A Arte e o Poder Do Novo Cinema
A Arte e o Poder Do Novo Cinema
A Arte e o Poder Do Novo Cinema
cinema
Paulo Filipe Monteiro
ndice
1 Esquerda, direita, margem, centro
2 A morte do velho cinema e o assassinato do cineclubismo
3 Novas condies para um novo cinema
4 Contra-tendncias e contrariedades
5 O Centro Portugus de Cinema e o
cerco
6 A primavera marcelista
7 Algumas caractersticas do novo cinema
8 A difcil relao com o pblico
9 Mais reviravoltas e desfasamentos
10 Bibliografia
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lanar alguma luz sobre esse paradoxo, mostrando como se pode criar e desenvolver esse
tipo de combinaes.
Sublinhe-se que o cinema portugus dos
anos sessenta no foi politicamente conservador: o paradoxo foi muito menos dos cineastas do que do regime, que desde muito
cedo, com Antnio Ferro, incorporou um
programa esttico vanguardista. Dizemos
apenas que, ao contrrio do movimento cineclubista, que o Estado Novo, mesmo na sua
face marcelista, no hesitou em extinguir, o
chamado novo cinema pde, ainda antes
do 25 de Abril, controlar todos ou quase todos os lugares da instituio-cinema, tendo
assim nas mos o poder de produzir, ensinar e criticar, apesar do seu alinhamento poltico esquerda. Uma situao contraditria
a que alis se vieram juntar, mais tarde, outras duas: durante o perodo revolucionrio
do Vero de 1975, o grupo do novo cinema
foi afastado a favor dos cineastas do velho cinema; e, nos anos noventa, foram duas pessoas h pouco sadas da rea comunista as
chamadas a defender e gerir um modelo liberal e populista que procurou durante algum
tempo acabar com a hegemonia que o grupo
do novo cinema tinha conseguido recuperar
com o 25 de Novembro.
Esse poder dos autores do novo cinema,
que manifestaram uma extraordinria capacidade simultaneamente artstica e organizativa, parece que no impediu, antes potenciou, o tipo de posies esteticamente vanguardistas de que procurarei enunciar alguns
traos, e nelas que temos de procurar as
explicaes para as contradies enunciadas.
Que essa nossa vanguarda esttica possa ter
ocupado os lugares centrais, ao contrrio do
que usualmente acontece e do que foi a tendncia do cinema mundial na segunda metade do sculo, eis outro paradoxo maior e
muitas vezes mais frtil.
ponto de, em 1948, o Estado Novo se ter decidido pela primeira vez a promulgar uma
lei de proteco que instituiu um Fundo
do Cinema Nacional onde os produtores
passaram a poder ir pedir subsdios e emprstimos para as suas produes: ao mesmo
tempo, estabeleciam-se quotas para a exibio de filmes portugueses.
Isso no chegou, no entanto, para travar a
decadncia de um cinema que os cineastas
maiores abandonavam, de que o pblico desertava e que, salvo raras excepes, levava
as empresas falncia, mesmo com os dinheiros pblicos e com produes cada vez
mais modestas. Nem o recurso a nomes famosos da revista, da cano, do toureio, do
ciclismo ou do hquei em patins, ensaiando
variaes das frmulas cmicas, folclricas
e sentimentais, nem to-pouco o recurso a algumas co-produes com o estrangeiro, travou a degradao, quantitativa e qualitativa,
do cinema portugus, bem patente nesse nmero zero de longas-metragens registado em
1955.
Muitos dos cineastas tiveram, ento, de recorrer s curtas-metragens, sempre ou quase
sempre documentais, cuja quantidade (embora raramente a qualidade) no cessou de
aumentar na dcada de 50, devido poltica
de subsdios do novo Fundo do Cinema (que
quase sempre apoiou mais documentrios do
que fices) e tambm s encomendas de servios pblicos ou religiosos e de algumas
empresas privadas. A prpria publicidade foi
recorrendo ao cinema em ritmo crescente, tal
como os cineastas foram recorrendo publicidade como ganha-po. A partir do final da
dcada, foi nos documentrios e na publicidade que primeiro se revelaram muitos dos
nomes daqueles que vieram mudar o nosso
cinema.
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completada por um indito movimento editorial relativo s novas perspectivas do cinema, em obras originais ou tradues. Em
1967, o relatrio O ofcio de Cinema em
Portugal sublinhar: de notar que este
esforo editorial no foi um acontecimento
fortuito, mas sim o fruto de um clima geral
de entusiasmo criado volta do cinema pelos cineclubes, e que o seu aparecimento
consequncia directa do declnio destes.
Alm disso, renovou-se a crtica, no s,
como at a, em revistas especializadas, mas
nos prprios jornais dirios, que passaram a
reconhecer o cinema ao lado das outras artes. O prprio Fundo do Cinema subsidiou a
revista Filme, dirigida por Lus de Pina, que
se comeou a publicar em 1959. No seu
no 20 Novembro de 1960 a revista dedicava um dossier ao que j chamava "novo
Cinema portugus, afirmando, pela pena do
seu director, "que este, vivendo nos ltimos
anos de uma desconsoladora mediania, precisa de sangue novo. Os que ficaram para
trs, alimentando-se das prprias limitaes
e criando o mito da impossibilidade de fazer cinema em Portugal, parece j nada terem para dizer. O futuro do Cinema portugus est pois nas mos das personalidades
que reunimos nestas pginas". Seis anos depois das apstrofes da Imagem (que cessou
a sua publicao em 1961), era a certido de
bito, feita de dentro, do cinema dos anos
50. E, entre as "personalidades reunidas nestas pginas", figuravam nomes que depois
muito dariam que falar, quase todos eles pertencendo j aos quadros da R.T.P. (Bnard
da Costa, 1991, p.115).
Em 1958, entra para titular do Secretariado Nacional de Informao (SNI) Csar
Moreira Baptista, homem que tinha poucas iluses quanto capacidade dos cine-
astas no activo e que, para poder prosseguir uma obra no cinema, necessitava de
descobrir novos talentos (Bnard da Costa,
1991, p.114). Deu-se ento, escreve Joo
Mrio Grilo (1992, p.157), uma inflexo
assinalvel na poltica do ento SNI, que,
entre outras coisas, administrava os dinheiros do Fundo: efectivamente, a estagnao
do tantas vezes chamado "cinema nacional",
a imperiosa necessidade de sustentar a mquina tecnolgica da televiso e, j agora, as
vozes quase consensuais que exigiam um cinema novo porque, como referiu Cunha Telles, "a degradao era tal que ningum a poderia defender ou sustentar", fizeram com
que o Fundo ensaiasse um esforo de renovao, implementando uma poltica de formao, nomeadamente com a atribuio de
Bolsas de estudo para o estrangeiro, e incentivando produtores. Repare-se que, se inflexo houve, foi ao reencontro do vanguardismo esttico de Antnio Ferro, que considerava as comdias dos anos quarenta filmes
grosseiros, reles e vulgares, o cancro do
cinema portugus.
Assim o Fundo, ao mesmo tempo que
corta cerce o movimento autnomo dos cineclubes, continua por sua prpria iniciativa,
com mais meios e mais controlo, a renovao por eles iniciada, acolhendo mesmo alguns elementos no afectos ao regime, procurando formar os novos valores indispensveis renovao decerto numa tentativa
para os no lanar numa oposio aberta, ou
sem contar at que ponto eles iriam subverter a ideologia e o cinema at a dominantes.
O Fundo concede bolsas de estudo a alguns
jovens candidatos, como Antnio da Cunha
Telles e Manuel Costa e Silva (para Paris),
Fernando Lopes e Faria de Almeida (para
Londres) para alm deles, mas sem apoio
4 Contra-tendncias e
contrariedades
A ascenso do novo cinema consegue
mesmo ultrapassar algumas contrariedades,
ligadas, sobretudo, guerra entretanto surgida em frica: novas dificuldades vo
levantar-se ao Cinema portugus, que, em
obras de fundo, poucas relaes tivera com
o ultramar [...]. A prioridade nacional dada
ao conflito e nessa prioridade est o domnio absoluto, a "mobilizao"da RTP
atrasa naturalmente as solues de fundo.
As eleies de 1958, a guerra, o caso do
Santa Maria expuseram e geraram mais revolta contra o regime e provocaram o aperto
da censura, que levaria s prises de cineastas e crticos como Fonseca e Costa, Vasco
Granja, Henrique Esprito Santo, e at Manoel de Oliveira, libertado por imediata interveno de gente do cinema junto da Presidncia do Conselho, no momento em que
decorriam as homenagens sua obra (Pina,
1987, p. 44). Mais tarde, foi preso o distribuidor Jos Manuel Castello Lopes.
Mas o apoio dado pelo regime aos novos cineastas foi maior do que esses incidentes puderam fazer crer. Por exemplo, como
lembra Bnard da Costa (1991, pp.117-118),
em Agosto de 1962, o S.N.I. desceu a terreiro para protestar contra a afirmao que
considerava ser caluniosa de ter recusado
fundos a Manoel de Oliveira. O qual, mais
ou menos por essa altura, foi preso pela
PIDE. De todas essas contradies se vivia.
Por isso, as leituras maniquestas no ajudam. Esta histria do "fascismo"portugus
foi bastante mais complicada do que depois
a pintmos. Na histria do cinema isso
quase exemplar. Triunfaram cineastas em
que o cineclubismo tinha sido mais percur-
importante (dez filmes) - incluindo dois filmes para a infncia (um gnero quase nunca
produzido entre ns), em torno da amizade
de um grupo de crianas por um co. 1964
o ano de Calvrio: Rei da Rdio, vencedor do 1o Festival RTP da Cano, estreia no
cinema com Uma Hora de Amor. A Cinedex, que, no ano anterior, pensara ter descoberto um filo de dinheiro com O Mido da
Bica, com Fernando Farinha, aposta agora
no nacional-canconetismo. O resultado foi
uma srie de fitas pirosas e degradantes
(Ramos, 1989, p.199). E, quando faltarem
os produtores, as prprias vedetas assumiro essas funes e esses riscos financeiros,
como ser o caso de Calvrio, em O Diabo
era Outro (1969) e Tony de Matos em Derrapagem (1973).
Continuam tambm a experimentar-se as
co-produes, sempre com maus resultados
junto do pblico. Apesar de tudo, em termos comerciais, melhor xito iam tendo alguns desses filmes ligeiros e y-y inteiramente portugueses, sobretudo as comdias, com destaque para Sarilho de Fraldas,
de Constantino Esteves (Eden, 1967). Mas,
como escreve Leito Ramos [1989:258], todos eles apenas estavam a deitar as ltimas
pazadas de terra sobre o corpo velho de um
cinema em declnio desde o princpio dos
anos cinquenta.
Como que em contraponto s produtoras destes filmes herdeiros do velhos cinema, surgiu Cunha Telles (rodeado por
um punhado de gente nova), que, confiado
nas hipteses de romper as barreiras, dotado
de algum capital pessoal, de certos contactos internacionais e no malquisto nos corredores do poder, avanou para outro projecto de produo contnua que animou o cinema portugus desses anos, quase sempre
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sem dinheiros do Fundo do Cinema (J. Leito Ramos, 1995). Tommos j conscincia do facto, aparentemente paradoxal, mas
historicamente inegvel que o cinema novo
(...) nasceu da herana do movimento cineclubista como das bolsas do Fundo e dos cursos da Mocidade Portuguesa. [...] Foi esse o
pano de fundo da casa produtora que Cunha
Telles fundou nesse mesmo ano de 1962, jogando nele a sua fortuna pessoal e trazendo
para ela quer os seus alunos de curso, quer
gente de cineclubes e da televiso (Bnard
da Costa, 1991, p.117).
M. S. Fonseca (1993) sublinha como no
s havia uma estratgia de produo que
visava a continuidade (um produtor, Cunha
Telles, rene sua volta os cineastas disponveis disponibilidade fsica e terica,
entenda-se e so eles Paulo Rocha, Fernando Lopes, Fonseca e Costa e Antnio de
Macedo), como igualmente essa produo se
dotara previamente de quadros tcnicos formados pelo 1o Curso de Cinema do Estdio
Universitrio de Cinema Experimental, onde
Cunha Telles era tambm elemento capital,
e donde, no domnio da fotografia, do som
e da montagem sairiam as figuras dominantes em todo o cinema portugus que se segue aos Verdes Anos. Cunha Telles produz
logo um conjunto de filmes muito bem sucedidos em termos de recepo crtica, nomeadamente internacional. O cinema portugus alcanava subitamente uma repercusso indita. Se j Dom Roberto e Os Pssaros de Asas Cortadas tinham estreado em
Paris, e o primeiro tinha ganho, margem
do Festival de Cannes, o Prmio dos Jovens Crticos, tambm o arranque das produes Cunha Telles auspicioso. Os Verdes Anos ganha a vela de prata no Festival
de Locarno (sobrepondo-se, por exemplo, a
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Telles experimentou, em vo, variados caminhos, como a adaptao literria de prestgio (O Crime de Aldeia Velha, de 1964, sobre a pea homnima de Santareno e apoiado pelo Fundo) e a co-produo, chamando
realizadores de fora: Le Grain de Sable e
Vacances Portugaises, de Pierre Kast, algumas sequncias de La Peau Douce, de Truffaut, e sobretudo As Ilhas Encantadas, de
Carlos Vilardeb, em 1964. No teve sucesso. No interior das "Produes Cunha
Telles", a atmosfera azeda bastante, pelos
idos de 67 (um pouco pela grande falta de dinheiro, um pouco tambm pela discordncia
entre produtor e realizadores sobre o destino
a dar ao que ia aparecendo); como resultado
disso, e talvez para se demarcar ("castigar")
da "fauna de ingratos", Cunha Telles decide
produzir um filme que, como escreve Joo
Bnard da Costa, "combinasse arte e pblico,
talento e plateias populares" (Grilo, 1992,
p.160). Telles resolveu apostar forte em
Antnio de Macedo, apesar de tudo o cineasta que no box-office lhe dera menos razes de queixa, para um filme de espionagem [...]. Chamou-se Sete Balas para Selma
(1967) e no s o no salvou, como levou os
seus companheiros de aventura a chamaremlhe piores nomes do que aqueles que o Diabo chamou me (Bnard da Costa, 1991,
p.126). O mais radical de todos ter sido Csar Monteiro, em O Tempo e o Modo (no 67,
Janeiro de 1969), considerando que o filme
pe em causa a batalha comum por um Cinema Novo que o senhor Macedo desacredita com esta Selma escancarada a toda a
inanidade: um filme como 7 Balas para
Selma s pode ser encarado como empresa
reaccionria, carregada de balas que se desfecham traioeiramente nas costas dos pro-
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O Centro Portugus de
Cinema e o cerco
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Alberto Seixas Santos (1963), Manuel Guimares (1963), Joo Csar Monteiro (1963),
S Caetano (1963), Alfredo Tropa (1963),
Antnio Escudeiro (1963), Teixeira da Fonseca (1964), Manuel Costa e Silva (1966),
Elso Roque (1967), Joo Matos Silva (1968),
Antnio da Cunha Telles (1968). Tinha apoiado os Festivais de Lisboa e outras manifestaes espordicas. Mas at 67 apesar de
algumas solicitaes sobretudo para o documentrio cultural [...] recusou envolver-se
nesse terreno e no havia, nos seus Servios
ou Departamentos, qualquer sector de Cinema (s em Maio de 69, tal sector foi criado
no mbito do Servio de Belas-Artes). Mas o
barulho comeava a ser muito s suas portas
e em 67 o Dr. Azeredo Perdigo considerava que era tempo de pensar no problema.
A ocasio surgiu, quando, nesse mesmo ano,
o Cine-Clube do Porto solicitou um subsdio
para uma "Semana de Estudos sobre o Novo
Cinema Portugus"a realizar em Dezembro.
Ao conced-lo, a Fundao adiantou uma sugesto: que fosse "dedicada uma das sesses
do colquio, qual estaria presente considervel representao de cineastas portugueses, ponderao de como seria desejvel,
do ponto de vista do cinema e dos artistas
que a ele se consagram, que a Fundao interviesse. Dessa sesso poderia sair um relatrio que ajudaria a esclarecer o Conselho de
Administrao acerca dos problemas a que
nos vimos referindo.
A resposta no se fez esperar. Lus de
Pina (1987, pp.163-164) resume: no final
de 1967, todo o jovem cinema Portugus,
com gente mais velha considerada jovem de
ideias, se desloca Cidade Invicta para tomar parte na Semana do Novo Cinema Portugus, organizada pelo Cineclube do Porto.
O fracasso das Produes Cunha Telles, a
pblico em Portugal e, por essa mesma razo, um cinema condenado, ainda durante muito tempo, ao insucesso financeiro:
o cinema de qualidade. Logo se v, pois,
que s uma instituio desinteressada dos lucros e com uma capacidade administrativoeconmica slida pode arcar com fardo to
pesado.
Lus de Pina (1987, p.164) comenta: este
desejo de "centralizao", de depender de
um financiamento garantido, aproxima-se
das intenes dos cineastas que estiveram na
base da redaco final da Lei n.o 2027 (centralizadora, privilegiando a produo), que
tambm desejava uma "melhoria de qualidade"do cinema nacional, projecto to combatido por um homem como Roberto Nobre,
que via nessa dependncia de protectores a
criao de um cinema de estufa, ligado ao
poder por via do favoritismo, do trfego de
influncias. Mas os cineastas do novo cinema no tinham iluses quanto possibilidade de sobrevivncia, no estreito e vigiado mercado portugus, do seu cinema radical e, ao menos por isso, difcil; tinham
alis visto como os esforos de Cunha Telles haviam fracassado financeiramente nesse
mercado, apesar das vrias concesses em
termos de linha esttica e de relaes com
o poder poltico. Querendo evitar a dependncia do Estado Novo, os cineastas reunidos no Porto acharam que a melhor soluo
seria convencerem a Fundao Gulbenkian a
estender rea do cinema o decisivo apoio
financeiro que j tinha dado renovao de
outros sectores da cultura portuguesa.
Finalmente, mas afinal, talvez, primeiramente, sublinha Grilo (1992, p.160), a orientao seguida revela o divrcio estabelecido e substanciado entre produtores e realizadores (consagrado na fundao do Cenwww.bocc.ubi.pt
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tro Portugus de Cinema, verdadeira cooperativa de autores), que permanecero de costas voltadas uma boa dezena de anos. O novo
"Cinema Novo"passar assim, em boa medida, pelo apetrechamento institucional de
um cinema de autores, e alis esse o esprito do documento "O ofcio do cinema em
Portugal"[...]: "A aco do Centro no ciclo
da produo, a verificar-se, dever confinarse a um auxlio material, abstendo-se de
tudo o que possa representar limitao ao
caminho livremente escolhido pelos autoresrealizadores".
A soluo pretendida pelo grupo reunido
no Porto a criao de um servio novo na
Gulbenkian, com autonomia administrativa
mas dependente do seu financiamento, intitulado Centro Gulbenkian de Cinema. Esta
proposta, porm, no aceite pela Fundao,
que decide apoiar o movimento, sim, mas
noutros termos: subsidiar, e apenas por um
perodo experimental, uma entidade privada
que os prprios cineastas fundem e giram.
Assim fundado, em 1969, o Centro Portugus de Cinema (CPC), sociedade cooperativa, perante a qual a Fundao se obrigava
a conceder um subsdio experimental pelo
perodo de trs anos, e que no primeiro deles
(1971) orou os trs mil e duzentos contos
(uma vez e meia o oramento de uma produo mdia) (Grilo, 1992, p.161). Nesse
compasso de espera at concretizao do
acordo, a Fundao Gulbenkian criou o seu
Sector de Cinema, apoiou a Cultura Filmes, efmera empresa de Ricardo Malheiros,
que nos seus 3 anos de actividade (1967-69)
produziu um conjunto de curtas-metragens
inserveis no novo cinema.
Os cineastas do novel Centro Portugus
de Cinema formavam, no dizer de Bnard
da Costa (1991, pp.131-132), um grupo he-
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Fica-se ento espera que venha da Gulbenkian, depois dos inevitveis procedimentos burocrticos, o dinheiro que permitir o
novo arranque. A Fundao ainda no deu
a resposta, e se ela no vier... dir, com
ironia, uma personagem do filme O Cerco,
rodado em 1969 e estreado em 1970, com
o qual Cunha Telles, subsidiado pelo Fundo
de Cinema, passava realizao, anunciando, ou mesmo ultrapassando, os seus colegas no lanamento do segundo flego do
novo cinema. Nufrago como produtor, objecto da "quarentena"que lhe tinha sido imposta pelo grupo do "Ofcio", com vrias falncias e credores no encalo, Cunha Telles
no se deixou abater e voltou aos estdios
agora como realizador. E, com um filme
de escassos meios, arrancou surpreendentemente em 1970 o maior sucesso comercial
que qualquer obra do "novo cinema"at ento tinha obtido. O filme chamou-se O Cerco
e com ele voltou Portugal aos certames internacionais (Quinzena de Realizadores de
Cannes). Cunha Telles conseguiu fazer o
primeiro filme do novo cinema novo a pagar os custos da produo com as respectivas receitas de exibio, no mercado interno
e estrangeiro, e mesmo a dar lucros de 50%.
Mas, paradoxalmente, depois deste sucesso,
e depois de Sever do Vouga... uma Experincia (mdia-metragem de Paulo Rocha para
a Shell Portuguesa, de 1970), Cunha Telles nada produz durante treze anos apenas
entra na produo, em 1973, em conjunto
com o CPC e a Tobis, do seu prprio filme
Meus Amigos; s regressar como produtor
em 1983.
O sinal [dado por O Cerco] no passou
despercebido para o poder. Este, que at a
ignorava escandalosamente as obras do cinema novo, deu-lhe os grandes prmios da
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S.E.I.T.: melhor filme, melhor actriz, melhor fotografia (Accio de Almeida). Tambm nas curtas metragens foram dois novos premiados: Antnio de Macedo e Faria de Almeida. O triunfo de uma gerao
comeava (Bnard da Costa, 1991, pp.132133). Entretanto, financiado pelo Fundo e
por amigos e inserido na Mdia Filmes
(que fundara com Fernando Matos Silva, Alberto Seixas Santos, Alfredo Tropa e Manuel
Costa e Silva), tambm Fernando Lopes conseguir fazer, margem do CPC (a que no
entanto preside), a sua primeira obra inteiramente de fico, Uma Abelha na Chuva,
adaptada do romance homnimo de Carlos
de Oliveira, cuja rodagem se estendeu entre
1968 e 1971, vindo a estrear em 1972 e ganhando tambm o Grande Prmio de Cinema
da S.E.I.T..
1972 foi o ano em que finalmente se chegou apresentao da primeira das longasmetragens sadas do protocolo GulbenkianCPC O Passado e o Presente, de Manoel
de Oliveira , numa sesso que contou ainda
com a projeco de A Pousada das Chagas,
de Paulo Rocha, rodado, em condies econmicas superiores s habituais, em 1971,
com dinheiro que a Gulbenkian fornecera
parte do subsdio ao CPC. A solenidade foi
marcada pela presena do Presidente da Repblica. Abrindo a sesso, o Presidente da
Fundao, Dr. Azeredo Perdigo, discursou para deixar claro que: a interveno da
Fundao, na absoluta impossibilidade de resolver todos os problemas que se levantam
ao desenvolvimento do cinema em Portugal,
tem de ser, ao mesmo tempo, modesta, prudente e experimental. O Presidente do CPC,
Fernando Lopes, discursou tambm, mas o
seu texto dilatava, inesperadamente, as margens da mudana, ao dizer: "Hoje que o ciwww.bocc.ubi.pt
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nema passou o seu meio sculo de existncia e quando nomes como os de Griffith, Eisenstein, Murnau, Dreyer, Rossellini, Bergman, Jean Renoir ou Godard, se contam entre os valores mais importantes da cultura
ocidental, ao lado de Joyce, Picasso e Stravinski, ns portugueses e cineastas comeamos a ver, com mais claridade e confiana,
o cinema, como facto cultural, reconhecido
pblica e oficialmente". Lopes , simultaneamente, sincero e hbil nesta declarao:
sincero porque, de facto, esta nova gerao
que o CPC configura procede de uma cultura
cinfila, de uma habituao do olhar s salas
de Cinemateca europeias, e de um entendimento do cinema como uma experincia artstica e esttica vivida em plenitude, e no
como um simples empreendimento comercial; hbil porque, ao colocar, precisamente
a, o corte, se contornava (sem iludir) a espinhosa questo poltica num pas censurado
e ainda sob o domnio de uma velha classe
poltica amedrontada, que comeava tambm ela a sentir os efeitos da chegada de
novas geraes (Grilo, 1992, p.161). Mais
uma vez, a fronteira que se coloca pretende
acima de tudo defender o cinema como arte,
ao lado das artes mais antigas; e, se repararmos, defende os seus valores mais vanguardistas: evoca-se Joyce e no Thomas Mann,
Picasso e no o pai Renoir, Stravinski e no
Richard Strauss.
Para alm de O Passado e o Presente, a
produo do CPC inaugurou-se com trs outros projectos de fico, todos eles constituindo estreias na longa-metragem: Pedro
S, de Alfredo Tropa, O Recado, de Jos
Fonseca e Costa, estreados em 1972, e Perdido por Cem..., de Antnio Pedro Vasconcelos, estreado em 1973. Com o auxlio directo da Fundao surgem ainda trs outros
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filmes: o j referido A Pousada das Chagas, de Paulo Rocha, Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalo, de Joo
Csar Monteiro, e Vilarinho das Furnas, de
Antnio Campos. Todos estes novos cineastas no so propriamente gente desconhecida. Conjuntamente com Seixas Santos (cujo Brandos Costumes integraria o II
Plano do CPC), Csar Monteiro e Vasconcelos, por exemplo, tinham j realizado curtasmetragens de carcter documental, para o
produtor Ricardo Malheiro, e tinham um
longo passado crtico e terico, substanciado
nas pginas do Cinfilo e dos suplementos
do Dirio de Lisboa. Mas a chegada deles
ao campo da longa-metragem de fico (e
ainda de Fernando Matos Silva com O MalAmado) amplia mais o leque de projectos,
tendncias, temas e formas, e permite, enfim, que se comece a poder falar de uma cinematografia, consciente dos seus limites (o
mais importante dos quais ser a censura poltica e econmica), mas j madura, ou em
vias disso, apta a responder ao espao de liberdade que a democracia e o 25 de Abril
lhe trar (Grilo, 1992, p.161). Para termos
uma ideia do impacte que causou a nova gerao nesse anos de 1972, basta pensarmos
que, entre Fevereiro e Junho estreiam quatro longas-metragens, de fico, do novo cinema (as de Oliveira, Fonseca e Costa, Lopes e Tropa).
Como avaliar Fernando Lopes (vide Jos
Manuel Costa, 1985, p. 69), a gerao anterior, do fim dos anos 50, aceitara-nos como o
cinema portugus. Tinham-se remetido a um
papel secundrio, se no at demissionrio.
(...) O que no quer dizer que as fitas do Henrique Campos e do Constantino Esteves no
tivessem continuado a aparecer. Mas quando
a Gulbenkian entre em cena, eles compreen-
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A primavera marcelista
portugueses no servem interesses estrangeiros, mas to-somente os seus interesses legtimos, que sempre tm sabido escrupulosamente integrar no superior interesse nacional" (cfr. Geada, 1977, p.99).
A 7 de Dezembro de 1971 publicada a
Lei 7/71, chamada Lei do Cinema Nacional,
e a 5 de Junho de 1973 o Decreto n.o 286/73,
chamado Regulamento da Actividade Cinematogrfica. Nesta legislao, a novidade
principal a criao de um Instituto Portugus de Cinema (cujo regulamento, no entanto, s vir a ser publicado em 1982), presidido pelo Secretrio de Estado da Informao e Turismo: um Instituto que, nas suas
linhas gerais, se parece com o Centro de Cinema Gulbenkian sugerido pelos novos cineastas - e o certo que, com o surgimento do
Instituto estatal, o Centro Portugus de Cinema vem a deixar de ser subsidiado pela
Gulbenkian (que s prometera, recorde-se,
um apoio experimental de trs anos) e a
cessar praticamente a sua actividade (Pina,
1987, p.165). Fazem parte das atribuies do
Instituto Portugus de Cinema (IPC): incentivar e disciplinar as actividades cinematogrficas nas suas modalidades comerciais de
produo, distribuio e exibio de filmes;
representar o cinema portugus nas organizaes internacionais; promover as relaes
internacionais do cinema portugus no domnio cultural, econmico e financeiro; estimular o desenvolvimento do cinema de arte e
ensaio e do cinema de amadores; fomentar a
cultura cinematogrfica; atribuir prmios de
qualidade, prmios de explorao e prmios
de exportao (cfr. Geada, 1977, pp.159161).
E de onde vem o financiamento desse Instituto Portugus de Cinema? Segundo Bnard da Costa (1991, p.130), era evidente,
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sobretudo a partir de 1969, que mais dia menos dia, o cinema portugus passaria a contar com 10 vezes mais dinheiro do que em
1968 tinha (3800 contos foi a verba do fundo
nesse ano e foi um record). O sensvel
aumento da frequncia das salas de cinema
e dos rendimentos colhidos pelas distribuidoras deu base ideia de novas estruturas.
Atravs da criao de um imposto de 15 por
cento sobre os lucros das bilheteiras dos cinemas (o que nessa altura se calculou em 50
mil contos), depois chamado "imposto adicional", era possvel criar e financiar um organismo o Instituto Portugus de Cinema
que subsidiaria a produo portuguesa. A lei
(Lei 7/71) s foi promulgada em 1971 (ainda
hoje nos rege) e o Instituto s comeou a funcionar em 1973.
Quando nomeado o secretrio-geral do
Instituto Portugus de Cinema e se comeam
a preparar os seus primeiros apoios financeiros, em fins de 1973, o Conselho de Cinema,
presidido pelo novo secretrio de Estado da
Informao e Turismo, [...] e integrado j por
novos cineastas, resolve abrir um pouco as
critrios de julgamento dos projectos, quer
no plano legal quer no plano poltico. Um
ms antes do 25 de Abril, os primeiros subsdios concedidos no s no contemplam
nenhum cineasta antigo com excepo de
Manoel de Oliveira (Benilde ou a VirgemMe) e de Manuel Guimares (Cntico Final) como aceitam cineastas nitidamente
de esquerda, defensores de um novo cinema,
quase todos scios do CPC (Pina, 1987,
p.170), como Antnio de Macedo, Cunha
Telles, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, Artur
Ramos e S Caetano. Era a consagrao oficial da gerao que fizera o "cinema novo",
era a continuao da poltica da Gulbenkian
com outros meios, como em cima da hora
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Algumas caractersticas do
novo cinema
jamos o que o distingue e faz dele a fronteira inicial do novo conceito de novo cinema: um cinema artesanal, por contraponto a um cinema industrial, e uma viso
pessoal, de autor, por oposio a um cinema
de produtor. Numa entrevista da poca (Jornal de Letras e Artes, 6.5.1964), Paulo Rocha esclarece: normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a histria em relao
mise-en-scne. NOs Verdes Anos tentouse ir contra isso. O que mais interessava era a
relao entre o dcor e a personagem, o tratamento da matria cinematogrfica. Eram
as linhas de fora, num plano, que lhe davam
o seu peso e a sua importncia. Percebese agora melhor por que razo tem parecido
importante deslocar a fronteira do novo cinema do padro de Pssaros de Asas Cortadas, e mesmo de Dom Roberto, filmes em
que a histria, o guio, os dilogos e os actores tm maior importncia. A orientao
de Paulo Rocha define, de facto, melhor a
doxa que dominar o novo movimento, um
cinema que trabalha os espaos, os dcors,
as cores, as matrias, e pede para ser lido por
esse lado, e no pelo da intriga e dos actores.
Diga-se, em abono da verdade, que existe
no guio dOs Verdes Anos uma preocupao
social, mais audvel nos dilogos do que visvel no trabalho que Rocha sobre eles faz, e
que os prximos dois filmes de Paulo Rocha,
Mudar de Vida (1966) e Sever do Vouga
uma experincia (1970) se aproximam muito
mais de uma temtica social e realista, quase
neo-realista, do que em Os Verdes Anos. Mas
ser este a ser tomado como bandeira, e,
conjuntamente com Pousada das Chagas, de
1971, que vimos ser projectado na inaugurao dos anos Gulbenkian, colocou at
hoje a obra de Rocha sob o signo do seu primeiro filme. Pousada das Chagas pode serwww.bocc.ubi.pt
vir de exemplo extremo, segundo Leito Ramos (1989, p.310), para uma esttica de excerbamento dos materiais flmicos, para um
territrio de pesquisa formal, para um secretismo ficcional que se joga entre a conscincia do cinema como representao e a (desejada?) ruptura de comunicao com um (ignoto?, improvvel?, negligenciado?) espectador. Creio que o solipsismo do cinema portugus encontra aqui o seu ponto paroxstico
[...], como quem fecha a porta do sacrrio e
deita a chave ao rio.
Ainda em 1993, e atacando uma crtica
no inteiramente favorvel feita por Eduardo
Prado Coelho, M. S. Fonseca sai em defesa
de Os Verdes Anos, dizendo que a crtica
"socialmente empenhada"no compreendeu,
nem poderia, por desajustamento dos parmetros de avaliao, compreender. Da que
se falasse num filme "mecnico no retrato
das relaes sociais", ou de um filme com
evidente "insuficincia de notao psicolgica"dos personagens. Tinham razo, embora no fosse a razo que julgavam ter. Ou
seja, o facto de Paulo Rocha reclamar para
o seu filme uma leitura visual, pela mise-enscne e pelo plano, com irriso dos temas,
visto, no como uma sua limitao, mas
como sua virtude. H aqui uma simplificao facilitadora, que arruma tudo quanto pretenda encontrar no filme uma relao com o
mundo na categoria de urgncia social de
tipo neo-realista; uma posio que, se pode
entender-se no contexto de guerra, na poca,
entre a corrente neo-realista e a que, para se
opr a ela, se acantonava num formalismo,
no pode hoje deixar de ser ultrapassada.
At porque, no sendo o cinema puramente abstracto, no vamos deixar de encontrar nos nossos filmes personagens e problemticas no meramente formais. O que
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muito do novo cinema portugus vai trabalhar (vide P. Filipe Monteiro, 1995) so figuras muito genricas, herdeiras de um decadentismo romntico ou oitocentista e de
um fundo ideolgico de consideraes sobre Portugal, em que predominam personagens encurraladas ou sem objectivos ou,
quando os tm, com muito pouca possibilidade ou at vontade de os alcanar. No
fundo, procura-se ultrapassar a militncia de
tipo neo-realista com uma resistncia de outro tipo, e que, essa, foi possvel desenvolver no prprio regime salazarista-marcelista,
e ser acarinhada por ele: uma resistncia, se
quisermos, prpria ideia de resistncia, no
sentido poltico que o neo-realismo tinha, ou
s definies concretas em que esta era definida. Como na cano popularizada por
Amlia (com letra de Alexandre ONeill),
tambm cantada pela protagonista de O Recado, assim devera eu ser, assim devera eu
ser, se no fora no querer.
Uma das maiores marcas do novo cinema
portugus esta ideia de uma resistncia global, que em vrias figuras e objectos de negao foi atravessando os nossos filmes no
perodo que estamos a considerar: a tal austera e radical intransigncia, nas j citadas palavras de Csar Monteiro. A Histria ajuda a compreender que assim seja. O
novo cinema surgiu, como vimos, na oposio: em relao ao velho cinema, que estava
moribundo e que, apesar de tentar renovar-se
nos filmes com vedetas quase sempre cantantes, no era propriamente adversrio que metesse medo, mas era inimigo que pedia extermnio; e oposio em relao ao sistema
poltico e sociedade salazarista/marcelista
em geral, que, ao mesmo tempo, permitia
esta oposio e censurava outro tipo de resistncia, mais objectivada. Mas esse mesmo
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nosso cinema era, assim, um ncleo de resistncia tendncia dominante: ncleo que,
curiosamente, ao contrrio dos outros pases,
com a sua combatividade conseguiu ter nas
mos quase todas as rdeas do poder de produzir, ensinar e criticar.
Uma margem no centro, como pode
definir-se este movimento; na margem combativa contra o cinema industrial, mas no
centro em termos dos lugares de produzir,
ensinar e criticar cinema em Portugal. E nem
por, em Portugal, estar nos lugares centrais,
ele deixou de viver como resistncia, e talvez nem pudesse deixar de o fazer sem perder grande parte da sua identidade, afirmada
nessa negao. Um cinema, pois, contra a
instituio cinema, tal como maioritria e
crescentemente ela se definiu, ainda que defendendo o que considerou ser a essncia do
verdadeiro cinema enquanto arte essncia porventura em crise, mas glosando precisamente o tema dessa crise e de uma to
anunciada morte do cinema.
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criar esse circuito alternativo, gerando a contradio de se investir num produto que no
se distribui.
Sublinhemos que no fazia parte do projecto do novo cinema estar de costas viradas para o pblico, e que, pelo contrrio,
os seus mentores ficaram admirados quando
este no reagiu como se esperava. Em 1970,
j Fernando Lopes reconhece (em entrevista
ao Jornal de Letras e Artes, n.o 274): em
termos prticos, se fizermos um balano realista, evidentemente que falhmos em relao ao nosso contacto com vastas camadas
de pblico. [...] Tenho a impresso que cometemos alguns erros de avaliao. Assim
em primeiro lugar, parece-me que todos ns
contvamos um pouco excessivamente com
a existncia de um pblico esclarecido, para
utilizar um chavo da poca, pblico que teria sido formado pelos cineclubes, pblico
universitrio, e outro, que de facto no apareceu para os nossos filmes. E, em 1989,
Seixas Santos (in Frdric Strauss, 1989, p.
28) insistir: o pblico portugus no quer
de todo saber do cinema portugus, e podemos perguntar-nos se no porque os realizadores esto a passar ao lado dos assuntos
que interessam esse pblico. Faz-se um cinema muito abstracto e muito pouco ancorado na realidade portuguesa. [...] alis
o conjunto do cinema europeu que est em
atraso relativamente sociedade europeia.
Ou seja, a ausncia de pblico, se foi consequncia do tipo de cinema que se fazia, no
foi consequncia desejada. Pretendia-se que
as obras existissem como acontecimentos, e
no ficassem apenas como monumentos.
Essa difcil relao com o pblico
constitui-se (at hoje) no principal calcanhar
de Aquiles do modo como est estruturado
o universo do cinema portugus: no tanto
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Mais reviravoltas e
desfasamentos
Outros factos marcantes viro mostrar a coerncia, para o bem e para o mal, deste percurso do cinema portugus e das suas aporias. Destacamos apenas dois. Quando se
d a revoluo do 25 de Abril, o novo poder poltico chegou a preferir chamar, em
1975, alm de alguns militantes comunistas,
os cineastas do velho cinema dos anos quarenta e cinquenta, acusando os que pouco
antes tinham sido consagrados no poder de
intelectuais pseudo-revolucionrios, desligados dos verdadeiros interesses do povo.
Contradio gritante? Sim e no. A questo que, se o cinema muito auto-reflexivo
e abstracto que os novos cineastas vinham
fazendo, com boa repercusso internacional
mas grande alheamento do pblico nacional,
podia servir ao marcelismo, no se enquadrava na dinmica de dinamizao cultural
popular que o novo regime queria lanar.
Depois do 25 de Novembro, os cineastas
do novo cinema recuperam os lugares de poder que tinham conquistado antes do 25 de
Abril, e a ficam, embora muito divididos,
at aos governos da Aliana Democrtica.
Na viragem dos anos oitenta para os noventa,
um outro tipo de massificao, em nome da
economia de mercado, dos custos de produo e da necessidade de alianas com a televiso e com o estrangeiro que vai afastlos, primeiro com uma poltica de entronizao do audiovisual, presidida, alis, por
um dos seus membros mais antigos e anteriormente mais formalista, Antnio Pedro
Vasconcelos, e, depois, com um novo Instituto chefiado por duas pessoas (Zita Seabra e
Salvato Teles de Menezes) que poucos anos
antes tinham pertencido rea comunista a
mesma que, em 1974, procurara afastar a influncia j alcanada pelos cineastas do novo
cinema e fora buscar nomes do antigo regime. Talvez agora se comece a perceber
melhor que eram estas as pessoas que melhor podiam defender uma poltica populista
contrria ao experimentalismo que o novo cinema desenvolvera.
H mais coerncia do que pode parecer
primeira vista nesta escolha feita por um
governo do Partido Social Democrata: com
uma opo que para alguns podia aparecer
como progressista, ia-se afinal buscar quem
mais enrazada tivesse a averso ao cinema
de autor e defendesse um cinema populista
de recuperao das velhas comdias dos anos
trinta e quarenta mais uma vez, o progressismo social, quando existe, no est necessariamente associado ao progressismo esttico. Repare-se no que Teles de Menezes
(1985, pp. 160-195) escrevera, num balano
crtico feito em 1985: os nossos cineastas
tm a desagradvel tendncia a no aceitar
certas exigncias que uma arte to democrtica como o cinema faz: procurar o esoterismo temtico e privilegiar processos de significao ultravanguardistas so graves equvocos num tipo de produo extremamente
precrio, pouco desenvolvido, e perante um
pblico que precisa de ser ganho, que est
furiosamente viciado no modelo ficcional do
cinema norte-americano. Segue-se a afirmao de princpio: se se quer, mais tarde,
eventualmente, abrir caminho possibilidade de obras mais "difceis", o reencontro do pblico com o cinema falado em portugus (o nosso, no o transatlntico) uma
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Bibliografia
ADORNO, Theodor Teoria Esttica, Lisboa, Edies 70, 1982 (ed. or: 1970)
BENJAMIN, Walter - A obra de arte na
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