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fiscais (em alguns casos tambm a salarial, quando adotada com o propsito de
estabilizador), as quais sero aqui denominadas de polticas instrumentais, pois
se voltam basicamente ao enfrentamento dos dilemas da conjuntura, contexto
em que no se pode ignorar a estabilidade como varivel relevante, e possuem
uma lgica prpria segundo determinados cnones assentados pela sabedoria
econmica convencional, para usar a expresso de Castro e Souza.7 Mas a
ao do Estado no campo econmico a elas transcende, pois este tambm
prope e executa medidas de maior envergadura, estruturais e institucionais,
com alcance de longo prazo e capazes de abrir novos caminhos e alternativas:
leis, cdigos, empresas estatais, rgos, conselhos, tratados internacionais e
projetos de impacto so aes governamentais que transcendem s polticas instrumentais, mas nem por isso podem ser negligenciadas pela Histria Econmica.
As polticas instrumentais muitas vezes so utilizadas como meio cujo fim a
prpria estabilizao; podem at colaborar para efetivao de projetos de maior
envergadura, mas nem sempre e, no raro, podem at afigurarem-se como
contraditrias a eles. Assume-se aqui como pressuposto por sua obviedade
que a relao entre estrutura e conjuntura no linear nem unvoca, posto que
permeada por variveis extraeconmicas, principalmente de cunho poltico.
A percepo de projetos de longo prazo, por parte do analista preocupado
em captar o sentido e intenes da ao governamental, torna-se mais vivel
ao se incorporar este outro conjunto de variveis. Em outro trabalho, sobre a
gnese do Nacional-Desenvolvimentismo na dcada de 1930, assumiu-se a
mesma metodologia para mostrar que j nesta se detectam evidncias quanto
existncia de um projeto de industrializao implementado e defendido de
forma deliberada e consciente pelo governo.8 A literatura econmica, em parte
por centrar-se nas polticas instrumentais, normalmente considera que isso s
teria ocorrido na dcada de 1950.
Com essas observaes em mente, enunciam-se as seguintes hipteses
de trabalho sobre o SGV:
Antonio Barros de Castro e Francisco Pires de Souza, A Economia Brasileira em Marcha
Forada, So Paulo, Paz e Terra, 1985, p. 27. A utilizao desta expresso deve-se ao fato
de ser mais abrangente que mainstream, pois supe tanto a ortodoxia como a heterodoxia.
Por exemplo: os pensamentos keynesiano, ps-keynesiano e estruturalista podem no fazer
parte da linha principal de hegemonia neoclssica, mas no so estranhos ao saber convencional dos economistas.
8
Pedro Cezar Dutra Fonseca, Sobre a Intencionalidade da poltica Industrializante no Brasil na Dcada de 1930. In: Revista de Economia Poltica, So Paulo, jan./mar. 2003, n. 89,
p.133-148.
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pblicas, o que abria espao a uma poltica stop and go executada em 1953,
mas no transigiria com relao a seus compromissos desenvolvimentistas e
sua aliana com os sindicatos trabalhistas.
Isto fica claro quando em maro de 1953 comeou em So Paulo um
movimento grevista, o qual, paulatinamente, espalhou-se pelo pas e configurou a maior greve at ento: a greve dos 300 mil. Apesar da presso da
grande imprensa em favor de uma atitude mais dura, o governo agia no sentido de impedir sua radicalizao, ao acenar mais com negociao do que com
represso, atitude interpretada como fraqueza ou condescendncia. Para os
polticos radicais da UDN a chamada banda de msica, pelo barulho que
fazia ficava evidente que o governo incentivava o movimento grevista para
acirrar os nimos contra os Estados Unidos, em uma clara atitude fomentadora
da anarquia e da luta de classes de inspirao comunista.
Assim, com um olho no cravo e outro na ferradura, ou seja, preocupado com o agravamento cada vez maior dos dficits pblicos e do balano de
pagamentos e com o crescimento da inflao, ao mesmo tempo em que os
movimentos sociais e sindicais se fortaleciam e radicalizavam, o governo em
junho de 1953 decidiu por uma reforma ministerial. O convite para Joo Goulart ocupar o cargo de Ministro do Trabalho dos argumentos mais fortes da
interpretao da virada nacionalista. Presidente nacional do PTB, Goulart
disputava com Vargas o posto de poltico mais odiado pela oposio udenista
(ttulo que, a partir da, lideraria disparado, s rivalizando com Leonel Brizola
no incio da dcada de 1960). Cabia a ele a negociao com os sindicatos e
desde a campanha do queremismo mostrara, aos olhos dos polticos tradicionais, ntidas inclinaes populistas, como receber os lderes sindicais os
pelegos, na linguagem oposicionista , com eles dialogar e acertar decises
e propostas, muitas das quais se tornavam bandeiras partidrias. Sua habilidade no tratamento inclusive com a esquerda mais radical causava surpresa
e repulsa: afinal, no era isso o que se esperava de um grande fazendeiro de
So Borja, conquanto restasse indagar o que haveria de inusitado nesse comportamento por parte de algum cujo papel era de lder trabalhista.39 Mas a
deciso de Vargas no consistia apenas um jogo de cena, porquanto reflete a
39
Dentre os trabalhos que analisam a atuao de Goulart neste perodo, ver: Jorge Ferreira,
O Imaginrio Trabalhista, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2005, cap. 2; Marieta de
Moraes Ferreira (org.), Joo Goulart: entre a Memria e a Histria, Rio de Janeiro, FGV, 2006;
e ngela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, Jango: as Mltiplas Faces, Rio de Janeiro, FGV,
2007, cap. II.
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clara deciso de no abrir mo de sua base sindical e de negociar com os movimentos grevistas. Afinal de contas, como falar em trabalhismo se a represso
substitusse a negociao?
Todavia, o desencadear dos acontecimentos mostra que a mudana ministerial no significou nenhuma virada. Primeiro, porque a atitude de Vargas
seja com relao ao movimento grevista seja com relao ao nacionalismo (PETROBRAS) no representou qualquer alterao substantiva ou reorientao
de poltica, pois a entrada de Jango, como era conhecido o ministro, apenas
mantinha e explicitava a opo pela postura pr-negociao que j vinha sendo
praticada. Segundo, porque, ao lado deste, convidou Osvaldo Aranha para o
Ministrio da Fazenda, em substituio a Lafer. Deciso tpica no da virada,
mas da randomizao, a qual demonstra sobretudo realismo poltico: Aranha
era o poltico brasileiro mais conhecido e respeitado nos Estados Unidos e
na comunidade financeira internacional, pea importante para representar o
governo brasileiro no exterior e encaminhar suas reivindicaes.
A deciso mais importante de Aranha para enfrentar o problema
cambial foi a Instruo 70 da SUMOC, de outubro de 1953. Esta, apesar de
representar uma tentativa de estabilizao e receber manifestaes de apoio
at de segmentos tradicionais de oposio a Vargas, como importadores e
exportadores, demonstra que o governo mantinha seus compromissos com
o que se denominaria posteriormente de Nacional-Desenvolvimentismo. E,
mais uma vez, que no havia incompatibilidade a priori entre este e a busca por
estabilidade, alm de reiterar que o SGV no se enquadra na definio de populismo econmico de Dornbusch e Edwards. A leitura da Instruo mostra todo
o cuidado de caminhar num fio de navalha e costurar uma tentativa voltada a
reverter os problemas cambiais sem comprometer o crescimento econmico
e o projeto de industrializao. De um lado, a Instruo trouxe o monoplio
cambial ao Banco do Brasil e introduziu o sistema de leiles de cmbio em
substituio aos licenciamentos. A administrao poltica do cmbio continuava
ao estabelecerem-se cinco faixas para importao, de acordo com a essencialidade, para as quais haveria alocao especfica de montantes de divisas a
serem leiloadas. Permanecia no papel um dlar oficial fixo (Cr$ 18,50), mas
na prtica este era acrescido de um gio decorrente do leilo. Ou seja, para
todos os efeitos houvera uma desvalorizao cambial, pois o preo do dlar
aumentara em todas as faixas, embora mais para os bens considerados menos
essenciais (encareceram-se significativamente as importaes destes, pois
cerca de 80% das divisas leiloadas destinavam-se s trs primeiras faixas).
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aos exportadores acima do dlar oficial representou uma nova fonte de receita
para o setor pblico, importantssima em conjuntura de dficit oramentrio
e de difcil sustentao poltica para aumentar impostos. Este subproduto
da Instruo por certo contribuiu para a longa vida do sistema de leiles de
cmbio, at o governo Jnio Quadros. Nem mesmo Eugnio Gudin, Ministro
da Fazenda de Caf Filho, e famoso por suas diatribes ao desenvolvimentismo,
heterodoxia e industrializao, teve coragem de extingui-lo. Como se v,
o pragmatismo sobrepujar a ideologizao no era privilgio de Vargas, apesar
de seu caso ser mais lembrado pela literatura...
Entretanto, se havia certo otimismo quanto s expectativas futuras,
no se esperavam resultados imediatos. Como si acontecer com alteraes
nas polticas monetrias e cambiais, faz-se necessrio um tempo de maturao
para se colherem frutos. Enquanto isso, a inflao se acelerava e alcanava
cerca de 20% ao final de 1953, porcentagem igual ao crescimento das despesas
da Unio no ano. Avolumavam-se os atrasados comerciais e a maior expanso
anual, em cerca de 90%, ocorrera com o crdito ao Tesouro por parte do Banco
do Brasil, a evidenciar a poltica monetria expansionista praticada.41 Aranha
parecia disposto a voltar fase Campos Salles, se necessrio fosse (ao que
consta, a frmula Campos Salles-Rodrigues Alves fora sugesto dele a Lafer,
no incio do governo); mas no havia mais condies polticas para isso nem o
presidente mostrava-se inclinado a esta mudana de rota. O quadro agravou-se
com a divulgao de um estudo do Ministrio do Trabalho, vazado imprensa, com a proposta para apreciao presidencial de aumento de 100% para o
salrio mnimo. Fato inusitado: gradualmente o palco dos acontecimentos da
rea econmica, para onde normalmente se voltam as atenes, no era mais
o Ministrio da Fazenda, mas o do Trabalho. Tudo sugere que Jango contava
com o aval de Vargas, pois passou a defender energicamente a proposta de
aumento, enquanto a grande imprensa e as associaes patronais majoritariamente a rejeitavam. O clima de radicalizao comeava a ganhar proporo
nunca vista; sem centro no campo poltico com capacidade de mediao, a
diviso do pas em dois blocos antecipava 1964. Era o fim da randomizao
e o incio do fim do SGV.
A aproximao da UDN com os quartis vinha de longa data: desde
o final do Estado Novo, quando Vargas fora derrubado e sufocado o queremismo. Com a crise, retomava agora seu mpeto e em janeiro de 1954 o
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O conjunto de medidas encontra-se arrolado em: Fonseca, op. cit., 1989, p. 450.
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considerados essenciais por seu projeto poltico. Com uma tacada encarecia
os bens no essenciais, fomentando sua substituio de importaes, e barateava relativamente os essenciais; e, em adio, criava uma receita adicional ao
governo com a diferena da conta gio menos bnus. Esta tentativa de buscar
a estabilizao sem perder a batalha da produo, como Vargas se referia
em seus discursos, revela outra forma de administrar a crise, e diversa da que
criticaria no Governo Dutra, a quem atribua a prioridade pelo arrocho fiscal e
monetrio. Pode-se ilustr-la com outros exemplos, inclusive de seu governo
anterior, especialmente no Estado Novo, quando, em 1944, o Imposto sobre
Lucros Extraordinrios, com o qual se pretendia ao mesmo tempo combater
a inflao e criar um fundo compulsrio para canalizar os lucros para financiar reposio de capital fixo e novos investimentos no futuro. Atravs deste
mecanismo, taxavam-se excedentes que poderiam ser destinados a consumo
correntes para reorient-los compra de Certificados de Equipamentos, os
quais os empresrios poderiam adquirir pelo valor correspondente ao dobro
do imposto devido com rendimentos de 3% ao ano e passveis de resgate em
moeda internacional, desde que importassem bens de capital segundo prioridades estabelecidas pelo governo.46
Em sntese: parece totalmente imprprio pretender criticar a existncia
do projeto Nacional-Desenvolvimentista com base na adoo de polticas
de estabilizao, ortodoxas ou no, por parte dos governos, ou denunci-los
como conservadores ou dbios, como se os mesmos devessem ignorar os
problemas macroeconmicos conjunturais em nome de uma coerncia abstrata
com um modelo ideal de comportamento. Faz-se mister ter presente que, do
ponto de vista metodolgico, Nacional-Desenvolvimentismo e polticas de estabilizao possuem diferentes escopos; como categorias, expressam fenmenos que no
se excluem nem a priori nem historicamente: o primeiro aponta para um projeto
de longo prazo (muito alm de um plano de governo ou de execuo de
metas planejadas pelos policymakers), enquanto as segundas dizem respeito
ao manejo das polticas econmicas instrumentais (monetrias, cambiais e
fiscais). No se nega a relao entre ambos, como evidenciam os exemplos da
Instruo 70 da SUMOC e o Imposto sobre Lucros Extraordinrios; mas esta
relao no absoluta nem necessria. No fossem todas as razes j expostas,
deve-se ter presente que a ao do governo transcende a estas polticas econmicas instrumentais. No caso, as leis e demais medidas nas reas do trabalho, da
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ordem econmica internacional e o caminho para a superao viria pela industrializao atravs da substituio de importaes e pela diversificao da
produo agrcola, com prioridade ao mercado interno. Tratava-se, portanto,
de um projeto de desenvolvimento capitalista, mas no conservador, posto que
visava fundamentalmente transformao de marcos estruturais da sociedade
brasileira: de agrria para industrial, de rural para urbana, de atrasada para
desenvolvida, de subordinada internacionalmente para mais autnoma, de
exportadora para voltada ao mercado interno, de altamente especializada no
mercado internacional para diversificada, e, finalmente, de renda concentrada
para mais bem distribuda.
Obviamente que estas transformaes de vulto nada desprezvel no
contexto latino-americano no significavam parte da caminhada em direo
ao socialismo, para desgosto de parte de seus opositores, nem mesmo como
uma etapa de preparao a ele, como pensavam outros segmentos da esquerda
da poca. Mas traziam consigo tambm a proposta, ento expressa no trabalhismo, de uma sociedade mais justa e equilibrada, em consonncia ao que
Bobbio define como esquerda: mais igual.49 Sua utopia residia ao atribuirse o papel de sujeito da histria e, em decorrncia, propor-se a construir nova
sociedade, com base em polticas de desenvolvimento acelerado capitaneadas
pelo Estado sonho compartilhado pelos crticos do capitalismo, com exceo
dos anarquistas, desde a Revoluo Industrial. Um dos maiores equvocos
de parte de seus crticos querer definir o Nacional-Desenvolvimentismo
como deveria ser, ou como gostaria que fosse, em vez de limitar-se a buscar
entender como historicamente se apresentou, com suas propostas de envergadura, suas contradies, seu pragmatismo e utopia, como elementos e facetas
necessariamente integrantes de todo projeto poltico. Por exemplo: como
tal, o projeto no exclua o capital estrangeiro: seu nacionalismo, mesmo que
por vezes de retrica exacerbada, no significava xenofobia, mas limitava-o a
determinadas reas e propunha-se a regulament-lo o que potencialmente
representaria choque de interesses, como por ocasio da Comisso Mista
Brasil-Estados Unidos com Eisenhower. O projeto nacional era produzir ao
e resguardar os minrios e o petrleo sob o controle nacional, mesmo que
recorresse a tecnologia e financiamento externo, como procedeu Vargas na
famosa barganha entre Estados Unidos e Alemanha para a construo da
Norberto Bobbio, Direita e Esquerda; Razes e Significados de uma Distino Poltica, So
Paulo, UNESP, 1995.
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