Soldado de Corte CORRIGIDO PDF
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XVII
VERSO CORRIGIDA
(O
VOL.
SO PAULO
JANEIRO/2012
APOIO
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
XVII
VERSO CORRIGIDA
(O EXEMPLAR ORIGINAL SE ENCONTRA DISPONVEL NO C ENTRO DE A POIO PESQUISA HISTRICA
DA
FFLCH)
RESUMO
Esta dissertao para obteno do ttulo de Mestre em Histria Social analisa trs
manuais de manejo de espadas, escritos em Portugal e Espanha entre 1580 e 1630. A
partir de sua leitura conduzimos reflexes acerca da sociedade de corte, Processo
Civilizador, lugar social da espada e duelos. Devido datao dos manuais enfocamos
nossas anlises nos reinados Habsburgo e na Restaurao de Portugal.
ABSTRACT
This dissertation for obtaining the title of Master in Social History analyses three manuals
of sword handling, written in Portugal and Spain between 1580 1630. From their
reading we have conducted reflections on Courtly society, Civilizing Process, social
place of the sword and duels. Due to the date of the manuals we have focused our
analysis on the Habsburg kingship and the Restoration of Portugal.
SUMRIO
Agradecimentos
06
Introduo
08
11
43
89
Concluso
118
Fontes e Bibliografia
122
Anexo I: imagens
133
146
AGRADECIMENTOS
INTRODUO
Manuais de Destreza das Armas. Muito populares no sculo XVII, estes livros,
assim como outros manuais de etiqueta, nos apresentam diversas oportunidades de
pesquisa e reflexo a respeito de variados aspectos da vida de corte moderna, como o
lugar da leitura na sociedade nobilirquica, as obras consideradas eruditas e a podemos
refletir no s sobre a escolha dos autores e dos textos, mas tambm do tipo de leitura era
realizada e os usos que se fazia dela ; as habilidades ensinadas pelo manual, requeridas
da nobreza cortes e a prpria etiqueta entre os pares pois, mesmo sendo o rei o centro
da vida de corte, o contato mais direto e freqente ocorre entre os cortesos. Mais:
manuais de manejo de armas nos proporcionam uma viso de um fator constituinte do
ethos nobilirquico o porte de armas. E no quaisquer armas: espadas, smbolo da
militarizao da nobreza, prova de sua origem cavaleiresca.
Nesta dissertao realizamos nossas reflexes a partir da leitura de trs manuais
de Destreza das Armas. O primeiro foi intitulado Oplosophia e Verdadeyra Destreza das
Armas, e foi composto em 1630 pelo jovem soldado portugus Diogo Gomes de
Figueiredo. A leitura da Oplosophia nos levou em direo aos outros dois manuais,
escritos anteriormente e que constituem a base sobre a qual Diogo Gomes elabora seu
manual. So esses o Libro de la grandeza de la espada, de D. Luis Pacheco de Narvez,
publicado em Espanha em 1600, e o Libro de Hieronimo de Caranca, natvral de Sevilla,
que trata de la philosophia de las armas y de su destreza y de la aggression y defension
christiana, de Jernimo de Carrana, publicado em 1582.
Foi por causa de nossos autores intitulamos nossa dissertao Soldado de Corte:
como era comum na formao do nobre moderno Figueiredo, Pacheco de Narvez e
Carrana eram experimentados nas armas e nas letras. Se as espadas eram manejadas na
guerra que o reinado de Filipe IV conheceu em profuso era na corte que a pena era
exercitada; homens de armas, no desviaram-se muito dos caminhos da espada e
dedicaram suas palavras ao ensino do manejo de armas conforme a doutrina que Carrana
chamou de Destreza ao clam-la como sua.
Dividimos nossa dissertao em trs captulos. No primeiro, que intitulamos Da
Philosophia das Armas e sua Verdadeyra Destreza conheceremos melhor os manuais
estudados e seus autores; veremos quais so suas semelhanas e diferenas, assim como
8
10
11
Sir Richard Burton escreveu um tratado sobre esta que considerava a mais nobre e
honrada das armas a espada por no encontrar quem se dedicasse ao tema do ponto de
vista histrico. Seu Livro da Espada tornou-se uma referncia aos que estudam o assunto,
pela ateno e cuidado que dedica ao objeto, e pela importncia que a prpria obra teve
em seu tempo. de sua introduo que citamos o trecho acima, que, nos parece, exprime
bem o sentimento geral do Livro.
Pois bem, poderamos dizer que Burton parte de uma perspectiva medieval ao
pensar a espada: foi no auge da cavalaria que esta arma em particular ganhou to elevado
status, por ser a arma dos cavaleiros por excelncia2. Nem mesmo a perda da funo de
defesa pelas armas por parte da nobreza, quando o monarca centraliza em sua pessoa o
governo do reino, fez com que esta perdesse seu significado: a espada se torna, junto com
outros signos, demonstrativos de nobreza3.
As cortes dos monarcas so formadas por indivduos de origens sociais diversas,
devido relativa abertura que houve quando de sua formao4. Ora, o que distinguia a
nobreza cortes de outros segmentos sociais desde sua formao nas cortes dos senhores
feudais, como diz Norbert Elias, era a adoo de padres de comportamento prprios
desse grupo. Sendo o grupo restrito, as normas em vigor eram passadas de indivduo para
indivduo, sem necessidade de mediao; a sociedade organizada em ordos implica que
no haja mudana possvel no status social: o aprendizado do comportamento
BURTON, Sir Richard F. The Book of the Sword. New Yorkl, Dover Publications, 1987, p. xvii, traduo
livre nossa.
2
Cf. PASTOREAU, Michel. No tempo dos cavaleiros da Tvola Redonda, trad. So Paulo, Cia das Letras,
1989, p. 113.
3
BOUZA, Fernando. Palabra y Imagen em la Corte. Cultura oral y visual de la nobleza em el Siglo de
Oro, Madrid, Abada Editores, 2003.
4
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, trad. Ruy Jungmann. RJ, Jorge Zahar Editor, vol. I, p. 76.
12
considerado correto para cada grupo se d desde o bero, e no h como, ou mesmo por
que, adquirir as maneiras de outros grupos sociais.
Isto no se passa na modernidade. O ingresso na corte de gente que no est
familiarizada com seus modos fez com que surgisse todo um nicho literrio que explode
no sculo XV: os manuais de comportamento5. O modo certo de comer, de se portar
mesa, de conversar, sobre o qu conversar, de danar, de ler, de declamar: tudo podia e
devia ser aprendido com manuais escritos por aqueles que seriam os mais altos exemplos
de cortesos.
Por que no, ento, um manual de manejo de armas? Uma nova tcnica de
combate de espadas, que esteja de acordo com as prescries de Roma, que permite que
os fidalgos se exercitem e possam defender sua honra? Tal a Destreza, uma nova forma
de esgrimir, surgida no seio corteso da Espanha. Desenvolvida na segunda metade do
sculo XVI por D. Jernimo de Carranza, a Destreza foi disseminada por todo o reino
espanhol por um de seus discpulos, D. Luis Pacheco de Narvez, no sculo XVII, a
ponto de se tornar a tcnica oficial do reino.
Os manuais espanhis geraram uma interessante contraparte lusitana: quando
jovem, Diogo Gomes de Figueiredo escreve seu prprio manual de Destreza, baseado nos
ensinamentos de Carranza, a quem conheceu quando o mestre esteve em Portugal. Temos
j uma diferena interessantssima entre os manuais: enquanto os autores espanhis so
cortesos por excelncia, Diogo Gomes um militar aclamado por seus pares por suas
vitrias nas batalhas da guerra da Restaurao, inclusive.
O estudo dos manuais de comportamento de corte prova render muitos frutos: so
inmeras as reflexes que os escritos permitem, nas mais diversas reas de pesquisa que
os historiadores vm desenvolvendo atualmente. A pesquisadora portuguesa Ana Isabel
Buescu, por exemplo, se utiliza deles para elaborar suas reflexes acerca do papel
poltico que alguns cerimoniais exerciam no Antigo Regime desde um ato
Idem, p. 111.
13
A pesquisadora autora de A Imagem do Prncipe (1997), Na corte dos reis de Portugal (2010) e
organizadora de mesa do rei (2011), entre outras publicaes, no qual seu foco justamente os
cerimoniais e a cultura de corte do Antigo Regime.
7
Gonalo Barbosa foi mestre de armas dos moos fidalgos, nomeado em 1605 em chancelaria de Filipe II.
Cf. VITERBO, Sousa, A esgrima em Portugal. Subsdios para sua histria. Lisboa: Manoel Gomes Editor
Livreiro de suas Magestades e Altezas, 1899, p. 18.
8
Idem, p. 36.
14
A transcrio da Oplosophia foi realizada por ns, como parte da pesquisa desenvolvida como Iniciao
Cientfica sob a orientao da prof. Dr. Ana Paula Megiani. A cpia microfilmada com a qual trabalhamos
faz parte do acervo pessoal da professora.
10
Conforme informao anexa ao Memorial, escrita pelos responsveis pelo acerco da Biblioteca da Ajuda,
onde o exemplar do Memorial da prattica do montante est alocado, sob a cota 44-III-20, 21.
11
A comparao entre flios de ambos os livros pode ser feita no Anexo I desta dissertao, Imagem 2.
12
Diogo Gomes Figueiredo Bobadilha dedicou-se escrita de genealogias das famlias reais; suas obras
intitulam-se Genealogias Portuguesas e Famlias Portuguesas e fazem parte da coleo de manuscritos
reservados da Biblioteca Nacional de Portugal.
13
A Demonstrao Universal faz parte do Anexo I desta dissertao, Imagem 3.
15
na prtica da Destreza. Esta, alis, uma marca dos manuais elaborados por Diogo
Gomes: suas instrues so prticas e objetivas e a escrita quase seca, fugindo da forma
de escrita caracterstica do Barroco o que para ns indica tanto um distanciamento da
excessiva teorizao da matria quanto o desejo de ser o mais claro possvel em suas
lies.
tambm fcil identificar as fontes a que Diogo Gomes recorreu para escrever a
Oplosophia: como ser possvel ver nos excertos abaixo, nas margens laterais do texto
esto discriminados autores e obras dos quais o portugus fez uso durante a escrita do
manual. Foi atravs de tais notas que chegamos aos manuais de Carranza e Narvez
como bem apontou Geoffrey Parker no seu artigo The Military Revolution a myth?,
ao discorrer sobre os manuais de guerra desenvolvidos na poca dos Nassau, diz que
embora os antigos continuassem a ser a base de todo o conhecimento militar moderno,
autores coevos sobretudo os espanhis j eram estudados e citados como
autoridades14.
E a partir dos manuais espanhis de Destreza, nomeadamente, o Libro de
Hieronimo de Carranca, natvral de Sevilla, que trata de la philosophia de las armas y de
su destreza y de la agressi y defension christiana, de D. Jernimo de Carranza, o Libro
de la grandeza de la espada e a Carta al Duque de Cea, ambos de D. Luis Pacheco de
Narvez, que Diogo Gomes escreve sua Oplosophia e Verdadeyra Destreza das armas.
Propriamente dito, contra Pacheco de Narvez que Diogo Gomes escreve: para o
portugus D. Luis equivocou-se ao criticar a teoria da Destreza de Carranza, professando,
por sua vez, ensinamentos errneos da tcnica. A inteno de Figueiredo retomar e
aprimorar as lies de Carranza que ele acredita servirem a seus objetivos com justeza.
No entanto, nos trs manuais, o estudo da Destreza no iniciado pelos
ensinamentos tericos de manejo das armas. Antes de aprender a praticar a Destreza
propriamente dita, h que se realizar uma srie de estudos; no caso da Oplosophia, sobre
a histria no s das armas com que se batalha, mas sobre as mais relevantes guerras
14
PARKER, Geoffrey. The Military Revolution a myth?. In: ROGERS, Clifford J. (ed). The Military
Revolution Debate. Readings on the military transformation of Early Modern Europe, Colorado, Westview
Press Inc., 1995, p. 40.
16
para o humanista do sculo XVII, claro e suas prticas. S ento o leitor-aprendiz tem
acesso aos movimentos que caracterizam a Destreza e o ser Destro.
Comecemos, pois, com o manual de Diogo Gomes, que constitui nossa fonte
principal de estudo. O objeto do primeiro captulo da Oplosophia a antiguidade da
espada, e suas excelncias; aprende-se (ou relembra-se, dependendo do conhecimento do
leitor) que o primeiro a empunhar tal arma foi o Arcanjo So Miguel, na grande batalha
contra Lcifer:
LIVRO
PRIMEIRO
Da theorica da verdadeyra Destreza
Capitulo Primeyro.
Da Antiguidade da espada e de suas
excellencias.
Grandiosamente authorisa, as maravilhosas excellencias da espada o lerse nas
letras divinas que fora h Cherubim o primeyro em cujo brao a vio o mundo, para
defender com ella a entrada do Paraizo a nossos primeyros paes quando delle foro
lanados pello pecado [ margem direita: genes: cap.3.] e bem bastara para abonar
e dar credito a suas grandezas, tam divino fundamento e tam sublime origem se
tambem a no tiveram, por amparo, e resgoardo da f, por patrocinio e segurana
da honra, e por defesa, e arrimo da propria vida. A noticia de tam excellente arma,
e o importante de seu galhardo exercicio, esteve por muito tempo sepultado, at
que em Grecia os Lacedemonios a introduziro elegendoa para continua e fiel
companheira dos homens, para goarda, e conservao de suas patrias, e para
adorno e pompa de todas as Monarchias. 15
15
16
FIGUEIREDO, Diogo Gomes. Oplosofia e verdadeyra destreza das armas, fl. 04.
Idem.
17
universaes em tudo lhe dero sempre o primeiro lugar, asi na paz como na guerra;
naquella porque nh cidado deyxava de a cingir, e nesta porque todas as ordens de
soldados em que ambos os autores dividem a milicia Romana: se armavo com
espadas quazi como as nossas de dous cortes e boa ponta e anida [?] que vario nas
outras armas nunca na espada como por dar a entender que sem ella nem o soldado
pode reprezentar que o professa [?] nem o cortezo descobrir o que representa
porque h deixaraia de ser prattico, e s bizonho, e outro patetico, e s inutil.
17
MOLINET, Jean. Chroniques, 1473. In: BUCHON, Jean Alexandre C. Collection des chroniques
nationales franaises, Paris, Verdire, 1827. Na Collection, as Chroniques correspondem aos tomos 43-48.
18
HUIZINGA, Johan. El otoo de la Edad Media. Trad. de Jos Gaos. Madrid, Alianza Editorial, 1982, 4
edio, p. 93, grifos do autor.
19
Oplosophia, fl. 04v
18
20
21
suposto que ja os antigos prat= [ margem direita Dionisio alicarna] ticavo este
modo de armas [ margem direita lin: 4.] porque a primeyra ordem dos fa= [
margem direita Vigecio liv: 3 c. 14.] langes macedonicos se ar= [ margem direita
liv: 2. c. 15.] mavo com escudos Argolicos, que vem a ser broqueis, e Eliano diz
que a uzana [ margem direita Eliano de nom et on] macedonica trazio os Roma=
[ margem direita mil:] nos os escudos redondos e as hastes ou sarissas compridas a
maneyra do broquel e estoque, pois aquella se empunhava com a mo, e a este
arremedavo os botes das sobreditas hastas.22
Diogo Gomes prope o uso dos escudos como armas auxiliares nos combates com
espada num ambiente corteso; para tanto ele se utiliza de exempla militares, no s aqui,
mas como tema recorrente do texto. Cremos que isso ocorre pois o prprio autor um
militar que alcanou, ao longo da vida, altas patentes do exrcito; segundo Jos Antnio
Maravall, hay toda una larga discusin en la poca sobre el valor de los antiguos y el de
los modernos, en relacin a armas de cuyo uso se servieron para demonstrar en la prtica
ese valor23.
Mas para ele a histria fornece mais do que exemplos blicos: Diogo Gomes nos
conta como lida com situaes recorrentes de atrito entre ele e seus crticos:
como os mal contentes que tudo censuro, esquecendosse das grandes para as
louvar, e s reparando nas piquenas para as morder; antigo costume da enveja, pois
ja os Thebanos accusavo a Panyculo de cuspir muyto sem se acordarem de que
resgatara a Thebas : ja os Lacedemonios criminavo a Licurgo de andar cabisbaixo,
no se lembrando de que lhe reformara seus reynos: e finalmente ja os Romanos
reprovavo a Scipio de dormir roncando sem o louvarem de vencer a Carthago e de
arruynar a Numancia que havia sido terror e espanto de seu imperio: e assi no he
muyto que eu passe por esta fortuna, quando se no advirta que todas as cousas a
que se d principio so dificultosas, e que nha grande he facil. Dilato este discurso,
porque passaro estes meus Cadernos tantas borrascas, combattidas das ondas da
mormurao, q ate os que em publico os defendio (ou movidos da verdade delles,
ou forados de alg outro respeyto) em secreto (poder ser que constrangidos de que
dezejaro para si a gloria de seus acertos) sey que os reprovavo.24
22
20
25
HARTOG, F. Os antigos, o passado e o presente, org. Jos Otvio Guimares, trad. S. Lacerda, M.
Veneu e J. O. Guimares. Braslia, Ed. UNB, 2003, p. 55.
26
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana, Coimbra, Atlntida Editora, verso fac-smile de
1967, vol. I, pp. 654-655.
27
Idem, p. 654.
28
MENESES, D. Luis. Histria do Portugal Restaurado, edio anotada e prefaciada por Antnio lvaro
Dria. Porto, Livraria Civilizao, 1946, vol. I, p. 162.
21
General D. Manoel de Menezes29. Sabemos tambm que ele foi Mestre de Armas de
jovens fidalgos do reino, tendo sob sua tutela o jovem D. Teodsio, herdeiro do trono
Restaurado30, a quem dedicou um manual de prtica do montante, como j dissemos.
O imprio dos ustria, sob cujo governo Portugal se encontrava poca, estava
envolvido j havia algum tempo em diversas questes militares: tanto a Guerra dos Trinta
Anos como o embate contra os holandeses, fosse no continente europeu fosse nas
colnias, apresentavam diversas oportunidades para que os jovens experimentassem a
vida no exrcito com todas as aventuras e tambm infortnios.
A Oplosophia foi a primeira incurso de Diogo Gomes ao mundo da escrita,
talvez a reao de um jovem oficial aos tempos em que vivia: as dcadas de 1620-30
foram particularmente inspiradoras neste sentido. Em seus livros sobre o tema da
Unio das Coroas e Restaurao de Portugal, Rafael Valladares arrola aquelas que
considera as mais relevantes rusgas entre a monarquia espanhola e o governo portugus:
a guerra contra Flandres, desencadeada pelos esforos do Conde-Duque de conseguir
tratados favorveis Monarquia, na dcada de 1620; a invaso de Salvador em 1624 e a
tomada de Pernambuco em 1630, ambos pelos holandeses; a abertura das hostilidades
contra a Frana em 1635, qual Portugal negava-se a contribuir finaceiramente31.
Stradling diz que de 1635 en adelante, la monarqua espaola vivi una poca de guerra
total. (...) Independiente de que fueran escenario de campaas militares o colindaran con
un estado inimigo, todas las provincias de Felipe IV, as como todos sus sbditos, se
vieron gravemente afectadas 32.
Em dado momento Diogo Gomes sugere
29
Idem; infelizmente, a primeira aventura militar de Diogo Gomes documentada por Barbosa Machado no
acabou bem: a viagem com o exrcito era martima, e o navio naufragou na costa da Gasconha apenas trs
meses depois de zarpar devido a uma tempestade; da mesma expedio fez parte D. Francisco Manuel de
Melo, que depois dela ingressou no exrcito castelhano, onde conheceu o sucesso no meio militar.
30
Cf. Ana Maria H. Faria em Duarte Ribeiro de Macedo, um diplomata moderno 1618-1680, Europress,
2005, p. 705, nota de rodap n 59; Barbosa Machado na Bibliotheca Lusitana diz que as passagens na
Histria do Portugal Restaurado de D. Luis de Meneses que fazem referncia ao aprendizado das armas
pelo jovem prncipe dizem respeito a Diogo Gomes; Sousa Viterbo na Esgrima em Portugal, Op. Cit., pp.
22-25, atribui-lhe um artigo curto, sendo que a maioria das informaes foi retirada da Bibliotheca.
31
VALLADARES, Rafael. A independncia de Portugal, trad. Pedro Cardim. Lisboa, Esfera dos Livros,
2006, pp. 36-38.
32
STRADLING, R.A. Felipe IV y el gobierno de Espaa, 1621-1665, trad. Carlos Laguna. Madrid,
Ediciones Ctedra, 1989, p. 195..
22
33
34
Dificilmente poderamos encarar tal gesto como uma exortao para a batalha,
isso seria ir longe demais. Mas claro o desejo de que os exerccios militares se
tornassem uma prtica comum entre os jovens fidalgos do reino de Portugal como
acontecia em outros reinos, inclusive Castela, de acordo com Figueiredo. A idia de
estabelecerem-se embates pblicos entre as academias, mestres e pupilos no era nova:
D. Duarte considerava que o bem montar a cavalo fosse uma obrigao da nobreza, e os
nobres aproveitavam-se de ocasies como as justas e os torneios para exibirem sua
percia, disputando um prmio estabelecido35.
Em nenhum momento Diogo Gomes fala em recrutamento de oficiais para o reino
de Portugal, ou qualquer outro reino; para ele, o importante que os fidalgos sejam
treinados nas armas e estejam prontos ao menos fisicamente para um combate em que
possam porventura envolver-se. Podemos entrever ento um jovem militar escrevendo
num tempo de conflitos cuja preocupao a falta de dirigentes preparados para o
combate se concretiza uma dcada mais tarde: uma parte do exrcito portugus
formado para combater os castelhanos composta por portugueses que teriam
experincia de outros exrcitos especialmente o exrcito castelhano e retornaram ao
reino com a aclamao de D. Joo IV, como bem diz Fernando Dores Costa em seu livro
A Guerra da Restaurao36.
Pois bem, a temos ento o uso de seus contemporneos como fonte de sabedoria:
a Destreza espanhola apareceu para Diogo Gomes como um timo exerccio para manter
a juventude fidalga com seus corpos e mentes em suas melhores formas; afinal, mens
sana in corpore sano. Porm, se Diogo Gomes viu na Destreza mrito e potencial, assim
como Carranza e Narvez antes dele, o portugus tinha para tal forma de prtica de armas
uma finalidade muito distinta daquelas propostas pelos espanhis. Como veremos,
somente Figueiredo tinha ambies de que a Destreza se tornasse atraente o suficiente
para interessar a fidalguia lusa a manter seu treino regular.
35
O FAMOSO DISCPULO
Talvez o mais clebre disseminador da Destreza por todo o imprio espanhol
tenha sido D. Luis Pacheco de Narvez, corteso sevilhano oriundo de Baeza. Segundo
Pilar Irureta-Goyena Snchez e Maria Luisa Esteban Hernndez seus livros sempre
foram valiosos: em seu tempo, por terem sido extremamente populares, e hoje, por
existirem pouqussimos exemplares bem conservados dos mesmos37. No s, D. Luis
mostrou-se uma personagem qual era difcil no reagir em sua poca, colecionando ao
mesmo tempo importantes admiradores e ferozes inimigos38.
Sua figura continuou gerando polmicas nos crculos de estudo da prtica da
esgrima e da literatura espanhola do sculo XVII; no surpreendente, portanto, que
tenha excitado reaes num jovem oficial deparamo-nos constantemente com o nome
de D. Luis ao ler a Oplosophia... de Diogo Gomes: contra seus preceitos que o
portugus redige sua verso da Verdadeira Destreza das armas; esta sim estaria de acordo
com os ensinamentos do grande mestre, D. Jernimo de Carranza. por esta razo que
estudaremos o Libro de la grandeza de la espada, entre todas as obras de Narvez, alm
da sua Carta ao Duque de Cea.
Escritor prolfero at sua morte, o mais famoso livro de Pacheco de Narvez
tambm seu primeiro trabalho impresso, o Libro de las grandezas de la espada, de
160039. Aurelio Valladares Reguero, em seu artigo Luis Pacheco de Narvez: apuntes
bio-bibliogrficos40 indica que exemplares do Libro... podem ser encontrados em
arquivos de diversos pases; o autor arrola cerca de vinte livros, muitos dos quais ou esto
severamente deteriorados, ou lhes faltam alguns flios.
O exemplar ao qual tivemos acesso material se encontra na coleo de Obras
Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro41, e embora esteja completo, a primeira
37
metade do livro est corrompida por traas. Em alguns flios possvel identificar
anotaes marginais feitas por algum leitor, o que no aparece na verso digitalizada com
a qual temos trabalhado. Este exemplar propriedade da biblioteca da Universidade de
Valencia, que disponibilizou-o na rede mundial de computadores42, e tal facilidade de
acesso nos proporcionou a possibilidade de estudo do manual.
J no primeiro contato com os manuais de Pacheco de Narvez e Diogo Gomes
nos impressiona o quo parecidos os livros so; assim como no caso da Oplosophia,
parece que o Libro... foi a primeira incurso de D. Luis no mundo letrado43, assim que
este retornou das Ilhas Canrias, onde serviu o rei, Filipe IV, como soldado outro trao
em comum com Gomes de Figueiredo e diversos outros fidalgos, uma vez que tanto o
treino militar quanto as aventuras literrias constituam traos comuns na formao dos
indivduos de tal segmento social, o que lhes valeu a famosa alcunha de homens de letras
e de armas.
Pacheco de Narvez mudou-se para Madrid em 1599 como consequncia de uma
promoo em sua carreira militar, y con la logica esperanza de que la publicacin de
esta obra lo consagrara en los ambientes culturales de la Corte como teorizador de la
materia y le abriera nuevas perspectivas profesionales 44. Mas se para Diogo Gomes a
escrita de um manual de Destreza deu-se no perodo em que comeava sua carreira no
exrcito, para D. Luis marcou a estabilizao de sua vida em Madrid, realizando somente
viagens curtas de negcios; tambm conhecida sua inteno de dirigir-se a Portugal no
ano de 1622, embora no tenham sido encontradas muitas evidncias a respeito da
mesma. Em 1624 D. Luis foi nomeado Maestro Mayor de la armas, que lhe dava o direito
de examinar todos os mestres de armas do reino45.
As semelhanas entre o Libro... e a Oplosophia... no se restringem s vidas de
seus autores: como j adiantamos, durante a redao de seu manual Diogo Gomes deixa
claro que foi a obra de Pacheco de Narvez que lhe impulsionou a escrita. De fato, a
42
Este exemplar, assim como diversos outros documentos digitalizados, pode ser encontrado em
http://lubna.uv.es:83/R_1_213/R_1_213_fich_1.html.
43
No j citado artigo de Valladares Reguero h uma lista de todas as obras que o autor conseguiu encontrar
em fundos ao redor do mundo e que podem seguramente ser atribudos a D. Luis Pacheco de Narvez. Nela
o Libro... figura no s como a primeira obra impressa, mas tambm como o primeiro grande escrito de D.
Luis em geral.
44
VALLADARES REGUERO, Op. Cit., pp. 514 e 515.
45
Idem, pp. 516, 517 e 519.
26
Oplosophia... foi gestada como uma resposta Destreza falha e incorreta ensinada pelo
espanhol, que, como dissemos, deturpa os ensinamentos da Verdadeira Destreza do
mestre D. Jernimo de Carranza46. Mas mais do que uma base na qual apoiar sua
argumentao, vemos que o Libro... inspirou Diogo Gomes para alm a formatao da
Oplosophia... a mesma do Libro, embora este tenha cerca de 400 flios, contra os
aproximadamente 100 da Oplosophia.
Divido em cinco livros, a primeira parte do ensino da Destreza constituda pelas
partes da Destreza, a interna a sua doutrina e a externa os combatentes e pelos
movimentos e tretas. Na segunda e quarta partes demonstra-se os preceitos e manobras
explanadas nas primeira e terceira partes; a partir do segundo livro o manual ricamente
ilustrado: os movimentos dos ps e das armas figuram cada explicao, tornando o
entendimento da lio muito mais fcil para o leitor-aprendiz. O ltimo livro sobre
como conhecer o oponente seu nimo, tamanho, compleio assim como a
classificao dos movimentos violento, natural, remisso e misto e a graduao da
espada.
Os ensinamentos per se parecem os mesmos em ambos manuais; quer dizer, os
movimentos que o destro deve realizar so os mesmos, provenientes da doutrina de
Carranza so apenas detalhes de passadas e movimentos que Diogo Gomes corrige.
na parte terica que a Oplosophia se mostra distinta do Libro...; por isso talvez que a
Oplosophia... comece justamente nas questes sobre as quais D. Luis discorre por ltimo.
Outro ponto no qual os manuais de Diogo Gomes e de Pacheco de Narvez
diferem o das ilustraes: se, como dissemos anteriormente, a Oplosophia conta apenas
com uma figura principal e que encerra em si os movimentos mais importantes de
maneira esquemtica e enxuta, o Libro... ricamente ilustrado e pormenorizado, seja nas
figuras, seja no texto.
Cada movimento de espada que formam crculos esto discriminados em
diferentes flios, e cada lio de manejo de armas composta pela descrio textual e por
uma ilustrao dos movimentos que devem executar os ps do praticante, alm da
posio e direo em que deve estar a espada. Pacheco de Narvez to minucioso neste
46
seu primeiro manual que o Libro... chega ao ponto de trazer duas ilustraes peculiares:
nelas D. Luis quer demonstrar como deve levar a espada o destro estando vestido
adequadamente para o ambiente de corte com seu chapu, capa e afins e estando,
literalmente, despido47.
J nos primeiros flios Pacheco de Narvez faz sua crtica ao manual de D.
Jernimo de Carranza, que escriuio tan profundamente el ella [Destreza Verdadeira],
como sus escritos lo manifiestan: pero fue en teorica, y no en pratica demonstratiua48.
Quanto ao Libro..., escreveu Valladares Reguero,
las novedades tericas que presentaba, especialmente com respecto a la doctrina del
hasta entonces indiscutible maestro Jernimo de Carranza, debieron de causar
impacto en los ambientes culturales madrileos. A partir de aqu empez a gozar de
la estima de muchos e importantes autores, aunque tambin de la enemistad de algn
otro49.
47
Exemplos das ilustraes a que nos referimos podem ser encontradas no Anexo I desta dissertao,
Imagens 7 a 9.
48
PACHECO DE NARVEZ, Libro..., fl 03 da Epistola a un amigo.
49
VALLADARES REGUERO, Op. Cit., p. 517.
50
Idem, p. 510.
51
PACHECO DE NARVEZ, D. Luis. Libro de las grandezas de la espada, Madrid, 1600, fls, 01v. e 02.
28
Numa poca em que tudo deve escorar-se numa base cientfica, Pacheco o logra
em seu manual ao utilizar termos matemticos notadamente, a geometria para ensinar
as manobras que compem a Destreza. Mas mais do que a cincia, a Destreza que nos
apresenta D. Luis possui algo que lhe garante, sem dvidas, o valor: se trata de uma
tcnica enviada por Deus
para que se refrenassen los animos daados de los hombres desconcertados y
temerarios: y para que los quietos, pacificos, amadores de la gloriosa paz no
padeciessen a manos de los primeros, por falta de defensa, dar lugar, permitiendo q
por su estabilidad y certeza, no faltasse, y permaneciesse siempre como las demas
sciencias y no dudo en esto, antes lo tengo por muy cierto, que quiso que esto fuesse
en este rincon de Espaa, donde su santa F se professa y guarda, y su santissimo
nombre es adorado y reverenciado 55.
Pois bem, podemos identificar neste trecho duas questes caras a Pacheco de
Narvez que elucidam o valor que o autor via na Destreza: a necessidade de defesa que
tm os homens quietos, pacficos e amadores da paz contra os desconcertados e
temerrios e o fato de que a tcnica foi dada aos sevilhanos o rincn de Espaa a
que refere D. Luis Sevilha, onde morava D. Jernimo de Carranza, inventor da Destreza
por Deus para suprir tal necessidade.
52
29
Porque no faz parte da natureza humana que os homens ataquem uns aos outros,
ainda mais catlicos atacando uns aos outros,
pues en los animales ya es muy conocido la diligencia que cada vno, por flaco que
sea, para defenderse de quien le quiere ofender, y ofenderlo por su defensa: y como
el hombre, por ser mas noble que todos ellos juntos, tuuiesse nas necessidad de
conseruarse y muchas vezes (que es harto dolor y lastima) fuesse ofendido de sus
semejantes, pues como dixe el adagio: El hombre es el lobo del hombre, fuese
necessario ua arte que le ensease como auia de hacer esta defensa56.
56
57
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
30
ms tarde Pacheco fue encarcelado por haber agraviado a Quevedo en una comedia
en prosa; todo lo cual arroja suficiente luz sobre lo enconado de su enemistad58.
58
ALBORG, Juan Luis. Historia de la literatura espaola. Madrid, Editorial Gredos, 1999, 2 ed., vol II:
poca barroca, p. 593.
59
VALLADARES REGUERO, Op. Cit, pp. 510, 517 e ss. interessante notar como ainda se expressam os
pesquisadores partidrios de um ou outro autor: Alborg nega a Narvez o ttulo de Don, o que Reguero faz
com Quevedo, alm de utilizar o qualificativo entre aspas (maestro). E se para Alborg a contenda
comeou com uma disputa sobre esgrima, Reguero acredita que esta se deu por conta de desacordos na rea
literria. Este autor escreveu um artigo dedicado exclusivamente rixa entre Narvez e Quevedo: La stira
quevedesca contra Luis Pacheco de Narvez, In: EPOS, XVII, 2001, pp. 165-194.
60
Idem, p. 518.
31
Para alm disso, D. Luis corrige os exerccios de espada que Carranza colocou em seu
manual, encurtando ou estendendo passadas e crculos ou alterando direes de giros do
corpo do espadachim ou seja, dizendo como acha que tais movimentos devem ser feitos
para que a prtica da Destreza fosse de fato a mais correta.
Embora tenha deixado vasto legado literrio sobre a Destreza, os livros de
Pacheco de Narvez no podem ser entendidos em si mesmos; quer dizer, pode, mas
apesar de toda sua vasta produo, a base para seu trabalho est em Carranza. Por cerca
de trinta anos D. Luis escreveu defendendo, provando e contrariando ensinamentos sobre
Destreza a partir daquilo que leu no Libro de Hieronimo de Carranca.... No queremos
dizer que seja impossvel analisar a obra total de Pacheco de Narvez sozinha, mas nos
parece importante contextualiz-la para faz-lo e tal contextualizao envolve,
necessariamente, a obra de Carranza, que analisaremos agora.
O MESTRE SEVILHANO
Para los espaoles del Siglo de Oro, ser un Carranza significaba ser diestro en
el manejo de las armas, nos conta Claude Chauchadis no seu artigo Didctica de las
61
Para mais a este respeito v. CONCEIO, Adriana Angelita. Sentir, escrever e governar. A prtica
epistolar e as cartas de D. Lus de Almeida, 2 Marqus do Lavradio (1768 - 1779). 2011. Tese (Doutorado
em Histria Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So
Paulo, 2011. Disponvel em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-16042012-164420/>.
62
PACHECO DE NARVEZ, D. Luis. Carta al Duque de Cea, Madrid, 1618, p. 2.
32
63
CHAUCHADIS, Claude. Didctica de las armas y literatura: Libro que trata de la Philosopha de las
armas y de su destreza de Jernimo de Carranza, In: Criticn, n 58, 1993, p. 73.
64
Cf. Chauchadis, Op. Cit., p. 73 nota de rodap 1.
65
Na primeira pgina do manual escreve o rei quando d sua autorizao para impresso que a obra j
desfrutava de uma autorizao prvia de durao de seis anos, e que ele estendia naquele momento por
mais doze anos, resultando na publicao do Libro de la Philosophia... onze anos aps sua primeira
aprovao.
66
Chauchadis, op. cit., ibidem.
67
Idem, ibidem.
33
J nos primeiros flios D. Jernimo conta o que o levou a escrever uma obra
sobre sua Verdadeira Destreza das armas: a convite de D. Alonso Perez de Guzman,
duque de Medina Sidonia
tuuo por bien, que dexasse mi Patria y viniesse a su seruicio: al qual yo fui no tanto
por librarme de la Arrogancia odiosa de algunos que con mal animo inuidiauan, y
adulterauan mis cosas, como por seruirle, para que de su mano recompensasse el
fructo de mi humilde ingenio 68.
Neste momento, como o autor relata mais adiante nesta pequena introduo, ele resolveu
afastar-se da prtica da Destreza para concentrar-se em sua teoria da a escrita deste
manual.
Como j dissemos, o manual escrito em dilogos, e so os personagens que
ensinam a Destreza conforme a conversa avana. Assim como no manual de
comportamento de Baldassare Castiglione, Il Cortegiano, impresso algumas dcadas
antes (1528), no qual as lies de etiqueta so dadas pelos nobres presentes na corte do
duque Guido Ubaldo69. Se no Il Cortegiano as instrues so dadas por todos os nobres
durante um jogo, no qual as qualidades do bom corteso so elencadas, nos Dilogos de
Carranza a Destreza vai sendo ensinada, e seus mal-entendidos desfeitos, no decorrer da
conversa de um pequeno grupo de amigos.
Em ambos os casos, o dilogo direto entre os personagens que no se sucede,
como no teatro, e sem a rigidez dos jogos de catequese de perguntas e respostas; a
interrupo da fala por outros personagens, expondo dvidas e exemplos, somente torna
mais rico o texto, fazendo com que o leitor sinta-se parte da conversa, identificando suas
dvidas nas falas. Apesar disso, o narrador est sempre presente exceto pelo segundo
dilogo, como veremos adiante , controlando o que se passa, de algum modo70. Segundo
Domingo Yndurain, o dilogo
es la forma preferida de los humanistas, por su sabor clsico, y porque permite un
desarrollo fludo, animado, que hace ms persuasivo la intencin didctica, pues,
tanto en Italia como en Espaa, los dilogos no son discusiones libres e
68
Passemos, ento, ao dilogo propriamente dito. Ele ocorre num lugar de Espanha
vizinho ao mar, con vna Barra que sirue de garganta a ambos Mundos75, donde el
grande y nauegable rio Guadalquiuir coronado con sus oliuas llega hermosissimo76
uma das praias de Sanlcar de Barrameda, parte dos domnios do ducado de Medina
Sidonia.
L encontram-se cinco homens doctos que por la grandeza de sus ingenios, eran
entre todos esclarecidos77: Eudemio, noble y bien instruydo en las letras humanas c
razones graues: y palabras elegantes; Polemarcho, doctissimo en el derecho canonico y
ciuil; Philandro, dado c gran cuydado al estudio de la Philosophia y Medicina;
Meliso, maestro de todas las disciplinas, doctissimo en las Mathematicas e, finalmente,
71
Charilao, que auiendose exercitado en la Destreza, con el vso que della tenia auia
alcanado entre los suyos algun nombre78.
Pois bem, como podemos perceber, D. Jernimo no compe um grupo qualquer
para debater os mritos da Destreza: so todos indivduos doutos em diversas reas de
conhecimento e que se encontram servindo ao mesmo sernhor, na mesma corte. Desde as
apresentaes fica claro que o personagem de Charilao se refere ao prprio D. Jernimo
de Carranza; no surpreendente, pois, que ser ele quem esclarecer seus companheiros
na matria, defendendo a Destreza por quase toda a narrativa79.
O primeiro Dilogo sobre as qualidades da Destreza, e as virtudes que imputa
queles que praticam a Verdadeira pois aqueles que se fiam da Destreza vulgar, ou at
mesmo da falsa Destreza demonstram nada alm de sua ignorncia. Defende-a Charilao
justamente pues es tan generosa y llena de virtud80, e o faz porque por la ignorancia
del Artifice la arte no es digna de culpa81: Carranza deixa claro que o motivo pelo qual a
Destreza estava to mal afamada eram os praticantes de esgrima que ousavam proferir
serem destros na matria quando, na viso do mestre, no o eram.
Provocado por Polemarcho, que, baseando-se em Plato, afirma que em todas as
artes encontram-se muchos hombres baxos y de ningum momento, y pocos buenos y
dignos de estimacion, Charilao lhe responde que a Destreza se achava como a Poesia,
que por auer tantos y tan malos Poetas esta en grande menosprecio82. A diferenciao
entre as Destrezas vulgar e verdadeira , justamente, a ignorncia daquele que a pratica;
melhor nos explica Charilao/Carranza:
si quereys que de todo pu[n]to se descubra el engao de la Destreza, mir quan poco
se funda en razon, sin la qual no puede auer cosa razonal, y que la mayor fuerza
78
36
83
37
86
87
88
39
uma cincia que deve ser estudada e adotada por todos que querem saber manejar as armas
do melhor modo.
Chauchadis, ao longo do artigo, nos d a entender que Carranza, na redao de
seu manual, o fez utilizando-se de diversas estratgias para obter sucesso o que
conseguiu, disseminando sua doutrina e fixando-a como trao distintivo da corte
espanhola (e, mais tarde, como trao de nacionalidade). Diz Chauchadis:
Si Jernimo de Carranza pone de relieve el alto nivel cultural e intelectual de los
protagonistas de su dilogo, no es slo para captar la atencin de su lector, es
tambin para hacer su propia promocin de escritor en su intento de elevar la
destreza a la dignidad de la obra literaria. En efecto existe un paralelismo entre el
propsito del libro, que es alzar la destreza al nivel de las dems ciencias o artes, y el
esfuerzo de Carranza - Charilao por asegurar su posicin entre los hombres graves y
letrados que intervienen en el dilogo. Toda la composicin de la Filosofa de las
armas participa de la estrategia de Carranza, que consiste en afirmarse no slo
verdadero diestro sino tambin letrado inter pares93.
Bem, temos ento trs autores que viveram momentos diferentes em cortes
diferentes, mas que escrevem sobre a mesma matria a Verdadeira Destreza das Armas.
O primeiro deles, seu inventor, redigiu sua teoria por sugesto de seu senhor: para calar
as ms lnguas que deturpavam seu trabalho, acreditava ele, Carranza escolheu retirar-se
da prtica da Destreza para escrever sua teoria. E nela o autor utiliza-se de todas as suas
armas para provar que sua Destreza uma arte.
Seu manual deu incio aos estudos da Destreza para vrios discpulos. O mais
famoso deles, D. Luis Pacheco de Narvez, escreveu seu prprio manual, com a inteno
de retificar aquilo que considerava serem os erros de seu mestre justamente na parte
prtica, como j dissemos. Reunindo argumentos que demonstram que a Destreza uma
cincia, o Libro... de Pacheco foi to somente o primeiro de toda uma vasta trajetria
literria, na qual D. Luis continuou defendendo sua Destreza de inmeros crticos e
desafetos at sua morte.
93
Idem, p. 82.
40
Um dos crticos das obras de Pacheco de Narvez foi Diogo Gomes, o jovem
oficial portugus que achou-se inspirado tanto pelas obras de Carranza e D. Luis quanto
pelos autores, a quem deve ter conhecido pessoalmente podemos alentar a hiptese
talvez no de um encontro pessoal, mas de eventos em academias de esgrima, j que
ambos os mestres espanhis viajaram at Portugal. De qualquer modo, inspirado pela
doutrina, Diogo Gomes tinha a inteno de atrair mais jovens fidalgos prtica das armas
e o preparo para o combate que, percebe ele, pode ser iminente.
A Destreza das armas aparece como resposta a preocupaes to diversas quanto
s que tiveram Diogo Gomes, Pacheco de Narvez e D. Jernimo de Carrana em suas
respectivas pocas. A preocupao do mestre Carrana em mostr-la como um modo de
defesa natural dos cristos, de defender sua Destreza enquanto uma arte legtima cujo
conhecimento deveria ser buscado por todos; a inteno de Narvez de transform-la em
cincia, insistindo no uso das matemticas em sua teoria, e validando seu uso contra o
maior inimigo da Igreja: os reformistas que ameaavam o conjunto catlico que era o
reino de Espanha. E, finalmente, um ento jovem soldado que viu na prtica da tcnica
um bom meio de manter a fidalguia bem treinada nas artes blicas.
Porm, a definio de Destreza vai mais alm do que a primeira e bvia de
que se trata de uma escola de manejo de armas para combates entre dois oponentes. Para
estes homens e talvez muitos outros mais a prtica da Destreza constitua parte de sua
identidade, de seu modo de vida. Pois ser um destro significava mais, muito mais, do que
simplesmente o conhecimento de uma determinada arte marcial; significava que o
praticando era um homem honrado, reto, nobre, leal a seu rei e bom catlico (ao menos
em teoria). Pois o prprio Carranza que, utilizando sua voz, afirma no seu Libro de la
philosophia de las armas que o homem inuent la destreza de las armas, con la qual
mejora su animo, alienta y exercita el cuerpo, defiende la vida, aumenta la honra,
conserua su fama y estimacion, y guarda el uso della para las necessidades, en que suelen
poner los malos a los buenos94.
Agora que conhecemos um pouco melhor os textos com os quais trabalhamos,
passemos aos ambientes nos quais seus escritores circularam, que onde se encontrava o
94
pblico ao qual tais manuais de armas assim como outros tipos de manuais de
conhecimento nobilirquico era dirigido: as cortes.
42
43
95
MOLIRE. As preciosas ridculas, trad. M. C. Guimares. So Paulo, Editora Veredas, 1997, pp. 79-80.
44
Cerca de oitocentos anos antes, quando o poema pico anglo-saxo Beowulf foi
(presume-se) composto, o personagem do rei Hrothgar identificado como um velho
guerreiro, e a ele reservada a cadeira grande na mesa alta, onde so servidas as
melhores pores dos alimentos. Essas distines do rei dinamarqus so elementares, e a
historiografia mostra que eram as dos reis e senhores medievais: ele era o primeiro dos
nobres porque era seu chefe militar, porque conseguiu mais vitrias e portanto mais
riquezas e pode distribui-la a seu bel-prazer para formar alianas. A nobreza era formada
por cavaleiros, como rei, e, portanto, militarizada, masculina, rude talvez o exemplo
mais conhecido na literatura de tal corte seja a de Camelot, do rei Arthur.
O que nos propomos a analisar neste captulo como essa corte medieval,
formada por guerreiros, lentamente muda seus comportamentos, conforme muda tambm
sua composio, at que alcana uma complexidade tal que todos os momentos e
movimentos vividos ao menos na presena de terceiros planejada e controlada,
como uma dana na qual cada passo de cada bailarino deve ser executado
minuciosamente para que o resultado final seja o pretendido.
Para tanto, estudaremos o processo civilizador e a formao das cortes ibricas,
colocando nosso enfoque nestas cortes e, mais especificamente, aquelas nas quais os
autores de nossos manuais viveram e fizeram suas carreiras.
O PROCESSO CIVILIZADOR
Sabemos que nossos autores, Carranza, Pacheco de Narvez e Diogo Gomes eram
homens da corte. Quer dizer, estamos falando de pessoas que passaram parte de sua vida
cortejando pessoalmente seus monarcas, vivendo no mesmo espao que eles e junto de
outros homens e mulheres que faziam o mesmo; seus manuais foram redigidos tendo em
mente que outros nobres cortesos eram seus leitores. Mas o que significava ser corteso?
O que um manual significa para essas pessoas? o que pretendemos estudar neste
captulo.
Para entender o que ser corteso no sculo XVII preciso recuar alguns sculos,
de modo a examinar como se deu o processo de formao das cortes Modernas; para
tanto nos apoiaremos aqui no trabalho de Norbert Elias. Quando escreveu o primeiro
volume do Processo Civilizador Elias realizou todo um estudo sobre a gnese e a
45
Para ns, a escolha por tal delimitao apresenta ainda mais um motivo: foi
durante a Idade Mdia que a sociedade cavaleiresca estabeleceu-se como a dominante, a
detentora dos ideais e dos modos que norteavam a vida cotidiana afinal, como entende
Ernest Gellner, os cavaleiros controlavam a produo, j que controlavam os mecanismos
de coero/ dominao social (as armas e a violncia) 97. Os ideais da cavalaria, e grande
parte de sua simbologia, foi adotado pela nobreza como signos de distino, como
veremos mais adiante.
As primeiras cortes que surgem foram as que se formam ao redor dos senhores
feudais, uma vez que eram eles que detinham os meios militares e econmicos dos reinos.
Os reis no possuam renda suficiente para manter um exrcito prprio ou delegados nas
regies remotas; a remunerao possvel queles que lhe haviam prestado servios
militares de campanhas ou de manuteno de terras fronteirias era a doao de terras por
parte do rei. Por outro lado, diz Elias,
no havia juramento de fidelidade ou lealdade que impedisse os vassalos que
representavam o poder central de afirmar a independncia de suas reas to logo
sentissem pender em seu proveito a balana de poder. Esses senhores territoriais ou
prnicpes locais possuam, na verdade, a terra que o rei outrora controlava. Exceto
quando ameaados por inimigos externos, no mais necessitavam do rei.
Colocavam-se fora de seu poder. Quando dele precisavam como lder militar, o
movimento era invertido e o jogo recomeava, supondo que o suserano fosse
vitorioso na guerra98.
96
46
99
Idem, p. 35.
ELIAS, Op. Cit., vol 2, p. 59.
100
47
cantar, narrar e gravar seus feitos e de seus cavaleiros101. Nesse meio social heterogneo,
onde no se justificava mais a violncia inesperada, os cavaleiros tiveram de mudar seus
hbitos, ao menos quando na companhia de outros, especialmente da castel: a presena
de mulheres, ou, ainda, da esposa do suserano, a quem deviam seu conforto, fazia com
que os cavaleiros se portassem de modo mais comedido. Mas certamente esta situao
no deve ser exagerada, alerta Elias. A espada continuava solta na bainha, e a guerra e
as rixas estavam sempre por perto. Mas a moderao das paixes, a sublimao,
tornaram-se inequvocas e inevitveis na sociedade de corte feudal102.
O homem medieval possua suas paixes, seus sentimentos, flor da pele;
segundo Johan Huizinga, a vida diria oferecia continuamente ilimitado espao para um
ardoroso apassionamento e uma fantasia pueril103. Conforme o autor nos apresenta, a era
medieval foi um tempo no qual as emoes, as diferenas, at mesmo as sensaes como
fome, frio e calor, eram mais pronunciadas do que seria depois experimentado; a clera e
a vingana poderiam mover uma vida, assim como o ser partidrio de seu prncipe104.
Vivia-se intensamente o presente, porque no havia futuro105 - que no s a Deus
pertencia, como j estava escrito na Bblia. medida que a vida cotidiana ganha uma
certa regularidade, o auto-controle se torna mais fcil; possvel prever o dia de amanh
com mais chances de acerto106.
A vida na corte passou, ento, a ser regrada. No do modo rgido que conheceram
as corte modernas, sculos adiante, mas com uma etiqueta recm-nascida que deveria ser
observada por aqueles que compartilhavam tal meio. Elias demonstra que a mudana no
controle das paixes e conduta que denominamos civilizao guarda estreita relao
com o entrelaamento e interdependncia crescente das pessoas107. Continua o autor:
mas mesmo neste contexto, num crculo ainda pequeno em comparao com as
futuras cortes absolutistas, a coexistncia de certo nmero de pessoas cujas aes
constantemente se entrelaavam, compelia mesmo os guerreiros, que descobriam
estar numa situao de interdependncia mais forte, a observar algum grau de
101
Idem, p. 73.
Idem, p. 74.
103
HUIZINGA, Johan. El Otoo de la Edad Media, trad. Madrid, Alianza Editorial, 1982, p. 21
104
Idem, pp. 13-45.
105
Huizinga, Homo ludens, trad. J. P. Monteiro. So Paulo, Perspectiva, 2007, 5 edio
106
Elias, Op. Cit., vol 2, p. 200 e pp. 229 e ss.
107
Idem, vol 2, p. 54.
102
48
108
49
111
Idem, ibidem.
CUNHA, Mafalda Soares. A Casa de Bragana, 1560-1640. Prticas senhoriais e redes clientelares.
Lisboa, Editorial Estampa, 2000.
113
Idem, pp. 89-90.
112
50
Ao contrrio do que se passa mais ao norte, onde a Reconquista j havia sido concluda e
o territrio, assim como as famlias, estavam em situao mais estvel.
Rita Costa Gomes, em seu livro A corte dos reis de Portugal no final da Idade
Mdia, diz-nos que as primeiras cortes portuguesas j surgiram estruturadas como tais:
a reivindicao da dignidade rgia por parte dos nossos primeiros monarcas foi,
naturalmente, acompanhada pela estruturao da corte segundo o uso comum s
zonas mais ocidentais da Pennsula. Assim encontramos j na corte dos condes
portucalenses, como mais tarde na de Afonso Henriques, a mencionada distino
entre maiordomus e armiger (designado tambm por alferes nos documentos deste
ltimo) que caracteriza das cortes ibricas116.
Gomes no critica o modelo de Elias, adotando-o como base para elaborar suas
reflexes, mas apresenta um aspecto importante da formao das cortes que este no
levou em conta: a itinerncia do monarca e, portanto, da corte. dessa mobilidade que
advm a primeira definio de corte como sendo o lugar onde est o monarca. Porque
onde ele estiver, estar seu squito ao menos na Idade Mdia. A possibilidade de
acompanhar ou no o rei determina quais famlias compunham as cortes, e em quais
momentos117. A autora conclui dizendo que
114
MATTOSO, Jos. A nobreza medieval portuguesa: a famlia e o poder. Lisboa, Editorial Estampa,
1981, pp. 356-358 e 364-366.
115
Idem, pp. 356-357.
116
GOMES, Rita Costa. As cortes dos reis de Portugal no final da Idade Mdia. Linda-a-Velha, DIFEL,
1995, p. 24.
117
A esse tema Gomes dedicou todo um captulo de sua tese; ver idem, cap. IV.
51
de tal modo, a itinerncia surge como factor estruturante da sociedade cortes, que
pensamos que se deve relacion-la no s com as suas formas de vida, mas tambm
reflectir sobre os seus efeitos nas dimenses da corte, luz do iminente natural do
seu crescimento que ditado pela frequente movimentao no espao. (...)
relacionando seu crescimento [das cortes] que, como j observmos, caracterizou a
passagem do perodo medieval para a poca moderna (sculos XVI-XVIII), com o
contemporneo processo de sedentarizao mais ou menos efectiva dos diversos
monarcas. A corte torna-se mais numerosa e, concomitantemente, menos mvel
seno totalmente fixa, a partir do sculo XVI 118.
118
52
122
53
127
54
Quer dizer, ao mesmo tempo em que a etiqueta serviu para distanciar a nobreza de
corte de seus rivais sociais ela tambm criou uma identidade: s poderia fazer parte
daquela sociedade quem soubesse seus cdigos. E estes s poderiam ser aprendidos
dentro deste grupo131.
Este processo de controle das pulses e modificaes no comportamento social
dos indivduos levou sculos desde as primeiras cortes do sculo XII, compostas
majoritariamente de cavaleiros unidos em diversas batalhas, at as cortes dos reis
modernos, onde toda e qualquer ao observada de modo a expor e marcar as diferentes
posies que os nobres ocupam junto ao rei132.
No se trata, em absoluto, de um processo consciente e planejado pelos membros
de tal sociedade; as presses de outros grupos a burguesia, numa ponta, e o rei na outra
no aconteceram de caso pensado, e muito menos o foi a reao da nobreza ao adotar
todo esse cerimonial. Nas palavras de Elias a corte
no foi concebida e criada subitamente, em algum momento, por indivduos, mas
formada aos poucos, tendo por base uma transformao especfica das relaes de
poder social. Todos os indivduos foram tangidos, por uma dependncia especfica
de outros para essa forma particular de relacionamentos. Atravs de sua
interdependncia mtua, eles se prendiam uns aos outros na corte; esta no s foi
gerada por esse entrelaamento de dependncias, como criou uma forma de
relacionamentos humanos que sobrevivia aos indivduos, como uma instituio de
profundas razes, enquanto esse tipo particular de dependncia mtua era
continuamento renovado, com base numa estrutura especfica da sociedade em
geral133.
Pois bem, vimos rapidamente a formao das cortes Modernas a partir das obras
de Norbert Elias. De modo algum esgotamos aqui o assunto; pelo contrrio, inmeras
questes surgem com a leitura e reflexo dos textos do autor. Focaremos agora em dois
pontos que consideramos particularmente relevantes para a construo da nossa
dissertao: o lugar fsico da corte Moderna (j que o lugar social que ela ocupa
131
55
134
CURTO, Diogo Ramada. A cultura poltica. In: MATTOSO, Jos. Histria de Portugal, volume 4,
Lisboa, Estampa, s/d, p. 115.
135
MARTNEZ MILLN, Jos. La corte de la monarqua hispnica In: STVDIA HISTORICA.
Salamanca, Ed. Universidade, vol. 28, 2006, p. 57.
136
Apud Martnez Milln, p. 30.
56
137
57
do monarca ou mesmo sem ele nos mais diversos momentos do dia. Cada funo
desempenhada marcava a posio social deste ou daquele nobre que a cumpria, como e
quando o fazia. Segundo Antnio Cames Gouveia no captulo Estratgias de
interiorizao da disciplina no volume 4 da j citada Histria de Portugal de Mattoso,
o cerimonial de corte visava, atravs do protocolo, aqui se englobando as maneiras de
estar, de presenciar, as precedncias e as formas de tratamento, colocar o rei no centro
das atenes, o que queria dizer no centro do poder141.
Porque, como afirma Nuno Monteiro no j citado artigo, a configurao da
sociedade, baseada numa ordem natural, trinitria (herdada da Idade Mdia), devia ser
imediatamente apreensvel. Por isso, diz ele, os podereres e as hierarquias legadas pela
histria reforavam-se e legitimavam-se na medida em que podiam ser olhados e
ouvidos142. O poder s existe se visvel e compreendido por todos.
Voltemos para Rita Costa Gomes. NA corte dos reis de Portugal... ela define
corte, logo no incio, como o espao em que se encontra o rei e tambm os homens que o
acompanham, um organismo cujos contornos so fluidos (incluindo todos os que se
integram nesse espao, mesmo que temporariamente)143. Vejamos o que diz a
pesquisadora sobre a corte baixo-medieval:
A corte surgiu, afinal, como o lugar por excelncia do tornar-se nobre, atravs de
processos que patenteiam a relatividade das classificaes sociais da poca e a
atitude instrinsecamente ambgua do monarca face a uma fronteira to importante da
sociedade de ento conceder generosamente os atributos da nobreza era, tambm,
engrandecer a corte e, naturalmente, a sua prpria figura. (...)
Agrupando-se em torno do rei, a corte constitui tambm um meio particular pelo
tipo de relaes de interdependncia que nela se estabelecem. A importncia que
assume neste espao a autoridade patriarcal do monarca de tal forma grande que
pudemos aperceber-nos da sua afirmao noutros contextos sociais, no s atravs
da multiplicao das pequenas cortes (em torno de membros da famlia real ou de
grandes senhores) que reproduzem este modelo de sociabilidade, mas tambm
atravs da difuso dos estatutos e prticas da nobreza cortes144.
141
GOUVEIA, Antnio Cames. Estratgias de interiorizao da disciplina. In: MATTOSO, Op. Cit.,
vol. 4, p. 416.
142
Monteiro, Op. Cit., p. 8.
143
Gomes, Op. Cit, p. 09.
144
Idem, p. 328.
58
59
pois no h troca a ser realizada. Por isso a possibilidade de servir ao rei no a nica,
desde que hajam senhores ricos e poderosos o suficiente para atrair aquela nobreza
disposta a servi-lo.
A mudana entre a Idade Mdia e a Moderna o centro do poder, que se
confunde com a maior reserva de fundos: se na Idade Mdia era mais vantajoso estar a
servio de um senhor feudal, com mais possibilidades de privilgios do que o rei, na
Modernidade nele que o poder vai ser centralizado, o que significa que ele o detentor
das melhores benesses. O que no quer dizer que a corte real seja a nica opo as
cortes ducais continuam sendo um grande plo de atrao: por exemplo, Castiglione
estava na corte do duque de Urbino quando escreveu Il Cortegiano; artistas de toda sorte
eram atrados at a corte dos duques de Bragana, em Vila Viosa, at a ascenso desta a
Casa Real; a corte do duque Medina Sidonia, a servio do qual estava D. Jernimo de
Carranza quando escreveu seus Dilogos, poderosos senhores castelhanos.
O que verificamos tambm que nesse ponto das monarquias centralizadas a
etiqueta de corte se torna algo to relevante que ultrapassa a esfera de controle do rei, e
passa a caracterizar o espao da corte; na concepo de Martnez Milln, a etiqueta, o
comportamento que os cortesos adotam quando em grupo, constitui um elemento
definidor da corte147.
Quer dizer, no basta, na poca moderna, a nobreza estar no espao material da
corte, ela deve tambm adotar determinado padro de comportamento. Embora o
mecanismo de funcionamento continue dependendo de um centro de irradiao de
benesses, a funcionalidade/a organicidade, enfim, a entidade corte se torna um algo maior
que a esfera de influncia dos senhores, e que independe dele a ponto de a etiqueta
continuar a funcionar mesmo quando o centro do poder no se encontra presente.
APRENDENDO A COMPORTAR-SE: OS MANUAIS
Elias nos diz que nos movimentos desse perodo [a Renascena], as cortes foram
se tornando o modelo concreto e os centros formadores do estilo148.
147
148
Estilo este que ditava as regras de etiqueta das cortes; que diferiam de corte a
corte e, consequentemente, forjava uma identidade para os cortesos que compartilhavam
o mesmo cdigo de conduta149, lembrando que as relaes sociais na poca so
horizontais: a nobreza s convive com a nobreza, os clrigos com outros religiosos e
assim por diante150. Com a heterogeneidade de pessoas vivendo naquele espao no era
mais possvel aprender todas as regras do bom comportamento individualmente; quer
dizer, nas cortes feudais, onde as regras no eram tantas e se tratava de um grupo
fechado, as boas regras eram aprendidas em famlia, desde a infncia.
Nas cortes modernas o aprendizado dos modos era requisito para frequentar este
espao, e no s haviam tornado-se mais complexas como existiam indivduos que no as
praticavam desde crianas. A soluo: manuais de comportamento compilavam o que
deveriam saber as pessoas que viviam na boa sociedade, mantendo o registro delas e
ensinando aos recm-chegados as normas s quais deveriam obedecer.
Talvez o maior de todos os manuais de etiqueta tenha sido Il Cortegiano, de
Baldassare Castiglione. Uma cpia humanista do De oratore de Ccero, o manual de
Castiglione foi impresso em 1528 e tornou-se um grande sucesso durante muitos anos151
inclusive atualmente, quando diversos pesquisadores debruam-se sobre ele.
Em Il Cortegiano, Castiglione narra o que se passa na corte do duque Guido
Ubaldo, na cidade de Urbino, na Itlia. Devido a um problema de sade que o forava a
retirar-se para seus aposentos logo aps o jantar, o entretenimento de seus cortesos
ficava a cargo da senhora duquesa Elisabetta Gonzaga152. Um dia, aps o jantar, a
senhora Emlia Pia, constante companhia da duquesa, fez com que cada fidalgo sugerisse
um jogo que os divertisse. Chegada sua vez de falar Dom Federico Fregoso props um
jogo no qual cada nobre discorreria sobre as caractersticas do bom corteso, de modo
149
Cf. Curto, Op. Cit, p. 118. Martnez Milln, citando os professores italianos Papagno e Quondam, diz
que desde el punto de vista poltico-institucional, la corte se constituy a partir de la propia identidad
material: el espacio de su territorio estatal, que produjo una serie de relaciones. In Martnez Milln, Op.
Cit, p. 27.
150
Elias, Processo Civilizador, vol. 2, p. 18.
151
Cf. BURKE, Peter. As Fortunas dO Corteso, So Paulo, Editora UNESP, 1997, p. 159.
152
CASTIGLIONE, Baldassare. O Corteso. Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 11 e ss.
61
153
Idem, p. 19 e ss.
Dom Ludivico de Canossa comea a caracterizar o corteso ideal: quero, portanto, que esse nosso
corteso tenha nascido nobre e de rica famlia; porque muito menos se critica um plebeu por deixar de fazer
operaes virtuosas do que um nobre, o qual, ao se desviar do caminho de seus antecessores, macula o
nome da famlia e no somente deixa de adquirir, mas perde o j adquirido; porque a nobreza como uma
clara lmpada, que manifesta e permite ver as obras ruins, acende e estimula a virtude, tanto com o temor
do oprbrio como com a esperana de louvores: e, como esse esplendor de nobreza no revelado pela
obra dos plebeus, a estes falta o estmulo e o temor daquela infmia, e no se sentem obrigados a ir alm de
onde foram seus antecessores; e aos nobres parece censurvel no chegar pelo menos ao ponto que lhes foi
assinalado por seus ancestrais; podemos perceber nessa fala a presso exercida pelo grupo para que os
nobres comportem-se de acordo, conforme vimos em Norbert Elias (A sociedade de Corte, vol. 2), pp. 2728 e ss.
154
62
Tanta perfeio no passa despercebida aos outros senhores que esto a jogar.
Aps o discurso sobre a importncia das letras na formao do corteso, o senhor
Ludovico Pio se v inclinado a comentar que muito j fora dito a respeito da educao do
corteso. Porque creio, diz ele, que no mundo no seja possvel encontrar um vaso to
grande que caiba todas as coisas que vs desejais que estejam nesse corteso156.
Castiglione previra este tipo de comentrio por parte de leitores, criticando a perfeio
inatingvel de uma pessoa. Na introduo temos uma carta de Castiglione endereada ao
Reverendo e Ilustre Senhor dom Miguel de Silva, Bispo de Viseu157; na carta, o autor
retruca tais crticas:
Outros dizem que, sendo to difcil e quase impossvel encontrar um homem to
perfeito como pretendo que seja o corteso, foi suprfluo escrev-lo, pois intil
ensinar aquilo que no se pode aprender. A esses respondo que me contentarei por
ter errado junto com Plato, Xenofonte e Marco Tlio, deixando a contenda entre o
mundo inteligvel e o das idias, dentre as quais, assim como (segundo aquela
opinio) se insere a idia da perfeita repblica, do perfeito rei e do perfeito orador,
agora se agrega a do perfeito corteso, de cuja imagem, se no pude me aproximar
com o estilo, menor esforo ainda tero os cortesos para se aproximarem com suas
obras do termo e da meta que eu lhes propus ao escrever158.
155
63
160
SENELLART, Michel. As artes de governar, trad. Paulo Neves. So Paulo, Editora 34, 2006.
Idem, pp. 50-51.
162
Ibidem, p. 53.
163
Ibidem, p. 55.
164
Ibidem, pp. 62-63.
161
64
trata de um grupo de nobres cortejando um grande senhor, que vive numa bela casa e
oferece deliciosos banquetes. Ou seja, tudo isso, toda essa etiqueta, todos esses
ensinamentos, s fazem sentido quando inseridos num contexto maior que as capacidades
individuais de cada um: a prtica da etiqueta cortes s faz sentido quando h a
socializao do grupo.
No captulo Os usos da civilidade de Jacques Revel que faz parte do volume 3
da coleo Histria da Vida Privada, dirigida por P. Aris e R. Chartier, o autor faz uma
comparao interessante entre Il Cortegiano e o De civilitate morum puerilium de
Erasmo, um dos manuais escolhidos por Elias para analisar as mudanas na etiqueta. Diz
Revel que, aproximando ambos manuais, temos obras de cunho absolutamente diferentes,
embora tratem do mesmo tema (comportamento do indivduo em sociedade): Erasmo
inicia uma tradio na qual as civilidades no s podem ser aprendidas e ensinadas de
maneira til, como servem para todos, sem muitas distines, enquanto Castiglione
prope um modelo de civilidade que respeita o status dos indivduos e suas diferenas
sociais, assim como a distncia que os separa.
No Il Cortegiano as qualidades do perfeito corteso no so apreendidas, elas so
reconhecidas, tanto exteriormente ou seja, ligado ao sucesso social do indivduo: o
favor do prncipe, a estima dos pares quanto interiormente que situam-se no mbito
da graa, das caractersticas inatas posio de nobreza. Do que decorre logicamente
uma terceira consequncia: a excelncia cortes no se aprende, reconhece-se em todos
os comportamentos como uma evidncia partilhada, segundo Revel165. Continua ele:
em Castiglione e seus sucessores, a norma distintiva; as boas maneiras repousam na
conivncia de um grupo fechado que o nico dono dos critrios de perfeio. O
corteso se identifica com a construo de um personagem social capaz de agradar pela
quantidade e pela eminncia de seus talentos166.
Da, ento, a aproximao que os autores de corte tem em relao a seus leitores:
o manual no tem serventia para aqueles que no so de nascimento nobre, pois o sangue
nobilita as aes so meras externalizaes daquilo que a pessoa feita. No importa
165
REVEL, Jacques. Os usos da civilidade In: ARIS, P. e CHARTIER, R. (dir). Histria da Vida
Privada, trad. H. Feist. So Paulo, Cia das Letras, 2004, p. 193.
166
Idem, p. 194.
65
que na verdade todo esse teatro corteso seja aprendido; o que est em jogo aqui a
manuteno da ordem social e a reproduo do estilo de vida que garante a um grupo de
indivduos que continuem ocupando o lugar social que lhes cabe.
Claro que isso muda; os comportamentos das cortes que se formavam no
Quinhentos eram bastante flexveis e permissivos quando comparados com os padres
que foram adotados no sculos XVII e XVIII. Surgiu, ento, todo um leque de manuais e
mestres para ensinar os novos pormenores que agora j no eram mais meramente
reconhecidos e espelhados e o dilogo cede espao para um outro tipo de escrita, como
pudemos observar em nossos manuais de manejo de espadas. O enrijecimento das regras
de comportamento corteso pode ser acompanhado durante o governo da famlia
Habsburgo em Castela; nos cerca de 150 anos que Carlos e os Filipes foram monarcas a
etiqueta passou de instrumento de sociabilidade controlada pelo rei a algo que controlava
tambm o monarca, como veremos adiante.
LA PLUS FOLLE VADA AVANTE!
A chegada do herdeiro dos Monarcas Catlicos a Castela causou comoo. No s
chegava o novo rei um estrangeiro como ele fazia acompanhar-se de todo um squito de
estrangeiros agindo conforme a voga de Borgonha.
At ento a corte formada pelos reis Trastamaras no aparentava ser muito
diferente do que vimos para Portugal: uma nobreza formada genticamente pela camada
guerreira que combateu durante a Reconquista e que se tornou citadina e palaciana167. A
chegada de uma nova corte significou que novos hbitos foram incorporados etiqueta
local, no sem muitos choques entre a nobreza j estabelecida e a que chegava com o
monarca Habsburgo.
No foi at a dcada de 1540, depois de coroado imperador, que Carlos V
demonstrou ter algum tipo de programa que envolvesse a corte como instrumento de
governo. De acordo com John Elliot, ningn hombre ha sido
tan profundamente
consciente de la forma en la que los smbolos pueden ser empleados y manipulados con
167
Cf. IRADIEL, P.; MORETA, S.; SARASA, E. Historia Medieval de la Espaa Cristiana. Madrid,
Ctedra, 1995, especialmente cap. 7 sobre a composio das primeiras cortes e da corte dis Trastamara, e
cap. 9 sobre a formao da etiqueta moderna e influncias do Humanismo na corte dos Monarcas Catlicos.
66
168
ELLIOT, John. Espaa y su mundo (1500-1700), trad. Madrid, Taurus, 2007, p. 196.
Idem, p. 198, e MARTNEZ MILLN, Jos. Introduccin in: idem (dir.), La corte de Felipe II.
Madrid, Alianza, 1999, p. 18. A respeito das cortes papais, ver VISCEGLIA, Maria Antonietta. Guerra,
Diplomacia y Etiqueta en la Corte de los Papas (siglos XVI y XVII) (trad.). Madrid, Ediciones Polifemo,
2010.
170
LHERMITES, Jehann. El Pasatiempos de Johann Lhermites trad. Jos Luis Checa Cremades. Madrid,
Doce Calles, 2005. Este relato foi escrito por um nobre flamengo que foi Madrid com a inteno de servir
Filipe II, e que l esteve entre 1587 e 1602; Lhermites acompanhou os ltimos anos do monarca, seguindolhe em suas numerosas viagens, e encantou-se com o edifcio do Escorial, onde passou muitos meses junto
ao rei. Lhermites logrou seu intento, tornando-se o professor de lngua francesa do herdeiro do trono D.
Filipe segundo o autor do relato, porque o rei acreditava ser essencial que o prximo monarca fosse
versado neste idioma e cultura. O flamengo retornou Flandres aps a aclamao de Filipe III, j no
estando interessado em continuar na corte espanhola, que ele considerava um lugar cheio de pessoas
maledicentes e invejosas. O relato foi escrito entre 1597 e 1604, e considerado por seus prefaciadores
(Fernando Checa e Jess Senz de Miera) um documento pouco estudado pela academia espanhola. O
primeiro entrave seria o da lngua, uma vez que El pasatiempos original foi publicado ainda no sculo XVII
em neerlands; a traduo que os autores apresentam nesta edio de uma verso reduzida traduzida para
o francs em 1890 e 1896. O original da obra encontra-se na Real Biblioteca Alberto I de Bruxelas. Para
mais informao pode ser consultado o artigo de Teresa Ferrer Vals, De los medios para mejorar estado.
Fiesta, literatura y sociedad cortesana en tiempos de El Quijote, en B. J. Garca Garca y M. L. Lobato
(coords.), Dramaturgia festiva y cultura nobiliaria en el Siglo de Oro, Iberoamericana-Vervuert, 2007, pp.
151-167.
171
Elliot, Op. Cit., pp. 191-195.
169
67
Seu herdeiro, Filipe III, por sua vez no deixou marcas distintas nos cerimoniais
cortesos. Mesmo sua tentativa de mudar a corte de volta para a cidade de Valladolid
acabou frustrada e tal impotncia perante a nobreza cortes explicada por Elliot como
sendo ele um governante cujo carisma no possua fora suficiente para quebrar as
exigncias impostas pela etiqueta de corte ao que Elias chamou de perpetuum mobile.
Para o historiador, somente trs personagens conseguiram o feito durante toda a dinastia
Habsburgo: Carlos V, Filipe II e o Conde-Duque Olivares.
Sobre a corte de Filipe III temos o testemunho que nos legou Thom Pinheiro da
Veiga na forma de sua Fastigimia172. Escrito nas primeiras dcadas do sculo XVII a
Fastigimia um relato irnico e sarcstico da vida na corte em Valladolid quando nasceu
o prncipe herdeiro. Nas palavras de Pinheiro da Veiga, sua inteno ao escrever tal obra,
e de tal forma, foi que quando meus bons netos lessem estas memorias ao soalheiro,
pudessem dizer: No tempo em que nasceu o Principe Felippe Domingues, esteve o nosso
dono, que come a terra fria, vendo na Corte tantas festas, sem hum real na bolsa...173.
Escrita na forma de dirio, no qual foram registrados quase todos os dias do
primeiro semestre de 1605, a Fastigimia nos d uma amostra do que seria a vida
cotidiana de um corteso portugus em Valladolid. Pinheiro da Veiga acompanha e relata
a vida religiosa na forma de missas e procisses e a vida mundana da corte de Filipe
III; o autor deixa claro seu assombro perante a falta de sobriedade com que os espanhis
vivem a Semana Santa, quando comparados aos portugueses, trajando-se sem modstia e
at mesmo para maior espanto de Pinheiro da Veiga interrompendo as celebraes
sagradas para festejar o nascimento do herdeiro do trono.
Dentre todas as insinuaes feitas por Pinheiro da Veiga a que mais se sobressai
a da proeminncia dos Grandes de Castela sobre a figura do rei. Atendendo ao ofcio da
Cruz na capela de Filipe III, Pinheiro da Veiga verifica que estavam presentes os quatro
Grandes do monarca,
o Duque do Infantado, o Duque de Sessa, o Condestable, o Marquez de Pescara; os
quaes smente estavam sentados em um banco da parte da cortina de El-Rey, e no
172
VEIGA, Thom Pinheiro. Fastigimia, prefcio de Maria de Lurdes Belchior. Lisboa, Imprensa Nacional
Casa da Moeda, 1988.
173
Idem, p. 7.
68
Assim como seu pai, Filipe IV estava preso s amarras do comportamento social
civilizado. Mais ainda: durante o secretariado do Duque de Lerma, o rei tornou-se refm
das vontades dos Grandes de Castela que souberam utilizar de artifcios prprios da
nobreza casamentos, alianas, acordos para galgarem mais espao e poder junto ao
governo do reino. A soluo encontrada por Olivares para resolver tal impasse foi o de
substituir as famlias nobres que detinham tanto poder no reino por seus rivais176.
Uma das famlias contra quem o Conde-Duque dirigiu suas foras foi a dos
Guzmn (da qual o prprio Olivares fazia parte), que detinham o ducado de Medina
Sidonia; como dissemos no captulo anterior, foi sob a proteo desta famlia que se
encontrava D. Jernimo de Carranza quando comps seus dilogos sobre a Destreza das
armas na segunda metade do sculo XVI. O duque de Medina Sidonia era responsvel
por guardar uma parte da costa sul espanhola; Segundo Rafael Valladares, este ducado
era o mais poderoso de todo o reino espanhol moderno somente a Casa Real era maior
que os Guzmn. Diz o pesquisador que
Localizados na costa de Huelvas e Cdiz, os seus senhorios encontravam-se, todos
eles, numa invejvel encruzilhada: estavam simultaneamente voltados para para o
Atlntico e para a embocadura do Estreito de Gibraltar, no meio do nico foco
urbano existente naquela parte da Pennsula, formado pelo eixo Lisboa-Sevilha. Os
174
Ibidem, p. 23.
Ibidem, p. 29.
176
Cf. Elliot, op. cit., pp. 200-202.
175
69
177
70
fosse Madrid, fosse Valladolid para, segundo Elliot, escapar por alguns momentos das
presses da vida de corte181.
E, durante o reinado de Filipe IV, a monarquia tomou para si o papel de grande
mecenas do reino papel que, como dissemos, estava disperso entre as grandes casas182;
no foi mera coincidncia ou acidente que durante o perodo em que Filipe IV esteve no
poder
a Espanha tenha visto surgir academias das mais diversas formas de arte,
181
71
Cerca de cem anos mais tarde, em 1655, conta-se que Filipe IV teria recusado a
oferta de um esplndido cavalo feita a ele pelo duque de Medina de las Torres, pois um
antigo costume castelhano pregava que um cavalo qualquer cavalo que uma vez
montado pelo rei no poderia voltar a ser cavalgado por outra pessoa, e o monarca
pensava ser lstima que um animal to magnfico nunca mais voltasse a ser montado.
Ou ainda, num caso bem mais grave, diz-se que a morte de Filipe III teria sido
apressada por causa de uma febre fatal contrada porque tinha um braseiro muito
prximo, e o gentilhomem de cmara, o duque de Alba, no tinha autorizao para mexer
nele somente o sumiller de corps o teria, e este o duque de Ucea no se encontrava
no palcio185.
Tais historietas no passam de anedotas, sejam elas verdadeiras ou no. Porm,
elas expressam exatamente o que estamos aqui a dizer: Carlos V conseguia controlar seus
cortesos, sua nobreza; era ele quem lhes atribua, em ltima instncia, suas posies
junto aos outros nobres. O tom de troa em relao s duas damas que Jimenz de Urrea
adota caracterstico da poca: a etiqueta, as regras de precedncia, no so mais
importantes (ou no deveriam ser) para o nobre corteso do que o servio ao rei.
O que j no se passa com seu neto e bisneto: um teve de recusar um presente
justamente por ter gostado tanto dele, o outro caiu mortalmente adoentado porque o
fidalgo que lhe fazia companhia no momento no podia simplesmente quebrar o
protocolo para movimentar um msero braseiro. Ou seja, a etiqueta se torna mais
importante do que o servio ao rei; os modos ultrapassaram o convivo social para se
tornar o regulamentador daquela sociedade cortes a ponto de beirar o irracional. E por
maior o tempo que tenha levado para atingir tal patamar, a sua quebra foi ainda mais
longa.
TODA FIDALGUIA ERA IGUAL. MAS INFERIOR AOS BRAGANA
184
185
186
Sobre a estada de Filipe II em Lisboa, sua entrada rgia e os rogos portugueses por mais ateno ver
MEGIANI, Ana Paula. O Rei Ausente. So Paulo, Alameda, 2004.
187
Cunha, A Casa de Bragana..., Op. Cit., p. 35 e ss.
188
Cf. Costa e Cunha, Op. Cit., p. 42. Tal famlia foi profundamente estudada por Mafalda Soares da
Cunha, no seu j citado A Casa de Bragana. Prticas senhoriais e redes clientelares (1560-1640), no qual
a autora analisa a formao das redes de senhorios e ttulos espalhados por todo o reino portugus que lhes
permitia alcanar as mais diversas localidades de Portugal com sua suas influncias e poderes.
74
Leonor Costa e Mafalda Cunha atribuem tal gesto nova conjuntura poltica, uma
vez que as novas possesses no alm-mar permitiam monarquia novas lgicas de
relacionamento com a nobreza j que
No sculo XV os recursos distributivos de que a Coroa passou a usufruir em
resultado da administrao e da explorao comercial das conquistas permitiram
uma maior harmonizao entre os esforos de interveno poltica do centro sobre o
territrio e o espao social do reino. A monarquia distanciou-se definitivamente de
todos os seus potenciais concorrentes internos, deixando, assim, de recear quaisquer
excessos de acumulao de poder. Podia mesmo permitir que alguns plos polticos
se reforassem e consolidassem189.
Porque no importava mais o quanto poder tais plos arraigassem dentro do reino:
o monarca sempre teria a vantagem das colnias espalhadas pelo mundo afinal,
justamente este o imprio onde o sol nunca se pe. Pesavam tambm as ligaes
familiares, j que a irm de D. Manuel, D. Isabel, era a me do jovem duque D. Jaime.
No foi, portanto, grande surpresa os Bragana se apresentaram como potenciais
herdeiros do trono quando D. Sebastio desapareceu no norte da frica em sua fracassada
expedio. Tanto que D. Catarina foi considerada uma candidata possvel monarquia,
assim como Filipe II de Espanha e D. Antnio, prior do Crato e filho dito bastardo d
Infante D. Lus. Se desta vez o Bragana pleitante entrou em acordo com o rival Filipe
II e cedeu-lhe os direitos sucessrios190, o mesmo no aconteceu sessenta anos depois,
quando um Bragana primeiro o irmo do duque, D. Duarte, e depois o prprio duque
foi escolhido pelos restauradores para ser o rei de Portugal.
Assim como seus pares em Espanha, os Medina Sidonia, os Duques de Bragana
contavam com uma corte a seu redor. Sobretudo enquanto o duque foi D. Teodsio II
(1568-1630, titular desde 1583), pai do futuro D. Joo IV, prncipe distante, de uma
austeridade enleante, ciso da hierarquia e do cerimonial191, nas palavras de Eduardo
DOliveira Frana. Continua o professor dizendo que
Em torno dele tinha que vicejar uma corte. Seus vassalos chegavam a 80 mil. Seus
familiares chegavam a 800. Como um verdadeiro soberano distribua os ofcios de
sua casa entre fidalgos que dele dependiam. Como num pao rgio (...). Essa
189
Idem, p. 45.
Cf. Ibidem, pp. 50-55.
191
Frana, Op. Cit., p. 106.
190
75
Corte de aldeia, mas corte. Podia no ser como a de Madrid, ou mesmo Lisboa
antes da Unio, mas ainda era um espao onde a cortesia era praticada e aprendida, um
lugar onde era possvel pr em prtica tudo aquilo que se havia aprendido sobre convvio
com outras pessoas de qualidade nobre. E D. Teodsio II fazia com que todas as
cerimnias e hierarquias fossem observadas e respeitadas em seu domnio. D. Francisco
Manuel de Melo, grande cronista do reinado de D. Joo IV aps a Restaurao nos
oferece uma viso do que seria esperado no Pao Ducal de Vila Viosa:
Recebia sob o dossel do trono os cavaleiros, sentando-os em cadeira iguais, que os
reposteiros lhes ofereciam. A sua ficava sobre uma curta tapearia, a do hspede
prxima de si e na sua frente. Ao entrar no a achava na sala, porm ao sentar-se
tinha-a ali sempre porque lha traziam. Os cavaleiros da sua casa, compareciam
primeiro na sala, e ao longo das paredes davam toda a solenidade sua entrada. Do
seu lugar, depois, o Duque retribua suas homenagens e saa a receber seu hspede,
avanando mais ou menos passos conforme sua categoria, fazendo depois sinal para
que os outros retirassem. Mas se a visita era s de cumprimentos, deixava ficar ali
sua corte, os criados de p, cobertos ou descobertos, segundo as precedncias de
cada um193.
192
76
194
CUNHA, Mafalda Soares. D. Teodsio II, stimo duque de Bragana. Prticas senhoriais como poltica
de reputao In: Monumentos. Revista Semestral de Edifcios e Monumentos, Instituto da Habitao e
Reabilitao Urbana, Lisboa, vol. 37, dezembro/2007, p. 55; tambm Cunha, A Casa de Bragana, p. 33 e
ss, e p. 16, e Costa e Cunha, Op. Cit., pp. 95-96.
195
Cf. Costa e Cunha, p. 61, p. 76 e ss.
196
Melo, idem, p. 179.
197
Cunha, D. Teodsio II..., p. 58.
198
Frana, Op. Cit., p. 115.
199
Sobre a corte de D. Teodsio no Pao Ducal de Vila Viosa ver: Frana, Op. Cit., pp. 110-116; Costa e
Cunha, Op. Cit., pp. 61-71 e Cunha, D. Teodsio II..., pp. 53-59.
200
Costa e Cunha, Op. Cit., p. 76.
77
que diferenciava D. Joo de seu pai era a maior abertura em relao a Castela e aos
costumes castelhanos: tanto que os trmites de seu casamento com D. Luisa Guzmn s
puderam ser concludos aps a morte do velho duque, que buscava uma noiva para seu
filho nas mais importantes Casas da Europa menos na Espanha.
Os casamentos no s de D. Joo, mas tambm o de D. Teodsio, ilustram muito
bem a poltica matrimonial adotada pela Casa de Bragana desde quase seu incio.
Comparando os casamentos realizados pela Casa durante o sculo XV com os acordados
durante os sculos XVI e XVII, Leonor Costa e Mafalda Cunha mostram que, no sculo
XV a famlia procurou casar quase todos seus membros, estabelecendo ligaes com as
maiores casas do reino situao que se inverte nos sculos seguintes, quando os
matrimnios foram pouco, e os cnjuges, escolhidos entre os Grandes de Castela, a Casa
Real ou familias derivadas dos Bragana201. Tal sugere, para as autoras, uma mudana de
poltica, de alargamento de recursos detidos pela linhagem e de formao e diversificao
de alianas, para uma poltica de manuteno do poderio da Casa e distanciamento da
mesma de seus pares reinis202.
Enfim, os contatos para acordar o casamento de D. Joo com D. Luisa s tiveram
incio no final de 1630, seguindo, como dissemos, morte de D. Teodsio II; as npcias,
porm, s ocorreram trs anos depois, sendo que o herdeiro, tambm batizado Teodsio,
nasceu no ano seguinte. Cabe dizer que foi uma unio muito desejada pelo valido de
Filipe IV, o Conde-Duque Olivares, que pretendia assim atrair os Bragana para sua
esfera de influncias203, aps ter lidado por muitos anos com o refratrio D. Teodsio.
Para os Guzmn resultava quase natural que um dos maiores seno o maior,
excludo o monarca Grandes de Espanha unisse sua famlia ao Grande de Portugal,
especialmente no contexto de unio das Coroas. Em 1633 D. Luisa Guzmn, filha do
oitavo Duque de Medina Sidonia e irm do nono, D. Gaspar Alonso Prez Guzmn,
casou-se com D. Joo, oitavo Duque de Bragana. No que a monarquia espanhola no
201
78
tivesse planos para a casa ducal portuguesa: em 1639 D. Joo foi nomeado governadorgeral das armas de Portugal numa tentativa de acalmar os nimos dos que viam a gradual
transformao do reino em provncia com agravo204.
Com este matrimnio ficavam unidas, no s as maiores famlias dos reinos de
Portugal e Espanha, como colocaria o Grande portugus sob influncia da coroa
espanhola de vez a poltica de neutralidade e ambigidade da Casa certamente no
contribua para as aspiraes dos validos dos Filipes. Ademais, o Conde-Duque poderia
colocar em prtica mais facilmente seu plano para vencer as resistncias que comeavam
a surgir entre os portugueses em relao unio das coroas, nomeando D. Joo
governador geral das armas portuguesas cargo que D. Joo demorou tanto a aceitar que,
ao final dos acordos ficou estabelecido que ele teria poderes equiparveis ao da vicerainha, D. Margarida de Mntua205.
Alm de tudo isso, D. Joo, se no era abertamente fiel a Filipe IV e Olivares, ao
menos nunca havia dado provas do contrrio. Por que havia de inquietar-se o condeduque de Olivares se D. Joo fora fiel por ocasio do levantamento de vora? Se vivia
retirado em seus domnios, longe de Lisboa? Se no manifestava ambies de mando? Se
era, em verdade, um timorato, deliberadamente prudente?, perguntou-se Eduardo
Frana206. E de fato, D. Joo esteve de fora da conspirao que restauraria a Portugal sua
antiga glria at pouco antes de seu acontecimento.
De sua parte, provavelmente D. Gaspar no imaginou que um dia seu cunhado se
uniria conjurao portuguesa quando do casamento de sua irm com D. Joo de
Bragana no s os relatos coevos como a historiografia a respeito da Restaurao
afirmam que o duque no mostrava sinais de interesse nos projetos dos restauradores,
nem inclinao para participar da revolta: tal papel teria sido de D. Duarte, irmo mais
novo de D. Joo207. De qualquer modo, quando a oportunidade fez-se presente logo aps
a Restaurao portuguesa, o prprio duque de Medina Sidonia, D. Gaspar, em conjunto
com um parente menor seu, o Marqus de Ayamonte, lanou um levante na regio
204
Cf. COSTA, Leonor Freires e CUNHA, Mafalda Soares. D. Joo IV, Coleo Reis de Portugal. S/l,
Temas e Debates, 2008, pp. 15-16.
205
Ibidem, pp. 15-17.
206
Frana, Op. Cit., p. 253.
207
Idem, captulo 1, Fazer um rei, pp. 9-41.
79
andalusa, e rumores que chegaram at Lisboa davam conta de que ele havia nomeado a si
mesmo rei da Andaluzia208. As pretenses de D. Gaspar, embora um tanto improvveis,
no eram completamente impensveis: desde a dcada de 1630 Filipe IV vinha
enfrentando sucessivas revoltas em vrias provncias do reino. Talvez encorajado pelo
sucesso de seu cunhado, o duque de Medina Sidonia tenha se deixado levar por planos
separatistas.
Malogrados os planos de D. Gaspar, este foi convocado pelo rei a ir at Madrid
dar conta de seus atos. O duque procrastinou o quanto pde a viagem e, antes que ele
chegasse capital, o marqus havia sido capturado e confessado a traio Coroa. Sobre
Ayamonte recaiu o pior castigo: foi condenado ao desterro perptuo em Segvia; a
situao entre o monarca, seu valido e o duque resolveu-se com o juramento de fidelidade
de D. Gaspar e a obrigao deste de lanar um desafio pblico contra D. Joo de
Bragana por conta das injrias perpetuadas contra Medina Sidonia e a Coroa
espanhola209.
O saldo final para o duque foi a perda de seu senhorio em Sanlcar e a proibio
de sair de Madrid at o fim da vida. Apesar disso, o grau de participao do duque e do
prprio marqus no levante ainda desconhecido; no se sabe quem foi o mentor da
conjura, ou quem deu o primeiro passo. A resposta por parte da monarquia foi rpida e
impiedosa Filipe IV e o Conde Duque queriam evitar a todo custo mais uma sublevao
no reino que se partia210.
208
80
213
AFRICANO, Antnio Freitas. Primores Polticos e Regalias do Nosso Rei [1641], estudo introdutrio
de Jos Adelino Maltez. So Joo do Estoril, Principia, 2005. Um original desta obra pode ser encontrada
na Coleo Barbosa Machado da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, cota 26, 3, 3.
214
Idem, pp. 29-30, 35-37.
82
Rei, que ressuscitasse o mesmo Reino, em quem tinha livrado o logro de seus
desgnios215.
Continua ele:
Tal foi a eleio do nosso Rei, por quem este Reino goza tantas felicidades. Depois
que esteve mais de sessenta anos no jugo dos Castelhanos, esperou Deus que Castela
o desmerecesse, e que as virtudes que Deus lavrava no nosso Rei mrecessem gozar
do cu e aplauso da terra soberanos. (...) Assim como Deus lavrou a David na frgua
do sofrimento com Sal, assim parece certo pensam deste Reino padecer os Reis
dele com Castela216,...
Mas, apesar de este ser um rei escolhido por Deus seguindo a mesma lgica pela
qual o primeirssimo rei de Portugual havia sido ainda cabiam alguns conselhos. Por
isso Africano faz um adendo ao texto logo aps enumerar as regalias do monarca para
explicar as vantagens que h na sucesso hereditria do trono mas que deixam o reino
em estado de anarquia caso no hajam herdeiros. A outra opo, a eleio (como ocorria
em algumas repblicas) a pior sada de todas para o problema, mas caso ela seja
incontornvel, diz o autor, que ao menos seja eleito um rei natural da terra, que por ela
ter afeio e porque a grandeza duma monarquia estriba no amor que os vassalos tm a
seu rei217. O rei estrangeiro, alm do desconhecimento dos costumes da ptria sobre a
qual governa, ainda traz consigo a chance de que o centro de seu governo seja em outro
lugar. Para Africano
Se o rei estrangeiro assiste por si mesmo, sempre o governo desacertado; e bastam
os poucos mal contentes para desacezoar [sic] os muitos, que vivem de esperanas.
Se por governadores odioso e confuso, se o Rei reside ausente, a Repblica
corpo sem alma. Se o governo por consultas, os servios mudam a natureza, e com
eles a qualidade dos prmios. A justia aparente, os pretendentes no acham em
coisa alguma firmeza, cada um se considera vagus et profugus super terram, como
Caim, porque no Reino no se lhe difere, na corte o pretender vital, empobrece-se
o Reino para peitas, desnaturalizam-se os naturais, porque as cortes tm virtude
atractiva e ligam os coraes de todos os estados e se depravam os costumes com os
novos usos218.
215
Idem, p. 31.
Ibidem, p. 32.
217
Ibidem, p. 60.
218
Ibidem, p. 60.
216
83
Isso no queria dizer, porm, que D. Joo era muito mais confivel; Africano
acreditava ser prefervel ver uma mulher suceder no trono do que haver uma eleio, pois
embora tal costume no se exercesse nos morgadios privados, as mulheres no deveriam
ser excludas das linhas de sucesso porque a diferena grande entre os sucessores de
um reino e os herdeiros de um morgado particular219. Ou seja, a inaptido do novo rei
era patente ao menos para Africano e, sendo eleito, deveria ser instrudo nas artes do
bom governo, alm de constantemente vigiado para que no incorresse na cobia ou na
guerra indevida.
Em seguida, ainda neste adendo, Africano faz um cotejo entre qual seria a melhor
forma de governo discusso essa que tambm se arrastou por sculos e que ele
conclui ser a monarquia, pois nela o reino estaria mais unido, o povo mais sujeito e a
sujeio mais nobre. E porque para resolver melhor um s, porque a deliberao h-de
ser espaosa e bem que se consulte com os muitos; porm, a execuo h-de ser
aprestada, e para isso melhor um s220. Tal posio s se entender ao final do texto
quando Antnio Freitas faz suas crticas ao privado, ou valido, cujo uso foi introduzido
pela prevaricao dos tempos. Percebe-se que a experincia que os portugueses tiveram
tanto com o duque de Lerma, quanto com Olivares, deixou marcas profundas221 nos
juristas; vejamos o que diz Africano sobre os validos:
O privado assegura seus logros na f de suas palavras, no entende que a verdade se
define pela comunicao do bem, troca a razo catlica pela razo de estado. (...) o
privado a quinta essncia da hipocrisia (...) condio em o privado ser mal quisto e
na estimao do povo falado, e calando erra. muito para temer as resolues dum
valido, seus longes so verdades e os pertos lisonjas e desvanecimento. (...) Sempre
o povo olha suspeitosos os efeitos do valido, e menos justificados. (...) mpio o
privado, que com falsa razo de estado dissimula os sucessos adversos da repblica,
fazendo festas, para que no se reparem os males,222 ...
219
Ibidem, idem.
Ibidem, p. 64.
221
Veja-se, por exemplo, um trecho da definio de Privado no dicionrio de Raphael Bluteau: aquele
que tem valimento, que pode ser algum mais que os outros. () O que ensina a reinar, pode dizer que ele
mesmo reina; o valido, que com o prncipe faz quanto quer, na realidade o prprio prncipe. Esta a
maior desgraa de um Reino, reduzir-se toda a administrao do Estado a um s, e a um que no seu
prprio senhor.
222
Africano, Op. Cit., p. 92.
220
84
Uma chamada de retorno dos grandes que estavam em Madrid? Um conselho para
que o novo rei se mostrasse generoso com as mercs a serem distribudas? Um pedido
indireto de um lugar junto ao monarca? Talvez todos; talvez nenhum. Mas inegvel o
fato de que o doutor Antnio de Freitas Africano houvesse publicado um livro com
conselhos to coeso e bem acabado apenas meses aps a Restaurao do reino de
aclamao do novo rei de Portugal.
O outro documento foi amplamente estudado por Ana Maria Leal Homem Faria
em seu Duarte Ribeiro de Macedo. Um diplomata moderno224. Duarte Ribeiro foi
diplomata no reino francs j quase no final da Guerra da Restaurao, e foi l que ele
conheceu e levou para Portugal um manual de cortesias escrito no incio dos seiscentos
por Jean-Louis Guez de Balzac intitulado Aristippe ou de la Cour. Para Ana Maria Faria,
ao traduzir Aristippe, Duarte Ribeiro de Macedo seguia uma arte de todos os tempos,
inspirava-se no modelo francs e vertia para a sua lngua um texto considerado tambm
modelo de prosa. Esperava com isso influenciar a sociedade de corte, em Portugal, na
correco lingustica e reforma de procedimentos e atitudes225. O motivo para tanto
claro:
Portugal tinha, finalmente, alcanado o pleno reconhecimento poltico, mas para
Duarte Ribeiro de Macedo a obra da Restaurao s ficaria completa com medidas
223
Idem, p. 88.
Faria, Ana Maria H. L. Op. Cit.
225
Idem, p. 227.
224
85
A explicao para tal nsia de aprender Ana Maria Faria encontra em Franois
Bluche227 e o que ele chama de revoluo cultural, quando a burguesia perdeu o
monoplio sobre a educao228 e formou-se toda uma gerao de nobres duques,
marqueses, condes altamente educados e eruditos; a autora cita, por exemplo, os irmos
Ericeira, D. Miguel de Portugal, Antnio de Sousa Macedo, Joo Nunes da Cunha, D.
Rodrigo de Meneses, o Marqus de Nisa, o Marqus da Fronteira e o Conde de Soure229;
trocou-se, de vez, o imaginrio do cavaleiro medieval, ignorante e fanfarro, pelo do
fidalgo culto de esprito.
No , porm, uma idia nova: em 1932 Alfred Von Martin j afirmava no seu livro
Sociologia do Renascimento que a mudana dos tempos acarretou uma mudana na
mentalidade do corteso. De acordo com ele, o novo ideal de cavaleiro o sujeito
mundano, educado como um senhor perfeito e que domina a cultura urbana; que sabe
bem as artes cavalheirescas de equitao, torneios e jogos de espadas, e tambm filosofia
platnica, moda, artes enfim, que consiga passar pelas mais diversas situaes sabendo
domin-la, mas sem ostentaes, com evidente superioridade: con virt, si, pero con
suave dominio seorial. El bon ton cortesano supone gusto y dignidad, y en la dama,
especialmente elegancia230.
226
86
A nobreza de corte recebe uma nova funo do Estado que se formava; eram
homens de letras dos quais o rei fazia uso, homens de armas a quem o controle do
exrcito era entregue, homens responsveis por aconselhar o rei em suas decises de
governo. E neste novo contexto em que o valor de um indivduo advm de seu estudo,
seu diploma de doutor, o nascimento deixou de ter a preeminncia que tinha e mais uma
porta ascenso a este mundo restrito foi aberta231. Como explica Martin,
Castiglione dice que quien realiza una accin grande por el lucro que de ella obtiene,
merece ser llamado un vilissimo mercante. El nuevo ethos se basa en una elevacin
de la voluntad poltica por encima de lo econmico y en un humanismo orientado
hacia la vita activa, a diferencia del contemplativo. Detrs de l se percibe al
humanista como funcionario del prncipe (del tipo de Pontano) y alienta la idea de
qua la profesin poltica es la nica que cuadra el hombre importante. Se vuelve,
como en Aristteles, al hecho de una divisin del trabajo entre gobernantes y
gobernados, y se proclama abiertamente le preferencia por pertenecer a la primera de
esas categoras232.
E bem isso que vemos no que diz Ana Maria Faria no s sobre a obra, mas
sobre Duarte Ribeiro: um homem de nascimento nobre, que exerce uma funo dentro da
sociedade de corte da qual faz parte, e que quer educ-la para maximizar sua eficincia
no assessoramente ao rei. E se havia um bom momento para introduzir um manual de
etiquetas era exatamente este que Duarte Ribeiro vivia. Pois, como aponta Ana Maria
Faria, durante a Unio das Coroas
Os cavalheiros (...) eram bem educados, tinham gosto em conversar como iguais,
sem ser pedantes. No entando, faltava-lhes o convvio com as damas e um prncipe a
quem servir. Num pas em que a corte no funcionava, as matrias polticas estavam
deliberadamente afastadas das conversas. Depois, desde 1640, que se sentia a
urgncia e a necessidade de uma reconstituio dos quadros da nobreza cortes,
como acentuou Borges de Macedo, no sentido da
ordem, obedincia e disciplina necessrias ao desempenho das funes que dela se
esperavam, tanto mais que o fim da Guerra da Restaurao libertava muitos nobres
de funes militares no terreno 233.
231
Idem, 124.
Ibidem, p. 125.
233
Faria, Op. Cit., pp. 239-240.
232
87
234
Costa, Fernando Dores, Op. Cit., p. 23 e ss; Almeida, Fortunato. Organizao portuguesa cap. XV: O
Exrcito In: HESPANHA, Antnio Manuel (org.). Poder e Instituies na Europa do Antigo Regime.
Colectnea de textos. Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 371-379.
235
Idem, p. 48.
88
89
O uso destestvel dos duelos, introduzido por fabricao do diabo, para que desfrutasse da perniciosa
morte sangrenta do corpo e da alma fora do mundo cristo, deve ser exterminado. Imperadores, reis,
duques, prncipes, marqueses, condes e qualquer posio [ou] outro nome qualquer do domnio temporal,
que houveram concedido local em suas terras para monomaquias entre cristos, sejam por isso
excomungados, e [tambm suas] jurisdies e domnio civil, castelo ou terras obtidos da Igreja, dentro dos
quais ou na proximidade dos quais permitiram que o duelo acontecesse, conhecidos como privados, se
sejam feudais, invs de domnios diretos adquiridos. Aqueles que verdadeiramente iniciaram a luta, e que
chamaram os padrinhos dela, incorrem em pena de excomunho, e proscrio de todos os seus bens e
perprtua infmia, mesmo porque um assassino deve ser punido do mesmo modo pelos sacros cnones, e se
houver de morrer no mesmo conflito, carecer perpetuamente de sepultamento eclesistico. E ainda
aqueles, que deram conselhos a favor do duelo, tanto na lei quanto no ato, para estimular algum sob
qualquer motivo, como os observadores da excomunho e da perptua maldio, no obstante qualquer
privilgio ou desautorizado costume, devem ser mantidos no vnculo, tambm inesquecvel,traduo livre
nossa. Agradecemos a Charles Bonares pela reviso e correo. Apud BILLACOIS, Franois. Le duel dans
la socit franaise des VIe- XVIIe sicle : essai de psychosociologie historique. Paris, Ed. de lEcole des
hautes tudes en sciences sociales, 1986, p. 453.
90
Assim como a espada, o duelo (ou ao menos a idia dele) sobreviveu ao tempo
estando envolto em mistificaes e romantismos dos mais variados. Defesa da honra,
prpria ou alheia, embates passionais pelo amor de uma dama, dvidas de jogo: quase
tudo era um motivo em potencial para um encontro de armas ao menos no mundo da
literatura, que, narrando aventuras fantsticas, nos tem levado a outros mundos e pocas
desde tempos imemoriais. Nos livros a questo resolvida facilmente: um encontro ao
amanhecer, as armas prontas, os padrinhos a postos (a presena da dama aterrorizada com
a violncia que est a ponto de ocorrer por sua causa ou no facultativa, e depende
do papel de dita dama na trama).
E tudo isso apesar ou por causa de sua proibio pela Igreja nos cnones do
Conclio de Trento. O interdito papal, seguido por todas as monarquias catlicas, que por
sua vez editaram e reeditaram diversas leis garantindo a punio para os participantes de
duelos, parecem no ter tido qualquer efeito, uma vez que a prtica seguiu ocorrendo
solta o que, por sua vez, abria oportunidades para que as mais diversas pessoas
escrevessem contra o duelo, de clrigos a militares, de juristas a cortesos.
As novas armas de guerra impelem os homens a adquirir novos conhecimentos:
sobre os terrenos, sobre outras formas de organizar as tropas, sobre como e quando fazer
melhor uso de determinadas armas, sobre a manuteno do exrcito quando em campanha
e nos meses de inverno, nos quais no se batalha. Como acontece com o corteso, que
abandona o ambiente cavaleiresco em prol da urbanidade e da riqueza de esprito,
tambm o militar muda; novas virtudes lhes so esperadas, como a obedincia, a
disciplina e o trabalho com outros soldados, em substituio completa da guerra
batalhada pelo cavaleiro individual, sem superiores nem ordens a serem cumpridas.
Como veremos neste captulo, a espada acaba por perder sua funo blica,
restando apenas seu signoficado simblico, este sim, forte e duradouro. Embora as novas
formas de se fazer a guerra exijam que a nobreza encarregada do comando dos exrcitos
seja educada de forma diferente nas artes militares, o ensino e a prtica dos jogos de
espada permanecem nos crculos nobilirquicos que, finalmente, acabam tomando outra
dimenso na vida cotidiana da sociedade de corte.
91
primeira leitura dos manuais de Destreza o que nos vem mente uma dana:
cada movimento dos envolvidos j pr-estabelecido, cada reao j pensada e
determinada. O espao para qualquer espontaneidade to pouco que nos leva a pensar
sobre a real eficincia da Destreza durante um combate o que, por sua vez, nos
encaminha em direo a outro raciciocnio: que a Destreza no era usada ou praticada
237
ALMIRANTE, Jos. Diccionario Militar. Madrid, Ministerio de Defensa, 2002, Vol. 1, p. 326-327,
grifo nosso.
92
fora dos espaos destinados treino das armas pela nobreza, assim como, por exemplo, a
esgrima atual restrita aos clubes, competies esportivas e s artes cnicas.
A primeira obrigao de um destro aprendiz conhecer sua espada; sua lmina
dividida em dez partes, cada parte tem sua serventia e fora, dependendo do movimento a
ser realizado. Alis, preciso conhecer cada uma das partes para saber qual delas utilizar
em cada movimento desenvolvido na Destreza: a primeira parte, ou a ponta da espada,
fraca para defender, mas forte para atacar; ao contrrio, a dcima parte, ou prximo
empunhadura, forte para defender, mas fraca para atacar238. O peso da espada tambm
importante: em uma espada equilibrada o peso da lmina igual ao peso da copa, de
modo que ao posicionar dois dedos sob a lmina prximos empunhadura a espada no
penda para nenhum dos lados.
H tambm que saber os dois movimentos bsicos do manejo de armas, que so
os talhos golpe dado da direita para a esquerda e revezes, dados da esquerda para a
direita239, e as posies em que so dados: de unhas acima ou abaixo. A partir da cabe ao
julgamento do mestre de armas decidir se o pleiteante a aprendiz apto a aprender a
Destreza examinando-lhe o nimo, o temperamento, as foras, o fsico, o porte e a altura.
Se julgar o mestre ser o pupilo faltoso em alguma destas ele deveria treinar seu aluno de
modo a suprimir a falta ou em teoria recusar-se a ensinar ao jovem fidalgo se este
apresentasse defeitos que no pudessem ser contornados. Deixemos que Diogo Gomes
nos explique melhor:
sempre eleger o Mestre para aver de ensinar, decipulos nobres, conhecidos pella
opinio e Virtude, porque estes requizitos de ordinario persuadem ao bem, e palla
mayor parte os nobres, por lhe correr mais obrigao, sempre so animosos e
Valentes, coadjutores necessarios para a consequencia da perfeyta Destreza: (...)
observara o mestre a inclinao de cada h dos decipulos, para que destintamente
lhe applique as venidas, pois no devem ser as mesmas as do Colerico, que as do
flematico; e no se canse muyto c o decipulo a que no vir bastante natural e
inclinao para as armas, porque lhe ser muyto trabalhoso fazello Destro, que a
natureza no he outra couza que o ingenho, e capacidade natural, que cada h tem
238
Como demonstrado na Imagem 5, que pode ser vista no Anexo I desta dissertao.
Cf. Antnio Corra de A. Oliveira nos seus comentrios a respeito dO auto do Fidalgo Aprendiz, de D.
Francisco Manuel de Melo. MELO, D.Francisco Manuel. O fidalgo aprendiz. Lisboa, Livraria Clssica
Editora, 1915, p. 43.
239
93
para acquerir o bom, ou o mao; e pello contrario se esmerar com o que vir
inclinado verdadeyra Destreza, e desejoso de aprender, porque sobre este excelso
Dom do natural reala com mayor grandeza toda a ciencia e arte a que os homens se
applico...240.
240
94
D. Jernimo de Carranza, por sua vez, utiliza o dilogo entre dois personagens
para reafirmar a sapincia do Destro sobre os no-destros:
Eud [Eudemio]. Pues como tratandolo tanto saben t poco dello sin acertar sus tretas
sino es con sus Discipulos, porque los ensayan para ello porque de otra manera tan
poco (a lo que creo) les darian golpe: Phyl [Philandro]. Como quereis que ellos
acierten lo q no saben aunque siempre lo tratan, porque no sabiendo vos que tab
243
244
lexos esta el Cuerpo del contrario de vuestra espada, ni la contraria del vuestro seg
los diuersos perfiles y Angulos de las posturas con lo de mas porque bien sabeys que
el estar incierto de vna cosa pone temor al emprderla, y como dize Vegesio
ninguno teme hacer en el peligro aquello que confia auer bien aprendido, porq
quien de vcer no de combatir por surte ni acaso mas con Arte, y assi el bu
diestro ninguna cosa haze por acontecimiento:245
Neste outro trecho Diogo Gomes expe um dos motivos para ter escrito seu
manual:
que no quero aquerir opinio por sensurador de tudo, mas s que sirvo estas
minhas regras de abrir os olhos nobreza de Espanha, para ponderar a doutrina em
que se fia; pois no servem aquelles termos demais, que de arriscar, e confundir aos
curiosos que querem aprender como se alcana daquelle aforismo comum que
afirma que as especies de feridas [ margem direita Narvaez na carta fol: 45.] que
h como genero generalissimo no total rigor so sette, a saber quatro de talhos e
revezes verticaes, e diagonaes, meo revez, meo talho, e estocada, o que no s
embaraoso mas falso, porque toda a Verdadeyra Destreza se inclue em s ha
estocada, h talho e h revez que so as feridas que nos ensinou a natureza, e
somente estas servem esta ciencia de as aperfeioar para se executarem sem rico,
dando conhecimento para seno fazerem em parte donde se recebe alg danno, e
demonstrar como se h de constranger o contrario a que desvie, e atalhe, porque
entoo anda servindo com perdas de que se o destro aproveita; E nem so infinitas
as especies das feridas como erradamente escreveo [ margem direita Carranca]
outro mestre, suposto que seja quase infinita a deversidade de estocadas [ margem
direita fol. 110.] talhos e revezes; pois apertando ainda mais esta cauza tenho por
246
Quem teria a razo? Ser possvel responder a esta pergunta de modo objetivo?
No final tudo pode ser resumido a uma questo de estilo e D. Luis Pacheco de Narvaez
defendeu o seu com todas suas armas at o final da vida. De D. Jernimo no podemos
fazer semelhante afirmao, afinal s conhecemos uma obra sua sobre o tema; sabemos,
contudo, que foi uma obra de carter decisivo, j que sua Destreza disseminou-se pelo
reino espanhol como dissemos anteriormente, seu nome virou sinnimo de excelncia
nos jogos de armas. a Oplosophia que mais dvidas nos incita neste sentido: qual teria
sido seu alcance? sua cpia manuscrita uma mera cpia? E, se sim, porque localizamos
somente uma? Ou seria algo do arquivo pessoal de Diogo Gomes? Qual o interesse do
Duque de Cadaval, D. Nuno lvares Pereira de Melo, nos escritos dos Diogo Gomes de
Figueiredo, pai e filho? Sabemos que Figueiredo pai foi mestre de armas do reino, tendo
D. Teodsio por pupilo teria sido a Destreza ensinada ao jovem prncipe?
DA GUERRA PARA O SALO
Os antroplogos, os arquelogos e os historiadores que trabalham com sociedades
antigas dizem que para que algo se torne de fato um smbolo seu significado deve se
partilhado por todos os indivduos do grupo seno ele no se configura como tal.
Podemos dizer que um dos grandes smbolos das sociedades europias desde a Idade
Mdia a espada.
A primeira associao da espada com uma classe se deu justamente neste perodo,
quando os cavaleiros constituiam a ordem social considerada responsvel pelas batalhas e
pelas armas; como somente eles tinham permisso de port-las a identificao de um com
o outro foi imediata. Todas as virtudes associadas cavalaria foram incorporadas no
objeto que era de uso exclusivo daqueles homens as espadas. Desde logo caractersticas
247
foram sendo imputadas s espadas: fora, beleza, riqueza, poder. Sua empunhadura
poderia abrigar jias de famlia ou relquias sagradas, e sua forma de cruz evocava a
divindade crist que tanto defendiam seus portadores. Sir Robert Burton, um j citado
entusiasta das espadas do sculo XIX, conta-nos sobre o papel que a arma desempenhou
na poca medieval:
A Espada era o smbolo da justia e do martrio, e acompanhava o usurio ao tmulo
assim como festa e luta. Deite em meu esquife uma Espada, disse o moribundo
Heinrich Heine, pois eu guerreei valentementepara ganhar liberdade para a
humanidade. (...) em mos cavaleirescas a Espada conheceu nenhum destino outro
que a liberdade e livre arbtrio ; e gerou o esprito de cavalaria, um intenso
sentimento pessoal de respeito prprio, de dignidade e de lealdade, com o nobre
desejo de poteger a fraqueza contra o abuso de fora. A Espada cavaleiresca sempre
foi a idia representativa, o presente e eteno smbolo de tudo que o homem mais
estimava coragem e liberdade. Os nomes descrevem sua qualidade: ela Joyeus, e
La Tisona; ele Zl-Fikar (senhor da rotura) e Quersteinbeis, abocanhador da pedra
do moinho. A arma era considerada em todos os lugares como a melhor amiga da
bravura, e a pior inimiga da perfdia; a companheira da autoridade, e o sinal de
comando; o signo externo e visvel de fora e fidelidade, de conquista e domnio, de
tudo que a Humanidade deseja possuir e deseja ser 248.
249
100
Foi essa nova espada que permitiu que as tcnicas de esgrima como a Destreza
fossem desenvolvidas; afinal, manipular uma espada de um metro e meio de
comprimento no deveria ser muito fcil, nem os movimentos executados com elas
possuiriam algum tipo de graa que proporcionasse o mesmo tipo de prazer esttico que a
esgrima moderna. Enfim, a maneira de manejar as espadas de modo que todos os
movimentos fossem coordenados exigiam que houvessem aqueles que ensinassem a
esgrima para aqueles que tinham a obrigao moral e social de aprend-la. Sobre o ensino
dos jogos de armas conta Sousa Viterbo
Que os moos fidalgos recebiam no pao uma educao esmerada, e que havia
mestres especiaes para lhes ensinarem no s as letras, mas a dana, a equitao e a
esgrima, isso evidente em face dos documentos que temos encontrado a este
respeito e que confirmam as indicaes mais ou menos vagas dos chronistas. Os
nomes de mestre Antonio, de mestre Jeronymo, de Gonalo Barbosa, de Filippe de
Lemos, de Francisco de Abreu de Lima, alm de outros, so uma prova de quanto a
esgrima era cultivada no pao252.
No s no Pao, mas tambm por nobres particulares que desejavam refletir sua
posio social. Mestres eram contratados para suprir as necessidades educacionais
daqueles que desejavam melhorar ou aprender habilidades cortess, entre outros motivos.
Sobre tais nobres D. Francisco Manuel de Melo redigiu o Auto do Fidalgo Aprendiz em
1645; nele, um nobre de menor estirpe, D. Gil Gominho, contrata diversos mestres para
aprender a comportar-se como um homem refinado da corte real. No estudo introdutrio
que faz pea Antnio Corra de Oliveira nos conta que o personagem do homem rude,
bronco, que deseja ascender socialmente e, portanto, deve aprender a ser um corteso
explorado largamente por vrios autores no sculo 17; o estudioso cita P. Aretino (La
Cortigiana) e Molire (Bourgeois Gentilhomme) como autores que exploraram o tema; o
personagem de fidalgo empobrecido tambm foi amplamente utilizado por Gil Vicente
em trabalhos como Quem tem farelos?, Ins Pereira, Juiz da Beira, Farsa dos
Almocreves, Barca do inferno e Auto da ndia253.
Entre os personagens principais do auto constam D. Gil, seu lacaio, um mestre de
esgrima, um mestre de danas, um poeta e um moo de cavalos. A pea tem um enredo
252
253
simples: durante um dia D. Gil recebe os mestres que contratou para que lhe ensinem
dana, manejo de espadas, literatura e poesia. O mestre de esgrima o segundo a visitarlhe, e chega vestido com grandes guedelhas, colete de ante [para proteo contra armas
de ponta conforme a nota 1 por Antnio Corra], espada muito comprida, e embuado
como valente
254
altamente caricato e burlesco a quem falta educao, j que se trata de um homem rude e
de poucas palavras doces. Tal mestre mostra ter pouco conhecimento de golpes, sendo
inclusive admoestado por D. Gil por isso mas mesmo assim o professor de esgrima
intitula-se mestre.
Seguindo a trama, ao contratar o mestre D. Gil deseja receber lies de esgrima,
porm lhe falta o essencial: as armas; a falta contornada ao conseguir chapins
emprestadas de vizinhos para a aula. Acompanhemos a cena:
MESTRE: H espadas?
GIL: sou quieto.
Mestre: Nem adaga?
Gil: Faz-me mal.
Mestre: H montante?
Gil: No.
Mestre: Magual?
Gil: Menos que tudo
Mestre: H espeto?
Gil: Tenho a casa sem adorno: / vim h pouco... (...)
Mestre: H cana de esfulinhar?
Gil: Nem h cana, nem h fuso
Mestre: vou-me logo255.
254
102
Embora seu mestre no seja dos melhores, ou mais confiveis, este ato conclui
com a sada dele da casa de D. Gil Gominho, aps desistir de tentar ensinar-lhe qualquer
coisa, j que D. Gil se mostra o pior dos aprendizes. O mesmo se d com o mestre de
danas e o poeta ambos tentam ensinar-lhe o que de mais refinado se v nos crculos
cortesos, mas D. Gil simplesmente no mostra interesse nem disposio de aprend-lo,
preferindo suas contrapartes ditas populares.
Cremos que a leitura destes trechos elicitem vrias reflexes, e h trs pontos aos
quais gostaramos de nos ater: primeiramente, a clara diferena entre o que praticado na
corte e fora dela, como no caso do baile (praticado nas ruas) e da dana (praticada nos
sales) e da poesia alta (sonetos e epigramas, geralmente seguindo o modelo de Cames,
no caso de Portugal) e baixa (rimas simples, mnemnicas).
Em segundo lugar, que saber manejar as armas brancas, especialmente espadas,
to importante no rol de habilidades cortess que at a pequena nobreza, bronca e tosca
(como formula D. Francisco Manuel), precisa sab-la. E, finalmente, que essa
necessidade fez com que surgissem vrios esgrimistas que se consideravam mestres e
estavam dispostos a ensinar a quem quer que fosse. Carranza, Pacheco de Narvez e
Diogo Gomes alertam contra aqueles que chamam de falsos mestres, que sem ter
conhecimento suficiente sobre a matria, acabavam por ensinar aos pupilos lies erradas
e que resultaria em maus esgrimistas.
Para combater o problema Diogo Gomes sugere que fossem examinados
publicamente todos aqueles que pretendessem o ttulo de mestre, tanto na parte prtica
quanto na terica. Diz o autor da Oplosophia que o professor de manejo de armas deveria
257
103
ter cuidado ao arrogar-se o ttulo de mestre sem ser examinado, e que todos os
examinadores deveriam ser o mais rigorosos possveis, pois um mau mestre causaria
danos quase irreparveis para o reino. Para Diogo Gomes
convem a h homem prezarse tanto, de ser decipulo de bom Mestre, como de ser
filho de pais nobres, porque destes se recebe o principio de viver, daquelles o
caminho de bem viver; e assy em primeyro lugar ser todo o Mestre que ouver de
ensinar a Verdadeyra Oplosofia, virtuoso, e de bns costumes, para que os decipulos
lhos retratem, e se no dannem com os perversos, ser de vida limpa, e de fama
estimada, porque naquella segurem os pais o credito da honra de seus filhos, e nesta
a esperana de o poderem assemelhar gloriosamente; ser bem proporcionado
porque como esta ciencia se aprende na primeyra idade, e os moos tem nella mayor
efficacia para imitar, e para aprender, he necessario inquirir com muyta diligencia,
que at nisto seja o Mestre (...) E no me espanta ver que tem chegado a nobreza
desta ciencia a tam infimo ponto, quando qualquer official mecanico, cujo
entendimento no alcana o menos importante de seu officio, o deyxa e se faz
mestre das armas, sendo que h muyto que aconselhou Apelles que ningem
intentasse meterse em couza que no professasse259.
259
novo monarca desde Vila Viosa, onde j serviam o duque260. Como j dissemos, logo
aps a Restaurao do reino a guerra contra Filipe IV era iminente, o que tornava os
cargos de organizao militar muito prestigiados e procurados apesar de a alta nobreza
permanecer pouco tempo com a responsabilidade, conforme colocamos no captulo
anterior.
Nos sessenta anos de Unio no s o aparato de corte foi desmontado a fora
militar do reino portugus tambm foi transferida para Madrid, e durante esses anos no
foi permitido que em Portugal fossem fabricadas armas ou munies, assim como foi
desfeita a guarda que estava a servio do rei261; s grandes casas da nobreza foi
conservado o privilgio de manter seus homens de armas, embora estes no tivessem
acesso a novos armamentos. Assim sendo, a primeira necessidade do reino era a
formao de um exrcito que estivesse sob o comando do monarca, e somente dele, e em
11 de Dezembro de 1640 foi criado o Conselho de Guerra.
O Conselho de Guerra era responsvel por organizar as informaes que
chegavam e repass-las ao rei o Conselho no possua nenhum poder deliberativo. Mais
importante que ele era somente o Conselho de Estado, e dizia-se que um era a porta de
entrada para o outro. Como outras instncias, o Conselho era composto por nobres, mas
neste caso a experincia de vida junto aos exrcitos contava, e bastante, para a ocupao
dos cargos. Um dos conselheiros de maior confiana de D. Joo IV foi Joane Mendes de
Vasconcelos, filho do clebre Luis Mendes de Vasconcelos, autor de Do Stio de Lisboa
Dilogos e da Arte Militar.
A situao da Guerra foi determinante para a promoo social de muitos
indivduos, fossem eles plebeus que se alistavam esperando que o soldo oferecido fosse
melhor que seus ganhos regulares, ou ladres e condenados que trocavam suas penas pelo
servio militar, fossem eles pertencentes pequena nobreza que esperavam receber
mercs pelo servio prestado no exrcito. Um fator que muito pesava, como colocamos
acima, era o da experincia: muitos dos comandantes do exrcito portugus durante a
primeira fase da Guerra haviam servido no exrcito espanhol, participando de batalhas e
260
105
movimentaes nos mais diversos pontos do reino de Filipe IV, em especial na Itlia e
nos Pases Baixos; a soldadesca comum reclamava servios prestados tanto no Brasil,
lutando contra os holandeses nas ocasies de invaso, quanto na ndia e norte de
frica262.
Viemos dizendo que as novas formas de lutar a guerra mudaram no s os moldes
do combate como o imaginrio e as ideologias a ela atrelados. Mas o que seria essa tal
nova guerra? Pois bem, em 1953 Michael Roberts apresentou uma comunicao na
qual defendia que uma srie de novidades introduzidas por Maurcio de Nassau e por
Gustavo Adolfo nas guerras travadas por eles no sculo XVII constituam o que ele
denominou Revoluo Militar263. Nesta comunicao, Roberts anunciou quatro mudanas
que caracterizam a Revoluo Militar, sendo o aumento do nmeros de soldados nas
tropas, o controle do Estado sobre o exrcito, a formao de tropas permanentes e as
novas tticas de guerra, j que as armas utilizadas eram outras. Para Roberts, as armas de
fogo substituram lanas e arcos porque demandavam menos tempo de treinamento dos
soldados264.
Cerca de vinte anos depois Geoffrey Parker retomou a comunicao de Roberts,
que no havia causado muito impacto, e desenvolveu as idias que ali estavam
apresentadas; o resultado disso que Parker se tornou especialista em histria da guerra,
talvez o mais conhecido atualmente. Parker no desafia as premissas de Roberts; alis,
nenhum dos pesquisadores que trabalham com o tema o faz, pois os quatro fatores por ele
elencados so factuais, quer dizer, no h como argumentar contra ou a favor deles: o
debate focado nas datas e nas tecnologias utilizadas. O que Parker questionou no
trabalho de Roberts adveio de suas pesquisas a respeito da Espanha dos ustria: a
existncia de exrcitos permanentes, mesmo em menor tamanho, j era prtica usual para
os monarcas espanhis antes de ser adotada por Gustavo Adolfo. Parker tambm
262
Conforme a leitura das cartas de indicao para promoo ou nomeao de sargentos; ver cartas com
assuntos militares da Biblioteca da Ajuda, cota 44-III-20, 19-20, Conselho de Guerra Consultas e
Decretos, Cartas dos governadores de armas do Alentejo e Cartas dos governadores de armas do Algarve.
263
ROBERTS, Michael. The Military Revolution, 1560-1660 In: Rogers, Op. Cit., pp. 13-29.
264
Idem, p. 14.
106
265
Podemos citar como exemplo o trabalho de Lus Costa e Sousa sobre a renovao dos fortes portugueses
segundo a moda italiana o famoso trace italienne. V. SOUSA, Lus Costa e. A Arte na Guerra. A
arquitectura dos campos de batalha no Portugal de Quinhentos. Lisboa, Tribuna, 2008.
266
BARATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir). Nova Histria Militar. Rio de
Mouro, Crculo de Leitores, 2003, 5 vols.
267
Como o faz, por exemplo, Antnio M. Hespanha na Introduo do segundo volume; bastante claro
que o pesquisador baseou-se nos escritos de Parker, embora cite o pioneirismo de Roberts, e no senso
comum, tornando o uso das armas de fogo o centro do debate da Revoluo.
107
268
BEBIANO, Rui. A Guerra: o seu imaginrio e a sua deontologia In: HESPANHA, A. M. Nova
Histria Militar. Rio de Mouro, Crculo de Leitores, 2003, vol. 2.
269
BEBIANO, Rui. A Pena de Marte. Escrita da guerra em Portugal e na Europa (scs. XVI-XVII).
Coimbra, Minerva, 2000, p. 278.
270
Idem, p. 279.
271
Uma destas cartas, assinada por Joanes Mendes de Vasconcelos, inclusive, diz que a promoo que ele
indicava para Diogo Gomes j havia sido pedida em outra ocasio, quando foi negada pelo rei. Tais cartas
fazem parte da coletnea Cartas dos governadores do Alentejo.
108
um dos oficiais mais valorizados dentro do exrcito no s por ser experiente nos cargos
que ocupou, mas tambm pelo sucesso com que conseguiu manter um regimento alocado
na regio de Elvas sem muitas perdas de soldados por fugas e motins272.
O sucesso em Elvas tornou-o um oficial requisitado: as Cartas mostram que mais
de uma vez tentou-se que Diogo Gomes assumisse outros teros em outras provncias do
Alentejo, na esperana de que ele os transformassem, nos mesmos moldes do que
Figueiredo havia logrado em Elvas. A recusa sistemtica do general de deixar Elvas ou
suas tropas no foi recebida com muito agrado pelos governadores de armas, que viam
em Diogo Gomes a soluo para os problemas enfrentados com os soldados a grande
dificuldade encontrada pelos altos comandos da poca, no s em Portugal, mas na
Europa como um todo, era o alto ndice de fugas e evases dos soldados, o que
ocasionava o esvaziamento das tropas, sem muitas esperanas de preench-los
novamente. O motivo para a permanncia de Diogo Gomes em Elvas nos desconhecida;
a nica justificativa que temos a que foi apresentada nas Cartas: que ele no gostaria de
abandonar seus soldados.
H ainda uma caracterstica de Diogo Gomes que consideramos das mais
interessantes: o autor da Oplosophia transita com propriedade e domnio tanto no exrcito
configurado no novo modelo de guerra quanto nos crculos de corte, onde ensina aos
jovens fidalgos os jogos de armas que sua educao nobilirquica e palaciana exige. Um
antigo moderno? Um moderno antigo? Ou simplesmente um homem de seu tempo mais
bem educado e sucedido do que a maioria de seus pares, sem dvidas, mas algum
afinado com seu tempo.
Nesta temtica dos antigos e modernos, Maravall desenvolveu um trabalho
intitulado El humanismo de las armas en Don Quijote273. Nele o autor discute justamente
a sobrevivncia da espada, mesmo como smbolo, quando as guerras j so lutadas com
as armas de fogo. Ao analisar o clssico de Cervantes, o Don Quixote, Maravall busca na
histria moderna espanhola elementos que formam o cavaleiro da triste figura. O autor
272
FREITAS, Jorge Penin. O combate durante a Guerra de Restaurao. Vivncias e comportamentos dos
militares ao servio da coroa portuguesa 1640-1668, Lisboa, Prefcio, 2007, pp. 171-172.
273
MARAVALL, Jos Antonio. El humanismo de las armas en Don Quijote, Madrid : Instituto de Estudios
Polticos, 1948.
109
nos mostra uma sociedade na qual um cavaleiro andante, embora fosse uma figura
anacrnica, no era totalmente estranha. Segundo o pesquisador, hay toda una larga
discusin en la poca sobre el valor de los antiguos y el de los modernos, en relacin a
armas de cuyo uso se servieron para demonstrar en la prtica ese valor274.
Pois, embora a nobreza tenha adotado o uso das armas de fogo veja-se as
pistolas linda e ricamente decoradas que fazem parte da Armera Real Espanhola, por
exemplo elas nunca ocuparam o lugar simblico e ritual da espada. O valor da plvora
estava associado ao dano que ela poderia causar e sensao de poder associado a ele; e
tanto para Burton quanto para Maravall, no h honra na morte instantnea do inimigo.
Talvez a questo no seja o debate entre antigos e modernos, idade das trevas e
idade da luz; para os homens e mulheres do sculo XVII no havia essa delimitao. Faz
sentido que ns, ento, fiquemos procurando traos de modernidade ou de medievalidade,
de rupturas ou permanncias em todo e cada ato das sociedades que estudamos,
quando para essas pessoas se trata simplesmente de vida, das coisas como elas so?
Claro, h mudanas, e mudanas significativas que afetam a todos quase
instantaneamente, mas ser que precisamos nos assombrar com as medievalidades e
modernidades que encontramos?
DO DUELO
Como j adiantamos, o tema do duelo um que desperta paixes e curiosidade, j
que narrativas que incluem o evento vm prendendo a ateno e os coraes de
leitores h sculos. Quase sempre envolto nas brumas de todo um imaginrio construdo
sua volta, cremos que o primeiro passo a ser dado no estudo da questo do duelo retirlo deste contexto apresentado pela literatura, especialmente aquela produzida a partir do
sculo XVIII, como a dos Dumas, pai e filho, por exemplo.
A primeira considerao a ser feita que o duelo era ao menos na poca
Moderna uma instncia jurdica desde a Idade Mdia, e, se seu formato foi modificado,
o momento em que ele ocorria e a finalidade no. Durante as dcadas de 1920-1930
houve uma profusa produo de obras jurdicas a respeito do duelo medieval espanhol, e
274
Idem, p. 144.
110
os autores (todos juristas) so unnimes ao afirmar que o duelo era uma das concluses
possveis para os processos de aleivosia e repto275.
Relativamente histria do duelo, todos novamente esto em acordo de que se
trata de uma inveno medieval, j que no existiria na Antiguidade, ao contrrio do que
se acreditava. O prprio Diogo Gomes, na Oplosophia, corrige tal erro, apontando que a
associao entre as virtudes da espada e o desfecho do duelo seria responsvel por tal
concepo; segundo ele,
daqui naceo dizerem que o duello era h juizo militar, porque nelle tudo se
determinava com a espada na mo, e bem o testifico aquelles dous valeroso
mancebos Espanhoes Corbua e Orsua, que no aceytando os juizes que Cipio lhe
queria dar respondero que o seu juiz na terra avia de ser sua espada, e no ceo o
Deos Marte e no s he juiz, mas com o privilegio de igualar a todos os homens
nobres, e no nobres, porque como por ella se acrisola a mayor valentia, no estima
a condio e dignidade de cada h, seno o valor e esforo 276.
De acordo com a definio do Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa Online, repto significa
desafio, emprazamento; reptar, por sua vez, quer dizer provocar para o duelo ou disputa. Disponvel
online para consulta em http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=repto em 19/01/2012.
276
Oplosophia, fl. 04v, nota marginal.
277
ULLOA, D. Martin de. Disertacion sobre los duelos, desafos, y leyes de su observancia, con sus
progresos hasta su total extincion In: Memorias de la Real Academia de la Historia, Madrid, en la
Imprenta de Sancha, 1796, vol I.
111
A maior discusso entre o autores que escreveram aps Ulloa e aqui citamos o
prprio Otero Varela, Manuel Torres279 e Paulo Mera280 - sobre qual seria a diferena
jurdica entre aleivosia, traio e repto. E, de acordo com todos, tal confuso seria
originria j da literatura jurdica medieval, pois nos prprios textos os termos alternamse sem algum aparente motivo cremos que seja porque quando tal costume era de fato
praticado a diferena seria to bvia para todos que no era necessrio nenhum tipo de
distino entre os termos.
A diferena foi estabelecida pelos pesquisadores atuais: o repto era um processo
curial no qual se recorre em caso de traio e aleivosia; aleivosia seria a quebra de
confiana entre pares diferente da traio, em cujo processo o duelo usado como
vingana. E, finalmente, Mera esclarece que Repto no quer dizer duelo, mas sim a
278
OTERO VARELA, Alfonso. Dos estudios historicos-juridicos. Madrid-Roma, 1955, Cuadernos del
Instituto juridico Espaol n 4, p. 14-15.
279
TORRES, Manuel. Naturaleza jurdico-penal y procesal del desafio y riepto en Leon y Castilla en la
Edad Media. Madrid, Tipographia de Archivos, 1933, separata do Anuario de Historia del Derecho
Espaol.
280
MERA, Paulo. O poema do Cid e a histria do duelo. Coimbra, 1962, separata do Boletim da
Faculdade de Direito, vol. XXXVII.
112
281
Idem, p. 16.
Otero Varela, Op. Cit., p. 53.
283
Idem, p. 28.
284
Cf. LETAINTURIER-FRADIN, Gabriel. Le duel a travers les ages. Paris, Librairie Marpon &
Flamarion, 1982, pp. 05-16.
285
No caso, as cortes que eram reunidas pelos monarcas com propsitos jurdico administrativos; para a
diferena entre a corte-squito e as cortes jurdicas, ver CARDIM, Pedro. O quadro constitucional. Os
grandes paradigmas de organizao poltica: a coroa e a representao do reino. As cortes. In:
MATTOSO, Jos. Histria de Portugal, volume 4, Lisboa, Estampa, s/d, pp. 145-150.
282
113
rei antes de ser lanado publicamente. Em linhas gerais, o processo comea com uma
petio ao monarca, no qual o acusador expe seus motivos para desafiar quem lhe traiu
ou aleivou. Caso o rei permitisse o desafio, cartazes deveriam ser elaborados chamando o
desafiado para um duelo que resolveria a questo pendente entre ele e o desafiador. Os
cartazes deveriam conter os nomes dos participantes, a razo do processo e um prazo de
30 a 180 dias no qual o desafiado deveria responder publicamente ao desafio, alm do
local onde ambos deveriam encontrar-se para resolver a querela.
Cartazes deveriam ser pendurados em locais pblicos, de modo que o desafiado
no pudesse alegar desconhecimento, fosse do desafio, das datas ou do local. O processo
poderia no acabar em duelo: havia a possibilidade de um acordo entre as partes, ou
ainda, algum dos homens simplesmente no aparecessem no dia e local marcados; neste
caso, a causa era dada como ganha por quem l estava, com detrimento da honra pblica
daquele que se recusou a participar de repto e defender-se das acusaes.
O desafio poderia ainda acabar em nada, como foi o caso entre D. Gaspar
Guzmn, duque de Medina Sidonia, e D. Joo IV de Portugal: como dissemos no captulo
anterior, D. Gaspar foi coagido por Filipe IV a desafiar D. Joo em 1641 por conta dos
boatos de que o duque andaluz teria promovido um levante contra a Coroa286. Apesar de
os cartazes convocando D. Joo para um duelo em Valncia de Alcntara entre os dias
primeiro e 19 de Dezembro do dito ano terem sido distribudos, o embate no ocorreu
ou no foi registrado (embora esta hiptese nos parea improvvel: um duelo entre o
grande duque de Medina Sidonia e seu cunhado, aclamado rei em Portugal, renderia
inmeros relatos e narrativas de todos os gneros).
Sobre o duelo em si pouco se fala; sabe-se que os duelistas deveriam portar armas
de igual valor e poder para que a justia do ato no fosse afetada e, embora a morte no
fosse inevitvel, esse no era o objetivo principal do duelo afinal, como disse Maravall,
a honra no estava em matar o oponente, mas em travar e lutar a batalha287.
O Conclio de Trento, entre muitas coisas, promulgou a proibio do duelo no
mundo catlico; pois, no esprito da Contra-Reforma, os catlicos deveriam se unir, e no
286
287
lutar uns contra os outros situao na qual ocorriam os duelos. As punies eram
severas, e no se restringiam queles que pegavam em armas: seriam excomungados
todos os que dele participavam, inclusive os senhores que permitissem que um embate
destes fosse travado em suas terras. A partir de ento a legislao dos reinos ibricos
passou a condenar o duelo, ao contrrio do que vinha fazendo at ento, que era
normatizar o antigo costume do repto.
Duas obras escritas no fim da dcada de 1980 tratam do tema do duelo: Le duel
dans la socit franaise des VIe- XVIIe sicle : essai de psychosociologie historique, de
Franois Billacois288, e The duel in European History: honour and the reign of
aristocracy, de V. G. Kiernan289. interessante notar que nenhum dos autores menciona
processos de repto, aleivosia ou traio; muito menos h nestas obras lugar para o rei,
Billacois por enfocar seu trabalho nos duelos privados e Kiernan por sua viso poltica,
que, como veremos, nega a figura do monarca enquanto desqualifica a nobreza. Em
nossas leituras deparamo-nos ainda com uma terceira obra, esta escrita em 1892 por
Gabriel Letainturier-Fradin, Le duel travers les ge. Apesar de focarem suas pesquisas
sobre a Frana, Billacois e Letainturier-Fradin expandem brevemente sua reflexo para
outros reinos europeus, o que no faz Kiernan, que mantm-se circunscrito Inglaterra.
Letainturier-Fradin apresenta as leis das Ordenaes e Partidas como tentativas de
regulamentao do duelo, j que no era possvel proscrev-lo. Diz ele que os duelos
continuaram a ser praticados apesar das proibies da Igreja e da Coroa e interessante
notar que na redao do pesquisador ele d a entender que o desejo dos reis ao redigir as
leis sobre os duelos conter seu uso em obedincia a Trento, e no normatizar o costume
do reino; Letainturier-Fradin no leva em considerao que os Foros Reais e as Partidas
foram elaborados antes que o duelo fosse proibido pelo Conclio. Quando o autor discute
o caso espanhol ele lista todas as leis que foram escritas sobre o duelo, seja sua
regulamentao, seja sua proibio, o pesquisador alega que nenhuma surtiu efeito, j que
o duelo continuou a ser praticado, e que as autoridades faziam vista grossa para o mesmo.
288
BILLACOIS, Franois. Le duel dans la socit franaise des VIe- XVIIe sicle : essai de
psychosociologie historique. Paris, Ed. de lEcole des hautes tudes en sciences sociales, 1986.
289
KIERNAN, V. G. The duel in European History: honour and the reign of aristocracy, Somerset, Oxford
University Press, 1988.
115
116
Porque tambm havia um outro aspecto que deve ser levado em considerao: os
duelos judiciais s poderiam ocorrer quando da convocao de cortes, o que passou a
acontecer cada vez menos, at terminaram por ser extintas.O duelo pode, ento, ser
considerado mais um aspecto no processo de centralizao dos poderes na figura do rei,
j que este se torna o responsvel pela deciso sobre a justia, antes delegada a privados.
Para concluir, retomemos uma utilidade conferido por D. Jernimo de Carranza
e D. Luis Pacheco de Narvez: a defesa crist dos indivduos. O discurso que, para ns,
primeira vista parece inocente e bem intencionado, se refere ao duelo. Claro, nossos
autores no chegariam ao ponto de incentivar a prtica, isso era contrrio lei
promulgada por Filipe III que proibia tanto os duelos quanto os bilhetes, cartas ou
cartazes de desafio290. A sada encontrada foi escrever sobre o direito de defesa inerente a
todos os cristos, e como a Destreza poderia ser utilizada no processo. Afinal, a proibio
estava em lanar o desafio, no em responder a ele e nem poderia s-lo, afinal, rei
nenhum poderia proibir seus vassalos de defender sua honra.
Tal no aparece na Oplosophia por um simples motivo, cremos: a inteno de
Diogo Gomes seria a utilizao da doutrina para a prtica militar, para a manuteno
fsica e de uso de armas por parte da nobreza. Nesta perspectiva nem cabe pensar na
situao do duelo, j que o combate com armas estaria restrito s academias e outros
locais de treinamento; o uso corteso das armas encontraria uma funo na vida militar
nobilirquica.
290
Em 1612 Filipe III mandou que se afixasse por todo o reino panfletos que reiteravam a proibio da
prtica do duelo no reino de Portugal, assim como as punies para aqueles que entregassem bilhetes de
desafio. Cf. IAN/TT Lv. 3553, Mf. 3985, documento 15.
117
CONCLUSO
118
CONCLUSO
Depois de tudo posto, gostaramos de fazer algumas consideraes finais. A
primeira que nestas pginas aparece de modo claro a primeira lio ensinada quando
iniciamos um curso de graduao em Histria: s possvel fazer a histria do tempo
presente. Aparentemente simples, mas que leva tempo para ser aprendida. Esta
dissertao , sem dvidas, um reflexo de seu prprio tempo. O que talvez explique a
fascinao causada por um manual de manejo de espadas em pleno movimento cunhado
de Revoluo Militar, em cujo ponto vrtice esto as mudanas causadas pela introduo
das armas de fogo. As vidas de Diogo Gomes de Figueiredo, D. Luis Pacheco de Narvez
e D. Jernimo de Carrana e teor de suas obras provocam a imaginao de uma pessoa do
sculo XXI, que, como estes homens, vive um momento no qual o modo de se fazer a
guerra muda drasticamente e leva a inmeras indagaes de cunho moral e tico.
No primeiro captulo conhecemos trs manuais de Destreza das armas e seus
autores, assim como seus ambientes de circulao e contextos de escrita. Vimos que cada
autor tinha um propsito de emprego da doutrina: Carrana desejava que seus Dilogos
estabelecessem uma nova doutrina de manejo de espadas, embasada na matemtica e na
geometria, que poderia ser usada para a defesa daquele que sofresse uma calnia que
levasse a um desafio. Pacheco de Narvaz mostrou-se preocupado com a correo da
doutrina de Carrana sobre o que construiu toda sua carreira e da defesa dos cristos
face aos protestantes, grandes inimigos da Monarquia Catlica da qual ele fazia parte.
Gomes de Figueiredo, por sua vez, tinha a inteno de admoestar seus pares em relao
ao preparo para a batalha, afinal o treino da mente passava pelo treino do corpo.
No segundo captulo nos aprofundamos nos ambientes de corte, onde viveram
nossos autores e seus pares, a quem seus manuais eram escritos. Vimos a formao das
cortes europias modernas a partir do que Norbert Elias denominou Processo Civilizador,
e como este foi levado ao auge no sculo XVII, aprisionando at mesmo os monarcas
Filipe III e IV na etiqueta que regia a vida de corte. Terminamos por analisar a reformao da corte portuguesa quando da Restaurao, e como esta permitiu a entrada de
novos membros e a possibilidade de pensar e sugerir formas de governo atravs da escrita
de espelhos de prncipe.
119
manuais citados por Sousa Viterbo que tambm tratam da Destreza, embora no de forma
to enftica quanto Diogo Gomes em sua Oplosophia e posteriores a ela: o Tratado das
lioens da espada preta, e destreza, que ho de usar os jogadores della. Por Thomas
Luiz, Rey de Armas, natural desta cidade de Lisboa, impresso em 1685, e o Compendio
dos fundamentos da verdadeira destreza e filosofia das armas. Dedicado sacra e
augusta magestade de ElRey Fidelissimo Nosso Senhor D. Joz 1, escrito por Jos de
Barros Paiva e Moraes Pona em 1768, cuja publicao foi suprimida pela Real Mesa
Censria291. O Tratado de Thomas Luiz foi reproduzido por Sousa Viterbo em seu A
Esgrima em Portugal, onde d conta da existncia de um exemplar, embora incompleto,
na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, que ainda o mantm. J do Compendio
de Jos de Barros diz Sousa Viterbo que estava alocado na Torre do Tombo; deste no
temos notcias.
291
FONTES E BIBLIOGRAFIA
122
FONTES:
MANUSCRITAS
Cartas com assuntos militares Biblioteca da Ajuda, cota 44-III-20, 19-20.
Conselho de Guerra Consultas, maos 2, 4A, 6 e 6B Instituto dos Arquivos
Nacionais/Torre do Tombo.
Conselho de Guerra Decretos, maos 1, 6 e 10 Instituto dos Arquivos
Nacionais/Torre do Tombo.
FIGUEIREDO, Diogo Gomes. Oplosophia e Verdadeira Destreza das Armas, Lisboa,
1630 Academia das Cincias de Lisboa, Mss vermelho, no 91.
______________. Memorial da prattica do montante, Lisboa, 1651 Biblioteca da
Ajuda, cota 44-III-20;21.
GUERRA DE LA VEGA, Alvaro, Comprehension de la Destreza, Santander, 1681
Biblioteca Nacional de Madrid, cota10/868.
LUCIO ESPINOSA Y MALA, Francisco. Verdadera fama contra la ley del duelo,
Madrid, 1633 Biblioteca Nacional de Madrid, cota MSS/12952/6.
IMPRESSAS
AFRICANO, Antnio Freitas. Primores Polticos e Regalias do Nosso Rei [1641],
estudo introdutrio de Jos Adelino Maltez. So Joo do Estoril, Principia, 2005
BALDASSARE, Castiglione. O Corteso, So Paulo, Martins Fontes, 1997
Beowulf, a prose translation with an introduction by David Wright. New York, Penguin
Books, 1959.
BURTON, Richard Francis, Sir. The book of the sword, New York, Dover Publications,
1987.
CARRANA, Don Jernimo Sanchez. Libro de Hieronimo de Caranca, natvral de
Sevilla, que trata de la philosophia de las armas y de su destreza y de la aggression y
defension christiana, Sanlucar de Barrameda : en casa del mismo autor, 1582.
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha, Madrid, Alianza Editorial, 1996.
123
124
125
128
130
131
VILLARI, Rosario (dir). O Homem Barroco, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo.
Lisboa, Editorial Presena, 1995.
VISCEGLIA, Maria Antonietta. Guerra, Diplomacia y Etiqueta en la Corte de los Papas
(siglos XVI y XVII) (trad.). Madrid, Ediciones Polifemo, 2010.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval, trad. A. Pinheiro, J. Ferreira.
So Paulo, Cia das Letras, 1993.
132
ANEXOS:
IMAGENS
TRANSCRIO DA OPLOSOPHIA E VERDADEYRA DESTREZA DAS ARMAS
133
ANEXO I: IMAGENS
134
135
137
138
Imagem 9: Flios do Libro...; cada lio de Destreza acompanhada de uma figura que
ilustra como os movimentos devem ser executados corretamente. Por sua semelhana
com este manual, presumimos que a Oplosophia tambm apresentaria tais ilustraes
caso houvesse sido impres
143
144
Imagem 11: Flios dos Dilogos; note-se que as ilustraes aparecem em meio narrativa,
conforme as explicaes de Charilao a respeito da Destreza. Podemos ver no flio acima a
disposio geomtrica dos movimentos, semelhante Demonstrao Universal da
Oplosophia, embora tambm no to detalhado e compreensivo.
145
ANEXO II:
OPLOSOPHIA E VERDADEYRA DESTREZA DAS ARMAS
146
ANEXO II:
OPLOSOPHIA E VERDADEYRA DESTREZA DAS ARMAS
Arquivo: Academia de Cincias de Lisboa
Referncia: Catlogo Vermelho, Mss. 91
Documento: Manual de Destreza das armas
Assunto: Manejo de espadas
Data: 1630-1632
Local: Lisboa
Descrio: livro em quarto, manuscrito, com 14, 97 e 7 flios numerados escritos frente
e verso. Transcrio realizada a partir de cpia microfilmada pertencente ao arquivo
pessoal da professora Ana Paula Megiani.
Observaes: notas marginais que no original constituem adendos ao corpo de texto
foram transcritos como notas de rodap. Numerao dos flios no segue numerao
prvia do autor por esta estar incorreta.
A transcrio do livro segue as regras convencionadas pela ABNT e copiladas pela
professora dr. Eni de Mesquita Samara, Madalena M. Dias e Vanessa S. B. Marquese em
Paleografias e Fontes do perodo colonial brasileiro, o que significa: que o texto
mantido o mais prximo o possvel do original, sendo as palavras grafadas unidas
separadas somente em casos em que a leitura seja prejudicada; a linguagem no foi
atualizada; as abreviaes foram desenvolvidas, sendo que o texto incorporado se
encontra sublinhado; as linhas e flios em branco esto anotados na posio em que
aparecem no texto; quaisquer adies ao texto original encontram-se sublinhadas e/ou
entre colchetes.
A edio de Paleografias e Fontes do perodo colonial brasileiro consultada foi a Verso
Preliminar da mesma.
147
[Fl. 01]
OPLOSOPHIA
E VERDADEIRA
DESTREZA
DAS ARMAS
[Braso]
AVTOR
DIOGO GOMEZ DE FIGVEREDO
[Fl. 01v., em branco]
[Fl. 02]
CENSVRAS
[em branco]
[em branco]
No tem este livro alga cousa contra a f, ou bns costumes, e ser de
proveyto aos que uzo armas, e pretendem ser Destros nellas, e
assi me parece que se pode imprimir. em So Domingos 27 de Ma
yo de 1630 [assinatura] frey Diogo Ferreira
[em branco]
Vi este livro, que tem por titulo Oplosophia e Verdadeyra Destreza das
armas, recupilada em regras universaes, e Alforismos graves autor Dio
go Gomez de Figueredo Portugues, no h nelle cousa grave contra nossa san
ta f ou bons costumes; antes deve ser bem recebido dos que se pre
zarem das armas, assi pela matria, pois trata de sua Destreza
cousa tam necessaria ao politico cristo, como por seu estilo, que he tal
que at aos de estado recolhido agrada, e quase por natural influxo
acende para o uso das armas: principalmente quando o autor c
artificio singular, e igual Destreza em seus preceytos e Aforismos
ensina ao Destro no aferir de primeira teno, mas a se defender
que he acto e [?] inclinao natural, e a offensa que das armas aqui
se aprende se ordena como afim seu propria defenso. Ser de
muyta utilidade aos curiosos das armas sua lio, e muyto mais o seu
exercicio, e servir este livro de Roteyro valentia, e de flagelo a
ociosidade, e de envergonhar a inutil Poezia de nossos tempos cor=
ruptiva do esforo Portuguez, pello que julgo o livro por muy digno
da Licena que pede o autor para o imprimir, em So Domingos
de Lisboa 11 de junho de 1630 frey Thomas de So Domingos
[em branco]
LICENA
Do tribunal supremo da Santa Inquisio
[em branco]
Vistas a informaes podesse imprimir este livro intitulado Oplosophia
e Verdadeyra Destreza das armas, e depois de impreso torne confe=
rido com seu original, para se dar licena para correr e sem ella
no correr, Lisboa 11 de junho de 1630
148
[em branco]
Plumam ne, an gladium potius mirabor [?] ? utrunque;
[em branco]
Hic est Cosar (ait fama) in utroque meus
[em branco]
[em branco]
Cosare quin maior, gladios vibratque, rotatque,
[em branco]
Cosaiosque docet digladiare duces
[em branco]
[em branco]
Pluma etiam alatus super othera maior in ardet;
[em branco]
Iuliaque illustri proterit astra pede:
[em branco]
[em branco]
Fama aude mauis: Eomane Cosare Cosar
[em branco]
Clarior irridiat quando in utroque tuus
[Fl. 03v]
Jacobo Gomesio Figueredo
Militi Strenuo Gladiaturo exploratori insigni
[em branco]
Emmanuel de Rego sosa A [?]
[em branco]
EPYGRAMMA
[em branco]
Mars gladio, Alcides animp, tibi cedat Vlysses
[em branco]
Ingenio, nam tres, sis licet unus, agis
[em branco]
[em branco]
Ense quis egregior [?] ? pugnis animosior ? Astra
[em branco]
Testentur mentem, qua saper ipsa volas
[em branco]
[em branco]
Quadque voles, operis nimium probat hujus acumen
[em branco]
Quo, fera Lusyades, procipis, arma regant
[em branco]
[em branco]
Elmineo [apagado] Mauros quiequid tua robore dextra
[em branco]
Exercit mira promis, eu art doces
150
[em branco]
[em branco]
Quis nom laudet opus? penitus cui dextera torpet
[em branco]
Vel cui tabificus viscera livor edit
[em branco]
[em branco]
Profem vero quisquis certamine gaadet
[em branco]
Extollat, discat terque quaterque legens
[Fl. 04]
Joannes Gomesius Figueredo
Fratri suo amantissimo Jacobo Gomesio Figueredo
digladiandi artem scribenti
[em branco]
EPYGRAMMA
[em branco]
Ingenio quondam sublimi prodita Pallas
[em branco]
Et Dea sanguineo cognita militio:
[em branco]
[em branco]
Cosar utraque manu librum gestabat et ensem,
[em branco]
Cum decertabat perfera bella ruens
[em branco]
[em branco]
Pallade tu maior, tu cosare maior in armis
[em branco]
Nam quo summa duos lais beat unus arma,
[em branco]
Sic ab utroque tonas maior utroque: vale
[em branco]
[braso]
[Fl. 04v]
Da Venus Portuguesa
A Diogo Gomes de Figueredo
[em branco]
DECIMAS
[em branco]
Tam raramente escreveis
Das armas que profeesaes
Que a fama que oje alcanaes
Vencer da morte as leis
151
153
[Fl. 06]
Dom Francisco Rollim de Moura
Senhor da Caza dAzambuja
[em branco]
A Diogo Gomez de Figueredo
[em branco]
DECIMA
[em branco]
Com regulada eloquencia
Recopila esta nova arte,
J scientifico a Marte,
J beligera a sciencia.
Donde, com a experiencia
De que espiculando obrais
Quanto obrando espiculais
Na razo, e nos sentidos
Imperios tam devididos
N s imperio juntais?
[em branco]
Do Doutor Gregorio de Balcaar de Moraes
Dezembargador da Caza da
Supplicao
A Diogo Gomez de Figueredo
[em branco]
DECIMA
[em branco]
Com tal destreza mostrais
Lo que elegante escribis,
Que maestro produzis
Com las artes que enseais,
Uma y outra executais
Tan prefetas, que quisiera,
Que devos la aprendiera
Quien vuestra diestra imitara
Escriviendo quando obrara
Y obrando quando escriviera
[Fl. 06v]
De Manoel de Sousa Couttinho
A Diogo Gomez de Figueredo
[em branco]
SONETO
[em branco]
Izentar ao valor das maos da morte
[em branco]
Offender na defensa assigurada
154
[em branco]
Sciente reparar, ferir ouzado
[em branco]
Dar regras ao furor, dar leis a sorte
[em branco]
S a douta pess[o]a, s a espada forte
[em branco]
Do heroyco Figueredo o tem mostrado
[em branco]
Deixando tudo atras, tudo admirado
[em branco]
O seu menor rascunho, ou menor corte
[em branco]
Da Commum ateno tam respeitada
[em branco]
Tanto por vosso nome conhecida
[em branco]
A de ser a destreza desta espada
[em branco]
Que enquanto Phebo dar ao mundo vida
[em branco]
Ella sera por vossa eternizada
[em branco]
Sempre admirada, e nunca competida
[Fl. 07]
De Francisco de Faria Correa
A Diogo Gomez de Figueredo
[em branco]
SONETO
[em branco]
[em branco]
A pena douta, a espada experimentada
[em branco]
Igualmente se ajudo na doutrina
[em branco]
Que as lioes que discreta a pena ensina
[em branco]
As exercita destra a forte espada
[em branco]
Na paz (a gladiatoria exercitada)
[em branco]
Graves questoes a pena determina;
[em branco]
Na guerra a forte espada predomina
[em branco]
155
[em branco]
[em branco]
Mas antes sobre os Astros sublimada,
[em branco]
[em branco]
Pois mais que natureza a vs se deve:
[em branco]
[em branco]
Porque para viver eternizada;
[em branco]
[em branco]
H buril vossa pena, que a descreve
[em branco]
[em branco]
Na lamina immortal da Vossa Espada.
[Fl. 08]
De Egas Coelho da Cunha
Ao Leytor
[em branco]
SONETO
[em branco]
[em branco]
Nesta immortal retorica palestra
[em branco]
[em branco]
De elegantes figuras adornadas
[em branco]
[em branco]
Donde o papel campo, a pena espada
[em branco]
[em branco]
Destra no difender, no ferir destra
[em branco]
[em branco]
O pensamento occupa, o brao adestra
[em branco]
[em branco]
Leytor, porque apezar da sorte irada
[em branco]
[em branco]
Te infunda vida, e gloria dilatada
[em branco]
[em branco]
A doutrina felis da espada mestra.
[em branco]
157
[em branco]
Observa seus preceytos appurados
[em branco]
[em branco]
Para alcanar coroa esclarecida
[em branco]
[em branco]
Com seu Author no templo da memoria
[em branco]
[em branco]
Que reciprocamente acreditados,
[em branco]
[em branco]
Gloria elle te dar de eterna Vida,
[em branco]
[em branco]
Vida tu lhe dars de eterna gloria.
[Fl. 08v]
De Diogo de Novaes de Carvalho
A Diogo Gomez de Figueredo
[em branco]
SONETO
[em branco]
[em branco]
Ao blico clamor do irado Marte
[em branco]
Bellona forte e Pallas eloquente
[em branco]
Postrou Roma o poder mais eminente
[em branco]
Rendeu Grcia o flamigero estendarte
[em branco]
Das divindades que alcanaro parte
[em branco]
Todas teu braco [sic] epiloga valente
[em branco]
Pois teu valor e ciencia nos consente
[em branco]
Ver que de todas compoes ha Arte
[em branco]
Assi cesse Belona Marte e Pallas
[em branco]
Que de teu raro nome interferir venho
[em branco]
Que os aventajas mais do que igualas
158
[em branco]
Pois dando de seu bao hum desempenho
[em branco]
Neste Epitome breve nos sinala
[em branco]
Tres Divindades em teu grande ingenho
[Fl. 09, em branco]
[Fl. 09v., em branco]
[Fl. 10, em branco]
[Fl. 10v., em branco]
[Fl. 11, em branco]
[Fl. 11v., em branco]
[Fl. 12, em branco]
[Fl. 12v., em branco]
[Fl. 13]
CARTA
[em branco]
Que o Doutor Duarte da Silva Protonotrio
Apostlico mandou a Diogo Gomez
De figueredo
[em branco]
[em branco]
A magestade imperial para sua conservao e aumento dever ser
no somente ornada das armas, mas tambem ornada das letras segu=
do diz o Imperador Justiniano no proemio de suas instituies.
Bem se conformou Vossa Magestade com esta sentena desde os primeyros annos de
sua puericia, pois os empregou assi no exerccio das armas, como no estudo
das letras humanas; professando ha regulada milicia, ha politica
eloquencia de que se seguio no pouca utilidade a este Reyno
Facilmente vir no conhecimento desta verdade quem ler este livro de
[corrodo]; porque pella materia, e pello estilo mostra ser digno emprego de
seus estudos. A materia que por si he utilissima esta trattada scientifi=
camente, porque dedusida de principios, e regulada por preceytos se
dirige a fins certos e infalliveis. E [?] para abonao do estilo baste que
sendo tam varios os movimentos do homem no jugar da espada: Vossa Magestade os
explica por termos tam claros e intelligiveis, que no parecem rases,
seno demonstraoes, cujos impulsos poder comprehender, e executar
159
gos tam intricada sua noticia, e ser tam pouca a luz com que os modernos
nestes Reynos a aperfeioaro, que no foi menor em preza a depor em
razo sciencia tam pouco apurada da negligencia de hns, como confuza
com as enredadas digressoes de outros; e assi somente levado do bem
comum, e movido do effectivo obrar do insigne Goncalo Barbosa, me
pareceo mui necessario resumir nesta Oplosophia, as flores mais principa=
es que em o discurso de algns annos colhi da continua expiculaam
com que experimentey os termos desta sciencia, para que os curiosos que
no sabem possam aprender nos Aforismos Gerais deste tratado a
[Fl. 03v.]
a theorica Destreza, e os scientificos se aperfeicoem imitando em tudo
sua pratttica verdadeyra: E por no ignorar que ha de descobrir
este livro a apaixonada cegeira de muitos, que tem constituido o fun=
damento de sua sciencia na detaco como se fosse o mesmo demonstrar
que notar e entender que censurar espero ver grandezas de sua exce=
llencia em sua enveja; demais de que m e animo a publicalosem te=
mores de censura que me offenda, ou por ter certa a desculpa de seus
erros em minha ignorancia ou pello terem revisto homens tam doutos
que de necessidade por encobrir sua falta, devem calar as que lhe a
charem, pois quando eu fiava menos delle lhe no notaram nha, e
assy na evidencia de que tenho por my a opinio dos mais scientes im=
portar pouco que aos ignorantes desagrade, que quando de seu tor=
pe engano no achem castigo no riso de todos, ao menos devem com=
fessar sempre a novidade dos termos e o infalivel das regras, e o resumi=
do dos preceytos vendo claramente no succinto deste Epitome o mais
essencial da perfeyta Destreza, sem a varia mistura de especies Philo=
sophicas, Mathematicas, Anatomias e Aritmeticas, e sem o embarao
de fallar por linhas, Hippotenusas, ffetuosas [?], Paralelas e perpendicula=
res nem outras deversidade de couzas, que escondem a h entendimento
moderado o sustancial e puro desta sciencia.
[Fl. 04]
LIVRO
PRIMEIRO
Da theorica da verdadeyra Destreza
[ margem direita] Mas ainda que foi a espada mais
[ margem direita] antiga, e que o uso, e principio della que
[ margem direita] se fez no ceo antes que ouvesse homens na
[ margem direita] terra, naquella grande batalha entre
[ margem direita] o Archanjo S. Miguel, e Lucifer, na qual
[ margem direita] foy vencido com seus sequazes, de
[ margem direita] sorte que a primeyra vez que se vibrou
[ margem direita] a espada foi para vencer, e suposto que
[ margem direita] esta batalha no foi com armas mate=
[ margem direita] riaes, e foi entre espiritus com razoes e
162
fender de seus inimigos, que he por esta cauza sublimada entre as demais
[Fl. 05]
demais sciencias, suposto que he tam incerta a noticia que della nos deixaro
as hystorias antigas, que nem ainda por tradio sabemos, que aja tido em
algu tempo, nem em nao alga, por firmes fundamentos de sua Verdade os
provaveis discursos e resolues da sciencia, fundados no alto conhecimento
dos effeitos por suas cauzas, mas somente com os principios da natureza
que os mantinenses [ margem esquerda] alcasamos, que teve origem dos Jogos
[Gladiadores de que uzavo os antigos
inventaro e [ margem esquerda] os quaes exercitavo homens, que tinho por officio
em [todas as festas (parti=
cularmente nas funebres) sair em campo e h por h matarse, por dar gosto
aos vivos, e honra memoria dos defuntos, em seu principio se tomou do=
uso, que os antigos tivero de comprar cattivos que matavo, nas exe=
quias dos homens principaes que morrio; e parecendo pello discurso do
tempo grande crueldade mattar gente humana a modo de feras uzando
de ha cruel misericordia os deixavo adestrar nas armas, para que
dilatando alg Tanto a morte, fizesse o acto mais celebre, e fossem elles pro=
prios executores do sacrificio: E costumavose tanto estes jogos, que
qualquer pessoa commum se metia nestes apparatos, que no tam somente
ero demonstraoes funeraes, mas ensayos que na paz se fazio para a guer=
ra, achando que cauzava tambem muito proveito o horror de tantas feridas
para animar aos circuntasntes, donde se colige, que ate de ver exercitar
as armas, se tira grande e particular utilidade; Diz Cesar na sua Poe=
tica que o primeyro que introduzio este modo de batalhar h homem contra
outro, que foi Decio Junio Brutto, e affirma Valerio maximo, e outros autores
na praa Boaria [ margem esquerda] que foy tambem o primeyro, que em Roma nas
[honras de seu pay fes exequias [ margem direita] nard. deinvent.
outros dizem que [ margem esquerda] publicas com a sobredita solennidade E foro
[insignes Gladiadores Pitto, [ margem direita] rerf. lib. 2.
Appio claudio, e [ margem esquerda] Bachio, Ersenio, Partacho, Turbo, entre outros
[muytos, e finalmente para que se in=
julio consules [ margem esquerda] fira a antiga nobreza desta sciencia, e ninguem se
[despreze de a exercitar
Commodo Emperador de Roma a uzou, e professor sendo Gladiador, po= [ margem
direita] Phylip. Bero: in
rem poprque todos morrio brutamente sem dilatar as vidas com sua sci= [ margem
direita] comp. super Asino
encia, e seno introduzir mais sua falsidade os desterrou de Roma [ margem direita]
aureo
Honorio seu Emperador, mas como os vicios so mui dificultosos de se ex= [ margem
direita] Apuleo. lib. 4.
tinguir, com aquella barbara incerteza, e iniquidade, a erdaro muytos
que ate oje a professo; Depois a ensinaro por toda Europa varios mes=
tres particularmente estimados em suas naoes, sendo o mais antigo Pns
de Perpinham, Achile Marazo, e Camilo Agripa, que o foi o primeyro que
intentou reduzila a sciencia, ou que a condenou a mayores escuridades,
[Fl. 05v]
a cuja imitao florecero Angelo Vizoni Salvador deFabres, e
Jacome de Grasi, e outros diversos em que ainda vivera mais haba
tida e depravada, se na nossa Hespanha o Comendador Jeronimo
de Carrana levado de h sublime e puro ingenho seno aventaja=
ra aos de seu tempo em aperfeioar illustrandoa na impresso
de h livro, em que eruditamente quis provar a essencia da Verda=
deyra Destreza conferindo sua certeza com a firme Verdade das [ margem direita]
Narvaez [no
sciencias, porem como diz Dom Luis Pacheco sobre o mesmo livro, [ margem direita]
[Proto
ou porque as cousas no podem chegar logo a seu supremo estado,
e esto todoas sugeitas a erros e descuydos, ou pella aspereza
enfarandosse [?] assi mesmos com a publicao
de alguns livros que numerados [?] por elles, e
cheios de cousas tam extra- umanas [?] como
costumo sair daquelles que avendo com
seus caprichos formado novos conceytos
no tivero despois discrio para o que me=
dir com a prattica, que he a pedra de toque [?]
que ensina a diferenas e quilates que h
entre o ouro fino da Destreza eo falso al=
quime da esgrima.
167
168
dous nomes Gregos, Oplon que quer dizer armas, e Sophos que
senifica sabio, ou sapiente, que conjuntos formo o de Oplosophia
e valem o mesmo, que sapiencia, ou sabeduria das armas; im=
mitando desta sorte o modo dos nomes que os Philosophos antigos
accommodaro com tam propria energia s melhores, e mais
selectas sciencias: E porque tambem seno ignorem os proveitos
[Fl. 07v]
que com esta se grangeo em primeyro lugar se sabera que servem
seus exemplos regras e preceytos de dar perfeio natureza de
excluir os movimentos que no so de nh frutto, e de liquidar
com arte os mais necessarios para conseguir sua Verdade; porque
com s Verdadeyra Destreza (em cuja sciencia concorrero as mais
nobres e excellentes) se aperfeio as despocioes, se afino
os perfis do corpo, e se alcansa como se ha da fazer toda a of=
fensa sem a receber, porque he ha luz que mostra os mais se=
guros caminhos para a consequencia dos effeitos: E com a
sciencia da Verdadeira Destreza se habilito os animos para
os apertos, e necessidades, se modero os impetos perversos da
paixo, e segundo a forsa da inclinao natural em que se cultiva
faz aos homens valentes mais valentes sizudos e confiados, con=
servando e apurando estes, e suprindo muytas faltas aos que o no
so por natureza assy encobrindolhe com arte as accoes, como
emmendandolhe com o exercicio o Valor: Tirasse tambem por
frutto conhecer, que por razo natural, estamos primeyro obriga=
dos a defendernos, que a perjudicar ao contrario, e depois debaixo
dos meos infaliveis, que para isso ensina a Destreza offendelo,
porque em querer dar muytas feridas est certo o perigo da falsa
Destreza, que he dar uma por receber outra; erro em que de ordi=
nario cae, quem no tem inteyra noticia desta sciencia, cujos per=
ceytos mostro que a sombra da defensa se conseguem melhor os
effeitos e em alg modo o persuade assy a prudencia da natu=
reza, em tudo tam provida, que no h animal por pequeno que
seja, a quem no concedesse alga virtude afim da propria de=
fensa; e s por dar a entender que se deve tratar primeyro desta,
antes que de offender ao inimigo, com singular acerto entre as leys
heroycas dos Valerosos Gregos, mais se castigava quem perdia
o escudo que quem largava a espada. E no he de menos pro=
veito conhecer que com a sciencia da Verdadeyra Destreza se ac=
quirem e acrecento grandes confianas ao Valor, se alente, e exerci=
ta o corpo, se aumento, e multiplico as forsas, se defende e ampara
e que a ofensa e defensa
so correlativos porque [ margem direita] sardi Archi:
ha no pode estar sem [ margem direita] militar in prol:
a outra
172
Tria sunt omnia [ margem esquerda] Aristoteles disse que tudo se enserrava nelle, posto
[que
teve
[Fl. 10]
teve outra considerao, affirmando, que neste numero se achava
principio, meo, e fim, onde todas as couzas se termino. Os que
melhor discorrem aviriguo que a charidade se reprezenta nelle,
porque a Unio, que no Guarismo se chama unidade lhe ser=
ve como de n, que ata os dous estremos, e os concorda entre si
que he officio proprio do Amor; e quando no tivera estas
grandezas, s lhe bastava a sagrada e summa excellencia
de reprezentar o inefavel, e incomprehensivel misterio da
Santissima Trindade.
O numero quatro he tam excellente que os Egypcios contavo [ margem direita] Alex.
ab. [Alex
por elle o anno de quatro em quatro mezes, cujo modo tambem [ margem direita] Lib. 3.
[cap. 24.
se uzou antigamente em Espanha quando do Egypto aveo li=
bertar Osiris das tiranias de Gerio, ate que os Romanos fo= [ margem direita] Xenoph.
[lib.d.
ro senhores della, e tornaro o modo do tempo a ordem que [ margem direita] equivoc.
agora temos. Era entre os Pitagoreos venerado, e assy
juravo por elle inviolavelmente, dizendo que no avia couza
mais completa, e perfeyta, que este numero, por lhe asseme=
lharem infinitas outras, que consistem nelle, como os quatro
elementos, os quatro tempos do anno, as quatro calidades
do Ceo, e outras muytas.
O numero cinco entre os deziguais, reputo sempre os anti=
gos pello mais apropriado para a celebridade de seus Hymi=
neos, e assi acendio nelles somente cinco tochas, em com= [ margem direita] Plutarc:
siderao de que se podio dividir em tres, e duas, numeros
que reprezentavo ambos os sexos com circunstancias particu=
lares. Retrato tambem a este numero cinco as Zonas em que
se devide a terra, que correspondem s cinco do Ceo, os cinco
sentidos, e as cinco chagas sacratissimas, e dellas dirivadas
as nossas cinco quinas das armas deste Reyno tam triunfa=
doras em todas as partes do mundo.
Perfeyto he o numero seis, porque seus numeros divididos e so=
mados fazem justamente seu todo, e se reduzem a sua mes= [ margem direita] Moy: lib.
5. [cap. 2.
ma quantidade, vindo a ser a soma de suas partes alicotas [ margem direita] Eucli: na.
3.9. [do 9.
iguaes a seu proprio numero, donde vem que a cauza entre outras
de porem os antigos no dedo menor, mais que em outro h anel [ margem direita]
[Macobrio. no. 7. dos
177
he porque sendo costume entre elles de contar pellos dedos sinala [ margem direita]
[Saturna:
va este o numero sexto, que he o primeyro dos perfeytos com
aquella reduco alicota, e por denotar tam excellente nume=
ro, lhe punho como em premio tam precioso adorno.
O numero septimo he perfeytissimo e com mais antiguidade que
nh, porque descansando Deos ao setimo dia da maravilhosa
[Fl. 10 v.]
exod. 16.[ margem esquerda] fabrica do mundo, e rematou e pos o sello a todas as obras
[de sua ad=
gen. 2. [ margem esquerda] miravel criao, pello que previlegiando este dia, e
[santificandoo
Ere [?] . 20. [ margem esquerda] com sua benso, mandou nelle exemir os trabalhos
[corporaes, e
Leo. 23. [ margem esquerda] que se celebrasse com religioso culto, e fosse sempre dia
de [descan=
so, ja como em figura do que havia de ter seu santissimo corpo no
Clem: Alex. [ margem esquerda] sepulcro, despois do dia sexto de sua payxo sagrada e
[reme=
lib. 6. stromatum [ margem esquerda] dio nosso. Califica tambem a este numero o
[comporse de terna=
rio, e quartenario, que so os dous primeyros perfeytos deste ge=
Plin: de mundi [ margem esquerda] nero, e he de tam grande excellencia, que assi no
Ceo, [como em
opific. [ margem esquerda] muytas couzas da terra he uriginal de raras perfeyes, nelle
se copio os sette Planetas, os sette tryoes postos ao redor do po=
lo Artico, as sette estrellas notaveis chamadas Pleydes, as ida=
des do mundo e os climas da terra; no se abonando pouco nas
nossas armas de Portugal, que avendo os Castellos, que as orlo
Corrido varios numeros, ultimamente com grande poderao se
redduziro ao de sette, por se achar que era o mais perfeyto. Os di=
cipulos de Pitagoras dissero que este numero era de Virginda=
de por se no poder dividir em duas partes iguaes, e assy foy
Verg. En: 1[ margem esquerda] dos antigos consagrado a Pallas: senifica felicidade o
que
oterg quaterg beati. [ margem esquerda] mostra aquelle Vulgar apostrofe do Poeta, e de
[Tibulo em que
Tib. lib. 3. elegi [ margem esquerda] se comprehendem as felicidades dobradas dalma e
do [corpo. Os
O mitu felicem terg quaterg [ margem esquerda] sacraficios da gentilidade como diz
[Virgilio ero mais agrada=
diem [ margem esquerda] veis os que constavo de sette animaes; e por esta cauza s
per=
Lib. 6. Eney.[ margem esquerda] metia em seus banquetes o numero de sette pessoas,
[achando neste
178
nune grege de intacto septem[ margem esquerda] numero summa perfeyo, donde
naceo [o proverbio fallando dos
mactare iuvencos [ margem esquerda] Convidados, septem convivium, novem
convitium, [parecendolhe que
era confuzo tudo o que passava deste numero, que he tam mis=
tirioso que o tempo todo vay medindo de sette em sette dias, como
he a somana, que com tanto acerto repartiro os mathematicos, e
ultimamente na escretura sagrada, e nas humanas letras, he cheo
de tanta eficacia e magestade, que se pudera de seus louvores fazer
h grande volume.
octies pros d[?] pissime [ margem esquerda]O numero oito he pleno e de summo valor, e
[assi Martial o tem
por ingente, e por grande, quando se queria senificar ha
couza muytas vezes se punha onumero octonario, allem de que nelle
se cifra a particular excellencia de ser Symbolo da Bem
aventurana, e por esta cauza se deu este titulo a muytos salmos
para que os Leytores guiassem o pensamento para a gloria: Be=
da, com Santo Agostinho dissero que a ressurreyo fora ao oyta=
vo dia, que oje chamamos Domingo, e com razo notou so Paulo
S. Paulo. cort. 1.[ margem esquerda] que oyto almas somente se salvaro na arca de Noe
[por ser
cap. 3. [ margem esquerda] este numero dos bem aventurados, e he tanto assi, que no
foi
Cristo circunsidado seno ao oytavo dia, por ser numero dedi=
cado Salvao, e o mesmo senhor no primeyro sermo que
fez tam celebre no Lugar, como na materia, todo elle cifrou
em
[Fl. 11]
em oyto bemaventuranas, porque o numero servisse tambem de [ margem direita] Math
[S.
prova para o assunto sobre que se pregava, tem mais este nume=
ro o favor da igreja catolica que sempre com oytavas cele=
bra os grandes Santos.
o numero nove bem lhe bastara por excellencia ser o ultimo
Carater da Arismetica, e o mais forcoso sem ajuda de outro na
cantidade, mas tambem entre os Romanos era de grande estima
porque no punham os nomes aos mininos, seno fechados os
nove dias despois de nacidos, poder ser que levados da ra=
zo dos Pitagoricos, que no numero achavo grande fe=
cundidade, e o tinho por mascolino, dando a entender que o
homem avia de ser perfeyto, e no numero pares, como de femea
muyta esterilidade. He numero agradavel ao ceo pois se asse=
melha com os nove coros dos Anjos, foy estimado de Apollo pel=
las suas nove muzas, e ultimamente he modello das novenas
da Virgem Senhora nossa, e de todos os santos, que he a mayor fe=
179
180
cap. 4. [ margem esquerda] respeyto ao numero nove, que he o que melhor o sogeyta
[quando se ga=
nha a espada; e porque tambem he a sua raiz lhe cede quando se
lhe agrega, no tomar, e sogeytar da espada.
O numero tres tambem occupa o seu lugar com misterio, porque he ra=
idem [ margem esquerda] iz justa do numero nove, para mostrar que quando mais
[cabalmente
se domina espada contraria he quando he quandos estes dous numeros se
ajunto.
O numero quatro com propriedade se sinala a parte que lhe toca, porque
he racional, e tem raiz discreta (quero dizer justa) e proporo com
Arit: moy. l. 7 [ margem esquerda] o nove, e assi convem que com este se tome e supere
[aquelle, pois mul=
C. 3. art. 1. [ margem esquerda] tiplicando ou partindoo quatro por nove faz numero
[quadrado raci=
onal.
O numero cinco he o primeyro dos dous que s tem a Arismetica
Circulares, porque multiplicado por si mesmo, sempre o producto acaba
em cinco, e no he pequena excellencia porque a figura Esferica
he a mais perfeyta: e porque o meo da todas as couzas deve ser
melhor exornado, sinala este numero o meo da espada da cruz pa=
ra a ponta, e no com pouca semelhana, porque assi como todo o cir=
culo fenece no ponto em que principia, e este numero na multipica=
o sempre se termina na letra em que comea he mui apropriado
a esta parte da espada, porque sempre na Destreza para se suprir
alg descuydo, ou restaurar alga perda, se h de vir de forsa
a este numero que he o meo da deviso; E porque o numero cinco
h
[Fl. 12]
he com igualdade a metade do numero Denario, e sua parte
alicota, e o meo do numero nove, sinala convinientissimamente
este lugar, e distino da forsa da fraqueza; E assi tam=
bem com muyta razo mostra o meo da espada, porque quan=
do este numero se divide, sempre deyxa alga parte comua [?],
ensinando, que dandosse a espada nelle quando o contra=
rio a vem ganhar as linhas so igualmente poderosas,
e o poder das espadas comum a ambos os combatentes.
O numero sexto no sinala o seu lugar sem cauza, porque
tem com o dois proporo multiplez, em respeyto de o inclu=
ir em si justamente tres vezes, e o dois tem proporo sub=
tripla com o seis, para mostrar que tem tres vezes mais
forsa que o dois, a fim de o sogeytar com ventagem nas
ganancias da espada.
O numero setimo tambem ocupa utilmente o seu lugar, porque tem
com o tres proporo menor inigual, e o sette com elle proporo su=
181
a marca ordinaria de cinco e meo, que he a que se uza neste Reyno com acer=
tadissima perfeyo, cabendo a cada palmo h grao e meo: de maneyra
que os numeros que ocupo estas duas partes, tres teros, e seis palmos servem
geralmente(como j tenho dito) para que o Destro conhea que ha de tomar, ga=
nhar, e sogeytar a espada com os numeros de mayor forsa, nos de menor ca=
lidade, quando de Destro a Destro se procede sem ventagem, nem defeyto al=
gum.
E assemelhando essa mesma agraduao se supe, e considero outros
graos na terra, na linha recta que vai de corpo a corpo, na da circunferen=
cia, e nas que formo os angulos rectilineos, que todas se imagino no cho
Como se ve na demonstrao universal, para conhecer as distancias guiar
os compaos, e melhorar os movimentos. e assy todas as vezes que disser fe=
rir por graos de espada, ou ferir por agraduao, h aplicar a calidade
discreta mais forte da espada mais fraca da do contrario, que he o ms=
mo que agregar os numeros dobrados aos singelos, e menores estando
no meo determinado, e quando disser ferir por graos de terra he quan=
do do meo de proporo se fere com a queda do Giolho dereyto, ou com
quebro, e inclinao de corpo, ou quando para qualquer dos lados se en=
curta a distancia pella circunferencia.
[em branco]
Capitulo Oitavo
Que couza seja Venida, cauzas da que h per=
feyta, e como seno devem formar s a h fim.
[em branco]
Venida h ha preposio composta de movimentos differentes,
feyta para ferir, ou defender, e nha se pode formar sem que
inclua em si quatro cauzas; a primeira efficiente que he o
Destro, a segunda a cauza final, que offender, e defender,
A terceira a cauza material, que he o meo proporcionado;
A quarta cauza formal, que so os movimentos, linhas, des=
vios, e reparos, de que consta a forma das preposies, e
estas so as partes necessarias, que de todo do ser a ha
Venida perfeyta, cuja composio nace dos intentos que forma
o animo.
[Fl. 13]
o animo na Destreza, elegendo no entendimento, os meos que mais convenho
para conseguir o intento que pretender, que segundo for a natureza do fim
delle assi buscara o Destro as couzas que forem mais convinientes para o
tal fim; porque ateno do que obra primeyro ve o fim, que os meos que
so para conseguir, donde se segue que a cauza final, he cauza das cau=
zas e segundo o que pede o fim, a cauza efficiente h de eleger materia,
e eleita se aquire emto nella forma que mais compete ao fim do inten=
to, o qual no far nunca o prudente Destro sem que a espada fique para
mais, pois deve de deyxar sempre alga forsa para seu tempo, porque
quem he primeyro na teno final executa derradeiro, donde vem que
183
a que mais alcansa por ser posta naturalmente assi como o brao nas=
ce, sem descobrir com a guarnio o ponto do effeito do contrario, es=
tando o brao dereito, que he o que guarda o corpo, e manda a es
pada
[Fl. 16v]
e ambos o defendem, unindosse todos tres em conformidade de sorte
que as feridas que se intentarem ser com conhecimento, dispondo
o brao com determinao, para que tudo junto com Destreza o e=
ffetue a espada, porque ser prestes, sciente, e animoso, so tres
couzas que na devem faltar ao perfeyto Destro; e quando dei=
xe de ter alga cabalmente, antes seja a forsa, porque nunca nh
homem tem tam pouco, que no sostente a espada, e ento a cien=
cia nos actos em que se determina, o faz ser forte, e prestes nos
movimentos; E todas estas excellencias lustraro melhor sobre
a de mor importancia e mais consideravel, que he a boa despossi=
o natural, que na faltar aos que quizerem ser scientes, porque
como seja couza mui difficultosa, pellejando contra a natureza
querer h homem tirar della por forsa, o que a outro d de gra=
a, raras vezes poder tanto com sua industria e arte que seja
meo para que alcanse o ser perfeyto Destro, no avendo a na=
tureza concorrido da sua parte com os requisitos convinientes
para que se consiga o fim da perfeio desta ciencia, pois no
sogeito em que faltar o inhabilitar de modo, que dificultosamente
obrar nelle, a doutrina de mestres sapientissimos, e a lio de
livros doutos: E porque nesta materia de posturas, tenho visto
satisfazer com diversas opinioes a muitos presumidos de cientes [ margem direita]
Narves [na
na aviriguao de quantas posturas avia na Verdadeyra Destreza= [ margem direita]
Carta [fol: 45
treza, hns levados da doutrina da Carrana, que dis que
as posturas em que o Destro se pode affirmar so seis conforme as
rectitudines generaes, como se as taes rectitudines observassem
este numero forosamente, ou deixassem de ser muitas vezes
particulares; e outros enganados com a falsa invectiva de
quasi todos os mestres, que sem fundamento alg procedem va=
riamente na satisfao desta proposta, digo para dezenganar
hns e constanger outros pura verdade, que entendosse
por posturas aquellas, que se fazem com a espada sem ter di=
ante a do contrario, que sero tantas como em quantos pontos se
puzer, advirtindo que ponto, he couza imaginaria, que no oc=
cupa lugar, e tam pequena que seno pode dividir em partes, e
que os estremos das linhas que so os pontos, para saber que ao
passo que h differenas de linhas h differenas de posturas
e ainda
190
[Fl. 17]
e ainda mais estas pois as fazem varias, e as aumento, os muitos
extremos que podem fazer o corpo, ou os angulos de braos e pernas,
e assi sero infinitas as posturas, e considerandosse com a espada
do contrario diante, h s quatro modos universaes, a que se reduzem
a imensidade de posturas; que ainda ento se podem fazer, mas es=
tas quatro como principaes, e mais seguras a incluem; e
so, ou por dentro da espada contraria, ou pello lado de fora, ou
por baixo della, ou por sima, que de nh outro modo se pode cami=
nhar para o contrario que no participe de alg destes, os quaes se fa=
zem de tres maneiras ou indo a espada de fio, ou de unhas abaixo
ou de unhas acima e ainda que sejo infinitas as posturas sempre
participam de alga destas. A postura de fio he meo e por isso he co=
mo assima disse a mais descansada, e a que mais alcansa, as outras
duas so extremos, porem a que tem mais forsa he a de unhas abai=
xo; e se fizer com ella linha do diametro ser excellente Postura, [ margem direita] qual
[postura tem
porque aquella he boa, que tem mais potencia para os actos da [ margem direita] mais
[forsa
Destreza, e menos fraqueza no corpo. [ margem direita] Arist: lib. 2
[ margem direita] de ani: c. 17
Capitulo duodecimo [ margem direita] e 27
[em branco]
Que cousa seja tacto, que proporoes
h de aver nelle para ser perfeito,
donde e em que partes as ha
de aver.
[em branco]
[em branco]
Da maneira que se ha de partir para o contrario
e se lhe tiro as forsas. Da qualidade
das venidas formadas, e o mais es=
sencial para nellas ferir sem risco.
[em branco]
[em branco]
Escrever a prattica das venidas desta ciencia, tenho por couza confusa
e dificultosa, pela variedade dellas, pello infinito de seu proceder, e pellos
muytos accidentes que as altero, porem o melhor que eu puder direy
os meos mais universaes, e ajustados s espadas brancas, para que sir=
vo ao Destro de Norte neste mar imenso da Verdadeyra Destreza,
principiando pello corpo de homem, que he o primeyro fundamento de
tam necessaria sciencia, porque delle nacem todas as linhas, e se pro=
duzem todos os effeitos, e he a principal couza que acrece mayor gra=
a aos termos desta sciencia, pois sendo h homem bem proporciona=
do na desposio dos membros, ayroso nos movimentos do andar, e
despejado nos meneios das accoes, supre muytas vezes os erros dos
perfis do corpo, das faltas dos compassos dos ps, e os descuydos dos gol=
pes da espada, porque como he para o contrario o mayor objeto, e o com=
sidera em sua perfeio, he forsa que tenha muyta ventagem, e desconte
semelhantes devirtimentos; e porque a primeyra couza que fazem dous
homens querendo batalhar, he investir, e partir h para o outro, comean=
do ou pella espada quando estiver com clareza, e com a ponta dentro
[Fl. 19v]
do limite dos effeitos; ou pello corpo em cazo que a contraria esteja tam
remissa que o no deffenda se partir para ha destas couzas com
quaes passos, e com corpo quase em coadro naturalmente como se na=
da pella rua, que suposto que este modo seja novo, e contra a opini=
o dos que melhor ho espiculado esta sciencia, tenho aviriguado que
he a mais excellente postura, e aco com que se caminha para o com=
trario: e a razo est clara porque indo o corpo quase coadrado
se ajusta melhor com a natureza, tem mais que dar de sy, e inclue
mor forsa; e no posto (como querem algns mestres) logo em seu
perfil, pois mostrar em estar tam estendido tudoo que tinha ocul=
to, e no poder ferir sem aver de encolher a espada, no que se perde
tempo, e gasto movimentos; pello que he mais util partir como digo
com a espada crespa e em angulo obtuso, o brao recto, sem des=
cubrir o proprio ponto por nh dos lados e achandosse a contraria
se tomar e ganhar ou seja pella parte de fora, ou pella de den=
tro, aplicandolhe o forte ao fraco, no com o uso comum com que
se faz, que he apartandosse da espada, e somente encostando
a propria a do contrario, seno chegandosse para ella para lhe
tirar o brao de seu centro, e prolha com linha mais curta e em
angulo mais fraco; e quando se for a ferir, ento se aperfeioar,
195
reyto com o compasso para diante; O segundo tem mais artificio porque
parece que se anda para tras, e he quando se toma a espada por fora
e se caminha para o lado dereyto que se faz movendo primeyro o p esquer=
do como quem forma ha mesura, chegandoo para o outro de modo, que es=
tando atraveado fique com aponta no talo do dereyto, para que com
a seguinte passada se eleja o meo. O terceyro he mais natural que todos
porque se faz tomando a espada por dentro, e caminhando para o lado
esquerdo, principiando com o mesmo p esquerdo, e chegando para o de=
reyto de sorte que atravesado fique talo com talo, para melhor e com
mais desimulao eleger o meo; e por todos estes tres modos se elege
tambem movendo primeyro o p dereyto para adiante, seno que a espada
h de ir agregada desde o meo de proporo para que de baixo deste se=
guro se ponha o corpo na distancia, e juntamente pode assi elegerse
ainda quando a espada esteja apartada e em distante postura, cami=
nhando para o corpo do contrario, como referido cuydado e tenam, que
nestes termos se inclue tudo, porque estas vebidas se fazem, ou
pella postura da espada ou pello perfil, comeando por ella ou pel=
lo corpo, por dentro ou por fora: pella postura quando a espada
estiver de clarada, e pello perfil, quando estiver remota do corpo.
E porque tem o Vulgo nesta ciencia introduzido alguns termos tam
escuzados e tam indignos de sua perfeyo, fora descuydo grande no
apurar de todo sua mais sustancial obra, evitando nella os passos de
Roda que se do com os revezes e talhos, por se gastar tempo nelles e
no irem os golpes com tanta forsa, por respeito de se aver de appli=
car alga com differente Vontade ao movimento dos ps, que como est
dividida e em differentes partes no fico convinientemente fortes, de
mais de que o dalos fora proveitoso se o contrario estivera sem mover a es=
pada, pois ento ganhava terra melhorandosse de sitio para ferir, porem
como a sua vista segue o obgeto do corpo que tem diante, no pode este tal
fazer movimento que ella logo no siga, porque a excellencia do sentido [ margem
direita] [Aristo: elenc. 1.
vizivo faz ventagem aos demais na supita presteza de sua operao
que he em instante e obra sem trabalho, por serem tam irmos e conformes
os olhos, que no podem juntamente ver differentes couzas: que se os
passos pella circunferencia, os aprovo algns professores desta cien=
cia fundandosse em dizer, que com elles se ganho graos ao perfil, como
[Fl. 22v]
e respeytando com a sombra da
espada a contraria com alg
pequeno estremo de munheca
para onde ela fica, porque
em cazo que indireyte ache
ali o tacto aplicado, para a
melhor tomar e sogeytar.
200
aquerir opinio por sensurador de tudo, mas s que sirvo estas mi=
nhas regras de abrir os olhos nobreza de Espanha, para ponderar
a doutrina em que se fia; pois no servem aquelles termos demais, que
de arriscar, e confundir aos curiosos que querem aprender como se al= [ margem direita]
[Narvaez na
cana daquelle aforismo comum que afirma que as especies de feridas [ margem direita]
[carta fol: 45.
que h como genero generalissimo no total rigor so sette, a saber quatro
de talhos e revezes verticaes, e diagonaes, meo revez, meo talho, e estoca=
da, o que no s embaraoso mas falso, porque toda a Verdadeyra
Detreza se inclue em s ha estocada, h talho e h revez que so
as feridas que nos ensinou a natureza, e somente estas servem esta
ciencia de as aperfeioar para se executarem sem rico, dando conheci=
mento para seno fazerem em parte donde se recebe alg danno, e de=
monstrar como se h de constranger o contrario a que desvie, e atalhe,
porque entoo anda servindo com perdas de que se o destro aproveita;
E nem so infinitas as especies das feridas como erradamente escreveo [ margem
direita] [Carranca
outro mestre, suposto que seja quase infinita a deversidade de estocadas [ margem
direita] [fol. 110.
talhos e revezes; pois apertando ainda mais esta cauza tenho por
imprudencia dizerse que h meo talho, e meo revez, porque consequente=
mente ouvera mea ponta, nem mais especies de feridas que as tres de=
claradas, pois a verdade he que no ha com numero certo diversos talhos
Revezes nem pontas, mas s em que se gaste mais ou menos tempo, no
se diminuindo nem acrecentando os movimentos, pois so os mesmos
posto que mais vagarosos ou mais ligeiros, mais apanhados, e no tam
resumidos, ou executados pella materia queo contrario d, e confor=
me descobre pontos; e ainda que digo que cosnto estas feridas de=
iguaes movimentos em numero, e especie, com tudo diferem entre si nos
lugares por donde se formo, porque ao talho he preciso o esquerdo, e
ao revez o direito, estocada pertence o angulo recto, como meo
das rectitudenes geraes do homem; e tambem ha irregularidade de
espaos lineaes, se esta formao he por plano superior, ou inferior,
ou quando a espada est sogeita, que ento como atras disse faz mais
[Fl. 23v]
momentos do que pede a simples formao sua porque foi de cauza
impedida; E toda esta differena ha de ser pellas cauzas que
para isso der o Destro, pois em sua mo consiste, fazerse o effeito dos
talhos e mais feridas sem recebr mr danno; e porque he muito o tempo
que se gasta em qualquer dos circulos dos talhos e revezes, e so por
esta cauza feridas arriscadas se seno do com muito conhecimento
as dispor o destro na forma seguinte.
Depois de aver enlegido pontual meo, se meter a espada bem
agraduada pela parte de fora, e dando no rostro se sentir que
202
[Fl. 26]
e ouvesse na Destreza (dos meos para dentro) alg movimento sem risco,
que feitos pellos cientes no fosse com cuydado, e teno de o recuperar
ou com as posturas de brao e espada, ou com o angulo das pernas e
perfis do corpo; E todas estas venidas da pimeyra teno, as pode=
r executar melhor o homem que for de estatura grande contra o peque=
no com excesso pella Ventagem que lhe leva, e entre os de iguaes
corpos tero tambem effeitos, por consentir deixar enleger meo sufi=
ciente para as formar, pois todas as venidas desta calidade seno
podem conseguir se primeyro no precede o enleger com o corpo lugar
determinado, ou se executo pella ignorancia que o contrario com=
mette consentindo, livrando, fazendo com o corpo, braco e espada
alg estremo antes de posto, ou depois de situado mudana de
angulo: e nestes cazos se pode dizer que est na mo do contra=
rio dispor o Destro as venidas bem ordenadas ou malfeitas, pois
fes erros e descuydos de que o Destro se aproveitou sem lhe ser necessario
valerse de sua sciencia; e ainda que no importa que no contrario aja
estas faltas para o Destro deixar de offender, com tudo com menos ca=
bedal o far valendosse dellas, que as venidas cujos movimentos de=
pendem da Vontade alhea, por terem o fim duvidoso e incerto, raras ve=
zes se conseguem com felicidade.
[em branco]
Capitulo Septimo
Das feridas da Segunda tenam e
de como he proveitoso na Destreza
fazer perdas com conhecimto.
[em branco]
Feridas da Segunda tenam so as que se fazem debaixo dos movi=
mentos, que o contrario principia, como quem tira h talho, e se lhe d
outro no mesmo tempo reparando e offendendo: ou so tambem as fe=
ridas que o Destro compoem de mais que de h movimento, como os
talhos e revezes, que nacem depois de meter a espada ao rostro por
agraduao. E so os termos destas venidas tam dilatados,
que a grande dificuldade que hem comprehender seu genero, pude=
ra servir de desculpa quelles, cujas praticas e particulares de=
monstraoes no foram bem entendidos, ou porque todas no sam
mais que hum pensamento e conceito do animo, sem aver numero
[Fl. 26v]
certo nos que se podem formar, ou porque nha deixa de estar su=
geita a mil accidentes que lhe mudo a sustancia. Mas comtudo
como seja a melhor e mais essencial regra para os acertos desta sci=
encia o comear pella espada, por ser ha estrada dereyta por
Donde com segurana se caminha para o corpo do contrario, po=
207
se ache sempre, e nunca se erre, direy outro modo mais superior que
todos, mais ayroso resuluto e infalivel; para o que ir o Destro
a ferir de fora dos meos, metendo a espada por qualquer dos lados
com tenam s para a tomar no ser que o conatrario indireyta a sua
para offender ou defenderse, e no parea que est a incerteza
deste caminho na facilidade, porque a experiencia tem mostrado que
he este o mais perfeito, para a poder ganhar bem, e a no dezencon=
trar, e se acazo o contrario a vier a tomarlhe ganhar o Destro
por mo, tomandolha no principio do movimento Violento, com que
ficar o contrario atado, e a no poder livrar sem grande risco,
E antes, nem despois de enlegido este meo, se ir nunca fe=
rir com o corpo movido, porque vai fraco, e dividir a forsa na Des=
treza he provavelmente danno, antes ter o Destro cuydado em co=
nhecer, quando o conrtario vem a ferir fora do meo proporcionado,
para lhe fazer contrarios a suas feridas, porque a perfeita Destreza
no nos admitte seno nos erros, como neste cazo por vir o corpo
em caminho, e aver quasi sempre fraqueza li donde a Vontade
desunio a fora e arrepartio: como por exemplo.
Se o contrario meter a espada com ha ponta ao rostro pella parte
de fora
[Fl. 28]
de fora com o corpo movido, perfilandoo o Destro pella circunferencia da
mesma parte lhe dar h talho, precedendo o aver rompido primeyro a
espada contraria com o movimento violento do circulo, para com mayor
presteza lhe tolher o effeito da Estocada, e offender com o talho.
Se o contrario metter a espada da mesma maneyra, lha podera desviar
o Destro tambem por fora, e por no perder tempo com o fio falso da
sua espada, e com o movimento violento, e arrimado contraria pella
mesma parte, lhe dar h talho fendido, para que na perda que fizer
querendo defenderse possa executar outro talho, com condisso, que
seja depois de ter o contrario a espada perdida, e fora do limite do cor=
po, e a onde para poder ferir necessite de encolhela e forme de novo.
Ou se lhe desviar pello mesmo modo, e sem dezunir a espada cain=
do com a propria, se lhe dar ha estocada no rostro, e na perda que fi=
zer acodindo a impedilla, se poder segundar com mais feridas con=
forme ao Destrolhe dictar sua providencia: Ou assi tambem virando no=
proprio movimento a mo de unhas abaixo, de modo que, a guarnio fique
afastando a espada contraria, e impedindolhe o effeito.
E se pella parte de dentro com movimento de corpo, por falta de no
aver enlegidomeo vier o contrario ferir de estocada ao rostro, se lhe des=
viar de unhas assima com a guarnio alta, indo formando h re=
vez, que se lhe dar s com a munheca. Tambe se lhe desviar por
dentro, com o principio do circulo de h talho, perfilando o corpo para
o executar com maior perfeio: Ou atalhandolhe a espada agre=
gado a ella se lhe dar um revez com o fio falso, e logo outro; Ou tam=
210
[em brando]
Capitulo nono
[em branco]
Como a espada sempre agregada fere
livremente, e a que anda desagre=
gada e livre o faz com muyto
risco.
[em branco]
A ciencia da Verdadeyra Destreza, he tam perseguida dos que
a no
[Fl. 29]
a no alcanso, e tam falsificadoa dos que prezumem no ignorala que ha
das razes que me moveo a escrever suas regras, foi ver alguns preceytos
do insigne Goncalo Barbosa tam indignamente ultrajados, que bem
o mostra que de os no saberem, nem poderem imitar, lhe naceo o atreve=
remselhe a trocalos, e a desestimalos; ora atribuindolhe a suas accoes mui=
tas falsas e defectuosas para arriscarlhe por has o credito que avia ac=
querido por outras; ora (grande penso dos que bem acerto) julgando=
lhe o ser unico a dezatino se divera ter por atinado acerto; tu=
do afim de lhe diminuir sua opinio; o que foi imposivel porque ain=
da que grangea mais afeicoados o que erra com todos, que o que apartan=
dosse das cousas vulgares, pode descobrir novo rumo para o porto da
perfeio, comtudo muitos de seus decipulos soubero em toda parte com
tanta admirao fazello respeitar, mostrando a todos o mais puro da
Verdadeyra Destreza, que negocearo com suas obras para seu mestre
o mayor respeito, e a mayor fama, porque quem, ainda vivendo chegou
a perpituar esta s pode dizer que alcansou a mais levantada assi como
se constituio naquelle quem s sem outros livros mais que seu grande Natu=
ral, e ingenho se fez verdadeyro exemplo para ser imitado; e para si so=
licitaro o mayor louvor, e a mayor Ventura, e estar necessitando de enve=
jar a ningem, e aquelle sabendo acquerir envejas. Tudo isto foi for=
coso dilatar, obrigado dever que se atribuia doutrina de Barbosa
trazer a espada livre, affirmando que era a melhor cousa que avia de
ter h Destro, com que se nega o infalivel de seus preceytos: porque a es=
pada para ferir livremente e sem receber antes se h de cumunicar, e
agregar do contrario pella maneyra que as feridas o pedirem, do que tra=
zela livre e desunida, pois andando assi no pode executar sem gran=
de risco, e muytas vezes mayor danno; que de se no darem as feridas
imposibilitando a espada, nace no poder estar sogeita a contraria
diante o p esquerdo, nem botar fora o dereyto
salvo recursandoo pella cercunferencia, em modo
que ficando s com a ponta no cho, tire
o corpo do ponto em que estava e elle se extre=
me em mayor perfeio.
212
e chegar igualmente como a que anda livre, porque duas linhas igua=
es no tem oposio, nem se contradizerem sendo as posturas semelh=
tes, que no tempo que a espada foi a ferir sem respeito do contrario
logo foi perigosamente, e assi o livrar, tentar, nem colear a espada
no he de nha conviniencia, salvo livrandoa no ser dos movimen=
tos do corpo do contrario depois de estar o meo de proporo enleyto, e
ainda ento h de ser junto com a espada contrario, liado com ella, e
bem agraduado, e executadas as feridas sem metter o corpo, tendo
[Fl. 29v]
particular sentido em que ate nestes termos no sejo dispostos os movimen=
tos do contrario com alga teno (que se conhecer pellas posturas e accoes
antes de mover) porque ainda ser pouco util o livrala, pois o assaltearo
os movimentos, que naquelles actos faz o contrario com quazi incomprehen=
sivel presteza que como foi o intento com teno, ficou sempre o corpo em
potencia, para a forsa e brevidade, e gerousse ento o movimento do ani=
mo, cujos impetos so principios dos actos, como os movimentos h
acto produzido do que est em potencia. E como a Verdadeyra Des=
treza trata de excluir de si movimentos escuzados, e ensina quaes
so os melhores, para poder offender e deffender, no so de nha im=
portancia os de colear, livrar, nem os de fazer incitaoes, de que de
ordinario uzo os insientes, porque mal atino com o certo, e no
os Destros que conhecem os mais breves caminhos para as execuo=
es, e quem os ignora sempre vai confuzo e incerto, intentando varios
modos para se bem encaminhar aos effeitos, assi como tem andado
gram parte delles quem sabe por donde vay: Demais de que qua=
esquer pequenos movimentos feitos em meo enlegido so mui arrisca=
dos, e fora delle so de pouco proveito, e s para os imprudentes, e
que no tem conhecimento desta sciencia, so o livrar, o colear, e
as incitaoes mas no nas uzara porque se distrahe a forsa nellas,
e ainda que obrigo a fazer talvez perdas grandes, e constran=
gem a desmanchos demasiados, no succede assi ao Destro, por=
que situa a espada em parte, donde conhece os movimentos que
lhe podem perjudicar, e est prompto para aproveitarse ain=
da dos menores que o contrario fizer, e he melhor guardar a
quella forsa, que repartila em muytos movimentos, que por
acelerados canso, que no gastala nos que so desnecessa=
rios; assi que ferir livremente sem contradio he provei=
toso, como inutil o trazer a espada livre e desunida da
do contrario; como que tambem se perde o sentido do tacto,
no se conhece a forsa das alheas posturas com certeza, e
no se podem perseber com pontualidade os movimentos
do contrario, para se o Destro aproveitar dellas.
Capitu=
213
[Fl. 30]
Capitulo Decimo
[em branco]
Como se devem formar os reparos, e
se avirigua se so necessarios na
Verdadeyra Destreza
[em branco]
O reparo no he preciso na Verdadeyra Destreza, porque se a espada
for (como ensina a ciencia) bem encaminhada nos principios dos movimentos
dos talhos e revezes, escuzara o Destro valerse dos Reparos: e suposto que
se diga Vulgarmente que de bem reparar nace o bem ferir, o certo he que
quem bem repara ao ciente melhor recebe, por causa de descobrir ha par=
te querendo cobrir outra, que na Destreza que resguarda um ponto de
forsa destapa outro, e o prudente Destro no faz os seus effeitos deter=
minados s a h fim, porque de ha cousa converte em outra, e lhe muda
a sustancia: E os reparos no so mais que h remedio de pouca preste=
za e h suprimento de necessidade, inventado para contra os impruden=
tes e que depois de se lhe repararem as feridas, recebem (como for=
sa as que nacem das repostas dos talhos), ou tambem servem os reparos
para quando o aperto obriga em alg cazo a no poder estar o corpo em
distancia para ferir, a respeito de se aver ja formado de todo o movimento
Violento, e principiado o natural, que nos mais cazos, como s o reparo he
para defender das feridas, se escuza, porque as pode o Destro impe=
dir por caminho mais breve, visto saber a parte donde h de metter a
espada bem agraduada e com o corpo plantado para que quando o con=
trario se remedee no possa fazer outra couza, e ter inteiro conhecimento
da distancia e parte donde se forma o talho seus movimentos, e angulos,
o caminho circular que ha de gastar, e as linhas que lhe h de contrapor
para no receber talho nem revez. E considerarseha na Destreza
o Vigor do corpo do contrario, afim de que o destro conhea a falta, ou
ventagem que lhe leva, e aconselhe com sua propria forsa, para que a
no gaste nem canse em movimentos escuzados e pouco proveitosos, e
para que depois de reconhecida bem a do contrario, aplique suas feri=
das conforme ella, porque qualquer movimento por forte que seja, se
mede com outro mais ligeiro, deixando reservada alguma forsa para sair
da Venida pois no fim della h de nacer o reparo, acco principal
do exercicio das armas, nos dous cazos que assima disse, que de
Destro a Destro o melhor no ser de uzar de reparos, mas para que
[Fl. 30v]
se no ignorem quando convinho. Todas as vezes que o contrario formar
talho ou revez, ora seja por propria Vontade, ou seja constrangido
do Destro mais ciente, e no estiver o corpo e a espada em proporo
conviniente para impedir no ser do movimento Violento o effeito do talho
ou o revez com a offensa de alga ferida, e lhe seja forsa por no receber
o reparar, o far saindo ao encontro ao movimento natural da espada,
214
215
216
nos se chegar a alg dos estremos pois os mesmos Romanos que no ero [ margem
direita] Tito livio in dec:
muy altos de corpo foro tam esforados prudentes, e sabios nas
armas que imperaro o mundo, como nossos Espanhoes cuja
estaturas pella mayor parte so medianas, alem de que tudo o que
he meo entre estremos he mais perfeito; E ajuda a esta razo se=
rem de ordinario os homens muy grandes inhabeis para s cien= [ margem direita]
Plato, [e Arist:
cias, porque as muytas carnes e mayores ossos dano o ingenho, [ margem direita] assi
diz [o dereito
e os homens pequenos, ainda, que quasi sempre so mais pru= [ margem direita] civil
dentes que os muy altos, com tudo os de mediana estatura le=
vo omuyta ventagem aos que participo de alg dos estremos,
o que no ser se o homem, que for grande souber os precei=
tos de que deve uzar no exercicio das armas E porque at=
Os antigos Arquitetos e Estatuarios insigne contemplando cuydadosamente as medidas
da estatura do [homem escolhero [ margem direita] Vitruvio
que a mais perfeita e conviniente deveria ter ao menos seis ps Geometricos, e que no
pasasse de sette e [ainda tambem noto [ margem direita] lib: 3
mostra a experiencia, porque suposto que na altura do hom no se possa dizer que aja
certa medida pois hns [so mayores que outros,
Vemos que os de meam estatura, que no participo de
nh dos estremos, so de ordinario os mais suficientes nas
armas, e nas letras, e assi os Romanos (que nada lhe
foy oculto) escolhio os Tyronnes (que ero os soldados novos) des=
ta estatura, e se se no ajustaro sempre com a meam, foy
por inclinarse mais grande, que a pequena, porque a estatura de h
homem militar querio que fosse como ja disse, de seis ps cada h de
doze onas), e desta altura separavo os soldados para a cavalaria e tambem
os infantes que militavo na primeira cohorte [?]
das suas ligies, mas quando a nececida
de obrigava, no observavo esta regra
antes elegio de
toda a sorte de
estatura, pondo sempre o cuydado que
nos moos fosse robusta e forte sobre
ingenho vivaz e de espiritu, e como
as estaturas.
217
[em branco]
De ha breve recupilao da theorica e
pratica das armas dobres.
[em branco]
[em branco]
[em branco]
Capitulo Primeyro
Difinio das armas dobres
e sua divizam.
[em branco]
He a natureza humana tam provida, e aritficiosa que sempre descobre
em sy um certo caminho por donde a devem seguir, ensinado a todos o que
mais se ajusta maior utilidade; e no h duvida que por este aja
introduzido todas as armas dobres, constrangida da defensa propria,
que he cousa natural, para melhor defender, cobrir e amparar o corpo.
Armas dobres so todas aquellas que offensivas, ou defensivas tra=
zidas na mo esquerda fazem companhia espada, que vem a ser quan=
do h homem peleja com duas armas com cada ha em sua mo, e no so
dobres o pique, montante, Alabarda, mangoal e outras que se impunhem
com mos dobradas, sempre a arma he somente ha mesma; e aven=
dosse de chamar dobres, ser s emquanto a mayoria de sua quantida=
de, e o demasiado do peso, e pello que cada ha excede em grandeza
espada e no porque ligitimamente sejo armas dobres, que destas
ha s cinco generos, e todos diferentes hns dos outros assi no exer=
cicio como no poder; O primeyro he a espada e adagua, que por ser arma
defensiva por artificio, e offensiva por natural, he de mayor prehe=
minencia que as outras: O segundo he a espada e Rodella, defensiva
por qualidade, e muytas vezes offensiva por arte. O terceiro he a espa=
da e Broquel, defensivo por propriedade, e em algns actos offensivo
por sciencia, O quarto he a espada e o braal, ou manopla, defensivo
por potencia, e offensivo por propria natureza; e o quinto e ultimo
[Fl. 37v]
genero he a espada e a capa s defensiva quando bem se aplica pa=
ra impedir alg movimento da espada. De todas estas armas
dobres direy no prezente livro, sem tratar nelle das duas espadas
pella pouca utilidade que dellas resulta, e assi tenho intento de que
em outro lugar saya a luz o remedio para contra quem as trou=
xer, mostrando que no tam somente h homem se pode com ha
s defender porem offender ao contrario e sogeytar as duas, pois
somente as tem feito espantosas, o medo que sua vulgar opinio
pos no animo dos ignorantes, e suposto que a que ha vez se ad=
mite se exclue com dificuldade, eu fio do que vi por experi=
encia, que os que ando carregados com ellas se lhe acabe seu mar=
tirio, e os outros as temo menores. E assy agora s recupilarey bre=
vemente as regras mais geraes, e necessarias das sobreditas ar=
227
232
vestidos dos que confiados em seu Vigor, pretendessem vir com os contrarios [ margem
direita] Polibio de castro
a braos, para que entre elles, favorecidos da demazia de suas forsas say= [ margem
direita] Roma: lib. 6.
sem vencedores, o que no intentaro com tanta facilidade, pello risco que
lhe resultar, querendo lutar com h homem, que impunha ha adaga [ margem direita]
[Guilhelmo Choul
na mo, que pode mal sogeytarse pella curta cantidade que tem: e esta [ margem direita]
[de castra Rom:
he a razo, que se por alg successo, se achar h homem s com ha adaga, [ margem
direita] Vigecio. 12.
ou lhe quebrar a espada, como lhe fiquem dous palmos della, no tam so= [ margem
direita] cap: 15.
mente se pode defender de seu contrario, porem offendelo, como no descon=
fie, nem descorsoe, porque ento a desconfiana, pella mayor parte nasce
do temor, e quem teme nada poem em effeito, e tudo intenta com perigo, que
onde h menos receos, h de ordinario menos risco, e o prudente Destro sem=
pre esteve bem e siguro, como no lhe faltou o Valor, e o animo, que o sciente c
o forte da espada (que he o que della lhe ficou) se assegura, reparando,
desviando, e sogeytando a contraria, que determinadamente vem a offendelo;
que a outra metade, que fica daly para a ponta, no serve para mais que
para tentar, e para ferir; e quando o Destro tenha s a adaga, ou h
pedao de espada, contra outra inteyra, no est de todo perdido, ainda
ajustandosse com os preceytos da sciencia, porque a adaga tem a mesma
calidade do tero forte de ha espada, e o mesmo comprimento, com que igual=
mente se obro os talhos tam perfeytos como se fazem com toda a es=
pada, e os desvios das estocadas; e assi os accommettimentos nos prin=
cipios dos movimentos circulares, que de forsa os h de fazer mais lar=
gos que impunhar a espada, que o que tiver a adaga, pella differen=
a das cantidades de ha e outra; e assi precendendo o conhecimento das
[Fl. 40v]
distancias, e dos angulos pode o Destro s com ha adaga fazer luzir
muyto sua destreza. E quando o da espada se ponha recto, e no
queira accommetter, o da adaga o poder necessitar a que mova, es=
treytandoo, e liandosse com ella, ajudado do compao dos ps, e
perfis do corpo, valendosse das prezas, que com a outra mo se podem
fazer, que s nesta falta as permitte a igualdade, e bizarria da Ver=
dadeyra Destreza; e somente ter melhor remedio o da espada
pegando no meo della com a outra mo, com que fica fazendo a espada
toda forte, e no pode a adaga seguramente resistirlhe os movimentos
das estocadas.
[em branco]
Capitulo quarto
Como h o Destro de trazer a adaga,
e o que toma para si no offender,
233
e defender.
[em branco]
Todas as armas dobres reprezento a h homem muy ayrosa, seguro e forte,
se uza dellas conforme determina a Destreza, principalmente a espada e
adaga, cuja excellencia he tanta, que excede a todas, no s na galhar=
dia, mas ainda no poder, pois alem de serem as que mais de ordinario, e
com mayor commodidade acompanho ao Destro, sam ambas offensivas
por propria natureza, e com a mesma igualdade nos effeytos, porque ha
e outra corta e penetra, e lhe servem no s de amparo do brao, e de defensa
do corpo, mas de adorno de gala, e de compostura de todos os que milito,
porque imperfeytamente apparecer um soldade em corpo, se o no acom=
panhar ha espada e adaga e no h cousa que mais satisfaa [ margem direita]
[Vasconcelos na primeira parte
os animos, que ver batalhar dous combatentes com estas armas, [ margem direita] da
arte [mil:
quem d maior lustre, assi o exercitaremse com o rigor que seus
termos pedem, como o disporemse todos os golpes de suas venidas
com a graa e soltura, que requerem, porque o ayroso dos movimentos,
assi d indicios de mayor confiana, e sciencia, como o pellejar
com todo o rigor assigura o Destro, e atemoriza o contrario. e para
se conseguir seu fim em tudo com particular perfeyo, ensinarey o
como o Destro deve trazer a adaga, desterrando os frivolos, e im=
pertinentes modos em que vulgarmente a situo, descobrindo a todos
ha postura, que parece, que quis a experiencia com a grandeza desta
inveno
[Fl. 41]
inveno recompensar a culpa da novidade, cujo poder a tem esforado tanto,
que todos os Destros, que a alcanarem lhe devem render cada dia novas ad=
miraoes.
Primeyramente a adaga de que ouver de uzar o Destro ser toda ella de
dous palmos, que he a tera parte da espada, com que fica o corte da cruz para
a ponta de h palmo, e h tero, pois sendo mayor he innutil, e embaraoso,
porque impede fazeremse com perfeyo os circulos, e desvios, por cauza de que
os tolhe brao e espada, que se seno recolher, ou encurvar (o que he danno=
so fora de tempo)se ferir assi mesmo topando com o brao dereyto, que ser
o menos perjudicial, quando o contrario seno aproveyte de sua tardanca nos
desvios: E as mais applicaoes no sero como re requerem, se a adaga for
demasiadamente comprida, o que no succeder que for com a medida, e
proporo, que aponto: A qual impunhar o Destro apertadamente na
mo esquerda, com o dedo polegar encostado cruz della, trazendo o brao
e assy como por obrigao
a deve trazer desde o mosqueteiro [?]
ate o cosolete [?], desde o sar=
gento ate o general.
234
de modo, que seno dobre em nha junta, seno com elle dereyto, e que sem=
pre com a guarnio da adaga cubra o seu centro, o ferro no se tratar n
tam perpendicular, que goze de fraqueza as partes da ponta, nem
tam recto, que no impida os circulos da espada; que s com a munheca
fizer o contrario, seno h pouco inclinada sobre a guarnio da propria
espada em tal meo, que no partecipe de nh dos estremos sobredittos;
e advirto, que este modo est disposto a lograr tam felizmente seus
effeytos no rigor das espadas brancas (que h s a que sempre tratto
de ajustar todas minhas novidades, pella preheminencia, que tem sobre
a honra, e vida dos homens) que aconselho a todos se revistodelle pa=
ra que sejo mais seguramente defendidos, porque como o custume he
h instituto da Vida, que confirmado coma continuao se redduz a
ser quasi outra natureza, he necessario ao Destro, pello menos, fazer
habito das couzas mais groas, e universaes da Verdadeyra Destre=
za, para que nas veras, nem a colera as mude, nem a brevidade as
altere.
Os scientes na Verdadeyra Destreza (principalmente na espada s)
podem fazer menos cazo da adaga, trazendoa como quizerem, e ainda
com o brao caydo e encostado ao corpo, mas descuydadamente preveni=
da, para se applicar conforme convier, e lhe dictar assi a conviniencia
as perposioes contrarias, como sua determinao, e os estremos em que
tiver posto com a sua espada alhea, conciderando que afermoseo
[Fl. 41v]
muyto a esta arma cantidade de golpes, e que estes se ho de dar
sempre por baixo da propria adaga, ficando ella encima cobrin=
do as partes que a espada no puder, por aver passado do limite
do corpo com o movimento remisso dos talhos e revezes.
E porque todas as armas, que se trazem na mo esquerda obro
s para ajudar a espada, escuzandoa de algns movimentos
conforme a companhia, que lhe fazem, no ignorar o Destro o que
corre por conta da adaga, cujo officio serve de desviar, e de ap=
plicarse em algns dos reparos menores, principalmente nos Re=
vezes, que se tomo dentro dos meos, ficando tudo o mais a cargo
da espada, ainda que de todo no lhe deyxando as feridas, nem
os accommetter, de sorte que ambas podem andar nisto quasi igual=
mente por serem armas offensivas, e suprirem os compaos dos ps
o que falta de grandeza a adaga, porque h muytas occazioes
onde troca com a espada os officios, segundo a conjuno em que
o Destro se acha, servindo a espada de adaga, e a adaga de espa=
da, deyxando cada qual sua propria calidade, e accidentalmente
tomando a alhea, e he troca muy necessaria, e conviniente am al=
gns termos da Destreza verdadeyra.
[em branco]
Capitulo quinto
Por quantos modos pode a adaga tolher
235
237
[Fl. 43]
a outros, que se aproprinquam: E ser desnecessario, e ainda perjudicial aco=
dir o Destro com applicaoes que declarem sua teno, e descubro lugar
em que se fira, pois no arrisca menos na Verdadeyra Destreza assi quem se
antecipa, como quem sem conhecimento deixa de igualar forsa com forsa, e
de ajustar movimento com movimento.
Entra tambem a adaga com a espada conhecendolhe as partes fracas, e a can=
tidade forte, vindo sempre unida ao seu mesmo centro sem o mudar, e applicada
ao fraco da espada, pondo nos movimentos o corpo onde com ella se fizer
angulo (regra geral para todo o genero de armas) e adaga junto parte
donde a espada se desagregou para ir executar o effeyto.
Pode mais entrar a adaga nos movimentos circulares, primeyro que de todo
reforme o Violento, continuando os da adaga para que sempre unida espada
comprehenda todos os outros, e o contrario nem possa fazer nh, nem formar
angulos, e com isto prevenha de nha vez todos os enganos que se intentarem,
e movimentos que se fizerem.
Entra com preheminencia tambem a adaga contra os movimentos das esto=
cadas, arrespeyto de virem rectos, e ella uzar de circulo, o qual inclue em si
com Ventagem a linha recta, ou esteja em potencia, ou em acto de formarse;
com que lhe empata com mayor facilidade os principios dos movimentos circu=
lares, que pode fazer o contrario, que como no conhece, qual h o principio
do Circular da adaga, nem pode alcanar o fim adonde h de fenecer (por=
que estes privilegios no nos comprehende a sciencia) serlhe h dificultoso
acertar bem por donde h de livrar a espada, demais que a no poder
escapar dos muytos circulos, que faz junto a adaga, quando o corpo entra
lanando compassos para diante, ainda que o contrario se tire com outros pa=
ra tras, e se d prea para a livrar. Do que se infere, que o que bem tolhe
o movimento das estocadas faz perder o effeyto a tudo o que dellas nasce;
e a razo h, que como a estocada se produz quasi sempre de movimento ac=
cidental, e leva h mesmo principio em todos seus movimentos, procreandosse
de parte, que multiplicados hns tras outros, perfeyoo o movimento ate dar
fim ao acto, todas as vezes que se desbaratar este principio, se desconser=
tar tudo o mais, porque quando os movimentos so rectos, se fazem os ef=
feytos com a ponta da espada, que governa todos seus numeros; no
sendo assi nas figuras circulares, pois com qualquer parte da cantidade
da espada, com que se acerta, se fere, pouco, ou muyto conforme a forsa que
se comunica quella parte, e a distancia que levou o movimento Violento;
[Fl. 43v]
suposto que contra os que fazem circulos, sera de tam pouco effeyto a appli=
cao da adaga como arriscada, porque so os movimentos naturaes c
vehemencia, e no pode ser impidilos simplesmente a adaga, pois ain=
da que tenha forte a quantidade, como he tam pequena no os pode
resistir, porem aos mais angulos da espada poder contrastar a ada=
ga, por ser a sua proporo universal, e tambem aos golpes Circulares
naquellas partes onde o Destro se no puder valer da companhia da
238
A antiguidade desta arma tras sua origem dos Egypcios os= [ margem direita] Heliod:
liv: [4.
quaes foro os primeyros que a inventaro, no tam largas de cir=
cunferencia como agora se uzo, mas com melhor modo e proporo.
Da excellencia do feitio da Rodella he de crerse dedduziro
os Escudos, e as Adargas, que sendolhe semelhantes no embaraa=
remse e nos effeytos, s se differeno na figura, e no poder conforme
a materia de que so compostos. O tamanho da Rodella de que ou=
ver de uzar o Destro para ser perfeyta bastar que tenha tres palmos
de Diametro, redonda, e ovada; esta trazida juntamente com
ha espada, so duas armas que asseguro tanto a h homem,
como o reprezento ayroso, forte, e determinado; pelloque he utilissi=
mo o saber bem meneada, pois assi para a guerra vindo a espada c
os inimigos, e no saltar de h navio, como para a paz ao que an=
do de noyte serve com grande segurana, por ser ha arma de cober=
tura, que defende quasi todo o corpo, aonde sem fazer movimentos
vem
[Fl. 45]
vem a dar os movimentos dos golpes contrarios. A materia de que h de
e assi levados os antigos de
sua perfeyo no avia ex=
ercito em que no campeass
estas armas, Vigecio na quar= [ margem direita] liv: 3 c 14.
ta ordem das seis em que
Reparte a milicia Romana
poem aos Peltates que ero sol=
dados armados com Rodellas,
o que prova bem Titolivio di= [ margem direita] decada 4. Liv: 1.
zendo que os soldados de Fel=
lippo armados a ligeyra,
ou quasi sem armas defen=
sivas, no ero iguais aos
Romanos, que trazendo es=
pada e Rodella ero conforme=
mente aptos, a se defender, e
a offender aos contrarios, e [ margem direita] Polibio de Castr:
assi tambem os Viletes, que [ margem direita] Rom:
ero soldados ligeiros dos
escoados volantes se ar=
mavo de Rodellas; e nos
nossos exercitos por obri=
gao as trazem os Capites
de arcabuzeyros, e os seus [ margem direita] Luis Mendes de Vasc:
centurioes, quando por [ margem direita] na 1. p: de art. mil:
241
ser a Rodella para mais perfeyta ser da que for mais leve, mais forte,
e da em que mais embacem os golpes do contrario. A espada que se
ouver de trazer com ella, no he foroso (como querem algns em razo
dos muytos golpes que tem) que seja curta e larga, antes convem que se
traga da medida ordinaria, pervertendo com isto o abuzo de dizer,
que assi se costuma, porque o costume sem verdade, nem fundamento; h
s ha antiguidade cheia de error. Uzar o Destro da Rodella
trazendoa com o brao curvo, e com o cottovelo para bayxo, bem impunha=
da, e de modo, que se forme um arco com o brao, porque desta maneyra
anda mais forte para os reparos, e cobre melhor o corpo, no na afas=
tando largamente della, nem chegandolha muyto, e sempre de fronte dos
peytos, porque a Rodella como h circulo formado, com pequenos movi=
mentos impede todos os golpes contrarios; Sua applicao geralmen=
te ser pello modo seguinte; Todas as vezes que se for com a Rodel=
la a receber alga ferida, se applicar quella parte alga forsa
comunicandolha o tacto da mo; para que achando a espada do contra=
rio sempre resistencia, fique ao Destro mais caminho para as suas feridas.
Os golpes que se derem com a Rodella, advirto que sejo sempre por bay=
xo della por serem mais soltos e resguardados; tirando os talhos e revezes
fendidos, depois que a espada tenha passado a qualquer dos hombros,
que estes se ho de dar pella ilharga da Rodella, para o que se de=
ve ento ladear qualquer couza sem descobrir o centro, e tambem situa=
da que recupera as perdas que fizer; E no ignorara o Destro,
que a Rodella s tira a espada o desvio, reparo, e atalho, e a dey=
xa com as feridas, e com os accommettimentos, no fallando nos ca=
zos que succedem por onde lhe uzurpa algns destes officios, porque
a sciencia da Destreza s tratta universalmente do que no tem duvida.
[em branco]
acomodada defensa a no
embrao todos os mais Ca=
pites, e no he em=
barao esta insigne arma
para atravessar um Rio, an=
tes offerece grande como
didade, como se vio na
aco heroica do magno A=
lexandre, que estando para
conquistar nisa cidade da
India oriental, a que cerca=
va h profundo rio, refusan= [ margem direita] Eras: l 4
do passar os seus soldados [ margem direita] apopht: exfulg:
confiado em ha Rodella [ margem direita] 1: 3. e. 22
nu, se lanou em sima sem
saber nadar, e passou a ou=
tra parte, e a seu exemplo todos
242
Capitulo nono
[em branco]
Como uzar o Destro do Broquel quando
fizer companhia a Espada, e dos primeyros que o inventaro.
[em branco]
Est oje tam introdduzido o uzo da espada e Broquel, assi por sua
levido, como pella comodidade de se poder trazer mais facilmente, que
vejo quazi esquecido o exercicio da espada e Rodella; tam proprio entre
[Fl. 45v]
a nao Portugueza, mas como os custumes se uzo assi como se prezo
e o Broquel solicitasse sua estimao com os refferidos atributos, no
he muyto, que seno prattiquem tanto as excellencias da Rodella, que
sempre foy mui poderoso o custume para mudar at a mesma nature=
za polloque me pareceo apontar, assi o em que se destingue o Broquel
da Rodella quando se tras, como a differena que h nas applicaoes
de ha e outra arma, para que o Destro batalhando lhe no troque os
officios. As espadas compridas, ou os estoques, em alg modo,
so mais proprias armas para fazerem companhia ao Broquel,
por razo de que como anda afastado dos peitos, e por esta cauza
fiqua o corpo quasi em coadro, he conviniente que a espada tenha
comprimento que supra, o no poder com perfeyo perfilarse o corpo
pello lado dereyto, e poder assi melhor offender de fora dos meos
ordinarios: Porem como a Verdade de meus preceytos no supoem
demasias nem ventagens para se averem de lograr os effeytos da
Verdadeyra Destreza, a espada ser a commua, e o Broquel que
a acompanhar de bastante grandeza como tenha dous palmos de
Diametro, porque no no julgo por bom demasiadamente grande
arrespeyto de tolher a vista, e de impedir em algns termos, os
movimentos da espada, e ou seja composto de ao, ou de madey=
suposto que ja os antigos prat= [ margem direita] Dionisio alicarna[?]
ticavo este modo de armas [ margem direita] lin: 4.
porque a primeyra ordem dos fa= [ margem direita] Vigecio liv: 3 c. 14.
langes macedonicos se ar= [ margem direita] liv: 2. c. 15.
mavo com escudos Argolicos,
que vem a ser broqueis,
e Eliano diz que a uzana [ margem direita] Eliano de nom et on [?]
macedonica trazio os Roma= [ margem direita] mil:
nos os escudos redondos e
as hastes ou sarissas compri=
das a maneyra do broquel
e estoque, pois aquella se
empunhava com a mo, e a
este arremedavo os botes
das sobreditas hastas.
243
244
e utilidade assi nas guerras que el Rey Don Fernando de Arago trouxe [ margem
direita] [Curita na 1. es
com o Conde de Urgel aonde se uzavo companhias de soldados armados [ margem
direita] part: dos An: de
com Braaes, como ja nas grandes conquistas, que os de Catalhuna tivero [ margem
direita] Arag:
em Africa, em que seria na fortaleza, e luzimento destes homens a venta=
gemque fazio aos que trazio outras armas, por ser o Braal muyto ap=
paratoso, e forte; E ou se companha de varias laminas de ao, ou de
ha s, seu officio h Reparar, desviar, Rebater, atalhar, e ferir. E
porque no me ficasse por trattar de ha arma dobre tam util, ainda que
exquisita, e desuzada, quis recordar neste Capitulo seu modo e applica=
oes, para mostrar a todos, que ha couzas por si tam grandiosas, que muy
tas vezes em sua mesma Remisso grangeo os favores e a estima, Reucitan=
do de h estado amortecido de mayores luzes memoria dos homens.
Do uzo do Braal (como entrecinzas) s veo a ficar aos falsos Destros
(quando exercito as espadas negras principalmente no Reyno de
Castella) o metter o brao esquerdo estando as espadas em certos termos,
com que fazem ha venida resulutissima na percheria, e no ayrosa
nos ensayos da Verdadeyra Destreza, a que chamo tretta de Manotoada,
[Fl. 46v]
ou de Braal, uzando mal do que s serve para o rigor das veras e
no para a cortezia das escolas. Quando o Braal fizer com=
panhia a espada branca, se deve situar com o punho junto guar=
nio, e estendido o brao o que permitirem as laminas, para que
faa os desvios mais longe do corpo, para que colha os reparos dos
golpes mais nos principios de seus movimentos naturaes, para que
Rebatta no meo da espada contraria e no se lhe possa livrar, pa=
ra que atalhe com melhor desposio, e ultimamente para que
fira com mais brevidade quando a propria espada tiver sogeyta
a do adversario, porque estes cinco officios so os que fio ao cargo
dos poderes do Braal.
A manopla * tem demais que o braal aquella tam grande ventagem de poder
*
por ambas as partes, para que o Destro escolha a que melhor julgar, me
parece, que o da Rodella, porque est de longe sem chegar aos meos impi=
dir com a forma circular todos os golpes circulares, deixando as es=
tocadas, que as mais das vezes a desvia sem alg circulo, porque o h
a Rodella j formado, ou com pequenos movimentos os pode impedir,
ferindo a espada a seu salvo; e quando primeyra vista no parea
bem a cauza da parte do Circular da Rodella, por tambem
formar circula adaga todas as vezes que se offerecer, advirtasse,
que h grande differena, porque no ando nisto em igualdade, que
[Fl. 48v]
que h dos circulos est j feyto, e o outro hasse de formar de
partes segundo a boa applicasso, e se adaga errar o in=
tento da parte do contrario, o que tardar em restituir o perdido,
perder forosamente a espada na conjunso de ferir, por cauza
de no poder em h mesmo tempo estar a fora dividida e em
muytas partes, pois se alga vez est fico fracas arrespeyto
da que tivera alga se s a ella se apllicra a vontade; sup=
posto que tambem a indeterminao com a Rodella faz muytas vezes
cobrir o seguro, e descobrir o perigoso, indo a Reparo por sima
onde tapa os rayos visuaes, com o que no pode deixar de rece=
ber por bayxo se o contrario converter as feridas, e adaga como
sempre estiver em seu centro, acodir com mais presteza a todos os
desvios formando circulo s com a munheca, que ainda que a espada
venha de engano (por cauza de no impidir adaga em nha parte
a vista) no se livrara a espada dos seus movimentos, e ha vez
bem applicada se lhe no desagregara, porque tambem goza do
sentido do tacto; deyxando a parte o genio particular, que cada=
h tem a arma que se inclinou, para obrar mais com ha que com
outra porque tudo vence a natural inclinao:
Em todos os preceyos destas armas dobres, me pudera
dilatar com mais preambulos, porem como no quero deixar
de seguir o meu primeyro e principal intento, tratey de os escu=
zar quanto pude; por no sair a luz com couza que no
fosse de sustancia para melhor conseguir o abreviado, e rigu=
roso procedimento das espadas brancas (unico fim a que s me
dirijo nesta recupilao), porque para aver de escrever aqui
o que no se ajusta com aquellas, e s se faz com as prettas,
fora h engano manifesto, que no custra a quem o admiti=
ra menos que a vida, porque ainda que o saber no he outra [ margem direita] Arist:
[post: 1.
couza que entender por demonstrao, comtudo nem todas as
que se exercito nas escolas so boas para se fazerem
nas vras, porque algumas daquellas no servem mais que
para dezenvolver, e todas as que aqui escrevo so para que
o destro possa fiar dellas, no s sua honra, mas a propria
249
tados. E ainda que para conseguir com arte esta Valentia fora
escuzado Mestre para a ensinar, pellos meos da Verdadeyra Des=
treza, lendo estudiosamente todo este livro, com tudo, porque os
talentos so hns melhores que outros, no perseber e no imitar, e
ser mais facil dandoa o Mestre ao decipulo disposta e preparada
em termos pratticos e intelegiveis, me he forado dizer o que he nessessario
a h perfeyto Mestre. Pello que conciderando, que tudo o que se faz
se no pode eximir de ser por ha de de tres maneyras, convem a saber,
ou por natureza, que he quando nos obriga a natural inclinao
proprio afecto, ou por acerto, que he quando as cousas se fazem
acaso, e com duvidoso effeyto, ou por arte, que he quando tudo
estriba em fundamentos certos, alcanaremos, que sendo esta
ultima s a conviniente e proveytosa, pois com ella no s se per=
feyoa a natureza, mas se foge do que se faz, acazo e por acerto,
o que mais convem a todo o homem que quizer ser perfeyto Destro,
h a boa eleyo do Mestre que o ouver de ensinar; porque ser
grande imprudencia e dannosa escolhelo insufficiente para dou=
trina tam importante; e quando o achem com as partes que aqui
aponto, no s o devem venerar mas ter em grande estimao, porque
a ningem estamos mais obrigados, que aquem nos advirte do que
erramos, e nos encaminha para acertar: e convem a h homem
prezarse tanto, de ser decipulo de bom Mestre, como de ser filho
de pais nobres, porque destes se recebe o principio de viver,
daquelles o caminho de bem viver; e assy em primeyro lugar
ser todo o Mestre que ouver de ensinar a Verdadeyra Oploso=
fia, virtuoso, e de bns costumes, para que os decipulos lhos re=
tratem, e se no dannem com os perversos, ser de vida limpa,
e de fama estimada, porque naquella segurem os pais o cre=
dito da honra de seus filhos, e nesta a esperana de o pode=
rem assemelhar gloriosamente; ser bem proporcionado porque
como esta ciencia se aprende na primeyra idade, e os moos
tem nella mayor efficacia para imitar, e para aprender, he
necessario inquirir com muyta diligencia, que at nisto seja
o Mestre
[Fl. 51]
[ margem esquerda] adornado com os bons sucessos a propria [apagado]
[ margem esquerda] esta [?] mais coincide [?] nas provas que na vida larga que o cervo
[m[?] 3 annos _ve
[ margem esquerda] e he h animal
o Mestre perfeyto, pois ento mais facilmente tomo os costumes e vicios de
quem os ensina, como parece nos decipulos de Aristoteles, e Platam,
que no s tomaro doutrina e letras de seus Mestres, mas de h apren=
dero a tartamudear, e de outro tomaro o andar corcovado; do que
se pode julgar o danno de aprender con ruins mestres; aquelles digo
que fundo sua Destreza, e na dezenquietao e descompostura do corpo,
252
lhe dera lugar, para atinar com a verdade, avendo quem lha
mostrasse por dezengano de seus erros.
E no me espanta ver que tem chegado a nobreza desta ciencia
a tam infimo ponto, quando qualquer official mecanico, cujo enten=
dimento no alcana o menos importante de seu officio, o deyxa
e se faz mestre das armas, sendo que h muyto que aconselhou
Apelles que ningem intentasse meterse em couza que no professa=
sse. Mas estes s devem chamarse com grande conviniencia
Mestres de Esgrima, por ser nome justissimo ao que ensino, porque
esta palavra gryma senifica no idioma castelhano, cousa que tras
temos e perigo, e assi se intitulo muy propriamente pois he
o mesmo que mestres de temor, e que ensino a temer; para cujo
remedio fora de muyta utilidade que as Respublicas tratassem
com grande cuydado de examinar os mestres que ho de ensi=
nar a seus filhos, pelo modo que adiante digo no Capitulo onze
dandolhes salario particular, conforme a seu talento, e igual a
sua ciencia; para que ento os taes constrangidos do premio,
e dos applauzos, procurassem saber mais do que sabem, estu=
dar mais do que estudo, e prezumir menos do que prezumem.
[em branco]
[em branco]
[em branco]
Cap.:
[Fl 52]
Capitulo Segundo
O talento que devem ter os decipulos para
sairem Destros, e como satisfazem
os Mestres com o que so obri=
gados a ensinar.
[em branco]
Felicemente lograr qualquer Mestre sua doutrina, que conhecer as partes,
e talento do decipulo, que quizer aprender a Verdadeyra Destreza; pois
guiado com esta luz no pode errar nas applicaoes do que mais se
ajusta com a idade, com a estatura, com a natureza, com o animo, e
com o ingenho, entendimento, memoria e prudencia de cada h em parti=
cular; e sem esta luz dificultosamente alcanar o fim que dezeja;
e sirvanos de exemplo o insigne Barbosa, que sempre elevado na
conciderao de que os erros, ou acertos dos decipulos, ero gloria
ou deshonra de seus Mestres, nunca os escolhia de partes incompa=
tiveis Verdadeyra Destreza, e s ensinava cuydadosamente as
que ellegia por sufficientes para sairem perfeytos Destros: diligencia
que todos os Mestres devem observar advertidos, para que depois se
no arrependo inremediaveis. E discursando sobre as couzas sobre=
ditas afim de que os Mestres no ignorem qual de seus estremos he
o melhor, e como as podero conhecer, por fundamento e adorno de todas
254
tas couzas sem ajuda de outro, e pello ouvir nha sem outro o
no ensinar, que o ouvir nunca fez mais que decipulos, e a
vista sempre fez mestres; e assi no s nestes Rudimentos
mas em couzas de mayor quantia se devem exercitar diante de
seus decipulos, para que vendoo o imitem pois he ordinaria natu=
reza dos homens persuadiremse mais com as obras que vem, que
com
[Fl. 55]
com as razoes que ouvem; e quando o entendimento dos termos da Destre=
za dependa de explicarse o mestre theoricamente, o far com razoes e=
videntes, breves, e no confuzas; e sempre iguais e ajustadas ao que de=
terminar por em prattica, repetindo ha cousa muytas vezes para clareza
do que for escuro, com lingoagem sempre conforme capacidade do
que ouve, porque o saber de quem aprende no consiste em dar credito
ao mestre que o ensina, se no em que seu entendimento se contenta da boa
consonancia que lhe faz a douttrina; porque na verdadeyra Destreza,
como os que de ordinario a aprendem so homens de capa e espada e
soldados que no professo saber termos filosoficos, convem para os
no confundir, que o mestre se adgetive com o talento que lhe examinar,
e para no aver em nada embarao devem ser as pallavras que di=
cer, emtudo sombra das obras que fizer, por no escurecer com muytas
razoes o que ensinar, pois s importa appontar as essencias que bas=
tem para a explicao do que formar; e ainda para os que no so
rudos convem fallar por termos claros, e no embaraosos, porque os
preceytos e regras das artes, no so s grilhoes para os que no tem
ingenho, mas sossego para os entendidos: No ensinando por figu=
ras Geometricas, se no com demonstaoes da espada evidentes, porque
no s descorsoo ao principiante termos mathematicos, mas molesto
ao ciente; e juntamente tudo o que propuzer provar no com palla=
vras n porfias (que so o abrigo dos ignorantes) seno com razoes e=
evidentes, e demonstraoes certas, pois o ciente se conhece pella altive=
za e gravidade no que diz, e o prudente pello adorno, modo, e compostu=
ra com que diz, e assi so escuzadas muytas pallavras, e as vozes de
nh proveyto, que os mestre que pertinazmente defendem suas opinioes
no alcanando a razo se poder prezumir delles com certeza, que lhe
falta o Verdadeyro conhecimento pois lhe sobejo porfias.
Convem juntamente aos Mestres que nos principios batalhem entre s com os de=
cipulos, at que saybam venidas bastantes a todos os fins, porque lhe fi=
car mais facil fazer h Destro em menos tempo: e por muyto
cuydado em dezenvolver aos Modernos, para que ao diante sayo
prestes nas acoes que fizer o corpo, e ligeyros nos golpes que der
a espada, no lhe fazendo confuzo com cantidade de Venidas, n
nessas poucas (em que nos principios o trar alg tempo) lhe apure
os erros de metter mais ou menos o corpo, de tardarem com a espada
260
[Fl. 55v]
ou de se anteciparem pois ento lhe h de passar por elles, para que
lhe no parea; que h a dificuldade, que o saber e a continuao
lhe h de facilitar^ trattando de por em razo tudo o que fizer,
pois no h nesta ciencia outra authoridade mais certa do que
ella, arrespeyto de averem poucos escrito (e esses confuzamente)
a prattica de suas excellencias, e de todas quantas nella se acho
no comearem com a summa perfeyo, em que o tempo pouco e pouco,
e a ciencia e industria do insigne Gonalo Barbosa tem constituido
a Verdadeyra Destreza.
E despois de h decipulo ser batalhador encomendo aos Mestres
que pois he tam dificultoso o conseguir o fim desta ciencia, e as es=
padas pretas so h molde do que se h de fazer com as bran=
cas, e seus termos so tam abreviados, que nos primeyros impetos
se declaro as ventagens, que prohibo nos publicos a seus decipu=
los batalharem mais que at seis venidas, a ha para lhe ha=
bituar os animos a mayor resuluo, e a outra porque se nellas
lhe ha succedido mal, h muyto certo que s com o sentido na
Vingana e em querer dar (que so os meos porque se tapo
os portos defensa natural) receba cada vez mais feridas, e
se pello contrario lhe ha acontecido bem, he provavel que no se=
ja assi ao diante, ou porque ja so menores as forsas, e a confiana
de se aver melhorado o far descuydarse, ou porque a fortuna se
no preza de accommetter aos vencedores, seno de contrastar a
os vencidos
[em branco]
Capitulo Quarto
O danno que resulta de se apprender
esta ciencia com Mestres=
ignorantes.
[em branco]
He a ignorancia uma falta de saber, ou por carecer de ciencia, ou [ margem direita] S.
[Thom: in g. de melo.
por ter o erro contrario a ella, que he o mesmo que ser falso ciente, e por
que esta he a que mais tem arruinado a Verdadeyra Destreza, im=
porta muyto conhecer, que os que concorrem em h daquelles estremos
sero Mestres ignorantes, para se fugir delles, pois nh pode ensinar
couza que no seja perversa, por ser a ignorancia o mayor de todos os malles [ margem
direita] Cic: 3. denat: deorf.
e sua
[Fl. 56]
^
e sua principal origem: e com mais razo na Verdadeyra Destreza das armas,
pois he a mais nobre das ciencias humanas, ha das que deve ensinarse mais
perfeytamente; porque de no ser assi, no s resultra em acabarse com a mesma vi=
da, mas perderse a propria honra; e comtudo ha he mais desemparada de
mestres doutos, nem mais perseguida dos ignorantes, ou seja porque a admi=
rao dos que os ouvem, no alcanando o que venero, os faz contentar do que
prezumem saber, e assi ouzo persuadir novos erros, ou porque como a Vam=
gloria excita a mayores atrevimentos, lisongeados de seus sequazes, e applau=
Verdadeyra Destreza, sej no he, que pella ignorarem totalmente a no
ensino como convem, e lhe nace sua temeraria e necia confiana, somente
desta ignorancia, tam commua a muytos, como perigosa a todos, crendo
(cazados com sua opinio), que podem seguir o fim da Verdadeyra Des=
treza, mais guiados pello que invento, do que pella verdade de seus in=
falliveis preceytos: sendo que he imposivel passar pello estreito caminho
da Destreza (pisado de tam poucos) cegos os olhos da razo, e cheios de
ignorancia: E porque de ordinario a pertinencia dos que erro he difi=
cultosa de curar, no me persuado, que poderey remediar faltas tam co=
nhecidas em sugeytos tam idiotas como so os mestres vulgares, mas s
he o meu intento mostrar o danno que procede de aprender com os que fo=
rem ignorantes, para que os discretos se apartem delles, e com prudencia
saybo eleger os mais peritos: e ainda que os dannos so muytos s
appontarey os principais, para que delles discretamente se infiro os outros.
H o primeyro, e o mais universal, no ensinar aos decipulos o
que convem a suas naturezas, cauza porque os homens vem a tirar pou=
co frutto do trabalho, que puzero em ser Destros, pois de ensinarem
os Mestres ha s cousa a todos, sem a differenar para alg (no
sendo em geral as partes iguaes) se infere provavelmente no s o pouco
que sabem, mas queseno podem nunca aproveytar os decipulos de
doutrina, que no for muy coveniente a suas inclinaoes, pois se fundo
somente em ensinar o que sabem para sy, e no o necessario, a quem
aprende; deve ser isto, que por quererem mostrar facilidade no ins=
truir o fazem a todos com h modo commum, e com venidas geraes,
Sendo assi que no somente ho de ser particulares medida das na=
turezas, mas conforme materia, intento, animo, e desposio do
contrario, que o Destro com todas estas couzas se deve aconselhar
obrando.
[Fl. 56v]
obrando: e com a auturidade de Mestres (sem nha auturidade)
encayxo dos decipulos seus erros, e o peor h, que tem por si, que
para o mal se inclino todos facilmente: e cada h dos deci=
pulos como no tem ciencia, tem por melhor o que mais lhe con=
tenta no o que mais lhe aproveyta, e como em sua vida no
tem feyto, nem tem visto fazer outra couza melhor, no na podem,
nem sabem contradizer. a quantos engana esta confiana, que
os mestres tem de si mesmos; a quantos offende esta vem autu=
262
263
com animo de receber mil feridas por s executar sua teno, pois no
trattaro de outra couza mais que de ensinar a dar com todo o risco, como
bruttos animaes, tendo nos naturalmente de mayor obrigao de de=
fendernos (pois daqui nace a melhor offensa) que de offender ao con=
trario com proprio perigo.
E uzam tambem os falsos mestres da Destreza ordinaria, que
he quando o contrario vem a ferir fora do meo determinado, ou com
[Fl. 58v]
a espada mal encaminhada, offendelo sempre que tenha effeyto o que
intentou primeyro, que he ao que chamam vulgarmente fazer con=
tras, que tambem he falso, pois no ha nesta ciencia, por estar
oje posta em tanta razo, tam apurada e em tam infaliveis per=
ceytos;; que se no permite na que he verdadeyra aver effeytos
em nha das partes sendo em tudo iguaes; e esta tam regu=
lar razo he s facilidade que tem, para melhor a persebe=
rem os Destros que forem de sutil e claro entendimento, e assy
onde ouver mais Levantado aver mais excellentes e agudas
preposioes, porque como esta virtude da razo esta colocada
no entendimento dos homens, no s persebe facilmente ainda
os termos mais exquisitos, mas tudo o que no for regido por
ella se far no ar, e no ter bons fins.
[em branco]
Capitulo Sexto
Da intiligencia da Verdadeyra Oplosofia;
e o que differe de sua expiriencia.
[em branco]
desigualdade differe do entendimento desta ciencia, sua particu=
lar experiencia, porque a sabiduria, e a inteligencia de qualquer [ margem direita] Arist:
[Eth. 6.
couza, (virtude intelectual) he h habito com o qual o entendimento [ margem direita]
[SThom: l. 2. q 5
conhece os effeytos pellas cauzas universalissimas, ejulga dos
principios da ciencia: e a expiriencia he ha examinado= [ margem direita] ningem
[imagine saber em ha
ra da verdade, e h habito demonstrativo daquellas couzas, [ margem direita] profisso
[sem experiencia
que necessariamente so o que dellas se mostro, ou conclue, assy
na Verdadeyra Destreza he mayor esta differena, porque seu fim
no est Mathafizicamente no entendimento, n s no conhecimento
dos primeyros e notorios principios das ciencias, se no em hm
habito do entendimento, o qual prescreve os modos das couzas fac=
tiveis extiriores, como a Architetura, escultura, Navegao e outras
acoes humanas; e corrobora mais esta differena ver que assy
como altera navegao prattica, o vento, o mar, e outros varios
accidentes, assi muda a obra da destreza, a diversa e no co=
266
[Fl. 60v]
E outros muytos pontos, em que pello discurso deste livro tenho to=
cado somente, porque no faa ostentao de reprovar a ninguem
com somma de pallavras, seno com a verdade da expiriencia, a
qual seno faltara a estes mestres, por sem duvida tenho que a
certaro constantemente em todos seus preceytos. Pelloque he
muyto necessario a todos que ouverem de ensinar esta ciencia,
averemse experimentado nas veras, pois estas so a mais certa
prova da bondade de seus termos, e no s confirmao de seu cre=
dito, mas dos actos da fortaleza, e accoes do animo, porque assy
como melhor ensinra a arte da navegao h mathematico que
ouvesse navegado muytas vezes para diversas partes do mundo,
appurandosse cada ora em particulares expiriencias, do que o que
nunca passasse a inconstancia dos mares, nem visse a variedade
dos climas, assy ensinar melhor a verdadeyra Oplosofia hum
Destro valentemente experimentado, que o que s for cientemente
douto. E no basta aver aprendido as armas, nem ainda o a
vellas exercitado toda a vida, para as saber ensinar, nem para ac=
querir nome de ciente, como no tenha com conhecimento alcanado
na expiriencia, Verdadeyras dilicadezas, misterios, e quilates,
que em todas as couzas descobre, porque supposto que nellas o uzo
passa muyto se a experiencia do particular se no adgestiva dis
crisso do que experimenta para melhor conhecer o universal, no
ser parte a experiencia para mais que topar com a verdade,
porque o conhecela, e admitila fica a cargo da ciencia, do que se
Resolve que os cientes tem mais conhecimento, que os que somente
tem experiencia, porque aquelles conhecem as cauzas, e estoutros
as ignoro, os erros daquelle na intiligencia so com arrimo, e
porque a experiencia e exercicio
so escolas verdadeyras para a=
prender, e mais se sabe com o
exemplo e trabalho, que com as
pratticas e documentos
270
ou o acerto, que alga ves tiverao por accidente, que chegou a tam bay=
xo estado, que cada qual constituindosse em sua idea por unico incen=
tor della, se atrevero a reduzila a tam varias e cegas opinioes, que
dificultosamente se pode comprender seu fundamento; porem no s
fes patente, mas remedou esta falta de expiculao nos homens cientes,
e a razo nos afeyoados Destreza, para que dezenganados tomass
[Fl. 61v]
por atalho de tam grande precipicio a escolha de h prefeyto mes=
tre fiado antes em sua boa elleyo (como em virtude intellectiva pro=
creada da prudencia) que no no applauzo do povo, e na opinio dos
ignorantes, que oxal que fora tam facil o ser bom mestre como he
o fingilo por breve tempo; e procede este danno do pouco cuydado
que se poem nos exames dos que ensino publicamente, porque
o descuydo com que se procede em os fazer examinar, lhe tem no
s diminuida a curiosidade de aprender mas, em quasi todos, esta=
balecida a ignorante e falsa destreza; que como conhecem, que
a remisso dos Ministros a quem isto toca os h de deyxar ser
Mestres sem exame no pretendem saber mais do que prezumem;
ou nasce este danno de que como os homens que entro nas seme=
lhantes escolas, no viro outra couza, que a que aly se esgryme,
percebem logo facilmente, que aquella h a melhor, a mais pura, e
a de mayor Verdade do que despois nasce a copia immensa de fal=
sos Destros, que sabendo quatro floreos e esgares com a espada
blazonando ciencia, no s se contento de depravar o sustanci=
al e ayroso da Verdadeyra Destreza, mas ainda troco suas
certas e sutis venidas em mentirosas demonstraoes, e impropri=
os termos com cujo engano desvanecidos seus Mestres no trat=
to de aprender mais que o que imagino saber; o que pudero
Remediar com muyta utilidade os exames publicos, para que nel=
les claramente se differencassem os ignorantes dos cientes, se=
guindo a doutrina destes, e abominando os erros daquelles; e
de todo se extinguissem os diversos sugeytos, que se contento s
com igualar a Destreza a seus baixos e limitados pensamentos;
e conhecendo os antigos quanto importava aver mestres doutos,
e homens cientes e exercitados, procuravo industriosos solici=
tar hns e outros, ordenando por leis, e constituioes os exerci= [ margem direita] str:
[l.7.
cios militares, com que se fazem os animos fortes e os ccorpos ro=
bustos, e se assi fora, e ouvera para doutrinar os homens nestes
exercicios Mestres examinados, no estivera esta ciencia tam
deslustrada, e os homens foro mais sapientes da Destreza das
arams, no seguindo tam crassas ignorancias, mas s imitando
as illustres e valerosas naoes que ouve no mundo, que nelles ex=
ercitavo os moos para que depois de mayores fossem perfeytos
soldados
272
[Fl. 62]
soldados, e sendo os Gregos os primeyros que nas suas Respublicas [ margem direita]
[Hyeron: Mercunal.
ordenaro estes exercicios, e por respeyto delles os Gymnasios, ou [ margem direita] l.1.
[cap6. e 13. de
Palestras, onde se fazio com outros que tambem convinho ao ani= [ margem direita]
[arte: gym:
mo, como ero lanar o disco que conresponde ao tirar a barra,
menear o dardo, jugar o pique, vestir e exercitar o cossolette,
correr os parios a p, manejar os cavalos, lutar e tornear a que
chamavo a danca Pyrrhicha, e outros muytos que successivamente [ margem direita]
[Vitruv: l. 5.
em Roma se continuaro tanto, que se tinha por afronta dos man=
cebos faltar nelles, porque daqui sahio examinados e com premio
assi os que melhor sabio, como os que mais obravo; e j que
tam remissivamente se procede nesta imitao, e tam mal obrigo
estes nobres exemplos, quero descubrir os mestres outros cami=
nhos para os obrigar a que no fujo de examinarse, senifican= [ margem direita] o que
[quer ser mestre por si mesmo
dolhe que quando no fora por outra couza, que por propria co= [ margem direita] quer
[fazerse medico matando
modidade o devio fazer todos, porque como a honra, he hua digni= [ margem direita]
[enfermos
dade acquerida por alga virtude, ninguem fora mais honrado
em sua profio que o Mestre que com h exame publico descobrisse
seu talento e consumasse sua ciencia, demais que h o acerto de
qualquer exame de tanta grangearia para os que saem delle ap=
provados, que ou se deve crer que tudo ignoro os que receio, ou
no alcano que lhe pode reddundar se sairem bem examinados,
no s honra e fama para consigo, mas opinio e credito para com
todos, que se estas couzas se acquirem por proprios merecimentos,
nhans so mais gloriosas, nem mais se devem estimar; e bem des=
cobrem suas insuficiencia os que seno querem examinar, pois s=
mente dandosse cazo que se sayba ha couza com incerteza, se
pode prezunir que h receos e temores no emprendela, a ha
porque ninguem teme fazer nos publicos aquillo que confia a=
ver bem aprendido, e estudado nos particulares, e a outra porque
ainda nos grandes perigos no falta confiana a quem entra
nelles com seguros e certezas de vittoria. e he lastimosa couza
ver que ponho os Respublicas cuydados em fazer examinar todo
o professor de qualquer arte ou officio mecanico sendo de menos
importancia, e que consintam que ciencia, nem exame alg
aja quem ensine publicamente a Destreza das armas. o quem
pudera obrigar a hns ao conhecimento dos perigos que daqui=
[Fl. 62v]
273
cipulo, que quizer fazer Destro passear pella caza com os bra=
os caydos naturalmente, encostados ao corpo, e postas ambas
as maos na folha da espada, a direyta no numero oyto, e a esquer=
da no numero cinco para que levando s o cuydado nos braos
va o corpo mais composto, pois indo soltos o fazem ladear, e
no andar tam seguro; e este costume gerar no destro h ay=
rosissimo habito em todos os compaos que lhe convier formar.
[em branco]
Questam Segunda
[em branco]
Se est tambem o que d a espada, como=
o que a toma.
[em branco]
Problematicamente se responde, que tambem est o que d a
espada, como o que a toma, e a cauza he, porque o que toma a es=
pada bem (que esta bondade se h de supor em h e outro) fica
com a sua superior do contrario, que est posta em estremo,
em fraqueza, e em angulo mais curto, e pode ferir aggregado
a ella, antes que a infirior intente alg movimento, ou se o fizer
(approveytandosse delle) ferir na queda do contrario, no ser em
que tirar, ou livrar a espada; E o que a d bem no mesmo
tempo em que lha tomo aggraduandosse, e pomse em potencia
para melhor ferir, ou no movimento do contrario, ou com pro=
prio movimento, se sentir frouxido na espada contraria; e
sempre applicado o forte da sua, fraqueza da alhea para que
com mais pujana fique sendo a offensa naturalmente de fio,
E
[Fl. 64]
E esta igualdade he suppondosse, que as distancias do que a d e toma
ho de ser semelhantes, e a ciencia, animo, presteza, estatura e foras
se no ho de differenar em nada; e ainda que o que toma a espada
contrasta o ar, por se dispor o seu movimento do angulo obtuso, e gasta asy
mais tempo que o que a d, que somente rompe com a ponta da espada o ar
com effeyto mais proprio, e movimento mais velox por accidental, comtudo
iguala aquelle a este, com ter (em certo modo) sogigada a inferior espada
contraria com movimento mais nobre, porque he o natural imperioso todas
as vezes que h contacto de espadas, pelloque tanto importa o tomala,
comoo dala, e iguai feridas em cantidade, se podero dispor de h
sitio como de outro; e se forem as causas efficientes que isto obrarem seme=
lhantes em todas as partes, no aver effeytos em nha dellas.
[em branco]
Questam terceyra
Porque parte se invistir h homem que se=
acolher de tras de ha coluna.
[em branco]
276
[em branco]
A esta questam se responde, que do fim dos talhos e revezes, que so mo=
vimentos Circulares se podem formar estocadas, s com mudar o Destro
aquelle intento particular tirando ao movimento violento algas par=
tes da fora, e os demais restaurado com o perfil do corpo, e perfeyam
delle convertendo os taes circulos em estocadas, vendo que se lhe
prevem os talhos, ou reparos aos movimentos circulares, porque
o destro no dispoem as suas feridas s a h fim, seno para mais.
[em branco]
Questam Undecima
[em branco]
Que remedio se dar contra h homem,
que vem resuluto a receber mil feridas
s por matar seu contrario?
[em branco]
Respondesse a esta questo, que saber o ciente Destro accommet=
ter ao contrario, que o esperar, fazendo sempre as suas feridas de
distancia determinada com teno, e mais do que a h fim, e a=
guardar o contrario que o accommetter, porque alem de mostrar
mayor conhecimento desta ciencia, descobre seu animo na ostenta=
o de seu Valor todos os quilates, que inclino ao norte que me=
lhor governa a Verdadeyra Destreza; e em cazo que tope com
outro tam ciente como elle, ou ignorante que venha diliberado
ao matar (que pello modo e determinao se lhe conhecer esta
vontade) o esperar pretendendo no dar, e quando com mayor
vigor e impeto o vir aremessado, ento despois dos atalhos des=
vios, ou reparos o offender, permanecendo o Destro contra el=
le, com conhecimento, presteza e animo, porque fica com as for=
as perdidas, sem meo de restauralas, e necessitado para poder
defenderse.
[duas linhas em branco]
Questam 12.
[Fl. 66v]
Questam Duodecima
[em branco]
Se se podem defender talhos, Revezes,
e estocadas de h mesmo modo?
[em branco]
A esta questam se differe, que de ha mesma maneyra se podem
impedir e defender todas quantas feridas h, como por exemplo:
Se o contrario tirar ha estocada sacudida se receber de unhas
asima nos mayores numeros da espada com o fio falso della
assestandolha ao rosto bem agraduada, e o mesmo se far
se o contrario tirar h talho, ou h revez, a esta encaminhan=
dolha pella parte de fora da sua espada, e aquelle pella de
280
Questam. VI.
[em branco]
Quantos so os meos a que se pode reduzir geral=
mente a defensa de h homem? e como esta questo he toda espicula=
tiva, convem que sua resposta seja muy fundamental.
Questam. VII.
Como se conhecer a natureza das linhas? insti=
tuindo h caminho evidente para este conhecimento.
[em branco]
Ques: VIII.
[Fl. 68]
Questam. VIII.
[em branco]
De quantos impetos se forma ha ferida de cauza im=
pedida?
Questam. IX.
[em branco]
De quantas partes se compem ha ferida, ou seja
talho, revez, ou estocada?
Questam. X.
[em branco]
Que prova aver mais certa para se conhecer a ven=
tagem entre dous Destros batalhando?
Questam. XI.
[em branco]
A adaga a qual dos movimentos da espada fas mais
facilmente seu effeyto? e demonstrar o modo com a espada na mo
Questam. XII.
[em branco]
Se se pode converter ha ferida em outra da mesma
ou diversa especie?
E expicifico tanto o como se h de satisfazer perfeytamente a estas
questoes porque como ja disse h muyta differena do entender esta cien=
cia, ao obrala, e assi no imagine nh Destro, que com responder (po=
nho o exemplo nesta questo ultima) sim pode, ou no pode converterse
ha ferida em outra da mesma ou diversa especie satisfas com o que
se requere; pois h necessario contribuir at com a minima aco em de=
monstraoes obradas, porque como toda esta ciencia consiste em prattica,
e espiculativa; prattica com que se obro as couzas pertencentes, e espi=
culativa com que se entende, e determinar tudo o que por prattica se h
de fazer, e ainda h nesta ha separao sutil, que he aquelle ar
gracioso dos movimentos, e o seguro modo das acoes e dos meneos, de que
obrando se infere, e conhece melhor a ciencia, presteza, e animo; por=
que se da ciencia he s dispor, e dos preceytos obrar, da graa, rigor,
283
[Fl. 71]
E despois disto mandar o mestre mayor tirar a capa, e tomar a espada
ao que vem examinarse, para que com demonstraes diffira ao que se
lhe inquirir na prattica; e h dos quatro examinadores lhe pergun=
tar, porque he doutrina muy seguida retirar o corpo ao meo de propor=
o quando no proporcionado no se pode ferir, para desterrar este Vicio
assentando nova doutrina
Se estando o Destro com o corpo no meo determinado
se assegura na Verdadeyra DEstreza com retirarse
ao meo de proporo?
Ao que se responder perfeytamente dizendo, que nh destro na Verdadey=
ra Destreza se assegura com estas retiradas, porque ainda que o movi=
mento que fizer o corpo seja muy acelerado, retraindosse atras com muy=
ta prea, o alcanar o contrario, por cauza de que o compao que se obra
para tras he Violento, e sem nha certeza, e o que o contrario faz em seu se=
guimento para ferir, h natural e proprio, demais que ha ves, que o Destro
eleger puntualmente o seu meo determinado, no h de ser para se tornar sem
ferir ao meo de proporo, porque he andar como bailarim saltando, e nem
o rigor das espadas brancas, nem o Valor permittem estas intermissoes, e
assi deve primeyro considerar todo o Destro o que vay a eleger, e o para que
e o como e com que modo, para que prive ao contrario de se poder aproveytar
da Distancia, do pouco cuydado com que veo, ou do erro que fes, e eleja
o seu meo com todos os requisitos, para se no retirar por nh acontecimento,
porque o meo prroporcionado h ha distancia tam determinada e ha me=
dida tam ao justo dos movimentos, no obrada acazo seno com muyta
certeza, e h lugar, e paragem em que o Destro tem tomados todos
os caminhos por donde o contrario pode sair a ferir, para que no se es=
cape sem offensa, que ser imposivel bem elegido ser lhe nesseario re=
tirarse ao meo de proporo, como manda Narvaez em todos os seus li=
vros com frivolos fundamentos.
E toda a sustancia destas razoes confirmar o examinado mostran=
do seus termos pratticos com a espada com qualquer Destro dos que es=
tiverem prezentes, porque ando algns tam costumados a este Vicio,
que o que mais fazem de ordinario h metter, e tirar o corpo de h para
outro meo, ou com movimento dos ps, ou com o desmancho do corpo, o que
por ser desayroso e fraco, vem a ser perjudicial e fraco.
E seguirseha a esta quuesto perguntarselhe ultimamente
[Fl. 71v]
Se he melhor estar o corpo sobre o estremo do p esquer=
do, se sobre o do p dereyto, para aver de formar quais
quer feridas, desvios, ou reparos?
Para se responder a esta questo se h de conciderar primeyro em que
perfis esto os corpos; porque ou h de ser cada h por si sem alga
defensa, ou situado diante do contrario. Se cada h estiver por sy,
288
290
por examinar, que todos os dannos corporais que podem vir aos
homens ou as medicinas os saro, ou a razo os remedea, ou o tem=
po os cura, ou a morte os atalha, s o entendimento offuscando em
erros, depravado em falsidades, corrupto em vicios, nem a medi=
cina o sara, nem a razo o encaminha, nem outro alg remedio
o aproveyta, de sorte que he necessario no tempo da mocidade remon=
talo a couzas rduas, e verdadeyras, antes que se abata s incer=
tas, antes que se estrague com as humildes; e digo no tempo da
mocidade, porque no se poder alcanar perfeytamente o ter h
animo adornado de doutrina e forte, e h corpo robusto e foroso, se [ margem direita]
[Luis mendes 1. p.
no continuandosse os necessarios e convinientes exercicios desde [ margem direita]
arte [mil:
os primeyros annos da puericia, porque as imagens que se imprimem
naquella idade melhor se perpituo, que quando tem ja concebido as
especies de outras, porque assi como a materia prima para receber em si
todas as especies, convem que esteja falta de todos os generos, assy
a idade em que estiver o animo livre de todas as especies, melhor
conceber a doutrina, que se lhe quizer imprimir, do mesmo modo que
para imprensar em matheria branda algas figuras he necessario,
que ella no tenha alga em sy. E por isso diz Platam que as im= [ margem direita] Rep:
1. [3.
mitaoes que se costumo na puericia se mudo em natureza; pel=
lo que como ja em outro lugar disse, comecandosse naquella ida=
de a exercitar as armas, se imprimir a doutrina de modo, que
no avendo recebido outra alga, o que exercitarem ficar como
natural; e bem considerado isto, os pais encaminharo logos seus
filhos desde mininos a aprender com mestres examinados, e nos
nha outra couza acharemos tam necessaria para elevar o en=
tendimento sobre o alto da Verdadeyra Destreza, como o apren=
der com h perfeyto mestre, e estudar os infaliveis e re=
gulados preceytos desta Oplosofia.
[2 linhas em branco]
Cap:
[Fl. 73]
Capitulo Vndecimo,
Dos antigos exercicios militares, como
os Mestres devem metter o basto
entre dous combatentes, e ou=
tras particulares adver=
tencias.
[em branco]
Esto oje tam extintos os exercicios das armas neste Reyno, e tam
apoyados outros bem inuteis, que me movi a fazer deste capitulo h
estimulo breve, e despertador compendioso, para que pudesse resucitar
291
293
zendo observar a mesma ordem nas mais armas dobres, que se ouverem
de exercitar nestes certames publicos E porque de ordinario nelles
h grandes desmanchos, e alvorotos, inventou a boa razo e industria
dos homens, para que estes jogos desse que ver aos circunstantes com
dezembarao e compostura, que alg mestre, ou pessoa ciente, elleyta
pellos juizes, apartasse (quando conviesse) os dous combattentes com [ margem direita]
[Alci: d
arma sinalada, e esta acordaro, que pella mayor parte fosse h [ margem direita] duel. E
2
basto, assi por ser mais comoda para estes effeyto, como por ser a ar=
ma insignal, com que o mestre deve reprezentar este cargo estando em
sua caza sem capa, nem outra alga arma; e porque aqui convem
ensinar o como se h de metter o basto entre os dous combattentes, por
se fazer vulgarmente sem nha sciencia, nem conhecimento, direy do
seu jogo somente o que para este acto pertence, pois em outro lugar
com as mais armas de duas maos tenho prometido dizer o que lhe
compete.
Primeyramente o comprimento deste basto ser de oyto palmos, por ser
esta a medida correspondente da espada e brao estando estendido
por linha recta, e bastar para impedir que no offenda nha das
espadas estando elle mettido de pormeo com as pontas em cada qual
dos batalhadores, as quais para mayor perfeyo ter guarnecidas
com dous copos de ferro: seus effeytos sero, ou de rebatter as es=
padas de sima para bayxo com movimento natural, ou de romper
das propostas, porque com fazer=
se vittorioso parece que mereceo
o poder combatter de novo
295
[Fl. 75]
coadro situar o basto com a ponta baixa atravesado pello corpo, a mo es=
querda diante para romper as espadas para sima com movimento violen=
to, e successivamente tornar a romper com outro violento, que vir da
parte dereyta debaixo para sima, acabandosse com a mo dereyta di=
ante, e o corpo em seu perfil.
A setima postura pello contrario se forma com o p esquerdo diante,
o corpo em coadro, o brao dereyto atravesado por de fronte dos pey=
tos, e viradas as unhas da mo dereyta para os combatentes, o bas=
to perpindicular, e o outro brao encostado ao corpo, e ainda que
no he tam natural postura se do os mesmos dous golpes de sima pa=
ra baixo, e ambos revezes, porque nacem do hombro esquerdo, adver=
tindo que sempre no segundo golpe, quando ambos so de ha especie
se vem a observar a regra geral de ficar o p e mo diante da mesma par=
te, virando a que for diante para se differenar da outra e levar o
golpe mais pujana
A oytava, e ultima postura do basto se far com o mesmo p esquer=
do diante, o corpo em coadrado, a mo esquerda de fronte do peyto es=
querdo, a direyta bayxa e diante, o basto com a ponta infirior em modo
para romper as espadas com dous golpes ambos violentos, observan=
do por regra geral, que todas as vezes que dous golpes juntos ouverem
de ser do mesmo genero se h de dar cada h com a sua ponta do bas=
to sem mudar nelles os ps; e que quando se forem a fazer quaes=
quer destes effeytos, que fica a cargo da mo, que andar diante o
fazer mais comprido o basto, chegandose para outra com proporo,
e graa.
Em todas estas posturas (no se apartando os combattentes no primey=
ro, e segundo golpe) convir metter o p detras, e dar com a outra ponta
do basto: com esta differena que nas primeyras quatro posturas se=
r o terceyro golpe da especie do segundo, e nas outras quatro, e
ultimas posturas, ser o terceyro golpe de diverso genero; como por
exemplo na quinta postura despois dos dous golpes naturais, o ter=
ceyro ser violento, porque assy se gasta menos tempo; e na sexta
postura despois dos dous golpes violentos, o terceyro ser natural, me
tendo sempre o p que ficar detras; E se ainda com este terceyro
golpe seno aquietarem se lhe por a cada qual dos combattentes ha
ponta do basto nos peytos, terado com proporo, dando a cada h
[Fl. 75v]
seu botte se trattarem de se chegar, pois muytas vezes a colera faz, que
s com estes termos se aquietem, pelloque o mestre deve andar sem=
pre com grande cuydado em impedir que por sima do basto se
no faa nha offensa por se eximir de a castigar, e andar
sempre com o corpo tanto em proporo dos dous que batalharem, que
os no deyxar de acompanhar nunca na mesma igualdade e dis=
296
301
e inclinaoes dos homens com quem pellejar, para que com prudencia
particular os possa melhor vencer, pois nem com todos e em todos os
cazos deve o Destro uzar daquillo de que se valera com o outro, que o
competira em alguma couza, que o aventajara em parte, ou que em tu=
do lhe fora semelhante, porque pode topar com h tam fraco, que no
tratte demais que de repararse, ao qual me parece (e no me per=
mittem varias experiencias, que me engane neste parecer) que seno
deve ferir com a espada, seno tomarlhe a sua com a mo, pois segu
rissimamente
[Fl. 78v]
segurissimamente o pode fazer o Destro a quem com a espada bran=
ca se lhe reparar mais que ha vez, e seja a razo disto, ou por=
que o atravessa a espada pondo sua mayor cantidade em parte tam
remotta, que se imposibilita para todos os effeytos offensivos por
primeyra teno, ou prezumirse claramente, que so filhos certos
do medo muytos reparos juntos, porque quem despois de reparar
ha vez no responde com alga aco de querer tambem offen=
der com facilidade se lhe pode tomar a espada, sendo o modo,
o pegarlhe da parte de dentro da guranio, com a palma da
mo esquerda virada para fora, e o dedo polegar com a unha pa=
ra o cho, de maneyra que troa a mo do contrario, e dandolhe
h arranco, fique a espada despois de tomada entre o brao es=
querdo e o lado do corpo da mesma parte; ou pegarlhe de sima
para bayxo na mesma guarnio com movimento natural [rasura
do autor], e no importa que fique a folha para h, ou outro
lado; e desta sorte tambem se lhe tiro todas as foras, com que
pode a espada do Valente Destro ferir muyto a seu salvo.
E porque seno queyxem de my os esquerdos, porque lhe no dou
em todos estes passados livros preceytos que lhe convenho, di=
go que noo fao, porque nunca poode a Verdadeyra Destre=
za das armas aperfeyoar tam grande defeyto, nem se d ca= [ margem direita] Doutrina
[contra os
zo em que nh esquerdo, possa ser ciente obrador, nem capaz [ margem direita]
esquerdos
de cooperar com tanto desmazelamento o ayroso da Verda=
deyra Destreza; porque todas as preposioes e regras de que
consta foro inventadas por homens dereytos, e no por es=
querdos, convinientes e feytas para aquelles, e no para estes,
com a experiencia, para se fazer
celebre, e estimada, como muytas
que o insigne Barbosa ensinava
a poucos, que avia alcanssado com
a natural industria, e expicula=
o continua: para o que
302
303
mo os talhos, e como eu aqui no tratto da obra das venidas em [ margem direita] Tacit:
[lib. 2. e 8.
particular, a mais obrigao fique ao ingenho dos mestres, sendo [ margem direita]
[miserati civitas vetere instituto
que nesta encorreu pouco o que me ensinou, porque nunca (em [ margem direita] dona
[ligionibus dextras hospitii
quanto aprendi) me lembra, que na sua escola entrasse alg [ margem direita] insigne
esquerdo a ser seu discipulo, indicios certos da nobreza que tem
ensinado, e do pouco que admitia a sua doutrina os semelhantes
homens. e daqui colijo os pais a ruim opinio dos esquerdos pa=
ra que no grangeem a seus filhos por proprio descuydo tam vis, e
bayxos atributos, e attendo aos criarem com gravissimo cuydado
neste particular, pois em prova desta verdade algns esquerdos
sendo briosos e honrados, de ordinario desmentem semelhante def=
feyto, cengindo a espada como os dereytos, e em resuluo a quem
no enfastiar a pouca graa de h esquerdo? a quem no aborre=
cer o desar? a quem o desmancho no dar accazio de rizo? a
descompostura e torpeza a quem no admirar, concluindo em fim,
que he sinal evidente de aver sido h homem mal criado o ser
esquerdo.
Porem o Destro curioso prudente deve
aprender a jugar de ambas as maos, e
para acostumarse, exercitar tanto a es=
querda como a dereyta; pois sabemos que
he proveytoso em muytas occasioes, ou a
forsa o constranja, ou a necessidade o
pessa, ou a industria o aconselhe, a forsa
nos dezafios (se foro licitos, e se permitiro)
quando o dezafiado succede ser esquer=
do, e quer que tambem o seja seu contrario
porque o provocante est obrigado a pel=
lejar ao modo, e com as condioes do provo=
cado; a necessidade, quando nos combat=
tes recebe a mo dereyta alga ferida, e
convem passar a espada a esquerda, E
a industria, quando no meo das penden=
cias se muda a espada, como se mostra
naquelle Duelo que succedeo, indo o go=
vernador da India Dom Estevo da
Gana a Suez, que dezafiandosse em
ha Angra dous soldados Portuguezes
Antonio do Praddo, e Ferno nunez
Vidal, e durando a contenda espao
grande, o Vidal como era muyto Destro
tambem da mo esquerda na forsa
304
e a fazer das couzas, que mais lhe pertencio hns Aforismos universais,
disposto de sorte que ensinassem com grande facilidade a quem os decoras=
se, e tivesse na memoria.
Este comunico no prezente livro, ornados sentenciosamente, e des=
tintos pello Alfabetto, assi vencendo o trabalho, e estudo que me custaro,
como o atropellando o fazer commum a todos, o que eram tam particular na
minha estimao, em cujo abono pudero testimunhar os pareceres
e opinioes que tive de Varios Destros e de muytos homens cientes, persua=
dindome a que no desse a impresso mais que estes Aforismos ou sen= [ margem
direita] [Aphorismos so preposioes
tenas da Verdadeyra Destreza, pois sendo quasi como h Epitome [ margem direita]
[gerais e infaliveis
de tudo o que tenho trattado nos livros antecedentes, bastavo, para a=
prender por elles somente qualquer curioso e afeyoado a esta profio:
porem para que servissem os dezejos que tenho de aproveytar a todos;
e de manifestar esta ciencia, quis neste lugar por rematte de tudo sair
a luz com elles, porque assi como por este modo pode aprender, ainda
quem tiver mais humilde entendimento, e mais duro ingenho, assi os dis=
cretos e cientes o devem de aprovar, pois he cada Aforismo ha regra
[Fl. 80v]
Vniversal e infalivel, disposta de tal maneyra que a no pode alte=
rar nha cousa facil pella brevidade com que vay ordenada; e pouco
dificultosa pella clareza com que se resume; sendo que todos estes
estremos na opinio dos descontentes solicito ordinariamente as de=
tracoes, ou porque he muyto certo louvarem estes mais o que entendem
menos, ou porque s dizem mal do quem escrito aquelles, que mais
se ouvero de callar se viro prezentes seus autores, porque as letras
no podem responder a seus atrevimentos; e assy para os desenga=
nar, e fazer conhecer as Verdades desta ciencia, ficra eu mais das
obras que calo, que das pallavras que digo (permitome os discretos
este modo de fallar, pois he somente contra os soberbos e ignorantes)
porque talvez persuade o rigor daquellas, ao que no moveo a razo
destas, e fora ento mais certo o castigo fallando s com as lingoas,
que obro, que no deyxando tam dificultoso remedio s lingoas que
fallo.
[2 linhas em branco]
A
[em branco]
Adaga
[em branco]
Adaga foi inveno da natureza para a defensa da mo esquerda.
A proporo da adaga he universal.
O centro da adaga he o nacimento do brao esquerdo
Adaga em suas aplicaoes nunca deve mudar o centro
Adaga dentro dos meos pode ferir igualmente com a espada
306
[em branco]
Capa.
[em branco]
A capa e a espada so as armas com que mais de ordinario se acha h homem
A capa toma para si os desvios e deixa a espada com os reparos e feridas
A capa se faz dando s no brao ha volta
A capa se deve preparar fora dos meos
A mo da capa ha de ficar descuberta para poder pegar
Os golpes que se derem com a capa ho de ser por sima della
Com a capa he muyto arriscado o reparar
Despois de posta em necessidade a espada contraria ento se applica a capa
[em branco]
Centro
[em branco]
Centro commum e universal he a terra
Centro principal da espada he o nacimento do brao em postura recta
Centro menos principal he a impunhadura da espada em qualquer outro an=
gulo que no seja o recto
Centro se chama aonde est a forsa do corpo
Centro he o meo da circunferencia
Centro das feridas he a parte aonde vo dirigidas ou fenecem
[em branco]
Compaos
[em branco]
Compao he o movimento unico que forma o p dereyto despois de posto no
cho, e faz a passada
Passo he a distancia, que toma h homem de p a p quando se passea [ margem direita]
[moya. l. 8. c. 24.
Passo Geometrico tem dous ps e meo
A passada simples da Destreza tem dous ps de largo
A passada dobre tem tres ps de largo [ margem direita] Apiano. l. 2
[Fl. 82v]
A passada ultima tem cinco ps de largo
Tres so as especies dos compaos recto curvo, e mixto
Compasso recto he o que vai pella linha do Diametro e pellas colaterais
Compasso curvo he o que se d pello lado da Circunferencia
Compasso Mixto he o que participa de recto e curvo e se compoem de du=
as especies
Compao recto he tambem o que vai pella linha infinita
Compassos pella linha infinita so muy convinientes na Verdadeyra Des=
treza
Toda a passada dobre que se der para tras sempre ser violenta, e fraca
Os compaos devem seguir sempre as especies das feridas que se forma=
rem
Para ferir sem receber ho de occupar os paos somente dous ps
309
[Fl. 84v]
O Destro sem parar h de ir entrando de ha venida em outra at conse=
guir o intento
O Destro que batalhando tiver mais temor he o que mais se arrisca
O Destro deve dar nos que sabem para que receem; e nos que no sabem
para que seno atrevo
H de batalhar o Destro com as espadas pretas, do modo que h de pro=
ceder com as brancas
He de grande proveito ao Destro encaminhar de modo a espada que fique
para mais
Tomar, ou ganhar o Destro a espada com o forte no fraco, com o nume=
ro mayor no menor
O Destro quando der a espada ser no meo de divizo no ser em que se=
lhe tomar
O Destro s pode livrar a espada no ser dos movimentos que se fizerem
em meo de proporo
O Destro que desbarata a ponta da espada poem em fraqueza as mais=
partes della
O Destro sempre dar com conhecimento ocasio para que o venho a ferir
O Destro contra as armas dobres dar sempre as suas feridas em lugar e
parte desembaraada
Mais obrigado est o Destro por natureza a defenderse que a perjudicar
o contrario
O Destro que quer dar muytas feridas, poemse arrisco de tapar o caminho
defensa natural
O Prudente Destro animoso, e exercitado no lhe he nada dificultoso
O Destro deve aproveitarse das cousas passadas, conhecer as prezentes,
e prepararse para as foturas.
Dificultoso ser ao Destro resistir a forsa de seus naturais affectos
O Destro com sua providencia vence os maos acontecimentos
Nunca o Destro descubrir temor parte contraria
[em branco]
E
[em branco]
Espada
[em branco]
A espada he origem, e fundamento de todas as armas
[Fl. 85]
No se poder ter verdadeyro conhecimento das outras armas sem saber bem
a espada s
A espada he tam ligeyra que seno podem bem comprehender as seus movimentos
com a vista
A espada he o meo, e o instromento das feridas
As partes em que se divide a espada so fraco e forte
313
Se o pequeno tomar a espada por fora ser indo com o corpo para a sua
parte esquerda
O pequeno com artificio alcana mais que o que he grande
Naturalmente tanto alcana o pequeno como o grande a cada h em seu ponto
O pequeno tambem pode partir de peyto a peyto
O pequeno como quizer ferir por o corpo no lugar onde tirar a espada antes
de a desagregar
Nos enganos do grande occupar sempre o pequeno a linha recta
O pequeno sempre ferir nas quedas da espada do contrario
O pequeno quando for a ferir por o corpo de modo, que no cayba entre elle
e o contrario o comprimento de ha espada
De dentro dos meos tem o pequeno pouco remedio contra o grande
O pequeno recolhe menos espada pello menos que tem de estatura
O pequeno sempre lhe he melhor ferir sobre os atalhos
O pequeno afastarseha do grande por andar melhor de fora dos meos
O pequeno ordinariamente no pode ferir seno por Segunda teno
O pequeno nunca desagregara a sua espada da contraria
[em branco]
I
[em branco]
Intento
[em branco]
Intento na Destreza he hum impito que se applica para alga oppera=
o da Vontade
Os intentos so a composio das venidas, que forma o animo na Destreza
O intento do prudente Destro no se dirigira s a ha couza
Os intentos na Verdadeyra Destreza ho se de dispor pella forma dos con=
ceytos da Vontade
[Fl. 88v]
O intento do contrario se conhecera pella deliberao e modo das
posturas
No ser dos intentos do contrario despois de previstos se deve ferir
sempre
Os grandes intentos na Destreza so effeytos da suspeno [ margem direita] Rizo na
hist: [d.
Tudo se ha de intentar batalhando [ margem direita] Mece:
Nos intentos a Vontade no ha de seguir mais que h impeto
O intento que se encaminha s a ha couza devagar acode a guar=
darse
Sem particular intento no deve o Destro dar occasio ao contrario,
nem faltar o que se lhe offerecer
[em branco]
L
[em branco]
Linhas
319
[em branco]
A linha recta he o caminho mais breve quando se passa de hum [ margem direita] Eucl:
[scho 4.
ponto a outro [ margem direita] dif: 10.
A linha recta he a em que melhor se busca e se acha a espada
Quem occupa a linha recta obriga a fazer outra ao contrario que
alcana menos
Na linha do Diametro se ha de ferir sempre para ser sem risco
A linha do Diametro he a que atravessa, e divide todo o circulo em
duas parrtes iguais
Linhas paralelas so as que estendidas de ambas as partes em nha [ margem direita]
Eucl: [l 3. dif. 34.
concorrem, e sempre na mesma direytura tem entre si igual distancia
As linhas iguais que fazem as espadas no imposibilitam ha a
outra
As linhas ho de dispor as feridas conforme a natureza dos movimen=
tos
Linha curva he aquella que vai torta ou por caminho mais largo [ margem direita] Eucl:
l. [1.
As linhas so as estradas por onde h de caminhar o Destro.
Linha mixta he a que tem parte de recta e parte de curva
Linha infinita he a que passa em angulos rectos pello centro em
que o Destro est
[Fl. 89]
M
[em branco]
Meo de porproo
[em branco]
O meo de porproo he h lugar conviniente para qualquer cauza da Des=
treza
O meo de porproo he h certo conhecimento do tamanho da arma que tras
o contrario
O meo de porproo se conhece e se elege medindo as espadas, no passando
dos virotes com o brao tendido
O meo de porproo carece de todos os estremos
O meo de porproo he h dos fundamentos desta ciencia
Do meo de porproo pode entrar, e sair o Destro sem que sobeje no superfluo,
nem falte no necessario
Fora do meo de porproo se h de tomar a espada para ir estreytando nos
movimentos contrarios
O meo entende, e conhece a natureza dos estremos
Pellos estremos se prova o meo, e provados aquelles se prezume este
O meo de porproo do homem pequeno he proporcionado do que he grande
No meo de porproose comprehendem melhor os movimentos do contrario
320
[em branco]
Meo porprocionado
[em branco]
O meo porprocionado he ha desposio com que se alcana, e consegue o effeyto
das determinaoes
O meo porprocionado he h s, e universal
Meo porprocionado he a distancia determinada
Distancia determinada he a parte donde se pode ferir sem movimento de
corpo
Differensasse a distancia determinada do meo enlegido, e do proporcionado,
(ainda que seja tudo no mesmo lugar) na desposio com que o
Determinado executa
O mesmo meo he por graos de espada das feridas da primeyra teno do que
o das feridas da segunda
Na mo do Destro est o no deixar enleger meo determinado ao contrario
[Fl. 89v]
De distancia determinada se no tirar nem desagregar nunca
a espada para ferir, estando infirior e desagraduado
Se se vir ou for a ferir fora do meo enlegido se faro contrarios aos
effeytos
Sempre se h de ferir para ser seguramente de distancia determina==
da
Se a espada e o corpo no tiverem enlegido pontualmente se erraro os
effeytos
Quem no sabe enleger o meo proporcionado mal pode acertar com fun=
damento
Sempre se enleger o meo determinado (como no for nos movimentos
do contrario) movendo primeyro o p esquerdo
[em branco]
Mestres
[em branco]
Os mestres ho de ser experimentados nas veras
Os Mestres imprudentes tam para si que somente em dar est a Des=
treza
No basta para ser bom mestre aver aprendido e exercitado as ar=
mas seno for ciente
Os Mestres ho de fundar a experiencia particular na sciencia
Os Mestres para ensinarem bem devem conhecer a natureza dos di=
cipulos
Os Mestres devem encaminhar os dicipulos ao que mais se inclinarem
Mal lustrar a Doutrina do mestre nos dicipulos que no tiverem
desposio de natural
No ensinarem bem os mestres serve de embaraar e acobardar
os animos
No so bons mestres os que ensino geralmente ha couza a
321
todos os dicipulos
Os mestres imprudentes ensino o que sabem para si, e no o necessa=
rio a quem aprende
Os mestres no devem confundir com muytas venidas aos disci=
pulos
Os mestres devem ser bem acostumados, e de bom exemplo
[Fl. 90]
Movimentos
[em branco]
Movimento na Destreza he h conceyto do animo, e deliberao da
Vontade
Movimento natural he o que nace do movimento violento vindo a buscar o
seu centro
O movimento natural descobre pontos por vir de forsa ao centro
O movimento natural quanto mais se for apartando de seu principio ou che=
gando a seu fim tanto mais veloz ir [ margem direita] Tartas prep: 1
Movimento violento he aquelle cujo principio est fora do natural
Movimento violento pede mais forsa para formarse que o natural
O movimento que se forma por necessidade ordinariamente no he natu=
ral, seno violento
Movimento curvo he o que se faz de h lugar a outro curvamente, ou por
linha curva
De movimento remisso se h de uzar poucas vezes na Destreza porque le=
va a espada a parte muy remotta
Movimento accidental da estocada he tam breve que faz ventagens aos
outros
Movimento circular he o dos talhos, revezes, ou desvios
Movimento mixto he o que consta de dous, que he o dos aos lados
Movimento vehemente he o natural quando se lhe applica forsa
Movimento proprio he o dos talhos, ou o dos revezes
De h s movimento nha couza se segue
A mayor parte da Destreza consiste em conhecer os movimentos
De ignorar a natureza dos movimentos procede muyto perigo
Sem movimentos no pde aver ferida
No h movimento nesta ciencia que no tenha fraqueza
Os movimentos que se fazem s coma munheca so de mayor proveyto
Todo o movimento sem comunicar a espada despois de enlegido meo com
os corpos he arriscado
A medida dos movimentos do Destro h de ser o tempo que se gasta nos
do contrario
Todos os movimentos so fracos nos principios
Cada movimento tem forsa sinalada
[Fl. 90v]
Constrangerselh o contrario a que faa todos os seus movimentos cir=
322
culares
Todo o movimento por forte que seja e mede com outro mais ligeyro [ margem direita]
[Carr: f. 30.
A quantidade dos movimentos no h de ser mayor que a forsa do
brao
No so fortes os movimentos que se fazem a h tempo a desiguais
partes
Os movimentos ho de ser com ha presteza quasi incomprehensivel
No h movimento em instante, todos se obro em tempo determinado
Os movimentos, de colear, de livrar, e de fazer incitaoes com a espa=
da no so de importancia na Verdadeyra Destreza
O movimento sempre ser medida do intento sobre o que se fizer
Os movimentos ainda em meo de proporo ho de ser bem leados com
a espada contraria
[em branco]
P
[em branco]
Perfis.
[em branco]
Perfil he toda a postura do corpo sem o considerar com a espada
Perfil perfeyto de corpo he a postura delle em que ambos os ombros fa=
zem linha recta com o brao
O Destro estando perfilado alcana mais que aquelle que o no est
Sempre quando se for a ferir se perfilar e perfeyoar o corpo
Os perfis do corpo tambem se devem differenar
O perfil toca postura do corpo sem que a espada possa obrar
O perfil he o toque em que se descobrem as perfeyoes, e os dezares do
corpo
[em branco]
Ps
[em branco]
O p dereyto na Destreza tam mais preheminencia que o esquerdo
Tirar fora o p dereyto, ou recursalo he mais aco ayrosa que forte
O p esquerdo tem dous movimentos, o primeyro para desagraduar a espa=
da, e o segundo para poder dar principio a quaesquer compaos
fora da distancia
[Fl. 91]
No se meter nunca diante o p esquerdo
Os ps proporcionada mente juntos, esto em melhor postura, mais firmes des=
cansados, e mais prontos para o que convier
Quem tirar h p fora he muyto provavel que tire outro, e muytos
Estando junto do contrario se tirar a espada com o p esquerdo atras
Todo o movimento de ps para diante (estando nos meos) se comear com o
dereyto
A Destreza no obriga a ningem a que com os ps faa estremos descom=
323
postos
Os movimentos dos ps seno ho de fazer para diferente fim, que os da es=
pada
Os golpes que se do com movimentos de ps no so seguros nem fortes
No se dar ferida nha, se no despois de estarem os ps esguros,
e bem situados
[em branco]
Ponto
[em branco]
Ponto he h estremo tam pequeno, que de nh modo he para se dividir
Ponto he a parte onde se pedem os effeitos
Quem na Destreza cobre um ponto descobre outro
Ponto he tambem a ponta da espada arespeyto de toda a cantidade
Ponto principal ha o a que mais chega a espada na superficie do corpo contra=
rio
Apartar do ponto a linha he desviar a espada da postura do angulo rec=
to
A espada bem posta na linha do Diametro tapa o ponto principal
[em branco]
Posturas
[em branco]
Postura he qualquer estado em que se v o corpo, brao, e espada juntos
A postura do angulo recto he a que ocupa a linha do Diametro
A postura recta h a melhor e a mais ligitima
A postura recta he a que mais alcana, e a que tem mais forsa
A postura mais de clarada para o contrario he a recta
Todas as posturas qu ha so sombras da Verdadeyra que he a recta
S a postura recta obriga forsosamente a que se comece pella espada
[Fl. 91v]
Em nha outra postura se pode ferir com segurana seno na recta, e
do Diametro
No ha numero certo de posturas
Como a postura no for recta poder o Destro se quizer comear pel=
lo corpo
Necessitar ao contrario he tiralo da boa postura que tinha, e pollo em
alg estremo
Estreytar ao contrario nas posturtas he necessitalo
Sem differena de posturas no pode aver Destreza
Ter o Destro conhecimento das posturas os effeytos, que pedem
A postura do corpo mais descansada h quando os ps esto dis=
postos acudir a qualquer movimento
As posturas fazemse mais fortes pella unio das linhas
Postura estrema he quando est concluida a forsa da espada de qual=
quer sorte que o corpo esteja
De toda a postura pode uzar o sciente Destro
324
Em qualquer postura que o Destro ponha a espada com teno fica bem
[em branco]
Principio
[em branco]
Principio he ha couza minima em quantidade, e grande em poder, sem [ margem
direita] [Arist: Rett: 3.
o qual seno pode fazer alga couza
No pode ser eminente Destro aquelle a quem faltarem os principios
Quando o principio se erra na Destreza no se pode seguir bom fim
Qualquer objeto se conhece conciderando bem seu principio
Os que Verdadeyramente sabem os principios desta ciencia so mais
sabios, que os que somente tem expiriencia
Nos principios os Mestres devem batalhar com os discipulos
No principio ou no fim dos movimentos se fere melhor e sem risco
No principio de todas as preposioes he necessario sciencia, e no perigo
dellas ouzadia
As figuras circulares no tem principio meo nem fim despois de forma=
das
Tudo na Destreza consta de principio, meo, e fim
Toda a alterao supita e repentina carece de principio [ margem direita] Arist: Phi: 2.
A dificuldade de aprender as armas est nos principios
[Fl. 92]
Nos principios devem os bons mestres passar aos discipulos pellos erros, e
no apuralos
Conhecidos os principios facilmente se conhecem e entendem os estremos [ margem
direita] Cice: proclu:
Para os principios das ccouzas no h mister razo [ margem direita] Arist: Eth: 6.
Quem principia bem na Destreza tem feyto a metade do que emprende.
[em branco]
R
[em braco]
Reparos
[em branco]
Reparo significa propriamente tornar a parelhar, a Restaurar, e a Refazer
O Reparo he h remedio de pouca presteza inventado para contra os im=
prudentes fortes
Os Reparos no so percisos na Verdadeyra Destreza
O Reparo no he seguro de Destro a Destro
O Reparo he muy necessario, e serva para contra os imprudentes
O Destro que repara ao imprudente fica mais em acto para segundar
Quem bem repara ao Destro melhor recebe
Bom he ajudar a passar os talhos e revezes tomandoos com reparos nos
principios
No ha reparo perfeyto se no a couza imperfeita
Os reparos no ho de esperar os movimentos naturais seno sairlhe ao en=
325
contro
Arriscado ser reparar em outra parte, que em h dos angulos rectilineos
Reparo de brao fraco, pode resistir a movimento de brao forte
O Reparo em potencia assaltea os golpes do contrario que vem movidos, e
lhos contrasta
Reparo perfeyto ha de nacer da propria ferida, e h de ser de sua mesma
especie
[em branco]
Rodella
[em branco]
A Rodella he h circulo formado
A Rodella s tira a espada o desvido, e Repara
A Rodella se h de trazer com o brao curvo e com o cotovelo para bayxo
[Fl. 92v]
A rodella no ha de andar muy afastada, nem muy junto dos pei=
tos
A Rodella sempre ha de andar de fronte dos peytos
Com pequenos movimentos impede a Rodella os golpes contrarios
Os golpes que se derem com a Rodella ho de ser por bayxo della
A Rodella est melhor contra a adaga andando fora dos meos
A indeterminao com a Rodella cobre muytas vezes o seguro, e des=
cobre o perigoso
A Rodella impede em muyto actos a vista
[em branco]
S
[em branco]
Sciencia
[em branco]
A sciencia da Verdadeyra Destreza he h conhecimento que ensina
a dar sem receber
A utilidade de aprender a sciencia das armas he dar perfeio a natu=
reza, e apurar por arte o natural
A sciencia das armas serve para os apertos e necessidades
A falta de scientes Destros foi a cauza de que vivesse esta sciencia ategora
anichilada
A sciencia da Verdadeyra Destreza aumenta o animo
As ceytas particulares que se ho feyto desta sciencia a tem depravado
A sciencia nunca pode faltar nem nos menores actos
O entendimento desta sciencia he a espiculativa della
A verdadeyra sciencia das armas sempre foi mui perseguida de
ignorantes
Esta he a sciencia que deve ensinarse com mayor pureza, e que no so=
fre saberse medianamente
A espiculativa foy a descobridora da sciencia das armas
A sciencia no dezempara nunca ao Destro animoso
326
[Fl. 96]
naturais, e outros pontos dignos de advertencia. fol. 32.
Capitulo Decimo quarto. Do tamanho, que o Destro h de trazer
a espada, e como no uzar de Ventagens. fol. 33. verf
[2 linhas em branco]
LIVRO TERCEIRO
[em branco]
De ha breve recupilao da theorica, e prattica
das armas dobres
[em branco]
Capitulo primeyro. Difinio das armas dobres, e sua divi=
zo. fol. 36.
Capitulo segundo. Como a espada s h o fundamento de
todas as armas. fol. 37. verf
Capitulo terceyro. Quem foro os primeyros que uzaro ada=
ga, o porque se inventou, e como pode s permanecer contra ha espada. fol 38v:
Capitulo Quarto. Como h o Destro de trazer adaga, e o que
toma para si no offender, e defender. fol. 39. verf
Capitulo Quinto. Por quantos modos pode adaga tolher os ef
feytos da espada, e como se lhe applicar para ser sem risco. fol. 40. verf
Capitulo Sexto. Como entra adaga com a espada, e de que
sorte lhje contrasta os seus movimentos. fol. 41. verf
Capitulo Septimo. Como em h tempo no permitte a Verda=
deyra Destreza que se fao duas couzas. fol. 42. verf
Capitulo oitavo. Como deve o Destro uzar da espada e Rodel=
la fol. 43. verf. e de seus primeyros inventores
Capitulo nono. Como uzar o Destro do broquel, quando fizer
companhia a espada ^ e dos primeyros que a inventaram fol 44
Capitulo Decimo. Como applicar o Destro o braal, ou a Ma=
nopla ^ e os primeyros que uzaro destas armas fol 45
Capitulo Vndecimo. Como uzar o Destro da Capa, e espa=
da. fol 46
Capitulo Duodecimo. Em que se resolve ha duvida das
armas dobres. fol 47.
[Fl. 96v]
LIVRO QUARTO
[em branco]
Do que convem aos mestres, como devem
ensinar, e do que commummente
uzo
[em branco]
E de algas Questoes dilicadas desta sciencia
proveytosas para os exames.
[em branco]
332
Successos fol 92
[em branco]
Tacto fol 92
Teno fol 92 verf
[em branco]
Venidas fol 92 verf
Vista fol 93
Nestas pallavras refferidas pello Alfabetto, se contem seiscentos
Aphorismos perntencentes Oplosophia, e Verdadeyra
Destreza das armas.
[Fl. 01]
De Bertalomeu de Vasconsellos
da Cunha
[2 linhas em branco]
Soneto
[2 linhas em branco]
Nestas da espada intrepidas verdades,
Nestas da pena pratticas doutrinas,
Preseyto contra a morte nos ensinas,
Pera Vida nos ds dignidades
[2 linhas em branco]
Contra o poder Violento das idades
Sutil descobre tretas que imaginas,
Ao duravel da morte dando Ruinas,
Dando ao fragil da Vida eternidades.
[2 linhas em branco]
Por ti sigura a vida se conhesse,
E apenas move o brao a espada forte,
Quando o imperio da morte se estremesse:
[2 linhas em branco]
Quem vio pois concedido a humana sorte
Poder tam superior, que dar pudesse
Siguranas Vida, e leis morte.
[Fl. 01v]
Anno de 632
Ao sepulcro do famoso goncalo Barbosa insigne professor da
ciencia da verdadeyra destreza das armas, examinador dellas, mestre
mayor, e dos moos fidalgos do Reyno de Portugal.
[Fl. 02]
Al Sepulcro de mi Maestro el insigne
Gonalo Barbosa
[2 linhas em branco]
EPIGRAMMA
335
[2 linhas em branco]
En mudas lenguas este jaspe muestra
Que fiel occulta en Vrna venerada,
El que cort su lauro con su espada,
El que erigi su templo con su diesta.
[2 linhas em branco]
Aquel, cuja doctrina no siniestra
(De quanto mira el sol bien respetada)
Hizo de nueva sciencia nunca uzada
Oraculo Marcial en su Palestra
[2 linhas em branco]
Descanda en esta losa, en quien derrma
Amargo llanto Espaa, aunque s llamado
De la muerte gozar eterna fama.
[2 linhas em branco]
Porque si fu en la vida eternizado,
Es agora en el llanto que le acclma
A vida ms felize destinado.
[Fl. 02v em branco]
[Fl. 03]
MAVSEOLEOIACENTI
[em branco]
Celeberrimo Gondialvo Barbos, vero gladiaturo facultate
insigni professori,
[em branco]
illiusque examinatori maximo, tam nobilitatis
quam dinastorum Portugalio supremo
Magistro
[em branco]
EPIGRAMA
[2 linhas em branco]
Ecce jacet tumulo (iacet heu) Barbosa sepultus
Gondialvus honor Palladis, ecce jacet
[2 linhas em branco]
Hic gladiatores (examina dura) probabat;
[em branco]
Nobilibus pueris ludi magister erat
[em 2 linhas em branco]
Lusiadum in regnis nun parvum munus obivit:
[em branco]
Erudiit gladiis Hesperio dominum.
[em branco]
Et cum Maiortem, et Bellonam venceret armis
[em branco]
336
338
[Fl. 05 v em branco]
[Fl. 06 em branco]
[Fl. 06v em branco]
[Fl. 07]
Ad Gondialvi Barboso tumulum
vero dexteritatis miraculi
[em branco]
EPITAPHIVM
[2 linhas em branco]
Barbosa extincto immanis Libitina triumphat,
[em branco]
Militio iactans obtenebrasse jubar
[2 linhas em branco]
Ne tamem alterius Pelido fama sepulchri,
[em branco]
Qui super iminuit dexteritate, ruat,
[2 linhas em branco]
Lysiaci proceres insignem objsse Magistrum,
[em branco]
Nuncia ut interno mixta dolore sonant,
[2 linhas em branco]
Hic lapidem sterni, sub quo Mars ille quiescat,
[em branco]
Mortuus et vivat tempus in omne inbent
[decorao]
339