A Arte e o Poder Do Novo Cinema

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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo

cinema
Paulo Filipe Monteiro

ndice
1 Esquerda, direita, margem, centro
2 A morte do velho cinema e o assassinato do cineclubismo
3 Novas condies para um novo cinema
4 Contra-tendncias e contrariedades
5 O Centro Portugus de Cinema e o
cerco
6 A primavera marcelista
7 Algumas caractersticas do novo cinema
8 A difcil relao com o pblico
9 Mais reviravoltas e desfasamentos
10 Bibliografia

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1 Esquerda, direita, margem,


centro
Casos como o de Balzac, Ezra Pound, Cline
ou mesmo Eliot e Pessoa, tm sido usados
para mostrar que, por paradoxal que parea,
h por vezes ligaes entre prticas artsticas
das mais revolucionrias e posies polticas
das mais conservadoras. O estudo do cinema
portugus das ltimas dcadas pode ajudar a

Publicado in Lus Reis Torgal (coord.), O Cinema


sob o Olhar de Salazar, Lisboa, Crculo de Leitores,
2000, pp. 306-338

lanar alguma luz sobre esse paradoxo, mostrando como se pode criar e desenvolver esse
tipo de combinaes.
Sublinhe-se que o cinema portugus dos
anos sessenta no foi politicamente conservador: o paradoxo foi muito menos dos cineastas do que do regime, que desde muito
cedo, com Antnio Ferro, incorporou um
programa esttico vanguardista. Dizemos
apenas que, ao contrrio do movimento cineclubista, que o Estado Novo, mesmo na sua
face marcelista, no hesitou em extinguir, o
chamado novo cinema pde, ainda antes
do 25 de Abril, controlar todos ou quase todos os lugares da instituio-cinema, tendo
assim nas mos o poder de produzir, ensinar e criticar, apesar do seu alinhamento poltico esquerda. Uma situao contraditria
a que alis se vieram juntar, mais tarde, outras duas: durante o perodo revolucionrio
do Vero de 1975, o grupo do novo cinema
foi afastado a favor dos cineastas do velho cinema; e, nos anos noventa, foram duas pessoas h pouco sadas da rea comunista as
chamadas a defender e gerir um modelo liberal e populista que procurou durante algum
tempo acabar com a hegemonia que o grupo
do novo cinema tinha conseguido recuperar
com o 25 de Novembro.
Esse poder dos autores do novo cinema,

Paulo Filipe Monteiro

que manifestaram uma extraordinria capacidade simultaneamente artstica e organizativa, parece que no impediu, antes potenciou, o tipo de posies esteticamente vanguardistas de que procurarei enunciar alguns
traos, e nelas que temos de procurar as
explicaes para as contradies enunciadas.
Que essa nossa vanguarda esttica possa ter
ocupado os lugares centrais, ao contrrio do
que usualmente acontece e do que foi a tendncia do cinema mundial na segunda metade do sculo, eis outro paradoxo maior e
muitas vezes mais frtil.

A morte do velho cinema e o


assassinato do cineclubismo

O novo cinema nasceu, em Portugal, quase a


partir do nada. O cinema anterior, que tinha
vivido o seu apogeu nos anos quarenta, assistira durante a dcada de cinquenta a uma irreversvel decadncia, em termos de ideias, de
renovao esttica, de pblico, e at, pura e
simplesmente, de produo. Basta dizer que
em 1955, geralmente referido como o ano
zero do cinema portugus, no se produziu
nenhuma longa-metragem portuguesa.
O problema no estava na falta de procura:
nos anos quarenta, o nmero de salas quase
duplicara, o mesmo acontecendo ao nmero
de espectadores de cinema: sintoma, decerto, de alguma expanso econmica (com
aumento da taxa de industrializao), de uma
reduo da taxa de analfabetizao para 40
por cento, bem como da popularidade atingida pelo cinema em geral, e pelo cinema
portugus em particular, nos anos trinta e
quarenta. Esse aumento da procura tornava
mais gritante a decadncia da produo nacional, iniciada ainda nos anos quarenta, a

ponto de, em 1948, o Estado Novo se ter decidido pela primeira vez a promulgar uma
lei de proteco que instituiu um Fundo
do Cinema Nacional onde os produtores
passaram a poder ir pedir subsdios e emprstimos para as suas produes: ao mesmo
tempo, estabeleciam-se quotas para a exibio de filmes portugueses.
Isso no chegou, no entanto, para travar a
decadncia de um cinema que os cineastas
maiores abandonavam, de que o pblico desertava e que, salvo raras excepes, levava
as empresas falncia, mesmo com os dinheiros pblicos e com produes cada vez
mais modestas. Nem o recurso a nomes famosos da revista, da cano, do toureio, do
ciclismo ou do hquei em patins, ensaiando
variaes das frmulas cmicas, folclricas
e sentimentais, nem to-pouco o recurso a algumas co-produes com o estrangeiro, travou a degradao, quantitativa e qualitativa,
do cinema portugus, bem patente nesse nmero zero de longas-metragens registado em
1955.
Muitos dos cineastas tiveram, ento, de recorrer s curtas-metragens, sempre ou quase
sempre documentais, cuja quantidade (embora raramente a qualidade) no cessou de
aumentar na dcada de 50, devido poltica
de subsdios do novo Fundo do Cinema (que
quase sempre apoiou mais documentrios do
que fices) e tambm s encomendas de servios pblicos ou religiosos e de algumas
empresas privadas. A prpria publicidade foi
recorrendo ao cinema em ritmo crescente, tal
como os cineastas foram recorrendo publicidade como ganha-po. A partir do final da
dcada, foi nos documentrios e na publicidade que primeiro se revelaram muitos dos
nomes daqueles que vieram mudar o nosso
cinema.
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

Para compreender bem o significado do


triunfo dessa nova gerao, h que frisar que
ele foi conseguido sobre as cinzas dos movimentos mais politicamente perigosos para o
Estado Novo, como o cineclubismo e o neorealismo. Comecemos pelo movimento cineclubista. Os mltiplos cineclubes, onde se
exibiam filmes, se animavam publicaes e
at, nalguns casos, se faziam filmes de formato reduzido, vinham protestando contra a
situao do cinema portugus, a que a revista Imagem chamou, em 1952, cidadela
de analfabetos e comerciantes. Em Agosto
de 1955, realizou-se em Coimbra o primeiro
encontro nacional dos cineclubes portugueses; nas suas concluses, defendia-se a necessidade de uma legislao adequada que
regulasse o "Estatuto do Cinema No Comercial", uma maior facilidade na obteno
de cpias de filmes, a edio de documentos e revistas especializadas, e lanava-se a
ideia da criao de uma Federao Portuguesa dos Cineclubes, agrupando uma vintena de cineclubes, que na poca representavam uma enorme massa associativa. A resposta estatal no foi nada favorvel. Em
1957, foi proibida a exibio livre do filme
de formato reduzido. Em 1958, realizou-se,
em Santarm, o ltimo dos encontros nacionais dos cineclubes; o de 1959 foi proibido. O ataque movido pelo Estado Novo,
ataque que se estendeu das barreiras contratao de filmes censura e prpria interveno policial, veio cercear drasticamente o
movimento dos cineclubes, cujo apogeu, registado nos anos quarenta e cinquenta, no
pde assim prolongar-se na dcada seguinte.
No documento de 1967 O Ofcio do Cinema
em Portugal, de que adiante trataremos, lse: A desconfiana oficial acerca do Movimento acabou por reduzir a sua vitalidade a
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partir sobretudo de 1959, ano em que chegou


a ser proibido um 5o Encontro marcado para
Torres Vedras. Em dez anos, o Movimento
perdeu mais de 20.000 scios e actualmente
apenas funcionam 18 cineclubes, quando na
naquela poca havia cerca de 40. Perversamente, o prprio Decreto-Lei n.o 40 572,
de 16 de Abril de 1956, ao criar a Federao
Portuguesa dos Cineclubes, tornava-os simples episdios do circuito comercial de arte
e ensaio e sobretudo punha debaixo de controlo o que antes era um movimento disperso
e subversivo; depois, j nos anos sessenta,
vir o saque das instalaes e dos documentos dos cineclubes.
Estes so assim destrudos antes de poderem dar frutos visveis a nvel da produo
de grande formato, com que no entanto sonhavam: o nico filme que se pode considerar como filho do movimento cineclubista
Dom Roberto, de Jos Ernesto de Sousa, dirigente cineclubista que consegue financiar e
rodar o filme sem qualquer apoio estatal, graas ao entusiasmo do movimento. Essa seria a sua maior novidade, mas faria do filme,
justamente, um caso parte no novo cinema,
que no mais seguiria um esquema de produo deste tipo.
Apesar da novidade do esquema de produo, ainda hoje a generalidade dos crticos e historiadores do cinema portugus faz
questo em sublinhar que no foi com este
filme que se iniciou o novo cinema; o que
evidencia uma convergncia (embora, evidentemente, por razes diferentes ou mesmo
opostas) entre a destruio do movimento cineclubista e o tipo de estratgia, organizativa e esttica, adoptada pelos homens do
novo cinema. Estes viam em Dom Roberto
um resqucio do neo-realismo que rejeitavam
(mais ainda do que o poder poltico da poca,

que, mesmo a contra-gosto, sempre tolerava


o neo-realismo literrio predominante nos
anos sessenta e at apoiar algumas adaptaes cinematogrficas dessa literatura.

Dom Roberto tem sido comparado, com


alguma razo, aos filmes com que Manuel
Guimares experimentou, em 1951 e 1952,
fugir ao tom euforizante e patritico, procurando que o nosso cinema acompanhasse a
renovao que noutros pases se iniciara logo
a seguir Segunda Guerra Mundial. Apesar
da recepo entusistica que os grupos mais
oposicionistas dedicaram logo ao primeiro
filme (Alves Redol, Cardoso Pires, Piteira
Santos, Fernando Namora, Lus Francisco
Rebello escreveram a favor de Saltimbancos, e a revista Imagem dedicou-lhe mesmo
um nmero especial), Portugal mantinhase, nessa como noutras matrias, orgulhosamente arcaico. E esse breve eco do cinema
neo-realista italiano nem sequer teve seguimento na carreira deste realizador, que, depois de um terceira tentativa, entre 1953 e
1956, com graves dificuldades de produo e
com drsticas amputaes pela censura, acabou por tentar, em 1958, o recurso comercial a uma canonetista da moda, alm de
enveredar pelos documentrios. Quando brevemente voltar ao neo-realismo, em 1963 e
1965, j o neo-realismo cinematogrfico estar a ser ultrapassado nos seus beros italiano e francs, e no tem condies para vingar em Portugal, onde, em termos de cinema,
quase no chegou a existir. Adiante veremos
o que o novo cinema tem a propor como alternativa. Antes, no deixemos de ver em
que suportes institucionais assenta.

Paulo Filipe Monteiro

Novas condies para um novo


cinema

H vrias frentes com que o Estado, ao


mesmo tempo que desmembra os cineclubes,
passa a gerar uma srie de transformaes
do cinema portugus. A primeira delas a
televiso. Em 1955, o tal ano zero da produo de longas-metragens, como que em
coincidncia simblica e negativa (Lus de
Pina, 1987, p.123), criada a Radioteleviso Portuguesa, por decreto de Marcelo Caetano, ento Ministro da Presidncia. As primeiras emisses experimentais tm lugar em
1956 e as regulares a partir de 1957. De algum modo, verdade que o incio da televiso vem prolongar a crise do cinema, crise
que o Estado no pode (ou no quer) resolver, agora que outro meio infinitamente mais
persuasivo - a TV - lhe pertence por inteiro
(Pina, 1987, p.139). O Estado v nela o melhor veculo para a sua ideologia, quando no
mesmo para a pura propaganda, o que diminuir o investimento no cinema. Mas, por
outro lado, repare-se que, uma vez que nesta
poca o Estado no um tradicional financiador dos nossos filmes, este menor investimento tem sobretudo conotaes positivas:
significa que o cinema ficar mais liberto de
encargos ideolgicos e gozar de uma liberdade maior, ainda que, j se v, muito relativa; em breve, como j veremos, os dinheiros do Fundo de Cinema iro por vezes
abranger cineastas e mesmo filmes que at
h pouco tempo no faziam parte do horizonte do cinema que em Portugal se desenvolvia e autorizava. A prpria televiso no
foi buscar os artistas e tcnicos do velho cinema: parecia querer afirmar-se diferente
do cinema, j que, nestes anos de crise, deixou uma srie de cineastas em ms condiwww.bocc.ubi.pt

Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

es econmicas para ir buscar Emissora


Nacional e a outras entidades os realizadores
e tcnicos de que precisava... (Pina, 1987,
p.123), e que sero um dos ncleos da nova
gerao do cinema portugus.
Em relao mais directa com o cinema,
o Estado promulga em 1959 e 1960 vria
legislao, no particularmente renovadora,
e d, a j com efeitos decisivos, um novo
flego a dois organismos recentes: a Cinemateca e o Fundo do Cinema. A Cinemateca Portuguesa tinha j sido criada em 1948,
mas s abre ao pblico em 1958, comeando
desde logo a organizar ciclos estrangeiros de
grande novidade e interesse. Desses ciclos
ter especial impacte a Retrospectiva do Cinema Mudo Americano (1913-1929). Bnard da Costa (1983) comenta: Seixas Santos e Antnio Pedro Vasconcelos escrevem
em 1965, na Tempo e o Modo, que a Retrospectiva do Cinema Americano "era, no nosso
Pas, o maior acontecimento cultural desde
o aparecimento do Orfeu". Exagero? "Terrorismo"cinfilo, bem prprio desses anos?
Em parte. Mas o que todos queramos salientar era o que pela primeira vez vamos:
o glorioso passado duma arte, tantas vezes
chamada a arte do nosso tempo, e que, pela
primeira vez, era revelado a uma gerao.
Ou seja, o que a Cinemateca provocava, ou
pelo menos apoiava, junto da nova gerao
de criadores e espectadores, era a redefinio
do cinema como arte - conceito que antes raras vozes (como Manoel de Oliveira e Jos
Rgio) tinham defendido, contra a produo
nacional.
Mesmo fora da Cinemateca, houve por
essa altura uma certa liberalizao nos filmes
estrangeiros que tinham exibio autorizada
(em relao aos portugueses, a censura era
mais rgida). A abertura de horizontes foi
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completada por um indito movimento editorial relativo s novas perspectivas do cinema, em obras originais ou tradues. Em
1967, o relatrio O ofcio de Cinema em
Portugal sublinhar: de notar que este
esforo editorial no foi um acontecimento
fortuito, mas sim o fruto de um clima geral
de entusiasmo criado volta do cinema pelos cineclubes, e que o seu aparecimento
consequncia directa do declnio destes.
Alm disso, renovou-se a crtica, no s,
como at a, em revistas especializadas, mas
nos prprios jornais dirios, que passaram a
reconhecer o cinema ao lado das outras artes. O prprio Fundo do Cinema subsidiou a
revista Filme, dirigida por Lus de Pina, que
se comeou a publicar em 1959. No seu
no 20 Novembro de 1960 a revista dedicava um dossier ao que j chamava "novo
Cinema portugus, afirmando, pela pena do
seu director, "que este, vivendo nos ltimos
anos de uma desconsoladora mediania, precisa de sangue novo. Os que ficaram para
trs, alimentando-se das prprias limitaes
e criando o mito da impossibilidade de fazer cinema em Portugal, parece j nada terem para dizer. O futuro do Cinema portugus est pois nas mos das personalidades
que reunimos nestas pginas". Seis anos depois das apstrofes da Imagem (que cessou
a sua publicao em 1961), era a certido de
bito, feita de dentro, do cinema dos anos
50. E, entre as "personalidades reunidas nestas pginas", figuravam nomes que depois
muito dariam que falar, quase todos eles pertencendo j aos quadros da R.T.P. (Bnard
da Costa, 1991, p.115).
Em 1958, entra para titular do Secretariado Nacional de Informao (SNI) Csar
Moreira Baptista, homem que tinha poucas iluses quanto capacidade dos cine-

astas no activo e que, para poder prosseguir uma obra no cinema, necessitava de
descobrir novos talentos (Bnard da Costa,
1991, p.114). Deu-se ento, escreve Joo
Mrio Grilo (1992, p.157), uma inflexo
assinalvel na poltica do ento SNI, que,
entre outras coisas, administrava os dinheiros do Fundo: efectivamente, a estagnao
do tantas vezes chamado "cinema nacional",
a imperiosa necessidade de sustentar a mquina tecnolgica da televiso e, j agora, as
vozes quase consensuais que exigiam um cinema novo porque, como referiu Cunha Telles, "a degradao era tal que ningum a poderia defender ou sustentar", fizeram com
que o Fundo ensaiasse um esforo de renovao, implementando uma poltica de formao, nomeadamente com a atribuio de
Bolsas de estudo para o estrangeiro, e incentivando produtores. Repare-se que, se inflexo houve, foi ao reencontro do vanguardismo esttico de Antnio Ferro, que considerava as comdias dos anos quarenta filmes
grosseiros, reles e vulgares, o cancro do
cinema portugus.
Assim o Fundo, ao mesmo tempo que
corta cerce o movimento autnomo dos cineclubes, continua por sua prpria iniciativa,
com mais meios e mais controlo, a renovao por eles iniciada, acolhendo mesmo alguns elementos no afectos ao regime, procurando formar os novos valores indispensveis renovao decerto numa tentativa
para os no lanar numa oposio aberta, ou
sem contar at que ponto eles iriam subverter a ideologia e o cinema at a dominantes.
O Fundo concede bolsas de estudo a alguns
jovens candidatos, como Antnio da Cunha
Telles e Manuel Costa e Silva (para Paris),
Fernando Lopes e Faria de Almeida (para
Londres) para alm deles, mas sem apoio

Paulo Filipe Monteiro

do Fundo, Jos de S Caetano cursa cinema


em Londres (1959), Paulo Rocha estuda em
Paris (1959-61), enquanto Jos Fonseca e
Costa estagia em Roma (1961). Note-se que
o ambiente que estes jovens estagirios encontram l fora de grande renovao das
pessoas e linguagens do cinema. Como reconhece Paulo Rocha (in Silveirinha, 1994),
eu tive muita sorte. Ao contrrio de alguns
colegas meus tive muita sorte ao comear.
No comeo do anos 60 a juventude europeia
estava na moda. Ser novo, ter ideias novas
era de repente um valor. Mesmo no Portugal salazarista, como se poder ver pela rpida ascenso dos novos valores.
No regresso de Paris, diplomado em realizao, Cunha Telles dirige o jornal de actualidades Imagens de Portugal, colocado
frente dos servios de cinema da DirecoGeral do Ensino Primrio a preocupao
estatal com o cinema abrangia, na altura, o
ensino mais elementar... e sobretudo nomeado director do I Curso de Cinema do Estdio Universitrio de Cinema da Mocidade
Portuguesa, presidido por Fernando Garcia.
O curso, iniciado em 1961, tem o apoio do
Fundo do Cinema e do Ministrio da Educao; o prprio Moreira Baptista estar presente na sesso de abertura. O seu sucesso
desde logo avaliado pelos cerca de 200 alunos inscritos, por ele passando um extenso
grupo de futuros realizadores e tcnicos do
"Cinema Novo". Lus de Pina (1987, p.142)
vir a consider-lo um embrio da nossa futura Escola Superior de Cinema.
Outra importante frente de renovao introduzida pelo Fundo do Cinema o apoio
a um novo tipo de documentrios, em que
o cinema surge como arte e no como mero
suporte tcnico de propaganda turstica. A
abrir essa frente documental, estivera o nico
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novo dos antigos cineastas: Manoel de


Oliveira. A sua posio destacada devese, porm, ao apoio dos cineclubes, que
lhe tinham realizado homenagens (nomeadamente o Cineclube do Porto, em 1954), e
tambm ao seu prprio esprito de iniciativa
e tenacidade. Em 1955, depois de ver recusado o apoio longa-metragem Anglica,
Oliveira desloca-se Alemanha para estudar
as questes tcnicas da pelcula e fotografia a cor e, com aparelhagem que ele prprio adquire, escreve, produz, realiza, fotografa e monta O Pintor e a Cidade, de 26
minutos, estreado no S. Luiz, em Lisboa,
em 1956. O filme talvez a nica vez na
obra de Oliveira foi entusiasticamente defendido pela unanimidade da crtica. Entusiasmo que se repetiu em Paris e em Veneza
e lhe valeu em 1957 o primeiro prmio internacional da sua carreira, em Cork, na Irlanda. Face a este acontecimento, em 1958,
o S.N.I. decidiu emendar a mo. E atribuirlhe, pela primeira vez, dois subsdios que viriam a permitir j nos anos 60 O Acto
da Primavera e A Caa (Bnard da Costa,
1991, pp.110-111), alm de lhe dar o prmio
para a melhor fotografia. Entretanto, a Federao Nacional dos Industriais de Moagem
encomenda-lhe o documentrio O Po, que
vem a conhecer duas verses e a estrear-se
em 1959. Ao mesmo tempo, Oliveira vai fazendo um filme muito experimental sobre o
universo pictrico do pintor Jlio, irmo de
Jos Rgio (As Pinturas do meu Irmo Jlio, rodado entre 1958 e 1965). Em 1963,
a revista Plateia organiza uma homenagem
nacional a Oliveira e dedica-lhe um nmero
especial. No mesmo ano, Acto da Primavera, j uma longa-metragem mas ainda profundamente documental, tem estreia comercial em Paris; recusado pela seleco ofiwww.bocc.ubi.pt

cial de Veneza em 63, mas vem a ganhar, em


1964, a Medalha de Ouro do Festival de Siena. S em 1964, em Locarno, A Caa e
O Acto se impuseram ateno da crtica internacional. Jacques Bontemps escreveu nos
Cahiers du Cinma (Outubro de 1964, n.o
159) que A Caa era bande suffisamment
part pour planer au dessus de tous les films
presents. Pela mesma altura, Freddy Buache homenageou, em Lausanne, Oliveira e
Trnka. Em 1965, foi a vez de Langlois e da
Cinemateca Francesa. Voil plus de trente
ans que Manoel de Oliveira illustre le cinma portugais, escrevia-se em Dezembro
de 1965. S neste ano o prestgio internacional de Oliveira comeou, para alm das
referncias mais antigas e altamente elogiosas de Bazin ou Sadoul (Bnard da Costa,
1991, p.122).

Vrios outros documentrios, significativamente sem apoio do Fundo, vo tornar


cada vez mais presentes e j visveis os novos caminhos do cinema portugus. Fernando Lopes, bolseiro do Fundo, regressa de
Londres, reocupa o seu posto na Televiso, e
logo em 1961 roda um primeiro documentrio, intitulado As Pedras e o Tempo, tambm
claramente em ruptura com o habitual documentrio turstico; no mesmo ano realiza
uma srie de televiso e, no ano seguinte,
dois documentrios, O Voo da Amizade e As
Palavras e os Fios. Outros documentrios de
novo tipo vo surgindo, como Vero Coincidente e Nicotiana, de Antnio de Macedo,
Faa Segundo a Arte, de Faria de Almeida,
e Era o Vento... e Era o Mar, de Fonseca e
Costa.

4 Contra-tendncias e
contrariedades
A ascenso do novo cinema consegue
mesmo ultrapassar algumas contrariedades,
ligadas, sobretudo, guerra entretanto surgida em frica: novas dificuldades vo
levantar-se ao Cinema portugus, que, em
obras de fundo, poucas relaes tivera com
o ultramar [...]. A prioridade nacional dada
ao conflito e nessa prioridade est o domnio absoluto, a "mobilizao"da RTP
atrasa naturalmente as solues de fundo.
As eleies de 1958, a guerra, o caso do
Santa Maria expuseram e geraram mais revolta contra o regime e provocaram o aperto
da censura, que levaria s prises de cineastas e crticos como Fonseca e Costa, Vasco
Granja, Henrique Esprito Santo, e at Manoel de Oliveira, libertado por imediata interveno de gente do cinema junto da Presidncia do Conselho, no momento em que
decorriam as homenagens sua obra (Pina,
1987, p. 44). Mais tarde, foi preso o distribuidor Jos Manuel Castello Lopes.
Mas o apoio dado pelo regime aos novos cineastas foi maior do que esses incidentes puderam fazer crer. Por exemplo, como
lembra Bnard da Costa (1991, pp.117-118),
em Agosto de 1962, o S.N.I. desceu a terreiro para protestar contra a afirmao que
considerava ser caluniosa de ter recusado
fundos a Manoel de Oliveira. O qual, mais
ou menos por essa altura, foi preso pela
PIDE. De todas essas contradies se vivia.
Por isso, as leituras maniquestas no ajudam. Esta histria do "fascismo"portugus
foi bastante mais complicada do que depois
a pintmos. Na histria do cinema isso
quase exemplar. Triunfaram cineastas em
que o cineclubismo tinha sido mais percur-

Paulo Filipe Monteiro

sor do que ventre gerador e que, se progressivamente se distanciaram do Poder, tentaram


com ele a coexistncia possvel.
Alm disso, tambm em contra-tendncia
renovao, prossegue a tentativa de fazer
reviver, embora com menos meios, as velhas comdias, tentando assim criar sucessos comerciais, ainda que muitas vezes com
o apoio do Fundo estatal como se poder
ver no captulo seguinte, de Fausto Cruchinho. O cinema dos mais velhos, com raras excepes, tenta apenas, perante o recuo
do pblico, os condicionalismos censrios,
a falta de financiamento, a fora da TV e a
ameaa crescente do automvel, do disco e
do fim-de-semana, uma frmula comum de
sobrevivncia, no momento em que o SNI
(depois de 1968 transformado em Secretaria de Estado da Informao e Turismo) decide reforar o seu apoio ao cinema sobre a
realidade ultramarina. E essa frmula consiste, muito simplesmente, no embaratecimento acentuado dos custos de produo e
na escolha de argumentos sentimentais, de
agrado fcil, imediato, contados numa linguagem acessvel, dirigida a um pblico que
se presume inculto e pouco exigente, quase
sempre concentrado no Odeon, que se transforma numa espcie de bunker do nosso cinema mais elementar. A regra, agora, essa:
no mais a produo desafogada dos anos
30/40, mas um cinema de pobre, na economia e nas ideias (Pina, 1987, p.155).
Vindo da Lisboa Filme, onde trabalhara
na produo durante mais de dez anos, Manuel Queiroz [...] fundara a Cinedex em
1962, onde vai intentar (com apoios financeiros do fundo do Cinema) um esquema de
produo contnua, de caractersticas comerciais, [...] que, durante trs anos, iria dar
origem a um surto de produo quantitativa
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

importante (dez filmes) - incluindo dois filmes para a infncia (um gnero quase nunca
produzido entre ns), em torno da amizade
de um grupo de crianas por um co. 1964
o ano de Calvrio: Rei da Rdio, vencedor do 1o Festival RTP da Cano, estreia no
cinema com Uma Hora de Amor. A Cinedex, que, no ano anterior, pensara ter descoberto um filo de dinheiro com O Mido da
Bica, com Fernando Farinha, aposta agora
no nacional-canconetismo. O resultado foi
uma srie de fitas pirosas e degradantes
(Ramos, 1989, p.199). E, quando faltarem
os produtores, as prprias vedetas assumiro essas funes e esses riscos financeiros,
como ser o caso de Calvrio, em O Diabo
era Outro (1969) e Tony de Matos em Derrapagem (1973).
Continuam tambm a experimentar-se as
co-produes, sempre com maus resultados
junto do pblico. Apesar de tudo, em termos comerciais, melhor xito iam tendo alguns desses filmes ligeiros e y-y inteiramente portugueses, sobretudo as comdias, com destaque para Sarilho de Fraldas,
de Constantino Esteves (Eden, 1967). Mas,
como escreve Leito Ramos [1989:258], todos eles apenas estavam a deitar as ltimas
pazadas de terra sobre o corpo velho de um
cinema em declnio desde o princpio dos
anos cinquenta.
Como que em contraponto s produtoras destes filmes herdeiros do velhos cinema, surgiu Cunha Telles (rodeado por
um punhado de gente nova), que, confiado
nas hipteses de romper as barreiras, dotado
de algum capital pessoal, de certos contactos internacionais e no malquisto nos corredores do poder, avanou para outro projecto de produo contnua que animou o cinema portugus desses anos, quase sempre
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sem dinheiros do Fundo do Cinema (J. Leito Ramos, 1995). Tommos j conscincia do facto, aparentemente paradoxal, mas
historicamente inegvel que o cinema novo
(...) nasceu da herana do movimento cineclubista como das bolsas do Fundo e dos cursos da Mocidade Portuguesa. [...] Foi esse o
pano de fundo da casa produtora que Cunha
Telles fundou nesse mesmo ano de 1962, jogando nele a sua fortuna pessoal e trazendo
para ela quer os seus alunos de curso, quer
gente de cineclubes e da televiso (Bnard
da Costa, 1991, p.117).
M. S. Fonseca (1993) sublinha como no
s havia uma estratgia de produo que
visava a continuidade (um produtor, Cunha
Telles, rene sua volta os cineastas disponveis disponibilidade fsica e terica,
entenda-se e so eles Paulo Rocha, Fernando Lopes, Fonseca e Costa e Antnio de
Macedo), como igualmente essa produo se
dotara previamente de quadros tcnicos formados pelo 1o Curso de Cinema do Estdio
Universitrio de Cinema Experimental, onde
Cunha Telles era tambm elemento capital,
e donde, no domnio da fotografia, do som
e da montagem sairiam as figuras dominantes em todo o cinema portugus que se segue aos Verdes Anos. Cunha Telles produz
logo um conjunto de filmes muito bem sucedidos em termos de recepo crtica, nomeadamente internacional. O cinema portugus alcanava subitamente uma repercusso indita. Se j Dom Roberto e Os Pssaros de Asas Cortadas tinham estreado em
Paris, e o primeiro tinha ganho, margem
do Festival de Cannes, o Prmio dos Jovens Crticos, tambm o arranque das produes Cunha Telles auspicioso. Os Verdes Anos ganha a vela de prata no Festival
de Locarno (sobrepondo-se, por exemplo, a

10

Accatone, de Pasolini) e tambm premiado


em Acapulco (contrastando com a ausncia
de prmios em Portugal: no ano de 1963, em
que estreiam Os Verdes Anos, Acto da Primavera e A Caa, o S.N.I., pela primeira vez
desde 1944, prefere no dar prmios...); Mudar de Vida, tambm de Paulo Rocha, representa Portugal na seleco de Veneza, Domingo Tarde, de Antnio Macedo, est no
Festival de Berlim e no de Veneza, Belarmino no de Pesaro e no de Salso-Porretta
(e, v l, ganhou o prmio de melhor fotografia do S.N.I.), e as crticas internacionais
so muito favorveis, como s o foram antes
com os filmes de Oliveira. Compulsando os
Cahiers du Cinma desses anos, sucedemse as referncias ao cinema portugus com
Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, Paulo
Rocha, Fonseca e Costa e Cunha Telles em
lugares de relevo (Bnard da Costa, 1991,
p.124).
S que, em termos de recepo do pblico,
nas salas, nenhum dos primeiros filmes do
novo cinema consegue obter sucesso. E, apesar de terem sido extremamente baratos, todos fazem perder dinheiro. Num texto colectivo da poca (Jornal de Letras e Artes,
n.o 275, Abril de 1970), assinado por vrios
jornalistas de renome, diz-se: No jovem cinema portugus verifica-se uma actualizao
de processos narrativos, um apuramento final a que no ser estranha a revelao de
quadros tcnicos de nvel internacional, bem
como a sincera adeso realidade portuguesa. [...] Pena que o pblico, desiludido,
anos a fio, com os filmes portugueses e um
tanto alheio s preocupaes estticas vanguardistas que animaram grande parte dos
jovens realizadores, no tivesse respondido
significativamente, levando, a curto prazo, o
cinema portugus a uma nova derrocada.

Paulo Filipe Monteiro

Telles experimentou, em vo, variados caminhos, como a adaptao literria de prestgio (O Crime de Aldeia Velha, de 1964, sobre a pea homnima de Santareno e apoiado pelo Fundo) e a co-produo, chamando
realizadores de fora: Le Grain de Sable e
Vacances Portugaises, de Pierre Kast, algumas sequncias de La Peau Douce, de Truffaut, e sobretudo As Ilhas Encantadas, de
Carlos Vilardeb, em 1964. No teve sucesso. No interior das "Produes Cunha
Telles", a atmosfera azeda bastante, pelos
idos de 67 (um pouco pela grande falta de dinheiro, um pouco tambm pela discordncia
entre produtor e realizadores sobre o destino
a dar ao que ia aparecendo); como resultado
disso, e talvez para se demarcar ("castigar")
da "fauna de ingratos", Cunha Telles decide
produzir um filme que, como escreve Joo
Bnard da Costa, "combinasse arte e pblico,
talento e plateias populares" (Grilo, 1992,
p.160). Telles resolveu apostar forte em
Antnio de Macedo, apesar de tudo o cineasta que no box-office lhe dera menos razes de queixa, para um filme de espionagem [...]. Chamou-se Sete Balas para Selma
(1967) e no s o no salvou, como levou os
seus companheiros de aventura a chamaremlhe piores nomes do que aqueles que o Diabo chamou me (Bnard da Costa, 1991,
p.126). O mais radical de todos ter sido Csar Monteiro, em O Tempo e o Modo (no 67,
Janeiro de 1969), considerando que o filme
pe em causa a batalha comum por um Cinema Novo que o senhor Macedo desacredita com esta Selma escancarada a toda a
inanidade: um filme como 7 Balas para
Selma s pode ser encarado como empresa
reaccionria, carregada de balas que se desfecham traioeiramente nas costas dos pro-

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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

motores de uma revoluo cinematogrfica


em Portugal.
De modo que, em 1967, sem pblico, falidas, nem a Cinedex nem as Produes Cunha Telles esto j activas. O primeiro flego da 3a Gerao morria entre desiluses
e recriminaes amargas, buscava-se ganhapo na publicidade, no documentarismo industrial ou cultural. Cunha Telles troca a
produo pela distribuio, fundando com
Gisela da Conceio a empresa Animatgrafo, que seria responsvel por uma quase
revoluo no tipo de cinema visto em Portugal na primeira metade dos anos 70 (Bertolucci, Oshima, Tanner, Eisenstein, Sanjines,
Littin, Glauber Rocha, Vigo, Morrisey, Gilles Carle, Karmitz, foram alguns dos realizadores que entraram em contacto com o pblico portugus atravs dessa distribuidora
(Ramos, 1989, p.382), a qual assim juntava,
no terreno comercial, os seus esforos ao trabalho da Cinemateca e dos ciclos que a Gulbenkian em breve iniciar.

O Centro Portugus de
Cinema e o cerco

Chegamos a um breve perodo em que, se


a 3a Gerao quase no originou longasmetragens, atravessando um deserto de produo, nem por isso esteve parada, escreve
Leito Ramos [1995] (que considera que, na
histria do cinema portugus, o grupo do
novo cinema constitui a terceira gerao).
que o grupo que estava decidido a levar por
diante a renovao do cinema portugus deu
provas de excelente capacidade de organizao e de notvel auto-reflexo. Entra-se
na fase que Roma Torres (1974) designou
por anos Gulbenkian. Segundo as palavras
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11

do prprio Bnard da Costa (1991, pp.128


e 1985:33-34), o qual, desde 1969, dirige o
seu Sector de Cinema, a Fundao Calouste
Gulbenkian, grande Fundao privada, uma
das maiores do mundo, desde 1956 conduzia uma aco que transformara a vida cultural portuguesa, mas, durante os primeiros
dez anos de existncia, pouco fizera pelo cinema. Por isso em vrias entrevistas concedidas pelos homens do "cinema novo"[...]
a partir de 65, quando as coisas se puseram
mais feias, os seus ataques no visam apenas o Fundo ou o Palcio Foz. Comeam
tambm a criticar a Fundao Gulbenkian
por nada ter feito pelo cinema em quase dez
anos de existncia. Por exemplo, em 65, no
Plano, Fernando Lopes diz: "em relao ao
cinema portugus, do ponto de vista cultural,
h uma outra entidade que tem obrigaes
extremamente grandes e s quais foge: a
Fundao Gulbenkian [...] obrigaes e responsabilidades j que a cultura portuguesa
no se limita Literatura, ao Teatro, ao Ballet e no sei que mais o Cinema entra a
tambm". Nessa mesma entrevista adianta,
com algumas reticncias, a ideia de que a
Fundao "podia fazer aqui coisa semelhante
a um Instituto Portugus de Cinema". Na
mesma ideia de responsabilizao da Gulbenkian comungou Paulo Rocha, que inclusive se referiu a ela em vrias entrevistas dadas no estrangeiro. Muitos crticos e jornalistas reforaram esta tese, com recados mais
do que explcitos Fundao. Esta tinha j
comeado, h alguns anos, a conceder bolsas no estrangeiro a cineastas ou candidatos
a tal. Iniciara essa poltica em 61 e de bolsas
da Gulbenkian tinham beneficiado (para me
ficar por nomes que depois seriam mais conhecidos ou j o eram) Antnio Pedro Vasconcelos (1961), Antnio Campos (1961),

12

Alberto Seixas Santos (1963), Manuel Guimares (1963), Joo Csar Monteiro (1963),
S Caetano (1963), Alfredo Tropa (1963),
Antnio Escudeiro (1963), Teixeira da Fonseca (1964), Manuel Costa e Silva (1966),
Elso Roque (1967), Joo Matos Silva (1968),
Antnio da Cunha Telles (1968). Tinha apoiado os Festivais de Lisboa e outras manifestaes espordicas. Mas at 67 apesar de
algumas solicitaes sobretudo para o documentrio cultural [...] recusou envolver-se
nesse terreno e no havia, nos seus Servios
ou Departamentos, qualquer sector de Cinema (s em Maio de 69, tal sector foi criado
no mbito do Servio de Belas-Artes). Mas o
barulho comeava a ser muito s suas portas
e em 67 o Dr. Azeredo Perdigo considerava que era tempo de pensar no problema.
A ocasio surgiu, quando, nesse mesmo ano,
o Cine-Clube do Porto solicitou um subsdio
para uma "Semana de Estudos sobre o Novo
Cinema Portugus"a realizar em Dezembro.
Ao conced-lo, a Fundao adiantou uma sugesto: que fosse "dedicada uma das sesses
do colquio, qual estaria presente considervel representao de cineastas portugueses, ponderao de como seria desejvel,
do ponto de vista do cinema e dos artistas
que a ele se consagram, que a Fundao interviesse. Dessa sesso poderia sair um relatrio que ajudaria a esclarecer o Conselho de
Administrao acerca dos problemas a que
nos vimos referindo.
A resposta no se fez esperar. Lus de
Pina (1987, pp.163-164) resume: no final
de 1967, todo o jovem cinema Portugus,
com gente mais velha considerada jovem de
ideias, se desloca Cidade Invicta para tomar parte na Semana do Novo Cinema Portugus, organizada pelo Cineclube do Porto.
O fracasso das Produes Cunha Telles, a

Paulo Filipe Monteiro

ausncia de possibilidades financeiras, o desinteresse do pblico pelo novo cinema, o


evidente reforo da Censura [...], a frgil
situao do cinema portugus no mercado,
o declnio do movimento cineclubista, tudo
isso faz parte da agenda dos trabalhos, que
inclui o visionamento dos filmes do novo cinema portugus. A tomada de conscincia
colectiva de todos esses problemas havia de
gerar um documento de fundamental importncia, "O Ofcio do Cinema em Portugal",
dirigido Fundao Calouste Gulbenkian,
com data de 9 de Dezembro de 1967, em
que os cineastas presentes na Semana (Alberto Seixas Santos, Alfredo Tropa, Antnio
de Macedo, Antnio-Pedro Vasconcelos, Artur Ramos, Fernando Lopes, Fernando Matos Silva, Grard Castello Lopes, Ernesto de
Sousa, Jos Fonseca e Costa, Manuel Costa
e Silva, Faria de Almeida, Manoel de Oliveira, Manuel Ruas e Paulo Rocha, notandose a ausncia de Antnio da Cunha Telles)
sugerem a criao de um centro de cinema,
dependente da Fundao Gulbenkian.
Esse documento era um estudo muito
completo da situao do cinema portugus
o mais vasto e profundo que se fazia em Portugal desde h dcadas, o que mostra quanto
aos poderes pblicos estavam a ser ultrapassados, pela primeira vez desde que o Estado
Novo se impusera (Ramos, 1995). Nesse
estudo apontam-se j algumas das principais orientaes que iro caracterizar o movimento do novo cinema, e que vale a pena
destacar. Ali se pugna pela criao de um cinema de qualidade que garanta, no estrangeiro, um conhecimento mais exacto e vivo
da nossa realidade. Desde esta segunda
fase, pois, o novo cinema orienta-se para um
reconhecimento no estrangeiro: que o cinema que tm em vista no tem por enquanto
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

pblico em Portugal e, por essa mesma razo, um cinema condenado, ainda durante muito tempo, ao insucesso financeiro:
o cinema de qualidade. Logo se v, pois,
que s uma instituio desinteressada dos lucros e com uma capacidade administrativoeconmica slida pode arcar com fardo to
pesado.
Lus de Pina (1987, p.164) comenta: este
desejo de "centralizao", de depender de
um financiamento garantido, aproxima-se
das intenes dos cineastas que estiveram na
base da redaco final da Lei n.o 2027 (centralizadora, privilegiando a produo), que
tambm desejava uma "melhoria de qualidade"do cinema nacional, projecto to combatido por um homem como Roberto Nobre,
que via nessa dependncia de protectores a
criao de um cinema de estufa, ligado ao
poder por via do favoritismo, do trfego de
influncias. Mas os cineastas do novo cinema no tinham iluses quanto possibilidade de sobrevivncia, no estreito e vigiado mercado portugus, do seu cinema radical e, ao menos por isso, difcil; tinham
alis visto como os esforos de Cunha Telles haviam fracassado financeiramente nesse
mercado, apesar das vrias concesses em
termos de linha esttica e de relaes com
o poder poltico. Querendo evitar a dependncia do Estado Novo, os cineastas reunidos no Porto acharam que a melhor soluo
seria convencerem a Fundao Gulbenkian a
estender rea do cinema o decisivo apoio
financeiro que j tinha dado renovao de
outros sectores da cultura portuguesa.
Finalmente, mas afinal, talvez, primeiramente, sublinha Grilo (1992, p.160), a orientao seguida revela o divrcio estabelecido e substanciado entre produtores e realizadores (consagrado na fundao do Cenwww.bocc.ubi.pt

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tro Portugus de Cinema, verdadeira cooperativa de autores), que permanecero de costas voltadas uma boa dezena de anos. O novo
"Cinema Novo"passar assim, em boa medida, pelo apetrechamento institucional de
um cinema de autores, e alis esse o esprito do documento "O ofcio do cinema em
Portugal"[...]: "A aco do Centro no ciclo
da produo, a verificar-se, dever confinarse a um auxlio material, abstendo-se de
tudo o que possa representar limitao ao
caminho livremente escolhido pelos autoresrealizadores".
A soluo pretendida pelo grupo reunido
no Porto a criao de um servio novo na
Gulbenkian, com autonomia administrativa
mas dependente do seu financiamento, intitulado Centro Gulbenkian de Cinema. Esta
proposta, porm, no aceite pela Fundao,
que decide apoiar o movimento, sim, mas
noutros termos: subsidiar, e apenas por um
perodo experimental, uma entidade privada
que os prprios cineastas fundem e giram.
Assim fundado, em 1969, o Centro Portugus de Cinema (CPC), sociedade cooperativa, perante a qual a Fundao se obrigava
a conceder um subsdio experimental pelo
perodo de trs anos, e que no primeiro deles
(1971) orou os trs mil e duzentos contos
(uma vez e meia o oramento de uma produo mdia) (Grilo, 1992, p.161). Nesse
compasso de espera at concretizao do
acordo, a Fundao Gulbenkian criou o seu
Sector de Cinema, apoiou a Cultura Filmes, efmera empresa de Ricardo Malheiros,
que nos seus 3 anos de actividade (1967-69)
produziu um conjunto de curtas-metragens
inserveis no novo cinema.
Os cineastas do novel Centro Portugus
de Cinema formavam, no dizer de Bnard
da Costa (1991, pp.131-132), um grupo he-

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terclito, de tendncias estticas diversas,


mas com um ncleo slido (Paulo Rocha,
Fernando Lopes, Antnio de Macedo, Fonseca e Costa, Seixas Santos, Antnio Pedro Vasconcelos) com apetncia e capacidade de poder. Na constituio do Centro,
dos nomes mais falados dessa gerao, apenas trs se podiam considerar omissos: Antnio da Cunha Telles, afastado do grupo inicial pelas sequelas das polmicas do fim das
suas produes, Joo Csar Monteiro, enfant terrible da crtica mais provocatria e
por isso julgado por muitos demasiado "extremista"[...] e Antnio Campos, um amador autodidacta que surpreendera ainda nos
anos cinquenta com algumas curtas metragens adaptadas de Miguel Torga e que, em
1961, realizara, na senda de Jean Rouch, um
dos melhores exemplos de documentarismo
etnogrfico portugus em A Almadraba Atuneira, sobre a pesca do atum. Os trs acabaram por ingressar no Centro mas apenas
em 1972.
em Setembro de 1970 que a Fundao
contrata os primeiros financiamentos, mas o
protocolo formal s ser assinado em Setembro de 1971, reafirmando que a Gulbenkian
no assumia o encargo de gerncia e manuteno do referido Centro. O Protocolo
determinava tambm, logo na sua abertura,
que o CPC seria "uma sociedade cooperativa
aberta, sem discriminaes de qualquer espcie, a todos os cineastas interessados na
prossecuo dos seus fins". (...) Ou seja,
impunha-se ao CPC uma poltica de unidade
e no se lhe garantia um guarda-chuva perptuo, o que reforava a coeso, obrigando
por exemplo Antnio de Macedo a ser "cooperante"com quem j lhe chamara em pblico e por escrito, "incompetente"e "pobre
Diabo"(Csar Monteiro) [Ramos, 1995].

Paulo Filipe Monteiro

Fica-se ento espera que venha da Gulbenkian, depois dos inevitveis procedimentos burocrticos, o dinheiro que permitir o
novo arranque. A Fundao ainda no deu
a resposta, e se ela no vier... dir, com
ironia, uma personagem do filme O Cerco,
rodado em 1969 e estreado em 1970, com
o qual Cunha Telles, subsidiado pelo Fundo
de Cinema, passava realizao, anunciando, ou mesmo ultrapassando, os seus colegas no lanamento do segundo flego do
novo cinema. Nufrago como produtor, objecto da "quarentena"que lhe tinha sido imposta pelo grupo do "Ofcio", com vrias falncias e credores no encalo, Cunha Telles
no se deixou abater e voltou aos estdios
agora como realizador. E, com um filme
de escassos meios, arrancou surpreendentemente em 1970 o maior sucesso comercial
que qualquer obra do "novo cinema"at ento tinha obtido. O filme chamou-se O Cerco
e com ele voltou Portugal aos certames internacionais (Quinzena de Realizadores de
Cannes). Cunha Telles conseguiu fazer o
primeiro filme do novo cinema novo a pagar os custos da produo com as respectivas receitas de exibio, no mercado interno
e estrangeiro, e mesmo a dar lucros de 50%.
Mas, paradoxalmente, depois deste sucesso,
e depois de Sever do Vouga... uma Experincia (mdia-metragem de Paulo Rocha para
a Shell Portuguesa, de 1970), Cunha Telles nada produz durante treze anos apenas
entra na produo, em 1973, em conjunto
com o CPC e a Tobis, do seu prprio filme
Meus Amigos; s regressar como produtor
em 1983.
O sinal [dado por O Cerco] no passou
despercebido para o poder. Este, que at a
ignorava escandalosamente as obras do cinema novo, deu-lhe os grandes prmios da
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

S.E.I.T.: melhor filme, melhor actriz, melhor fotografia (Accio de Almeida). Tambm nas curtas metragens foram dois novos premiados: Antnio de Macedo e Faria de Almeida. O triunfo de uma gerao
comeava (Bnard da Costa, 1991, pp.132133). Entretanto, financiado pelo Fundo e
por amigos e inserido na Mdia Filmes
(que fundara com Fernando Matos Silva, Alberto Seixas Santos, Alfredo Tropa e Manuel
Costa e Silva), tambm Fernando Lopes conseguir fazer, margem do CPC (a que no
entanto preside), a sua primeira obra inteiramente de fico, Uma Abelha na Chuva,
adaptada do romance homnimo de Carlos
de Oliveira, cuja rodagem se estendeu entre
1968 e 1971, vindo a estrear em 1972 e ganhando tambm o Grande Prmio de Cinema
da S.E.I.T..
1972 foi o ano em que finalmente se chegou apresentao da primeira das longasmetragens sadas do protocolo GulbenkianCPC O Passado e o Presente, de Manoel
de Oliveira , numa sesso que contou ainda
com a projeco de A Pousada das Chagas,
de Paulo Rocha, rodado, em condies econmicas superiores s habituais, em 1971,
com dinheiro que a Gulbenkian fornecera
parte do subsdio ao CPC. A solenidade foi
marcada pela presena do Presidente da Repblica. Abrindo a sesso, o Presidente da
Fundao, Dr. Azeredo Perdigo, discursou para deixar claro que: a interveno da
Fundao, na absoluta impossibilidade de resolver todos os problemas que se levantam
ao desenvolvimento do cinema em Portugal,
tem de ser, ao mesmo tempo, modesta, prudente e experimental. O Presidente do CPC,
Fernando Lopes, discursou tambm, mas o
seu texto dilatava, inesperadamente, as margens da mudana, ao dizer: "Hoje que o ciwww.bocc.ubi.pt

15

nema passou o seu meio sculo de existncia e quando nomes como os de Griffith, Eisenstein, Murnau, Dreyer, Rossellini, Bergman, Jean Renoir ou Godard, se contam entre os valores mais importantes da cultura
ocidental, ao lado de Joyce, Picasso e Stravinski, ns portugueses e cineastas comeamos a ver, com mais claridade e confiana,
o cinema, como facto cultural, reconhecido
pblica e oficialmente". Lopes , simultaneamente, sincero e hbil nesta declarao:
sincero porque, de facto, esta nova gerao
que o CPC configura procede de uma cultura
cinfila, de uma habituao do olhar s salas
de Cinemateca europeias, e de um entendimento do cinema como uma experincia artstica e esttica vivida em plenitude, e no
como um simples empreendimento comercial; hbil porque, ao colocar, precisamente
a, o corte, se contornava (sem iludir) a espinhosa questo poltica num pas censurado
e ainda sob o domnio de uma velha classe
poltica amedrontada, que comeava tambm ela a sentir os efeitos da chegada de
novas geraes (Grilo, 1992, p.161). Mais
uma vez, a fronteira que se coloca pretende
acima de tudo defender o cinema como arte,
ao lado das artes mais antigas; e, se repararmos, defende os seus valores mais vanguardistas: evoca-se Joyce e no Thomas Mann,
Picasso e no o pai Renoir, Stravinski e no
Richard Strauss.
Para alm de O Passado e o Presente, a
produo do CPC inaugurou-se com trs outros projectos de fico, todos eles constituindo estreias na longa-metragem: Pedro
S, de Alfredo Tropa, O Recado, de Jos
Fonseca e Costa, estreados em 1972, e Perdido por Cem..., de Antnio Pedro Vasconcelos, estreado em 1973. Com o auxlio directo da Fundao surgem ainda trs outros

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filmes: o j referido A Pousada das Chagas, de Paulo Rocha, Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalo, de Joo
Csar Monteiro, e Vilarinho das Furnas, de
Antnio Campos. Todos estes novos cineastas no so propriamente gente desconhecida. Conjuntamente com Seixas Santos (cujo Brandos Costumes integraria o II
Plano do CPC), Csar Monteiro e Vasconcelos, por exemplo, tinham j realizado curtasmetragens de carcter documental, para o
produtor Ricardo Malheiro, e tinham um
longo passado crtico e terico, substanciado
nas pginas do Cinfilo e dos suplementos
do Dirio de Lisboa. Mas a chegada deles
ao campo da longa-metragem de fico (e
ainda de Fernando Matos Silva com O MalAmado) amplia mais o leque de projectos,
tendncias, temas e formas, e permite, enfim, que se comece a poder falar de uma cinematografia, consciente dos seus limites (o
mais importante dos quais ser a censura poltica e econmica), mas j madura, ou em
vias disso, apta a responder ao espao de liberdade que a democracia e o 25 de Abril
lhe trar (Grilo, 1992, p.161). Para termos
uma ideia do impacte que causou a nova gerao nesse anos de 1972, basta pensarmos
que, entre Fevereiro e Junho estreiam quatro longas-metragens, de fico, do novo cinema (as de Oliveira, Fonseca e Costa, Lopes e Tropa).
Como avaliar Fernando Lopes (vide Jos
Manuel Costa, 1985, p. 69), a gerao anterior, do fim dos anos 50, aceitara-nos como o
cinema portugus. Tinham-se remetido a um
papel secundrio, se no at demissionrio.
(...) O que no quer dizer que as fitas do Henrique Campos e do Constantino Esteves no
tivessem continuado a aparecer. Mas quando
a Gulbenkian entre em cena, eles compreen-

Paulo Filipe Monteiro

deram que tinham perdido a partida. Penso,


alis, que sem a Gulbenkian, o esforo da
primeira fase do "Cinema Novo"se teria gorado completamente, por pura falta de continuidade. A verdade que no tnhamos
condies para continuar a fazer filmes maneira da Abelha na Chuva e do Cerco. A importncia do CPC est na produo contnua
que foi capaz de pr de p. Reparem que
desde os anos 30, 40, o cinema portugus
no tinha um "corpus". E com o CPC e a
Gulbenkian, em trs, quatro anos, aparecem
uns dez, doze filmes, se no mais, se pensarmos, por exemplo, na Sagrada Famlia e nos
Sapatos de Defunto, do Csar Monteiro, que
o CPC ajudou.
De todos esses filmes, o pblico s no
viu Quem espera por Sapatos de Defunto. O
realizador recusou-se a aceitar alguns cortes
da censura e no consentiu na exibio do
seu filme, mutilado. Por esses anos, a Censura proibiu tambm Nojo aos Ces, de Antnio de Macedo, muito reflector do esprito
de Maio de 1968. Autorizou, no entanto,
a sua circulao no estrangeiro, tendo sido
projectado e premiado no Festival de
Brgamo de 1970 (Bnard da Costa, 1991,
p.139). De novo, e desta feita pela prpria
mo da censura, a recepo no estrangeiro
muito mais importante do que em Portugal;
como acontecer com quase todos os outros
filmes do novo cinema. Alm das j referidas retrospectivas de filmes de Manoel de
Oliveira (Locarno, em 1964, e Cinemateca
Francesa, em 1965), houve mais duas retrospectivas, tambm de Oliveira, em 1971, na
Filmoteca Espanhola e, em 1974, em Bruxelas, e a Semana de Nice dedicada, em Maro
de 1972, ao nosso novo cinema, onde passaram todos os novos filmes desses dez anos,
de Dom Roberto a O Recado.
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

Entretanto, no princpio de 1974, Antnio de Macedo consegue fazer um sucesso


(A Promessa), desta vez com uma barragem
[crtica] de sinal contrrio (o Cinfilo, revista que Fernando Lopes era ento director,
dedicou-lhe por exemplo, um demolidor dossier 9/2/74) (Ramos, 1995). Parece comear a desenhar-se um perfil em que, quando o
pblico gosta, a crtica desgosta, e vice-versa
(sem que neste quando esteja implicada
uma relao de causa a efeito). O facto de se
tratar da adaptao de uma pea de Bernardo
Santareno, de ntida mensagem social, se lhe
d uma cauo poltica oposicionista, no lhe
garante entrada no novo cinema, tal como vimos acontecer com Pssaros de Asas Cortadas, tanto mais que alguns cineastas do velho cinema tambm tinham ido adaptar o
mesmo gnero de literatura; e o prprio sucesso entre o pblico portugus aproxima-o
mais da vertente comercial do seu 7 Balas
para Selma, ou dO Cerco do impuro Cunha Telles, do que da ruptura radical assumida pela nova gerao. Apesar dessa reaco demolidora da nova crtica portuguesa,
A Promessa o primeiro filme a figurar na
seleco oficial de Cannes (que tinha recusado, por exemplo, O Passado e o Presente):
a doxa portuguesa do novo cinema mais
estrita no que elege do que os prprios festivais estrangeiros em que, no entanto, procura
legitimar-se.
No mesmo ano de 1974, a 20 de Abril,
no Cinfilo, Joo Csar Monteiro refere-se
ao filme Jaime, a primeira longa-metragem
do poeta Antnio Reis, sobre as pinturas de
um internado no Hospital Miguel Bombarda
(e todos estes elementos so bem caractersticos das novas fronteiras poesia, pintura, marginalidade) como uma etapa decisiva e original do cinema moderno, obriwww.bocc.ubi.pt

17

gatrio ponto de passagem para quem, neste


ou noutro pas, quiser continuar a prtica de
um certo cinema, o cinema que s tolera e
reconhece a sua prpria austera e radical intransigncia. Intransigncia que pode lerse na nova srie do Cinfilo, em 1973, dirigida por Fernando Lopes e feita por um
dos ncleos do novo cinema, prosseguindo
nas suas pginas a polmica que o divide,
at cessar a publicao dois meses depois
do 25 de Abril (Pina, 1987, p.173). Ou
seja, datam deste tempo as primeiras fracturas entre os novos cineastas. Enquanto
um Paulo Rocha, um Antnio-Pedro Vasconcelos, um Seixas Santos ou um Joo Csar Monteiro seguem a linha de um cinema
"personalista", de incidncias bazinianas, influenciados pelos Cahiers du Cinma, outros cineastas, como Fonseca e Costa, Artur Ramos, Henrique Esprito Santo, Manuel Ruas, seguem, com naturais variantes,
um cinema "realista", em que a componente
social ou poltica, determina os temas e as
formas, com alguma influncia da revista
Cinema Nuovo (Pina, 1987, pp.168-169).
Acrescente-se que Artur Semedo, logo a partir de Malteses, Burgueses e s Vezes..., inicia um percurso prprio, uma espcie de
terceira via, em que atravs do humor que
lhe natural pode chegar ao grande pblico,
sem contudo abandonar a vertente de crtica,
mordaz, como esse ttulo alis indica.
Foi a primeira destas faces que dominou o processo de tomada da cidadela do
cinema portugus. Por exemplo, foi ela a
chamada a dirigir a primeira Escola Superior de Cinema criada em Portugal, em 1973,
que passou a funcionar, ainda como EscolaPiloto, no Conservatrio Nacional, no mbito de uma vasta reforma do ensino artstico, incentivada pelo mais reformista dos

18

Paulo Filipe Monteiro

ministros de Marcelo Veiga Simo, Ministro da Educao e dirigida por Madalena


Azeredo Perdigo (1924-1989), directora do
Servio de Msica da Gulbenkian e mulher
do presidente da Fundao. Alberto Seixas
Santos foi escolhido para primeiro director
da Escola, onde passaram a leccionar Fernando Lopes, Paulo Rocha, Cunha Telles e
outros nomes associveis ao movimento (cfr.
Bnard da Costa, 1991, p.135).

A primavera marcelista

Essa entrega do ensino do cinema nova


gerao, e ao seu grupo esteticamente mais
radical (mas menos directamente poltico),
vem no seguimento da linha de viragem que
vimos ser introduzida no SNI por Moreira
Baptista, mas alm disso favorecida pela
primavera marcelista, que dura entre 1968
e 1972, e se vem juntar, na expresso de Bnard da Costa, primavera Gulbenkian no
favorecimento da implantao do novo cinema. Com a abertura desses anos, a censura abranda em relao aos filmes estrangeiros: os espectadores portugueses podero ver num cran, pela primeira vez, os seis
nus de uma mulher os de Romy Schneider, em A Piscina de Deray -, assim como
vrios filmes at ento proibidos por exemplo, Alexandre Nevsky e Ivan o Terrvel de
Eisenstein, em sesses que esgotaram a lotao. Por sua vez, o Sector de Cinema da
Fundao Gulbenkian, devidamente inserido
no Servio de Belas-Artes, em 1973 d incio a uma srie de ciclos que procuram fazer ver o cinema como a Stima Arte. Aproveitando essa abertura, a nova ala liberal
da Assembleia Nacional procura alterar a lei
do cinema. No incio dos anos setenta
nomeada uma comisso revisora, cujos tra-

balhos ho-de dar frutos na Lei 7/71, no


sem pblica polmica a anteced-la, bem expressa numa interveno de sentido antitotalitrio feita por Pinto Balsemo na Assembleia (1970), que um abaixo-assinado subscrito por 62 nomes do cinema portugus viria a apoiar. Perplexos com o teor dos debates na Assembleia, 62 realizadores e tcnicos
enviaram ao presidente da Assembleia Nacional um telegrama no qual manifestavam "a
sua profunda inquietao pelo tom das intervenes de alguns deputados, reveladores da
ntida carncia de informao relativamente
ao exerccio da profisso em Portugal, bem
como as concepes arcaicas acerca do cinema como fenmeno de criao artstica e
veculo de cultura", apelando para um cinema portugus livre, "independente dos interesses econmicos na quase totalidade ligados produo e distribuio estrangeiras,
que tambm tm sufocado a produo cinematogrfica nacional". A resposta dos distribuidores, em carta subscrita por 20 empresas, publicada na imprensa, no se fez esperar. Congratulando-se e apoiando patrioticamente os deputados, cujas "intervenes tm
sabido no esquecer todas as actividades nacionais, global e harmonicamente consideradas, e no exclusivamente a construo insustentvel de uma produo flmica unicamente baseada em subsdios e proteces",
no deixando de salientar que so os filmes
estrangeiros "a garantia de viabilidade comercial indispensvel actividade dos cinemas e dos estabelecimentos tcnicos nacionais", sublinhando que essa base econmica
do cinema devia construir "a finalidade principal de uma lei de proteco e fomento do
cinema, que no outras porventura importantes, mas secundrias, mas no vitais", concluam gloriosamente que "os distribuidores
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

portugueses no servem interesses estrangeiros, mas to-somente os seus interesses legtimos, que sempre tm sabido escrupulosamente integrar no superior interesse nacional" (cfr. Geada, 1977, p.99).
A 7 de Dezembro de 1971 publicada a
Lei 7/71, chamada Lei do Cinema Nacional,
e a 5 de Junho de 1973 o Decreto n.o 286/73,
chamado Regulamento da Actividade Cinematogrfica. Nesta legislao, a novidade
principal a criao de um Instituto Portugus de Cinema (cujo regulamento, no entanto, s vir a ser publicado em 1982), presidido pelo Secretrio de Estado da Informao e Turismo: um Instituto que, nas suas
linhas gerais, se parece com o Centro de Cinema Gulbenkian sugerido pelos novos cineastas - e o certo que, com o surgimento do
Instituto estatal, o Centro Portugus de Cinema vem a deixar de ser subsidiado pela
Gulbenkian (que s prometera, recorde-se,
um apoio experimental de trs anos) e a
cessar praticamente a sua actividade (Pina,
1987, p.165). Fazem parte das atribuies do
Instituto Portugus de Cinema (IPC): incentivar e disciplinar as actividades cinematogrficas nas suas modalidades comerciais de
produo, distribuio e exibio de filmes;
representar o cinema portugus nas organizaes internacionais; promover as relaes
internacionais do cinema portugus no domnio cultural, econmico e financeiro; estimular o desenvolvimento do cinema de arte e
ensaio e do cinema de amadores; fomentar a
cultura cinematogrfica; atribuir prmios de
qualidade, prmios de explorao e prmios
de exportao (cfr. Geada, 1977, pp.159161).
E de onde vem o financiamento desse Instituto Portugus de Cinema? Segundo Bnard da Costa (1991, p.130), era evidente,
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sobretudo a partir de 1969, que mais dia menos dia, o cinema portugus passaria a contar com 10 vezes mais dinheiro do que em
1968 tinha (3800 contos foi a verba do fundo
nesse ano e foi um record). O sensvel
aumento da frequncia das salas de cinema
e dos rendimentos colhidos pelas distribuidoras deu base ideia de novas estruturas.
Atravs da criao de um imposto de 15 por
cento sobre os lucros das bilheteiras dos cinemas (o que nessa altura se calculou em 50
mil contos), depois chamado "imposto adicional", era possvel criar e financiar um organismo o Instituto Portugus de Cinema
que subsidiaria a produo portuguesa. A lei
(Lei 7/71) s foi promulgada em 1971 (ainda
hoje nos rege) e o Instituto s comeou a funcionar em 1973.
Quando nomeado o secretrio-geral do
Instituto Portugus de Cinema e se comeam
a preparar os seus primeiros apoios financeiros, em fins de 1973, o Conselho de Cinema,
presidido pelo novo secretrio de Estado da
Informao e Turismo, [...] e integrado j por
novos cineastas, resolve abrir um pouco as
critrios de julgamento dos projectos, quer
no plano legal quer no plano poltico. Um
ms antes do 25 de Abril, os primeiros subsdios concedidos no s no contemplam
nenhum cineasta antigo com excepo de
Manoel de Oliveira (Benilde ou a VirgemMe) e de Manuel Guimares (Cntico Final) como aceitam cineastas nitidamente
de esquerda, defensores de um novo cinema,
quase todos scios do CPC (Pina, 1987,
p.170), como Antnio de Macedo, Cunha
Telles, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, Artur
Ramos e S Caetano. Era a consagrao oficial da gerao que fizera o "cinema novo",
era a continuao da poltica da Gulbenkian
com outros meios, como em cima da hora

20

Paulo Filipe Monteiro

triunfantemente proclamava a revista Cinfilo. De novo toda a gente embandeirava em


arco (Bnard da Costa, 1991, p143). Como
escrever Fernando Lopes (1985, p.68), no
cinema, ns ramos, de facto, o verdadeiro
poder. A gerao anterior estava morta. No
admira que chegado o 25 de Abril, nos dssemos conta de que o nosso problema j tinha
sido resolvido antes.

Algumas caractersticas do
novo cinema

Este paradoxo de um regime que pe no poder elementos que no lhe so afectos, e o


paradoxo, talvez menor, desses elementos
que, embora no afectos ao regime, pelas
suas mos acedem ao poder, s se explica
porque, ao contrrio dos movimentos cineclubista e neo-realista, o novo cinema portugus desenvolvia preocupaes mais estticas do que polticas. Bnard da Costa
(1991, p. 114) considera que desde o incio
houve uma diferenciao no discurso dos
paladinos desse novo cinema. Aos defensores de "um cinema moral", "um cinema de
razes democrticas, enquadrado na mais genuna ortodoxia neo-realista"[como diz Baptista Bastos na revista Imagem, Setembro de
1958], comearam a opor-se vozes que proclamavam um cinema afim da nouvelle vague francesa e que se reclamam das teorias
dos Cahiers du Cinma e da viso auteurista
do cinema. Veremos como esta clivagem se
mantm, mas com ntida vantagem do grupo
do cinema de autor, a que Pina chama formalista.
Como mais emblemtico do arranque do
novo cinema portugus, tem sido apontado o
filme Os Verdes Anos, de Paulo Rocha. Ve-

jamos o que o distingue e faz dele a fronteira inicial do novo conceito de novo cinema: um cinema artesanal, por contraponto a um cinema industrial, e uma viso
pessoal, de autor, por oposio a um cinema
de produtor. Numa entrevista da poca (Jornal de Letras e Artes, 6.5.1964), Paulo Rocha esclarece: normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a histria em relao
mise-en-scne. NOs Verdes Anos tentouse ir contra isso. O que mais interessava era a
relao entre o dcor e a personagem, o tratamento da matria cinematogrfica. Eram
as linhas de fora, num plano, que lhe davam
o seu peso e a sua importncia. Percebese agora melhor por que razo tem parecido
importante deslocar a fronteira do novo cinema do padro de Pssaros de Asas Cortadas, e mesmo de Dom Roberto, filmes em
que a histria, o guio, os dilogos e os actores tm maior importncia. A orientao
de Paulo Rocha define, de facto, melhor a
doxa que dominar o novo movimento, um
cinema que trabalha os espaos, os dcors,
as cores, as matrias, e pede para ser lido por
esse lado, e no pelo da intriga e dos actores.
Diga-se, em abono da verdade, que existe
no guio dOs Verdes Anos uma preocupao
social, mais audvel nos dilogos do que visvel no trabalho que Rocha sobre eles faz, e
que os prximos dois filmes de Paulo Rocha,
Mudar de Vida (1966) e Sever do Vouga
uma experincia (1970) se aproximam muito
mais de uma temtica social e realista, quase
neo-realista, do que em Os Verdes Anos. Mas
ser este a ser tomado como bandeira, e,
conjuntamente com Pousada das Chagas, de
1971, que vimos ser projectado na inaugurao dos anos Gulbenkian, colocou at
hoje a obra de Rocha sob o signo do seu primeiro filme. Pousada das Chagas pode serwww.bocc.ubi.pt

Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

vir de exemplo extremo, segundo Leito Ramos (1989, p.310), para uma esttica de excerbamento dos materiais flmicos, para um
territrio de pesquisa formal, para um secretismo ficcional que se joga entre a conscincia do cinema como representao e a (desejada?) ruptura de comunicao com um (ignoto?, improvvel?, negligenciado?) espectador. Creio que o solipsismo do cinema portugus encontra aqui o seu ponto paroxstico
[...], como quem fecha a porta do sacrrio e
deita a chave ao rio.
Ainda em 1993, e atacando uma crtica
no inteiramente favorvel feita por Eduardo
Prado Coelho, M. S. Fonseca sai em defesa
de Os Verdes Anos, dizendo que a crtica
"socialmente empenhada"no compreendeu,
nem poderia, por desajustamento dos parmetros de avaliao, compreender. Da que
se falasse num filme "mecnico no retrato
das relaes sociais", ou de um filme com
evidente "insuficincia de notao psicolgica"dos personagens. Tinham razo, embora no fosse a razo que julgavam ter. Ou
seja, o facto de Paulo Rocha reclamar para
o seu filme uma leitura visual, pela mise-enscne e pelo plano, com irriso dos temas,
visto, no como uma sua limitao, mas
como sua virtude. H aqui uma simplificao facilitadora, que arruma tudo quanto pretenda encontrar no filme uma relao com o
mundo na categoria de urgncia social de
tipo neo-realista; uma posio que, se pode
entender-se no contexto de guerra, na poca,
entre a corrente neo-realista e a que, para se
opr a ela, se acantonava num formalismo,
no pode hoje deixar de ser ultrapassada.
At porque, no sendo o cinema puramente abstracto, no vamos deixar de encontrar nos nossos filmes personagens e problemticas no meramente formais. O que
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muito do novo cinema portugus vai trabalhar (vide P. Filipe Monteiro, 1995) so figuras muito genricas, herdeiras de um decadentismo romntico ou oitocentista e de
um fundo ideolgico de consideraes sobre Portugal, em que predominam personagens encurraladas ou sem objectivos ou,
quando os tm, com muito pouca possibilidade ou at vontade de os alcanar. No
fundo, procura-se ultrapassar a militncia de
tipo neo-realista com uma resistncia de outro tipo, e que, essa, foi possvel desenvolver no prprio regime salazarista-marcelista,
e ser acarinhada por ele: uma resistncia, se
quisermos, prpria ideia de resistncia, no
sentido poltico que o neo-realismo tinha, ou
s definies concretas em que esta era definida. Como na cano popularizada por
Amlia (com letra de Alexandre ONeill),
tambm cantada pela protagonista de O Recado, assim devera eu ser, assim devera eu
ser, se no fora no querer.
Uma das maiores marcas do novo cinema
portugus esta ideia de uma resistncia global, que em vrias figuras e objectos de negao foi atravessando os nossos filmes no
perodo que estamos a considerar: a tal austera e radical intransigncia, nas j citadas palavras de Csar Monteiro. A Histria ajuda a compreender que assim seja. O
novo cinema surgiu, como vimos, na oposio: em relao ao velho cinema, que estava
moribundo e que, apesar de tentar renovar-se
nos filmes com vedetas quase sempre cantantes, no era propriamente adversrio que metesse medo, mas era inimigo que pedia extermnio; e oposio em relao ao sistema
poltico e sociedade salazarista/marcelista
em geral, que, ao mesmo tempo, permitia
esta oposio e censurava outro tipo de resistncia, mais objectivada. Mas esse mesmo

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ethos oposicionista encontrava-se sobretudo


dans lair du temps, que os nossos cineastas
iam, por vezes a expensas do prprio Estado
Novo, respirar em Frana e Inglaterra, e de
que o cinema era justamente, na poca, uma
das manifestaes mais avanadas e agudas.
No podendo nem porventura querendo
negar coisas concretas, os nossos cineastas
assentam baterias num combate contra um
certo tipo de cinema e concentram-se numa
defesa da autonomia do seu trabalho enquanto arte, com todas as virtualidades e limitaes que este acantonamento vanguardista contm, como Theodor Adorno (1970)
to bem mostrou. De facto, h um princpio genrico, a partir do qual se articulam
os outros: a recusa do cinema enquanto indstria alienante, ao qual se contrape o cinema enquanto stima arte. Paulo Rocha caracteriza a Nouvelle vague, justamente, por
uma incompatibilidade com um cinema que
institucionalmente funcionava de uma forma
muito fechada e no problemtica e pela sbita descoberta de que era possvel, graas a
certas inovaes tcnicas, ultrapassar os condicionalismos impostos por essa institucionalizao, e repensar todas as formas do cinema de um modo que correspondesse ao
sentir e pensar da nova gerao. O novo
equipamento dava as condies tcnicas, o
Estado e a Gulbenkian davam as condies
financeiras, era possvel, em Portugal, entronizar o cinema enquanto arte. Mas, reparese, isto passava-se justamente em contramar evoluo, geral e de longa durao,
do fenmeno-cinema; se a novas vagas e o
free cinema puderam por momentos dar a
impresso contrria, depressa se veria que,
na segunda metade do sculo, o cinema estava claramente cindido em duas vertentes, e
era a industrial que claramente dominava. O

Paulo Filipe Monteiro

nosso cinema era, assim, um ncleo de resistncia tendncia dominante: ncleo que,
curiosamente, ao contrrio dos outros pases,
com a sua combatividade conseguiu ter nas
mos quase todas as rdeas do poder de produzir, ensinar e criticar.
Uma margem no centro, como pode
definir-se este movimento; na margem combativa contra o cinema industrial, mas no
centro em termos dos lugares de produzir,
ensinar e criticar cinema em Portugal. E nem
por, em Portugal, estar nos lugares centrais,
ele deixou de viver como resistncia, e talvez nem pudesse deixar de o fazer sem perder grande parte da sua identidade, afirmada
nessa negao. Um cinema, pois, contra a
instituio cinema, tal como maioritria e
crescentemente ela se definiu, ainda que defendendo o que considerou ser a essncia do
verdadeiro cinema enquanto arte essncia porventura em crise, mas glosando precisamente o tema dessa crise e de uma to
anunciada morte do cinema.

A difcil relao com o pblico

Um dos principais objectivos do novo cinema, e da sua preocupao de se distinguir,


como arte, da produo industrial maioritria, desestruturar o realismo, criar situaes
de estranheza em relao s expectativas que
o realismo banaliza (em termos de percepo do tempo e do espao, de narrativa, de
representao, etc.). A recusa dos modelos
de cinema dominantes, a que os espectadores esto habituados, contraria os hbitos de
recepo mais imediata, ou, para usarmos os
termos de Karlheim Stierle (cf. E. Prado Coelho, 1987, pp. 488-9), barra o caminho recepo pragmtica, iluso de uma continuidade plena com o mundo que a fico, com
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

a sua verosimilhana, poderia criar. Pede,


pelo contrrio, uma recepo competente,
que o prprio Stierle reconhece ser mais caracterstica das segundas leituras, em que comeamos a distinguir as vrias estruturas sobrepostas. A cinefilia e os seus filmes de
culto permitem essa leitura competente e repetida, de um modo que os nossos cinfilos
cineastas bem conhecem; mas nada garante
que o mesmo venha a acontecer com os seus
filmes. Pelo contrrio: desta esttica da
oposio resulta, como Lotman advertia (cf.
Monteiro, 1996, p. 60), uma descoincidncia
entre o cdigo dos emissores e o dos receptores; descoincidncia que, para surpresa e desapontamento dos autores do novo cinema,
afasta deles o pblico e nunca veio a ser seno episodicamente ultrapassada.
Vrias razes poderosas, explica Bnard da Costa (1991, p.125-126), contriburam para este insucesso. Por um lado,
o descrdito crtico e pblico a que chegara
o cinema portugus no permitiu generalidade dos espectadores distingui-los das
outras produes. Por outro, o vanguardismo das propostas estticas destes filmes
encontrou difcil eco num panorama cinematogrfico cada vez mais excntrico em relao Europa, devido crescente virulncia da Censura, nesses anos finais do salazarismo. [...] Ou seja, por um lado, estava
em vias de desapario o fenmeno de analfabetismo que permitia "comer de tudo", por
outro ainda no tinham aparecido novos alfabetos capazes de acederem a um tipo de
cinema to flagrantemente oposto a padres
comuns (e, ainda por cima, com iniludveis
deficincias tcnicas). [...] Se a batalha contra da dcada anterior fora ganha, no foi a
batalha pr dos anos 60. At porque essa batalha contra tivera motivaes polticas clawww.bocc.ubi.pt

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ras (atacar um cinema que j nada reflectia


da realidade do Pas) e a batalha pr as no
tinha, pois nenhum dos cineastas ou obras
citados denunciava ou podia denunciar,
por bvias razes censoriais essa mesma
realidade. Julgara-se que o movimento de
oposio cultural era suficientemente poderoso para "obrigar"cada portugus que votara
Delgado em 1958 a ir ver esses filmes. O engano foi trgico. At porque qualquer dessas
obras - aparentemente "idealistas- no era de
molde a despertar fervores ideolgicos e a
esquerda tradicional desconfiou tanto delas
como a direita. O vanguardismo esttico no
tinha qualquer contrapartida em vanguardismos ideolgicos. Repare-se que, no perodo
que neste captulo mais directamente nos interessa, os filmes com maior referncia poltica actualidade de ento, como O Cerco e
O Recado, foram os que tiveram, apesar de
tudo, mais pblico.
Ao mesmo tempo, esse desencontro tambm devido ao facto de as expectativas com
que o espectador, mesmo o espectador mais
escolarizado, entra na sala de cinema, terem
a ver com o realismo narrativo-dramtico
a que foi habituado, no s pelo anterior
cinema portugus, mas sobretudo pela esmagadora maioria dos filmes a que assiste
nas salas de cinema e nos ecrs da televiso. Com a agravante, muito lamentada pelos nossos cineastas, de nunca terem sido implementadas redes de distribuio alternativas que permitissem exibir filmes diferentes do mainstream americano, ou mesmo que
permitissem exibir os prprios filmes portugueses, que muitas vezes ficaram por estrear
e nem o Estado Novo nem os seus oposicionistas, nem mais tarde, sequer, o PREC, que
nacionalizou a produo mas no a distribuio, tiveram interesse ou condies para

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criar esse circuito alternativo, gerando a contradio de se investir num produto que no
se distribui.
Sublinhemos que no fazia parte do projecto do novo cinema estar de costas viradas para o pblico, e que, pelo contrrio,
os seus mentores ficaram admirados quando
este no reagiu como se esperava. Em 1970,
j Fernando Lopes reconhece (em entrevista
ao Jornal de Letras e Artes, n.o 274): em
termos prticos, se fizermos um balano realista, evidentemente que falhmos em relao ao nosso contacto com vastas camadas
de pblico. [...] Tenho a impresso que cometemos alguns erros de avaliao. Assim
em primeiro lugar, parece-me que todos ns
contvamos um pouco excessivamente com
a existncia de um pblico esclarecido, para
utilizar um chavo da poca, pblico que teria sido formado pelos cineclubes, pblico
universitrio, e outro, que de facto no apareceu para os nossos filmes. E, em 1989,
Seixas Santos (in Frdric Strauss, 1989, p.
28) insistir: o pblico portugus no quer
de todo saber do cinema portugus, e podemos perguntar-nos se no porque os realizadores esto a passar ao lado dos assuntos
que interessam esse pblico. Faz-se um cinema muito abstracto e muito pouco ancorado na realidade portuguesa. [...] alis
o conjunto do cinema europeu que est em
atraso relativamente sociedade europeia.
Ou seja, a ausncia de pblico, se foi consequncia do tipo de cinema que se fazia, no
foi consequncia desejada. Pretendia-se que
as obras existissem como acontecimentos, e
no ficassem apenas como monumentos.
Essa difcil relao com o pblico
constitui-se (at hoje) no principal calcanhar
de Aquiles do modo como est estruturado
o universo do cinema portugus: no tanto

Paulo Filipe Monteiro

pela no entrada de dinheiro (as receitas de


bilheteira, num mercado reduzido com o portugus, nunca mais voltaro a poder cobrir os
custos de um filme, com custos crescentes a
partir dos anos setenta) mas pelo dfice de
legitimao, que se ir acentuando.
A partir daqui, possvel sublinhar rapidamente alguns aspectos (desenvolverei estes e outros em publicao mais alargada).
Um deles como essa resistncia, que procura a desfamiliarizao e a desconstruo,
acima de tudo, e muitas vezes exclusivamente, intelectualizada: trata-se, justamente,
de evitar a manipulao com que os recursos
tcnicos do cinema permitem reforar o ilusionismo habitual da fico, e de instalar dispositivos que obriguem a uma distanciao.
Ou seja, fazendo justia modernidade, o
novo cinema portugus situa-se, claramente,
na tradio reflexiva, que coloca em evidncia as construes ficcionais atravs do
recurso a fracturas e descontinuidades. Ou,
para usarmos os termos de Susanne Langer (1953) e de Christian Metz (1977), na
discursividade, em que o filme nos olha,
contra o modo histrico, em que o filme
tenta apagar as marcas autorais da enunciao numa narrao mais modesta, mais escondida, quase invisvel, aparentemente conduzida pelas personagens.
Muitas vezes, essa distncia que pedida
pelo novo cinema portugus , ao avesso do
que desde o incio caracteriza o medium cinema, oposta fruio, entrando muitas vezes naquela confuso, contra a qual tanto o
pobre Bertold Brecht reclamou, entre distanciao e ausncia de prazer, partilhando afinal de todo o fundo de desconfiana relativamente ao gozo que atravessa a esttica, de
Kant a Adorno e Lyotard. Para Kant, h dois
sentidos possveis da relao do prazer com
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

o juzo: ou o juzo a verificao do prazer


(este objecto agrada-me) ou o prazer um
sentimento particular que segue o juzo, mas
ento o prazer nada nos pode fazer conhecer, apenas o prazer de conhecer, ou de ter
conhecido. esse segundo tipo de relao
que muito do nosso novo cinema concebe,
o de um prazer para quem sabe ver e apreciar distanciadamente, enquanto o que caracteriza o cinema em geral, e tambm o cinema
portugus anterior a que o pblico mais aderira, justamente o gozo precedendo o juzo.
Que se trata, aqui, de uma desnecessria confuso, provam-no o facto de os casos mais
bem resolvidos da aventura do novo cinema
portugus, como Oliveira e Csar Monteiro,
no rejeitarem os gozos elementares que o
cinema pode gerar, incluindo o humor constante.
Outra questo levantada por este recurso
distanciao conceptual a de saber se,
ao desconfiar da empatia, do gozo, das emoes, o novo cinema no se afastar das dimenses da experincia, para as quais, na
concepo de Walter Benjamin (1936), o cinema permite at abrir com particular facilidade, abalando a tradio aurtica a favor
da actualidade da recepo repetida em qualquer circunstncia. A resposta, em nosso entender, que, directamente, isto no acontece: a via intelectualizante no afasta necessariamente da experincia, do conhecimento,
da autenticidade da vida. Em todas as formas e pocas da arte, no esse um critrio
que sirva, no por ele que passam as divises. Para um autor como Maurice Blanchot,
tornar sensvel a distncia mesmo o melhor
modo de abrir em continuidade sobre a experincia, porque a nica forma de fazer sobreviver o desejo, sem nunca o saciar numa
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qualquer unidade (cfr. Prado Coelho, 1987,


pp. 472, 496, 498).
Claro que essa pode ser uma via possvel
sem ser a via mais comum ou sequer a mais
adequada ao medium em causa e, mais do
que isso, aos autores que a escolhem e ao
pblico que os acolhe. E a, indirectamente,
creio que este caminho gerou de facto todo
um conjunto de dificuldades. Antes do 25
de Abril, o cinema portugus tinha receio
de abordar temas actuais que interessariam,
com certeza, os espectadores, mas que cairiam sob a alada da censura, como sublinhava o citado documento O ofcio do cinema em Portugal. Ou seja, a impossibilidade de muitos filmes serem exibidos veio
reforar a tentao auto-reflexiva dos cineastas e aumentar crescentemente o risco de
divrcio em relao ao dilogo com a experincia. Curiosamente, comenta Eduardo
Prado Coelho (1994, p.174) a propsito das
vozes que gritam no deserto, esta foi um
pouco a problemtica inicial de Jorge Silva
Melo, a partir do caso de Bchner [no filme
Passagem ou a Meio Caminho, rodado em
1980]: a mensagem de um escritor, o seu
manifesto de revoluo, nunca atinge o seu
destino. Para o Jorge, de certo modo, isso
era uma dor que a tornava ainda mais bela.
Mesmo depois do 25 de Abril, acabada a
censura poltica, ser o mercado de distribuio e exibio continuar a funcionar, neste
medium, como uma barreira total ao contacto
do pblico com os filmes, por muito actuais que sejam os seus temas. Silva Melo
lembrava, em 1988 (p.8), que o facto de
muitos filmes no chegarem a estrear provoca uma ausncia de real muito grande.
Porque no so confrontados com o pblico
ou a falta dele, e com a concorrncia. Tal
como os dcors e os actores so o real da fil-

26

Paulo Filipe Monteiro

magem, o pblico tambm a realidade do


cinema.

Mais reviravoltas e
desfasamentos

Outros factos marcantes viro mostrar a coerncia, para o bem e para o mal, deste percurso do cinema portugus e das suas aporias. Destacamos apenas dois. Quando se
d a revoluo do 25 de Abril, o novo poder poltico chegou a preferir chamar, em
1975, alm de alguns militantes comunistas,
os cineastas do velho cinema dos anos quarenta e cinquenta, acusando os que pouco
antes tinham sido consagrados no poder de
intelectuais pseudo-revolucionrios, desligados dos verdadeiros interesses do povo.
Contradio gritante? Sim e no. A questo que, se o cinema muito auto-reflexivo
e abstracto que os novos cineastas vinham
fazendo, com boa repercusso internacional
mas grande alheamento do pblico nacional,
podia servir ao marcelismo, no se enquadrava na dinmica de dinamizao cultural
popular que o novo regime queria lanar.
Depois do 25 de Novembro, os cineastas
do novo cinema recuperam os lugares de poder que tinham conquistado antes do 25 de
Abril, e a ficam, embora muito divididos,
at aos governos da Aliana Democrtica.
Na viragem dos anos oitenta para os noventa,
um outro tipo de massificao, em nome da
economia de mercado, dos custos de produo e da necessidade de alianas com a televiso e com o estrangeiro que vai afastlos, primeiro com uma poltica de entronizao do audiovisual, presidida, alis, por
um dos seus membros mais antigos e anteriormente mais formalista, Antnio Pedro

Vasconcelos, e, depois, com um novo Instituto chefiado por duas pessoas (Zita Seabra e
Salvato Teles de Menezes) que poucos anos
antes tinham pertencido rea comunista a
mesma que, em 1974, procurara afastar a influncia j alcanada pelos cineastas do novo
cinema e fora buscar nomes do antigo regime. Talvez agora se comece a perceber
melhor que eram estas as pessoas que melhor podiam defender uma poltica populista
contrria ao experimentalismo que o novo cinema desenvolvera.
H mais coerncia do que pode parecer
primeira vista nesta escolha feita por um
governo do Partido Social Democrata: com
uma opo que para alguns podia aparecer
como progressista, ia-se afinal buscar quem
mais enrazada tivesse a averso ao cinema
de autor e defendesse um cinema populista
de recuperao das velhas comdias dos anos
trinta e quarenta mais uma vez, o progressismo social, quando existe, no est necessariamente associado ao progressismo esttico. Repare-se no que Teles de Menezes
(1985, pp. 160-195) escrevera, num balano
crtico feito em 1985: os nossos cineastas
tm a desagradvel tendncia a no aceitar
certas exigncias que uma arte to democrtica como o cinema faz: procurar o esoterismo temtico e privilegiar processos de significao ultravanguardistas so graves equvocos num tipo de produo extremamente
precrio, pouco desenvolvido, e perante um
pblico que precisa de ser ganho, que est
furiosamente viciado no modelo ficcional do
cinema norte-americano. Segue-se a afirmao de princpio: se se quer, mais tarde,
eventualmente, abrir caminho possibilidade de obras mais "difceis", o reencontro do pblico com o cinema falado em portugus (o nosso, no o transatlntico) uma
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Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema

coisa que tambm ser conseguida custa de


um acervo razovel de filmes que, como Kilas, o Mau da Fita, tentem fazer a recuperao (crtica, bem entendido) do espao esttico (formas e processos de significao) da
velha comdia populista, ramo da mesma rvore genealgica a que tambm pertence a
comdia de costumes italiana e com a qual,
nos seus pontos mais altos, no teme comparaes justamente aquela comdia que
Antnio Ferro considerava vulgar, grosseira,
o cancro do nosso cinema!
Ou seja, assim como antes do 25 de Abril
o poder poltico cedera o poder a esses cineastas, sabendo que, ao contrrio dos cineclubistas ou dos neo-realistas, eles pouco
mobilizariam o grande pblico, e, mesmo
que o fizessem, essa mobilizao no giraria em torno de temas polticos, assim mais
tarde, quando se defende um modelo populista, de reencontro com o grande pblico
em torno do entretenimento, esses cineastas foram afastados. No por muito tempo,
alis, j que os anos noventa se caracterizaram pela coexistncia (por vezes periclitante) do apoio, por parte quer do poder poltico quer dos prprios pblicos, s diferentes
opes que se tornaram cada vez mais claras
no cinema portugus, sem que possamos dizer que a margem foi afastada do centro, nem
que plenamente o reocupou. Alis, a prpria ideia de um centro nico que vai sendo
cada vez mais ultrapassada numa sociedade
e numa cultura policntricas, que, aos poucos, se afasta do olhar salazarista.

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