Textos Ele Semog

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Ele Semog
Textos selecionados

Perfil
voc como um poema.
sem passado e futuro.
trilha de plvora.
cego jogo em chamas: palavras.
voc como uma surpresa
para cada tempo. com detalhes
em todas as letras.
( in Cadernos Negros: os Melhores Poemas, 1998, p.56)
Danando Negro
Quando eu dano
atabaques excitados,
o meu corpo se esvaindo
em desejos de espao,
a minha pele negra
dominando o cosmo,
envolvendo o infinito, o som
criando outros xtases...
No sou festa para os teus olhos
de branco diante de um show!
Quando eu dano h infuso dos elementos,
sou razo.
O meu corpo no objeto,
sou revoluo.
( in Cadernos Negros: os Melhores Poemas, 1998, p.57)
Outras Notcias
No vou s rimas como esses poetas
que salivam por qualquer osso.
Rimar Ipanema com morena
moleza,
quero ver combinar prosaicamente
flor do campo com Vigrio Geral,

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ternura com Carandiru,


ou menina carinhosa / trem pra Japeri.
No sou desses poetas
que se arribam, se arrumam em coquetis
e se esquecem do seu povo l fora.
( in Cadernos Negros: os Melhores Poemas, 1998, p.58)
Ponto histrico
No que eu
Seja racista...
Mas existem certas
Coisas
Que s os NEGROS
Entendem.
Existe um tipo de amor
Que s os NEGROS
Possuem,
Existe uma marca no
Peito
Que s nos NEGROS
Se v,
Existe um sol
Cansativo
Que s os NEGROS
Resistem.
No que eu
Seja racista...
Mas existe uma
Histria
Que s os NEGROS
Sabem contar
... Que poucos podem
Entender.
Amor do fruto deformado
eu sangro e choro
sou quase capaz de ser refeito.
falo s pedras que um dia
elas sero instrumento
para eu conseguir o nosso po.
falo o meu silncio
no vcuo das emoes que me arrancaram.

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s os escorpies no sabem
quantas vezes me ferrei de solido.
eu, maldito ns, sempre feito de pedra
que no se d jamais ao absurdo
que nunca se v fora do prprio tero
mas que finge ser vida da vida.
te encontrei semente estril
flor de todas as culpas e sem mistrio
sendo por dentro um s vazio
peito amargo, cheio de feridas.
te vi transformada num lugar
que ningum ousaria se esconder
que nem mesmo um verme habitaria.
mas raspei da mente o medo
a hipocrisia, os sonhos pretendidos
ensanguentei minha cultura e mitos
at que por fim juntei-me a ti.
agora o tempo um
amontoado de horas srdidas
e o dio se tempera com angstia
e a frustrao remenda trapos
e as cinzas do amor j so do vento
eu me vejo por dentro dos momentos
tramando sinais esquizofrnicas
te suicidando num caso ao acaso
utilizando a morte pra te ver morta
e ter com isto
um sofrimento s pra mim.
amores...busquei-os feito tolo
e em desamores desaguei.
bebi a seiva das dores
na fonte dos sonhos. venenos
embriagar-embriaguei: embrionei-me
sinas inesperadas
tristezas somente imaginadas
nos versos de ocasionais poetas
e nas verdades contidas
no corao da gente simples
que o cotidiano esmaga e oculta
sem que ningum veja
o desespero exposto nos varais.
no encontrei minha cria, meu rebento.

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o silncio do teu corpo


posso traduzir agora
com meu prprio silncio
pois o passado nos deixou apenas
esta ausncia da nossa carne
entre os fatos da vida.
por amor mata-se as iluses
cega-se o corao, vende-se a alma
e, ainda, por amor perde-se a calma
de esperar que o amor se faa amor.
(le Semog, em Cadernos Negros n9)
A insnia da moa
Quinze horas. Talvez desse para fazer mais duas viagens. Dezoito horas. O
dia estaria ganho. Dormiria na garagem e pegaria no volante s seis da manh, no
fim do ms estaria com uma boa grana de horas-extras.
Primeira, segunda terceira. Ponto. Primeira, segunda, sinal. Terceira,
quarta, cigarro, ponto. Corcel, caminho, fusca, guarda. Motor, suor, ateno.
Motorista de nibus tudo assassino. Porrada! Porrada! A multido
querendo mais sangue. Vinte anos de volante, uma mulher, uma amante, oito
filhos e a merda do sindicato na mo dos pelegos. Vinte anos de primeira,
segunda, ponto. Sem nenhum acidente.
No dormia h uma semana. Talvez duas. Trs. O corpo cado, meio torto
no ar, olhos fundos, inexpressivos. Era um retrato medocre. Precisava dormir de
qualquer jeito, fechar os olhos e corpo na doce maldio do sono. Um sono
eterno, de pedra, inviolvel. Sem sonhos.
J dividia a noite com fantasmas, com pequenos monstros cotidianos que,
pela rotina do dia a dia, se tornaram parte de seu mundo sem que percebesse.
Um alarido de ecos perturbava as coisas sem sentido. Uma mulher com insnia v
o mundo de uma forma lgica, mas depois se arrepende. Se culpa e finge que no
sabia como mexer no destino. Elas pensam que os maches no sabem dessa
artimanha.
Caminhou como se fosse a algum lugar ali dentro do quarto. Caminhou
decidida e deu de cara com a parede. Voltou-se em busca de um caminho. Parou.
Duvidou de tudo por um instante. Andou em si. Parou. Fez isso muitas vezes.
Desistiu. Em vo. Qualquer um sabe que caminhar num quarto semi-escuro no
diminui a
Olhou pelo buraco da fechadura certa de espreitar um fato. Algum.
Qualquer coisa com vida, at mesmo uma daquelas ratazanas que sempre
surpreendiam, brotando do assoalho cheio de rangidos e cupim. Nada. Silncio
esquisito l fora. Voltou-se desiludida e olhou a cama. Acariciou o pulso esquerdo
vendo a gilete sobre o travesseiro. Os cabelos marrons caiam-lhe desalinhados
pelo rosto. Olhou a cama intil. Intil. Com aquele lenol branco e encardido.
Desconfiada de si repetiu os mesmos movimentos tentando dominar o espao.

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Caminhar, ir voltar, parar...A parede com restos da cara de Roberto Carlos, a jarra
da mesa, flores de plstico salpicadas de coc de mosca, a Bblia, o urinol gata
com as beiras lascadas, a bolsa de nailon na cadeira, o litro de lcool. Passou por
dentro das mesmas coisas sem nenhuma migalha de imaginao para qualquer
outro ato. Que ato idiota! Chego a ficar furioso, mas para uma mulher
desesperada caminhar um bom destino.
Siririca violenta, como se tecesse apressadamente um ato de vingana com
aquele gesto escroto e desmedido. Depois sentiu nojo de tudo. Um nojo
imprestvel, murrinhento que se diluiu com a imagem do homem. Um homem no
tem mistrio e qualquer um vale o gozo, so todos diferentes. ...Miservel, sabia
disto e chorou baixinho. Parecia um bichinho abandonado. Levantou-se arrogante,
imps-se diante da prpria tragdia. Uma semana de insnia, talvez um ms. No
resistiu e jogou-se sobre o colcho de molas barulhentas. Chorou mais .
Pequenos duendes bailaram diante dos seus olhos, dentro das lgrimas.
Milhares deles pendurados pelas coisas do quarto. Fez um sinal obsceno para
tudo, com descaso espalho uma gargalhada feia que pulverizou os macaquinhos.
aliviou-se, mas l no fundo do peito, o medo permaneceu esttico.
Caminhar. Deu movimento ao verbo. Parecia uma condenada com tanta
certeza. Cabea baixa, olhos no cho, caminhando. Olhos no nada, caminhando.
Olhos para dentro, caminhando. Olhos sem razo, caminhando. Olhos mortos
caminhando. No perdeu o movimento at que o sol clareou.
Uma, duas, trs, talvez quatro semanas sem dormir. Um absurdo. Abriu o
mvel tirou a blusa, a calcinha verde fundo encardido - , a saia quadriculada
colocou tudo sobre a cama. Deu um pontap. Odiava a cama pela sua inutilidade.
Talvez um ano, oito meses, nove dias. Vinte e nove anos e nem prncipe
encantado, nem casa arrumada, pinguim sobre a geladeira, e um casal de
crianas. Perdera a razo, os sonhos, a esperana. Vinte e cinco anos. Enxoval,
convites. O prncipe encantado, sargento do Corpo de Bombeiros, era casado e
tinha quatro filhos. A me morreu de desgosto por sua culpa. O enterro foi
simples.
Arreganhou as pernas na pia do quarto e lavou a xoxota. O rosto. Os
sovacos. Maquilou-se . Sobre as olheiras usou algo azul. Cresceu os clios.
Passou baton vermelho. Vivo e moderno. Vestiu-se. Admirou-se no espelho e
sentiu-se jovem e resignada. Sorriu das coisas, de tudo, mas no havia fantasmas
nem duentes. S as coisas de pegar, usar, quebrar, coisas de coisas sem outros
sentidos. Mesmo assim ela insistiu em sorrir como se valesse a pena. No valia.
Tudo que lhe valia, o pecado e a insnia tinham matado. Ela sabia disto e no
impediu as lgrimas. Borro. Maquilagem. Sentiu tristeza de mulher solitria.
Inconfessvel. Resignou-se e dominou o dilvio que ameaava vazar pelos olhos.
O tempo estava passando o caos l fora em pouco teria sentido. O guarda
da esquina apitando e os pombos na calada. Tanto tempo sem dor no lhe
causava cansao. Havia vida l fora, rvores, carros, pessoas, bares e esperana.
Pegou a bolsa e saiu decidida a viver. Havia vida, compreenso e esperana.
Tudo l fora esperando e ela se daria de corpo e alma.
Cruzou com uma ratazana no corredor. Um susto. Desceu as escadas. A
luz do dia doeu nos olhos, mas a vida pulsava. Obrigado, meu deus! e caminhou
misturando-se s outras pessoas. Era a multido. Parou embaixo de uma placa de

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siga em frente. Estava calma e o nibus vinha na curva, veloz, de quarta. Ela
estava calma e pertencia multido sem rosto. Ningum viu. S depois, dez
segundos depois, quando algum disse: ela parece que est dormindo. O
motorista plido, afirmava que no teve culpa.
Ela parece que est dormindo. Quanta ironia!

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