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Liberalismo e conservadorismo em

Eugênio Gudin: uma reflexão a partir de Foucault


Liberalism and conservantism in
Eugênio Gudin: a reflection from Foucault

Neilaine Ramos Rocha de Lima*

Resumo: Todo conceito carrega uma Abstract: Every concept carries a


historicidade, e esse é o caso dos conceitos historicity, this is the case of the concepts
de conservadorismo e liberalismo, of conservatism and liberalism, known
conhecidos como “conceitos de as “motion concept” because they have a
movimento”, por terem uma grande wide range of meanings accompanying
variação de significados que acompanha context. By observing the ideals of
seu contexto. Por meio da observação do intellectual Eugênio Gudin, known as
ideário do intelectual Eugênio Gudin, reference of Brazilian liberalism in the
conhecido como referencial do twentieth century, as well as conservative,
liberalismo brasileiro no século XX e mainly after advocating military
também como conservador, intervention in 1964, the article in
principalmente após defender a question sought to understand the
intervenção militar em 1964. O artigo relationship between both concepts:
em questão busca compreender a relação conservatism and liberalism, based on
entre ambos os conceitos: Foucault’s reflections, through the
conservadorismo e liberalismo, tendo elaboration of the concept of biopolitics,
como base as reflexões de Foucault, which proposes an analysis that
através da elaboração do conceito de emphasized the incompatibility of the
biopolítica. Esse propõe uma análise que two concepts in contemporary from the
aponta à incompatibilidade dos dois recoding of concepts such as social justice,
conceitos na contemporaneidade a partir equality and State.
da recodificação de conceitos tais como: Keywords: Conservatism. Liberalism.
justiça social, igualdade e Estado. Gudin. Foucault.
Palavras-chave: Conservadorismo.
Liberalismo. Gudin. Foucault.

*
Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) Júlio de Mesquita
Filho. Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá. Professora na Univer-
sidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]

160 MÉTIS: história & cultura – v. 15, n. 29, p. 160-177, jan./jun. 2016
Introdução
Estudar um intelectual hoje, no campo da história, não é apenas
reproduzir seus principais postulados, ou pesquisar suas influências
majoritárias, mas é, com efeito e de praxe responder às questões de uma
plateia anônima, dentro ou fora de nós, que coloca o historiador em
uma cadeira de interrogatório acerca dos conceitos em que uma série de
rótulos deve ser descartada ou acatada, para, enfim, descrevermos quem,
de fato, era o pensador em quem escolhemos nos debruçar. Porém esse
exercício é deveras complicado em um contexto em que os conceitos
estão, cada dia, mais relativos, e os referenciais se misturam,
principalmente no que diz respeito ao campo da política, como é o caso
dessas questões, das quais nem todas serão alvo de nossa discussão: O
que é direita? Esquerda? Ou o que é conservador? Socialista? Liberal?
Para tal fim, observa-se a importância da história conceitual, que
nos lembra da relevância da análise desse conceito ao longo do tempo.
Esse campo da história considera que todo conceito carrega em si uma
historicidade, portanto não é algo estático, mas possui um movimento.
O objetivo deste artigo é analisar um caso de uso do conceito que
gerou uma intensa polêmica. É possível o casamento de dois conceitos
que, em tese, estariam distantes? Liberalismo e conservadorismo podem
se completar?
O caso em questão levanta a polêmica sobre um dos liberais
brasileiros de maior destaque no século XX: Eugênio Gudin. Esse foi
considerado por grande parte da literatura como um “liberal
conservador”, porém, coetaneamente, Hayek – um dos referenciais do
liberalismo do século XX – escrevia um texto polêmico entre os liberais,
o qual elencava argumentos para não se considerar um conservador,
distanciando esses dois conceitos. Tal fato despertou o interesse de
Foucault para uma revisão do liberalismo que Hayek defendia,
desmistificando ideias existentes acerca desse pensamento.
Cabe, agora, visualizarmos elementos do caso Eugênio Gudin, bem
como as análises da história conceitual, que nos levam até a reflexão de
Foucault (2008) acerca dos conceitos em questão.

O caso Eugênio Gudin


A historiografia relata que, após a Segunda Guerra Mundial, surgiu
um movimento intelectual de ataque ao intervencionismo estatal,

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cristalizado na teoria keynesiana e no chamado Welfare State. Esse
movimento teve como objetivo a defesa do liberalismo, em decorrência
do contexto que o pós-guerra apresentava: a necessidade de maior
intervenção estatal na economia. A esse movimento se convencionou
dar a nomenclatura de neoliberalismo, que seria o liberalismo clássico
adaptado ao contexto que o século XX apresentou. (ANDERSON, 1995).
Alguns intelectuais se destacaram nesse movimento: Hayek, Mises,
Popper, Friedman, etc. Em 1947, esses e outros intelectuais, que
partilhavam do mesmo ideário, se reuniram na Suíça, em Mont Pelérin.
Essa reunião deu início a Mont Pelérin Society, uma organização em defesa
do liberalismo, bem como do Estado mínimo. A Mont Pelérin Society se
tornou uma organização internacional, sendo que, no Brasil, teve como
um dos seus integrantes o economista Eugênio Gudin, que seguiu a
tendência de crítica ao intervencionismo, que, no Brasil, se materializava
no pensamento desenvolvimentista.

Gudin ajeita os seus princípios liberais dentro das novas necessidades


que a classe dominante tem de garantir as bases da acumulação
capitalista. Sua concepção de Estado é paramentada na lógica do
capitalismo do mundo pós-II Guerra, que coaduna-se com sua proposta
do novo liberalismo. (BORGES, 1996, p. 100).

É importante salientar que não foi comum a aceitação da


nomenclatura neoliberalismo. Em sua maioria, os intelectuais ligados a
esse movimento se diziam liberais, por esse motivo, neste trabalho, não
se denomina Gudin como um neoliberal, mas como o próprio se
considerava, um liberal. Porém, nas reflexões de Foucault (2008), o
termo utilizado é neoliberalismo, até porque o autor é um dos poucos
teóricos que avançam na reflexão acerca desse movimento do século XX,
apontando seus elementos singulares, sendo que um deles seria o
rompimento com o pensamento conservador.
Após essas considerações preliminares, cabe, agora, observar a figura
de Eugênio Gudin e seu pensamento liberal.
Eugênio Gudin (1886-1986), conhecido por ser um dos pais do
liberalismo moderno no Brasil, teve forte influência na formação de
vários economistas de destaque no meio político, como é o caso de Roberto
Campos e Bulhões. Gudin fez escola principalmente a partir dos anos

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1940, quando teceu fortes críticas ao desenvolvimentismo, ideário que
sempre combateu, tendo em vista a sua repulsa à intervenção estatal na
economia. Cumpre destacar, porém, que um fato cristalizou um rótulo
conceitual ao seu pensamento: ao defender a intervenção militar em
1964, Gudin carimba, em sua imagem, o conceito de conservador.
Tendo em vista um contexto de turbulência revolucionária das ideias
comunistas, ser conservador seria manter o status quo em face dessa
ideologia que representava uma ameaça ao Estado de Direito, mas, ao
mesmo tempo, nos faz pensar que o liberalismo defendido por Gudin
tinha um discurso de mudança tão forte, que apenas a ameaça à
propriedade privada poderia deter décadas de crítica à ação do Estado
intervencionista, que, para o economista, teria gerado atraso econômico
no Brasil.
Eugênio Gudin, homem de seu tempo, logrou notoriedade histórica,
política e acadêmica; suas ideias e escritos se cristalizaram em grande
parte da historiografia, da literatura jornalística e da mídia em geral.
Autor controverso, Gudin deu origem a diferentes correntes
historiográficas interpretativas de seu pensamento. Para um autor
polêmico e influente, não é senão mister assinalar as principais ideias e
concepções acerca do seu significado, o que aqui se fará situando-o à luz
da matriz interpretativa, que consubstancia a identidade intelectual desta
pesquisa, em polêmicas, debates, posições políticas e predições
econômicas, que compuseram o arcabouço teórico hodiernamente
reunido sob os auspícios do nome Eugênio Gudin.
Nos idos das décadas de 1950 e 1960, no Brasil, as divergências
acerca dos rumos da economia passaram por uma fase de intensa agitação.
Uma miríade de concepções e ideias entrou em conflito:
desenvolvimentismo, socialismo e liberalismo. Foi nesse momento que
o economista Eugênio Gudin teve inserção, ocupando um lugar ímpar
de líder intelectual e scholar da economia político-clássica no Brasil. As
medidas políticas, o seu cabedal intelectual, formado pela sua
proximidade com a Escola Austríaca de Economia, guindaram o nome
de Gudin a um marco da história do pensamento,como aponta Abrahão:

A história da vida intelectual e profissional do professor Eugênio Gudin


se confunde com a história do pensamento liberal no Brasil, tanto em
função de sua imensa e ativa participação na vida política brasileira,

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como no fato de que em seus 100 anos de vida, grande parte deles foi
dedicada às reflexões acerca dos problemas brasileiros. (ABRAHÃO, 1999,
p. 49).

Gudin foi um dos grandes críticos do Estado. Em seus artigos


jornalísticos, deixou clara sua marca de defesa da livre-iniciativa e sua
repulsa ao intervencionismo. Contudo, há um momento da história em
que o economista, adepto dos preceitos da democracia, se viu diante de
um contexto que acreditava ser uma grande ameaça ideológica que poderia
comprometer todo o sistema democrático e capitalista existente no Brasil:
o ideário socialista e a recente revolução socialista em Cuba, que causaram
uma evidente preocupação, segundo os escritos do intelectual.

A Revolução de 1964 foi uma medida de salvação pública, promovida


pela avalanche da opinião do país e apoiada nas Forças Armadas, contra
a subversão de poderes e valores humanos, contra o solapamento
sistemático da hierarquia, contra o caos econômico e financeiro e contra
a desordem social. O objetivo primacial da Revolução foi portanto o da
restauração da Ordem, ordem social, ordem militar, ordem econômica.
(GUDIN, 1970, p. 84).

Diante dos fatos, as ideias se rendem à defesa da liberdade


econômica, da liberdade política é negociável, e o rótulo de conservador
se prende ainda mais à figura desse intelectual. Para grande parte da
historiografia, aliar conservadorismo ao liberalismo não representa
nenhum problema conceitual, porém, ao observar as ideias de Michel
Foucault (2008) e sua interpretação da relação entre ambos os conceitos,
verificamos que essa relação conceitual é muito mais complexa.
Antes de prosseguirmos, faz-se necessária uma breve explanação
teórica acerca da história conceitual e dos chamados conceitos de
movimento, ou “ismos”.

Considerações teóricas: conceitos de movimento


Koselleck (2006) aborda questão relativa à dimensão pragmática
dos conceitos de movimento e observa a natureza dos conceitos que se
transformam em “ismos”. Esses conceitos se legitimam no tempo, em
um tempo em que se justifica e, de forma prática, se constitui como

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uma perspectiva progressiva, tornando-se, assim, alternativas temporais.
Esses são os chamados “conceitos de movimento”, extremamente
suscetíveis à ação do tempo na ampliação do próprio conceito.

A temporalização, portanto, não apenas transformou velhos conceitos


políticos, como ajudou também a criar novos, todos encontrando seu
denominador temporal comum no sufixo “ismo”. O que eles possuem
em comum é basearem-se apenas parcialmente na experiência. A
expectativa que depositam no tempo que está por vir está em proporção
inversa à experiência que lhes falta. Trata-se de conceitos de compensação
temporal. A fase de transição entre passado e futuro continua a ser
escrita como um caleidoscópio por cada novo conceito. (KOSELLECK,
2006, p. 297, grifo do autor).

Os conceitos de movimento, “ismos”, possuem elementos temporais


de mudança, ou seja, um fenômeno de temporalidade afeta esses
conceitos, pois são suscetíveis às três dimensões temporais, mais voltadas
ao presente, ou ao passado, ou ao futuro.
As considerações de Koselleck (2006) nos fazem analisar os conceitos
de liberalismo e de conservadorismo, partindo do pressuposto de que
ambos os conceitos são “conceitos de movimento”, possuindo uma
natureza de autoafirmação que parte do próprio contexto.
Outra questão relacionada a esse tipo de conceito é seu caráter
político e social, fazendo desse um instrumento de “controle do
movimento histórico”. Há uma forma de ideologização dos oponentes,
fazendo parte, assim, de um aspecto do controle político da linguagem.
Todavia, esse fato só foi possível após as Revoluções Francesa e Industrial,
pois se inaugura um mundo que perde sua experiência e, por isso, se
abre para novas expectativas. A reorganização da sociedade necessitava
recorrer à “antecipação do futuro”, porque, “por razões morais, econômicas,
técnicas ou políticas, esses conceitos exigem fins que abrigam desejos
maiores do que até então a história pudera satisfazer”. (KOSELLECK, 2006,
p. 300).
O liberalismo de Eugênio Gudin se alia à ideia de conservadorismo,
na busca de desenvolver propostas políticas para erradicação do
comunismo. O casamento entre ambos os conceitos se apresenta como
solução política, diante do que se imaginava ser um problema: o avanço das
reformas sociais e do pensamento comunista na América Latina e no Brasil.

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Nesse contexto conceitual, o pensamento de Gudin é resultado de
um momento de debates, que possibilita diferentes soluções políticas.
Isso é o que Koselleck (2006) conceitua como “crítica ideológica”: a
busca por desmascarar ou desvendar os erros do outro, o ato de conservar
o que seria bom à sociedade, no caso a propriedade privada, e o apoio à
intervenção política para esse fim.
Para Koselleck (2006), a generalização desses conceitos abre um
leque infindável para seus usos; nesse sentido, diversos partidos se
utilizam de um mesmo conceito, mas em diferentes perspectivas. Esse
fenômeno provoca o acirramento de disputas pela interpretação política
autêntica.

Uma crítica ideológica que procede assim argumenta com conceitos de


movimento, cuja prova só pode ser apresentada no futuro. O adversário
cai em um dilema argumentativo. A escala histórica do tempo, com
que ele é medido, é uma escala móvel. Por um lado, declara-se que sua
posição atual é historicamente condicionada, de modo que ele não
pode a ela escapar, nem ultrapassá-la. Por outro, a mesma posição pode
se inscrever no futuro, como utópica, de modo que não seja realizável,
ou então no passado presente, de modo que de fato já está superada,
atrasada, vencida. (KOSELLECK, 2006, p. 302).

Os conceitos de movimento são, pois, fruto da modernidade, que


indicam as transformações sociais e políticas e formatam a crítica
ideológica e elementos linguísticos de elaboração da consciência;
contudo, não podem ser testados ou até mesmo qualificados no presente,
já que apontam a uma concretização futura, se constituem no presente
a partir do debate. Assim, na prática, se formatariam no presente, na
busca de um horizonte de expectativa, à procura de soluções para o
futuro.
Cabe, agora, observarmos a análise de Foucault e sua contribuição
para esta reflexão acerca da temática.

O nascimento da biopolítica
Primeiramente, é importante salientar um dos objetivos de Michel
Foucault (2008) no curso ministrado no Collège de France, entre 1978
e 1979, que se cristalizou na obra O nascimento da Biopolítica, fonte

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principal do presente trabalho. Na obra em questão, o autor buscou
compreender, de forma sistemática, o neoliberalismo, tendo como ponto
de partida questões de seu presente, relacionadas às formas de poder,
tema constante em suas pesquisas; porém, focalizou uma das questões
principais do pensamento neoliberal que não seria o conceito de liberdade
em si, mas de pluralidade, uma pluralidade que conceberia uma
governamentalidade,1 totalmente avessa ao conservadorismo.
Cabe observar que, partindo de Foucault (2008), no final do século
XVIII, nasceria uma nova tecnologia de poder, não descartando a
sociedade disciplinar,2 mas se respaldando nela, surgindo o biopoder.
Conforme Santos (2013), os dispositivos disciplinares agiriam no corpo
do indivíduo; por outro lado, a biopolítica agiria em um plano maior, no
indivíduo como espécie humana. O foco, portanto, passa a ser a
população, a estatística, a demografia. Outros mecanismos buscariam
detalhar, organizar e classificar essa população. A biopolítica incluiria a
noção de um novo poder que complementa a noção de soberania: “deixar
viver e fazer morrer”. Nessa perspectiva, o neoliberalismo estaria próximo
da razão política da biopolítica, quando se aproxima do cálculo biopolítico.
Para Lagasnerie (2013), Foucault, ao contrário de grande parte dos
intelectuais, ministrou um curso acerca de liberalismo e neoliberalismo
com aspectos não críticos, o que foi visto por alguns como um sintoma
de inclinação a esse ideário e, por outros, como uma maneira diferente
de estudar a teoria liberal. O que fica evidente para Lagasnerie (2013) é
que existiria um interesse, da parte de Foucault, de desmistificar o
pensamento simplista dado ao neoliberalismo, que, para Foucault,
limitaria a análise dessa teoria e, consequentemente, impediria a análise
da singularidade dessas ideias.

A Foucault, ele oferece uma oportunidade de imaginar outras formas


de olhar a realidade. Poderíamos quase dizer que ele funciona como
uma espécie de higiene mental destinada a submeter a uma interrogação
radical as categorias de pensamento e percepção que adotamos sem nos
dar conta. (LAGASNERIE, 2013, p. 27).

Neoliberalismo e conservadorismo
Observando o objeto em questão, visualizamos que grande parte
das análises produzidas pela historiografia33 Algumas obras importantes
na linha do pensamento de Eugênio Gudin, caracterizam-no como um

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economista conservador. Esse termo sempre esteve associado ao fato de
Gudin ser liberal. Porém, partindo de uma reflexão proposta por Michel
Foucault (2008) e de uma prévia análise das ideias de Gudin, pode-se
estabelecer uma reflexão divergente de grande parte das abordagens até
então realizadas acerca do tema. Sendo assim, cabe agora resgatar o
conceito de conservadorismo e observar sua relação com o neoliberalismo.
Em síntese, Gudin acredita na força do mercado, na sua “mão
invisível”, na possibilidade de que o mercado tem de, em condições de
liberdade, propiciar uma alocação de recursos eficientes que distribua a
riqueza naturalmente. Sua forte crítica ao Estado intervencionista e
planejador demonstra que Gudin acreditava no poder da ordem
econômica que o mercado poderia gerar, e que esse processo não seria
bem-sucedido com o excesso de intervenção do Estado. O economista
visualiza a ação de planejar, na concepção do desenvolvimentismo, uma
ação que cerceia as ações humanas. O planejamento, que impunha
determinadas condições, tarefas ou caminhos, estipulando metas e regras,
que buscavam projetar o futuro desenvolvimento para o País, era norteado
pela ideia de que elementos complexos da vida social, como a economia,
poderiam ser simples e quantitativamente medidos e previsíveis. Isso
não tira o caráter do economista de se fundamentar na economia analítica,
pelo contrário; Gudin (1965) expõe a necessidade de serem seguidos
princípios básicos da economia; aponta que não era uma questão
meramente de contexto, mas que existiam leis de economia que são
inquestionáveis e de profunda importância para se compreender o próprio
mercado, e são essas leis que fundamentam a crença na política econômica
nesse mercado. Porém, a simples existência desses dados e informações
não seria suficiente para a elaboração de axiomas, que serviriam para
sustentar planos universais.
Assim, a economia teria uma função para Gudin, qual seja a de, por
meio de suas teorias, auxiliar a política, para que uma oriente a outra
em busca de que o processo natural do mercado aconteça. Gudin não
tem um plano, ou simplesmente uma solução, não tem uma estratégia
com início, meio e fim. Na sua visão de economista político, o
neoliberalismo não tem um plano ou projeto, mas seus princípios se
fundamentam na economia de livre-mercado. Essa fornece elementos
para se compreender que a complexidade do ser humano só permite ao
homem fazer estimativas, pela via dos estudos da ação do homem e sua
ressonância, estimativas que acreditem ser a liberdade da iniciativa privada
o melhor caminho ao desenvolvimento.

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Para entender o pensamento liberal acerca do conservadorismo, é
imprescindível recorrer a Auguste Von Hayek, que nasceu em Viena,
em 1899, cujos estudos trouxeram contribuições importantes aos ramos
da psicologia, da teoria do Direito e economia. Em 1974, Hayek ganhou
o Prêmio Nobel por seu trabalho acerca da teoria da moeda e flutuações
econômicas. Foi um dos expoentes da Escola Austríaca, considerado um
dos principais liberais do século XX, por mostrar novas análises às ideias
liberais. As ideias de Hayek assumem grande importância por servirem
de contraponto teórico ao crescimento socialista, que propunha um
modelo econômico pré-planejado. Ademais, o autor foi um dos liberais
mais citados nos cursos de Foucault.
Para Hayek (1983) as circunstâncias em que um indivíduo vive
levam-no, de forma inconsciente, a concretizar determinadas ações que
colaboram para o seu bem-estar. Sendo assim, a racionalidade que o
indivíduo aplica, para pensar seu contexto, não é cartesiana, exata,
perfeita, pois nenhum indivíduo possui todas as informações ou
conhecimentos que lhe possibilitem planejar e predeterminar os fatos.
Seu conhecimento é limitado, sendo a confiança no inesperado sua opção
mais coerente. Segundo Lagasnerie (2013), nesse ponto, estaria uma
das aproximações com a visão de Foucault, um crítico dos limites da
racionalidade hegemônico-científica.
Tendo em vista o fato de a sociedade ser composta por inúmeros
indivíduos com um complexo universo de sentimentos, características,
ambições diferentes, torna-se impossível alguém (ou até mesmo um
grupo) deter o conhecimento que explicaria as ações desses indivíduos.
Desse modo, não há um universo de informações que possa prever o
controle das relações sociais, que possa avaliar a necessidade dos
indivíduos, suas carências e seus desejos. Um determinado grupo no
controle do Estado não tem condições de determinar o que a sociedade
necessita ou não; isso só é revelado pela própria sociedade, pela busca
individual que ocorre quando esses indivíduos estão em condições de
liberdade. Quem valoriza determinado caminho a seguir, quem escolhe
determinada ação é o indivíduo, e a soma dessas ações convergentes, ou
não, expressa a vontade comum e seleciona as melhores direções que
possibilitem o bem-estar da maioria.

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O erro característico dos racionalistas construtivistas a esse respeito é
tenderem a fundamentar sua argumentação no que foi chamada de
ilusão sinótica, ou seja, na ficção de que todos os fatos relevantes são
conhecidos por alguma mente e que é possível construir, a partir desse
conhecimento dos fatos particulares, uma ordem social desejável. Às
vezes essa ilusão é expressa com tocante ingenuidade pelos entusiastas
de uma sociedade deliberadamente planejada, como ocorre quando
um deles sonha com o desenvolvimento da arte do pensamento
simultâneo: a capacidade de considerar ao mesmo tempo um número
imenso de fenômenos correlatos e de compor num único quadro os
atributos qualitativos e quantitativos desses fenômenos. (HAYEK, 1985,
p 8).

Segundo Foucault (2008), o neoliberalismo se destaca no contexto


das ideias atuais, pois propõe uma crítica à razão do Estado que se torna
singular. Apresenta-se como uma filosofia crítica à “razão do Estado”,
rompendo com a tradição iluminista. O liberalismo é uma constante
crítica à realidade e, nesse ponto, Foucault se aproximaria do liberalismo,
segundo Lagasnerie (2013).
Na sua obra Os fundamentos da Liberdade, Hayek (1983) focaliza as
incompatibilidades entre o termo conservadorismo e as ideias de
liberalismo, expondo, então, o seu conceito de conservadorismo. Para
esse estudioso, o conservadorismo não oferece nenhum objetivo
alternativo; a primeira faceta desse conceito aponta a que o conservador
tende a optar pela situação presente, não acreditando em mudanças,
uma vez que, “o verdadeiro conservadorismo é uma atitude legítima,
provavelmente necessária, e com certeza bastante difundida, de oposição
a mudanças drásticas”. (HAYEK, 1983, p. 467).
O sentido de estagnação também faz parte do conceito de
conservadorismo, que seria “conservar algo já existente”. O liberalismo
pretende tomar caminhos que reforcem o avanço e a não estagnação.
Aqui se observa um dos elementos da pluralidade do neoliberalismo
que não concebe um caminho à sociedade, mas caminhos, diferentes
possibilidades formatadas por diferentes indivíduos. Esses elaborariam,
por parte, de forma consciente, utilizando dados, números, leis
econômicas, caracterizando-se, nesse contexto de biopolítica, mas também
por parte, de forma inconsciente, pois a constituição de cada indivíduo
se insere em um universo complexo de valores, emoções, sentimentos,
desejos não quantificáveis ou verificáveis. A relação de todas essas

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características moveria a ação do homem, promovendo, em um contexto
de liberdade de troca, as melhores instituições e normas sociais. Mas,
para que isso aconteça, os obstáculos a essa evolução espontânea precisam
ser afastados, pois sua defesa se pauta pelo caminho natural da sociedade
e do mercado.
Nesse sentido, reside uma nova perspectiva acerca do pensamento
de Gudin. Esse economista trabalha, por meio de seu discurso, no
sentido de barrar as forças revolucionárias socialistas que ganhavam
expressão no Brasil, no início da década de 1960, apoiando o Golpe
Militar, portanto sua ação não foi apenas a de conservar algo que já
existia, mas ter condições para que as mudanças pudessem, de fato,
existir. Sem a liberdade econômica, não seria possível obter a evolução
espontânea do mercado que geraria os desenvolvimentos político e
econômico.
Outro elemento existente no conservador e que não se encontra no
liberal é o fato de que o liberalismo pressupõe a existência de coragem
para se acreditar nas mudanças não planejadas e, de certa forma,
imprevisíveis. Na medida em que o mercado funciona sob a influência
da cadeia de valores e interesses de diferentes indivíduos que formam a
sociedade, estará alheio às mudanças que, muitas vezes, não são
quantificadas por serem espontâneas. A certeza que se tem é que há o
aumento de capital com um mecanismo eficiente de distribuição de
riqueza, porém não se tem um caminho predeterminado para isso.

Com isso, chegamos ao primeiro ponto no qual as atitudes liberais e


conservadoras diferem radicalmente. Como muitas vezes os escritores
conservadores reconheceram, uma das principais características da
atitude conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida
em relação ao novo enquanto tal, ao passo que a posição liberal se
baseia na coragem e na confiança, na disposição de permitir que as
transformações sigam seu curso, mesmo quando não podemos prever
aonde nos levarão. (HAYEK, 1983, p. 469).

Os conservadores tendem a utilizar os poderes do governo para


impedir mudanças ou limitar seu âmbito, impor regras e planos que
ditam a vida econômica, apontar à busca de racionalizar o
desenvolvimento, o que ocorreu nos governos desenvolvimentistas, tanto
no momento democrático quanto após o golpe militar. Gudin ressalta o

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caráter do liberalismo, qual seja o de ser um pensamento que não se
apresenta como uma ideologia, pois não tem um plano ou projeto.

O chamado “capitalismo” não é ideologia e muito menos mística. Nunca


foi planejado. Cresceu e se desenvolveu à medida das necessidades,
formando o sistema através de uma longa série de instituições, como
preços de mercado, sistema bancário, letra de câmbio, sociedade
anônima, venda a prestações, etc. (GUDIN, 1965, p. 203).
Em última análise, a posição conservadora baseia-se no princípio de
que, em qualquer sociedade, há indivíduos reconhecidamente
superiores, cujos valores, padrões e posições, sua herança espiritual,
precisariam ser protegidos, e que deveriam exercer maior influência
nos assuntos públicos do que os demais. Obviamente, o liberal não
nega que existam pessoas superiores; ele não é um defensor do
igualitarismo. O que ele nega é que qualquer um possa ter a autoridade
de decidir quem são essas pessoas superiores. Enquanto os conservadores
tendem a defender uma determinada hierarquia estabelecida e
pretendem que a autoridade proteja o status daqueles que eles prezam,
os liberais acreditam que não haja respeito por valores estabelecidos
que justifique o recurso ao privilégio ou ao monopólio ou qualquer
poder coercitivo do Estado, para proteger estas pessoas das forças da
transformação econômica. (HAYEK, 1983, p. 472, grifo nosso).

Uma das ideias principais existentes nos escritos de Gudin foi a


discussão acerca do intervencionismo: o economista acredita que esse
excesso de autoridade dada ao Estado, que privilegia certos setores da
economia, muitas vezes, não beneficia toda a sociedade. Por outro lado,
a iniciativa privada é movida por seus interesses e, por isso, conhece
bem suas necessidades. Assim, esse indivíduo, formador da iniciativa
privada, portanto, detém conhecimento para fazer as mudanças, a fim
de alcançar seu bem-estar. O “novo” estaria intrínseco ao caráter humano,
e a mudança estaria na rota do alcance dos objetivos dos indivíduos;
esse pensamento é defendido pelos chamados neoliberais.

Este contraste se manifesta mais claramente nas diferentes atitudes de


ambas as tradições em relação ao avanço do conhecimento. Embora o
liberal não considere toda a mudança um progresso, ele encarava o
avanço do conhecimento como uma das metas principais do esforço
humano e confia em que lhe proporcione uma solução gradual para os
problemas e dificuldades que esperamos poder resolver. Sem preferir o

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novo apenas por ser novo, o liberal está consciente de que é da essência
da realização humana produzir o novo; e está preparado para conviver
com o novo conhecimento, goste ou não de seus efeitos imediatos.
(HAYEK, 1983, p. 474).

Tendo em vista o conceito de conservadorismo em Hayek (1983), as


ideias desenvolvimentistas se encaixam mais nesse conceito do que nas ideias
liberais, pois o desenvolvimentismo tributava ao Estado o dever de ser uma
entidade que detivesse o conhecimento suficiente para decidir o melhor para
uma sociedade, uma razão do Estado.
O liberalismo concebe a realidade de não ter respostas para todas as
coisas e não busca explicações para todos os problemas sociais. A própria
teoria se baseia no pensamento de que as instituições humanas são
demasiadamente complexas, para serem explicadas e entendidas por meio
de uma série de teorias e equações, por isso as ações desse sistema liberal,
muitas vezes, são invisíveis, como a chamada “mão invisível do mercado”.
Pode-se compreender seus resultados, mas não se pode mapear seu
processo, por ser espontâneo e natural.
É partindo dessa lógica que Hayek (1983) elabora sua teoria acerca
do “conhecimento fragmentado”, segundo a qual todos os homens teriam
um conhecimento finito, limitado, fragmentado, que somente se
potencializa por intermédio da interação social entre os indivíduos, que
se daria via mercado, por meio de troca. O mercado conseguiria aglutinar
esse conhecimento e projetar as melhores instituições, portanto não se
acredita em teorias prontas; os liberais da Escola Austríaca, ou chamados
neoliberais, para Foucault (2008), sempre apontam às limitações dos
conhecimentos humano e científico, descartando qualquer teoria que
busque um lugar principalmente no governo.

Além disso, o liberal não se recusa a buscar o apoio de quaisquer hábitos


ou instituições não racionais que se revelaram válidos. O liberal difere
do conservador na disposição de aceitar esta ignorância e de admitir
que sabemos muito pouco, sem reivindicar uma autoridade de origem
supranatural do conhecimento sempre que sua razão falhar. Deve-se
admitir que o liberal, em alguns casos, é fundamentalmente um cético
– mas aparentemente é necessário certo grau de desconfiança para
deixar que os outros busquem sua felicidade à sua maneira e para
defender com coerência esta tolerância, que é uma característica essencial
do liberalismo. (HAYEK, 1983, p. 476).

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A pluralidade e a emancipação: uma análise de Foucault
Na lição de Lagasnerie (2013), Foucault teria observado que o
sentido da pluralidade do neoliberalismo estaria ligado ao aspecto
heterogêneo da sociedade, segundo a visão dos neoliberais, principalmente
de Hayek, que observa o quanto naturalmente a sociedade é desigual,
visto que os indivíduos são diferentes, e essa diversidade aumenta com o
passar da história e se prolifera, principalmente, a partir da Revolução
Industrial. Em um mundo multifacetado não haveria lugar para um
único plano social, uma única concepção de bem- estar social ou bem-
comum.
Segundo Foucault (2008), o neoliberalismo desconstrói a ideia
central do Iluminismo, o conceito de autonomia. Para o Iluminismo,
por conseguinte, autonomia seria “a demarcação bem-sucedida [...]. de
forças pelas quais eu mesmo não seria responsável [...] Nesse contexto, a
liberdade é concebida como o ato que consiste em ‘dar a mim mesmo
ordens às quais obedeço porque sou livre para agir como quero”.
(L AGASNERIE , 2013, p. 67). O Iluminismo não defende a ideia de
liberdade de escolha, de qualquer escolha, mas da escolha certa. Essa é a
concepção de liberdade positiva, assim, a verdade, a escolha certa, será
norteada pelo Estado racional. Para Foucault (2008) entende que o
contrato social de Rousseau prevê a anulação da vontade do indivíduo
pela vontade da sociedade, é a substituição da lei da individualidade
pela lei da comunidade.
Por outro lado, para o neoliberalismo, o indivíduo tem a liberdade
até mesmo de errar; devido à sua incapacidade de conhecer o futuro.
Todas as suas ações são previsões que podem ser verificadas como negativas,
ou falhas para os seus fins. Assim, é o indivíduo quem qualifica e não
um conhecimento social, uma teoria geral ou o Estado.

Liberdade significa realmente liberdade para errar. Isso precisa ser bem
compreendido. Podemos ser extremamente críticos com relação ao modo
como nossos concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida.
Podemos considerar o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa
sociedade livre, todos têm, no entanto, as mais diversas maneiras de
manifestar suas opiniões sobre como seus concidadãos deveriam mudar
seu modo de vida: eles podem escrever livros; escrever artigos; fazer
conferências. Podem até fazer pregações nas esquinas, se quiserem – e
faz-se isso, em muitos países. Mas ninguém deve tentar policiar os

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outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas
simplesmente porque não se quer que as pessoas tenham a liberdade de
fazê-las. (MISES, 1998, p. 24, grifo do autor).

No geral, Foucault (2008) observa que o neoliberalismo produz


uma ruptura na história do pensamento, oferecendo uma crítica ao
próprio caráter do Estado, dando privilégio ao indivíduo e à sua vontade,
recodificando os conceitos de direito, lei, igualdade, justiça. Pois, ao
passo que o neoliberalismo rompe com a estrutura filosófica da razão do
Estado, existente desde a Idade Moderna e que legitima a existência de
uma verdade cujo Estado é portador, como aponta Hayek (1961), ele
rompe com conceitos como: bem-estar social, justiça social, interesse da
nação, igualdade social.
Em um dos capítulos da obra The constitution of liberty, Hayek
(1961) observa que a igualdade que não fere a liberdade é aquela
fundamentada nas leis; porém, quando o Estado busca uma igualdade
de resultados, essa sempre será incompatível com a liberdade. Portanto,
é natural a existência de diferenças de resultado, desigualdade de
resultados, em um contexto de liberdade, pois os indivíduos são
diferentes.
O neoliberalismo sugere um contexto de mudanças constantes,
critica a existência de uma verdade basilar que limite a ação e a vontade
do indivíduo, defendendo a heterogeneidade e a pluralidade, propondo
justamente o oposto do que seria o conservadorismo. Esses elementos
fizeram Foucault (2008) observar esse pensamento tendo em vista sua
singularidade e seu papel de pensamento crítico da atual sociedade,
propondo um novo olhar sobre a governamentalidade, ou seja, uma nova
perspectiva de conceber o Estado e sua ação. Esse ideário seria parte do
contexto da biopolítica.
O neoliberalismo, para Foucault (2008), não apenas seria o oposto
do conservadorismo, mas também uma alternativa emancipadora de
crítica à constituição do Estado, à política atual, e entender o nascimento
da biopolítica; seria passar por esse ideário e entender suas propostas de
transformação.

o liberalismo... é essa razão, tanto do seu polimorfismo – como das suas


recorrências_ um instrumento crítico da realidade: de uma
governamentalidade anterior, de que seus adeptos procuram se

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distinguir; de uma governamentalidade atual que tenta reformar e
racionalizar, restrigindo-a; de uma governamentalidade à qual se opõem
e cujos abusos querem limitar. (FOUCAULT, 2008, p. 434).

Considerações finais
Repensar o neoliberalismo a partir da ótica de Foucault (2008) nos
leva a pensar no quanto esse movimento intelectual buscou o
distanciamento do conservadorismo, esse que, em muitos momentos,
comprometeu a essência do liberalismo: a liberdade individual.
A partir das contribuições de Foucault (2008) podemos olhar para
as ideias de Gudin e não apenas buscar rótulos conceituais para enquadrá-
las, mas entender esse intelectual como um homem do seu tempo, com
seus ideais e seu contexto, que na busca por conservar seu liberalismo,
foi conhecido como conservador, que, na ânsia pela defesa da economia
livre se rendeu à intervenção militar. Essas questões nos fazem pensar o
quão complexas são as ideias humanas e até que ponto podemos
simplesmente enjaular esses intelectuais em determinado conceito, sem
ao menos discuti-lo e contextualizá-lo. Essa reflexão nos aproxima da
necessidade de voltarmos a velhos cenários da história e repensá-los à
luz de novas abordagens teóricas.

Notas
1
O neologismo governamentalidade seria Assim, se observa, nessa sociedade, uma
a ligação semântica entre poder e tendência que salienta o vigiar, em vez de
mentalidade e estaria relacionado à o punir. A obra Vigiar e punir, de
tentativa de Foucault de entender as Foucault, esclarece o nascimento da
tecnologias de poder a partir da sociedade disciplinar e suas principais
racionalidade política que a fundamenta. características.
(SANTOS, 2013). 3
Algumas obras importantes na linha da
2
Em síntese, o termo se refere à nomeação história econômica concebem o
que Foucault faz a uma nova sociedade pensamento de Gudin como conservador.
que se estabelece no séc. XX, porém se Dentre esses trabalhos, se destacam:
desenvolve a partir de mudanças nas Bielschowsky (1995), Gaspari (2001),
relações de poder desde o séc. XVIII. Mantega (1987).

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