Feminismo, Solidariedade, e Revolução - Sabrina Fernandes

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Sabrina Fernandes

Feminismo, solidariedade e revoluo


Atuais obstculos para a superao da opresso
Prembulo
Por se tratar de um texto de crticas internas e, de certa forma, tambm auto-crtico, vejo a
necessidade de estabelecer primeiramente alguns postulados a respeito da luta socialista e
feminista da qual participo, e em relao a como a opresso e a experincia de
sobreviventes devem ser abordadas.
!
!

A experincia de opresso nunca deve ser minimizada ou normalizada por


companheiros e companheiras de luta.
O binrio opressor/oprimido muito dificulta o dilogo de construo da superao da
opresso (em materialidade e em sua lgica subjetiva e de conscincia).
o A noo do opressor melhor estabelecida ao tratar dos agentes do sistema de
opresso, enquanto pessoas de dentro da luta de esquerda devem ser melhor
entendidas como aliadas devido a sua busca pela desconstruo de seus
poderes e privilgios adquiridos por pertencer a identidades, categorias, status,
e classes dominantes.
o Pessoas que so sujeitas (e sofrem) opresso, marginalizao, excluso, e
explorao por pertencer identidades, categorias, status, e classes dominadas
so entendidas por oprimidas, j que sua luta contra a opresso contnua.
Porm, no contexto das pessoas j engajadas em sua auto-libertao, seu
processo contnuo de cura, e, quando na esquerda revolucionria, na luta pela
superao da opresso so melhor entendidas como sobreviventes. Apesar de,
neste texto, haver alternncia entre sobrevivente e oprimido, fao a ressalva de
encorajar companheiras e companheiros em luta a buscar a entender suas
posies como sobreviventes, em vez de oprimidos, quando possvel.
o Enfim, apesar do espao limitado neste texto, reafirmo que devemos rejeitar a
coisificao das categorias de opressor(a) e oprimido(a), j que o processo de
transformao e superao da opresso corresponde aos espaos liminares de
conscientizao, os quais se no encontram nem inteiramente na funo
opressora e nem inteiramente na funo oprimida. No mais, as sobreposies
das diversas experincias humanas impedem que seres dinmicos e histricos
sejam definidos amplamente, sem anlise crtica, como um ou outro.
A presena de espaos auto-organizados para grupos que vivenciam a opresso em
primeira mo essencial para o processo de cura de sobreviventes e para o
estreitamente de laos de solidariedade entre si. A crtica posterior sobre como espaos
auto-organizados so, por vezes, mal utilizados como instrumentos segregadores na
construo da luta revolucionria no minimiza, de forma alguma, a existncia e
fortalecimento desses espaos. Ao contrrio, a crtica aqui apresentada visa acrescentar
que a luta pela superao da opresso necessita que espaos auto-organizados cresam
atravs do empoderamento coletivo ao complementarem espaos primrios voltados
para a construo coletiva (entre sobreviventes e aliados, entre protagonistas
simblicos sujeitos da luta e todos os agentes em solidariedade). Em suma, a luta
feminista no existe sem os espaos auto-organizados, porm, se estes forem os nicos
espaos de construo e dilogo existentes, a luta ser enfraquecida.
Por ltimo, gostaria de reconhecer que o texto utiliza a linguagem homem e mulher,
mas que isso no pretende tornar invisvel a existncia de pessoas trans na militncia.
A posio da autora (aberta para o dilogo) que a luta feminista tambm prega o

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direito de auto-determinao de gnero e sexo, e que a incluso em uma categoria ou


outra procede dessa auto-determinao. O debate aqui realizado no adentra sobre a
opresso especfica vivenciada por mulheres trans e homens trans (ou pessoas que se
identificam como trans-femininas ou trans-masculinas), porm busca enfatizar que a
incluso em feminismo que tambm humanista abraa a luta LGBT e garante que a
busca por auto-determinao no seja reduzida ao protagonismo liberal (ou uma
hierarquia de opresses) tambm neste movimento devido s interseces de nossas
posies em relao s estruturas de poder. Reconheo, afinal, que esse debate precisa
ser mais contemplado para promover a incluso LGBT nos espaos feministas de
maneira proveitosa e que no caia na armadilha de uma disputa representacional de
identidades (poltica que ser criticada abaixo).

Variedades do feminismo e a essncia da luta contra o patriarcado


A luta feminista possui uma histria complexa, e seu status atual em muito se difere
dos tempos em que Mary Wollstonecraft fazia propostas cujo contedo radical partia da idia
de que mulheres e homens so iguais (sob os olhos de Deus, escrevia no sculo XVIII).
Dentro da epistemologia feminista, d-se a entender que o movimento feminista recente pode
ser classificado em fases (ou ondas) de mudanas e acmulo poltico, prtico, e terico nas
ltimas dcadas. Este acmulo promoveu a evoluo de categorias dentro do movimento e a
reorganizao da ontologia feminista para entender que sua luta, apesar de encabeada por
mulheres, compreende uma variedade de opresses que se fortificam dentro do patriarcado.
Da, a incluso da luta da mulher negra e da luta LGBT (e variantes), alm de outras, na pauta
feminista. A transio entre a segunda e a terceira onda do feminismo indicou que o inimigo
no o homem em si, apesar de que a opresso patriarcal em sua maioria perpetrada por
homens, mas o patriarcado como total estrutura que promove a masculinidade txica e a
dominncia masculina, em suas expresses hegemnicas de sexo, gnero, e sexualidade,
sobre a sociedade. Assim, a luta feminista no apenas a luta da liberao das mulheres, mas
a luta contra o patriarcado. J que o objeto majoritrio do patriarcado historicamente as
mulheres, no h dvidas que a luta feminista deve ser encabeada pelas mulheres em sua
funo como sujeito revolucionrio. O mesmo se diz da luta pela libertao negra e contra o
racismo, encabeada por negros e negras, e assim por diante.
Alm desses modelos, h de identificar o fato de que o feminismo no existe ou faz
propostas em isolamento e, portanto, assimila-se ou colabora com outras linhas de
pensamento, projeto poltico (e ideologia). Nosso maior interesse se d na formao de
influncia do feminismo liberal e do feminismo marxista. O olhar superficial capaz de
equalizar as duas linhas baseando-se na sntese de que, afinal, o feminismo prega a igualdade
de mulheres em relao a homens. Porm, uma anlise baseada em histria e totalidade
aponta para a necessidade de livrar os projetos feministas dentro da Esquerda radical e
revolucionria da influncia insalubre da ideologia liberal, muitas vezes mascarada por uma
nova moralidade que se isola da possibilidade de crtica por abraar a nobre noo do
empoderamento das pessoas e povos marginalizados. Este texto apresenta uma sntese dos
argumentos contra o empoderamento liberal que se alimenta de ressentimento e o foco
particular na resistncia opresso em vez de sua superao. Como j enfatizado, a pauta
feminista complexa e o texto no possui a ambio de desenvolver um projeto detalhado da
integrao feminista marxista na luta revolucionria da esquerda, apenas indicar onde h
perigosas prioridades e onde h possibilidade concreta para o avano da luta. Assim, trata
primariamente da subjetividade feminista dentro da esquerda e sua militncia, enfatizando a
metodologia de interao dentro da mesma, e caracterizando o feminismo como locutor da
luta contra as vrias opresses dentro do caminho socialista.

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A reduo da luta a questes de identidade e a armadilha do protagonismo


liberal
A histria nos mostra que o feminismo (e o feminismo negro) responsvel por
melhor inserir a luta anti-opresso e temas de identidade dentro da luta revolucionria da
esquerda, especialmente ao complementar as categorias marxistas tradicionais. O postulado
aceito que o feminismo marxista pertence luta socialista, assim como a verdadeira luta
socialista no completa sem a luta feminista e anti-opresso. O feminismo e as vrias lutas
anti-opresso possuem um papel fundamental na libertao do oprimido, mais
apropriadamente na gerao de conscincia que permite processos de auto-libertao do
oprimido. Este elemento muitas vezes referido como um processo de empoderamento. A
necessidade de empoderamento de quem marginalizado e oprimido evidente na anlise
da hegemonia dos espaos sociais, em que homens brancos, heterossexuais, e da elite
econmica possuem liberdade e autonomia para agir de acordo com seus interesses. Ao
proporcionar momentos e oportunidades de empoderamento, o indivduo e/ou seu grupo se
tornam mais cientes de sua posio de excluso e submisso e, com apoio prevista na
abertura do espao, podem retomar o mesmo e reestruturar as relaes tradicionais de poder
que antes eram reproduzidas.
possvel entender, ento, o porque da nfase em processos de empoderamento
dentro das lutas da esquerda. nossa obrigao promover espaos e momentos inclusivos
que reconheam a presena dos grupos pelos quais lutamos, e que perturbem o confortvel
status que agrega maior oportunidade de participao e influncia queles que, mesmo entre
ns na esquerda, usufruem das consequncias histricas de nossas posies hegemnicas.
Afim de descolonizar a influncia destes, a importncia de reconhecer os privilgios de cada
um se faz necessria. At este momento, encontramos elementos de um processo produtivo e
inclusivo, o qual expe relaes de poder histricas na forma de classe, gnero, sexualidade,
etnia, cor, sexo, religio, e demais posies. O objetivo, diria, duplo: para aqueles que so
aliados em coletividade dentro da Esquerda, trata-se da incorporao da incluso como valor
fundamental para a construo de solidariedade e da luta revolucionria em si; para a relao
entre os oprimidos e os opressores atuantes na dominao contnua dos primeiros, sendo
assim identificados como agentes opressores e alvos da luta, trata-se da reafirmao da
existncia dos oprimidos e da formao poltica destes que, por ventura de sua excluso,
urgentemente reconhecem na revoluo sua necessidade humana mais bsica. A pedagogia
da libertao, que por tambm ser a pedagogia da autonomia insere o processo de libertao
dentro do humanismo marxista, classifica o que at aqui chamamos de empoderamento como
conscientizao, justamente porque este processo implica a transformao de objeto em sujeito,
mesmo que a transformao total da realidade e a abolio dos poderes de opresso ainda
pertenam a um horizonte futuro.
Antes que eu prossiga para melhor estabelecer a relao entre sujeito e agncia, a qual
fundamental para a transio da posio de resistncia e oposio presente no anti para a
posio revolucionria de transformao proposta pelo socialismo e o comunismo, devo
problematizar as prticas de empoderamento que minimizam a conscientizao (individual e
coletiva) em favor de uma verso limitada de protagonismo. Fao isso, primeiramente,
porque o entendimento original de protagonismo no marxismo (dado classe proletria) era
libertador justamente porque levava alm da disputa de espaos particulares e da afirmao
da autoridade epistmica do oprimido, pois buscava o alcance da agncia coletiva
transformadora. Nesse sentido, o protagonismo material e lida com os portadores da
vontade coletiva revolucionria. Marx no tratava do proletariado como protagonista da
histria simplesmente porque este estava no centro das relaes de explorao do

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capitalismo, mas sim porque, justamente por estar ao centro, possua a capacidade de levante
histrico para conectar as diversas lutas revolucionrias e seus agentes.
A outra forma de protagonismo que reconhecemos ser importante nos espaos da
esquerda possui uma expresso simblica, pois se trata da necessidade de inserir vozes
previamente silenciadas nos ambientes de luta, de tal forma que as pautas pela libertao
sejam centradas na vocalizao de experincias e entendimento direto de como a opresso
opera diferente da noo de autoridade epistmica, que ser contestada posteriormente. Um
exemplo seria o debate contra a violncia sexual centrado nas vozes e experincias de
sobreviventes desta (no vtimas, pois a luta colabora com o contnuo processo de cura e
superao das sobreviventes em sua busca por transformao coletiva). No significa, porm,
que o debate exclua as vozes de aliados de maneira imperativa, apenas que especial destaque,
apoio, e solidariedade sejam expressados em relao a aqueles e aquelas que podem relatar
em primeira mo o impacto sofrido e que portam a memria histrica da importncia da luta
por um mundo sem opresses. Assim, o protagonismo pode ser um importante instrumento
para a luta ao gerar reflexo, individual e coletiva, e a reautorizao de espaos negados. O
empoderamento dado pelo protagonismo neste contexto o verdadeiro empoderamento pois
contribui no apenas para a solidariedade aos sobreviventes e a formao de espaos para
suas vozes, mas tambm contribui para o empoderamento coletivo nas lutas anti-opresso e
socialista. No necessrio, ento, ressaltar que qualquer busca pelo protagonismo na
esquerda deve ser sempre examinada para conferir que se trata da construo do
protagonismo coletivo revolucionrio, chave na luta materialista histrica, e, quando de
faceta simblica, do protagonismo como ponte de solidariedade entre aliados e sobreviventes
em sua funo de empoderamento coletivo. Assim, a busca por protagonismo na esquerda
deve ser aquela embutida no processo de conscientizao.
A deturpao da noo do protagonismo encontrada quando se confundem as
noes de sujeito e agncia que acabam por se perder dentro de uma frmula de
protagonismo cravada no discurso do empoderamento individualista e que nega a anlise crtica
da maneira como a pessoa feita sujeito e qual tipo de agncia lhe atribuda. Vemos, por
exemplo, no contexto de projetos de microcrdito e de investimento local de instituies como
o Banco Mundial, o discurso de empoderamento como justificativa para a chamada insero
de mulheres em suas sociedades locais como consumidoras e/ou empreendedoras. O
processo claramente de empoderamento (neo)liberal, uma vez que a subjetividade
configurada de acordo com a lgica do mercado e a agncia limitada pela funo de
explorao do capitalismo. A noo do empoderamento liberal infiltra o espao da militncia,
no tratando aqui de opressor e oprimida (binrio que virei a problematizar em breve) mas
da construo coletiva da luta entre aliados, quando este empoderamento permanece a
reproduzir a lgica do sistema de opresso. A lgica em si no superada, apenas
revertida.[i] De certa forma, a triste profecia da permanncia da conscincia hospedeira da
lgica opressora sobre o oprimido (Freire, 2005, p. 37). No intuito de empoderar o oprimido
em relao ao opressor, ou aliado investido em no mais oprimir conscientemente, a autolibertao do oprimido prejudicada ao enfatizar a definio de sua existncia em relao
opresso.
A preocupao demasiada com o particular e com a priorizao de repetitivos rituais
de reconhecimento de privilgios em detrimento de avanar o debate coletivo debilitante
para a esquerda. No mais, impede a expanso da lgica da libertao porque enfatiza a lgica
da opresso nos espaos internos de construo poltica. No binrio imposto na noo
limitada do feminismo como movimento de luta das mulheres (que remete primeira onda
do feminismo e partes da segunda), os homens de dentro da luta socialista so classificados
simultaneamente como aliados e opressores, mesmo que busquem a auto-crtica contnua e

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sua prpria conscientizao para se desconstrurem como opressores. Isso ocorre devido
alta relevncia do fato de pertencer a categorias, identidades, classes, e status que em seu
coletivo oprimem. Falta discernimento que apesar do homem, em funo tradicional, ser
agente do patriarcado, homens aliados no aceitam essa agncia e devem buscar desconstrula a todo momento. Quando o empoderamento particularista (oposto do empoderamento do
protagonismo coletivo j discutido) da mulher oprimida valorizado acima da construo da
luta, esforos dos homens aliados so reconhecidos apenas de maneira tangencial, desde que
estes se mantenham calados em suas alianas ao feminismo (tema ao qual retornarei adiante).
Isso limita a capacidade dos homens aliados se reformularem como no-opressores. Ao
internalizar o empoderamento, em vez de superar as inescapveis contradies que afligem a
militncia atravs da solidariedade e da incluso, a luta anti-opresso corre o risco de
empoderar somente no sentido liberal; isto , o foco exagerado na possvel transferncia
direta do semblante de um poder particular de um individuo e/ou grupo para outro pela
razo principal de ressarcir o que lhe(s) foi negado historicamente. No h abolio, pois a
lgica da excluso e do silncio de uns em relao a outros perpetuada. O resultado, de
acordo com bell hooks, a perpetuao de uma ideologia separatista dentro do feminismo
(Hooks, 1984, p. 73) atravs da inverso da ideologia dominante.
Identificamos este obstculo liberal em prticas que perdem seu potencial pedaggico
e transformador porque insistem na reparao do ressentimento. Ressentimento entendido
aqui na maneira como empregado por Nietzsche e formulado por Wendy Brown em sua
exposio das falhas do discurso isolador da poltica de identidade (que problematicamente,
reconhecemos, chega a dominar aspectos da pauta anti-opresso da esquerda radical). Para
Brown, a dificuldade em construir a partir do ressentimento se d no fato que a libertao do
sujeito retardada pelo demasiado foco em sua prpria submisso, visto que o sofrimento
entendido sob a lente da virtude social que resume em privilgio o estado autorecriminador de qualquer um que se encontre fora de tal experincia negativa (Brown, 1995).
Para Rosemary Hennessy, o resultado a deteriorao do oprimido e da oprimida em
identidades mortas, pois restringem o potencial de mudar as estruturas de poder ao
prejudicar a habilidade de imaginar e promulgar uma viso mais abrangente (universal) do
futuro (Hennessy, 2000, p. 228). Ao fim, os sujeitos so menos agentes porque sua concepo
de agncia limitada existncia do opressor e da opresso vivenciada. No se trata de
reflexo conscientizadora sobre a opresso a ponto de transcender sua lgica na direo da
solidariedade. Ento, mesmo que sujeitos por seu auto-reconhecimento e a busca do
empoderamento (que impede o retorno ao objeto), j se fazem sujeitos reificados pela lgica
individualista e particularista liberal. Assim, essa forma de empoderamento estruturada pela
opresso e pelo seu decorrente ressentimento corre o risco de causar paralisia poltica
(Brown, 1995, p. 71) enquanto a busca por auto-determinao e auto-afirmao (na linguagem
de Brown e Nietszche) atravs da conscientizao poderia, em sentido oposto, alcanar o
verdadeiro empoderamento da libertao de conscincia, e por fim, da materialidade.
Exemplos dessa prtica se encontram quando espaos auto-organizados so vistos no
como espaos complementares mas como espaos de excluso. Enquanto em sua posio
libertadora espaos auto-organizados so essenciais para garantir autonomia e engajar
mulheres e/ou indgenas, negros e negras, entre outros, pois proporcionam oportunidades de
compartilhar experincias, estabelecer laos solidrios, e refletir sobre a origem de sua
opresso. Na prtica, porm, se a necessidade de afirmar a centralidade das experincias
compartilhadas nesses espaos desvirtuada como fonte de autoridade epistmica absoluta
do oprimido, os espaos auto-organizados passam a se relacionar de maneira anti-dialgica
com outros espaos de construo coletiva. A autoridade epistmica do espao do oprimido
garante que, nos espaos mtuos, a anlise crtica seja subjugada verdade incontestvel

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produzida no espao anterior seleto. Alm do mais, a super valorizao da autoridade


epistmica ao elevar a experincia da oprimida a nvel de base terica sem submet-la
crtica necessria (muitas vezes por confundir o ato da reflexo crtica com as atitudes
opressoras de duvidar ou descartar os relatos de opresso) falha desde o princpio, baseado
no fato de que experincias so complexas, interpretativas, e sempre polticas (Hopkins, 1998,
p. 49). Portanto, resta a mim apontar duas ocasies que fazem o aceite da autoridade
epistmica como fonte absoluta de ao particularmente problemtico.
Primeiro, a autoridade epistmica, quando entendida de maneira mecnica, bloqueia a
crtica construtiva e a interveno terica sobre a experincia do oprimido, esquecendo-se
que, assim como existe a conscincia opressora, tambm existe a conscincia oprimida, ambas
sujeitas hegemonia da opresso. O dilogo aberto, sem constrangimentos, possibilita que a
conscincia oprimida seja examinada de acordo com a sntese histrica para que haja
movimento cognitivo do particular para o universal (o que ser melhor elaborado
posteriormente).
H tambm de ser problematizar, nesse sentido, conceitos mecnicos aplicados na
determinao do processo de excluso dentro da militncia. Espaos de solidariedade entre
mulheres so bem-vindos, exceto se utilizados como instrumento faccionalista dentro da
militncia. Vejamos, ao separar os homens das mulheres em todas instncias de potencial
conscientizador, dificulta-se a possibilidade da reflexo dos homens sobre seu papel dentro
do patriarcado. Repito que estamos lidando no com homens fora da esquerda, atuantes
como dominadores do patriarcado e que reforam, conscientemente ou no, a estrutura de
opresso como agentes da mesma. Lidamos, ao contrrio, com homens aliados, os quais,
quando j no avanados em sua atuao feminista em solidariedade com as mulheres,
buscam ao menos encontrar meios para sua prpria conscientizao e seu subsequente
benefcio a todos. A conscientizao, como j estabelecido, no internalizadora como o
empoderamento liberal, e sim parte da construo da autonomia crtica do indivduo em um
movimento para fora, para o universal.
Exceto quando em espaos auto-organizados femininos estruturados especificamente
para o crescimento de laos emocionais e solidrios e a busca de apoio e conforto, pouco se
aproveita da segregao entre homens e mulheres a respeito de debates da luta feminista e de
possveis medidas a serem tomadas pelos homens em solidariedade ou em reflexo crtica
corretiva de suas aes. Ora, se os homens da militncia tambm so lutadores da esquerda
revolucionria, deve ser permitido a eles engajar na sua prpria conscientizao e libertao
na posio de opressores e oprimidos de acordo com seus contextos. A excluso dos homens
tambm nos espaos mtuos, pois devem se calar para no retirar o espao das mulheres,
debilitante porque impede a formao da laos solidrios entre lutadores e lutadoras, gera
constrangimento ao mecanicamente atribuir a um homem a funo de opressor devido sua
identidade (triste consequncia do binarismo ortodoxo opressor/oprimido, do qual devemos
escapar), e demonstra cegueira poltica ao impedir contribuies por vezes produtivas para o
avano da luta revolucionria simplesmente porque a voz do locutor remete ao poder
histrico masculino dentro do patriarcado. O foco passa a ser a culpa histrica do locutor, e
no a responsabilidade que ele tem diante da luta.
Observa-se tambm a caracterstica esquizofrnica de um feminismo exclusivo dentro
da esquerda que entende os companheiros como aliados ao mesmo tempo que os atira na
fogueira em ressentimento devido viso distorcida da experincia de opresso como virtude
social para o protagonismo liberal. Tais situaes devem muito ao binarismo ortodoxo da
opresso. No so poucos os relatos de machismo perpetrados por companheiros na
militncia que, livres da influncia do ressentimento podem ser interpretados como

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desentendimentos invs de transgresses machistas. Tambm fato a farta atitude machista


e/ou masculinizada de companheiras que se fazem imunes crtica porque sua identidade
lhes propicia com virtude social inquestionvel.[ii]
Segundo, a imposio de verdades incontestveis e da retomada de espao no
momento coletivo pode gerar danos solidariedade da militncia e da capacidade de incluir
sem excluir, ou seja, de retirar o oprimido das margens sem que aqueles identificados como
de maior privilgio sejam relegados s mesmas margens dentro da lgica da excluso.
possvel que, em uma militncia solidria, a incluso seja promovida de modo que os
oprimidos conquistem voz, agncia, e influncia enquanto os aliados se reconfigurem de
acordo com voz, agncia, e influncia diminudas no por punio, mas por consequncia
clara do respeito incluso. Requere-se aqui alta sensibilidade configurao do espao,
proatividade quanto garantia da incluso, e reflexo contnua por parte de todo o grupo.
No se trata de um processo fcil, pois vivemos a realidade pr-revolucionria, ainda que
nossas atitudes sejam j revolucionrias ao rejeitar a inverso de poderes.
A garantia de espao para o oprimido historicamente dentro da esquerda no deve ser
promovida atravs do silncio daqueles cujas posies j lhes traziam as mesmas garantias,
ainda mais visto a necessidade de superar o binrio da opresso na construo da
coletividade da esquerda. O protagonismo liberal se baseia na sobreposio de uns em
relao a outros e existe somente como categoria particular. Como a luta da esquerda
universalista, ela requer categorias tambm universais, como sujeito, agncia, e solidariedade,
as quais verdadeiramente protagonizam a luta do oprimido de maneira coletiva e crtica.

Quem o sujeito do feminismo?


Existem dois significados de sujeito: o sujeito ontolgico e o sujeito revolucionrio
fruto de sua elevao do posto de objeto. O protagonismo liberal reifica o sujeito da luta e
limita sua agncia. J o protagonismo marxista em nada se difere do sujeito-agente
revolucionrio, incluindo o sujeito ontolgico e aliados. Portanto, importante lidar com
estas noes de sujeito e de agncia no objetivo de reafirmar a perspectiva da luta feminista
dentro da esquerda. Como j mencionado, a opresso histrica das mulheres como objeto do
patriarcado as coloca na posio de sujeito ontolgico do feminismo, mesmo que isso
implique a transformao de cada mulher como sujeito revolucionrio e com agncia. No
entendimento produtivo da categoria, pode-se dizer que as mulheres so assim lderes da luta
feminista. Parecem-me estranhas as preocupaes s vezes relatadas de que companheiros de
militncia, em suas falas e atitudes na construo da luta revolucionria, esto tentando
protagonizar a luta das mulheres. Se o protagonismo dado no sentido prprio de sujeito no
marxismo, tanto no sentido de sujeito ontolgico protagonista quanto de sujeito vindo da
elevao do objeto capacidade de sujeito, qualquer inteno desta natureza claramente em
vo. Se o medo dos homens protagonizarem a luta das mulheres vem do protagonismo
liberal, j estabelecemos os problemas desta concepo, a qual no deve ser levada adiante ao
impedir a formao de uma base solidria mais abrangente que certamente fortalece a luta.
Enquanto homens da esquerda tambm se fazem sujeitos em sua conscientizao e libertao
perante a totalidade da opresso e explorao, o entendimento de sujeito revolucionrio que
os inclui no diretamente o do feminismo, mas o do socialismo e eventualmente
comunismo.[iii]
importante indicar que esta noo de sujeito apresentada hegeliana em sua essncia
e, portanto, se realiza dentro de um processo dialtico. Isto significa que o sujeito est em
constante determinao e negao em sua prpria transformao. por isso que rejeitamos
quaisquer tentativas de reduzir as experincias materiais e afetivas de opressor e oprimido a

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um binrio que reifica pessoas a estas categorias, assim distraindo do importante fator
circunstancial das estruturas de opresso. Como Marcuse explica, para Hegel o sujeito
consciente possui, como sua noo, a liberdade (Marcuse, 1941, p. 155). No materialismo
histrico, o processo dialeticamente invertido: a liberdade deve partir da conscincia para a
materialidade. disso que tratamos ao estabelecer que o sujeito tambm precisa afirmar sua
agncia, seu poder de ao histrico de intervir no processo revolucionrio.
Portanto, uma categoria de importncia na participao de homens aliados ao
feminismo diz respeito agncia. Esta agncia pressupe que, apesar do homem no ser o
sujeito ontolgico do feminismo em si, sua conscientizao o transforma em um sujeito
feminista em sua perspectiva e posio. Mesmo que no sujeitos/protagonistas do
feminismo, os homens aliados da esquerda, enquanto sujeitos em sua conscientizao,
recebem a tarefa de agir tanto no mbito radical do anti, no enfrentamento da opresso,
como no mbito revolucionrio da construo de uma sociedade de liberdade (a segunda
negao). Esta agncia no deve ser limitada marginalidade por questes de protagonismo
ou por se submeter a uma noo liberal de solidariedade que se contenta com demonstraes
de apoio ou caridade. Isso implicar permitir que aliados encontrem espaos no apenas de
desconstruo de machismo e sexismo, ou reflexo sobre o patriarcado, mas tambm de
construo da luta anti-opresso e de esforos transformadores. Apesar de amalgamar as
noes de agncia e sujeito em sua anlise, Patrick D. Hopkins contribui para este debate ao
afirmar que o importante para o feminismo como estratgia crtica ser feminista, mais do
que ser mulher, pois o ato de ser feminista prope o uso do feminismo como lente para
entender no somente a situao das mulheres mas como os fatores de gnero em geral em
relao ao patriarcado (Hopkins, 1998, p. 51). A luta coletiva necessita de mltiplos agentes
com perspectivas e posies diversas e, assim, deve incluir mulheres e homens. Homens
aliados no devem ser relegados a espaos onde so apenas informados sobre as decises
tomadas em coletivo pelas mulheres, nem devem ser a eles negadas oportunidades de fala
construtiva.
Casos conhecidos como mansplaining[iv] so problemticos, mas a importncia de
evit-los a todo custo no deve impedir importantes falas de aliados, especialmente aqueles
que possuem valoroso acmulo poltico e boas lies para a luta. Ao contrrio, se aliados no
possuem espao de fala, como poderemos identificar verdadeiros casos de mansplaining a
ponto de gerar reflexo e transformao da fala do aliado? Remetendo discusso anterior
sobre empoderamento liberal, lembro que no o silenciamento do outro que gera
conscientizao, mas sim processo de anlise crtica e reflexiva que garantem um
engajamento permanente com a transformao da conscincia e da materialidade. Tais
situaes exigem pacincia por parte das mulheres em relao ao aprendizado dos homens
aliados, pois um no se descoloniza ou se desconstri em um dia. Exige tambm anlise
crtica pelas mesmas, para que no se criem situaes em que homens, ao fazerem suas
intervenes, sejam novamente silenciados na base do mansplaining simplesmente porque sua
fala questiona prticas internalizadas do movimento ou gera debates pouco populares. Um
movimento verdadeiramente preocupado com a transformao para fora deve se vigiar
para no silenciar crticas ou sugestes de grande valor simplesmente porque o locutor ou a
locutora possuem posies privilegiadas materialmente na sociedade, mesmo que agora se
encontrem como aliados em uma construo coletiva. Da mesma forma, ideias no devem ser
aceitas de modo mecnico simplesmente porque resultam da expresso de um indivduo ou
grupo oprimido. Como j visto na elaborao a respeito da autoridade epistmica, nenhum
indivduo ou grupo deve port-la de maneira a coibir a capacidade crtica do movimento para
decises tanto tericas quanto prticas. A oportunidade da fala e da expresso provm no da
posio da pessoa dentro do esquema opressor, mas de sua responsabilidade como agente de

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transformao da realidade opressora. Este entendimento demanda a centralidade da


solidariedade como catalisador da agncia coletiva.
A construo de um novo projeto poltico incrustado em valores coletivos demanda a
solidariedade entre os oprimidos, entre os aliados, e, em demonstrao de grande ousadia
revolucionria, solidariedade para com o mundo de forma a facilitar tambm a
transformao dos opressores. Este ltimo, aspecto da pedagogia crtica pouco popularizado
em relao aos mtodos de auto-libertao, diz respeito no ao desmerecimento da dor do
oprimido ou a ser condizente com a opresso executada pelo opressor. Na verdade, trata do
grande passo na conquista da auto-libertao pelo oprimido, quando supera os momentos
iniciais de sua transformao em sujeito, repletos de dor e violncia, para alcanar a
conscincia crtica universal. Conscincia, esta, que escapa da fora de imerso das
conscincias da realidade opressora para se desenvolver de acordo com a prxis dialtica da
ao e reflexo geradoras da transformao da sociedade (Freire, 2005, p. 42). O objetivo da
luta vai alm da reparao das experincias sociais para alcanar a transformao sistmica.
Enfatizo aqui que no basta discursar que a luta para o fim do patriarcado se as prticas de
luta se focam apenas no particular.
Na relao entre aliados, a solidariedade verdadeira ao ser mais do que a fala de
apoio ou compaixo. Refere-se a solidariedade que assume a situao de com quem se
solidarizou (Freire, 2005, p. 39). Este ato de assumir, todavia, no o mesmo que uma
inverso de papis onde o aliado forado a vivenciar o silncio e a excluso daqueles que
vivenciam e/ou vivenciaram a opresso. Afinal, este no seria um ato livre da lgica da
opresso. O assumir a que Freire se refere melhor entendido na concepo de solidariedade
de Jodi Dean, que argumenta que a solidariedade uma relao capaz de ser perpetuada e de
ser transformada quando entendida como a expectativa mtua de uma orientao
responsvel para se relacionar (Dean, 1995, p. 123, minha traduo). Mais claramente, a
solidariedade reflexiva tem em sua base um entendimento mais amplo do ns, o que
permite que a relao de solidariedade sobreviva ao risco contnuo de desacordo, o qual ,
mais propriamente, absorvido racionalmente de forma a fortalecer a base solidria (Dean,
1995, p. 123). O conceito do ns mais amplo porque Dean prope que ele seja entendido
de forma comunicativa. Isso quer dizer que o relacionamento solidrio no se d de forma
mecnica ou automtica, mas formado pelo esforo comunicativo de vrios eus. A
solidariedade dentro do feminismo da esquerda, portanto, deixa de ser domnio exclusivo de
mulheres como grupo previamente formado, e passa ser o contnuo resultado da construo
comunicativa de mulheres e homens engajadas cujo engajamento no se d pela sua
diferena, mas pela sua responsabilidade. Dean apresenta ento um desafio para o feminismo
da esquerda: ousar superar o discurso dualista ns x eles dentro da construo solidria
para um ns inclusivo que existe independente da presena opositora do eles.
Quando bell hooks trata da importncia de uma estratgia transformadora em relao
ao racismo no movimento feminista, ela no fala da separao de mulheres brancas e negras,
ou da negao de espaos de liderana para mulheres brancas devido ao seu privilgio. Ao
contrrio, hooks fala de solidariedade poltica (Hooks, 1984, p. 55). Tal solidariedade se
estabelece a partir das aes transformadoras que decorrem do processo de desaprender o
racismo, neste caso. Em outras palavras, a solidariedade estabelecida de acordo com a
conscientizao no s das oprimidas mas tambm daquelas cujas aes so opressoras.
Hooks considera o reconhecimento do privilgio em si como to nulo quanto a falta deste
reconhecimento. O importante, diz, o processo transformador que pode ser gerado a partir
do reconhecimento (Hooks, 1984, p. 54). Como j mencionado, a importncia demasiada dada
ao ritual de reconhecimento de privilgio pouco ajuda se oportunidades no forem criadas
para que aliados demonstrem sua transformao, sua auto-afirmao, e sua solidariedade. O

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que hooks ensina que na luta feminista, mulheres so aliadas em sua solidariedade e devem
rejeitar ressentimento e/ou competio que impede que a raiva seja direcionada s foras
opressoras (Hooks, 1984, p. 55). A lio similar na luta revolucionria da esquerda, a qual,
por englobar tambm a luta feminista, deve ser solidificada atravs da solidariedade entre
mulheres e homens aliados empenhados em sua transformao.
a partir desse entendimento de solidariedade poltica que hooks instiga o movimento
feminista a abandonar a viso dualista e rasa de homens como opressores permanentes em
sua posio e de mulheres como vtimas. Para ela, esta retrica solidifica uma ideologia
sexista que prope a noo invertida de um conflito bsico entre os sexos, a implicao
sendo que o empoderamento de mulheres seria necessariamente s custas dos homens
(Hooks, 1984, p. 67). A crtica de hooks exatamente a crtica ao empoderamento no sentido
liberal apresentado anteriormente. hooks no demanda que o movimento deixe de reconhecer
que todos os homens apoiam ou perpetuam sexismo e opresso sexista de uma forma ou
outra (Hooks, 1984, p. 72), mas sim que as tarefas do movimento feminista no sejam
distradas da luta e da possibilidade de contribuio masculina ao super-enfatizar este
primeiro fato. Solidariedade poltica, ento, deve ser estendida tambm s relaes entre
mulheres e homens na luta feminista (pela abolio do sexismo e o poder do patriarcado) e na
luta revolucionria socialista. Isto implica entender homens aliados como responsveis por
seu papel e participao no patriarcado e, devido ao compromisso com essa responsabilidade,
engajados ativamente na luta feminista para que mulheres, apesar de sujeito do feminismo,
no tenham que ser as nicas agentes do movimento. De fato, preciso rejeitar a noo que
mulheres podem realizar essa tarefa revolucionria sozinhas, precisamente porque a
conscientizao de homens em um processo de auto-liberao e sua contnua
responsabilidade pela luta so fatores absolutamente necessrios no enfrentamento de uma
estrutura que engloba a sociedade humana em si.

Estratgias prticas multifuncionais: cura, conscientizao, e solidariedade


Sobreviventes de machismo, sexismo, violncia de gnero e sexual procuram no
feminismo uma forma de compreender suas experincias e lutar contra o sistema de opresso
que geram as mesmas. A luta contnua e isso implica que essas lutadoras continuaro a ser
expostas a situaes que as fazem lembrar e/ou reviver seu prprio contexto pessoal.
Portanto, o movimento feminista da esquerda deve manter e enfatizar espaos seguros para
debates a respeito dessas experincias e o estreitamento de laos solidrios entre quem as
sofreu, quem as sofre, e quem esta diretamente engajada no enfrentamento da opresso. Esses
espaos, como j mencionado, costumam ocorrer atravs de espaos auto-organizados pelas
mulheres. Sua preservao importante para que a perspectiva de quem est no centro da
opresso seja tratada de maneira sria e com importante foco na sade fsica, mental, e
emocional de quem est dentro do movimento.
Porm, lembramos que estes espaos, apesar de espaos de cura, no podem substituir
espaos de enfrentamento e construo. Existe a suposio de que espaos auto-organizados
exclusivos para as mulheres dentro da esquerda e no movimento feminismo so de extrema
importncia porque possibilitam que as mulheres vtimas de opresso possam vocalizar sua
dor e sua raiva. Apesar dessa vocalizao ser essencial para a jornada de cada indivduo ao
lidar com suas experincias e traumas, seria mais proveitoso para as participantes se a noo
do espao seguro que existe dentro da exclusividade para mulheres fosse abrangida para
todos os espaos do movimento. Assim, espaos de cura e solidariedade sero apenas um de
vrios espaos transformadores em que a pessoa pode vocalizar sua histria sem temer
julgamento ou mais opresso. Alm disso, se o foco for apenas na experincia de opresso,
corremos o risco de enfatizar um processo de vitimizao interno que complementa a

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vitimizao social. Hooks atenta para a perigosa tendncia de estabelecer a vitmizao mtua
como base para a formao de laos entre mulheres, pois ela comunica que o foco na opresso
necessrio para que o feminismo seja relevante na vida das mulheres (Hooks, 1984, p. 45).
Ao contrrio, o feminismo deve ser relevante na vida de mulheres e homens no atravs da
experincia compartilhada da opresso, mas pela luta coletiva contra ela. Assim, espaos de
cura (e todos os outros espaos da esquerda, determinados como espaos seguros) devem ser
sempre entendidos tambm como espaos de solidariedade poltica, e tambm de
conscientizao.
O foco na conscientizao deve ser primrio por elevar o entendimento da experincia
do particular para o universal, do pessoal para o poltico, tanto em espaos de cura quanto em
espaos mais abrangentes de construo. A conscientizao se aplica tanto oprimida quanto
ao opressor, e assim transcende o binrio para que os sujeitos possam enxergar a si mesmos
como sobreviventes (no mais vtimas) e aliados e aliadas na mesma luta. Como discutimos a
respeito da autoridade epistmica, a conscientizao deve ser central na luta contra a
opresso porque no toma a experincia de maneira mecnica ou essencialista, mas submete a
experincia ao rigor da reflexo poltica e social de modo a passar a compreend-la pela
dialtica da prxis (a unio entre prtica e teoria para a transformao do mundo, como diz
Freire). Vemos, ento, o quo importante a insero da teoria tanto na reflexo pessoal a
respeito das experincias vivenciadas como no debate de construo revolucionrio.
Muito se critica nos movimentos anti-opresso atuais sobre teorias e produes
acadmicas que em nada de aplicam realidade social. Essa crtica vlida e necessria. O
problema ocorre quando a crtica se transforma em uma rejeio direta a intervenes
tericas, ao julgar que a verdade revolucionria dada pela experincia prtica somente.
Retomando hooks novamente, experincias pessoais so importantes para o movimento
feminista, mas elas no podem tomar o lugar da teoria (Hooks, 1984, p. 30). a teoria que
possibilita abstrair das experincias pessoais o que temos de comum para identificar padres
sistmicos e prover explicaes que tratam dos problemas encontrados no nvel universal. a
teoria tambm que impede que o personalismo de experincias se traduza em individualismo
e maior vitimismo dentro de uma poltica de identidade liberal, j criticada por Wendy
Brown. dever do movimento feminista, e do movimento revolucionrio de esquerda em si,
promover a luta dentro da dialtica da prxis. Isso quer dizer que somos responsveis por
construir teoria a partir da nossa prtica e, simultaneamente, submeter nossa prtica ao rigor
da teoria. Somente assim preveniremos concluses essencialistas a respeito das experincias
de opresso que, afinal, desmobilizam mais que mobilizam, e tambm impediremos que
imposies artificiais e incorretas capturem o movimento e o torne irrelevante por no
corresponder realidade material.
Diretamente, me parece que a complexidade da luta feminista da esquerda exige
tambm uma complexidade de estratgias e espaos cujos diferentes focos tambm
mantenham a importncia da conscientizao e da solidariedade poltica. Nosso objetivo deve
ir alm dos relacionamentos forjados dentro do movimento, pois prxis dentro de qualquer
movimento poltico que visa a ter um impacto radical e transformador na sociedade no deve
focar somente na criao de espaos em que radicais em potencial tenham a experincia de
segurana e apoio (Hooks, 1984, p. 28, minha traduo). Posso apresentar ento que, visto a
importncia de estender a segurana dos espaos auto-organizados para todos os espaos do
movimento, no necessrio que a exclusividade de grupos de mulheres nos espaos
especficos de cura seja imposta em outras ocasies de construo e luta. Com o foco principal
na conscientizao e solidariedade poltica, o movimento convida a prxis coletiva a todos os
espaos: de debate, de mobilizao, de reflexo, de auto-crtica, alm de outros. Salvo espaos
auto-organizados promovidos com o intuito especfico de compartilhar experincias de

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opresso e expor traumas (ainda assim com o objetivo de reflexo alm da busca de apoio),
faz-se nula a necessidade de promover prticas separatistas entre mulheres e homens no
movimento feminista da esquerda. No preciso impor a regra do silncio aos homens
aliados para que as mulheres possam falar nesses espaos. Deve-se supor, objetivamente, que
se estamos a construir um movimento verdadeiramente para superao da opresso, homens
sero aliados de grande utilidade e aprendero, em sua constante reflexo, a avaliar o
equilbrio necessrio em termos de participao, fardo, e exposio.
certo que esta proposta ainda encontra obstculos por mulheres no movimento,
ainda mais em situaes de exposio, quando a sociedade em geral continua a dar maior
destaque para a voz masculina nas diversas frentes de luta. O reconhecimento que deve ser
promovido, ento, no de que os homens aliados precisam se calar, mas sim que a luta
longa e contra uma totalidade dominadora. J se faz suficiente, ento, que o movimento se
organize para destacar a presena e ao das mulheres de maneira que elas representem ali o
movimento em coletivo, e no somente suas prprias vozes. Alm disso, podemos avaliar o
impacto subversivo que se d mesmo quando homens aliados recebem algum destaque, j
que eles empregaro discurso e prtica diretamente opostos ao discurso e prtica
hegemnica que patriarcado espera dos homens. preciso livrar o movimento feminista e
seus combatentes da idia de que quando um homem aliado se entende como feminista ou
utiliza sua voz dentro do feminismo ele impede o protagonismo das mulheres dentro do
movimento. Feminista quem faz a luta feminista, no apenas o sujeito ontolgico da luta
(visto que muitas mulheres so machistas e anti-feminismo). Como um movimento pela
superao da opresso sexista e patriarcal e todas as outras opresses, especialmente em
como so exaltadas pelo capitalismo, o movimento feminista da esquerda revolucionria
necessita de menos preocupaes a respeito do lugar das mulheres como sujeito ontolgico,
de menos limitaes s contribuies de aliados feministas, e enfim, de substituir prticas e
discursos do protagonismo liberal que enfatiza a experincia de opresso pelo foco na
conscientizao que mobiliza a luta pela superao e eleva a solidariedade poltica.

Concluso: restaurando o humanismo na luta socialista-feminista


O movimento feminista da esquerda revolucionria marxista em sua viso da
totalidade e humanista em sua perspectiva dialtica da abolio da opresso para a
restaurao da liberdade humana. Para fazer essa afirmao, preciso apresentar uma breve
crtica de como a noo do humanismo tem sido vulgarizada e desvinculada de sua base
terica de forma a atrelar seu significado a debates que buscam intervir em prticas
segregadoras e por demais mulheiristas do movimento feminista. Portanto, busco concluir
abordando este tema para o resgate do humanismo como pauta unificadora das lutas antiopresso dentro do processo revolucionrio de esquerda. A crtica incorreta que no
precisamos do feminismo se temos o humanismo. A crtica abraada aqui que o feminismo
tambm precisa ser humanista para alcanar sua misso da abolio da opresso.
Erich Fromm oferece uma sntese do marxismo humanista atravs da viso do
socialismo de Marx: Para Marx, socialismo significava a ordem social que permite o retorno
do [ser humano] a ele mesmo, a identidade entre existncia e essncia, a superao da
separao e antagonismo entre sujeito e objeto, a humanizao da natureza; significava um
mundo em que o [ser humano] no mais um estranho entre estranhos, mas est em seu
mundo, onde ele est em casa (Fromm, 2011, p. 69, minha traduo). O socialismo marxista,
quando livre de distores ortodoxas e estruturalistas, , por si prprio, o humanismo. A
revoluo proposta por Marx no apenas econmica, mas tambm pela superao da
opresso em todos os seus sentidos desumanizadores. Trata-se de um processo
revolucionrio dialtico de duas negaes: a negao da opresso, e negao da necessidade

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da primeira negao (aufheben). O feminismo como luta elementar dentro da esquerda
revolucionria humanista porque no se preocupa apenas em enfrentar a opresso, mas, ao
transcender a lgica dessa opresso em uma prxis libertadora, ajuda a construir noes e
estruturas sociais revolucionrias. No basta ser anti-patriarcado, preciso tambm ser
construtora de um mundo novo, e isso tambm se aplica a como nos organizamos dentro do
movimento.
A crtica, portanto, no de que devemos nos livrar das diversas linhas das frentes
revolucionrias como feminismo (e feminismo negro, e feminismo indgena), e a luta anticolonialista, anti-racista, anti-imperialista e chamar a tudo de socialista. Isso seria um
retrocesso, pois devemos continuar a realar a complexidade da luta e trazer a tona como a
opresso impacta a uns diferentemente de outros. No esta a concluso a que chegamos (e
quem chega a ela claramente no entende o que o humanismo marxista). Na verdade,
conclumos que a luta socialista, em seu carter humanista, deve englobar todas essas outras
lutas que se encaixam nas duas negaes, no processo revolucionrio. Nem todo feminismo
socialista, mas assim como necessitamos de um feminismo socialista, nosso socialismo deve
ser em sua essncia ser feminista.
Muito se fala das falhas de Marx e os antigos marxistas ao negligenciarem a questo da
mulher. Sim, a questo foi negligenciada, mas como nos lembra Barbara Ehrenreich, o
marxismo que nos leva ao feminismo no o marxismo da questo da mulher, j que essa
preocupao compartimentaliza a prxis da mulher de maneira a separar a opresso do
patriarcado da luta revolucionria (Ehrenreich, 1997, p. 68). Apesar de reconhecermos que a
totalidade do capitalismo infiltra todas as outras formas de opresso (e por isso no devemos
falar apenas de classismo como o ps-modernismo sugere), a preocupao com supostas
hierarquias que perguntam qual frente de luta mais primria, ou qual opresso mais
opressora, no deve nos interessar, porque pouco adiantam na busca da superao de
quaisquer dessas opresses. O que sabemos que a utopia revolucionria humanista no
consiste somente do fim do capitalismo, ou do patriarcado e sexismo, ou do racismo, ou do
colonialismo, ou da homofobia, mas sim de todas essas fontes de opresso que historicamente
se completam e se reconfiguram entre si.
Sabrina Fernandes
www.sabrinafernandes.com
Agradecimentos a Samuel, Thiago, Beatriz, Vanessa, e Rodrigo pelos comentrios recebidos na
elaborao desse texto.

[i] No se implica aqui que a materialidade da opresso revertida, pois a totalidade


da experincia da opresso ainda se impe ao oprimido. Ao que me refiro ao falar da
reverso da lgica da opresso que a necessidade de expressar ressentimento em uma noo
limitada de liberao no escapa da lgica do dano presente na totalidade opressora. Ou seja,
h uma troca de papis simblica na locuo do dano pela oprimida que o dirige ao potencial
aliado smbolo do opressor.
[ii] O feminismo socialista no prega a supremacia da femininidade em relao
masculinidade, tanto porque no so entendidos como um binrio de oposio, mas sim um
continuum de caractersticas, prticas, comportamentos, e atributos de gnero. Dessa forma,
uma pessoa do gnero feminino tambm pode ter comportamentos masculinos, e vice-versa.
O problema das atitudes masculinizadas de companheiras se encontra na falta da

Sabrina Fernandes 14
transformao do espao de fala ou destaque na militncia, que continua a espelhar os
espaos de poder do patriarcado que valorizam a masculinidade hegemnica (tambm txica)
como atributo de legitimao de fala. Assim, as atitudes das companheiras so
masculinizadas de maneira mecnica pelo espao embutido na lgica de opresso patriarcal.
Em um espao organizado contra essa lgica, quem participa se encontra livre para exibir
atitudes masculinas e femininas saudveis.
[iii] Destaca-se, aqui, que esta afirmao no exclui que o mesmo raciocnio das
mulheres no feminismo seja aplicado funo de sujeito de homens homossexuais e homens
trans na luta LGBT, por exemplo. De fato, como a luta LGBT tambm pautada dentro do
feminismo de esquerda, determinados momentos podem destacar o poder do sujeito LGBT
como sujeito tambm dentro do feminismo. Todavia, por necessidade de simplificao
textual, trato particularmente do caso majoritrio da mulher como objeto do patriarcado e
sujeito do feminismo neste trabalho.
[iv] O mansplaining ocorre quando um homem supe ter mais conhecimento sobre
determinado assunto que uma mulher ou grupo de mulheres e se dedica a explicar o assunto
para as mesmas. Diferentemente de um debate informativo, o mansplaining possui uma
conotao paternalista, voltada a corrigir o pensamento da mulher e desvalid-lo. preciso
ter cuidado para no marcar todo dilogo entre homens e mulheres como tentativas de
mansplaining por parte dos homens.

Referncias
Brown, Wendy. (1995). States of Injury: Power and Freedom in Late Modernity. Princeton:
Princeton University Press.
Dean, Jodi. (1995). Reflective Solidarity. Constellations, 2(1), 114140. doi:10.1111/j.14678675.1995.tb00023.x
Ehrenreich, Barbara. (1997). What is Socialist Feminism? In R. Hennessy & C.
Ingraham (Eds.), Materialist Feminism (pp. 6570). New York: Routledge.
Freire, Paulo. (2005). Pedagogia do Oprimido (49th print.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Fromm, Erich. (2011). Marxs concept of man. Mansfield Centre: Martino Publishing.
Hennessy, Rosemary. (2000). Profit and Pleasure: Sexual Identities in Late Capitalism. New
York: Routledge.
Press.

Hooks, Bell. (1984). Feminist Theory: from margin to center. Cambridge, Mass: South End

Hopkins, Patrick D. (1998). How Feminism Made a Man Out of Me: The proper subject
of feminism and the problem of men. In T. Digby (Ed.), Men Doing Feminism (pp. 3556). New
York: Routledge.
Marcuse, Herbert. (1941). Reason and revolution: Hegel and the rise of social theory. New
York: Oxford University Press.

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