Feminismo, Solidariedade, e Revolução - Sabrina Fernandes
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capitalismo, mas sim porque, justamente por estar ao centro, possua a capacidade de levante
histrico para conectar as diversas lutas revolucionrias e seus agentes.
A outra forma de protagonismo que reconhecemos ser importante nos espaos da
esquerda possui uma expresso simblica, pois se trata da necessidade de inserir vozes
previamente silenciadas nos ambientes de luta, de tal forma que as pautas pela libertao
sejam centradas na vocalizao de experincias e entendimento direto de como a opresso
opera diferente da noo de autoridade epistmica, que ser contestada posteriormente. Um
exemplo seria o debate contra a violncia sexual centrado nas vozes e experincias de
sobreviventes desta (no vtimas, pois a luta colabora com o contnuo processo de cura e
superao das sobreviventes em sua busca por transformao coletiva). No significa, porm,
que o debate exclua as vozes de aliados de maneira imperativa, apenas que especial destaque,
apoio, e solidariedade sejam expressados em relao a aqueles e aquelas que podem relatar
em primeira mo o impacto sofrido e que portam a memria histrica da importncia da luta
por um mundo sem opresses. Assim, o protagonismo pode ser um importante instrumento
para a luta ao gerar reflexo, individual e coletiva, e a reautorizao de espaos negados. O
empoderamento dado pelo protagonismo neste contexto o verdadeiro empoderamento pois
contribui no apenas para a solidariedade aos sobreviventes e a formao de espaos para
suas vozes, mas tambm contribui para o empoderamento coletivo nas lutas anti-opresso e
socialista. No necessrio, ento, ressaltar que qualquer busca pelo protagonismo na
esquerda deve ser sempre examinada para conferir que se trata da construo do
protagonismo coletivo revolucionrio, chave na luta materialista histrica, e, quando de
faceta simblica, do protagonismo como ponte de solidariedade entre aliados e sobreviventes
em sua funo de empoderamento coletivo. Assim, a busca por protagonismo na esquerda
deve ser aquela embutida no processo de conscientizao.
A deturpao da noo do protagonismo encontrada quando se confundem as
noes de sujeito e agncia que acabam por se perder dentro de uma frmula de
protagonismo cravada no discurso do empoderamento individualista e que nega a anlise crtica
da maneira como a pessoa feita sujeito e qual tipo de agncia lhe atribuda. Vemos, por
exemplo, no contexto de projetos de microcrdito e de investimento local de instituies como
o Banco Mundial, o discurso de empoderamento como justificativa para a chamada insero
de mulheres em suas sociedades locais como consumidoras e/ou empreendedoras. O
processo claramente de empoderamento (neo)liberal, uma vez que a subjetividade
configurada de acordo com a lgica do mercado e a agncia limitada pela funo de
explorao do capitalismo. A noo do empoderamento liberal infiltra o espao da militncia,
no tratando aqui de opressor e oprimida (binrio que virei a problematizar em breve) mas
da construo coletiva da luta entre aliados, quando este empoderamento permanece a
reproduzir a lgica do sistema de opresso. A lgica em si no superada, apenas
revertida.[i] De certa forma, a triste profecia da permanncia da conscincia hospedeira da
lgica opressora sobre o oprimido (Freire, 2005, p. 37). No intuito de empoderar o oprimido
em relao ao opressor, ou aliado investido em no mais oprimir conscientemente, a autolibertao do oprimido prejudicada ao enfatizar a definio de sua existncia em relao
opresso.
A preocupao demasiada com o particular e com a priorizao de repetitivos rituais
de reconhecimento de privilgios em detrimento de avanar o debate coletivo debilitante
para a esquerda. No mais, impede a expanso da lgica da libertao porque enfatiza a lgica
da opresso nos espaos internos de construo poltica. No binrio imposto na noo
limitada do feminismo como movimento de luta das mulheres (que remete primeira onda
do feminismo e partes da segunda), os homens de dentro da luta socialista so classificados
simultaneamente como aliados e opressores, mesmo que busquem a auto-crtica contnua e
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sua prpria conscientizao para se desconstrurem como opressores. Isso ocorre devido
alta relevncia do fato de pertencer a categorias, identidades, classes, e status que em seu
coletivo oprimem. Falta discernimento que apesar do homem, em funo tradicional, ser
agente do patriarcado, homens aliados no aceitam essa agncia e devem buscar desconstrula a todo momento. Quando o empoderamento particularista (oposto do empoderamento do
protagonismo coletivo j discutido) da mulher oprimida valorizado acima da construo da
luta, esforos dos homens aliados so reconhecidos apenas de maneira tangencial, desde que
estes se mantenham calados em suas alianas ao feminismo (tema ao qual retornarei adiante).
Isso limita a capacidade dos homens aliados se reformularem como no-opressores. Ao
internalizar o empoderamento, em vez de superar as inescapveis contradies que afligem a
militncia atravs da solidariedade e da incluso, a luta anti-opresso corre o risco de
empoderar somente no sentido liberal; isto , o foco exagerado na possvel transferncia
direta do semblante de um poder particular de um individuo e/ou grupo para outro pela
razo principal de ressarcir o que lhe(s) foi negado historicamente. No h abolio, pois a
lgica da excluso e do silncio de uns em relao a outros perpetuada. O resultado, de
acordo com bell hooks, a perpetuao de uma ideologia separatista dentro do feminismo
(Hooks, 1984, p. 73) atravs da inverso da ideologia dominante.
Identificamos este obstculo liberal em prticas que perdem seu potencial pedaggico
e transformador porque insistem na reparao do ressentimento. Ressentimento entendido
aqui na maneira como empregado por Nietzsche e formulado por Wendy Brown em sua
exposio das falhas do discurso isolador da poltica de identidade (que problematicamente,
reconhecemos, chega a dominar aspectos da pauta anti-opresso da esquerda radical). Para
Brown, a dificuldade em construir a partir do ressentimento se d no fato que a libertao do
sujeito retardada pelo demasiado foco em sua prpria submisso, visto que o sofrimento
entendido sob a lente da virtude social que resume em privilgio o estado autorecriminador de qualquer um que se encontre fora de tal experincia negativa (Brown, 1995).
Para Rosemary Hennessy, o resultado a deteriorao do oprimido e da oprimida em
identidades mortas, pois restringem o potencial de mudar as estruturas de poder ao
prejudicar a habilidade de imaginar e promulgar uma viso mais abrangente (universal) do
futuro (Hennessy, 2000, p. 228). Ao fim, os sujeitos so menos agentes porque sua concepo
de agncia limitada existncia do opressor e da opresso vivenciada. No se trata de
reflexo conscientizadora sobre a opresso a ponto de transcender sua lgica na direo da
solidariedade. Ento, mesmo que sujeitos por seu auto-reconhecimento e a busca do
empoderamento (que impede o retorno ao objeto), j se fazem sujeitos reificados pela lgica
individualista e particularista liberal. Assim, essa forma de empoderamento estruturada pela
opresso e pelo seu decorrente ressentimento corre o risco de causar paralisia poltica
(Brown, 1995, p. 71) enquanto a busca por auto-determinao e auto-afirmao (na linguagem
de Brown e Nietszche) atravs da conscientizao poderia, em sentido oposto, alcanar o
verdadeiro empoderamento da libertao de conscincia, e por fim, da materialidade.
Exemplos dessa prtica se encontram quando espaos auto-organizados so vistos no
como espaos complementares mas como espaos de excluso. Enquanto em sua posio
libertadora espaos auto-organizados so essenciais para garantir autonomia e engajar
mulheres e/ou indgenas, negros e negras, entre outros, pois proporcionam oportunidades de
compartilhar experincias, estabelecer laos solidrios, e refletir sobre a origem de sua
opresso. Na prtica, porm, se a necessidade de afirmar a centralidade das experincias
compartilhadas nesses espaos desvirtuada como fonte de autoridade epistmica absoluta
do oprimido, os espaos auto-organizados passam a se relacionar de maneira anti-dialgica
com outros espaos de construo coletiva. A autoridade epistmica do espao do oprimido
garante que, nos espaos mtuos, a anlise crtica seja subjugada verdade incontestvel
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um binrio que reifica pessoas a estas categorias, assim distraindo do importante fator
circunstancial das estruturas de opresso. Como Marcuse explica, para Hegel o sujeito
consciente possui, como sua noo, a liberdade (Marcuse, 1941, p. 155). No materialismo
histrico, o processo dialeticamente invertido: a liberdade deve partir da conscincia para a
materialidade. disso que tratamos ao estabelecer que o sujeito tambm precisa afirmar sua
agncia, seu poder de ao histrico de intervir no processo revolucionrio.
Portanto, uma categoria de importncia na participao de homens aliados ao
feminismo diz respeito agncia. Esta agncia pressupe que, apesar do homem no ser o
sujeito ontolgico do feminismo em si, sua conscientizao o transforma em um sujeito
feminista em sua perspectiva e posio. Mesmo que no sujeitos/protagonistas do
feminismo, os homens aliados da esquerda, enquanto sujeitos em sua conscientizao,
recebem a tarefa de agir tanto no mbito radical do anti, no enfrentamento da opresso,
como no mbito revolucionrio da construo de uma sociedade de liberdade (a segunda
negao). Esta agncia no deve ser limitada marginalidade por questes de protagonismo
ou por se submeter a uma noo liberal de solidariedade que se contenta com demonstraes
de apoio ou caridade. Isso implicar permitir que aliados encontrem espaos no apenas de
desconstruo de machismo e sexismo, ou reflexo sobre o patriarcado, mas tambm de
construo da luta anti-opresso e de esforos transformadores. Apesar de amalgamar as
noes de agncia e sujeito em sua anlise, Patrick D. Hopkins contribui para este debate ao
afirmar que o importante para o feminismo como estratgia crtica ser feminista, mais do
que ser mulher, pois o ato de ser feminista prope o uso do feminismo como lente para
entender no somente a situao das mulheres mas como os fatores de gnero em geral em
relao ao patriarcado (Hopkins, 1998, p. 51). A luta coletiva necessita de mltiplos agentes
com perspectivas e posies diversas e, assim, deve incluir mulheres e homens. Homens
aliados no devem ser relegados a espaos onde so apenas informados sobre as decises
tomadas em coletivo pelas mulheres, nem devem ser a eles negadas oportunidades de fala
construtiva.
Casos conhecidos como mansplaining[iv] so problemticos, mas a importncia de
evit-los a todo custo no deve impedir importantes falas de aliados, especialmente aqueles
que possuem valoroso acmulo poltico e boas lies para a luta. Ao contrrio, se aliados no
possuem espao de fala, como poderemos identificar verdadeiros casos de mansplaining a
ponto de gerar reflexo e transformao da fala do aliado? Remetendo discusso anterior
sobre empoderamento liberal, lembro que no o silenciamento do outro que gera
conscientizao, mas sim processo de anlise crtica e reflexiva que garantem um
engajamento permanente com a transformao da conscincia e da materialidade. Tais
situaes exigem pacincia por parte das mulheres em relao ao aprendizado dos homens
aliados, pois um no se descoloniza ou se desconstri em um dia. Exige tambm anlise
crtica pelas mesmas, para que no se criem situaes em que homens, ao fazerem suas
intervenes, sejam novamente silenciados na base do mansplaining simplesmente porque sua
fala questiona prticas internalizadas do movimento ou gera debates pouco populares. Um
movimento verdadeiramente preocupado com a transformao para fora deve se vigiar
para no silenciar crticas ou sugestes de grande valor simplesmente porque o locutor ou a
locutora possuem posies privilegiadas materialmente na sociedade, mesmo que agora se
encontrem como aliados em uma construo coletiva. Da mesma forma, ideias no devem ser
aceitas de modo mecnico simplesmente porque resultam da expresso de um indivduo ou
grupo oprimido. Como j visto na elaborao a respeito da autoridade epistmica, nenhum
indivduo ou grupo deve port-la de maneira a coibir a capacidade crtica do movimento para
decises tanto tericas quanto prticas. A oportunidade da fala e da expresso provm no da
posio da pessoa dentro do esquema opressor, mas de sua responsabilidade como agente de
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que hooks ensina que na luta feminista, mulheres so aliadas em sua solidariedade e devem
rejeitar ressentimento e/ou competio que impede que a raiva seja direcionada s foras
opressoras (Hooks, 1984, p. 55). A lio similar na luta revolucionria da esquerda, a qual,
por englobar tambm a luta feminista, deve ser solidificada atravs da solidariedade entre
mulheres e homens aliados empenhados em sua transformao.
a partir desse entendimento de solidariedade poltica que hooks instiga o movimento
feminista a abandonar a viso dualista e rasa de homens como opressores permanentes em
sua posio e de mulheres como vtimas. Para ela, esta retrica solidifica uma ideologia
sexista que prope a noo invertida de um conflito bsico entre os sexos, a implicao
sendo que o empoderamento de mulheres seria necessariamente s custas dos homens
(Hooks, 1984, p. 67). A crtica de hooks exatamente a crtica ao empoderamento no sentido
liberal apresentado anteriormente. hooks no demanda que o movimento deixe de reconhecer
que todos os homens apoiam ou perpetuam sexismo e opresso sexista de uma forma ou
outra (Hooks, 1984, p. 72), mas sim que as tarefas do movimento feminista no sejam
distradas da luta e da possibilidade de contribuio masculina ao super-enfatizar este
primeiro fato. Solidariedade poltica, ento, deve ser estendida tambm s relaes entre
mulheres e homens na luta feminista (pela abolio do sexismo e o poder do patriarcado) e na
luta revolucionria socialista. Isto implica entender homens aliados como responsveis por
seu papel e participao no patriarcado e, devido ao compromisso com essa responsabilidade,
engajados ativamente na luta feminista para que mulheres, apesar de sujeito do feminismo,
no tenham que ser as nicas agentes do movimento. De fato, preciso rejeitar a noo que
mulheres podem realizar essa tarefa revolucionria sozinhas, precisamente porque a
conscientizao de homens em um processo de auto-liberao e sua contnua
responsabilidade pela luta so fatores absolutamente necessrios no enfrentamento de uma
estrutura que engloba a sociedade humana em si.
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vitimizao social. Hooks atenta para a perigosa tendncia de estabelecer a vitmizao mtua
como base para a formao de laos entre mulheres, pois ela comunica que o foco na opresso
necessrio para que o feminismo seja relevante na vida das mulheres (Hooks, 1984, p. 45).
Ao contrrio, o feminismo deve ser relevante na vida de mulheres e homens no atravs da
experincia compartilhada da opresso, mas pela luta coletiva contra ela. Assim, espaos de
cura (e todos os outros espaos da esquerda, determinados como espaos seguros) devem ser
sempre entendidos tambm como espaos de solidariedade poltica, e tambm de
conscientizao.
O foco na conscientizao deve ser primrio por elevar o entendimento da experincia
do particular para o universal, do pessoal para o poltico, tanto em espaos de cura quanto em
espaos mais abrangentes de construo. A conscientizao se aplica tanto oprimida quanto
ao opressor, e assim transcende o binrio para que os sujeitos possam enxergar a si mesmos
como sobreviventes (no mais vtimas) e aliados e aliadas na mesma luta. Como discutimos a
respeito da autoridade epistmica, a conscientizao deve ser central na luta contra a
opresso porque no toma a experincia de maneira mecnica ou essencialista, mas submete a
experincia ao rigor da reflexo poltica e social de modo a passar a compreend-la pela
dialtica da prxis (a unio entre prtica e teoria para a transformao do mundo, como diz
Freire). Vemos, ento, o quo importante a insero da teoria tanto na reflexo pessoal a
respeito das experincias vivenciadas como no debate de construo revolucionrio.
Muito se critica nos movimentos anti-opresso atuais sobre teorias e produes
acadmicas que em nada de aplicam realidade social. Essa crtica vlida e necessria. O
problema ocorre quando a crtica se transforma em uma rejeio direta a intervenes
tericas, ao julgar que a verdade revolucionria dada pela experincia prtica somente.
Retomando hooks novamente, experincias pessoais so importantes para o movimento
feminista, mas elas no podem tomar o lugar da teoria (Hooks, 1984, p. 30). a teoria que
possibilita abstrair das experincias pessoais o que temos de comum para identificar padres
sistmicos e prover explicaes que tratam dos problemas encontrados no nvel universal. a
teoria tambm que impede que o personalismo de experincias se traduza em individualismo
e maior vitimismo dentro de uma poltica de identidade liberal, j criticada por Wendy
Brown. dever do movimento feminista, e do movimento revolucionrio de esquerda em si,
promover a luta dentro da dialtica da prxis. Isso quer dizer que somos responsveis por
construir teoria a partir da nossa prtica e, simultaneamente, submeter nossa prtica ao rigor
da teoria. Somente assim preveniremos concluses essencialistas a respeito das experincias
de opresso que, afinal, desmobilizam mais que mobilizam, e tambm impediremos que
imposies artificiais e incorretas capturem o movimento e o torne irrelevante por no
corresponder realidade material.
Diretamente, me parece que a complexidade da luta feminista da esquerda exige
tambm uma complexidade de estratgias e espaos cujos diferentes focos tambm
mantenham a importncia da conscientizao e da solidariedade poltica. Nosso objetivo deve
ir alm dos relacionamentos forjados dentro do movimento, pois prxis dentro de qualquer
movimento poltico que visa a ter um impacto radical e transformador na sociedade no deve
focar somente na criao de espaos em que radicais em potencial tenham a experincia de
segurana e apoio (Hooks, 1984, p. 28, minha traduo). Posso apresentar ento que, visto a
importncia de estender a segurana dos espaos auto-organizados para todos os espaos do
movimento, no necessrio que a exclusividade de grupos de mulheres nos espaos
especficos de cura seja imposta em outras ocasies de construo e luta. Com o foco principal
na conscientizao e solidariedade poltica, o movimento convida a prxis coletiva a todos os
espaos: de debate, de mobilizao, de reflexo, de auto-crtica, alm de outros. Salvo espaos
auto-organizados promovidos com o intuito especfico de compartilhar experincias de
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opresso e expor traumas (ainda assim com o objetivo de reflexo alm da busca de apoio),
faz-se nula a necessidade de promover prticas separatistas entre mulheres e homens no
movimento feminista da esquerda. No preciso impor a regra do silncio aos homens
aliados para que as mulheres possam falar nesses espaos. Deve-se supor, objetivamente, que
se estamos a construir um movimento verdadeiramente para superao da opresso, homens
sero aliados de grande utilidade e aprendero, em sua constante reflexo, a avaliar o
equilbrio necessrio em termos de participao, fardo, e exposio.
certo que esta proposta ainda encontra obstculos por mulheres no movimento,
ainda mais em situaes de exposio, quando a sociedade em geral continua a dar maior
destaque para a voz masculina nas diversas frentes de luta. O reconhecimento que deve ser
promovido, ento, no de que os homens aliados precisam se calar, mas sim que a luta
longa e contra uma totalidade dominadora. J se faz suficiente, ento, que o movimento se
organize para destacar a presena e ao das mulheres de maneira que elas representem ali o
movimento em coletivo, e no somente suas prprias vozes. Alm disso, podemos avaliar o
impacto subversivo que se d mesmo quando homens aliados recebem algum destaque, j
que eles empregaro discurso e prtica diretamente opostos ao discurso e prtica
hegemnica que patriarcado espera dos homens. preciso livrar o movimento feminista e
seus combatentes da idia de que quando um homem aliado se entende como feminista ou
utiliza sua voz dentro do feminismo ele impede o protagonismo das mulheres dentro do
movimento. Feminista quem faz a luta feminista, no apenas o sujeito ontolgico da luta
(visto que muitas mulheres so machistas e anti-feminismo). Como um movimento pela
superao da opresso sexista e patriarcal e todas as outras opresses, especialmente em
como so exaltadas pelo capitalismo, o movimento feminista da esquerda revolucionria
necessita de menos preocupaes a respeito do lugar das mulheres como sujeito ontolgico,
de menos limitaes s contribuies de aliados feministas, e enfim, de substituir prticas e
discursos do protagonismo liberal que enfatiza a experincia de opresso pelo foco na
conscientizao que mobiliza a luta pela superao e eleva a solidariedade poltica.
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da primeira negao (aufheben). O feminismo como luta elementar dentro da esquerda
revolucionria humanista porque no se preocupa apenas em enfrentar a opresso, mas, ao
transcender a lgica dessa opresso em uma prxis libertadora, ajuda a construir noes e
estruturas sociais revolucionrias. No basta ser anti-patriarcado, preciso tambm ser
construtora de um mundo novo, e isso tambm se aplica a como nos organizamos dentro do
movimento.
A crtica, portanto, no de que devemos nos livrar das diversas linhas das frentes
revolucionrias como feminismo (e feminismo negro, e feminismo indgena), e a luta anticolonialista, anti-racista, anti-imperialista e chamar a tudo de socialista. Isso seria um
retrocesso, pois devemos continuar a realar a complexidade da luta e trazer a tona como a
opresso impacta a uns diferentemente de outros. No esta a concluso a que chegamos (e
quem chega a ela claramente no entende o que o humanismo marxista). Na verdade,
conclumos que a luta socialista, em seu carter humanista, deve englobar todas essas outras
lutas que se encaixam nas duas negaes, no processo revolucionrio. Nem todo feminismo
socialista, mas assim como necessitamos de um feminismo socialista, nosso socialismo deve
ser em sua essncia ser feminista.
Muito se fala das falhas de Marx e os antigos marxistas ao negligenciarem a questo da
mulher. Sim, a questo foi negligenciada, mas como nos lembra Barbara Ehrenreich, o
marxismo que nos leva ao feminismo no o marxismo da questo da mulher, j que essa
preocupao compartimentaliza a prxis da mulher de maneira a separar a opresso do
patriarcado da luta revolucionria (Ehrenreich, 1997, p. 68). Apesar de reconhecermos que a
totalidade do capitalismo infiltra todas as outras formas de opresso (e por isso no devemos
falar apenas de classismo como o ps-modernismo sugere), a preocupao com supostas
hierarquias que perguntam qual frente de luta mais primria, ou qual opresso mais
opressora, no deve nos interessar, porque pouco adiantam na busca da superao de
quaisquer dessas opresses. O que sabemos que a utopia revolucionria humanista no
consiste somente do fim do capitalismo, ou do patriarcado e sexismo, ou do racismo, ou do
colonialismo, ou da homofobia, mas sim de todas essas fontes de opresso que historicamente
se completam e se reconfiguram entre si.
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www.sabrinafernandes.com
Agradecimentos a Samuel, Thiago, Beatriz, Vanessa, e Rodrigo pelos comentrios recebidos na
elaborao desse texto.
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transformao do espao de fala ou destaque na militncia, que continua a espelhar os
espaos de poder do patriarcado que valorizam a masculinidade hegemnica (tambm txica)
como atributo de legitimao de fala. Assim, as atitudes das companheiras so
masculinizadas de maneira mecnica pelo espao embutido na lgica de opresso patriarcal.
Em um espao organizado contra essa lgica, quem participa se encontra livre para exibir
atitudes masculinas e femininas saudveis.
[iii] Destaca-se, aqui, que esta afirmao no exclui que o mesmo raciocnio das
mulheres no feminismo seja aplicado funo de sujeito de homens homossexuais e homens
trans na luta LGBT, por exemplo. De fato, como a luta LGBT tambm pautada dentro do
feminismo de esquerda, determinados momentos podem destacar o poder do sujeito LGBT
como sujeito tambm dentro do feminismo. Todavia, por necessidade de simplificao
textual, trato particularmente do caso majoritrio da mulher como objeto do patriarcado e
sujeito do feminismo neste trabalho.
[iv] O mansplaining ocorre quando um homem supe ter mais conhecimento sobre
determinado assunto que uma mulher ou grupo de mulheres e se dedica a explicar o assunto
para as mesmas. Diferentemente de um debate informativo, o mansplaining possui uma
conotao paternalista, voltada a corrigir o pensamento da mulher e desvalid-lo. preciso
ter cuidado para no marcar todo dilogo entre homens e mulheres como tentativas de
mansplaining por parte dos homens.
Referncias
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Princeton University Press.
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