Ler o Espaço e Compreender o Mundo
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Introduo
O presente texto um ensaio de pensamento, que, ao abordar a funo alfabetizadora do ensino de Geografia nas sries iniciais, pretende, a partir do dilogo entre as obras de Paulo Freire e de Milton Santos, pensar a
construo de uma epistemologia existencial, to cara a estes dois grandes pensadores, quanto necessria escola brasileira. Articular alfabetizao e Geografia refletir sobre o ser humano, a natureza, a cultura, a sociedade,
praticar uma pedagogia da possibilidade, fundada em uma epistemologia situada entre a teoria e a realidade.
Considerando que o tema central da Geografia o estudo do espao a partir da anlise da relao aoobjeto, ou seja, que o espao geogrfico define-se pela presena articulada da cincia e da tcnica no territrio,
podemos afirmar que o espao contm tudo desde a ao humana at os usos diferenciados do espao e do
tempo que tal ao provoca. Espao e tempo so categorias fundamentais, tanto para o raciocnio filosfico, quanto para a anlise da ao, da a necessidade de empirizar o tempo.
Empirizar o tempo , no dizer de Santos (1998a), utilizar concomitantemente as categorias de tcnica e poltica, na anlise do espao. Por meio do conceito de tempo emprico possvel equiparar tempo e espao. A definio do espao geogrfico como resultante da conjugao de sistemas de objetos e sistemas de aes (Santos,
1997a) nos coloca a necessidade de pensar o tempo (e o prprio espao) empiricamente. O espao geogrfico e a
histria produzida so resultantes do fenmeno tcnico; o espao geogrfico tem como contedo as tcnicas e as
diferentes formas de ao que produzem a histria, pois a histria, do ponto de vista geogrfico, resultado da
utilizao das tcnicas. O viver-fazer humano uma tcnica de vida, que se processa como temporalidades e se
realiza como histria.
O homem est no mundo e com o mundo produzindo-o e transformando-o, preenchendo com a cultura os
espaos geogrficos e os tempos histricos. O ser humano se identifica com sua prpria ao: "objetiva o tempo,
temporaliza-se, faz-se homem-histria (Freire, 1979, p. 31). As relaes do homem com o seu espao so relaes temporais, transcendentes e criativas. Cotidianamente, o ser humano recria pelos aconteceres o seu espao
de viver: "todos os dias o povo se renova; o povo renova cotidianamente o seu estoque de impresses, de conhecimento, de luta" (Santos, 1998b, p 38).
A Geografia um instrumento importante para a compreenso do mundo. Pensar o ensino de Geografia a
partir de sua funo alfabetizadora articular a leitura do mundo leitura da palavra, na perspectiva de uma poltica cultural cultura aqui entendida como a relao do ser humano com o seu entorno que instrumentalize as
classes populares a saberem pensar o espao, para nele se organizarem na luta contra a opresso e a injustia. O
conceito de alfabetizao se amplia e transcende o seu contedo etimolgico de lidar com letras e palavras mecanicamente passando a traduzir as relaes da criana com o mundo, mediada pela prtica transformadora
deste mundo.
Tanto Freire (1993) quanto Santos (1998b) esses homens sbios porque "lentos" nos apontam a possibilidade e a necessidade de pensar, desejar e lutar pela construo de um mundo em que os homens sejam mais felizes; onde haja um outro tipo de "globalizao" no a globalizao da sem-vergonhice, como diz Freire mas uma
globalizao mais humana, mais solidria; um mundo em que os homens possam produzir espaos felizes.
Em um tempo marcado pela desesperana, pela acomodao e pelo medo, a humanidade enfrenta, cotidianamente, a necessidade de aprender a viver em um universo abandonado pelos deuses. Neste contexto, morreu a
verdade nica e absoluta, deixando o homem rfo de suas certezas. Essa orfandade entregou ao homem a construo do prprio destino.
Freire & Macedo (1990) nos chamam a ateno para o fato de que nada sobre a sociedade, a lngua, a cultura ou a alma humana simples; nada se desenrola "naturalmente", nem na natureza, nem na histria. O ser humano um ser-em-situao, sujeito circunstanciado por e submerso nas condies espaos-temporais do mundo. Como ser situado, o ser humano desafiado pelas circunstncias a refletir sobre sua ao ao refletir sobre seu
contexto ele constri e reconstri seu espao existencial, produzindo cultura e fazendo histria.
Ao produzir a cultura e a histria, o homem produz vida, a sua vida como indivduo e como espcie. Seu
fluxo vital o coloca em um estado permanente de tornar-se: criando, aumentando e intensificando suas potencialida26
alterar o estilo arquitetnico de nosso intelecto. Exige-se a nova arquitetura da Razo uma razo dialtica capaz de praticar no paradoxo, de pensar o complexo, de se equilibrar no oceano agitado da nova ordem, de se
habituar a presena constante do contraditrio. Acontece, porm, ser esse estilo novo, algo dificlimo de alcanar,
porque requer aprendizagem. algo semelhante ao que no passado aconteceu quando se tratou de libertar o
pensar da tirania da aparncia sensorial. Tambm este salto qualitativo do Homo credulus para o Homo sapiens
requereu aprendizagem. Trata-se agora de passar do Homo sapiens para o Homo dialecticus. (...) O conhecimento dialtico do universo e do nosso existir nele talvez nos ajude a edificar a unidade heterognea dos saberes, ao
fazer-nos ver que afinal o clssico modelo de unidade no o nico possvel. A totalidade una, pode ser, simultaneamente, contraditria e heterognea a unidade dos diferentes. Tal como a composio das cores e dos sons,
tambm a dos saberes pode variar de estilo. (Branco, 1989, p. 285-287)
A leitura dialtica do mundo implica praticar uma pedagogia da esperana, comprometida com a liberdade;
voltada para a realizao da humanidade do homem humanidade que se realiza no pelo conhecimento, mas pela
sabedoria. Formar homens sbios (e no eruditos) deve ser o ideal de uma educao fundada na dialtica. A sabedoria constri-se a partir da compreenso, e esta no se desenvolve somente a partir do ponto de vista intelectualracional. Uma educao comprometida com o desenvolvimento da humanidade uma educao para a sabedoria:
uma educao e uma escola voltadas para a construo de uma sociedade verdadeiramente democrtica, portanto
inclusiva e compreensiva.
Ensinar Geografia possibilitar as condies necessrias para que a criana construa um novo modo de
compreender, cientificamente o mundo. A tarefa que hoje se coloca para a Geografia a de explicar o mundo
revisitar o mundo, desvelando efeitos de verdade, redescobrindo significados, desnudando imagens e recuperando
identidades. Santos (1996, p. 13) nos fala da necessidade de se apreender o mundo em sua temporalidade, em seu
estado de coisas atuais, decodificando o tempo presente, para conceb-lo como um estado de coisas possveis.
Freire e Santos, esses andarilhos da esperana, nos acenam com o futuro possvel. Para Santos (1998b, p.
42):
O Brasil tem jeito, porque nunca aceitou o conformismo. O Brasil uma cultura rebelde. No Brasil os mais pobres
no desistiram de ser gente os pobres querem ser gente e isso contagioso. (...) O futuro j chegou e este perodo de globalizao est morrendo. Agora o tempo de uma globalizao por baixo, uma globalizao que vem
de baixo para cima, que vem com emoo e que vai incluir todas as minorias e todas as minoridades.
Notas
* Professora do Departamento de Educao, Sociedade e Conhecimento, da Faculdade de Educao da Universidade Federal Fluminense. Doutoranda em Educao na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.
1. "fazer a sociedade falar atravs do territrio. Da mesma maneira como a gente pode dar voz sociedade atravs
da economia ou da cultura, tambm o territrio capaz de mostrar a sociedade tal e qual (...) o territrio um formidvel revelador, porque no pode esconder nada. Porque ele o lugar de vida, trabalho e circulao, o lugar das
relaes sociais e do trato entre os indivduos, e at mesmo de manifestao do esprito." Santos, A natureza do
espao: tcnica e tempo, razo e emoo. So Paulo: Hucitec, 1997, p.43.
2. Para Santos, Geografia cabe estudar o conjunto indissocivel de sistemas de objetos e sistema de ao que
formam o espao. O espao hoje um sistema de objetos cada vez mais artificiais, povoado por sistema de aes
tambm artificializadas, cada vez mais estranhas ao lugar e seus habitantes. Fbricas, hidroeltricas etc. so objetos que marcam o espao lhe dando um contedo tcnico. Sistemas de objetos e sistema de aes esto em permanente interao; os sistemas de objetos condicionam a forma como se do as aes e o sistema de aes leva
criao de novos objetos tcnicos, assim que o espao encontra sua dinmica e se transforma. A Natureza do
Espao: tcnica e tempo, razo e emoo. So Paulo: Hucitec, 1997, p. 51-52.
3. Na atual fase da histria da humanidade, assistimos a um processo de unificao que faz do planeta Terra um
sistema-mundo, internacionalizando, em diferentes graus, lugares e indivduos. Tal conjunto sistmico nos d a impresso de que a globalizao constitui um paradigma capaz de nos fornecer a compreenso dos diferentes aspectos da realidade. A unio da tcnica e da cincia associa-se, na contemporaneidade, idia de um mercado global,
no qual a informao ocupa papel de destaque. Da mesma forma como participam da criao de novos processos
vitais e da produo de novas espcies (animais e vegetais), a cincia e a tecnologia, juntamente com a informao, encontram-se na base de produo, utilizao e funcionamento do espao. Pelo fato de ser fruto da produo
tcnica-cientfica-informacional, o meio geogrfico tende a ser universal, assegurando o funcionamento dos processos de globalizao.
4. Santos chama de horizontalidades as extenses formadas de pontos que se agregam sem descontinuidade e de
verticalidades, aqueles pontos no espao que separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da sociedade. O espao se compe desses dois recortes, a partir dessas novas subdivises que devemos pensar novas categorias analticas. As horizontalidades referem-se a produo propriamente dita, o locus de uma cooperao mais limitada, as verticalidades referem-se a circulao, distribuio e o consumo da produo. SANTOS. Apontamentos de aula. FFLECH/USP, 1998.
5. A esse respeito ver Branco, Joo Maria de Freitas - Dialtica, cincia e natureza, citado por Santos, Douglas, no
artigo intitulado A tendncia desumanizao dos espaos pela cultura tcnica, in: Cadernos CEDES: O Ensino de
Geografia, n. 39. Campinas. Papirus, 1996, p 39.
6. Utopia aqui entendida no como algo irrealizvel; no como idealismo, mas como objetivo de vida, como construo histrica, como "dialetizao dos atos de denunciar e anunciar: denunciar a estrutura desumanizante e anunciar uma estrutura humanizante".
Referncias Bibliogrficas
BRANCO, Joo Maria de Freitas. Dialtica, cincia e natureza. Lisboa: Caminho, 1989.
BENEVIDES, Maria Vitria. Entrevista Revista Teoria e Debate, n. 39, out/nov/dez. So Paulo. Fundao Perseu
Abramo, 1998.
FREIRE, Paulo. Educao e mudana. So Paulo: 1979.
_______. Conscientizao. So Paulo: Moraes, 1980.
_______. A Importncia do Ato de Ler: em trs artigos que se completam. So Paulo: Cortez, 1986.
_______ & MACEDO, Donaldo. Alfabetizao: leitura do mundo, leitura da palavra. So Paulo: Paz e Terra, 1990.
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