O Estado A Educação e A Regulação Das Políticas Públicas
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O Estado A Educação e A Regulação Das Políticas Públicas
Professor catedrtico da Faculdade de Psicologia e de Cincias da Educao da Universidade de Lisboa. E-mail: [email protected]
Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 92, p. 725-751, Especial - Out. 2005
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identified trends in the evolution of governance modes and in the coordination of public action and policies in Education.
Key words: Regulation. State and market. Post-bureaucratic regulation.
Public education.
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particular de regulao, uma vez que as regras esto, neste caso, codificadas (fixadas) sob a forma de regulamentos, acabando, muitas vezes, por
terem um valor em si mesmas, independente do seu uso.
Algumas acepes particulares ajudam a clarificar o uso corrente
deste conceito. Por exemplo, na doutrina militar a regulao traduz as
operaes que permitem, na utilizao de material ou numa operao
com tropa, o melhor resultado a melhor utilizao e combinao dos esforos conjuntos, perante um objectivo, para o atingir nas melhores condies e com o menor esforo (Enciclopdia Portuguesa e Brasileira).
O conceito de regulao est igualmente associado ao controlo de
elementos autnomos mas interdependentes e, neste sentido, usado, por
exemplo, em economia, para identificar a interveno de instncias com
autoridade legtima (normalmente estatais) para orientarem e coordenarem
a aco dos agentes econmicos (a regulao dos preos, a regulao do comrcio, da energia etc.).
Para l destas acepes mais correntes, a elucidao do significado
de regulao conheceu um notvel incremento com o desenvolvimento
da teoria dos sistemas. De um modo geral, a regulao vista como uma
funo essencial para a manuteno do equilbrio de qualquer sistema
(fsico ou social) e est associada aos processos de retroaco (positiva ou
negativa). ela que permite ao sistema, atravs dos seus rgos reguladores, identificar as perturbaes, analisar e tratar as informaes relativas a um estado de desequilbrio e transmitir um conjunto de ordens coerentes a um ou vrios dos seus rgos executores.
Se a regulao ciberntica vista como um conjunto de reaces
de reajustamento do equilbrio do sistema (Rosnay, 1975, p. 30), ela
pode ser alargada, segundo alguns autores, ao prprio processo de transformao do sistema. o que defende, por exemplo, Diebolt (2001) que,
baseado na classificao hierrquica de nveis de regulao estabelecida por
Piaget (1977, p. I-XIII), estabelece a distino entre dois tipos de
regulao complementares: as regulaes conservadoras e as regulaes
transformadoras. No primeiro caso, elas tm por nica funo assegurar
a coerncia, o equilbrio e a reproduo idntica do sistema (p. 9). No
segundo caso, elas desempenham uma tripla funo: compreender como
um sistema d lugar a novas formas de organizao; de que modo um
processo de regulao d origem ao seu sucessor; que interdependncia
se estabelece entre diferentes modos de regulao. Para Diebolt (2001,
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p. 10), que trabalha na rea da economia da educao, a regulao define-se assim como: (...) o conjunto de mecanismos que asseguram o desenvolvimento dum determinado sistema, atravs de um processo complexo de reproduo e transformao. Neste sentido, a regulao postula
que a transformao de um sistema a condio indispensvel manuteno da sua existncia e coerncia.
O reconhecimento da existncia, no interior do mesmo sistema,
de vrios dispositivos de regulao, com finalidades distintas, igualmente proposta por Mehel (1974) que aplica a teoria dos sistemas anlise
cientfica dos fenmenos administrativo e educativo. Para este autor, nos
sistemas complexos finalizados verifica-se uma tripla regulao: uma
pr-regulao e uma ps-regulao centralizadas e uma multi-regulao
descentralizada que se pode chamar de co-regulao:
Nos regimes polticos centralizados, a pr-regulao estatal privilegiada.
Os regimes burocrticos correspondem a uma hipertrofia da pr-regulao. A desconcentrao (desenvolvimento dos sub-transductores) e a
descentralizao (desenvolvimento dos sub-selectores) tendem a desenvolver a co-regulao. Por fim, os mecanismos de ps-regulao so ilustrados
por medidas conjunturais, como a adaptao do plano em curso de execuo, a funo jurisdicional etc. (Mehel, 1974, p. 36).
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nem pelo exerccio dum constrangimento mesmo que inconsciente, e muito menos por mecanismos automticos de ajustamento mtuo, ela operase por mecanismo de jogos atravs dos quais os clculos racionais estratgicos dos actores se encontram integrados em funo de um modelo
estruturado. No so os homens que so regulados e estruturados, mas os
jogos que lhes so oferecidos. (Crozier & Friedberg, 1977, p. 244)
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o) enquanto interveno das autoridades pblicas para introduzir regras e constrangimentos no mercado ou na aco social.
No segundo caso, a regulao vista, sobretudo, como um processo activo de produo de regras de jogo (Reynaud, 1997) que compreende no s a definio de regras (normas, injunes, constrangimentos etc.) que orientam o funcionamento do sistema, mas tambm o seu
(re)ajustamento provocado pela diversidade de estratgias e aces dos vrios actores, em funo dessas mesmas regras. De acordo com esta abordagem, num sistema social complexo (como o sistema educativo) existe
uma pluralidade de fontes, de finalidades e modalidades de regulao,
em funo da diversidade dos actores envolvidos, das suas posies, dos
seus interesses e estratgias (Barroso, 2000).
No terceiro caso, a regulao conjunta significa a interaco entre a regulao de controlo e a regulao autnoma, tendo em vista a produo de regras comuns (Reynaud, 2003).
Idntica distino feita por Dubet, que fala de regulao
normativa (produo de normas pelo Estado, tendo em vista mudanas
voluntrias atravs da interiorizao e socializao dessas mesmas normas
pelos indivduos) e regulao sistmica (processo pelo qual o sistema
social se reproduz e transforma, atravs de efeitos no necessariamente intencionais, como por exemplo efeitos de composio).1 De referir, finalmente, que, como afirma Bettencourt (2004, p. 53):
Nas cincias sociais, as teorias no conflituais, vem no ajustamento [entre
os diferentes actores envolvidos no processo de regulao] a procura de um
equilbrio social ptimo. Elas reforam a ideia corrente de regulao como
a obteno de um funcionamento correcto. Pelo contrrio, segundo as
abordagens polticas, a regulao no assegura nem a harmonia, nem a estabilizao rigorosa, nem a optimizao, porque a elaborao e a aplicao
das regras uma disputa social e d lugar a conflitos, quer abertos e violentos, quer institudos quer escondidos.
Contextos lingusticos
Alm desta diversidade de acepes, aqui brevemente sumariada,
importante ter em conta que a utilizao do termo regulao nos estudos internacionais sobre polticas educativas varia muito conforme os
contextos lingustico e administrativo dominantes.
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regulao estatal por uma regulao de iniciativa privada atravs da criao de quase-mercados educacionais. Trata-se, como escreve Gintis
(1995), de substituir um governo apostado na produo directa de bens
e servios, por um governo que visa, preferencialmente, a regulao da
produo e da distribuio desses bens e servios, que so fornecidos, no
quadro de um sistema competitivo, por outras entidades. Como afirma
o mesmo autor, o uso do mercado tem, neste contexto, um sentido mais
instrumental, do que alternativo a um processo de deciso democrtica
(p. 19). Neste sentido, a regulao (entendida como a interveno das
autoridades governamentais na prestao de um servio pblico) vista
como um movimento oposto privatizao (entendida como a transferncia para autoridades no-governamentais, com fins ou sem fins lucrativos, do controlo e prestao desses mesmos servios).
Um modelo interpretativo
Tendo em conta a reviso que fiz sobre a pluralidade de significados que o conceito de regulao adquire conforme os contextos disciplinares e lingusticos, importa, agora, sistematizar de um ponto de vista
mais interpretativo em que consiste a regulao enquanto modo de coordenao dos sistemas educativos (ver, a este propsito, Barroso, 2005):
- A regulao um processo constitutivo de qualquer sistema e
tem por principal funo assegurar o equilbrio, a coerncia,
mas tambm a transformao desse mesmo sistema.
- O processo de regulao compreende, no s, a produo de
regras (normas, injunes, constrangimentos etc.) que orientam o funcionamento do sistema, mas tambm o (re) ajustamento da diversidade de aces dos actores em funo dessas
mesmas regras.
- Num sistema social complexo (como o sistema educativo)
existe uma pluralidade de fontes (centro/periferia, interno/externo, actor A/actor B etc.), de finalidades e modalidades de
regulao, em funo da diversidade dos actores envolvidos, das
suas posies, dos seus interesses e estratgias.
- A regulao do sistema educativo no um processo nico,
automtico e previsvel, mas sim um processo compsito que
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Nesta seco irei apresentar, de modo muito sumrio, as principais concluses de um projecto europeu de investigao (cuja equipa portuguesa coordenei) e que teve como principal objectivo realizar um estudo comparado sobre a emergncia de novos modos de regulao das
polticas educativas e a sua relao com os processos de produo local
de desigualdades e de segregao escolares.
Este projecto, intitulado Changes in regulation modes and social
production of inequalities in educational systems: a European comparison e
designado pelo acrnimo Reguleducnetwork, decorreu entre Outubro de
2001 e Outubro de 2004 e abrangeu cinco pases europeus: Blgica
(francfona), Frana, Hungria, Portugal e Reino Unido (s a Inglaterra e
Pas de Gales).2
Os trabalhos de investigao incidiram, progressivamente, na descrio e anlise dos diferentes modos de regulao dos sistemas
educativos dos pases envolvidos, em trs nveis: nvel nacional, centrando
o estudo na regulao de carcter institucional; nvel intermdio, incidindo sobre as instncias de regulao que operam em territrios intermdios do sistema educativo (entre o nacional e o local); e, finalmente, o
nvel local, que se refere ao estudo dos modos de regulao interna das
escolas.
Convergncias e divergncias
Os estudos realizados, primeiro em cada pas e depois numa perspectiva comparada, permitiram identificar um conjunto de convergncias significativas na emergncia de novos modos de regulao das polticas
educativas, ainda que essas convergncias se traduzissem, por vezes, em
polticas no totalmente coincidentes ou at, mesmo, divergentes.3 De
um modo esquemtico, podemos resumir as principais concluses sobre
esta matria nos seguintes pontos:
- Apesar de diferenas importantes nas caractersticas dos seus
sistemas escolares e modos de coordenao, os cinco pases
estudados tiveram, at dcada de 80 do sculo passado,
um modelo de regulao das polticas educativas comum.
Esse modelo, designado por burocrtico-profissional, baseava-se numa aliana entre o Estado e os professores, combinado uma regulao estatal, burocrtica e administrativa
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ps-burocrticos mais acentuada, encontrando-se a Hungria numa posio intermdia. De registar ainda que a situao especfica de Portugal
e da Frana se fica a dever, em certa medida, importncia que continua
a ter, nestes pases, o referencial tradicional da escola pblica e ao peso
que a administrao central preserva na estrutura do poder do Estado.
Do mesmo modo, no que se refere tentativa de equilbrio centralizao/descentralizao, verifica-se que nos pases de tradio centralista (Frana, Hungria, Portugal) a evoluo faz-se no sentido de aumentar o poder de deciso ao nvel intermdio ou local, ao passo que na
Inglaterra e Blgica francfona (pases tradicionalmente descentralizados) se assiste, principalmente no primeiro caso, a um reforo dos mecanismos de controlo centrais (sobretudo ao nvel do currculo e da avaliao) e perda de influncia das autoridades municipais.
A Frana e a Inglaterra so os pases onde os processos de avaliao
externa das escolas e do sistema esto mais desenvolvidos e so mais sofisticados. Contudo, no primeiro caso, isso feito por meio de um departamento central do Ministrio da Educao (DEP) e, no caso ingls,
por meio de uma agncia nacional independente (OFSTED). E tambm
na Inglaterra, onde os efeitos da avaliao tm mais incidncia no funcionamento das escolas (que podem encerrar ou serem sujeitas a programas especiais de reconverso). Ao passo que nos outros pases, incluindo
a Frana, a incidncia da avaliao como mecanismo de correco muito menor e, por vezes, tem um efeito meramente simblico.
Quanto livre escolha da escola pelos pais, ela praticada desde
h muito na Blgica francfona (originariamente por motivos religiosos)
e tem vindo a aumentar grandemente na Inglaterra por meio de uma
poltica estatal voluntarista de criao de um quase-mercado escolar. Em
Frana e em Portugal ainda subsiste a carta escolar (com obrigao de
frequncia da escola em funo do local de residncia), mas ela atenuada na prtica, devido presso de pais oriundos da classe mdia, que
aproveitam a baixa demogrfica e a maior disponibilidade da oferta para
desenvolverem estratgias de individualizao dos percursos escolares dos
seus filhos (ver, a este propsito, Barroso & Viseu, 2003). De registar,
contudo, que nestes dois pases o abrandamento dos critrios de sectorizao escolar parece no pr em causa uma vontade poltica de preservar a natureza igualitria da oferta educativa. Na Hungria coexistem os
dois sistemas com uma clara elitizao do sistema de escolha, que privilegia grupos sociais mais favorecidos.
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Em sntese
Como assinalado no Relatrio Final do Projecto Reguleducnetwork
(Maroy, 2004), as polticas educativas dos cinco pases estudados inspiram-se de um modo geral nos modelos ps-burocrticos, em particular
do Estado avaliador. Contudo, o grau de intensidade das polticas postas em prtica e a dosagem entre os diversos modelos so muito variados.
A situao mais radical encontra-se na Inglaterra, onde se verifica
uma poltica voluntarista de criao de um quase-mercado educativo.
O controlo central e a lgica mercantil reforaram-se em detrimento da
capacidade de interveno das autoridades locais. Neste pas, a partir do
incio dos anos 80 do sculo passado, por iniciativa dos governos conservadores, retomada pelos governos trabalhistas, o poder central desenvolveu uma poltica substancial de intervencionismo incitando a competio
entre as escolas e favorecendo a livre escolha pelos pais, nomeadamente
por meio do alargamento dos dispositivos de avaliao externa e maior
informao dos resultados s famlias.
Os outros pases conhecem evolues menos radicais e menos dependentes de polticas voluntaristas. Eles so tambm menos influenciados pelo modelo do quase-mercado. A avaliao externa embrionria
ou sem consequncias e a escolha da escola mais tolerada do que promovida. Apesar de prevalecer uma poltica oficial que privilegia a modernizao da administrao escolar sem pr em causa os valores da
igualdade de oportunidades, o certo que muitas das medidas tomadas
favorecem a introduo de uma lgica de mercado na prestao do servio educativo, cujos efeitos contrariam claramente esses princpios. Alm
disso, a crtica ao centralismo, burocracia e ao dfice de qualidade dos
servios pblicos aproveitada pelos defensores das polticas neoliberais
para reclamarem a diminuio da interveno do Estado e a privatizao
da prestao do servio educativo, como nica soluo para os problemas
com que se debate actualmente a escola pblica.
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A racionalidade econmica acompanha-se duma orientao neoliberal que serve de enquadramento ao discurso da privatizao, da liberdade de escolha e
mesmo da participao. No livro branco Crescimento, competitividade e emprego defende-se a necessidade duma maior implicao do sector privado nos
sistemas de educao e/ou formao profissional e na formulao das polticas
de educao para ter em conta as necessidades do mercado de trabalho e as circunstncias locais.
Assiste-se, por isso, tentativa de criar mercados (ou quase-mercados) educativos transformando a ideia de servio pblico em servios para clientes, onde o bem comum educativo para todos substitudo por bens diversos, desigualmente acessveis. Sob a aparncia de
um mercado nico, funcionam diferentes submercados onde os consumidores de educao e formao, socialmente diferenciados, vm-lhes
serem propostos produtos de natureza e qualidade desiguais. Para estimular a criao destes mercados, o financiamento da educao (mesmo
se custa do errio pblico) dirigido s famlias pelo sistema de
vouchers, ou equivalente, e procede-se privatizao parcial ou total
da propriedade ou da gesto das escolas (ver, a este propsito, Barroso,
2003b). O objectivo central j no adequar a educao e o emprego,
mas articular o mercado da educao com o mercado de emprego,
nem que para isso seja necessrio criar um mercado dos excludos
(para utilizar a expresso de Dominique Glassman).
Neste contexto de incertezas, os critrios e opes de financiamento deixam de ser objecto de uma planificao que traduza escolhas
polticas definidas pelo Estado e passam a ser confiados mo invisvel do mercado em funo de objectivos de eficcia, qualidade e excelncia definidos de maneira unvoca pelas regras da concorrncia. Depois do tudo Estado passou-se para o tudo mercado! Como dizem
Tyack & Cuban (1995, p. 142) a propsito da situao existente nos
Estados Unidos:
Nesta ltima gerao, o discurso sobre a escola pblica tornou-se extremamente limitado. Passou a estar centrado na competio econmica internacional, nos resultados dos testes, e na escolha individual da escola. Mas,
em contrapartida, negligenciou por completo o tipo de escolhas que so essenciais para o bem-estar cvico: escolhas colectivas sobre um futuro comum, escolhas feitas, atravs de processos democrticos, sobre os valores e
os conhecimentos que os cidados querem passar para a prxima gerao.
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No mesmo sentido parece ir a Comisso Europeia quando procura definir e regulamentar aquilo que designa por servios de interesse geral e que visa atingir objectivos de servio pblico no seio de mercados
abertos e concorrenciais (Livro Branco). Estes servios abrangem servios de interesse econmico e no-econmico (energia, servios postais,
transportes e telecomunicaes, sade, educao, servio sociais) e a este
propsito pode ler-se no Livro Verde sobre os Servios Gerais (Comisso
das Comunidades Europeias, 2003, p. 3), que esteve recentemente em
discusso:
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Importa, ainda, assinalar que, para alm deste recuo dos defensores do neoliberalismo (perante o insucesso das suas receitas) e da tentativa de encontrar a justa medida entre Estado e mercado como estas tendncias indiciam, h os que defendem (como eu tenho feito desde h
muito, na educao) que no podemos ficar prisioneiros da falsa dicotomia entre estes dois modelos. Por isso, preciso revitalizar outras modalidades de regulao da aco pblica. Como diz Whitty (2002, p.
20) a este propsito:
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(...) nem o Estado, nem a sociedade civil constituem um contexto adequado para o exerccio de uma cidadania activa e democrtica, atravs da qual
seja alcanada a justia social. A reafirmao dos direitos dos cidados em
educao parece exigir o desenvolvimento de uma nova esfera pblica, algures entre o Estado e a sociedade civil mercantilizada, em que novas formas de associao colectiva possam ser desenvolvidas. O desafio reside em
saber como sair de um processo de deciso atomizado, para o assumir de
uma responsabilidade colectiva em educao, mas sem recriar um sistema
de planificao supercentralizado (...).
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certo que, em muitos casos, estes princpios no tiveram correspondncia nas polticas, nas formas de organizao, no currculo e nos
mtodos pedaggicos, em que assenta a escola de massas, ao longo da
sua evoluo histrica e no seu processo de expanso escala planetria.
Contudo, h que reconhecer, o desenvolvimento da humanidade, principalmente neste ltimo sculo, ficou a dever muito expanso da escola
pblica, e a sua crise actual no deve servir para negar a validade dos seus
princpios e do ideal de educao que lhes esto subjacentes, nem justifica
o recurso ao modelo do mercado como alternativa para a regulao e proviso do servio pblico educativo.
Por um lado, falta ao mercado (entre outras coisas) a sensibilidade social que permita atender aos que, pelas mais diversas razes, exigem mais tempo, mais dinheiro e melhores recursos para obterem o
sucesso educativo a que tm direito. Por outro, o Estado social no pode
estar limitado (como querem os defensores de polticas neoliberais neste domnio) a cumprir as funes de carro-vassoura dos excludos que
o mercado enjeita (por questes de rentabilidade e eficcia). E, aqui, o
recurso metfora do carro-vassoura justifica-se plenamente se nos recordarmos que esta designao dada, nas corridas de ciclismo, ao carro que vai na cauda do peloto para recolher os ciclistas que so obrigados a desistir, por no conseguirem acompanhar o andamento dos outros
corredores.
Defendo por isso que, no contexto actual da crise do Estado
Providncia (e do modelo social a que deu origem), se torna necessrio
reforar a dimenso pblica da escola pblica, o que obriga a reafirmar
os seus valores fundadores, perante a difuso transnacional de uma
vulgata neoliberal que v no servio pblico a origem de todos os males da educao e na sua privatizao a nica alternativa (Barroso,
2004a).
Mas defendo, igualmente, que a falncia actual do modelo de
regulao burocrtico-profissional, que serviu de base expanso da escola pblica no passado, obriga a procurar novas formas organizativas
(pedaggicas e educativas) e novas modalidades de regulao e de interveno que permitam:
- a recriao da escola como espao pblico de deciso colectiva,
baseada numa nova concepo de cidadania que, como diz
Whitty, vise criar a unidade sem negar a diversidade;
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- que o Estado continue a assegurar, como lhe compete, a manuteno da escola num espao de justificao poltica
(Derouet, 2003), sem que isso signifique ser o Estado o detentor nico da legitimidade dessa justificao.
este o grande desafio que se coloca a todos os que continuam a
acreditar na necessidade de provermos colectivamente um servio pblico que garanta o pleno direito educao e o acesso a uma cultura comum, para todas as crianas e jovens, em condies de equidade, de
igualdade de oportunidades e de justia social.
Neste sentido, a defesa da escola pblica passa, por um lado, em
desmontar o carcter pretensamente neutro da introduo de uma lgica de mercado na educao, denunciando a sua tica perversa e a sua
intencionalidade poltica e, por outro, fazer da definio e regulao das
polticas educativas um processo de construo colectiva do bem comum
que educao cabe oferecer, em condies de igualdade e justia social,
a todos os cidados.
Por tudo quanto foi dito, podemos concluir que a repolitizao da
educao, a multiplicao das instncias e momentos de deciso, a diversificao das formas de associao no interior dos espaos pblicos e o
envolvimento de um maior nmero de actores conferem ao sistema de
regulao da educao uma complexidade crescente. Esta complexidade
exige um papel renovado para a aco do Estado, com o fim de compatibilizar o desejvel respeito pela diversidade e individualidade dos cidados, com a prossecuo de fins comuns necessrios sobrevivncia da
sociedade de que a educao um instrumento essencial.
Essa compatibilizao s possvel com o reforo das formas democrticas de participao e deciso, o que, nas sociedades contemporneas, exige cada vez mais uma qualificada e ampla informao, a difuso
de instncias locais e intermdias de deciso, uma plena incluso de todos os cidados (particularmente dos que at aqui tm sido sistematicamente excludos, do interior e do exterior). S assim possvel estabelecer um acordo sobre uma base comum suficientemente generosa,
atractiva e plausvel que possa unificar os cidados no apoio escola pblica e que Tyack & Cuban (1995, p. 142) consideram ser uma necessidade crucial do nosso tempo.
Recebido em julho de 2005 e aprovado em agosto de 2005.
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Notas
1.
Citado por Demailly (2001) que aplica esta distino anlise da avaliao como sistema de
regulao.
2.
O projecto Reguleducnetwork foi subsidiado pela Comisso Europeia, no mbito do programa Improving the Socio-economic Knowledge Base e os seus relatrios parcelares e final podem ser consultados em <www.fpce.ul.pt\centros\ceescola> ou em <www.girsef.ucl.ac.be/
europeanproject.htm>. Nos nmeros 82 e 84 da revista Educao & Sociedade, foram publicados dois artigos com resultados parcelares deste projecto (Barroso, 2003b; Barroso &
Viseu, 2003).
3.
A apresentao destes resultados baseia-se no relatrio final do projecto coordenado por Christian
Maroy (2004) e que se encontra disponvel em <www.girsef.ucl.ac.be/europeanproject.htm>
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