O Livro de Hilda (1902), a cartilha

do mtodo analtico, por Joo Kpke

Norma Sandra de Almeida Ferreira*, Maria Lygia Cardoso Kpke Santos**

http://dx.doi.org/10.1590/0103-7307201407510

Resumo
Este artigo toma como fonte e objeto de pesquisa a cartilha
O Livro de Hilda ensino da leitura pelo processo analtico,
com data de 1902 e autoria de Joo Kpke (1852-1926). Esse
livro manuscrito a prova material da existncia de uma cartilha produzida por esse autor para o ensino da leitura pelo
mtodo analtico encontrada apenas em sua verso original.
A obra composta por trs partes: o livro de hilda, o livro
das bonecas, O livro de Hilda Instruces para seu uso.1
Descreve-se, neste texto, o modo composicional dessa cartilha

* Faculdade de Educao,
Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp),
Campinas, SP, Brasil.
normasandra@yahoo.
com.br
** Escola Comunitria de
Campinas, Campinas, SP,
Brasil. mlykopke@gmail.
com

e analisam-se seus aspectos visuais e textuais quanto ao mtodo analtico da palavrao, tal como ele se apresenta nesta
obra. Ao mesmo tempo, situa-se Joo Kpke em sua poca, fazendo algumas comparaes com outras cartilhas publicadas
por educadores adeptos do mtodo analtico, dialogando com
estudos recentes de pesquisadores da cultura escolar.

Palavras-chave
Manuscrito, Joo Kpke, mtodo analtico, cartilha.

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1. Usaremos o livro de hilda e

o
livro das bonecas, em minscula, tal
como usado por Kpke, para nomear a
primeira e a segunda partes do livro.
E indicaremos a obra como um todo
por O Livro de Hilda. Desta forma, para
melhor compreenso do leitor, diferenciamos as referncias obra ou a
parte dela. A terceira parte nomeada
por Kpke como O Livro de Hilda
Instruces para seu uso, mas, ao
nos referirmos a ela, ao longo do texto,
poderemos usar apenas Instruces
para seu uso.

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O Livro de Hilda (The Book of Hilda, 1902)

literacy analythical-method booklet by Joo Kpke

Abstract
This article discusses variations in the analytical method of
literacy by examining the handwritten booklet O Livro de Hildathe teaching of reading by using the analytical method, written
by Joo Kpke and diffused in 1902. The booklet in exam is the
original first edition and documents the authors investment in
this literacy method. The analysis shows the particularities of
the textual and visual aspects of the booklet in comparison with
other similar teaching materials produced at the time in the light
of recent findings in the field of school culture.

Keywords
Manuscript, Joo Kpke, analytical method, spelling book.

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Ao leitor, uma apresentao: o autor

Em uma reviso bibliogrfica que toma como objeto de estudo o educador Joo
Kpke (1852-1926) e sua produo de livros, identificamos que pesquisadoras
como Carvalho (1998), Mortatti (2000), Panizzolo (2006), Ribeiro (2001) e Santos
(2013) apontam para mltiplos aspectos que ajudam a compor o significativo papel
que Joo Kpke ocupou na histria da educao brasileira, no debate a respeito da
instruo e do ensino do Pas, no perodo situado entre os dois ltimos sculos.
Um intelectual que usufruiu de reconhecimento pblico, talvez por fazer parte
de uma rede de homens pblicos que atuavam na imprensa acadmica e diria,
sempre lutando pelo direito da populao ao ensino. Estes homens Prudente
de Moraes, Rui Barbosa, Rangel Pestana, Silva Jardim, Caetano de Campos, entre
outros ocuparam cargos na instruo pblica de So Paulo e na vida poltica no
Pas. Com eles, Kpke fundou e dirigiu escolas, alm de compartilhar o ambiente cultural de seu tempo, os conhecimentos cientficos e educacionais dos anos
finais do sculo XIX e, principalmente, os bancos do curso de Direito do Largo
So Francisco em So Paulo.
Um educador apoiado nos conhecimentos da cincia positivista e nos ideais liberais e republicanos, um mestre que usava todos os recursos do mtodo intuitivo2
e estava a par da pedagogia europeia. Um autor
de livros de leitura3 e de cartilhas, bem como um

2. Para Valdemarin (2006), o mtodo intuitivo pressupe

defensor do ensino da leitura e da escrita para a

uma educao com o objetivo de despertar e aguar o sentido da observao por meio dos cinco sentidos (viso, audio, tato, paladar, olfato), colocando a criana diante de
um objeto (ou imagem dele), de modo que ela possa observ-lo, elaborar comparaes, distines, nomeando-o
e descrevendo-o, aprendendo uma coisa/fato/fenmeno
e seu nome/expresso, enfim, passando da intuio dos
sentidos para a intuio intelectual, mais abstrata. O mtodo intuitivo teve grande importncia na reformulao da
instruo do nosso pas no final do sculo XIX e no incio
do XX, tendo Rui Barbosa como um dos principais divulgadores, com sua traduo de Lies de Coisas, de Calkins.
3. Entre sua produo, podemos destacar a srie graduada de Leituras moraes e instructivas para uso das escolas
primarias e secundarias, publicada, em grande parte,
pela livraria e editora Francisco Alves (Srie Rangel Pestana), com inmeras edies, muitas delas aprovadas como
obras oficiais para as escolas pblicas do Rio de Janeiro
e So Paulo.
4. Mthodo Rapido para aprender a ler, em 1874; e Mtodo racional e rpido para aprender a ler sem soletrar, em
1879 (edio revisada e ampliada).

formao do cidado brasileiro.

E, embora tivesse publicado primeiramente
cartilhas para o ensino da leitura e da escrita
pelo mtodo sinttico4, Joo Kpke, tomando
conhecimento das crticas ao mtodo da soletrao, especialmente aquelas que vinham de
Silva Jardim, e aproveitando a contribuio de
educacionistas americanos e europeus, como
Frebel, Meiklejohn, Stanley Hall, Claubb Carpenter (Mortatti, 2002, p. 550), aderiu ao mtodo analtico, por volta dos anos 1890. Desde
ento, tornou-se um grande divulgador do mtodo analtico pela palavrao, ministrando in-

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cansavelmente conferncias, publicando artigos, reafirmando-se pioneiro no ensino da leitura pelo mtodo analtico.5
Parece que houve uma compreenso, entre os administradores educacionais e
os autores das cartilhas, de que os mtodos analticos (palavrao, sentenciao),
diferentemente dos sintticos (soletrao, silabao), iniciavam o processo de ensino
pela compreenso daquilo que expressasse significado para as crianas, proporcionando ao aprendiz o entendimento analtico do todo para as partes. Tambm havia um
consenso de que uma gravura inspiraria um texto (historieta, sentenas, palavras) primeiro oralmente e depois graficamente, levando a criana compreenso do que lia.
Mas, se havia concordncia quanto importncia da gravura associada escrita; do
desenvolvimento intelectual pela intuio, pela motivao e pela observao; e do uso
dos objetos concretos para a compreenso das ideias abstratas e lgicas, por outro
lado, especialmente em relao ao mtodo analtico, as pesquisadoras j citadas, com
base em artigos publicados na Revista do Ensino e em jornais de grande circulao,
concluram pela existncia de um acirrado debate entre Joo Kpke e os normalistas
que exerciam cargos na instruo pblica paulista
5. As conferncias sobre o mtodo das sentenas pelo

e haviam se tornado autores de cartilhas de alfa-

mtodo analtico (1896 e 1916), proferidas em So Paulo,

e os artigos Carta aos Professores J. de Brito e R. Roca
Dordal (1902) e Ensino da Leitura (1903) so algumas
das situaes pblicas em que Kpke exps seu mtodo
analtico e divulgou suas cartilhas (Mortatti, 2000, 2002;
Panizzolo, 2006; Ribeiro, 2001).
6. Apenas para elucidar a singularidade e a semelhana
desse material com outros que circularam nesse perodo,
traremos alguns aspectos j assinalados por Bernardes
(2008); Carvalho (1998); Frade (2010, 2011); Mortatti
(2000, 2002); Santos (2013) ou identificados por ns na
consulta a algumas obras. Para tal, selecionamos as seguintes cartilhas, publicadas em perodo muito prximo
do de O Livro de Hilda (1902) e adotadas para circular nas
escolas paulistas: Cartilha Analytica (1. ed., 1909), de Arnaldo de Oliveira Barreto (1869-1925); Cartilha Moderna
(1. ed., 1902), de Ramon Roca Dordal (1854-1938); O primeiro livro de leitura (1. ed., 1894), de Maria Guilhermina
Loureiro de Andrade (1869-1913). Usaremos as edies
da Cartilha Analytica, de 1930, que pertence ao acervo
do nosso grupo de pesquisa, e de O primeiro livro de
leitura, de 1894, que foi localizada na Biblioteca Infantil
Municipal Monteiro Lobato (SP). Para a Cartilha Moderna,
de Dordal, usaremos como fonte de consulta o artigo j
citado e publicado na Revista de Ensino, n 2, anno I, no
ano de 1902, escrito pelo prprio autor. presentes ao final
da escolarizao, poderiam comprometer a investigao.

betizao. Um debate que se estendia naquilo que

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Mortatti (2000, 2002) cunhou como luta de poder

entre o fluminense Kpke e os autores paulistas,
marcando a mudana do lcus de poder do Largo
So Francisco para a Escola Normal de S. Paulo.
Essa disputa, ligada s discusses relacionadas com a reforma da instruo pblica paulista,
havia se iniciado em 1890, tendo sido marcada
tambm por diferentes entendimentos sobre o
ponto de partida do mtodo analtico, a concepo de texto, as escolhas do lxico a ser empregado nas cartilhas, alm de discusses sobre o que
se entendia como fcil e agradvel para o desenvolvimento infantil, entre outros aspectos.6 Para
Dordal (1902), os alunos primeiramente olhariam
e descreveriam as figuras, sendo encorajados, em
seguida, a ler palavras monosslabas e disslabas

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e, finalmente, frases escritas com letras maisculas e com pontuao. Para Barreto
(1930), a Cartilha analytica deveria iniciar-se com trs historietas, a partir da observao de uma gravura pelas crianas, historietas essas compostas por sentenas
respostas s perguntas direcionadas do professor escritas em letra manuscrita no
quadro negro e numeradas, de modo que o objecto logico de uma seja empregado
como sujeito da sentena immediata, formando o todo uma pequena historia descriptiva do objecto ou estampa que sirva de assumpto da lio (Barreto, 1930, p. 95). Assim, partia-se das sentenas, que eram desmembradas em palavras, slabas e letras,
seguindo o processo analtico do ensino da leitura (Bernardes, 2008; Frade, 2011).
Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1894, p. 3) assim j orientava o mestre
nas pginas iniciais de o Primeiro Livro de leitura:
[...] o menino aprende primeiramente a reconhecer as palavras das sentenas que elle j sabe, ou que aprendeu com tanta facilidade que se lhe tornaro familiares; depois entre as palavras escolhidas por sua semelhana
umas com as outras, e por meio delas aprendem tambm quasi simultaneamente nas outras de que elas so typo.

Joo Kpke, por sua vez, na edio de junho de 1904, ano III, n 2, da Revista de
Ensino, ao fazer uma apreciao crtica dos livros escolares de R. Puiggari e A. Barreto, posiciona-se em relao ao ensino da leitura, destacando o discurso e a palavra
como unidades que promovem interesse, que acordam a vontade, que tornam a atividade proveitosa:
Si ler pensar, o discurso e a palavra so a realidade para o que aprende, e
do discurso e da palavra no da sylaba, nem da letra, se h de subir arte
da leitura; si ler provocar o desenvolvimento da expresso da emoo
congenial ao espirito e do interesse, que acorda a vontade, que se h de
esperar a leitura proveitosa; no da mecanica inconsciente, no da conscincia agilitada num manejo sem utilidade. (Kopke, 1904, p. 589).

Concordando com os demais, Joo Kpke (1904, p.589.) discorre sobre seu modo
de conceber a cartilha analtica, tomando a palavra como realidade para o que aprende, como ponto de partida do processo, mas acrescenta, alm dela, o discurso como

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possibilidade de acordar a vontade, de provocar o desenvolvimento da expresso

pela leitura proveitosa e no mecnica. Mortatti (2000) destaca que o mtodo analtico apresentado por Joo Kpke nas conferncias de 1896 e 1916 tem como ponto
de partida o todo.
Na conferncia de 1916, em So Paulo, Kpke assim se pronunciou:
[...] mais do que a sentena, a fala, a decripo, a narrao, o discurso,
que a instruiu na lngua em que entende e se faz entendida, e que sob a forma de conto ou historia escripta, se ha de traduzir a seus olhos, dando-lhe
o segredo da representao grfica, em que se faa entendida e entenda.
[...] (Mortatti, 2000, p. 114).

E, ainda, Kpke (1916), ao argumentar em defesa do seu mtodo, coloca sua ampla experincia na sua aplicao e ressalta a diferena deste em relao ao de outros
autores, reforando a importncia da criao de uma historieta e da escolha apropriada de estampas ligadas entre si, dando continuidade narrativa: [...] em vez
de um conto, successivos contos iro fornecendo as palavras a fixar, e o quadro final
nascer de um jacto [...] (Kpke, 1902a, p. 785).
Pelas exposies das ideias de Kpke e pelos estudos j produzidos sobre as
cartilhas para o ensino da leitura e da escrita, possvel perceber, portanto, as divergncias a respeito dos sentidos dados ao que seria mais fcil; do que aguaria a
curiosidade e o interesse, suscitando a atividade mental das crianas; de qual seria
o ponto de partida para o processo de ensino, etc. possvel tambm supor que o
mtodo analtico da palavrao proposto por Joo Kpke tenha como centralidade a
audio/escrita/leitura de uma historieta mais do que de um conjunto de sentenas
descritivas sobre uma estampa que se apresenta em captulos e forma, no conjunto,
um assunto e uma linguagem prximos ao interesse de seus leitores-aprendizes.

Ao leitor, uma apresentao: nossos propsitos

O Livro de Hilda ensino da leitura pelo processo analtico a prova material da
existncia de uma cartilha produzida para o ensino da leitura pelo mtodo analtico
vrias vezes citada por pesquisadores no campo da histria da alfabetizao (Carvalho, 1998; Mortatti, 2000, 2002; Panizzolo, 2006; Ribeiro, 2001), mas nunca encontrada em qualquer verso, original ou publicada. nossa inteno, neste artigo,

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apresentar essa obra manuscrita, que traz, em sua capa, alm do ttulo, as seguintes
informaes gravadas em dourado: Joo Kpke, 1902.7
Nesse sentido, com base nos estudos realizados por Santos (2013), trazemos
como contribuio para a produo j consolidada sobre Joo Kpke uma descrio
sobre o modo composicional desta cartilha e uma anlise dos seus aspectos visuais e
textuais quanto ao mtodo analtico da palavrao, tal como ele se apresenta nessa
obra. uma oportunidade para explorarmos a compreenso de Joo Kpke sobre o
mtodo analtico pela palavrao no ensino da leitura, concretamente exposta em
um material didtico, e no apenas divulgada em conferncias ministradas e artigos
publicados (Kpke, 1896, 1902a, 1904, 1916).

Ao leitor, uma apresentao: O Livro de Hilda

O Livro de Hilda ensino da leitura pelo processo analtico um livro grande,
cuja leitura e manuseio s so possveis com o apoio de uma mesa. Encontra-se amarelado, com lombada corroda, algumas pginas costuradas e outras soltas devido ao
manuseio e prpria passagem do tempo. No total, so 274 pginas, utilizadas apenas na frente, mas algumas poucas usadas tambm no verso. H espaos em branco,
como se espera de ilustraes ou de estampas a serem coladas.
Ao abri-lo, observamos a letra manuscrita do autor, inclinada para a direita, bem
desenhada e firme, majoritariamente em tinta preta (ou nanquim). As ilustraes, em
sua maioria, feitas com lpis colorido, so, provavelmente, do prprio autor e emolduram o texto escrito, representando visualmente cenas, personagens das narrativas
e objetos nomeados para o ensino da leitura. Algumas oferecem ao leitor contemporneo imagens do cotidiano urbano do Rio de Janeiro no final do sculo XIX e incio do
XX; outras ilustraes remetem a diferente finalidade: explorar os sentidos, conforme
perspectiva epistemolgica apoiada no mtodo intuitivo de lies de coisas (Frade,
2011), ou concretizar aspectos da lngua no momento do ensino da leitura e da escrita.
Os temas versam sobre valores morais e ticos, como: honestidade, respeito
aos mais velhos, obedincia, caridade valores esses socialmente reconhecidos.
E destaca-se, principalmente, o valor da aprendizagem do ler e do escrever (pelo
mtodo intuitivo) no interior de um espao de
disputa com outros mtodos vigentes na poca,
conforme podemos ler na fala de um dos personagens-adultos, no livro:

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7. O Livro de Hilda ensino da leitura pelo processo analtico pertence ao acervo pessoal da famlia Kpke e se encontra atualmente no grupo de pesquisa Alfabetizao,
Leitura e Escrita- ALLE/FE/Unicamp.

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Olha, Olguita. O que quero que tu fiques muito camaradinha de Hilda. A

Hilda uma boa menina e tem muitos brinquedos e bonecas. E essa casa
uma chcara muito grande para correrem e pularem. Mas olha que a Hilda
no passa s a brincar o dia inteiro, no, senhora... tambm trabalha, ol!
Se Ella j tem sete anos!... Ella ajuda a mamai no servio da casa, e... d
suas lies. Talvez ella te diga como aprendeu a ler. No comeou pelo ABC,
nem pelo B..a..B, como dantes, quando eu era do teu tamanho. Abriu um
livro e leu logo na primeira lio. Basta olhar e querer saber. E nem se faz
birra, nem se chora. Vais ver. (Instruces para seu uso, p. 146).

A proposta da obra sugere um aprender a ler e a escrever sem birra, sem choro, a partir de diferentes gneros discursivos em prosa (contos de fadas, histrias
cotidianas); em versos (trava-lnguas, poemas, quadrinhas); em forma de perguntas
e respostas com rimas, exerccios para completar com letra, palavra, etc.
O Livro de Hilda ensino da leitura pelo processo analytico rene trs partes: o
livro de hilda; o livro das bonecas; Livro de Hilda - Instruces para seu uso.
Aparentemente distintas, essas partes esto intimamente articuladas pela sequncia
narrativa, garantida pela permanncia das personagens, pelo ambiente em que estas
circulam e pelo desenvolvimento do enredo, nas lies e nas recordaes (primeira e
segunda partes); nas narrativas e nas propostas de leitura (a serem lidas pelo professor e registradas na terceira parte).
A primeira dessas trs partes do livro, denominada o livro de hilda, apresenta as
protagonistas, duas meninas Olguita e Hilda que se encontram e se conhecem; e
mostra suas famlias, as casas onde moram, a chcara e os brinquedos, no desenrolar
de vinte episdios. So essas histrias que colocam os leitores (crianas a serem alfabetizadas) em contato com unidades de sentido, segundo o mtodo analtico de
alfabetizao (Frade, 2011; Mortatti, 2000).
Os episdios so nomeados e numerados em sequncia, a lpis, na parte superior
da pgina, como Lio (da 1 20) ou como Recordao (da 1 3). As Lies,
narradas por Hilda em primeira pessoa, so exerccios para o ensino da leitura e da
escrita de frases, palavras, slabas, letras, fonemas. J, as trs Recordaes se referem, como o prprio nome diz, ao vocabulrio j explorado nas lies anteriores,
tendo como narradora Olguita, que, numa espcie de reviso, conta a sua me tudo
o que viu e fez na casa de sua amiga Hilda.

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Na segunda parte, nomeada pelo autor como o livro das bonecas, o enredo montado na forma de um jogo entre aprender de mentirinha (Hilda, mestra dedicada, d
aulas a Olguita e s suas bonecas, alfabetizando-as) e aprender de verdade (livro aberto, grande, no cavalete de um lado: figuras; de outro: palavras). O leitor infantil, que
no interrompe o universo ficcional da primeira parte, se v, na segunda, enredado a
aprender de forma sistemtica, passo a passo, a leitura e a escrita pelo mtodo analtico. E o leitor-mestre previsto para o uso deste livro tem, encenadas na fico, concepes
de escola, do ensinar a ler e a escrever, do mtodo analtico, das posturas pedaggicas
dos professores, dos comportamentos previstos e desejados por parte dos alunos, etc.
Essa segunda parte contm mais trinta e uma lies, compostas por apresentaes de letras, palavras, textos. Aqui, o narrador-personagem ora a menina Hilda,
ora a pequena Olguita, que encenam o enredo didtico que ser explorado conforme
orientao explcita na terceira parte da obra.
na terceira parte, intitulada pelo autor Livro de Hilda - Instruces para seu
uso, que podemos nos aproximar dos usos previstos para este material. As cento
e trinta e oito pginas que a compem revelam-se exemplares para um conhecimento minucioso das orientaes ao mestre para manusear as duas primeiras partes de
O Livro de Hilda e trabalhar com elas.
Nessas Instruces para seu uso, Kpke cria vinte e duas novas narrativas que
devem ser lidas pelo professor, nomeando-as assim: Narrativa inicial, Primeira
Narrativa, Segunda Narrativa, at Vigsima Narrativa e Narrativa final. H certa orientao para o uso de tais narrativas: cada uma delas deve ser sempre lida oralmente pelo mestre; tal leitura deve ser anterior s Lies e, algumas vezes, posterior
Recordao. O autor tambm cria um Cyclo de exerccios procedimentos didticos detalhadamente preparados por ele para orientao ao usurio desse material.
Nesta terceira parte, Kpke assume a autoria do discurso e volta a ser o professor-autor, dirigindo-se aos mestres. Pelo menos dois tipos diferentes de direcionamento
so recorrentes: a insistncia para que o mestre faa uso do livro, incentivando no
leitor o desejo de l-lo com prazer e interesse, e o detalhamento de todas as etapas
do processo, de modo que o mestre se sinta seguro em adotar o ensino sugerido pelo
autor, que prazeroso e divertido para os alunos.
Em O Livro de Hilda, portanto, em cada uma das partes separadamente, e entre elas,
como um todo, so mantidos o mesmo cenrio e as mesmas personagens; cada captulo/ histria faz parte de um enredo maior, que se mantm em qualquer das partes;

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as instrues, detalhadamente explicadas e justificadas, ocupam muitas pginas; as

lies com o mtodo analtico no podem ser vistas de forma separada das narrativas
que as compem e que com elas se relacionam; cada lio, propriamente dita, traz diferentes recursos metodolgicos, o que amplia, entre outros aspectos, a diversidade e a
quantidade de atividades previstas para o aluno no ensino inicial da leitura e da escrita.

Ao leitor, uma apresentao: o mtodo analtico

Em O Livro de Hilda, o mtodo analtico de Joo Kpke no se inicia por uma lio
que ensina a criana a ler e a escrever por uma palavra ou sentena, como comumente vemos nas cartilhas publicadas na poca: Maria Guilhermina Loureiro de Andrade
(1894) e Arnaldo Barreto (1930), por exemplo. Antes de iniciar, propriamente, o ensino
da leitura, Kpke prope uma Lio inaugural com o intuito de enfatizar o valor e a
importncia do aprendizado da leitura e da escrita para as crianas, conforme vemos
nas Instruces para seu uso, em que ele orienta: o mestre, que tiver de iniciar o
ensino da leitura e da escripta por este livro, far, em antes de o abrir e mostrar aos
seus discpulos, uma conferncia, em palestra muito ch, sobre o valor da arte de ler
e escrever. [...] (Kpke, 1902b, p. 138, grifo do autor).
Alm da Lio inaugural, Kpke indica uma leitura oral de outra narrativa (a inicial). Com ela, os alunos so apresentados s protagonistas e a seus familiares, em
suas moradias, com suas brincadeiras e passeios. Ele insiste para que o mestre fique
atento e se prepare para ler oralmente, quase uma conversa olho no olho, de modo
que os alunos possam ser enredados pela trama, recebam a histria de forma tranquila e apreciem a linguagem que est ao alcance de sua inteligncia. So estratgias
que, para ele, sugerem a importncia da adeso do aprendiz ao sentido da histria,
aspecto fundamental no ensino analtico de leitura.
Conforme ele destaca antes da leitura da Narrativa inicial:
Neste ponto, prefervel que, por palavras suas [do professor], lhes exponha o assumpto, que objectivo da Narrativa inicial, abaixo deduzida; e,
quando o no possa, lel-a- com o maximo de emphase e ajudando com a
ao o sentido a exprimir pela fala, tendo os olhos mais nos ouvintes do
que na pagina, de modo a dar sua elocuo um tom de conversa tanto
mais agradvel s crianas quanto mais a linguagem puzer ao alcance da
sua intelligencia a trama da meninada. (Kpke, 1902b, p. 138)

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S depois da leitura oral, feita pelo mestre, da Lio inaugural e da Narrativa

inicial que a criana inicia, na Primeira Lio, a aprendizagem da leitura pelo
mtodo analtico: [...] Apresentando, ento, o livro de hilda, aberto na pgina do
frontispcio, onde se v estampado o retrato da protagonista, dir-lhes- que vo ver
quem Hilda, pondo sentido na histria que lhes vai contar (Kpke, 1902b, p. 138).
S neste momento que o leitor de O Livro de Hilda desafiado, como nas cartilhas
analticas do mesmo perodo, a aprender a ler pela estampa, que pode dar concretude palavra escrita, em sentenas descritivas entendidas como unidade de sentido.
So frases curtas, muito parecidas com as que encontramos nas cartilhas analticas,
de um modo geral, como as de Andrade (1894); Barreto (1930) e Dordal, (1902). Sentenas que so espcies de respostas dadas pelas crianas s questes postas pelo
professor diante da gravura; sentenas formadas com pouca variedade de palavras;
sentenas dispostas uma abaixo da outra.
Mas o texto elaborado a partir da estampa que Joo Kpke prope em O
Livro de Hilda rico em detalhes e se liga ao
enredo demarcado por um tempo cronolgico,
pela resoluo de um conflito (uma criana no
sabe ler).
Desse modo, o que vemos, no manuscrito,
a concretizao da compreenso que Kpke manifesta da historieta/conto como ponto de partida, concepo bem distinta da de outros autores, como, por exemplo, Andrade (1894) e Dordal
(1902).8 Diferentemente tambm da Cartilha
Analytica, de Arnaldo Barreto (1930), por exemplo,
em que no h continuidade temtica, embora os
personagens Paulo e Lcia permaneam em algumas situaes do livro (Frade, 2011, p. 9).
Assim, a imagem to cara ao ensino intuitivo
e, especialmente, ao mtodo analtico da leitura no apenas pretexto para a elaborao de
sentenas com ligao forada entre elas, muito
menos mera ilustrao que acompanha o texto.9
Para Kpke (1902a, p. 785):

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8. Vejamos algumas histrias criadas para trs outras

cartilhas analticas, a ttulo de exemplificao. A partir
de uma estampa, este primeiro texto criado por Roca
Dordal (1902, p. 216) em sua Cartilha Moderna: Eu vi a
ave./A ave va./Vov v a ave./ Viva o vov!/A Eva v a
uva./ Vov viu o ovo? /Viu, e eu vi a ave./O Ivo vivo?/.
O Ivo vivo. Tambm este o primeiro texto da Cartilha Analytica, de Arnaldo Barreto (1930, p. 7): Eu vejo um
menino./ Este menino chama-se Paulo./ Paulo tem uma
bola./ Vocs esto vendo a bola? A bola azul. A Lio
1 da cartilha de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade
(1894, p. 5) a seguinte: O menino,/ O gato./ Vejo./ Eu./
V/ Um/ . / E. / O menino v o gato./ O gato v o menino./
Eu vejo o gato./ Eu vejo o menino./.
9. Kpke (1902a), em carta dirigida a J. De Britto e R. Roca
Dordal, defende-se da crtica feita por esses professores
ao seu mtodo analtico. Argumentando a favor de seu
mtodo, ele cria um texto para as estampas propostas
na primeira lio de Cartilha Moderna. Descontando ligaes bastante foradas entre o texto e as estampas
que so (pelo menos para ns, hoje) totalmente desconexas criana que sai do ovo, vov, vinho, cacho de
uva, ovo grande, passarinho , podemos dizer que temos
uma apresentao descritiva dos personagens e de suas
aes, disposta em um enredo coerente e sequencial.
Uma histria que o autor prope como interessante porque composta em palestra, alegremente (Kpke, 1902a,
p. 775), com palavras do vocabulrio dos aprendizes, ainda que limitada pela imposio das estampas e da brevidade do espao para expor seu mtodo.

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tomando ao acaso, uma estampa, sobre ela inventando um contosinho,

e organizando os exerccios [...] e entre estampa e estampa, houver um
elo de relao, de modo a formarem os exerccios ou contos sequncia, e
a serem todos os vocbulos ocorrentes personagens e cenrios diversos,
em que uma mesma ao se desenrola, mais a gosto ficar o esforo dos
alunos, e mais eficaz ser o efeito do mtodo no instru-los sem violncia
ou inteligentemente.

As primeiras lies so exemplares em recursos analticos bastante comuns entre

os autores que defendem o mtodo intuitivo (Frade, 2011, p. 9) e entre os demais
textos que compem O Livro de Hilda. Nelas, podemos associar os recursos textuais
calcados nos procedimentos mentais de descrio de estampas e de observao de
imagens como incentivo observao por meio da viso, explicitados pelos advrbios e pelos pronomes (aqui est a minha mame; este o meu vov) e pelos
verbos (olhe nhonh; olhe lili) (grifos nossos), como expe a Figura 1.

Figura 1 Lies 3 e 4.

Fonte: O Livro de Hilda (Kpke, 1902, p. 3- 4)

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Tambm no muito diferente do que conhecemos das cartilhas impressas de outros autores, para as vinte primeiras lies (narrativas) de O Livro de Hilda, Kpke
prope, na terceira parte do livro, os dez passos (cyclo de exerccios) a serem desenvolvidos pelas crianas com orientao do mestre:
1. Exhibio da estampa e rpida conversa sobre ella; 2. Leitura, pelo mestre, do texto, apontando cada palavra que profere; 3. Escripta, no quadro-negro, dos vocbulos concretos, em colunas; 4. Indicao pelos alumnos,
nestas columnas, dos vocbulos iguaes; 5. Indicao, pelos alumnos,
destas columnas, dos nomes correspondentes a cada figura indicada pelo
mestre na estampa; 6. Classificao das palavras pela syllaba inicial; 7.
Indicao, pelos alumnos, dos vocbulos classificados, que forem proferidos; 8. Leitura dos vocbulos classificados; 9. Leitura do texto; 10. Leitura
de phrases e proposies formadas com as palavras aprendidas. (Kpke,
1902b, p.164)

So passos que norteiam as primeiras lies, como ocorre nas primeiras ou nas
ltimas pginas impressas dos livros de Andrade (1894) e de Barreto (1930) ou nas
orientaes dadas por Dordal (1902) no artigo publicado na Revista de Ensino. Mas,
distintamente desses autores, Kpke articula essas lies pelas orientaes minuciosamente dadas para o livro como um todo, na terceira parte, Livro de Hilda - Instruces para seu uso: apresentao e conversa sobre as estampas que se relacionam
com as palavras concretas que as nomeiam; articulao entre leitura e escrita (do
mestre e dos alunos) de palavras, de textos, de frases formadas com palavras aprendidas; comparao, classificao e identificao entre figura e palavra, entre palavras, entre palavras iguais, entre slabas iniciais das palavras, entre palavras, slabas
e letras aprendidas com formao de novas palavras. So muitas e diversas estratgias, do conhecido para o novo, da repetio (reconhecimento) para a produo, do
todo para as partes e vice-versa.
Nessas primeiras lies, podemos ver que a distribuio dos textos e das imagens
segue praticamente o mesmo padro no livro todo: os desenhos (objetos, situaes
cotidianas) continuam dispostos acima dos textos. As ilustraes reproduzem ou
descrevem visualmente o assunto (objeto) tratado no texto, alm, claro, de ser uma
estratgia que d visualidade pgina, fragmentando-a em duas linguagens distin-

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tas, que se complementam na produo de sentidos para a leitura da criana.

E, medida que prosseguimos com a leitura do livro, textos que descrevem os
desenhos aumentam de extenso, e as ilustraes podem ter outras funes, como
nas lies 3 e 4, em que os desenhos dos objetos bengala, mobilia, guarda-vestidos exploram ludicamente o sentido da viso na perspectiva do mtodo intuitivo. So formas distintas, que servem para ler e escrever; so diferentes linguagens
(verbal e imagtica), que representam os objetos a que se referem e que se oferecem
como pistas semnticas no interior de um mesmo texto.
Segundo Kpke (1902b, p. 208), a leitura tanto poderia ser feita por imagens, para
quem ainda no reconhece as letras, como por palavras, para quem j sabe ler a escrita:
Olguita representa uma menina que ainda no sabe ler e, por isso, Hilda,
como mestra, mostra-lhe a imagem correspondente a cada palavra de uma
lista e, em seguida, a palavra escrita. Hilda l as palavras, e Olguita e as
bonecas leem as figuras, de O Livro de Hilda. Na pgina, do lado esquerdo
da cartilha, esto as imagens, que a parte das bonecas e de Olguita; e na
do lado direito, esto as palavras correspondentes s imagens; quem l
Hilda, a professora. Primeiro, a mestra mostra as figuras (apontando e dizendo aqui a cada figura) e as bonecas vo dizendo: bacia, bezerro, bica,
boneca, bule; e assim, carreira por carreira, at terminar a pgina. Depois
a vez de Olguita, mas ela no l as figuras, no; l as palavras. A mestra tampa as figuras e ela tem que ler o escrito. No comeo custoso, e Olguita
fica atrapalhada, mas depois ela vai lendo at o fim da pgina.

O ensino das slabas, das letras e dos fonemas

em o livro das bonecas que podemos notar o momento em que Kpke introduz
o ensino das palavras, das letras e dos fonemas, acompanhado ainda de leituras de
historietas em versos e/ou narrativas que devem ser lidas antes de determinadas
lies, segundo indicao feita nas Instruces para seu uso e do estudo das frases que do incio ao aprendizado da leitura e da escrita (Kpke, 1902b, p. 218). So
figuras (para quem no sabe ler) acompanhadas das palavras (para quem l), em colunas horizontais e verticais, em ordem alfabtica de consoantes, ora com destaque
para as slabas, ora para as letras.
Vejamos, na Figura 2, um exemplo de ensino das slabas, nas pginas 51 e 52:

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Figura 2 Ensino das slabas

Fonte: O Livro de Hilda (Kpke, 1902b, p.51-52).

Nesta Lio, cada linha, horizontalmente, traz um conjunto de palavras (que nomeiam os desenhos), de acordo com a sequncia das vogais, como, por exemplo:
bacia...bezerro...bico...boneca...bule. Cada palavra que inicia a linha obedece sequncia do alfabeto, e elas esto dispostas verticalmente, em colunas: bacia...cavallo...dedal...faco [...] zabumba.
Alm dessa associao direta entre desenho e escrita de cada objeto, ainda identificamos outro procedimento visual a ser explorado pelo mestre: o uso distintivo da
cor vermelha para destacar ou a primeira slaba ou a letra inicial, em oposio s
demais, que vm na cor preta, quer no interior do texto, quer dentro das palavras.
Nesses casos, visualmente, o leitor solicitado a ler as partes da palavra que vm
registradas em cores diferentes e, oralmente, o aluno orientado, conforme as indicaes de Kpke transferidas para a mestra Hilda, na escola de brincadeirinha:
Depois a mestra disse: agora ns vamos cortar a cabea... De quem, meu
Deus? Disse Olguita, assustada. E as bonecas tambm se assustaram, coitadinhas!. De nenhuma de vocs, respondeu Hilda, sosseguem. Vamos cortar a cabea das figuras e dos nomes. E no preciso faca, nem tesoura:

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corta-se com a boca.[...]. Para cortar a cabea que vocs j sabem que d
este lado, do lado onde a gente comea a dizer ou a escrever, para cortar a
cabea, a gente comea falando muito alto ba e diz o resto muito baixinho
cia. [...] (Kpke, 1902b, p. 210).

Didaticamente, o leitor-mestre, ao adotar o Livro de Hilda, tem explicitamente a

seguinte orientao nas Instruces para seu uso: Escreva, ento, novamente,
mas com giz de cor vermelha a primeira syllaba: [...] Diga que a cor vermelha mostra
a cabea da palavra, e convide os discpulos a procurar no texto todas as que tm
cabea parecida (Kpke, 1902b, p. 154).
Buscando oferecer maior segurana ao mestre e descontrao aos aprendizes
que a aprendizagem dos rudimentos da leitura e da escrita vai ocorrendo da mesma forma que para os personagens do Livro de Hilda: olhar as figuras e a escrita
correspondente a elas, no movimento de uma compreenso do todo (palavra) para
as partes que o constituem (slabas e, posteriormente, as letras), destacadas pela
entonao, pela cor da escrita:
Quando Olguita acabou, Hilda disse: Muito bem minha menina! V que no
custa cortar cabeas. Mas eu disse cabea da palavra s de brincadeira. No
devem dizer cabea da palavra, mas primeira syllaba primeira sy... lla...
ba. As palavras so feitas de syllabas. A gente abre a boca e diz ba; torna
a abrir e diz ci; torna a abrir e diz a. Bacia tem trs syllabas. A cabea a
primeira syllaba: ba. As outras ci... e a so o rabo. A primeira syllaba est
escripta com tinta mais escura no Livro das Bonecas, as outras com tinta
mais clara. Esto vendo? [...] (Kpke, 1902b, p. 218).

Se olharmos, por exemplo, para a cartilha de Barreto (1930), veremos que as estratgias no so to distintas das de Joo Kpke quanto s finalidades, ao destaque
das slabas do incio e do final das palavras, separao das slabas em quadros, ao
uso das figuras como substituio da escrita. So recursos que colocam em prtica os preceitos do mtodo intuitivo: observar para progredir, passar da percepo
ideia, dos sentidos para a inteligncia, do concreto para o abstrato, conforme Valdemarin ( 2006). Mas Barreto (1930), ao invs da cor vermelha, utiliza outros recursos, e
de forma pouco diversificada. Para a decomposio do todo em partes, ele faz uso de

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dois procedimentos que se repetem de forma sistemtica por grande parte do livro,
conforme Frade (2011, p. 9) destaca na anlise da Cartilha Analytica:
[...] percebe-se bastante estabilidade: aps as lies com estampas so
apresentadas frases destacadas na vertical, um primeiro procedimento de
decomposio/anlise, com um esquema grfico idntico em todo o livro.
Um segundo [...] s vai aparecer na pgina 40, quando se apresentam palavras e um quadro que as divide em slabas.

Kpke, por sua vez, dispe de desenhos inteiros, desenhos cortados ao meio, desenhos que, juntos, preparam um novo, acompanhados sempre de seus nomes. So
recursos utilizados por Kpke neste livro, como o proposto na 26 lio, em que, ao
encerrar o estudo das famlias silbicas, o autor se utiliza de desenhos cortados ao
meio. Um procedimento que sugere uma tentativa de associar, visualmente, para os
aprendizes, parte da imagem prpria diviso das slabas, para que ouam e vejam
syllaba a syllaba (Kpke, 1902b, p. 226), conforme a Figura 3 revela:

Figura 3 Palavras e desenhos cortados

Fonte: O Livro de Hilda (Kpke, 1902b, p. 61-62)

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Kpke, alm disso, para dar destaque escrita do que se quer ensinar, utiliza-se
tambm da disposio visual na pgina. Letras, slabas, palavras (matrizes), termos
novos aparecem escritos entre os espaos vazios do texto ou so expostos em cavaletes, postos na parte inferior da pgina, como vemos na apresentao das palavras
novas compostas por ditongos na Figura 4:

Figura 4 Quadros e cavaletes

Fonte: O Livro de Hilda (Kpke,1902b, p. 65-66).

Na anlise das palavras por meio do estudo das letras (a partir da 34 e at a 51

Lio), alm desses procedimentos j comentados, o autor lana mo de um quadro
de palavras, sem preocupao com a ordenao pelo abecedrio. Ali, horizontalmente, esto colocadas as palavras que se iniciam por uma mesma letra, a qual se repete
no final da linha, como, por exemplo, na lio n 35: vassoura, veado, viveiro, vov,
v... (Kpke, 1902b, p. 71-72). A Figura 5 traz esse exemplo.

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Figura 5 O ensino das letras

Fonte: O Livro de Hilda (Kpke,1902b, p. 71-72).

Neste momento de o livro das bonecas, Kpke (1902b, p. 236) sugere aos mestres uma didtica calcada no modelo dado por Hilda, na nona narrativa escrita nas
Instruces para seu uso e para ser lida antes desta lio:
Muito bem, disse Hilda. Agora vamos ler de outro modo. No mais cortar
a cabea, separar cabea de rabo. partir a cabea em pedaos. No custa:
a gente faz como quem vai dizer o nome e para de repente porque no pde
deixar a voz sahir. Aqui est (mostrando a vassoura): vassoura. Eu vou dizer e fico sem fala de repente. Digo s v....e no posso dizer assoura. [...].

E, solicitando que cada aluno pronuncie o som v a partir das palavras apontadas, seguindo horizontalmente cada linha, a mestra Hilda diz que toda vez que um
nome comear por essa letra, o aprendiz deve pronunciar: v...v...v...como se fosse
dizer: vov, vov, veados, viveiro, veados. Este (escrevendo) v... um pedao de
vov. Ento fica chamando a letra do vov, disse Quimquim (Kpke, 1902b, p. 238).

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Nas Instruces para seu uso, Joo Kpke (1902b) dirigindo-se diretamente ao
mestre assim o orienta, como, por exemplo, na p. 246:
1. Leitura das colunas laterais dos vocbulos inteiros e das vogais iniciais;
2. Leitura da coluna central dando o nome que cada fonema sugere e emitindo o fonema, adaptando os rgos da fonao emisso; 3. Combinao
dos fonemas iniciais das colunas laterais com os da central, acompanhando
a voz do discpulo o movimento entre as letras: a ..v...e ; e...v...a.

Kpke (1902b, p.74; p.75; p.77), da mesma forma que fizera no ensino das palavras ou das slabas, investe em diferentes recursos visuais para destacar as letras do
alfabeto: separando-as no interior das palavras que elas formam (a..v..e..; l..e...u...;
c...a..i...); iniciando com a mesma letra um conjunto de palavras (vassoura; veados;
viveiro, vov); isolando a letra no final da linha ou jogando-a pela pgina; ou ainda aumentando de duas para trs letras a primeira slaba da palavra; oferecendo, ao leitor-aprendiz, combinaes diferentes quanto ao tamanho da palavra, ou substituio
das letras, como por exemplo: bala balde; ferro fel; mala mar; veados verde.
O autor investe ainda na oralizao, destacando os fonemas e chamando a ateno, por exemplo, para a pronncia dos sons ligados ao m; b; p: que a gente fecha a
boca e s abre para dizer a letra de diante (escrever e emitir muito accentuadamente)
mami sem apertar quasi os beios; bacia apertando um pouco mais; papai apertando bastante (Kpke, 1902b, p. 244). Diferentemente, segundo Frade (2011), de A.
Barreto, na Cartilha Analytica, em que a anlise sonora de partes das palavras pouco explorada pelo autor. Para Frade (2011, p. 9), no so as palavras que so destrinchadas em seus componentes sonoros [...]. No quadro de apresentao das letras,
em ordem alfabtica, cada uma delas segue o seguinte padro: letra de imprensa
maiscula; letra de imprensa em minscula, um desenho, uma afirmao como:
avestruz comea com a ou rato comea com ra (Kpke, 1902b, p. 29 e p. 35).
Assim, podemos afirmar que Kpke lana mo da variedade dos recursos visuais
e textuais: jogo de cores, de tamanho e de forma das letras; insistncia na oralizao
e visualizao da escrita; combinao entre escrita e desenho; aumento do tamanho
dos textos. Ao longo de toda a obra, imagem e escrita fragmentam a densidade visualmente trazida pela escrita e, mais do que isto, complementam-se, criando um efeito
de redundncia que pode ajudar na memorizao do texto e em uma compreenso

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mais significativa para o aluno. Cumprem um papel tanto pedaggico quanto esttico
e atribuem aos textos um carter descritivo, diretamente relacionado aos princpios
do mtodo intuitivo, em que a viso das imagens e das coisas tem uma funo de
memorizao, quando se apresenta uma expresso e seu desenho correspondente
(Frade, 2011, p. 3), como podemos ver na Figura 6, a seguir:

Figura 6 Novas palavras

Fonte: O Livro de Hilda (Kpke,1902b, 1902b, p.75).

Antes de finalizar o livro das bonecas, Kpke cria uma ltima lio (a 51.),
que um poema, ainda como recurso para a apresentao das letras. Ali introduzida a temtica sobre o ensino das maisculas e das letras de imprensa (do livro), como
podemos ler nos seus versos: e z, letra pequena com que se escreve mo [...] e z
lettra pequena mas lettra de impresso; as lettras grandes / so diferentes / e aqui
abaixo /todas esto / sempre se empregam /depois do ponto / no que se escreve /
em livro ou / mo (Kpke, 1902b, p.130).

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Segundo Kpke, nas Instruces para seu uso, em apenas um s dia as crianas j esto prontas para esse aprendizado e podero passar leitura corrente. Essa
orientao de Joo Kpke para o ensino de maisculas e de caracteres tipogrficos
s no final de todo o processo marca uma distino em relao ao que preconizavam outros autores, como Ramon Roca Dordal (1902), que defendia que as letras de
imprensa e as manuscritas, as maisculas e as minsculas, bem como os sinais de
pontuao, deveriam ser ensinados ao mesmo tempo, para que os alunos pudessem
aprender a escrever, fazendo cpias.

Ao leitor, um final
Mesmo que a criana chegue ao final do processo de aprendizagem da leitura e da
escrita de textos diversos, frases, palavras e letras, na forma impressa, na de mo, na
de maisculas e minsculas, substituindo a leitura das estampas, o autor da cartilha
ainda no coloca ponto final ao trabalho do professor. Embora a criana tenha diante
dela um material que a ensina a ler e a escrever, com exerccios orais e escritos dados
pela professora de mentirinha e com textos em que as aquisies novas em relao
lngua esto espalhadas pelos episdios inter-relacionados que formam o grande
enredo, segundo Kpke (1916, p. 107), a
differena entre o meu modo de encarar o desenvolvimento pratico a dar
leitura e o dos mestres paulistas, que para ella tm elaborado livros, est
sobretudo no ponto de partida, pois que eu dou criana o livro com assumpto altura de sua capacidade e na medida do seu interesse, mas organizado como o o livro, que lm os seus maiores, emquanto elles enfeixam
nos seus livros as sries de exerccios, que dificultam a leitura, e eu separo
em volume para o mentor, me ou mestre [...].

E, sem pressa de terminar O Livro de Hilda, Joo Kpke prope a leitura da ltima
Narrativa (52. Lio, p. 129), dedicada Mami, na parte Instrues de Uso.
Trata-se de um poema em que cada verso iniciado por uma letra (na sequncia) do
abecedrio, na cor vermelha. Uma homenagem me que, no poema, como anjo da
guarda, aquela que ampara os passos incertos, que guia Luz, que tem ouvidos para
escuta, que protege das dores, dos infortnios, que aponta as escolhas.
Temos, portanto, como no incio de O Livro de Hilda, uma estratgia de retarda-

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mento, agora em relao ao final da obra. Sem pressa de fechar o livro, Kpke oferece
a ltima Lio, que encerra a aprendizagem da leitura e da escrita pela criana, e
a ltima Narrativa, que finaliza o livro das bonecas. E indica a leitura pelos mestres da Narrativa final (segundo suas orientaes, tal como fizera para a Narrativa
inicial), que assim termina: E na 2 feira, s 9h, Hilda e Olguita, com as suas malinhas, sahiam de casa, encontravam-se frente da Escola das Bonecas, e, como boas
amiguinhas, a Mestra que ensinou brincando e a Discpula que aprendeu sem saber,
seguiram com o Dindinho para a Escola de Verdade (Kpke, 1902b, p. 274).
Assim, iniciando pelo todo e com ele terminando sua cartilha, apoiado no texto
que sempre o ponto de partida e de chegada, os processos a serem seguidos pelos
mestres, segundo Kpke: sero sempre combinados, de modo que olho, nariz, boca e
mo se exercitem conjuntamente, e em colaborao, para que, na prtica, se realizem a
leitura, a escrita e a compreenso (Kpke, 1916, p. 82), seguindo os princpios do, tambm muito divulgado naquela poca, mtodo de ensino intuitivo ou lies de coisas.
Tal como se apresenta, manuscrita, no podemos afirmar se a cartilha O Livro
de Hilda ensino da leitura pelo processo analytico teria esta mesma configurao,
se publicada e adotada nas escolas pblicas; se suas partes seriam impressas em
um nico volume ou em dois ou trs, separando-se cada uma delas; se suas ilustraes seriam substitudas por estampas produzidas pela xilografia ou linotipia, etc.,
ou outras alteraes impostas pelo polo da edio, para diminuir os custos com
impresso e edio.
De qualquer modo, tal como se apresenta, como um volumoso manuscrito, essa
cartilha elaborada por Joo Kpke de extrema complexidade e bastante singular em
relao s impressas no mesmo perodo. Complexidade e singularidade estabelecidas
no jogo entre narradores (os personagens-protagonistas; o autor) que se dirigem aos
possveis leitores (o aprendiz, o mestre/mentor, as mes); modos de articular episdios
no interior de um nico enredo, criado a partir de desenhos (ilustraes do prprio
punho); prticas orais de leitura, de escrita, de anlise de textos formados com palavras matrizes (concretas) geradoras do ensino da leitura e da escrita; recursos visuais
e textuais distintos, para provocar o interesse e a curiosidade pela aprendizagem da
leitura e da escrita, com desenhos e um contedo prximo do universo infantil, com
uma didtica intencionalmente voltada para o desenvolvimento (ao) da criana; procedimentos didticos com fonemas, letras, palavras, textos (em um movimento de ida e
volta), minuciosamente explicitados, na fico e nas instrues para o uso do material.

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Submetido avaliao em 18 de junho de 2013.

Aprovado para publicao em 25 de agosto de 2014.

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