Revista de Arqueologia Pública
Revista de Arqueologia Pública
Revista de Arqueologia Pública
Arqueologia Pblica
Revista de
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
Dossi:
Arqueologia
da Represso
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Revista de Arqueologia Pblica, No. 10, Dezembro de 2014, pp. 004 - 024
Arqueologia Pblica
Revista de
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
Dossi:
Arqueologia
da Represso
EDITOR RESPONSVEL
Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP)
EDITOR DO DOSSI
Rita Juliana S. Poloni (LAP/NEPAM/UNICAMP)
CONSELHO EDITORIAL
Alfredo Gonzalez Ruibal(Consejo Superior de Investigaciones Cientficas, Espanha)
Andrs Zarankin (UFMG)
Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autnoma de Mxico, Mxico)
Carlos Fabio (Universidade de Lisboa, Portugal)
Carol McDavid (Community Archaeology Research Institute, EUA)
Charles Orser (Illinois State University, EUA)
Cludio Umpierre Carlan (UNIFAL)
Erika Robrahn-Gonzlez (Documento Patrimnio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda.)
Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS)
Glaydson Jos da Silva (Unifesp)
Laurent Olivier (Universit de Paris, Frana)
Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Cuba)
Lourdes Madalena Gazarini Conde Feitosa (USC)
Lcio Menezes Ferreira (UFPel)
Marina Regis Cavicchioli (UFBA)
Martin Hall (Cape Town University, frica do Sul)
Nanci Vieira Oliveira (UERJ)
Neil Asher Silberman (ICOMOS International Advisory Committee and Scientific Council)
Renata Senna Garrafoni (UFPR)
Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra)
Tim Schadla-Hall(Institute of Archaeology at University College London, Inglaterra)
COMISSO TCNICA
Daniel Grecco Pacheco
Murilo Souza dos Santos
Rita Juliana S. Poloni
Tobias Vilhena de Moraes
REVISO TEXTUAL
Camila Secolin
PROJETO GRFICO
Murilo Souza dos Santos
DIAGRAMAO
Murilo Souza dos Santos
Arqueologia Pblica
Revista de
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
| Editorial
Pedro Paulo A. Funari
Artigos diversos
REPRESSO
Beatriz Vallado Thiesen, Clia Maria Pereira, Eduarda Rippel, Gabriel
Rodrigues Vespasiano, Ingrend Guimares Cornaquini, Jlio Toledo, Mariana
Fernandez
Entrevista
Foto da capa:
Escavaes no Centro Clandestino de Deteno Clube Atltico,
Buenos Aires - Argentina.
Andrs Zarankin, 2003.
EDITORIAL
A ARQUEOLOGIA NA
UNICAMP E A
REVISTA DE ARQUEOLOGIA
PBLICA:
TRAJETRIA E PERSPECTIVAS
queologia na Unicamp desenvolveu-se nos aspectos constitutivos tanto da Universidade, como da disciplina, em termos mundiais: em interao com a cincia mundial, em
perspectiva transdisciplinar, engajada com a sociedade e em luta pela liberdade e pelo
respeito diversidade.
Pesquisas arqueolgicas de variado gnero foram levadas a cabo, diversas delas de expresso social, acadmica e de repercusso internacional. O Laboratrio de
Arqueologia Pblica e a Revista Arqueologia Pblica, surgidos em 2006, resultam de
um esforo continuado e de parcerias com estudiosos e instituies no Brasil e no estrangeiro, como destaque para o World Archaeological Congress. Desde seu primeiro
nmero, os editores poca Pedro Paulo A. Funari e Erika Robrahn-Gonzlez enfatizavam que do nosso ponto de vista e esta revista serve a este propsito a cincia no
deve alhear-se da sociedade, sob o manto difano do empirismo.
Este dcimo nmero mostra bem todas essas caractersticas. A partir desta edio, o
conselho editorial da revista amplia-se, com a participao adicional de estudiosos notveis no campo da Arqueologia engajada em temas sociais e polticos, todos eles com
larga trajetria de cooperao com a equipe de Arqueologia da Unicamp. Em seguida,
e no mesmo sentido, tendo em vista o aprofundamento da insero internacional da revista e sua busca por abordagens referenciais, a publicao passa a contar com dossis
temticos. Com isto, ser possvel congregar artigos sobre aspectos de alta relevncia
social e poltica, no mbito da Arqueologia, de modo a servirem para uma abordagem
integrada. Neste volume, a doutora Rita Juliana Soares Poloni, ps-doutoranda no Laboratrio de Arqueologia Pblica Paulo Duarte com apoio da Fundao de Amparo
Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP lder de Grupo de Pesquisa cadastrado
no CNPq e sediado na Unicamp (Arqueologia da Represso e da Resistncia) organiza
dossi sobre o estudo arqueolgico em contextos polticos autoritrios e ditatoriais e de
transio democrtica. O tema adquiriu contornos mais definidos na disciplina no incio
deste sculo, como atesta a publicao de volume com apoio da Secretaria de Direitos
Humanos da Repblica Argentina, Arqueologa de la represin y la resistencia en Amrica Latina 1960-1980 (Catamarca: Universidad Nacional de Catamarca, 2006), organizado por Pedro Paulo A. Funari e Andrs Zarankin, em seguida publicado no Brasil,
em portugus, com apoio da FAPESP (2008) e em ingls, em 2009 (Memories from
Darkness, Nova Iorque, Springer). O dossi demonstra o florescimento desse campo e
conta com a participao de diversos estudiosos que se tm dedicado a tais questes.
Artigos sobre outros temas e uma entrevista com Andrs Zarankin, estudioso da Arqueologia da Represso e da Resistncia, tema do dossi, completam o dcimo volume.
Pedro Paulo A. Funari
Editor-Responsvel
Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
Fabiana Comerlato
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
FABIANA COMERLATO
RESUMEN
En el recuento de arquelogos que se destacaron en la dcada de 60 del siglo XX en la
investigacin y en la lucha por la preservacin de los sitios arqueolgicos brasileos,
surge la figura de Joo Alfredo Rohr quien ejerci un papel fundamental en la consolidacin de la arqueologa catarinense, dejando un importante legado cientfico para
las futuras generaciones. El objetivo de este artculo es realizar una retrospectiva de la
trayectoria profesional del arquelogo Rohr e evaluar su contribucin para la arqueologa brasilea, en especial la del Estado de Santa Catarina.
Palabras-clave: Arqueologa brasilea; Patrimonio Cultural; Museo; Joo Alfredo
Rohr.
INTRODUO
A memria uma ferramenta que usamos para lembrar o que nos faz sentido. Portanto, nos parece importante o exerccio de rememorar pessoas, objetos, colees e
museus, pois a construo do conhecimento arqueolgico est alicerada nestas bases de referncia. No Estado de Santa Catarina, atribumos ao Pe. Joo Alfredo Rohr
(1908-1984) o ttulo de Pai da Arqueologia Catarinense, justamente pela dimenso de
seus feitos e o significado deles at hoje. Em 2014, trs datas convergem e podem ser
lembradas por ns: os 30 anos de falecimento de Pe. Alfredo Rohr, mesmo ano em que
foi tombada sua coleo pela Fundao Catarinense de Cultura, e, principalmente, os
50 anos de criao do Museu do Homem do Sambaqui. As lembranas destes marcos
cronolgicos nos abrem caminho para a reflexo da importncia do legado cientfico de
Rohr e a extenso de sua obra, que continua ainda a provocar interjeies e expresses
de admirao nos jovens em visita ao museu.
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Fig. 2: Joo Alfredo Rohr em escavaes em um samba- Fig. 3: Joo Alfredo Rohr durante o processo
qui. Referncia: Revista Manchete, n505, ano 9, Rio de de documentao das gravuras do Letreiro
Janeiro, 23 de janeiro de 1961.
do Arvoredo. Data: 1968. Acervo: Museu do
Homem do Sambaqui Padre Joo Alfredo
Rohr, S.J.
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20-21).
Em sua construo diria da histria das populaes indgenas pr-coloniais, Rohr
comea a formar e catalogar o acervo que denominar de Museu do Homem do Sambaqui a primeira instituio especializada em pesquisas arqueolgicas no Estado.
Com nova configurao, o museu foi fundado em 03 de outubro de 1964, tendo como
entidade mantenedora a Sociedade Literria Antnio Vieira. Inicialmente, o museu era
denominado Museu do Homem Americano, sendo mudado para Museu do Homem
do Sambaqui em 1965 (SCHMITZ, 2009: 18).
O modo de aquisio deste diversificado acervo deu-se de diversas formas: compra,
doao e, principalmente, atravs das pesquisas arqueolgicas efetuadas por Pe. Rohr.
No Cadastro dos Museus Catarinenses da Fundao Catarinense de Cultura, segundo
informaes de 1979, o depsito do museu contava com 130.000 peas antropolgicas
e 12.000 arqueolgicas. O acervo conta com exemplares arqueolgicos, eclesisticos,
etnogrficos, malacolgicos, numismticos paleontolgicos e animais taxidermizados.
O acervo exposto rene peas de vrias escavaes, destacando-se as vitrines com
os esqueletos, aos com zolitos e as urnas funerrias. Era objeto de orgulho especial dos
sepultamentos da Tapera, uma vrtebra transpassada por uma ponta em osso (NUNES
apud CRUZ, 2005: 136; SANTA CATARINA, 1984: 28). Os animais taxidermizados se
prestam a abordagem biogrfica por terem se transformado em cultura material (LOUREIRO, 2012: 100). O peixe lua e a ona pintada chamam a ateno: o primeiro pela
sua raridade e a segunda pela histria de sua aquisio, que nos presta a uma abordagem
biogrfica do objeto:
A regio de Urubici, em tempos pr-histricos, era habitada por povos trogloditas, que moravam em galerias subterrneas, cavadas na rocha mole de arenito. Algumas destas galerias
alcanam cem metros de comprimento, tendo, em mdia, metro e meio de dimetro. Penetramos em muitas daquelas galerias, completamente desarmados, munidos, apenas, de um
lampio de presso Colemann, para iluminar o interior das mesmas. No raro, encontramos
no interior das mesmas, sinais evidentes do trabalho de tats, tamandus, gatos do mato e
graxains. Sabamos, que, na regio, ainda, havia onas pardas, chamadas tambm, pumas,
sussuaranas ou leo brasileiro. No imaginvamos, porm, que poderiam aparecer, ainda
onas pintadas ou jaguares. Ficamos, por isto, surpreendidos, quando retornamos ao planalto, em princpios de fevereiro, para prosseguir as pesquisas nas galerias subterrneas e
apresentaram-nos a pele de enorme, ona pintada, morta dois dias antes. Era animal extremamente gordo. Andava cevando-se de ovelhas, novilhos, ptros e, por certo, tambm, de
veados e outra caa, ainda frequente na regio.
Na madrugada de 29/01/72, matara e devorara um burro, triturando at os ossos do mesmo.
Perseguida pelo capataz da Fazenda da Pedra Branca e mais um peo, enfrentou os cachor-
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ros, juntos, a uma rvore cada. Os dois caadores imaginavam estarem no encalo de um
puma ou leozinho, bastante inofensivo. Qual no foi o seu espanto, quando toparam
enorme ona pintada, pronta para o bote? O capataz, Ermelindo Pedro Ribeiro, quando
se deu conta, j se encontrava, quase, nas faces da fera e no teve tempo para recuar. Por
isto, descarregou a sua armazinha, calibre 32, a queima-roupa no bicharedo. Teve sorte,
atingindo-o direto no corao. Assim mesmo, mortalmente ferida, a ona saltou sobre ele,
cravando-lhe os dentes e as garras, causando-lhe ferimentos profundos, no rosto no peito e
nos braos. Socorrido pelo companheiro, este descarregou segundo tiro na vista da ona, que
acabou, imobilizando-a.
Imagine s, se dentro de uma galeria subterrnea, armados to somente, com um foco de
luz, topassemos um bicho destes! J pensou! por certo esta ona no a nica na regio
de Urubici, onde existem campos imensos, perdidos em mata baixa, cavernas e grotes sem
conta. Compramos a pele e o esqueleto da ona, que ser montada para o Museu do Homem
do Sambaqui, como atrao turstica e instruo da mocidade estudiosa, que poder admir
-la, sem correr risco de vida. (ROHR, s/d.)
A partir de meados do sculo XX, o cenrio cultural catarinense teve uma expanso
no campo museolgico. O historiador e arquelogo Walter Piazza traz uma listagem
de colees arqueolgicas e seus locais de guarda no Estado de Santa Catarina em
1965: o Museu Nacional de Imigrao e Colonizao, Museu Anita Garibaldi, Museu
do Homem do Sambaqui, Museu Arquidiocesano Dom Joaquim, Museu do Colgio
Dehon, Museu do Ginsio So Joo Batista, Coleo Teodoro Saade, Coleo Kurt
Braunsburger, Coleo Jacob Andersen (PIAZZA, 1966: 460-461).
Durante a dcada de 60, surgem vrias instituies voltadas preservao dos
acervos arqueolgicos, alm do Museu do Homem do Sambaqui, foram fundados o
Museu Arqueolgico de Sambaqui de Joinville e o Museu Universitrio da Universidade Federal de Santa Catarina (SOUZA, 2007: 16). A atuao de Rohr no campo
dos museus de arqueologia tambm acontecia atravs do fortalecimento das relaes
institucionais.
No mbito da Universidade Federal de Santa Catarina, com o desenvolvimento das
pesquisas arqueolgicas, foi criado o Instituto de Antropologia, em 30 de dezembro
de 1965, sob a direo de Oswaldo Rodrigues Cabral. A instalao oficial do Instituto
ocorre em 29 de maio de 1968. Com a reforma universitria de 1970, o mesmo passou
a denominar-se Museu de Antropologia e em 1978 passou a ser chamado Museu Universitrio.
Logo quando o Museu do Homem do Sambaqui de Joinville (MASJ) foi criado em
1969, Rohr acompanha o convenio entre MASJ e IPHAN. Em 1972, quando o museu
oficialmente inaugurado dentre as solenidades presentes, estava o Pe. Joo Alfredo
Rohr como presidente do Conselho Estadual de Cultura (TAMANINI, 1994: 91).
Ainda neste cenrio museolgico, Rohr pde atuar na preservao no oeste de Santa Catarina, em visitas a diversas localidades do Estado, como ocorreu em Itapiranga,
em 1966, com o mapeamento de 53 stios arqueolgicos s margens do rio Uruguai,
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sendo a maioria stios cermicos Guarani (CARBONERA, 2011: 29). Na poca, Rohr
estimulou a preservao e a guarda dos acervos nas regies de origem, como depois ir
preconizar a Carta de Lausanne:
Os sitiantes recolhiam as peas mais expressivas e davam-nas de presente primeira pessoa
que nelas mostrasse algum interesse. Muitas vzes, quebravam as igaabas e partiam os
artefatos, para ver se continha ouro. Em vista disto e da grande abundncia e variedade de
material arqueolgico que, aparecendo por tda a parte, estava sendo destruido, delapidado
e disperso, sem utilidade alguma, fizemos uma intensa campanha de esclarecimento, atravez
de conferncias e palestras radiofnicas e convencemos o povo e a Prefeitura Municipal da
necessidade urgente de fundarem um Museu Arqueolgico, ao qual fsse recolhido todo
o material encontrado nas roas, nos matos e nos pastos, para assim defenderem e conservarem o patrimnio cultural do municpio. Atravez do rdio instrumos o povo, sbre a
maneira mais segura de escavar uma igaaba, atingida por um arado numa roa, sem part-la
(ROHR, 27/04/1966 a 01/06/1966).
Em uma poca que a arqueologia ainda se recolhia aos museus e centros de pesquisa e caminhava muito timidamente nas aes de educao patrimonial, percebemos
neste trecho de seu relatrio de viagem, sua conscincia do papel dinamizador que as
comunidades poderiam agir em prol de seu patrimnio arqueolgico. O Museu Comunitrio de Itapiranga tornou-se realidade em nove de agosto de 1978, quando registrado em cartrio pelos membros do Conselho Comunitrio de Itapiranga, com a presena
de Rohr como representante do IPHAN4. Segundo Denise Argenta, este museu o
segundo mais antigo na regio oeste de Santa Catarina. Em 1990, a instituio recebe
edificao prpria e em 2007 tem seu nome alterado para Museu Comunitrio Almiro
Theobaldo Muller (ARGENTA, 2011: 9). Atualmente, este museu mantido pela municipalidade com um acervo bastante variado, agrega vrias colees dentre elas, ganha
destaque de arqueologia (PIOVESAN, 2008: 58).
J no litoral, em 1977, as escavaes do stio Laranjeiras procedidas por Rohr compuseram o acervo do museu de Balnerio Cambori, localizado no Centro de Promoes e Informaes Tursticas S/A CITUR. Atualmente, dada s alteraes de nomenclatura que se sucedeu durante sua existncia, o museu arqueolgico faz parte do
Complexo Ambiental Cyro Gevaerd, pertencente ao Instituto Catarinense de Conservao da Fauna e Flora.
Rohr continua a ocupar grande parte de seu tempo com o Museu do Homem do
Sambaqui. Logo aps o seu falecimento, houve um temor que o acervo de toda sua
trajetria fosse deslocado para outro local. Sendo assim, a coleo foi tombada pelo
Estado e Unio. O tombamento da Coleo Arqueolgica Padre Joo Alfredo Rohr5
4 http://www.itapiranga.sc.gov.br/conteudo/?item=23628&fa=5001
5 A Coleo Arqueolgica Joo Alfredo Rohr est assim distribuda: as peas depositadas nas
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data de 1984 pelo Estado e pelo IPHAN foi efetivado em 1986 (SOUZA, 1992: 25). A
coleo passa a ter como responsvel outro arquelogo da mesma congregao: o Pe.
Pedro Igncio Schmitz. Decorridos anos fechado ao pblico e alvo de diversas manifestaes da imprensa local, finalmente, o museu foi reinaugurado em 29 de agosto de
1998, passando a incorporar o nome seu mentor: Museu do Homem do Sambaqui Padre
Joo Alfredo Rohr, S.J. (foto 4).
Fig. 4: Interior do Museu do Homem do Sambaqui Pe. Joo Alfredo Rohr, S.J.. Foto: Fabiana Comerlato, 2008.
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Luiz Castro Faria8 (CRUZ, 2012: 139). A ao articulada e contnua desta gerao de
intelectuais propiciou o fortalecimento da arqueologia atravs da criao de cursos de
formao especficos, unidades museolgicas e na concepo de uma legislao que garantisse a salvaguarda dos stios arqueolgicos pr-histricos (BARRETO, 1999-2000:
40).
A comisso do projeto de Lei n3537 de 29 de novembro de 1957 inclua os nomes
de Rodrigo de Melo Franco Andrade, Diretor do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional; Jos Candido Melo Carvalho, diretor do Museu Nacional; Loureiro Fernandes,
da Faculdade de Filosofia da UFPR e Paulo Duarte da Comisso de Pr-histria da USP
(ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, 1959). Este projeto de lei com pequenas alteraes, posteriormente, se transformou na Lei n3924/61, que confere ao Estado Nacional
a proteo dos stios arqueolgicos em territrio brasileiro.
Nos anos 70, Pe. Rohr tornou-se representante do IPHAN para a rea de arqueologia no Estado de Santa Catarina, vistoriou os stios do litoral e interior, conscientizando
autoridades e denunciando justia federal as depredaes e vandalismos verificados.
Prestou depoimento em inqurito policial contra a Prefeitura de Laguna, contra os depredadores em Jaguaruna e de outras localidades.
Segundo relatrio de Rohr ao MEC/SPHAN, durante os anos de 1972 a 1977 sofreu muitas ameaas, por parte de exploradores clandestinos de sambaquis quando realizara inspees rotineiras. As aes do Pe. Joo Alfredo Rohr em sua funo como representante do SPHAN teve amplo reconhecimento da comunidade cientfica da poca.
O combate contnuo contra interesses econmicos e polticos em prol da preservao
dos sambaquis foi reconhecido e apoiado em moo assinada por 237 antroplogos na
9 Reunio da Sociedade Brasileira de Antropologia em 1974 (SANTA CATARINA,
1985: 38).
Pe. Rohr constatou que algumas prefeituras municipais do Estado nos anos 60 e 70
praticaram aes contra diversos stios arqueolgicos. Em 29 de janeiro de 1974, foram
interrompidas as escavaes na Armao do Pntano do Sul:
Constatamos que a Prefeitura Municipal de Laguna, havia compactado quatro quilmetros
da estrada do Farol de Santa Maria com conchas de sambaquis. Em Jaguaruna surpreendemos dois indivduos, ocupados em peneirar conchas do sambaqui da Garoupaba. Nos
sambaquis da Carnia II, em Laguna; do Siqueiro e da Samambaia, em Imaru, as obras
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Outra ameaa constante so os turistas, dificeis de fiscalizar o que, permanentemente, continuam fazendo pequenas depredaes nos stios arqueolgicos (ROHR, s/d.).
O eminente antroplogo Slvio Coelho dos Santos9, de maneira muito crtica, nos
brinda com suas indagaes perturbadoras, ainda nos parece muito contemporneas, no
sentido da ausncia na aplicao de ferramentas de gesto do patrimnio arqueolgico
pelas esferas governamentais:
A campanha encetada pelo Pe. Rohr no somente deve merecer todo apoio dos homens lcidos e responsveis desta terra. necessrio, e urgente, que medidas efetivas sejam tomadas.
Em So Paulo, no Paran e no Rio Grande do Sul os governos lograram coibir a destruio
dos stios pr-histricos. Por que no ser possvel aniquilar com as aspiraes destrutivas
de uns poucos interessados em lucros fceis, aqui em Santa Catarina? Por que no ser possvel s Prefeituras Municipais onde se concentram importantes monumentos pr-histricos
criar parques locais, visando o resguardo dos stios e criao de ambientes pblicos de
futura importncia paisagstica e turstica? Por que o Governo Estadual no pode organizar
um setor destinado ao tombamento e preservao desse patrimnio? (SANTOS, 1972: 119)
CONSIDERAES FINAIS
Nesta tentativa de avaliar o legado cientfico de Pe. Rohr, podemos perceber a magnitude de seu trabalho em prol da cultura catarinense. No que tange arqueologia, sua
obra pode ser considerada como fonte bsica no entendimento da pr-histria na regio
sul do Brasil. O seu carter pioneiro propiciou novos delineamentos para a arqueologia
do sculo XXI, Pe. Rohr foi um (...) desbravador de um territrio inculto, preparando
-o para uma nova etapa e buscando garantir os stios e o material para as geraes que
o sucederiam (SCHMITZ, 2009: 20).
9 Natural de Florianpolis, Slvio Coelho dos Santos nasceu em 1938. Cursou a graduao
em Histria na UFSC (1960), Especializao em Antropologia Cultural e Sociologia na UFRJ
(1963) e Doutorado em Antropologia na USP (1972). Professor da UFSC desde 1962, foi chefe
do Departamento de Cincias Sociais, coordenador da Ps-graduao em Cincias Sociais, PrReitor de Pesquisa e Ps-Graduao, Pr-Reitor de Ensino. Sua participao foi fundamental
para a consolidao de Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social e para a criao
do Departamento de Antropologia da UFSC.Teve participao ativa em instituies cientficas
e literrias, foi scio emrito do IHG-SC e secretrio regional da Sociedade Brasileira para
o Progresso da Cincia (SBPC), destacando-se como Presidente da Associao Brasileira de
Antropologia (1992-1994), membro da Academia Catarinense de Letras e pesquisador emrito
do CNPq. Faleceu aos 70 anos em 2008 Disponvel em http://nepi.ufsc.historico/fundador/
Acessado: 21 set. 2014.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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BASTOS, Rossano. Relao das informaes contidas sobre material arqueolgico em
relatrios do Pe. Joo Alfredo Rohr. 11a CR - SPHAN Pr-Memria - Servio Pblico
Federal. 29/01/1996.
Oramento e Quadro de Informaes Bsicas sobre o cadastramento e Proteo aos
Stios Arqueolgicos de Santa Catarina, do Pe. Joo Alfredo Rohr ao MEC-SPHAN.
(sem data- datilografado)
ROHR, Joo Alfredo. Relatrio da Viagem de Prospeo de Stios Arqueolgicos
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27/04/1966 a 01/06/1966.
ROHR, Joo Alfredo. Prospeco de Stios Arqueolgicos nos Municpios de Petrolndia, Atalanta, Imbia, Alfredo Wagner, Rancho Queimado e Angelina. 23 de novembro
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
UNA EXPERIENCIA DE
ARQUEOLOGA PBLICA Y
COLABORACIN
INTERCULTURAL EN EL
SECTOR SEPTENTRIONAL DE
ARGENTINA
Mnica Montenegro
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
UNA EXPERIENCIA DE
ARQUEOLOGA PBLICA Y
COLABORACIN
INTERCULTURAL EN EL
SECTOR SEPTENTRIONAL DE
ARGENTINA
Mnica Montenegro1
RESUMEN
La arqueologa pblica puede vislumbrarse como un espacio para desarrollar propuestas didcticas que contribuyan a generar conocimientos sobre el pasado desde una
perspectiva multivocal. En este trabajo compartimos una experiencia de arqueologa
pblica y colaboracin intercultural desarrollada en una comunidad educativa del
Noroeste Argentino2. Se trata de una actividad relacionada con la elaboracin de un
material didctico para trabajar contenidos sobre el pasado prehispnico en el contexto
ulico, que busc integrar conocimientos ancestrales y cientficos, y tecnologas de la
informacin y la comunicacin (TICs). A partir de la misma, reflexionamos acerca del
rol de la arqueologa en la construccin de discursos sobre el pasado, en un complejo
contexto donde se imbrican activaciones patrimoniales, mediacin cientfica, emergencia de identidades tnicas, y re-configuracin de territorios.
Palabras clave: Arqueologa Pblica, Colaboracin Intercultural, Noroeste Argentino.
1 Dra. en Antropologa. Programa de Estudios Postdoctorales de la Universidad Nacional de
Tres de Febrero. Instituto Interdisciplinario Tilcara, Universidad de Buenos Aires y Centro Regional de Estudios Arqueolgicos, Universidad Nacional de Jujuy, Repblica Argentina. [email protected]
2 La misma se realiz durante el ao 2013, en el marco del Proyecto de Investigacin y Formacin Posdoctoral: Arqueologa pblica y colaboracin intercultural en la construccin de
discursos sobre el pasado local desde la escuela. Un estudio de caso en el sector septentrional
del noroeste argentino, bajo la direccin del Dr. Daniel Mato CONICET /Universidad Nacional de Tres de Febrero, Argentina.
MNICA MONTENEGRO
ABSTRACT
Public Archaeology can be glimpse as a space to develop didactical proposals that contribute to create knowledge about the past from a multivocal perspective. In this work
we want to share an experience of public Archaeology and intercultural collaboration
developed with an educational community in the Norwest of Argentine Republic. This
work is focused about a related activity with the elaboration of didactical material to
work contents about pre-Hispanic past on classroom context, looking for integrate ancient and scientific knowledge and the information and communication technologies
(TICs). From it, they started to shedding questions and reflections about the role of
archaeology on the construction of discourses about the past, in a complex context
where heritages activations, scientifics mediation, emergence of ethnic identities and
reconfiguration of territories, overlap.
Keywords: Public Archaeology; Intercultural collaboration; Noroeste Argentino.
RESUMO
Pode-se entender a Arqueologia Pblica como espao de desenvolvimento de propostas
educacionais que contribuem para a gerao de conhecimento sobre o passado, a partir
de uma perspectiva multivocal.Neste trabalho, compartilhamos uma experincia de Arqueologia Pblica e colaborao intercultural, realizado numa comunidade doNoroeste
da Argentina. Trata-se de uma atividade pedaggica, voltada produo de material de
ensino para trabalhar o passado pr-hispnico no espao escolar. Tal proposta integrou
conhecimentos ancestrais e cientficos, e as tecnologias da informao e comunicao
(TICs). A partir dessa experincia, foram formuladas perguntas e reflexes sobre o papel da arqueologiana construo de discursos sobre o passadoem um contexto complexo, no qual esto entrelaadas ativaes patrimoniais,mediao cientfica, surgimento
de identidades tnicas e reconfigurao de territrios.
Palavras-chave: Arqueologia Pblica; Colaborao Intercultural; Noroeste da Argentina.
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7 Bolados Garca (2010) denomina as a una versin extendida del neoliberalismo a campos
socioculturales antes ignorados, donde las prcticas de gobierno tienden a la sujecin y subjetivacin de los individuos a travs de formas de auto-mejoramiento.
8 En el marco del Primer Foro Pueblos originarios-Arquelogos, respondiendo al mandato
de la Asamblea Plenaria del XV Congreso Nacional de Arqueologa Argentina que entendi la
necesidad de establecer un dilogo sobre la base del respeto mutuo entre pueblos originarios
y arquelogos; reconociendo, por una parte, la contribucin de la arqueologa al conocimiento
del pasado indgena, y por otra, el inters legtimo de las comunidades indgenas actuales por
el patrimonio que les pertenece y que es sustento del conocimiento, sabidura y cosmovisin
ancestrales.
9Concepto acuado por Daniel Mato (2004), para definir articulaciones transnacionales de tipo
global-local resultantes de prcticas individuales y de organizaciones en el contexto de relaciones sociales, polticas y econmicas ms amplias, atravesadas por relaciones de poder y
conflictos de intereses.
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MNICA MONTENEGRO
comunidades locales, quienes les otorgan nuevas valoraciones, y las re-significan por
una parte, como elementos de su paisaje cultural que contribuyen a demarcar territorios
ancestrales; y por la otra, como patrimonio cultural y potencial recurso de desarrollo
econmico asociado a proyectos tursticos. La complejidad de estos procesos provoca
conflictos y negociaciones entre los diversos actores sociales que pugnan por la apropiacin de sitios y bienes arqueolgicos; en relacin a la arqueologa se presentan
situaciones diversas: en algunos casos, las comunidades han impedido el desarrollo
de investigaciones arqueolgicas, pero en otros, han acudido a los arquelogos para
que les acerquen conocimientos sobre las sociedades que habitaron en tiempos prehispnicos esta geografa (MONTENEGRO, 2010; MONTENEGRO y APARICIO, 2013;
RIVOLTA, MONTENEGRO y ARGAARAZ, 2011).
Este complejo escenario, nos oblig a reflexionar sobre el posicionamiento de nuestra praxis en un contexto de diversidad cultural, y nos desafi a disear acciones para
actualizar los vnculos entre arqueologa y comunidades locales. Para ello fue necesario
reconocer que los procesos de reconfiguracin de identidades y territorios que estn
producindose al interior del territorio provincial otorgan a los bienes arqueolgicos
nuevas valoraciones definidas desde la multiculturalidad10, integrndolos al campo del
patrimonio local. De esta manera, sitios y objetos arqueolgicos son entendidos como
mecanismos de activacin de la memoria social y dinamizadores de procesos identitarios, considerando que la constitucin de una identidad cultural se lleva a cabo a
travs de la preservacin de la memoria dentro de una determinada visin de mundo
(CARVALHO y FUNARI, 2012: 106).
En consecuencia nuestras propuestas se basaron en acciones de arqueologa pblica
relacionadas con patrimonio como espacio de participacin social11; as, durante la ltima dcada hemos generado propuestas que favorecieran los procesos de construccin
de patrimonio arqueolgico en la escuela. De cierto modo, patrimonio fue una excusa
para promover la comunicacin intercultural y re-conocer a partir de mltiples voces,
el pasado local, compartiendo con Carvalho y Funari (2012), la necesidad de trascender
el espacio acadmico para dialogar con la comunidad valorando los diversos puntos
de vista y respetando las distintas visiones de mundo, destacando a su vez los espacios
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MNICA MONTENEGRO
negocian y disputan formulaciones de sentido acerca del pasado y del presente; no solo
entre s, sino dentro de s.
Diseamos las propuestas de arqueologa pblica, partiendo de prcticas pedaggicas que promueven una descolonizacin del conocimiento, al decir de Catherine Walsh
(2009) sustentadas en el re-existir y re-vivir como procesos de re-creacin. Adherimos
a la posibilidad de imaginar a la pedagoga como un pensar con los otros sectores de la
sociedad, en un proceso inclusivo, dirigido a la transformacin y a la creacin de nuevas propuestas educativas, que apuesten a desarrollar un proyecto poltico, epistmico,
social y tico de la interculturalidad (WALSH, 2009). Por lo dems, consideramos que
en el mbito del multiculturalismo, el Estado nacional re-define sus relaciones con los
diversos actores locales, quienes no estn exentos de interferencias discursivas transnacionales (MATO, 2004). Aqu se pone de manifiesto, como sugieren Dietz y Mateo
Cortez (2011), la necesidad de transversalizar un enfoque intercultural que visibilice la
diversidad, celebre la interaccin y promueva actitudes positivas ante la heterogeneidad.
ARQUEOLOGA PBLICA Y COLABORACIN INTERCULTURAL EN
LA QUEBRADA DE HUMAHUACA: ENTRE SABERES ANCESTRALES E
INFORMTICA
La experiencia de arqueologa pblica que presentamos fue resultado de una investigacin cualitativa, sincrnica, de corte exploratorio, realizada en el mbito educativo
desde una perspectiva dialgica, empleando mtodos de arqueologa pblica (HGBERG, 2007; FERNNDEZ MURILLO, 2003; FUNARI y VIEIRA DE CARVALHO,
2012; ZABALA y FABRA, 2012). El objetivo fue promover un espacio dialgico para
construir conocimientos desde una perspectiva intercultural. Aspiramos a mejorar la
calidad del proceso de enseanza, a partir de la elaboracin conjunta de material didctico sobre el pasado y el patrimonio de la regin, empleando TICs12.
La unidad de estudio fue la Escuela Primaria N 44 Jos Ignacio Gorriti de la localidad de Len, Provincia de Jujuy. Esta institucin educativa se encuentra emplazada
en el sector meridional de la Quebrada de Humahuaca, en un espacio de transicin con
valles templados, a una altitud aproximada de 1.620 m.s.n.m. Cuenta con Nivel Inicial
y Primario y posee un albergue anexado que le permite hospedar alumnos de reas
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rurales prximas. La poblacin est compuesta por 138 alumnos (115 externos y 23
albergados) y 33 personas que forman parte del personal de la escuela, entre las que se
incluyen directivos, docentes y empleados de maestranza. A partir de sugerencias de
la Supervisora de regin y de la Directora se trabaj especficamente con docentes y
alumnos de 4y 5 grado.
La investigacin se conform en base a observacin participante, indagacin de
documentacin institucional, y rescate de discursos de los diversos actores educativos y
miembros de la comunidad local. Asumiendo que ningn saber es universal, la colaboracin intercultural se vuelve imprescindible (MATO, 2008) a la hora de generar aprendizajes significativos; por ello, nuestra investigacin se consolid a travs de una doble
va: a) la transferencia de resultados de investigaciones arqueolgicas al entramado
socioeducativo local a travs de estrategias de mediacin cientfica; b) la recuperacin
de conocimientos de la comunidad a travs de acciones de colaboracin intercultural.
Nuestro inters se centr en recuperar con la mayor fidelidad posible- el lenguaje de
los actores, en sus propios trminos y significaciones, transformando el contexto ulico
en un espacio multivocal.
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MNICA MONTENEGRO
El pasado prehispnico estaba poco representado en los discursos de los nios: solo
un 18% refiri en sus discursos al tiempo de los indios; para el 82% restante, hablar
del pasado era referirse nicamente a la historia, y el lapso cronolgico al que aludieron correspondi al Siglo XIX, especficamente al perodo de Guerras de Independen-
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13 Fecha en la cual se celebra una de las victorias ms destacadas del proceso independentista:
la Batalla de Len (27 de abril de 1821) cuando las tropas realistas fueron derrotadas por las
tropas jujeas comandadas por el coronel Jos Ignacio Gorriti.
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MNICA MONTENEGRO
El nombre elegido para la presentacin fue: Las tierras de Len tiempo antes de
la conquista espaola se trata de un material didctico para estudio del pasado prehispnico del sur de la Quebrada de Humahuaca en escuelas primarias. El mismo fue
elaborado a partir de discursos y expresiones grafo-plsticas de los nios, a los que
se integraron contenidos arqueolgicos, informacin proveniente de textos escolares,
y conocimientos que acercaron otros miembros de la comunidad. Los contenidos se
estructuraron siguiendo un eje temporal que muestran diversos aspectos de la vida de
las comunidades que habitaron en el pasado esta regin de los Andes Centro Sur. Para
ello abordamos las siguientes temticas: primeras ocupaciones del territorio, grupos
cazadores y recolectores, pueblos agricultores, los habitantes de los pucaras, la llegada
de los Inkas y la formacin del Collasuyu, culminando en el momento de la conquista
espaola.
Durante los talleres observamos un gran inters por parte de los nios por conocer
ms acerca de los mtodos y tcnicas de la arqueologa; en relacin a esto, surgi como
inquietud la visita a algunos sitios arqueolgicos prximos a la institucin educativa,
que se planificaron para el ao lectivo 2014. De todos modos, aunque el pasado prehispnico les interes, privilegiaron los conocimientos relacionados al perodo colonial,
especialmente los tiempos de la revolucin. Numerosos miembros de la comunidad
educativa, nos hicieron saber en reiteradas oportunidades, que el pasado de la localidad
de Len est relacionado principalmente al tiempo de las Guerras de Independencia,
donde Len tuvo un rol protagnico como espacio de defensa de la frontera norte del
pas, y por ello les gustara que los arquelogos estudien la zona para ver si pueden
encontrar huellas de esas batallas.
Los procesos de construccin de patrimonio e identidades estn asociados fundamentalmente a la msica, las danzas, la indumentaria, las celebraciones religiosas, y
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otras tradiciones vinculadas a la vida de los gauchos. No hemos registrado identificaciones identitarias relacionadas con comunidades indgenas, por el contrario, en esta
comunidad el referente identitario son los gauchos; estos resultados reafirman investigaciones anteriores (Montenegro, Cremonte y Peralta 2013) que ponan de manifiesto
que las comunidades de la regin de los Valles templados de Jujuy, se identifican con
esa construccin identitaria propia del Estado Nacional Argentino. Por ello, consideramos que la comunidad educativa de Len se encuentra emplazada en un rea de
frontera a nivel geogrfico: valles/quebrada, que tambin delimitara configuraciones
identitarias: gauchos/indgenas, y construcciones patrimoniales arqueolgicas de diferentes perodos: colonial/prehispnico. Sin duda estos planteos despiertan nuevos interrogantes que sern objeto de futuras investigaciones.
Esta investigacin logr descentrar, una vez ms, a la arqueloga de sus representaciones acerca del pasado local; fundamentalmente porque al disear este proyecto pensamos en aportar desde nuestras investigaciones arqueolgicas, elementos para ampliar
el horizonte temporal hacia -los desarrollos prehispnicos- contenidos que no siempre
son tratados en el contexto ulico. La comunidad nos interpel con sus demandas de
participacin no slo en la construccin de discursos sobre el pasado, sino sobre la seleccin de temas que podra interesarles conocer.
Al observar las producciones de los talleres pudimos advertir que era realmente
poco lo que haban dejado plasmado sobre los tiempos prehispnicos, pero era notable
la avidez de conocimiento que haba en relacin a la Batalla de Len como objeto de
estudio. En tal sentido, solicitaron que la arqueologa comience a trabajar en estudios
sobre dicho perodo cronolgico, que an no habamos considerado. Nuevamente ac
surgi la disyuntiva entre lo que los investigadores creen que puede interesar a las comunidades y lo que realmente les interesa a la gente.
La colaboracin intercultural se manifest a travs de la cooperacin de diferentes
miembros de la comunidad educativa que aportaron sus conocimientos acerca de otros
tiempos, nociones de patrimonio, consideraciones sobre la identidad gaucha, conceptualizaciones del territorio provincial-regional-local, y miradas acerca de la forma en
que quieren construir el pasado de esa comunidad. Tambin pudimos registrar esa colaboracin a travs de la forma en que decidimos nuestra participacin en cada taller,
en el respeto por la diversidad de comentarios sobre el pasado, en las expectativas sobre
este presente que estbamos construyendo en equipo, en las perspectivas de trabajo a
futuro que quedaron planteadas, y en la forma en que los participantes fuimos apropindonos de las ideas de los otros. Sin duda, lo ms interesante, fue descubrir que al
re-situar nuestro relato arqueolgico desde una perspectiva intercultural, el mismo se
volva ms significativo, tanto para la comunidad educativa, como para la arqueloga.
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MNICA MONTENEGRO
PALABRAS FINALES
La experiencia que hemos compartido nos ayud a ilustrar un contexto complejo de
conflictos y negociaciones en torno a la construccin de discursos sobre el pasado desde
una perspectiva multivocal. Los talleres permitieron no solo acercar conocimientos arqueolgicos al contexto ulico, sino adems, hacer visibles otros discursos acerca
del pasado local, que de cierto modo se legitimaron en la escuela. El material didctico
elaborado en forma conjunta con la comunidad educativa permiti elaborar un discurso
plural que integr otras voces y miradas; su formato digital, como presentacin permite
su uso y modificacin por parte de los docentes con el fin de actualizar la informacin
en forma permanente y se convierte en una herramienta didctica til para desarrollar
la transposicin didctica de contenidos al aula, despertando en los nios un inters
particular por tratarse de un elemento visual y con animacin.
Esta actividad sirvi para reflexionar sobre las elecciones epistmicas que se ponen
en juego a la hora de desarrollar acciones de arqueologa pblica. Como arqueloga, me
interpel la posibilidad de dejar a un lado las verdades absolutas para comenzar a compartir conocimientos, en una dinmica que implica un intercambio de roles en el doble
proceso de enseanza-aprendizaje; una experiencia cognitiva donde las comunidades y
la arqueologa se apropian mutuamente de ideas otras que permiten reconfigurar relatos acerca del pasado local, que resulten significativos para el presente. Hoy ms que
nunca estamos convencidas de que la multivocalidad en arqueologa abre en nuestro
contexto del Noroeste Argentino, una posibilidad cierta para re-pensar la construccin
de conocimientos desde una perspectiva dialgica, en el marco de los principios de
complementariedad y reciprocidad andina.
A nuestro modo de ver, la arqueologa pblica se constituye como un espacio epistmico y metodolgico que conlleva no slo reflexiones disciplinares, sino tambin
posicionamientos sociopolticos. En tal sentido, nos animamos a proponer la necesidad
de una arqueologa intercultural que permita, por una parte, de-construir prcticas hegemnicas de produccin de conocimientos, y por la otra, avanzar en el conocimiento
de dinmicas actuales de re-configuracin de patrimonio, identidades y territorios en
este sector de los Andes Centro Sur.
AGRADECIMENTOS
Deseo agradecer en primer lugar a la comunidad educativa de la Escuela N 44: a
su Directora Isabel Galian, a las docentes: Nora M. Dvila, Esther V. Arjona, Norma
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Cruz, y Judith Zamboni, y a los nios de 4 y 5. Agradezco fundamentalmente a Daniel Mato por dirigirme en este proceso de formacin Postdoctoral. Un agradecimiento
especial a Lucio Menezes Ferreira por sus valiosos aportes en torno arqueologa pblica, y a Mara Elisa Aparicio por su acompaamiento permanente y sus inestimables
sugerencias en torno a la faz etnogrfica de la investigacin.
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Andrs Alarcn-Jimnez1
Colombia is not a country of dictatorships. It is usually known for
its civic tradition, alien to military governments(LANGEBAEK apud
FUNARI, ZARANKIN e SALERNO, 2009: 9).
RESUMO
Esse artigo uma proposta de estudo.
Prope-se a existncia de um correlato entre Guerra Fria, Regimes polticos e Usos
do Passado como forma de compreenso do processo de constituio do sujeito (no
nvel macro) durante processos de modernizao. O correlato, nesse sentido, ligaria,
no seu desenvolvimento processual, as polticas culturais da Guerra Fria e o processo
de modernizao e institucionalizao das disciplinas antropolgica, historiogrfica e
arqueolgica; o processo gira ao redor da ideologia do progresso na Amrica Latina.
Considera-se esse processo como constitutivo do nosso universo presente. No caso
local colombiano, esse processo se deu entre 1946 e 1966: fundar-se-ia o Instituto
Colombiano de Antropologia em 1954, durante a ditadura de Gustavo Rojas Pinilla. O
1 Antroplogo pela Universidade Nacional de Colmbia. Mestre e Doutor em Histria pelo
IFCH, UNICAMP. Membro do Grupo de Pesquisa em Arqueologia da Represso e da Resistncia. E-mail: [email protected].
ANDRS ALARCN-JIMNEZ
ABSTRACT
This paper is a proposal I have been developing as a general research program.
We propose a major work frame to study the possible correlations among Cold War,
politics, and uses of the past as a mean to comprehend the constitution of the self, in the
macro level, during modernization processes. We want to study the correlation among
Cold War cultural politics and the process of modernization and institutionalization
of Anthropology and Archaeology in Latin America, mainly around the ideology of
development. That process is conceived as the founding base of our present and, in
Colombia, that process took place between 1946 and 1966. The Colombian National
Institute of Anthropology was created by Gustavo Rojas Pinilla, a conservative military
dictator in 1954. The rural universe became the privileged scenario for counter-insurgent
war, the governments, developmental politics and the research subject of anthropologists,
archaeologists and sociologists. In that process, researchers discovered the existence
of Native Americans, Afro-Colombians, Peasants, folklore traditions and a new ancient
material culture. Social evolution models, progress, ecologism and a new racial scheme
became the privileged models to construct and explain Colombian culture and its past.
This new knowledge did not reach directly the general public. New Mass Media and
new cheap technologies were the main channels to capture the publics eye, a public
that kept being educated in a Colombian classic educational system developed by three
consecutive, conservative, catholic, traditionalist and anti-communist regimes: an
autocratic regime, a dictatorship and a pseudo-democratic form of government known
as Frente Nacional.
Keywords: Cold War; dictatorship; Colombia; Archaeology; Anthropology; progress;
Anticommunism.
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RESUMEN
Este artculo es una propuesta de estudio.
Se propone la existencia de un correlato entre Guerra Fra, regmenes polticos y los
usos del pasado como formas de comprender el proceso de constitucin del sujeto
(en el nivel macro) durante procesos de modernizacin. El correlato, en ese sentido,
involucrara, en su desarrollo procesual, las polticas culturales de la Guerra Fra y el
proceso de modernizacin e institucionalizacin de la Antropologa y la Arqueologa;
el proceso girara alrededor de la ideologa de progreso en Latinoamrica. Se observa
como tal proceso es constitutivo de nuestro presente. En el caso local colombiano,
el ocurrira entre los aos de 1946 y 1966. El Instituto Colombiano de Antropologa
sera fundado en 1954, durante la dictadura de Gustavo Rojas Pinilla. El universo
rural se convertira en el espacio privilegiado simultneamente de la guerra contrainsurgente, de las polticas estatales desarrollistas y de la antropologa la arqueologa
y de la sociologa. En ese marco, los investigadores descubriran a los indgenas,
afrocolombianos o campesinos, el patrimonio cultural adems de tradiciones,
del folclor y de la cultura material antiqusima. Institucionalmente, se privilegiara
el esquema evolucionista y de progreso sociocultural, el ecologismo y el enfoque racial
tripartite entre otros. Se explicara la gnesis de la cultura y el pasado colombiano por
medio de esos conceptos. Sin embargo, debido a una ruptura en la cadena de produccin
y manufactura de la informacin, esa produccin solo llegara de forma parcial al
pblico, no solo por medio de las nuevas tecnologas y nuevos Medios Masivos de
Comunicacin, sino tambin por medio de un sistema educativo de corte tradicional
concebido por tres regmenes conservadores consecutivos, catlicos, tradicionalistas
y anti-comunistas: un rgimen autocrtico, uno dictatorial y uno pseudodemocrtico
llamado Frente Nacional.
Palabras clave: Guerra Fra; Dictadura; Colombia; Arqueologa; Antropologa;
Progreso; El anticomunismo.
BREVE CONTEXTO.
Considere-se a ideia de que a construo do passado manufaturado como histria
e memria- e o processo de constituio do sujeito so processos que acontecem, no
nvel individual, de forma simultnea, no cenrio do corpo da pessoa. Todo indivduo
precisa construir de zero, e ao longo da vida, o passado que, devido s caractersticas
da espcie, no transmitidas pelos genes. Para construir e usar esse tipo especfico
de passado (a memria prottica2) se requer de educao. Esse processo, no captulo
2 Por mdio desse conceito denominamos as extenses construdas e incorporadas a memria
individual, a memria que se estende mais alm da construda a partir das experincias do sujeito e inclui a de outros sujeitos, fictcios ou no, objetos, lugares, livros, etc. A existncia de
um sistema educativo e da escolaridade um fator determinante nesse processo. Essa memria
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11 Para a escrita desse apartado, seguimos principalmente a obra de Milcades Chaves (1986),
antroplogo colombiano que faz um retrato da disciplina ligando-a ao universo sociopoltico e
cultural colombiano e o clssico da sociologia colombiana, La Violencia en Colombia: estdio
de un proceso social de Fals Borda, Umaa Luna e Guzman Campos, (1963). Apoiamos-nos
em obras de Botero, Langebaek e Pineda Camacho, (BOTERO, 2006; LANGEBAEK e BOTERO, 2009; LANGEBAEK, 2003; LANGEBAEK apud FUNARI, ZARANKIN e SALERNO, 2009; CAMACHO, 2005; 2005). Chves, diferente de outros autores, mas reproduzindo
uma ideia que at Langebaek conserva (2009), reconhece que trabalhou para a ditadura. Porm,
tenta se desligar dela, pois afirma que, como todos, no comeo, achavam-a boa. Duas ideias,
concomitantes, derivam-se dessa poca e se conservam: a ideia da continuidade democrtica na
Colmbia, tradio alheia s ditaduras militares que Langebaek reproduz; e a ideia de que a
de Rojas Pinilla foi um tipo de ditabranda mantida por muitos autores at o dia de hoje e por
esse motivo ou rejeitam a ideia de que era como as outras de Amrica Latina, ou at retratam
o ditador como mrtir (ERAZO, 1999).
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A tenso entre realidade histrica e propaganda poltica nesse pas constitui o motoro da
guerra pela memria que ainda vai vencendo a grande Mdia. O controle do passado
manufaturado, nesse sentido, no presente (sempre em constante movimento histrico
(o progresso), como predito e estabelecido pela antropologia e pela arqueologia), assim
como o ser humano manufaturado (por exemplo, o cidado) na constante tenso
entre individuo e o grupo e entre ele a sua realidade material, tornar-se-ia o elemento
chave para modelar o futuro e, dessa forma, ter maior controle sobre o devir do presente,
(FOUCAULT, 1988; 1997; 2000; 2008).
Desde tempos da ditadura, a poltica positiva de levar progresso, de apoiar o povo
no seu desenvolvimento pelo reconhecimento oficial das suas crenas e costumes,
foi apropriada (seno nasceu no seio do Estado) e tornada a colombianidade oficial,
estatizada, fixada em smbolos, narrativas, etc. Sua manufatura, circulao e uso,
at o dia de hoje depende de uma parca iniciativa econmica Estatal e privada (setor
privilegiado, alias, pelo estado, como baliza da Cultura na Colmbia) que limita a
produo no campo, do apoio a discursos visuais, audiovisuais, educativos, literrios,
musicais, museolgicos, (etc.), especficos.
Aps a crise econmica de 1929, o governo conservador, instalado aps um golpe
de estado em 1900 e a Guerra dos Mil Dias, perdeu poder, que passou ao partido
Liberal. Os dois primeiros governos tentaram subsanar a economia nacional aplicando
reformas no molde do New Deal de Roosevelt. Para a dcada de 1940, durante a
Guerra, e como consequncia dela se fundaria a Escola Normal Superior, cujos cursos
de Etnologia e de Arqueologia seriam organizados por Paul Rivet, quem como outros
professores da instituio tinha se refugiado no pas. Fundar-se-iam eventualmente o
Instituto Etnolgico Nacional, ligado ao projeto de Paul Rivet e o Servio Arqueolgico
Nacional, ambos de modesta, mas influente produo intelectual. Enquanto o campo
da Historiografia se renovaria na dcada de 1960 (AGUDELO, 1976), no nvel
universitrio, o ensino de Histria e o projeto cvico, porm, manteriam o esquema
conservador institucionalizado no comeo do sculo XX.
Uma nova etapa, duradoura, marcante, definidora e brutal, de violncia poltica e
social, estava tomando forma, principalmente no campo colombiano. A s formas de
propriedade e uso da terra era o motor da Guerra interna. Em 1946, depois de concluda
a Segunda Guerra Mundial, o partido Liberal, ferido pela difcil situao do ps-guerra
como por divises internas, perdeu o poder e o partido Conservador o retomou. Devolveuse a educao Igreja Catlica e se avivou a chama da guerra civil, pois se excluiu o
partido Liberal do poder. O anticomunismo tornava-se ideologia e poltica do Estado. No
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um perigo, estudava agora aos setores populares com o intuito de fornecer solues
sociais para grupos que, por outro lado, eram os alvos prediletos dos comunistas ou
socialistas.
Ao mesmo tempo, o discurso poltico e a prtica poltica divorciaram-se. Um
discurso positivo de progresso e qualidade de vida pblica contrastava com a poltica
militarista do Estado e dos grupos que se declaravam em guerra contra ele. Desde finais
da dcada de 1950, se no desde antes, comearam chegar misses militares norteamericanas na Colmbia, de forma secreta: isto , no seria feito pblico mesmo que
os jornais tomaram nota e publicaram, de forma crtica, notcias sobre a presena de
assessores no pas. Diversos tipos de guerrilhas e violncia espalhados pelo territrio,
muitos deles com conexes internacionais, representavam um perigo para a regio,
mas, sobretudo, tornaram-se um perigo real aps o triunfo da Revoluo de Cuba.
Em 1961, ao mesmo tempo em que se explorava publicamente a imagem positiva
e democrtica do presidente Lleras Camargo15, atribuindo-lhe ele popularidade,
assertividade e a responsabilidade pelas boas polticas, o governo, seguindo seus
assessores, criava o DAS, Departamento Administrativo de Segurana Nacional,
encarregado da espionagem como da polcia secreta do pas. Eventualmente se
instituiria o plano Lao, plano contrainsurgente que incluiria atividades nos centros
urbanos, principalmente, no campo colombiano. Os militares colombianos iriam treinar
na Escola das Amricas e a perseguio do Estado aos inimigos teria como resultado, a
partir de 1970, quando comeam os registros publicados em 2014, um nmero incrvel
de desaparecidos, relacionados com partidos, movimentos ou grupos de esquerda
(GILL, 2004; REMPE, 2002)16.
15 Lleras Camargo seria um grande amigo de J. F Kennedy e junto com ele, tentariam tornar
Colmbia o modelo, a vitrine, de pas da Aliana para o Progresso para a regio.
16 Tambm coincide com essa guerra fria, o estabelecimento violento de governos ditatoriais
e militares, geralmente anticomunistas (salvo nos casos especficos de Cuba e, posteriormente,
Nicargua e Peru), Amrica Latina, frica ou sia. At na Europa, onde a pennsula ibrica
veria regimes da pr-guerra perdurar at quase fim da dcada de 1970. Com efeito, estamos
numa regio onde a tradio militarista ou democracias de papel, a maior parte de marcado carter anticomunista (onde por comunismo se entende qualquer coisa), tem comandado
a poltica nacional e regional: Argentina (19431946; 19551958; 19661973; 19761983);
Bolvia (19361947; 19511952; 19641971; 19711982); Brasil (1930-1945; 19641985);
Chile (19731990); Colmbia (1954-1957; 1958-1960; Frente Nacional: 1960-1991); Cuba
(19331940; 19521959; 1959-presente); Repblica Dominicana (19301961); Equador
(19371938; 19631966; 19721979); El Salvador (19311980); Guatemala (19311945;
19571958; 19631966; 19701986); Haiti (19501956; 19861990; 19911994); Honduras (19561957; 19631971; 19721982); Mxico (Gobierno del PRI: 1946-2000); Nicargua (19361956; 19671979); Panam (19681989); Paraguai (19401948; 19541993); Peru
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The American peoples have acknowledged the dignity of the individual, and their national
constitutions recognize that juridical and political institutions, which regulate life in human
society, have as their principal aim the protection of the essential rights of man and the
creation of circumstances that will permit him to achieve spiritual and material progress
and attain happiness Since culture is the highest social and historical expression of that
spiritual development, it is the duty of man to preserve, practice and foster culture by every
means within his power. And, since moral conduct constitutes the noblest flowering of culture, it is the duty of every man always to hold it in high respect17.
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ptria da literatura marxista que a excluiu. Porm, a esquerda, dentro do campo, seria, de
fato, quase marginalizada (LANGEBAEK apud FUNARI, ZARANKIN, e SALERNO,
2009).
Desde 1950, o esquema tripartite seria inserido na fala dos colombianos pelos
antroplogos. Esse redescobrimento das vozes e culturas indgenas e afro-colombianas,
do patrimnio nacional material e imaterial, ganharia um cenrio prprio e relevante
no pas, seguindo um novo modelo de multiculturalidade, na dcada de 1990; com
efeito, junto com a chegada da ps-modernidade ao seio da antropologia nacional,
viria antropologia fsica e seu papel determinante na poltica e sistema judicirio
nascido depois da oficializao da nova Constituio de 1991. Nessa constituio,
e nessa dcada, ao mesmo tempo em que se imps o neoliberalismo como poltica
oficial, viria uma das mais brutais ondas de violncia - relacionada a essa nova ordem
poltica como ao narcotrfico-, se plasmaria e usaria o esquema tripartite, de forma
positiva. Com efeito, na carta magna colombiana usar-se-iam as categorias de indgena
e afrodescendente para inclu-los, reconhecer terras, direitos e histria, no esquema
multicultural de ser colombiano.
Os colombianos pr-histricos, aqueles que do base e origem a Colmbia
moderna, seriam definidos por dois campos, pela histria escolar e pelos arquelogos.
Os arquelogos participaram das misses do Governo ditatorial de Rojas Pinilla, mas
sua produo est pautada na arqueologia da poca22, ou seja, a histrico-cultural
americana que, nesse tempo, mudava de roupas, logo seria renovada, e tornar-seia o processualismo, escola que, como j foi dito, norteia a prtica institucional da
arqueologia na Colmbia contempornea. Entre 1953 e 1966, concentrar-se-iam
no estudo da histria arqueolgica em regies do pas sem estudar (o casal Alicia e
Gerardo Reichel-Dolmatoff), como o Litoral Caribe, como tinham sido designados
institucionalmente. Duque Gmez, que seria Diretor do ICAN e reitor da Universidade
Nacional de Colmbia explorava mais temticas da histria e antropologia (de
arqueologia histrica, se usar vocabulrio adequado) nacionais do que as arqueolgicas
que lhe caracterizavam e competiam.
O marco histrico, o mtodo pedaggico, como alvos principais de estudo da
disciplina j tinham sido traados e identificados pelos membros da Academia de
Histria desde a primeira dcada do sculo XX. A arqueologia explorava o passado
pr-colombiano segundo o esquema que tinha sido ensinado aos colombianos desde
22 http://www.icanh.gov.co/grupos_investigacion/antropologia_social/publicaciones_seriadas_antropologia/revista_colombiana_antropologia/8716
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As Valdez (2004) points out, social archaeology will not make any progress as long as it
thinks of itself as a national or Latin American school of thinking closed to world
contributions, or as long as it considers the works produced outside a certain group of
colleagues or even worse, outside Latin America as reactionary and colonialist. There
will be no Marxist archaeology without a deep critique of culture-history and cultural-ecology; without a serious and committed study of the archaeological record. Otherwise, every
time we would like to discuss theory or the correct way to do things in archaeology we
will read the works of social archaeologists, but every time we would like to learn more
on the pre-Hispanic past we will turn to other sources. And that is a luxury we cannot afford
(LANGEBAEK apud FUNARI, ZARANKIN e SALERNO 2009: 21).
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
ARQUEOLOGIA DA
REPRESSO E DA
RESISTNCIA E SUAS
CONTRIBUIES NA
CONSTRUO DE
MEMRIAS
Jocyane R. Baretta
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
ARQUEOLOGIA DA
REPRESSO E DA
RESISTNCIA E SUAS
CONTRIBUIES NA
CONSTRUO DE
MEMRIAS
Jocyane R. Baretta1
RESUMO
A temtica a ser abordada neste trabalho est inserida no campo da Arqueologia da
Represso e da Resistncia e a sua relao com a construo de memrias materiais e de
memrias coletivas. Estas so memrias advindas de situaes traumticas geradas nos
regimes de governo militar, entre os anos 1960 e 1980 - na Amrica Latina, em especial
no Brasil. A inteno elaborar reflexes sobre as maneiras como so construdas
memrias coletivas e materiais, de modo que estas no se tornem meras lembranas de
fatos ocorridos e congelados no passado.
Palavras-chave: Arqueologia da Represso e Resistncia memrias materiais
memrias coletivas
ABSTRACT
The topic to be addressed in this paper is embedded in the field of Archaeology of
Repression and Resistance and its relationship with material and collective memories.
These memories arise from traumatic situations during the military government
between 1960 and 1980 - in Latin America, particularly in Brazil. The intention is to
develop reflections on the ways in which collective memories and materials memories
are constructed aiming that they do not become mere memories of facts, frozen in the
past.
Keywords: Archaeology of Repression and Resistance - materials memories - collective
1 Mestranda do Programa de Ps Graduao em Histria Cultural UNICAMP, bolsista Capes. Contato:
[email protected]
JOCYANE R. BARETTA
memories
RESUMEN
El tema abordado en este artculo integra el campo de la Arqueologa de la Represin
y de la Resistencia y su relacin con los recuerdos materiales de construccin y las
memorias colectivas. Estos son los recuerdos que surgen de situaciones traumticas
que surgen en los sistema de gobierno militar entre 1960 y 1980 - en Amrica Latina,
particularmente en Brasil. La intencin es desarrollar la reflexin sobre las formas
en que se construyen colectivamente los recuerdos y materiales de manera que no se
conviertan en meros recuerdos de hechos y congelados en el pasado.
Palabras clave: Arqueologa de la represin y resistencia - recuerdos Materiales memorias colectivas
APRESENTAO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o processo de construo das
memrias traumticas relativas aos perodos ditatoriais na Amrica Latina, em especial
no Brasil (1964/85), e como a Arqueologia da Represso e da Resistncia pode colaborar
nesse processo.
No primeiro momento, apresento uma reflexo sobre a construo das memrias
coletivas e das memrias materiais. A seguir, exponho o levantamento sobre os estudos
j realizados sobre o tema na Amrica Latina e no Brasil, pensando como essas
memrias esto sendo abordadas e trabalhadas. A partir de ento, abordo as Ditaduras
na Amrica Latina (1960/85) e como as polticas de memrias que esto sendo
desenvolvidas e de que modo elas contribuem efetivamente nessa construo. Por fim,
discuto sobre a Arqueologia da Represso e da Resistncia e como esta vertente de
pesquisa arqueolgica pode colaborar na construo de conhecimento sobre o passado
ditatorial e desenvolver o seu carter tico enquanto uma cincia poltica e social.
MEMRIAS COLETIVAS
No prefcio do livro A memria coletiva de Maurice Halbwachs, Jean Duvignaud
descreve sobre as diferenas entre memria histrica e memria coletiva:
L situa-se, em Halbwachs, uma notvel distino entre a memria histrica, de um lado,
que supe a reconstruo dos dados fornecidos pelo presente da vida social e projetada no
passado reinventado; e a memria coletiva, de outro, aquela que recompe magicamente
o passado. Entre essas duas direes da conscincia coletiva e individual desenvolvem-se as
diversas formas de memria, cujas formas mudam conforme os objetivos que elas implicam
(HALBWACHS, 2004: 15).
A busca de uma definio sobre memria coletiva levou-me a entender que existem
mltiplas formas de constituio de memrias, sejam elas pessoais ou coletivas, que
elas no so fixas e que no esto dadas no passado espera de um resgate. Entendo
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repressivo na Argentina. A autora elabora uma reflexo sobre essa documentao que,
segundo ela, passou por trs momentos diferentes. Sendo o primeiro imediatamente
aps o trmino da ditadura Argentina, em 1983, quando as narrativas, os testemunhos
e autobiografias tinham um carter denunciativo e muitas acabaram se tornando provas
judiciais. Em um segundo momento, outras memrias foram construdas no cinema,
nas artes e na literatura com diferentes gneros -, com a inteno de recuperar a
militncia e escrever a sua histria. No terceiro momento, as autobiografias aparecem
com um carter autocrtico, de autoconhecimento e de transformaes em relao ao
trauma.
No Brasil, Rago (2010), em Memrias da Clandestinidade: Crimia Alice de
Almeida Schimidt e a Guerrilha do Araguaia, realizou uma entrevista com a exguerrilheira e trabalhou o relato sobre a construo das memrias de Crimia de forma
subjetiva, de modo que todo o trauma relatado por ela foi elaborado e transformado em
experincia, o que gerou uma fala com propsito poltico. Crimia criou suas estratgias
de resistncia durante o perodo da ditadura e, posteriormente, ao narrar sua histria,
rompe com o machismo sofrido por ela (tanto da esquerda quanto da direita) e com a
opresso da ditadura3.
Rosa (2009) analisou as cartas escritas pela brasileira Flvia Schilling, que ficou
presa no Uruguai por oito anos, entre 1972 e 1980. Os documentos foram interpretados
por Rosa como um dispositivo de resistncia. Apoiada no pensamento de Foucault
(2006), ela analisa os escritos de Flvia como uma maneira de resistncia e o ato de
escrita auxiliava a manter sua fora de devir4. Apesar da densidade de sua escrita, Flvia
demonstrava o no esvaziamento provocado pela violncia vivida na priso, pelo tempo
que ficou no isolamento, por todas as tentativas dos torturadores em desestrutur-la
enquanto pessoa.
As anlises sobre a produo bibliogrfica baseadas nas memrias traumticas
desde o perodo de transio dos regimes ditatoriais para as democracias na Amrica
Latina demonstram a relevncia desse tipo de trabalho. importante pensar sobre essa
produo e problematizar a forma com que essas memrias so construdas, de modo
que elas sirvam para compreender o que se est querendo dizer sobre esse passado e
quais intenes esto propostas nessas narrativas, tanto como produo de conhecimento
quanto ao social para que situaes como essas nunca mais voltem a acontecer.
MEMRIAS MATERIAIS
O conceito de memria material proposto por Halbwachs (2004) compreende que
ela sempre estar inserida no espao.
Assim, no h memria coletiva que no se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espao
uma realidade dura: nossas impresses se sucedem, uma outra, nada permanece em nosso
esprito, e no seria possvel compreender que pudssemos recuperar o passado, se ele no
3 Ver mais em: Gnero, feminismos e ditaduras no cone sul. Ilha de Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2010.
4 Devir no sentido de no se abandona o que se para devir outra coisa (imitao, identificao),
mas uma outra forma de viver de sentir assombra ou se envolve na nossa e a faz fugir. Ver mais em:
http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/wp-content/uploads/2010/05/deleuze-vocabulariofrancois-zourabichvili1.pdf. Visitado em novembro de 2013.
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se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca (HALBWACHS, 2004: 150).
Qual o propsito de tudo isso? Pensando que de fato somos socialmente exigidos
a arquivar partes da nossa vida, como aqueles comprovantes de pagamentos, ou ainda,
mesmo por uma questo pessoal, como montar lbuns de fotos de um filho ou do
casamento, se est reconstruindo narrativas. Essas exigncias acabam aos poucos
compondo uma histria pessoal, e essa materialidade que foi juntada expressa e faz a
conexo do presente com o passado e que fruto de escolhas.
Memria e esquecimento so construes sociais, continuamente elaboradas e reformuladas. Este processo tem lugar no marco de outra construo social e cultural mais ampla: a
produo social do tempo. Sobre esse cenrio da nossa concepo particular de tempo, a
memria e o esquecimento, o presente e o futuro atuam e se ordenam como smbolos dessa
grande obra da ao coletiva que chamamos de histria (JELIN & KAUFMAN, 2006: 17).
sobre o espao que se ocupa ou que se teve acesso, bem como a sua materialidade, que a imaginao e o pensamento so capazes de construir as lembranas ou parte
delas. Nesse lugar de criao onde as imagens espaciais desempenham um papel na
memria coletiva (Halbwachs, 2004: 139), ou seja, as imagens espaciais alm de
possibilitarem a elaborao de memrias, elas no devem ser entendidas como algo
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fixo, pois podem mudar de acordo com as circunstncias em que so lembradas, individual ou de forma coletiva.
Portanto, as memrias podem ser construdas com auxlio da materialidade e do
espao que nos cerca. Considerando que elas so culturalmente construdas e (re) significadas cotidianamente de modo a construir narrativas, podemos entender as condies
histricas para o surgimento de determinadas lembranas, bem como as relaes entre
pessoas e objetos. Nesse mbito que Arqueologia da Represso e da Resistncia, sob a
perspectiva da Arqueologia do Passado Recente ou Arqueologia Contempornea aponta um novo caminho, que democrtico e com distintas possibilidades de construo
dessas memrias.
DITADURAS NA AMRICA LATINA (1960/80) E AS POLTICAS DE MEMRIAS
A histria das ditaduras Latino Americana teve seus primrdios nos contextos da
Guerra Fria, indiretamente sobre as experincias dos EUA na Guerra da Coria (1945)
e a sua derrota na Guerra do Vietn (1954) como reflexo a bipartio do mundo entre
capitalistas e socialistas. A Revoluo Cubana (1959) foi reconhecidamente um dos
processos histricos definitivos para a instaurao das ditaduras na Amrica Latina5.
A insurgncia dos governos militares a partir de golpes de Estado na inteno de no
permitir que os ideais comunistas - que se espalhavam rapidamente -, chegassem revoluo de fato. Esse regime de governo autoritrio foi marcado por desaparecimentos,
prises, sequestros e violncia contra aqueles que eram considerados inimigos do
Estado. O Brasil foi pioneiro nos requintes de crueldade para obteno de confisses
daqueles que estavam detidos. O aparato repressivo brasileiro serviu de exemplo para
os outros pases do Cone Sul.
Em 2014, completou cinquenta anos do Golpe de Estado no Brasil. So cinquenta
anos de silncios e dos familiares em busca dos seus filhos e irmos desaparecidos du
rante a ditadura. De maneira prtica, ficam duas questes: existem polticas pblicas
de memria que vm sendo desenvolvidas tanto no Brasil como nos outros pases da
Amrica Latina? Como se daria a elaborao de memrias traumticas a partir de polticas de memria? Entendendo aqui por polticas de memria como as aes polticas
que afetam de modo direto a produo das memrias, e que possuem objetivos bem
definidos.
5 HOBSBAWM, E. J. A Era dos Extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. 2. ed. So Paulo: Companhia
das Letras, 1995.GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Histria Contempornea da Amrica Latina:
1960-1990. 2. ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.
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Leonor Arfuch (2013) defende a ideia que chegada a hora de se discutir essas
polticas pblicas da memria. Ela prope que sejam instaurados locais de memria e
monumentos, a abertura dos locais onde houve represso e tortura, os espacios srdidos del horror (Idem: 79), como os centros clandestinos de deteno, os campos
de concentrao e extermnio que, muitas vezes, estavam implantados no corao das
grandes cidades, separados apenas por um muro da sua vida cotidiana.
Para Lechner & Gell (2006: 22) ao escreverem sobre as polticas de memria no
Chile, entendem que toda sociedade possui uma poltica de memria mais ou menos
explcita, isto , o marco de poder dentro do qual (ou contra o qual) a sociedade elabora
as suas memrias e esquecimentos. Os autores demonstram que as organizaes, os
grupos e familiares que lutam por suas memrias para que elas no sejam esquecidas e
que possam ser reconhecidas, tm papel ativo na construo das polticas de memria.
Estas envolvem muitas questes poltico-sociais que do forma ao modo como a sociedade v e entende o seu passado.
No Brasil, as polticas de memria compreendem iniciativas da sociedade na forma de grupos e familiares e por aes governamentais. Aes como abertura (mesmo
que parcial) dos arquivos da ditadura; a Lei de Acesso Informao; as expedies de
buscas por seus desaparecidos polticos, a formao das Comisses da Verdade e os
julgamentos de torturadores marcam o incio de uma nova e longa jornada de esperana
por justia para com a memria daquelas pessoas que por seus ideais perderam a vida6.
ARQUEOLOGIA DA REPRESSO E DA RESISTNCIA
Quando se comea a pensar na relao entre a cultura material e as pessoas, plausvel a possibilidade se fazer uma anlise por meio arqueolgico. A cultura material
uma denominao bastante utilizada pela arqueologia e refere-se ao que, no decorrer
do texto, era chamado apenas de materialidade, ou seja, tudo aquilo que foi produzido
RI,1988, 2005; FUNARI & ZARANKIN, 2009) e manipulado pelo ser humano.
Os autores Buchli & Lucas (2001), Ian Hodder (2001), Harrisson & Schofield
(2009), Moshenska (2008 e 2009), Gonzlez-Ruibal (2008 e 2012) defendem a ideia
de que a Arqueologia permite trabalhar com perodos de tempos menos recuados, neste
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1980), organizado por Funari, Zarankin e Reis (2008) e Arqueologia Direito e Democracia tambm organizada por Funari et all. (2009). Na primeira obra, dentre os
diferentes autores latino americanos, h o texto escrito por Funari e Oliveira (2008)
que trata da Arqueologia do conflito no Brasil e aponta, inicialmente, o desinteresse por
parte dos pesquisadores nessa temtica. Demonstra os esforos para formao de equipes forenses para busca dos desaparecidos polticos do Brasil, o que ocorreu no ano de
1992, atravs do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. As buscas aconteceram no Cemitrio
Ricardo Albuquerque, no Rio de Janeiro, sem xito por parte da equipe. Em seguida,
os autores escrevem sobre o potencial para pesquisas nessa rea no Brasil. Na segunda
obra, Funari et al. (2009) publicam um compndio com nmero maior de textos sobre
o tema. Monteiro da Silva (2009) discorre a cerca dos primrdios da arqueologia forense no Brasil, apontando a importncia da disciplina em contextos criminais. Funari
e Carvalho (2009) escrevem sobre as perspectivas e o potencial da arqueologia forense
enquanto arqueologia pblica, e ainda, o artigo escrito por Soares (2009) sobre Arqueologia e justia de transio no Brasil.
Inserida na temtica da Arqueologia da Represso e da Resistncia no Brasil, a
pesquisa de mestrado que desenvolvo junto Unicamp, constitui um levantamento dos
locais onde houve represso e torturas, bem como de locais utilizados pelo aparato repressivo entre os anos de 1964/1985, em Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul. A
princpio, se acreditava na existncia de aproximadamente 18 locais, porm, iniciadas
as pesquisas nos processos de indenizao poltica7 e nos pronturios dos presos polticos do DOPS/RS8, como dado prvio, esse nmero saltou para 40 locais. Esses lugares
compreendem espaos que serviram para deteno e tortura, como quartis, presdios,
escolas, delegacias; um Centro Clandestino de Deteno e Tortura e tambm hospitais,
utilizados para atendimento mdico dos presos. Aps a concluso do levantamento, a
inteno elaborar mapas temticos sobre esses lugares e fazer uma anlise comparativa com base na Arqueologia da Arquitetura do CDT - Centro Clandestino de Deteno
e Tortura e de um dos estabelecimentos prisionais, o da Ilha do Presdio. O principal
objetivo desta pesquisa colaborar na construo de memrias materiais sobre o perodo na cidade, de modo a tornar pblico o que um dia se passou nesses locais. Estes so
apenas alguns dados preliminares da pesquisa que est em andamento.
A possibilidade de se construir histrias com base nos vestgios presentes na materialidade da represso demonstra a importncia de estudos arqueolgicos no mbito
7 Acervo do Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul.
8 DOPS/RS - Acervo Contra Ditadura do Museu dos Direitos Humanos do Mercosul/Arquivo Histrico
do Rio Grande do Sul.
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
O VERMELHO E O
NEGRO:
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
O VERMELHO E O
NEGRO:
RAZES COLONIAIS DO UNIVERSO
CONCENTRACIONRIO DO GENERAL FRANCO
Pedro Pablo Fermn Maguire1
RESUMO
As fases finais da rede Nazista na Segunda Guerra Mundial predominam nas imagens
mais frequentes sobre campos de concentrao. Mas, isolando alguns dos seus elementos conceituais, lxicos e materiais, podemos encontra-los em meio a contextos coloniais. O militarismo e o estado de exceo fornecem tambm algumas das condies
nas quais esses elementos ou prticas geralmente associadas declarao de inimizade,
adquiriram um carter massivo.
Palavras-chave: campo de concentrao; barraco; escravido.
ABSTRACT
The final stages of the Second World War Nazi network of concentration camps are predominant in contemporary imageries of concentration camps. Still, if we isolate some
of these networks conceptual, lexical and material elements we can easily trace back
their roots in colonial contexts. Militarism and the state of exception have also tended to
provide some of the conditions where these elements or practices- generally associated
to the declaration of enmity- have acquired a massive scale.
Keywords: concentration camp; barracks; slavery.
RESUMEN
Las fases finales de la red Nazi en la Segunda Guerra Mundial predominan en las imgenes ms frecuentes sobre los campos de concentracin. Pero, aislando algunos de
sus elementos conceptuales, lxicos y materiales, podremos encontrarlos en medio de
contextos coloniales. El militarismo y el estado de excepcin proporcionan tambin
algunas de las condiciones en las cuales estos elementos o prcticas generalmente aso-
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caso dos campos de concentrao franquistas, isso aconteceu antes do apogeu da rede
concentracionria nazista e do sistema Gulag sovitico. Nas seguintes pginas explorarei algumas das prticas legais, espaciais e materiais empregadas anteriormente e de
maneira dispersa em contextos coloniais e que, juntas, se materializaram nos campos
de concentrao franquistas durante a Guerra Civil Espanhola.
1. CUBA: OS DEPSITOS, O BARRACNE A RECONCENTRACIN
Vrias prticas extremamente agressivas com os corpos dos concentrados nos campos franquistas tinham aparecido antes nas colnias. A identificao compulsria, muitas vezes inscrita contra a prpria vontade, a concentrao segregada em determinadas
reas e o depsito em barraces aparecem no espao urbano e em determinados tipos de
fazenda altamente industrializados, no universo da escravido em Cuba. Uma parte importante da economia cubana j era baseada na explorao de escravos durante o sculo
XVIII. Baseado nos dados de Lpez de la Vega Valds (identificao do personagem), o
historiador e arquelogo cubano Gabino de la Rosa calcula em 6 milhes o nmero de
africanos introduzidos no Caribe entre os sculos XVI e XIX (LPEZ VALDS apud
DE LA ROSA, 2012). A revolta antiescravista no Haiti no final do sculo XVIII trouxera uma intensificao da economia escravocrata em outras reas do Caribe, Amrica
do Sul e do Norte. Desde 1790, foram introduzidos na ilha de Cuba mais escravos do
que durante um sculo e meio anterior (CUBRA VICHOT, 2012). O estudo de De La
Rosa sobre as tatuagens de escravos cubanos situa essa prtica de inscrio como uma
resposta necessidade de identificar os escravos com as propriedades dos donos dos
engenhos (DE LA ROSA, 2012). As autoridades coloniais, os donos dos engenhos e os
caadores usavam as tatuagens para afirmar a titularidade sobre os escravos e garantir
o pagamento dos impostos sobre eles.
Junto com as tatuagens, a identificao tambm se utilizava de depsitos. Esses
prdios centralizavam os escravos, e foram gerenciados por diferentes famlias em sua
longa histria. Mas foi a Junta de Fomento, organismo real, que construiu o maior depsito de La Habana. Ele estava situado no bairro de Cerro, no centro de La Habana e
contava com vrios vigilantes, um mdico e um encarregado das finanas. Os cativos
eram expostos publicamente naquele grande prdio e identificados por intermdio das
tatuagens (carimbos) sobre os seus corpos. A mesma lei que previa a construo do
depsito de Cerro em 1800 prescrevia que qualquer negro que no conseguisse ser
identificado podia acabar preso dentro desses estabelecimentos. Os depsitos geraram
registros cuidadosamente anotados (DALTON, 1967).
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toda uma estratgia de controle social, um complexo arquitetnico e industrial. O barracn era um grande prdio de planta quadrada, com uma nova localizao da cozinha
no centro do ptio e a mudana de materiais. A madeira dos bohos termo que passa
a designar s o reduzido espao para dormir foi trocada pela pedra e pelo ladrilho,
ficando s para as cercas que, em meados de 1860, deviam ser feitas em arame de espinho (Op. Cit., 1978). As sociedades de donos de engenhos promoveram estudos que
prescreviam tambm a distribuio de outros elementos que faziam dos barracones
unidades cada vez mais autossuficientes. Lojas, casas para o criador dos bois ou para
os capatazes, e eventualmente reas para chineses coolies ou escritrios para homens
livres encarregados de funes administrativas. Esses manuais eram ilustrados com
gravuras de alguns dos artistas mais importantes da ilha, como Eduardo Laplante. Entre
os elementos arquitetnicos, Moreno Fraginals destaca tambm o emprego de diversos
referentes visuais. Vrios campanrios, torres, etc. marcavam o tempo e marcavam o
tempo do trabalho e o espao dos engenhos a longa distncia.
A RECONCENTRACIN
A luta pela emancipao continuou se entretecendo na ilha com os diferentes grupos sociopolticos em formao no sculo XIX: reformistas dentro do Imprio espanhol, anexionistas com os Estados Unidos e independentistas. A poltica impositiva e
econmica das autoridades coloniais, junto com sua incapacidade de articular reformas
polticas e sociais efetivas continuavam empurrando cada vez mais setores para posies independentistas. A abolio misturava-se com a luta independentista, segundo prope com cada vez mais frequncia a historiografia sobre Cuba. Por exemplo, o
historiador e divulgador Julio Cubra, em seu Breve Historia de Cuba (2012), destaca
o exemplo de Carlos Manuel Cspedes Castillo. No dia 10 de outubro de 1868, o advogado da cidade de Bayamo proclamou a Independncia de Cuba e simultaneamente
libertou os escravos do seu prprio engenho. As cidades menores de Camaguey e las
Villas secundaram o levantamento e tanto grupos de voluntrios contra a Independncia
quanto o exrcito imperial espanhol reagiram, tendo como sequncia uma guerra de 10
anos; depois da guerra, a ilha continuou a fazer parte da Espanha.
A escravido foi formalmente abolida pelo governo colonial da Espanha em Cuba
em 1886, embora nas grandes exploraes rurais os proprietrios continuassem exercendo um forte controle sobre os movimentos dos seus empregados. Os conflitos sociais e polticos continuaram crescendo. Alguns dos grupos partidrios da Independncia aproximaram-se de setores populares e operrios. Ao mesmo tempo, um processo
de militarizao atingiu tanto essas organizaes revolucionrias quanto o governo co-
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nicamente.
Os relatrios da ICCP constituem uma valiosa fonte para a compreenso da concepo de Pinillos sobre suas responsabilidades. Depositados no AGMAV2 (Archivo
General Militar de vila) os documentos descrevem a acumulao de prisioneiros em
prdios improvisados como um problema grave, magno e urgente; um problema que
exigia uma atenciosa colocao e estudo. Esse argumento da ICCP a sua prpria
especial qualificao percorre todas as comunicaes e acompanha o conjunto da
proposta do projeto social para os campos. A qualificao especial era a base de sua
prpria idoneidade para resolver o problema, para gerenciar a nova vida que surgia
nesses novos lugares. Assim, a ICCP falava nesse documento das classes desses indivduos, e do seu nmero, mas tambm da sua categoria, que devia ser esclarecida.
Enfatizava-se tambm a ideia de um regime especial e especfico, j fortemente caraterizado pelos trabalhos forados. Alm da ideia de classificao, a ICCP ocupava-se das
questes oramentais, especialmente da adaptao dos espaos para essa nova vida.
Mas comea a estabelecer conexes mais especficas, mais expressas, entre essa nova
vida e os espaos concretos onde ela iria se desenvolver. Junto com o critrio enfatizado
da urgncia, e o compartilhado dos custos reduzidos e rapidez, as relaes que a ICCP
props comearam a ter uma traduo espacial, arquitetnica.
Junto com mosteiros e escolas, os prdios industriais galegos forneciam ptios centrais onde se tornava fcil identificar, controlar e julgar. Sobre essa paisagem, projetavam-se questes sobre o regime ao qual os presos iam estar submetidos. Se ele ia ser
celular ou de aglomerao sendo as condies de sua vida dependentes destas e de
outras categorias. A especificidade da vida a ser gerenciada no interior exigia algumas
transformaes materiais nos prdios, que deviam ser detalhadas em materiais e lugares
que veiculassem as relaes necessrias entre os presos. Dependendo dessas relaes
a serem criadas com eles e entre eles, a ICCP projetava condies especficas nos
edifcios. E tambm construes e lugares especficos: a sua distribuio em grupos,
por exemplo, podia exigir recintos interiores de separao; as suas atividades, ptios
ou espaos livres reservados para passeios e exerccios.
Assim, os campos de concentrao foram os primeiros lugares adaptados ex novo
para conter os inimigos presos, a primeira soluo arquitetnica especfica da ICCP
para o problema dos prisioneiros. Nada traduzia a novidade da soluo arquitetnica que a instituio propunha como os barraces que props construir no Penal Del
2 As citaes aqui mencionadas procedem do citado arquivo, das carpetas e folhas AGMAV,
C. 2324, L. 46BIS, Cp. 1-12 e Documento AGMAV, C. 2330, L.57, Cp. 48-2. J obarracn
procede de AGMAV, C. 2329, 53, 16, 13.
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Dueso, adaptveis a qualquer lugar e que reproduziam as condies timas de habitao que deviam imperar em um campo.
A regio Norte de Espanha em geral, durante os anos 1937 e 1938, e a Galcia em
particular fornecem um ponto crtico no desenvolvimento tecnolgico dos campos de
concentrao franquistas. Junto com os barraces, foram prescritas outras normas como
a necessidade de colocar no centro dos ptios e em posio bem visvel a bandeira da
Espanha. Frente a ela deviam se ler periodicamente alguns dos artigos do Cdigo de
Justia Militar. No interior daqueles ptios comearam algumas das prticas que depois
viraram frequentes no exterior dos campos, como a saudao romana, os trs vivas a
Franco, etc. que continuaram nas escolas e lugares pblicos, inclusive depois do fechamento dos ltimos campos, em 1947.
CONSIDERAES FINAIS
difcil calcular o nmero exato de mortos em longa durao, mas no final da
Guerra Civil Espanhola, cerca de 277.000 pessoas viviam encerradas em campos de
concentrao e 90.000 trabalhavam na rede de trabalhos forados que eles ajudaram
a articular (RODRIGO, 2008 apud GONZLEZ-RUIBAL, 2011: 57). Pelos campos
passaram por volta de 500.000 prisioneiros e as condies de vida neles mataram de
fome, enfermidades infecciosas e agresses fsicas.
A considerao de inimigos da Nova Espanha em construo pelos franquistas
propiciou uma insistente fabricao da imagem dos republicanos como vermelhos. A
interveno da Unio Sovitica foi uma consequncia e no uma causa da Guerra Civil Espanhola, e o sucesso do Partido Comunista Espanhol veio da sua capacidade de
organizao da oposio democrtica contra a ditadura e depois da Guerra. Estudando
as polticas de memria da Espanha franquista e ps-franquistas, a antroploga Layla
Reinshaw insiste no carter quase racial adquirido pela categoria dos vermelhos (p.
62). Reinshawa prope como um equivalente estrutural do termo negros nas colnias
da Espanha, onde a cor serviria como um pretexto para tentar introduzir no sangue do
outro uma condio inferior. Podemos considerar os campos de concentrao como
lugares de produo em massa desse estigma que foi o vermelho. Os campos eram
os primeiros lugares especificamente desenhados para a identificao, a classificao,
a conteno e a agresso dos vermelhos para as suas vidas de segunda categoria. A
condio estendia-se a familiares, amigos e bairros inteiros, marcando uma procedncia supostamente subordinada. Sob a organizao tecnolgica da ICCP, as prticas de
identificao massiva, de concentrao, de punio e de trabalhos forados adquiriram
uma categoria massificada. Todas elas adquiriram um mbito especfico de desenvol-
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
ARQUEOLOGIA EM
CONTEXTOS DE REPRESSO E
RESISTNCIA:
A GUERRILHA DO ARAGUAIA
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
ARQUEOLOGIA EM
CONTEXTOS DE REPRESSO
E RESISTNCIA:
A GUERRILHA DO ARAGUAIA
Patricia Sposito Mechi1
Michel Justamand2
RESUMO
O artigo discute a abordagem interdisciplinar no estudo de contextos de represso e
resistncia, focando especificamente na contribuio arqueolgica para o desvendamento
das histrias ocultadas da ltima ditadura brasileira a partir do caso da guerrilha do
Araguaia. Para isso, so levantados alguns aspectos deste que foi um dos episdios mais
violentos do perodo, indicando temas identificados a partir da anlise das fontes e da
bibliografia disponvel, em que a arqueologia pode oferecer relevantes contribuies.
Palavras-chave: arqueologia; ditadura; represso; resistncia; guerrilha do Araguaia.
ABSTRACT
The article discusses the interdisciplinary approach to the study of contexts of repression
and resistance, focusing specifically on archaeological contribution to revealing the
hidden stories of the last Brazilian dictatorship, from the case of the Araguaias guerrilla.
In this regard, some aspects of this are raised, which was one of the most violent
episodes of the period, indicating themes, identified from the analysis of the sources
and the available literature, in which archeology can provide relevant contributions.
hotmail.com
yahoo.com.br
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escavaes, a cincia arqueolgica pode fornecer novos dados e dar voz a aqueles que
foram silenciados pela brutalidade da ditadura. Esse aspecto evidencia uma dimenso
democrtica da arqueologia; em contraponto sua origem opressora, atualmente ela
possui mecanismos que permitem desmontar as verses oficiais divulgadas pelos
regimes ditatoriais (FUNARI et alii, 2008).
A arqueologia, no tocante histria da ltima ditadura brasileira, com recursos
escassos, j atuou, por exemplo, nas escavaes realizadas no cemitrio Dom Bosco,
no bairro paulistano de Perus, onde existe uma vala clandestina, que continha mais de
mil ossadas sem nenhuma identificao, acondicionadas em sacos plsticos, que seriam
de indigentes; a vala ainda hoje objeto de estudos, em particular da Comisso da
Verdade de So Paulo. Outro caso importante em que a arqueologia atua na recuperao
dos desaparecidos na regio da guerrilha do Araguaia, que se apresenta a seguir com
maior detalhamento.
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guerrilha urbana era corriqueiro na regio: havia uma tolerncia para atraso aos pontos de
at 48 horas (MECHI, 2012: 208).
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O nome desse tipo de priso faz referncia guerra travada entre os Estados Unidos
e o Vietn do Sul, entre os anos de 1955 e 1975, perodo em que a guerrilha do Araguaia
tambm se desenvolvia. Trata-se de um tipo de priso no convencional, alm de ser
tambm um tipo de tortura que, sintomaticamente remete a outro episdio marcado por
violaes de direitos das populaes locais, que foi o caso da guerra do Vietn. Esse
buraco tambm j foi denominado pelos moradores de buraco de sal, referindo-se a
uma modalidade em que o fundo do buraco era revestido desse mineral. Na historiografia,
h menes de prises no convencionais em reas de conflito rural, o que denota que
este pode ser um caminho para compreender a represso populao camponesa para
alm da guerrilha do Araguaia e da ditadura. Outra referncia encontrada na Revolta
de Trombas e Formoso, ocorrida nos anos cinquenta no estado de Gois, em que as
prises eram feitas num caixote de madeira que cheirava a sangue (ABREU, 2002).
Alm das prticas repressivas, a arqueologia, especialmente a histrica, pode
contribuir para revelar aspectos pouco esclarecidos da dinmica da prpria guerrilha e
do dia a dia dos guerrilheiros. Sabe-se que os guerrilheiros montaram pontos de apoio
na mata, onde estocavam remdios, alimentos, tecidos, lonas, livros e at mesmo um
microscpio (S, 1990). Alguns pontos de apoio foram descobertos e destrudos pelos
militares; entretanto, no se sabe, at o momento, se esses materiais foram retirados
ou enterrados nos locais onde estavam. Outros pontos ainda no so conhecidos, pois
segundo as regras de segurana de guerrilha, em muitos casos, apenas o guerrilheiro que
montou o ponto de apoio sabia a sua localizao. Apesar das dificuldades em localizlos, estes vestgios podem lanar novas luzes sobre a guerrilha.
Da mesma forma, no se tem notcias que foram feitas escavaes nos trs
destacamentos guerrilheiros, nas regies de Faveira, Gameleira e Caiano, conforme
se v no mapa 1. Aqui se trata de outro flanco a ser explorado pela Arqueologia, que
pode se munir das indicaes dos moradores locais, como j tem feito nos casos de
violaes dos direitos humanos promovidos por agentes do estado. Poder-se-ia contar
tambm, como fonte, com Dirio de Maurcio Grabois, um extenso relato do dia a dia
da guerrilha, que se julgava perdido, mas que veio tona em 2011 (GABROIS, 2012).
O dirio cobre o perodo entre 12 de abril de 1972, quando ocorreu o primeiro ataque
do Exrcito, ao episdio do Chafurdo do Natal, em 25 de dezembro de 1973, quando
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seu autor foi assassinado juntamente com diversos outros guerrilheiros e considera-se
exterminada a guerrilha.
CONSIDERAES FINAIS
Procuramos levantar neste artigo alguns elementos da histria da guerrilha
do Araguaia que podem ser esclarecidos a partir de trabalhos arqueolgicos. de
fundamental importncia que se avance nos estudos dos vestgios materiais dos
episdios de represso e resistncia no perodo ditatorial e isto s poder ser feito
de forma profunda com a criao de equipes interdisciplinares, que contem com a
presena de arquelogos. Ao avanar nesses estudos, novas questes podem surgir e
novas interpretaes podem ser sugeridas para a anlise de outras fontes documentais,
inclusive as fontes escritas.
Desse modo, fica evidente que o esforo para esclarecer a natureza do contexto
repressivo institudo com a ltima ditadura e as formas de resistncia ela devem contar
com o recurso, de uma maneira mais sistemtica, dos estudos arqueolgicos. Sem eles,
torna-se difcil avanar na questo da garantia dos direitos humanos no pas e garantir
o direito memria e a verdade.
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
A PRESERVAO
ARQUEOLGICA E A
REDEMOCRATIZAO:
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
A PRESERVAO
ARQUEOLGICA E A
REDEMOCRATIZAO:
UM BREVE ESTUDO DE CASO LUSO-BRASILEIRO
Tobias Vilhena de Moraes1
RESUMO
Este artigo tratar de uma reflexo inicial sobre a trajetria de ideias e conceitos de Preservao Arqueolgica nas Misses Jesutico-Guaranis, localizadas no sul do Brasil e
em Mrtola, Portugal. A anlise concentrar-se- particularmente no perodo compreendido entre 1970 e 1990, caracterizado pelo fim de regimes autoritrios e a abertura
democrtica em ambos os pases. Sobretudo, busca-se compreender como se deu a
produo do conhecimento arqueolgico dentro de um contexto repressivo. Este artigo faz parte do projeto de Ps-Doutorado que venho desenvolvendo no Laboratrio
de Arqueologia Pblica Paulo Duarte (LAP/UNICAMP) financiado pela Fundao de
Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP).
Palavras-chave: Arqueologia Histrica; Preservao Arqueolgica; Patrimnio Cultural; Misses Jesutico-Guaranis; Mrtola; Redemocratizao.
ABSTRACT
This paper aims to mainly present the trajectory of ideas and concepts for the Archaeological Preservation of the material culture remainings in the Jesuit-Guarani Missions,
located in the south part of the Brazilian territory, and in Mertola, Portugal. The analises
will be concentraded in the period of 1970 and 1990, from the ditactorship and the redemocratisation in both countries. Above it all, we want to understand how the archaeological knowledge was produced during an oppresive regime.This paper is part of my
pos-doc research which has been developed at the Laboratory of Public Archaeology
Paulo Duarte (LAP/UNICAMP) and it is sponsored by So Paulo Research Foundation
(FAPESP).
Keywords: Historical Archaeology; Archaeological Preservation; Cultural Heritage;
1 Ps-doutorando LAP/UNICAMP/FAPESP e Arquelogo IPHAN-RS. Email para contato:
[email protected]
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Na Arqueologia latino-americana, principalmente aquela vinculada s obras de restauro, surgem diversos profissionais e instituies. Os profissionais de maior destaque
so Manuel Gmio (1883-1960), diretor da Escola Internacional de Arqueologia e Etnologia Americana, e Jorge R. Acosta (1904-1975), chefe da Seo de Preservao e
Conservao do Departamento de Monumentos Pr-Hispnicos do Inah, que trabalharam na escavao e restaurao de alguns dos grandes stios arqueolgicos mexicanos,
como Teotihuacn, Monte Alban e Tula (MONTES, 1998; PREZ, 1998).
Nesse contexto de expanso da atuao dos organismos responsveis pelas aes
de conservao e restauro, desenvolve-se a Arqueologia Histrica latino-americana.
Mais especificamente no Brasil, sua prtica ganha fora a partir de 1980, como
resultado da paulatina reconquista das liberdades pblicas e do declnio do arbtrio, primeiro com a Lei de Anistia (1979), depois com o relaxamento da censura e, finalmente,
com a volta de um regime civil em 1985. Um exemplo disso que nesse momento surgem e ganham fora projetos de escavao nas Misses Jesutico-Guaranis (FUNARI,
1994b e 2005; FUNARI & ORSER, 2007; IPHAN, 1998a e 1998b; ORSER, 1992;
GONALVES, 2002; SCHVELZON, 2003; SYMANSKI, 2009; FICO, 2004).
A GESTO DO PATRIMNIO ARQUEOLGICO MISSIONEIRO
Localizadas na regio sul da Amrica do Sul, as Misses foram palco de uma acirrada disputa territorial entre Espanha e Portugal, durante os sculos XVII e XVIII.
Ao mesmo tempo, marcaram uma das mais surpreendentes experincias histricas entre povos europeus e indgenas em solo americano. Um processo de contnua transformao cultural alterou para sempre o modo de vida dessas populaes sob a influncia
contnua das inovaes europeias, sem que a cultura tradicional indgena desaparecesse
completamente (BARCELOS, 2000; CURTIS, 1993; CUSTDIO, 1987 e 2002; FURLONG, 1937 e 1962; KERN, 1998; PESAVENTO, 1994; SHULZE- HOFER, 2008).
Os vestgios materiais daquela poca testemunham hoje as expressivas manifestaes culturais que ali ocorriam. Esculturas, cermica e arquitetura eram tratadas com
delicadeza, apuro e tcnica por religiosos e indgenas (CUSTDIO, 1987, 2002 e 2009;
GUTIRREZ, 1982, 1987 e 1992; STELLO, 2005; WEIMER, 1993).
Atualmente, as Misses Jesutico-Guaranis representam um sistema de bens culturais transfronteirios localizados nos territrios do Brasil, Argentina e Paraguai. Representam, sobretudo, um importante testemunho do processo de formao do territrio
sul-americano e das diversas relaes culturais entre europeus e povos nativos.
No entanto, quando observamos as primeiras aes dos rgos de gesto do patrimnio cultural, iniciadas no segundo quarto do sculo passado, boa parte dos trabalhos
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centravam-se em temas relacionados consolidao das estruturas arquitetnicas remanescentes (BRASIL, 1993 e 2006; CUSTDIO, 2002 e 2009; GUTIRREZ, 1982 e
1992; LEVINTON, 1998; MAYERHOFER, 1947; STELLO, 2005).
Uma das primeiras iniciativas para superar essa abordagem foram as escavaes
executadas por Fernando La Salvia em So Nicolau, no fim da dcada de 1970. O
trabalho coordenado pelo pesquisador decorreu de convnio firmado entre o Sphan e a
Subsecretaria de Cultura, Desportos e Turismo do Governo do Estado do Rio Grande
do Sul, com o objetivo de promover escavaes arqueolgicas nos remanescentes da
antiga reduo jesutico-guarani, na cidade de So Nicolau. Esse trabalho, uma
escavao ampla (cerca de 4.500 m2), no centro da cidade, pode ser considerado um
marco para a Arqueologia Histrica brasileira. Foram escavadas estruturas de igreja,
colgio, adega, casas de ndios, hospital, sistema de esgotos nos fundos da igreja, cabildo e habitaes prximas a ele (LA SALVIA, 1982 e 1983b).
No entanto, a falta de trabalhos de consolidao e estabilizao dos remanescentes
encontrados acarretou a perda de boa parte da rea escavada, expondo parte dos vestgios e estruturas s intempries e ao humana. As poucas imagens existentes sobre
os trabalhos ilustram esse problema. Pisos, colunas, canais dgua no foram abrigados
corretamente.
Posteriormente, o prprio La Salvia (1983a: 214) alertou que aquela escavao
deveria ter tido continuidade com a estabilizao dos remanescentes e um processo de
conservao dos pisos e evidncias, o que no se realizou, desconhecendo a causa
disso, mas afirmando que o ocorrido levara a um dano muito grande rea escavada
e praticamente sua perda. Esse fato gerou uma mudana de perspectiva nas prticas futuras de escavaes arqueolgicas.
Os limites impostos Arqueologia so identificados no apenas na regio missioneira, mas por todo o Brasil. Eles tambm no so um fenmeno exclusivo daquela
poca e, nos ltimos anos, emergiram como elemento de discusso em congressos e
seminrios, a partir de uma preocupao constante com [...] as consequncias sociais,
polticas e culturais do trabalho de Arqueologia (BARRETO, 2008: 48) e com o
papel da Arqueologia no campo do patrimnio cultural.
Em decorrncia dessas atividades, em 1983, o Sphan (rgo normativo), atravs
da FNPM (rgo executivo), levava Unesco a proposio de transformar o stio
missioneiro de So Miguel em Patrimnio Mundial. A articulao de arquelogos que
atuavam no estado pressionava por uma atuao permanente desses profissionais, em
um trabalho que deveria considerar uma ao definitiva e imediata nas regies urbanas
e agropastoris onde se encontravam os remanescentes (LA SALVIA, 1983a e 1983b).
Nesse mesmo perodo, a Arqueologia brasileira e a cincia mundial passaram por
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Poucos anos mais tarde, na pequena aldeia alentejana de Mrtola, entre 1978 e 1980,
desenvolveram-se escavaes com a participao de jovens da prpria comunidade, cujo foco principal eram os stios relacionados ao perodo de ocupao islmica.
Essa postura de trabalho consolidou-se como uma abordagem inovadora em Portugal, na poca, quando vrios projetos arqueolgicos e da rea de arte tinham como
principal foco o mundo cristo do perodo das navegaes (ALMEIDA, 1965; FABIO, 1989; MACIAS, TORRES 2001; MARTNEZ, 2003; TORRES, 2009; PALMA,
2012).
Em 1980, foi criada a Associao para a Defesa do Patrimnio de Mrtola
(ADPM), sob proteo do Partido Comunista Portugus, que assumiu a prefeitura local.
Ela tinha como principais objetivos inventariar, estudar, defender e valorizar o patrimnio local (MACIAS, TORRES, 2001; TORRES, 2009). Com o enfoque amplo, desde o
incio a multidisciplinaridade foi posta em prtica. A participao de etngrafos, arquitetos e bilogos foi fundamental para o crescimento do projeto.
Experincias inovadoras no mbito do teatro e da animao foram bem recebidas
pela comunidade (Fig. 2). O desafio principal do projeto, no incio, era sustentar sua
forma de trabalho em uma regio relativamente extensa (1.280 km2) e que enfrentava
um contnuo processo de desertificao humana, com a sada dos camponeses para
cidades ou aldeias maiores (MACIAS, TORRES, 2001; MARTNEZ, 2003; TORRES,
2009; PALMA, 2012).
Esse grupo de pesquisa que atualmente faz parte do Centro de Estudos Arqueolgicos das Universidades de Coimbra e do Porto conseguiu fomentar, ao longo
dos anos, o levantamento, anlise e pesquisa do patrimnio, propondo sua conservao
e salvaguarda e cooperando com entidades pblicas e privadas em aes cientficas ou
de promoo cultural e social.
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
CAMINHOS E DESCAMINHOS
NO ATLNTICO CIENTFICO:
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
CAMINHOS E DESCAMINHOS
NO ATLNTICO CIENTFICO:
ARQUEOLOGIA E ESTADO NOVO EM CONTEXTO
LUSO-BRASILEIRO
Rita Juliana Soares Poloni1
RESUMO
O presente trabalho busca comparar o desenvolvimento das pesquisas arqueolgicas
em Portugal e no Brasil, durante os governos ditatoriais denominados, nos dois pases,
por Estado Novo. Procurar perceber os dilogos internos prpria disciplina bem
como as relaes entre temas de pesquisa, investigadores, discursos oficiais e redes de
poder institudas no perodo.
Palavras-chave: Brasil, Portugal, Estado Novo, Arqueologia, nacionalismo, represso
ABSTRACT
The present paper aims to to compare the development of archaeological research in
Portugal and in Brazil, during the dictatorial governments so-called, in both countries,
by the Estado Novo. Seek to understand the internal dialogues of the discipline itself as
well as the relationships between research topics, researchers, official discourses and
networks of power established in the period.
Keywords: Brazil, Portugal, New State, Archaeology, nationalism, repression
RESUMEN
El presente trabajo tiene como objetivo comparar el desarrollo de la investigacin
arqueolgica en Portugal y en Brasil, durante los gobiernos dictatoriales llamados, en
ambos pases, por el Estado Novo. Trata de entender los dilogos internos de la propia
disciplina, as como las relaciones entre los temas de investigacin, investigadores,
discursos oficiales y las redes de poder establecidas en el perodo.
Palabras clave: Brasil, Portugal, Nueva Estado, Arqueologa, el nacionalismo, la represin
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da Nao, como ato poltico, negando a conexo entre o povo portugus e outros
ancestrais, Vasconcellos ir, com auxlio da lingustica, defender que Portugal seria
uma continuao da Antiga Lusitnia, sendo a lngua portuguesa fruto do natural
desenvolvimento da linguagem luso-romana. Neste sentido, Vasconcellos punha-se a
favor das ideias de Martins Sarmento (1833-1899), que tendo em conta suas escavaes
na Citnia de Briteiros e no Castro de Sabroso, povoados proto-histricos localizados
em Guimares, norte do pas, defendia a remota existncia dos lusitanos e a resistncia
da sua cultura ao domnio romano (FABIO, 1999: 93-94; FABIO 2011: 126-137).
Vasconcellos acabaria por assumir o cargo de conservador da Biblioteca Nacional
de Lisboa e passaria a dedicar-se a criar um acervo de antiguidades para compor um
novo projeto: o Museu Nacional de Etnografia que viria a se concretizar em 1893, sob
os auspcios de Bernardino Machado, ento secretrio das obras pblicas.
Obra de carter nacionalista, buscando evidenciar a tese da antiguidade remota
do povo portugus, ter seu poder acrescido pela criao da revista O Archelogo
Portugus, em 1895, e se constituir em importante instrumento de valorizao do
campo cientfico arqueolgico nacional.
Em 1929, Leite de Vasconcellos se aposenta e suas posies na Universidade e no
Museu passam a ser ocupadas por Manuel Heleno (1894-1970). Juntamente com ele,
Mendes Correia (1888-1960) e Verglio Correia (1888-1944), este ltimo professor da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sero as personalidades de destaque
no mundo da Arqueologia portuguesa da primeira metade do sculo XX (FABIO,
1999: 119-120). Enquanto o professor de Coimbra se dedicar escavao da cidade
romana de Conimbriga, publicao de obras no domnio da histria da arte e manter
uma carreira de distanciamento dos grandes conflitos de poder que marcaro o perodo,
o sucessor de Vasconcellos, que assumir o principal posto da investigao nacional,
marcar a sua carreira por um clima de forte disputa com Mendes Correia, esse, sem
dvida, um personagem com maior destaque no cenrio nacional e internacional.
Correia ocupar cargos de destaque, tanto no mbito acadmico quanto poltico,
como diretor do Instituto de Antropologia da Universidade do Porto, do Centro de
Estudos de Etnologia do Ultramar, do Centro de Estudos de Antropobiologia, do
Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, alm de presidente da cmara municipal
do Porto e deputado Assembleia Nacional entre 1945 e 1956. Assim, a carreira de
Mendes Correia ir consolid-lo como importante cientista e poltico do perodo,
tanto em carter nacional quanto internacional, relacionando seu prestgio pessoal a
uma vigorosa campanha para o desenvolvimento de investigaes antropolgicas e
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a esse, que representasse uma queda na grandiosidade do pas, deveria ser lembrado
(GOMES, 2006-2007: 205-208).
Nos dois casos, o papel da Arqueologia parece secundrio, de forma que, apesar da
importncia que as colnias tomam no regime, e a despeito das pesquisas arqueolgicas
realizadas no mbito das Misses Antropolgicas nos territrios ultramarinos, o projeto
poltico para as investigaes em cincias sociais ter a Arqueologia como contedo de
menor importncia no propsito de conhecer os indgenas do ultramar ou de valorizar
o passado da Nao.
ARQUEOLOGIA E ESTADO NOVO: O CONTEXTO BRASILEIRO
No caso brasileiro, o sculo XIX representa a contestao de um discurso arqueolgico que se pode classificar como nobilirquico, herdeiro do Primeiro e do Segundo
Reinados, perodo durante o qual a disciplina nasce no pas. Sob a gide desse discurso, as origens dos povos indgenas do territrio brasileiro passam a ser procuradas em
antigas migraes de povos mediterrnicos, tais como fencios, gregos e egpcios, ou
mesmo de navegadores europeus modernos, como os provenientes do norte da Europa,
como forma de justificar as origens nobres das elites nascentes (FERREIRA, 2009).
Esses antepassados nobres dos indgenas eram personagens idealizados da construo do passado do territrio, ao passo que os nativos do presente, eram vistos como
seres degenerados que tenderiam a ser absorvidos no corpo da nao. Nesse sentido, a
conquista de seus territrios passa a ser justificada pela sua inevitabilidade, e a interferncia cultural e poltica nessas comunidades como um smbolo inevitvel do progresso.
Essa construo discursiva tinha, entre outros seguidores, o apoio de Ladislau Neto
(1838-1894), diretor do Museu Nacional, que defendia a hiptese de que os antepassados dos indgenas sul-americanos seriam oriundos de migraes de povos asiticos
(FERREIRA, 2009).
No Museu paulista, dirigido por Hermann Von Ihering (1850-1930), por sua vez, as
ideias sobre temas indgenas eram ainda mais conservadoras. Para o pesquisador, filiado s teorias cientficas de fundo racista do perodo, tais como a hereditariedade racial
da inteligncia e do comportamento, e os discursos eugnicos, a poltica de extermnio
dos nativos matria defensvel, tendo sido inclusive objeto de artigo de sua autoria,
publicado no prprio Jornal do Museu Paulista. O mesmo pesquisador tambm estar envolvido em uma polmica com Ladislau Neto, acerca da origem dos sambaquis.
Enquanto esse ltimo pesquisador defendia, em concordncia com Peter Lund (1801-
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1880), que os sambaquis tinham origem artificial, ou seja, eram resultado de depsitos
humanos propositais, de restos alimentares e de sepultamentos, enviando, inclusive,
vrias misses com o propsito de recolher vestgios desses stios, Von Ihering defendia
que essas formaes tinham origens naturais em lugares antigamente ocupados pelo
mar. Tal opinio se coaduna, naturalmente, com a sua viso depreciativa da capacidade
intelectual dos indgenas e da complexidade das suas culturas (FUNARI: 2002: 138139; PROUS, 1992: 8).
Emlio Goeldi (1859-1917), ento diretor do Museu Paraense, que haveria de levar,
posteriormente, o seu nome, faz, em oposio abordagem nobilirquica de Ladislau
Neto, um trabalho que devedor de padres espaciais, tecnolgicos e estticos, buscando ressaltar as complexidades culturais nativas e reconstruir suas filiaes etnolgicas.
Com isso, se por um lado, ele rechaa a origem europeia dos indgenas, por outro lado,
permanece nos horizontes de uma cincia colonialista, no somente no que tange
anexao dos territrios nativos, que tambm defendia, mas tambm escolha geoestratgica dos locais de pesquisa, visando, por exemplo, o resguarde das fronteiras do
pas (FERREIRA, 2009).
As primeiras dcadas do sculo XX assistem a um aprofundamento das discusses
acerca da importncia dos povos nativos na constituio do povo brasileiro. No Museu
Nacional, sob a diretoria de Roquette Pinto (1884-1954), entre 1926 e 1935, os estudos
antropolgicos e arqueolgicos indgenas ganham destaque. O pesquisador estar, desde o incio da carreira, ligado aos estudos arqueolgicos. J em 1906, faz uma expedio cientfica aos sambaquis do litoral do Rio Grande do Sul que lhe ajudar a moldar
as suas concepes acerca da origem daquelas formaes. Roquette Pinto, seguindo
as teorizaes de Charles Wiener (1851-1913), adotar a corrente mista, que defende
a ideia de que tanto fatores naturais quanto antrpicos contriburam para a formao
daqueles stios. Dessa forma, os sambaquis poderiam ser divididos entre aqueles que
seriam fruto de processos ambientais, os que teriam nascido como resultado da acumulao fortuita de restos e outros, que seriam obras monumentais humanas (MUSEU
NACIONAL: 2007-2008; LIMA, 1999-2000).
Entretanto, ser no mbito da antropologia que as suas teorizaes ganham especial
destaque. Para Roquette Pinto, os brasileiros podiam ser divididos em tipos diversificados e sua variedade no era um sinal negativo de degradao das raas, mas sim uma
caracterstica positiva da nao. A partir das discusses da ento denominada moderna
antropologia fsica e inspirado, particularmente, nos princpios da escola alem de
Flix von Luschan, Rudolf Martin e Eugen Fischer, que negava a hierarquia entre as raas, Roquette Pinto argumentava que os defeitos atribudos aos brasileiros eram menos
caractersticas raciais que efeitos da m organizao poltica e social do pas.
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Baseado nos seus estudos, dividiu o povo brasileiro em quatro tipos antropolgicos
principais e argumentou que a miscigenao tenderia para o branqueamento da populao ao mesmo tempo em que os vestgios de sangue negro e indgena dariam aos tipos
brasileiros a necessria aclimatao ao meio ambiente nacional. Assim, se por um lado,
Roquette Pinto produz um discurso racial que visa construo da nacionalidade brasileira atravs da constituio do seu povo, por outro, a valorizao do elemento branco
em detrimento das outras raas que ele apontava como constituintes do corpo na Nao,
indica a permanncia do paradigma da inferioridade do indgena e do negro brasileiros
(SOUZA, 2012).
Durante a vigncia do Estado Novo, os principais personagens do cenrio arqueolgico e antropolgico nacional alteram-se. Entre 1937 e 1955, assume a diretoria do
Museu Nacional, Helosa Alberto Torres (1895-1977), que havia sido introduzida aos
trabalhos do Museu como estagiria das pesquisas antropolgicas de Roquette Pinto.
Helosa Torres far uma carreira de pesquisadora profundamente ligada arqueologia. Estudou sambaquis no litoral de So Paulo, stios cermicos tupi-guarani em Minas
Gerais, alm das suas celebradas pesquisas sobre a cultura Marajoara. Tambm exerceu
diversos cargos pblicos relacionados a temas culturais, tais como no Conselho Nacional de Proteo ao ndio, no Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, alm
de ter participado da criao da Fundao Nacional do ndio (MUSEU NACIONAL:
2007-2008).
Ainda durante o Estado Novo, passa a ocupar o cargo de diretor do museu Emilio
Goeldi, Carlos Estevo de Oliveira (1880-1946) e o museu paulista passa a ser dirigido por Afonso d E. Taunay (1876-1958). Estevo, nomeado interinamente diretor do
museu quando do Golpe de 1930, ir dirigir a instituio at o final do Estado Novo,
em 1945. Durante a sua direo, as pesquisas arqueolgicas tiveram grande desenvolvimento, em parceria com o Etnlogo alemo Curt Nimuendaj (1883-1945), e com a
arqueloga estadudinense Helen Palmatary, que tambm colaborou muito tempo com
o Museu. Nesse perodo os temas indgenas permanecem em destaque, sobretudo os
referentes cultura Marajoara e Santarm (CUNHA, 1989).
J Taunay, diretor do Museu Paulista desde 1917, direciona os seus esforos discursivos em uma direo diversa dos outros dois pesquisadores. Reformula toda a exibio
do museu, em razo da comemorao do centenrio da Independncia, transformando-a
completamente em uma glorificao da recm-criada figura histrica do bandeirante,
um dos pilares discursivos do Estado Novo. Tal figura servir para dar vulto s elites
do perodo e tambm para justificar as polticas desenvolvimentistas e de colonialismo
interno do pas, durante o perodo ditatorial (FUNARI, 2002).
Ainda no mesmo contexto do Centenrio da Independncia de 1922, fundado
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no Rio de Janeiro o Museu Histrico Nacional. Obra de Gustavo Dodt Barroso (18881959), um membro da elite nordestina que pretendia criar um espao de resguardo das
tradies do pas. Barroso, que tambm foi membro da Ao Integralista Brasileira,
imprimir ao museu uma viso estatal e militarista da histria do Brasil (BITTENCOURT, 2000-2001). A par disso, ser responsvel pela conduo de Angyone Costa
(1888-1954) ao cargo de professor do curso de arqueologia brasileira no Museu.
Angyone Costa ser mais uma figura de particular interesse no contexto arqueolgico do perodo. Ele produzir vrios manuais da disciplina, abarcando temas tais
como a arqueologia pr-colombiana, clssica e egpcia. Entretanto, seu tema de predileo ser, sem dvida, a arqueologia em contextos indgenas brasileiros. Obras como
Introduo Arqueologia Brasileira, publicado em 1934 (COSTA, 1980), Arqueologia Geral de 1936 (COSTA, 1936), Migraes e Cultura Indgena, de 1938 (COSTA,
1939), e Indiologia de 1943 (COSTA, 1943a), representam, assim, parte importante do
panorama da produo do campo arqueolgico brasileiro durante o Estado Novo.
No obstante a presena da Arqueologia e, particularmente, dos estudos de temas
indgenas, nesse perodo, sobretudo atravs da ao de importantes personagens como
Heloisa Alberto Torres, Carlos Estevo e Angyone Costa, a arqueologia, assim como no
caso portugus, no ser um campo privilegiado pelo regime ditatorial do perodo. Ao
contrrio dos estudos arquitetnicos e artsticos sobre o Barroco e, particularmente, da
obra de Aleijadinho, que sero amplamente valorizados, as pesquisas arqueolgicas
ocupam um lugar secundrio nos interesses polticos oficiais.
Assim, o Barroco passa a encarnar, em meio ao contexto ditatorial e modernista do
perodo, um forte smbolo do nascimento da cultura brasileira, da sua particularidade,
da sua diferenciao em relao metrpole. A sua riqueza estar justamente em sua
interpretao pouco rebuscada, comparada aos exemplares europeus dessa escola artstica, e no seu carter eminentemente mestio, quer em termos raciais, atravs do seu
smbolo maior, Aleijadinho, quer em termos culturais, atravs das influncias locais da
sua interpretao. Mas tambm um smbolo da obra civilizadora europeia, do poder
constitudo, conectando a jovem nao Europa (NOGUEIRA, 2005: 198-234). Assim,
se as pesquisas sobre temas indgenas prosseguem e se elas se inserem nas discusses
acerca da origem do homem americano, e, por conseguinte, do povo brasileiro, elas no
sero as escolhidas para representar os discursos oficiais nacionalistas e identitrios do
perodo, seno uma manifestao cultural que posiciona o Brasil na linha do tempo que
tem a Europa como personagem central.
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constituir desde o sculo XIX, assim como a importncia da arqueologia pr-histrica nesse contexto.
O uso de supostos smbolos germnicos antigos como a sustica ou as runas que simbolizavam a SS so
alguns entre os muitos exemplos do fortalecimento de tais ideias durante o governo Nazi (WIWJORRA,
1996: 173-179). Uma figura de grande importncia nesse perodo Herman Wirth (1885-1981). Seu
trabalho de interpretao de arte rupestre e de decorao cermica buscando perceber nesses vestgios
os indcios de uma cultura pr-histrica atlanto-nrdica que teria se espalhado pelo mundo criando novas culturas e tornando-se os antecessores dos germanos, denota o forte nacionalismo a que os estudos
pr-histricos estavam associados no perodo (WIWJORRA, 1996: 180-183). Algo semelhante acontecer Itlia, onde o forte apelo nacionalista vir a enfatizar o passado romano da Nao e ter papel
preponderante, sobretudo durante a decorrncia do regime fascista. Muitas iniciativas so tomadas nesse
perodo para glorificar o passado romano da Nao, como uma grande mostra sobre a Roma Antiga, a
recuperao de dois navios do Lago Nemi e os trabalhos realizados, entre 1928 e 1939, na rea do Frum
Romano e do Coliseu. Atravs dessa ltima interveno, Mussolini procurou manifestar a grandiosidade
do fascismo no interior do passado romano da cidade, com a construo da Via dellImpero, que cria
um conjunto em torno de edifcios emblemticos, como o Pallazzo Venezia, que sediava o escritrio do
prprio Dulce, a Baslica de Maxentius, o Altar da Ptria de Vtor Emanuel, o Coliseu e o Arco de
Constantino. Tal conjunto passar a constituir uma caminhada pela prpria histria da nao
ligando o perodo romano ao fascista, e favorecendo o discurso poltico do governo ditatorial
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Entretanto, percebe-se que as pesquisas arqueolgicas prosseguem, tendo em conta temas especficos.
Em contexto brasileiro, as discusses acerca dos indgenas, de suas origens e de
sua importncia na constituio da Nao prosseguem, como se pode atestar pelas discusses em torno da cultura Marajoara desenvolvida por Heloisa Alberto Torres e por
Angyone Costa, por exemplo.
Heloisa Torres defende abertamente que os marajoaras no seriam detentores de
uma cultura superior, o que se comprovaria somente se eles tivessem deixado outros
vestgios materiais correspondentes a uma cultura complexa, tais como construes de
blocos de barro cozido, por exemplo. Alm disso, ressalta que a cultura marajoara pode
ser comparada a outros grupos histricos amaznicos, possuindo elementos tpicos em
comum e constituindo com esses um quadro equilibrado (TORRES: 1940: VI-IX). Em
oposio, Angyone Costa defende que os responsveis pela fabricao da fina cermica marajoara ter sido um povo de mais adiantada cultura, mais hbeis e com melhor
gosto artstico em relao aos que posteriormente vm habitar a regio. Argumenta
que os Tupis puros presentes na margem esquerda do Amazonas, alm dos Aru e os
Neengaba, possuam vestgios de cultura adiantada quando da chegada dos europeus
Amrica. Chega mesmo a cogitar a viabilidade de se encontrar correspondncias entre
a autoria dos mounds da regio e povos da Flrida e do vale do Mississpi, nos Estados
Unidos. Mais especificamente, Costa aventa que a substituio de um primeiro grupo
de mulheres primitivas mais adiantadas culturalmente e a que se atribuiria a fabricao
da cermica mais rebuscada da regio, por outras brbaras, fruto de esplios de guerra e
escravido, teriam levado decadncia da fabricao louaria fina marajoara (COSTA,
1934 (1980): 75-89).
As duas argumentaes, a seu modo, constituem parte das discusses acerca da nacionalidade e do povo brasileiro, de suas origens, constituio e capacidade criativa. Ao
mesmo tempo, representam uma continuidade em relao s discusses desenvolvidas
dentro do campo da Arqueologia desde o sculo XIX. Entretanto, a valorizao do Barroco permanece em destaque durante o Estado Novo brasileiro, direcionando a construo do discurso oficial acerca da brasilidade e da valorizao do patrimnio nacional.
Nesse contexto, a escolha do tema indgena, no significa uma desconexo entre
os arquelogos do perodo e o contexto poltico do pas. Ao contrrio, seus principais
representantes mantero um dilogo claro com o governo ditatorial.
Em 1937, criada a Revista do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, como parte do contexto de fundao do prprio Servio e fruto da conciliao dos
(GUIDI, 1996: 111-112; GOMES, 2006-2007: 201-202).
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interesses governamentais com os discursos produzidos pela escola modernista nascente. Logo na sua primeira edio, Helosa Alberto Torres publicar um artigo intitulado
Contribuio para o Estudo da Proteo ao Material Arqueolgico e Etnogrfico no
Brasil. Nesse texto, ela discute a proteo s jazidas arqueolgicas, colees de museus e patrimnio de comunidades indgenas e neobrasileiras com risco de dissoluo. Alm disso, ela ser membro nato do Conselho Consultivo do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, desde a sua fundao, cargo vitalcio indicado pelo
prprio presidente (TORRES, 1937).
J a ligao de Angyone Costa, com o regime, fica clara, entre outros exemplos,
atravs da sua contribuio com a Revista Cultura Poltica. Esse peridico circulou
de maro de 1941 at outubro de 1945 e era a revista oficial do governo, diretamente
vinculada ao Departamento de Imprensa e Propaganda. Definia-se como uma revista
de estudos brasileiros, destinada a definir e esclarecer as transformaes socioeconmicas por que passava o pas. O prprio presidente Vargas enfatizou a importncia de
seu carter doutrinrio na construo das diretrizes do Estado Nacional.
Em 1943, Costa escreve para a Revista Observaes sbre a contribuio do ndio
na nossa formao (COSTA, 1943b). Texto praticamente anlogo quele publicado na
introduo do seu livro do mesmo ano, denominado Indiologia. Esse texto ressalta as
qualidades dos nativos na constituio do povo brasileiro numa tica em que prevalecem os elementos europeus da colonizao. Entre outras coisas, afirma ter o ndio ensinado ao branco muitas coisas e contribudo com este, sobretudo, no mbito do esprito,
ajudando a alegrar e confortar os primeiros emigrados, sobretudo, a partir da ao da
mulher indgena no domnio domstico.
Em contexto portugus, percebe-se um quadro semelhante que se exemplifica na
figura de Mendes Correia. Conforme citado anteriormente, ele ser, ao mesmo tempo,
cientista e poltico atuante durante o regime ditatorial e assim como outros colegas,
sobretudo relacionados s pesquisas arqueolgicas ultramarinas atrelar seus discursos
cientficos s diretrizes polticas do Estado, enfatizando a importncia estratgica das
suas pesquisas (THOMAZ, 2005).
Percebe-se, dessa forma, que os discursos cientficos produzidos por esses arquelogos, durante o Estado Novo, no podem ser desconectados daqueles produzidos, em
mbito oficial, pelo governo, ou o seu trabalho separado das redes burocrticas constitudas no mbito do prprio regime. Muito embora os temas estudados sigam um dilogo iniciado no sculo XIX sobre a natureza do indgena, sua capacidade intelectual
e complexidade cultural, a manuteno dessas discusses no interior do regime est
relacionada s redes discursivas e de poder do perodo.
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CONSIDERAES FINAIS
A produo arqueolgica no contexto estado-novista lusfono possui, sem dvida,
muitas particularidades se comparado contribuio que tal disciplina tem nos discursos nacionalistas desenvolvidos por outros regimes constitudos no mesmo perodo.
Nos dois casos, a arqueologia possui um interesse secundrio para esses governos, que
vo buscar em momentos histricos mais recentes os tempos ureos da Nao, a partir
dos quais o regime deve se justificar no presente.
Nos dois casos, percebe-se a importncia de instituies de pesquisa e, sobretudo,
de museus no prosseguimento das pesquisas arqueolgicas durante o perodo. A manuteno dessas pesquisas, se por um lado, aponta para um dilogo prprio no interior da
disciplina, por outro, demonstra ligaes entre pesquisadores, instituies, produes
discursivas oficiais e as prprias redes burocrticas e de poder do Estado.
Dessa forma, no ser possvel estudar essa produo cientfica desconectada do
contexto poltico do perodo, mas antes como parte intrnseca do momento histrico no
qual se insere.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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um museu de histria. Anais do Museu Paulista. So Paulo. N. Ser. V 8/9. p.151-174,
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CARDOSO, Joo Luis. O Professor Mendes Corra e a Arqueologia Portuguesa.
In: Sesso Ordinria de 26 de Janeiro de 2000 dos Anais da Academia Portuguesa da
Histria, III Srie, volume 2, 2011.
COSTA, Angyone. Introduo Arqueologia Brasileira (Etnografia e Histria). So
Paulo: Companhia Editora Nacional. 4 edio, 1980 (1 ed. 1934).
______. Archeologia Geral. Civilizaes da Amrica Pr-colombiana, Antiguidade
Clssica, Civilizaes Orientais. So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1936.
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CUNHA, O.R. Talento e atitude: estudos biogrficos do Museu Emlio Goeldi, I. Belm: Museu Paraense Emlio Goeldi, p. 103-121, 1989.
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
COLNIA CORRECIONAL DE
DOIS UNIDOS:
COMUNIDADE E REPRESSO EM PERNAMBUCO
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
COLNIA CORRECIONAL
DE DOIS UNIDOS:
COMUNIDADE E REPRESSO EM PERNAMBUCO
Elaine Michelly da Silva1
Matheus Amilton Martins2
RESUMO
O presente trabalho tenciona apresentar um estudo de caso sobre a colnia penal localizada no bairro de Dois Unidos, Recife. Para sua insero no contexto pr-golpe de 64,
buscamos o entendimento das aes da SSP-PE sob a gesto do Cel. Costa Cavalcanti,
a fim de apreender os panoramas de sua construo e uso, entendendo suas relaes
com o bairro em que se localiza.
Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar Brasileira; Abusos policiais nos regimes de exceo; Colnia Penal de Dois Unidos.
ABSTRACT
This paper aims to present a case study on the penal colony located in the neighborhood
of Dois Unidos, Recife. To its insertion in the pre-coup of 64 context, we seek to understand the actions of the SSP-PE under the management of colonel Costa Cavalcanti, in
order to grasp the panoramas of its construction and use, understanding their relations
with the neighborhood in which it is located.
Keywords: Brazilian Civil-Military Dictatorship; Police excesses in a state of emergency; Penal colony of Dois Unidos.
RESUMEN
El presente trabajo pretende presentar un estudio de caso sobre la colonia penal localizada en el barrio Dois Unidos, Recife. Para su insercin en el contexto pre-golpe de
1964, buscamos comprender las acciones de la SSP-PE bajo el mando del Cel. Costa
Cavalcanti, con el objetivo de aprehender el marco de su construccin y uso, entendiendo sus relaciones con el barrio donde est localizada.
Palabras clave: Dictadura cvico-militar brasilea; Los excesos de la polica en el estado de emergencia; Colonia penal de Dois Unidos.
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Fernando Coelho, ao observar o diferencial da sociedade civil, em Pernambuco
que conta com uma maior participao do elemento proletariado urbano-rural, em
comparao ao restante do Brasil aponta para tal abrangncia, elaborando uma ressalva quanto capacidade organizacional interna das entidades camponesas. Em suas
palavras h certa escusa contradio existente entre o tamanho do movimento e seu
rpido desmantelamento pela represso que seguiu o ps-golpe:
[...] o campesinato surgia como novo figurante nas lutas sociais, com fora redobrada aps
as conquistas [eleitorais] de Joo Goulart e Miguel Arraes. Marcando presena. Fazendo-se
ouvir atravs das Ligas Camponesas e dos Sindicatos Rurais, que embora ainda precariamente organizados se multiplicavam pela zona da mata. Colocando suas reivindicaes.
[...] Em posio de oposio a das grandes entidades patronais, como a Federao das Indstrias e a Associao Comercial ambas atuando na rbita da UDN [...] (COELHO, 2004:
64, grifo nosso).
Os estudos de Antnio Torres Montenegro, que tocam a cultura do medo na construo da imagem das esquerdas pela mdia pernambucana, fornecem-nos um suporte
para discutir sobre o tema. Ao delinear as linhas com que trabalhou na concepo do
artigo Labirinto do medo: o comunismo (1950-1964), ele nos assinala a interessante
configurao com que:
[...] a discusso sobre a forma como, a um acontecimento comum no perodo o incndio de
canaviais , na denominada zona da Mata de Pernambuco, foi associada uma outra rede de
significao, ou seja, a ameaa comunista. Na imprensa, no rdio, nas feiras livres do interior, nos plpitos das igrejas, era reafirmado que os incendirios dos canaviais no passavam
de comunistas que desejavam destruir a propriedade, a religio e a famlia. Assim, era produzida toda uma representao de medo, de temor, associado aos incndios dos canaviais.
Na poca no era uma prtica comum a queima antes do corte da cana, como se faz hoje
(MONTENEGRO, 2009: 216).
Outra informao que nos indicada pelo seu trabalho, a referncia ao acontecimento do engenho Cair, que segundo reportagem do Dirio de Pernambuco, se trataria de um incndio criminoso no canavial provocado por um avio: a matria dizia,
inicialmente, que alguns senhores da regio falaram reportagem que, provavelmente,
aquele incndio era de responsabilidade do lder das Ligas Camponesas, Francisco Julio. Entretanto, uma posterior investigao policial desemboca em
[...] um relatrio de 14 pginas, produzido por dois agentes da polcia de Pernambuco, acerca desse episdio. [...] O resultado [...] um rico documento, onde a histria do avio incendirio inteiramente desconstruda, pois os trabalhadores afirmam de forma unnime
que aquilo histria de menino, ningum ali acredita [...]. No h no relatrio confidencial
escrito por esses agentes nenhuma referncia a comunistas ou ao pessoal das Ligas Camponesas, como costumava aparecer na imprensa (Ibidem: 216-217).
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Apesar desse esforo investigativo, Montenegro destaca que nenhum de seus resultados enviados ao delegado auxiliar do Estado de Pernambuco se tornou de conhecimento pblico. possvel, a partir dessas informaes, sugerir que a formulao do
sentimento de medo aos comunistas, pode ser encarada como uma construo social,
fruto de uma evidente manipulao de informaes por parte da mdia, e da omisso e
negligncia na divulgao dos resultados das investigaes por parte das autoridades
policiais responsveis.
o sentimento de estranhamento e de averso ao comunismo que fornece a liga
social, a argamassa que vem a alicerar o edifcio do sistema repressor, posterior a 64.
Esse que, para alm de desbaratar os movimentos de esquerda, aniquila seus integrantes, desde o mbito fsico ao moral.
SISTEMA DE VIGILNCIA S ESQUERDAS EM PERNAMBUCO: A SECRETARIA DE SEGURANA PBLICA
As mesmas autoridades que impedem a divulgao de investigaes, que desmistificariam situaes que a mdia construra como obra de comunistas atentando contra
a propriedade privada, aparentam estar relacionadas com os personagens que ganham
destaque na historiografia pela formulao de um aparelho repressor dentro dos instrumentos policiais e policialescos. A situao de Pernambuco aparenta ter um destaque
espacial. Dimitri Felix do Nascimento, na sua anlise sobre a estrutura do Servio Nacional de Informaes (SNI) no perodo ps-golpe, expe que
Recife foi uma das primeiras [capitais] a ser instalada uma Agncia do SNI na cidade, porm sabemos que, por ser o Estado de Pernambuco um dos quais as mobilizaes populares
apresentavam um maior grau de radicalismo, os desafios tambm eram enormes para as
funes que fora criada, desta forma a agncia agiu conjuntamente, com as Foras Armadas
e a Polcia Estadual, mas, sobretudo com o CENIMAR, agncia que tinha mais experincia
de investigao aos comunistas e outros agentes (NASCIMENTO, 2013: 5).
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Ainda nesse documento, encontramos, mais uma vez, Manoel Cipriano presidindo
uma organizao com uma nomenclatura que parece se relacionar s Ligas Camponesas:
[...] Encontrei uma Associao Agricula Peculiaria [sic] de Dois Unidos. O presidente da
mesma conhecido pelo vulgo de Manoel Barbeiro, e em frente a referida Associao estava
uma facha [sic] com os seguintes dizeres: A nossa vitria a vitria do povo5.
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1960, em posse da SSP, o governador do Estado, Cid Sampaio, rene uma junta de autoridades competentes para elaborar O REGULAMENTO DA COLNIA DE REEDUCAO, ora em construo em Dois Unidos7. Entre essas est Fernando Csar Tasso
de Souza, delegado auxiliar da SSP, o mesmo que em artigo ao Jornal do Comrcio de
17 de maio de 1962, aponta para a deturpao do projeto original de tal estabelecimento
penal:
[...] O que [eu] defendia ardorosamente no se podia interessar aos que de polcia somente
compreendem linguagem da violncia fsica e moral, dos castigos mediveis, de h muito
superados.
que fiz ver da necessidade de vir a ser essa Colnia, no apenas um depsito de preso,
mas sobretudo um reformatrio capaz de desempenhar a sua nobre e elevada misso, recuperando o homem para a sociedade. Disse, vezes inmeras, que a legislao ptria no
mais autorizava a existncia das chamas colnias correcionais do passado, poca em que
a polcia podia prender algum e carreg-lo, sem julgamento, desde que sob a alegao de
correcional, o que deu margem a abusos de toda ordem.
[...] E o resultado a est. A Colnia inaugurada festivamente, sem regulamento algum, sem
saber a Justia a sua finalidade especifica, entregue a sua direo a um oficial da Polcia e
a um investigador, desconhecendo-se as suas possibilidades de recuperar o homem-detento
como um autntico depsito de presos ilegalmente recolhidos, fugindo inteiramente de sua
finalidade e violentando a lei [...]8.
7 Idem. (Cpia do Dirio Oficial de 26/03/60, que trata sobre a elaborao de um regulamento para a Colnia Reeducacional de Dois Unidos).
8 Idem. (Recorte do Jornal do Comrcio de 17/05/62, trata-se de uma artigo de opinio de
Fernando Tasso de Sousa com a manchete A Colnia Penal de Dois Unidos)
9 Idem. (Recorte do Dirio de Pernambuco de 18/03/62, com a manchete Colnia Reeducacional de Dois unidos: Primeiros Resultados).
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O principal objetivo da visita foi a escolha, ali, do local destinado construo da Escola de
Polcia de Pernambuco, atravs do Ponto IV. O imvel se levantar segundo o processo de
casas pr-fabricadas, vindo as suas peas dos Estados Unidos da Amrica10.
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Essa suposio se enquadra num conjunto de argumentos sobre a perseguio poltica durante a ditadura. Nos autos, se observou tambm a preocupao dos advogados
em mencionar as prticas desumanas realizadas naquele espao, chegando a compar
-las aos campos de concentrao.
A S. S., que se encontra preso, recolhido a Colnia Correcional de Dois Unidos (o mais recente campo de concentrao de que se tem notcia na Amrica) por ordem emanada do Sr.
Delegado da Delegacia de Roubos e Furtos, h mais de oito dias, numa demonstrao lgica
e incontestvel, da ilegalidade do ato da autoridade policial. Que o paciente esta proibido de
comunicar-se com seus familiares. [...] Que o paciente tem sido submetido a toda prova de
maltrato, fsico e moral, como se no existisse nem lei nem justia13.
Em outro processo, encontramos uma comparao direta com instalaes do perodo da segunda Guerra Mundial, utilizada por nazistas para o extermnio, tortura e
trabalho forado dos Judeus:
[...] o paciente preso naquela delegacia ou por ordem do Sr. Delegado, no h pairarem dvidas, pois a informao foi do Sr. Comissrio, que informava a priso do paciente, e que no
o soltaria, porquanto iria recambi-lo a Dois Unidos, a Colnia Penal que lembra os centros
de concentrao Nazista14.
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No seio o que foi que o preso fez... [o policial] deu uma pancada na cabea dele que o preso
caiu, [...] Mataram o preso depois eles tiravam n?... Sem dvida. No tinha quase ningum.
Tinha pouca gente, no era essa populao de hoje15.
Na ausncia de uma fonte direta, construmos outros caminhos que nos auxiliem a
reforar a tese de que o espao era utilizado, tambm, como priso poltica. Com refino
da busca, utilizamos a lista dos torturadores, disponvel no livro Brasil Nunca Mais,
resultado de um projeto desenvolvido clandestinamente durante os anos de Chumbo,
que trazem os nomes de alguns delegados ativos em Pernambuco conhecidos por sua
postura anticomunista e pelo uso sistemtico da tortura em presos polticos. So exemplos contundentes, nesse sentido: Nivaldo Braz de Almeida, Bartolomeu Gibson, Evandro Couceiro, Carlos Veras. Todos esses personagens de habeas corpus negados pela
ausncia da custdia do paciente, que indicada sob a competncia da Colnia Penal
de Dois Unidos.
Diante do exposto, podemos inferir, a partir do manejo dos documentos, a existncia de um ponto cego na historiografia: tal Colnia Penal se associava s perseguies polticas em Pernambuco, ainda que, na viso dos habitantes da regio, esse locus
fosse residncia de presos condenados pela prtica de crimes pequenos. Tal leitura ,
decerto, uma demonstrao do poder de dissimulao do governo militar, de tal maneira que a identidade dos prisioneiros sucumbe ante a produo da cultura e da memria
local. Como pode ser evidenciado pela msica carnavalesca da regio, declamada por
D. Maria:
Voc precisa conhecer o Dois Unidos, [...]/ Voc precisa conhecer o Capito,/ [...] Voc precisa carregar pedra pesada/ Nessa cabea rapada [raspada] pra deixar de ser ladro16.
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Essa passagem corrobora o que tem sido levantado pela pesquisa em dois sentidos:
o presdio de Dois Unidos integrava o dispositivo utilizado pela Ditadura para suas
prticas hediondas, e em sequncia, delineia a existncia de presos polticos em Dois
Unidos. Haja vista que muitas dessas manobras so identificadas nos processos em
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ARQUIVOS DE PESQUISA:
Fundos do Departamento de Ordem Poltica e Social(DOPS) sob a guarda do Arquivo
Pblico Jordo Emerenciano (APEJE-PE)
Fundos do Tribunal de Justia de Pernambuco (TJPE), sob a guarda daDiretoria de Documentao/Arquivo Geral do TJPE.
Acervo de entrevistas do Laboratrio de Histria Oral da Universidade Federal de Pernambuco (LAHOI-UFPE).
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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2011. Disponvel em <http://www.iica.int/Esp/regiones/sur/brasil/Lists/DocumentosTecnicosAbertos/Attachments/452/Fernando_Henrique_Guimar%C3%A3es_Barcellos_-_NEAD_-_Artigo_Mem%C3%B3ria_Camponesa.pdf>, acesso em 03 de fev. de
2014.
CARVALHO, C. P. Intelectuais, cultura e represso poltica na ditadura brasileira (19641967): relaes entre direito e autoritarismo. 2013. Dissertao (Mestrado em Direito). Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Direito. Universidade Nacional de Braslia, 2013.
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Pernambuco (1960 1964). In: X Encontro nacional de histria oral: testemunhos; histria
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snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364836023_ARQUIVO_artigoanpuh.pdf>, acesso em
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03 de fev. de 2014.
PROJETO CONTEMOS NOSSA HISTRIA, Memria dos trabalhadores metalrgicos de So Paulo. Investigando os crimes da ditadura civil-militar. s/d. Disponvel em
< http://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/investigando.pdf> Acesso em 03 de fev. de 2014.
ROLLENBERG, D. Esquerdas revolucionrias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura :
regime militar e movimentos sociais em fins do sculo XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
NOVAS PERSPECTIVAS
PARA A ARQUEOLOGIA DA
REPRESSO E DA RESISTNCIA
NO BRASIL DEPOIS DA
COMISSO NACIONAL DA
VERDADE
Ins Virgnia Prado Soares
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
NOVAS PERSPECTIVAS
PARA A ARQUEOLOGIA
DA REPRESSO E DA
RESISTNCIA NO BRASIL
DEPOIS DA COMISSO
NACIONAL DA VERDADE
Ins Virgnia Prado Soares1
RESUMO
O texto discute a importncia da Arqueologia da Represso e da Resistncia na atual
agenda de direitos humanos brasileira no tema da memria e verdade, a partir do
argumento de que um dos possveis legados da Comisso Nacional da Verdade CNV
ser uma indita demanda de pesquisas arqueolgicas.
Palavras-chave: Arqueologia da Represso e Resistncia; Comisses da Verdade;
Justia de Transio.
ABSTRACT
The following paper discusses the importance of the Archaeology of Repression and
Resistance in the current brazilian human rightsagenda. The main argument in this
direction is that one possible legacy of the Brazilians Truth Commission (CNV in
portuguese) will be an unprecedented demand for archaeological research.
Keywords: Archaeology of Repression and Resistance; Truth Commissions;
Transitional Justice.
RESUMEN
El artculo discute la importancia de la Arqueologa de la Represin y Resistencia en la
actual agenda brasilea de derechos humanos, desde la argumentacin que uno de los
posibles legados de la Comisin Nacional de la Verdad (CNV en portugus) ser una
demanda sin precedentes por investigacin arqueolgica.
Palabras clave: Arqueologa de la Represin y Resistencia; Comisin de la Verdad;
Justicia de Transicin.
INTRODUO
De 1964 a 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura, marcada por supresso de direitos
e prticas estatais de graves violaes de direitos humanos. Com a consolidao da
democracia, foi estabelecido certo consenso sobre o direito informao e sobre o
dever do Estado brasileiro de revelar a verdade sobre os acontecimentos mais nefastos
do perodo ditatorial.
Os trabalhos de Comisses da Verdade - CVs tm se revelado como um modo
potencialmente exitoso para tornar o direito verdade efetivo, j que possibilitam a
revelao da verdade e a (re)significao da memria coletiva aps a transio de um
regime autoritrio ou de uma guerra civil para a democracia ou a paz.
Estas Comisses so arranjos institucionais para lidar com o legado de violncia,
a partir do acolhimento de testemunhos dos sobreviventes das atrocidades (vtimas,
algozes e espectadores) e da reunio de dados sobre os locais e a cultura material
que comprovam a represso ou a resistncia. So particularmente teis quando h
impunidade, como ocorre no caso brasileiro, em que nenhum torturador foi condenado
criminalmente.
No Brasil, a Comisso Nacional da Verdade - CNV foi criada pela Lei 12.528/2011
e iniciou suas atividades em maio de 2012, para esclarecer episdios de violncia,
represso e outras situaes de graves violaes aos direitos humanos de 1946 a 1988.
A lei que criou a CNV tambm fortaleceu a possibilidade de trabalho em rede, com a
instalao de outras CVs de mbito local ao mesmo que deu abertura para CNV atuar
em cooperao com a sociedade, com Universidades e outras instituies, inclusive
com CVs locais. Acompanhando as diretrizes legais, as CVs locais podem estender
suas atividades por mais tempo e eleger seu foco investigativo.
Um dos focos investigativos da CNV, e tambm de algumas CVs locais, a
estrutura fsica da represso, com ateno aos locais usados para deteno, tortura e
outras prticas nefastas. Como estes lugares guardam relaes com memria, espao,
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documentos e narrativas, possvel que um dos legados da CNV e das CVs seja uma
indita demanda por pesquisas arqueolgicas.
O escopo do artigo abordar a importncia da Arqueologia da Represso e da
Resistncia para a agenda brasileira de direitos humanos. A pesquisa avalia as (novas)
possibilidades da investigao arqueolgica aps o encerramento das atividades
da Comisso Nacional da Verdade e das Comisses locais; e como os trabalhos
arqueolgicos podem ser aproveitados na atuao judicial e tambm nas iniciativas
oficiais e no-oficiais de memria e verdade.
Para o desenvolvimento do texto, sero apresentadas conexes entre Arqueologia,
Direito, memria e verdade. Depois, a anlise se concentrar no cenrio brasileiro,
antes do funcionamento da CNV. Nesse item so destacadas as iniciativas oficiais e
no-oficiais adotadas para revelao da verdade que guardam importncia para a
Arqueologia da Represso e da Resistncia. No ltimo tpico, a reflexo gira em torno
da pergunta se haver novas demandas arqueolgicas depois do encerramento dos
trabalhos da CNV.
A ARQUEOLOGIA, DIREITO, MEMRIA E VERDADE: ALGUMAS
CONEXES
Desde o retorno democracia, o Estado brasileiro e a sociedade (especialmente
vtimas e familiares de mortos e desaparecidos polticos) empreendem aes para a
revelao dos acontecimentos mais nefastos do perodo, com a finalidade de reparao
do sofrimento das vtimas, revelao da verdade (principalmente sobre o paradeiro dos
desaparecidos), reposicionamento da memria coletiva (revisitao da histria oficial),
responsabilizao dos perpetradores e reformulao das instituies.
Essas iniciativas so estudadas no campo dos direitos humanos, no recorte temtico
que se convencionou chamar de Justia de Transio, definida como o conjunto de
experincias, ferramentas e mecanismos (judiciais e no judiciais) utilizados pelo
Estado e sociedade para lidar com o legado de violncia quando da passagem de um
perodo de graves violaes dos direitos humanos (guerra civil, conflitos armados ou
regimes autoritrios) para outro pautado em valores democrticos e de respeito aos
direitos bsicos (MEZAROBBA 2009; UN Security Council, 2004, pargrafo 8, p.4).
consenso que a Justia de Transio no se trata de um tipo especial de justia,
mas uma abordagem para se alcanar justia aps a transio. tambm unanimidade
entre pesquisadores e defensores dos direitos humanos que as medidas adotadas
aps o retorno democracia e/ou depois de cessado o conflito devem garantir a no
repetio das atrocidades. Por isso, as estratgias para enfrentar o passado tambm
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quais sejam diretamente, ou no, relacionados aos aparelhos repressivos, como forma de
compreenso ampla das aes desses governos e lideranas, bem como do prprio campo
cientfico dialgico aos mesmos. Abarca os estudos dos silncios, da represso estabelecida
a indivduos, grupos e temas especficos, no s no que se refere aos opositores polticos dos
regimes, mas tambm a outros profissionais (cientistas, professores universitrios, escritores, jornalistas, dentre outros) atuantes no perodo, em especial dentro do campo da Arqueologia. Procura, por fim, trabalhar na divulgao do tema bem como no estabelecimento de
dilogo entre os diversos discursos sobre os contextos repressivos, nacional e internacionalmente. (POLONI, 2014)
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vtimas, nas atrocidades praticadas, na vivncia real da tortura, na lembrana das dores
fsicas que pareciam interminveis. Os discursos das vtimas retratavam a situao de
muitos: consciente de no ser o nico sujeito tortura, a voz do torturado apresenta
a dor dos outros no interior do processo narrativo em que expe a sua, suprimindo a
fronteira entre ele e os outros sua volta, que com ele partilham o terror (GINZBURG,
2010).
Os dados colhidos no BNM esto totalmente disponveis na internet desde 2013
quando foi lanado o site BNM Digital: http://bnmdigital.mpf.mp.br. Dentre as inmeras
denncias publicadas no BNM Digital, possvel ler no relatrio de torturas uma matria
publicada no Pasquim, em 1981, baseado em manuscrito, de 1971, de autoria da expresa poltica Ins Etienne Romeu. Esse testemunho foi entregue ao Conselho Federal
da OAB, em 1979, quando Ins foi libertada. A matria do Pasquim traz os dados dos
algozes e os lugares por onde Ins passou, inclusive a Casa da Morte, em Petrpolis-RJ,
que era um Centro Clandestino de Tortura, da qual foi a nica sobrevivente2.
A Casa da Morte foi declarada de utilidade pblica, em 2012, e ser despropriada
pelo Municpio de Petrpolis, com a finalidade de transform-la num centro de memria.
Em maro de 2014, a CNV realizou audincia pblica sobre esta Casa e foi divulgado no
site da CNV o Relatrio preliminar de pesquisa sobre a Casa da Morte de Petrpolis3.
Apesar de o tema ter voltado evidncia nos ltimos anos, no houve discusso
significativa sobre a necessidade de realizao de pesquisas arqueolgicas no local. A
ateno est centrada na transformao do imvel em um Memorial. No entanto, vale
lembrar que as experincias de outros pases, especificamente da Argentina, indicam
que os estudos dos Centros Clandestinos de Deteno, sob a tica da Arqueologia da
Represso e da Resistncia, so extremamente relevantes para a reparao simblica
das vtimas e das famlias dos desaparecidos, bem como para a explicitao do terror do
Estado para a sociedade, para que nunca mais essas crueldades se repitam.
No nosso atual cenrio, seria interessante tomar como inspirao o concurso pblico
de projetos, promovido pelo Governo da Cidade de Buenos Aires/Argentina, para escavar
os restos do Club Atltico, um Centro Clandestino de Deteno. Um dos pontos centrais
do projeto vencedor foi a valorizao da memria material, com a transformao dessa
memria em algo fsico: que pode ser tocado, ouvido, lido, desde a perspectiva dos que
foram presos naquele local. Pesquisas com esse enfoque seriam enriquecedoras para o
preenchimento das lacunas no caso brasileiro.
2
Texto
disponvel
em:
http://www.docvirt.com/docreader.net/docreader.
aspx?bib=DOCBNM&PagFis=7864, acesso em 22/04/2014.
3 http://www.cnv.gov.br/images/pdf/petropolis/Versao_final_-_Casa_da_Morte_-_relatorio_
preliminar_revisado.pdf, acesso em 25/05/2014.
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como de Lucia Petit, guerrilheira. Essa ossada estava no Cemitrio de Xambio, assim
como outra ossada, identificada em 2009 como de Bergson Gurjo Farias, tambm
participante da guerrilha.
Para cumprimento da deciso da Justia Federal de 2003, foram editadas Portarias
que ofereciam alguns parmetros para as buscas dos restos mortais. Atualmente, est
em vigor a Portaria Interministerial n. 1, de 5 de maio de 2011 (do Ministro da Defesa,
da Justia e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica), que tem
por finalidade reformular o grupo de trabalho criado pela Portaria n 567-MD, de 29
de abril de 2009 que prev, em seu art. 2, a participao no GT de representantes do
Museu Emilio Goeldi e de Universidades Federais e Estaduais em apoio e exerccio de
atividades periciais (incisos IX e X).
No se tem notcias de trabalhos exclusivamente de grupos de antroplogos e
arquelogos para localizao e identificao de restos mortais dos desaparecidos
e, muito menos, de editais do Poder Pblico para seleo de propostas de projetos
arqueolgicos para explorao da rea. Assim, a Arqueologia ocupa um lugar de menor
importncia nesse processo, quando deveria ser o contrrio.
Ao mesmo tempo, ainda que houvesse uma percepo do Poder Pblico sobre a
importncia da investigao sob o vis da Arqueologia da Resistncia e da Represso
no caso Araguaia, a falta de colaborao das Foras Armadas na apresentao dos
documentos relativos s operaes realizadas contra os guerrilheiros continua a ser um
obstculo de difcil transposio.
Difcil, mas no impossvel... At porque, esses documentos existem e devem estar
bem guardados em algum local pblico ou mesmo com os agentes que participaram da
represso e hoje esto aposentados ou reformados. Vale lembrar que os documentos
secretos das Foras Armadas, de 1972, davam orientaes sobre o registro de informaes
sobre os inimigos mortos (MEZAROBBA, 2006: 79) e ingnuo acreditar que esses
documentos foram destrudos.
Tanto assim, que o desaparecimento de Rubens Paiva foi esclarecido aps as
mortes de dois agentes da ditadura, que guardavam documentos oficiais em suas casas,
por cerca de trinta anos: a morte do coronel reformado Molinas Dias, assassinado em
Porto Alegre, em 2012; e a do coronel Paulo Malhes, tambm assassinado no Rio de
Janeiro, em 2014. Os documentos encontrados pela Polcia na residncia de Molina
Dias foram entregues CNV e comprovavam que Rubens Paiva passou pelo DOICodi-RJ. A CNV deu continuidade s investigaes e, em 2014, h a oitiva de Malhes.
No entanto, cerca de um ms depois, Malhes assassinado e so recolhidos outros
documentos pblicos em sua casa.
A terceira iniciativa foi a devoluo, pelo governo federal, dos arquivos do DOPS
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inmeros casos. Alm disso, destacou-se que a ateno da CNV e das CVs locais aos
lugares de represso abriu, em tese, caminho para novas frentes investigativas e para
pesquisas sob a tica da Arqueologia.
Para o Direito, os locais de represso na ditadura representam elementos constitutivos,
traos diferenciadores e valores de referncia; e se enquadram, em tese e a princpio,
na categoria de bens integrantes do patrimnio cultural brasileiro ligados memria,
identidade e ao do povo brasileiro (art.216, caput). So bens materiais da modalidade
espaos destinados manifestao cultural (art. 216, inc. IV) ou stios de valor cultural
ou de interesse arqueolgico (art. 216, inc. V); e que podem ser tutelados por todos
instrumentos protetivos dos bens culturais, sejam pelos nominados como tombamento,
desapropriao, inventrio etc., ou sejam por outras formas de acautelamento inominadas
(art. 216, 1).
No plano infraconstitucional, a lei do Plano Nacional de Cultura - PNC (Lei
12.343/10) estabelece as diretrizes culturais brasileiras para os prximos dez anos e
relaciona a liberdade de expresso, criao e fruio, o respeito aos direitos humanos,
o direito informao, comunicao e crtica cultural e o direito memria como
princpios do PNC. Alm disso, a promoo do direito memria por meio dos museus,
arquivos e colees um dos objetivos do PNC.
No mbito jurdico, possvel refletir sobre medidas judiciais e extrajudiciais para
exigir estudos sob o enfoque da Arqueologia da Represso e da Resistncia, em territrios
que vivem (ou viviam) as comunidades indgenas afetadas pelo regime militar, nos locais
de tortura ou de descarte de corpos indicados no Relatrio da CNV.
Quanto possibilidade de judicializao do teor do Relatrio Final da CNV, as
Recomendaes contidas nesse documento acerca desses locais de represso e tambm
para localizao dos desaparecidos polticos so compromissos do Estado com o tema,
cabendo ao Poder Pblico adotar todos os meios cabveis para a implementao dos
pontos recomendados, em um prazo razovel. Caso isso no acontea, a posio do
Supremo Tribunal Federal no sentido de que cabvel o controle e a interveno do
poder judicirio no tema de implementao de polticas pblicas, quando configurada
hiptese de abusividade governamental (ADPF-MC N 45, Rel. Celso de Mello, DJ
4.5.2004).
Para a adoo de medidas extrajudiciais, preciso partir do pressuposto de que a
contribuio da Arqueologia da Represso e da Resistncia ser mais efetiva se somar
os resultados do Relatrio da CNV e as investigaes em andamento das Comisses
locais com outras fontes, com foco na narrativa das vtimas. que o envolvimento da
Arqueologia com a prtica do desvelamento das marcas de terrorismo do Estado numa
ditadura exige que se estabelea tambm uma ligao entre verdade e autonarrao, alm
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comisso Especial sobre Mortos
e Desaparecidos Polticos. Direito Memria e Verdade: Comisso Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Polticos, Braslia: Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
2007.
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corpo. Braslia: Secretaria de Direitos Humanos, 2010.
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
MEMRIA, OBJETOS E
EDIFCIOS
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
MEMRIA, OBJETOS E
EDIFCIOS
que estuvieron encarceladas en Deops/SP por la dictadura militar que asol a Brasil
desde 1964 a 1985, este trabajo analizar las relaciones entre la cultura material, - artefactos, incluyendo construcciones arquitectnicas - y el da a da de la misma prisin.
Incluyendo en el mbito de la Arqueologa de la Represin y Resistencia, ese trabajo
contar tambin con la metodologa de la Arqueologa de la Arquitectura para analizar
el espacio fsico del edificio que fue sede de la prisin y actualmente es sede del Memorial de la Resistencia de So Paulo.
Palabras clave: Arqueologa de la Represin y Resistencia, Memoria, Arqueologa de
la Arquitectura
INTRODUO
Na sociedade capitalista, o material tem um lugar fundamental dentro do sistema ideolgico e simblico. por isso que uma memria que pode ser tocada, olhada, sentida e
experimentada, ter um efeito mais duradouro nas pessoas (ZARANKIN, 2003: 36).
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Fig. 1: Maquete construda pelo Memorial da Resistncia a partir dos dados apresentados pelos ex-presos
polticos em seus testemunhos. Fonte: NEVES, 2014: 50.
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ali estiveram encarceradas e como se relacionam com a estrutura arquitetnica e a cultura material que havia em seu interior. Para abordar tal cultura material arquitetnica,
a Arqueologia da Arquitetura uma ferramenta extremamente necessria.
ARQUEOLOGIA DA ARQUITETURA
A Arqueologia da Arquitetura possibilita o estudo da materialidade das construes
arquitetnicas, abordando-as no como um elemento dado, mas reflexos de ideologias,
costumes e prticas de uma sociedade (ZARANKIN, 2002). Um edifcio terminado
nos expe, num nico olhar, uma soma de intenes, das invenes, dos conhecimentos
e das foras que sua existncia implica; ele manifesta luz a obra combinada do querer,
do saber e do poder do homem (VALRY apud ZARANKIN, 2002: 9).
Quando se trata de edifcios utilizados por rgos policiais, como o caso da sede
do Deops/SP, fica clara a ideologia empregada nas divises dos espaos e a relao de
poder que a prpria materialidade do prdio impe entre seus frequentadores detentos
e oficiais. O filsofo francs Michel Foucault percebe a mudana na arquitetura, que
deixa de ser algo construdo para ser visto palcios ou para ver o exterior serventia das fortalezas e muralhas e passa a se voltar para seu interior, para observar, agir
sobre, disciplinar, controlar e dominar aqueles que se encontram dentro do seu espao.
As instituies disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou
como um microscpio do comportamento [...] formaram, em torno dos homens, um
aparelho de observao, de registro e de treinamento (FOUCAULT, 2012: 167).
Comparando o sistema carcerrio montado no prdio do Deops/SP ao projeto do
Panptico de Jeremy Bentham, encontramos algumas divergncias. Das cartas, escritas
por Bentham em 1787, em Crecheff, Rssia Branca, e enviadas Inglaterra, encontramos, dentre as propostas de construo: existncia de um prdio central que seria o
alojamento do inspetor e a configurao das celas instaladas tambm em formato circular, separadas por uma rea intermediria e a ideia de que na parte interior as celas
deveriam ter uma grade de ferro suficientemente fina para no subtrair qualquer parte
da cela da viso do inspetor (BENTHAM apud TADEU, 2008). Pois bem, a priso
ditatorial no contava com nenhuma construo circular e possua portas de madeira
com pequenos espaos gradeados que possibilitavam a visibilidade entre cela e meio
externo, dificultando assim a observao de todo o espao pelo agente penitencirio.
Elza Lobo relata que todas as celas tinham as portas iguais: de madeira e com espao
para passar o prato (LOBO, 2008).
Embora as caractersticas fsicas do Panptico e da sede do Deops/Sp no sejam as
mesmas, os dois projetos arquitetnicos respondem ao mesmo propsito: nesses tipos
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202
de locais de sujeio, os prisioneiros no tem a certeza de que esto sendo vigiados, mas
sabem que podem estar, quem est submetido a um campo de visibilidade e sabe disso,
retoma por sua conta as limitaes do poder (FOUCAULT, 2002: 192). O encarcerado
no v o tempo todo o encarregado da segurana, mas sabe que ele est ali e pode o
estar observando sem que ele veja no caso do Panptico e que a qualquer momento
ele pode fazer uso da pequena janela da porta para verificar o que ocorre na cela no
caso da priso ditatorial. Assim, os corredores do Deops-SP esto para o alojamento
do inspetor como os agentes penitencirios esto para o inspetor.
Vale ressaltar que, como apresentado anteriormente, o prdio analisado no foi
construdo com a finalidade de se tornar um aparelho de represso policial, diferente da
proposta do Panptico. Ainda assim, foi adaptado para abrigar um sistema carcerrio,
com a construo de celas no andar trreo. Sobre essa modificao no espao interno do
prdio e a data em que isso se deu no se encontrou nenhum registro.
Zarankin e Niro (2006) demonstram como a anlise das prises ditatoriais d indcios de que o aparato repressivo era pensado de modo a destruir a identidade dos
prisioneiros e suas possibilidades de resistncia (ZARANKIN; SALERNO; PEROSINO, 2012). Percebemos isso na preocupao desses dois modelos prisionais com a
comunicao entre os prisioneiros. No Panptico, as celas deveriam ser individuais e
construdas de modo a no permitir a comunicao entre os presos (BENTHAM, apud
TADEU, 2008). J no prdio do DEOPS-SP, a pequena quantidade de celas frente ao
grande nmero de prisioneiros proporcionou aos mesmos que dividissem o espao com
outros companheiros. Alm disso, apesar do fato de a comunicao com as outras celas
fosse proibida, Elza relata que as trs celas representadas na parte central superior da
maquete produzida pelo Memorial da Resistncia (foto 1) eram vazadas na parte de
cima, facilitando a comunicao entre as pessoas (LOBO, 2008). Havia tambm, nessa
cela, uma pia e uma fossa. Comunicar-se ento, era tambm uma forma de ser resistente
e no se entregar proibio imposta.
Os presos, resistindo lei do silncio que lhes era imposta, encontravam sempre
mecanismos para se informar sobre o que se passava aos vizinhos, quem havia chegado e sado. Em depoimento Comisso da verdade, Elza Lobo relata que optou por
ajudar a servir a comida aos companheiros, pois, ao levar os pratos s celas, poderia
conseguir alguma informao nova, ver e perceber o que estava havendo e quem estava
nas outras celas (LOBO, 2013), alm de procurar melhorar o aspecto da comida que
vinha num lato, n?! Aquilo para mim era um negcio horroroso... ento a gente tentava... que a viso [do prato] fosse um pouco melhor (LOBO, 2008). Atitudes como
essas podem ser encaradas como atos de resistncia a todo o poder e tentativa de aniquilao do ser realizada pelo poder repressor. Percebemos que o aspecto e os utenslios
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203
Fig. 2: Representao do cravo vermelho distribudo por Elza Lobo aos companheiros, s vsperas do
Natal. Fonte:
http://energiapaulistanica.blogspot.com.br/2012/04/memorial-da-resistencia-didatura.
html
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escadas. Nenhuma das duas, porm, afirma exatamente qual era o andar. Tendo em vista um Livro de Portaria do Deops que descreve quais as pessoas que trabalhavam em
cada andar e os rgos que ali funcionavam, podemos afirmar que a sala do Delegado
Fleury ficava no segundo andar, contando-se o trreo (DEPARTAMENTO, 1972). No
caso de Rose, esse foi o primeiro lugar para onde foi levada quando chegou ao prdio.
Descreve-o:
Fomos para uma sala enorme que dava para a rua, onde tinha uns sofs verdes de couro e
uma mesa que era a mesa do Fleury e em cima aquele cartaz num papelo amarelo desses de
caixa com a caveira desenhada e E.M (Esquadro da Morte), e na mesa dele tambm, ele no
escondia isso [...] Na parede do outro lado tinha uma vitrine cheia de arma, de espingarda
assim em p. Parecia essas coisas de filme (NOGUEIRA, 2008).
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205
sendo pensado como um lugar de memria, carregado de sentidos e significados, o tombamento do edifcio do DEOPS/SP no tem qualquer nexo com a preservao e/ou construo
de uma memria para a ditadura (NEVES, 2014: 105).
Na edio de 14 de abril de 1998, o Jornal Metr News Norte noticia que a antiga
sede do DOPS dar lugar Academia Superior de Msica, que prev a construo de
um teatro, rea de lazer, livraria, estdio de gravao, auditrio, salas de aulas tericas,
prticas individuais e coletivas e salas de ensaio. As celas seriam transformadas no Memorial do Crcere. O jornal aponta ainda que o edifcio sofreu muitas modificaes em
seu interior, mas nada foi fotografado ou registrado por pesquisadores (SALIGNAC
apud. CONDEPHAAT, 1999), o que notvel ainda hoje quando se percebe a falta de
documentao e informaes sobre o interior do prdio.
O contrato para iniciar tais obras seria assinado pelo governador Mrio Covas, em
uma visita ao edifcio no dia 1 de abril de 1998 (SALIGNAC, apud. CONDEPHAAT,
1999). Curioso notar que, a data escolhida para o incio do processo de transformao
de um espao de memria sobre a ditadura, a tortura e a resistncia em um centro cultural relativo msica feito justamente no aniversrio de 34 anos do incio dessa mesma
ditadura. Ou seja, em um dia bastante significativo para a memria do perodo, pretende-se promover na quase totalidade do prdio uma pequena parte seria o Memorial do
Crcere um apagamento do que foi ali vivido no regime ditatorial.
Elza Lobo esteve, a convite do governador e com outros ex-presos, nessa visita ao
antigo DOPS. Em seu testemunho ao Memorial da Resistncia afirma que quando da
visita
Quando chegou aqui no fundo tava fechado n?! A eu virei para o governador e falei:
Governador, por favor, abra essa porta porque eu fiquei nessa parte, ele virou pra mim e
falou assim: melhor esquecer porque a gente no sabe o que tem do lado de l. Aquilo
me marcou muito, eu falei assim: Que diacho de coisa no se pode ver, n?!. A eu sair e
fui ver pelo lado de fora, a j tava tudo destrudo aqui, porque com a reforma que tinham
feito da Sala So Paulo, esse pedao fizeram no sei se uma parte da garagem ou estacionamento (LOBO, 2008).
Esse trecho do depoimento de Elza bastante significativo, pois sinaliza que o fundo, uma parte do edifcio importante para ela, foi demolido e ainda no se encontrou
documentos que versem sobre a justificativa e quais os interesses ligados a essa demolio. Afinal, o estacionamento da Sala So Paulo no precisaria, justamente, daquele
espao, relativamente pequeno se compararmos com o tamanho do estacionamento do
local, visvel hoje em dia. Percebemos tambm na fala de Elza, a importncia do espao
edificado, o querer ter aquele espao ainda inteiro para preservar a sua memria.
As chamadas celas do fundo so as quatro pequenas celas representadas no canto
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superior direito, na maquete (fig. 1). Elza relata que no incio, as celas do fundo eram
ocupadas somente por mulheres, mas que em determinado momento isso mudou. Eram
celas totalmente fechadas e sem janelas, com uma lmpada alta. Rose esteve na cela do
fundo quando chegou, lembra que perto dessas celas havia um fogo e um balco, no
contemplados pela maquete. Por esse motivo, no se pode dizer se ficavam no pequeno
cubculo no canto superior direito ou se eram situadas no corredor em frente s celas.
Rose descreve o interior das celas, dizendo que nelas havia espcie de camas de alvenaria com colches em cima [...], o banheiro era uma bacia e uma pia [...] o colcho era
de palha (NOGUEIRA, 2008). Em visita ao Memorial da Resistncia em So Paulo,
pode-se ver uma porta de madeira representada ao final do corredor, que simboliza o
acesso a essas quatro celas demolidas.
A primeira cela onde Elza esteve detida era bem pequena, ainda assim, chegou a
dividi-la com mais quatro companheiras. Conta que, alm do pouco espao da cela,
havia um catre de madeira bem alto na frente da porta, com colcho em cima e uma luz
ficava acesa dia e noite. Devido falta de espao sentava no cho, punha um jornal.
No dormia, voc recostava n?! (LOBO, 2008). A impresso que se tem, pelos relatos
de que esse primeiro lugar onde esteve, a primeira cela do canto superior esquerdo
(fig. 1).
Fala recorrente no testemunho das duas ex-presas so as condies de higiene s
quais estavam submetidas e a sujeira no prdio como um todo. Rose relata que esse
edifcio me lembra sujeira [...] eles eram muito porcos. [...] Era uma sujeira, no cho,
em todo lugar. [...] Tinha um ralo em algum lugar onde eles jogavam comida, tudo em
volta. (NOGUEIRA, 2008). E Elza se lembra que outra coisa que a gente viu que
tinha muita barata. [...] As condies eram muito inspitas (LOBO, 2008).
Quanto prpria higiene, as condies no eram melhores. Elza descreve que para
tomar banho voc tinha o chuveiro, um cano que s vezes saa gua, s vezes tinha que
ficar batendo no cano para sair [...] e voc tinha que fazer assim, aquelas higienes de
francs n?! Passar a toalhinha (LOBO, 2008). A respeito disso, a memria de Rose
no diferente: eu sangrava muito, no tinha absorvente. Ficava muito suja e fedida
(NOGUEIRA, 2008).
A RELAO ENTRE A MATERIALIDADE E INDIVDUOS
A partir da proposio da historiadora Ewa Domanska, em sua obra The Material
Presence of the Past, h trs formas de anlise das relaes entre pessoas e objetos:
orientalism, que seria a dominao dos homens sobre as coisas; paternalism, administrao humana dos objetos; communalism, baseado na reciprocidade e no dilogo entre
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2 Ver mais sobre as mudanas e reformas no edifcio em: Deborah Neves, A persistncia do
passado: patrimnio e memoriais da ditadura em So Paulo e Buenos Aires, 2014.
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(10/1998); noticiaram que parte do prdio seria reservado Memorial do Crcere, justamente as seis celas (4 menores e 2 maiores). Desses peridicos, 4 deixam claro que
as intenes, pelo menos as que foram expressas mdia, eram de que se mantivessem
as inscries nas paredes: Ali, recados, nomes, nmeros deixados pelos prisioneiros
continuam a marcar as paredes e sero mantidos como esto (CONDEPHAAT, 1999).
Dois dos jornais tambm fazem referencia existncia de algum mobilirio restante nas
celas, O Estado de So Paulo, de 02 de abril de 1998, descreve que alguns instrumentos de tortura enferrujados, como uma mquina de dar choques, ainda podem ser vistos
no local (CONDEPHAAT, 1999). No se sabe o paradeiro desses artefatos que ainda
estavam no prdio em 1998. Provavelmente foram retirados do prdio devido obra,
mas no h qualquer meno a isso na documentao.
CONSIDERAES FINAIS
Por ser um acontecimento historicamente recente, a Ditadura Militar um perodo
que proporciona uma gama plural de abordagens vestgios materiais, fontes orais e
documentos escritos , o que pode tornar as pesquisas sobre esse tema cada vez mais
ricas. Isto se d no somente porque pode-se agregar informaes de carter diferenciado, mas, principalmente, porque a confrontao entre essas fontes pode apontar contradies que s so perceptveis devido a essa pluralidade de registros.
Este trabalho demonstra como a abordagem arqueolgica do perodo ditatorial
rica em fontes e informaes. Alm disso, a utilizao da memria de pessoas que viveram intensamente esse Estado de Exceo fornece ricas informaes para integrar um
quadro da composio material da represso.
Como visto ao longo do texto, muito dessa cultura material ligada Ditadura Militar se perdeu devido, ora falta de interesse em preservar, ora ao interesse em esconder essa pgina da Histria do pas. Hoje, 50 anos aps o golpe, ainda importante e
necessrio pesquisar, analisar e interpretar os remanescentes desse perodo, visto que
isso ajuda a responder questes pendentes e faz jus aos atos das pessoas que viveram o
perodo ditatorial. Alm desses, as famlias que perderam seus entes queridos, cuja ausncia se faz presente sempre, tambm merecem que suas questes sejam esclarecidas.
preciso preservar essas memrias e fazer com que sejam conhecidas por um nmero
cada vez maior de brasileiros, para que todo o cerceamento da liberdade, toda dor, morte e tortura que aconteceram naqueles 21 anos nunca mais se repitam e que, aqueles que
passaram por tudo isso, jamais sejam relegados ao esquecimento.
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serem observados pela Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios, com o fim de
garantir o acesso a informaes previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do
3 do art. 37 e no 2 do art. 216 da Constituio Federal. Presidncia da Repblica:
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CONDEPHAAT. Tombamento da Estao Ferroviria Sorocabana. Processo n. 20151,
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
ARQUEOLOGIA E A
GUERRILHA DO ARAGUAIA OU
A MATERIALIDADE CONTRA A
NO NARRATIVA
Rafael de Abreu e Souza
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
ARQUEOLOGIA E A
GUERRILHA DO ARAGUAIA
OU A MATERIALIDADE
CONTRA A NO NARRATIVA
Rafael de Abreu e Souza1
RESUMO
Neste artigo, utilizo o exemplo das buscas pelos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia
para levantar questes, mais do que fech-las, sobre a potencialidade da arqueologia em
contextos associados represso orquestrada pela ditadura militar brasileira. Parto do
pressuposto de que a arqueologia, reivindicando a si o estudo da materialidade, opese diametralmente no narrativa perpetrada pelo ostensivo silncio oficial sobre os
eventos ocorridos. Enquanto ferramenta poltica, dialgica a construo de memrias
materiais, a Arqueologia da Represso e da Resistncia uma autoarqueologia, plural,
do crvel e do vivvel.
Palavras-chave: Arqueologia do Passado Contemporneo; Arqueologia da Represso
e da Resistncia; Guerrilha do Araguaia; Narrativa.
ABSTRACT
In this article, I use the example of the search for the missing of the Araguaia Guerrilla
to raise questions, rather than close them, about the potential of archeology in contexts
associated to repression orchestrated by Brazilian military dictatorship. I assume that
archeology, claiming itself the study of materiality, diametrically opposed to nonnarrative perpetrated by official ostensibly silence about past events. As a political tool,
dialogic to the construction of material memories, repression and resistance archaeology
is a kind of auto-archeology, plural, possible, credible and liveable.
Key-words: Archaeology of Contemporary Past; Arqueologia of Repression and
INTRODUO
Nos ltimos anos, a Arqueologia tem sido chamada a auxiliar nas investigaes
em torno do desaparecimento de pessoas como estratgia do terrorismo de estado2 das
ditaduras e regimes totalitrios. No Brasil, esta entrada, todavia, no tem ocorrido sem
questionamentos, de ordem interna e externa, prpria Arqueologia: internamente, as
problemticas em torno de sua prpria consolidao (CALDARELLI, MENDONA
de SOUZA, 1997; BEZERRA, 2008) e da necessidade de valorizao de campos
pouco populares entre os pesquisadores brasileiros, como a Arqueologia Histrica
e a Bioarqueologia; externamente, a constante necessidade de reafirmao de seus
conhecimentos em nichos dominados por profisses consolidadas a que um senso
comum atribui status elevado, como a medicina e o direito (FREIDSON, 1995).
Concomitantemente, assiste-se a alguma distoro no sentido dos termos antropologia
e da alcunha forense.
Por outro lado, desde os anos 1990, arquelogos tm ressaltado o papel da
Arqueologia como ferramenta potencial na produo de narrativas alternativas aos
discursos hegemnicos oficiais (ROWLANDS, 1994; PLUCIENNIK, 1999; FUNARI,
2002; HODDER, 2003; KOJAN DANGELO, 2005). Contudo, como a Arqueologia
pode colaborar quando no existe um discurso oficial, ou melhor, quando ele uma
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214
3 Adoto aqui o conceito de no narrativa para referir-me situao sobre a qual sabese que algo fora do comum aconteceu, mas da qual ningum fala sobre, contribuindo
indiretamente para posteriores e concomitantes impunidades e no resolues
(LANGDON, 1993; BARTHES, 2008).
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ditadura entre 1964 e 1985, com durao de um ano, podendo ser renovada. O GAAF,
todavia, ainda no realizou nenhuma ao prtica. Este longo e duro caminho para
resoluo dos crimes da ditadura, para o acesso s informaes, para compreender o
aparelho de represso montado pelo regime, fruto da credibilidade dada aos relatos
de ex-presos e familiares sobre eventos ocorridos durante os anos 1960 e 1980. ,
portanto, uma arqueologia do crvel.
ARQUEOLOGIAS DO VIVVEL
Antnio Carvalho (RIBEIRO, 1996) definiu o vivvel como o que torna a vida
praticvel, pensvel. Se a Arqueologia pode construir memrias materiais para a
materializao de lembranas, saber e conhecer para no esquecer, compreender sem
perdoar, na concepo de Hannah Arendt, ela pode, por isso, colaborar para tornar a
vida pensvel, auxiliando desfechos atravs do fim da angstia do inacabado, do devir
eterno do desaparecimento. Neste sentido, torna psicologicamente e materialmente a
vida vivel e, assim, vivvel (livable). A construo de uma memria material, que
pode ser tocada, ouvida, experimentada, que pode tornar-se smbolo de sofrimento,
como propem Zarankin e Niro (2010), que asseguram credibilidade memria, ou so
parte do encerramento de uma vida de luta (TELES, LISBOA, 2012), conforma uma
das arqueologias possveis do crvel.
Diferentes agentes construram tticas distintas para tornar a vida vivvel aps os
processos desencadeados pela represso guerrilha no Bico do Papagaio. O evento
do desaparecimento de entes queridos, uma situao-limite, desencadeou processos de
reconstruo do mundo e da vida de familiares de desaparecidos polticos na guerrilha
do Araguaia (SOUSA, 2011). Camponeses da regio, migrantes advindos de sucessivas
expulses de suas terras, criaram mitos e lendas, na tentativa de dar sentido s mudanas
em seu mundo cotidiano, s rupturas em um mundo que existia at ento na fronteira da
Amaznia oriental (MONTEIRO, 1974; SADER, 1990; VELHO, 1995).
O corpo uma das mais fortes representaes da materialidade em contextos
repressivos, tanto no sentido de seu potencial em criar provas materiais para crimes,
como enquanto locus privilegiado sobre o qual a represso agia (SALERNO, 2009).
No Araguaia, uma das estratgias militares estava em mostrar aos moradores os corpos
machucados, mutilados e inanimados de alguns guerrilheiros mitificados e heroificados
ainda em vida. Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldo, tornava-se lobisomem,
fumaa para escapar, era protegido da me dgua e de outras divindades amaznicas;
teria sido enterrado no interior da base de Xambio e seu corpo pendurado em um
helicptero e exposto a amigos e conhecidos; Dinalva Conceio Oliveira Teixeira, a
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Dina, desfazia-se em borboletas, e, como Osvaldo, por isso nunca era capturada,
ludibriando as mais complexas manobras militares, j que, nos relatos orais sobre sua
memria, no andava, flutuava (STUDART, 2006; MACIEL, 2011).
O imaginrio social tambm construiu narrativas de representao para as realidades
vividas, tornando crvel, aos moradores do Araguaia, a bravura e os smbolos de
resistncias, materializados, tornados palpveis. Ainda cantam-se odes aos heris em
locais recnditos da mata, como tticas de reconstrues de mundo por representaes
que permitiram dar sentido e continuidade vida aps a represso. Tambm deste modo,
a arqueologia pode propor narrativas e memrias materiais para uma vida praticvel,
tornando crvel planos para o vivvel, mesmo a partir de materialidades ausentes
(CAZDYN, 2013).
Apesar de seu papel fundamental na localizao dos mortos, no esclarecimento
aos vivos dos episdios ocorridos, reconsiderando o sentido etimolgico de forense,
que a Arqueologia pode apaziguar a dor do desaparecimento, do no saber, do imaginar
e do elucubrar. Ao debruar-se sobre a paisagem, os lugares, a arquitetura, o uso do
espao, os vestgios materiais (tambm os no esquelticos) associados ao contexto da
ditadura cvico-militar, mergulha no simbolismo de lugares de memria e esquecimento
(CARR, JASINSKI, 2013) e nas tticas para continuidade da vida aps a violncia,
auxiliando na materializao e construo de histrias por narrativas que se opem ao
silncio institucional, legitimado pela mquina estatal, sobre o episdio da Guerrilha
do Araguaia. Mais do que arqueologias forenses ou da represso e da resistncia, trazse tona o sensvel (BEZERRA, 2013), de forma simtrica (WITHMORE, 2007), da
materialidade au combat s no narrativas.
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Arqueologia Pblica
Revista de
ARTIGO
VESTGIOS DE UMA
AUSNCIA:
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ARTIGO
VESTGIOS DE UMA
AUSNCIA:
UMA ARQUEOLOGIA DA REPRESSO
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Trabalhou no front italiano da guerra como oficial de inteligncia e informaes. Seu histrico de aes
contra o governo comea em 1954, quando, ao lado de coronis, redigiu uma manifesto contra o aumento
do salrio mnimo proposto por Getlio Vargas. Em 1955, tentou impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e, em 1961, tentou vetar a posse de Joo Goulart. Em 1962, criou e dirigiu o IPES (Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais) que passou a grampear ilegalmente milhares de telefones no Rio de Janeiro,
reunindo arquivos e dossis que mais tarde serviram para criar o SNI (Sistema Nacional de Informaes)
em 1964, quando participou ativamente do golpe militar - com intuito de espionar e perseguir qualquer
um que estivesse tentando conspirar contra o regime. Criou uma mquina responsvel por centenas de
desaparecimentos, mortes e torturas. Por ser natural de Rio Grande e por ter realizado aes como a
criao da atual Universidade Federal do Rio Grande e a transferncia do 5 Distrito Naval de Florianpolis para Rio Grande, considerado por muitos como um benfeitor local. Essa imagem reflete-se em
recorrentes homenagens feitas pela prefeitura local e por outras instituies. Recentemente, em 2008, o
6 Grupo de Artilharia e Campanha (GAC) inaugurou um monumento a Golbery intitulado O reconhecimento de sua terra natal. A ltima reverncia memria do general diz respeito instituio do
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Se, como j se disse, somos o que a nossa memria nos diz que somos, precisamos
no esquecer. Porque se esquecemos, morremos em uma parte. Claro que tambm sabemos que a memria est permanentemente construindo-se e reconstruindo-se e, assim,
um engano pensar que podemos resgatar memrias, pois no se trata de um pacote
de informaes acabado (MENEZES, 1992). Ligada ao esquecimento, ela s permite
lembrar de partes do passado. O que queramos lembrar, ento?
Consideramos que a arqueologia uma atividade inerentemente poltica e que ela
pode e deve contribuir com um mundo mais justo e humano (McGUIRRE, 2008; LITTLE & SHACKEL, 2014). Quisemos gritar, em alto e bom som, que a histria est construda por tiranias, resistncias, sonhos, lutas, vaidades. Que a histria no feita apenas de heris reconhecidos, mas tambm de pessoas comuns, cuja agncia ignorada, e
de outras tantas pessoas banais, que tiveram que viver suas vidas com as consequncias
da violncia, com partes que lhes foram arrancadas, com ausncias... Quisemos mostrar
as sombras dos rostos daqueles que esto excludos das histrias oficiais e dos quais no
devemos esquecer.
Mas memria no s lembrana e esquecimento. Ela est em documentos, em
monumentos, em museus, mas tambm encontra-se nos corpos, nas experincias e nos
afetos (SILVA, 2008: 62). Ainda conforme Silva,
Nesse sentido, podemos pensar nos afetos como formas de conhecimento, compreenso e
experimentao do mundo, bem como de traduo das nossas vivncias para os outros. O
indivduo est mergulhado em uma totalidade de significados, da que no possvel pens-lo fora dos contextos sociais. O homem est sempre, de algum modo, afetado e essas
afeces qualificam suas disposies para..., suas relaes com o espao e o tempo, nas
suas interdependncias, definindo, inclusive, porque se sente dada emoo e no outra, em
situaes especficas. Razo e emoo so um duplo reversvel: a racionalizao opera com
base na afetividade em dada situao ao mesmo tempo em que utiliza seu potencial reflexivo
para orientar as emoes (ibidem: 68).
Assim, consideramos a necessidade de utilizar um recurso que nos permitisse atingir as subjetividades. Pretendemos que, ao alcanar as afetividades, provocssemos um
sentido de pertencimento s memrias que reconstruamos ali. Que, atravs de emoes
provocadas, o indivduo vivenciasse a experincia proposta e pudesse, assim, se considerar como parte de uma histria da qual ele tambm personagem.
Atravs de um simulacro15 (BAUDRILLARD, 1991), propusemos fazer uma tradu15 Utilizamos simulacro no sentido de Jean Baudrillard (1991), ainda que para este autor, um simulacro
seja um signo sem vnculos com o real, que se apresenta mais real que a realidade. Para este autor, o
simulacro no mantm qualquer relao com qualquer realidade. Para ns, a construo desse simulacro
obedeceu critrios de realidade. Ainda assim, tomamos de Baudrillard a ideia defendida em Simulacros e
Simulao de que na ps-modernidade os smbolos tm mais importncia e mais eficcia do que a prpria
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16 Helio Oiticica foi um dos primeiros artistas a usar o espao e todos os sentidos humanos em
seu trabalho. Na proposta que apresentamos aqui, Oiticica inspirador. Como ele, queremos
fazer ver coisas de uma forma diferente.
17 A dcada de 1960 marcada pela velocidade das vanguardas artsticas, que tem Nova Yorque
como capital cultural do sculo XX. Dentre as manifestaes artsticas como Minimalismo, Op Arte,
Arte Cintica, Novo Realismo e Tropiclia, a Pop Arte surgida na Inglaterra, mas apropriada e difundida
pelos norte-americanos foi a vanguarda mais decisiva da dcada. Sem programa preestabelecido, sem
manifesto, utilizando-se do repertrio do cotidiano do consumo e da cultura de massa, foi rapidamente
transformada em tendncia internacional. Isso mostrou o poder cultural dos americanos.O desafio aos
policias e os protestos dos estudantes nas ruas de Paris foi um marco que desencadeou movimentos de
contestao, em vrios Pases, revoltas e guerrilhas urbanas. Estudantes, artistas e intelectuais ocupam
as ruas, fazem passeatas. A contra cultura, a revoluo cultural. Os artistas plsticos abandonam os museus, as galerias, saem da solido dos atelis e se misturam na multido. a potica do gesto, da ao,
da coletividade, a utopia da arte / vida como participao do espectador na realizao da obra de arte.
No Brasil a Tropiclia de Hlio Oiticica, foi uma das manifestaes mais polmicas, ao lado de Terra
em Transe filme experimental barroco de Glauber Rocha e a pea O Rei da Vela de Oswald de Andrade,
dirigida por Jos Celso Martinez. (http://josekuller.wordpress.com/2008/07/17/as-artes-plasticas-
na-decada-de-60-e-em-maio-de-68/)
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conhecimentos e subjetividades. Pode-se pensar o trabalho como a criao de um territrio, de um espao, no qual cada um percorre em um ritmo particular, conduzido pela
maneira como se afeta, como interage. Pode-se perceber que nesse trajeto, os estmulos
geram pausas e reflexes, provocadas pela capacidade de sentir e de insero de cada
um.
Outro aspecto a enfatizar refere-se preocupao esttica que permeou todo o desenvolvimento do trabalho coletivo, desde a proposta.
fundamental trazermos o significado da palavra estetizar: lidar com determinado
fato, acontecimento ou elemento intensificando seu valor esttico, sua beleza18 e sua
atratividade. Leituras e prticas estetizantes envolvem a possibilidade de seduo ou
repulsa (GLOSSRIO ..., 2010: 9).
Houve duas instalaes, que apesar de serem em lugares bem diferentes, com pblicos diferentes, mantiveram o projeto estrutural inicial intacto. A primeira foi no Prdio
do Diretrio Central de Estudantes da Universidade Federal do Rio Grande, com o pblico esperado de acadmicos e pessoas envolvidas no mbito universitrio. A escolha,
neste momento, esteve relacionada ao fato de que o prdio do DCE um local de livre
acesso aos estudantes, prximo ao Restaurante Universitrio e, portanto, localizado em
posio central e estratgica. A segunda instalao abrangeu um projeto bem maior, o
qual se chamou Circuito Resistncia Manifesta. Este projeto foi o desdobramento da
proposta inicial. Neste circuito, tivemos atividades tanto na Prefeitura Municipal, no
centro da cidade, quanto no Bairro Cassino, o bairro/balnerio da cidade. A inteno de
utilizar estes locais deveu-se possibilidade de atingir um pblico amplo e diversificado. A Prefeitura, localizada na rea central da cidade, favoreceria o acesso do cidado
comum, que transita cotidianamente por aquela rea. O Cassino, situado a cerca de 20
quilmetros do centro, apresentava a possibilidade de atender os moradores do bairro
e os turistas que frequentam o balnerio. Na prefeitura, ficou a Instalao aberta ao
pblico, e tambm foram feitas algumas Rodas de Conversas com convidados que trabalham diretamente com o tema da represso, como foi o caso do Arquelogo Andrs
Zarankin, do Historiador Renato Della Vechiae, Eliane de Oliveira Rubim, integrante do Instituto Mrio Alves19. Tambm pessoas que vivenciaram a questo na cidade,
18 Entendendo-se beleza como relao entre o objeto e o observador. Uma forma das pessoas
se relacionarem entre si e com o mundo. Tudo no mundo recebe uma denominao e um valor
como reflexo do sentir e do pensar, que, por sua vez, concretizam-se atravs de smbolos, e a
partir destes, conseguimos dar significaes para as nossas experincias(DUARTE JR, JooFrancisco. O que Beleza. Coleo Primeiros Passos, vol. 167, 3. ed. So Paulo, Brasiliense,
1991).
19 O Instituto Mrio Alves (IMA) um instituto voltado ao desenvolvimento de estudos e
pesquisas polticas, econmicas e sociais. Tem como proposta central a criao de um espao
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Fig. 1A: Na direita, cartaz de divulgao do evento realizado no recinto do DiretrioAcadmico da Universidade Federal do Rio Grande. Imagem: Clia Maria Pereira. Fig. 1B: Na esquerda,cartaz da poca da
Ditadura. Fonte: http://folhetando.blogspot.com.br.
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Fig. 2: Entrada da InstalaoVestgios de uma Ausncia: uma Arqueologia da Represso. Foto: Clia
Maria Pereira, 2014.
O segundo ambiente era o Quarto Escuro. Este era, de fato, o primeiro ambiente
em que a pessoa ficava s. Era uma pequena sala, completamente escura, sem luz e
sem ventilao, onde o som de relatos de torturados, gritos e descries de mtodos de
tortura se misturavam aos sons de discursos dos generais da ditadura - especialmente
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Ficava-se ali... At quando fosse possvel aguentar. Em p. Naquele ambiente catico, pavoroso, terrificante. Alguns ficavam segundos e voltavam, indo embora, abandonando a instalao. Outros seguiam adiante. Poucos toleravam ficar por muito tempo
ali. Quando no era mais possvel suportar, achava-se uma sada que, de fato, ficava
escondida entre lonas pretas.
O terceiro ambiente, mais conhecido como a Sala dos Rostos, tinha uma luz tnue
e, ao contrrio do ambiente anterior, era todo branco, amplo e silencioso. E a nica coisa que se via era o mural com o rosto, nome, idade, profisso e data de desaparecimento
de sessenta e quatro brasileiros22 projetados na parede ao fundo. A pessoa identificaria
22 Fizemos a seleo dos sessenta e quatro desaparecidos polticos conforme os seguintes
dados: nome completo, profisso, idade, imagem do rosto e data de desaparecimento. Tais da-
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ali o rosto daquele nome que tinha retirado na Entrada. Encontravam-se homens e mulheres, jovens e velhos, estudantes ou profissionais. Todos desaparecidos. A sensao
era de um intenso vazio.
Fig. 4: Imagem projetada na Sala dos Rostos. Foto: Clia Maria Pereira, 2014.
O quarto ambiente era chamado Quarto da Ausncia. Era justamente o que o nome
diz ser, um quarto de um(a) jovem que estava estagnado no tempo. Era um quarto ambientado de acordo com o final da dcada de 1960 e comeo da dcada de 1970, poca
em que houve mais denncias de desaparecimentos e mortes de militantes. O quarto
apresentava vrios objetos e cheiros que refletiam a imagem de um(a) jovem militante
e a sua ausncia naquele lugar congelado no tempo.
Um quarto comum: os chinelos ao lado da cama, uma escrivaninha com uma mquina de escrever ainda com uma folha parcialmente escrita, livros de Karl Marx, um
violo sobre a cama, uma figura de Che Guevara na parede, almofadas e discos no cho.
Havia fotos tambm. Nessas fotos, sempre uma pessoa apagada. Uma sombra onde deveria estar uma criana entre os pais. Outra sombra, onde deveria estar um jovem entre
dos foram retirados do stio http://www.desaparecidospoliticos.org.br, que organizado pela
Comisso Nacional da Verdade, entidade que age na luta contra a omisso e o esquecimento
desses crimes cometidos na ditadura. Portanto, esses sessenta e quatro indivduos fazem parte
de um grupo muito maior de desaparecidos polticos no pas.
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seus amigos. E assim por diante. Um quarto que ficou ali, sem que houvesse algum
para povo-lo. O quarto vazio. O quarto da ausncia. Ali, as pessoas se emocionavam.
Fig. 5: Vista geral do Quarto da Ausncia. Foto: Clia Maria Pereira, 2014.
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O quinto e ltimo ambiente foi o Mural de Escritos, onde painis expositores foram
revestidos de papel pardo para que as pessoas, recm-sadas do Quarto da Ausncia,
tambm pudessem deixar seus vestgios na instalao. Este ambiente era bem claro e ali
se ouvia canes que serviram de resistncia e protesto naqueles anos. Cantores como
Chico Buarque, Elis Regina, Geraldo Vandr e Milton Nascimento foram alguns dos
artistas escolhidos para fazer o plano de fundo e manter o clima de envolvimento no
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Fig. 10: Deixe aqui o seu vestgio... Fig. 11: Uma das frases no mural. Fig. 12: Visita de estudantes.
Fig. 13: Detalhe do Mural. Fotos: Clia Maria Pereira, 2014.
Acreditamos que o mural foi mais do que o retorno do pblico: foi uma recompensa. Foi ento a nossa vez de nos emocionar e ter certeza de que o nosso objetivo foi
cumprido: a cultura material por si s, as diversas coisas colocadas juntas no contexto
certo expressam o que palavras no diriam. Conseguimos ento demonstrar o poder que
a arqueologia tem de, atravs da cultura material, despertar sentimentos, indignao e,
principalmente, pertencimento e empatia.
Numa tarde que tinha tudo para ser igual a qualquer outra, as pessoas que se dispuseram a visitar a instalao saram de l com sentimentos diversos:
-Nojo!
-Triste!
-Orgulho, Medo/Revolta, Vergonha!.
-Agonia, Revolta, desespero, aperto no corao....
-Esperana de que nunca se repita
-Momentos de dor....
-Relembrei minha infncia nos anos 70....
-Cenas que nos fazem refletir... Obrigada pelas sensaes, por me tirar da zona de
conforto!
-Afasta de mim esse cale-se!
-A sala d uma sensao horrvel, consegue-se sentir, nem que seja um pouco de
terror, e o quanto d melancolia por ver o sumio da possvel pessoa que viveu ali.
-Assim como na poca de ditadura me senti desorientado e confuso com as narrativas de futebol de tal maneira que fiquei um pouco alienado com as imagens que
passaram na minha frente. O espetculo do futebol usado para alienar as pessoas.
Ns, envolvidos no trabalho, nos dividimos em pequenos grupos de dois ou trs
para podermos auxiliar o pblico em todos os horrios que a instalao ficou aberta.
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Portanto, de maneira geral, todos ns tivemos um contato muito direto com o pblico,
possibilitando avaliar diariamente como a proposta impactava os visitantes.
Apesar da emoo geral do pblico, era impossvel pensar que no haveria manifestaes a favor do regime militar. Um aluno pertencente a uma turma de ensino mdio
de certa escola pblica da cidade escreveu: No h futuro para o pas sem a ditadura.
A professora levou as respostas dos alunos como um tema a ser discutido em sala de
aula, chamando ateno para as diversas verses que se contam sobre o perodo. Esta
foi a nica manifestao favorvel ditadura que recebemos. Em contrapartida, muitas
pessoas escreveram chamados de revoluo:
-Toda revoluo impossvel at que seja inevitvel.
-No podemos desistir, no podemos por eles, por ns pelo povo!.
-Hay hombres que luchan un dia y son Buenos/ Hay otros que luchan un ao y son
mejores/ Hay quienes luchan muchos aos y son muy Buenos/ Pero hay los que luchan
toda la vida/ Esos son inprescindibles (citando Bertold Brecht).
-Liberdade-Utopia.
-No nos devemos Sistematizar! Se no fossem as causas perdidas o que nos
impulsionaria? At quando a culpa no minha?
A SAUDADE O PIOR CASTIGO E EU NO QUERO LEVAR COMIGO
A MORTALHA DO AMOR
Entendendo a Arqueologia como uma disciplina dotada de grande responsabilidade
social e poltica, a instalao possibilitou ao pblico relacionar experincias de um passado sombrio com o presente. Em meio ebulio popular vivida nos ltimos meses,
percebeu-seque ainda vivemos com marcas daquele tempo. A fora desproporcional, a
brutalidade policial que, a servio do poder, parece fazer uma limpeza nas ruas, permitiu aos visitantes uma reflexo do panorama atual do pas. A questo da desmilitarizao da polcia apareceu em falas. Atravs do mural feito de papel pardo, a comunidade
pode interagir e deixar o seu testemunho. Quisemos ouvir o que cada um tinha a dizer.
Quisemos que cada um deixasse seu vestgio.
A instalao trouxe ao pblico talvez uma redescoberta, uma nova viso sobre o
nosso trabalho, que rotineiramente tratado como um mero entretenimento, dotado de
aventuras fantsticas com segredos preciosos, e que se atm apenas ao antigo. Ou, como
quando uma das integrantes do grupo foi questionada: Por que isso arqueologia e no
histria?. Foi um deleite finalmente poder responder: - arqueologia, pois trazemos
as coisas tona. A materialidade traz a vida que os documentos escritos usurpam. No
que a histria no tenha o poder de emocionar com os textos, mas absolutamente dife-
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rente ler sobre os fornos utilizados nos campos de concentrao nazistas e deparar-se
com o sapatinho de uma criana incinerada dentro de um, como frizou Lizandro Mello24
em sua fala aps a exibio do filme Que bom te ver Viva.
Conseguimos mostrar que possvel ir alm, e proporcionar momentos mais incrveis do que uma personagem sendo perseguida por uma bola gigantesca em uma de
suas aventuras25. Talvez sim, talvez tenhamos um toque de magia, talvez nossa magia
seja a possibilidade de tocar as pessoas e proporcionar essa reflexo ao escancarar o
sujo, o feio, o que revolta, opondo-se assim a qualquer mecanismo de higienizao do
passado.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos os alunos da disciplina de Arqueologia do Capitalismo III, do
curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG
-, que se envolveram neste projeto. Agradecemos ainda, ao Liber Studium, Laboratrio
de Arqueologia do Capitalismo da FURG, Direo de Arte e Cultura da Pr-Reitoria
de Extenso desta Universidade, Secretaria de Municpio da Cultura do Rio Grande,
Associao dos Professores da FURG (APROFURG), ao Sindicato do Pessoal Tcnico-Administrativo da FURG (APTFURG), ao DCE da FURG, ao Ponto de Cultura
ArtEstao e ao Instituto Mario Alvez.
Agradecemos, sobretudo, aos que lutaram para que hoje pudssemos estar aqui.
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Arqueologia Pblica
Revista de
ENTREVISTA
A ARQUEOLOGIA DA
REPRESSO E DA RESISTNCIA:
UMA CONVERSA COM ANDRS ZARANKIN
ENTREVISTADORES
Victor Henrique da Silva Menezes
Jlia Negov de Oliveira
Dossi
No. 10
ISSN 2237-8294
dezembro de 2014
ENTREVISTA
A ARQUEOLOGIA DA
REPRESSO E DA
RESISTNCIA:
UMA CONVERSA COM ANDRS ZARANKIN
ENTREVISTADO
Andrs Zarankin Professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
e pesquisador associado do Laboratrio de Arqueologia Pblica Paulo Duarte (LAP/
NEPAM/Unicamp). Email: [email protected]
ENTREVISTADORES
Victor Henrique da Silva Menezes Graduando em Histria pela Unicamp e estagirio
do Laboratrio de Arqueologia Pblica Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp). Contanto: [email protected]
Jlia Negov de Oliveira Graduanda em Histria pela Unicamp e colaboradora no Laboratrio de Arqueologia Pblica Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp). Contanto:
[email protected]
RESUMO
Na presente entrevista, o leitor encontrar uma breve definio do conceito Arqueologia da Represso e Resistncia, bem como um panorama sobre as possibilidades desse
campo de pesquisa. Alm de ressaltar a importncia de estudos nessa rea, o professor
Andrs Zarankin tece comentrios acerca do processo de musealizao, e ressalta a
importncia do contato com as comunidades e os agentes histricos.
Palavras chave: Arqueologia da Represso e Resistncia; estudos do tempo presente;
musealizao; arqueologia pblica.
INTRODUO
Andrs Zarankin professor titular do Departamento Antropologia e Arqueologia
da FAFICH-UFMG e doutor pela Universidade Estadual de Campinas, com enfoque na
rea de Arqueologia e anlise arquitetnica. Montou e liderou a equipe de escavao
do Centro de Deteno Clandestino Clube Atltico em Buenos Aires, entre os anos
de 2002 e 2003. Possui experincia e pesquisasnas reas de Arqueologia Histrica,
Arqueologia Antrtica, Arqueologia do Capitalismo, Arqueologia da Arquitetura e dos
campos de concentrao latino americanos.
Na entrevista que se segue, Zarankin conta sobre sua trajetria como estudioso da
cultura material e sua relao com os movimentos pelos direitos humanos. Posiciona-se
sobre a importncia das pesquisas na rea de Arqueologia da Represso e Resistncia,
sobre o papel do arquelogo e suas aes na comunidade relacionadas com Arqueologia Pblica, e indica as possibilidades para jovens pesquisadores interessados nessa
temtica.
Entrevistadores: Para comear, agradecemos ao professor por ter aceitado o convite para participar desta entrevista, e, gostaramos que falasse um pouco acerca
de sua trajetria como estudioso da cultura material, e em particular, do tema da
represso e resistncia. Quais foram os caminhos que te levaram a realizar pesquisas na rea de Arqueologia?
Andrs Zarankin Essa uma pergunta difcil de responder, j que as escolhas aconteceram em diferentes pocas e por diferentes motivos. Talvez possa colocar como eixo
conector meus pais. Quando tinha seis anos, eles me deram de presente um livro intitulado A grande aventura da Arqueologia, o que me fez decidir a to curta idade virar
arquelogo. Claro que minha ideia da profisso estava associada aos esteretipos dos
tesouros e aventuras, que mais tarde seria reforado por Indiana Jones (o que tambm
intensificaria minha vontade de virar arquelogo). Por outro lado, meus pais sempre
participaram ativamente de movimentos polticos e de diretos humanos, o que fez que
mantivesse sempre uma posio de engajamento, principalmente nas reivindicaes
por justia relacionada aos crimes da ditadura Argentina. O problema foi que estes dois
campos na minha vida permaneceram separados por muito tempo, j que na universidade era ensinado que a descoberta do passado real deveria ser pura e no contaminada.
Alm disso, trabalhava-se com um passado distante.
Foi a partir de meu amadurecimento como arquelogo, da leitura extracurricular de
autores como Hodder, McGuire, Shanks, Tilley, Beaudry, Funari, Tania Andrade Lima,
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dentre outros, que minha cabea comeou a mudar, e entendi que tinha vivido preso
dentro de limites com medo que o que fizesse no fosse mais considerado arqueologia.
Neste momento, compreendi que arqueologia e poltica estavam atravessadas uma pela
outra. Assim, porque no utilizar a arqueologia para tratar no mundo moderno, de temas
como dominao, resistncia, violncia, ideologia, capitalismo, entre outros? Surgiram assim meus primeiros trabalhos que buscavam analisar a ideologia na arquitetura.
Posteriormente meu interesse se voltou para o tema da ditadura e violncia poltica. J
existia o exemplo do EAAF (Equipe Argentina de Antropologia Forense), porm, este
inspirador grupo de vanguarda sempre tinha funcionado fora do universo acadmico (e
de fato no era costume deles publicar ou participar de congressos e eventos cientficos). Neste momento, 2002, o governo da cidade de Buenos Aires abriu concurso para o
desenvolvimento de um trabalho de escavao no centro clandestino Club Atltico. Era
uma grande oportunidade, ento montei uma equipe e apresentei um projeto. Esse tinha
como objetivos principais o estudo da arquitetura do lugar como estratgia repressiva e,
ao mesmo tempo, era a construo de uma memria material sobre a represso. Nosso
projeto foi escolhido e durante um ano trabalhei de graa, unicamente pelo meu convencimento de que finalmente estava podendo reunir duas grandes questes que sempre
me instigaram, a arqueologia e a luta por justia.
Entrevistadores: Existe consenso hoje, no meio acadmico, na definio do campo
da arqueologia da represso e da resistncia? Como voc o define?
Andrs Zarankin O conceito foi proposto por Pedro Paulo Funari e por mim num
livro que leva este ttulo em 2006. Posteriormente, foi utilizado por outros pesquisadores de formas diversas. Nossa ideia original foi simplesmente desenvolver uma Arqueologia poltica que tivesse como foco o estudo dos processos de violncia poltica
na Amrica Latina, entre as dcadas de 1960 e 1980. importante salientar que sempre
utilizamos os conceitos de represso (para falar das polticas do sistema), mas tambm
de resistncia, para mostrar que as pessoas no so passivas e aceitam de forma submissa as imposies. Mas, pelo contrrio, estas desenvolvem tticas (segundo a definio
de De Certau) a partir das quais lutam, se enfrentam e s vezes conseguem resistir ou
mudar aquilo que lhes imposto.
Entrevistadores: No contexto da Amrica do Sul, qual a funo e a importncia
de realizar pesquisas no mbito da Arqueologia da Represso e Resistncia?
Andrs Zarankin Pessoalmente, acredito que essas pesquisas so da maior importn-
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cia. No s para desenvolver uma viso critica do passado recente, e, portanto, de uma
memria do que no queremos que acontea novamente, mas tambm para compreender as estratgias de reproduo do sistema, para no continuarmos a acreditar que as
desigualdades sociais so naturais e que as pessoas comuns no tem fora suficiente
para construir outra realidade. A histria no s da Amrica do Sul, mas tambm da
Amrica Latina tem sido de lutas e conflitos e a arqueologia coloca-se como uma ferramenta poltica a servio dos povos (dentre as quais destaco os estudos do presente),
tendo o potencial de ajudar a reforar sociedades mais democrticas.
Entrevistadores: Como esse campo da Arqueologia estuda o uso dos espaos pelos
governos totalitrios e autoritrios?
Andrs Zarankin A arqueologia como disciplina nos capacita para efetuar leituras
sociais a partir da materialidade. O espao um dos componentes centrais para o estudo
da cultura material, j que este transformado em lugar a partir de uma distribuio
de pessoas e objetos criando funcionalidades e sentidos. O controle do espao, como
assinala Foucault, tem sido uma estratgia recorrente por parte do sistema a partir do
sculo XVII e principalmente do XVIII. Ter o poder de distribuir pessoas e coisas uma
estratgia eficaz de disciplina. No caso especifico dos governos totalitrios, separar e
reunir os inimigos facilita o exerccio do poder, de controlar e aniquilar. A arqueologia
pode utilizar estes lugares para discutir a estratgias repressivas (assim como tambm
as resistncias como uma linha alternativa de estudo).
Entrevistadores: Voc poderia nos apresentar um exemplo concreto de estudo desenvolvido no campo da Arqueologia da Represso e Resistncia?
Andrs Zarankin Existem mltiplos exemplos que vo desde a recuperao dos corpos dos desaparecidos, como parte dos estudos em antropologia forense, que buscam
determinar quando e como morreu a pessoa, at outros estudos que trabalham a organizao espacial dos campos de concentrao, passando por anlises da roupa encontrada
junto com os corpos dos desaparecidos, os grafites em paredes de prises, a construo
de lugares para a memria sobre as ditaduras, assim como muitos outros. Vrios destes
trabalhos podem ser encontrados nos livros Arqueologia da Represso e da Resistncia
na Amrica Latina na era das ditaduras (Funari & Zarankin, 2008) e Histrias Desaparecidas (Zarankin, Salerno e Perosinio, 2012).
Entrevistadores: Como as pesquisas arqueolgicas interagem com as vtimas dos
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regimes totalitrios na Amrica do Sul? E quanto aos familiares das vtimas, como
eles podem dialogar com tais estudos?
Andrs Zarankin Fora as equipes de Antropologia Forense, que em geral atuam como
ONGs, s recentemente a Arqueologia tem entrado de forma sistemtica na temtica da
represso e resistncia durante as ditaduras da segunda metade do sculo XX. Ademais,
os arquelogos esto acostumados a trabalhar de forma isolada da comunidade e dos
atores sociais que produziram o registro arqueolgico (que em geral esto mortos h
muitas centenas de anos). Isto tem dificultado a interao entre os arquelogos e os sobreviventes ou seus familiares. Porm, com sorte isto est mudando e, atualmente, em
grande parte dos projetos, vtimas, familiares, organismos de direitos humanos, dentre
outros, participam ativamente das pesquisas e so includos na tomada de decises sobre o rumo dos projetos.
Entrevistadores: possvel desenvolver pesquisas no campo da Arqueologia da Represso e Resistncia numa perspectiva da Arqueologia Pblica?
Andrs Zarankin Acredito que no exista outra forma de desenvolver uma Arqueologia da Represso que no seja pblica e que no implique um contato e uma colaborao com as vtimas, com suas famlias ou com a sociedade. Qualquer outro intento
seria retornar s prticas de uma arqueologia tradicional e autoritria, dentro da qual
o arquelogo o dono da verdade sobre o passado, indo contra os prprios princpios
implcitos numa arqueologia da represso e a resistncia.
Entrevistadores: Como os museus podem tratar da Arqueologia da Represso e
Resistncia? Como eles podem atuar/trabalhar com a cultura material advinda de
tais estudos?
Andrs Zarankin Este um tema que deveria ser discutido com os muselogos em
conjunto com os sobreviventes, agrupaes de direitos humanos, etc. Existem muitas
possibilidades de apresentar tanto as informaes como a cultura material recuperada.
Cada uma destas vai ter um efeito diferente sobre o pblico, que pode ir desde uma
sensao de esperana (monumentos, objetos feitos pelos prisioneiros, espaos repressivos agora limpos e cheios de espaos verdes) at o maior sofrimento que seja possvel
imaginar (ex. manchas de sangue, instrumentos de tortura, roupa furada por balas, etc.).
Como mencionei, no o arquelogo ou o muselogo quem deve escolher como deve
ser apresentada a histria do lugar ou os objetos recuperados, mas esta deciso precisa
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Entrevistadores: Agora, para finalizar: aos nossos leitores brasileiros que tiverem
interesse em desenvolver pesquisas na rea de Arqueologia, em especial, voltadas
aos estudos da Arqueologia da Represso e da Resistncia, quais so os possveis
caminhos a percorrer?
Andrs Zarankin No existe diferena com os percursos de qualquer pesquisa, isto ,
dentro da problemtica da Arqueologia da Represso e Resistncia, escolher um objeto
de estudo e pensar quais as perguntas que querem ser respondidas. Tambm fundamental pensar uma metodologia adequada. Tudo isto pode ser feito em diferentes nveis
de pesquisa que vo desde um TCC at um mestrado ou tese de doutorado. Atualmente,
acredito que grande parte dos cursos de Arqueologia no pas est aberta para receber
estudantes interessados na temtica.
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