Uma Releitura Do Quadro "A Alegoria Da Calúnia"
Uma Releitura Do Quadro "A Alegoria Da Calúnia"
Uma Releitura Do Quadro "A Alegoria Da Calúnia"
decepcionados quando confrontados com essa face da vida, seja quando esta aparece
em pessoas do nosso afeto que considervamos desprovidas do mal, seja quando
aparece em ns mesmos. E atolados dicotomicamente na decepo, acreditaremos que o
bem e o amor no existem, que quem quer que se julgue bom na verdade bobo, e que
s nos resta sermos mais espertos que os espertos.
Esperando a recompensa por nossa bondade esse seria nosso poder to
negado? acabamos por negar os valores que tanto professamos. Ao negar o poder
presente em cada qual acabamos por negar a bondade, no podemos mais sermos bons,
pois a nossa pretensa bondade nossa fonte prpria de poder.
A nica perspectiva nesse contexto, de amar e ser amado, de ser verdadeiramente
bom, comear por identificar cada lasca de poder que jaz dentro de ns, desde as mais
inconfessveis at as que julgamos plenamente justificveis. Assim o poder pode adquirir
seu real tamanho. Nem inexistente nem monstruoso.
Porque a inocncia foi a ultima figura a ser devidamente elaborada no quadro da
calunia? Porque aqui que o poder se esconde. E se mantm.
A hipocrisia faz companhia inocncia, sendo as duas as nicas figuras que tem
a cor marrom escuro, que destoa de todo o resto do quadro. Esse o tom da obstinao,
do conservadorismo e do fanatismo. A hipocrisia a figura mais escura de toda a alegoria.
Seu tom marrom envolve seu corpo por inteiro, o que a difere da inocncia, que tem
marrom unicamente em seu contorno. a nica de cabea pra baixo, em posio
morcegal. A hipocrisia est espremida entre a m f e a inocncia. e aApia umo p no
ouvido cabea da m f e uma mo na lngua viperina da inocncia. .Na verdade ela est
espremida entre a m f e a inocncia. A hipocrisia obstruitampa o nico buraco de azul
no cu que poderia iluminar este lado sombrio da obra. Somente ela e a verdade por ouvir
dizer apresentam a boca em arco invertido, que representa tristeza. H uma diferena
estranha entre seus olhos, um deles arredondado, o outro triangular. Citaremos abaixo
outros olhares divididos, um presente na figura do sarcasmo, e outro na mscara da m
f, e tentaremos associar esses olhares.
Quase sumindo, meio que querendo sair do quadro, est o sarcasmo, com sua
forma espiralada, insinuando em sua metade inferior uma vbora. Seu corpo dos mais
inumanos quando comparado aos corpos das outras figuras. Seu tom quase se confunde
com o fundo do quadro, mas mesmo assim o seu azul, de tom mediano como o azul da
figura da verdade por ouvir dizer, essencial na composio da obra. As duas figuras
equilibram os extremos do quadro. Seu tom de azul o tom do convencionalismo, da
formalidade e da falta de autenticidade. O sarcasmo, que em si se caracteriza por um riso
amargo, custico, que com a boca dilacera, neste quadro tem um sorriso quase maroto.
Sua nica mo, de seis dedos, parece querer alcanar algo acima. Mas seu olhar no
acompanha seu gesto, pois um olho olha pra cima e o outro olha para baixo, num
estranho estrabismo. , pois, de uma ambigidade mltipla, dividido entre gente e
serpente, dividido entre gesto e olhar, dividido no prprio olhar, entre olhar acima e olhar
abaixo, e por fim sutilmente dividido em cores, com o azul por fora e o verde por dentro.
Ocultando-se atrs da verdade por ouvir dizer est a maledicncia, a figura mais
escondida da pintura. O fato de tentar ocultar-se atrs de outra figura parece sugerir que a
maledicncia s pode funcionar se no for explicita. No se pode falar mal do outro
abertamente, se se pretende alcanar algum efeito. E o ideal se esconder atrs de uma
aparncia de verdade.
O corpo violeta claro da maledicncia rasteja pelo cho. Esverdeado seu rosto,
de um verde semelhante ao verde da inveja. Ser a maledicncia sempre movida pelo
invejar? Laranja-vermelho intenso sua lngua, a lamber o cho. Mas no aparenta estar
insatisfeita por isso, nem com o fato de ser a figura mais a se arrastar no cho do quadro,
uma vez que sorri. Parece verdadeiramente interessada no cho que lambe. H aqui
semelhanas entre a maledicncia e Anteu, gigante da mitologia greco-latina. Um dos
adversrios de Hrcules, Anteu tira foras da terra, e fica mais forte a cada vez que cai,
arremessado ao solo.
A maledicncia a nica figura do quadro com o olhar negro.
A lngua que se destaca na figura da maledicncia somente encontra o mesmo
destaque na figura da inocncia. significativa esta similaridade. A maledicncia realizase atravs de sua lngua, ao falar mal. A inocncia participa do crculo da calnia de vrias
formas. Em uma delas seu principal ardil fazer-se de inocente, fingindo desconhecer a
calunia que acontece, se omitindo de revel-la e assim interromper sua propagao. Uma
outra forma, na qual o uso da lngua pela inocncia evidente, acontece quando o
inocente passa adiante a calunia, com a justificativa de que no foi ele quem a disse pela
primeira vez, pois ele est somente repetindo algo que ouviu. Pretende dessa forma
isentar-se de qualquer responsabilidade sobre a calunia, que ajuda a propagar quando a
passa adiante com sua lngua viperina.
O artifcio paira no ar, nico ser alado. O artifcio, enquanto olha para a calnia,
tenta colocar a mo sobre a cabea da verdade por ouvir dizer. Olha de esguelha,
levantando uma sobrancelha, como que a tentar ver se algum percebe o que pretende
fazer. meio rosa, cor adequada para aparentar inocncia, mas seu rosto trs ambguos
e dissimulados tons de cinza (ou seriam tons de cinza azulado?). Em suas asas cinco
olhos azuis nos olham, a tentar metamorfosear essas asas em um rabo de pavo.
Assim, neste canto da obra a verdade por ouvir dizer, que ilumina s para trs,
olha adiante o espao que s recebe a luz da calnia. Por trs da verdade por ouvir dizer
a maledicncia, sorridente, usa de sua lngua destrutiva. Acima da verdade por ouvir dizer,
o artifcio pe a mo sobre sua cabea.
De um azul mais clarinho, mais infantil, est a culpa, de joelhos, de olhos fechados
como a m f, carregando uma pedra cinza escura, mesma cor das mos da inocncia.
Cheia de dedos, seis em cada mo, a pedra no parece fustiga-la, uma vez que sua
expresso parece tranqila. A culpa, de olhos fechados, no v e no parece se
incomodar com isso.
A culpa s presta para incutir temor e assim possibilitar que a manipulao possa
ocorrer mais facilmente.
A verdade por ouvir dizer no ilumina para si, tudo que v reflete a luz da calunia.
Atrs da verdade por ouvir dizer uma feliz maledicncia rasteja. Por cima o artifcio bota a
mo em sua cabea.
A presena da cor cinza fundamental na dinmica do quadro. S se percebe a
presena de tons de cinza na metade superior desta obra.
No canto inferior esquerdo as figuras da suspeita, da ignorncia e da credulidade
formam um grupo bem definido. No lado oposto o mesmo acontece com o grupo formado
pelo artifcio, pela verdade por se ouvir dizer e pela maledicncia. Ligando um grupo ao
outro, numa dinmica perfeita, encontramos a figura da calnia.
Essa mesma dinmica no encontrada na parte superior do quadro, onde as
figuras esto mais desconectadas entre si. A cor cinza o elemento que no permite que
essa desconexo comprometa a dinmica o quadro como um todo.
O movimento do cinza se inicia nas mos da figura da inocncia. Esta toca a m f
que se acinzenta em vrias partes de seu corpo, chegando a contaminar de cinza o fundo
da obra.
Chama logo nossa ateno o fato de que a verso de Botticelli bem mais leve
que a verso de Irma Renault. Predomina naquela tons insaturados e mais claros, ao
passo de que neste predominam tons saturados e gritantes. A isso se soma o fato de que
na verso de Botticelli algumas das figuras so retratadas de forma leve e positiva. Essas
figuras podem ser divididas em dois grupos: as que com a aparente leveza dissimulam
suas funes violentas e manipulativas (essas seriam a ignorncia, a calnia, a insdia e a
fraude) e as que realmente se apresentam como leves, como no atuantes na calunia e
em sua dissimulao (que por sua vez seriam a inocncia e verdade).
O primeiro grupo, das figuras que so retratadas de maneira mais leve mas que
participam ativamente da calunia, indica uma sutiliza interessante nessa pintura. Para que
a calunia possa realmente se realizar em sua plenitude ela tem que ser, ao menos
parcialmente, dissimulada. Suas figuras no podem berrar suas intenes. Elas tem que
aparentar confiabilidade e at serem belas, como algumas citadas acima. Neste sentido, o
quadro de Boticelli mais sutil do que o de Irma Renault.
O segundo grupo, composto pela inocncia e pela verdade, o grupo das figuras
que no seriam ativas no fazer ocorrer a calnia. A inocncia seria a sua vtima sacrificial,
e a verdade seria a vtima omitida, que no pode ser revelada. No quadro de Irma Renault
as duas so radicalmente transformadas. A verdade se torna a verdade por ouvir dizer. E
a inocncia se torna um monstro diablico. A pintora parece ter ficado muito
impressionada quando percebeu que poderiam haver violncia por trs da inocncia, que
a inocncia no seria verdadeiramente inocente, mas s se fazia passar por tal. Apesar
de ser verdade que, por trs de uma aparente inocncia, pode haver at mesmo o ncleo
da violncia, isso no nos permite supor que no exista mais a possibilidade de alguma
inocncia, de algum que no participe da calunia. Tambm no faz sentido supor que
toda verdade somente verdade por ouvir dizer. Existe aquele que no participa da
calunia e que neste sentido inocente Existe a possibilidade de se sair da calnia e se
aproximar da verdade.
Assim, nem tudo calnia, nem tudo mal, nem tudo feio e injusto. Irma Renault
parece ter se assustado com o que percebeu e feito uma alegoria de um mundo onde no
resta uma fresta de ar fresco, um resqucio de bondade.
No interior se diz que, quando damos banho de bacia na criana, ao lanarmos a
gua suja fora, pela janela, no podemos nos esquecer de tirar a criana antes. Nem tudo
calnia, nem tudo violncia, nem tudo desamor. H de se ver o que de feio h em
cada um de ns, mas que sem com isso negar o que temos de verdadeiro e belo. Ou, dito
de outra forma, queimemos as formas caducas de nossa existncia, e preservemos o que
bom, belo e justo. Nem tudo deve ser jogado ao mar.
Por fim, tentamos nesse trabalho uma leitura de um quadro to complexo e rico,
que trata de temas to humanos, mas to negados por todos ns.
Justamente por isso neste texto a palavra estranhamento no foi usada toa. Sua
etimologia muito precisa: remete ao estrangeiro, quele que de fora, que no pertence
famlia. Logo no incio do artigo usei pela primeira vez essa palavra, ao me referir
atitude primeira de muitas pessoas quando diante do quadro. Considero que essa atitude
revela a dificuldade que temos com aquilo que em ns consideramos como feio, errado ou
mau, e que o quadro parece de alguma forma nos querer lembrar.
Certos quadros parecem ter essa propenso de causar estranhamento em quem
os v. Talvez, por isso mesmo, esses quadros tragam em si a possibilidade de modificar
algo em ns, modificar algumas formas muito taxativas que temos de olhar para ns
mesmos (e conseqentemente para os outros nossa volta), ou at permitir uma
reconfigurao um pouco mais abrangente dentro de cada um, uma verdadeira
ressimbolizao do modo de se ver e do modo de ver a realidade na qual vivemos. O
quadro A Calnia, de Irma Renault, trs em si essa potencialidade e por isso merece ser
considerado com cuidado.