo Dlhi ou no
nordeste da ndia.

2. ELEMENTOS POSITIVOS NA SITUAO ATUAL



O zelo e o dinamismo de um grande nmero de Salesianos e de outros
religiosos. H muita vida e vitalidade nas igrejas na ndia. Os religiosos fazem
grandes coisas, e oferecem um servio realmente escrupuloso, muitas vezes aos
mais pobres. Isso verdade nas grandes cidades, nas cidades menores e nos vilarejos frequentemente esquecidos. A comunidade catlica da ndia, simplesmente
1,6 por cento da populao indiana, notvel nos campos da educao, da assistncia mdica e dos servios sociais. Muitos destes servios so administrados
pelos 125 mil religiosos que pertencem a 35 congregaes atuantes na ndia.

A popularidade de Dom Bosco. Quase nenhum fundador to amado e
conhecido quanto Dom Bosco. Em algumas partes da ndia, no nordeste, por
exemplo, o seu nome funciona quase como uma magia. Mais ainda, h quem use
o seu nome para atravessar os postos de bloqueio militar ou para superar situaes problemticas. Esta admirao vai claramente alm dos limites religiosos
ou culturais. Na recente visita da urna de Dom Bosco ndia, as multides eram
maiores do que ns salesianos espervamos. Sua popularidade foi vista tambm
em regies em que no h casas salesianas.
277


Grande interesse nas prticas religiosas e espirituais. Muitas pessoas,
tambm os jovens, fazem retiros, meditao ou leem textos religiosos mais do
que em qualquer outra poca histrica. Isso parece ser verdade no mundo todo,6
e o certamente na ndia.

Falando da ndia, muitas das nossas famlias so profundamente religiosas,
rezam cotidianamente, vo missa aos domingos e at mesmo durante a semana,
observam a Quaresma de maneira severa e do esmolas. A maior parte das famlias catlicas observa a Quaresma com muito maior rigor do que os religiosos.

O sacerdcio no a vida religiosa em geral atrai jovens de talento,
tambm filhos nicos de famlias ricas. Com isso, os seminrios esto cheios,
enquanto as congregaes femininas lutam para terem candidatas.

O fervor, a sinceridade e generosidade de grande nmero dos nossos candidatos e de jovens salesianos.

Tambm somos capazes de administrar bem os institutos educacionais.
Por isso, h uma grande corrida para entrar nas escolas e nos colgios catlicos.
Embora isso tenha diminudo depois da chegada de escolas muito ricas e bem
mobiliadas administradas por particulares, h ainda uma grande demanda. No
ms passado, o diretor de uma escola catlica de Dlhi tinha 1800 pedidos de
matrcula para 120 vagas. Na classificao das escolas de 2013, a Don Bosco de
Alaknanda (Dlhi) foi classificada como a segunda melhor escola de Dlhi; h
cinco escolas salesianas entre as mais bem classificadas.7

O respeito pela autoridade instilado na famlia e na cultura, graas qual a
disciplina obtida mais facilmente numa escola indiana do que numa americana
ou europeia. Recordo a visita de um grupo italiano numa de nossas escolas, em
Chennai. Queriam tirar uma fotografia da reunio matutina da equipe e dos alunos. A sua razo era esta: se voltarmos Itlia e dissermos aos amigos que 1500
alunos estavam em silncio, em p, para a orao e uma preleo, no acreditaro
em ns! H um sentimento geral de respeito e de f. Ouvi dizer por mais de um
inspetor indiano que nenhum dos irmos jamais recusou uma obedincia.

6
7

Cf. M. DOWNEY, Understanding Christian Spirituality, Paulist Press, Nova Iorque 1997.
Education World, XV, 09 (September 2013) 120.

278


Evangelizao entre iguais. Alguns jovens organizam retiros ou ajudam
os padres a orientar os retiros. Eles realizam uma atividade eficaz de pregao e
counseling espiritual. Em geral, no estamos desfrutando ao mximo este grande
recurso (mesmo como grupo, somos relutantes em trabalhar com os leigos como
iguais).

Abertura aos outros atravs da experincia cotidiana de contextos multiculturais e multirreligiosos. Nossa amizade no se baseia na religio. Por isso,
um dos meus melhores amigos entre os professores da Madras University
um muulmano. Meus mais caros amigos entre os estudantes de doutoramento
eram hindus. No pensamos neles como muulmanos ou hindus, mas como bons
amigos.

Nestas amizades e no contato cotidiano, descobrimos que temos muito a
aprender dos outros. Meu sobrinho, que estudou na faculdade muulmana de
engenharia, contou-nos sobre o quanto os muulmanos ricos ajudam os muulmanos pobres, mais do que os cristos ricos ajudam os cristos pobres. Ou a
notvel hospitalidade praticada pelos Gurdwaras (templos sikhs) ou o simples
cumprimento de boas-vindas dado pelos Ashrams hindus (lugares de meditao)
a quem est em busca de f, qualquer que seja.

A simples e zelosa vida de alguns religiosos e padres, que realizam um
servio extraordinrio. Por exemplo, a igreja catlica a maior presena, depois
do governo central, no servio social aos pobres (orfanatos, casas para idosos
carentes, leprosrios, atendimento s crianas de rua etc.). Muitas pessoas de outras convices de f admiram isso e ajudam-nos em nosso trabalho. Na ndia, as
irms de Madre Teresa recebem a maior parte de ajuda dos irmos hindus.

3. FRAGILIDADES E ELEMENTOS NEGATIVOS



As pessoas aproximam-se de ns para a educao e os servios sociais.
Muitos no vm at ns para servios espirituais, nem consideram muitos de ns
como guias espirituais.

Muitos padres e religiosos, inclusive salesianos, no receberam uma boa
direo espiritual e, por isso, no tm gosto por ela. Muitos no tm nem expe279

rincia nem grande interesse pelo acompanhamento espiritual dos jovens. Outros
parecem estar mais interessados em administrar a escola de modo eficiente ou
fornecer servios econmico-sociais (vistos como resposta a necessidades reais)
mais do que o ministrio espiritual.

Uma das razes disso poderia estar na motivao de base dos pedidos para
entrar numa ordem religiosa e nos seminrios na ndia. No estou convencido
de que muitos dos candidatos escolham a vida religiosa devido a uma experincia religiosa,8 e o digo baseando-me nos 21 anos de servio na formao e em
numerosos contatos com centenas de religiosos em todas as partes da ndia e de
vrias naes, assim como a pesquisa que fiz sobre este tema. A maior parte dos
candidatos e religiosos jovens simptica e cordial; eles, porm, no tm ideias
claras sobre a motivao pela qual escolhem a vida religiosa. Muitos querem
fazer o bem, por exemplo, ajudar os pobres. O que a maior parte dos religiosos,
tambm salesianos, leva a srio, parece ser as diversas tipologias de servio socioeconmico.

Razes discutveis para o recrutamento e a escolha dos candidatos. Tambm aqui, baseio-me nos meus muitos contatos com os religiosos; acredito (no
posso dar provas disso, mas nos seminrios ningum fez objeo a isso) que a
maior parte das congregaes na ndia recrute as pessoas para manter as suas
instituies. A maior parte no quer empregar pessoal leigo qualificado (do que a
Veja-se um artigo meu publicado numa revista dos claretianos, com base em Bangalore (ndia):
J. MANNATH, Priestly and Religious Formation in India Today: The Rhetoric, the Reality and
Some Proposals: Sanyasa, IV, 2 (Julho-Dezembro 2009) 193-218. Nele, entre outras coisas, diz-se:
Quando me dirigi aos superiores das congregaes religiosas h alguns anos, procurei observar as
realidades da vida religiosa na ndia indo alm dos clichs. Uma mulher leiga atuante numa instituio
catlica, cujas opinies eu respeito, leu o manuscrito e disse: Algum deve dizer essas coisas, mas
ser atacado . No fui atacado, absolutamente. Os superiores foram muito receptivos. Na verdade,
durante a pausa, algum me disse: A situao atual pior daquela que descreves. provvel que
conheas, por exemplo, o absurdo que se perpetua em nome da promoo vocacional . Contaramme de casos nos quais alguns chamados promotores iam a uma aldeia, encontravam as jovens,
convidavam-nas para irem aos seus conventos, e as jovens prometiam ir. Em seguida, outra congregao ouvia falar dessas jovens, ia e encontrava o mesmo grupo, prometia-lhes coisas (inclusive,
com minha grande surpresa e choque, coisas como ajuda financeira para a famlia, ou promessa
de enviar as aspirantes para estudarem no exterior) e obtinham a participao no seu grupo. Como
pode tal abordagem ser chamada de promoo vocacional, eu no tenho ideia. Esta no promoo
vocacional, mas marketing. Existem, na ndia, como em outros lugares, candidatos excelentes,
que optam pela vida religiosa por razes profundamente espirituais. Mas o seu nmero, segundo a
minha opinio, no elevado.

280

ndia bem dotada). Muito do que vai sob o nome de promoo vocacional no
me parece s-lo; trata-se mais da busca de mo de obra. Como me disse um jovem
formador italiano, que trabalhava na ndia e no Sri Lanka, e que vinha a mim para
direo espiritual: Joe, no estou convencido de que a ndia tenha mais vocaes
do que a Itlia, mas que o seu recrutamento seja mais fcil, isso sim!.

A tomada de conscincia dos religiosos, muitas vezes depois dos primeiros
votos, sobre o fato de que, na verdade, a vida religiosa ou a orao ou o celibato
no so necessrios para realizar o trabalho que esto fazendo. Ouvi isto de um
jovem padre salesiano: Se for encarregado de alguma coisa, trabalharei para
faz-la prosperar. Isso me motiva e no a vida religiosa em si. O sacerdcio, por
isso, muitas vezes reduzido mera realizao de um trabalho. As pessoas esto
sempre ocupadas, com frequncia trabalham duramente, e fazem decerto coisas
teis, ensinam, constroem edifcios, ajudam os pobres financeiramente, celebram
missa e pregam. Um bom nmero no parece interessado no aspecto espiritual da
nossa vida ou no ministrio sacerdotal.

Clericalismo: a Igreja indiana muito dominada pelos homens (como muito da cultura indiana), e muito clerical. Ministrios como a direo espiritual ou
a pregao de retiros, que no exigem a ordenao, em geral no so compartilhados com os salesianos leigos ou as irms, ou menos ainda, com pessoas leigas
(exceto nos centros de retiro que mencionei). A esse propsito, o meu trabalho
nos Estados Unidos foi uma verdadeira revelao; algumas mulheres, tanto celibatrias como casadas, ocupam-se na direo espiritual, nos retiros, no ensino da
teologia etc.

Falta de diretores espirituais formados. Este um lamento comum. Muitos dos nossos diretores, por exemplo, no so nem formados para a direo espiritual nem parecem estar seriamente interessados nesse ministrio. Quando os
jovens salesianos vm ao Don Bosco Renewal Center, de Bangalore, para a
preparao de um ms aos votos perptuos, podemos ver o quanto abertos esto
direo espiritual e o quo pouco receberam dela durante o tirocnio ou os estudos
no college.

Os Salesianos, em geral, so vistos como amigveis, ativos, interessados
pelos pobres, mas no como bons guias espirituais. Eu mesmo, quando precisei
de direo espiritual para discernir a minha vocao sacerdotal nos estudos de
teologia, tive muito mais ajuda dos jesutas que dos salesianos.
281


A prtica salesiana dos retiros pregados. Os retiros, muitas vezes, no
so to srios ou profundos, ou parece ser responsabilidade do pregador colocarme em contato com Deus. Em nosso centro de Bangalore, oferecamos retiros
no pregados, nos quais havia silncio total, nenhuma conferncia (feita exceo
apresentao de dez minutos de algumas passagens da Bblia para serem rezadas), direo espiritual cotidiana etc. Estes retiros eram dirigidos principalmente
a jovens salesianos em preparao aos votos perptuos. Eles conseguiam entrar
realmente bem no retiro e havia quatro diretores espirituais disponveis para 40
deles. Cada um de ns encontrava-se com 10 participantes todos os dias. No final,
os jovens salesianos disseram-nos: Por favor, digam aos inspetores para fazerem
este tipo de retiro para todos.

Descuido da Bblia e excessiva nfase nas devoes (a Maria, a Dom Bosco etc.). Um professor universitrio escreveu-me h pouco sobre o motivo pelo
qual deixara a Igreja catlica e abraara a igreja pentecostal. Ele tinha estudado numa escola salesiana por doze anos. Escreveu-me: Ouvimos muitos coisas
sobre Dom Bosco, Domingos Svio, Maria, mas pouqussimo sobre Jesus ou a
Palavra de Deus [...], precisvamos de Jesus, e encontramos administradores.

Formao inadequada: os formadores so, com frequncia, mais professores do que formadores; so qualificados para ensinar uma matria, mas em geral no so formados no counseling ou na direo espiritual, nem profundamente
interessados nisso. Este , em geral, o lado mais negativo em todos os seminrios
maiores, tanto que as Associaes de Seminrios Maiores da ndia tomaram a
deciso de que todos os formadores devem frequentar alguns cursos de formao.
Os graus acadmicos no so suficientes.

A imaturidade dos candidatos: um amplo estudo, feito pelo departamento
de sociologia do Jesuit Athenaeum, de Pune, ndia, mostra que os seminaristas
e os jovens religiosos parecem ser mais imaturos do que os seus coetneos.9
Viso inadequada do celibato e preparao insuficiente para bem vivlo. O celibato, se no for centrado em Jesus e nos Evangelhos, reduz-se ao sim

10

O professor Paul Parathazham e sua equipe fizeram este estudo sobre os formandos, que foi publicado no Jnana Deepa Magazine.
10
O seminrio que dirigi para religiosos, com muita frequncia nos ltimos 15 anos, sobre a inte9

282

ples no ser casado, para poder ter qualquer profisso. Uma pessoa que se sinta
simplesmente til para o trabalho que realiza, em geral no tem um profundo
interesse pelo ministrio espiritual.

As divises entre os religiosos, tambm salesianos, com base na lngua,
casta etc. Esta a runa da Igreja indiana, e chega a propores escandalosas em
alguns lugares e alguns grupos. Uma tese de doutorado orientada por mim na
Madras University, escrita por um brilhante irmo monfortiano (de S. Gabriel),
membro da equipe geral de Roma, sublinha a relutncia de alguns religiosos a
formar comunidade com outros, ou seja, com aqueles que pertencem a vrios
grupos lingusticos ou diferentes castas.11
A relutncia ao trabalho com pessoas leigas em situao de paridade. A
ndia, por exemplo, tem pessoal leigo muito preparado, mais competente e qualificado do que os religiosos e os padres. O clero e os religiosos, contudo, esto na
posio de comando, no no trabalho com leigos em situao de paridade. Muitos
leigos no veem a nossa liderana como competente ou inspiradora. Eles dizem:
tendes o posto de diretor ou coordenador porque sois donos da escola, no porque sois mais qualificados. Se os padres e os religiosos fossem mais disponveis
para compartilhar as responsabilidades, tambm os papis de liderana com os
leigos e mais empenhados nos ministrio espiritual, haveria mais diretores espirituais disponveis. No momento, esse no o caso em questo.

4. OPORTUNIDADES

A liberdade poltica de administrar instituies, construir igrejas e escolas,
ter casas de formao, publicar livros e revistas, nomear o pessoal para nossas escolas, rezar em pblico etc. A ndia garante privilgios especiais para as minorias
religiosas.
grao psicossexual e o celibato. Muitos religiosos parecem no ver a centralidade espiritual, nem
recebem ajuda adequada para viver bem o celibato. Como ajuda para os formadores e superiores,
20 de ns reuniram-se para preparar um livro atualizado sobre este argumento: J. PARAPPULLY,
J. KUTTIANIMATTATHIL, Psycho-sexual Integration and Celibate Maturity, I-II, Kristu Jyothi
Publications, Bangalore 2012.
11
P. ARUL RAJ A., A Socio-religious Study of the Members of the Catholic Religious Orders in
Tamilnadu, cit.

283


A grande rede de escolas e colleges, assim como de instituies de sade,
que nos pe em contato com muitos estudantes, pais e famlias de vrios tipos
de f. A Igreja catlica na ndia tem mais de 18 mil escolas e outros colleges que
garantem diplomas universitrios.12 A associao catlica dos hospitais na ndia
tem mais de 3340 instituies-membros. Esta grande e influente presena na educao, nos servios mdicos e, sempre mais, nos servios sociais, garante-nos um
impacto que vai alm do nosso pequeno nmero como catlicos na ndia.

A confiana e o respeito que as pessoas de outras crenas, especialmente
os pais, tm para com os padres e os religiosos catlicos. O diretor do prestigioso Christian Medical College, de Vellore (faculdade mdica protestante e
hospital entre os maiores e melhores da ndia) disse-me certa vez: gostaramos
de aprender dos padres catlicos a vossa dedicao. Cito uma fonte inesperada,
um reprter do mais famoso e influente jornal que sempre foi crtico em relao
Igreja catlica, The New York Times. Quem escreveu, Nicholas Kristof, no
catlico. Est ciente da antipatia, da desconfiana e at mesmo do desprezo que
algumas pessoas com boa posio na sociedade e bem instrudas tm pela Igreja,
e a atual hostilidade pela Igreja devida ao fenmeno dos abusos sexuais contra
menores realizados por membros do clero, muito publicados. Do Sudo, aonde
foi para reportar as tragdias daquela nao, escreveu de maneira tocante a respeito dos padres e freiras catlicos que conheceu por l:
Estou admirado de que muitas pessoas altrustas a servio dos mais carentes do mundo so as freiras e os padres mais humildes eminentes no pela
grandeza de suas vestes, mas pela grandeza da sua compaixo [...]; certamente na base que eu encontro a grande alma da Igreja catlica. Encontrei o P.
Michael (missionrio americano) na remota aldeia de Nyamlell, a 150 milhas
de qualquer estrada asfaltada. Ele dirige quatro escolas para crianas que, de
outro modo, no teriam a possibilidade de receber alguma educao, e os seus
diplomados obtm timos resultados nos exames, colocando-se nos primeiros
lugares em todo o estado. Para manter suas escolas em funcionamento perseverou atravs da guerra civil, da priso e de espancamentos, e de uma ampla
O sistema universitrio que prevalece na ndia de tipo associativo, e diferente do modelo de
universidade europeia. O college uma instituio de nvel universitrio que oferece estudos
mais elevados. O college cria uma relao com a Universidade do mesmo modo que a casa salesiana se relaciona com a Inspetoria. Ns salesianos temos centenas de escolas na ndia e 32 colleges,
assim como uma Universidade.

12

284

variedade de doenas. P. Michael pode ser o padre mais mal vestido que eu
jamais tenha visto, e o mais nobre. H outros com ele. H o P. Mario Falconi,
um padre italiano que se recusou a deixar Ruanda durante o genocdio e salvou
corajosamente trs mil pessoas do massacre. H o P. Mario Benedetti, um padre
de 72 anos com sede no Congo, que fugiu com a comunidade quando a cidade
em que viviam foi atacada por uma milcia violenta. Agora, o P. Mario vive
com os membros congoleses da sua comunidade na desolao do campo de
refugiados do Sudo do Sul, lutando para conseguir escolas para suas crianas
[...]; graas a estas almas corajosas que estimo a Igreja Catlica.13


Este tipo de servio conquistou a admirao de pessoas de todas as formas
de f. Neste sentido, a influncia do cristianismo, a sua presena como fermento
e sal, provavelmente maior do que os nmeros demonstram. Uma pessoa que
pertence a outra f pode no vir a ns para a direo espiritual, em sentido estrito,
mas muitos deles olham para ns pelos servios que oferecemos.


A tradicional hospitalidade indiana. Este um grande valor em nossa cultura. uma cultura muito acolhedora. As pessoas tambm assumem os problemas
e as dificuldades alheias desde que possam tratar bem um hspede.

As intensas convices espirituais que sustentam a cultura indiana. Quaisquer que sejam as diferenas nos cultos e nas formas de f, muitos hindus creem
na realidade do mundo espiritual. Na verdade, este mundo considerado menos
real do que o reino do esprito. Isso faz com que as pessoas consideradas espirituais gozem de grande importncia entre os indianos. Os deuses-mulheres e os
deuses-homens so um fenmeno particular na ndia.14 So homens e mulheres
que realizaram a prpria natureza divina mais claramente do que ns, e podem,
por isso, ajudar os outros a descobrirem a sua verdadeira natureza (divina). Ministros e presidentes inclinam-se diante deles, buscando a sua bno. Alguns
deles tm um nmero significativo de discpulos entre os ocidentais. Alguns administram grandes hospitais e escolas. Quando, h alguns anos, o tsunami atingiu
N. KRISTOF, Who Can Mock This Church?: The New York Times, May 1, 2010 (edio na
Web).
14
God-men e God-women no podem ser traduzidos com a expresso men of God (homens
de Deus) ou women of God (mulheres de Deus). Por isso, podemos chamar de santo um homem
de Deus. A viso hindu da natureza do ser humano como divino, na sua identidade fundamental,
diferente do conceito cristo de pessoa prxima de Deus ou que vive uma vida santa.
13

285

o sul da ndia, o dinheiro oferecido pelos trabalhos de socorro por uma deusamulher, Mata Amritanandamayi, foi maior do que o governo dos Estados Unidos
estava pronto a oferecer.

peculiar da ndia em suas tradies espirituais o que tambm conhecido como a relao guru-sishya. O guru no um simples mestre. Ele tem direitos quase absolutos sobre o discpulo. Uma mulher hindu, instruda e rica disseme: Se o meu guru me pedisse para abandonar a minha famlia, eu o faria sem
qualquer hesitao. O guru considerado um ser realizado que pode ajudar a
descobrir a divindade em mim. Ele tem uma posio de honra e poder na psique
indiana. Isso pode ser bem usado por um bom diretor espiritual (mesmo que a
vida crist do diretor espiritual seja diferente), pelo professor ou pelo sacerdote.

Os centros de retiro espiritual: muitas centenas de catlicos indianos frequentam retiros de uma semana. Os centros para retiros esto cheios. S para
citar o mais famoso, o Divine Retreat Center, no estado do Kerala, hospeda de
6 mil a 10 mil pessoas todas as semanas. Conta com trs mil voluntrios, muitos
deles leigos que abandonaram o trabalho para prestar servio gratuito no centro.
Vrios destes centros tm a prpria rede de TV e publicaes. Muitas pessoas receberam neles aquilo que chamamos de counseling. Muitos demonstram grandes mudanas no comportamento, por exemplo, libertaram-se da dependncia
do lcool ou das drogas, fatos que eles atribuem graa de Deus. inegvel que
alguns counsellors nestes centros de retiro sejam homens e mulheres de Deus,
que receberam o dom de ler as almas. Ouvi muitas histrias de homens e mulheres que durante o counseling (direo espiritual) ouviram repetir exatamente os
seus segredos mais ntimos, e lhes foram dadas orientaes sobre o que fazer. As
histrias so muitas, e muito semelhantes ao que ouvimos dizer sobre o dom de
Dom Bosco de ler as almas de seus meninos. Muitos jovens rezam e recebem
direo espiritual nestes centros de retiro, mais do que nas casas salesianas. Este
pode ser um ministrio que podemos ou devemos iniciar de maneira extensa. No
momento, a maior parte do nosso trabalho concentra-se na rea do servio social.

Movimentos leigos inspiradores e fervorosos, por exemplo, Jesus Youth,
que atrai jovens, homens e mulheres talentosos. So brilhantes, em geral mais
devotos do que os seminaristas ou os religiosos ou o clero.

286


Internet: econmica e facilmente disponvel na ndia. uma grande
oportunidade para o ministrio espiritual. Estou pensando em stios web como a
iniciativa jesuta irlandesa Sacred Space.

Evangelizao entre iguais: embora no seja em grande nmero, existem
jovens abertos e interessados em exercer algum ministrio. Os padres que trabalharam com estes jovens esto profundamente impressionados com a atuao deles.

A experincia espiritual dos jovens e das crianas: estudos feitos por importantes instituies leigas mostram uma prevalncia de espiritualidade entre
as crianas e os jovens.15 Robert Coles, de Harvard, que mais do qualquer outro
estudou a espiritualidade das crianas, oferece testemunhos comoventes do que
aprendeu delas.16 O relato sobre a jovem Rudy, que rezava pelos seus perseguidores, particularmente tocante.17
No incio do seu livro sobre a experincia religiosa das crianas, Edward Robinson, diretor do
dellAlister Hardy Centre, de Oxford, oferece a seguinte citao de Edwin Muir: A criana tem
uma viso peculiar da existncia humana, que provavelmente jamais recordar depois que a tiver
perdido: a viso original do mundo. Creio que esta imagem ou esta viso como a do estado em que
a terra, a casa sobre a terra e a vida de todo ser humano esto relacionadas com o cu que est acima
delas; como se o cu completasse a terra e vice-versa. Certos sonhos convencem-me desta viso
das crianas, nas quais existe a mais completa harmonia entre todas as coisas, mais do quanto se
possa conhecer novamente depois (E. ROBINSON, The original vision: a study of the religious
experience of childhood, The Seabury Press, Nova Iorque 1983, v).
16
R. COLES, The Spiritual Life of Children, Houghton Mifflin Company, Boston 1990.
17
Segundo Alvin P. Sanoff del U.S News and World Report, Robert Coles falou-nos muito mais
das complexas e diversas vidas das crianas do que todos os outros estudiosos da sua gerao.
Coles dedicou muito tempo e esforos constantes para escutar as crianas e aprender delas. Um
exemplo incrvel o seu encontro com Ruby Bridges, uma menina de seis anos que foi por definida
por Martin Luther King Jr. como uma herona do movimento dos direitos humanos. Nos meses
da abolio da segregao racial nas escolas do sul dos Estados Unidos, quando o governo federal
obrigou as escolas a admitirem crianas de diversas raas, Ruby, uma menina afro-americana, foi
escola enfrentando uma multido de pais brancos que lanavam contra ela os piores insultos e a
ameaavam. Onde encontrou tal coragem? Sua professora (branca) disse: Vi-a caminhar com os
xerifes federais, e no podia fazer outra coisa que escutar o que as pessoas diziam. Estavam prontas
a mat-los. Lanaram-lhes as palavras mais tremendas. Eu nunca quis a integrao, mas jamais
teria podido dizer aquelas coisas a uma criana, no importa a raa. Ela sorriu e eles continuavam a
dizer-lhe que a teriam matado. Eram uns 40-50 adultos, homens e mulheres, l fora na rua todas as
manhs e tardes, s vezes, mais. Um dos sargentos/xerifes disse-me certo dia: Aquela menina tem
fgado. Tem mais coragem do que eu jamais tive. E contou-me que estivera na guerra. Estivera no
exrcito que desembarcou na Normandia em 1944. Disse-me que Ruby nem parecia ter medo (e ele,
certamente, recordava o quanto estivesse amedrontado enquanto navegavam para a Frana). Estou
de acordo com ele: ela no parecia ter medo. Houve um perodo no incio em que eu acreditava que
ela no fosse propriamente brilhante, e que fosse esse o motivo pelo qual era to corajosa na rua.
Mas ela uma menina brilhante e aprende logo. Sabe o que est acontecendo, e sabe que aqueles
15

287


H na Igreja da ndia, muitas pessoas qualificadas e tambm bons centros
de formao e animao. Assim, para os salesianos ou para outros padres e religiosos, fcil formar-se em counseling e na direo espiritual. Nossos centros
de Bangalore e Trivandrum oferecem esses cursos. Os jesutas, os capuchinhos
e outros fazem o mesmo. Na ndia, podem-se seguir cursos de formao anuais
gastando menos do que para um voo da ndia Europa.

Grande venerao por Jesus: um meu brilhante aluno na Madras University escreveu uma tese de doutorado sobre o modo de as pessoas de outras
confisses fazerem experincia de Jesus e como as suas vidas foram transformadas com isso. Ele entrevistou 138 pessoas, principalmente hindus e muulmanos
instrudos, que tinham vivido esta experincia.18 Igualmente, em Varanasi, uma
antiga cidade que os hindus consideram particularmente sagrada, h um grupo de
30 mil hindus que se fazem chamar Krist-Bhaktas (devotos de Cristo) e que vm
semanalmente ao centro de orao (ashram) administrado por um padre catlico.

Devoo a Maria. Na verdade, como muitos marilogos sublinharam, enquanto a devoo a Maria foi um ponto de desacordo na Europa (entre catlicos
e protestantes), na ndia os santurios dedicados a Maria atraem pessoas de todas
as confisses, especialmente um grande nmero de hindus. Este pode ser um bom
ponto de acesso para o ministrio espiritual (sabeis que o coro tem mais versculos sobre Maria do que o Novo Testamento?).

Cursos nas universidades estatais (por exemplo, a Madras University),
que oferecem diplomas de Mestrado e Doutorado em estudos cristos. Eu costumava dar dois cursos sobre a espiritualidade crist na Universidade. Esta presena em contextos acadmicos um bom veculo para remover preconceitos e
construir pontes. Fazer teologia em ambientes pblicos (mais do que em contextos confessionais) tem suas vantagens e seus desafios.

l fora poderiam mat-la. So cruis como parecem. Mas continua a vir escola, e at mesmo me
disse certo dia que se sente triste por todos eles, que est rezando por eles. Conseguis imaginar
isso? (R. COLES, Harvard Diary: Reflections on the Sacred and the Secular, The Seabury Press,
Nova Iorque 1996, 113-114).
18
J. IYADURAI, Self-Transformative Religious Experiences: A Phenomenological Study, University of Madras, Doctoral Dissertation, Chennai 2007.

288


As pesquisas atuais em psicologia: h sempre mais testemunhos sobre o
fato de as prticas espirituais (orao, meditao, frequncia igreja) serem teis
ao bem-estar fsico e emocional.19 A atitude negativa em relao s prticas religiosas que reinava nos tempos de Freud e Skinner j foi superada. A espiritualidade e a psicologia so agora amigas e companheiras. O que traz consequncias
tanto para o counseling como para a direo espiritual.

4. LIMITES / RISCOS

Fundamentalismo religioso crescente. O que faz com que os polticos e
as pessoas de outras confisses olhem para nossas atividades com desconfiana,
tambm as atividades de desenvolvimento social. Alguns deles insinuam que os
cristos realizam as chamadas boas-obras para converter e aumentar o nmero
dos membros da Igreja. Em alguns estados da ndia h uma lei que probe as
converses religiosas. preciso pedir a permisso do juiz para mudar de religio.
Mas aceitar o hindusmo no visto como converso!

Nvel intelectual inferior dos candidatos vida religiosa. Muitos deles
so jovens que no entrariam na faculdade pelos seus mritos. Muitos leigos so
muito mais qualificados e competentes. Quantos leigos pediro para serem orientados espiritual e psicologicamente por algum em quem no confiam e cujas
capacidades no admiram?

A globalizao e a atrao dos bens de consumo e de estilos de vida confortvel: o amor pelo conforto, o anseio pelas novidades e pelo dinheiro podem
diminuir o nosso interesse e a nossa profundidade espiritual. Como escreveu um
padre diocesano: Aquilo que eu tinha entendido do celibato no seminrio, a partir do que nos ensinavam, e dos exemplos que nos davam, era isto: todos os prazeres so permitidos menos o sexo! Agora que sou proco, compreendo o quo
absurda seja essa viso. Se estou levando uma vida mais cmoda do que os meus
paroquianos, so eles a testemunharem o Evangelho, muito mais do que eu.
Johnny K.K., A Study on the Effects of Religious Therapy on Depression in Patients having Irrecoverable Illnesses, University of Madras, Doctoral Dissertation, Chennai 2008. Num amplo artigo
(155 pagine) de literatura, este estudioso e pesquisador apresentou um nmero enorme de estudos
que mostra essa correlao positiva. A cada dez anos aumenta o nmero desses estudos.

19

289


A percepo ou convico de que um bom nmero de hindus, muulmanos
e outros tm que o Ocidente mais rico, mas mais materialista e at mesmo ateu.
Como alguns muulmanos dizem aos cristos na Frana: para vs, a religio no
importante; para ns, sim. Muitos deles levam muito mais a srio as observncias religiosas, por exemplo, o jejum, do que ns cristos observamos a quaresma
ou a obrigao da missa dominical. P. Carlos Valls, jesuta, que trabalhou muitos
anos na ndia e pde conhecer de perto muitos gianistas, certa vez compartilhou
conosco a sua experincia com um grupo de homens gianistas, e os ouviu dizer:
Este padre um homem muito querido, como pode ser cristo?.

Falta de interesse pela direo espiritual entre os religiosos e os padres.
Por isso, no um ministrio pelo qual muitos salesianos e outros religiosos e
padres estejam interessados. A direo espiritual no percebida como necessidade. Entretanto, reconhecida a necessidade de abrigo, alimentao, educao,
amizade e at mesmo de counseling em caso de situaes problemticas. menos
evidente, porm, a necessidade de direo espiritual. Parece-me que como dizer
que o exerccio fsico regular importante. Teoricamente, todos concordam com
esta ideia. Na prtica, porm, poucos tm interesse ou constncia para exercitarse de maneira regular. Parece ser este o caso da direo espiritual.

5. ALGUMAS PROPOSTAS

Baseando-me nas minhas observaes e na minha rpida anlise, eis algumas propostas que gostaria de apresentar a este grupo e nossa Congregao.

[1] Formar mais salesianos e outros homens e mulheres na direo espiritual e no counseling. Muitos de ns no somos formados para este ministrio,
muitos no esto nem mesmo interessados nisso.

[2] A promoo vocacional deve ser autntica; ela no deve ser feita para
fornecer pessoal aos nossos institutos, o que parece acontecer neste momento
com muitos religiosos.

[3] O testemunho de uma boa vida pessoal a chave para atrair. Se algum, superior ou no, padre, irmo ou irm, considerado homem/mulher de
290

Deus, as pessoas de todas as confisses iro at eles com pedidos de orao,


orientao, bno, ou para uma visita.

[4] A ajuda dos retiros orientados. Espero que haja retiros mais orientados
do que pregados. E precisamos formar salesianos para este ministrio. Na ndia,
os jesutas oferecem esta formao.

[5] Orao e devoo centradas na Bblia, no focalizadas apenas em
Maria, em Dom Bosco etc., mas na Palavra de Deus. No Brasil, um quinto dos
catlicos abandonou a f catlica e abraou a igreja pentecostal. Isso est acontecendo um pouco em todos os lugares, em vrios nveis. Tambm na ndia. Existem estudos para compreender este xodo (os fatores de impulso e de atrao: o
que os impele para fora, o que os atrai para outras igrejas). Um destes motivos a
frequente prtica catlica de uma excessiva devoo aos santos e o descuido com
a Bblia.

[6] O conhecimento de outros textos religiosos: precisamos ler os textos
religiosos das outras crenas. Neles encontramos muita verdade, beleza e sabedoria. H tambm passagens desagradveis, como h na Bblia, mas h tambm
livros espirituais inspiradores nas outras tradies religiosas. L-los abre os nossos coraes e as nossas mentes para um mundo espiritual mais amplo em relao
aos nossos substratos familiares.20 O estudo do jesuta americano John Dear um
exemplo de grande inspirao.21
[7] Participar de celebraes comuns, tanto religiosas como sociais, com o
devido respeito e sem ambiguidades, obviamente.22 Muitas vezes, vivemos isolados culturalmente dos nossos vizinhos, vivendo num gueto mental.


[8] Explicar as principais religies aos alunos. Vi isso em faculdades catlicas da ndia. E tambm fiz parte disso. Um padre cristo explica o cristianismo,
Veja-se, por exemplo, D. J. LADINSKY (ed.), Love Poems from God: Twelve Sacred Voices from
the East and West, Penguin Compass, Nova Iorque 2002. Aqui se podem encontrar vrios autores
de diferentes tradies religiosas.
21
J. DEAR (ed.), Mohandas Gandhi: Essential Writings, Orbis Books, Nova Iorque 2002.
22
Vejam-se, por exemplo, as experincias de Francis X. Clooney SJ (jesuta americano professor
em Harvard) em suas visitas aos templos hindus e os seus competentes estudos sobre os textos
religiosos hindus.
20

291

um hindu apresenta o hindusmo etc. aos estudantes das faculdades. Isso esclarece as incompreenses. Muitas vezes, at mesmo os nossos alunos que interagem
conosco por anos, no compreendem a nossa f de maneira correta.

[9] Explicar a nossa f e o significado do sacerdcio, da vida religiosa, do
celibato, da pobreza etc. Muitos tm ideias estranhas sobre estes assuntos. Os muulmanos, por exemplo, veem o celibato como impossvel e contrrio vontade
de Deus, e pensam que a Igreja force as mulheres a permanecerem solteiras.

[10] Escrever belas oraes no confessionais e orientar oraes nas quais
todos participem sem se sentirem excludos. Isso j foi feito e comprovado o
quanto seja til.

[11] Evangelizao entre iguais (peer ministry): h jovens que dirigem excelentes retiros para outros jovens. Devemos considerar os jovens no s como
destinatrios, mas como colaboradores. Nossos centros que se servem de seus
servios (na orao, no ministrio da msica, na conduo de oraes) dizem que
a experincia muito positiva.

[12] Aprender dos jovens. Segundo alguns estudiosos, cresceu no mundo
o interesse pela espiritualidade, e isso parece provir dos leigos e dos jovens. Ns,
pessoas de Igreja, no estamos frente, estamos atrasados. Os jovens tm muito
a nos ensinar. Uma coisa impressionante: estes jovens to profundamente espirituais no so atrados pelo nosso modo de viver. No o veem como motivador ou
inspirador. O sacerdcio parece atrair os jovens talentosos e inspirados por ideais
elevados, alguns dos quais deixam boas carreira para serem sacerdotes, mas a
vida religiosa, em linha de mxima, no atrai.

[13] Apresentar uma viso correta da espiritualidade. De um lado, culturas como a indiana apresentam uma abundncia de prticas religiosas. De outro
lado, encontra-se uma profunda corrupo em muitos mbitos da vida. Isso foi
apontado por alguns escritores hindus.23 Em tal contexto, para que uma mensagem espiritual seja convincente, as nossas vidas devem ser ticas, evitando todas
23

B. GHOSE, Spiritual and Immoral, Frontline, Vol. 28 - Issue 05 (Feb. 26 - Mar. 11) 2011.

292

as formas de corrupo e avidez. Bons modelos de espiritualidade integral so


apresentados por muitos autores, como Donald Dorr e Ronald Rolheiser.24

[14] Os santurios marianos atraem pessoas de diversas concepes de
f: alguns santurios servem-se desta oportunidade para chegar s pessoas com
servios de counseling e direo espiritual. Pode-se dizer o mesmo das demais
formas de devoo popular, como aquelas ao Menino Jesus ou a Santo Antonio.
As pessoas vm at ns; cabe-nos saber o que temos a oferecer.

6. CONCLUSES

Ns salesianos somos conhecidos, respeitados em muitas regies, especialmente pelo nosso trabalho em prol dos carentes e pela nossa iniciativa e o nosso dinamismo. Em geral, no somos reconhecidos como guias espirituais, nem
pelos nossos alunos nem pelo corpo de professores, ou pelas outras religies.25

As nossas provncias (falo da ndia) correm o risco de serem (ou j se
tornaram!) ONGs mais eficientes e bem financiadas, ONGs que prestam servios
sociais, o que til, mas para as quais no precisamos ser religiosos. Aqueles
que nos escolhem para uma profunda viagem com Deus ficam, em geral, desiludidos com a vida religiosa. O apelo do Reitor-Mor dos Salesianos e o desafio por
ele lanado a todos ns para sermos msticos e profetas urgente e importante.
Acredito, realmente, que uma exortao sobre a direo espiritual ou um novo
documento mudaria a atitude de muitos salesianos em relao a este ministrio.
Neste momento, pelo que consigo ver, no h um grande interesse a respeito. A
principal razo, provavelmente, que muitos no fizeram dela uma experincia
profunda, feliz ou transformadora.
24
D. DORR, missionrio irlands que trabalhou na frica, escreveu numerosos livros de espiritualidade: Spirituality and Justice, Orbis Books, Maryknoll (NY) 1984; Integral Spirituality: resources
for community, justice, peace, and earth, Orbis Books, Maryknoll (NY) 1990; Time for a change:
a fresh look at spirituality, sexuality, globalization, and the church, Columba Press, Blackrock,
Co. Dublin 2004; Spirituality: Our Hearts Deepest Desire, Columba Press, Blackrock, Co. Dublin
2008. O melhor livro sobre o assunto: R. ROLHEISER The Holy Longing: The Search for a Christian Spirituality, Image, Nova Iorque 20142.
25
Como me disse um jovem sacerdote salesiano, ele abriu os olhos quando jovens aos quais oferecera amizade durante seus estudos teolgicos lhe disseram depois: Irmo, eras muito gentil,
contava-nos piadas, falava-nos de esporte e de filmes. Mas jamais nos deste o que precisvamos:
Jesus. Mudou as suas prioridades e agora um feliz e zeloso sacerdote.

293


Os contextos multirreligiosos e multiculturais so a nossa realidade, no
s em lugares como a ndia ou os Estados Unidos, mas sempre mais em todos os
lugares. Precisamos aprender a viver nesses contextos, sem esperar um mundo de
uniformidade ou de fantasia, ou um mundo monocultural onde as certezas de um
grupo so indiscutveis. Pessoalmente, prefiro viver na ndia atual ou nos Estados
Unidos mais do que na Europa medieval ou na Espanha de Teresa dvila (como
era ser um judeu naqueles tempos?) ou na Arbia Saudita (o que acontece queles
que pertencem a outras crenas?) ou na Inglaterra nos tempos das perseguies
catlicas e protestantes. Graas a Deus o mundo est se tornando multicultural e
multirreligioso. Deus mais amplo do que qualquer tradio religiosa, e nenhum
sistema teolgico pode esgotar as Suas riquezas. As lutas surgem do uso da religio para fins polticos.

O ministrio da direo espiritual importante, se quisermos formar campees do esprito e no da mediocridade.26 Isso s acontecer, no meu modo de
ver, se as pessoas experimentarem pessoalmente uma boa direo espiritual da
parte de pessoas amveis e eficazes, e receberem formao para ajudar os outros
neste campo.

Questo central a viso que temos da nossa identidade e da nossa contribuio: somos ns principalmente uma organizao social bem estruturada e
eficiente, com alguns aprimoramentos religiosos (o vocabulrio e os smbolos) ou
somos uma fora espiritual verdadeira, apaixonada na construo de uma comunidade amvel, devota, em linha com o que Jesus nos apresentou?27
O livro mais citado sobre a direo espiritual em ingls W. A. BARRY, W. J. CONNOLLY,
The practice of spiritual direction, Seabury Press, Nova Iorque 20092 [19821]. Ambos tm muita
experincia na oferta de direo espiritual e na formao de diretores espirituais. Outros bons livros sobre a matria: G. W. MOON, D. G. BENNER, Spiritual direction and the care of souls: a
guide to Christian approaches and practices, Inter Varsity Press, Downers Grove (Illinois) 2004;
A. FRYLING, Seeking God Together: An Introduction to Group Spiritual Direction, IVP Books,
Downers Grove (Illinois) 2009; J. RUFFING, Spiritual Direction: Beyond the Beginnings, St.
Pauls., Londres 2000; M. WILLIAMSON, The gift of change: spiritual guidance for a radically
new life, Element, Londres 20052 [20041]; M. GUENTHER, Holy Listening: The Art of Spiritual
Direction, Cowley Publications, Cambridge, Mass 1992; H. J. M. NOUWEN, M. J. CHRISTENSEN; R. LAIRD, Spiritual direction: wisdom for the long walk of faith, Harper San Francisco,
San Francisco 2006; R. M. DOUGHERTY, Discernment: A Path to Spiritual Awakening, Paulist
Press, Mahwah (NJ) 2009; P. WOLFF, Discernment: The Art of Choosing Well. Based on Ignatian
Spirituality, Triumph, Liguori 2003; E. LIEBERT, The Way of Discernment: Spiritual Practices for
Decision-Making, Westminster John Knox, Louisville (Ky) 2008.
27
Um professor de grande experincia de religies hindus no famoso Loyola College, de Chennai
(ndia), disse-nos durante um seminrio sobre a melhora da formao dos sacerdotes: Todas as
vossas estruturas, livros e discursos no so feitos para difundir a simples mensagem de um simples
homem? isso precisamente aquilo que esto esquecendo.
26

294


A experincia nas nossas casas de formao mostra que quando se fala de direo espiritual, fala-se frequentemente de dar conselhos ou fazer moralismo, sem
esforos srios para compreender o itinerrio espiritual interior da pessoa e as suas
experincias espirituais. Ou ela confundida com o counseling (ajuda oferecida s
pessoas para seus problemas emocionais, sexuais, familiares e outros).
O counseling certamente necessrio e uma prtica til, mas no direo espiritual, no a ajuda oferecida pessoa para aprofundar a sua relao com
Deus. Os dois ministrios sobrepem-se, mas h uma diferena que preciso ter
em mente.28

Formar muitas pessoas para este ministrio certamente necessrio. Isso
significa, mais do que documentos e financiamentos, encontrar salesianos que
sejam apaixonados na viagem interior, que tenham experimentado pessoalmente
uma feliz direo espiritual, e que sejam entusiasmados para ajudar os outros na
prpria viagem interior. O que torna este rpido caminho na terra uma aventura
fascinante o amor, tanto o amor humano como a profundidade do nico Amor
que deseja intensamente aproximar-se de ns.29 Ajudar os jovens neste mbito significa ajud-los a ver que alm de qualquer outro desejo (diverso, sexo,
amizades, grandeza) h um desejo mais profundo do corao, que nada do que
limitado pode preencher. Para ouvir esta mensagem de maneira convincente,
o jovem precisa encontrar um adulto que seja feliz, e cuja felicidade derive de
maneira evidente no das coisas ou do luxo, nem da sua posio ou do seu poder,
mas de um sincero, simples e profundo caminho interior30.
Eu entendo o counseling como o contato entre duas pessoas, uma das quais est sob estresse
(tristeza, raiva, ansiedade, relaes destrudas etc.) e a outra est desejosa de dar ateno plena e
uma opinio afetuosa. No entendo a direo espiritual como algum que dirige outro (dizendolhe o que fazer, ou tomando decises por ele). Mas a escuta de experincias interiores do outro,
as suas experincias e os seus sonhos, e ajudar a pessoa a discernir para onde e como Deus a est
dirigindo. Para compreender o itinerrio interior do outro preciso ser uma pessoa que cultiva o seu
itinerrio espiritual. Uma pessoa superficial e terrena no pode servir de ajuda nisso.
29
W. A. BARRY, W. J. CONNOLLY (The practice of spiritual direction, cit.) enfatizam justamente
que o amor a qualidade mais importante na direo espiritual.
30
Para dar um exemplo: uma jovem japonesa, proveniente de uma rica famlia, estava noiva, e com
seu noivo planejava casar-se. Improvisamente, ela ouviu o chamado vida religiosa. Disse-o ao
noivo e ele, sendo budista, no compreendeu a situao, e lhe disse: Vou esper-la por dois anos. E
assim fez. Ela sentiu a vida no convento muito dura, e disse irm que no seria capaz de continuar,
pois estava muito habituada aos confortos de casa. Na semana seguinte, porm, depois desta constatao, ps-se a refletir e chegou seguinte concluso: De fato, tenho muitas coisas em casa. Mas
essas coisas no me bastam para ser feliz. Jesus Cristo suficiente para mim. Voltou atrs e uniu-se
s coirms. Agora, anos depois daquela deciso, e aps completar um mandato como inspetora, me
disse: Jamais perdi a alegria da minha vocao. Quando, por duas semanas, ela acompanhou um
grupo de estudantes japonesas do college aos Estados Unidos, vrias delas lhe escreveram: Quando
crescer, quero ser uma mulher como tu. A direo espiritual assim. No significa ser o diretor ou
o chefe de algum. Mas ser pessoas humanas que encontraram o segredo da alegria profunda, e que
vivem realmente interessadas no crescimento e na felicidade das outras pessoas. Estas nos fazem
pensar: tu irradias alegria mesmo nos teus dias difceis e duros. Como fazes? Qual o segredo?
Sers capaz de ajudar-me a encontrar a mesma fonte? Precisamos de ajuda para nos colocarmos em
contato com tudo isso.
28

295

OS DESAFIOS NA FORMAO DE DIRETORES


ESPIRITUAIS NA VIDA RELIGIOSA

Adrin Lpez, s.j.


1. Em QUE CONSISTE o acompanhamento espiritual?1

aconselhvel tentar colocar-se de acordo, desde o incio, sobre aquilo em
que consiste a guia espiritual no contexto da formao vida religiosa. Os crentes
partem da convico profunda de que Deus nos conhece, nos ama, nos escuta, nos
v, est prximo de ns. Esta segurana fruto da nossa f e, por sua vez, alimenta a confiana de saber que somos intensamente acompanhados. A experincia de
sentir que Deus est conosco faz com que sejamos melhores e nos leva a ver os
outros como irmos, a rezar com confiana e a colocar-nos com liberdade diante
deste Deus que conhece intimamente o nosso corao.

Entretanto, o Deus com quem nos relacionamos com esta confiana mais
do que um interlocutor importante em nossa vida, pois como diz S. Paulo, nEle
vivemos, nos movemos e existimos (At 17,28). Fomos criados por Deus como
fruto do seu amor, e por esse mesmo amor somos chamados a retornar a Ele atravs de um itinerrio espiritual que envolve toda a nossa vida e a nossa pessoa.
Itinerrio que percorremos em nossa vida espiritual encarnada numa existncia
histrica, e, portanto, ligada a pessoas, circunstncias e sentimentos, feita de realidades e de fantasias, de tarefas, expectativas e sucessos, de frustraes e falncias. O tema central em nosso acompanhamento a relao estabelecida com
Deus, necessariamente atravs destas manifestaes da vida, e com todas as suas
ambivalncias.

O acompanhamento espiritual pretende ajudar-nos neste itinerrio de estar
nEle, de nos movermos nEle e retornar ao Pai. Podemos entender, ento, esta
relao espiritual como uma relao triangular na qual no h apenas dois interlocutores (o acompanhante e o acompanhado), mas h sempre um terceiro, Deus,
que ilumina e move o acompanhante, que discerne o que deve dizer em nome
L. M GARCA DOMNGUEZ, Acompaamiento y discernimiento vocacional: Todos Uno
111 (julio-septiembre 1992) 5-83.
1

296

de Deus; e, naturalmente, Deus sempre move a pessoa acompanhada a buscar e


aplicar os movimentos espirituais que sente dentro de si. A relao triangular
porque Deus inspira igualmente os dois interlocutores e porque o Esprito est
sempre presente no processo espiritual acompanhado.

Interpretaremos com frequncia a nossa relao com Deus como um caminho a percorrer, como um caminho espiritual. Embora haja outras figuras bblicas
possveis, como a do chamado, da aliana, da converso, do servio, da sequela,
da imitao, da amizade etc., a imagem do caminho facilita a referncia nossa
iniciativa, busca pessoal atravs do discernimento, nossa responsabilidade,
necessidade de tomar decises todos os dias para escolher a direo da nossa
existncia.

Dessa forma, o acompanhamento espiritual est no encontro de um sentimento e de uma evidncia: de um lado, o desejo sincero de buscar pessoalmente
o caminho espiritual que Deus quer que percorramos todos os dias; e, depois, a
convico comprovada da nossa pobreza, enquanto muito difcil encontrar o
caminho certo quando o percorremos sozinhos; por isso, a ajuda respeitosa de um
guia facilita a nossa busca.

Aquilo que hoje normalmente chamado de guia espiritual teve e tem
muitos nomes. Uma expresso muito comum, e que usais, a de direo espiritual, mas podemos ouvir outras expresses como dilogo pastoral, dilogo ou colquio espiritual, direo de conscincia, guia, encontro de ajuda
espiritual, relao de ajuda... e muitas outras. Cada uma dessas expresses
ilumina um aspecto especfico, mas o nome que lhe damos no tem tanta importncia, quanto o que acontece nestas conversaes. Podemos entender o acompanhamento espiritual como uma relao constante entre duas pessoas em que uma
delas, atravs de conversaes frequentes, ajuda a outra a buscar e realizar a vontade de Deus segundo a sua vocao pessoal, buscada atravs do discernimento
espiritual, mediante o uso de diversos recursos verbais e outros instrumentos pastorais. Esta definio ser mais bem entendida se explicarmos detalhadamente
alguns dos seus elementos, olhando para a questo do ponto de vista daquele que
acompanha:

[a] O acompanhamento individual estabelece uma relao interpessoal entre duas pessoas; baseia-se numa srie de conversaes, mais ou menos frequentes e peridicas, nas quais algum fala e ns escutamos. A pessoa acompanhada
297

comunica o que a pe em discusso, que a torna feliz ou que a desorienta na sua


vida crist em geral ou na sua vida religiosa em particular; procura ser compreendida ou ajudada a entender a si mesma; procura explicar-se e encontrar a nossa
confirmao para saber se est agindo bem ou se est errando: procura orientao,
embora no deseje soluo pr-fabricada. Por isso, essa pessoa honesta conosco, para que a acompanhemos, sem esperar ser recompensada por ns com as
nossas confidncias ou preocupaes. Portanto, a conversao que acontece no
acompanhamento no uma conversao comum entre coetneos ou amigos; a
confiana gerada grande, mesmo se no exatamente bilateral, de ida e volta.
Trata-se, pois, de uma relao estreita, mas assimtrica.

[b] Uma segunda caracterstica do acompanhamento que se pretende buscar e encontrar a vontade de Deus para, depois, viv-la. Todo religioso busca
a Deus no segredo da orao e na cotidianidade da vida; o acompanhamento,
porm, ajuda-nos a descobrir os seus sinais, recordar a sua linguagem ordinria e
usual, interpretar os seus sinais e reconhecer tambm as nossas resistncias. Embora Deus se comunique de muitos modos, a orao considerada como a forma
universal e privilegiada da experincia de Deus, de modo que partir da orao
e ajudar a compreend-la normalmente uma tarefa comum de todo processo
de acompanhamento. Por isso, presume-se que a pessoa que acompanha tenha
uma experincia pessoal de Deus e do discernimento, porque, caso contrrio, no
poderia ensinar ou compreender plenamente as experincias interiores da pessoa
acompanhada.

Exige-se do acompanhante que ele oferea um pouco de luz para o caminho, e no tanto que fornea solues muito especficas. O acompanhante muito
diretivo oferece em breve tempo grande segurana, mas parece oportuno deixar
que o acompanhado use com frequncia a sua iniciativa pessoal, mesmo correndo o risco de errar. O acompanhado deve buscar uma resposta honesta para a sua
inquietude crist de maneira decidida; e esta resposta ser sempre pessoal, como
pessoal a palavra que Deus dirige a cada um. Este chamado e esta resposta
pessoal exigem, em muitos casos, o uso do discernimento espiritual como meio
para buscar e encontrar a vontade de Deus. E aqui que o acompanhante pode ser
de mais ajuda. Um bom acompanhamento favorece o discernimento pessoal na
vida; o discernimento, porm, para ser completo, tem necessidade do confronto
298

com outra pessoa espiritual. Dessa maneira, no dilogo do acompanhamento, h


um espao para o discernimento, mas tambm para a instruo, a orientao e a
confirmao do caminho.

[c] Aquilo para o que mira principalmente o acompanhamento a vontade
de Deus sobre cada um. Contudo, tambm pode haver outras finalidades intermedirias derivadas deste objetivo primrio. Por exemplo, precisamos saber tranquilizar o nosso esprito antes de iniciar a orao; ou devemos conhecer-nos minimamente antes de combater contra os nossos defeitos; por estas razes, portanto,
saber ajudar a tranquilizao do esprito e conhecer-se um pouco mais podem
ser objetivos parciais do acompanhamento espiritual durante algum tempo, para
chegar a outros objetivos importantes. Outros objetivos parciais do acompanhamento podem ser: propor ao religioso estudante que estude mais seriamente, que
colabore por algumas horas na semana em alguma atividade de voluntariado ou
caminhe mais de acordo com a sua famlia; que aceite melhor a sua misso atual
ou integre-se mais na sua comunidade. preciso aceitar e planejar estes objetivos parciais, considerando sempre o fim ltimo de todo acompanhamento, pois
ter muitos objetivos parciais no garante a busca do objetivo final, enquanto um
objetivo claro pode servir para articular diversos objetivos intermedirios. Estes
objetivos constituem etapas necessrias da nossa resposta a Deus.
Estes objetivos parciais podem ser agrupados em quatro blocos:

- um objetivo do acompanhamento conhecer-nos como pessoa e conhecer o mundo em que vivemos, sendo necessrio certo nvel de introspeco e anlise da realidade para a nossa vida espiritual;

- outro objetivo do acompanhamento a aceitao realista e madura do
nosso modo de ser e da nossa histria pessoal, assim como das circunstncias histricas e existenciais que nos cabe viver no presente. Alm de
conhecer-se, tambm importante aceitar-se;

- em terceiro lugar, quem nos acompanha pode indicar-nos, quando for
necessrio, as verdadeiras atitudes crists diante de determinadas situaes, as implicaes morais e prticas da nossa vida religiosa ou crente;
e deve explicar-nos como a vida teologal de f, esperana e caridade se
manifesta nas nossas circunstncias particulares. No h necessidade
de conhecer-se e aceitar-se perfeitamente para poder conhecer e viver o
299

Evangelho. A f oferece-nos muitos valores frequentemente contrrios


aos valores sociais vigentes e tambm diferentes dos critrios do bomsenso. Mas uma vez que estes valores so aceitos por ns, o acompanhante pode propor um quarto objetivo;
- o quarto objetivo ajudar-nos a crescer pessoalmente luz desses valores. O Evangelho pretende transformar quem acolhe esses valores,
pois so uma semente que tem em si mesma uma fora intrnseca de
crescimento.


[d] Podemos acrescentar ainda outra caracterstica do acompanhamento
espiritual cristo: o dilogo de ajuda que acontece no interior da Igreja, onde
a nossa f nasce e cresce. O dilogo move-se normalmente em relao aos seus
parmetros doutrinais e morais. lgico que o acompanhante se mantenha fiel a
esta comunidade de significado, mesmo se s vezes vemos a Igreja como visvel
e invisvel, santa e pecadora, humana e divina.

2. TIPOS DE ACOMPANHAMENTO

H diversos tipos de acompanhamento, enquanto pode variar a sua durao, a ordem dos objetivos propostos, o mtodo que inspira o colquio, os recursos utilizados e muitas outras variveis.

Quanto durao, em geral, a relao de direo espiritual organizada
por um determinado perodo de tempo (alguns meses, o perodo de estudo ou de
formao), pois prefervel estabelecer um pacto temporal que pode ser revisto
mais tarde, em vez de assumir um empenho como pacto absolutamente aberto
e sem data para concluso. H tambm encontros espordicos, utilizados para
consultas pontuais sem qualquer inteno de continuar, mas isso no chamado
de acompanhamento.

Tambm podemos falar de trs principais tipos de direo espiritual em
relao abordagem global adotada tanto pelo acompanhante como pelo acompanhado:

[a] Primeiramente, h uma abordagem mais centrada nos temas, em que a
questo ou o problema colocado analisado de modo mais ou menos racional e
espiritual, busca de possveis solues. Trata-se de um acompanhamento orien300

tado a facilitar a resoluo de um problema mais ou menos duradouro ou de uma


situao complexa, como, por exemplo, tomar uma deciso com critrios cristos
sobre a escolha do prprio estado de vida, sobre os estudos universitrios durante
a formao ou sobre um cargo ou trabalho proposto pelo superior.

H pessoas que procuram no acompanhamento uma ajuda para enfrentar aspectos antropolgicos, como a baixa autoestima, alguns graves problemas
de relacionamento, um perodo de tonalidade um tanto deprimida, um problema
persistente de raiz afetiva ou sexual. Estes exemplos parecem mostrar uma abordagem centrada no problema, de modo que o acompanhamento termina quando o
problema resolvido ou, ao menos, em parte canalizado.

Outras vezes, o acompanhamento no orientado propriamente para resolver um problema, mas para iniciar ou reforar a vida espiritual, de modo que o
acompanhante prope a pedagogia da interioridade, inicia em diversos mtodos
de orao ou ensina a praticar a lectio divina. Mesmo aqui h um tema no qual se
centra o encontro.

[b] H, contudo, um segundo tipo de apoio que mais focalizado na pessoa, porque as questes levantadas no colquio perdem logo a sua importncia e
o interesse vai-se concentrando gradualmente na pessoa que coloca as questes,
e no nos seus problemas. O acompanhante, neste caso, procura reforar a capacidade de enfrentar os conflitos a partir das potencialidades que a pessoa tem em
si. A fora deste tipo de acompanhamento consiste em responsabilizar a pessoa na
resoluo dos seus problemas e em criar as condies favorveis para que a pessoa confie adequadamente em si mesma. O acompanhado adquire esta confiana
geralmente de maneira gradual ao sentir-se escutado, acolhido, respeitado e deixado sua livre iniciativa. Este tipo de direo pode terminar quando a pessoa se
sentir suficientemente forte, compreender que pode enfrentar a vida por si mesma
e que, talvez, no tenha mais necessidade de continuar estes encontros.

[c] Em terceiro lugar, poder-se-ia falar de um acompanhamento mais centrado no processo espiritual percorrido pela pessoa acompanhada. Nesta abordagem, no so propriamente os temas que focalizam o trabalho de acompanhamento, nem sequer a segurana pessoal e as capacidades da pessoa enquanto
tal, mas, tendo em conta os problemas e a pessoa especfica, o acompanhante
centra-se mais na meta qual a pessoa concreta chamada, d ateno vocao
301

qual deve responder e mira ao crescimento contnuo em Cristo. Contemplando


esta meta, compreende e indica com maior segurana o trecho do caminho que,
naquele momento, a pessoa acompanhada deve percorrer.

Entendem-se, ento, os vrios problemas que se apresentam como parte do
processo, e o indivduo pode enfrent-los mais ou menos facilmente, mas sempre
procurando seguir o caminho do servio divino no caminho iniciado. O mais
importante percorrer bem esta parte do caminho, que mira a um objetivo especfico. Esta perspectiva pode contar com itinerrios espirituais conhecidos que
o sujeito incorpora na sua espiritualidade, como pode ser o caminho evanglico
do discpulo, um percurso espiritual inspirado no ciclo litrgico ou um itinerrio
espiritual da tradio crist formulada em chave de ciclos, as quatro semanas de
exerccios, las moradas o subidas.2

Os trs modelos de acompanhamento so vises um pouco simplificadas, e
cada um deles pode integrar elementos dos outros dois; certo que este olhar de
conjunto pode ajudar-nos, como acompanhantes, a entender melhor como queremos situar-nos no acompanhamento: levantando diversas questes, reforando as
pessoas ou enfrentando os desafios do nosso itinerrio cristo. A nfase do nosso
interesse condicionar o tipo de acompanhamento que faremos e os seus efeitos.
luz destes trs tipos de direo espiritual, podemos continuar a nossa reflexo
concentrando-nos nos desafios que, a partir da pessoa, de alguns temas especficos e do processo,3 podem derivar na formao do acompanhante espiritual na
vida religiosa. Para no tornar este trabalho muito amplo, nos deteremos apenas
na pessoa e num dos temas, como a castidade.

3. DESAFIOS PARA A FORMAO DO DIRETOR ESPIRITUAL, QUE


DERIVAM DE ALGUMAS CHAVES ANTROPOLGICAS DA PESSOA
EM DISCERNIMENTO VOCACIONAL

Deus tem a iniciativa no surgimento e no desenvolvimento da vocao religiosa. Isso significa que Ele o primeiro, aquele que convida, escolhe, sustenta
e acompanha. Esta iniciativa tomada e comunicada pessoa de duas maneiras:
Termos utilizados na espiritualidade mstica de S. Teresa dvila.
Um dos aspectos importantes no processo do acompanhamento o dos problemas na relao
interpessoal; concretamente, as transferncias e contratransferncias. Cf. L. M GARCA DOMNGUEZ, cit., 73-79.

2
3

302

imediatamente ao mesmo sujeito, atravs da sua experincia religiosa, que acontece na intimidade da conscincia e do corao humano, da sua psicologia; e
atravs de mediaes externas ao sujeito, como as pessoas, em especial o diretor
espiritual e os formadores, atravs dos acontecimentos de todo tipo e tambm das
estruturas e instituies formativas e vocacionais.

A colaborao humana nesta iniciativa de Deus d-se de diversos modos.
Em primeiro lugar e, sobretudo, o sujeito chamado a responder com a sua liberdade, liberdade de dizer sim ou no, ou de responder at certo ponto. E o sujeito
tambm responde com a liberdade possvel; na medida em que a pessoa for mais
ou menos livre, ela responder mais livremente ou com a liberdade condicionada.

O outro modo de colaborar com o chamado de Deus, com a graa de Deus,
prprio da Igreja, das instituies religiosas e educativas e, no seu interior, do
diretor espiritual atravs do apoio e da formao da pessoa. O diretor espiritual
pode esclarecer o chamado e apresent-lo na maneira mais adequada; educa ao
contato e familiaridade com o mistrio de Deus, para melhor escut-lo; prope
itinerrios formativos de crescimento; oferece encontros e testemunhos de experincia espiritual e de apostolado etc.

Levanta-se, ento, a questo da colaborao necessria entre espiritualidade e cincias humanas, colaborao que assusta a alguns e, a outros, parece
imprescindvel para enraizar a experincia profissional e educativa. O tema aqui
se tornaria muito denso.

Diante de extremismos espiritualistas ou reducionistas psicologizantes, eu
afirmaria claramente que a direo espiritual uma colaborao necessria com
Deus que suscita e mantm a vocao. Seria necessrio conhecer bem as pessoas
que so guiadas para ajud-las de maneira mais cuidadosa na sua formao. E
poder-se-ia iniciar este conhecimento de muitas maneiras: o prprio sujeito apresenta uma sntese da sua biografia, que objeto de reflexo e comentrio; fazemse algumas sesses antes do acompanhamento para esse conhecimento pessoal;
faz-se um colquio com uma lista dos principais temas da vida e vocao da
pessoa a acompanhar etc.
3.1. A primeira abordagem da pessoa acompanhada

Podemos aproximar-nos do conhecimento da pessoa acompanhada mediante diversas chaves antropolgicas. Apresso-me a descrever, muito brevemen303

te, a pessoa que vive a sua vocao religiosa a partir da perspectiva estudada por
Luigi Maria Rulla e colaboradores, e recolhida na sua Antropologia da vocao
crist.4 Uma primeira abordagem da pessoa que acompanhamos remete-nos a
uma viso de dupla polaridade da pessoa, uma pessoa estruturalmente motivada
por duas fontes ou polos de motivao: o Eu ideal, ou aquilo que a pessoa quer
ser, e refletido nos seus valores;5 e o Eu atual, ou aquilo que a pessoa na realidade, incluindo os seus limites, e refletido em suas necessidades6 psquicas.
Os valores

Mediante o conhecimento da pessoa em acompanhamento, dever-se-ia entender o que leva essa pessoa vida religiosa, o que a motivou a entrar e o que a
mantm hoje na sua vocao. Trata-se, especificamente, de conhecer os valores
e os ideais que parecem mais relevantes a esta altura da vida e diante das decises importantes que lhe so apresentadas. No entendemos apresentar aqui uma
discusso terica sobre os valores, mas referimo-nos aos aspectos mais prticos.
Como guias espirituais, quais os aspectos dos seus valores que precisamos observar?

Inicialmente, reconheceremos os valores da pessoa por aquilo que ouvimos
dela mesma de maneira direta nos encontros, desde o momento que os valores so
conscientes e reconhecidos pelo sujeito. medida que a pessoa acompanhada
exprime-se durante o processo de acompanhamento, sobretudo quando se trata
de decises importantes tomadas em sua vida, por exemplo, como e por que se
fez religioso, ou por que fez um determinado curso de estudos ou aceitou uma
misso do gnero, ou por que quer viver os conselhos evanglicos etc., podemos
constatar gradualmente o nvel dos valores da pessoa, o que a move. Estes valores
nos falaro do seu ideal.

Primeiramente, podemos perguntar-nos: que tipo de valores a pessoa afirma ou menciona quando fala de suas opes importantes? Quais so os seus
valores naturais? Quais os seus valores morais ou religiosos? Como fala dos seus
valores cristos e vocacionais? H, por trs destas perguntas, a viso de uma jerarquia de valores que no so todos da mesma categoria, mas dos quais alguns
L. M RULLA, Antropologa de la Vocacin Cristiana, I: Bases interdisciplinares, Atenas, Madri
1990.
5
Cf. Anexo 1: Jerarquia de valores.
6
Cf. Anexo 2: Definio de necessidade.
4

304

so claramente mais elevados do que outros, tanto do ponto de vista filosfico


quanto do ponto de vista evanglico. Fala de Jesus, do Evangelho, da Igreja, dos
pobres, da Congregao, ou fala de viver feliz e tranquilo, de ver satisfeitas suas
necessidades primrias, de viver rodeado de amigos, do seu desejo de viajar, de
dinheiro e de ser amado e valorizado?

O segundo tipo de perguntas que podemos fazer como guias, para conhecer
os valores da pessoa que acompanhamos, este: Qual o horizonte de valores
predominantes nesta pessoa, entre os vrios tipos enunciados? Predominam os
valores naturais ou os autotranscendentes? Quais so os enunciados com maior
clareza e incisividade, que o sujeito v como prioritrios no caso de conflito de
valores?

O terceiro nvel de perguntas refere-se experincia direta, enquanto no
importa apenas proclamar, mas viver esses valores. Que experincia faz dos valores enunciados: s intelectual ou tambm prtica e afetiva? Isso extremamente
importante em relao aos valores religiosos e cristos e aos valores vocacionais:
a pessoa apenas cr em Deus ou, na verdade, tem experincia da presena de
Deus em sua vida? Cr na pobreza evanglica e j a experimentou um pouco?
Cr na castidade, vivendo-a com alegria? Cr no servio como ideologia ou como
experincia de quem serviu alguma vez?

s vezes, encontraremos no processo de acompanhamento uma falta de
correspondncia entre valores objetivos e valores subjetivos. De qualquer forma,
todos os valores se tornaro subjetivos, interiorizados e assumidos pelo indivduo, mas poderamos descobrir que aquilo que a pessoa acompanhada diz sobre
determinado valor, como a obedincia e a castidade, no corresponde objetivamente quilo que a Igreja ou as Constituies da Congregao expressam sobre
esse valor. Isso acontece, s vezes, por falta de catequese, de formao, ou pelo
uso defensivo de alguns valores. Desafio para o guia ser procurar aproximar
a personalizao dos valores ao critrio objetivo manifestado pela Igreja sobre
aquele valor.

Enfim, esses valores so, de algum modo, vividos com coerncia em sua
vida? Cr na justia e realiza aes justas, ou renuncia a qualquer coisa pela
justia, ou arrisca alguma coisa pela justia? Luta e esfora-se para ser pobre e
obediente, para ser humilde e passar inobservado?

Estas so algumas maneiras que nos podem servir para conhecer, avaliar
ou julgar os ideais e as motivaes que movem a pessoa acompanhada. S este
305

campo j um desafio no pequeno para o guia que procura ajudar, esclarecer os


valores e incitar a traduzi-los em gestos de vida e de servio.
As carncias

A partir do pressuposto de j conhecer os valores da pessoa, assim como
nos foram comunicados nos encontros de acompanhamento, atravs das suas comunicaes, temos um dos polos de motivao: o sujeito movido pelo seu Eu
ideal, pelos seus valores, da maneira como se apresentam. Mas h outro polo de
motivao, mais ou menos explcito nas pessoas: o do Eu atual, que se reflete
nas necessidades ou tendncias psquicas inatas do indivduo, cuja presena
tambm importante verificar na pessoa acompanhada. Conhecer, descobrir e familiarizar-se com estas necessidades na pessoa acompanhada um desafio para
os acompanhantes, pois repercutem de maneira importante em todo o comportamento.

possvel utilizar o elenco das necessidades usado e estudado
empiricamente por Murray. A equipe de Rulla e colaboradores classificam trs
tipos de necessidades fundamentais: o grupo das necessidades vocacionalmente
dissonantes, o grupo das necessidades neutras e o grupo menos significativo do
ponto de vista vocacional. No caso das necessidades, no falamos de uma jerarquia ao dividi-las em trs grupos, mas o que conta para ns considerar a fora
motivacional das necessidades dissonantes, isto , que atuaro muito consistentes
com a vocao ou inclusive podero parecer valores propriamente ditos, mas so
apenas necessidades naturais que tambm podem ser utilizadas de maneira ambivalente na vocao.

No colquio de acompanhamento e nos textos do acompanhado (como
cartas, autobiografia, exames cotidianos) podem surgir, quase sempre de maneira indireta, ao menos as necessidades mais significativas da pessoa. Interessanos conhecer primeiramente as necessidades dissonantes, pois so as que opem
maior resistncia vocao. s vezes, so explcitas e esto bem presentes na
conscincia do sujeito, mas outras vezes so inconscientes prpria pessoa. Por
exemplo, uma agressividade latente ou uma humilhao inconsciente podem condicionar a sua vocao.

Se o conhecimento das exigncias da pessoa acompanhada pode ser obtido
com o elenco das necessidades mais significativas, outra abordagem mais glo306

bal da pessoa, a esta altura, pode consistir em relacion-las psicodinamicamente


entre elas. Trata-se de outro passo para compreender a complexidade da pessoa
acompanhada e as suas foras motivacionais. Tomemos, por exemplo, a relao
entre uma necessidade de humilhao e outra de sucesso; a pessoa pode buscar
sucesso, ser eficaz em seu trabalho pastoral e fazer bem as coisas, e esta eficcia
ser vivida de maneira ambivalente: no impulsionada apenas pelo servio de
Cristo e do seu Reino, como tambm, e talvez principalmente, de modo inconsciente, pelo sucesso pessoal e pela necessidade de sentir-se capaz e hbil.
A motivao central e a tenso resultante

Ao final desta primeira anlise das chaves antropolgicas da pessoa acompanhada, podemos fazer a primeira abordagem da pessoa com vocao, enquanto
motivada pelos seus valores e ideais pela vocao; mas, tambm, enquanto resistente ao dessa vocao, com resistncia patente ou latente. O resultado ser
sempre o de perceber duas motivaes, uma talvez mais predominante, em tenso
de crescimento ou de frustrao. O que nos dar uma primeira impresso do terreno em que se coloca a pessoa que acompanhamos, quais so os seus objetivos
a alcanar no acompanhamento, includa a possibilidade ou no de crescimento
amplo ou limitado da pessoa.
3.2. Para uma avaliao estrutural, segundo as trs dimenses

No processo de acompanhamento, conveniente saber antecipadamente
diante de quem nos encontramos; conhecer a pessoa a fundo redobrar a eficcia das nossas intervenes. Teremos a possibilidade de emitir uma avaliao
vocacional mais refinada, considerando trs diversas dimenses na pessoa com
vocao. A tenso entre o Eu atual e o Eu ideal gera, por sua vez, trs tipos de
dialticas entre as estruturas da pessoa que so diferentes qualitativamente. Estas
podem ser chamadas de Trs dimenses. Elas se desenvolvem na pessoa, como
resultado da sua interao com os valores que encontra; desta interao surgem
trs disposies independentes para os valores. So disposies habituais, centrais para a motivao da pessoa. como se cada pessoa, o acompanhante e o
acompanhado, tivesse culos com lentes de trs cores atravs das quais v cada
coisa na vida, as outras pessoas e a si mesmo.
307

Virtude contra incoerncia de valores religiosos: a primeira dimenso



Interessa-nos identificar na pessoa que acompanhamos o modo como ela
responde aos valores: se tem experincia dos valores e se responde a eles deixando-se mudar e colocando-os em prtica. a questo do pecado ou da virtude
do sujeito, da coerncia da sua vida. H diversos modos de experimentar esta
dimenso, mas diga-se com clareza: a coerncia vocacional, a presena de valores e a resposta a eles uma condio necessria, conditio sine qua non, para a
existncia de uma vocao; mesmo no sendo condio suficiente para sua manuteno e seu desenvolvimento, se no concorrer tambm a consistncia, da qual
falaremos mais adiante, a propsito da segunda dimenso.

A primeira dimenso aquela determinada pela vontade de alcanar ou
colocar-se em relao com os valores morais e religiosos, ou seja, com os valores
que so, em si, autotranscendentes, porque so objetivos e exigem o empenho de
toda a pessoa. A pessoa toda envolvida no desejo de fazer o bem, de ser bom e
colocar-se em relao com o Senhor. Como indicamos, esta dimenso definida
numa linha que vai da polaridade negativa do pecado polaridade positiva da virtude. Esta dimenso se refere apenas parte consciente do homem, parte livre.
Cada um de ns est mais prximo extremidade de uma ou de outra polaridade.
A falta de maturidade nesta dimenso tambm de natureza consciente e, portanto, pode comportar o pecado.

No acompanhamento, podemos constatar maturidade ou imaturidade na
primeira dimenso, quando a pessoa acompanhada se refere a toda a sua vida
espiritual, anunciada e vivida, sua orao, sua relao pessoal com Deus, ao
seu modo de viver os conselhos evanglicos, sua identidade sacerdotal, leitura
espiritual, experincia dos sacramentos, ao seu sentido de pertena Congregao, misso apostlica como experincia de Deus e a muitos outros aspectos
relacionados diretamente vida espiritual e vocacional.
Consistncia contra inconsistncia vocacional: a segunda dimenso

A avaliao desta segunda dimenso responde seguinte questo: dando
por certa a presena de valores normais do sujeito, estes so valores interiorizados ou valores que ainda no transformam o indivduo? Os diversos aspectos e
comportamentos da sua vida religiosa, como a dedicao ao trabalho pastoral, a
308

orao, a entrega que nela se reflete, a vida comunitria etc., cumprem uma funo expressiva do valor, ou mais utilitarista e defensiva? uma questo sobre a
verdadeira ou a falsa maturidade, sobre a autenticidade ou no da virtude. O bem
que busca com sua vida e as suas opes real ou apenas aparente?

A segunda dimenso a abordagem simultnea dos valores autotranscendentes e dos valores naturais vividos juntos. Alguns exemplos: o prazer de algo
belo de contemplar e de louvar a Deus (pode ser a beleza de uma paisagem ou
a beleza de um salmo que nos abre ao louvor de Deus); o gosto pela verdade, a
busca humana da verdade, tambm ajuda a reconhecer ainda mais a verdade de
Deus nas coisas e na Palavra.

A segunda dimenso definida tambm por outra dupla polaridade, aquela
que vai do bem aparente, em negativo, ao bem real como polo positivo. Todos
ns, que nos situamos num ponto mais prximo do verdadeiro bem ou do bem
aparente. Esta dimenso aquela chamada de erro no culpvel, dos enganos na
vida espiritual, das afeies desordenadas. Cruzam-se aqui necessidades inconscientes, dissonantes e neutras, com uma aparncia de bem, algo que parece um
bem, mas que no o tanto. A falta de maturidade nesta dimenso, que situa a
pessoa mais no bem aparente, de natureza inconsciente.

Podemos constatar, no acompanhamento, a imaturidade nesta dimenso
quando a pessoa governada, sobretudo, por necessidades inconscientes dissonantes e neutras, embora proclame os valores evanglicos e seja movida por eles.
Por exemplo, uma pessoa com muitas qualidades humanas e espirituais que, pela
presena da necessidade de humilhao e da baixa autoestima, reage com medo
e com recusa diante de uma possvel responsabilidade, mesmo que proclame que
outros faro melhor do que ela ou que a conscincia mande dizer no; o jovem
religioso com forte dependncia afetiva, que defende em tudo uma excessiva
dedicao ao ministrio pastoral pelo bem da Igreja e pelo trabalho pelos jovens,
mesmo que seja motivado inconscientemente pela necessidade de sentir-se mais
estimado, compreendido e valorizado no grupo; o padre que tem uma atitude
muito crtica e rebelde numa reunio comunitria ou num confronto com o superior, em nome do bem das pessoas ou da fidelidade s Constituies, embora seja
motivado por uma agressividade latente pelas figuras de autoridade.

A anlise desta dimenso no fcil; e, no incio da vocao, os resultados
no so excludentes para a admisso. Contudo, a imaturidade nesta dimenso
um indcio importante para os sujeitos em formao inicial, do momento que uma
309

imaturidade clara e constante ao longo do caminho seria a causa do abandono


vocacional ou do escondimento no interior da Congregao, no muito eficaz
para o Reino de Deus.
Normalidade contra patologia psquica: a terceira dimenso

A terceira dimenso a que nasce exclusivamente do confronto com os
valores naturais. definida pela dupla polaridade patologia-normalidade. Tambm aqui a falta de maturidade de natureza inconsciente. Seria preciso conhecer
alguns critrios que nos permitam identificar se h patologia na pessoa acompanhada ou se o problema espiritual ou de erros na vida, ou se h imaturidade em
vrias dimenses de uma s vez.

Sem entrar no difcil contexto da patologia, podemos indiciar de maneira
geral que h quatro manifestaes que nos indicam um possvel ponto frgil na
terceira dimenso:

- a instabilidade ou baixa produtividade no trabalho ou no estudo que
a pessoa realiza. O fato de uma pessoa ser dispensada repetidamente
do lugar de trabalho ou a perda de trabalho por no cumprir com suas
responsabilidades, pelas tenses com os colegas ou por outras causas
um tanto obscuras, pe-nos em alerta sobre uma possvel fragilidade.
Igualmente, se o jovem religioso tem problemas frequentes nos centros
de estudo e no pode acompanhar o ritmo dos cursos com regularidade
ou no consegue chegar aos resultados que seriam esperados dele, ou
muda o curso de estudos sem razes objetivas que o justifiquem, tambm pode ser um sinal de fragilidade psicolgica;

- as dificuldades nas relaes interpessoais, marcadas por uma ou mais
destas caractersticas: ausncia de relaes estveis, relaes frequentemente violentas ou agressivas, ou excessivamente dependentes;

- caos na vida sexual: quando se verificam simultaneamente masturbao, relaes heterossexuais e homossexuais;

- quando a pessoa se move num horizonte de valores naturais, enquanto
os valores autotranscendentes so quase ausentes, isso indcio de que
a pessoa se move prevalentemente na terceira dimenso.

H muitas outras caractersticas que, somadas umas s outras, advertemnos com muita preciso sobre o fato de nos encontrarmos diante de uma fragili310

dade na rea patolgica que deve ser diagnosticada e tratada por um especialista;
e, portanto, no se trata de uma questo de acompanhamento ordinrio. Algumas
caractersticas esto relacionadas com a gravidade dos sintomas apresentados; se
forem muito extensas em seu comportamento ou se forem encapsuladas; se existirem manifestaes fortes ou fracas; se estas manifestaes constiturem o tom
normal e habitual da pessoa ou se, ao contrrio, a frequncia for rara; se houver
ausncia ou presena de fatores que provocaram uma crise ou o desaparecimento
dos sintomas.

Outras caractersticas tm a ver com os tipos de sintomas apresentados:

- manifestaes no especficas de fragilidade do Eu, por exemplo, falta de tolerncia da ansiedade (evita qualquer tipo de responsabilidade,
reage ao estresse com suor intenso ou pranto, retira-se quando contestado, enfrenta mal as novas situaes...); falta de controle dos impulsos
(agressividade expressa com frequncia e abertamente, falta de concentrao, uso de droga ou abuso de lcool, reage mal s crticas...); falta
de canais sublimadores desenvolvidos (ausncia de interesses culturais,
ausncia de um trabalho produtivo, falta de capacidades artsticas...);

- alteraes para processos primrios de pensamento, excessivamente
fantsticos ou irreais, surgidos em episdios psicticos, sonhos diurnos
raros e frequentes, dificuldade para tolerar breves perodos de silncio
no processo de acompanhamento;

- uso de mecanismos primitivos de defesa: diviso, idealizao primitiva,
identificao projetiva, negao massiva, onipotncia e desvalorizao;

- anomalias no pensamento, na afetividade e na vontade.

As diferenas de carter ou de temperamento podem ser chamadas hoje de
estilos defensivos, e, em princpio, so absolutamente normais em si mesmos: ser
um pouco obsessivo-compulsivo, histrinico, suspeitoso ou dependente etc. so
diferenas interessantes, mas no descrevem a problemtica da psicopatologia.
A psicopatologia no determinada pelo estilo ou pelas caractersticas que se
manifestam em sua personalidade, ou apenas pelos sintomas quando estes so
intensos e frequentes, mas determinada pela gravidade ou profundidade da desorganizao estrutural da pessoa. Na continuidade que vai da polaridade da normalidade polaridade da patologia, podemos estabelecer os seguintes estados de
gradual e crescente fragilidade:
311

1. Normal, isto , maduro na terceira dimenso.



2.1. Leve desordem da personalidade sem desorganizao do EU.


2.2. Neurose, sem desorganizao.

3.1. Desorganizao leve.


3.2. Desorganizao moderada.
3.3. Desorganizao severa

4. Psicose ou desorganizao massiva do EU.


Aqui no o lugar para aprofundar este mbito, deixando que os interessados continuem a estud-lo com instrumentos mais especficos.

Para a nossa aplicao ao campo do acompanhamento, vemos que as trs
dimenses abrangem aspectos da pessoa que, reunidos, pretendem cobrir o panorama total da vida. H no muito tempo, nas entradas e sadas da vida religiosa,
levava-se em considerao a maturidade na primeira e na terceira dimenso; a
segunda dimenso era a grande esquecida. No exame dos candidatos vida religiosa ou sacerdotal, valorizava-se o polo positivo da primeira dimenso: se o
candidato tinha alguma maturidade na vida de f; e exclua-se o polo negativo da
terceira dimenso: que no houvesse patologias ou fragilidades srias.

Tambm no abandono da vida consagrada, motivava-se a sada pela imaturidade na primeira dimenso, na vida espiritual: dizia-se que a pessoa no fora fiel
sua vocao, aos votos, que no correspondera graa como deveria, porque
no cuidara da sua vida espiritual... Ou se recorria tambm imaturidade na terceira dimenso para explicar a sada da vida consagrada: h alguma patologia que
mina a sua vocao, a vida comunitria ou a misso... h imaturidade afetiva,
como uma gaveta em desordem onde encontravam espao todas as razes que
explicavam o abandono.

A dimenso frequentemente esquecida era a segunda, a do bem verdadeiro e do bem aparente, dos erros e da ambiguidade na vida e nas motivaes: h
elementos inconscientes que minam a vocao de uma pessoa e que no so nem
pecado, nem patologia. Temos um desafio, tambm no acompanhamento, pois
deveramos preparar acompanhantes capazes de trabalhar no terreno das necessidades dissonantes e neutras inconscientes.
312

4. DESAFIOS NA FORMAO DOS ACOMPANHANTES A PARTIR


DOS CONTEDOS DO ACOMPANHAMENTO. A CASTIDADE

A estrutura bsica que d forma aos contedos no processo de acompanhamento o seguimento de Jesus. como a luz ou a abordagem que iluminar todos
os temas a serem tratados no acompanhamento. H muitos temas que, pessoalmente, podem preocupar no acompanhamento: aspectos de imaturidade pessoal
e afetiva; crises existenciais; centros de interesses desfocados; dificuldades nas
relaes comunitrias; estilos no muito evanglicos de vida; temas religiosos
explcitos como a imagem de Deus que vai amadurecendo ou uma f excessivamente individual e pouco solidria, a orao, a misso ou o trabalho pastoral, a
experincia sacramental; temas especificamente vocacionais como a identidade
carismtica, o sacerdcio, os conselhos evanglicos... Muitos destes temas surgem inclusive no quadro do projeto de vida, ao qual se dedica uma ateno especial no processo de acompanhamento. No podemos tratar de todos eles nesta
sede. Detenho-me apenas num tema importante, a sexualidade, enquanto ilumina
a experincia da castidade.
4.1. Acompanhar algumas fragilidades afetivo-sexuais

Sexualidade e afetividade no so duas realidades idnticas, mas tambm
no so dois compartimentos separados entre si. Tm uma vasta zona de interferncia, que a zona dos afetos de natureza sexual. Centraremos a nossa ateno
nesta rea. A sexualidade composta por impulsos (estmulos para a gratificao
sexual) e por afetos (emoes de contedo sexual como a ternura e o enamoramento). A sexualidade carne e amor. A afetividade compreende afetos sexuais
e afetos ou amores no sexuais, como amor filial, amor fraterno, amigvel, amor
social e amor de caridade.

Para no perder o horizonte ou a finalidade no acompanhamento das fragilidades afetivo-sexuais, necessrio indicar em que consiste o amadurecimento
afetivo; ele consiste na capacidade de amar intensamente e deixar-se amar de maneira honesta e pura. Quem tem maturidade afetiva est normalmente inclinado
ao dom oblativo e busca do verdadeiro bem. Aprecia o reconhecimento, a estima, o afeto; no os exige, nem os busca como mendicante. No lhes condiciona
313

a sua disponibilidade, o seu servio. Jamais amarra os outros a si. Desperta neles
a capacidade e o gosto pelo amor oblativo.7

O amadurecimento psicolgico e humano mais amplo. A pessoa madura psicologicamente quando rene estas condies em si: o autoconhecimento
de si, das suas qualidades e dos seus limites; a posse de realismo, de julgamento
equilibrado da realidade das pessoas e dos acontecimentos, colocando-se diante
deles com serenidade; quando no modifica sensivelmente as suas atitudes, comportamentos e produtividade; quando possui a capacidade de viver em diversos
nveis relaes de simpatia, amizade, amor para com as pessoas, os grupos e os
valores transcendentes morais e religiosos.

No h um ser humano plenamente maduro psquica ou afetivamente. H
apenas realizaes parciais de cada um de seus comportamentos. No h maturidade, mas amadurecimento. Contudo, so conceitos teis porque orientam o
nosso crescimento, ou melhor, o nosso processo de amadurecimento. O acompanhante deve conhecer estes elementos para saber para onde se dirigir. A castidade
deveria acontecer numa pessoa aceitavelmente madura tanto do ponto de vista
humano como afetivo. Quando grande a imaturidade, o celibato s faz refleti-la
e aument-la. Quando h alguns aspectos de imaturidade, o celibato sincero pode
compens-los em parte. Quando a maturidade aceitvel, o celibato confere
maturidade uma marca que o embeleza humanamente.
4.2. Situao inicial das pessoas no itinerrio de formao castidade.

Alguns trabalhos slidos de pesquisa8 garantem que 40% dos jovens que
entram no seminrio e na vida religiosa vivem um perodo de primeira serenidade
sexual e afetiva. No aparecem no horizonte carncias ou problemas preocupantes. Cerca de 60%, porm, ainda no adquiriu esta primeira serenidade. Estes so
alguns sinais disso:

- fantasias sexuais no controladas;

- autoerotismo com masturbao, no episdico, mas habitual;

- escapadas erticas com o outro sexo (ou bloqueio diante de rapazes ou
meninas);
J. M URIARTE, Formarse para el celibato, Cursillo privado a seminaristas, Salamanca 1997.
L. M RULLA, Antropologa de la Vocacin Cristiana. Vol. II: Confirmaciones existenciales, Ed.
Atenas, Madri 1994.

7
8

314

- grande dependncia afetiva de alguma figura do outro sexo (em alguns


casos, menos frequentes, h um processo de enamoramento mais ou
menos longo);
- em alguns casos, surgem tendncias homossexuais mais ou menos latentes (excepcionalmente so acompanhadas de algumas experincias
homossexuais relativamente prximas no tempo; em outras ocasies,
permanecem fechadas no quadro dos desejos e dos impulsos ntimos);
- ouve-se falar com frequncia sempre maior, embora de maneira excepcional, de abusos sexuais sofridos na infncia-adolescncia, mais
comumente iniciados por pessoas do ambiente familiar.


A sexualidade serve como caixa de ressonncia de muitos outros aspectos
na vida. O religioso pode apresentar dificuldades especficas no campo afetivo
e sexual, e pode apresentar dificuldades em outras reas da vida que tm a sua
influncia e ressonncia na sexualidade. Existem conflitos sexuais com razes no
sexuais e conflitos no sexuais com razes sexuais. A sexualidade o termmetro
que mede a maturidade geral da pessoa.

Por trs destes problemas sexuais h, com muita frequncia, tendncias
que opem resistncia a uma opo clara pela castidade, sem que o jovem religioso esteja ciente dessa oposio. A pessoa em formao pode ter abraado a
vocao sem ter dito no de maneira clara perspectiva de viver a intimidade
do amor ou a experincia sexual com uma mulher ou um homem. H diferena
de nvel entre a deciso de ser religioso/a e a deciso de ser celibatrio.

Os motivos no so a mesma coisa que as razes vocacionais. Os motivos
tornam-se razes quando foram assimilados por minha vontade e afetividade e,
portanto, influenciam a minha opo e os meus comportamentos. H motivos vocacionais que tm grande componente de nobre idealismo religioso e eclesistico
e outros motivos que no so to nobres.

Quais so estes motivos menos nobres? A nsia de protagonismo, o ressentimento por ser moralmente vulgar compensado com a dedicao a uma misso
moralmente elevada, altrusta e sem sensualidade; o medo de no ser capaz de
obter e manter relao com uma mulher ou com um homem; o mal-estar com o
meu prprio corpo, que no sinto to atraente a ponto de suscitar simpatias e adeses; a homossexualidade latente que pode fazer ver a vida religiosa como manto
legitimador.
315


No processo de acompanhamento feito pelo acompanhante, o animador
vocacional ou formador deveria notar algumas destas caractersticas de progresso num candidato que decidiu ser religioso/a e que se definiu diante da vocao:

- embora permanea a atrao e a vontade de buscar a estima do outro
sexo, a pessoa em formao no joga com os sentimentos da outra pessoa e no se deixa arrastar por este impulso em busca do outro;

- conhece as razes menos nobres da sua vocao e empenha-se por purific-las;

- certa serenidade de carter e no humor varivel como consequncia do
combate interior afetivo-sexual;

- leva comunidade o esprito de grupo: compreensivo, crtico, ativo,
afetuoso e servial;

- portanto, o processo de amadurecimento vocacional de um formando
em desenvolvimento pode ser definido da seguinte maneira: ele passa da ambiguidade a uma maior clareza vocacional; da seduo, ao
reconhecimento da mulher (ou do homem, no caso das formandas);
do bloqueio ou rigidez a uma maior naturalidade com as pessoas do
outro sexo; do distanciamento a um contato real com as pessoas do
outro sexo; das motivaes inconscientes s motivaes conhecidas e
combatidas; da dependncia do autoerotismo, das fantasias sexuais e
de alguma experincia afetiva em perodos de frias ao autocontrole
notavelmente maior.

O acompanhante deve partir do pressuposto de que difcil viver a castidade. Este, jamais um problema superado, sobretudo, nas etapas iniciais.
Formar-se sem levar em conta o esforo do ponto de vista vocacional, arrisca-se
a arrastar dolorosamente de fases anteriores alguns problemas na castidade: tendncia a enamorar-se facilmente, fragilidades autoerticas que persistem, certa
tristeza frequente, impulsos brutais da carne etc. Entretanto, as pessoas no falam disso e lutam no processo de acompanhamento. desejvel que, medida
que a pessoa avance na formao e no acompanhamento, estes sintomas se reduzam, mas nem sempre assim. Nestes casos, necessrio que a frequncia
dos pontos fracos no influencie sensivelmente o estado geral de esprito ou a
intensidade da dedicao da pessoa orao, ao estudo, ao ministrio pastoral
ou comunidade.
316


Podemos encontrar tambm formandos que vivem um celibato tcnico,
isto , de baixa intensidade. O que se manifesta no fato de, uma vez passadas
as maiores fragilidades, essas mesmas fragilidades serem toleradas com escasso
sentimento de culpa, pelo fato de j no constiturem numa escravido. Isso seria
mais preocupante se o celibato tcnico surgisse nas primeiras fases da formao.
O contexto geral do celibato tcnico muitas vezes uma vida sem entusiasmo;
o formando apresenta-se com um ritmo muito modesto nos estudos, na pastoral,
na orao... por ser juvenil. Comporta-se bem, mas no com paixo. No se pode
viver a castidade sem paixo por Jesus e o seu Reino. Se o entusiasmo fraco, o
celibato no se arrasta, bloqueia-se.
4.3. Dificuldades do acompanhante a respeito do acompanhamento da
castidade

Nem s os formandos tm as suas dificuldades especficas na castidade;
tambm ns acompanhantes temos as nossas dificuldades ou semelhantes. No
quero falar, porm, destas dificuldades que todos ns temos na castidade, mas
das dificuldades que o formador experimenta na sua funo de acompanhar as
pessoas neste tema.

A castidade um dom que preciso compartilhar; ela no tem por objetivo a nossa perfeio pessoal. s vezes, ns acompanhantes e formadores,
sequestramos a ideia da virgindade, tornando-a estranha e improvvel. Outras
vezes, apropriamo-nos dela tornando-a indecifrvel aos outros. Com frequncia,
suportamo-la com pouca alegria e com escasso amor, tornando-a pouco humana
e, menos ainda, atraente, como se viver a castidade fosse uma desgraa. Em outras ocasies, envergonhamo-nos dela quando no soubemos dar razo da nossa
esperana ou quando nos preocupamos em aparecer como os outros. Contentamo-nos em escond-la debaixo da terra em vez de compartilh-la. Talvez, no final
da vida, o Senhor haver de nos perguntar no s se observamos a castidade, mas
tambm se a tornamos contagiosa, fonte de verdade para os outros, significativa
para todos.

Todos ns, religiosos, acompanhantes, devemos converter-nos em formadores para a virgindade, precisamos perguntar-nos se somos capazes de oferecer
aos jovens itinerrios de amadurecimento afetivo, em que possa acontecer tambm a perspectiva virginal ou, ao contrrio, se jamais falamos dela.
317

s vezes, no falamos porque :


- temos medo de prop-la aos jovens;
- no sabemos encontrar as palavras certas e sentimo-nos em dificuldade
ao falar da castidade;
- consideramo-la como uma batalha perdida desde o incio ou na qual nos
encontramos em posio de inferioridade;
- temos medo de ser considerados antiga e no compreendidos, ou que
algum no nos acompanhe neste percurso;
- sussurramos este tema s s escondidas e apenas a algumas pessoas.


Uma espiritualidade que no se converta em pedagogia, ou que no possa
ser comunicada tambm a outros e compartilhada com eles, uma espiritualidade
falsa. Se precisamos converter-nos em educadores para a virgindade, devemos
interrogar-nos sobre o grau de convico que temos a respeito deste tema. Ser
educadores para a virgindade um grande desafio e oportunidade para todos, mas
tambm um banco de prova que nos faz compreender de maneira imediata o
nvel e a qualidade da nossa virgindade.
4.4. Linhas-guia para a pessoa que acompanha fragilidades afetivas e sexuais

As ajudas que proponho para o acompanhante poder agir bem com uma
vocao que apresenta fragilidade na rea afetivo-sexual esto na linha especfica
da formao ao celibato. Esta formao no supe um tipo qualquer de educao
dos afetos ou de controle dos instintos, mas uma educao que acolha e integre a
prpria sexualidade e afetividade nos seus aspectos conscientes e inconscientes,
colocando-a ao servio da opo pela vida religiosa e aprendendo a renunciar a
atitudes e comportamentos incompatveis com esta opo.

Nesta ajuda no acompanhamento podemos distinguir reas diferentes:
a.
rea do conhecimento terico. importante ajudar a pessoa em formao a conhecer o que as vrias cincias afirmam sobre a sexualidade, a afetividade, a castidade pelo reino. As descobertas bsicas da psicologia e da sociologia,
os critrios bsicos da moral e da espiritualidade, formam um quadro terico
que preciso assimilar. O conhecimento ajuda-nos a compreender e exprimir o
318

que vivemos. Tarefa do acompanhante, para favorecer um maior conhecimento,


oferecer leituras adequadas e cursos sobre estes temas.
b.
rea do conhecimento de si mesmo. Toda a teoria assimilada no nos
garante o conhecimento pessoal de ns mesmos. Fatores afetivos podem situarse entre os meus conhecimentos tericos e a minha situao pessoal a ponto de
distorcer a imagem que tenho de me mim mesmo e bloquear a aplicao destes
conhecimentos minha pessoa. A este ponto, num primeiro momento, interessa
especialmente a anlise das nossas motivaes vocacionais e das nossas resistncias interiores diante da castidade. O acompanhante pode ajudar nisso atravs de revises comunitrias, da introspeco e da anlise das nossas atitudes
e comportamentos. Num segundo nvel, preciso ajudar para o conhecimento
das resistncias inconscientes opostas ao celibato; aqui, a anlise dos comportamentos sexuais e a busca do seu significado podem conduzir-nos verdade do
nosso desejo. Os meios ordinrios e a interao formador-formando podem ser
suficientes. Um terceiro nvel de conhecimento aquele obtido pela explorao
psicolgica da personalidade, realizada mediante um colquio sobre a vida e sobre os testes correspondentes.9 Aqui, a ajuda de um especialista necessria.
c.
rea da estima vital da vocao e do celibato. Para ser religioso celibatrio no basta apenas amar o celibato; preciso amar intensamente a vocao. No basta conhecer e desejar as duas realidades; preciso estim-las. A esta
altura, formar-nos equivale a alcanar a apropriao subjetiva da vocao e do
celibato como componente concreto da nossa vocao.
d.
rea da educao dos afetos. A opo mental, volitiva e vital no
suficiente. necessrio colocar em sintonia com esta opo tambm os nossos
afetos. Somos ignorantes no conhecimento dos nossos afetos, no sabemos
identific-los nem muito menos aceit-los sem considerar-nos pessoas ms, e
muito menos sabemos organiz-los. necessrio interrogar-nos sobre os sentimentos de Jesus no Evangelho e rezar mais como Ele. Ele organiza os sentimentos para iluminar a nossa forma de integr-los. Educar os sentimentos envolve
faz-los amadurecer, purific-los e control-los. O amadurecimento sem controle
Cf. L. M GARCA DOMNGUEZ, Discernir la llamada. La valoracin vocacional, Ed. San
Pablo-Universidad Pont. Comillas, Madri 2008.
9

319

no humano. Nem mesmo o controle sem amadurecimento humano. Seria


muito importante ajudar o formando a desenvolver a gama de sentimentos no sexuais da afetividade humana, para no concentrar excessivamente toda a energia
no polo sexual. Refiro-me ao amor filial, ao amor fraterno, ao da amizade. Todos
estes amores enriquecem a capacidade de amar do celibatrio. A sublimao poder atrair mais energias psquicas para o polo da atividade pastoral.
e.
rea de controle dos impulsos genitais. O impulso genital em si mesmo
nem se reprime nem se sublima: ele continua a reclamar os seus direitos aberta ou
inconscientemente (represso). Formar-se para o celibato significa orientar esses
impulsos. Mas a sua intensidade e a frequncia deles costuma ser influenciada
(reduzida) no seu conjunto por trs fatores: o primeiro a abstinncia sexual
prolongada. O segundo o mundo dos ideais da pessoa: viver com entusiasmo e
paixo a vocao e a espiritualidade reduz a intensidade e a resistncia dos impulsos. O terceiro a ausncia de fragilidade patolgica.
4.5. Alguns problemas frequentes nos formandos

A sexualidade uma realidade complexa e enigmtica. algo que no
cresce nem amadurece espontaneamente; mais do que uma tarefa um dado de
fato. Tentar explicitar onde a sexualidade ainda no est amadurecida um bom
sinal de maturidade ou do fato de estar em vias de integrao. Ao contrrio, neglo ou no fazer nada para identificar onde e por que a prpria sexualidade mais
vulnervel, sintoma de imaturidade desagregadora. As formas mais frequentes
de imaturidades sexuais esto relacionadas com o desenvolvimento afetivo-sexual da pessoa. No nvel evolutivo, a imaturidade pode ser devida:

- no correta superao de certas etapas evolutivas, com as consequentes dificuldades de identidade sexual: a homossexualidade, na primeira
infncia, com a falta de identificao com o genitor do mesmo sexo, ou
experincias no perodo anterior adolescncia, que impediram a passagem da fase homoertica fase heteroertica;

- ao fenmeno de no desenvolvimento da prpria sexualidade com a
consequente fixao numa determinada fase evolutiva: a pessoa nega-se
a crescer nesta rea, bloqueando-se em uma de suas etapas. So sinais
320

dessa fixao: as reaes infantis de cimes na amizade; a curiosidade sexual de marca adolescente; a infantilizao da sexualidade, compreensvel nos adolescentes, mas no nos adultos. Esta atitude habitual
de fixao pode repercutir no plano das relaes, na pastoral e no nvel
de maturidade geral da pessoa;
- ao desenvolvimento da sexualidade no adequado idade e s etapas
existenciais, a exigncias pastorais ou a novas situaes ambientais,
com relativa regresso a uma etapa anterior do desenvolvimento. Trata-se de uma reao ao presente com estilos e modos de relacionar-se
do passado: a busca ansiosa de afeto tranquilizador da parte de uma
pessoa em formao que, ao viver uma situao de solido, se fecha na
masturbao ou se aproxima de uma mulher, enamora-se depois de uma
falncia ou porque sente que a vida lhe escapa e precisa preencher um
vazio ou porque precisa receber aprovao.

O autoerotismo

um tema que preocupa excessivamente a alguns e muito pouco a outros.
Do ponto de vista do acompanhamento, o principal interesse formativo do comportamento masturbatrio consiste em saber o que ele significa em cada circunstncia. Recolho em seguida alguns significados frequentes:

- s vezes, obedece a um mecanismo obsessivo compulsivo. Sou obsessionado e no posso resistir ao impulso (compulso). Quando muito frequente, este tipo de comportamento precisa de algum tratamento
psicolgico. A vontade muito frgil;

- sintoma e fruto da ansiedade: as pessoas ansiosas (por insegurana
ou perfeccionismo) vivem em situao de tenso acumulada ao longo
do dia. A masturbao aparece como via de canalizao dessa tenso.
Quem inseguro deve trabalhar sobre a autoestima. Quem perfeccionista deve educar o seu narcisismo. Se no se entrega a isso com
afinco, vo-se combatendo os sintomas, mas no a causa. Nestes casos,
preciso a luta direta contra a tentao concreta, mas preciso colocar
um esforo especial nas causas de fundo;

- sintoma e fruto de uma resistncia psquica a assumir a castidade. Ao
no resignar-se totalmente a ser casto; embora afirme que quero ser
321

religioso e quero viver a castidade, h sempre espao para atitudes ambguas. O progresso na castidade um itinerrio (jamais concludo) que
vai da ambiguidade clareza. Quando a ambiguidade grande, o sujeito
protesta diante do que no aceita do ponto de vista vital. Masturbar-se
pode ser sinal de protesto. preciso identificar esse foco de resistncia
para desativ-lo;
- sintoma e fruto de uma vida espiritual e apostlica pouco intensa. As
pessoas que tendem mediocridade e, consequentemente, no colocam entusiasmo na vida espiritual e apostlica, no tm dentro de si a
atmosfera suficiente para enfrentar a sua genitalidade com clareza. A
masturbao, nestes casos, sinal de mediocridade;
- sintoma e fruto de uma vida muito ativa e servial, mas pouco espiritual
e orante. O registro prtico cultivado; o registro esttico (a sensibilidade) o muito menos. A castidade coisa de amor e o amor coisa
de servio, mas tambm de afeto. Cultivar o afeto na relao de orao
e apostlica seria o caminho para uma resposta adequada. A castidade
simplesmente utilitria no serve para nada;
- sintoma e fruto de fatores desconhecidos, mas no preocupantes.
preciso reconhecer que existem candidatos que sucumbem com certa
frequncia (em geral, no habitualmente) a esta fraqueza com uma vida
de orao mais do que aceitvel e uma entrega apostlica invejvel.
Sentem-se bem sendo religiosos. Amam a castidade. Desejariam ser integralmente castos e sofrem com esta fragilidade. No desceram a qualquer pacto com ela, mas ela existe. Seria injusto, inumano e pouco
evanglico considerar uma castidade deste tipo como no positiva em
seu conjunto. Manter-se alerta, resistir e viver a humildade que deriva
da fragilidade que carrega a principal tarefa exigida pela consagrao
ao Senhor.

A homossexualidade

Em alguns candidatos, as tendncias homossexuais fazem-se presentes
preocupando-os muito. o ponto em que a transparncia em relao ao acompanhante se torna difcil. Quem possui acentuadas tendncias homossexuais e quer
ser religioso/a teme que lhe digam no, bloqueando a comunicao.
322


preciso dizer, embora vivamos na cultura do orgulho gay, que a homossexualidade uma anomalia, no a simples variante de um padro. Na pessoa
homossexual real e explcita (existem outras aparentes e menos claras), o sexo
biolgico e o sexo psicossexual no coincidem, ao menos plenamente. No caso
dos homens, eles tm biologia sexual de homens e psicossexualidade que, ao menos em alguns aspectos, prpria da mulher (desejam sexualmente e afetivamente
os homens). Algo semelhante acontece na mulher homossexual explcita. Dada
a importncia central da sexualidade na vida humana, esta anomalia no leve:
repercute na psique de maneira importante. O nvel de equilbrio e de estabilidade
emotiva das pessoas homossexuais significativamente menor do que a populao em geral. Parece que a promiscuidade tambm maior. No h um tipo nico,
mas vrios, de homossexualidade masculina ou feminina:

- h pessoas homossexuais completas e ativas; h nelas a tendncia ertica apenas pelo homem e, em sua vida recente (no me refiro simplesmente a episdios da infncia ou do incio da adolescncia), tiveram
contatos homossexuais genitais, prticas sexuais. A experincia diz que
so contraindicados para a vida religiosa. Os episdios vividos nas primeiras etapas da formao convertem-se depois em vida clandestina.
Os escndalos so normalmente o ltimo passo desta evoluo;

- h pessoas homossexuais completas, mas no ativas. Sentem-se atradas apenas pelos homens, mas no tm contatos homossexuais genitais
e procuram dominar, no bem e no mal, os seus impulsos interiores.
A vida religiosa em si as atrai porque um status social que no
cria suspeita sobre sua identidade sexual. Querem ser celibatrios nesse
status. Dado o desequilbrio emotivo contido com muita frequncia na
homossexualidade, seria preciso ter provas positivas (como se exige
dos heterossexuais) para aconselhar a vocao religiosa a estes jovens.
Essas provas seriam:

continncia igual ou maior (porque maior o seu risco);

profundidade religiosa investigada;

consistncia pessoal rica, afetiva e socialmente;

- h homossexuais incompletos (bissexuais). O bissexual tambm homossexual. Sua dupla tendncia se deve normalmente falta de diferenciao sexual ou a experincias homossexuais intensas do passado.
Sendo ajudado e o desejando realmente, talvez possa chegar a controlar
323

e reduzir a tendncia homossexual. preciso ajud-lo para um contato


maior e mais exposto com o outro sexo;
- h homossexuais apenas aparentes (pseudo-homossexualidade). Tratase de uma homossexualidade imaginria e temida. Baseia-se em alguns
impulsos e fantasias espordicas, devidos a uma no concluda indefinio sexual, a uma poca de insegurana, a recordaes de experincias
infantis ou da puberdade.

Ainda no h consenso quanto homossexualidade masculina e feminina. Poderamos falar tambm de uma homossexualidade em que se acentua o afeto,
de outra em que se acentua o poder ou domnio, e de outra em que se acentua a
gratificao sexual; uma homossexualidade egodistnica e outra egossintnica.
Na mulher, a homossexualidade aparece, num primeiro momento ou fase, mais
em relao ao afeto do que genitalidade.
Levando em considerao as ltimas instrues da Igreja nesta matria,10 distingue-se entre tendncia e prtica da homossexualidade, mas, se existirem prticas
ou tendncias homossexuais profundamente enraizadas, preciso dissuadir o
candidato da escolha da vida consagrada.
O enamoramento

A experincia do namoro necessria para o amadurecimento afetivo? As
preferncias afetivas nos formandos homens, em relao a uma ou outra mulher,
alguma coisa no s inevitvel, mas bvia e at mesmo salutar. Diramos o mesmo da preferncia afetiva por um homem, nas formandas mulheres. Estas preferncias podem ser estveis ou sucessivas. Normalmente, no costumam implicar
componentes obsessivos. Apenas se vive melhor com ela (ou com ele, no caso de
uma candidata), ela mais procurada do que as outras, tem-se maior facilidade e
satisfao numa comunicao verbal. Ser bom manter-se alerta para que a preferncia no se converta em fixao e a relao em obsesso.

Apesar disso, alguma preferncia torna-se obsessiva e tambm pode polarizar-se na atrao ertica e genital por uma mulher concreta. Em outros casos, o
CONGREGAO PARA A EDUCAO CATLICA, Instruo sobre os critrios de discernimento vocacional em relao a pessoas com tendncias homossexuais antes de sua admisso ao
seminrio e s Ordens Sacras, 29 de novembro de 2005.
10

324

afeto comea a revestir-se dos caracteres do namoro: idealizao de determinada


mulher, necessidade de encontrar-se com ela, sentimento de solido. Em algum
momento da vida, este processo de namoro torna-se inevitvel. Algumas vezes
por inexperincia, outras por contatos frequentes, outras ainda porque o caminho
da mulher cruzou com o meu e eu a procuro. Parece no ser nocivo que isso acontea uma ou mais vezes na vida, mas no devemos busc-lo: vem por si. Em todo
caso, so as cumplicidades com esta relao que tornam difceis os passos sucessivos. Muito mais se nessas cumplicidades acontece a troca de gestos erticos.

Entretanto, ainda falta neste processo um fator decisivo para que seja namoro: o consentimento da nossa vontade. H um momento em que eu digo sim
ou no. Se eu digo sim, o processo do namoro ativado de maneira intensa e, em
pouco tempo, impregna toda a pessoa. Se o sim no for s interior, mas tambm
exterior e comunicado pessoa pela qual me sinto atrado, consolida-se ainda
mais. O sim e o no so atos livres, mas, indo muito alm da atrao, o no
muito penoso e torna-se quase impossvel. Ao contrrio, se formos perspicazes
para ver o que est acontecendo e honestos para no legitimar os nossos comportamentos, o no relao e o sim castidade ser difcil, s vezes doloroso, mas
psicologicamente possvel.

O candidato/a que quiser iniciar o processo de discernimento vocacional
ou a primeira etapa da formao, no pode faz-lo vivendo este processo ao mesmo tempo com uma relao de casal; deve escolher um ou outro caminho.

Devemos estabelecer uma sobriedade total ou o mximo que se possa no
contato com a jovem ou o jovem. No se trata de fuga. Foge-se do medo. Aqui,
eu me afasto porque h uma opo que, para mim, mais importante. A opo ir
acalmando aos poucos a rebelio das emoes e dos impulsos. Comunicar-se de
modo transparente com o acompanhante quase necessrio. Comunicar jovem
ou ao jovem os nossos sentimentos e a nossa deciso ser ingnuo ou sutilmente
interessado. Muito mais pretender consol-lo/a pelo seu pesar ou pelo seu vazio.
A comunicao ser oportuna se a relao foi muito longe, se foram criadas expectativas e reivindicadas, de sua parte, pretenses que preciso interromper.
As amizades heterossexuais

As amizades heterossexuais so relaes cordiais de intensidade especial,
com ou sem expectativas erticas latentes. A amizade um amor tipicamente hu325

mano e espiritual, que no se fundamenta na carne ou no sangue, mas desabrocha


de um encontro entre duas pessoas. A presena do corpo mnima nas expresses deste amor, enquanto mxima a proximidade espiritual: empatia recproca,
comunho num conjunto de valores, transparncia e facilidade na comunicao,
aceitao incondicional do amigo e a busca desinteressada do seu bem. Trata-se
de um amor que, embora intenso, sereno e alegre. um amor expansivo, que
no conhece o cime. A desventura o banco de prova das autnticas amizades.
No h dvidas quanto existncia e o valor da amizade entre duas pessoas de
sexos diferentes, mas seria preciso estar alerta, pois a amizade inicial pode transformar-se facilmente em amor ertico. Os sinais desta transformao so: cime,
exigncia da presena fsica, efuses afetuosas, necessidade de conhecer e examinar os sentimentos ntimos do outro. Nem sempre ser necessrio interromper
a relao, mas ser preciso discernimento, transparncia, acompanhamento com
um formador e, sobretudo, no caso de religiosos jovens, dedicar-se ao que corresponde a cada um neste momento, isto , formao. custoso, mas salutar, e
preciso submeter-se a uma severa disciplina caso se deseje chegar a amizades
autnticas na vida religiosa.

5. CONCLUSO

Distingo quatro partes nos trs desafios que o acompanhamento de jovens
religiosos exige de ns acompanhantes:
Considerao inicial

O momento atual da vida religiosa no fcil. um momento de questionamentos e de dvidas. H problemas em relao vida espiritual, s
relaes comunitrias, disponibilidade apostlica etc. H dificuldades
internas ao contexto eclesial, congregacional ou comunitrio, e outras
externas, culturais e sociais. Algumas dificuldades que influenciam na
formao:
a. as dificuldades de concepo da vida religiosa, de modelo da vida religiosa no futuro influenciam o acompanhamento e a formao, uma
vez que a formao para alguma coisa, e mira a um objetivo. Se
326

o horizonte for desfocado, no fica claro qual a finalidade da nossa


formao. Quando o horizonte claro, o modo de formar tambm fica
mais claro;
b. as dificuldades no horizonte da vida religiosa (poucas vocaes, envelhecimento) so dificuldades que se acrescentam ao processo de formao;
c. o papel das pessoas que acompanham importantssimo. Elemento determinante para existirem mais ou menos casas de formao se elas
possuem ou no formadores. O acompanhante remete imagem do
mestre. -lhe pedido um algo a mais de segurana num momento em
que no a do as estruturas e as instituies. A formao torna-se mais
complexa e, por isso, o papel de quem acompanha torna-se sempre mais
relevante.

Elementos que preciso pr em jogo no processo de acompanhamento



Evidenciamos dez elementos:


a. a pessoa que trabalha em processos de acompanhamento ou na formao deve ser algum com profunda estima pela vida religiosa em geral e
pela prpria concreta forma religiosa. Significa busca e amor pela vida
religiosa; uma pessoa que busca, l e reflete. Uma pessoa que possui o
sentido de pertena, que tem um compromisso com a prpria instituio, com uma vida religiosa simples, com os prprios companheiros.
importante que a pessoa acompanhada perceba nele um amor encarnado pela vida religiosa. Sem isso, torna-se difcil ajudar;
b. importante ficar claro para quem acompanha nos processos de formao o que possvel e o que no possvel. H coisas possveis e coisas
que no o so. Nem tudo vai bem, nem tudo deixa indiferente. preciso
entender o que opinvel e o que discutvel. O acompanhante no
uma pessoa autoritria nem dogmtica, mas algum com convico
interior. Havendo clareza interior, haver capacidade para dialogar e ser
flexvel. Ele tanto mais ajudar quanto mais for esclarecido sobre o que
deve insistir na vida religiosa. Trata-se de uma pessoa que possui uma
pertena luminosa;
c. o ponto mais bvio. Ser uma pessoa que resolveu seus problemas: no
327

deve ser uma pessoa perfeita, mas madura. Que saiba o que fazer com
seus limites e dificuldades. Uma pessoa que resolveu seus problemas de
autoestima. Se isso no estiver claro, pode deformar, haver o perigo de
usar as pessoas em formao para os nossos fins pessoais;
d. capacidade de captar o positivo em quem acompanho, em particular e
em geral. Devemos ser capazes de valorizar o que tm de positivo as
pessoas que escolheram a vida religiosa ou que ainda esto em caminho. Valorizar aqueles que temos diante de ns. Capazes de basear a
nossa ao nos elementos mais positivos da pessoa e naquilo que h de
positivo nas culturas destas pessoas;
e. ausncia de condicionamentos. O acompanhante no dever ser condicionado. No significa dizer sempre sim, mas saber apostar sempre
mais nas pessoas. No se trata da aprovao de todos os seus comportamentos, mas de estar ao lado dessas pessoas, sem condies. sempre
melhor no acompanhante parecer tolo do que parecer esperto. Ter as
coisas claras, mas no querer ser esperto... julgando as pessoas;
f. saber ler as circunstncias e situar nelas os fatos. Saber ir alm do fato e
saber ler o momento vital em que ele acontece. Um determinado evento
exigir uma resposta diferente de acordo com o momento em que nos
encontramos;
g. que se tenha uma delicada capacidade de interpelar. Quem acompanha
e quer formar deve interpelar. preciso ser delicado no ato de interpelar. No se trata de pr em discusso, mas de ajudar a crescer. A tentao deixar passar;
h. preciso imaginao nas propostas formativas. O acompanhante deve
ser capaz de relacionar os processos interiores com as dinmicas comunitrias. O bom acompanhante no apenas um mestre interior; o
melhor formador aquele que ajuda a integrar os aspectos interior e
exterior. Muitas paralisias nos processos interiores tm a ver com as
paralisias nos processos exteriores. s vezes, basta mudar alguma coisa
na forma de vida cotidiana e no apenas o esforo interior;
i. pacincia, pacincia, pacincia... A pacincia construda com a memria e a abnegao. Com a memria: a pacincia que tiveram conosco
e a que Deus teve conosco. Contudo, a pacincia tambm uma forma
de abnegao: as coisas no esto altura do que se quer, mas do que
328

as pessoas so. Uma pessoa no altrusta, dificilmente ser uma pessoa


paciente. A pacincia construda no contato com o Deus paciente;
j. a tarefa mais difcil e rdua para ns: sermos pessoas capazes de transmitir Deus. No dizer coisas muito piedosas na missa, mas ser capaz
de reproduzir no contato conosco os efeitos produzidos pela presena
de Deus: serenidade, comunicao de misericrdia, paixo pelos pequenos e pobres cujo contato gera alegria interior. a coisa mais necessria e a mais gratuita. Ser acompanhante ou formador um ministrio,
e a graa tem muito a ver com isso.

Campos de ao e de ateno

a. Interioridade. Trabalhar a dimenso da interioridade especialmente


difcil neste tempo e particularmente necessrio na vida religiosa do
futuro. trabalhar pela capacidade de silncio e interioridade, uma dimenso pouco cuidada em nossa cultura. o desejo de encontrar-se
com Deus e beber dEle. suscitar desejo. Trabalhar a centralidade
de Deus na vida das pessoas, para que, de fato, Deus seja o centro. Por
isso, preciso ajudar a crescer no discernimento para ler, escutar e perguntar-se se Deus central para ns.
b. Cotidianidade. trabalhar pela integrao dos desejos, dos discursos e
dos fatos de cada dia. H uma discrepncia entre os desejos, os discursos e os fatos, em ns e nos outros. O que significa trabalhar a pureza
de intenes nas coisas que se faz. Se falarmos de orao, a pureza de
intenes descentralizao; se falarmos de estudo, preciso integr-lo
com o servio; o servio, com a gratuidade; e esta com a abnegao. E
significa confrontar a vida cotidiana com a maneira de viv-la.
c. Vida comunitria. A comunidade o grande desejo e a grande dificuldade da vida religiosa. Muitos entram na vida religiosa por causa da
vida comunitria e muitos saem por causa da vida comunitria. Os que
entram possuem muitas carncias para viver a vida comunitria. Provm de muitas dificuldades familiares, sociais, das nossas instituies.
So filhos nicos. preciso encontrar uma maneira nova de falar da
comunidade: no o que eu espero da comunidade, mas o que eu estou
disposto a dar. Devemos ampliar o aspecto comunitrio com que se olha
para as instituies.
329

d. Afetividade. Acontecem mais coisas do que as que se contam e que


aparecem. As pessoas saem por problemas afetivos em percentuais altssimos. No so apenas problemas de sexualidade, mas preciso considerar tambm estes. Relacionamentos, clareza, transparncia, solido,
experincia de amizade com Cristo, o sucesso e o trabalho e o modo
de viv-lo, o modo de viver em famlia... H nisso diferenas entre as
geraes e em relao famlia tradicional como a conhecemos.
e. Fortaleza. Capacidade de resistir, de permanecer, de lutar. Esta no
uma caracterstica nem pessoal nem cultural. permanecer apesar dos
prprios pecados, apesar daquilo que seria agradvel ou fcil, daquilo
que institucional, apesar dos momentos da vida, das desiluses, dos
insucessos e das expectativas.

Dificuldades a superar

O bom acompanhante-formador aquele que tem suas dificuldades e capaz de pedir ajuda quando as enfrenta. Entre os perigos que os formadores correm
est o orgulho de crer-se quem sabe quem. O acompanhante deve colocar-se em
certos mecanismos de humildade, de autocorreo, sem atribuir a si mesmo o que
Deus faz. O acompanhante-formador pode ter a tentao de crer-se melhor ou de
ter certo prestgio. No deve enganar-se.

Quais as dificuldades que podemos experimentar? H cinco delas:

a. A tarefa do acompanhante muito exigente. Exige de ns, que vivamos
sempre na vitrine. Ser formador exige estar sempre em forma, tanto
fsica como mentalmente. No cair na rotina, viver atento aos sinais, ser
mestre em discernimento.

b. Os envolvimentos afetivos gerados no processo de formao, nos quais
devemos estar muito lcidos. No s se so passageiros, mas principalmente porque so passageiros. s vezes no dizemos o que devemos
dizer ou dizemos o que no devemos dizer.

c. Saber perceber os tempos da pessoa que temos diante de ns: se tempo de pacincia ou de interveno, de silncio ou de palavra, de deciso
ou de espera. muito cedo ou muito tarde para intervir? preciso pensar muito, rezar e discernir.
330

d. Os processos de grupo que intervm nas dinmicas pessoais. O acompanhamento calibrado no face a face, mas tambm existem processos de grupo que intervm no acompanhamento. preciso adquirir
familiaridade com esses processos.
e. Dificuldades de viver os nossos insucessos como formadores ou acompanhantes: as incertezas de direo, os erros que cometemos. As falncias podem ser momentos de involuo ou de crescimento. -nos
pedido para viver o nosso insucesso de forma consciente.

331

Anexo 1
JERARQUIA DE VALORES
I. VALORES NATURAIS

Valores que se referem natureza sensvel ou espiritual e no pessoa
como tal.
1. Valores que no so especificamente humanos

Embora se refiram ao homem, estes valores no o distinguem do animal
(e neste sentido, so infra-humanos). So os valores da sensibilidade e da vida
biolgica, que tm a ver com o prazer e a dor, a sade e a doena etc.
2. Valores humanos inframorais

So humanos porque diferenciam o homem do animal. Mas so inframorais, porque no comprometem o exerccio da sua liberdade e da sua responsabilidade (aquilo que propriamente humano).
2.1. Valores econmicos e valores eudemnicos

Aquilo que, em geral, faz com que os homens se sintam felizes ou infelizes
(a prosperidade ou a misria, o sucesso pessoal ou a falncia).
2.2. Valores espirituais

No influenciados por fatores biolgicos:
-
Valores noticos (a verdade da parte do objeto, ou o conhecimento da
verdade da parte do sujeito);
-
Valores estticos e artsticos (a beleza ou fealdade dos objetos, o bom
ou mau gosto do sujeito);
-
Valores sociais (prosperidade e coeso do grupo, a ordem, a filiao, a
ajuda aos outros, a dominao, a tendncia ordem);
332

-
Valores relativos vontade enquanto natureza (um estilo relutante
ou relaxado, a fora do carter, a capacidade de reao depois do insucesso etc.).

II. VALORES AUTOTRANSCENDENTES



Valores que influenciam sobre o Eu, a pessoa humana, enquanto comprometem o exerccio da sua liberdade e responsabilidade; medem o valor da pessoa
em relao sua liberdade e responsabilidade em se autotranscender; e comprometem toda a pessoa nesta autotranscendncia de um amor teocntrico. So de
dois tipos estritamente unidos entre si:
1. Valor moral

Influencia o sujeito no que lhe mais prprio, no seu agir livremente e ser
livre. um valor de ordem prtica, mais do que especulativa (como a arte ou a
tcnica). Diz respeito mesma ao humana, enquanto procede da vontade livre e
no tem a ver apenas e diretamente com a obra nem com o fruto da ao humana.
Por isso, mede realmente o valor da pessoa humana.

estimvel e desejvel por si mesmo, no s como meio. E a sua validade
tem um carter absoluto.
2. Valor religioso

Refere-se relao do sujeito com o princpio supremo do valor e do sujeito. Trata-se do que sagrado, divino, de Deus. Subjetivamente, realiza-se na
religio (respeito, confiana na divindade), na piedade e santidade pessoais.

O essencial deste valor certo carter de totalidade e transcendncia; em
primeiro plano no h atividade do homem, mas a realidade soberana. No se
pode reduzir o valor moral (embora esteja em relao estreita com ele).

333

Anexo 2
DEFINIO DE NECESSIDADE
[*] Varivel (necessidade/atitude) utilizada para a anlise na identificao
das consistncias/inconsistncias, e que foi considerada relevante para a vocao crist e, portanto, vocacionalmente dissonante.
[+] Varivel utilizada para a anlise das consistncias/inconsistncias, e
que foi considerada como menos relevante para a vocao crist e, portanto,
vocacionalmente neutra.
ACEITAO SOCIAL: Obter prestgio, receber honrarias, louvores, ser valorizado.
AQUISIO: Obter posses e propriedades. Possuir bem ou dinheiro para si
mesmo.
[+] AFILIAO: Trabalhar ao lado de um objeto aliado e colaborar ou mudar
pontos de vista com este ltimo: um objeto que assemelha ao sujeito ou que o
ama. Saborear ou conquistar o afeto de um objeto. Unir-se a um amigo e ser-lhe
fiel (relao recproca. Ver dependncia afetiva).
[*] AGRESSIVIDADE: Superar uma oposio de maneira brusca. Lutar, vingar-se de um insulto. Atacar. Ferir ou matar um objeto. Opor-se com fora ou
castigar um objeto.
[+] AJUDA AOS OUTROS: Dar afeto a um objeto sem recursos e satisfazer as
suas necessidades: uma criana, um objeto frgil, desorientado, cansado, inexperiente, desgostoso, desviado, humilhado, sozinho, recusado, doente, mentalmente
confuso. Assistir um objeto em perigo, alimentar, ajudar, sustentar, consolar, proteger, confortar, assumir o cuidado, curar.
AUTONOMIA: Libertar-se, tirar de si as constries, evitar a recluso. Resistir
coero e restrio. Evitar ou abandonar atividades impostas por autoridades
dominantes. Ser independente e livre de agir segundo os prprios impulsos. No
334

ser obrigado por nenhum vnculo, por nenhuma condio, por nenhuma responsabilidade. Desafiar as convenes.
MUDANA: (novidade). Mudar, modificar as circunstncias, o ambiente, as associaes, as atividades. Evitar a rotina ou a repetio.
[+] CONHECIMENTO: (curiosidade). Conhecer, satisfazer a curiosidade: explorar, adquirir informaes e conhecimentos.
[*] DEPENDNCIA AFETIVA: Satisfazer as prprias necessidades graas
ajuda afetuosa de um objeto aliado. Ser cuidado, apoiado, rodeado, protegido,
amado, consolado, guiado, favorecido, perdoado. Permanecer ligado a um protetor. Ter sempre um apoio (relao unidirecional).
[+] DOMINAO: Controlar o ambiente humano de algum. Influenciar ou dirigir o comportamento alheio atravs de sugestes, seduo, persuaso ou ordens.
Dissuadir, impedir ou proibir.
EXCITAO: Ser facilmente comovido, estimulado, excitado, agitado.
[*] EXIBICIONISMO: chamar a ateno. Ser visto ou ouvido. Excitar, admirar,
fascinar, surpreender, ser de impacto, intrigar, divertir ou seduzir um objeto.
[*] EVITAR O PERIGO: Evitar a dor, os danos fsicos, a doena, a morte. Fugir
de uma situao perigosa, tomar medidas de precauo.
[*] EVITAR A INFERIORIDADE E DEFENDER-SE: Evitar a humilhao.
Livrar-se de uma situao desagradvel ou evitar as condies que podem levar
inferioridade, ao desprezo, burla ou indiferena dos outros. Retirar-se da ao
por meio da falncia. Conformidade passiva. Defender-se dos ataques, das crticas, do desprezo. Esconder ou justificar um erro, uma falncia, uma humilhao.
Reivindicar o prprio Eu.
JOGO: Agir para divertir-se, sem outras finalidades. Gozar das brincadeiras e
risadas, procurar relaxar-se na alegria. Participar de jogos, esportes, bailes, festas,
cartas; sonhar com olhos abertos.
335

[*] GRATIFICAO SEXUAL: Criar e desenvolver uma relao ertica. Ter


relaes sexuais.
[+] ORDEM: (organizao). Pr as coisas em ordem, buscar a limpeza, a ordem
exata, a organizao, o equilbrio, a exatido, o comportamento adequado.
[+] REAO: Esforar-se com tenacidade para superar as dificuldades, as experincias frustrantes, as humilhaes ou as situaes desagradveis, opondo-se
tendncia de evit-las ou retraindo-se diante de uma tarefa ou situao que
poderia ter tais resultados.
SUBMISSO: (deferncia). Admirar e apoiar um superior. Estimar, honrar,
louvar, abandonar-se avidamente influncia de um aliado, seguir um exemplo.
Adaptar-se s normas e aos hbitos. Conformidade ativa.
[+] SUCESSO: triunfar em alguma coisa difcil. Dirigir, manipular, organizar
objetos fsicos, seres humanos ou ideias. Faz-lo na maneira mais rpida e independente possvel. Superar os obstculos e alcanar uma posio elevada. Pr-se
em evidncia. Competir com outros e super-los. Aumentar a autoestima com o
uso dos prprios talentos.
[*] HUMILHAO: (confiana em si mesmo). Submeter-se passivamente a
uma fora externa. Aceitar as injrias, o desprezo, as crticas, os castigos. Renderse. Resignar-se ao prprio destino. Admitir a inferioridade, os erros, a derrota, o
trabalho mal feito, confessar-se e expiar. Desprezar, diminuir, mutilar o prprio
Eu. Buscar a dor, a doena, a desgraa e alegrar-se com isso.

336

O acompanhamento pessoal na proposta


educativo-pastoral salesiana

Miguel Angel Garca Morcuende, sdb


Escalar uma montanha desconhecida sem guia
um risco que nos pode custar a vida
Thomas Merton


A Igreja definiu em numerosos documentos a natureza, as finalidades e
as caractersticas da pastoral juvenil; ao mesmo tempo, conseguiu inseri-la nos
processos de evangelizao de todos os tempos. Nesta linha, podemos dizer que
a proposta educativo-pastoral salesiana tambm foi, e ainda , a realizao dessa
inteno evangelizadora. As pginas que seguem objetivam ser uma janela aberta
atravs da qual possamos observar os caminhos percorridos por muitos agentes
de pastoral que oferecem esta proposta aos jovens de hoje.

Sendo assim, esta reflexo est estruturada ao redor de uma srie de questes. A primeira responde pergunta: Por que o acompanhamento pessoal na
Pastoral Juvenil Salesiana importante? A segunda refere-se s pessoas envolvidas: quais jovens, qual o perfil do acompanhante e em quais condies? A
terceira ainda mais prtica: quais os contedos ou reas que deveriam ser cuidadas no acompanhamento dos jovens segundo a proposta educativo-pastoral
salesiana?

1. A F ALCANA A MATURIDADE ESPIRITUAL NO


ACOMPANHAMENTO
1.1. Uma nova gramtica da f

Com o esprito de alegria que brota do Evangelho, o papa Francisco oferece na Evangelii Gaudium diversos meios para orientar a evangelizao no mundo
moderno. Sob a sua guia, ns cristos nos encontramos num momento privile337

giado para compreender e aprofundar o contedo da f num contexto cultural em


mudana. O Papa convida a recuperar o frescor original do Evangelho, encontrando novos caminhos e modos criativos, a no encerrar Jesus nos nossos
esquemas tediosos. E convida-nos a uma converso pastoral e missionria,
que no deixe as coisas como esto, uma reforma das estruturas eclesiais para
que todas elas se tornem mais missionrias (Evangelii Gaudium).

A f no muda em seu contedo essencial; mudam as pessoas e o contexto
em que a experincia de f deve ser testemunhada e vivida. De fato, no fcil
distinguir claramente em nossos dias o primeiro anncio do Evangelho da nova
evangelizao de quem j batizado. A paisagem religiosa mudou radicalmente
tambm nos pases onde a Igreja est presente desde tempos antigos.1

Nesta situao, precisamos de uma pastoral juvenil essencial e propositiva, que apresente uma nova gramtica da f para levar os jovens ao corao
do Evangelho, reescrever com eles a Boa-Nova, ativar verdadeiros processos de
converso e personalizao. Precisamos aprender a narrar a nossa f de modo que
possa satisfazer os modelos culturais prprios dos jovens de hoje.2

Como famlia religiosa na Igreja, o nosso interesse colocar a evangelizao direta dos jovens no centro da nossa prtica pastoral e, portanto, entre
as nossas prioridades mais urgentes. Como salesianos, convidemos os jovens a
encontrar no Evangelho a verdadeira resposta para os seus anseios mais profundos. Ns cremos que a a alegria do Evangelho enche o corao e a vida inteira
daqueles que se encontram com Jesus. Inicia assim a exortao apostlica citada
acima. E o fazemos num cenrio histrico e eclesial complexo e em contnua
transformao.

A situao atual interpela-nos, provoca reaes diversas entre os mesmos
agentes de pastoral, altera os nossos projetos. Se quisermos iniciar o aprofundamento da experincia do Deus de Jesus de Nazar com as jovens geraes, precisamos ser evangelizadores com outra mentalidade, com estratgias evangelizadoras diversas, dispostos a um estilo de vida que converta os jovens em referentes
alternativos e de contraste no mundo dos seus coetneos e na sociedade em geral.
Precisamos de opes pedaggicas e metodolgicas para colocar a evangelizao
em marcha e suscitar um modo renovado de pensar a f, de exprimi-la e viv-la.
Cf. DICASTRIO PARA A PASTORAL JUVENIL, A Pastoral Juvenil Salesiana. Quadro Referencial, SDB, Roma 20133, 159.
2
Cf. DICASTRIO PARA A PASTORAL JUVENIL, A Pastoral Juvenil Salesiana, cit., cap. I:
Habitar a vida e a cultura dos jovens de hoje.
1

338

A preciosa e significativa encclica de 1987, Evangelii Nuntiandi, recordava-nos


anos atrs:
Trata-se [...] de chegar a atingir e como que a modificar pela fora do Evangelho os critrios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as
linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida.3


Por opes pedaggicas, entendemos principalmente as atitudes e as estratgias s quais preciso dar prioridade na evangelizao dos jovens; por opes
metodolgicas, entendemos, porm, os mtodos e os instrumentos que adotamos.
Uma dessas opes pedaggico-pastorais fundamentais o acompanhamento espiritual pessoal: uma relao de ajuda temporria (no permanente) e instrumental (um meio ordinrio na vida espiritual), que tem quatro finalidades: conhecerse, aceitar-se, transformar-se humanamente e propor-se os valores cristos a fim
de viver configurado a Cristo.

Dizemos espiritual porque a espiritualidade a maneira de viver de uma
pessoa impulsionada pela interioridade. A sua busca de autenticidade para consigo mesma, com os outros e com Deus. A espiritualidade comporta ir fundo parte
mais verdadeira de ns mesmos. a aventura de uma vida inteira, de um trabalho
interior, de uma peregrinao,4 que, em alguns momentos da vida, preciso fazerse acompanhar.

Por isso, palpvel uma evidente convico e uma convergncia surpreendente na Igreja: a vida espiritual e a pastoral veem-se a enfrentar a necessidade
de um salto de qualidade: recuperar o dilogo pastoral na forma de acompanhamento espiritual pessoal. Como a gua para os peixes no rio um instrumento
fundamental, tambm a pastoral precisa do acompanhamento pessoal da vida
crist: o acompanhamento a condio possvel para reler a prpria vida luz
do Evangelho. Quando pastoral e acompanhamento se excluem reciprocamente,
deteriora-se a evangelizao.

Pensar frequentemente nos jovens e falar com eles estimula-nos a compreend-los melhor. Por isso, acreditamos que a aproximao otimista e sria da
3
PAOLO VI, Encclica Evangelii Nuntiandi, Stampa Vaticana, Roma 1975, n 19. Essa encclica
significou, sem dvida, um grande progresso no sentido da evangelizao. De um conceito tradicional em que se tinha privilegiado o momento do anncio verbal da Boa Nova, passa-se a um conceito
mais complexo de evangelizao que inclui ao menos trs momentos: anncio, testemunho e prxis.
4
Cf. R. BERGERON et al., Itinrances spirituelles, Mdiaspaul, Montreal 2003.

339

realidade juvenil deve passar atravs da redescoberta das enormes possibilidades


do acompanhamento. Elencamos algumas pistas ou sugestes que suscitem a reflexo e facilitem a orientao desta nossa interveno.
1.2. Janelas que abrem horizontes: o acompanhamento pastoral

Ao longo do tempo, a Pastoral Juvenil Salesiana realizou de vrias maneiras o acompanhamento dos jovens. Embora essas modalidades tenham mudado
segundo as diversas sensibilidades e pocas, possvel agrup-las em trs expresses: acompanhamento atravs do ambiente, acompanhamento atravs dos
grupos e acompanhamento pessoal.5 Estas diversas modalidades constituem uma
mediao formativa e coexistem em todas as nossas obras apostlicas. Sem qualquer dvida, e alm das formas, reafirma-se em todas elas a presena prxima e
empenhada entre os adolescentes e jovens. Estas trs experincias formativas so
como trs crculos entrelaados que ocupam parte do mesmo espao. A ordem
em que se manifestam nem sempre a mesma, e depende em grande parte do
contexto e das circunstncias. Uma experincia pode ocupar mais espao do que
outras, durante uma fase concreta da vida, mas para que seja realmente frutuosa
toda experincia deve ser objeto de dilogo com as outras reas.

Constatamos tambm diversos nveis de acompanhamento na vida pastoral
cotidiana, e todos eles esto sob este grande guarda-chuva que chamamos de
acompanhamento pastoral, expresso que tem muitas conotaes e abre perspectivas de grande oportunidade pastoral:

a) Inicialmente, a nossa praxe salesiana vive o acompanhamento informal em encontros ocasionais, gratuitos. So dilogos que acontecem
sem serem programados, nos quais ningum espera vencer ou perder.
So os momentos especiais da assistncia salesiana. O acompanhamento acontece no interior de algumas relaes de reciprocidade instauradas num lapso de tempo breve e se do durante a vida cotidiana.
A conversao uma estratgia pastoral. s vezes, um dilogo aparentemente irrelevante pode ser mais precioso do que mil lies, porque o
fruto do primeiro no se esgota ao final da conversao, mas depois de
certo tempo.
5

Cf. DICASTRIO PARA A PASTORAL JUVENIL, A Pastoral Juvenil Salesiana, cit., 114-117.

340

b) Em seguida, temos o acompanhamento de problemas pessoais ocasionais, que se referem a muitos temas: maturidade humana, crise pontual
nos estudos, relaes familiares, amizades ou relaes de casal, dificuldades na experincia de f, incompreenses e sentimentos de culpa
etc. Em alguns casos, vemo-nos diante de situaes dolorosas que se
convertem em feridas e necessrio orientar com urgncia. Em outras
circunstncias, vemo-nos diante de pessoas que devem fazer opes
corajosas por causa de algum dilema moral ou de empenho concreto em
nome dos prprios valores.
c) O terceiro nvel refere-se ao acompanhamento de experincias profundas, normalmente vivido em situaes muito especiais. Experincias
que influenciam as nossas conversaes e os nossos sentimentos, persistindo em nossa memria. s vezes, experincias como a doena, as
feridas sofridas ou a dor, se no so enfrentadas (acompanhadas), no
tm cura. Estamos cientes do fato de que Deus nos espera em nossas dvidas, em nossas provas, nos eventos que nos perturbam. Acompanhar
algumas circunstncias pessoais faz com que brotem em nossa relao
palavras e gestos capazes de restaurar e dar fora e coragem para ir
adiante.
d) Outro nvel acompanhar contextos de grupo, por exemplo: mbitos
to ricos como so os casais jovens, as famlias, os grupos de formao
etc. O acompanhamento pastoral desenvolve-se num ambiente comunitrio, onde as pessoas mantm relaes de proximidade entre si.
e) Por ltimo, mencionamos o acompanhamento que tem presente a complexidade de toda a pessoa, que vai, portanto, alm dos problemas e das
situaes contingentes. Referimo-nos ao acompanhamento de temas
existenciais dos jovens: a histria pessoal com seus traumas e suas feridas, o desenvolvimento moral e espiritual, o amadurecimento e a transformao pessoal, o captulo da afetividade/sexualidade e das relaes
interpessoais, o empenho no prprio trabalho e na vocao, a orao de
quem busca Deus em dilogo com Jesus etc. Neste dilogo pastoral, os
nossos jovens no se abrem caso no encontrem uma pessoa que lhes
esteja prxima, ao seu lado, e um ambiente que facilite a intimidade.


Todas estas experincias so acompanhamentos formativos; entretanto, o
acompanhamento espiritual pessoal, no interior deste ltimo nvel, exige um m341

todo, um itinerrio pedaggico-espiritual que tenha Jesus, em ltima instncia,


como referncia, como modo de ver e interpretar a realidade. O acompanhamento
espiritual pessoal tem um lugar privilegiado na Pastoral Juvenil Salesiana. Nenhuma experincia, curso ou grupo pode ocupar o lugar deste encontro entre pessoa e pessoa. Trata-se de um espao nico em que possvel evidenciar e seguir
o que o Esprito realiza no jovem,6 e acompanh-lo na leitura da sua vida pessoal
como histria de salvao, que vai se compondo aos poucos.7
1.3. Um itinerrio espiritual com proposta pedaggica

Tendo por base as consideraes anteriores, o acompanhamento espiritual
pessoal a arte das artes8 e a cincia das cincias, guia do homem, o ser mais
original.9 Ele leva o jovem a uma experincia que conserva e integra tudo o que
ele : histria pessoal, qualidades, defeitos, projetos, limites, sonhos, temores e
buscas. Tudo influenciado e empenhado neste processo, porque a pessoa por
inteiro a ser chamada por Deus e a pessoa por inteiro a escolher a sequela de Jesus. Decisivamente, o processo de acompanhamento procura ajudar, desde a profundidade da pessoa, a reconhecer, acolher e responder adequadamente ao ritmo
de Deus, de maneira que a experincia seja saneadora e integradora. A acolhida
consciente da totalidade da pessoa, compreendido o seu limite, distingue-se daquilo que a psicologia humanista define como aceitao incondicional. A principal perspectiva suscitar vida, no s a vida crist incluindo a vida espiritual,
mas a vida em todas as suas dimenses: a vida de f no pode ser desvinculada
das esferas emotiva e biogrfica e das experincias pessoais.

O modelo pedaggico e espiritual em que se baseia e orienta o acompanhamento espiritual deve conter ao menos dois componentes correlacionados: a
personalizao e o discernimento evanglico.
6
Cf. G. GATTI, La legge dello Spirito che d la vita, in Accompagnare i giovani nello Spirito, J.
M. Garca (ed.), LAS, Roma 1998, 127-140.
7
W. BARRY e W. CONNOLY definem o acompanhamento pessoal como a ajuda que um cristo
d a outro com a finalidade de torn-lo sensvel e atento a Deus que lhe fala pessoalmente; ajuda a
disp-lo a uma resposta para que possa chegar a ser capaz de crescer na intimidade com Ele e assumir as consequncias desta relao. Este tipo de direo espiritual tem como centro a experincia,
ou melhor, as experincias vividas com Deus (W. A. BARRY, W. J. CONNOLY, Pratica della
direzione spirituale, Edizioni O.R., Milo 1990, 30).
8
S. GREGORIO MAGNO, Regulae pastorales, Liber I, 1, 3: PL 77, 14; cf. JOO PAULO II,
Carta aos sacerdotes por ocasio da quinta-feira santa, Roma 1979.
9
S. GREGORIO NAZIANZENO, Apologetica, II, XVI: PG 35, 426 B.

342


a) Quanto ao primeiro, devemos observar, antes de tudo, que o crescimento pessoal organizado ao redor do sujeito com Deus. O acompanhante no procura atrair o outro para o seu terreno, seduzindo-o e dominando-o. Refere-se mais
a si mesmo, trata-se de aprender a viver, no a partir do exterior, mas a partir de
dentro, descobrindo a fidelidade verdade profunda do prprio ser: viver em obedincia obra do Esprito Santo, segundo a efetiva transformao do prprio eu
no ritmo de Deus e no discernimento de seus caminhos.10 A pessoa no alguma
coisa j feita, mas a conquistar, a descobrir no processo de transformao pessoal.
No acompanhamento, oferecido um itinerrio que comea com a realidade concreta da pessoa, com o elenco dos prprios recursos, do seu momento vital, dando
uma srie de passos para o desenvolvimento completo.

Acompanhamento espiritual um modo diferente de dizer direo espiritual, mas, de fato, hoje, tende-se a preferir aquela expresso, sobretudo na pastoral juvenil, para sublinhar o seu estilo, um estilo de quem se coloca ao lado,
mais do que de quem d ou presume dar uma direo vida do outro. Interessarse pelo mundo dos nossos jovens e caminhar com eles pedido a todo educador.
Torna-se necessria a presena de personagens referenciais como mestres de
vida. Precisamos recuperar o conhecimento real e emptico dos jovens: perceber
a realidade do seu olhar, compreender em funo das suas coordenadas, entender
as suas emoes. Se assimilarmos esta capacidade, o circuito de comunicao
ser mais breve.

b) Junto com a personalizao, preciso o discernimento evanglico.11 O
acompanhamento no fbrica de respostas, mas fonte de questionamentos que
pe em marcha o discernimento. Esta uma realidade de tal densidade teolgica
no caminho de sequela de Jesus que dificilmente pode ser enquadrada de maneira
estrita em realidades como o counseling ou outros tipos de relao de ajuda.12

As rpidas mudanas culturais, o pluralismo dos valores, o quadro das
ofertas no contexto de vida exigem apoios e reforos para viver as dinmicas
Cf. M. CONROY, The discerning heard. Discovering a personal God, Loyola University Press,
Chicago 1993.
11
J. SASTRE, El acompaamiento espiritual, San Pablo, Madri 1994; J. R. URBIETA, Bajo el impulso del Espritu. Acompaar a los jvenes en su crecimiento personal de la fe. SM, Madri 1986;
ID., Acompaamiento de los jvenes: construir la identidad personal, PPC, Madri 1998.
12
G. MAZZOCATO (ed.), Scienze della psiche e libert dello spirito: counseling, relazione di
aiuto e accompagnamento spirituale, Messaggero-Facolt teologica del Triveneto, Pdua 2009.
10

343

do Reino. Hoje, a praxe pastoral tem maior conscincia da autonomia pessoal


nas opes e na grande diversidade de situaes em que se insere a vida crist;
precisamos encontrar uma linha coerente no discernimento, segundo a descoberta
pessoal da vida interior e da pedagogia do despertar progressivo para a f. Como
afirmam os Bispos do Quebec:
Devemos entender tambm que, para muitos jovens, nas condies em que
vivem a f, embora ainda fragmentada e pouco coerente, representa muitas
vezes o mximo possvel da adeso.13


O discernimento um modo de vida e um requisito da vida crist. No
uma tcnica, mas um estado permanente de ateno e de oferta de si. a atitude
permanente de Jesus, de Maria e de muitos outros, que indica abertura completa
e oferta total. Por isso, um dos seus efeitos a questo vocacional.14 Discernir
muito mais do que aplicar leis, muito mais do que fazer clculos: sua finalidade no buscar um lugar, mas amar e servir mais; no se trata de chegar ao
ponto exato, mas de encontrar o nosso lugar adequado em Deus, na medida dos
nossos limites, mas tambm confiando na graa que nos foi dada. Dessa forma,
toda deciso vocacional sempre precedida e alimentada pelo discernimento. Em
outras palavras, h uma significativa circularidade entre a resposta vocacional e o
discernimento acompanhado. Quando se alimentam a participao e o sentido de
pertena a um grupo apostlico, a um carisma na Igreja, tambm se desenvolvem
e se tornam operativas a prpria adeso a Jesus e a sua sequela.

Se a finalidade da evangelizao suscitar o relacionamento do jovem com
o Senhor mediante o dilogo pessoal, profundo e decisivo, a dimenso vocacional deve ser parte integrante do acompanhamento na Pastoral Juvenil Salesiana.
AA.VV., Proponer la fe hoy. De lo heredado a lo propuesto. Sal Terrae, Santander 2005, 173.
Concluindo, importante conhecer a diversidade dos acompanhamentos, plenamente cientes de
que as pessoas que precisam dele no vivem num estado de vida crist determinado quimicamente
puro: Realiza-se, primeiramente, quando algum inicia o itinerrio de vida crist consciente e
profunda; depois, quando se passa experincia espiritual pessoal, mais profunda experincia
de Deus, ou quando se passa busca de orientao para o seu futuro e para fazer uma opo de
vida; enfim, uma situao diferente a da pessoa que, feita a opo de vida, procura manter o ritmo
exigente da sequela de Cristo. Portanto, no quadro do convencionalismo que procura reduzir uma
realidade viva a um esquema, poderamos distinguir o acompanhamento formativo, o acompanhamento de iniciao espiritual e outro de sequela (ou da vida crist adulta) (J. M. RAMBLA, No
anticiparse al Espritu. Variaciones sobre el acompaamiento espiritual, Cristianisme i Justcia,
Barcelona 2010, pp. 4.5).
14
Cf. DICASTRIO PARA A PASTORAL JUVENIL, A Pastoral Juvenil Salesiana, cit., 152-154.
13

344

Nossa misso como agentes de pastoral servir a pessoa no lugar onde ela se
faz encontrar por Deus, o Deus que conhece cada um pelo nome, agindo sobre
cada um de ns de maneira indita e singular. A finalidade dos processos pastorais
consiste em concretizar o prprio lugar no mundo e na Igreja. a ltima fase do
processo de pastoral juvenil, o projeto de vida definitivo.

Hoje, mais do que nunca, necessrio redescobrir a experincia do acompanhamento pessoal espiritual na Pastoral Juvenil Salesiana nestas duas chaves:
personalizao e discernimento.

2. HARMONIZAR OS PROTRAGONISTAS DO ACOMPANHAMENTO



preciso saber tecer e harmonizar na ao concreta do acompanhamento o
primado da ao do Esprito Santo em cada jovem (2.1.), a sua responsabilidade
pessoal (2.2.) e o papel de mediao do acompanhante (2.3.).
2.1. Acompanhantes abertos mais s surpresas do Esprito do que s atividades

Ao longo da histria, a Igreja recorreu prtica pastoral da direo espiritual como meio privilegiado para a personalizao da f e o discernimento
do crente no seu caminho para Deus. Neste exerccio, sempre se insistiu em no
depositar confiana excessiva nas foras, nos meios e nos recursos do acompanhante, mas no verdadeiro guia: o Esprito que organiza, dirige e anima todas as
coisas (cf. Gn 1,2). De fato, precisamos de acompanhantes capazes de perceber
a ao de Deus na vida dos jovens, para ajud-los a reconhecer esta presena e
aprender a viver dela. Sbias so as palavras de S. Joo da Cruz:
Lembrem-se aqueles que orientam almas, e considerem, que o principal agente e guia e movente das almas neste negcio no so eles, mas o Esprito Santo,
que jamais perde de vista o cuidado delas, e que eles so apenas instrumentos
para encaminh-las na perfeio da f e da lei de Deus, segundo o esprito que
Deus vai dando a cada uma. E assim, a sua preocupao no seja dirigida a
adequ-las prpria maneira e condio de ver as coisas, mas a terem o olhar
fixo no caminho e para onde Deus as leva, e se no o sabem fazer, deixem-nas
e no as perturbem.15
15

S. JOO DA CRUZ, Chama vida de amor 3, 46.

345


O Esprito faz crescer a nossa condio de filhos, assim como a nossa identificao espiritual com Cristo, na medida em que colocamos a confiana absoluta
nele, de modo que se tome posse da nossa vida e a transforme. De fato, a vida
crist no parte de ns, nem termina em ns; ela nasce do Mistrio Pascal de
Cristo.

Se quisermos que o Evangelho no permanea mudo, o ministrio do
acompanhamento deve favorecer de modo sempre mais profundo o desabrochar
da nova criatura em Cristo, buscar a prpria transformao em pessoa espiritual
(Rm 8,5), assumir a orientao, a direo do Esprito. De fato, quando algum
se une ao Senhor, forma com ele um s esprito (1Cor 6,17). Todas as formas de
acompanhamento espiritual na Igreja so apenas instrumentos nas mos do Esprito Santo para reproduzir a imagem do seu Filho (Rm 8,29) at que Cristo
se configure em vs (Gl 4,19). A questo que todo crente deveria colocar-se se
a pessoa de Jesus Cristo, de quem se enamorou, converteu-se em seu projeto de
vida.16

sempre aconselhvel uma reflexo atenta para compreender o que acontece em nosso corao quando serve ao Evangelho e, sobretudo, neste ministrio qualificado. Isso significa antes de tudo expropriar-nos do nosso trabalho, fazer uma
autoevangelizao. O companheiro de viagem da nossa ao educativo-pastoral
o Esprito, que se converte no principal responsvel da formao dos crentes
e dos evangelizadores. O acompanhamento salesiano, por outro lado, deve ter
razes espirituais, pois s a experincia espiritual gera fora educativa:17 quanto
mais conhecimento se tem da realidade viva do Esprito do Senhor18 (agindo no
acompanhante e na pessoa acompanhada), tanto mais poderemos falar de uma relao de ajuda espiritual. O Esprito ativo na palavra (1Ts 1,5) e na escuta (At
16,14), alimentando a f e acompanhando o crente especialmente nos momentos
de dificuldade.19

s vezes, no processo de acompanhamento, o ritmo de vida dos jovens,
sem que tomemos conscincia disso, tem pouco a ver com as nossas pretenses
e expectativas evangelizadoras. Cabe-nos semear sem nos deixarmos abater pelo
cansao ou pelo insucesso: outros recolhero os frutos e, em muitos casos, no
AA.VV, Ser cristiano, nmero monogrfico de Concilium, n 340 (abril 2011).
Cf. A. BOZZOLO e R. CARRELLI, Evangelizzazione e Educazione, LAS, Roma 2011, 469.
18
Cf. L. M MENDIZABAL, Direccin espiritual, BAC, Madri 19943, 27.
19
Cf. G. URIBARRI, El corazn de la fe. Breve explicacin del Credo, Sal Terrae, Santander 2013,
100-116.
16
17

346

assistiremos colheita. O acompanhamento um servio apaixonante, interessante que, todavia, no pode ser contabilizado; os frutos nem sempre so recolhidos, ou tanto quanto gostaramos ou precisaramos recolher. Conforta-nos
saber que h sempre uma parte da semente que jamais se perde. o mistrio do
corao de quem acolhe, mas tambm da fora secreta e sempre vital da semente,
capaz de brotar quer se durma quer se vigie, e de crescer bem alm de qualquer
expectativa nossa.
2.2. Entrar numa nova lgica na formao das novas geraes

O universo dos jovens em nossas realidades continentais ou nacionais no
um segmento de populao uniforme, mas uma espcie de arquiplago caracterizado pela diversidade exterior e por um mundo de significados e valores diversos. Para ser honesto com a realidade, hoje muito difcil agrupar os jovens
segundo caractersticas geracionais presumidas. E o vivenciamos em nosso trabalho educativo-pastoral, particularmente na grande dificuldade que experimentamos no acompanhamento de jovens to diferentes entre si.

Apesar disso, podemos afirmar que o mundo dos jovens um mundo pouco evangelizado.20 Alguns deles, sombra da indiferena, no so nem mesmo
postos em discusso pela questo religiosa no contexto de uma opo de vida
pessoal. Muitos deles tiveram poucas possibilidades reais (pessoas e espaos
adequados) para encontrar Jesus Cristo e o seu Evangelho; em outros casos,
conhecem as propostas e as exigncias fundamentais do Evangelho de Jesus
Cristo, mas estas no afundaram razes em seu corao, no questionam suas
vidas nem motivam seus comprometimentos; outros ainda no tiveram ajuda
suficiente para converter-se seriamente a Deus e aderir a um projeto de vida
evanglico acima do prprio itinerrio pessoal. Enfim, alguns entendem a vida
de f relacionada com outras crenas heterogneas, com espiritualidades provenientes dos campos mais variados, com prticas importadas do Extremo Oriente:
uma espcie de Do-it-yourself (faa voc mesmo espiritual).21
20
J. GEVAERT, J., El primer anuncio. Proponer el Evangelio a quien no conoce a Cristo, Sal
Terrae, Santander 2004, 23.
21
Cf. E. ARDVOL PIERA, G. MUNILLA CABRILLANA, Antropologa de la religin: una
aproximacin interdisciplinar a las religiones antiguas y contemporneas, UOC, Barcelona 2003,
434-455.

347


No podemos deixar de falar dos jovens marcados por uma forte sensao
de vazio, de desalento, sem uma finalidade vital (sem vocao, no sentido amplo
do termo). Muitos deles, desorientados e vulnerveis, vivem fundamentalmente sozinhos, sufocados pelo bem-estar (ou pela pobreza). Nenhuma vida jovem
pode ser ignorada, encoberta ou subvalorizada. No importa quanto desordenada
parea, precisa da nossa presena, do nosso apoio, na forma mais adequada. So
justamente estes os que elevam a mo em gesto de splica, e precisam percorrer
o prprio caminho com algum que no sepulte a sua esperana.

Convivemos, na realidade pastoral, com todos os tipos de jovens, provenientes de contextos diversos e com diferentes abordagens culturais que tambm
orientam a forma e o estilo de viver a dimenso religiosa. De qualquer forma,
como guias, somos chamados a formar a identidade pessoal das novas geraes,
assumindo ao mesmo tempo o desejo de Deus que invocam e o mundo que lhes
pertence. Precisamos passar do modelo de identificao ao modelo de experimentao. Alguns decnios atrs, o esquema institucional de acompanhamento
propunha um modelo nico de como o cristo deveria ser: tudo se nivelava com
o que fosse proposto (valores, papis). Havia menos mensagens e estas eram as
mesmas para todos. Hoje, devemos partir dos prprios canais de significado nos
quais o jovem saboreia as coisas a partir de dentro. S depois de ter encontrado
o tesouro, vende tudo para adquiri-lo, mas antes deve encontr-lo em si mesmo.
um fato bem atestado: hoje, sem uma boa razo, os jovens rejeitam renunciar
a elementos importantes da prpria identidade. No esto dispostos a privar-se
de elementos muito vlidos como o seu mundo afetivo, a confiana nas relaes,
a compreenso recproca, a ateno (e o apoio emotivo), a comunicao ntima,
o interesse por aquilo que acontece com os outros etc.22 Queremos dar o gosto
de Jesus Cristo aos jovens, porque acreditamos que este gosto de Cristo tambm
pode dar o gosto de viver. Quando a experincia do Senhor Jesus passa atravs de
suas vidas, eles o percebem e abrem-se sua sequela.

Decorrncia disso que no podemos ter elaboraes estandardizadas.
Qualquer coisa que acontea em suas vidas continua a ser um chamado de Deus
a viver a prpria vocao crist. A formao das novas geraes no pode ser um
Cf. J. L. FUENTES MELERO, Evolucin y funciones de las amistades en la infancia y la adolescencia, in A. M. GONZLEZ CUENCA, M. L. DE LA MORENA, C. BARAJAS, Psicologa
del desarrollo. Teora y prcticas, Aljibe, Mlaga 2006, 303-314; A. FUERTES, J. L. MARTNEZ, A. HERNNDEZ, Relaciones de amistad y competencias en las relaciones con los iguales
en la adolescencia: Revista de Psicologa General y Aplicada 54(3) (2001) 531-546.

22

348

processo linear, uniformizado, uma pastoral tamanho nico. Requer-se ateno


pastoral diferenciada. Embora visualizemos metas claras no horizonte da vida
crist (as do Evangelho), h muitos modos de chegar ao mesmo lugar, oferecendo
muitas portas de ingresso e permitindo muitas sadas.

Assim como acontece com a mudana das estaes do ano, tambm a vida
dos jovens tem nuanas diversas como as estaes; os processos da alma passam atravs de fases muito diferentes. Requer-se, por isso, um acompanhamento
pessoal culturalmente situado, no qual no se temem modalidades formativas
de acompanhamento intensas, sistemticas e pedaggicas. E tambm acompanhantes que ajudem a personalizar a f com coragem e audcia. No encontro
face a face com os jovens, percebemos a urgncia de acompanhar uma mnima
infraestrutura interna espiritual que permita entrever o chamado de Deus, um
determinado trabalho interior para perceber que se habitado pelo mistrio do
amor de Deus. No basta o copia e cola de experincias emocionantes, isto ,
um conjunto de sensaes diversas a cada dia que no deixam marcas significativas. O melhor educador salesiano aquele que acompanha os irmos na leitura
da prpria vida desde o ponto de vista de Deus, e o melhor investimento que
podemos fazer na pastoral.

Isso tudo requer mudanas necessrias, no s no agente evangelizador,
mas tambm no ambiente salesiano. A prtica atual leva-nos por outro caminho,
solicitando especialmente alguns de nossos espaos reais para servir e acompanhar as pessoas. Embora, na tradio salesiana, o grupo e o ambiente j deem
certo nvel de apoio, os jovens precisam de espaos pessoais de abordagem. No
contexto de uma casa salesiana, respiram-se valores, atitudes e costumes, mas
para enraizar e consolidar uma identidade crist necessrio personalizar.

No interior de uma atmosfera relacional aberta, as pessoas conseguem se
mostrar sinceras com mais facilidade, vontade para falar da prpria vida.23 Se
no oferecermos este ambiente personalizado do face a face, o crescimento
pessoal do universo pessoal ser deixado merc de outros quadros de influncia
em que vivem imersos: as redes sociais, o grupo dos semelhantes ou a rua.

Cf. BOSCO, Giovanni Battista, Compagni di viaggio, in Note di Pastorale giovanile 31 (1997)
4, nmero monogrfico.

23

349

2.3. Acompanhantes expostos a novidades imprevisveis


A melhor palavra: o testemunho

Certamente, no podemos dizer que os jovens so pouco sociveis e comunicativos;24 mas seria preciso dizer que eles esto abertos, impetuosamente
abertos em muitas ocasies. Para sintonizar com eles necessrio caminhar ao
lado deles, e percorrer o caminho com eles comporta estar, uma presena que
nos obriga a viver expostos a novidades incertas, escutando o vento que soprar
amanh.

Os jovens precisam ver por perto pessoas de vida alegre, digna de admirao e desejvel, que suscitem interesse, no s ideais abstratos e distantes, mas
referncias vitais. Eles conhecem muito bem o mundo desordenado dos adultos; como um radar, eles captam as nossas incoerncias.25 Entretanto, so mais
compreensivos do que cremos. Cabe-nos sair a descoberto e expor-nos com a
confiana que nos dada pelo nosso desejo de viver ao lado deles, sabendo que
haver ensaios e erros, sucessos e falncias. s vezes, as situaes vividas pelos
jovens nos superam, interrogam e obrigam a ver as coisas de modo novo. Somos
chamados a viver com eles as virtudes teologais:26 antes de tudo, am-los, oferecendo-lhes a nossa confiana e esperando neles, compartilhando com eles a f.

Ns educadores no estamos na linha de frente porque, s vezes, no fcil
aceitar que o discurso melhor e menos fcil de rebater sempre o testemunho, a
metodologia do contgio. Transmitir, com coerncia e proximidade, um estilo de
vida libertador, uma mensagem no momento presente para fazer-nos entender,
aqui e agora. Quando visitamos um museu ou uma cidade histrica, sabemos
muito bem que o nosso interesse na visita depende em grande parte da paixo do
guia, daquilo que ele nos faz descobrir. O acompanhamento passa sempre atravs
de pessoas que, com alegria, do testemunho da prpria f; jamais passa atravs
das estruturas. A tarefa de acompanhar atravs da prpria vida bela e fecunda,
ou, com outras palavras, ser pessoas-sinais do Reino.
Os SMS e o MSN foram pensados para melhorar a comunicao no mundo dos negcios, no
para o uso dos jovens. Apesar disso, foram adotados por estes, com grande sucesso, fruto do desejo
de comunicao e contato. O celular permite-lhes estar permanentemente conectados, constantemente disponveis. Acrescente-se ainda que o celular no mais apenas um instrumento de comunicao, mas tambm se converteu em acessrio de moda.
25
Cf. P.J. GMEZ SERRANO, Nos sobran los motivos. Una invitacin al cristianismo, PPC,
Madri 2011.
26
Cf. J-M. PETITCLERC, Cmo hablar de Dios a los jvenes, CCS, Madri 2005.
24

350


A este propsito, pode-se recordar que todas as pesquisas sobre os valores
dos jovens mostram o primado absoluto do mbito relacional. Torna-se urgente,
portanto, a comunicao verbal e o intercmbio de afeto, sobretudo num contexto sociocultural em que o jogo das emoes tornou-se a mercadoria preferida das
sries de TV e da literatura de consumo de massa. Os contnuos encontros afetuosos e cheios de emoes, prolongados no tempo e no espao, no so necessrios; imprescindveis so os encontros breves e cotidianos, os momentos da vida
cotidiana em que o envolvimento pessoal maior. So necessrios momentos
fortes de escuta, de grandes perguntas e de sonhos honestos,27 e no circuitos
fechados nos quais s o adulto fala e o jovem escuta.

O olhar de Dom Bosco era impregnado de paternidade, cativava as pessoas
e transmitia empatia, aceitao, respeito e coerncia; Dom Bosco exprimia-se
com atenes, gestos, palavras, sorrisos. Ainda hoje precisamos de relaes de
cotidianidade e familiaridade salesiana, devemos evitar a pressa, escutar realmente, levar a srio os seus questionamentos. No basta apenas escutar; preciso
escutar com ateno. A vida do acompanhante no pode ser a de um administrador conturbado, que vive sob a presso do tempo e das ocupaes. Todo jovem
digno da nossa ateno e do nosso interesse. preciso escutar os seus apelos,
porque no somos capazes de dar respostas antes de escutar as perguntas. No
podemos ouvir apenas as perguntas para as quais temos respostas.28 Eles no
aceitam nenhuma resposta que no possam enfrentar. O que eles nos pedem no
de importncia irrelevante: sermos seus companheiros de viagem. Na literatura
salesiana, servimo-nos muitas vezes do texto de Emas (Lc 24,13-35), para apresentar um modelo de processo interior espiritual, de orientao vocacional e de
aprendizagem para saber orientar.

A partir das abordagens anteriores, deduz-se que o acompanhante no estabelece a direo espiritual, mas simplesmente ajuda a discernir. Por isso, h no
acompanhamento muitos momentos de cruz, de sofrimento, de impotncia, mas
tambm de luz, de alegria, em ltima anlise, muitos momentos de Mistrio Pascal. O acompanhamento no certamente chegar e vencer.

Cf. S. DALOZ PARKS, Big questions, worthy dreams: mentoring young adults in their search for
meaning, purpose, and faith. Jossey-Bass Publications, San Francisco 2000.
28
Mons. L.-M. BILLE, Confrence douverture, in Des temps nouveaux pour lEvangile, Assemble plnirer, Lourdes 2000, Bayard-Centurion/Cerf/Heurs, Paris 2011, 21.
27

351

Propor alguma coisa sem precedentes: acompanhar um apostolado



O acompanhamento pessoal da vida crist dos nossos jovens comporta um
reforo significativo, precisa de adultos maduros e crentes. Ajudar a personalizar
a f e coloc-la escuta e busca do projeto nico que Deus tem sobre a vida de
cada um uma arte e uma cincia. Segundo F. Sabater em sua obra Valore di
educare, o adulto-acompanhante no mbito educativo como o muro e a hera;
sem o primeiro, a segunda permanece no cho.

Podemos aprender a acompanhar lendo e fazendo cursos, mas jamais seremos to instrudos quanto a partir da experincia: o caminho espiritual um
caminho vivo que no podemos preencher com livros.29 Na pastoral, precisamos
de guias que tenham atravessado pessoalmente os caminhos complexos da vida e
da f. Por isso, todo guia deveria questionar-se adequadamente, antes de iniciar o
seu papel de conselheiro: sou capaz de responder pergunta de algo que possuo
em plenitude, a busca sincera de Deus? Estou disposto a dar generosamente aquilo que tenho vivido, oferec-lo, p-lo disposio dos jovens? Para interpelar
Jesus Cristo, no h necessidade primeiramente de desej-lo, busc-lo, encontr
-lo na minha intimidade?

O agente de pastoral deve compreender que acompanhar um ministrio
de misericrdia e requer uma grande flexibilidade intelectual, emocional e moral.
Antes de tudo, porm, preciso dispor-se a enfrentar o prprio pecado e perceber
que Deus agiu em sua vida; reconhecer-se como filho prdigo (Lucas 15,11-32)
que retorna casa do Pai sem o peso das riquezas. Precisamos perceber que somos realmente mais infiis do que sempre pensamos ser e que Deus mais fiel de
quanto jamais merecemos.

Como dizamos anteriormente, o acompanhamento um ato permanente
de f no Esprito Santo que age no corao dos dois: do acompanhante e do acompanhado. Aquele, pois, que se entrega a um acompanhante, entrega-se tambm
sua orao. O acompanhante reza habitualmente, permanece diante de Deus
em silncio gratuito, contemplando tudo com os Seus olhos, sem voluntarismos,
e compartilhando com Ele as intempries, as noites e as fadigas dos jovens que
acompanha. Pois bem, o silncio da orao no pertence apenas ordem do que
importante, mas do que essencial: precisamos rever em ns a ligao profunda
L. M GARCA DOMNGUEZ, El libro del discpulo. El acompaamiento espiritual, Sal
Terrae/Mensajero, Cantabria/Bilbao 2011, 14.
29

352

existente, na substncia e na forma, entre a nossa vida e a nossa orao, e como


a orao alimenta uma relao autenticamente pessoal com Deus e serve para
manter acesa a chama do amor. Quem acompanha a vida de f s com tcnicas de
apoio emotivo, sem a orao, permanece apenas no mbito da competncia psicolgica, relacional e comunicativa. Entretanto, para acompanhar, exige-se mais
do que nunca uma vida interior profunda.30

Ento, como pessoas de orao, podemos dar-lhes o nosso espao e o nosso tempo, propor algo indito, novo: no se trata de uma atividade a mais, uma
oferta de segunda classe, mas de um servio pastoral, no de um acrscimo. A experincia pastoral salesiana diz-nos que, quando abrimos a janela da nossa vida,
muitas pessoas pulam para dentro, e pagamos o preo de grandes cansaos,
enchemo-nos de preocupaes..., mas por ela, tambm entra mais oxignio.

Neste sentido, acompanhar um servio que toda Comunidade Educativo-Pastoral deveria oferecer. Para que um salesiano ou leigo possa oferecer este
ministrio pastoral, so necessrias duas condies importantes:
a) No ter a obsesso dos grandes nmeros, mas alegrar-se31 ao saber dos
progressos concretos feitos por indivduos especficos. Nesse sentido,
preciso ver a alma das nossas obras educativo-pastorais. A identidade
das nossas casas no dada pelo fluxo de pessoas que a elas acorrem,
pelo conjunto das atividades, e nem sequer pela qualidade tcnica das
obras ou pelo seu funcionamento, mas pelos porqus, pelas razes,
pelos motivos, pelas finalidades e pelo significado daquilo que fazemos
a cada jovem que entra em nossa casa.

b) Em segundo lugar, no somos capazes de acompanhar s por termos
boa vontade e entusiasmo, mas por nos preocuparmos com a formao
especfica para este apostolado. O acompanhamento tambm tem carter educativo; o aspecto do testemunho tem papel muito importante no
acompanhamento, mas tambm devemos assumir uma intencionalidade
educativa, uma sistematicidade e algumas habilidades pedaggicas que
facilitam a leitura sapiente da histria humana. Guia no se nasce, torna-se: as qualidades naturais podem predispor, mas no preparar.

Cf. J. DAZ BAIZN, El acompaamiento espiritual de los jvenes, Frontera, Vitoria 1999.
K. GUTIERREZ, Alegras, tristezas y anhelos de un agente de pastoral in Misin Joven 332
(septiembre 2004) 15-21.

30
31

353


No basta o senso comum; preciso um olhar perspicaz e atento com
conhecimento adequado das cincias humanas para ir alm das aparncias e do
nvel superficial das motivaes e dos comportamentos. Supe trabalhar os aspectos humanos e espirituais que tornam possvel uma resposta madura e adulta;
e esclarecer as motivaes nas quais se apoia a opo crist. Ajudar uma pessoa a
conhecer-se em profundidade, aceitar-se com serenidade, corrigir-se e amadurecer a partir das razes reais, no das iluses, e do corao exige uma pedagogia.

Na verdade, no dispomos de uma formao para o acompanhamento
alinhada situao atual da realidade juvenil. Sobre o acompanhamento, escreveu-se muito e bem; h pouco ainda a dizer... e muito a fazer. Faltam propostas
formativas relativas ao acompanhamento, e as que existem so pouco seguidas.
Com os tempos que correm, no investimos o tempo necessrio formao adequada. Estamos muito ocupados com o imediato, com as atividades que realizamos diariamente com os jovens. Precisamos motivar-nos para a necessidade e
a importncia da motivao assim como precisamos oferecer tempos, espaos e
pessoas adequadas para realizar esta formao.

A estas motivaes acrescenta-se outra, que explicaremos em seguida.
Crer no cuidado com a pessoa que acompanha

O cuidado das pessoas como ministrio um grande desafio em nossas instituies de Igreja. s vezes, tem-se a impresso de que estamos to preocupados
com a sobrevivncia dos grupos, com o nmero das vocaes, com as obras e os
servios, com as atividades apostlicas etc., que nos esquecemos dos outros objetivos ou os colocamos margem. Ns, que somos chamados a acompanhar processos de crescimento humano e de f, corremos o rico de no cuidarmos de ns
mesmos. H uma espcie de mecanismo protetor ou escudo que no nos permite
integrar a espiritualidade crist com o amor por ns mesmos, o cuidado da nossa
pessoa, a responsabilidade pessoal para a satisfao de nossas necessidades fsicas, psicolgicas e espirituais. A espiritualidade no integrada nem do ponto de
vista terico, nem do ponto de vista prtico, nem mesmo na convergncia profunda entre maturidade humana e maturidade crist, que no negar a originalidade
do dinamismo cristo, nem psicanalizar a vida espiritual. Os dinamismos que
ainda permanecem no subsolo da nossa concepo de vida espiritual pregam-nos
algumas peas.
354


Um dos aspectos encontrados em muitos agentes de pastoral a enorme
carncia no cuidado pessoal e tambm, em muitos casos, no cuidado recproco
dos membros da famlia ou da comunidade ou do grupo cristo, como se o cuidado tivesse a ver sempre com os de fora, com as pessoas s quais se deve ouvir
e servir em vista da misso.

No se conjuga o verbo cuidar na forma reflexiva, cuidar-se; o objeto
do cuidado so sempre os outros, com o perigo real de perder o pulso da prpria
vida pessoal, daquilo que se refere a ns mesmos, daquilo que faz parte do nosso
tabernculo interior mais ntimo. responsabilidade de cada presena educativo-pastoral a reviso e a adequao das estruturas institucionais para incluir este
objetivo, em relao aos evangelizadores, com o mesmo zelo dos objetivos relativos misso. Os jovens procuram-nos com seus problemas, s vezes, desencorajadores, de difcil soluo. Isso pode criar coraes emocionalmente cansados,32
educadores-pastores exaustos, que caem na armadilha de autoimpor excessivos
questionamentos. O excesso de trabalho pastoral sufoca, s vezes, a msica e a
poesia da nossa misso evangelizadora, que se torna rida.
Visitar, mas no permanecer l dentro

A pessoa acompanhada tem a prpria dignidade a ser absolutamente respeitada enquanto tal. Como consequncia, todo trabalho voltado a aconselhar,
sugerir, estimular o modo de ser e de viver deve ser conduzido na mxima liberdade. Nossos jovens no querem manipulaes; querem companheiros de viagem
que queiram visitar a sua casa, sem a inteno de permanecerem l dentro.

O acompanhamento espiritual tem a ver com o que h de mais ntimo, pessoal e inviolvel na pessoa, e no nos exime do exerccio sadio da liberdade da
pessoa acompanhada.33 -nos permitido entrar com absoluta modstia, com a huCf. M. GRUHL, El secreto de las personas fuertes: la resiliencia, Sal Terrae, Santander 2012; T.
HERSHEY, El poder de la pausa. Cmo ser ms haciendo menos, Sal Terrae, Santander 2010; G.
URBARRI, El mensajero. Perfiles del evangelizador. Univ. Pont. Comillas / Descle de Brouwer,
Madri 2006.
33
O anncio um itinerrio pessoal que exige acompanhamento, a arte da proximidade, do saber
suscitar perguntas e estimular a busca (cf. Papa FRANCISCO, Exortao apostlica Evangelii
Gaudium, Stampa Vaticana, Roma 2013, nn. 169-173). So necessrios pais e mes na f, pessoas
confiveis e autorizadas, mas tambm respeitosas, que no exeram ingerncia espiritual, porque
sabem que o outro uma terra sagrada diante do qual tirar as sandlias (cf. Ex 3,5). O acompanhamento pode tornar possvel a experincia de f, mas no deve for-la ou determin-la; no e
no pode ser conformar-se com um esquema estandardizado, nica para cada um.
32

355

mildade de quem sabe que convidado a participar, e apenas como acompanhante, no caminho percorrido pela pessoa acompanhada. Como vimos anteriormente,
o Esprito o princpio de vida e guia nico de todo cristo. ele quem indica o
caminho, quem orienta e d fora. Ningum pode substitu-lo. Somos testemunhas da histria de salvao atravs de uma histria pessoal. Por isso, precisamos
cultivar em nossa ao pastoral uma predisposio permanente prudncia e
pacincia, com oportunos silncios, para no cair em trs tentaes: o rigorismo
desanimador, a autocomplacncia imatura ou, ainda, o paternalismo acentuado
que, na relao com o outro, anseia a reproduo do seu projeto pessoal. Acompanhar no significa ser dono, mas colaborar no interior de um mistrio, o mistrio
da vida da pessoa acompanhada: No dominadores, mas colaboradores da vossa
alegria (2Cor 1,24).

Como consequncia, o acompanhante deve tornar-se prescindvel; de passagem pela vida do jovem, a sua misso guiar a pessoa acompanhada para uma
autonomia que lhe permita caminhar por conta prpria. preciso saber encerrar
o processo de acompanhamento e, ao mesmo tempo, agradecer. A ltima tarefa
como acompanhantes nem sempre fcil: deixar nas mos do Senhor o trabalho
ao qual tnhamos entregado o corao.

3. ITINERRIOS PLURAIS E DIFERENCIADOS PARA O


ACOMPANHAMENTO NA PASTORAL JUVENIL SALESIANA

Os jovens provm de situaes muito distintas de vida e de f, com motivaes diferentes. No basta oferecer processos formativos adequados a cada idade;
preciso oferecer processos diferenciados personalizados, itinerrios concretos e
adequados,34 projetos pastorais coerentes, inteligentes e audaciosos para diferenciar a ateno pessoal, para buscar novos itinerrios formativos.

De fato, todo encontro de acompanhamento oferece material abundante e
contedos diversificados; so variados os campos e os aspectos vitais nos quais
se vai realizando o processo de amadurecimento e crescimento pessoal. A histria
de muitos movimentos eclesiais, suscitados na Igreja pelo Esprito, d razo da
importncia de uma ao pastoral especial para a transmisso dos mesmos aspecCf. DICASTRIO PARA A PASTORAL JUVENIL, A Pastoral Juvenil Salesiana, cit., 99103.285.

34

356

tos carismticos que caracterizam o nico Evangelho de Cristo. Por isso, nesta
sesso, centraremos a nossa ateno em quatro reas prioritrias e significativas
da Pastoral Juvenil Salesiana.

Com efeito, o acompanhamento pessoal salesiano no deve ser isolado de
todo o quadro de experincias que configuram a Espiritualidade Juvenil Salesiana,35 um caminho que leva o jovem plenitude da vida, ou seja, a amadurecer um
estilo de existncia que reproduza o de Jesus de Nazar, como foi vivido por Dom
Bosco. So muitas e diversas as prioridades educativo-pastorais, com que podemos nos aproximar para observar o crescimento na vida de f das novas geraes.
Aqui, contudo, procuraremos traar apenas alguns processos pastorais que preciso acompanhar de perto, muitos j experimentados, apoiados habitualmente
em nossas realidades salesianas. So um mapa de tentativas36 possveis a todos,
em diversos nveis de profundidade.
3.1. Acompanhar para descobrir o complexo mundo interior

No dilogo pastoral do acompanhamento, precisamos trabalhar para suscitar nos jovens experincias que configurem personalidades crists: iniciativas,
atividades, encontros e processos que toquem a experincia interior, que suscitem questionamentos profundos. A nossa proposta como acompanhantes deve ser
lcida e exigente, inteligente e atraente, sem abandonar os nossos objetivos, de
modo que possa penetrar em profundidade no corao dos jovens. indispensvel estar cientes e evidenciar o valor fundamental das experincias crists de
interioridade, experincias libertadoras pessoais que os ajudem a tirar gua do
prprio poo. Somos, para os jovens, presenas que, sem violentar a sua solido, preenchem-na e, sem distra-los de si mesmos, oferecem-lhes a ocasio de
escutar o chamado do prprio ser.37 Para essa tarefa, indicamos trs itinerrios:

a) Primeiramente, aplicar-se para que os olhos da f se abram contemplao da beleza e capacidade de admirar: saber apreciar a beleza das coisas,
do dia a dia, interessar-se pelos aspectos da vida; uma questo de curiosidade
atenta, de interesse por aquilo que acontece no mundo, pelos seus temas fascinanIbid., cap. IV: O Sistema Preventivo: uma experincia espiritual e educativa.
R. TONELLI, Tambin la pastoral procede por proyectos y programaciones? in Misin Joven
353 (maio 2006).
37
M. LGAUT, El hombre en busca de su humanidad, Verbo Divino, Estella 1973, 292.
35
36

357

tes. Esta perspectiva gera, ao mesmo tempo, um sentimento de gratido: saber


agradecer por aquilo que dado como dom, sem qualquer merecimento, algo que
no se pode exigir e nem devido. A prpria vida um dom que nos dado na
origem e que em seu final deveremos restituir alegremente a Quem no-la deu.38

b) Em segundo lugar, criar espaos de silncio,39 de interioridade, de pausa. Muitos jovens, rfos de espaos de interiorizao, buscam o silncio para
amadurecer palavras, para equilibrar suas vidas, como encontro com o Eu mais
profundo, com a verdade do outro, com o mistrio de Deus, O Amor maior.
Num ambiente agitado, de frenesi miditico, torna-se essencial, embora no fcil,
descobrir os prprios caminhos de interioridade. A intolerncia ao silncio que se
constata em nossa cultura sintoma claro da pobreza espiritual que a caracteriza,
expresso da incapacidade do ser humano contemporneo de olhar para si mesmo e perguntar-se sobre o que d sentido sua vida.40 Um aspecto interessante,
como mtodo, a insistncia em refletir mais sobre a prpria histria, atravs de
uma verdadeira e prpria antologia, que permite dar forma aos pensamentos e s
intuies e ir mais a fundo na descoberta do seu sentido: a prtica de redigir um
dirio testemunha secreta da histria de amizade com Deus; a autobiografia
espiritual e o projeto de vida pessoal so uma porta para a espiritualidade encarnada, para o crescimento interior; os exerccios espirituais adequados e progressivos ajudam a orientar a vida e dispor-se livremente vontade de Deus.

c) Enfim, privilegiar a entrevista pessoal como opo educativa, to necessria para personalizar processos, curar feridas, ajudar os jovens a ouvirem
a voz do Esprito, a repensarem a prpria vida e as prprias opes. Trata-se de
um encontro de ajuda que supera a rotina. No passatempo nem manter uma
conversa trivial. Certamente, ser preciso cuidar de uma pedagogia integral que
leve em conta os aspectos psicossocial, existencial e espiritual, mas tudo orientado para uma resposta a Deus. Como vimos anteriormente, o crescimento na f de
cada jovem em todos os nossos ambientes uma tarefa que requer a presena e a
ao de pessoas competentes e com sabedoria de esprito.

Os jovens precisam urgentemente de guias que os ajudem a interiorizar os
acontecimentos envolventes, as situaes afetivas que os atingem e perturbam, o
Cf. DICASTRIO PARA A PASTORAL JUVENIL, A Pastoral Juvenil Salesiana, cit., 95, 164.
BENTO XVI recorda na Exortao Apostlica Verbum Domini que nos momentos obscuros Deus
fala no mistrio do seu silncio (cf. n. 21).
40
Cf. F. TORRALBA, El silencio, un reto educativo, PPC, Madri 1999.
38

39

358

sofrimento e a experincia da morte, a dor das perguntas e a necessidade de respostas, tambm de consolao, a orao em que nada se sente; os desejos e as
desiluses do prprio corao, as falncias prprias e alheias etc.41 So como lanas que abrem o corao para novas questes, buscas e anseios. A vida de f dos
nossos jovens tambm se desenvolve, modifica, integra, refora ou enfraquece no
contexto geral de sua vida. A natureza da vocao crist, a novidade do caminho e
os perigos existentes, aconselham um guia. Por isso, muito complicado crescer
na f sem um dilogo direto e regular, e isso no acontece sem um acompanhante.
3.2. Acompanhar para aprender a rezar e celebrar

No a mesma coisa saber que Deus me ama e experimentar pessoalmente o sentimento e o prazer deste amor.42 mais fcil para a pessoa que viveu
a experincia de gratuidade de Deus estar em p e, de maneira muito simples,
cultivar uma atitude orante.

a) A f manifesta-se numa srie de atitudes que revelam uma leitura crente da vida, que conserva sempre o seu sentido diante de Deus, mesmo
sendo necessrio integrar as experincias negativas. De fato, a espiritualidade da sequela de Jesus exige, primeiramente, assumir uma vida
de orao (no s momentos de orao). Isso significa acompanhar a
ateno vigilante de quem sabe que Ele fala de muitas maneiras: na
Escritura e nos sacramentos, mas tambm nos jornais e no irmo pobre,
na comunidade, no segredo do prprio corao... E navegar com uma
leitura diferente (crente) da vida.43

b) Neste sentido, as experincias centradas na leitura orante da Palavra
de Deus so uma prtica muito comum na pastoral. Despertar nos jovens a Palavra ouvida, meditada, transformada em orao vivida em
meio s atividades cotidianas, celebrada na vida litrgica e sacramental,
como um dom de Deus recebido em Jesus mediante o seu Esprito. Uma
Palavra ligada prpria histria, aos processos interiores, aos afetos.
Cf. J. R. URBIETA, Exigencia y ternura, PPC, Madri 2009.
Cf. DICASTRIO PARA A PASTORAL JUVENIL, A Pastoral Juvenil Salesiana, cit., 42-44.
43
Cf. G. ZEVINI, Educare alla preghiera in spirito e verit, in J. M. Garca (ed.), Accompagnare i giovani nello Spirito, LAS, Roma 1998, 141-164.
41
42

359

preciso oferecer os meios para a leitura atenta e frutuosa da Palavra,


excluindo interpretaes apressadas e superficiais: deixar-se guiar e interrogar, identificar-se com os homens e as mulheres que se encontram
no caminho de Jesus Cristo. Com poucas palavras: s a Palavra pode
abrir a porta da f (cf. At 15,27).
c) A celebrao dos sacramentos um espao privilegiado. bem conhecida a importncia dada por Dom Bosco Eucaristia e experincia do
perdo, atravs dos sacramentos: espao recomendado para a educao
f dos jovens, no qual se torna visvel, mediante os sinais, a admirvel
ao de Deus na sua vida e na sua histria.


A Eucaristia, no pensamento e na ao pastoral de Dom Bosco, o Po
para todos, o verdadeiro encontro com Jesus. Dom Bosco encoraja os seus jovens
a cumprimentar Jesus frequentemente, como o amigo que nos convida para
o banquete que elimina a fome (de amizade, de fora interior, de sentido para a
vida). Entretanto, a Eucaristia tambm obriga comunho com todos, a ter um
corao apostlico a servio dos outros. Na prtica pastoral, aproximar-se da Palavra e da Comunho assumir um compromisso vivido no depois, durante o
dia, na vida cotidiana. O altar apenas o ponto de partida. As mos que recebem
este po devem ser construtoras da casa, da comunidade, da Igreja. preciso
acompanhar para entender que a Eucaristia no s silncio, recolhimento, intimidade. festa, canto, aceitao de responsabilidades desde a infncia. Por isso,
Dom Bosco insiste na eficcia da primeira comunho bem preparada e celebrada,
como sua me fez com ele.

O sacramento da Penitncia tem para Dom Bosco uma intensa carga espiritual e, por isso, ele insiste com os seus jovens sobre a necessidade de escolherem
um confessor estvel. Convida-os sinceridade, transparncia, confiana
neste sacramento. Incentiva-os a ter um amigo fiel da alma, a buscar ajuda e
paz na celebrao do perdo e do amor.

Dom Bosco bem sabia que quando Cristo reconciliou algum e lhe perdoou os pecados, o episdio terminou com uma festa. Receber o perdo do Senhor realmente libertador e enche de alegria: a alegria de quem perdoado,
reconciliado, recriado graas ao amor de Deus.

360

3.3. Acompanhar para viver a f em comunidade



Se o evangelho de Jesus uma proposta relacional (viver como filhos,
irmos e servidores), devemos dar uma importncia fundamental s experincias
comunitrias abertas e permeveis.44 preciso tambm acompanhar e promover
a dimenso comunitria da f, que exige envolvimento ativo e responsvel.

a) Antes de tudo, precisamos recuperar as reas informais nas quais as
relaes so estabelecidas como encontro, comunicao e dilogo na
reciprocidade e na verdadeira amizade, a partir da aceitao e do respeito recproco. Para tanto, exigem-se lugares comuns, espaos de encontro para acompanhar a reflexo, a autoanlise, a autocrtica e incidir no
esforo de mudana.45

b) Esses lugares de participao estvel tambm permitem a orao em
comum, a formao conjunta e a criao de ligaes de amizade fraterna; tm tambm outra finalidade evanglica: o discernimento comunitrio. Examinai tudo e ficai com o que bom (1Ts 5,20). Era o conselho
de Paulo aos Tessalonicenses. Boa base para um grupo. Saber o que eu
quero e o que Deus quer de mim na experincia crist, algo que exige
tambm a voz da comunidade e que, como consequncia, exige tempo
e mtodo. Trata-se de interrogar-se diante de Deus para compreender
se a deciso a tomar coerente com o projeto evanglico e se responde
aos tempos da Igreja, vida comunitria e s exigncias dos homens do
nosso tempo.

O discernimento comunitrio faz parte das atividades prprias de uma comunidade de crentes, ou, melhor, representa o modo mais concreto e eficaz de
expresso da f e do crescimento na f da prpria comunidade. Recuperando este
sadio realismo, preciso dizer que ser comunidade, grupo ou parquia consiste
tambm em pr em comum as nossas dvidas, as nossas carncias, os defeitos, os
cansaos, as manias, as feridas, os traumas, os egosmos e as pobrezas. A tradio
crist acumulou ao longo dos anos uma sabedoria prtica em relao dinmica
Cf. INSTITUTO SUPERIOR DE PASTORAL, Revitalizar las comunidades cristianas hoy, XXII
Semana de Teologa pastoral, Ed. Verbo Divino, Estella 2011.
45
J. J. CEREZO, P. J. GMEZ SERRANO, Jvenes e Iglesia: caminos para el reencuentro, PPC,
Madri 2006.
44

361

comunitria: a reviso de vida, os exerccios espirituais, os mtodos de discernimento etc. Por isso, o discernimento comunitrio se converte em escola de vida
crist, em caminho para fazer crescer o amor recproco, a corresponsabilidade, a
insero no mundo a partir do prprio territrio. Edifica a Igreja como comunidade de irmos iguais em dignidade, mas com dons e tarefas diferentes.
3.4. Acompanhar experincias que promovem o servio e o amor pelo que
essencial

Resta por ltimo um mbito ao qual dar ateno. O filme Homens e deuses conta a histria real de sete monges franceses em 1996. Eles formam a comunidade de um mosteiro nas montanhas da Arglia. So e tm conscincia de
que formam uma pequena presena da Igreja num territrio totalmente islmico.
Convivem perfeitamente com a populao h vrios decnios e vivem muito integrados, sobretudo atravs da ateno aos doentes, a visita s pessoas e ao mercado local. Em plena exploso do fanatismo religioso na Arglia, um grupo radical
islmico armado comea a semear o pnico na regio, assassinando estrangeiros
e agricultores. O ambiente torna-se mais inquietante a cada dia e a comunidade
percebe o perigo da perseguio. Prepara-se, ento, para o pior: reza e discerne
para entender o caminho a seguir. Afinal, certa noite, os integralistas apresentamse pela segunda vez no mosteiro e raptam os monges sob a ameaa das armas; os
monges vo ao encontro de um destino que far o giro do mundo em 21 de maio
do mesmo ano. Surge aqui um episdio aceito por quem escolhe dar o prprio
testemunho, num caminho sem retorno. Apesar disso, o filme narra bem como a
prova da paixo e do medo se mistura no corao daqueles homens de Deus que
se deixam arrastar pela corrente da histria at o precipcio da morte violenta.
Mas, para onde nos leva esta experincia?

a) Um primeiro ponto de reflexo: as dificuldades na vida de cada pessoa
assumem milhares de formas. Dar a vida, nestas situaes, no uma
escolha, nem uma obrigao. O que aparece nestas situaes no a
heroicidade do gesto, mas a sua autenticidade. Esta, como tantas outras
histrias de vida, fazem-nos perceber a importncia de saber distinguir
entre as seguranas necessrias (que seria tolice desconsiderar) e certa
362

dimenso de essencialidade na vida.46 Diante de uma cultura de consumistas passivos, somos chamados a abraar a cultura do essencial,
que mantenha a porta aberta providncia de Deus, isto , o espao
que Deus se reserva em nossas vidas. Se a vida crist um sonho fora
do comum, requer-se uma f fora do comum. No se v a interioridade
apenas no corao de cada um, mas ela observada na disponibilidade
diante do que acontece ao longo da vida pessoal.
b) O critrio de julgamento da interioridade a compaixo. Esta no pode
ser considerada de modo algum como exterior experincia espiritual,
mas profundamente interior. Abrir-se ao que essencial na vida faz
brotar experincias de proximidade evanglica, coraes missionrios
e atividades de projeo social, solidria, caridosa e generosa em favor
dos mais pobres. Todo empenho se enche de rostos reais e apostas urgentes, diante de situaes pessoais ou sociais urgentes. necessrio
que os jovens tenham sensibilidade pelos pobres, assumindo uma anlise crtica e alguns envolvimentos afetivos e efetivos tanto em nvel pessoal como de grupo. Dar vida, motivar a Esperana em nosso mundo
no qual a morte (humana e do ecossistema) deixa muitas marcas de dor.
O acompanhamento (como o Evangelho) , antes de tudo, uma escola
de humanidade, introduz uma nova arte de viver.


O trabalho apostlico tem a finalidade de mobilizar a vida, proteg-la, defend-la das muitas ameaas, lutar pela qualidade da vida de todos. fazer
com que Deus prepare a mesa para todos, disse um dos monges daquele filme.
Tudo isso fala da radicalidade do Evangelho na sequela de Jesus. No se trata
de simples estratgia para a formao dos jovens, mas da experincia do amor
cristo compartilhado em momentos intensos, em atividades excepcionais de solidariedade. Trata-se de acompanhar para fazer surgir um novo sujeito apostlico
que busca Jesus, segue-o e permanece com ele.
O consumismo um dos pilares em que se apoia o nosso mundo. A mercantilizao leva mesma
cultura da imagem pessoal. Sempre mais empresas e entidades comerciais descobrem que os jovens
so um objetivo desejvel para vender alguma coisa. Sobre isso, o estudo Adolescenti. Lultimo
imperatore (2006) feito por TNS Worlpanel, empresa especializada em painis de consumo, conclui, por exemplo, que h seis anos os adolescentes espanhis gastavam dois bilhes e quatrocentos
milhes de euros em roupas e sapatos, quase 10% do total do mercado. Neste estudo, diz-se que a
moda uma das prioridades dos adolescentes projetando a prpria imagem exterior, que muito
importante, pois os ajuda a se diferenciarem como coletivo e serem aceitos pelo grupo. As marcas
definem a sua identidade.

46

363

4. CONCLUSO

Em nossos dias, importante suscitar vocaes de acompanhantes de adolescentes e jovens. Um belo carisma, que requer o emprego de espaos e energias
para acompanhar nos tempos atuais, jamais descritos de melhor modo como no
texto do Card. Godfried Danneels, arcebispo de Malinas-Bruxelas e bispo primaz
da Blgica:
O cristo no mundo como a truta numa torrente de gua corrente: nada sempre contracorrente e o smbolo da contracultura. A truta permanece na gua e
no a deixa. Mas vive em estado de contnua resistncia. Sobrevive com grande
esforo. A gua no a perturba; antes se apoia nela para avanar. O cristo
tambm o contracanto na cultura contempornea; no se instala comodamente
margem como expectador. Toma partido na poltica, na msica, nas imagens,
na sexualidade, na famlia; empenha-se na cincia e na tcnica, cr no futuro,
tem confiana na resistncia apesar dos exrcitos. Nada contracorrente.47

G. DANNEELS, La Evangelizacin de los jvenes. Itinerarios: Documentos de Iglesia 793


(2002).
47

364

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374

QUARTA PARTE
Lectio Divina

Jesus, mestre de discpulos


Algumas etapas do seu magistrio

Juan Jos Bartolom, sdb

Apresentao

A tradio evanglica, unanimemente, apresenta Jesus rodeado de seguidores desde o incio do seu ministrio; e recorda tambm que s a morte cruenta
de Jesus provocou o fim do seu discipulado histrico. A atividade messinica de
Jesus, tanto nos evangelhos sinticos como no evangelho de Joo, permaneceu
relacionada inseparavelmente com a sua constante ao de educar os seguidores;
enquanto ensinava pelas estradas e ruas e nas sinagogas, e curava enfermos ou
expulsava demnios, enquanto discutia com os antagonistas ou se entretinha com
os amigos, Jesus instrua os discpulos; desejava que aqueles que j compartilhavam a sua vida, tornassem prprios a sua meta e os seus mtodos.

Marcos o evangelista que melhor ressaltou a ao educativa de Jesus.
Jesus mestre, como era habitual no seu tempo, ensina aos discpulos que convivem
com ele; mas s convivem os que foram previamente chamados. O ensinamento
nem sempre exclusivo; os seguidores de Jesus aprendem tambm enquanto ele
cura os doentes, prega s multides ou realiza prodgios. Entretanto, h momentos, alguns dos quais decisivos, em que Jesus tem como destinatrios unicamente
aqueles que o seguem.

Ao longo do seu evangelho, Marcos descreve o motivo, os temas, a meta
e a metodologia da proposta educativa apresentada por Jesus aos seus discpulos. No se pode reduzir todo esse processo apenas aos seis momentos de lectio
divina oferecidos aqui. Foi inevitvel selecionar algumas etapas mais significativas do magistrio de Jesus.

377

1 parte:
SEGUIR JESUS, UM SERVIO IMPOSTO:
SUA MOTIVAO E SUAS CONSEQUNCIAS

Para ser discpulo de Jesus preciso acompanh-lo em sua misso. E
para acompanh-lo, necessrio saber que chamado. Ser chamado pessoalmente , depois do incio do discipulado, a sua condio prvia indispensvel.

Normalmente, a vocao apresenta-se tambm nos evangelhos como
uma graa inesperada em favor de quem a recebe. A narrao da vocao de Levi
(Mc 2,14-17) revela que quando Jesus chamava podia haver outras razes, mais
pessoais; nem sempre quem chamado o principal beneficirio da sua vocao.
Embora sendo necessrio deixar tudo para seguir Jesus, a renncia e as relaes cortadas no so a primeira coisa experimentada pelo discpulo, mas uma
liberdade impensvel que Jesus se encarregar de favorecer e defender (Mc 2,1828). No preciso j ser bom para ser escolhido, mas preciso viver bem para
s-lo.

2 parte:
VIVER COM JESUS TAREFA DE HOMENS LIVRES...
DE SEUS BENS E DA PRPRIA VIDA

uma constatao dolorosa: nem todos os que foram chamados puderam
seguir Jesus. No pelo fato de ser amado e convidado a segui-lo, que o discpulo
pode, e s vezes nem mesmo quer, ser seu seguidor.

Esta incapacidade muito curiosa! no surge da indisposio pessoal
do discpulo, da sua vontade fraca. Na verdade, so as exigncias extremas de
Jesus que colocam o seguidor bem intencionado em grave dificuldade. De fato,
a relao que brotou de uma ordem imprevista e imperativa (Mc 1,17.20, 2.13),
Jesus precisou converter em opo livre quando impunha condies insuportveis queles que o seguiam (Mc 8,34-37). Ou quando se depara com um jovem,
realmente bom. A quem segue Jesus, a convivncia no suficiente; preciso
assumir o seu destino, a sua cruz. A quem bom e quer s-lo ainda mais, ser
pedido que, antes de ser aceito, no tenha outros bens alm do seu bom mestre.

378

3 parte
ACABAR COMO JESUS NO GARANTIDO AO DISCPULO
QUE O ACOMPANHOU AT O FIM

A prova final do discpulo sempre aos ps da cruz. Seguir Jesus, que
caminha para a morte no Calvrio, no pode ser passatempo divertido. O discpulo fiel at o fim deve pagar um preo: quem segue o condenado morte no
pode sair ileso. dramtico o fato de nenhum dos seus discpulos na tradio
sintica ter resistido ao escndalo da cruz.

Isso aconteceu, embora Jesus os tivesse preparado, fazendo com que trs
deles assistissem sua orao agonizante, quando no Getsmani precisara lutar
corpo a corpo com seu Pai; para no deixar de ser filho, precisou dar a prpria
vida, obedecendo ao seu Deus. Assim tambm, os filhos de Deus superam as provas deixando de viver, no de obedecer (Mc 14,32-42).

A ltima lio do Mestre foi logo esquecida pelos discpulos: um o
traiu, outro o renegou, todos o abandonaram (Mc 14,10-11.17-21.43-52). Jesus
mestre no obteve grande sucesso; ele os escolhera, pessoalmente, chamando-os
pelo nome (Mc 3,16-18)! A falncia de Jesus mestre uma advertncia sria
para qualquer discpulo: no bastara a convivncia constante, nem um eventual
envio a evangelizar; no bastara ser seu companheiro ntimo, para acabar como
traidor. Ser necessrio que ele retorne Ressuscitado, para, de novo, na Galileia,
ressuscitar os discpulos de Jesus; l o vero e os preceder... (Mc 16,7).

379

Seguir Jesus,
PARA QUE ele continuE conosco
O porqu de uma vocao
(Mc 2,14-17)


Antes de iniciar a sua misso, Jesus faz-se acompanhar por alguns homens (Mc 1,16-29). Com seus quatro discpulos, Ele entra em Cafarnaum (Mc
1,21); ali, ele ficar um dia inteiro (Mc 1,32.35) curando doentes: na sinagoga,
um endemoninhado (Mc 1,21-28); na casa de Simo, a sogra deste (Mc 1,39-31);
e muitos outros, at a noite (Mc 1,32-34). Jesus comea o seu ministrio vencendo o mal e superando as barreiras sociais, contanto que possa ajudar os que dele
precisam. E assim encerra o seu primeiro dia (Mc 1,21-34).

De manh, muito cedo, sai sozinho procura de um lugar para rezar (Mc
1,35). Depois de um dia inteiro de atividade, comea o novo dia a ss com Deus.
Ali, na solido e na orao, Pedro e os companheiros vo perturb-lo; porque,
segundo a advertncia de Simo, todos te procuram (Mc 1,36-37).

Ao ser procurado, Jesus toma conscincia da misso a cumprir e dedicase pregao do Reino com todas as suas foras, agora em toda a Galileia (Mc
1,38-39). Enquanto houver algum que o busque e povoados a quem apresentar
o Reino, enquanto houver demnios dos quais libertar, Jesus tem sempre um motivo para retornar entre o povo; pois foi precisamente para isso que ele veio (Mc
1,38b).

O quinto chamado, um publicano (Mc 2,14-17)



Que Jesus precise de homens que o sigam no obriga quem o segue a
t-lo merecido. Precisamente porque Jesus precisa de seguidores para continuar
a pregar o Reino e curar doentes, no necessrio que seus discpulos gozem de
tima fama.

Tendo retornado a Cafarnaum (Mc 2,1) e curado um paraltico (Mc 2,312), Jesus vai at o lago para chamar outro homem a segui-lo. Foi na beira do lago
que ele encontrou seus primeiros discpulos e ali retorna a fim de convocar mais
um. Levi, o publicano (Mc 2,13-14), introduzir Jesus e todos os que o acompanham permanentemente (Mc 2,15) na convivncia com pessoas de pssima
fama (Mc 2,16).
380


Levi, o quinto discpulo, era um homem de m fama. Com essa iniciativa, Jesus correu o risco de perder a estima dos bons. No foi preciso muita coisa
para escolh-lo, e tinha um bom motivo para isso: ele viera para aqueles que no
eram bons. No h nada de extraordinrio no fato de aquele que foi chamado
festejasse a sua vocao com um banquete oferecido aos amigos. Dessa forma,
Levi pde introduzir Jesus no seu mundo, Ele que h pouco comeara a realizar
a sua misso. Um discpulo, certamente no muito digno, serviu a Jesus como
mediador e o ajudou a cumprir a sua misso.

1. Ler o texto

A narrao se desenvolve num duplo cenrio: ao longo do mar (Mc 2,1314) e numa casa (Mc 2,15-17). Levi, o publicano, o elemento de ligao no
contexto da narrao: sua vocao se completa num banquete. Jesus serve-se de
um discpulo recm-chamado para inaugurar a convivncia com o seu mundo de
pecado e marginalizao; pela primeira vez, e por meio de um discpulo, Jesus
entra em contato com as ms companhias.
A primeira cena, aps breve introduo (Mc 2,13), repete o modelo tpico da narrativa de vocao (cf. Mc 1,16-20): Levi ser chamado da mesma forma
como o foram os outros quatro convocados h pouco.1 Aqui, os dados bastante escassos limitam-se aos indispensveis para manter a histria em p: para o
evangelista, o importante no a pessoa do discpulo, mas a sua profisso. Mais
adiante, na segunda cena, haveremos de descobrir o motivo:
Jesus saiu de novo para perto do mar e toda a multido foi ter com ele, e ele
os ensinava.
14
Quando ia passando, viu Levi, filho de Alfeu, sentado no posto da arrecadao e disse-lhe: Segue-me. E Levi, levantando-se, seguiu-o.
13

Jesus est caminhando ao longo do mar (Mc 2,13a.14a; cf. 1,16a.19a); v um homem que trabalha
na sua profisso (Mc 2,14b; cf. 1,16b.19b), chama-o (Mc 2,14c; cf. 1,17a.20a) e este imediatamente
o segue (Mc 2,14d; cf. 1,17b.20b). Apesar disso, na vocao de Mateus no se diz que ele deixa
tudo e receba um encargo. [Os textos bblicos das Lectiones desta quarta parte so da Bblia Ave
Maria, edio online http://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/genesis/1/#.U52c2suYZ1t, acessada em maio/junho de 2014. N.doT.]

381


Introduz-se bruscamente a cena do banquete na casa de Levi. Aqui, o
que interessa no o banquete em si, mas quais os convidados. O escndalo dos
que se consideram bons evidente, e sua pergunta mais do que lgica. preciso
dar-se conta da repreenso velada contida na pergunta feita queles que iniciam a
vida de discpulos. Certamente, tambm para estes o comportamento de Jesus era
desagradvel!

A resposta de Jesus no podia ser mais contundente, mesmo no sendo
direta. Por meio de uma imagem e da afirmao do motivo pelo qual veio, ele
exprime pela primeira vez a conscincia da sua misso: Ele veio para estabelecer
a convivncia com aqueles que tm grande necessidade de Deus e que todos consideram como perdidos.
Em seguida, ps-se mesa na sua casa, e muitos cobradores de impostos e
pecadores tomaram lugar com ele e seus discpulos; com efeito, eram numerosos os que o seguiam. 16 Os escribas, do partido dos fariseus, vendo-o comer
com as pessoas de m vida e publicanos, diziam aos seus discpulos:
Ele come com os publicamos e com gente de m vida?
17
Ouvindo-os, Jesus replicou:
Os sos no precisam de mdico, mas os enfermos;
no vim chamar os justos, mas os pecadores.
15

2. Compreender o texto

O relato da vocao de Levi reduz-se ao essencial. No contexto, serve de
preparao para o episdio na casa de Levi, tornando verossmil o banquete de
Jesus com os publicanos. Ou seja, o quinto discpulo chamado, no tanto para
acompanhar Jesus, quanto para que Jesus possa entrar no seu mundo.
O quinto, um pecador

Jesus deixa sua casa em Cafarnaum (Mc 2,1) e, passando junto ao lago,
v um homem que tinha nome e ofcio bem definidos e, sem qualquer dilogo,
chama-o para segui-lo (Mc 2,13-14). Com Levi, Jesus procede como fizera com
os primeiros discpulos: passa perto, olha para ele, identifica-o e impe-lhe a
sequela. O convocado no pode fazer outra coisa a no ser obedecer, deixando
382

imediatamente o seu local de trabalho e o dinheiro sobre a mesa, o que parece


um exagero bastante improvvel. assim que o evangelista informa sobre a sua
pronta obedincia. Sublinha-se ao mesmo tempo o poder daquele que o chamou:
sua palavra realiza o que prope. De fato, se o chamado autntico, tambm
irresistvel. Histrica e tambm psicologicamente, essa forma de apresentao
inverossmil; entretanto, no decisivo saber se aconteceu assim ou se nos parece
pouco lgico; o que importa ao narrador deixar claro que, diante de uma vocao verdadeira, no deve haver objees ou demoras.

Devido ao seu trabalho recolher impostos o publicano tornava-se
odioso para o povo e era considerado pecador pblico (cf. Mt 18,17; 21,31-32).
O convite ao publicano Levi (Mt 9,9 o chamar de Mateus) deve ter parecido
impensvel aos que se consideravam bons: ningum que se considera bom deseja
ser mal acompanhado. Se a fama do novo discpulo deixava a desejar, o mestre
que o escolhia comprometia a sua. Isso, porm, no importava a Jesus. Nem interessa ao cronista. Marcos quer sublinhar um conceito decisivo para sua ideia de
vocao: sempre imerecido, o chamado autntico totalmente gratuito.

Quem ouve hoje a histria de Levi no pode buscar desculpas naquilo
em que se ocupa, nem mesmo em sua m conscincia, para no seguir Jesus;
naturalmente, a condio que a pessoa chamada se sinta objeto da ateno dele
e destinatria do seu chamado. Ningum muito indigno de seguir Jesus, se ele o
chama para o seu seguimento. Pouco importa a Jesus saber o que o discpulo foi
antes de ser chamado, nem no que se ocupava, nem se j bastante bom para ser
seu companheiro.

Alm disso, chamando o publicano para segui-lo, Jesus no s se aproximou de um homem pecador, mas pela primeira vez no evangelho! entrou em
contato com os pecadores: para tanto, ele precisou de um publicano como quinto
discpulo. Levi entrou para o seguimento de Jesus a fim de que Jesus pudesse entrar no mundo do seu discpulo: Levi ps-se a acompanhar Jesus para que Jesus
se tornasse companheiro dos seus amigos, reconhecidos claramente como pecadores.

A est a razo do escndalo dos bons (Jo 7,49), isto , que no sejam
eles, mas os indesejveis, a obterem o privilgio de hospedar Jesus em sua casa
(Lc 7,37-50). Jesus no se contenta em perdoar os pecadores (Mc 2,5-10): frequenta-os e convive com eles (Lc 15,1-2).
383

Jesus em ms companhias

O banquete de Jesus com os publicanos e pecadores no expressamente
justificado na narrao (Mc 2,15). Nem necessrio supor que isso fosse habitual
nele: Jesus no convidava a ser seguido para, por sua vez, ser convidado a um
festim. De qualquer forma, deve-se subentender que Levi convidou Jesus a comer
em sua casa junto com pessoas cuja companhia no era aquelas que se dispunham
ao contato com Deus; e nisso, algo meramente acidental, est a mensagem. Sem
dvida, graas sua profisso, Levi gozava de certa disponibilidade econmica
que lhe permitia hospedar bom nmero de pessoas entre os discpulos de Jesus e
os amigos pessoais.

Deixar-se acompanhar por pecadores e compartilhar a mesa com eles
coisa inaudita, que os bons no deixaram de notar, todos eles escribas e fariseus
(Mc 2,16). Surge aqui mais uma razo de conflito e j a segunda. A expresso
da surpresa deles encobre certo escndalo e uma crtica depreciativa: esse a
come com pecadores! (cf. Mt 11,19; Lc 7,34). Era proibido ao homem de Deus
frequentar os que fossem pecadores at mesmo os que s davam a impresso
de o ser. A objeo no feita diretamente a Jesus (Mc 2,16), talvez porque seus
crticos ainda no tenham a coragem de faz-la (cf. Mc 2,18.24). Os fariseus
interpelam os discpulos, pondo assim prova uma lealdade iniciada h pouco:
merecer seguimento um homem que se rodeia desse tipo de companhia?

Tendo-os ouvido, Jesus defende seu modo de agir e tambm os discpulos, que no precisam defend-lo. Recorre a um conhecido provrbio para confrontar seus detratores com a evidncia (Mc 2,17): o mdico, que goza de sade,
vive entre os doentes; normal que ele se encontre entre os doentes, no entre os
que so saudveis; seu compromisso para com os doentes; por isso, normal
encontr-lo entre eles, no entre os que gozam de sade. Com essa comparao,
Jesus alude veladamente prpria misso: no pode estar em outro lugar, nem
ter companhia melhor; faz o que deve fazer. Os que precisam dele tambm tm o
direito de t-lo consigo; como o mdico, que tem seu compromisso para com os
que se sentem mal, com quem se encontra em situao ruim.

Continuando, e com maior clareza, Jesus exprime em primeira pessoa
a inevitabilidade da prpria ao: veio (cf. Mc 10,45) para isso, para reunir os
pecadores e no para perder tempo com os justos. No h vestgios de ironia na

384

afirmao de Jesus; Ele no caoa de seus antagonistas nem leva em brincadeira a sua afirmao de bondade pessoal. Responde por si mesmo ao responder
surpresa deles: est com quem deve estar, veio para eles, para aqueles que sabem que no so bons. Jesus se entretm com o pecador para cur-lo e no para
simplesmente distrair-se com ele; torna-se seu ntimo para salv-lo intimamente.
Onde houver um homem que sofra, para l se encaminha Jesus; ele o futuro do
pecador. A convivncia, a familiaridade no fim em si mesmo; meio de cura,
etapa do diagnstico.

Na verdade, Jesus no foi criticado por estar com os pecadores, mas por
comer com eles. O grau de intimidade, neste caso, era imensamente maior. Pois
bem, com sua resposta, Jesus parece supor que a comunidade convivial com pecadores no mais do que uma forma de demonstrar que realiza a sua vocao.
No come com algum porque precisa saciar a prpria fome; convive com os
pecadores para anunciar-lhes o Reino, pois foi para isso que ele veio. No faz o
que quer, faz simplesmente o que deve.

Jesus no glorifica o pecador pelo fato de preferi-lo enquanto tal. a
necessidade que Deus sente de perdoar que provoca o comportamento inslito de
Jesus. Para seus antagonistas, Jesus no suficientemente bom porque frequenta
ms companhias. Sua inteno, contudo, outra; ele quer restabelecer a convivncia para curar o pecador pblico da sua marginalizao social, o efeito mais
visvel do seu mal. Restaurar a vida comum, longe de ser escndalo, mtodo
messinico de lutar contra o pecado. Alm disso, comer com algumas pessoas
no exclui as demais, a no ser que, como neste caso, elas mesmas se autoexcluam por se considerarem boas..., por no pensarem que o Deus de Jesus to
bom a ponto de querer fazer com que sejam bons os que no o so. Tornar Deus
no necessrio o risco que os bons correm com frequncia.
Seguir Jesus, para que continue entre os nossos

A cena, iniciada com um convite pessoal de Jesus ao publicano, encerrase com a justificativa da intimidade que mantm com esse tipo de pessoas. Os
dois extremos so consequncia da sua misso: quando Jesus passa, chama para
o seguimento aquele que ele v imerso nos prprios assuntos, mesmo quando so
de ordem duvidosa; quando recebe hospitalidade, defende a convivncia com as
ms pessoas, argumentando que elas so a razo de ser de sua vida. E assim a
385

convivncia com alguns coincide com a ruptura com outros; a sequncia da narrao o confirmar (cf. Mc 2,18-22.23-28).

O mestre, chamando para o seguimento e erguendo-se em defesa da intimidade obtida com os discpulos, por pior que seja a sua fama, continua a ensinar multido. Fato histrico inegvel que esta convivncia com os pecadores
pblicos2 foi caracterstica do seu procedimento e do seu modo de evangelizar. E
para consegui-lo, precisou convidar um publicano para ser seu discpulo.

Alm disso, deve-se notar que Jesus responde a uma crtica que no era
feita diretamente a ele, embora somente a ele se referisse. O que estava em discusso no era tanto a praxe de Jesus, habitual durante o seu ministrio pblico, de comer com qualquer classe de pessoas, incluindo os pecadores (Lc 15,2),
quanto a razo fundamental do seu modo de agir que, em ltima anlise, envolvia
a pergunta a respeito da sua misso pessoal. De fato, a isso que Jesus responde.

Embora de passagem, preciso constatar de novo a estreita relao existente entre a conscincia pessoal de Jesus sobre a prpria misso e a convivncia
que brota do seu seguimento: ele justificou a sua presena entre os pecadores
precisamente quando se fazia aos seus discpulos uma crtica justa a respeito
desse procedimento. Tudo comeou quando Jesus viu aquele que todos evitavam:
se um publicano merecera ser seu companheiro, nada podia impedir que Jesus
se deixasse acompanhar pelos amigos do seu discpulo. Todavia, Jesus responde pelo prprio agir, afirmando que a convivncia com os que no so bons era
sua misso, a razo da sua vinda. Por isso, precisava desse quinto discpulo, de
Levi, um publicano. Cham-lo para o seu seguimento foi um ato de obedincia
a Deus: surpreendente este Jesus que continua a precisar de homens, reconhecidos como pecadores, para poder entrar no seu mundo e conviver com aqueles
que, realmente, mais precisam dele.

Se um discpulo, embora no totalmente bom, serve para isso, no vale a
pena acumular desculpas para no segui-lo. Se para permanecer entre ns, Jesus
precisa de ns, no h motivo para nos negarmos a ser seus companheiros de
vida e de misso.
Ningum excessivamente mau, se Deus conta com ele. Deus conta comigo?
Como vou saber? E como no saber e no temer? Se, pelo menos, nos preocupasse o que ele espera de ns, haveramos de nos sentir em dvida para
2

Cf. Mt 9,19/Lc 7,34; Mt 18,12-14/Lc 15,1-7; Lc 19,1-10.

386

com ele. Se nos surpreendesse o fato de que, por piores que sejamos jamais
seramos to maus a ponto de no merec-lo, isso no nos entusiasmaria a
segui-lo?
Jesus arriscou a prpria fama convivendo com gente de m fama. No era
como eles, nem se fez um deles. Mas no os deixou sozinhos, nem os marginalizou. Pode-se dizer que este o procedimento dos seus discpulos de hoje? Qual
seria o motivo? Qual foi o motivo de Jesus e quais so as nossas desculpas?

3. Convite orao pessoal



Senhor Jesus, dado que no h necessidade de sentir-se bom demais para
seguir-te, a minha tarefa fica mais fcil. Se te fazes acompanhar por pessoas de
fama duvidosa, no me importa muito t-la tambm, para que eu te possa ter. Se
te mereo por sentir-me doente, bendito seja o meu sofrimento; se deves vir a
mim s porque estou mal, valer a pena o meu mal-estar. No permitas que esquea os meus males, a minha malcia e a minha maldade, se este o preo da tua
vinda minha vida: no me tornes bom, se por ser tal, eu vier imediatamente a te
perder.

Se deves vir onde esto os doentes, se tens o teu lugar entre os pecadores,
por que no vens ao meu mundo e entre os meus, ao meu corao e s minhas
mos? Por que demoras tanto? Ensina-me a esperar por ti, precisamente ali onde
eu descubro o mal ou a doena; saberei que ests para vir ali onde o homem sofre
ou peca; pondo-me junto dele e ao seu lado, estarei no lugar exato da tua prxima
vinda.
Bom Senhor, tens ainda razes para no te afastares de ns. E quando vieres,
restaura a nossa vida em comum; d-nos novamente a alegria da festa e o prazer
de celebrar o encontro. Apesar de os bons continuarem a se escandalizar de ti,
permanece entre ns a fim de que seja possvel a recuperao e a vida nova.

387

a liberdade que resulta do


estar com jesus
Como se deve viver no seguimento de Jesus
(Mc 2,18-28)



Seguir Jesus impe rupturas (Mc 1,17-18.19-20; 2,14), mas, por outro
lado, tambm confere uma liberdade inimaginvel. a primeira coisa que os
discpulos de Jesus aprendem; suas renncias, to logo feitas, abriram seus olhos
para uma nova forma de vida que j os tinha libertado do cansao imposto pelo
fingir-se de bons e que lhes permitiu comportamentos, digamos, um tanto presunosos.

Convm notar que a primeira iniciativa de Levi, ao ser chamado ao discipulado, foi festejar a mudana de vida por meio de um banquete em que reuniu
os seus amigos ao redor de Jesus com seus discpulos. Deixara o dinheiro sobre
a mesa (Mc 2,14), mas no os amigos, nem a casa (Mc 2,15). Precisou abandonar o ofcio e o lugar de trabalho, mas no renunciou alegria e festa em sua
casa. O discpulo no tem motivos para se deixar abater pelas renncias que lhe
so impostas; deve saber gozar das novas possibilidades de vida oferecidas pelo
seguimento de Jesus. Aqui seria preciso lembrar, mesmo se de passagem, que o
quarto evangelho, qualificado como espiritual, testemunha que a primeira atitude de Jesus foi fazer os seus primeiros seguidores sarem do deserto onde viviam
com o Batista, para lev-los a uma festa de casamento, em Can, onde tambm
estava Maria (Jo 2,1-11)

Foi, com efeito, para defender a alegria de viver e a liberdade dos seus
que Jesus se apresentou e enfrentou crticas e incompreenses. Como Marcos
recorda, no foi preciso esperar muito tempo: logo depois do banquete na casa de
Levi e aps ter defendido a prpria misso pessoal o dever e o direito de estar
com os pecadores (Mc 2,17) Jesus ser obrigado a partir para a defesa, alis,
duas vezes seguidas, da liberdade dos seus (Mc 2,19-22.25-27). Quem o segue
encontra nele o melhor advogado da liberdade que o discpulo acabou de conquistar.

388

Livres para jejuar, mas nem tanto (Mc 2,18-22).



A cena do banquete na casa de Levi, onde se acena ao grande nmero
de seguidores que j o acompanhavam (Mc 2,15b), introduz o tema do jejum dos
discpulos. Agora, porm, diversamente de Mc 2,15-17, a crtica no dirigida a
Jesus (Mc 2,18b), embora seja Jesus a responder provocao (Mc 2,19-20). Para
os detratores no identificados , os discpulos, caso pretendam ser considerados
homens de Deus, no fazem o que deveriam fazer. Respondendo em nome deles e a
favor deles, Jesus, pela primeira vez, se manifesta solidrio com todos os que o seguem de perto. E significativo que o faa ao tratar do jejum, um costume religioso
considerado bastante meritrio no judasmo daquele tempo (Mt 6,16-18).

1. Ler o texto

O episdio, uma ruptura ocasional na prtica do jejum, insere-se no contexto da narrao evanglica como oportunidade para um novo ensinamento de
Jesus: aqui, os discpulos so o motivo principal de sua interveno e seus primeiros beneficirios. preciso observar que est em questo uma prtica de piedade
habitual e que Jesus responder com imagens, insistindo sobre a novidade que
no combina com o que velho. Todavia, a novidade no est em jejuar ou no,
mas na razo dos dois extremos: viver na companhia do esposo exige festa.
Ora, os discpulos de Joo e os fariseus jejuavam. Por isso, foram-lhe perguntar:
Por que jejuam os discpulos de Joo e os dos fariseus,
mas os teus discpulos no jejuam?
19
Jesus respondeu-lhes:
Podem porventura jejuar os convidados das npcias, enquanto est com eles
o esposo?
Enquanto tm consigo o esposo, no lhes possvel jejuar.
20
Dias viro, porm, em que o esposo ser eliminado,
e ento jejuaro.
21
Ningum prega retalho de pano novo em roupa velha;
do contrrio, o remendo arranca novo pedao da veste usada
e torna-se pior o rasgo.
22
E ningum pe vinho novo em odres velhos;
se o fizer, o vinho os arrebentar e perder-se- juntamente com os odres,
mas para vinho novo, odres novos.
18

389


Como o jejum s era obrigatrio no dia do perdo (cf. Lv 16,29), pratic-lo habitualmente era sinal de devoo especial, quer se tratasse de exerccio
propiciatrio, quer servisse de apoio a uma sincera vida de orao. O texto no se
preocupa com as motivaes dos que jejuam, mas com as que possam ter os que
no jejuam: a coisa bvia, portanto, o jejum dos bons. A pergunta feita por quem
vive jejuando estabelece uma contraposio entre as duas formas de ser discpulo
e, como consequncia, as duas formas de ser mestre: a de Joo e dos fariseus e a
de Jesus. Aceitando-se a afeio do jejum por parte de quem formula a pergunta,
levando em conta o contexto do episdio, nota-se certa surpresa, para no dizer
uma ntida incompreenso.

2. Compreender o texto

O narrador no se perde ao focalizar o debate: tanto os discpulos de Joo
como os dos fariseus (Lc 16,12) jejuam habitualmente (Mc 2,18).
Enquanto o esposo est com eles, impossvel jejuar

Jesus, que responde com uma parbola, exonera os seus discpulos de
qualquer suspeio. E, por sua vez, quem agora pergunta ele, certo de obter a
anuncia dos seus interlocutores. No que seus discpulos no queiram jejuar,
que no podem faz-lo (Mc 2,19); melhor defesa, impossvel.

No indiferente que, ao argumentar, Jesus recorra comparao das
npcias, imagem tradicional nos tempos messinicos, que os primeiros cristos
aplicaram a Cristo.1 Aqui, porm, o que se ressalta por meio da imagem no o
noivo, nem a sua pessoa ou funo, mas a alegria por t-lo prximo: os convidados no podem entregar-se ao jejum enquanto estiver presente aquele que
a razo de ser da festa. A presena do noivo impe-lhes participar da alegria do
banquete.

Ateno, porm: a atitude descurada, at mesmo alegre do discpulo,
motivada pela convivncia com Jesus. Assim como no se vai a um casamento para jejuar, no se pode estar com o noivo e recusar-se a comer. Viver com
ele impede o jejum; viver sem ele ser o verdadeiro jejum para os seus amigos.
Os 2,16-20; Is 54,5-6; 62,4-5; Ez 16,7-34. Cf. Mt 25,1-2; Jo 3,29; 2 Cor 11,2; Ef 5,22-23; Ap
19,7-8.

390

Nem o jejum nem o banquete devem ser buscados por si mesmos: o noivo, a
sua presena ou a sua ausncia, quem d sentido a ambos. Recorrendo a uma
imagem, a resposta de Jesus no direta, mas nem por isso menos contundente
e clara.
O jejum do discpulo

Negar o jejum durante o casamento no quer dizer absolutamente se negar a jejuar (Mc 2,20). Com uma expresso quase tcnica,2 Jesus anuncia um
tempo em que ser imposto o jejum aos seus discpulos: quando lhes for tirado o
esposo, a festa ser impossvel para eles, e o jejum se transformar em necessidade inevitvel. Assim como a companhia do esposo torna natural a participao
no banquete nupcial, tambm a sua ausncia deixa os convidados sem vontade de
po e sem alegria.

O jejum do discpulo coincide, portanto, com a privao do seu Senhor:
no dia em que ele o perder, ou melhor, no dia em que ele lhe for tirado, jejuar de
comida e de festa, porque ficar em jejum do seu mestre. A frmula ser eliminado (cf. Is 53,8) parece aludir sua morte violenta. Na boca de Jesus e no incio
do seu ministrio, no fcil explicar um anncio to antecipado e to claro da
prpria morte, por mais velado que seja. Devem t-lo compreendido, porm, os
leitores de Marcos: o dia do desaparecimento fsico de Cristo o dia do jejum
cristo. Sozinhos, sem o seu Senhor, a festa proibida para os discpulos: o cristo s no se refaz da perda de Cristo; o discpulo no se restabelecer enquanto
no recuperar o seu Senhor. Sem ele, no h alegria.

Observando bem, Mc 2,19b-20 indica um retrocesso em relao a Mc
2,19a. A comunidade crist, que vive dolorosamente o desaparecimento fsico do
seu Senhor (cf. Jo 16,16-20), no pode deixar de enfrentar a questo do jejum.
Todavia, diversamente de outros grupos que valorizam o jejum em si mesmo, ela
muda o seu sentido ltimo: os cristos no tocaro alimento porque no se podem
permitir qualquer prazer sem o seu Senhor. A lembrana da sua morte dever ser
celebrada por meio do jejum: privado de Cristo, o cristo no poder pensar em
alimentar-se. Ter perdido o seu Senhor, mesmo no sendo culpado disso, mais
insuportvel para o cristo do que perder o po e a alegria de viver.
2

Dias viro: cf. Lc 17,22; 19,43; 21,6; 23,29; Jr 16,14; 19,6; 23,5; 28,52; 38,27.

391

A liberdade como novidade a defender



Os dois provrbios, expresso de sabedoria popular, funcionam no contexto como legitimao da soluo crist para a questo do jejum (Mc 2,21-22).
Sublinhando o que normalmente no se faz, no caso do vinho velho ou da roupa
rasgada, faz-se notar a incompatibilidade natural entre o novo e o velho.

Temos, porm, certa progresso nas imagens: o tecido novo incompatvel com o velho porque provocaria sua destruio; aqui se sublinha a anulao
do que velho. O vinho novo, para ser conservado, requer odres novos; o novo
conservado no interior da novidade. Nada pode servir como remdio de alguma
coisa que se quis substituir; o contrrio seria um remendo que no resistiria.

A nova atitude do discpulo, tanto quando deixa de jejuar como quando
deve comear a faz-lo, inevitvel. A nova situao impe comportamentos novos. Na boca de Jesus, o novo que pe em perigo o antigo certamente figura do
Reino que vem e da potencialidade que traz consigo.3 A novidade do discipulado
de Jesus est enraizada no fato de no se explicar, nem derivar daquilo que o precedeu; ou seja, quem segue Jesus deve viver de maneira totalmente nova, indita,
inslita, que chama a ateno, sem forjar respostas para aquilo que nos espera ou
para um comportamento considerado lgico.

Marcos, portanto, no dispensa o discpulo do jejum; pelo contrrio,
personaliza a sua finalidade e a sua razo de ser. O cristo jejua, e no dever
permitir-se nem o po nem os prazeres da vida enquanto vive o jejum do seu
Senhor. Por isso, a simples lembrana do momento em que o perdeu leva-o a no
tomar alimento; assim, o seu jejum memria eficaz da paixo de Cristo. A comunidade aprende a viver jejuando, sem se sentir obrigada a faz-lo: a presena
do Senhor probe-lhe o jejum; sua ausncia, porm, lho impe. A privao tem
sua razo de ser, deve ser cultivada, quando quem est ausente o Senhor. Onde
Cristo ainda no est presente, ali o seu discpulo deve jejuar; sem ele, no lhe
possvel nenhuma satisfao, por mais vital e urgente que seja.
Livres do sbado (Mc 2,23-28)

A discusso sobre o jejum seguida da polmica sobre a observncia do
sbado. De novo, um fato casual d origem a uma discusso, desta vez sobre a
Ter Marcos recordado que Caifs rasgou suas vestes (Mc 14,63) ao condenar Jesus e que o vu
do Templo se partiu ao meio (Mc 15,38) quando Jesus morreu? Aquele rasgar o que velho, no
aludir irrupo da novidade?

392

observncia do sbado. A controvrsia no se refere lei, mas ao modo habitual


de pratic-la.

1. Ler o texto

O nexo narrativo entre os dois episdios muito acertado: continua-se a
tratar da liberdade dos discpulos em relao lei e s tradies sobre os alimentos. O incidente, porm, referido com pouca preciso e resulta um tanto inslito:
era sbado e Jesus caminhava pelos campos semeados.

Jesus observar que a mesma lei que impe o repouso, tambm considera boa a exceo. Quem determinou a observncia do sbado agiu em favor do
homem. Por isso, o Filho do Homem senhor do sbado, a fim de subordinar o
repouso devido a Deus a servio do homem que, repousando uma vez por semana, deve servir a Deus.

Como na cena anterior, o comportamento do discpulo (Mc 2,23) a causar a reserva dos fariseus (Mc 2,24). E Jesus quem responde em nome dos seus
(Mc 2,25); ele o faz com uma pergunta (cf. Mc 2,19) que lhes recorda o comportamento de Davi (Mc 2,25-26; cf. 1Sm 21). A liberdade dos discpulos, exercida
enquanto acompanham Jesus, fundamenta-se, agora de forma mais ntida, no seu
poder pessoal (Mc 2,27-28).
Num dia de sbado, o Senhor caminhava pelos campos e seus discpulos,
andando,
comearam a colher espigas.
24
Os fariseus observaram-lhe:
Vede! Por que fazem eles no sbado o que no permitido?
Jesus respondeu-lhes:
25
Nunca lestes o que fez Davi, quando se achou em necessidade e teve fome,
ele e os seus companheiros? 26 Ele entrou na casa de Deus, sendo Abiatar prncipe dos sacerdotes, e comeu os pes da proposio, dos quais s aos sacerdotes
era permitido comer, e os deu aos seus companheiros.
27
E dizia-lhes:
O sbado foi feito para o homem,
e no o homem para o sbado;
28
e, para dizer tudo, o Filho do homem senhor tambm do sbado.
23

393

2. Compreender o texto

Para quem conhece a lei do repouso sabtico (Mc 2,23), a simples narrao j apresenta o problema. Em Israel, a observncia do sbado era consequncia da eleio divina e prova de fidelidade a ela. Que no fosse um escndalo
para os fariseus a caminhada dos discpulos atravs dos campos em dia de sbado
tem a sua explicao no contexto; aqui, a polmica gira ao redor do motivo para
comer. O repouso sabtico impedia iniciativas, mesmo necessrias, normais nos
outros dias da semana. Embora no diretamente proibida (Dt 23,35), a ao dos
discpulos era, no mnimo, negligente: nenhuma razo se aduz para tal comportamento. No fundo, para Marcos, no h qualquer outra explicao a no ser a que
ser dada por Jesus.

Lei de Deus versus necessidade do homem



A pergunta e a surpresa dos fariseus so mais do que compreensveis
(Mc 2,24). No tanto pelo fato de os discpulos comerem o que no era deles (Dt
23,26), mas porque, colhendo o trigo, no respeitavam o repouso sabtico; de
fato, tudo o que se assemelhasse a fazer uma colheita era considerado como sua
violao (Ex 34,21).

a primeira vez que os fariseus se dirigem a Jesus no evangelho (cf. Mc
2,6.16.16); e fazem-no para afirmar a ilegalidade do comportamento dos seus
discpulos. A resposta de Jesus, que d como conhecido o fato aludido, insinua a
razo de os discpulos comerem: tinham fome (Mc 2,25).

Seja como for, Jesus no discute o caso particular e no segue literalmente, na citao, a narrao bblica (Mc 2,26; cf. 1Sm 21,1-10). Davi no se
apropriou dos pes da proposio (Ex 25,30; Lv 24,5-9), mas pediu-os a Abimelec; num caso de necessidade, o sacerdote decidiu a respeito do po reservado
ao templo. A Escritura refere o fato como simples episdio, sem pronunciar um
juzo sobre ele; mas na boca de Jesus insinua-se que a necessidade dos homens
de Davi torna desculpvel a ao do sacerdote. De fato, recorrer ao exemplo de
Davi como argumento uma ideia muito original de Jesus: nem mesmo os seus
antagonistas podiam pr em discusso que o sacerdote fosse um homem de Deus
exemplar.
394

O sbado, dom de Deus



curioso que Jesus, legitimando a liberdade dos discpulos ao evocar
a liberdade de Davi, omita a questo central do problema, que a transgresso
do sbado. Tambm no insiste na necessidade humana, na fome do discpulo,
como razo da dispensa do preceito: sendo uma exceo norma, isso s confirmaria sua vigncia. O que isenta do sbado no a necessidade extrema, o que
nem mesmo era o caso da comunidade crist quando ela no o observava. Jesus
considera somente a liberdade de Davi como justificativa da liberdade dos seus;
e ele mesmo, em ltima anlise, que ao defend-los, assume a responsabilidade
desta liberao. Os discpulos, portanto, so protegidos pelo escudo da deciso
do seu mestre: so livres, porque foram libertados.

Jesus, de forma inquestionvel, retorna agora ao assunto. Sua sentena no deixa de ter paralelos no judasmo de seu tempo, quando se permitia a
transgresso do sbado em caso de perigo da vida humana (Mc 2,27). Homem e
sbado so considerados desde o plano original de Deus: o homem foi querido
por Deus, dado que por ele foi criado (Gn 1,26-27) antes do sbado (Gn 2,2-3):
este um dom feito ao homem.

O homem no pode dispor do repouso sabtico; sua observncia obrigatria continua vlida. Mas, sendo um dom, no pode ser uma imposio: dado
ao homem, no para fazer dele um escravo, mas para libert-lo do af de produzir,
para possibilitar-lhe o repouso semanal. E, repousando, imitar o seu Deus. O
homem precede o sbado, que est a servio dele. O repouso, compreendendo
o preceito, est a servio do homem que, desse modo, pode ser cone de Deus,
imitando-o.

importante perceber em que Jesus apoia o seu raciocnio. O querer
primitivo de Deus tambm a norma absoluta e o critrio supremo de avaliao
para quando o seu Reino chegar. Jesus no se ope lei de Deus; ele quer que, de
novo, s ela seja a norma de vida do crente. A mesma argumentao, inslita e
arriscada, torna provvel a afirmao que saiu de sua boca. E, mesmo que no atual
contexto sua validade se limite ao caso do sbado, havia na origem uma dimenso
universal: o que Deus quis nos incios o que ser preciso respeitar para sempre
(Mt 19,4-6).

395

O poder de Cristo a servio da liberdade do cristo



Pensando bem, a proclamao do Filho do Homem enquanto senhor do
sbado (Mc 2,28) no est muito de acordo com a afirmao de que o sbado est
a servio do homem. O fato que quem decidiu a respeito do perdo dos pecados
(Mc 2,10) agora tem tambm o sbado sob o seu poder. Os dois poderes so, evidentemente, divinos, exclusivos de Deus.

A frase revela melhor a convico da comunidade crist do que a conscincia do profeta de Nazar. A comunidade sabe que sua liberao do sbado,
quando aps os acontecimentos pascais no mais celebrado, se deve autoridade que reconhece no seu Senhor, com quem ela segue caminhando ao longo da
vida; reconhece-lhe um poder que s pode ser atribudo a Deus (Lv 23,3). Para
a comunidade, quem faz as vezes de Deus o Filho do Homem. E os que o seguem sabem muito bem que Cristo ps sua soberania a servio da liberdade do
homem!

evidente que a liberdade adquirida pelo seguimento de Jesus se torna insuportvel para aqueles que no a conhecem, ou a criticam, s porque no
podem usufruir dela. Jesus atribuiu-se a autoridade de Deus e caminha para a
prpria morte (Mc 3,6); os dois fatos sempre estiveram unidos: Jesus exerceu o
seu ministrio ao longo do caminho para a morte. incrivelmente revelador que
ele, para defender os seus, tenha reagido aos inimigos, e continue a enfrentar o
seu destino: a liberdade do discpulo custar caro ao mestre.
No se pode negar que o seguimento de Jesus imps rupturas dolorosas e
distanciamentos impensveis. Todavia, no menos certo que isso deu aos
seus seguidores um sentido de liberdade insuspeita: liberdade de fazer o bem e
de cumprir o preceito de Deus, liberdade de serem ou melhor, de parecerem
bons. assim que vivemos hoje a nossa f crist? Seguindo Cristo qual a
liberdade que aspiramos?
Os primeiros discpulos, precisamente pela liberdade com que viviam os seus
compromissos para com Deus, ofereciam uma imagem que no combinava
com as expectativas dos melhores dentre seus contemporneos. Se entre ns
no se trata disso, perguntamo-nos alguma vez por qu? Como testemunhar
e o que quereria significar para ns a novidade de vida que caracteriza
o discipulado? Estaramos dispostos a pagar o preo de ser, e no somente
parecer, homens de Deus?

396

A autntica privao do cristo, a nica ausncia a suportar e o nico sofrimento sem consolao, consiste em ver-se privado de Cristo; tudo o mais
suportvel, inclusive a fome. O que no depende do fato de sermos ou no
culpados por essa ausncia: se Jesus no for o nosso companheiro, -nos
proibida a alegria da vida e as suas manifestaes. dessa forma que vemos
o jejum cristo? Se estivermos em jejum de Cristo, para que viver jejuando?

3. Convite orao pessoal



Senhor Jesus, seguir-te d-me novas possibilidades de vida; inspira-me a
tomar novas atitudes e estimula-me a comportar-me de forma diferente; seguir-te
uma aventura de liberdade mais do que um exerccio de renncia. Vem em defesa dessa liberdade que concedeste aos que te seguem. Mesmo se no percebemos
o que j alcanamos, no permitas que o percamos somente por no te agradecermos o bastante. Se tu no nos garantes a liberdade, o que ganhamos em seguir-te?
Como saberemos que estamos a te seguir, se aquilo a que renunciamos no pesa
mais do que aquilo que conquistamos?

Alimenta a nossa vida e os nossos desejos; que os nossos coraes sintam
fome de ti, para que possamos manter-nos no jejum de tantas coisas boas sem que
sua ausncia nos fira. Se nos virmos privados de ti, o que nos haver de saciar?
Torna-nos teus amigos, para que a nossa convivncia contigo seja uma festa contnua, e a tua ausncia, um pesadelo insuportvel.

Nada nos importe tanto quanto tu, que de ningum possamos sofrer tanto
como da tua ausncia. Ningum nos roube a alegria da vida, a no ser que nos
roube a ti. Onde tu ests a esteja a nossa festa; onde nos faltas, no haja para ns
vida segura nem felicidade certa. Ensina-nos a viver alegres contigo; no nos seja
possvel unir alegria de viver e vida sem a tua presena.

397

QUEM QUISER SEGUIR JESUS DEVER PAGAR


UM PREO MUITO ELEVADO
Quando se anuncia a cruz, seguir Jesus uma opo
(Mc 8,34-38)


Jesus inicia o seu ministrio pblico propondo a alguns homens que o
sigam (Mc 1,16-20), mas quer que se sintam livres aqueles que o quiserem seguir,
aps anunciar-lhes para onde Ele se dirige: morrer na cruz em Jerusalm (Mc
8,31-32). Jesus exorta os discpulos e o povo a refletirem e tomarem cincia dos
sacrifcios que o seu seguimento comporta, antes de se declararem dispostos a
assumi-los. Dado que Ele pede sacrifcio, melhor que reflitam bem: Jesus quer
seguidores voluntrios.

Pedro reage, recusando-se a aceitar o primeiro anncio de Jesus sobre
a sua morte prxima (Mc 8,32b). Jesus, por sua vez, renega o discpulo que, de
crente, passa a ser tentador (Mc 8,33). A ignorncia do primeiro confessor da
f ntida e pblica diante dos outros discpulos, porque opor-se ao destino de
Jesus, desejado por Deus, no uma questo reservada. Pblica tambm ser a
catequese sobre o seguimento de Jesus (Mc 8,34), e sem meios-termos. A cruz
inevitvel; no s para Cristo, mas tambm para quem convive com Ele. Quem o
segue desde o incio deve segui-lo at o fim: no h Cristo sem paixo; sem ela,
tambm no h cristos.

1. Ler o texto

De forma inesperada, sem saber donde vem, surge a multido aglomerada ao redor de Jesus reunido com seus discpulos (Mc 8,27; 9,14). Jesus amplia o
grupo dos ouvintes quando radicaliza suas exigncias (Mc 8,34a). Embora o ensinamento continue a ser centralizado no seguimento e nas consequncias que dele
resultam, Ele no restringe seu pblico aos discpulos. O povo no deve ignorar o
preo do seu seguimento. Quando se trata da cruz, a oportunidade do seguimento
oferecida a todos sem distines. Jesus proclama publicamente as condies
para ser seu discpulo. Qualquer um pode ser, desde que aceite as condies.

398


O fato de reunir uma multido ao seu redor deve servir de advertncia
aos seguidores despreocupados, como ns. No basta conviver com Ele, nem
anunciar o Evangelho em seu nome e com a sua autoridade. Se aqueles que compartilham com Ele a vida e as fadigas no esto dispostos a compartilhar tambm
o seu fim, no so dignos de segui-lo. A condio nova e o seguimento, agora,
livre. Tomar a cruz e segui-lo no ser caracterstica exclusiva dos seus discpulos, mas de todo aquele que se declarar pronto a faz-lo. Quem no estiver
disposto a pagar o preo, no ser discpulo, embora se esforce por segui-lo.

O discurso breve e a sua formulao, perfeita; ser mais eficaz. Depois
de ampliar o seu pblico, que agora inclui tambm a multido, Jesus dirige-se a
um grupo restrito, o grupo daqueles que de fato querem segui-lo. Fala multido, incluindo os discpulos, mas se dirige exclusivamente queles que realmente
pretendem ser seus seguidores. Todos devem conhecer as condies. Todavia, s
ser considerado seu seguidor quem as aceitar.

A condio inicial coloca o seguimento de Jesus ao alcance de todos os
que o quiserem. Entretanto, embora se suponha, a vontade no basta: seguem os
trs imperativos (renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me), dois dos
quais precedem o definitivo siga-me (Mc 8,34). Em continuao, Jesus aduz trs
argumentos, expressos de forma paralela (em torno de uma anttese, em Mc 8,35,
ou de uma sinonmia, em Mc 8,36-37.38), para servirem de fundamento sua exigncia: o primeiro tem o Evangelho como critrio do lucro ou da perda; o segundo oferece uma reflexo proverbial; o terceiro adverte quanto s consequncias
perigosas para quem se envergonhar de Jesus. As trs interpretaes, apesar da
sua inteno e origem diversas, funcionam aqui como um comentrio ao trplice
imperativo em que deve basear-se a vida do discpulo.
Em seguida, convocando a multido juntamente com os seus discpulos, disse-lhes:
Se algum me quer seguir,
renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.
35
Porque o que quiser salvar a sua vida, perd-la-;
mas o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho, salv-la-.
36
Pois que aproveitar ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a
sua vida?
37
Ou que dar o homem em troca da sua vida?
34

399

Porque, se algum se envergonhar de mim e das minhas palavras nesta gerao adltera e pecadora, tambm o Filho do homem se envergonhar dele,
quando vier na glria de seu Pai com os seus santos anjos.
38


De uma coleo de sentenas de Jesus, Marcos fez uma verdadeira e
prpria catequese a respeito do autntico discipulado. No basta confessar a f
verdadeira; ser preciso estar disposto a repetir a sua via crucis. o que Pedro
ainda no tinha compreendido. A confisso da f impe um novo modo de vida:
aquilo em que se cr (Cristo caminhou para a morte na cruz) deve ser norma de
comportamento (levar a cruz prova do seguimento de Cristo). O cristo no
apenas um crente; ele tem vocao para mrtir. No se pode ser discpulo de Jesus
sem aprender dEle como entregar a prpria vida.

2. Compreender o texto


O seguimento estende-se a todos, mas h condies para isso, e muito
duras. Jesus no convida a segui-lo (Mc 1,17.20; 2,14); simplesmente adverte os
que se julgam dispostos a isso (Mc 8,34). Mais do que propor um modo de vida,
chama a ateno dos que esto vivendo essa experincia, para que no assumam
esse tipo de vida com leviandade. Jesus no manda segui-lo imediatamente (cf.
Mc 1,17.20), mas adverte quem deseja faz-lo, seja discpulo ou no: no basta a
simples vontade de segui-lo, preciso comportar-se de determinada maneira para
se pr em seu seguimento. Se no se vive de determinada forma, no se vive, por
mais que se deseje seguir a Cristo.
Condies para segui-lo

As condies so muito duras. S aos que desejarem ser verdadeiramente
discpulos de Jesus que pouco importaro as condies impostas. Pode-se escolher quem se quer seguir, mas no se pode escolher a maneira de segui-lo. O Filho
do Homem (Mc 8,38) no merece seguidores que no assumam as responsabilidades prprias do itinerrio.

Renunciar-se a si mesmo (cf. Mc 14,30-31.68.70.72) implica abandonar
os prprios projetos e a prpria vida e pr-se disposio de quem est condu400

zindo. Libertar-se de todo tipo de apoio, no ter outra segurana a no ser a de


quem se entrega ao Outro, Deus ou o seu Cristo (Mc 10,18). Interpretar a negao
como derrota das paixes ou a pacincia perante as contrariedades seria banalizar
o pedido de Jesus. Renunciar-se a si mesmo significa renunciar pretenso de
ser o motor de si e a finalidade da prpria vida; implica, portanto, renunciar a si
mesmo e centrar a prpria vida no Outro (cf. Gl 2,20).

Tomar a sua cruz, na mente do evangelista, supe assumir o plano de
Cristo como prprio, o seu caminho para a morte na cruz (Lc 14,27). Marcos e
a sua comunidade sabem para onde leva a via crucis. O fato de sab-lo, porm,
no significa necessariamente aceit-lo. Sab-lo, antecipadamente, pode tornar
mais fcil a desculpa ou a fuga. Por isso, o evangelista, no contexto da histria da
paixo, na interveno do cireneu (cf. Mc 15,21; cf. Jo 19,17), descrever meticulosamente para seus leitores a atitude requerida.

No sendo a morte na cruz uma prtica inslita no tempo de Jesus, sua
afirmao, mais do que predio da sua morte cruenta, foi um convite aos seus
discpulos a levarem a srio o seguimento, sem evitar as suas consequncias.
Jesus podia ser facilmente compreendido quando ps como condio para seus
bem-intencionados seguidores que assumissem a prpria cruz. E, ateno, Ele
no pede que o ajudem a carregar a sua, mas pede que cada um carregue a prpria
como condio para segui-lo. Quando se segue Jesus, preciso estar disposto a
sofrer qualquer coisa. Ser discpulo de Jesus supe arriscar a prpria vida, sem
excluir a pena de morte. No segue Cristo quem rejeita a cruz; no discpulo
quem conviveu e colaborou com Ele (Mc 3,15; 6,7.13), mas quem compartilha
o seu caminho rumo ao Calvrio: a companhia de Jesus obriga a aceitar a cruz
como destino prprio e inevitvel.

Aps os acontecimentos pascais, a comunidade reinterpreta a palavra de
Jesus luz da experincia da sua morte na cruz. Segui-lo requer conhecer a rejeio e sofrer perseguio. S a perda (ou melhor, a entrega) da vida liberta da
exigncia de carregar a cruz; enquanto se tem vida e se persevera na vontade de
segui-lo, a cruz continuar a ser o caminho e o destino do seguidor do Crucificado: o discpulo chamado, obrigado, ao martrio.
O desprezo da prpria vida como salvao

Como apoio, e com uma afirmao paradoxal, introduzida uma nova
dimenso no tema do seguimento: o dio da prpria vida (Mc 8,35; cf. Lc 14,26).
401


A alternativa situa-se entre perder a vida hoje, ou salv-la hoje e perd-la
para sempre (cf. Jo 12,25). No h contraposio entre uma presumida vida presente e uma vida futura; no se contemplam duas vidas. Portanto, no se trata de
renunciar terra para conquistar o cu. No morre necessariamente quem perde a
prpria vida, mas viveria inutilmente quem no a doasse voluntariamente. S tem
futuro a vida daqueles que, entregando-a hoje, sabem coloc-la em risco. O discpulo se salva, no quando se esquiva, mas quando se entrega; quer dizer, conserva
a vida quando a entrega. Compreende-se que, como no possvel uma distino
entre o plano material e o espiritual, a renncia no s em relao vida que
se tem, mas, sobretudo, em relao ao projeto que cada um tem a respeito desta
ltima.

A sentena poderia ser atribuda sem dvida a Jesus. Caracteriza a sua
atuao histrica e uma das suas afirmaes mais testemunhadas na tradio.
Jesus teria insistido sobre o fato de que ningum pode ser salvo sem enfrentar os
perigos que o seu seguimento comporta; evit-los, levaria a evitar o sucesso que
se busca a qualquer custo. Portanto, no se trataria de conseguir alguma coisa
melhor, mas de garantir que se conquista o que mais se busca, quando se entrega
tudo. Na verso de Marcos, Jesus pe os seus seguidores diante de uma deciso
de vida ou de morte. A frase lembra o discpulo de que reivindicar uma salvao
pessoal, livrando-se das exigncias de Jesus ou proteger-se contra elas, comporta
sua perda definitiva. Seguir Jesus e tomar a prpria cruz pode parecer uma perda
momentnea, mas na realidade o nico ganho autntico.

A entrega deve ser total, no, porm, imotivada, sem razes. Marcos
identificou as motivaes: Cristo e o seu Evangelho (cf. Mc 10,29). Isso significa
que somente a sua pessoa e a sua pregao merecem a vida do cristo e os seus
sofrimentos. A relao pessoal com Cristo e a misso apostlica que justificam
uma vida entregue. O que no pouco. Nada nem ningum podem esperar do
discpulo e muito menos exigir a entrega desinteressada de si mesmo. Se o
cristo deve arriscar a prpria vida por Cristo e o seu Evangelho, s eles merecem que ela seja colocada em jogo. Ningum mais merece a vida do discpulo,
nem justifica a sua entrega total.
Conquistar o mundo e perder a vida


A frase, de cunho sapiencial, mais do que uma verdade simples e evidente. De nada serve conquistar o mundo, quando se perde a alma. insensato
402

tentar ganhar tudo, quando se pe a prpria vida em risco (Mc 8,36; cf. Lc 12,1620). Levar em considerao os limites da prpria vida leva a pr limites tambm
ao desejo de possuir. No merecem a vida os bens que no podem garantir a verdadeira vida; no so dignos dela; a vida que torna bons todos os bens possveis.
Aqui, pois, critica-se o fato de colocar a vida em perigo nico bem que resiste
ao confronto com todos os demais bens pelo fato de no coloc-la suficientemente em jogo: o martrio por causa de Cristo a melhor maneira de garantir a
vida.

A vida, alm de ser o nico bem que sustenta os demais bens, preciosa pelo fato de no ter preo. A segunda pergunta retrica insiste no valor da
prpria existncia (Mc 8,37): no se pode dar nada em troca da vida (Sl 49,8-9).
Por conseguinte, vale pouco tudo o que no serve para conserv-la. O homem
no pode contar com nenhum outro bem que seja to bom, a ponto de poder ser
moeda de troca da prpria vida. A perda dos bens autnticos, incluindo a vida,
no tal se no for definitiva.

A nica coisa que se deve conservar aquilo que jamais se poder recuperar. preciso avaliar a bondade do que temos ou desejamos, e saber apreci-la
a partir daquilo que ainda deve vir. O juzo futuro de Deus, por ser definitivo,
deve ser o critrio de discernimento do bem e do mal, do que podemos perder e
do que no podemos arriscar. No seguimento de Cristo, que exige que se carregue
a cruz, o cristo obtm gratuitamente seu seguro de vida (Mc 10,45).
A vergonha de ser cristo

A advertncia ao discpulo que ousa rejeitar o seu Senhor ainda mais
grave agora que o seu comportamento um simples sentimento de vergonha
relacionado deciso final do Filho do Homem no juzo futuro (Mc 8,38).

Jesus no contempla o pior dos casos, a negao (cf. Lc 12,8-9); Ele
fala da vergonha que se sente por causa dEle e de suas palavras. Corar, sentir-se
embaraado diante do Homem que caminha para a cruz implica sentir-se rejeitado para sempre quando o Filho do Homem vier. Levando os seus leitores em
considerao, Marcos atualizou a frase tradicional, iluminando a possvel origem
humana da renncia e estendendo-a, no s pessoa de Cristo, mas tambm sua
pregao. Deste modo, aumenta a responsabilidade do discpulo, pois o pe em
guarda quanto aos seus sentimentos, e no s s suas aes, que tm Cristo e o
Evangelho como sua razo de ser.
403


A vergonha do discpulo explica-se por ele ter de conviver com uma gerao adltera e pecadora (Mt 12,39; 16,4). O contato com quem renunciou a
Deus torna difcil para o crente a confisso da f. Viver entre gente incrdula deve
estimular o testemunho. Dado que se fala de vergonha, no se deve supor que o
discpulo fatalmente consumar sua traio; basta que ele no fale do Evangelho
ou no sinta orgulho em proclam-lo. Em vez de justificar o pecado, Jesus aponta
suas consequncias: seus discpulos esto pondo em jogo alguma coisa alm do
que a convivncia com o seu Senhor ou a sua exata compreenso quando, sem
mesmo chegar a neg-lo, envergonham-se dEle publicamente. Seguir Jesus
correr um grave risco. Mas, para quem conhece os riscos, existe esta vantagem:
Jesus deixa a cada um a liberdade de segui-lo ou no.
No se deve esquecer que Jesus s fala da necessidade de tomar a prpria
cruz depois de ter anunciado a sua morte. No impe a ningum um caminho
sem, antes, Ele mesmo o percorrer. Mas, antes de enveredar por ele, tambm
no esconde que aos seus seguidores cabe o mesmo destino. Pedro se ope ao
simples fato de Jesus pensar em morrer crucificado; podemos imaginar a sua
reao se tivesse ouvido de Jesus que tambm a ele caberia sofrer a mesma
sorte? Existe sempre a mesma reao do discpulo diante da cruz: desde os
primeiros discpulos, esta reao se repete com todos os seguidores de Jesus.
Ou somos, talvez, melhores do que eles?
Faz pensar o fato de Jesus se dirigir multido, e no exclusivamente aos
discpulos, quando apresenta o seguimento como opo livre. Ele radicaliza
as condies e amplia o nmero de pessoas s quais se dirige. Estaria muito
seguro quanto aos que o seguiam at aquele momento, ou quereria acrescentar
outros mais, dando-lhes uma nova oportunidade? , de fato, uma nova oportunidade a negao de si mesmos e a aceitao da cruz pessoal? preciso
consider-la tal, s porque Jesus quem o diz?
Por trs das exigncias de Jesus, propostas aos discpulos, h uma convico
muito pessoal, que d sentido sua vida: quem no arrisca a prpria vida no
merece Jesus. De fato, s Jesus, o seu Deus e o Evangelho merecem a vida
do discpulo. radicalidade maior deve-se proporcionar maior liberdade.
assim que hoje se vive o discipulado? Ns, cristos de hoje, damos testemunho
de que Deus e o seu reino so preferveis s nossas vidas? O que preciso fazer
para alcanar tudo isso? Em outras palavras, concretamente, como podemos
tornar significativas as nossas vidas?

404

3. Convite orao pessoal



No parece verdade, Senhor, que ponhas diante do imperativo de dar a
prpria vida precisamente aquele que no soube resistir ao anncio da tua morte.
Pedagogicamente falando, no tiveste muito sucesso em responder resistncia
de Pedro com a imposio do teu mesmo destino. No foi tambm muito gentil
propor essas pretenses inauditas diante de todo o povo: em se tratando de problema dos teus seguidores, convinha resolv-lo entre os que j te seguiam. Para
que serve, ento, seguir-te por toda a Galileia, se, ao final, ofereces a todos a
mesma oportunidade? Poderias t-lo dito antes, e ns teramos poupado esforos
e iluses

No sei se tens conscincia do que nos pedes. Quando foi que um mestre
pretendeu exigir tanto dos seus discpulos? O aprendiz s quer aprender a doutrina, conhecer a Deus e o mundo; no pensa minimamente em compartilhar a
sorte e a desgraa com seu mestre. E precisamente isso que nos pedes. Exageraste. Bem, pelo menos nos advertiste claramente: se no quisermos ver-te passar
adiante sem nos dizer nada ou sem que aprendamos alguma coisa de ti, devemos
estar dispostos a viver e morrer como Tu.

Tu, Senhor, mereces a minha vida, somente Tu. Para no te perder, e
para que o teu Evangelho no perca novos discpulos, perderei a minha vida, mas
somente se Tu me acompanhares e me precederes. Sem ti, nada me proveitoso
e tudo lucro contigo, seja l o que for que estiver em jogo. Se estiveres comigo,
o mundo ser o cu para mim, e, se estiveres longe, o cu ser o inferno. Nada
recusarei, se puder seguir-te, at onde eu puder seguir-te, inclusive a caminho
de uma vida sem sentido ou uma morte na cruz. No me envergonho de ti, meu
Senhor crucificado, nem me incomoda a minha cruz pessoal: basta-me o que sou,
se Tu no te envergonhares de mim, hoje, diante dos homens e, amanh, diante
do teu Pai e dos seus anjos.

Embora, pensando bem, a este preo, quem querer seguir-te? No me
parece uma opo muito racional arriscar tudo, inclusive a vida, e seguir-te: Tu,
crucificado, e eu, carregando a cruz. Tenho muito medo, Senhor, que, se me deixares livre, ficars mais uma vez sozinho No me abandones, e eu no te abandonarei.

405

JESUS S UM BEM PARA QUEM NADA POSSUI


Crnica de uma vocao frustrada
(Mc 10,17-22)


Aps instruir os discpulos (Mc 9,33-50) e o segundo anncio da Paixo (Mc 9,30-32), na crnica do caminho para Jerusalm (Mc 10,1-52), Marcos
apresenta Jesus pela ltima vez na Judeia, como mestre das multides e dos discpulos. Concretamente, esta cena se caracteriza pela incompatibilidade entre a
posse de bens e o seguimento de Jesus: o bem do bom discpulo deve ser s Jesus,
a quem ele segue. Jesus no admite que os bons conservem os prprios bens e
entrem em concorrncia com Ele. Aos seus, Ele pede entrega exclusiva. No se
pode ter Jesus como bom mestre e ao mesmo tempo conservar riquezas pessoais.
Este o nico relato evanglico de uma vocao sem resposta afirmativa. A lembrana do encontro com Jesus do jovem que era to bom quanto rico serviu
comunidade crist para dar resposta questo dos bens no seguimento de Jesus.
Os primeiros cristos poderiam identificar-se com os primeiros discpulos, que
tinham abandonado tudo para seguir Jesus. Seu chamado no fora consequncia
de uma vida de obedincia lei, mas uma resposta ao convite pessoal de Jesus.

1. Ler o texto

Magistral em sua composio,1 o relato apresenta-se como um dilogo
contnuo no qual Jesus o principal protagonista. Distinguem-se trs cenas,
medida que se sucedem os interlocutores um desconhecido, os discpulos ou
Pedro: o encontro de um jovem com Jesus (Mc 10,17b-20), o comentrio de Jesus
aos discpulos (Mc 10,23-27), a reao dos discpulos diante do radicalismo de
Jesus (Mc 10,28-31).

O dilogo de Jesus com o rico (Mc 10,17b-22) inicia um tanto bruscamente. Pelo caminho, algum se aproxima de Jesus, no por estar interessado
nele, na sua pessoa, mas em si mesmo, na prpria salvao. O encontro ocorre
Transmitida pelos trs sinticos (Mc 10,17-31; Mt 19,16-30; Lc 18,18-30), a verso de Marcos
descreve de forma mais detalhada o comportamento e a afetividade dos protagonistas: o jovem
ajoelha-se (Mc 10,17); Jesus olha-o com amor (Mc 10,21); o jovem afasta-se entristecido (Mc
10,22), os discpulos reagem com estupor crescente (Mc 10,24.26).

406

por solicitao do desconhecido. Jesus responde s preocupaes do interlocutor,


embora s de forma aparente; na realidade, com grande maestria, liberta-o das
suas preocupaes um tanto egostas e prope-lhe a perfeio: de desconhecido
passa a ser amado.
Tendo ele sado para se pr a caminho, veio algum correndo e, dobrando os
joelhos diante dele, suplicou-lhe:
Bom Mestre, que farei para alcanar a vida eterna?
18
Jesus disse-lhe:
Por que me chamas bom? S Deus bom.
19
Conheces os mandamentos: no mates; no cometas adultrio; no furtes; no
digas falso testemunho; no cometas fraudes; honra pai e me.
20
Ele respondeu-lhe:
Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha mocidade.
21
Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe:
Uma s coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e d-o aos pobres e ters um
tesouro no cu. Depois, vem e segue-me.
22
Ele entristeceu-se com estas palavras e foi-se todo abatido, porque possua muitos bens.
17


Depois que o jovem rico foi embora,

Jesus comenta seu fracasso com os discpulos (Mc 10,23-27). A cena
abre-se e fecha-se mencionando o olhar de Jesus (Mc 10,23.27), que insiste na
sua dificuldade, numa espcie de catequese sobre o ingresso no Reino. Os discpulos, estupefatos num primeiro momento (Mc 10,24), depois interessados (Mc
10,26), so os nicos destinatrios deste ensinamento e, pelo menos desta vez,
compreendem bem o que Jesus lhes diz. No se trata do fato de ser difcil para os
homens, mas que s Deus pode tornar possvel a entrada no Reino.
E, olhando Jesus em derredor, disse a seus discpulos:
Quo dificilmente entraro no Reino de Deus os ricos!
24
Os discpulos ficaram assombrados com suas palavras. Mas Jesus replicou:
Filhinhos, quo difcil entrarem no Reino de Deus os que pem a sua confiana nas riquezas! 25 mais fcil passar o camelo pelo fundo de uma agulha
do que entrar o rico no Reino de Deus.
26
Eles ainda mais se admiravam, dizendo a si prprios:
Quem pode ento salvar-se?
27
Olhando Jesus para eles, disse:
Aos homens isto impossvel, mas no a Deus; pois a Deus tudo possvel.
23

407


Pedro expressa a reao dos discpulos diante do radicalismo de Jesus
(Mc 10,28-31). A problemtica pessoal do jovem desaparece totalmente da narrao. Pedro, que pensa j ter superado o que parecera impossvel ao jovem rico,
consegue arrancar de Jesus uma promessa de recompensa para o momento presente e para o futuro. Seja o que for que se abandone e so sete as coisas elencadas tudo ser levado em conta. No deixa de ser interessante o fato de Jesus
no mencionar somente, nem em primeiro lugar, as propriedades. H mais coisas
a deixar do que os simples bens materiais.
Pedro comeou a dizer-lhe:
Eis que deixamos tudo e te seguimos.
29
Respondeu-lhe Jesus.
Em verdade vos digo: ningum h que tenha deixado casa ou irmos, ou irms, ou pai, ou me, ou filhos, ou terras por causa de mim e por causa do Evangelho 30 que no receba, j neste sculo, cem vezes mais casas, irmos, irms,
mes, filhos e terras, com perseguies e no sculo vindouro a vida eterna.
31
Muitos dos primeiros sero os ltimos, e dos ltimos sero os primeiros.
28

2. Compreender o texto

Enquanto Jesus caminhava, certo homem corre-lhe ao encontro,2 e, com
grande respeito, ajoelha-se diante dEle. O gesto inslito, como tambm o a
saudao: bom mestre mais do que uma simples cortesia (Mc 10,17).

O homem quer saber o que deve fazer para possuir a vida eterna, e considera Jesus bastante bom para poder perguntar-lhe. A sua pergunta nasce da
confiana em Jesus. Sabe que deve respeitar a lei, e pergunta o que deve fazer.
Pergunta, no para se livrar da observncia de certas normas, mas para melhorar.
E o que mais importante, pelo mesmo fato de perguntar, ele se declara disposto
a fazer qualquer coisa, tudo o que lhe for dito.
O bem que Deus quer fazer o bem ao prximo

Antes de responder, Jesus mostra-se surpreendentemente crtico com seu
interlocutor. No recusa a cortesia exagerada da saudao, mas sim o fato de atriAs passagens paralelas apresentam-no como um jovem (Mt 19,22) ou uma pessoa de relevo, um
notvel (Lc 18,18).

408

buir-lhe alguma coisa prpria e exclusiva de Deus, a bondade. No aceita que se


lhe atribua o que cabe exclusivamente a Deus (Mc 10,18). Por isso, no corrige
a pergunta, nem o interesse que lhe deu origem, mas a postura de base do seu
interlocutor.

Sua resposta reveladora. Repete, sem comentrio nem explicaes detalhadas, a segunda parte do Declogo (Mc 10,19, cf. Ex 20,12-14; Dt 15,16-20):
esta a vontade do bom Deus. Se no h nada de especial em Jesus se referir ao
Declogo como regra de vida para todo fiel, o fato de reduzir a enumerao dos
preceitos a maior parte so proibies aos de cunho social, esta uma interpretao pessoal sua: a santidade que conduz ao Reino aberta a todos, com a
condio de que se use de bondade para com o prximo, e este comportamento
consiste essencialmente em no lhe fazer nenhum mal. O culto devido a Deus
consiste em cultivar a fraternidade entre os crentes. A cena poderia terminar aqui:
o homem recebeu a resposta desejada. Todavia, em vez de ir embora, ele far uma
confisso que impressiona Jesus (Mc 10,20). Jesus certamente no a esperava. De
fato, Ele muda sua maneira de comportar-se com o interlocutor, olha-o de outra
forma (Mc 10,21). Jesus tem diante de si algum que no est disposto a fazer o
que lhe pedido, mas que admite j t-lo feito, tudo e sempre, desde a juventude.
Jesus fica fascinado por este jovem bom.

Para compreender a nova exigncia de Jesus preciso levar em conta que
ela foi precedida pela sua comoo pessoal (Mc 1,16.19; 2,14). Antes de proporlhe uma mudana radical, Jesus muda completamente de postura para com ele.
Por isso, poder indicar-lhe a nica coisa que ainda lhe falta, dado que j no lhe
falta o Seu amor. O jovem est cheio de amor, mas ainda lhe falta alguma coisa.
A nova exigncia de Jesus prova do amor que Ele nutre pelo jovem.
O que ainda falta ao jovem realmente bom

A nica coisa que lhe falta deixar tudo o que possui, vend-lo, d-lo aos
pobres e seguir Jesus. A nova proposta de Jesus no responde vontade divina
expressa no Declogo. uma nova possibilidade de viver a vida de obedincia a
Deus que o jovem j segue com grande sucesso. Dar esmola e acumular tesouros
no Reino eram obras boas, vivamente recomendadas pela piedade judaica, mas
no podiam ser consideradas necessrias, nem, tanto menos, exigiam a alienao
total dos bens. Ao passo que, para este homem bom, o seguimento de Jesus inclua tudo isso (Mc 1,39, 2,23, 7,14, Lc 8,3).
409


Na proposta de Jesus no h uma atitude negativa diante das riquezas.
No se trata de considerar maus os bens do jovem, menos ainda avali-los como
injustos, dado que somente o seguimento de Jesus justifica sua completa alienao. Entretanto, sua posse no prefervel, nem muito menos como neste
caso compatvel com a companhia de Jesus quando algum se pe a segui-lo:
carregados de bens, no se pode seguir o Bem. Jesus no pretende tornar pobres
aqueles que o seguem, mas fazer de modo que no possuam outro bem alm dEle
mesmo. Dar demasiada ateno a outros bens impede que algum seja considerado suficientemente bom para ser objeto da Sua ateno.

O desconhecido, apesar da sua bondade, no consegue aceitar a exigncia de Jesus. Falta-lhe apenas uma ltima coisa, mas no est disposto a sacrificla. Sem dizer uma palavra, triste e abatido, abandona Jesus, pois no consegue
abandonar tudo o que possui (Mc 10,22). Conserva os seus bens, mas perde a
alegria e o bom mestre. Suas riquezas no lhe impediram de ser um bom cristo,
mas tornaram-lhe impossvel ser um simples discpulo.

Para explicar a reao do jovem, o evangelista alude pela primeira vez
s suas grandes riquezas. Os bens possudos por maiores que sejam no do felicidade hoje e tornam difcil a salvao amanh. Agarrar-se aos prprios bens
pode levar perda de Jesus. possvel ser bom, mas no o suficiente para seguir
Jesus. possvel ser irrepreensvel no cumprimento da vontade de Deus, chegar
at mesmo a ser amado por Jesus e distinguido em meio multido por um convite pessoal..., mas apegar-se s prprias riquezas no possibilita ter Jesus como
mestre.
A impossvel salvao do rico

O olhar de Jesus precede o seu ensinamento. Agora, ele fala aos que o
rodeiam, comentando o acontecido. De uma falncia pessoal Ele faz motivo de
ensinamento.

Possuir o Reino difcil para os que possuem riquezas (Mc 10,23). Jesus
no fala ainda da impossibilidade (Mc 10,26), mas acentua a dificuldade (Mc
10,24). Alm disso o que surpreendente insere aqui a questo do ingresso
no Reino, quando o convite que fizera ao bom rico era, em contrapartida, que o
seguisse sendo pobre.
410


A reao dos discpulos mais do que lgica. Eles no podem deixar
de expressar a admirao despertada neles pela declarao de Jesus (Mc 1,27;
10,32). Na tradio religiosa judaica, a riqueza, longe de ser um obstculo para
entrar no Reino, era prova do favor divino (Dt 28,1-14). Os seguidores de Jesus
do-se conta de que a dificuldade de se salvar no s para os que possuem
muitas riquezas, mas para aqueles que identificam o prprio bem com a posse de
riquezas (Mc 10,24, cf. Lc 6,20.24). No , portanto, a salvao do rico que est
ameaada, mas a do homem em geral (Mc 10,26).

Embora Jesus se mostre mais prximo dos seus discpulos, tratando-os
com maior intimidade (chama-os de filhinhos), longe de contradizer-se, Ele insiste no que disse. A dificuldade, em vez de diminuir, aumenta: no necessrio
dispor de bens prprios, basta que se deposite neles toda a confiana para tornar
difcil a entrada no Reino. Portanto, no decisivo possuir bens, mas colocar neles a prpria segurana. Jesus simplesmente procura advertir a todos que, diante
de Deus e do seu Reino, tudo deve ser pequeno e suprfluo. Quem no considera
insignificante tudo o que possui torna insignificante o prprio Deus.

E sublinha a dificuldade com uma hiprbole. mais fcil um camelo
passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus (Mc
10,25). O exagero evidente: na prtica, o humanamente impossvel resulta ser
o mais fcil. O rigor da posio de Jesus reflete um fato da experincia e , ao
mesmo tempo, uma sria advertncia; deixar-se possuir pelos prprios bens
pode levar a perder o Reino to esperado. A confiana depositada nas prprias
riquezas arruna a esperana de um futuro melhor. Apegar-se aos bens que podem
monopolizar significa ficar sem as expectativas de um Bem maior.

A reao dos discpulos garante-nos que desta vez compreenderam bem
o seu mestre (Mc 10,26). Estabelece-se o terror entre eles, mas no criam coragem de fazer perguntas a Jesus. Esto tristes pela incapacidade radical do homem
no do rico! de salvar-se. Agora, o que os deixa preocupados no mais a
entrada do rico no Reino, mas, simplesmente, a prpria salvao. Se nem mesmo
os bons, embora ricos, podem, quem ento conseguir entrar?

O olhar de Jesus precede, de novo, as suas palavras (Mc 10,27). Ele
responde confirmando a incapacidade de o homem obter a salvao. A vontade
de Deus de oferecer a sua ajuda resplandece mais quando o homem nutre poucas
esperanas: tambm o rico pode ser salvo, mas o homem, rico ou pobre, no pode
salvar-se com as prprias foras ou graas s suas riquezas. Independentemente
411

do que ou do que possui, o homem depende de Deus. No precisa de riquezas


para garantir sua salvao. Tudo dom de Deus e Deus o nico bem inalienvel.
Somente Ele pode salvar.

Porta-voz dos discpulos (Mc 8,29.32; 9.5), Pedro observa que, diversamente do jovem rico, eles renunciaram a tudo, no s famlia e ao trabalho
(Mc 10,28; Cf. 1,16-20). Proclama enfaticamente que abandonaram tudo e escolheram Jesus. Os discpulos afirmam ter superado a prova que o jovem rico no
soubera vencer. Eles tero alguma forma de recompensa futura por terem Jesus
como seu nico bem. Esto cientes da grandeza da prpria renncia e aguardam
uma recompensa proporcionada: algo devido a quem tudo abandonou.
S Cristo e o Evangelho merecem as nossas renncias

Empenhando a sua autoridade, Jesus responde com uma promessa que
supera de longe a inteno e as palavras de Pedro (Mc 10,29). Pode-se ter a certeza de que no somente eles, mas todos aqueles que tiverem renunciado a alguma
coisa na prpria vida, tero a sua recompensa. Alm disso e com isso supera de
muito o egosmo do discpulo no precisa ter renunciado a tudo, mas, seja qual
for a coisa renunciada, isto j d direito a uma recompensa. A enumerao das
renncias possveis eloquente. Citam-se, em paridade de condies, bens, casa
e campos, e membros da famlia a que se pertence (Mc 10,30). No se exige que
todos renunciem a tudo, basta que alguns se livrem de algumas das suas riquezas.

A renncia no deve ser genrica; ela caracteriza-se por alguns contedos
(coisas e pessoas queridas)3 e duas causas (Cristo e o Evangelho). No se pode renunciar aos bens, sejam eles objetos bons ou boas pessoas, por qualquer motivo.
Alm disso, o motivo pelo qual se renuncia no os torna menos bons. Devemos
ter boas razes para renunciar ao que possumos. S uma relao estreita com
Cristo e o esforo missionrio justificam a renncia dos nossos bens; de fato, eles
no perdem seu valor, mas no so o melhor para ns.
O cntuplo de tudo, por qualquer coisa

Com o cntuplo prometido garantida, no s a recompensa, mas tambm o compromisso divino de torn-la realidade. o jeito de Deus recompensar
os que o ouvem e fazem a sua vontade (Mc 4,7-20).
sintomtico que a individuao das pessoas queridas seja mais ampla do que a das coisas. Ser
porque elas so o nosso bem mais precioso? Ou talvez porque so as que mais nos possuem?
3

412


A recompensa no simples promessa. Seguir Jesus leva a sentir-se reconhecido por um Deus que alarga at limites insuspeitos aquilo que se deixou.
Mas Jesus no ilude com a omisso dos aspectos negativos. significativo que
esta restituio, por mais que se multiplique, no ser isenta de sofrimentos e de
violncias externas. A fraternidade crist compensa a famlia perdida, mas no
est livre de perigos (cf. Lc 12,52-53, 13,12-13). A vida eterna, porm, no est
sujeita a limites ou ameaas; ela a recompensa futura.

O salrio presente, embora generoso, limitado. S a vida eterna haver
de retribuir de fato o seguimento; s no futuro Deus saldar cabalmente a sua
dvida para com os que seguiram Cristo, abandonando tudo. Ter um Deus endividado com o homem a melhor garantia de um futuro inesperado.

quando os ltimos sero os primeiros (Mc 10,31). primeira vista, o
juzo final no casa bem com a questo da recompensa para o discpulo, dado que
promete uma inverso radical dos privilgios. A ordem atual no definitiva;
a vinda de Deus provocar uma inverso de posies e de valores, de situaes
alcanadas e de privilgios concedidos. O discipulado, nascido da renncia feita
por Cristo e pelo Evangelho, o lugar em que se realiza uma mudana drstica de
todos os privilgios e valores.

Se os primeiros podem ser os ltimos, o discpulo s tem a promessa,
ainda no tem a recompensa garantida. Sendo o ltimo, no deve ter inveja do
primeiro; enquanto Deus no tiver dito a ltima palavra, ningum, nem mesmo
os primeiros, tm seu prmio garantido. Esta incerteza no deve levar ao desnimo, pois ela se baseia na promessa de Deus. Mas quem ainda est a caminho,
no deve contentar-se com o que j alcanou, nem estar certo de no perd-lo. A
melhor maneira de conservar a esperana mant-la viva sem outras iluses.
A lembrana do jovem rico que no pde ser discpulo uma chamada de ateno
permanente para os discpulos que desejam ser ricos ou, simplesmente, querem
ser os primeiros.
O jovem rico que no permaneceu com Jesus encontrou-o porque estava de
fato interessado na prpria salvao. No est aqui o motivo mais comum
para no irmos ao Seu encontro? Quem de ns, hoje, vai busca de bons mestres que lhe ensinem a maneira de viver? O que falta: mestres que apontem o
caminho e acompanhem o esforo para conseguir a vida eterna, ou a vontade
de alcan-la?

413

Ao jovem que j era bom, Jesus props a perfeio, convidando-o a renunciar


s suas propriedades. A bondade que se baseie no que j se possui de bom no
digna dos seguidores de Cristo. Ento, como fazer para conciliar cristianismo e riquezas? Por que Jesus estabeleceu a perfeio do bom discpulo na renncia e na alienao das propriedades? ainda verdade que o que se possui
de bom um obstculo para seguir a Cristo? Qual o meu caso?
Se nem mesmo os bons se salvam, por serem ricos, quem poder entrar no
Reino de Deus? Poderia ocorrer que Deus no est venda e no pode ser
comprado, por nenhuma coisa, por melhor que ela seja? Por que devemos
desvincular-nos dos dons de Deus para receber Deus como um dom? Isso
possvel?
No deve arrepender-se quem deixa tudo por causa de Cristo: ser recompensado cem vezes mais. esta a nossa experincia aqui, agora? Em todo caso,
qual poderia ser o motivo? Ser que, depois de ter deixado alguma coisa, nos
julgamos com direito ao muito? Privando-nos de alguma coisa, fazemos de
Deus o nosso devedor ou nos comportamos como deveramos? Merecemos
alguma recompensa por aquilo que fazemos, ou ser melhor deixar que Deus
recompense o que ns fazemos?

3. Convite orao pessoal



Senhor, como gostaria de encontrar-te no meu caminho! Como gostaria
de pedir-te o que devo fazer para o meu bem e demonstrar-te o quanto me interessa a minha santidade! No me digas que no consigo encontrar-te porque nada
tenho de interessante a te pedir, ou porque no crio coragem e no enfrento junto
contigo o meu problema, o meu futuro, ou porque no vim apenas para junto de
ti para encontrar-te. Hoje te peo: dize-me o que devo fazer para encontrar-te;
mostra-me o caminho que conduz vida e que leva a ti.

Senhor, s o meu mestre; ouvirei o que tens a dizer-me. Embora eu no
possa afirmar que tenho sido fiel a ti, acompanha-me, prope-me a perfeio
como objetivo. No fiques decepcionado comigo tambm Tu, pois eu j estou
bastante aflito. Se Tu te mostras interessado na minha santidade, se me estimas
tanto assim a ponto de prop-la novamente, vou me levantar e recuperar-te como
razo da minha vida. Faze da tua perfeio, aquela que Tu me propes, o objetivo
da minha vida.
414


Senhor, que os meus bens, aqueles que tenho e aqueles que desejo, no
me sejam de obstculo. A fim de que Tu sejas o meu nico bem, prope-me novamente que eu renuncie a possuir tudo e todos, menos a ti. Que os pobres participem da minha vida, meu maior bem, e que eles recebam como dom as minhas
coisas. Para salvar-me de mim mesmo, ajuda-me a dar o que tenho e o que desejo
ter aos pobres. S Tu podes faz-lo; a mim impossvel. No te peo recompensas, porque muito pequenas so as minhas renncias. Tu, porm, te comprometeste em recompensar-me por tudo aquilo que te ofereo, se te obedeo. D-me
uma casa que me faa esquecer a minha casa, aquela que tive e aquela que jamais
terei; d-me uma famlia que substitua a minha, aquela que me deste e aquela que
perdi; que eu possua a ti, Senhor, a fim de que eu no precise de nada.

415

TOMAR A PRPRIA CRUZ, PROVA NO


SUPERADA PELO DISCPULO
O filho de Deus vive a agonia rezando,
enquanto seus discpulos dormem
(Mc 14,32-42)


Os discpulos acabaram de se declarar dispostos a morrer por Jesus (Mc
14,31), e caram mortos, sim..., mas de sono (Mc 14,32-42).
Marcos no podia exprimir melhor a distncia havida no momento crucial entre
Jesus e seus seguidores mais prximos. Quanto mais ele se aproximava da morte,
tanto mais os seus discpulos afastavam-se dele, mesmo estando sempre mais
prximo deles. medida que Jesus se aproxima da morte e da realizao da
vontade do Pai, os discpulos ficam mais distantes, alheios a ele, mais sonolentos.
De um lado, a luta com Deus Pai na hora da agonia engrandece a humanidade e
a nobreza de esprito de Jesus e, de outro, a fragilidade e a vileza dos discpulos.
S o grito de Jesus no Glgota, na cruz (Mc 14,34), supera a tragdia do Getsmani. E em ambos os momentos Jesus expressa-se rezando. Um particular que
faz pensar...

1. Ler o texto

O episdio narrado rapidamente carregado de fora dramtica. Depois
de localizar a ao (Mc 14,32) e identificar os personagens (Mc 24,33-34), Jesus
deixa os discpulos e comea a rezar sozinho (Mc 14,35-36). Exorta a Pedro, que
tanta fidelidade lhe prometera, a uma vigilncia maior (Mc 14,37-38), e volta a
rezar na solido (Mc 14,39). Pela terceira vez, Jesus vai ao encontro dos discpulos, que dormem, e anuncia-lhes a traio iminente (Mc 14,40-42). Jesus, seus
gestos e principalmente suas palavras que revelam o sentido do que foi narrado,
dominam a cena. Os discpulos so simples companheiros de Jesus, objeto de
seus contnuos apelos. Aquele, porm, com quem Jesus realmente conversa
Deus, seu Pai.

416

Jesus vai e vem, dos discpulos a Deus, procurando uma via de fuga (Mc
14,37.40.41). A trplice orao corresponde trplice exortao vigilncia, tambm esta repetida trs vezes. Sozinho, ele reza quatro vezes, e quatro vezes volta
e encontra os discpulos a dormir. O evangelista faz Jesus rezar apenas uma vez
com um discurso dirigido a Deus Pai (Mc 14,35-36), mas o faz dirigir-se trs vezes diretamente aos discpulos (Mc 14,34.37-38.41-42). Como se lhe interessasse
mais o que diz aos discpulos do que o dilogo com o Pai. Abandonado na alma,
Ele busca refgio em Deus Pai. Inicialmente, experimenta uma ltima resistncia
em relao ao seu Pai, mas logo acaba por se abandonar sua vontade. Enfim,
abandonado por todos, Jesus abandona-se completamente a Deus.

A narrao ressalta a dimenso humana de Jesus, sobretudo no sofrimento diante da morte e na luta para aceit-la. Jesus, mesmo sendo Deus (cf. Fl 2,68), aprende o que significa ser filho (cf. Hb 5,6-8). A obedincia ao Pai fruto de
luta que, depois de uma reiterada resistncia, se manifesta na orao. Por isso, em
seguida, sua aceitao ser total; ser abandonado por Deus torna-o fiel ao ponto
de nem tentar afastar-se dele. A suprema anulao de Deus, vivida por Jesus no
Getsmani, no tem respostas nem na sua encarnao nem na hora da morte: a
negao de si mesmo verificou-se na renncia ao seu projeto pessoal e prpria
vida. Deixou de ser ator de um plano divino para converter-se em sua nica vtima.
Foram em seguida para o lugar chamado Getsmani, e Jesus disse a seus
discpulos:
Sentai-vos aqui, enquanto vou orar.
33
Levou consigo Pedro, Tiago e Joo; e comeou a ter pavor e a angustiar-se.
34
Disse-lhes: A minha alma est numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai.
35
Adiantando-se alguns passos, prostrou-se com a face por terra e orava que,
se fosse possvel, passasse dele aquela hora e 36 suplicava:
Aba! (Pai!). Tudo te possvel; afasta de mim este clice! Contudo, no se faa
o que eu quero, seno o que tu queres.
37
Em seguida, foi ter com seus discpulos e achou-os dormindo. Disse a Pedro:
Simo, dormes? No pudeste vigiar uma hora!
38
Vigiai e orai, para que no entreis em tentao. Pois o esprito est pronto,
mas a carne fraca.
39
Afastou-se outra vez e orou, dizendo as mesmas palavras.
40
Voltando, achou-os de novo dormindo, porque seus olhos estavam pesados;
e no sabiam o que lhe responder.
32

417

Voltando pela terceira vez, disse-lhes: Dormi e descansai. Basta! Veio a hora!
O Filho do homem vai ser entregue nas mos dos pecadores.
42
Levantai-vos e vamos! Aproxima-se o que me h de entregar.
41


Ao narrar a agonia de Jesus, o evangelista no quis suscitar a piedade de
quem l ou escavar na fraqueza da humanidade de Jesus. Antes ele tenta simplesmente apresentar Jesus como modelo de aceitao total da vontade de Deus
e os seus discpulos como vtimas do prprio sono. Enquanto Jesus no Getsmani
exemplo de filiao que se alimenta na obedincia (cf. Hb 5,8), seus discpulos
pertencem quele tipo de seguidores que preferem dormir a lutar, fugir do encontro com Deus: creem-se filhos queridos de Deus s nos sonhos; na verdade,
porm, ser filho de Deus significa aceitar e tomar a cruz sobre si, como fez Jesus.

2. Compreender o texto

Jesus e seus discpulos chegam juntos ao Getsmani (Mc 14,32), local
familiar a eles, uma espcie de jardim de oliveiras (cf. Jo 18,2). Ali, e enquanto
o traidor no chegar, Jesus estar em orao, afastado dos discpulos e dos seus
sonos e sonhos! Jesus costuma rezar na solido (Mc 6,46). No incio do seu ministrio, levantou-se de madrugada e retirou-se num lugar deserto para rezar (Mc
1,35); agora, quase no final da sua vida, ele o faz em plena noite.
Escolhidos para serem testemunhas do seu sofrimento

Revendo sua deciso inicial, Jesus escolhe Pedro, Tiago e Joo e leva-os
consigo (Mc 14,33). No se apresenta o motivo. Todavia, permanecer com ele foi
uma das finalidades da escolha deles como apstolos (Mc 3,14); os trs tambm
se declararam dispostos a sofrer para e com o Mestre (Mc 10,35-40; 14,29-31).
Durante o ministrio, a escolha dos trs discpulos sempre precedeu a ocorrncia
de um acontecimento importante (Mc 5,37.40) ou a revelao da sua pessoa (a
transfigurao em Mc 9,2; ou o discurso escatolgico em Mc 13,3). Nem todos os
discpulos so testemunhas escolhidas, mas apenas o grupo dos primeiros chamados (Mc 1,16-20). Aqueles que o viram resplendente, agora o veem angustiado,
sofredor. Est em jogo o mistrio pessoal de Jesus, e os mais ntimos reagem
418

da mesma maneira; quer estando diante de um Jesus luminoso ou em agonia, o


comportamento deles menos glorioso e, justamente por terem sido escolhidos
especificamente, a sua falta mais grave!

Diante deles Jesus assaltado pela ansiedade e pela angstia, um estado
de esprito compreensvel em quem sabe que vai ao encontro da morte e sem poder evit-lo (Mc 14,34). Os verbos usados exprimem com vivacidade a agitao
que toma conta de Jesus. Diante da sua morte, Jesus comporta-se humanamente:
profundamente perturbado (Mc 9,25; 16,5-6), angustia-se porque no consegue
reprimir o que teme (Mc 9,15; 16,5.6). Depois, sucede no Getsmani algo diametralmente oposto ao que aconteceu no monte da transfigurao ou na casa de
Jairo: Jesus no insensvel dor, teme a tragdia iminente e sofre-a antes que
ela acontea.

O evangelista sublinha a solido de Jesus, o seu sentimento de abandono
(Mt 26,37; Fl 2,26) colocando-o em seus lbios. Talvez pudesse ter infludo nesta
redao o modelo do justo sofredor, muito comum nos salmos (Sl 22,15; 31,10;
39,13). Entretanto, a experincia de Jesus real. Teme pela sua vida e a sua orao alimentada pelo medo. E Marcos, embora soubesse que podia escandalizar
os seus leitores, no mitigou o acontecimento (cf. Mt 26,37).

Jesus no s se deixa ver fraco e angustiado. Torna pblico aos discpulos aquilo que vivia interiormente, no esprito (Mc 14,34). Como o justo em
perigo de morte (Sl 22,15; 42,6.12; 43,5), Ele descobre toda a sua fragilidade;
mas, enquanto no salmo o orante se dirigia a Deus, Jesus conversa com os seus
discpulos. Mais do que rezar lamentando-se, exprime os seus sentimentos aos
amigos ntimos; sua orao um pedido de fidelidade aos amigos, no de refgio,
de via de fuga. Sente-se to angustiado a ponto de quase morrer disso. No deseja
morrer para libertar-se da tristeza que o assalta, mas o seu abatimento sufoca a
vontade de viver. Por difcil que parea e ao contrrio da imagem de um Jesus que
caminha conscientemente e livre ao encontro da morte, no h nada de estranho
no fato de ele ter medo de morrer.
Jesus os teria querido bem acordados!

Testemunhas da sua angstia, os discpulos so, agora, objeto da sua
exortao: que permaneam ali e vigiem, o que lhes pede (Mc 14,34). No
busca piedade ou comiserao; s apoio que demonstra proximidade. Acorda419

dos, deveriam permanecer ali, onde sofre o seu Senhor, cuja tristeza j razo
suficiente para no dormir. Que no o consigam (Mc 14,38) serve de aviso aos
discpulos futuros. A viglia crist no apenas uma forma de esperar grandes
acontecimentos (Mc 13,33-37). Quando fidelidade e sequela esto em perigo,
no h tempo para dormir. A morte de Jesus, antecipada na agonia, deveria deixar
insone os seus discpulos. Afastando-se um pouquinho dos seus amigos mais ntimos (Mc 14,35), Jesus enfrenta sozinho o motivo da sua angstia e est diante de
Deus. Cado por terra, sem foras (cf. Gn 17,3), reza para que, se fosse possvel,
passasse aquela hora. A prostrao de Jesus por terra reflexo da sua luta interior:
ele quer, na orao, afastar o temido destino.

A primeira parte da orao narrada. O fato de Jesus pedir para ser salvo,
se fosse possvel, envolve ao mesmo tempo que ele tenha considerado o pior
e no se recuse a aceit-lo. No duvida do poder divino, antes o exalta pedindo
o impossvel: libertar-se daquilo que mais teme. Entretanto, deixa a deciso nas
mos de Deus, sem deixar de exprimir o seu desejo de livrar-se daquele momento, a hora da sua morte, que tambm a hora do ltimo desgnio divino (Mc
13,32). Rezando, dobrado por terra, humilha-se diante de Deus. A sua orao
angustiada. Luta para libertar-se do seu destino, mas deixando a vitria nas mos
do seu contendor, seu Pai e Deus.
A orao do Filho, um exerccio de obedincia

A orao torna-se agora dilogo (Mc 14,36). A invocao inicial, pai,
forma rara no judasmo e nica no significado que Jesus lhe atribui, introduz o
que segue numa relao filial que Jesus manteve com Deus. Uma relao que ele
estendeu aos seus (Mt 6,9; cf. Gl 4,6; Rm 8,15), embora distinguindo a prpria
(Mt 11,25-26; 26,39.42; Jo 11,41; 12,27-28). So trs os elementos da orao
filial de Jesus.

O primeiro uma profisso de f na autoridade divina suprema. Ser filho
torna-o confiante, sem precisar deixar de reconhec-lo como Deus. Entrega-se a
Ele, sem se esquecer de que lhe deve obedincia: o Pai tudo pode, e certamente
escutar o seu pedido. O que acontece ao filho entra no poder do Pai; embora justamente no momento em que deseja sair ileso, reconhece que o que vai acontecer
est na vontade do Pai. E nisso se sentir amado como filho. Dessa forma, d
sentido ao desgnio imperscrutvel de Deus. No so os seus desejos que prevale420

cem, mas a vontade do Pai. No emerge a figura de um heri que vai ao encontro
da morte com entusiasmo, como podia ser na literatura judaica, mas a de um
homem que luta contra seu medo de morrer... sem trair o seu Deus.

O segundo elemento da orao a splica, cujo argumento no o momento, mas, sobretudo o clice. A imagem do clice, de fundo apocalptico, sugere a morte temida (Mc 14,4) ou sublinha a dureza do sofrimento pelo qual est
para passar (Mc 10,27.38.41). Como num banquete, Deus est oferecendo-lhe
um clice, mas neste caso muito amargo! A gravidade do momento medida pela
coragem, pela temeridade na splica. Jesus enfrentou o final cruento com clareza
suficiente e com no menor temor. Todavia, no diminuiu a sua vontade que se
dobra vontade do Pai. Embora esteja frgil diante da morte iminente, no o
tanto a ponto de renunciar ao seu Deus, apesar de estar-lhe pedindo a vida!

O abandono total o terceiro elemento da orao. O Filho e o Pai no se
submetem um ao outro, nem h entre eles conflito de vontades: a obedincia a
fonte desta ligao filial-paterna. No incio e na concluso da orao, h a pessoa
do Pai como interlocutor. Jesus confiou a sua resistncia a Deus, mas tambm se
adequou, foi ao encontro da sua vontade. Sua splica a ltima tentativa de libertar-se e, ao mesmo tempo, um exerccio de obedincia. Que seja Deus a impor-se,
faz do orante um obediente e, justamente porque obediente, faz dele um filho!
Jesus, nesta passagem diferente de Lc 22,43-44 no ter qualquer consolao.
Sua orao s obedincia, nua e crua.
Enquanto os discpulos prediletos preferiram refugiar-se no sono...

Enquanto Jesus agoniza, seus discpulos dormem. O contraste, que sublinha a solido de Jesus, no pode ser maior. Retornando da sua orao, encontra
-os dormindo. O evangelista no os desculpa. Os fatos falam por si. E Jesus deixa
transparecer dor e decepo em suas palavras (Mc 14,37): no o obedeceram (Mc
14,34).

No se entende bem por que Jesus dirige sua censura apenas a Simo.
Mais do que a um representante do grupo escolhido, interpela-o identificando-o
como o discpulo que est em maior perigo (Mc 14,66-72). O amigo ntimo de
Jesus deveria ter vigiado mais, pois foi o discpulo que, enquanto caminhavam h
pouco, tanto prometera (Mc 14,29.31). Seu comportamento no o torna digno de
ser fundamento e exemplo de f. Com o Mestre em dificuldade, v-se quem no
421

estar disposto a acompanh-lo at o fim. A um passo da morte, Jesus luta para


ser fiel a Deus tendo ao lado apenas quem sonhou ser-lhe fiel at a morte; no
conseguiu ficar acordado nem por um instante. A pergunta dramatiza a surpresa
de Jesus (cf. Mt 26,40), a amarga constatao da fragilidade do discpulo que
mais prometera.

Ao constatar a falta de Pedro, Jesus exorta todos vigilncia. Vigiar e
rezar so as tarefas de um discpulo em dificuldade (Mc 14,38; cf. 13,35-36). A
orao o estado cristo da viglia. Refugiar-se no sono e no viver acordado
em orao leva runa, mesmo sentindo-se perto de Jesus! Os discpulos que
sero vtima fcil de escndalo (Mc 15,50.66-72) foram primeiramente vtimas
do sono!

Escndalo no significa, neste caso, simples fragilidade ou tentao
isolada, prova de sofrimento, fim a si mesmo ou impulso para pecar; uma deciso de abandono definitivo em Deus. Que o fiel seja colocado prova um dado
de fato; fugir da tentao no o motivo, mas a finalidade da orao (Mc 13,18;
14,35). A fragilidade constitutiva do homem torna mais urgente a orao de quem
vigia. Que a fidelidade no seja assegurada no depende do fato de a tentao
chegar, mas da impotncia que constitui o homem. Deus dotou-nos de um esprito
orientado para o bem que, contudo, tambm facilmente atacvel pelo poder do
maligno.
O abandono de si, tentao e graa


Quem reza mantm-se acordado como Jesus, mantm-se unido a ele,
aberto ao que Deus lhe pede e consciente da dificuldade do momento. Jesus anunciou aos seus as dificuldades que esto por vir, vividas pessoalmente; ensina-lhes
o mtodo de venc-las. Ser vigilante e rezar so remdios para no sucumbir; sem
temer as provas, a infidelidade evitada cultivando a relao filial com Deus (Mt
6,13; Lc 11,4).

Mantm-se ao seguro diante da prova quem coloca a sua confiana no
Esprito, o que significa estar nas mos de Deus. O perigo no vem de Deus,
antes o crente s encontra nele o seu apoio. Mas dilacerado em seus mesmos
fundamentos de crente; admitido que as provas favoream o surgimento da sua
personalidade, ter confiana em Deus a nica via de sada. Se Jesus tivesse expressado a sua experincia pessoal nestes termos, constatar esta dilacerao em
422

sua mesma pessoa seria ainda mais dramtico... consolador para aqueles que a
vivem cotidianamente.

Jesus volta a rezar (Mc 14,39). Vive diante dos seus discpulos aquilo que
lhes pediu para fazer. O fato de repetir a orao j feita (Mc 14,36) no apenas
um expediente narrativo. A solido de Jesus no o afasta de Deus nem do seu
projeto. Manifesta novamente a sua vontade de abandonar-se nas mos do seu
Pai. E enfatiza, ao mesmo tempo, o seu sofrimento.

ainda mais inexplicvel que Jesus, dirigindo-se novamente aos seus, os
encontre dormindo. Por isso, Marcos esboa uma acusao (Mc 14,40). A incapacidade fsica de manter os olhos abertos, que se tornavam pesados, a incapacidade
de resistir contrasta com a luta na agonia de Jesus. Enquanto a aceitao da vontade de Deus est custando a vida a Jesus, os seus dormem, indiferentes. O sono
torna-lhes impossvel ver a dor do seu Senhor (Mc 14,34.37.38). A cada vez que
Jesus retorna, aumenta sempre mais a distncia entre eles. De fato, confusos, no
sabem o que dizer (Mc 8,32-33; 9,6.32). No encontram uma boa desculpa para
justificar o prprio sono, como tambm no encontraram um bom motivo para
vigiar. E Jesus fica sem testemunhas do seu medo e sem companhia na orao.
S o traidor despertou!

A terceira vez que enfrenta seus amigos (Mc 14,41), no os exorta novamente a rezar ou vigiar. Constata, lamentando, que eles dormem. Mais do que
ironia ou surpresa, a exclamao transpira amargura e decepo: enquanto ele
est em agonia na companhia do seu Deus, seus amigos no deviam repousar (cf.
Mc 6,31).

Com uma expresso que, se quisermos, tambm poderia aumentar a incompreenso nos seus discpulos, Jesus deixa entender que a sua hora chegou e
decidiu aceit-la; mais fortalecido pela orao, aceita conscientemente a vontade
de Deus e decide realiz-la. No h espao para contemporizaes; nem o sono
dos seus nem a sua repetida orao so uma boa desculpa.

E, como anota Marcos, chegou agora o momento temido (Mc 14,37), justamente quando os discpulos esto ainda mais mal dispostos. Aquele que foi um
anncio repetido (Mc 8,31; 9,31; 10,33-34) e um imperativo temido (Mc 14,36)
torna-se agora um presente sangrento: o filho do homem est para entregar-se
pelos pecadores. Contudo, no h resistncia nele, mas plena aceitao. No h
423

orao de splica (Mc 14,35), mas entrega total (Mc 14,41); mais do que tudo,
h pressa para iniciar a paixo. A orao que fez dele um filho ajudou-o a aceitar
a vontade do Pai, sem contemporizaes, sem desculpas. Na entrega-traio do
discpulo, l-se a entrega-projeto de Deus. Jesus entregue aos pecadores justamente pela mo de um dos seus.

significativo que, agora, Jesus j no os convide a segui-lo. Os discpulos devem acordar, mas no para fazer-lhe companhia. O fato de o desgnio
divino, ou a entrega do filho do homem para a salvao de todos os pecadores,
iniciar com a entrada em cena de um deles uma nota suficiente. De fato, entre
os seus discpulos, s o traidor despertou!

Deve-se notar, em ltima anlise, que Jesus superou a angstia pela sua
morte insistindo na sua orao ao Pai. Conseguiu passar da tristeza inicial (Mc
14,32) disponibilidade para ir ao encontro do traidor (Mc 14,42). Ter vivido a
agonia dialogando com o Pai, tornou-o executor corajoso da sua vontade.
O perigo de dormir enquanto Jesus agoniza

Os fatos narrados no podem ter sido inventados. Marcos no floreou
a narrao da hora da ltima agonia de Jesus, como o faro outros evangelistas
depois dele (cf. Mt 26,36-46; Lc 22,40-46). No quis fazer passar como heris
aqueles que foram vtimas: Jesus, vtima da sua angstia e dos discpulos que ele
mesmo escolhera; os prprios discpulos, vtimas do sono.

O Getsmani e o que ele nos recorda tornam-se evangelho para uma Igreja que dorme no ato de seguir Cristo crucificado, que se refugia nas prprias iluses ou enfatiza a prpria ignorncia, desde que se salve da cruz. Que Jesus tenha
se preparado para a morte vigiando e rezando como filho, exemplar para quem,
hoje como ento, dorme em vez de vigiar e se entorpece em vez de rezar. No h
vias de fuga diante da vontade de Deus. S quem reza, vigia; na orao, o homem
esfora-se para fazer da vontade divina a razo da sua existncia.

A orao de Jesus no Getsmani faz-nos descobrir que h situaes humanas nas quais a dor e a solido, a angstia e a morte so inevitveis. E, apesar
de tudo, pode-se reconhecer nelas a proximidade de Deus que, gratuitamente,
oferece fidelidade aos seus filhos. na viglia em orao que o Pai de Jesus se
revela como o Deus da cruz; e sempre que a cruz est prxima, tambm est
prxima a vontade de Deus e a sua hora. Entretanto, sempre estar espreita o
424

traidor, ou algum dos seus, que no aceitou no prprio corao o projeto que Deus
tinha para o seu Filho.

3. Aplicar/viver o texto

Encontramos na carta aos Hebreus o melhor comentrio s pginas do
Getsmani. impecvel: Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces
e splicas, com forte clamor e lgrimas, quele que tinha poder de salv-lo da
morte. E foi atendido, por causa de sua piedade. Mesmo sendo Filho, aprendeu o
que significa a obedincia, por aquilo que ele sofreu (Hb 5,7-8). Procura refletir
sobre a frase, tendo presente estes aspectos: o sofrimento alimentou a orao de
Jesus; a obedincia tarefa prpria de um filho de Deus que deseja aprender a
s-lo.

No extremamente tocante contemplar Jesus que teme a sua morte e
reza para livrar-se dela? Aqueles que se sentem filhos de Deus, por que deveriam
sentir-se mais livres da angstia e menos presa da agitao do prprio Filho de
Deus? Pensa e encontra uma boa razo para crer num Deus to tremendamente
humano! Vale a pena confiar tanto num Deus que experimentou to grande sofrimento? E como deveria ler os meus sofrimentos? Como uma desgraa imerecida
ou como garantia de filiao em relao a Deus Pai?

A sonolncia do discpulo, que alimentamos ou que nos domina, no
um bom modo de evitar a cruz. S a orao que leva aceitao da vontade
divina, custe o que custar, a viglia digna de filhos eleitos. Contudo, quando
rezamos pelas nossas penas e sofrimentos, no ser, talvez, para livrar-nos delas
e, quem sabe, tambm do Deus que no-los manda? Se os filhos devem aprender a
virtude da obedincia no sofrimento, porque experimentamos tanta repulsa luta
que transformar Deus em nosso Pai?

4. Rezar o texto

Escolhe-me, Senhor, para estar contigo: leva-me ao teu Getsmani, aonde retornas para sofrer o abandono dos teus amigos e lutas para conquistar a ateno do teu Deus. No me sinto superior a Pedro, Tiago e Joo, nem muito inferior
425

a eles. Mas talvez pudesse tentar s-lo! Saberia, assim, que mesmo dormindo
enquanto sofres, seria teu ntimo, estaria perto de ti.

No encontro palavras para dirigir-te; sei que tudo o que disser no estar altura do teu sofrimento e da tua orao. Por isso, deixa que te contemple
enquanto lutas para ter-me ao teu lado, enquanto lutas para ter Deus da tua parte,
quando nos vs vencidos pelo sono, quando, inevitvel, vence a vontade do Teu
Pai, tambm sobre ti. Ver-te assim, angustiado pela tua vida, temendo a fria morte, vigiando para que no te traiam, deixa-me sem palavras... Somente o silncio
pode respeitar a tua luta com Deus. Em silncio, quero compreender o quanto
difcil seja obedecer.

Por que no conseguimos vencer, Senhor, o nosso torpor e vigiar contigo? Por que parecemos cansados de lutar quando ests para morrer? No consideres a nossa incapacidade de amar; repete-nos o convite de vigiar contigo; se no
desesperas, se recuperas a confiana em ns, tambm ns no desesperaremos e
vigiaremos enquanto lutas com Deus. No nos ofereas o repouso que tu mesmo
no tens, enquanto te esto traindo.

426

TRAIDORES: NO S OS NTIMOS
A falncia de Jesus na educao dos discpulos
(Mc 14,10-52)


um toque evidente da habilidade do evangelista descrever a traio de
Judas na primeira parte da paixo de Jesus (Mc 14,1-72). Dessa forma, Marcos
aumenta na sua narrao o drama humano da crescente solido de Jesus; enquanto confirma a decisiva vontade de Judas de entregar Jesus s autoridades judaicas,
tambm confirma a deciso voluntria de Jesus de entregar-se s autoridades. Ao
mesmo tempo, os discpulos tentam uma ltima intil e impotente resistncia
antes de abandonar o mestre. Judas foi o nico traidor, mas infiis foram todos os
discpulos! No podia ser maior a falncia de Jesus em sua tentativa de atrair os
seus seguidores para o seu lado.

1. Ler o texto

Com neutralidade surpreendente, Marcos narra a fuga de Judas e, na narrao, coloca-a no final do dia, justamente antes da morte de Jesus. Dessa forma,
faz aumentar a emoo, sem a necessidade de carreg-la de elementos sensacionalistas.

Aos poucos, a traio paira sobre Jesus e amadurece entre os seus. O
plano arquitetado por Judas, que o apresenta s autoridades. Jesus revela aos
discpulos o plano, ainda no concludo... Judas executa-o de noite, diante de
todos.
A traio arquitetada (Mc 14,10-11)

Aps a narrao da uno de Jesus (Mc 14,3-9) e em contraste ntido com
o gesto generoso de uma mulher desconhecida, a simples crnica do comportamento do discpulo traidor basta para julg-lo. No se deve esquecer que se trata
de um dos Doze. A sua deciso pessoal de tra-lo acelera a falncia do seguimento
de Jesus.
Judas Iscariotes, um dos Doze, foi avistar-se com os sumos sacerdotes para
lhes entregar Jesus. 11 A esta notcia, eles alegraram-se e prometeram dar-lhe
dinheiro. E ele buscava ocasio oportuna para entreg-lo.
10

427


A traio de Judas, j conhecida ao leitor (Mc 3,19), narrada com certa
velocidade (Mc 14,10). Pareceria que o prprio narrador se sentisse incomodado
ao ter de admitir que o traidor justamente um dos mais ntimos (Mc 14,17.20).
Sua inteno renunciar ao banquete com Jesus, fator significativo para a
pertena ao grupo dos Doze (Mc 3,14). No se apresentam justificativas. Mas
lgico pensar que este afastamento foi apenas o ltimo passo de um processo
iniciado muito antes. A decepo, em geral, precede adversidade, que precede
traio. A observao seguinte, sublinhada pelo autor, ao mesmo tempo aviso e
consolao: foi, certamente, um dos Doze, mas somente um (cf. Mc 14,43).

Curiosamente, Marcos no fala de traio, mas de entrega. Dessa forma,
ele faz emergir tanto o gesto de Judas como o de Deus; por isso, evita qualquer
processo moral. Procurando entregar Jesus (Jo 18,2), Judas resulta ser, ao seu
modo, o brao direito do projeto de salvao! Mas servir a um projeto divino no
o exime de suas responsabilidades. Que Deus triunfe no pecado no transforma o
mal em bem!

A sugesto de Judas facilita a ao das autoridades (Mc 14,11), que se
alegram. No devero fazer outra coisa a no ser esperar que passem os dias da
festa (Mc 14, 1-2). Poderia parecer, tambm, que sem Judas, os inimigos de Jesus
no conseguiriam chegar at ele, j o tendo tentado outras vezes (Mc 3,6; 11,8;
12,12). Se s autoridades no importa o como, ao discpulo, sim; ele est atento
aos particulares e busca a ocasio propcia. A traio arquitetada torna o discpulo traidor diligente e atento.

A promessa de dinheiro (cf. Mt 27,9-10; Sf 11,12-13) vem das autoridades (Lc 22,5). E, contudo, no esse valor a razo da traio de Judas; trata-se de
um incentivo, um estmulo (Jo 12,6; 13,6). Em todo caso, ele condenado pelo
fato de aceitar o compl. Mesmo que no tenha pedido a compensao, acabou
por aceit-la. O certo que o convvio com Jesus no salvou Judas da traio.
No nos esqueamos disso.
A traio anunciada (Mc 14,17-21)

Marcos, no sem forar um pouco, quis colocar o anncio da traio no
interior da narrao da ltima ceia (Mc 14,12-16; Jo 13,21-30).

A cena compe-se de duas partes: o anncio da traio (Mc 14,18-20) e
a maldio do renegado (Mc 14,21). A primeira parte foi organizada para ressaltar a familiaridade de Jesus com aquele que o haveria de entregar (Mc 14,18). A
segunda repete uma sentena conhecida (cf. Lc 17,1-2), que j pressupunha uma
reflexo comunitria sobre o caso Judas. O evangelista colocou-a antes da cena (cf.
Lc 22,21-23). As traies so registradas justamente no interior da amizade ntima.
428

Chegando a tarde, dirigiu-se ele para l com os Doze.


E enquanto estavam sentados mesa e comiam, Jesus disse:
Em verdade vos digo: um de vs que come comigo me h de entregar.
19
Comearam a entristecer-se e a perguntar-lhe, um aps outro:
Porventura sou eu?
20
Respondeu-lhes ele:
um dos Doze, que se serve comigo do mesmo prato.
21
O Filho do homem vai, segundo o que dele est escrito, mas ai daquele
homem por quem o Filho do homem for trado! Melhor lhe seria que nunca
tivesse nascido!
17
18


Feitos os preparativos, Jesus deixa Betnia na viglia da Pscoa e vai
para Jerusalm (Mc 14,17). Embora parea que Judas j tivesse abandonado o
grupo (Mc 14,10.43), o narrador ainda conta com ele para acompanhar Jesus (Mc
14,12.13.14.16.20.42): os Doze so os nicos comensais.

Durante a ceia, enquanto estavam mesa (Mc 14,18), Jesus anuncia a
traio de um dos seus (cf. Mc 14,20). significativo que se trate do primeiro
anncio que faz, mesmo antes da ceia (Mc 14,22-30) com que Jesus se entregar
simbolicamente por todos. O fato de no dar o nome do traidor, que o leitor j
conhece (Mc 14,10), confere maior dramaticidade ao, e justifica a reao, um
tanto transtornada, do grupo dos Doze. Ser que Jesus quis dar uma ltima oportunidade ao traidor para que ele repensasse o que pretendia fazer?

Que Jesus saiba quem o traidor redimensiona o escndalo: acentua a
sensao de que ele domina os fatos e insinua saber que se est realizando o plano
divino. Jesus tambm se apresenta aos seus discpulos como o justo perseguido
e apresenta o traidor como um dentre seus amigos (cf. Sl 42,10. Jo 13,18). Quem
est para ser trado revela aos amigos quem est para tra-lo; sem intimid-lo (cf.
Mt 26,25), revela a ao e no a pessoa (Jo 13,26). O fato de no identific-lo pe
todos na possibilidade de serem o traidor.

A reao dos discpulos referida com preciso (Mc 14,19). Difundemse sentimentos de tristeza e de aflio. Se a notcia os lana na amargura, surpreende como reagem. Um depois do outro perguntam se ser ele. Perplexos
diante da revelao, continuam a nada entender; nenhum deles sabe se Jesus se
refere justamente a ele. Tambm Judas lhe pergunta a mesma coisa (Mt 26,25).
O mais preocupante que ningum se sentia seguro de si, dando a entender que
todos teriam podido tra-lo.
429


O espetculo no consolador para Jesus, nem edificante para quem l.
Na medida em que foi um drama para Jesus, continua a ser advertncia para
todo discpulo. Jesus no responde de modo pertinente, mas repete o anncio
(Mc 14,20; cf. Mt 26,25; Jo 13,25-26), confirmando que ser um dos Doze; isso,
porm, no resolve suas dvidas nem os livra do sofrimento. Qualquer um dos
comensais poderia sentir-se chamado em causa; no fundo, todos compartilharam
muitas vezes a mesa e a intimidade. Ter sido companheiro de Jesus no certificado de fidelidade absoluta e definitiva.

To obscura a concluso quanto comovente a advertncia (Mc 14,21). O
destino do filho do homem j fora profetizado (Mc 8,31; 9,31; 10,33-34): realizava-se o que fora escrito sobre Ele. Cruzam-se os destinos de Jesus e de Judas;
um escolhe o plano de Deus, o outro se afasta dele. T-lo entregue aos inimigos
anula, afinal, toda a vida passada de discpulo.

Mais do que maldio, o que Jesus demonstra um lamento por aquilo
que Judas foi capaz de fazer. Jesus exprime tristeza, no condenao. a entrega
do filho do homem a fazer com que Judas se perca. Sua vida no teria merecido o
sofrimento. O pecado de Judas no est no que vai fazer, mas no que fez. No h
maior desgraa do que ter nascido inutilmente (J 3,3).
A traio consumada (Mc 14,43-52)

O anncio da presena do traidor (Mc 14,42b), que encerra a narrao do
Getsmani, faz da captura de Jesus uma consequncia lgica (Mc 14,43-52). A cena
focaliza primeiramente quem chegou por ltimo, Judas (Mc 14,43-45), depois a
multido (Mc 14,46-47) e, enfim, Jesus (Mc 14,48-49). Seus discpulos desapareceram da narrao antes ainda de sarem realmente de cena (Mc 14,50-52).

O episdio consta de trs partes: a traio consumada na captura (Mc
14,43-46), a reao de Jesus que aceita o fato, mas no o modo (Mc 14,47-48)
e, enfim, a fuga desonrosa dos discpulos (Mc 14,50-52). Os motivos j so
conhecidos: a traio de Judas, o reconhecimento de Jesus, o cumprimento da
Escritura e a infidelidade dos discpulos.

deciso do traidor ecoa a covardia dos antigos companheiros. Na plenitude de tanta baixeza, um Jesus que domina a situao, sereno, que sabe corresponder a um plano preciso de Deus. Que a traio seja feita com um beijo do
discpulo e que os que no o traem o abandonem so dois fatos que sublinham a
solido de Jesus diante da sua morte j prxima: os discpulos fogem porque que430

rem salvar-se; contudo, paradoxalmente, quem se entrega morte, se salvar.


Marcos no perdoa os discpulos de Jesus, enquanto mostra Jesus que enfrenta o
seu destino com muita coragem.
Ainda falava, quando chegou Judas Iscariotes, um dos Doze, e com ele um
bando armado de espadas e cacetes, enviados pelos sumos sacerdotes, escribas e ancios.
44
Ora, o traidor tinha-lhes dado o seguinte sinal:
Aquele a quem eu beijar ele. Prendei-o e levai-o com cuidado.
45
Assim que ele se aproximou de Jesus, disse:
Rabi!, e o beijou.
46
Lanaram-lhe as mos e o prenderam.
47
Um dos circunstantes tirou da espada, feriu o servo do sumo sacerdote e
decepou-lhe a orelha.
48
Mas Jesus tomou a palavra e disse-lhes:
Como a um bandido, sastes com espadas e cacetes para prender-me!
49
Entretanto, todos os dias estava convosco, ensinando no templo, e no me
prendestes. Mas isso acontece para que se cumpram as Escrituras.
50
Ento todos o abandonaram e fugiram. 51 Seguia-o um jovem coberto somente de um pano de linho; e prenderam-no. 52 Mas, lanando ele de si o pano de
linho, escapou-lhes nu.
43


Quando Jesus ainda falava no Getsmani, Judas aproxima-se dele, nomeado agora pela primeira vez, com uma multido (Mc 14,43). O evangelista
esteve atento para apresentar a ltima sentena prxima do seu cumprimento: o
traidor chega justamente quando Jesus anuncia a sua vida (Mc 14,42b). Os fatos,
embora trgicos, no surpreendem Jesus.

A memria apostlica no esqueceu que um dos Doze (Mc 14,10) foi
o chefe do compl; e preocupa-se tambm em enunciar as trs faces que o
ajudaram: os chefes dos sacerdotes, os escribas e os ancios; ou seja, as autoridades judaicas, todas elas, foram responsveis pela priso (Mc 8,31; 11,17;
14,1.47.53.55.60.61.63.66). historicamente pouco verossmil que a multido
estivesse armada espadas e porretes na noite antes da Pscoa. Contudo, seria
lgico se as autoridades tivessem encontrado resistncia da parte dos amigos de
Jesus (Mc 14,47).

Judas, aqui chamado simplesmente de traidor, tinha concordado um sinal
para quem o acompanhava; e o evangelista cita as suas palavras para sublinhar a
malcia (Mc 14,44). O beijo era a saudao normal entre mestre e discpulo; era,
431

por isso, um sinal apropriado (Lc 7,45). noite, Jesus no seria facilmente reconhecvel; por isso, o traidor preparara-se perfeitamente. O beijo do amigo traidor
um expediente conhecido (cf. 2Sm 20,9; Pr 27,6). O evangelista sublinha a
preocupao do traidor para que a priso termine bem. identificao mediante
um gesto de amizade acrescenta-se a preocupao para que tudo corra como planejado. O traidor quer que tudo acontea rapidamente e com eficincia.

A narrao da traio breve (Mc 14,45). A saudao aquela usada por
Pedro (cf. Mc 9,5; 11,21) e o beijo mais intenso compreendido um abrao?
do que o prometido. O que acontece supera o que fora previsto; com um beijo
Judas coroa a sua ltima misso, ou a identificao do seu Senhor. O seguimento
de Jesus termina com a sua entrega aos inimigos. Nada se sabe das eventuais reaes de Jesus; efetivamente, para a narrao, no necessrio. Ele previra tudo,
at mesmo o anunciara! No so os sentimentos de Jesus que importam, mas que
se realize o plano de Deus.

Identificado Jesus, ele preso (Mc 14,46). A multido s faz acompanhar
a iniciativa do traidor. E embora algum no grupo tente demonstrar resistncia
(Mc 14,47), no h qualquer agitao. O episdio provoca certa singularidade
nesse contexto: a tentativa de resistncia no muda o curso dos acontecimentos;
antes Jesus, encontrando ajuda no seu nico defensor, desqualificar severamente as intenes deste ltimo. Cortar a orelha supunha, alm de um ato grave de
violncia, uma grande desonra, que no cabe apenas vtima, mas tambm ao
prprio Jesus.1

Jesus reage de modo singular. No se preocupa com o ferido (Lc 22,51)
nem alude traio de Judas (Mt 26,50; Lc 22,48). No condena o gesto violento
(Mt 26,52-54; Lc 22,51), nem anuncia a sua vontade de beber o clice amargo (Jo
18,11). Esta tambm , em toda a narrao da paixo (Mc 14,48-49), a nica vez
em que ele se defende. E o faz de modo eficaz; com poucas palavras, ele enfrenta
a multido armada que saiu para busc-lo. Entretanto, mais do que aos soldados,
aos seus mandantes que Ele se dirige (Lc 22,52); incomoda-o no tanto a priso
quanto o modo de ser preso. Tratam-no como se fosse um ladro, um perigoso
bandido armado. Comportam-se com perfdia (Mc 14,1), de noite (Lc 22,53), o
que Ele no merece. Fora um mestre com quem dialogar e no um delinquente a
ser preso.

O lamento de Jesus sublinha a malcia de seus inimigos e a inutilidade da
sua ao. Os dias trs (Mc 11,11.15.17) nos quais ensinou em pblico (Mc 11,
Entre outras coisas, servo do sumo-sacerdote deve ser considerado um ttulo honorfico (cf. 1Sm
29,3; 1Rs 5,6): o ferido talvez fosse uma pessoa importante, um dos responsveis do peloto.

432

11-12,44), tinham sido uma ocasio melhor. A noite e os soldados no combinam


com a atividade que Jesus realizara. Contudo, devem-se cumprir as Escrituras,
assim como o plano de Deus (Mc 14,21.27). E o leitor, que o sabe (Mc 8,31;
14,41-42), assume o ponto de vista de quem escreve: diligentemente, mas sem
o saber, as autoridades e o traidor esto cumprindo a vontade de Deus. E por
isso que Jesus no apresenta qualquer resistncia. Ter-se abandonado ao Pai no
Getsmani (Mc 14,36) torna-o livre de entregar-se s autoridades, sem resistirlhes. Quem se submeteu a Deus no tem medo de submeter-se aos inimigos.

Sem reportar a resposta de quem est diretamente envolvido, o narrador
descreve bem as reaes dos discpulos (Mc 14,50). Nenhuma explicao dada.
A brevidade da afirmao sublinha a dramaticidade da constatao. Depois de ter
encenado uma espcie de resistncia, todos o abandonam. A sua profecia realizase inexoravelmente (Mc 14,27; cf. Zc 13,7). Sem ser esta a meta, o fim do seguimento de Jesus. Diante da sua via crucis pessoal, ele fica totalmente sozinho.

Torna-se evidente que interesse muito a Marcos sublinhar a falncia de
Jesus, e de todos os seus, tambm pelo episdio sucessivo apresentado por ele (Mc
14,51-52). O grupo dissolve-se e no retornar mais na narrao. O nico que o
seguia, um jovem envolvido numa tnica de linho, preferiu a nudez ao seguimento, a vergonha fidelidade. Como Jesus, tambm ele foi preso com violncia (Mc
14,46.51), mas diferentemente do mestre, conseguiu livrar-se. O ltimo discpulo
ficou sem a roupa e sem o mestre. Em vez da vida, perdeu o seu Senhor e a sua
dignidade (cf. Am 2,16). Comportamento pouco digno para ele e muito trgico
para Jesus. Jesus permaneceu sozinho, nas mos dos inimigos... e, nas mos dos
inimigos uma tnica. A noite e Jesus livraram o discpulo da vergonha.

2. Aplicar / viver o texto



Poucas dvidas podem restar sobre a historicidade da traio de Jesus.
Apesar de a identificao dos seus motivos permanecer pura especulao, o comportamento de Jesus pode ter desapontado, talvez por estar pouco empenhado em
suas pretenses messinicas. Contudo, um dado a ter presente na narrao a
relao entre a traio e o dinheiro, embora este no a condicione.
O fato que s a memria da traio do discpulo serviu de advertncia
permanente comunidade crist: a confiana que Jesus depositou nele no foi
suficiente. Aqueles que estavam mais prximos de Jesus tambm foram os que
mais estiveram expostos prova da prpria fidelidade; e, mais ainda, os traidores
433

no foram os inimigos, mas os amigos. Recordar a traio de Judas, alm de ser


questo aberta (cf. Jo 6,70-71; 13,21), um perigo constante para quem quer seguir Jesus. Tambm Judas, um dia, deixara tudo para seguir Jesus (Mc 3,13) que o
chamava, mas acabou por abandon-lo, entregando-o aos inimigos (Mc 14,10a).

Poucas coisas podem ser ditas sobre as razes que levaram Judas decepo e traio. A tradio apostlica procurou dar explicaes, mas so todas
voltadas a explicar o inexplicvel. O fato inegvel: traiu quem foi escolhido, um
dos mais ntimos. Por que se admirar que o traidor possa ser um amigo, e no um
inimigo? Ou esperamos fidelidade de quem odeia e confiana de quem no ama?
Portanto, quem nos pode garantir que no pode trair o nosso Senhor? Por que nos
iludimos de poder fugir do que nem um dos seus escolhidos conseguiu evitar?
S nos sentiramos livres de possveis traies se no soubssemos que somos
discpulos amados!

Ao anunciar a traio antes que ela acontea, Jesus ofereceu aos discpulos uma oportunidade de converso convidando-os fidelidade. Anunciando-nos
o evangelho, ele converteu a traio do passado em evangelho, em boa notcia,
pois conhecendo as nossas traies futuras, no nos decepciona e continua a pensar que nos pode conquistar. Ele no nos desmascara de todo, expondo-nos ao
ridculo, mas faz-nos entender que conhece os nossos projetos. Como no se
render a esse dom? Como levar aos outros aquele que tanto confiou em ns?

Saudao e beijo foram os gestos escolhidos e concordados para reconhecer Jesus. Gestos de amor, meios de traio. O discpulo, para entregar o seu
senhor aos guardas, escolheu aes que no despertassem suspeitas. Foi assim
no Getsmani e continua a s-lo ainda hoje. Onde encontramos as nossas maiores traies? Em nossa fragilidade, que no podemos evitar, ou na perverso do
nosso amor a Jesus? O desprezo do amigo no ser talvez pior do que a ofensa de
algum indiferente? Hoje, como o discpulo de Cristo costuma tra-lo? Enuncia
uma situao possvel e/ou faz alguma referncia tua histria pessoal.

Estar com ele no foi suficiente para permanecer unido a ele. A proximidade da cruz mostra a fragilidade do discpulo e a pobreza das suas motivaes
no seguimento de Jesus. A fuga s evitada por quem reconhece, como Jesus,
que na cruz iminente est para vir Deus e a sua vontade.

A fuga do jovem, porm, confere narrao uma espcie de comicidade,
sempre com um fundo trgico. Para salvar-se, h quem se arrisque a perder no o
seu mestre, mas a sua dignidade. Mas h mais. Para Marcos, ningum consegue
seguir Jesus. Quem tenta, falir; durante a noite, deixar o mestre e a tnica com
que se cobria. Diante da cruz, antes dela, no resta ao discpulo outro caminho
434

seno a fuga. O calvrio comea para Jesus, no quando os inimigos conspiram


contra ele, mas quando os discpulos amados o abandonam.

A traio de um dos Doze e a fuga dos outros marcam o fim histrico
do seguimento de Jesus, do seu discipulado. A sua ao educativa para com
aqueles que at agora o acompanharam termina na maior falncia. Ressuscitado,
dever voltar a conquistar pessoalmente a confiana de cada um, aparecendolhes. O escndalo da cruz, o mistrio da entrega pessoal de Jesus s aceito no
encontro com um Deus vivo que volta a colocar-se ao nosso lado, depois de ter
retornado vida. O discpulo que quiser ser fiel dever renascer do encontro com
o Ressuscitado.

4. Rezar com o texto


No me sinto Senhor no direito de julgar Judas, porque reconheo que
sua culpa foi apenas a de ser o primeiro de uma lista em que, por motivos diversos, tambm me deverias incluir. Mas, por que devemos trair-te, justamente ns
que tanto te amamos? Por que no nos amas a ponto de nos ser proibida a traio? Por que, se o sabes antecipadamente, continuas a escolher-nos e tratas com
carinho, acaricias quem no mereceria nem sequer ter nascido? Mestre, no h
ningum que te entenda!

Envergonho-me de ter usado, traindo, o afeto que nutrias por mim para,
na verdade, entregar-te morte. Judas, ao menos, foi mais coerente: com uma s
traio, despediu-se de ti para sempre, saiu de cena para sempre. Que volte a vencer em mim o teu afeto no valorizado, mas jamais esquecido; continua a contar
comigo como amigo, apesar de ter-me comportado como teu inimigo. Faze-me
sentir a tua falta quando for necessrio; continua a apostar em mim, apesar de eu
com frequncia renunciar a ti. No me traias, embora eu, muitas e muitas vezes,
te tenha trado!

Como evitar, Senhor, traies futuras? Como conseguirei permanecer
junto de ti para sempre, sem jamais te perder? Se nem eu estou seguro de mim
mesmo, por que te esforas tanto para que eu te siga? Se eu no posso prometer-te
fidelidade, por que permaneces fiel a mim? O que procuras em mim, quando j te
perdi? O que desejas de mim, se eu no te desejo por primeiro? Por que mereo
o teu sofrimento, e a tua vida, se a entreguei por um nada e a qualquer um? Salva-me de mim mesmo, Senhor, e cuida de mim; se s o meu protetor, eu poderei
ser-te fiel: cuida de mim e coloca-me ao seguro em ti.
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