O Evangelho Não Destroi Cuturas

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O Evangelho no destri culturas.

A Misso Transcultural Batista entre os


ndios Xerente do Tocantins.
Patrcia Costa Grigrio*

Localizados no municpio de Tocantnia (TO), a 70km da capital, Palmas, entre os rios


Tocantins e do Sono, os ndios da etnia Xerente so classificados como Js Centrais, juntamente
com os Xavante e Xakriab. Vivendo nas terras indgenas Xerente e Funil, esto distribudos em
trinta e quatro aldeias e nas cidades de Tocantnia e Miracema do Tocantins (SCHOEDER:
2010). Apesar das relaes estabelecidas entre Xerente e grupos catlicos ao longo de sua histria
de contato com a sociedade circundante, do envolvimento dos indgenas com algumas influncias
da religiosidade catlica (SILVA, 2012) e da atuao das equipes do CIMI que realizam diversas
atividades socioculturais, poucos ndios desta etnia declaram-se catlicos.
Este fato deve-se, em grande parte, ao papel desempenhado pela Misso Batista entre os
Xerente, iniciada de maneira espordica a partir de 1936 e que se consolidou a partir de 1950
com a chegada da missionria Anna Muller, da Misso Novas Tribos do Brasil.1 Hoje, a misso
est vinculada Junta de Misses Nacionais da Conveno Batista Brasileira,

que a partir de

1982 formalizou sua atuao entre os Xerente junto FUNAI (Fundao Nacional do ndio).

Doutoranda em Histria no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense.


Agncia missionria indenominacional, fundada em 1953, tendo como presidente Luiz Monteiro da Cruz. O
trabalho da misso comeou em 1946 com a chegada ao Brasil dos primeiros missionrios da New Tribes Missions
dos Estados Unidos a Guaraj-Mirim (RO) com o objetivo de evangelizar os ndios Macurapi. Os primeiros ndios a
receberem missionrios foram os Karaj (divisa dos estados do Tocantins e Mato Grosso), Pacaas Novos (Rondnia),
Apinaj (Tocantins) e Galibi (Par). Atualmente, a Misso Novas Tribos do Brasil atua entre 47 etnias das 340
existentes no pas. Alm do trabalho de evangelizao e estabelecimento de igrejas indgenas, a Misso Novas Tribos
atua nas reas de assistncia social como sade, educao e desenvolvimento comunitrio. Site Misso Novas Tribos
no Brasil http://novastribosdobrasil.org.br/. Acesso em 27/08/2013.
1

Agncia missionria pertencente Igreja Batista. Criada em 1907 durante a Primeira Assembleia da Conveno
Batista Brasileira ocorrida na cidade de Salvador. O objetivo da agncia o de unir todas as foras batistas do
Brasil, em uma organizao nacional maior, para o desenvolvimento e eficcia da pregao do Evangelho de Jesus
Cristo. Sua proposta est baseada no projeto de alcanar grande parte da populao brasileira, incluindo os grupos
indgenas, plantando novas igrejas, lderes locais e formando novos missionrios. A Junta de Misses Nacionais da
Igreja Batista atua entre 17 etnias indgenas diferentes e, alm da evangelizao destes povos, fornece auxlio nas

Ao longo dos ltimos cinquenta anos, a Misso Batista entre os Xerente est ligada
atuao e presena dos missionrios Guenther Carlos Krieger e Rinaldo de Mattos. Estes pastores
substituram os antigos missionrios batistas aps terem concludo cursos de lingustica
realizados pelo SIL (Summer Institute of Linguistics, hoje denominado no Brasil, de Sociedade
Nacional de Lingustica) e estiveram vinculados Misso Novas Tribos do Brasil, que encerrou
suas atividades entre os Xerente, em 1988. Atualmente, existem dois ncleos de crentes
batistas entre os Xerente, localizados nas aldeias Porteira e Salto. Cada igreja tem seu prprio
dirigente indgena e realiza seus prprios cultos. Outros ncleos de crentes indgenas e suas
igrejas se desfizeram os das aldeias Brejo Comprido, Cabeceira da gua Fria, Brejinho e Rio
do Sono e seus integrantes ficaram dispersos.
Estes missionrios inauguraram a presena de um novo tipo de atuao religiosa entre os
ndios iniciando um processo de alfabetizao e escolarizao com a produo de materiais
didticos na lngua materna e preparo dos primeiros professores indgenas. Seguindo as
orientaes tericas e metodolgicas do SIL, centrada na estreita relao entre educao escolar e
evangelizao, os missionrios produziram diversas obras na lngua Akwe (lngua materna dos
Xerente) como os trabalhos feitos pelo pastor Guenther em conjunto sua esposa, Wanda Braidott.
Caracterizada como uma misso transcultural, o maior objetivo dos missionrios batistas
que atuam entre os ndios Xerente decifrar a cultura e a lngua indgena possibilitando uma
traduo adequada da Bblia e dos conceitos cristos, gerando condies para a converso dos
ndios. Ronaldo de Almeida define as misses transculturais como sendo aquelas formuladas em
seminrios evanglicos nas quais so ensinadas antropologia e lingustica, alm de
conhecimentos tcnicos como de enfermagem e pedagogia, que facilitam a entrada dos
missionrios entre os ndios. A transculturao missionria passa pela traduo cultural da
religio evanglica para a cultura indgena e para essas misses povo, cultura e lngua so
entendidos como equivalentes e sua misso difundir o Evangelho visando no a quantidade de
pessoas, mas a variedade cultural e lingustica (ALMEIDA, 2006:280).

reas de sade e educao. Site da Junta de Misses Nacionais http://www.missoesnacionais.org.br/index.asp.


Acesso em 27/08/2013.

Este texto tem como objeto realizar alguns apontamentos acerca do processo de traduo
cultural da mensagem evanglica para cultura indgena apresentado no documento "O Evangelho
no destri culturas", uma conferncia proferida pelo missionrio Rinaldo de Mattos na Terceira
Igreja Batista de Braslia. Seu discurso tem por objetivo provar que, apesar das crticas
direcionadas ao trabalho de evangelizao dos ndios no Brasil sob a justificativa de que os
missionrios destroem a cultura, o Evangelho destri a cultura, o cristianismo destri a cultura
(MATTOS, 2008), a disseminao da mensagem evanglica pelas misses transculturais no
interfere na cultura indgena e nem na identidade tnica dos indivduos.

O Evangelho no destri culturas


A expanso das aes missionrias evanglicas entre os ndios, que vem conquistando
diversos espaos antes ocupados pela Igreja Catlica, tem sido por vezes alvos de crticas de
antroplogos e agncias governamentais, que acusam essas misses

de interferirem e

provocarem modificaes na cultura indgena. A conferncia proferida pelo pastor Rinaldo de


Mattos, que tem por objetivo provar que quando se propaga o verdadeiro Evangelho entre as
populaes indgenas, a cultura autctone no atingida de maneira negativa j que a mensagem
evanglica valoriza todas as formas de cultura.3
Os argumentos utilizados pelo missionrio para rebater as crticas e comprovar sua tese
passam pela via tanto religiosa como cientfica. A cincia linguistica uma ferramenta bastante
utilizada pelos missionrios transculturais com o objetivo de conferir cientificidade traduo da
Bblia para a lngua nativa. Alm disso, as agncias missionrias oferecem cursos de
Antropologia aos missionrios, que utilizada como um instrumento de aferio cultural,
sendo o principal objetivo estabelecer uma ponte entre esta e a Missiologia, conciliando os temas
3

Em sua fala, o missionrio identifica a existncia de outros Evangelhos - desfigurados, at esdrxulos - que
destroem culturas, agridem a integridade da pessoa humana. A distino entre Evangelho verdadeiro e falso est
provavelmente relacionada s disputas existentes entre as correntes evanglicas pela converso dos ndios. No caso
dos Xerente, aps anos de atuao da misso batista, uma outra igreja protestante de carter pentecostal a
Congregao Crist do Brasil - estabeleceu templos nas aldeias e tem conquistado um significativo nmero de fiis
entre os ndios desta etnia. Esta situao tem causado desconforto entre os missionrios batistas, que relacionam a
ao desta igreja s alteraes ocorridas na organizao faccional dos Xerente.

da antropologia como instrumentos que visam expor um Evangelho fundamentado biblicamente,


de forma comunicvel, compreensvel e aplicvel em um determinado contexto cultural
(LIDRIO: s.d, 13).
O ensino padro da antropologia oferecido aos missionrios entende a cultura como
articulao de cinco dimenses da vida social: o controle da natureza para suprir as necessidades
materiais; a cultura material como manifestao artstica e/ou expresso religiosa de um povo; a
existncia dessa sociedade produtora em funo da organizao das relaes sociais incorporadas
na tradio de um grupo, como as famlias e a poltica; a maneira como o homem se comporta
frente a um cdigo moral e o entendimento dos mitos como expresso oral de um universo
sobrenatural e dos ritos como uma via de acesso cosmoviso indgena (ALMEIDA: 2004, 4142).
O primeiro argumento para validar a tese proposta pelo missionrio na sua conferncia
tem carter religioso: o Evangelho foi justamente projetado por Deus para ser uma beno a
todas as famlias da Terra (MATTOS:2008). Est no livro de Gnesis como tambm nas cartas
aos Glatas. uma profecia bblica. E se ele foi projetado para ser uma beno, no tem como o
Evangelho destruir culturas, agredir culturas, aviltar culturas. Porque ele foi projetado desde o
inicio para ser uma beno a todas as culturas, a todos os povos do mundo, a todas as lnguas, a
todas as naes (MATTOS:2008).
A misso transcultural trabalha com a existncia de um contedo universal que se
manifesta de maneira explcita ou implcita em qualquer cultura. Dentro deste contexto, o
segundo argumento parte do princpio de que o Evangelho bblico considerado de natureza
supracultural e atemporal, est acima de toda e qualquer cultura j que lida com experincias,
necessidades, expresses humanas que so universais e que fazem parte da estrutura do ser
humano em todas as culturas, em todos os lugares (MATTOS:2008). Entre as necessidades
humanas, alm das fsicas e biolgicas, est a busca do transcendental, a busca de um sentido
para a vida que tambm fenmeno universal de cultura (MATTOS:2008). Por este motivo,
ele vivel e comunicvel para todos os homens em todas as culturas, em todas as pocas.
O terceiro argumento que contribui para a comprovao de que a pregao do Evangelho
no destri a cultura receptora a sua transculturalidade, a sua versatilidade de passar de uma

cultura para outra sem perder o seu significado (MATTOS:2008). Segundo o missionrio, o
texto das Escrituras Sagradas possui duas configuraes: a configurao primria que trata dos
valores do Reino de Deus, aplicando-se a todos os povos da Terra (MATTOS:2008) e a
configurao secundria que est relacionada s realidades humanas, aplicando-se somente
aquele povo especfico onde o Evangelho foi anunciado e, no caso, escrito. Na sua configurao
primria, ele imutvel, inegocivel, est imbudo de uma teologia que no pode ser substituda.
Na sua configurao secundria, por estar relacionado aos costumes de um povo, de um
determinado tempo, ele cambivel e pode ser substitudo sem prejuzo de significado.
Seguindo esses pressupostos, a traduo da mensagem bblica para os ndios passa por
uma adaptao cultural, que pegar o texto bblico, que est envolvo em uma outra cultura e
passar seu significado para a cultura para qual se pretende transmitir a mensagem. o que se
chama de traduo dinmica, onde o que se pretende traduzir o significado da mensagem,
tarefa que a traduo literal no capaz de fazer. Segundo o pastor Rinaldo de Mattos, para uma
boa traduo da Bblia e transmisso da mensagem crist para a cultura e lngua indgena, a tarefa
do missionrio reinterpretar a cosmologia indgena e desculturalizar o evangelho da matriz
judaico-crist. E para realizar esse tipo de trabalho se faz necessrio uma vivncia contnua nas
sociedades indgenas e uma imerso na cultura local visando um conhecimento que viabilize a
melhor traduo do universo cristo.
Ento, primeiro vamos pegar aquela expresso to conhecida nossa: Jesus o bom
pastor. (...) Mas essa figura Jesus, o bom pastor foi tirada da vida pastoril do povo
judaico. Se voc est trabalhando numa tribo indgena que eles nunca viram uma ovelha,
so povos caadores e coletores de vveres... Os Xerente, por exemplo, se voc fala de
vaca, de ovelha, de bode e de cabrito, voc est falando daquelas espcies de animais
que foram l levados pelos invasores, pelos criadores e espantaram a caa que do ndio,
de propriedade do ndio. De modo que o ndio Xerente tem uma averso bem grande
contra a vaca. Todos os termos dados para vaca l so termos pejorativos. Ento,
chegando l dizendo que Jesus o bom pastor no disse nada. Agora, o que este texto
est dizendo na sua configurao primria: este texto est dizendo que Jesus aquele
que cuida de ns. Isso voc pode traduzir em toda a cultura do mundo. Jesus aquele
que cuida de ns no existe lngua no mundo onde voc no possa traduzir isso
(MATTOS:2008).

Seguindo essa mesma lgica, diversas mensagens bblicas sofreram adaptao cultural de
modo que a mensagem que se pretendia transmitir fizessem sentido para os Xerente. Desta

maneira, o termo Jesus rei foi traduzido para Jesus o cacique, Jesus o tuxaua, Jesus o
uaumorubixaba; Jesus senhor para Jesus aquele que d as ordens e ns somos aqueles que
obedecem; o crente soldado para o crente guerreiro; a palavra de Deus como espada para a
palavra de Deus como flecha; A candeia no pode ser posta debaixo do alqueire para a palavra
de Deus no pode ser escondida debaixo da cuia. Desta maneira, fez-se a adaptao cultural:
transmitindo o significado do Evangelho sem agredir a cultura (MATTOS:2008).
A misso transcultural parte do pressuposto de que toda sociedade acredita em um ser
superior a quem devem temer e adorar assim como na existncia de um contedo universal que se
manifesta de maneira explcita em qualquer cultura. Desta premissa, parte um dos mais fortes
argumentos utilizados pelo missionrio para comprovar a tese de que o Evangelho no destri as
culturas indgenas: que na sua prpria cultura os povos esto clamando pelo Evangelho
(MATTOS:2008). Para atender esse clamor, faz-se necessrio um profundo conhecimento da
cultura nativa para encontrar nela a ideia de Deus e o que se denomina analogias de redeno.
No caso dos ndios Xerente, os sinais da cultura que possibilitaram ao missionrio
identificar as analogias de redeno a partir da qual se poderiam transmitir a mensagem
evanglica foram localizados nos mitos Xerente, especialmente, na lenda da morte e a na lenda
das viagens para o cu. Foi a partir da anlise destas duas lendas que os missionrios batistas
estabeleceram relaes entre o universo mtico indgena e o universo cristo promovendo uma
sobreposio de cosmologias.
A analogia de redeno localizada na cultura Xerente foi denominada messianismo
existencial Xerente pelo missionrio Rinaldo de Mattos, um tipo especial de messianismo que
diferente da definio antropolgica - que o identifica como um movimento histrico de carter
religioso vivido por um determinado grupo e localizado num determinado tempo e espao possui uma configurao mais universal e est embutido na prpria cultura de qualquer povo.
Esse messianismo existencial porque,
(...) mesmo no se expressando em movimentos surgidos no tempo e no espao, ele faz
parte da crena de cada povo, determina a sua viso de mundo, sua filosofia de vida, sua
ndole, seu comportamento, e exteriorizado, ainda que sutilmente, nos momentos
apropriados, de modo absolutamente observvel (MATTOS, 2009).

A lenda da morte conta que Bd o Sol tambm conhecido por Waptokwa Zawre
(nosso pai grande), vivia na Terra no incio dos tempos. Ele andava acompanhado por seu amigo
Wair a Lua. Um dia, Bd perguntou a Wair como fariam para estabelecer o destino de seus
filhos, o povo Xerente. E ele mesmo explicou como fariam: pegou um talo de buriti e jogou na
gua. O talo submergiu e Bd disse: - assim que vai ser com nossos filhos: eles vo morrer, mas
vo tornar a viver. Mas Wair, o Lua, discordou e disse: - No, assim no presta. Porque nossos
filhos vo morrer, a eles vo tornar a viver, a a Terra vai ficar cheia de gente e a caa no vai dar para
todo mundo e o que vai acontecer? Eles vo comer uns aos outros. Ento melhor assim... E pegou uma
pedra e jogou na gua, a pedra afundou e no voltou a submergir.
Essa lenda, segundo o missionrio explica o carter fatalista dos Xerente: jogou a pedra, a pedra
ficou, a gente morre, no volta mais, no existe a reedio, no existe resgate, no tem como solucionar.
Morreu e acabou. por isso que quando morre um ndio choram com um lamento triste e cortante

(MATTOS:2008). E nesta parte, ele identifica a primeira analogia de redeno da cultura


Xerente que a aspirao pela vida eterna, para vencer a morte, viver para sempre
(MATTOS:2008).
A lenda das viagens para o cu conta que Bd e Wair, aps passarem um tempo sobre a
Terra dando aos ndios tudo o que eles precisavam, resolveram ir embora. Chamaram os Xerente
para comunicarem a deciso e entoando o cntico da subida se instalaram na borda celeste.
Passado um tempo, os ndios se sentiram saudosos de seu deus e saram em caravana para visitlo. Chegaram ento ao que eles chamam de p do cu na linha do horizonte - e esperando o sol
nascer, subiram com ele. Passaram muitos dias conversando, matando as saudades e voltaram.
Depois desta caravana, muitas outras se seguiram. Um dia, quando uma caravana retornava
Terra, Bd deu a ordem: - Quando descerem, no olhem para trs. Mas, assim que tocaram os
ps na terra, todos os ndios olharam para trs. Ento, o sol se afastou indo nascer alm do
oceano. Como os Xerente no sabiam fazer canoas, ficaram impossibilitados de alcanarem o p
do cu e nunca mais puderam estar com Bd.
A identificao do messianismo existencial Xerente pelo missionrio no se deu pela
audio, registro e traduo das lendas, mas atravs da observao da reao dos ndios nos
momentos em que estas lendas eram contadas pelos ancios. Em todas as ocasies quando as

lendas eram contadas, uma mulher Xerente interrompia a histria. No caso da lenda da morte,
toda vez que o narrador chegava na parte em que a Lua pegou a pedra e jogou na gua, uma
mulher Xerente interrompia e questionava:
Ah, porque que foi jogar aquela pedra? Se no tivessem jogado aquela pedra at hoje
ns estvamos vendo aqui os nossos parentes que morreram! Se no tivesse jogado
aquela pedra, quando um parente nosso morre a gente no precisava chorar muito,
porque logo ele ia voltar outra vez!(MATTOS:2008).

E nas ocasies quem se narrava a lenda das viagens para o cu, a interrupo sempre
ocorria quando a histria chegava no ponto em que os ndios haviam desobedecido a ordem de
Bd e olhado para trs. Uma vez, uma mulher Xerente, ao interromper o ancio, exclamou em
portugus: - Eita, mas ndio besta! No sei porque que foi olhar para trs! Se no tivessem
olhado para trs at hoje ns estava subindo l para visitar nosso pai grande!(MATTOS:2008).
Essas interrupes forneceram subsdios para a identificao do messianismo existencial
Xerente - caracterizado como aquele sentimento que
no queria que as coisas fossem daquele jeito, queriam que fosse como era primeiro,
queriam voltar para o paraso, queriam voltar para a era mitolgica quando Deus estava
aqui. (...) O anseio pela vida eterna, o anseio pela ressurreio, o anseio pela comunho
com Deus, o anseio pelo transcendental (MATTOS:2008).

Esta identificao, por sua vez, possibilitou no somente o estabelecimento de relaes


entre a cosmologia crist e indgena como tambm a definio de uma mensagem evanglica - a
promessa crist de vida eterna - que melhor pudesse atender aquilo para que para os missionrios
entendiam que so os maiores anseios e necessidades daquela comunidade indgena. Por esse
motivo, para o missionrio a mensagem evanglica pregada entre os Xerente que diz que Jesus
o ressuscitador no aliengena, no uma novidade para a cultura indgena, ela uma
resposta para os anseios que esto a no prprio corao deles (MATTOS:2008). Por este
motivo, os ndios foram capazes de compreender, interiorizar e reproduzir a mensagem. E eles s
puderam compreender e aceitar porque no trabalho missionrio no h a substituio de uma
cultura por outra, mas uma reformulao.

Quando o pastor Gunther estava traduzindo o Novo Testamento para o Xerente,


ns ficamos muito, discutimos muito se amos usar para Deus o termo Waptokwa
Zawre, que o termo que eles usam l para Deus. Mas o termo para pai tambm e para
qualquer pessoa dignatria, que prestou um bom servio para a comunidade eles
chamam de Waptokwa Zawre. Waptokwa Zawre vem do verbo pto, que gerar. Quando
voc planta uma semente, quando ela brota, ela fez pto. Wa, primeira pessoa possessivo.
Waptokwa, kwa instrumentalizador humano, tipo salvar- salvador, remar-remador.
Ento, Waptokwa aquele que nos gerou, aquele que nos criou. E Waptokwa Zawre
grande referncia a Deus. A gente pensou: - Mas agora, o que a gente vai fazer?
Quando a gente falar de Deus vai deixar a mente deles ir naquele Waptokwa Zawre,
naquele Bd das lendas? No incio, parecia para ns que era mal, n? Mas ns
descobrimos que atravs do processo de reformulao, os nossos crentes, os nossos
lideres, pregadores do Evangelho l, eles associaram as duas coisas que ficaram com a
idia de que Deus esteve aqui no mundo e queria bem o povo Xerente. Depois ele subiu
e est l, agora ele sabe que vai voltar. Ento eles comearam a reformular e comearam
a aumentar e crescer a idia de Waptokwa Zawre (MATTOS:2008).

Este argumento encerra e fecha o argumento utilizado pelo missionrio Rinaldo para
comprovar que a transmisso do Evangelho cristo no destri a cultura autctone.

missionrio reconhece que o Evangelho de alguma forma muda a cultura. Mas muda dentro de
um processo de reformulao que um processo reconhecido pela prpria Antropologia
(MATTOS:2008). Os ndios, ao receberem a mensagem crist estabelecem relaes com seu
conhecimento do mundo e sua cosmologia reformulando e readaptando esta mensagem, assim
como fizeram com a correspondncia entre Waptokwa Zawre e o Deus cristo e a introduo de
Jesus dentro da cosmologia indgena, sendo aquele ator capaz modificar sua concepo fatalista
sobre a morte. A utilizao da cultura indgena e o reconhecimento de que os ndios possuem um
conhecimento que no deve ser descartado no processo de traduo da mensagem evanglica
demonstram que h uma valorizao desta pelas misses transculturais.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ALMEIDA, Ronaldo de. Tradues do fundamentalismo evanglico. In: WRIGHT, Robin M
(org). Transformando os deuses. SP: Editora Unicamp, 2004.
____________________ Traduo e mediao: misses transculturais entre grupos indgenas. In:
MONTERO, Paula (org). Deus na aldeia: missionrios, ndios e mediao cultural. So Paulo:
Globo, 2006.

GIRALDIN, Odair & SILVA, Cleube Alves da. Ligando mundos: relaes entre Xerente e a
sociedade circundante no sculo XIX. Boletim do Museu Paraense Emlio Goeldi.
Antropologia. Belm, vol.18, n 1, 2002.
GRIGRIO, Patrcia Costa. A professora Leolinda Daltro e os missionrios: disputas pela
catequese indgena em Gois. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2013.
HESSELGRAVE, David J. A comunicao transcultural do Evangelho. Volume 1. So Paulo:
Vida Nova, 1995.
LIDRIO, Ronaldo. Antropologia Missionria. S.l: Instituto Antropos, s.d.
MATTOS, Rinaldo de. O messianismo existencial Xerente. Revista Antropos. Volume 3, Ano 2,
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_______________ O Evangelho no destri culturas. Terceira Igreja Batista de Braslia,
06.abr.2008. Arquivo de udio. Disponvel em http://www.biblecast.net.br/p?m=terceira20080406n.mp3. Acesso em 17/08/2013.
SCHROEDER, Ivo. Os Xerente: estrutura, histria e poltica. Sociedade e Cultura. Goinia,
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SILVA, Cleube Alves da. Os Xerente. Contextos, contatos e construes. Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2012, p. 103.

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