William Blake Romantismo

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AVISO AO USUÁRIO

A digitalização e submissão deste trabalho monográfico ao DUCERE: Repositório Institucional da


Universidade Federal de Uberlândia foi realizada no âmbito do Projeto Historiografia e pesquisa
discente: as monografias dos graduandos em História da UFU, referente ao EDITAL Nº 001/2016
PROGRAD/DIREN/UFU (https://monografiashistoriaufu.wordpress.com).

O projeto visa à digitalização, catalogação e disponibilização online das monografias dos


discentes do Curso de História da UFU que fazem parte do acervo do Centro de Documentação
e Pesquisa em História do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia
(CDHIS/INHIS/UFU).

O conteúdo das obras é de responsabilidade exclusiva dos seus autores, a quem pertencem os
direitos autorais. Reserva-se ao autor (ou detentor dos direitos), a prerrogativa de solicitar, a
qualquer tempo, a retirada de seu trabalho monográfico do DUCERE: Repositório Institucional da
Universidade Federal de Uberlândia. Para tanto, o autor deverá entrar em contato com o
responsável pelo repositório através do e-mail [email protected].
THAÍS DE SOUSA CORSINO

WILLIAM BLAKE E O
ROMANTISMO INGLÊS

UBERLÂNDIA – MG
2014
THAÍS DE SOUSA CORSINO

WILLIAM BLAKE E O
ROMANTISMO INGLÊS
MONOGRAFIA apresentada a
Universidade Federal de Uberlândia –
Instituto de História – como requisito
parcial para obtenção do título de
Graduação em História.

Orientadora: Profª Drª Rosangela Patriota


Ramos.

UBERLÂNDIA – MG
2014
2014 CORSINO, Thaís de Sousa 1988-
William Blake e o Romantismo Inglês / Thaís Corsino -- 2014.
71 f.

Orientadora: Rosangela Patriota Ramos.


Monografia (Bacharelado) - Universidade Federal de Uberlândia,
Instituto de História
Inclui bibliografia.

1. Romantismo. 2. William Blake 3 Canções da Inocência e da


Experiência
1.
THAÍS DE SOUSA CORSINO

CORSINO, Thaís de Sousa. William Blake e o Romantismo Inglês. 71 f. 2014.


Monografia (Bacharelado em História) – Instituto de História, Universidade Federal de
Uberlândia, 2014.

BANCA EXAMINADORA

Prof.a Dr.a Rosangela Patriota Ramos


Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
(Orientadora)

Prof.a Ms. Talitta Tatiane Martins Freitas


Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Prof. Dr. Alcides Freire Ramos


Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Para minha orientadora Rosangela Patriota e
todos aqueles que de alguma forma me
auxiliaram nesta empreitada
AGRADECIMENTOS

QUERO AGRADECER, em primeiro lugar, a Deus e aos espíritos de luz pela força
e coragem durante toda esta longa caminhada. Sei que nenhum projeto tem sucesso sem
o auxílio da espiritualidade.

Agradeço também a todos os professores que me acompanharam por toda a


graduação, em especial à Profa. Dra. Rosangela Patriota, responsável pela realização
deste trabalho e por me mostrar o valor da pesquisa.

Também não posso me esquecer das pessoas que estiveram ao meu lado
durante estes anos de formação, especialmente meus amigos Neander Silva, Gabriela
Guimarães, Carolina Ribeiro. Sei que várias outras pessoas contribuíram para tornar
esta jornada mais leve e fazer valer a pena, vocês estão todos no meu coração.

Agradeço a minha família por estar sempre ao meu lado dando todo o suporte
necessário. Obrigada avó Dalva e avô Jesus!

Katsumi, obrigada pela paciência e incentivo, pela força e principalmente por


não me deixar desistir, me ensinando a ver o que deve ser prioridade.
Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem
tal como é: infinito.
William Blake

A Imaginação não é um Estado: é a própria Existência Humana.


William Blake
RESUMO

CORSINO, Thaís de Sousa. William Blake e o Romantismo Inglês. 71 f. 2014.


Monografia (Bacharelado em História) – Instituto de História, Universidade Federal de
Uberlândia, 2014.

A PRESENTE PESQUISA propôs fazer um balanço historiográfico acerca do movimento


romântico, sobretudo sua manifestação na Inglaterra oitocentista, visto que o poeta
William Blake, principal objeto de nossa investigação, se inscreve nesta tradição.
Ademais, buscamos compreender como Blake, enquanto sujeito histórico, se insere na
vida social e intelectual de Londres. Para tanto, realizamos extensa pesquisa
bibliográfica e traçamos um panorama com as principais interpretações correntes acerca
deste homem. Após o estudo biográfico, discutimos a obra Canções da Inocência (1789)
e Canções da Experiência (1794) por meio de três poemas, que consideramos
representativos, no que se refere à maneira com que Blake interpreta e reinterpreta a
figura de Cristo, são eles: O Limpa-Chaminés, O Tigre e Londres.

Palavras-chave: Romantismo – William Blake– Canções da Inocência e da Experiência


RESUMO [ VI ]
INTRODUÇÃO [ 01 ]

***
CAPÍTULO I
O MOVIMENTO ROMÂNTICO

[07]

O Romantismo Inglês [13]


Sentimento X Razão [18]

***
CAPÍTULO II
WILLIAM BLAKE:
UM ESTUDO BIOGRÁFICO

[22]

***
CAPÍTULO III
CANÇÕES DA INOCÊNCIA E DA EXPERIÊNCIA

[46]

***
CONSIDERAÇÕES FINAIS [64]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [68]


INTRODUÇÃO

... o momento em que a cultura tradicional foi


desafiada, [quando] todas as convenções foram
questionadas e as grandes esperanças humanistas
estavam no além-mar, mas também quando a
experiência perspicaz mostrara que as proposições
dos philosophes eram inadequadas – é exatamente
no meio desse conflito que o grande impulso
romântico alcançou a maturidade.

E. P. Thompson
Introdução

A HISTORIOGRAFIA ALARGA as áreas em que atua, já que as existentes não são


suficientes para se entender o presente. Novos questionamentos só podem ser
respondidos na medida em que novas abordagens são feitas. Assim, da história que dizia
respeito essencialmente à política, passamos a novos tópicos, como por exemplo, a
morte, o clima, a loucura, a infância, o feminino, a leitura, etc. O que era considerado
imutável passou a ser encarado como uma “construção cultural” sujeita a variação no
tempo e no espaço. Ao fazer perguntas diferentes e escolher novos objetos de pesquisa,
o historiador busca novos tipos de fontes. Novas linguagens devem ser abordas, e isso
por necessidade de sobrevivência dos estudos históricos.

Neste contexto de novas perguntas e novas necessidades, surgem juntamente


com a ampliação dos objetos, múltiplos caminhos de investigação, abordagens e
tendências. Aliás, multiplicidade é uma adequada palavra para definir a historiografia
do final do século XX e início do século XXI.

Caminhando de uma “história cultural clássica” a uma “nova história cultural”,


o historiador que elegeu a cultura como sua área de estudo se depara, hoje, com a tarefa
de estudar as ligações existentes entre diferentes formas de atividade humana. Segundo
a historiadora Sandra Pesavento, “a literatura é um discurso privilegiado de acesso ao
imaginário das diferentes épocas”, entendendo aqui por imaginário, “um sistema de
representações sobre o mundo que se coloca no lugar da realidade, sem com ela
confundir-se, mas tendo nela o seu referente”.1 Sendo assim, partimos de uma ideia
importante, a obra literária não é sinônimo de verdade, todavia, trata-se de uma
representação que traz consigo especificidades próprias.

Partindo do pressuposto de que a linguagem Literária pode ser analisada como


documento histórico, por se tratar de uma representação cultural carregada de
intencionalidades e opções políticas e ideológicas de seu autor, este trabalho buscará
construir significados e possibilidades interpretativas acerca da obra Canções da
Inocência e da Experiência, do poeta, pintor e gravurista inglês, William Blake.

Entendemos ser importante estudar a cultura e estar atento às produções


simbólicas e às construções dos significados, através dos registros produzidos pelos

1
PESAVENTO, Sandra J. História e Literatura: uma velha-nova história. In: COSTA, C. B. da;
MACHADO, M. C. T. (Org.). Literatura e história: identidades e fronteiras. Uberlândia: EDUFU,
2006, p. 12.

2
Introdução

homens, no decorrer dos tempos. Sendo assim, utilizamos como suporte teórico e
metodológico a perspectiva dos Estudos Culturais ingleses, que surgiu com maior
representatividade na Inglaterra dos anos 1950, tendo como uns de seus principais
expoentes Raymond Williams e Edward P. Thompson. Esta vertente, da qual
compartilhamos, pensa a cultura como a organização dos significados e dos valores de
um determinado grupo social e como um campo de luta onde eles possam ser
modificados a um mundo mais democrático.

Através do trabalho de poetas como Wordsworth, Coleridge, John Telwall e


William Blake, Thompson buscou compreender as influências intelectuais e as pressões
sociais que estavam postas no final do século XVIII e como se deu a interligação entre
política e literatura no início da era moderna. Como veremos em nosso estudo, o
impacto das revoluções inglesa e francesa foi decisivo na vida e na obra desses poetas e
deu origem a uma nova forma de pensar o mundo, o olhar romântico.

O sentimento revolucionário, despertado por estas pressões sociais, foi


responsável por uma grande mudança literária, onde o romantismo surgiu com toda a
sua força para se opor ao classicismo que até então era predominante. O motivo de tal
oposição estava nas transformações que afetaram profundamente a vida dos ingleses
com o advento da revolução Industrial, como o aceleramento da urbanização, a
transição de uma economia agrícola para uma economia industrial e uma série de
problemas sociais.

Dessa maneira, como afirmou J. Guinsburg: “O Romantismo pôs de lado não


só o enfoque teológico judeu-cristão, como também a concepção clássica de História”.2
Os acontecimentos que antes eram justificados pelo arbítrio divino passaram a depender
da atuação do homem, surge daí a cara noção de progresso que permeou os processos
revolucionários do século XIX.

Numa época em que a filosofia, as letras e as artes estavam sob a


égide da Razão, era natural que esses autores vissem as mazelas da
nova ordem como produtos de uma concepção cerebral da política, da
sociedade e da própria vida. Por isso, começaram por opor o
subjetivismo emocional ao objetivismo racional dos neoclássicos.3

2
GUINSBURG, J. Romantismo, historicismo e história. In: ______. (Org.). O Romantismo. São
Paulo: Perspectiva, 2005, p. 14.
3
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 01.

3
Introdução

*****

A forma como lidamos com as fontes buscou, primeiramente, problematizar a


construção do fato histórico, para isso nos debruçamos sobre a obra “A teia do fato”, de
Carlos Alberto Visentini, que nos serviu como apoio no entendimento de como o fato é
tomado como matéria-prima para a criação de uma obra artística. A partir daí, foi
possível observar de que maneira a produção historiográfica é incorporada socialmente,
por intermédio da produção estética.

É importante destacar que foi dada uma atenção especial à análise formal das
poesias selecionadas, levando em consideração aspectos ligados à sua linguagem
específica. Para isso, foi realizado um levantamento bibliográfico de obras que
contemplam alguns pressupostos teóricos necessários à análise literária, dentre elas
podemos destacar o livro “Na sala de aula – Caderno de análise literária”, de Antonio
Machado.

Outro passo importante no estabelecimento do diálogo interdisciplinar, entre


História e Literatura, foi a discussão e sistematização da bibliografia existente sobre o
Romantismo na Inglaterra e sobre o tema da Revolução Industrial. Observar as maneiras
pelas quais estas temáticas foram apreendidas pelos mais diversos autores ajudou no
entendimento da narrativa histórica e da forma como a linguagem poética é construída
pelos românticos. Neste sentido, a obra “O Romantismo”, organizado por J. Guisburg,
merece ser destacada dentre aquelas que nos serviram de referência, por trazer
informações que tratam diretamente da relação entre este movimento artístico e
importantes processos históricos, dentre eles a própria Revolução Inglesa de 1750.

Ao selecionar como objeto artístico alguns poemas de William Blake, nos


preocupamos em discutir o conteúdo histórico de sua narrativa poética, com vistas a
destacar, na medida do possível, o repertório provável do autor à época da produção das
poesias, servindo, portanto, de base para a realização da obra, quanto, de outro, aquelas
obras mais recentes e que façam parte do repertório historiográfico clássico. Leituras
como E. P. Thompson, Paulo Vizioli, Alcides Cardoso dos Santos, entre outros, nos
auxiliaram na compreensão deste repertório.

A proposta de estudo aqui apresentada parte de uma indagação que surgiu


durante o desenvolvimento de um projeto que participei no ano de 2008, cujo plano pelo
qual eu era responsável se intitulava “A Revolução Inglesa (1750) recriada por William
4
Introdução

Blake e interpretada por E. P. Thompson”. No decorrer desse projeto tomei contato com
parte da obra deste historiador inglês, principalmente de seu trabalho que objetiva
pensar a posição de Blake e o modo como a mente dele conheceu o mundo e o
transformou em literatura. Trata-se do livro “Witness Against the Beast: William Blake
and the Moral Law” que na verdade, constitui um capítulo, publicado pela primeira vez
em 1993, sobre seus estudos acerca do movimento romântico inglês da década de 1790.

Nesta monografia damos um passo mais, ao refletir sobre a obra de William


Blake não só pela perspectiva já trabalhado por Thompson, mas buscando compreender,
de forma mais ampla, como esse poeta se insere no que chamamos comumente de
movimento romântico; considerando suas aproximações e distanciamentos. Esta
discussão estará presente no primeiro capítulo.

Nossa principal tarefa foi estabelecer as especificidades do discurso histórico e


do discurso ficcional, bem como enfrentar seus diálogos. Não objetivamos utilizar o
termo romantismo como algo estanque, pelo contrário, buscamos mostrar como as
manifestações que carregam o título de românticas estão dispersas no tempo e no
espaço. Como afirmou H. Bremond: “há tantos romantismos como românticos”. Não é
possível definir uma cronologia ou dar uma definição fechada para este rico movimento.

Em seguida, dedicamos o segundo capítulo a um estudo biográfico que levanta


discussões debatidas por diferentes estudiosos, dentre eles: Jesús David Curbelo, Jorge
Luis Borges, Iñigo Sarriugarte, Alcides Santos, Paulo Vizioli e Edward Thompson.
Partimos do pressuposto de que para compreender a obra Blake se faz necessário
realizar uma análise que transcende a observação meramente interna de seu trabalho.
Julgamos importante entender o lugar que sua obra ocupa em sua própria trajetória e
para isso tentamos traçar a relação entre texto e contexto.

Acreditamos que a trajetória política e intelectual de Blake não está separada


das convicções e objetivos contidos em sua obra, da mesma forma que sua identificação
com grupos dissidentes radicais, que remontam à Revolução Inglesa (meados do século
XVII) e que ressurgiram, posteriormente, com a Revolução Francesa (1789) são de
suma importância para entendermos a visão religiosa e política que estava por trás de
seus poemas.

Assim, após refletirmos acerca do romantismo e sua manifestação na


Inglaterra, e também a trajetória de Blake como sujeito histórico, nos debruçamos sob a

5
Introdução

obra Canções da Inocência e da Experiência, a fim de aprofundarmos um pouco mais


na compreensão do poeta. Para tanto, selecionamos três poemas que julgamos
representativos, são eles: O Limpa-Chaminés, O Tigre e Londres.

Por meio da análise destes poemas tentamos captar a forma como Blake
interpreta e reinterpreta a imagem de Cristo, para conciliá-lo com sua visão política.
Também percebemos a forma como a Revolução Industrial afetou a sociedade e o
espaço urbano, na visão do poeta.

O estabelecimento do diálogo interdisciplinar (História e Poesia) foi trabalhado


ao lado de produções historiográficas que contemplam a questão política, econômica e
social, evidenciando como o repertório historiográfico pode ser apreendido de diversas
maneiras.

6
CAPÍTULO I

O MOVIMENTO ROMÂNTICO

O que é o Romantismo? Uma escola, uma


tendência, uma forma, um fenômeno histórico, um
estado de espírito? Provavelmente tudo isto junto e
cada item separado.

J. Guinsburg
Capítulo I:
O movimento romântico

DEFINIR O QUE É, ou o que foi o romantismo, não é algo simples e fácil. Dizer
que ele surgiu como uma tendência consciente e militante das artes na Grã-Bretanha,
França e Alemanha, por volta de 1800, e que foi precedido antes da Revolução Francesa
pelo “pré-romantismo” de Jean Jacques Rousseau, e pela intensa poesia dos jovens
poetas alemães,4 não é um equívoco, mas não chega a ser suficiente para nos dar uma
noção clara desse fenômeno histórico. J. Guinsburg nos diz que ele foi uma escola, uma
tendência, uma forma, um fenômeno histórico, um estado de espírito, tudo isso junto,
mas também cada item separado.5 É inegável que o que nos interessa particularmente
enquanto historiadores é seu aspecto designador de eventos socioculturais e emergência
histórica. Como elucida Guinsburg, o romantismo é muito mais que uma configuração
estilística, “... é também uma escola historicamente definida, que surgiu num dado
momento, em condições concretas e com respostas características à situação que se lhe
apresentou.”6 Além disso, e, sobretudo por isso, “é um fato histórico e, mais do que
isso, é o fato histórico que assinala, na história da consciência humana, a relevância da
consciência histórica. É, pois, uma forma de pensar que pensou e se pensou
historicamente.” 7

Mesmo reconhecendo as dificuldades e os limites de uma definição,


elencaremos marcos históricos que julgamos ser minimamente capazes de nos fornecer
um entendimento do momento histórico que antecedeu o romantismo, algo relevante
para nos situar minimamente em todo esse processo complexo.

Segundo alguns estudiosos da história europeia, o Romantismo teve início nas


duas últimas décadas do século XVIII, se estendendo até a primeira metade do século
XIX. Todavia, reconhecemos que “o exame do período não permite ao historiador fixar
balizas cronológicas nítidas entre causas e efeitos e nem tampouco determinar
uniformemente o início e o fim do grande movimento espiritual que tão profundas
raízes deixou no Ocidente”8. Ele surge em meio a um ambiente intelectual de intensa
rebeldia, intimamente ligado a dois acontecimentos históricos marcadamente burgueses

4
HOBSBAWM, E. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 358.
5
GUINSBURG, J. (Org.) O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 13.
6
Ibid., p. 14.
7
Ibid.
8
FALBEL, Nachman. Os fundamentos históricos do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 23.

8
Capítulo I:
O movimento romântico

e importantes no cenário europeu; a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, que


transformaram radicalmente a história mundial.

Na Inglaterra, o desenvolvimento do comércio teve como consequência o


estímulo à indústria que caminhou rumo ao avanço tecnológico que fez com que as
pequenas oficinas de artesãos fossem, gradualmente, substituídas pelas grandes
manufaturas. De acordo com José Jobson Arruda:

A industrialização da Inglaterra no final do século XVIII foi um


fenômeno singular, unívoco. Trata-se de uma sociedade precocemente
amadurecida para a assimilação do progresso técnico, processo este
que se dá em condições “capitalistas”, plenamente realizado e isento
de interferências por parte de países previamente industrializados.
Nestes termos, um exemplo ímpar de e ao mesmo tempo clássico que
não pode erigir-se em “modelo” por esta mesma singularidade. Isto é,
nenhum outro processo de industrialização ulterior poderia verificar-
se nas mesmas condições.9

Tal progresso industrial gerou distintos impactos sociais, dentre eles o


crescimento populacional e o desenvolvimento do consumo. Vale destacar que o
crescimento demográfico não se deu exclusivamente pelo aumento da taxa de
natalidade, mas também pela diminuição da mortalidade, a partir de 1740.

A introdução de novas culturas e disseminação de outras, como o nabo


e a batata, além de fornecerem uma alimentação mais substanciosa ao
gado e aos homens, levou a um aproveitamento maior das áreas a
serem lavradas. [...] O aumento do capital que se verifica na época
também é acompanhado de um acréscimo na capacidade de poupança
em largas camadas da sociedade, poupança essa aplicada no mercado
de capital que experimenta grande impulso nessas condições.10

A Revolução Industrial foi responsável pela produção de inúmeros avanços


técnicos que afetaram não só o setor industrial, mas também marcaram profundamente a
vida social. Os trabalhadores que antes estavam habituados ao sistema
artesanal/doméstico, que lhes dava tempo para o lazer e descanso, tiveram suas vidas
transformadas pela rotina das fábricas. Como forma de baixar o custo de remuneração
do trabalho, crianças e mulheres também foram incorporados ao quadro de funcionários

9
ARRUDA, José Jobson de Andrade. Revolução Industrial e Capitalismo. São Paulo: Brasiliense,
1984, p. 7.
10
FALBEL, Nachman. Os fundamentos históricos do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 26.

9
Capítulo I:
O movimento romântico

das grandes fábricas e, assim, todos passaram a conviver com os frequentes acidentes de
trabalho e outros inúmeros fatores negativos, tais como a esgotante jornada de trabalho,
a disciplina intolerável, o pagamento de caros aluguéis e a inexistência de seguro para o
trabalho. “Muitos pais recusavam-se a permitir que seus filhos fossem remetidos às
fábricas nestas condições, porém, as aperturas financeiras levavam-nos a abandonar
qualquer tipo de restrição.”11

Ao tratarmos do ambiente que engendrou a visão romântica, consideramos,


sobretudo, a base humana na qual se apoiava as transformações na sociedade europeia, e
não só as transformações de cunho político e econômico. O movimento de ideias foi
decisivo para o nascimento do Romantismo, devido às ideologias e as teorias
revolucionárias que estavam postas naquele momento. Ademais da Revolução
Industrial, a Revolução Francesa de 1789 causou grande impacto social.

A política revolucionária formulou a teoria da tomada do poder e a


tática de manutenção no poder. A resistência dos privilegiados e da
aristocracia provava que toda transformação social era impossível sem
coação ou opressão social através do uso da violência. A ideia de que
a revolução exigia a formação de um governo revolucionário ou de
uma ditadura revolucionária tinha como fundamento a experiência
francesa e os dias do Terror que visava a combater a reação
contrarrevolucionária.12

A filosofia política estava em pauta não só na França, como também em outros


países europeus que questionavam a igualdade social, o regime de propriedade, o
socialismo e a defesa do nacionalismo, para citar só alguns pontos. Podemos afirmar
que havia também um romantismo político que buscava extrair dos processos históricos
uma orientação para o futuro.

Em relação às artes, há a confluência de várias vertentes vinculadas a


diferentes tradições nacionais, o espírito romântico caracteriza um momento de ruptura
com o passado; com o padrão estético clássico e neoclássico, onde a emoção, o
subjetivismo, o sentimentalismo, o egocentrismo, o nacionalismo, o historicismo, o
individualismo, como principais características, se contrapõem à racionalidade objetiva

11
ARRUDA, José Jobson de Andrade. Revolução Industrial e Capitalismo. São Paulo: Brasiliense,
1984, p. 76.
12
FALBEL, Nachman. Os fundamentos históricos do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 35.

10
Capítulo I:
O movimento romântico

do iluminismo. Esses preceitos estilísticos ordenados e canonizados, usados para


caracterizar o Romantismo, se baseiam na oposição aberta ao classicismo e sua
perspectiva, de certo modo, herdada da Renascença. Grosso modo, podemos elencar
como principais características estilísticas e estéticas do classicismo o gosto pelo
equilíbrio, pela ordem e pela harmonia, onde a ponderação, a serenidade, a objetividade,
a disciplina e a proporção são valorizadas como disciplinamento dos impulsos
subjetivos e critérios definidores do gosto e da qualidade a ser alcançada. A arte é
considerada mais importante que o artista, que inclusive deve desaparecer por trás de
sua obra, segundo os parâmetros clássicos. Tal racionalidade e clareza denotam uma fé
na harmonia universal, “a obra de arte é imitação da natureza e, imitando-a, imita seu
concerto harmônico, sua racionalidade profunda, as leis do universo.”13 Estudaremos
mais a fundo estas oposições no segundo capítulo. Benedito Nunes resume assim o
Romantismo, tido como a ascendência de um comportamento psicológico intimamente
ligado em sua gênese a um contexto sócio histórico determinado;

[...] articulando-se em fins do século XVIII em oposição ao


pensamento iluminista e perdurando até meados do século XIX, a
visão romântica do mundo, que se desenvolveu nos pródromos das
mudanças estruturais da sociedade europeia, concomitantes ao
surgimento do capitalismo, é por certo uma visão de época
condicionada que foi a um contexto sócio histórico e cultural
determinado, que possibilitou a ascendência da forma conflitiva de
sensibilidade enquanto comportamento espiritual definido. 14

Por toda a Europa surgiam inovações técnicas, científicas e novas doutrinas


sociais que aspiravam a uma maior igualdade social, ou até mesmo a igualdade
absoluta. O momento era de ruptura, de contraposição entre a visão de mundo
iluminista, e seus projetos, e a visão de mundo de uma civilização cada vez mais urbana,
regida pela economia de mercado. O romantismo, manifestação de quem estava
insatisfeito com o real, já surge questionador e inquiridor. Novamente Benedito Nunes
nos esclarece acerca desse aspecto fundamental para o entendimento do caráter
contestador do espírito romântico

O caráter sintomal dos aspectos constitutivos da visão romântica


recobre o largo espectro dos fenômenos que indicam a mudança das

13
GUINSBURG, J.; ROSENFELD, Anatol. Romantismo e Classicismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 263.
14
NUNES, Benedito. A visão romântica. In: Ibid., p. 52.

11
Capítulo I:
O movimento romântico

estruturas da sociedade pré-industrial: a separação da arte quer do


artesanato, quer do modo de produção industrial que se iniciava, o
começo da dependência dos produtos literários e artísticos às leis de
concorrência do mercado, a justificativa ideológica da religião como
instrumento legitimador do poder e da ordem – que denunciava o
arrefecimento do sagrado -, o nivelamento dos valores morais à regra
benthamiana do maior interesse e da melhor utilidade, a
marginalização social de toda atividade improdutiva, o princípio
fiduciário da moral doméstica e do casamento, a separação entres as
esferas sexual e sentimental do amor, o filisteísmo como atitude da
maioria dominante em relação às letras e às artes – desde então
confinadas ao plano da neutralizante respeitabilidade que constitui a
cultura estética – e, por fim, a mecanização e a racionalização da vida,
posteriormente as relações comunitárias dentro de uma civilização
cada vez menos rural e cada vez mais urbana.15

Mas essa visão dicotômica entre o sentimentalismo romântico e a racionalidade


iluminista não é única, apesar de ser a mais comum nos estudos sobre o assunto. Não é
possível, por razões de espaço, nos aprofundar em demasia nesse debate. É suficiente
dizer que existem autores que apontam para uma evidente deficiência desta
interpretação, que, segundo eles, seria simples demais e não daria conta da
complexidade de fatores históricos e psicológicos envolvidos. Na verdade tanto o
romantismo quanto o classicismo e o neoclassicismo teriam elementos de racionalidade
e emotividade em suas manifestações, sendo a preponderância de uma sobre a outra
apenas uma questão de realce. Então o estudioso ou distorce a realidade histórica para
preservar a fórmula, ou abandona a fórmula e se admite o caos.16 Obviamente não se faz
necessário tamanha radicalização. Paulo Vizioli mesmo argumenta que a polaridade
razão/sentimento opera tanto no Romantismo quanto na manifestação poética
17
neoclássica, apenas tendo, no romantismo, o sentimento precedência sobre a razão.
Trataremos desta questão mais adiante. Na Inglaterra não foi diferente; razão e
sentimento se mostraram integradas tanto no momento que o antecede quanto no
próprio romantismo. William Blake é um exemplo óbvio disso, pois foi um caso
bastante característico. Voltaremos a enfatizar com maiores detalhes esse aspecto em
capítulo mais à frente.

15
NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. São Paulo:
Perspectiva, 2005, p. 55.
16
VIZIOLI, Paulo. O sentimento e a razão nas poéticas e na poesia do romantismo. In: Ibid., p. 138.
17
Ibid., p. 139.

12
Capítulo I:
O movimento romântico

Creio que essa rápida passada pelos antecedentes do Romantismo foi suficiente
para nos fornecer uma compreensão mínima sobre o embate ideológico que
caracterizava a época. Isso torna possível direcionar nossa atenção ao romantismo
inglês, que apesar de estar associado a um “espírito de época”, possui características
próprias, se o compararmos às manifestações artísticas românticas de outros países.

O R OMANTISMO I NGLÊS

Como já mencionamos, o Romantismo não é um fenômeno fácil de se explicar,


seja em termos cronológicos ou conceituais. Ele é extremamente complexo,
diversificado, paradoxal. É uma metamorfose de padrões humanos; estéticos,
filosóficos, morais, econômicos, políticos, científicos, religiosos, etc. É inegável que
uma definição universal de Romantismo seria confortável para o pesquisador; seria algo
que com certeza permitirá detectar com bastante facilidade as especificidades de cada
movimento local. Pois, apesar de possuírem traços constitutivos em comum, suficientes
para classificá-los dentro dos padrões gerais do que denominamos romantismo, vários
países tiveram seu próprio movimento romântico. Obviamente com uma gama muito
grande de peculiaridades e especificidades. Algo comum diante da variação temporal,
geográfica, e, sobretudo, cultural entre povos tão diversos.

Com a gradual e crescente consolidação da hegemonia burguesa, que se


utilizou, em grande parte, do arcabouço teórico (liberalismo econômico e democracia)
iluminista da primeira metade do século XVIII, para confrontar os entraves provocados
pelos resquícios da mentalidade feudal, e seu sucesso em impor as mudanças que
almejava por grande parte do continente europeu, transformações tecnológicas e sociais
causaram grande impacto na cultura e nas formas de representação e expressão da
realidade.

Uma datação possível para circunscrever o romantismo na Inglaterra é entre


1785 e 1830. Momento em surgiram os mais importantes poetas e pensadores do
movimento. Pois, em grande parte por conta da Revolução Industrial e ao pioneirismo
inglês no capitalismo industrial, este foi um período de grandes mudanças sociais na
Inglaterra. A burguesia inglesa travou uma longa história de combates e disputas contra
o regime medieval e os indícios remanescentes dessa mentalidade. Algo que teve seu

13
Capítulo I:
O movimento romântico

momento mais agudo com a Revolução Gloriosa, em 1688, um século antes da


Revolução Francesa.

E, mais especificamente na virada do século XVIII para o XIX, como


consequência desse pioneirismo, a Inglaterra foi a primeira a experimentar os conflitos
sociais e os problemas característicos desse modo de relacionamento humano. Dois
traços marcantes desse período, e que evidenciam toda essa problemática, são o
crescimento urbano sem precedentes na história europeia e a grande desigualdade
econômica entre pobres e ricos. Nesse momento as classes menos favorecidas,
constituídas massivamente por operários, agricultores e pequeno-burgueses, não
apresentavam um grau de organização capaz de opor uma resistência significativa às
classes dominantes. Em decorrência disso todo o poder político estava concentrado nas
mãos destas últimas.

Em oposição a esse domínio, e aos desdobramentos dele na vida social da


época, ideias revolucionárias se espalharam pela Europa, e até pelas Américas. O mais
notável evento resultante dessa tensão social, visto como uma clara ameaça para os
interesses burgueses na Inglaterra e no continente, foi a Revolução Francesa. A
propagação da ideologia “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” foi uma grande fonte de
inspiração para o movimento romântico inglês.

É importante ressaltar que o Romantismo não foi simplesmente um movimento


antiburguês. Essa é apenas uma de suas facetas, talvez com grande evidência devido ao
triunfo burguês nas Revoluções Francesa e Industrial e a consequente consolidação dos
ideais burgueses como ideologia dominante. Algo instintivo para um movimento que
pregava o não conformismo. Mas não é possível dizer que o sentimento antiburguês
estava presente o tempo todo, hegemonicamente:

Os artistas e pensadores românticos, no sentido mais estrito, são


encontrados na extrema esquerda, como o poeta Shelley, ou na
extrema direita, como Chateaubriand e Novalis, saltando da esquerda
para a direita, como Wordworth, Coleridge e numerosos defensores
desapontados da Revolução Francesa, saltando do monarquismo para
a extrema esquerda como Vitor Hugo, mas quase nunca entre os
moderados ou liberais do centro racionalista, que de fato eram fiéis
mantenedores do “classicismo”.18

18
HOBSBAWM, E. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 359.

14
Capítulo I:
O movimento romântico

Em 1798 foi publicado na Inglaterra Lyrical Ballads de Wordsworth e


Coleridge, um gênero hibrido, pois combinava elementos de narrativa e dramaticidade,
considerado o marco inicial da literatura romântica no país. Mas vale ressaltar que no
século XVIII ocorreram fenômenos literários dignos de nota, com características
suficientes para sustentar a defesa de que houve período transitório, um pré-
romantismo.

O racionalismo e o cepticismo, marcantes neste século, prescreviam um clima


de artificialidade na arte. Só era considerado válido o que pretendesse um significado
universal. Todas as manifestações eram pautadas por um desejo de equilíbrio, os
gêneros eram rigorosamente definidos. O que nos leva a crer que do ponto de vista
artístico, e talvez não somente nele, o ambiente era asfixiante. E isso certamente levou,
forçosamente, as forças criativas a procurarem soluções, novos caminhos e formas. Daí
surgiu uma literatura com especificidades suficientes para ser tida por estudiosos como
uma precursora do romantismo. Uma lista ligeira de das características marcantes da
literatura pré-romântica seria: uma poesia gótica, noturna, sepulcral, popular, de lirismo
individualista e sentimental, com forte interesse pelo medievalismo.19 A prosa,
considerada veículo artístico apenas no século XVIII, com o surgimento do romance,
também apresenta aspectos pré-românticos caracterizadores na literatura inglesa do
século XVII:

Surge desde o princípio com características pré-românticas. Embora,


de modo geral, mantenha certos elementos tipicamente iluministas,
como o racionalismo de Defoe e a preocupação moralizadora que
quase todos os autores de ficção desta época tiveram, o romance
introduz como novidades o predomínio absoluto do sentimento
(Richardson) e da emoção (Sterne), tentativas de superação das
barreiras de classe, o que não é de espantar no século da Revolução
Francesa, e a valorização do terror como centro de interesse.20

Coleridge e Wordsworth foram entusiastas da Revolução Francesa e, mesmo


desiludidos com os rumos que ela tomou, ficaram marcados pelo ideal democrático.
Estes dois, mais do que quaisquer outros autores do romantismo inglês, estavam
conscientes de fazerem parte de uma revolução literária; o segundo deixou claro, no

19
SOUSA, Maria Leonor Machado de. Romantismo inglês: uma interpretação. Revista da FCSH, n. 1,
p. 12, 1980. Disponível em: <http://run.unl.pt/handle/10362/4212>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
20
Ibid., p. 13.

15
Capítulo I:
O movimento romântico

prefácio de Lyrical Ballads, sua intenção de criar uma poesia diferente de tudo o que
estava estabelecido até então. As suas experiências literárias tinham um objetivo e
seguiam métodos concretos que eles sabiam explicar. Wordsworth chegou mesmo a
declarar que havia a necessidade de reformar a poesia, onde o neoclássico, e sua
asfixiante artificialidade literária, seriam substituídos por “...uma poética que permitisse
ao homem novo formado pelos ideais revolucionários exprimir livremente os seus
sentimentos e esses ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.”21 E para tanto ele
defendia o uso de uma linguagem simples, sem artificialismos. Essa crítica não era
dirigida tão somente a chamada dicção poética, ela criticava o própria concepção
classicista de que deveria haver uma separação entre a vida quotidiana e o mundo da
poesia. Nessa necessidade de aproximação das formas de expressão da realidade com a
vida “real” percebemos um elemento comum a quase toda poesia romântica, “uma
sensação melancólica, de insatisfação, da nostalgia de uma idade de ouro inatingível, ou
porque se perdeu com a inocência ou porque as limitações humanas não permitem
alcançá-la.”22

Disso surgiu a noção de que o poeta era portador de qualidades superiores, e de


que ele poderia, através de seus sentimentos sinceros, ser compreendido por todos os
homens. Concebiam que, afinal, toda a humanidade se integrava no mundo natural, no
universo, uno e indivisível. Essa concepção, onde o fato individual, sincera e
profundamente expresso, é capaz de trazer o símbolo de algo que é comum a todo
homem que, segundo Maria Leonor Machado de Sousa,

... recuperou Shakespeare, mais como poeta da Humanidade do que


propriamente como dramaturgo. Da sua obra interessaram apenas as
tragédias, cada uma das quais era um poema horrivelmente belo sobre
uma fraqueza humana – a indecisão, o amor, a ambição, o desejo de
vingança. Havia nessas tragédias cenas tipicamente românticas, que
poetas e pintores sentiram como se fossem almas gêmeas de
Shakespeare – Ofélia, coroada de flores silvestres, morrendo a cantar
levada pela corrente; Lady Macbeth vagueando de noite perseguida
pelos espectros e pelos remorsos; o rei Lear, louco e abandonado em
plena tempestade, tendo por único companheiro o bobo.23

21
SOUSA, Maria Leonor Machado de. Romantismo inglês: uma interpretação. Revista da FCSH, n. 1,
p. 16, 1980. Disponível em: <http://run.unl.pt/handle/10362/4212>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
22
Ibid.
23
Ibid., p. 17.

16
Capítulo I:
O movimento romântico

Shakespeare foi canonizado, adotado com uma das máximas expressões da arte
teatral por, justamente, justificar as premissas defendidas pela geração de poetas e
escritores românticos. Os heróis shakespearianos eram palpáveis, tanto em suas
fraquezas quanto em suas qualidades podiam ser responsabilizados por seus destinos.

No panorama da literatura inglesa propriamente romântica, alguns autores


dividem-na em dois grupos distintos, ou em duas gerações. Uma primeira, mais
revolucionária do ponto de vista literário, cujos principais nomes são Wordsworth,
Coleridge, Southey e Sir Walter Scott e uma segunda, que mudou mais o conteúdo que
a forma, onde os principais nomes seriam Shelley, Keats e Byron.

Wordsworth foi um dos maiores sonetistas ingleses. Escreveu poemas curtos,


onde o elemento lírico se impunha. Sempre se manteve fiel a inspiração procurada na
natureza, pois para ele o homem e Deus se encontravam o universo.

Wordsworth, igual a William Blake em suas Canções da Inocência, via a figura


infantil como portadora da pureza e desta forma, a criança era como um elemento da
natureza. Esta concepção, possivelmente dialoga com Rousseau, que acredita que o ser
primitivamente inocente é pervertido no contexto da civilização e da sociedade, à medida
que cresce.

O que distingue Rousseau e o transforma em fonte inspiradora da


escola romântica é o seu profundo pessimismo no tocante à sociedade
e à civilização. Ele não acredita nem em uma nem em outra,
estabelecendo o postulado de uma natureza humana primitiva, que vai
sendo corrompida pela cultura. Mas não só ela, como também a
propriedade, fonte de desigualdade entre os homens, contribuem para
que o ser originalmente puro e inocente se perverta no contexto da
civilização e da sociedade. Por isso Rousseau exalta a simplicidade da
criação.24

Coleridge cultivou o fantástico, de obra não muito vasta, demonstrou uma


capacidade imaginativa extensa e rica. Também é o autor de obras de crítica literária
que deram ao Romantismo uma fundamentação filosófica. Southey foi, sobretudo
atraído pelo medieval e pelo exótico. Mas não atingiu o renome dos dois primeiros da
lista. Por fim, Sir Walter Scott, considerado o expoente máximo do medievalismo

24
GUINSBURG, J.; ROSENFELD, Anatol. Romantismo e Classicismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 266.

17
Capítulo I:
O movimento romântico

romântico. É considerado o criador do romance histórico, que se utilizou de elementos


fundamentais do romance gótico.

Na segunda geração temos poetas mais universais. Todos foram liberais. Byron
foi à Grécia e lutou ao lado dos gregos no processo de independência deste país. Foi
sem dúvida o poeta que mais marcou seu lugar na vida social e literária da época.
“Byron transpôs para os seus heróis – Don Juan, Manfred, o corsário Conrad, Lara – a
sua maneira de ser, e, proscrito pela Inglaterra, conquistou a Europa, que imitou os seus
modos, as suas posições estudadas, a sua maneira de vestir e de se pentear.”25

Shelley procurou inspiração na Grécia antiga, tentou reunir os mundos


moderno e antigo, cantando a liberação humana através do mito de Prometeu. Sua obra
afirmava que o homem é capaz de criar o seu próprio destino. Foi o único dos três
poetas mais famosos da segunda geração a escrever uma obra teórica, Defense of
Poetry, onde defendia ideias como a de que a literatura é um espelho do gosto e dos
padrões da época. Keats é descrito como essencialmente o poeta da arte pela arte. Suas
odes se pautavam pela busca do Belo, quer na natureza selvagem ou na arte grega
antiga.

SENTIMENTO X RAZÃO

O estudioso Paulo Vizioli, em seu artigo intitulado “O sentimento e a razão nas


poéticas e na poesia do romantismo” ressalta, como J. Guinsburg, a dificuldade que os
pesquisadores encontram para conceituar o movimento artístico e literário Romantismo;
e isso se deve à sua multiplicidade e diversidade. Muitas vezes, o Romantismo,
enquanto tendência estética, transcende o período histórico em que está inscrito.

A fim de solucionar este problema de conceituação, muitos optam por traçar


um estudo comparativo, estabelecendo contrastes entre este movimento e o
Neoclassicismo, que o antecedeu ou o Realismo, que o seguiu. Sobretudo, se
considerarmos que o Romantismo é uma reação ao Neoclassicismo, seu estudo
realizado de forma conjunta, dando devida atenção às aproximações e distanciamentos,
é de grande valia para a sua compreensão.

25
GUINSBURG, J.; ROSENFELD, Anatol. Romantismo e Classicismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 21.

18
Capítulo I:
O movimento romântico

Sabemos, por exemplo, que o Romantismo é dinâmico, desordenado e


subjetivo, enquanto o Neoclassicismo tende a ser o contrário. O primeiro está voltado
para o interior e o segundo para o exterior. “O Romantismo se identifica com o
sentimento (ou a emoção, ou o inconsciente, ou a energia primitiva), enquanto o
Neoclassicismo se associa à razão.”26 Porém, se chegamos só até este ponto de análise,
em que se opõe Razão versus Sentimento, fica difícil compreender os elementos
clássicos encontrados no Romantismo inglês. “Nessas circunstâncias, ou se distorce a
realidade histórica para preservar a fórmula, ou se abandona a fórmula e se admite o
caos.”27

Por considerar as duas hipóteses insatisfatórias, Vizioli nos chama atenção ao


fato de nenhuma forma de arte se pautar unicamente na razão ou no sentimento, pois
ambos são primordiais a qualquer produto artístico. Desta forma, o autor parte do
pressuposto de que razão e sentimento estão presentes nas duas tendências literárias,
sendo que o que pode variar é a ênfase que se dá a cada uma delas.

Assim, para os poetas neoclássicos, o aspecto racional é o que deve


predominar, controlando e selecionando os elementos emotivos; para
os românticos, ao contrário, o sentimento é o princípio de tudo, dele
devendo derivar naturalmente o conteúdo racional e a estruturação do
conjunto.28

A poética neoclássica estabelece que a razão deve dirigir o sentimento e para


isso, é recomendável que faça isso pela “imitação”, seguindo os exemplos dos clássicos
gregos e latinos. Por outro lado, para os românticos a razão deveria brotar do
sentimento. “A atividade consciente e a força inconsciente devem trabalhar em
harmonia. Se a última for eliminada, a obra não terá vida independente [...]”.29 No
entanto, os sentidos e a emoção devem ser ponto de partida e chegada.

A forma como cada escritor romântico se relacionou com o sentimento, ou


seja, na maneira de expressar suas emoções é o que o faz do Romantismo um
movimento tão rico, do ponto de vista da diversidade que encontramos. Da mesma

26
VIZIOLI, Paulo. O sentimento e a razão nas poéticas e na poesia do romantismo. In: GUINSBURG, J.
(Org.). O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 138.
27
Ibid.
28
Ibid., p. 139
29
Ibid., p. 140

19
Capítulo I:
O movimento romântico

forma, isso faz com que seu estudo teórico seja tão complicado, pois é difícil encontrar
uma unidade em meio a tantas diferenças. Sobretudo quando pensamos em sua
manifestação em diferentes países, e consequentemente, distintos processos históricos.

Vizioli, ao analisar o Romantismo na Inglaterra, identifica na obra de William


Blake, um caso exemplar de autor que permitiu que a emoção prevalecesse sob a razão.
Ele localiza Blake no que chamou de “nova literatura da sensibilidade” ou “pré-
romantismo”, período em que esta nova escola literária estava dando seus primeiros
passos, no século XVIII.

Blake possui muito pontos em comum com os demais pré-românticos


e com os grandes românticos que o seguiram. Como eles, prefere a
emotividade à razão, e é por “inspiração” que cria as suas obras; como
eles, opta pela simplicidade e pelas formas poéticas de sabor popular;
e, como eles, exalta a natureza e a espontaneidade. Aliás, seu amor à
infância, - como aconteceria mais tarde a Wordsworth, - deriva
substancialmente de sua visão da criança como um ser que a
sociedade ainda não teve tempo de corromper e que, por isso, encarna
a própria inocência natural. Mas, ao lado desses traços comuns,
mostra ele algumas características que não só o individualizam mas
também o tornam uma das vozes mais poderosas e significativas do
romantismo inglês, como a precisão das imagens e a funcionalidade
dos símbolos, a energia dos ritmos e a força profética, o senso da
realidade e a acuidade psicológica, a profundidade das ideias e a
complexidade da visão cósmica.

Ao retratar as mazelas e os vícios que encontra pela metrópole, Blake não está
preocupada com a forma, preocupação comum entre os neoclássicos. O objetivo de
Blake é utilizar uma linguagem simples, e para isso faz com que seus poemas beirem o
didatismo. No volume 1, de “A formação da classe operária”, Thompson afirma que:

Contra o pano de funda da Dissidência londrina, com sua franja de


deístas e místicos exaltados, William Blake não mais se apresenta
como aquele gênio inculto e excêntrico que deve parecer àqueles que
conhecem apenas a cultura refinada da época. Pelo contrário, ele é a
voz original e autêntica de uma longa tradição popular.30

Em “O casamento do Céu e do Inferno”, Blake discute a união dois extremos e


questiona a divisão religiosa entre corpo e alma. Para ele a oposição é necessária, mas

30
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A árvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 53. V. 1.

20
Capítulo I:
O movimento romântico

devem andar sempre unidos, pois “sem contrários não há progressão”. Sobre esta obra,
Vizioli tece o seguinte comentário:

[...] como um legítimo representante do Romantismo, o poeta


estabelece claramente a prioridade do sentimento, que ele associa à
energia primitiva, àquela força inconsciente de que Schelling falaria
poucos anos mais tarde; não despreza, contudo, a razão, pois
reconhece, como também faria o filósofo alemão, que é a interação
dos dois elementos que possibilita o trabalho de criação artística. Na
prática, porém, o equilíbrio não foi sempre alcançado. Seja porque
William Blake, vivendo ainda a Idade da Razão, se viu compelido a
enfatizar excessivamente, por necessidade dialética, o elemento
irracional, seja porque seu próprio temperamento de visionário, de
bardo profético, lhe impunha essa tendência, a verdade é que a maior
parte de sua produção é quase ininteligível para os leitores não-
iniciados , não obstante seu inegável vigor. Suas visões extremamente
pessoais, de extraordinária carga emotiva, ditadas pela inspiração, não
oferecem nem a base racional que facilita a comunicação, nem o
distanciamento estético necessário à apreciação artística. 31

Esta dificuldade de compreensão comentada por Vizioli diz respeito às obras


proféticas de Blake, devido à mitologia e grande quantidade de símbolos empregados
pelo poeta. Nas “Canções da Inocência e da Experiência”, que analisaremos mais
adiante, não há este problema, o que tampouco significa que podemos extrair tudo o que
há por trás de suas palavras com uma leitura rasa, que dispense o entendimento de suas
figuras simbólicas, como o cordeiro e o tigre. De qualquer forma, a crítica contida no
poema Londres, por exemplo, pode ser compreendida até pelos mais leigos, dado a sua
linguagem simples e direta.

31
VIZIOLI, Paulo. O sentimento e a razão nas poéticas e na poesia do romantismo. In: GUINSBURG, J.
(Org.). O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 141-142.

21
CAPÍTULO II

WILLIAM BLAKE:
UM ESTUDO BIOGRÁFICO

William Blake é o poeta e gravador que da sua


escura oficina de Londres canta a Revolução dos
Americanos contra a Inglaterra. É o místico que
fez hinos à Revolução Francesa; o iluminado
iluminista; o homem que quer derrubar os dois
pilares ideológicos do século, simétricos e opostos:
a hipocrisia dos moralistas e o racionalismo dos
ímpios.

Alfredo Bosi
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

POETA, DESENHISTA, GRAVURISTA; são várias as facetas de William Blake.


Considerado, cronologicamente, como um pré-romântico, num período em que
predominava as tendências clássicas, movimento cultural que ficou conhecido como
Neoclassicismo, Blake sempre teve um posicionamento crítico frente à razão e à
religião.

Nasceu em 1757, no dia 28 de novembro, na região Soho, da cidade de


Londres, capital da Inglaterra. Desde criança foi um ávido leitor e mostrou talento para
as artes, sobretudo por meio de desenhos, o que fez com que recebesse grande incentivo
do pai, um rico comerciante. Ainda muito jovem, aos quatro anos de idade, já relatava
ter visões, tais experiências paranormais/espirituais foram frequentes durante toda sua
vida e como veremos, teve grande influência em sua obra como poeta e gravurista. Aos
nove anos relatou ter encontrado com o profeta Ezequiel debaixo de uma das árvores do
jardim familiar e aos dez anos afirmou ter visto com seus próprios olhos a alma de seu
irmão sair do corpo e subir ao céu, exultante de alegria.32

Para comprender a Blake, hombre – escribe Eliot – nos tenemos que


preguntar sobre las circunstancias que permitieron la peculiar
honestidad de su obra, y las circunstancias que condicionaron sus
limitaciones. Entre las condiciones favorables hay que contar
probablemente con las dos siguientes: que al dedicarse desde muy
joven a aprender un oficio manual, no se vio obligado a adquirir más
instrucción literaria que la que él personalmente requirió, ni adquirirla
por más razón que el mero deseo personal; y que como humilde
grabador, no se le brindó ninguna clase de oportunidades para una
carrera periodística y social.33

Na infância foi educado em casa pela mãe, Catherine, por isso pode ser
considerado quase um autodidata. Talvez isso justifique os inúmeros erros de ortografia
e gramática encontrados em seus primeiros manuscritos, os poemas que escrevia desde
os onze anos de idade. Com esta idade, devido ao empenho do pai em fazer com que o

32
Cf. ANGRILL, A. William Blake: Grandes Maestros de la Pintura. Barcelona: Altaya, 2002.
33
BLAKE, William. Erasmo textos bilingües: Cantos de inocencia y Cantos de experiencia. Barcelona:
Bosch / Casa Editorial, 1977, p. 21.
“Para compreender Blake, homem – escreve Eliot – temos que nos perguntar sobre as circunstâncias
que permitiram a peculiar honestidade de sua obra, e as circunstancias que condicionaram suas
limitações. Entre as condições favoráveis devemos contar provavelmente com as duas seguintes: que
ao se dedicar desde muito jovem a aprender um ofício manual, não se viu obrigado a adquirir mais
instrução literária que a que ele pessoalmente requereu, nem adquirir por mais razão que o mero
desejo pessoal; e que como humilde gravador, não foram fornecidas nenhuma classe de oportunidades
para uma carreira jornalística e social”. [Tradução nossa]

23
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

filho seguisse o caminho de artista, Blake começou a frequentar aulas de desenho na


escola de artes de Henry Pars. Ainda nesta época, teve seus primeiros poemas impressos
sob título de “Poetical Sketches”. A métrica empregada por ele recorre em grande parte
ao verso em branco, característica da era Elizabetana. Sobre sua forma de fazer poesia,
T.S. Eliot comenta:

La poesía de Blake tiene la antipatía de la alta poesía, de aquella que,


por una extraordinaria labor de simplificación, exhibe la enfermedad
esencial o la intensidad del alma humana, y cuya honestidad nunca
existe sin una gran realización técnica, descubridora de nuevas formas
expresivas para el cúmulo de ideas nuevas a través de las cuales el
poeta propone una relectura del universo y de la propia poesía.34

Alguns anos mais tarde, finalizado os estudos de desenho, William começou


suas primeiras experiências como aprendiz de gravurista no ateliê de William Ryland e
posteriormente no estúdio de James Basire, um famoso gravurista. Entretanto, devido a
problemas de relacionamento, e isso marcou toda a trajetória de Blake, que ficou
conhecido como uma pessoa de gênio difícil e de poucos amigos e companheiros de
trabalho, este resolveu seguir seu caminho sozinho. Apelidado como “Bad Blake”, o
Louco Blake, foi considerado pela maioria de seus contemporâneos, um esquizofrênico.
Não só devido às suas visões, que para ele eram totalmente naturais, mas também
devido ao caráter místico de sua obra.

Há relatos de que Blake passou alguns meses frequentando diariamente a


Abadia de Westminster, a fim de copiar e desenhar formas góticas da arquitetura local.
Também neste período de reclusão, relatou ter tido inúmeros visões em que apareceram
Cristo e seus discípulos, o alertando em relação ao trabalho que deveria realizar, ou seja,
sua missão espiritual. Acerca dessa missão, Pablo Garzón afirmou que Blake

Creyó siempre (era hombre pertinaz) que su deber consistía en


corregir errores, así tuviese que discrepar con quienes oficialmente los
administraban y restaurar la concepción, que él creía auténtica de

34
CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha –
Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag67blakex.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
“A poesia de Blake tem a antipatia da alta poesia, daquela que, por um extraordinário trabalho de
simplificação, exibe a enfermidade essencial ou a intensidade da alma humana, e cuja honestidade
nunca existe sem uma grande realização técnica, descobridora de novas formas expressivas para o
aglomerado de ideias novas através das quais o poeta propõe uma releitura do universo e da própria
poesia”. [Tradução nossa]

24
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

principios que juzgaba adulterados por obra de prácticas religiosas y


políticas viciadas por el dilatado abuso de insensibles burocracias.35

Tais fenômenos sobrenaturais eram ignorados por sua família36, mas Blake
quis compreender mais a fundo o que se passava com ele e por isso buscou trabalhos
sobre clarividência e hermetismo, temas que sempre foram recorrentes em suas leituras
e que de alguma forma influenciaram sua forma de ver o mundo e sua produção como
artista e escritor. Definitivamente, os momentos mais produtivos, em relação às suas
experiências sobrenaturais foram os que se encontrava em contato com a natureza, seja
em suas caminhadas pelo campo ou no período em que viveu em uma estância de
Felphan, Sussex (1800-1803), em recolhimento interior, enquanto era subvencionado
por vários mecenas.

Simplemente tuvo numerosas visiones: a los cuatro años Dios Padre


asomó la cabeza por la ventana de su dormitorio y algo más tarde fue
testigo del funeral de un hada, cuyo cuerpo yacía sobre un pétalo de
rosa. Solía conversar libremente con los espíritus (en especial con los
de Voltaire y Milton) y no resultaba raro que perdiera contacto con las
cosas terrenales. <El señor Blake no me brinda mucha compañía; pasa
mucho de su tiempo en el Paraíso>, decía su mujer.37

Mais tarde, decidido sobre o caminho que queria tomar, se matriculou na


“Royal Academy of Arts”, onde foi considerado pelo diretor, Sir Joshua Reynolds,
como uma aberração. Foi nesta época que Blake começaria duas amizades que
perdurariam, o escultor e ilustrador John Flaxman e Henry Fuseli. Os três artistas e
amigos tinham uma característica comum, a predileção pelos temas da imaginação, o

35
BLAKE, William. Obra Completa en Poesía. Barcelona: Libros Río Nuevo, 1980, p. 9.
“Acreditou sempre (era homem pertinaz) que seu dever consistia em corrigir erros, assim tivesse que
discrepar com quem oficialmente os administravam e restaurar a concepção, que ele acreditava
autêntica de princípios julgava adulterados por obra de práticas religiosas e políticas viciadas pelo
dilatado abuso de insensíveis burocracias”. [Tradução nossa]
36
SARRIUGARTE, Iñigo. Las alucinaciones mentales de William Blake como Base de su Obra
Literaria y Artística: ¿Genialidad o Locura? Razon y Plabra, n. 40, Agosto/Septiembre 2004.
Disponível em: <http://www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n40/isarri.html>. Acesso em: 21 Ago.
2014.
37
BLAKE, 1980, op. cit., p. 8.
“Simplesmente teve numerosas visões: aos quatro anos Deus Pai aproximou a cabeça pela janela de
seu quarto e pouco mais tarde foi testemunha do funeral de uma fada, cujo corpo jazia sobre uma
pétala de rosa. Costumava conversar livremente com os espíritos (em especial os de Voltaire e Milton)
e não resultava raro que perdesse contato com as coisas terrenas. <O senhor Blake não me brinda
muito com sua companhia; passa muito tempo no paraíso>, dizia sua mulher”. [Tradução nossa]

25
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

que contrariava a arte inglesa dominante, ou seja, o retrato e a paisagem. Assim como
Blake, Fuseli também se sentia inspirado pelo poeta inglês John Milton e realizou obras
pictóricas, marcadas por uma visão fantástica. Sobre a imaginação e seu poder
libertador, Blake escreve:

Si el espectador pudiera entrar en el interior de una de esas imágenes


de su imaginación, acercándose a ellas en el carro de fuego de su
pensamiento contemplativo… podría convertir en amiga y compañera
suya a una de aquellas imágenes maravillosas, que no cesan de
suplicarle que abandone las cosas mortales (como debe hacerlo);
entonces sería capaz de ir al encuentro del Señor de los aires, y
entonces se sentiría rebosar de felicidad. […] El mundo de la
imaginación es el mundo de la eternidad. Es el seno divino al que
todos iremos después de la muerte de este cuerpo vegetativo. El
mundo de la imaginación es infinito y eterno, en tanto que el mundo
de la generación y de la vegetación es finito y temporal. En aquel
mundo eterno existen las realidades eternas de todo, que nosotros
vemos reflejadas en el espejo vegetal de la naturaleza. Todas las
cosas, en sus formas eternas, están comprendidas en el cuerpo divino
del Salvador, el verdadero vino de la eternidad, la imaginación
humana.38

Aos 25 anos, por meio do trabalho como gravador, Blake começou a ter uma
fonte de renda própria, o que permitiu com que se casasse com Catherine Boucher, filha
de um florista ambulante, em 1782. Catherine era analfabeta, mas Blake se dedicou a
ensiná-la. Além de instruí-la na leitura e escrita, lhe ensinou a arte da gravura e o
domínio de cor, sendo assim, aos poucos a transformou em sua colaboradora
profissional. A pesar da diferença intelectual existente entre os dois, a união duraria até
sua morte. Blake era partidário da poligamia, assim como Milton, mas em respeito à sua
esposa, não a praticou.

38
CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha –
Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag67blakex.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
“Se o espectador pudesse entrar no interior de uma dessas imagens de sua imaginação, se
aproximando a elas no carro de fogo de seu pensamento contemplativo… poderia converter em amiga
e companheira sua a uma daquelas imagens maravilhosas, que não cessam de lhe suplicar que
abandone as coisas mortais (como deve fazer); então seria capaz de ir ao encontro do Senhor dos ares,
e então se sentiria disfrutar da felicidade. [...] O mundo da imaginação é o mundo da eternidade. É o
seio divino ao qual todos iremos depois da morte deste corpo vegetativo. O mundo da imaginação é
infinito e eterno, enquanto que o mundo da geração e da vegetação é finito e temporal. Naquele
mundo eterno existem as realidades eternas de tudo, que nós vemos refletidas no espelho vegetal da
natureza. Todas as coisas, em suas formas eternas, estão compreendidas no corpo divino do Salvador,
o verdadeiro veio da eternidade, a imaginação humana”. [Tradução nossa]

26
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

Para Blake, as distintas revoluções que se produziram em sua época, a


Revolução Americana (1775) e a Revolução Francesa (1789) foram geradas por força
de inspiração, sendo reflexo de um dos desejos intensos do gênero humano: a liberdade
e a liberação do coração, com a chegada de uma nova ordem baseada na virtude e na
paz. Esta liberdade estaria marcada pelo individualismo absoluto e pela anarquia moral.

Em 1818 conheceu o mecenas e retratista John Linnel, que o apresentou a um


círculo de jovens pintores idealistas que o consideravam o único praticante de uma arte
espiritual. Segundo os diversos biógrafos de Blake, este tinha contato com anjos,
arcanjos e personagens históricos, especialmente Voltaire e Milton, que apareciam para
ele durante suas experiências paranormais, e assim, no papel de um intermediário entre
o mundo dos homens e o mundo dos espíritos, Blake transmitia seus pensamentos (dos
espíritos) por meio de suas poesias e obras artísticas.

La capacidad visionaria de Blake pertenece seguramente al mismo


tipo de estado espiritual que el de la experiencia mística que toma
contacto con la Unidad que existe tras la aparente diversidad de todas
las cosas. La tradicional vía mística se convierte, en el caso de Blake,
en actividad creadora, resultándole tan sagrada e ineludible como lo
resultó aquella para los místicos religiosos. Energía, Imaginación y
Naturaleza constituyen como una trinidad en la que cada uno de los
tres elementos son manifestación de los otros, mientras que la Razón
empaña la facultad visionaria de los hombres que en su racionalismo
no alcanzan a ver más allá del mundo de las apariencias. […] El árbol
que hacer saltar lágrimas de júbilo de los ojos de unos, no es a los de
otros más que un objeto Verde en medio del camino.39

Dentre sua obra literária podemos destacar seus livros mais proféticos, são eles:
Urizen; O livro de Athania; O livro de Los; O canto de Los; Vala ou os quatro Zoas; e
Milton. O penúltimo é talvez o que carrega um tom mais dramático, não chegou a ser
gravado e seu manuscrito permaneceu perdido por longo tempo. O livro tem notável
influência da filosofia oriental e trata do destino do homem, que deve distanciar de sua

39
BLAKE, William. Erasmo textos bilingües: Cantos de inocencia y Cantos de experiencia.
Barcelona: Bosch / Casa Editorial, 1977, p. 23.
“A capacidade visionária de Blake pertence seguramente ao mesmo tipo de estado espiritual que o da
experiência mística que toma contato com a Unidade que existe sob a aparente diversidade de todas as
coisas. A tradicional via mística se converte, no caso de Blake, em atividade criadora, resultando tão
sagrada e inevitável como resultou aquela para os místicos religiosos. Energia, Imaginação e Natureza
constituem com uma trindade na que cada um dos três elementos são manifestação dos outros,
enquanto a Razão ofusca a faculdade visionária dos homens que em seu racionalismo não alcançam
ver além do mundo das aparências. [...] A árvore que faz saltar lágrimas de felicidade dos olhos de
alguns, não é para outros mais que um objeto verde no meio do caminho”. [Tradução nossa]

27
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

angústia contínua que o faz encarnar em distintos estados até encontrar sua verdadeira
unidade interior. Blake acreditava que levávamos o Universo em nós.

Possuir a visão profética significa ver com o “Olho Imaginativo”, que,


como o terceiro olho dos místicos, é capaz de perceber além das
dimensões do conhecimento humano, o que, para Blake, implicava ver
além das possibilidades expressivas de sua época e de formas de
conhecimento e de produção e recepção de arte que tinham por base a
separação entre pensamento lógico e poético, racionalidade e
sentimento, razão e intuição, humanidade e divindade, existência
material e eterna.40

Blake discordava do pintor Reynalds por este acreditar ser necessário aos
pintores e desenhistas copiar modelos. Sendo assim, afirmou:

Para Reynalds, o mundo é um deserto, um deserto que deve ser


semeado pela observação. Mas para mim, não. Para mim, o Universo
já está em minha mente, e o que vejo é muito pálido e muito pobre
comparado com o mundo da minha imaginação.41

Apesar de toda sua extensa obra, Blake sempre se sentiu incomodado pela
pobreza e pela falta de reconhecimento de seu trabalho. Seu pouco sucesso quando vivo
está relacionado, segundo seus biógrafos, à sua personalidade e à forma como era visto:
um lunático que conversava com árvores e que fora encontrado brincando de Adão e
Eva com sua esposa, ambos nus correndo pelo jardim. Contudo, seu pequeno círculo de
amizade o ajudava com as questões econômicas.

Paulo Vizioli, ao comentar sobre os “livros proféticos” de Blake, destaca que


sua obscuridade e seu estilo afastam o leitor comum, mas não tira seu mérito como
escritor e artista, sobretudo pela influência que sua obra teve posteriormente entre
reconhecidos autores; entre eles: Whitman, Ezra Pound, Yeats, T. S. Eliot, Lawrance e
James Joyce.

Whitman, por exemplo, se deixou empolgar pela romântica


identificação do poeta com o profeta, e seus versos livres devem algo
ao modelo de Blake; Ezra Pound, em seu anseio de objetividade, se
inspirou parcialmente nos poemas líricos do primeiro período, para
desenvolver a técnica das “máscaras poéticas” ou “personae”; Yeats o
seguiu com as suas “visões”; T. S. Eliot extraiu dele alguns dos

40
SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a
Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora Unicamp, 2009, p. 153.
41
BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 224.

28
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

símbolos centrais de sua poesia; D. H. Lawrence recriou, com os seus


conceitos de “consciência mental” e “consciência do sangue”, a
oposição entre a Razão e a Energia; e James Joyce pode ter recebido
das personagens metamórficas de Jerusalém a sugestão e o estímulo
para o sonho fantástico de Finnegans Wake.42

Ao relacionar a obra de Blake com outros autores, é possível notar que este
compartilhou várias ideias de seus autores favoritos, vale ressaltar que Blake mantinha
uma grande biblioteca em sua casa e dedicava a maior parte de seu tempo à leitura.
Entre suas fontes de inspiração estão Shakespeare, Dante, Milton, por mais que não
compartilhasse de sua atitude puritana e moralista; Jacob Boehme, Paracelso e
Emannuel Swedenborg.

Este último, poeta e filósofo sueco, não atraiu a atenção de Blake somente por
sua capacidade científica e filosófica, mas também por seu poder imaginativo e sua
doutrina espiritual baseada na manifestação de Deus e em sua suposta capacidade de se
comunicar com espíritos e anjos. Swedenborg foi responsável pela criação da “Nova
Igreja de Jerusalém”. Esta ramificação cristã da Igreja Católica se inspira nas obras
místicas de Swedenborg e tem como principal característica a afirmação da existência
de um mundo espiritual que penetra na matéria.

Ao introduzir a obra de William Blake aos seus alunos de Literatura Inglesa, J.


Borges afirma que este não pertence à corrente pseudoclássica e tão pouco ao
movimento romântico, como considera grande parte dos estudiosos, desta forma,
Borges o interpreta da seguinte forma:

É um poeta individual, e, se pudéssemos vinculá-lo a algo – já que,


como disse Rubén Darío, não existe o Adão literário -, teríamos de
vinculá-lo a tradições muito mais antigas, aos hereges cátaros do Sul
da França, aos gnósticos da Ásia Menor e de Alexandria dos primeiros
séculos da era cristã e, claro, ao pensador sueco, grande e visionário,
Emmanuel Swedenborg.43

Dentre as ideias presentes na doutrina de Swedenborg que Blake compartilha


em seus escritos, está o conceito original de céu e de inferno, que foi bem elucidado por
Jorge Luis Borges:

42
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 10.
43
BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 214.

29
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

El cielo y el infierno de su doctrina no son lugares, aunque las almas


de los muertos que los habitan, y de alguna manera los crean, los ven
como situados en el espacio. Son condiciones de las almas,
determinadas por su vida anterior. A nadie le está vedado el paraíso, a
nadie le está impuesto el
Infierno. Las puertas, por decirlo así, están abiertas. […] El Infierno es
la otra cara del Cielo. Su reverso preciso es necesario para el
equilibrio de las dos esferas es requerido para el libre albedrío, que sin
tregua debe elegir entre el bien, que mana del cielo, y el mal que mana
del infierno. Cada día, cada instante de cada día, el hombre labra su
perdición eterna o su salvación.44

Em relação aos escritos de Paracelso, astrólogo e alquimista alemão, foi daí


que Blake extraiu a doutrina da existência de dois corpos em toda criação, o visível e o
invisível. Tal conceito está presente na publicação “Matrimônio do Céu e do Inferno”,
de 1793. P. Vizioli considera que talvez este tenha sido um de seus trabalhos mais
acessíveis entre seus “livros proféticos”, por expor com maior clareza os conceitos que
desenvolve de forma poética nas Canções da Experiência. É ainda nesta obra que Blake
se opõe de forma irônica a algumas ideias de Swedenborg e também ao cristianismo
tradicional, que segundo ele seria uma falsificação dos princípios de Cristo.

É esse cristianismo tradicional, que para ele não passa de uma


maldosa falsificação dos princípios de Cristo. É esse cristianismo
tradicional que ensina, - como lemos em “A Voz do Demônio”, - que
o homem possui uma alma e um corpo completamente distintos e
separados; e que a alma se relaciona com o Bem e o Céu, enquanto o
corpo se associa ao Mal e ao Inferno. Blake agora vê essa separação
como uma ruptura da integridade do homem, como a sua verdadeira
“queda” do paraíso, posto que ele só pode ser feliz quando as duas
partes são aceitas e agem simultaneamente.45

O pensamento de Blake foi muito contestado e considerado peculiar, visto que


este pertenceu a uma sociedade marcada pelo puritanismo e pela repressão sexual. O

44
BORGES, Jorge Luis. Un ensayo por Borges acerca de Swedenborg. Wedenborg. Disponível em:
<http://www.swedenborg.es/borges/borges.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
“O céu e o inferno de sua doutrina não são lugares, ainda que as almas dos mortos que os habitam, e
de alguma maneira os criam, os veem como situados no espaço. São condições das almas,
determinadas por sua vida anterior. A ninguém está vedado o paraíso, a ninguém está imposto o
inferno. As portas, para dizer assim, estão abertas. [...] O Inferno é a outra cara do Céu. Seu inverso
preciso é necessário para o equilíbrio das duas esferas é requerido para o livre arbítrio, que sem trégua
deve escolher entre o bem, que emana do céu, e o mal que emana do inferno. Cada dia, cada instante
de cada dia, o homem trabalha sua perdição eterna ou sua salvação”. [Tradução nossa]
45
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 6.

30
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

poeta defendia o prazer do sexo, como podemos notar no verso de Provérbios do


Inferno “A satisfação do desejo, engendra as frutas da vida e da beleza” e sua visão
religiosa era profundamente individual, tendo ele apresentado uma nova visão das
figuras de Satanás e Jesus. Daí sua condenação de todas as religiões autoritárias.
Entretanto, ao contrário do que se pode imaginar, Blake era um ávido leitor da Bíblia,
mas aliado às mensagens bíblicas, acreditava que a imaginação desempenhava papel
indispensável à abertura da percepção espiritual.

Sua concepção de imaginação, diferentemente da de Wordsworth e


Coleridge, não implica o fluir espontâneo dos sentimentos ou a
capacidade de tornar consciente o que transcende a compreensão, mas
a capacidade de alargar a compreensão para além das divisões
impostas às formas do saber (ciência, arte, religião).46

Dentre suas polêmicas afirmações estão as de que “a Bíblia tem uma


interpretação diabólica que o mundo conhecerá se portar bem” e “a inspiração profética
ou a imaginação arrancam a Humanidade da morte e da perdição”, ambas presentes na
obra “O casamento do céu e do inferno”.

Segundo o estudioso Iñigo Sarritugarte, para Blake

El objetivo de todo cambio político y religiosos consiste en la


búsqueda de un nuevo mundo basado en la felicidad universal,
cósmica y mística. De hecho, participó en un círculo de políticos
radicales, entre los que figuraban William Godwin, Tom Paine y la
primera escritora feminista Mary Wollstonecraft.47

Este seu lado radical e revolucionário pode ser percebido em muitos de seus
trabalhados, inspirados na Revolução Francesa. Blake usou sua arte para combater o
Estado e a Igreja, que via como os símbolos da repressão e da corrupção. Os ideais de
liberdade e igualdade o atraíram e ele interpretou a luta revolucionária como um dos

46
SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a
Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 153.
47
SARRIUGARTE, Iñigo. Las alucinaciones mentales de William Blake como Base de su Obra
Literaria y Artística: ¿Genialidad o Locura? Razon y Plabra, n. 40, Agosto/Septiembre 2004.
Disponível em: <http://www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n40/isarri.html>. Acesso em: 21 Ago.
2014.
“O objetivo de toda mudança política e religiosa consiste na busca de um novo mundo baseado da
felicidade universal, cósmica e mística. De fato, participou em um círculo de políticos radicais entre
os quais figuravam William Godwin, Tom Paine e a primeira escritora feminista Mary
Wollstonecraft”. [Tradução nossa]

31
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

meios de alcançar a libertação humana. Inclusive, no ano de 1780 enfrentou um


julgamento por sedição, ao participar de um motim que resultou no incêndio da prisão
de Newgate Gaol e na libertação de prisioneiros.

Por outro lado, há de se considerar a dificuldade em encaixar o pensamento de


Blake em alguma categoria ou escola, visto que escritores radicais como Thomas Paine
e Mary Woolstonecraft partilhavam das ideias racionalistas que Blake fazia questão de
combater em sua arte. Apesar disso, todos estes autores lutavam pela democracia e por
direitos iguais entre os cidadãos. Por mais que tenha vivido na Idade da Razão, Blake
contradiz o espírito de sua época ao buscar outros meios, que não a ciência e o
racionalismo. Ao invés disso, opta por figuras bíblicas e deuses míticos.

Blake se opunha às ideias racionalistas de sua época, para ele, os pensadores


Locke, Newton e Bacon, assim como todo o racionalismo e empirismo, representavam
os grandes inimigos da verdade mística, pois eram responsáveis pela limitação da
percepção e da capacidade criativa. Daí sua defesa da imaginação e o distanciamento do
modelo racional.

Alcides Cardoso dos Santos, estudioso da obra de Blake no Brasil, afirma que

A crítica de Blake ao princípio setecentista da “bela natureza” tem por


fundamento sua crítica à separação entre o homem e sua percepção do
mundo, divisão que gera a crença na natureza como realidade objetiva
e independente de sua percepção pelo ser humano. [...] A cultura
letrada é outro dos pilares do pensamento setecentista criticados por
Blake, sobretudo na concepção um tanto aporética da superioridade do
signo natural em relação ao signo verbal e a contrapartida da
superioridade do produto da inteligência humana. [...] Além da
‘naturalidade’ da imagem e da artificialidade do signo verbal, Blake
também é crítico em relação ao valor atribuído à cultura do livro pelos
neoclássicos, considerando essa forma de materialização da expressão
um símbolo da dominação dos sistemas totalizadores. Ao impor
formas dominantes de pensamento, os livros, escritos, lidos,
comentados e criticados pelas elites culturais, se distanciaram da sua
função profética, segundo Blake, de abrir os mundos eternos e os
olhos imortais do homem aos mundos do pensamento e da imaginação
humanas.48

Ainda considerando o universo intelectual pelo qual Blake transitava por meio
de suas leituras, e que E. P. Thompson julgou ser de grande relevância para o

48
SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a
Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 145-146.

32
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

entendimento do poeta, vale ressaltar os movimentos como o agnosticismo, a alquimia,


a cabala hebraica e a astrologia que perpassaram de maneira intensa o trabalho de
Blake. Jesús Curbelo comenta a relação de Blake com a cabala:

En el caso de la cábala, Blake parece haber heredado de ella su


predilección por las palabras-símbolos, dotadas de poder místico y
representantes de una potencia inmaterial. Saurat argumenta que
Blake debió conocer la Cábala hebraica, muy difundida en Inglaterra a
través de la publicación latina de la Kabbala Denudata, entre 1677 y
1684, y añade como el indicio más notable la inclusión de la llamada
“A los judíos” entre los capítulos I y II de Jerusalem, donde hay
alusiones evidentes a Adam Kadmon, el primer hombre de los
cabalistas. Blake y la cábala coinciden, en primer término, en la
unidad originaria del Hombre y el Universo, representada en la Cábala
por Adam Kadmon y en Blake por Albión y por Jesús.49

Em relação aos clássicos, gregos e latinos, Blake manteve uma relação


contraditória, em que ora se opunha e ora coincidia. Homero, Virgílio, Platão e Cícero
são citados em sua obra com admiração e mais tarde, são associados com a imagem do
Anticristo. Por outro lado, Blake faz um paralelismo entre Sócrates e Jesus: “Anito,
Meleto y Licón creyeron o pensaron que Sócrates era un hombre muy pernicioso. Lo
mismo pensó Caifás de Jesús.”

Ao contrário de outros estudiosos, o historiador marxista Thompson, se


dedicou a explorar como as tradições de pensamento radical influenciaram o poeta e
como ele fez uso de imagens de devoção religiosa e as reinterpretou a fim de atacar a
hipocrisia e a corrupção.

I am pursuing an enquiry into the structure of Blake’s thought and the


character of his sensibility. My object is to identify, once again,
Blake’s tradition, his particular situation within it, and the repeated
evidences, motifs and nodal points of conflict, which indicate his
stance and the way his mind meets the world. To do this involves
some historical recovery, and attention to sources external to Blake –

49
CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha –
Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag67blakex.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
“No caso da cabala, Blake parece ter herdado dela sua predileção pelas palavras-símbolos, dotadas de
poder místico e representante de uma potência imaterial. Saurat argumenta que Blake devia conhecer
a Cabala hebraica, muito difundida na Inglaterra através da publicação latina da Kabbala Denudata,
entre 1677 e 1684, e acrescenta como o indício mais notável a inclusão da chamada “Aos judeus”
entre os capítulos I e II de Jerusalém, onde há alusões evidentes a Adam Kadmon, o primeiro homem
dos cabalistas. Blake e a cabala coincidem, em primeiro lugar, na unidade originária do Homem e o
Universo, representada na Cabala por adam Kadmon e em Blake por Albión e por Jesus”. [Tradução
nossa]

33
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

sources which, very often, he may not have been aware of himself.
For it is necessary to define, first of all, an obscure antinomian
tradition; and then to define Blake’s very unusual, and probably
unique, position within it.50

Thompson relacionou a obra de Blake, suas ideias e linguagem, com grupos


radicais que fizeram parte da Revolução Inglesa de meados do século XVII e que
rejeitaram a igreja oficial, em favor da consciência individual, ou “luz interior”. Uma
das características mais marcantes destas seitas é a negação de qualquer figura de
autoridade, para eles o que comandava era a consciência de cada um. Dentre todas estas
seitas, uma delas se destacou pelo radicalismo extremo: o antinomismo. Os
antinomianos acreditavam que qualquer obediência às leis da igreja e do Estado iria
corromper e destruir a verdadeira fé. Sendo assim, consideravam ser o dever deles
rejeitar qualquer restrição sobre a capacidade do indivíduo e sua consciência, pois isto
configuraria um obstáculo à fé.

‘Antinomian’ was, in the eighteenth century, as often a term of abuse


as of precision. The orthodox hurled the accusation of Antinomianism
at their opponents, very much as, in other times and places,
accusations might be hurled of heresy, anarchism, terrorism or
libertinism. And the objects of such abuse often turn out to be
innocent of any such subversive intentions.51

Outro aspecto importante dos antinomianos era a recusa do direito de julgar da


Igreja, pois esta não deveria condenar ou punir ninguém. Para eles o pecado não era de
todo ruim, uma vez que Deus nos dá a chance de perdoar as pessoas e seus erros. Assim
como fez Blake anos mais tarde, os seguidores desta corrente radical faziam uso da

50
THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The
New Press, 1993, p. XIX.
“Eu estou perseguindo um inquérito sobre a estrutura do pensamento de Blake e do caráter de sua
sensibilidade. Meu objetivo é identificar, mais uma vez, a tradição de Blake, particularmente sua
situação interior, e as evidências, motivos e pontos nodais de conflito, o que indica sua posição e a
forma como o mundo se encontra em sua mente. Para tanto, isso envolve alguma recuperação
histórica, e atenção às fontes externas de Blake - fontes que, muitas vezes, podem ter sido não
conscientes para ele. Portanto, é necessário definir, em primeiro lugar, uma tradição antinomista
obscura; e, em seguida, definir a incomum, e provavelmente única, a posição de Blake dentro dele”.
[Tradução nossa]
51
Ibid., p. 10.
“'Antinomismo' foi, no século XVIII, tanto um termo de abuso como de precisão. Os ortodoxos
lançaram a acusação de antinomismo em seus adversários, muito mais que em outros tempos e
lugares, acusações de heresia, anarquismo, terrorismo ou libertinagem. E os objetos de abuso, muitas
vezes acabaram por ser inocente de tais intenções subversivas”. [Tradução nossa]

34
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

linguagem religiosa para expressar crenças subversivas. Além disso, sua devoção
religiosa, e nisso também coincide Blake, contradiz todas as crenças religiosas uma vez
que afirma ser a Igreja e o Estado “fonte de toda crueldade”.

The Vision of Christ that thou dost see


Is my Vision’s Greatest Enemy…

Both read the Bible day & night,


But thou read’st black where I read white.52

Ainda que a segunda metade do século XVII tenha visto as aspirações das
seitas radicais serem derrotadas, suas crenças foram preservadas e passadas de uma
geração para outra, mantendo os debates e discussões acerca da salvação da alma por
meio do exercício da consciência. Outras seitas radicais, como os Behmenists,
desenvolveram uma tradição literária e seguramente Blake teve acesso a estes
impressos, visto que toma emprestados os mesmos símbolos para manifestar sua visão
radical.

Outro fenômeno importante, destacado por Thompson, foram os dissidentes


destes grupos radicais que, de forma dispersa, deram origem a diferentes grupos e
pequenas igrejas. Em comum eles carregavam o compromisso com a democracia;
podemos destacar os Quakers, Muggletonians e Tryonists que seguem ativos até o
presente momento. Todavia, há vários outros grupos menores que sucumbiram à
perseguição. De modo geral, estas seitas se propagaram com maior veemência entre
imigrantes, comerciantes e artesãos de Londres, ou seja, fora da sociedade educada
dentro do moralismo da Igreja e Blake, sendo um gravurista, se encaixava neste perfil.

Comerciantes e artesãos, segundo Thompson, eram mais suscetíveis a se


tornarem republicanos e odiar as instituições da classe dominante53. Se refletirmos
acerca do movimento que o historiador fez, ao buscar compreender o contexto imediato

52
THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The
New Press, 1993, p. 61.
“A visão de Cristo que vires/É o maior inimigo de minha visão .../Ambos leem a Bíblia dia e noite
/Mas tu lês negro onde eu leio branco”. [Tradução nossa]
53
Entendemos o conceito de classe conforme Thompson: um fenômeno histórico, que unifica uma série
de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência
como na consciência.

35
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

de Blake, ou seja, o ambiente em que ele vivia, percebemos que ao contrário da visão
que nos foi apresentada pelos biógrafos e estudiosos, William Blake não foi um homem
solitário em sua forma de pensar e expressar sua arte. O Blake que nos é apresentado
por Thompson, está integrado a um círculo de pessoas que partilhava das mesmas
crenças e rejeitavam os privilégios e a autoridade, sobretudo da Igreja e do Estado.

Contra o pano de fundo da Dissidência londrina, com sua franja de


deístas e místicos exaltados, William Blake não mais se apresenta
como aquele gênio inculto e excêntrico que deve parecer àqueles que
conhecem apenas a cultura refinada da época. Pelo contrário, ele é a
voz original e autêntica de uma longa tradição popular.54

Nas décadas de 1780 e 1790, estas seitas radicais que estavam praticamente
escondidas devido à repressão, desde a Revolução Inglesa, floresceram novamente
devido à efervescência da Revolução Francesa e seu ideário de liberdade, igualdade e
fraternidade. Com a crise política, a dissidência religiosa passa a se tornar a base da
política revolucionária. O desejo de tomar parte no debate e na ação ardia nas pessoas.

Thompson argumenta que a seita Muggletonian também teve especial


influência sobre Blake. A principal particularidade deste grupo é a crença de que no
Jardim do Éden, a serpente tenha engravidado Eva e assim plantado o mal na raça
humana. Tal ideia pode parecer tola, porém está presente em gravuras e poemas de
Blake. Talvez o mais importante para os Muggletonians fosse a preocupação em rejeitar
a razão, visto que para eles a razão era considerada a arma de Satanás, sendo pior que o
orgulho, a luxúria e a cobiça. Blake proclamou em um de seus provérbios que “Satanás
é o Deus da Razão”. Símbolos como a ‘árvore do conhecimento’ e ‘a queda no Jardim
do Éden’ aparecem na obra dos Muggletonians e de Blake, todavia, não estão
associados à ideia de desobediência ou sexualidade, como no discurso religioso
tradicional. Ao contrário, para os radicais, a tentação de Eva e a queda são símbolos de
conhecimento.

Em 1790, estas ideias eram consideradas extremamente subversivas. O


antinomismo rechaçava a lei, enquanto a classe dominante buscava sua legitimidade por
meio das leis; os Muggletonians negavam a Razão, quando os principais pilares da
sociedade educada se pautavam na ciência e no racionalismo. No final do século XVIII

54
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A árvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 53. V. 1.

36
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

alguns destes grupos, como foi o caso dos Quakers, aceitaram estes princípios a fim de
serem aceitos; porém, outros preferiram se rebelar. Neste contexto, rebelião significa
rejeitar o Iluminismo, ou seja, a ciência e a razão.

Para Blake, el Iluminismo – el poderío de la razón, escudado en la


trinidad profana de Bacon, Newton y Locke (deísmo, cientificismo,
racionalismo), a los que se sumaban otros apóstolos de este
pensamiento como Descartes, Voltaire y Rousseau – constituía una
desviación de la palabra original, consistía en restablecerla mediante
la visión.55

Ao detalhar a forma de pensamento destas seitas radicais, Thompson deixa


claro que a rejeição aos valores iluministas, não era, de forma alguma, uma negação do
conhecimento. Ao se rebelar contra o racionalismo, os rebeldes visavam combater a
hipocrisia, a corrupção e a ganância, em outras palavras, eles rejeitavam a ordem social.
Blake, por exemplo, se colocava contra a lei moral porque acreditava que as pessoas
eram capazes de desenvolver grandes coisas, tinham potencialidades se não fossem
reprimidas. A libertação para Blake era sexual, artística e criativa, diferente de seus
contemporâneos radicais, que em sua maioria desejavam um governo do povo pelo
povo, de forma racional. Blake entendia a liberdade de forma mais ampla e acreditava
que somente a mudança política e social não seria suficiente para operar esta libertação.

Mesmo não estando de acordo com as instituições repressivas e as


desigualdades, Blake enxergava a necessidade de a Humanidade experimentar uma
revelação religiosa e/ou espiritual, a fim de ser verdadeiramente livre. Assim, no
trabalho de Blake, Thompson chega à conclusão de que há uma junção entre as ideias
revolucionárias e o radicalismo racional de Paine e Wollstonecraft, e também as
tradições mais antigas que remontam à Revolução Inglesa.

Há relatos que comprovam que um membro da família de Blake era membro


praticante da Igreja Muggletonian, assim como também se sabe que o poeta e sua
esposa Catherine eram simpatizantes da igreja fundada por Swedenborg, a Nova

55
CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha –
Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag67blakex.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
“Para Blake, o Iluminismo – o poder da razão, escudada na tríade profana de Bacon, Newton e Locke
(deísmo, cientificismo, racionalismo), aos que se somavam outros apóstolos deste pensamento como
Descartes, Voltaire e Rousseau – constituía um desvio original, consistia em restabelecê-la mediante a
visão”. [Tradução nossa]

37
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

Jerusalém. Um dos grandes debates que eram colocados nestas seitas e que também
influenciou Blake é a forma se entendia a divindade de Cristo. Teria Deus concedido a
sua divindade ou toda a humanidade era divina? Sobre esta questão Blake afirmou: “Ele
é o único Deus, e assim sou eu e você também”. Também encontramos esse tema no
poema “The Divine Image”:

To Mercy Pity Peace and Love


All pray in their distress:
And to these virtues of delight
Return their thankfulness.

For Mercy Pity Peace and Love,


Is God, our father dear:
And Mercy Pity Peace and Love,
Is Man his child and care.

For Mercy has a human heart


Pity, a human face:
And Love, the human form divine,
And Peace, the human dress.
Then every man, of every clime,
That prays in his distress,
Prays to the human form divine
Love Mercy Pity Peace.

And all must love the human form,


In heathen, turk, or jew.
Where Mercy, Love & Pity dwell
There God is dwelling too.56

56
THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The
New Press, 1993, p. 150.
“Compaixão, Pena, Paz & Amor,/Todos lhes rezam no seu sofrimento;/E a estas virtudes de tanto
fulgor/Entregam o seu agradecimento./Compaixão, Pena, Paz & Amor/É Deus, nosso pai
adorado,/Compaixão, Pena, Paz & Amor/É o Homem, seu filho amado./Tem Compaixão humano
coração,/E tem a Pena uma face humana,/Amor, a forma divina de eleição/E a Paz, o traje que
irmana./Todo o homem, em todo o clima,/Que, com dor, reza como é capaz,/Reza à forma humana
divina,/Amor, Compaixão, Pena & Paz./A humana forma amar é um dever,/Para os ateus, os turcos,
os judeus;/Compaixão, Amor & Pena, haja onde houver,/Também é lá que encontrareis Deus”.
[Tradução nossa]

38
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

Com o desaparecimento do otimismo revolucionário da década de 1790 e a


repressão desencadeada pela classe dominante contra seus inimigos, os escritos de
Blake se tornaram obscuro e místico, mas vemos que ele conseguiu manter viva a sua
visão divina, mesmo em momentos de dificuldade. Ademais, Blake acreditava que
aqueles que aceitavam o racionalismo e a ciência, mesmo se combinados com as
aspirações revolucionárias, estavam de alguma forma colaborando com o “Reino de
Satanás”. Isso explica a crítica feita a Tom Paine, devido ao seu ateísmo e pontos de
vista materialista; mesmo que ele tenha sido um dos principais responsáveis por
fornecer uma visão de que só a ação humana aliada à liderança revolucionária poderia
mudar o mundo e libertá-lo.

E muitos, como Blake, sentiam-se divididos entre um deísmo racional


e os valores espirituais nutridos por um século no ‘reino interior’.
Quanto, nos anos de repressão, foi publicada A Idade da Razão, de
Paine, muitos devem ter concordado com a anotação de Blake, na
última página do Apologia da Bíblia, do bispo de Llandaff, escrito em
réplica a Paine: ‘Tenho a impressão agora de que Tom Paine é um
melhor cristão do que o bispo.’ Quando encaramos desta forma a
Dissidência57, vemo-la como uma tradição intelectual: desta tradição,
saíram muitas ideias e homens originais. Mas não poderíamos afirmar
que os ‘antigos dissidentes’ estivessem todos dispostos a assumir o
lado popular.58

Em suma, ao lermos o trabalho de Thompson, Witness Against the Beast –


William Blake and the moral Law, distanciamos a imagem de excêntrico religioso e
místico totalmente isolado do mundo real que foi, ao longo dos anos, construída em
relação à Blake. Pelo contrário, enxergamos a coragem e o enfrentamento das pessoas
comuns em resistir à opressão que eles eram impostos pelas instituições, sobretudo pelo
Estado e pela Igreja com suas leis morais.

Por mais que Blake tenha compartilhado do pensamento das tradições


estabelecidas no período da Revolução Inglesa, conforme já discutimos, ele foi um
artista que não lutou para defender uma determinada igreja ou seita, sua oposição era à

57
Ao fazer uso do termo Dissidência, Thompson se refere ao conjunto de seitas religiosas desvinculadas
da Igreja Anglicana.
58
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A árvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 53-54. V. 1.

39
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

classe dominante e à opressão. Podemos afirmar que a defesa e luta de Blake era por
liberdade, igualdade e fraternidade.

Em seus últimos anos Blake se dedicou ao término de duas obras de caráter


espiritual “Milton” e “Jerusalém”. Em 1821 começou a elaboração de dois grandes
projetos, vinte e duas gravuras para ilustrar o “Livro de Jó” e várias aquarelas para a
“Divina Comédia”, de Dante Alighieri, porém, surpreendido pela morte em agosto de
1827, devido a uma icterícia grave, este último trabalho ficou incompleto. Este último
trabalho lhe rendeu muito esforço e dedicação, visto que Blake aprendeu a língua
italiana a fim de aprofundar melhor no universo de Dante.

[...] la heterodoxia blakeana está bien distante del catolicismo


dantesco (no tan ortodoxo como puede parecer a simple vista, si
recordamos que en varias ocasiones Dante reformuló dogmas
teológicos y nociones políticas para acomodarlos a su cosmovisión
particular). No obstante, Blake fue un fuerte admirador de Dante, al
grado de aprender italiano para poder leerlo en el original y conseguir
indagar mejor en la esencia de la Divina Comedia, que habría de
ilustrar de manera peculiar durante los últimos años de su vida. Esto
obedece, de seguro, al detalle de haber observado en él y en su obra la
dramática visión de las pasiones humanas y una representación
también visionaria de los mundos espirituales, tan familiar con la suya
en lo que Eliot denominó una armazón de mitología, teología y
filosofía.59

Conforme mencionamos, Blake não alcançou grande popularidade entre seus


contemporâneos, mas os pré-rafaelitas, dentre eles Dante Gabriel Rossetti, foram os
primeiros cultores de sua arte. Mais tarde, também ganharia destaque entre os
simbolistas e os surrealistas, que admiraram a relação entre erotismo e misticismo
contida em sua obra. Vale ressaltar que atualmente há uma grande bibliografia sobre a
vida e a obra de Blake. Em 1863 foi publicada sua primeira biografia, por Alexander

59
CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha –
Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag67blakex.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
“[…] a heterodoxia blakiana está bem distante do catolicismo dantesco (não tão ortodoxo como pode
parecer a simples vista, se recordarmos que em várias ocasiões Dante reformulou dogmas teológicos e
noções políticas para acomodá-los a sua cosmovisão particular). Não obstante, Blake foi um forte
admirador de Dante, ao grau de aprender italiano para poder lê-lo no original e conseguir indagar
melhor na essência da Divina Comédia, que teria de ilustrar de maneira peculiar durante os últimos
anos de sua vida. Isso obedece, seguramente, ao detalhe de ter observado nele e em sua obra a
dramática visão das paixões humanas e uma representação também visionária dos mundos espirituais,
tão familiar com a sua que Eliot denominou uma estrutura de mitologia, teologia e filosofia”.
[Tradução nossa]

40
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

Gilchrist, entitulada “Vida de William Blake”. Mais tarde, autores consagrados como
Algernon Charles Swinburne, W. B. Yeats e T. S. Eliot também se dedicariam a
escrever sobre o poeta. Este último afirmou, em The Sacred Wood, que

La concentración resultante de una armazón de mitología, teología y


filosofía es una de las razones por las que Dante es un clásico y Blake
sólo un poeta de genio. […] Blake estaba dotado de una capacidad
considerable para la comprensión de la naturaleza humana, con un
apreciable y original sentido del lenguaje y de la música del lenguaje y
con el don de una visión alucinada.60

Outra referência marcante à obra de Blake, veio do vocalista norte-americano


Jim Morrison, que foi um ávido leitor do poeta, e escolheu o nome de sua banda “The
Doors” inspirado no verso: “If the doors of perception were cleansed, every thing would
appear to man as it is, infinite”. Já Harold Bloom, crítico literário americano, considera
que o poeta é um visionário e explica:

Por “visionario” entiendo un modo de percepción por el cual objetos y


personas son vistos con una intensidad amplificado con dejos
proféticos. Con frecuencia visionaria, la poesía intenta domesticar al
lector para llevarlo a un mundo donde todo lo que mira tiene un aura
trascendental.61

Não é possível dissociar a poesia de Blake de sua obra como artista gráfico e
plástico, pois ambas as coisas são complementares. As imagens elaboradas para
acompanhar seus textos não devem ser consideradas como meras ilustrações.

Suas palavras não são escritas e dispostas na chapa tipográfica; antes,


reconstituem o traço autoral do seu criador, evidenciando o esforço de
registrar sua letra, sua inusitada pontuação, sua grafia ora cursiva ora
romana. Por outro lado, não se trata apenas de imagem inscrita e
gravada na chapa de cobre, uma vez que as palavras registram,

60
CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha –
Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag67blakex.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
“A concentração resultante de um quadro de mitologia, teologia e filosofia é uma das razões pelas
quais Dante é um clássico e Blake só um poeta de gênio. [...] Blake estava dotado de uma capacidade
considerável para compreensão da natureza humana, com um apreciável e original sentido da
linguagem e da música da linguagem e com o dom de uma visão alucinada”. [Tradução nossa]
61
BLOOM, Harold. Cómo leer y por qué. Colômbia: Norma, 2000, p. 89.
“Por “visionário” entendo um modo de percepção pelo qual objetos e pessoas são vistos com uma
intensidade amplificada com indícios proféticos. Com frequência visionária, a poesia tenta domesticar
ao leitor para leva-lo a um mundo onde tudo o que olha tem uma aura transcendental”. [Tradução
nossa]

41
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

alteram, modificam e corrigem a informação visual de modos sempre


desafiadores, dificilmente previsíveis. Em vista disso, tem-se nas
lâminas iluminadas um conjunto semiótico múltiplo, em que palavra e
imagem são pares de uma dança de significações que se alteram, que
se modificam, em cada ato de leitura, diante do olhar de cada
espectador/leitor.62

A maioria de suas pinturas, muitas delas criadas para ilustrar seus próprios
poemas, eram impressões feitas de placas de cobre que ele cauterizava por meio de um
método que lhe havia sido revelado através de um sonho e que ele denominou como
“gravura iluminada”. Ele e Catherine coloriam todas as impressões com aquarela, o que
fazia de cada impressão uma obra de arte única.

La técnica se basa en grabar en la misma plancha el texto y las


ilustraciones. En esencia, era una variante del aguafuerte, pero
mientras que en esta técnica la estampación se realiza gracias al ácido
que graba una plancha metálica, en la de Blake se invertía el
procedimiento y se empleaba el ácido para grabar las partes vacías y
dejar el dibujo en relieve. Posteriormente, las páginas eran retocadas a
mano, con pincel y acuarela, por lo que cada copia podía tener algunas
diferencias con el resto.63

Segundo Alcides Santos, o uso das placas de cobre também era uma forma
encontrada por Blake para manter o potencial desestabilizador de seus poemas
iluminados e também sua materialidade.

Longe de querer controlar a leitura que seus poemas teriam, a


manutenção da materialidade dos poemas iluminados garante a
perpetuação da força desconcertante dessa forma de textualidade que
utiliza letras manuscritas, arabescos, microdesenhos, pontuação avessa
à sintaxe, estrutura centrípeta, iluminuras, texto escrito e imagem em
proporções diferentes em cada placa/página. O fato de a grande
maioria das edições e traduções de seus poemas iluminados
simplesmente desconsiderar essa complexidade formal, não levando

62
TAVARES, Enéias Farias. “The William Blake archive”: repensando o acervo físico e o arquivo
digital. Letras, Santa Maria, n. 46, Jun. 2013. Disponível em: <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-
2.2.2/index.php/letras/article/view/11728/7159>. Acesso em: 01 Ago. 2014.
63
SARRIUGARTE, Iñigo. Las alucinaciones mentales de William Blake como Base de su Obra
Literaria y Artística: ¿Genialidad o Locura? Razon y Plabra, n. 40, Agosto/Septiembre 2004.
Disponível em: <http://www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n40/isarri.html>. Acesso em: 21 Ago.
2014.
“A técnica se baseia em gravar na mesma placa o texto e as ilustrações. Em essência, era uma variante
da água-forte, porém, nesta técnica a impressão se realiza graças ao ácido que grava uma placa
metálica, na de Blake o procedimento de invertia e se empregava o ácido para gravar as partes vazias
e deixar o desenho em relevo. Posteriormente, as páginas eram retocadas a mão, com pincel e
aquarela, por isso cada cópia podia ter algumas diferenças com o resto”. [Tradução nossa]

42
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

em conta as múltiplas relações dessas inovações formais com as


instâncias simbólica e estrutural do poema, traduz, a nosso ver, uma
forma de leitura de sua poesia iluminada que contradiz princípios
básicos de sua poesia.64

Os temas de suas gravuras e pinturas giravam em torno de anjos, arcanjos,


apóstolos, profetas; tudo isso interpretado por meio de suas visões. As figuras de
inspiração cristã não eram como na iconografia tradicional. Ademais, também
encontramos imagens relacionadas às lendas e mitos da antiguidade clássica. No geral,
estas imagens são consideradas pelos estudiosos como ocultas e de difícil interpretação.
Um dos objetivos de Blake era romper a aparência enganosa do mundo e alcançar a
autêntica verdade por meio de sua arte.

A principal exposição de seu trabalho ocorreu em Londres, no ano de 1978, em


ocasião de seu aniversário de morte de 150 anos. Essa foi uma das únicas exposições
dedicadas exclusivamente a Blake, e sem dúvida, a maior delas.

En abril de 1978, la Tate Gallery de Londres expuso (con motivo del


150 aniversario de su muerte) una muestra integrada por más de
trescientas obras, entre las que se incluían pinturas, grabados,
xilografías, impresiones en color e ilustraciones para libros propios y
ajenos. La oportunidad, que pudo aprovechar, se prestaba para seguir
los esfuerzos de Blake tras una especie nueva de expresión que,
aunque parcialmente fallida e incapaz de generar una corriente seria
de seguidores, impresiona por su variedad y llama la atención sobre
las múltiples tentativas del genio para hallar el medio adecuado a un
modo personal de sentir.65

Uma de suas principais pinturas, reproduzida posteriormente por vários artistas


é “The Ancient of Days” ou em português, O Ancião dos Dias. Originalmente publicado
como o frontispício de seu trabalho Europe a Prophecy, em 1794. A imagem mostra
Urizen, o Ancião dos Dias, agachado entre nuvens e sua mão estendida carrega um

64
SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a
Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 24-25.
65
BLAKE, William. Obra Completa en Poesía. Barcelona: Libros Río Nuevo, 1980, p. 11.
“Em abril de 1978, a Tate Gallery de Londre expôs (em comemoração aos 150 anos de sua morte)
uma mostra integrada por mais de trezentas obras, entre elas se incluíam pinturas, gravuras,
xilogravuras, impressões em cor e ilustrações para livros próprios e alheios. A oportunidade, que pode
aproveitar, se prestava para seguir os esforços de Blake sob uma espécie nova de expressão que, ainda
que parcialmente falida e incapaz de gerar uma corrente série de seguidores, impressiona por sua
variedade e chama a atenção sobre as múltiplas tentativas do gênio para encontrar o meio adequado a
um modo pessoal de sentir”. [Tradução nossa]

43
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

compasso em direção à escuridão. Como Blake criou seu próprio sistema teológico,
inventou uma metodologia para que pudesse ser mais bem compreendido, Urizen, por
exemplo, é o tempo.

Europe a Prophecy, object 1 (Bentley 1, Erdman i, Keynes i) “Europe a Prophecy”. Disponível


em: <http://www.blakearchive.org/exist/blake/archive/object.xq?objectid=europe.k.illbk.01&java=no>

Sobre a relação entre poema e pintura, Jesús Curbelo comentou:

[...] a mi juicio, la doble condición de poeta y pintor de la cual gozaba


el cantor de la inocencia y de la experiencia, antecesor en años de los
imaginistas y de la gran relevancia conferida por ellos al elemento
pictórico en la lírica, pues sus poemas están muy concentrados en la
imagen visual, y llegan, algunas veces a funcionar como su propia
ilustración.66

Atualmente quem deseja pesquisar acerca de Blake e sua vasta obra, seja como
escritor, gravador ou pintor, conta com um arquivo digital completo, fruto de um
projeto acadêmico pioneiro. Os idealizadores desse projeto foram os acadêmicos Morris

66
CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha –
Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag67blakex.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
“[…] a meu juízo, a dupla condição de poeta e pintor da qual gozava o cantor da inocência e da
experiência, antecessor em anos dos imaginistas e da grande relevância conferida por eles ao elemento
pictórico na lírica, pois seus poemas estão muito concentrados na imagem visual, e chegam, algumas
vezes a funcionar como sua própria ilustração”. [Tradução nossa]

44
Capítulo II:
William Blake: Um estudo biográfico

Eaves, Joseph Viscomi e Robert Essick. O objetivo foi reunir toda a produção que
estava dispersa em inúmeras publicações, que muitas vezes dissociavam o trabalho do
poeta e do artista. Além disso, foi feito um esforço no sentido de disponibilizar os textos
originais de Blake, sem as alterações que foram feitas na maioria das publicações.

Na dimensão textual, também há um esforço de correção gramatical,


estabelecendo pontos em vez de vírgulas, aspas para indicar falas de
personagens, e também a utilização de letras maiúsculas no início de
períodos, todos elementos problematizados por Blake em sua escrita
iluminada.67

*******

Tentamos por meio deste estudo biográfico responder as mesmas perguntas que
Thompson se colocou ao escrever sobre Blake: “Who was Blake? Where do we place
him in the intellectual and social life of London between 1780 and 1820? What
particular traditions were at work within his mind?”68 Entendemos que sem estes
esclarecimentos não é possível analisar sua obra, pois ela reflete o universo do autor,
como sujeito histórico, inserido em um determinado contexto.

67
TAVARES, Enéias Farias. “The William Blake archive”: repensando o acervo físico e o arquivo
digital. Letras, Santa Maria, n. 46, Jun. 2013. Disponível em: <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-
2.2.2/index.php/letras/article/view/11728/7159>. Acesso em: 01 Ago. 2014.
68
THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The
New Press, 1993, p. XII.
“Quem era Blake? Onde é que vamos colocá-lo na vida intelectual e social de Londres entre 1780 e 1820?
Quais tradições particulares estavam em seu trabalho e dentro de sua mente?”. [Tradução nossa]

45
CAPÍTULO III

CANÇÕES DA INOCÊNCIA E
DA EXPERIÊNCIA

Os livros não são coisas absolutamente mortas;


contém uma espécie de vida em potência, tão
prolífica quanto a da alma que os engendrou.

John Milton
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

EM 1789 É PUBLICADA a obra as Canções da Inocência, que ganhou destaque e


importância por diversos motivos, dentre eles a forma como Blake, com a ajuda de sua
esposa Catherine, gravou o texto e as ilustrações em placas de cobre. O método
utilizado foi inventado pelo poeta e era à base de cera e ácido. Os desenhos eram
coloridos um a um, por meio de um processo artesanal. Devido à complexidade de sua
produção, a primeira edição do livro contou com menos de três dezenas de exemplares.

69

Outro aspecto relevante desta obra é a visão religiosa de Blake, que aparece
pela primeira vez, visto que o primeiro e único trabalho anterior às Canções da
Inocência foi Esboços Poéticos, obra que reuniu poemas que foram escritos quando o
poeta tinha entre doze e vinte anos de idade. O aspecto místico, que se mistura à própria
religiosidade, que encontramos em sua escrita está relacionado com os seus sonhos
visionários, tal como abordamos no capítulo anterior.

69
http://www.gailgastfield.com/innocence/soi.html

47
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

Ao lermos as Canções da Inocência vislumbramos este mundo interior de


Blake, rodeado por visões de anjos e também por suas leituras da Bíblia, de
Swedenborg e de outros filósofos pelos quais nutria admiração. Vizioli nos adverte a
não cairmos no equívoco de interpretar esta obra como mais uma obra didático-
religiosa, tal como era comum naquele período.

[...] a associação de características infantis (como o ritmo bem


marcado, as repetições constantes, as aliterações óbvias e o
vocabulário simples) com aspectos adultos (como o perfeito domínio
da forma e as sugestivas implicações simbólicas) mostra que o autor
visava a um público bem mais amplo.70

O mundo da inocência, descrito por Blake, está diretamente relacionado à


natureza e à renúncia cristã. Há uma identificação entre as imagens de Cristo, o Bom
Pastor, o artista, o poeta, o homem adulto e a criança – numa espécie de união mística.
Desta forma, o homem se enxerga na figura da criança, que por sua vez se confunde
com o cordeirinho, o Menino Jesus.

Apesar de vislumbrar este reino de felicidade, com a presença do Cordeiro de


Deus, que se sacrificou a fim de salvar a todos, Blake não deixa de mostrar a existência
da maldade entre os homens. No poema “O Limpa-Chaminés” vemos a criança –
símbolo da inocência – se deparar com a opressão e o sofrimento. Contudo, apesar da
dor, há por trás um Universo de amor e caridade.

Ao morrer minha mãe, eu era criancinha;


E meu pai me vendeu quando ainda a língua minha
Dizia “vale-dor!” de “varredor” não fujo,
Pois limpo-chaminés, e sigo sempre sujo.

Chorou Tom Dacre ao lhe rasparem o cabelo,


Cacheado como um cordeirinho. E eu disse ao vê-lo:
“Não chores, Tom! Porque a fuligem não mais deve
Manchar, como antes, teu cabelo cor de neve.”

E ele ficou quietinho; e nessa noite, então,


Enquanto ele dormia, teve uma visão:

70
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 4.

48
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

Viu Dick, Joe, Ned e Jack, - e mil colegas mais, -


Encerrados em negros caixões funerais.

E um Anjo apareceu, com chave refulgente,


E abriu os seus caixões, soltando-os novamente;
E correm na verdura, a rir, para o arrebol,
E se banham num rio e reluzem ao sol.
Brancos e nus, sem mais sacolas e instrumentos,
Eis que sobem às nuvens, brincam sobre os ventos;
E esse Anjo disse a Tom que, se ele for bonzinho,
Terá Deus como pai, e todo o seu carinho.

E assim Tom despertou; e, antes do sol raiar,


Com sacolas e escovas fomos trabalhar.
Feliz, Tom nem sentia o frio matinal;
Quem cumpre o seu dever não teme nenhum mal.71

A criança órfã do poema, além de aceitar de forma resignada os infortúnios do


trabalho pesado, ainda auxilia os companheiros em igual situação, tentando confortá-
los. Devemos lembrar que uma das piores consequências da Revolução Industrial recai
sobre o trabalho. Como afirma Thompson, em A Formação da Classe Operária Inglesa
II – A maldição de Adão:

Não foram nem a pobreza, nem a doença os responsáveis pelas mais


negras sombras que cobriram os anos da Revolução Industrial, mas

71
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 19.
“When my mother died I was very young,/And my father sold me while yet my tongue/Could scarcely
cry 'weep! 'weep! 'weep! 'weep!"/So your chimneys I sweep & in soot I sleep./There's little Tom
Dacre, who cried when his head/That curled like a lamb's back, was shaved, so I said,/Hush, Tom!
never mind it, for when your head's bare,/You know that the soot cannot spoil your white hair."/And
so he was quiet, & that very night,/As Tom was a-sleeping he had such a sight!/That thousands of
sweepers, Dick, Joe, Ned, & Jack,/Were all of them locked up in coffins of black;/And by came an
Angel who had a bright key,/And he opened the coffins & set them all free;/Then down a green plain,
leaping, laughing they run,/And wash in a river and shine in the Sun./Then naked & white, all their
bags left behind,/They rise upon clouds, and sport in the wind./And the Angel told Tom, if he'd be a
good boy,/He'd have God for his father & never want joy./And so Tom awoke; and we rose in the
dark/And got with our bags & our brushes to work./Though the morning was cold, Tom was happy &
warm;/So if all do their duty, they need not fear harm”.

49
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

sim o próprio trabalho. Podemos observar este fato através da


experiência pessoal de Blake, artesão por formação.72

Ao analisar o poema, Vigário esclarece em sua dissertação que igual a criança


que foi vendida pelo pai após a morte da mãe, muitas crianças passavam por situação
semelhante.

[...] muitas dessas crianças eram vendidas pelos próprios pais, sendo
que quanto mais novas fossem mais alto seria o seu preço. Algumas
começavam a
trabalhar aos quatro ou cinco anos, mas a maior parte iniciava a
profissão entre os seis e oito anos de idade. A maioria desses meninos
era originária da classe trabalhadora, havendo também alguns filhos
ilegítimos de pessoas das classes média e alta. Vários deles eram
crianças das workhouses que as encaminhavam para este trabalho ao
mesmo tempo em que se viam livres da responsabilidade de sustentá-
las. Havia também aqueles que eram “alugados” por um tempo
determinado. Além disso, havia crianças que eram roubadas/raptadas e
aquelas que eram aliciadas para exercer a profissão.73

Ainda pensando na questão do trabalho, especificamente o trabalho infantil,


Thompson nos chama atenção ao fato deste não ser uma novidade na Inglaterra, apesar
de ter se intensificado entre 1780 e 1840.

A criança era uma parte intrínseca da economia industrial e agrícola


antes de 1780, e como tal permaneceu até ser resgatada pela escola.
Certas ocupações – como a dos limpadores de chaminés ao a dos
garotos empregados em navios – eram provavelmente piores do que as
funções mais árduas desempenhadas nas primeiras fábricas; um órfão
entregue como “aprendiz” pela paróquia a um Peter Grimes ou a um
carvoeiro bêbado, em algum “antro”, estava submetido a um
tratamento cruel, num isolamento ainda mais terrível.74

De maneira didática, devido à linguagem e a forma, Blake nos apresenta a


exploração humana e as tensões sociais de seu tempo. O eu-lírico, até então, não tem
consciência de sua exploração, ele só vê o dever e a obediência. Ele se identifica com as

72
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 346. V.
2.
73
VIGÁRIO, Sílvia Manuela Pereira. Crianças sem Infância: O Trabalho Infantil na Indústria Têxtil e
os Limpa-Chaminés (1780-1878). 2004. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras e Ciências
Humanas, Universidade do Minho, Braga, 2004, f. 90-91.
74
THOMPSON, 2002, op. cit., p. 203.

50
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

imagens religiosas e não o cristianismo instituído; ainda não há uma percepção crítica
da realidade, como encontraremos posteriormente nas Canções da Experiência.

Naquela época, os limpa-chaminés apregoavam os seus serviços pelas


ruas gritando “Sweep! Sweep!” – o que, em português, equivaleria
provavelmente ao brado de “varredor!” Como o narrador do poema
era ainda muito criança, tinha dificuldade em pronunciar aquela
palavra, transformando-a em “weep! Weep!”, “chora! Chora!”, numa
espécie de ironia inconsciente a respeito de sua triste condição. Para
captar pelo menos em parte essas conotações, a tradução substituiu o
termo “varredor” por “vale-dor”, que reproduz a pronúncia infantil e
ressalta, ao mesmo tempo, a ideia de dor e sofrimento.75

Sobre esta profissão, Duarte esclarece que os limpadores de chaminés eram


crianças pequenas, aprendizes de mestres limpadores de chaminés, empregados para
subir as estreitas e sinuosas passagens das chaminés e limpar a acumulação de fuligem.
Neste sentido, eles funcionavam como “escovas humanas”.

Na segunda estrofe do poema, Blake menciona que o cabelo de Tom Dacre foi
raspado. Tal fato era comum entre os limpadores de chaminés, pois assim não
acumulariam fuligem no cabelo. O uso de bonés também auxiliava estes meninos,
protegendo os olhos e a boca do contato direto com a fuligem.

No sonho de Dacre, na terceira estrofe, ele viu seus amigos em caixões e em


seguida presenciou a chegada de um anjo que os libertou e assim eles puderam se
banhar no rio, onde reluzia o sol. Blake, não vê a morte do corpo físico como algo
definitivo, e sim como uma passagem do mundo terreno para o mundo das almas; o
retorno à eternidade.

O fato das crianças se banharem no rio pode ser entendido como uma
necessidade que eles tinham de se limparem de toda a fuligem e ferida. Sabe-se que
estes meninos, limpadores de chaminés, tinham uma higiene precária e raramente
trocavam suas vestes, desta forma, viviam extremamente sujos e o acúmulo de fuligem
somado aos tombos que tomavam durante o trabalho, resultavam em inúmeras feridas e
um aspecto extremamente sujo. Eram comum que dormissem sobre as fuligens retiradas
das chaminés.

75
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 53.

51
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

A forma do poema é o quarteto, a forma mais comum de estrofe; e a rima


segue a estrutura AABB. Essa escala poética é bastante semelhante à poesia popular de
caráter didático. Além dos temas da exploração humana, das tensões sociais, a
submissão, a resignação e a renúncia cristã, temos a interpretação de Cristo como
Cordeiro de Deus, “aquele que tira o pecado do mundo” 76 e a criança como a
encarnação da inocência natural, ou seja, aquela que não foi corrompida pela sociedade.

Blake compartilha do pensamento de Rousseau, que inspirou a muito


românticos, no que se refere à ideia de que o homem nasce puro e que a sociedade que é
responsável por sua perversão. Daí, sua visão da infância, que enxerga na criança o ser
livre de pecados, como Cristo.

O que distingue Rousseau e o transforma em fonte inspiradora da


escola romântica é o seu profundo pessimismo no tocante à sociedade
e à civilização. Ele não acredita nem em uma nem em outra,
estabelecendo o postulado de uma natureza humana primitiva, que vai
sendo corrompida pela cultura. Mas não só ela, como também a
propriedade, fonte da desigualdade entre os homens, contribuem para
que o ser originalmente puro e inocente se perverta no contexto da
civilização e da criação.77

Vale ressaltar que este trabalho de limpador de chaminés era mal visto na
Inglaterra daquela época, pois quem se dedicava a esta tarefa normalmente eram
crianças ou então, moradores de rua.

O trabalho dos limpadores de chaminés era mal visto na sociedade


inglesa industrial por ser também uma das ocupações exercidas
ocasionalmente por vagabundos, conforme considerou Heather Glen.
De acordo com essa autora, o limpador de chaminés também era uma
figura perturbadora, pois a natureza sazonal do trabalho dos
limpadores de chaminés, o fato de que eles perambulavam pelas ruas
anunciando e pedindo por trabalho, fazia com que freqüentemente eles
passassem a mendigar ou praticar crimes.78

76
Referência ao texto bíblico, especificamente o evangelho de João, no versículo 29 do capítulo 1.
77
GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 266.
78
DUARTE, Flávia M. G. “Inocência” e “Experiência” na obra do poeta e gravador William Blake
(1789 – 1794): o Limpador de Chaminés como representação da sociedade industrial. Anais do XXVI
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA ANPUH: 50 anos, São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011.
Disponível em: www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300847203_ARQUIVO_texto_
anpuh_2011.pdf. Acesso em: 21 Ago. 2014.

52
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

Até então, a resignação e a submissão eram para Blake a melhor forma de lidar
com os males que a sociedade impunha aos mais fracos, pois a verdadeira felicidade era
aquela que estava no reino dos céus, junto ao Cordeiro de Deus, que jamais abandonaria
aqueles que “foram bonzinhos”.

Os poemas da inocência têm as crianças, as suas brincadeiras e risos e


o seu comportamento, que é retratado de forma semelhante ao
cordeiro, como inspiração. A obra como um todo prega a onipresença
de Deus e dos anjos da guarda. Apesar dos sofrimentos retratados ao
longo da obra como o do “menino negro” e do “limpador de
chaminés” a mensagem da obra é justamente a transcendência desse
sofrimento, por meio do conforto e calor da fé.79

No entanto, com a Revolução Francesa e as ideias de luta por liberdade e


transformação, tal interpretação deixou de ser satisfatória para o poeta. Com a
contradição entre a postura submissa e o ideal de luta, Blake viu a necessidade de
reinterpretar a figura de Cristo, a fim de reconciliar sua visão religiosa com a
Revolução. Sendo assim, como elucida Vizioli, “Cristo não mais deveria encarnar a
submissão, mas a revolta; e o seu símbolo não mais deveria ser o Carneiro, porém, o
Tigre”.80 Além disso, era necessário compreender a questão da presença do mal. Como
pode haver conflito se Jesus é a perfeição? Segundo o argentino Borges,

[...] ao longo da obra de Blake, ao longo de suas nebulosas


mitologias, há um problema que sempre preocupou os pensadores
filosóficos, a ideia do Mal, a dificuldade de reconciliar a ideia de um
Deus onipotente e benévolo com a presença do Mal no mundo.
Naturalmente, ao falar do Mal penso não apenas na traição, na
crueldade, mas também na presença física do Mal: nas doenças, na
velhice, na morte, nas injustiças que todo homem tem de suportar e
nas diversas formas de amargura que achamos na vida.81

A imagem do Tigre, ao contrário da imagem do Carneiro, é o símbolo da


revolta, representa a visão do adulto experiente que conhece o sofrimento. O Carneiro,
por sua vez, era a visão infantil – inocente e alheia à realidade. Em 1794, cinco anos

79
DUARTE, Flávia M. G. “Inocência” e “Experiência” na obra do poeta e gravador William Blake
(1789 – 1794): o Limpador de Chaminés como representação da sociedade industrial. Anais do XXVI
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA ANPUH: 50 anos, São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011.
Disponível em: www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300847203_ARQUIVO_texto_
anpuh_2011.pdf. Acesso em: 21 Ago. 2014.
80
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 5.
81
BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 216.

53
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

após a primeira publicação de Canções da Inocência, chegaram ao público as Canções


da Experiência.

82

Nas Canções da Experiência Blake abandona completamente a postura


resignada da criança e nos apresenta a visão daquele que luta e se revolta contra as
injustiças impostas pelas instituições que espalham a repressão, a Igreja e o Estado.

Cristo passa a representar o próprio Tigre, - não o animal, mas um tigre


arquetípico, platônico e eterno.

Tigre, tigre, flamante fulgor


Nas florestas de denso negror,
Que olho imortal, que mão poderia
Te moldar a feroz simetria?

Em que altura ou abismo sem par

82
http://matthewsalomon.wordpress.com/2007/11/28/william-blake-the-tyger/

54
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

Ardeu o fogo de teu olhar?


Com quais asas sobe ele ao que clama?
Quais as mãos que seguram a chama?

Qual ombro poderia, ou qual arte,


Essas fibras do peito forjar-te?
E, ao pulsar desse tu coração,
Que pés horrendos, que horrenda mão?

Qual o martelo? Qual a corrente?


Que fornalha fundiu tua mente?
Qual a bigorna? Os punhos são quais,
Que atenazam terrores mortais?

Quando os astros, inermes de espanto,


Salpicaram os céus com seu pranto,
Por acaso sorriu teu obreiro?
Quem te fez, fez também o Cordeiro?

Tigre, tigre, flamante fulgor


Nas florestas de denso negror,
Que olho imortal, que mão ousaria
Te moldar a feroz simetria?83

Igual ao Limpa-Chaminés, o poema O Tigre também foi escrito em forma de


quarteto e cada verso contém quatro sílabas fortes, com esquema de rimas AABB. Nele,
Blake se questiona sobre como é possível um Deus onipotente e misericordioso ter
criado o tigre e o cordeiro; sendo que o segundo seria devorado pelo primeiro. A

83
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 27.
“Tyger Tyger, burning bright,/In the forests of the night;/What immortal hand or eye,/Could frame thy
fearful symmetry?/In what distant deeps or skies./Burnt the fire of thine eyes?/On what wings dare he
aspire?/What the hand, dare seize the fire?/And what shoulder, & what art,/Could twist the sinews of
thy heart?/And when thy heart began to beat,/What dread hand? & what dread feet?/What the
hammer? what the chain,/In what furnace was thy brain?/What the anvil? what dread grasp,/Dare its
deadly terrors clasp!/When the stars threw down their spears/And water'd heaven with their tears: Did
he smile his work to see?/Did he who made the Lamb make thee?/Tyger Tyger burning bright,/In the
forests of the night:/What immortal hand or eye,/Dare frame thy fearful symmetry?”

55
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

estrutura do poema está permeada por perguntas retóricas. Novamente é colocada a


problemática da presença do mal. Sobre isso, Curbelo comenta em seu estudo:

Blake no deseaba salvar los fenómenos, ni salvar las apariencias; era –


y es – un teórico de la salvación de la influencia poética y, con ella,
del hombre en su eterna lucha por crecer espiritualmente en un
universo regido por un Dios a primera vista justo, pero en el cual
subyace un enigma a descifrar: la existencia – y muchas veces la
preponderancia – del mal.84

Seria este um mundo um vale de lágrimas como afirma o cristianismo ou,


como acreditava Leibniz, vivemos no topo da pirâmide, ou seja, no paraíso? Segundo
Borges, Blake tentou responder esta pergunta ao decorrer de toda sua obra, mas não
chegou a uma solução definitiva. Dentre todos os seus escritos, é nas Canções da
Inocência e da Experiência que este debate aparece de forma mais clara.

Blake queria acreditar na existência de um Deus perfeito, todo-poderoso;


todavia, há coisas que queria que fossem de outra forma, como o sofrimento, a
desigualdade e tudo aquilo que envolve o mal. Para tanto, desenvolveu a seguinte teoria,
inspirado nos gnósticos, pensadores dos primeiros séculos da era cristã, que acreditavam
que a Terra teria sido criada por um deus que é reflexo do reflexo de outros deuses mais
elevados:

Blake, ao longo de sua obra, distingue o deus Criador, que seria o


Jeová do Antigo Testamento – aquele que aparece nos primeiros
capítulos do Pentateuco, no Gênese -, de um deus muito mais elevado.
Então, segundo Blake, teríamos a Terra criada por um deus inferior, e
esse deus é o que impõe os dez mandamentos, a lei moral, e depois
[teríamos] um deus muito superior que envia Jesus Cristo para nos
redimir. Quer dizer, Blake estabelece uma oposição entre o Antigo
Testamento e o Novo testamento, de modo que para Blake o deus
criador do mundo seria o que impõe as leis morais, isto é, as
restrições, o não farás tal coisa, o não farás tal outra. E depois Cristo
vem nos salvar dessas leis.85

Blake concluiu que o mundo em que vivemos, obra de um deus inferior, é


alucinatório e que somos o tempo todo iludidos por nossos sentidos, que são
instrumentos imperfeitos. Sendo assim, a única forma de não nos deixar enganar pelos

84
CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha –
Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag67blakex.htm>. Acesso em: 21 Ago. 2014.
85
BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221.

56
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

sentidos seria purificando as “portas da percepção”, pois desta forma seríamos capazes
de ver as coisas como elas são: infinitas.

O poeta acredita que o Universo está em nós, o “universo vegetal” e que há


dois mundos. Um dos mundos seria o Paraíso, o mundo da imaginação criadora; e o
outro é o mundo em que vivemos, onde somos o tempo todos enganados por nossos
sentidos.

Blake dizia que, se observava o nascer do sol, o que via na realidade


era uma espécie de libra esterlina que vai se elevando no céu. Mas, em
compensação, se ele via ou se pensava na aurora com seus olhos
espirituais, então via hostes, numerosas hostes luminosas de anjos. E
disse que o espetáculo da natureza apaga toda a inspiração nele.86

A visão que Blake nutria em relação à natureza se opõe àquela comumente


encontrada entre os poetas românticos, como Wordsworth, que via a paisagem natural
como um templo a ser observado e admirado, de forma tão exaltada e reverencial que
chega a ser interpretada como uma divindade, em alguns poemas. Para eles, o apego à
natureza está relacionado ao seu poder purificador; ideia da qual Blake nunca
compartilhou.

Blake, assim como Swedenborg, crê que para o homem se salvar é necessário
levar uma vida ética, porém vão mais além ao afirmar que também é importante que a
vida seja mentalmente rica, pois o Céu é muito mais complexo que a Terra e é preciso
estar preparado para o momento em que chegarmos lá. Ao afirmar “Despojai-os da
santidade e revesti-os da inteligência”, Blake está convidando o homem a se salvar pelo
intelecto.

Até aqui Blake coincide com o pensamento de Swedenborg, mas devido ao seu
sentimento estético, vai mais além e fala sobre uma salvação tripla. Ademais da ética e
da educação intelectual, o homem também precisa se salvar por meio da beleza, o
exercício da arte. Blake considera que Jesus foi um artista, pois se comunicava de forma
abstrata, por meio de imagens, metáforas e parábolas.

A visão do cristianismo que opõe alma e corpo, por acreditar que a primeira
está relacionada ao Céu (o Bem) e o segundo ao Inferno (o Mal) é totalmente
desacreditada por Blake, que via essa separação como o motivo da “queda” do homem.

86
BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 224.

57
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

[...] se alguma delas tivesse que ser rotulada de “boa”, não seria por
certo a alma, que, sede da Razão, é essencialmente reguladora e
restritiva, e sim o corpo, que, sede da Energia primitiva, é
fundamentalmente criador e prolífico. Por isso, Blake preferia colocar-
se ao lado do Inferno e da Energia, como, aliás, todos os grandes
artistas criadores...87

Ao se opor à tirania do Céu e da Razão, Blake também está dizendo não à


renúncia e à submissão. A luta do Inferno e da Energia é a luta pela Revolução, que visa
romper com toda forma de repressão. Com esse raciocínio, o poeta reconcilia sua crença
religiosa com o espírito de rebelião, assim como identifica Cristo com o Tigre, tal como
vimos anteriormente.

Outro poema que nos ajuda a compreender esta releitura da imagem de Cristo,
do Cordeiro para o Tigre é Londres.

88

87
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 6.
88
http://secondfloorsceance.tumblr.com/post/48204509294/mareecee-william-blake-london-songs-of

58
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

Em cada rua escriturada em que ando,


Onde o Tâmisa flui escriturado,
Eu nos rostos que encontro vou notando
Sinais de fome e dor, sinais de enfado.

Ouço nos gritos que os adultos dão,


E nos gritos de medo do inocente,
Em cada voz, em cada interdição,
As algemas forjadas pela mente.

Se o limpa-chaminés acaso grita,


Assusta a igreja escura pelos anos;
Se o soldado suspira de desdita,
Seu sangue mancha os muros palacianos.

Mas o que mais à meia-noite é ouvido


É a rameira a lançar praga fatal,
Que estanca o pranto do recém-nascido
E empesteia a mortalha conjugal.89

Londres pode ser interpretado como um poema denúncia, visto que o olhar
ingênuo, tal como vimos em O Limpa-Chaminés, nas Canções da Inocência, dá espaço
a um olhar crítico. Através de sua leitura temos uma visão realista e até chocante das
chagas da sociedade em que Blake vivia. O poeta expressa todo seu inconformismo,
enquanto descreve sua cidade, que, ao mesmo tempo, pode ser interpretada como a
descrição da própria condição humana.

De acordo com John Beer, Londres é talvez o menos controverso de todos os


trabalhos de Blake, pois não é necessário nenhum conhecimento de sua visão pessoal
89
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 31.
“I wander thro' each charter'd street,/Near where the charter'd Thames does flow./And mark in every
face I meet/Marks of weakness, marks of woe./In every cry of every Man,/In every Infants cry of
fear,/In every voice: in every ban,/The mind-forg'd manacles I hear/How the Chimney-sweepers
cry/Every blackning Church appalls,/And the hapless Soldiers sigh/Runs in blood down Palace
walls/But most thro' midnight streets I hear/How the youthful Harlots curse/Blasts the new-born
Infants tear/And blights with plagues the Marriage hearse”.

59
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

para compreendê-lo. O poeta mostra a sua indignação perante a igreja, que é cúmplice
na exploração das crianças e, a hipocrisia em torna da sexualidade, aonde o casamento
vai de mãos dadas com a prostituição e doenças venéreas.

O narrador descreve o que vê enquanto caminho pela cidade de Londres e a


realidade da capital inglesa se forma por meio de sua visão política, econômica e social.
O que temos é o retrato, segundo o pensamento de Blake, da sociedade moderna
industrial. Tal como explica Thompson, conforme os centros industriais se
estabeleciam, os problemas sociais se agravavam.

Nas décadas após 1795, houve uma profunda separação entre as


classes na Inglaterra, e os trabalhadores foram lançados a um estado
de apartheid cujos efeitos – nos detalhes da discriminação social e
educacional – podem ser sentidos até hoje. É nisso que a Inglaterra
diferia de outras nações europeias: o fluxo de sentimentos e
disciplinas contrarrevolucionários coincidiu com o fluxo da
Revolução Industrial; na medida em que avançavam novas técnicas e
formas de organização industrial, recuavam os direitos sociais e
políticos.90

Num primeiro momento Blake é observador “Eu nos rostos encontro vou
notando/Sinais de fome e dor, sinais de enfado”. A partir da segunda estrofe ele deixa
de “ver” para “ouvir” – “Ouço nos gritos que adultos dão, /E nos gritos de medo do
inocente,/Em cada voz...”. Tal mudança acarreta numa relação diferente entre o poeta e
o meio urbana, que parece estar mais próximo.

[…] the passage from sight to sound has an effect of reducing the
sense of distance or of the alienation of the observer from his object of
the first verse, and of immersing us within the human condition
through which he walks […].91

A palavra “charter’d”, traduzida por Vizioli como “escriturada”, presente no


primeiro verso foi empregada com um poder simbólico e faz alusão a tudo o que é
institucionalizado, indo além de seu significado imediato – relacionado a documentos

90
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A árvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 196. V. 1.
91
Id. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The New Press, 1993,
p. 187
“[...] a transição da visão para o som tem um efeito de reduzir o sentimento de distância ou de
alienação do observador de seu objeto no primeiro verso, e nós somos imersos na condição humana
através da qual ele caminha […]”. [Tradução nossa]

60
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

formais. Thompson também propôs uma interpretação irônica desta palavra ao afirmar
que:

[...] A charter of liberty is, simultaneously, a denial of these liberties


to others. A charter is something given or ceded; it is bestowed upon
some group by some authority; it is not claimed as of a right. And the
liberties (or privileges) granted to this guild, company, corporation or
even nation exclude others from the enjoyment of these liberties. A
chater is, in its nature, exclusive.92

A “rua escriturada” e o “Tâmisa escriturado” sugerem que a cidade está


organizada e estruturada pelo comércio, no entanto, esta expansão da indústria e o
crescimento vertiginoso de Londres, contrastam com a multidão de pobres e seu estado
mental perturbado. Também podemos pensar o termo escriturado em relação aos
privilégios monopolistas da Companhia das Índias Oriental, cujos navios eram tão
proeminentes no comércio do Tâmisa, e que teve grande importância na formação do
império britânico.

O contraste entre a riqueza e a pobreza se ampliou no ambiente urbano


e se tornou mais visível, visto que no campo as pessoas não estavam
tão próximas como na cidade. Outro fenômeno importante é o
processo de suburbanização, consequência do crescimento
desordenado e do êxodo rural. Entre 1700 e 1820 a população de
Londres atingiu, pela primeira vez na história, 1.200.000 habitantes e
passa a configurar o que Paine chamou de metrópole.
Continuamente ocorrem casos numa metrópole que são diferentes dos
que ocorrem no campo, razão pela qual é necessária uma forma de
assistência diferente, ou, de preferência, adicional. No campo, mesmo
em cidades grandes, as pessoas se conhecem e o sofrimento jamais
atinge os extremos que atinge por vezes numa metrópole. Não
acontece no campo pessoas morrerem literalmente de fome ou de frio
por falta de um abrigo. Entretanto, casos deste gênero e igualmente
deploráveis sucedem em Londres. Muitos jovens chegam a Londres
cheios de expectativas, munidos de pouco ou nenhum dinheiro, e se
não obtiverem imediatamente um emprego, estarão perdidos; e os
meninos são criados em Londres sem quaisquer meios de subsistência,
e como ocorre habitualmente em relação a pais dissolutos, se
encontram numa condição ainda pior; e servos há muito deslocados,
não se acham em situação muito melhor. Em resumo, um mundo de

92
THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The
New Press, 1993, p. 177.
“[...] Uma declaração oficial de liberdade é, simultaneamente, uma negação dessas liberdades às
outras pessoas. Uma lei oficial é algo dado ou concedido; é de grande valia para um grupo com
alguma autoridade em particular; não é reivindicada como um direito. E as liberdades (ou privilégios)
conquistadas por pessoas com interesse comum, companhia, corporação ou até mesmo nação exclui os
outros do desfrute destas liberdades. Esse tipo de declaração oficial é, em sua natureza, excludente”.
[Tradução nossa]

61
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

casos mesquinhos engrossa continuamente, do qual a vida ocupada ou


afluente não toma conhecimento, abrindo a primeira porta para o
infortúnio. A fome não está entre as carências adiáveis, e um dia,
mesmo umas poucas horas numa tal condição representa, com
frequência, a crise de uma vida de ruína.93

A situação conflitante, de fome e falta de emprego, gera um ambiente propício


para a busca de meios ilícitos, como a violência e a prostituição. A busca pela
sobrevivência passa a ser a luta daqueles que não conseguiram se integrar ao novo
sistema que se erguia. Porém, Blake nos alerta que esta repressão não é só externa, mas
também interna.

Thompson nos mostra que Blake, ao escrever o verso “As algemas forjadas
pela mente” sugere que

[…] The ‘mind forg’d manacles’, then are those of deceit, self-
interest, absence of love, of law, repression and hipocrisy. [...] they
bind the minds not only of the opressors but also of the opressed;
moreover, they are self-forged. […].94

Ao “denunciar” todas estas questões, Blake se insere numa discussão que


estava sendo colocada por escritores e políticos, como Paine e Burke, que reivindicavam
pelos direitos universais do homem. O Estado não estava comprometido em assegurar o
bem-estar da população, ou seja, não estava cumprindo com o seu dever.

*****

Como conclui Vizioli,

[…] podemos afirmar que as Canções da Experiência não eliminam,


ou substituem, as Canções da Inocência; elas apenas se completam,
oferencendo-nos o reverso da medalha. As duas obras devem ser lidas
em conjunto, pois as suas posições adquirem maior validade quando
encaradas como a reprodução de “estados contrários do espírito
humano”. Se as Canções da Inocência representam a voz do Céu, ou
da Razão, as Canções da Experiência transmitem a voz do Inferno, ou

93
PAINE, Thomas. Direitos do Homem. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2005, p. 222-223.
94
THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The
New Press, 1993, p. 184.
“Essas “algemas forjadas pela mente” são compostas pela derrota, o interesse egoísta, a ausência do
amor, a lei, a repressão e a hipocrisia, além disso, elas aprisionam não apenas as mentes dos
opressores, como também dos oprimidos, sendo auto forjadas”. [Tradução nossa]

62
Capítulo III:
Canções da Inocência e da Experiência

da Energia, - seja a manifestar a sua pujança natural, seja a exprimir o


seu inconformismo por se encontrar em grilhões.95

Canções da Inocência e da Experiência mostra os dois estados contrários da


alma humana, simbolizadas pelo Cordeiro e pelo Tigre, respectivamente. Blake
questiona a essência da natureza e de Deus de forma apaixonada, e mostra que ao
contrário do que muitos estudiosos afirmam ele é um homem de seu tempo e dialogou
com as transformações que a Inglaterra enfrentava.

95
VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986,
p. 07.

63
CONSIDERAÇÕES
FINAIS

Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, / mas tu lês


negro onde eu leio branco.

William Blake
Considerações Finais

ATUALMENTE ENCONTRAMOS UM número vertiginoso de estudos sobre William


Blake, seja sobre sua obra como poeta, pintor, gravurista ou mesmo sobre sua
personalidade. Por mais que seu nome tenha se mantido fora dos holofotes por largo
tempo, e seus contemporâneos não tenham dado muita importância ao seu trabalho,
agora a situação é inversa. A quantidade de publicações só cresce e percebemos que isso
não é só na Inglaterra, mas em vários lugares do mundo.

Com tantas interpretações e caminhos de investigação sendo traçados por


pesquisadores de diferentes áreas, julgamos complicada a tarefa de compreender este
homem, assim como sua obra. Ao selecionarmos alguns autores específicos, por
acreditar que vinham de encontro às nossas escolhas, percebemos o quão divergente são
algumas imagens que foram construídas sobre o poeta.

De louco esquizofrênico a místico e gênio, a figura de William Blake foi sendo


interpretada por diferentes ângulos e alguns dos estereótipos criados foram reproduzidos
sem muito critério. Sendo assim, um de nossos cuidados foi mostrar este homem em sua
complexidade, ou seja, olhando para o seu entorno e considerando sua própria
historicidade.

Acreditamos que o estudo a seu respeito, sobretudo de sua obra como escritor e
poeta, é de grande contribuição para os estudos históricos no que se refere à “dupla
revolução inglesa”; as transformações em decorrência da Revolução Industrial. A leitura
crítica de “Canções da Inocência e da Experiência” nos fornece uma ferramenta mais
para compreender o impacto político, econômico e principalmente, social. Como as
pessoas vivenciaram essas mudanças? Como a repressão foi interpreta?

Não somos capazes de responder a todas as questões que a leitura de William


Blake nos sugere, entretanto ela nos mostra caminhos para uma possível interpretação;
permite-nos formular hipóteses. O trabalho de E. P. Thompson, por exemplo, é
relevante por não apresentar uma interpretação simplista do poeta. Thompson se
preocupa em dar a devida atenção à experiência histórica vivida, e assim contribui para
que tenhamos uma visão mais ampla – que leva em consideração as tensões e os
conflitos que estavam postos naquele momento.

Nesta monografia objetivamos lançar luz à vida e à obra de Blake, por meio de
um balanço historiográfico. Não pretendemos nenhum ineditismo, todas as discussões
colocadas foram apontadas anteriormente pelos autores com que trabalhamos. O que
65
Considerações Finais

fizemos foi um intento de confrontar estas interpretações e coloca-las em diálogo,


evitando uma leitura simplista, que despreza o contexto em que o texto foi produzido.

Não temos a pretensão de esgotar o assunto, pois há várias possibilidades de


abordagem e infelizmente não dispomos de leitura suficiente para realizar uma
investigação de maior escopo. As referências que encontramos na obra de Blake são
inúmeras e conhecer seus interlocutores é fundamental para compreendermos seus
textos em sua devida complexidade.

Ao buscar nas tradições dos dissidentes radicais ingleses a formação intelectual


do poeta, Thompson não só nos mostra que Blake não está sozinho em sua forma de
enxergar o mundo, mas também nos oferece um caminho enriquecedor para
compreendermos a atuação das classes populares no embate com o Estado e a Igreja;
consequentemente, a luta pela liberdade.

Ao cruzar leituras e interpretações, evitamos explicações consensuais e


simplistas, que desprezam as contradições e embates. Buscamos entender como Blake
fez uso da arte (em seus poemas e gravuras) para intervir na realidade, sendo um sujeito
ativo que dialoga com o seu tempo e com os processos históricos. Blake também propõe
soluções aos problemas sociais. Sua teoria acerca dos três caminhos para se alcançar a
Salvação (por meio da moral, do intelecto e da beleza) é uma forma que ele acreditava
de exercer sua “missão”.

Também buscamos, no primeiro capítulo, relacionar a obra de Blake com o


movimento romântico. Mostrando que este movimento é múltiplo e não possui um
conceito fechado; porém, é possível perceber as aproximações e os distanciamentos de
sua obra com esta escola literária e artística. Dentre estas aproximações destacamos a
predominância da emoção, em detrimento da razão.

Mostramos que a discussão acerca da relação entre sentimento e razão deve ser
cuidadosa, pois ao identificarmos o neoclassicismo com a razão em oposição ao
romantismo com o sentimento, incorremos em um erro bastante comum de alguns
estudiosos que desconsideram que os dois elementos estão de mão dadas, e que
nenhuma escola literária pode se ausentar de algum destes elementos. Desta forma, o
que diferencia o neoclassicismo do romantismo é a ênfase que dão a um ou outro.

Outra questão importante que abordamos foi a forma como Blake, assim como
outros escritores românticos, lidou com as transformações do ambiente urbano. O
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Considerações Finais

poema Londres, analisado no terceiro capítulo, exemplifica a visão que foi construída
pelo poeta acerca dos dois movimentos paralelos – desenvolvimento industrial e
econômico, ao lado de pobreza e mazela humana. Blake criticou ferozmente o advento
desse modelo de crescimento que ele pôde acompanhar de perto, visto que passou toda
sua vida na capital inglesa.

No capítulo dois realizamos um estudo biográfico, onde tentamos localizar o


lugar social de Blake. Discutimos a questão de sua formação como artesão, sua
sensibilidade e a importância que dava à imaginação, em detrimento do racionalismo.
Assim como suas visões e a importância que elas tiveram na elaboração de sua obra.
Também relevante foi a apresentação dos grupos dissidentes radicais que Thompson
identificou como parte do repertório do artista e que ganhavam força novamente devido
aos ideais da Revolução Francesa.

Também no segundo capítulo abordamos como a relação entre imagem e texto,


é complementar e ao separarmos estas duas faces, estamos comprometendo o valor e o
entendimento da obra como um todo. Entretanto, como nosso trabalho é ainda de caráter
introdutório e será desenvolvido futuramente, não conseguimos dar o devido
aprofundamento que esta questão requer.

Nosso enfoque foi, predominantemente, na questão política e religiosa e como


Blake lidou com estes dois elementos os reinterpretando ao longo de sua obra. Sua
aproximação e, posteriormente, afastamento em relação às ideias de Swedenborg; sua
oposição ao racionalismo e ao iluminismo, dentre outros aspectos.

No último capítulo fizemos uma análise histórica de três poemas selecionados:


O Limpa-Chaminés, O Tigre e Londres, sendo o primeiro das Canções da Inocência e
os outros das Canções da Experiência. Para tanto, enfocamos na simbologia do
Cordeiro e do Tigre e como a figura de Cristo foi reinterpretada para entrar em
conformidade com a visão política do autor. Mais uma vez temos o imbricamento entre
religião e política.

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REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Referências Bibliográficas

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