ARON, Raymond. As Etapas Do Pensamento Sociológico PDF

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REVISTA ELETRNICA DA FACULDADE DE DIREITO DA PUC-SP

A INFLUNCIA DO PARADIGMA CIENTFICO-NATURAL


NO JUSNATURALISMO MODERNO E NO POSITIVISMO
COMTEANO.
Flvio Riche
Diplomata de Carreira - Itamaraty/MRE
Doutorando em Relaes Internacionais pela UnB

RESUMO
O artigo em questo tem por objetivo verificar, do ponto de vista epistemolgico,
como o conhecimento oriundo das cincias naturais afetou o desenvolvimento dos
saberes poltico e social no perodo moderno. Toma-se por base as experincias
do jusnaturalismo e do positivismo comteano, a partir das quais se pode verificar
uma relao de dependncia metodolgica que permeia a gnese das cincias
humanas na Modernidade.

Palavras-chave: Modernidade; jusnaturalismo; positivismo sociolgico.

ABSTRACT
This article aims to demonstrate, from an epistemological point of view, how the
knowledge resulted from natural sciences influenced the development of political
and social thought in the modern period. Taking into account the jusnaturalist and
positivist experiences, it tries to indicate a relationship of methodological
dependence, which marks the development of human sciences during Modernity.

Keywords: Modernity; jusnaturalism; sociological positivism.


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A Natureza e as leis da Natureza escondem-se noite;


Deus disse: Faa-se Newton e tudo foi luz.
Alexander Pope
(Epitfio em dedicao ao
tmulo de sir Isaac Newton)
Os versos de Alexander Pope acima reproduzidos so indicativos
da venerao da qual foi objeto a fsica newtoniana, a ponto de se tornar o modelo
cognitivo par excellence, adotado pela Modernidade. Acreditava-se ento que
finalmente a humanidade teria em suas mos uma forma de saber inquestionvel e
segura, doravante, passvel de generalizao: A correspondncia da natureza e do
conhecimento humano est agora estabelecida de uma vez por todas, o vnculo
que os une doravante insolvel (CASSIRER, Ernst: 1997, p.74). Com efeito, os
postulados da cincia moderna, antes que restritos ao estudo da natureza, foram
alargados de modo a abranger o conhecimento da prpria sociedade e do
indivduo, fornecendo as bases para as teorias polticas e sociais vindouras.
Nesse sentido, o presente artigo concentrar esforos no estudo de dois momentos
histricos bastante especficos, a partir dos quais so criados os grandes sistemas
que ordenaram, at princpios do sculo XX, o pensamento scio-poltico do
Ocidente. So eles o jusnaturalismo racionalista e o positivismo sociolgico.
Individualismo e racionalismo no pensamento jusnaturalista
Existe uma relao intensa, seno direta, entre o jusnaturalismo
desenvolvido no sculo XVII e as mudanas cientfico-filosficas que marcaram o
contexto europeu de ento. Enquanto na fsica o tomo representara o nvel
elementar do qual toda matria composta; na filosofia jusnaturalista, o indivduo
compunha a clula bsica da sociedade, sendo esta no mais que seu mero
somatrio. Similarmente, concepo cartesiana de idias inatas correspondera o

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direito natural, eterno e imutvel, inscrito no prprio homem e, portanto,


acessvel razo:
No jusracionalismo [...] os mtodos das novas cincias da
natureza estendem-se tica social. Eles transformaram
tambm o homem, como ser social, em objecto de observao e
de conhecimento liberto de pressupostos, procurando, assim, as
leis naturais da sociedade. O jusracionalismo baseia-se,
portanto, numa nova antropologia. [...] A pretenso moderna de
conhecimento das leis naturais agora estendida natureza da
sociedade, ou seja, ao direito e ao Estado; tambm para estes
devem ser formuladas leis com a imutabilidade das dedues
matemticas. E, tal como a conexo lgica das leis naturais
produz o sistema do mundo fsico, que atinge seu auge nos
Principia mathematica de Newton, tambm as leis naturais do
mundo social produzem um sistema fechado de sociedade, um
direito natural. (WIEACKER, Franz: 1993, p.288)

Cada um a seu modo, Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (16321704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), aplicaro ordem social e poltica o
novo mtodo cientfico de anlise e observao da realidade ainda que o ltimo
pensador ultrapasse as concepes jusnaturalistas dos antecessores em diversos
aspectos, especialmente no que concerne mutabilidade da natureza humana.
Em linhas gerais, o jusnaturalismo moderno, alm de ter como base
a postulao de um direito universal atemporal inerente prpria natureza
humana , assenta-se na dicotomizao estado de natureza/estado civil, mediada
pela via do contrato social.1 Por certo, os autores contratualistas partem de um
mesmo princpio, o estado de natureza, muito embora divirjam quanto sua
1

A despeito da identidade existente, o termo contratualismo no representa propriamente um


sinnimo para a expresso jusnaturalismo. Seu significado concerne mais questo da
fundamentao do Estado, seja quando tomado lato ou stricto sensu: Em sentido muito amplo o
Contratualismo compreende todas aquelas teorias polticas que vem a origem da sociedade e o
fundamento do poder poltico (chamado, quando em quando, potestas, imperium, Governo,
soberania, Estado) num contrato, isto , num acordo tcito ou expresso entre a maioria dos
indivduos, acordo que assinalaria o fim do estado natural e o incio do estado social e poltico.
Num sentido mais restrito, por tal termo se entende uma escola que floresceu na Europa entre os
comeos do sculo XVII e os fins do XVIII [...] Por escola entendemos aqui no uma comum
orientao poltica, mas o comum uso da mesma sintaxe ou de uma mesma estrutura conceitual
para racionalizar a fora e alicerar o poder no consenso [grifos nossos] (MATTEUCCI: 1995,
p.272). Certamente adotamos no presente trabalho o entendimento mais restrito acerca do
contratualismo.
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concretude: para uns trata-se apenas de uma situao ideal, um artifcio lgico,
enquanto outros o consideram como efetivamente dotado de existncia histrica.2
No obstante, importa que no estado natural os homens viveriam
isoladamente, embora potencialmente associveis. Imperava, de incio, a
igualdade e a liberdade absolutas, inexistindo qualquer forma de poder exterior e
organizado que os obrigasse a observar as leis naturais, o que terminava por gerar
alguns inconvenientes. A fim de san-los, os indivduos manifestariam pela via do
contrato a inteno de formarem um grupamento mais racional ainda que
tivessem para tal abrir mo de alguns de seus direitos legitimando
consensualmente a criao do estado civil. Com isso, o zoon politikon aristotlico
foi posto por terra; antes que natural, a sociabilidade humana constitui um produto
racional, resultante de uma deciso coletiva que opta por construir uma sociedade
artificial, como o estado social.

Entretanto, mesmo quando mencionada sua existncia real, como em Hobbes e Locke, o estado
natural denota uma certa dimenso contraftica, enquanto premissa elementar indispensvel para
as respectivas construes tericas. Logo, a forma de conceber tal premissa ter implicaes para
todo o raciocnio subseqente. Ao postular uma natureza humana belicosa, identificando o estado
de natureza com o estado de guerra, Hobbes fornece como nica alternativa um governo capaz de
controlar as paixes negativas e garantir a segurana, o que s possvel caso os sditos
renunciem todos seus direitos em nome do soberano, com exceo do direito vida, reduzindo
consideravelmente suas liberdades. Na senda oposta, Locke concebe um estado natural no qual os
homens demonstram um maior uso da faculdade da razo, chegando inclusive a estabelecer
relaes econmicas entre si mediante a criao da moeda, motivo pelo qual seu modelo poltico
preconizou a liberdade, defendendo a mnima interveno com o nico fim de garantir e preservar
a propriedade, entendida enquanto vida, liberdade e bens materiais. Quanto a Rousseau, sua
posio um pouco mais elaborada, sustentada em um modelo tricotmico, e no dicotmico.
Embora parta de um estado de natureza pacfico, habitado por um homem bom e feliz, admite que
este no tardaria a mudar frente a uma srie de inovaes, especialmente pela instituio da
propriedade privada, terminando por se degenerar na sociedade civil: O verdadeiro fundador da
sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto meu e
encontrou pessoas suficientemente simples para acredit-lo (ROUSSEAU: 1999a, p.87). Tratavase de remediar o estado de natureza corrompido, a despeito da impossibilidade de regresso ao
mesmo em sua pureza: [...] o retorno ao estado de natureza no somente era impossvel
concretamente, como indesejvel para o autor, uma vez que este considerava a Moral e a Justia
como conceitos desenvolvidos a partir da sociedade civil, sendo necessrio preserv-los (LIMA:
2000, p.126). Conseqentemente, caberia prpria sociedade civil, que desvirtuara o estado de
natureza, promover o resgate dos direitos naturais, ainda que em outro contexto. Nesse sentido,
com o contrato social rousseauniano, emerge uma nova natureza humana, capaz de conciliar as
contradies entre inclinaes individuais e deveres coletivos, na medida em que o sujeito torna-se
ao mesmo tempo autor e destinatrio da lei: As leis no so, propriamente, mais do que as
condies da associao civil. O povo, submetido s leis, deve ser o seu autor. S queles que se
associam cabe regulamentar as condies da sociedade (ROUSSEAU: 1999b, p.108).
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A fsica poltica de Thomas Hobbes


Dos autores contratualistas, talvez tenha sido Hobbes quem melhor
representara no campo da teoria poltica as inovaes da cincia moderna. Ainda
que de forma rudimentar, quando comparado em momento posterior ao feito de
Newton, Hobbes procurou em sua obra transcender a relao conflituosa inerente
s principais expresses epistmico-metodolgicas de ento: o empirismo
indutivo baconiano e o racionalismo dedutivo de Descartes. Ao menos quanto ao
aspecto em questo supera o aporte lockeano; enquanto este se restringiu
decomposio do todo em suas partes individualizadas, Hobbes logrou acrescentar
ao mtodo analtico a reconstruo sinttica, antecedendo nesse caminho o sculo
XVIII. E isto o fez com o mais puro esprito cientfico, sustentado no
corporalismo e no mecanicismo em voga.
Transpondo da fsica para a filosofia poltica o rigor causalmatemtico de descrio do real, Hobbes concebeu um sistema societrio
perfeitamente concatenado por redes de causalidade, cujas premissas derivariam
da prpria observao racional-emprica, uma verdadeira fsica poltica. Ao
pretender fazer da poltica uma cincia, to objetiva e metdica quanto a
geometria, Hobbes certamente tinha em vista por fim aos graves conflitos
polticos que marcaram a poca em que viveu conflitos estes que influenciaram
inclusive sua concepo acerca do estado de natureza: Hobbes is a realist. There
is no better evidence of this than the description of the state of nature, wich ends
by overlapping with the description of the civil war (BOBBIO: 1993, p.43).
Alm do mais, o prprio organismo humano compreendido
enquanto um maquinrio, passvel de expresso puramente quantitativa. No
outra coisa que postula Hobbes em suas consideraes acerca da cognio:
Quando algum raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a
partir da adio de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtrao de uma
soma por outra (HOBBES: 2000, p. 51). Conforme assinala Cassirer, o que
Hobbes afirma sobre o pensamento em geral que este haveria de se resumir a
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mero clculo matemtico tambm possui validade para o prprio pensamento


poltico do autor (CASSIRER, Ernst: 1997, pp. 337-341). Doravante, preciso
comear pela subtrao, reduzindo a sociedade at seus ltimos elementos
leiam-se indivduos atomizados , para em seguida realizar uma operao de
adio atravs do contrato social que permite a dissoluo do status naturalis
no status civilis.
Mesmo que artificial, o Estado tambm constitui um corpo fsico,
obediente a leis mecnicas, cuja explicao s possvel mediante a combinao
dos mtodos de anlise (resoluo) e sntese (composio), capaz de engendrar o
conhecimento verdadeiro da estrutura social. A despeito da extenso do trecho a
seguir, julgamos oportuna a reproduo das palavras de Hobbes, nas quais
demonstra claramente sua admirao pelos postulados do paradigma cientficonatural moderno, assim como nos fornece um belo resumo de sua proposta:
Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte
mediante a qual Deus fez e governa o mundo) imitada pela
arte dos homens tambm nisto: que lhe possvel fazer um
animal artificial. Pois vendo que a vida no mais que um
movimento de membros, cujo incio ocorre em alguma parte
inicial interna, por que no poderamos dizer que todos os
autmatos (mquinas que se movem a si mesmas, por meio de
molas, tal como um relgio) possuem uma vida artificial? Pois o
que o corao, seno uma mola; e os nervos, seno outras
tantas cordas; e as juntas, seno outras tantas rodas, imprimindo
movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artfice?
E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional,
a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte
criado aquele grande Leviat a que se chama Estado, ou
Cidade (em latim Civitas), que no seno um homem artificial,
embora de maior estatura e fora do que o homem natural, para
cuja proteo e defesa foi projetado. E no qual a soberania
uma alma artificial, pois d vida e movimento ao corpo inteiro; os
magistrados e outros funcionrios judiciais ou executivos, juntas
artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais, ligados ao
trono da soberania, todas as juntas e membros so levados a
cumprir seu dever) so os nervos, que fazem o mesmo no corpo
natural; a riqueza e prosperidade de todos os membros
individuais so a fora; Salus populi (a segurana do povo) seu
objetivo; os conselheiros, atravs dos quais todas as coisas que
necessita saber lhe so sugeridas, so a memria; a justia e as
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leis, uma razo e uma vontade artificiais; a concrdia a sade;
a sedio a doena; e a guerra civil a morte. Por ltimo, os
pactos e convenes mediante os quais as partes deste Corpo
Poltico foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se
quele Fiat, ao Faamos o homem proferido por Deus na
Criao (HOBBES: 2000, p. 27).

Indivduo, propriedade e resistncia opresso em John Locke


Por sua vez, a assimilao lockeana da cosmoviso cientficomoderna reside no tanto nos aspectos metodolgicos considerados per se, seno
na postura individualista que perfila toda sua produo intelectual. Basta para
tanto analisarmos a teoria da propriedade defendida pelo autor. Ao contrrio de
Hobbes que fez a propriedade derivar do contrato social assim como de
Pufendorf para quem a propriedade, a despeito de ter ocorrncia no estado de
natureza, s possvel mediante o consenso dos homens Locke procurou rejeitar
qualquer espcie de concepo voluntarista, postulando em seu lugar um aporte
fundamentado no prprio esforo pessoal.
Partindo da premissa teolgica corrente, que admitia a origem
comunal e divina da propriedade pois Os cus so os cus do Senhor, mas a
terra, deu-a ele aos filhos dos homens (Salmos 115:16), e o fez em comum, para
toda a humanidade, acrescenta o filsofo ingls , Locke desenvolveu um
raciocnio diverso, chegando mesmo a concluses dspares, que negam tanto o
carter social da propriedade quanto sua acepo menos individualista, tpica do
perodo medievo.
Seu objetivo, conforme esclarece, consiste em [...] mostrar de que
maneira os homens podem vir a ter uma propriedade em diversas partes daquilo
que Deus deu em comum humanidade, e isso sem nenhum pacto expresso por
parte de todos os membros da comunidade (LOCKE: 1998, p. 406). Destarte,
Locke precisava encontrar uma forma de legitimao natural-racional para a
aquisio da propriedade privada que independesse de fatores outros, exceto
daqueles assentados no prprio indivduo.
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Primeiramente afirma ser vlida a individuao da propriedade a


partir da res communes em razo do direito que o prprio homem possui de
conservar sua vida e garantir com isso a subsistncia, comprovando que em sua
teoria [...] a propriedade privada apresenta-se, no como uma instituio social
mas como implicao lgica da noo de indivduo auto-suficiente (DUMONT:
2000, P. 96). Outrossim, quando determinado sujeito emprega seu trabalho em
alguma coisa, termina por colocar nela algo pertencente prpria individualidade,
tornando-a, pois sua propriedade: O trabalho de seu corpo e a obra de suas mos,
pode-se dizer, so propriamente dele. Qualquer coisa que ele ento retire do estado
com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe
algo que seu, transformando-a em sua propriedade (LOCKE: 1998, p. 409).
Mas para chegar a essa concluso, Locke fez uso de um pressuposto
caro a seu pensamento como um todo, expresso singela do individualismo
moderno: Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os
homens, cada homem tem uma propriedade em sua prpria pessoa. A esta ningum
tem direito algum alm dele mesmo (LOCKE: 1998, p. 407 e 409). Com efeito, a
presente passagem, mais que uma mera fundamentao do direito de propriedade,
representa a prpria defesa da autonomia individual perante o jugo autoritrio da
tradio, uma tentativa de superar o dogmatismo existente pela via da investigao
emprico-racional, sustentada na capacidade do sujeito transformar o mundo
externo em seu benefcio, a partir de seu esforo pessoal.3
Se o individualismo inscrito na teoria da propriedade de Locke foi
alvo de duras crticas, o mesmo no se pode dizer acerca daquele presente em sua
doutrina do direito de resistncia opresso. Por constituir o valor fundamental da
sociedade, o indivduo dotado mesmo no estado civil de direitos originrios e
3

No de nosso interesse alongar a exposio da doutrina lockeana relativa propriedade. Digase apenas que Locke no somente buscou mostrar como a propriedade representava um direito
natural, derivado do direito vida e do trabalho pessoal, mas inclusive concentrou suas foras para
remover todos os limites naturais que havia antes concebido baseados na coexistncia, no
usufruto e na apropriao individual a partir do prprio labor terminando por permitir uma
acumulao praticamente irrestrita, seja ao alegar uma suposta abundncia de bens no mundo, ao
admitir a possibilidade e necessidade da alienao do trabalho, ou ao colocar o advento da moeda
como a assuno tcita da desigualdade entre os homens.
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inalienveis, limites de atuao do soberano: Onde termina a lei comea a tirania,


se a lei for transgredida para prejuzo de outrem. E todo aquele que, investido de
autoridade, exceda o poder que lhe conferido por lei e faa uso da fora que tem
sob seu comando para impor ao sdito o que a lei no permite, deixa, com isso, de
ser magistrado e, agindo sem autoridade, pode ser combatido, como qualquer outro
homem que pela fora invade o direito alheio (LOCKE: 1998, p. 563).
Da mesma forma, como associao criada pelos prprios indivduos
para a proteo das respectivas propriedades entendidas lato sensu, enquanto vidas,
liberdades e bens o Estado jamais pode faltar para com o telos de sua criao. Caso
isto ocorra, tornar-se- lcito o direito de resistncia: O fim do governo o bem da
humanidade, e o que seria melhor para esta, que o povo estivesse sempre exposto
vontade ilimitada da tirania ou que os governantes tivessem por vezes de enfrentar
oposio, quando exorbitassem no uso de seu poder e o empregassem para a
destruio e no a preservao das propriedades do povo? (LOCKE: 1998, p. 586).
Mais uma vez, percebe-se em Locke o primado do indivduo sobre a autoridade
exterior,4 assim como sobre qualquer outra forma de opresso, argumento basilar para
o advento da Modernidade em sua dimenso emancipatria.
4

A presente temtica foi tambm desenvolvida com pertinncia pelo filsofo ingls ao tratar de
um problema crucial para sua poca, relativo questo da tolerncia religiosa: A tolerncia para
os defensores de opinies opostas acerca de temas religiosos est to de acordo com o Evangelho e
com a razo que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz to clara. [...]
numa palavra, ningum pode impor-se a si mesmo ou aos outros, quer como obediente sdito de
seu prncipe, quer como sincero venerador de Deus (LOCKE: 1973a, p.10-11). Da a distino
crucial operada por Locke, entre funes do governo civil e funes da Igreja, que, em momento
futuro, vai desembocar na laicizao da poltica, mediante a completa separao entre as atividades
religiosas e as atividades do Estado: [...] todo o poder do governo civil diz respeito apenas aos
bens civis dos homens [vida, liberdade, sade fsica, posse de coisas externas, etc.], est confinado
para cuidar das coisas deste mundo, e absolutamente nada tem a ver com o outro mundo
(LOCKE: 1973a, p.12). Dito de outro modo, o governo civil tem seu poder restrito exclusivamente
sua raison dtre: a defesa e o aprimoramento das propriedades dos indivduos compreendidas
segundo a acepo ampla j mencionada. Igualmente, a Igreja tambm possui seu poder
associado to somente s coisas do outro mundo, a fim de promover a salvao de almas: [...] a
finalidade de uma sociedade religiosa consiste no culto pblico de Deus, por meio do qual se
alcana a vida eterna (LOCKE: 1973a, p.14). Doravante, a tolerncia no representa um dever a
ser observado apenas por parte das diversas religies ou faces religiosas, seno que diz respeito
inclusive s relaes entre a Igreja e o governo civil. Mais ainda, a obrigao lockeana da
tolerncia constitui uma ratificao do primado do indivduo, na medida em que veda a ambos a
violao dos bens civis dos membros de uma sociedade: Ningum, portanto, nem os indivduos,
nem as igrejas, nem mesmo as comunidades tm qualquer ttulo justificvel para invadir os
direitos civis e roubar a cada um seus bens terrenos em nome da religio (LOCKE: 1973a, p.16).
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Notas sobre a antropologia rousseauniana


Uma observao menos cuidadosa da obra de Rousseau certamente
poderia levar o leitor a crer que o pensador em questo pouco tem em comum
com o jusnaturalismo de seus contemporneos. Tome-se como exemplo Hobbes.
Enquanto a teoria deste absolutista, representativa e fundada na sujeio,
a de Rousseau nomocrtica, coletiva e fundada na liberdade. No entanto,
para alm das evidncias aparentes, de se perceber que tanto um quanto outro
concebem uma ruptura entre o homem natural e o poltico; nos dois casos, o
contrato social gera uma descontinuidade que permite o surgimento da
humanidade propriamente dita. Conforme exps Louis Dumont ao se referir s
teorias de Hobbes e Rousseau: Ambas esto superlativamente preocupadas em
assegurar a transcendncia do soberano num caso o governante (ruler), no outro
a vontade geral em relao aos sditos, sem deixar de sublinhar a identidade
do soberano e do sdito. Em suma: ambos querem fundir num corpo social ou
poltico pessoas que se pensam como indivduos (DUMONT: 200, p. 102).
Assim como Hobbes, Rousseau concebe um indivduo em pleno
isolamento no estado de natureza. No compartilha, todavia, do entendimento
hobbesiano, que define o homem natural a partir de um egosmo ativo. Em suas
palavras: Parece, a princpio, que os homens nesse estado de natureza, no
havendo entre eles espcie alguma de relao moral ou de deveres comuns, no
poderiam ser nem bons nem maus ou possuir vcios e virtudes [...] No iremos,
sobretudo, concluir com Hobbes que, por no ter nenhuma idia da bondade, seja
o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque no conhece a virtude
(ROUSSEAU: 1999b, p. 75). Logo em seguida acrescenta: Hobbes no viu que a
mesma causa que impede os selvagens de usar a razo [] os impede tambm de
abusar de suas faculdades, como ele prprio acha; de modo que se poderia dizer
que os selvagens no so maus precisamente porque no sabem o que ser bons,
pois no nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a
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tranqilidade das paixes e a ignorncia do vcio que os impedem de proceder


mal (ROUSSEAU: 1999b, p. 76). Trata-se, portanto, de um egosmo passivo, que
se compreende na medida em que o instinto para a dominao agressiva dos
demais indivduos representa, segundo Rousseau, um desejo artificial, s
podendo ter lugar em uma situao deturpada como o a sociedade.
A despeito do sujeito que habita o estado natural de Rousseau ser
provido do instinto de autoconservao, este no desemboca na ferocidade do
amor-prprio de forma definitiva. Isto porque, ainda que inculto e dotado de uma
capacidade de discernimento deveras limitada, o homem natural possui a
faculdade de empatia, que lhe permite vivenciar o sofrimento alheio como se
fosse prprio. Atravs da piedade, torna-se possvel ao homem posteriormente
desenvolver o amor-de-si, do qual deriva o amor aos homens:
Certo, pois a piedade representa um sentimento natural que,
moderando em cada indivduo a ao do amor de si mesmo,
concorre para a conservao mtua de toda a espcie. Ela nos
faz, sem reflexo, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no
estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da
virtude, com a vantagem de ningum sentir-se tentado a
desobedecer sua doce voz (ROUSSEAU: 1999b, PP. 78-79).

Sem dvida, a piedade no chega a produzir uma mxima de justia


raciocinada faa a outrem aquilo que gostarias que a ti fizessem mas ao
menos produz uma mxima de bondade natural alcana teu bem com o menor
mal possvel para outrem que, muito embora no demonstre a perfeio da
regra urea, possuidora de grande utilidade prtica.5 A superao do egosmo
depende, portanto, de algo mais que fatores puramente racionais. Aqui, a
compaixo exerce funo indispensvel para a emergncia do cidado
rousseauniano; renovao das instituies deve necessariamente acompanhar

At porque Rousseau faz derivar a compaixo no da caridade crist, seno do amor-prprio


conferindo mesma um carter acima de tudo humano: Charity is divine in origin and
otherworldly in intention: to love ones fellow as Christ loves him is to strive for the salvation of
his soul. Compassion, in contrast, is purely human (humanity is almost a synonym for it) and is
altogether this-worldly. Whereas charity requires that the Christian rise above his sinful human
nature (invoking the assistance of divine grace), compassion is a merely natural sentiment, wich
attests to the goodness or innocence of our nature (ORWIN: 1997, p.296).
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uma revoluo moral que permita o restabelecimento da virtude perdida com o


advento da sociedade civil, marco da decadncia humana muito embora sob
outros moldes.
Nesse sentido, a concepo de indivduo proposta por Rousseau
afasta-se do jusnaturalismo moderno ao rejeitar dois de seus fundamentos
centrais: a reduo do humano ao racional, assim como a imutabilidade de sua
respectiva natureza.
Ordem e progresso no positivismo sociolgico
certo que em sua pretenso universalizante, faltou ao
jusnaturalismo racionalista um maior sentido histrico, motivo pelo qual comea a
entrar em declnio j nos finais do sculo XVIII, denotando a prpria transio da
poca, marcada pelo abandono da abstrao em prol do experimentalismo.
Sustentado no materialismo e no idealismo ento predominantes, o filsofo
francs Auguste Comte (1793-1857) props seu clebre sistema doutrinrio,
conhecido como Positivismo antes de tudo uma rejeio da alienao
dedutivista perante os fatos observveis, decorrente do respectivo menosprezo
pela concretude dos fenmenos.
A metodologia comteana assenta na induo positiva, partindo da
observao emprica, passando pela formulao de hipteses, para ao final
comprovar sua validade atravs da experimentao: Todos os bons espritos
repetem, desde Bacon, que somente so reais os conhecimentos que repousam
sobre fatos observados. Essa mxima fundamental evidentemente incontestvel,
se for aplicada, como convm, ao estado viril de nossa inteligncia (COMTE:
1978a, p. 5). Pensamento tpico do sculo XIX, marcado pelo cientificismo6 de
6

Foi ao longo do sculo XIX especialmente com o desenvolvimento da fsica e a emergncia da


biologia que o conhecimento cientfico atingiu seu pice de validade e credibilidade perante a
sociedade ocidental, enquanto fundamento nico da verdade e instrumento exclusivo do progresso
humano. O cientificismo, ou mito da cincia, tem como caracterstica fundamental a crena
generalizada no potencial unificador e na certeza cognitiva das cincias experimentais, enquanto
exemplar universal capaz de regular todos os demais campos do saber, assim como ordenar os
mais diversos mbitos da vida social e humana. Da o esforo por parte das Humanidades em geral
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ento, o positivismo sociolgico terminou por abrir mo inclusive de certos


postulados cartesiano-newtonianos mesmo que no raro os tenha sustentado em
suas pretenses fundamentais.
Se o positivismo comteano rompe em determinados aspectos com o
mencionado modelo cognitivo, seja quando reconhece ser o homem algo mais que
sua dimenso racional Enfastia-se de pensar e at de agir, mas nunca de amar
(COMTE: 1978c, p. 97) ou quando considera invivel a averiguao de leis
causais subjacentes aos eventos passveis de observao [...] o carter

no sentido de conferir cientificidade aos seus respectivos objetos de conhecimento. Seja na


sociologia em sua gnese institucionalizada principalmente a partir de mile Durkheim (18581917), discpulo de Comte ou no pensamento jurdico do sculo XIX pensamento este por
essncia positivista verifica-se uma preocupao obsessiva para com o estabelecimento da
mesma clareza epistmica e perfeio metodolgica existentes nas cincias naturais. Tanto os
precursores da sociologia quanto da tradio positivista do direito demonstraram uma exaustiva
dedicao a fim de adaptar os saberes social e jurdico aos padres cientficos da poca. Num
perodo marcado pelo entendimento da cincia enquanto dogma, a sociologia e o direito s
poderiam existir enquanto conhecimentos dotados de rigor e certeza bastantes, nos moldes
cientfico-naturais; caso contrrio, haveriam de ser completamente desprezados pela comunidade
acadmica e condenados ao ostracismo intelectual. Apenas a ttulo ilustrativo, vejamos como as
presentes consideraes se concretizam atravs do discurso de mile Durkheim: Nosso objetivo,
com efeito, estender conduta humana o racionalismo cientfico, mostrando que, considerada no
passado, ela redutvel a relaes de causa e efeito que uma operao no menos racional pode
transformar a seguir em regras de ao para o futuro. [...] Nossa regra [os fatos sociais devem ser
tratados como coisas] no implica, portanto, nenhuma concepo metafsica, nenhuma
especulao sobre o mago dos seres. O que ela reclama que o socilogo se coloque no mesmo
estado de esprito dos fsicos, qumicos, fisiologistas, quando se lanam numa regio ainda
inexplorada de seu domnio cientfico [grifos nossos] (DURKHEIM: 1999, p.XIII e XIX).
Fundado na relao sujeito-objeto, tal como postulada pela cincia moderna, Durkheim terminou
por promover uma exteriorizao e coisificao do fenmeno social garantidora, a seu ver, da
viabilidade cientfica da sociologia. Similarmente, poderamos afirmar que no direito o
positivismo tambm terminou por promover a exteriorizao e coisificao do fenmeno jurdico,
centrada na dicotomia sujeito-objeto. Doravante, no s o objeto (lei) considerado como o locus
exclusivo da verdade, seno que essa verdade passa a ser plenamente acessvel ao sujeito
cognoscente (juiz), bastando para tanto que o mesmo esteja completamente desprovido de toda e
qualquer espcie de pr-conceitos, pr-noes e pr-juzos. Posto de outra forma, o background
cientificista do positivismo jurdico viabiliza ao menos teoricamente a possibilidade do juiz em
sua tarefa decisria revelar, mediante uma operao puramente silogstica, o correto significado
(para no dizer unvoco) inscrito em uma lei. Correlato ao dogma da subsuno reflexo da
racionalidade cientfico-natural no mbito da ontologia do direito encontra-se o dogma da
imparcialidade reflexo da racionalidade cientfico-natural no mbito da gnosiologia do direito ,
i.e., a crena na capacidade (no mnimo super-humana) do magistrado adotar a neutralidade
enquanto diretriz suprema de sua atividade, tal como o faria um cientista. Da fuso de tais dogmas
inscritos no positivismo jurdico resulta o clebre adgio que caracterizou todo o desenvolvimento
da teoria clssica da interpretao judicial: In claris non fit interpretatio. O juiz (sujeito) jamais
cria o direito (objeto); sua incumbncia consiste to somente em reproduzir racionalmente uma
vontade pr-existente, extraindo da norma jurdica sua verdade essencial.
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fundamental da filosofia positiva tomar todos os fenmenos como sujeitos a leis


naturais invariveis, cuja descoberta precisa e cuja reduo ao menor nmero
possvel constituem o objetivo de todos os nossos esforos, considerando como
absolutamente inacessvel e vazia de sentido para ns a investigao das
chamadas causas, sejam primeiras, sejam finais (COMTE: 1978a, p. 7) , no
menos certo que compartilha com o mesmo uma pretenso regulatria do real,
mesmo que divergindo quanto a certas particularidades.
Ordenamento, previso e controle constituem conceitos-chave
inclusive para a sociologia comteana, sem os quais a humanidade no haveria de
progredir. Mais ainda, a certeza do conhecimento positivo deve ser capaz de
descrever no apenas o que foi, seno tambm o que , assim como o que ser,
entendido este ltimo enquanto uma inevitabilidade histrica. A fim de
elucidarmos as proposies em questo, concentraremos nosso estudo em trs
temticas essenciais ao pensamento comteano: a lei dos trs estados, a
classificao das cincias e a distino entre esttica social e dinmica social.
Quanto ao primeiro ponto, Comte afirma a existncia de trs etapas
fundamentais caracterizadas por sua universalidade e encadeamento linear que
se seguem ao longo do desenvolvimento evolutivo de qualquer cincia, assim
como do prprio o esprito humano: teolgica, metafsica e positiva. Vale conferir
a definio oferecida pelo autor francs a cada uma das respectivas fases:
No estado teolgico, o esprito humano, dirigindo
essencialmente suas investigaes para a natureza ntima dos
seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o
tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos,
apresenta os fenmenos como produzidos pela ao direta e
contnua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos,
cuja interveno arbitrria explica todas as anomalias aparentes
do universo. No estado metafsico, que no fundo nada mais do
que simples modificao geral do primeiro, os agentes
sobrenaturais so substitudos por foras abstratas, verdadeiras
entidades (abstraes personificadas) inerentes aos diversos
seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por
elas prprias todos os fenmenos observados, cuja explicao
consiste, ento, em determinar para cada um uma entidade
correspondente. Enfim, no estado positivo, o esprito humano,
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reconhecendo a impossibilidade de obter noes absolutas,
renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer
as causas ntimas dos fenmenos, para preocupar-se
unicamente em descobrir, graas ao uso bem combinado do
raciocnio e da observao, suas leis efetivas, a saber, suas
relaes invariveis de sucesso e de similitude. A explicao
dos fatos, reduzida ento a seus termos reais, se resume de
agora em diante na ligao estabelecida entre os diversos
fenmenos particulares e alguns fatos gerais, cujo nmero o
progresso da cincia tende cada vez mais a diminuir [grifos
nossos] (COMTE: 1978a, p. 4).

Outro aspecto basilar do positivismo pode ser encontrado na


hierarquizao mediante a qual o pensador francs classifica as diversas cincias
existentes em sua poca. Considerou, para tanto, a cronologia de cada cincia,
assim como seu grau crescente de complexidade, concretude e interdependncia:
Chegamos, assim, gradualmente a descobrir a invarivel hierarquia, ao mesmo
tempo histrica e dogmtica, igualmente cientfica e lgica, das seis cincias
fundamentais, matemtica, astronomia, fsica, qumica, biologia e sociologia
(COMTE: 1978b, p. 90). Dando continuidade, destaca o autor:
A primeira constitui necessariamente o ponto de partida
exclusivo, e a ltima a nica meta essencial de toda filosofia
positiva, considerada de agora em diante como formando, por
sua natureza, um sistema verdadeiramente indivisvel, em que
toda decomposio radicalmente artificial, sem ser, alis, de
modo algum arbitrria, j que tudo se reporta finalmente
Humanidade, nica concepo plenamente universal (COMTE:
1978b, p. 90).

A seu ver, todas as demais cincias mencionadas teriam atingido o


estgio positivo, restando apenas sociologia alcanar tal feito para que seu
respectivo sistema lograsse a completude desejada: Eis a grande, mas
evidentemente, nica lacuna que se trata de preencher para constituir a filosofia
positiva. J agora que o esprito humano fundou a fsica celeste; a fsica terrestre,
quer mecnica, quer qumica; a fsica orgnica, seja vegetal, seja animal, resta-lhe,
para terminar o sistema das cincias de observao, fundar a fsica social
(COMTE: 1978b, p. 9).
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Verifica-se, pois, que a cincia positiva da sociedade representa o


produto da perfeita combinao entre a lei dos trs estados e a classificao
hierarquizada das cincias. Alm do mais, a prpria concepo comteana de
unidade histrica deriva da presente associao, na medida em que a mesma
realiza uma inverso metodolgica de maior relevncia para o positivismo
sociolgico propiciada a princpio pela ento nascente biologia. Falamos aqui da
substituio do analtico pelo sinttico na investigao cientfica. Enquanto que
nas cincias inorgnicas existia a possibilidade de estabelecer leis entre
fenmenos isolados, nas cincias orgnicas, se no considerarmos o ser vivo
como um todo, a explicao seja de um rgo ou de uma funo perde seu
sentido. Similarmente, um fenmeno social no pode ser compreendido se no for
recolocado no todo do qual faz parte, o que inclui averiguar o momento histrico
de sua ocorrncia.
Para o positivismo comteano, sociologia e biologia esto
intimamente relacionadas, especialmente devido perspectiva global por ambas
adotada, o que faz da histria da humanidade a saga do desenvolvimento da
prpria natureza do homem considerado enquanto espcie. Mais ainda, a histria
do esprito humano consiste, acima de tudo, no devenir do pensamento positivo,
cuja ocorrncia se resumiria a uma mera questo de tempo prova do
evolucionismo teleolgico advogado pelo autor, centrado na noo de
inevitabilidade histrica.
Ao conceber a sociologia enquanto cincia natural, maneira das
cincias precedentes, Comte demonstra ter em mente um objetivo mais amplo:
[...] assim como no h liberdade de conscincia na matemtica ou na
astronomia, no pode haver tambm em matria de sociologia. Como os cientistas
impem seu veredicto aos ignorantes e aos amadores, em matemtica e
astronomia, devem logicamente fazer o mesmo em sociologia e poltica (ARON:
1999, p. 69). Dito de outra forma, a instituio da fsica social marca a
consolidao de uma nova sociedade, na qual os cientistas substituem os telogos
e sacerdotes como categoria responsvel pelo fornecimento da base moral e
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cognitiva subjacente ordem social, assim como os industriais assumem o lugar


anteriormente ocupado pelos militares, transformando a guerra de homens contra
homens na luta do ser humano contra a natureza, de modo a produzir atravs da
cincia sua explorao racional.
Em ltima instncia, o aporte cientfico-racional dos fenmenos
sociais terminaria por promover a reforma da sociedade, instaurando de vez o
estado positivo. Partindo da sociologia, Comte acreditara ser possvel inclusive
formular orientaes concretas para sua poca, permitindo finalmente pensar a
poltica como cincia positiva. A fsica social, por levar ao conhecimento das leis
sociais, capacitaria o homem a uma atuao poltica mais correta, condizente com
o caminhar do progresso histrico. Por seu turno, a previso racional do futuro
social limitaria os parmetros polticos a leis precisamente determinadas. Tratavase, portanto, de uma fatalidade modificvel no sentido de que dependeria apenas
da humanidade adiantar ou retardar seu prprio destino: O retrocesso histrico
impossvel. Mesmo que, por hiptese absurda, se pudesse voltar atrs, seria
necessrio destruir um a um todos os desenvolvimentos da civilizao [grifos
nossos] (BENOIT: 1999, p. 188).
De fato, o progresso se apresenta na viso de Comte como natural e
inevitvel, o que o faz conceber a histria como una e necessria: Seu desgnio
nico porque foi fixado por Deus, ou pela natureza humana; a evoluo
necessria, porque ou a providncia determinou suas etapas e seu fim, ou a prpria
natureza do homem e da sociedade determinou as leis (ARON: 1999, p. 81). Com
efeito, a diversidade das sociedades humanas, consideradas tanto espacial quanto
temporalmente, reduzida a uma srie fundamental, a um projeto nico, com um
telos bem especfico: o advento da etapa ltima do esprito humano.
Comte, entretanto, longe est de ser um revolucionrio, de pensar
o progresso a partir da categoria iluminista de indefinido: [...] a nova reflexo
social no poderia se constituir em negao sistemtica, permanente, de qualquer
forma social, de qualquer positividade social, ao contrrio, deveria facilitar o
restabelecimento da ordem. A doutrina social positiva deveria se fundamentar no
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princpio histrico-progressivo mas tambm na afirmao incondicional da


ordem presente (BENOIT: 1999, p. 194). Consiste, assim, em um progresso
dentro da ordem, melhor compreendido quando analisamos os conceitos de
esttica e dinmica social.
Conforme exposto, a metodologia de Auguste Comte funda-se na
observao e na comparao, a partir das quais se obtm as leis do
desenvolvimento histrico. Para tanto, preciso no apenas apreender o
ordenamento societrio dos diversos grupamentos, a fim de encontrar sua
respectiva unidade, seno tambm estudar as grandes linhas da histria,
descrevendo suas etapas sucessivas.
Mais uma vez, destaca-se a contribuio terminolgica da biologia
para a conceituao positivista: [...] todo ser ativo, especialmente todo ser vivo,
pode ser estudado, em todos os seus fenmenos, de duas pticas fundamentais, a
esttica e a dinmica, isto , como apto para agir e como agindo efetivamente
(COMTE: 1978a, p. 13). Definies que integram as prprias diretrizes da
sociologia comteana, esttica e dinmica, correspondem analogamente aos terrenos
que compem a anatomia e a fisiologia. Enquanto a primeira diz respeito s noes
de organizao, cuidando das condies de existncia da sociedade, a segunda diz
respeito s noes de vida, cuidando das leis de seu movimento contnuo.
Do ponto de vista prtico-poltico, a esttica serve de fundamento e
base para a dinmica, qual esta se subordina. Em outras palavras, no pode haver
progresso sem ordem, o que demonstra o apreo de Comte pelo consenso e pela
harmonia, assim como sua averso pela divergncia e pelo pluralismo. Ao mesmo
tempo, quando faz da esttica o saber mais importante da sociologia, Comte acaba
criando o amlgama que o permite concatenar sua cincia da sociedade com o
positivismo religioso que prope em momento posterior de seu pensamento.
Resumindo, o pensador francs logrou no conjunto de sua obra
exercer uma trplice atividade. Primeiramente, a de fsico social, que organiza e
sintetiza os mtodos e resultados cientficos; ademais, a de reformador, que busca
mediante a aplicao dos postulados defendidos transformar a sociedade em que
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vive; por ltimo, a de profeta de uma nova era e pontfice de uma nova religio, a
religio da humanidade, centrada no amor e na solidariedade: A cada fase ou
modo qualquer de nossa existncia, individual ou coletiva, devemos aplicar
sempre a frmula sagrada dos positivistas: o Amor por princpio, a Ordem por
fundamento, e o Progresso por fim. A verdadeira unidade pois constituda
finalmente pela Religio da Humanidade [grifos nossos] (COMTE, Apud:
BENOIT: 1999, p. 359).
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Traduo de Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mnaco, Joo Ferreira, Lus


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Rio de Janeiro: Haddad Editor, 1954.
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PLASTINO, Carlos Alberto (2001a). O primado da afetividade: a crtica
freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2001a.
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Linguagem: a questo do sentido hoje. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001b.
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reimpresso. So Paulo: Cia das Letras, 2001.
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SANTOS, Boaventura de Souza (1999a). Um discurso sobre as cincias. 11. ed.
Porto: Afrontamento, 1999a.
SANTOS, Boaventura de Souza (1989). Introduo a uma cincia ps-moderna.
3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
SANTOS, Boaventura de Souza (2001). Para um novo senso comum: a cincia, o
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indolente: contra o desperdcio da experincia). 3. ed. So Paulo: Cortez, 2001.
SANTOS, Boaventura de Souza (1999b). Reinventar a democracia: entre o prcontratualismo e o ps-contratualismo. In: A crise dos paradigmas em cincias
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SKINNER, Quentin (2003). As fundaes do pensamento poltico moderno.


Traduo de Renato Janine Ribeiro (captulos 1 a 11) e Laura Teixeira Motta
(captulos 12 em diante). 4. reimpresso. So Paulo: Cia das Letras, 2003.
TARNAS, Richard (2000). A epopia do pensamento ocidental: para
compreender as idias que moldaram nossa viso de mundo. Traduo de Beatriz
Sidou. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
WIEACKER, Franz (1993). Histria do direito privado moderno. Traduo de A.
M. Botelho Hespanha. 2. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993.

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