Antologia Da Poesia Brasileira - Parte III
Antologia Da Poesia Brasileira - Parte III
Antologia Da Poesia Brasileira - Parte III
MODERNISMOS
1 E 2 GERAES
GERAO DE 45
P g i n a | 81
OSWALD DE ANDRADE (180 ! 154"
#AN$O DE REGRESSO % P&$RIA
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
No cantam como os de l
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de l
No permita Deus que eu morra
Sem que volte para l
No permita Deus que eu morra
Sem que volte pra So Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de So Paulo.
A DES#O'ER$A
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
At a oitava da Pscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E no queriam por a mo
E depois a tomaram como espantados
primeiro ch
Depois de danarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram trs ou quatro moas bem moas e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espduas
E suas vergonhas to altas e to saradinhas
Que de ns as muito bem olharmos
No tnhamos nenhuma vergonha.
'ALADA DO ESPLANADA
Ontem noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como que se fazia
Uma balada
Antes de ir
Pro meu hotel.
que este
Corao
J se cansou
De viver s
E quer ento
Morar contigo
No Esplanada.
Eu queria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
to distinto
Ser menestrel
No futuro
As geraes
Que passariam
Diriam
o hotel
o hotel
Do menestrel
Pra me inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel
Mas no h, poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel
H poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador
O(ER$A
Quem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador
At aqui
O teu amor
PRONOMINAIS
D-me um cigarro
Diz a gramtica
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nao Brasileira
P g i n a | 82
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me d um cigarro
)*#IO NA (ALA
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mi
Para pior pi
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vo fazendo telhados
O GRAM&$I#O
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou.
O #APOEIRA
Qu apanh sordado?
O qu?
Qu apanh?
Pernas e cabeas na calada.
ERRO DE POR$+G+,S
Quando o portugus chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o ndio
Que pena!
Fosse uma manh de sol
O ndio tinha despido
O portugus.
'RASIL
O Z Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
Sois cristo?
No. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teter Tet Quiz Quiz Quec!
L longe a ona resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo sado da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
Sim pela graa de Deus
Canhm Bab Canhm Bab Cum Cum!
E fizeram o Carnaval
REL-GIO
As coisas so
As coisas vm
As coisas vo
As coisas
Vo e vm
No em vo
As horas
Vo e vm
No em vo
R./.01n2ia3
ANDRADE, Oswald de. P4.3ia3 0.5ni6a3. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1971.
P g i n a | 87
MRO DE ANDRADE
ODE AO '+RG+,S
Eu insulto o burgus! O burgus-nquel
o burgus-burgus!
A digesto bem-feita de So Paulo!
O homem-curva! O homem-ndegas!
O homem que sendo francs, brasileiro, italiano,
sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os bares lampies! Os condes Joes! Os duques
zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-ris fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francs
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burgus-funesto!
O indigesto feijo com toucinho, dono das tradies!
Fora os que algarismam os amanhs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Far Sol? Chover? Arlequinal!
Mas chuva dos rosais
o xtase far sempre Sol!
Morte gordura!
Morte s adiposidades cerebrais!
Morte ao burgus-mensal!
Ao burgus-cinema! Ao burgus-tiburi!
Padaria Sussa! Morte viva ao Adriano!
" Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
Um colar... Conto e quinhentos!!!
Ms ns morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! pure de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
dio aos temperamentos regulares!
dio aos relgios musculares! Morte infmia!
dio soma! dio aos secos e molhados
dio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posio! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
dio e insulto! dio e raiva! dio e mais dio!
Morte ao burgus de giolhos,
cheirando religio e que no cr em Deus!
dio vermelho! dio fecundo! dio cclico!
dio fundamento, sem perdo!
Fora! Fu! Fora o bom burgus!...
POEMAS DA AMIGA
A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de at-logo criava
Um ar, e, no sei porque, te percebi.
Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrana.
Estavas longe doce amiga e s vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-cu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.
Quando eu morrer quero ficar,
No contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus ps enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabea
Esqueam.
No Ptio do Colgio afundem
O meu corao paulistano:
Um corao vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telgrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A lngua no alto do piranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos l no Jaragu
Assistiro ao que h de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mos atirem por a,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o esprito ser de Deus.
Adeus.
L+ND+ DO ES#RI$OR DI(*#IL
Eu sou um escritor difcil
Que a muita gente enquizila,
Porm essa culpa fcil
De se acabar duma vez:
s tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
P g i n a | 84
Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que voc enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.
Misturo tudo num saco,
Mas gacho maranhense
Que pra no Mato Grosso,
Bate este angu de caroo
Ver sopa de caruru;
A vida mesmo um buraco,
Bobo quem no tatu!
Eu sou um escritor difcil,
Porm culpa de quem !...
Todo difcil fcil,
Abasta a gente saber.
Baj, pix, chu, h "xavi"
De to fcil virou fssil,
O difcil aprender!
Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
No carece vestir tanga
Pra penetrar meu caanje!
Voc sabe o francs "singe"
Mas no sabe o que guariba?
Pois macaco, seu mano,
Que s sabe o que da estranja.
DES#O'RIMEN$O
Abancado escrivaninha em So Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supeto senti um frime por dentro.
Fiquei trmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
No v que me lembrei que l no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escurido ativa da noite que caiu
Um homem plido magro de cabelo escorrendo nos
olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, est dormindo.
Esse homem brasileiro que nem eu.
MOA LINDA 'EM $RA$ADA
Moa linda bem tratada,
Trs sculos de famlia,
Burra como uma porta:
Um amor.
Gr-fino do despudor,
Esporte, ignorncia e sexo,
Burro como uma porta:
Um coi.
Mulher gordaa, fil,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Pacincia...
Plutocrata sem conscincia,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.
$IE$,
Era uma vez um rio...
Porm os Borbas-Gatos dos ultra-nacionais
esperiamente!
Havia nas manhs cheias de Sol do entusiasmo
as mones da ambio...
E as gignteas!
As embarcaes singravam rumo do abismal
Descaminho...
Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...
Ritmos de Brecheret!... E a santificao da morte!...
Foram-se os ouros!... E o hoje das turmalinas!...
- Nadador! vamos partir pela via dum Mato-Grosso?
- o! Mai!... (Mais dez braadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)
Vado a pranzare com la Ruth.
O DOMADOR
Alturas da Avenida. Bonde 3.
Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira
sob o arlequinal do cu oiro-rosa-verde...
As sujidades implexas do urbanismo.
Fils de manuelino. Calvcies de Pensilvnia.
Gritos de goticismo.
Na frente o tram da irrigao,
onde um Sol bruxo se dispersa
num triunfo persa de esmeraldas, topzios e rubis...
Lnguidos boticellis a ler Henry Bordeaux
nas clausuras sem drages dos torrees...
Mrio, paga os duzentos ris.
So cinco no banco: um branco,
um noite, um oiro,
um cinzento de tsica e Mrio...
Solicitudes! Solicitudes!
P g i n a | 85
Mas... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens
esse espetculo encantado da Avenida!
Revivei, oh gachos paulistas ancestremente!
e oh cavalos de clera sangnea!
Laranja da China, laranja da China, laranja da China!
Abacate, cambuc e tangerina!
Guarda-te! Aos aplausos do esfuziante clown,
herico sucessor da raa heril dos bandeirantes,
loiramente domando um automvel!
PAISAGEM N89 1
Minha Londres das neblinas finas!
Pleno vero. Os dez mil milhes de rosas paulistanas.
H neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas...
O vento como uma navalha
nas mos dum espanhol. Arlequinal!...
H duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.
Passa um So Bobo, cantando, sob os pltanos,
um trall... A guarda-cvica! Priso!
Necessidade a priso
para que haja civilizao?
Meu corao sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
dialoga um lamento com o vento...
Meu corao sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
d uma vontade de sorrir!
E sigo. E vou sentindo,
inquieta alacridade da invernia,
como um gosto de lgrimas na boca...
PAISAGEM N8: 7
Chove?
Sorri uma garoa de cinza,
Muito triste, como um tristemente longo...
A Casa Kosmos no tem impermeveis em
liquidao...
Mas neste Largo do Arouche
Posso abrir o meu guarda-chuva paradoxal,
Este lrico pltano de rendas mar...
Ali em frente... - Mrio, pe a mscara!
-Tens razo, minha Loucura, tens razo.
O rei de Tule jogou a taa ao mar...
Os homens passam encharcados...
Os reflexos dos vultos curtos
Mancham o petit-pav...
As rolas da Normal
Esvoaam entre os dedos da garoa...
(E si pusesse um verso de Crisfal
No De Profundis?...)
De repente
Um raio de Sol arisco
Risca o chuvisco ao meio.
P g i n a | 8;
MANUEL BANDERA
MAN+EL 'ANDEIRA (188; ! 1;8"
"A Cinza das Horas
DESEN#AN$O
Eu fao versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha meu livro, se por agora
No tens motivo algum de pranto.
Meu verso sangue. Volpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vo...
Di-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota gota, do corao.
E nesses versos de angstia rouca
Assim dos lbios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
Eu fao versos como quem morre.
"Carnaval
EP*LOGO
Eu quis, um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o s motivo
Fosse o meu prprio ser interior.
Quando acabei a diferena que havia!
O de Schumann um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura...
O meu carnaval sem nenhuma alegria!...
"O Ritmo Dissoluto
MENINOS #AR)OEIROS
Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
Eh, carvoero!
E vo tocando os animais com um relho enorme.
Os burros so magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvo de lenha.
A aniagem toda remendada.
Os carves caem.
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe,
dobrando-se com um gemido.)
Eh, carvoero!
S mesmo estas crianas raquticas
Vo bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingnua parece feita para eles . . .
Pequenina, ingnua misria!
Adorveis carvoeirinhos que trabalhais como se
brincsseis!
Eh, carvoero!
Quando voltam, vm mordendo num po encarvoado,
Encarapitados nas alimrias,
Apostando corrida,
Danando, bamboleando nas cangalhas como
espantalhos desamparados.
MADRIGAL MELAN#-LI#O
O que eu adoro em ti,
No a tua beleza.
A beleza, em ns que existe.
A beleza um conceito.
E a beleza triste .
No triste em si,
Mas pelo que h nela de fragilidade e incerteza.
O que eu adoro em ti,
No a tua inteligncia.
No o teu esprito sutil,
To gil. to luminoso,
Ave solta no cu matinal da montanha.
Nem a tua cincia
Do corao dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti,
No a tua graa musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graa area como teu prprio momento .
Graa que perturba e que satisfaz.
O que eu adoro em ti,
No a me que j perdi.
No a irm que perdi,
E meu pai.
O que eu adoro em tua natureza,
No o profundo instinto matinal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que adoro em ti lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, a vida.
"Libertinagem
PNE+MO$-RA<
Febre, hemoptise, dispnia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que no foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o mdico:
P g i n a | 8=
Diga trinta e trs.
Trinta e trs... trinta e trs... trinta e trs...
Respire.
...........................................................................................
...............
O senhor tem uma escavao no pulmo esquerdo e
o pulmo
[direito infiltrado.
Ento, doutor, no possvel tentar o pneumotrax?
No. A nica coisa a fazer tocar um tango argentino.
POEMA $IRADO DE +MA NO$*#IA DE >ORNAL
Joo Gostoso era carregador de feira livre e morava no
morro da
[Babilnia num barraco sem
nmero
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Danou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu
afogado.
)O+?ME EM'ORA PRA PAS&RGADA
Vou-me embora pra Pasrgada
L sou amigo do rei
L tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasrgada
Vou-me embora pra Pasrgada
Aqui eu no sou feliz
L a existncia uma aventura
De tal modo inconseqente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive
E como farei ginstica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a me-d'gua
Pra me contar as histrias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasrgada
Em Pasrgada tem tudo
outra civilizao
Tem um processo seguro
De impedir a concepo
Tem telefone automtico
Tem alcalide vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de no ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- L sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasrgada
"Estrela da Manh
POEMA DO 'E#O
Que importa a paisagem, a Glria, a baa, a linha do
horizonte?
O que eu vejo o beco.
"Lira dos Cinqent'anos
A ES$RELA
Vi uma estrela to alta,
Vi uma estrela to fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Era uma estrela to alta!
Era uma estrela to fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.
Por que da sua distncia
Para a minha companhia
No baixava aquela estrela?
Por que to alto luzia?
E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperana
Mais triste ao fim do meu dia.
"Belo Belo
NEOLOGISMO
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
nventei, por exemplo, o verbo teadorar.
ntransitivo:
Teadoro, Teodora.
MIN@A $ERRA
Sa menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
P g i n a | 88
Sua terra est completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-cus...
hoje uma bonita cidade!
Meu corao ficava pequenino.
Revi afinal o meu Recife.
Est de fato mudado.
Tem avenidas, arranha-cus.
hoje uma bonita cidade.
Diabo leve quem ps bonita a minha terra!
O 'I#@O
Vi ontem um bicho
Na imundcie do ptio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
No examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho no era um co,
No era um gato,
No era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
AR$E DE AMAR
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua
alma.
A alma que estraga o amor.
S em Deus ela pode encontrar satisfao.
No noutra alma.
S em Deus ou fora do mundo.
As almas so incomunicveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas no.
"Opus 10
#ONSOADA
Quando a ndesejada das gentes chegar
(No sei se dura ou carovel),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
Al, iniludvel!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilgios.)
Encontrar lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
P g i n a | 8
E)O#AO DO RE#I(E
Recife
No a Veneza americana
No a Mauritsstad dos armadores das ndias Ocidentais
No o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
Recife das revolues libertrias
Mas o Recife sem histria nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infncia
A Rua da Unio onde eu brincava de chicote-queimado e partia as
[vidraas da casa de dona Aninha Viegas
Totnio Rodrigues era muito velho e botava o pincen na ponta
[do nariz
Depois do jantar as famlias tomavam a calada com cadeiras,
[mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
No sai!
A distncia as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira d-me uma rosa
Craveiro d-me um boto
(Dessas rosas muita rosa
Ter morrido em boto...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antnio!
Outra contrariava: So Jos!
Totnio Rodrigues achava sempre que era so Jos.
Os homens punham o chapu saam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque no podia ir ver o fogo.
Rua da Unio...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infncia
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrs de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de l era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
Capibaribe
L longe o sertozinho de Caxang
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moa nuinha no banho
Fiquei parado o corao batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto rvores destroos redemoinho
[sumiu
P g i n a | 0
E nos peges da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos
[em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela comeou
a passar a mo nos meus cabelos
Capiberibe
Capibaribe
Rua da Unio onde todas as tardes passava a
preta das bananas [com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e no era torrado era cozido
Me lembro de todos os preges:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi h muito tempo...
A vida no me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na lngua errada do povo
Lngua certa do povo
Porque ele que fala gostoso o portugus do Brasil
Ao passo que ns
O que fazemos
macaquear
A sintaxe lusada
A vida com uma poro de coisas que eu no entendia bem
Terras que no sabia onde ficavam
Recife...
Rua da Unio...
A casa de meu av...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo l parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu av morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu
[av.
POA$I#A
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionrio pblico com livro de ponto expediente
[Protocolo e manifestaes de apreo ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pra e vai averiguar no dicionrio
[o cunho vernculo de um vocbulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construes sobretudo as sintaxes de exceo
Todos os ritmos sobretudo os inumerveis
Estou farto do lirismo namorador
Poltico
Raqutico
Sifiltico
P g i n a | 1
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si
[mesmo
De resto no lirismo
Ser contabilidade tabela de co-senos secretrio do amante
[exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
[maneiras de agradar s mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bbedos
O lirismo difcil e pungente dos bbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
No quero mais saber do lirismo que no libertao.
P g i n a | 2
M+RILO MENDES
RE(LE<O N:81
Ningum sonha duas vezes o mesmo sonho
Ningum se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulao e o movimento infinito.
Ainda no estamos habituados com o mundo
Nascer muito comprido.
O +$OPIS$A
Ele acredita que o cho duro
Que todos os homens esto presos
Que h limites para a poesia
Que no h sorrisos nas crianas
Nem amor nas mulheres
Que s de po vive o homem
Que no h um outro mundo.
A ME DO PRIMEIRO (IL@O
Carmem fica matutando
no seu corpo j passado.
At volta, meu seio
De mil novecentos e doze.
Adeus, minha perna linda
De mil novecentos e quinze.
Quando eu estava no colgio
Meu corpo era bem diferente.
Quando acabei o namoro
Meu corpo era bem diferente.
Quando um dia me casei
Meu corpo era bem diferente.
Nunca mais eu hei de ver
Meus quadris do ano passado...
A tarde j madurou
E Carmem fica pensando.
O (IL@O DO SA#+LO
Nunca mais andarei de bicicleta
Nem conversarei no porto
Com meninas de cabelos cacheados
Adeus valsa "Danbio Azul"
Adeus tardes preguiosas
Adeus cheiros do mundo sambas
Adeus puro amor
Atirei ao fogo a medalhinha da Virgem
No tenho foras para gritar um grande grito
Cairei no cho do sculo vinte
Aguardem-me l fora
As multides famintas justiceiras
Sujeitos com gases venenosos
a hora das barricadas
a hora da fuzilamento, da raiva maior
Os vivos pedem vingana
Os mortos minerais vegetais pedem vingana
a hora do protesto geral
a hora dos vos destruidores
a hora das barricadas, dos fuzilamentos
Fomes desejos nsias sonhos perdidos,
Misrias de todos os pases uni-vos
Fogem a galope os anjos-avies
Carregando o clice da esperana
Tempo espao firmes porque me abandonastes.
#AN$IGA DE MALABAR$E
Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
No desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha
cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as conscincias,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o heri vagabundo, glorifico o soldado vencido,
no posso amar ningum porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o esprito que assiste Criao
e que bole em todas as almas que encontra.
Mltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.
MODIN@A DO EMPREGADO DE 'AN#O
Eu sou triste como um prtico de farmcia,
sou quase to triste como um homem que usa
costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas s ouo o tectec das mquinas de escrever.
L fora chove e a esttua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginao nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que no fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos para no fazerem nada com eles.
Tambm se o diretor tivesse a minha imaginao
o Banco j no existiria mais
e eu estaria noutro lugar.
A $ESO+RA DE $OLEDO
Com seus elementos de Europa e frica,
Seu corte, inscrio e esmalte,
P g i n a | 7
A tesoura de Toledo
Alude s duas Espanhas.
Duas folhas que se encaixam,
Se abrem, se desajustam,
Medem as garras afiadas:
Finura e rudeza de Espanha,
Rigor atento ao real,
Silncio espreitante, feroz,
Silncio de metal agindo,
Aguda obstinao
Em situar o concreto,
Em abrir e fechar o espao,
Talhando simultaneamente
Europa e frica,
Vida e morte.
#ANO DO E<*LIO
Minha terra tem macieiras da Califrnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
so pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exrcito so monistas, cubistas,
os filsofos so polacos vendendo a prestaes.
A gente no pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em famlia tm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores so mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil ris a dzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabi com certido de idade!
#AN$O A GAR#*A LOR#A
No basta o sopro do vento
Nas oliveiras desertas,
O lamento de gua oculta
Nos ptios da Andaluzia.
Trago-te o canto poroso,
O lamento consciente
Da palavra outra palavra
Que fundaste com rigor.
O lamento substantivo
Sem ponto de exclamao:
Diverso do rito antigo,
Une a aridez ao fervor,
Recordando que soubeste
Defrontar a morte seca
Vinda no gume certeiro
Da espada silenciosa
Fazendo irromper o jacto
De vermelho: cor do mito
Criado com a fora humana
Em que sonho e realidade
Ajustam seu contraponto.
Consolo-me da tua morte.
Que ela nos elucidou
Tua linguagem corporal
Onde el duende alimentado
Pelo sal da inteligncia,
Onde Espanha calculada
Em nmero, peso e medida.
#OR$E $RANS)ERSAL DO POEMA
A msica do espao pra, a noite se divide em dois
pedaos.
Uma menina grande, morena, que andava na minha
cabea,
fica com um brao de fora.
Algum anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do cu no ouve a queixa dos
namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na ndia,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a fora do
homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os
seios.
S tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que vir, no me lembro mais
quem sou.
ELEGIA DE $AORMINA
A dupla profundidade do azul
Sonda o limite dos jardins
E descendo at terra o transpe.
Ao horizonte da mo ter o Etna
Considerado das runas do templo grego,
Descansa.
Ningum recebe conscientemente
O carisma do azul.
Ningum esgota o azul e seus enigmas.
Armados pela histria, pelo sculo,
Aguardando o desenlace do azul, o desfecho da bomba,
Nunca mais distinguiremos
Beleza e morte limtrofes.
Nem mesmo debruados sobre o mar de Taormina.
intolervel beleza,
prfido diamante,
Ningum, depois da iniciao, dura
No teu centro de luzes contrrias.
P g i n a | 4
Sob o signo trgico vivemos,
Mesmo quando na alegria
O po e o vinho se levantam.
intolervel beleza
Que sem a morte se oculta.
G+ERNI#A
Subsiste, Guernica, o exemplo macho,
Subsiste para sempre a honra castia,
A jovem e antiga tradio do carvalho
Que descerra o plio de diamante.
A fora do teu corao desencadeado
Contactou os subterrneos de Espanha.
E o mundo da lucidez a recebeu:
O ar voa incorporando-se teu nome.
M+RILO MENINO
Eu quero montar o vento em plo,
Fora do cu, cavalo poderoso
Que viaja quando entende, noite e dia.
Quero ouvir a flauta sem fim do sidoro da flauta,
Quero que o preto velho sidoro
D um concerto com minhas primas ao piano,
L no salo azul da baronesa.
Quero conhecer a me-d'gua
Que no claro do rio penteia os cabelos
Com um pente de sete cores.
Salve salve minha rainha,
clemente piedosa doce Virgem Maria,
? Como pode uma rainha ser tambm advogada.
M+RILOGRAMA A GRA#ILIANO RAMOS
1
Brabo. Olhofaca. Difcil.
Cacto j se humanizando,
Deriva de um solo sfaro
Que no junta, antes retira,
Desacontece, desquer.
2
Funda o estilo sua imagem:
Na tbua seca do livro
Nenhuma voluta intil.
Rejeita qualquer lirismo.
Tachando a flor de feroz.
3
Tem desejos amarelos.
Quer amar, o sol ulula,
Leva o homem do deserto
(Graciliano-Fabiano)
Ao limite irrespirvel.
4
Em dimenso de grandeza
Onde o conforto vacante,
Seu passo trgico escreve
A pica real do BR
Que desintegrado explode.
O (-S(ORO
Acendendo um fsforo
acendo Prometeu, o futuro, a liquidao dos falsos
deuses,
o trabalho do homem.
O fsforo: to rabbioso quanto secreto. Furioso, deli-
cado. Encolhe-se no seu casulo marrom; mas quando
cha-
mado e provocado, polmico estoura, esclarecendo tudo.
O sculo polmico.
O gs no funciona hoje. Temos greve dos gasistas. A
tlia tornou-se a Grevelndia. Mas preferimos essa
semi-
-anarquia "ordem" fascista.
O fsforo, hoje em frias, espera paciente no seu casulo
o dia de amanh desprovido de greves. O dia racional, o
dia do entendimento universal, o dia do mundo sem
classes,
o dia de Prometeu totalizado.
O fsforo o portador mais antigo da tradio viva. Eu
sou pela tradio viva, capaz de acompanhar a
correnteza
da modernidade. Que riquezas poderosas extraio dela!
Subscrevo a grande palavra de Jaures: "De l'autel des
anctres on doit garder non les cendres mais le feu."
PERSPE#$I)A DA SALA DA >AN$AR
A filha do modesto funcionrio pblico
d um bruto interesse natureza-morta
da sala pobre no subrbio.
O vestido amarelo de organdi
distribui cheiros apetitosos de carne morena
saindo do banho com sabonete barato.
O ambiente parado esperava mesmo aquela vibrao:
papel ordinrio representando florestas com tigres,
uma Ceia onde os personagens no comem nada
a mesa com a toalha furada
a folhinha que a dona da casa segue o conselho
e o piano que eles no tm sala de visitas.
P g i n a | 5
A menina olha longamente pro corpo dela
como se ele hoje estivesse diferente,
depois senta-se ao piano comprado a prestaes
e o cachorro malandro do vizinho
toma nota dos sons com ateno.
SO (RAN#IS#O DE ASSIS DE O+RO PRE$O
A Lcio Costa
Solta, suspensa no espao,
Clara vitria da forma
E de humana geometria
nventando um molde abstrato;
Ao mesmo tempo, segura,
Recriada na razo,
Em nmero, peso, medida;
Balano de reta e curva,
Levanta a alma, ligeira,
sua Ptria natal;
Repouso da cruz cansada,
Signo de alta brancura;
Gerado, em recorte novo,
Por um bicho rastejante,
Mestio de sombra e luz;
Aposento da Trindade
E mais da Virgem Maria
Que se conhecem no amor;
Traslado, em pedra vivente,
Do afeto de um sumo heri
Que junta o brao do Cristo
Ao do homem seu igual.
$E<$O DE #ONS+L$A
1
A pgina branca indicar o discurso
Ou a supresso o discurso?
A pgina branca aumenta a coisa
Ou ainda diminui o mnimo?
O poema o texto? O poeta?
O poema o texto + o poeta?
O poema o poeta - o texto?
O texto o contexto do poeta
Ou o poeta o contexto do texto?
O texto visvel o texto total
O antetexto o antitexto
Ou as runas do texto?
O texto abole
Cria
Ou restaura?
2
O texto deriva do operador do texto
Ou da coletividade texto?
O texto manipulado
Pelo operador (tico)
Pelo operador (cirurgio)
Ou pelo tico-cirurgio?
O texto dado
Ou dador?
O texto objeto concreto
Abstrato
Ou concretoabstrato?
O texto quando escreve
Escreve
Ou foi escrito
Reescrito?
O texto ser reescrito
Pelo tipgrafo / o leitor / o crtico;
Pela roda do tempo?
Sofre o operador:
O tipgrafo trunca o texto.
Melhor mandar oficina
O texto j truncado.
6
A palavra cria o real?
O real cria a palavra?
Mais difcil de aferrar:
Realidade ou alucinao?
Ou ser a realidade
Um conjunto de alucinaes?
7
Existe um texto regional / nacional
Ou todo texto universal?
Que relao do texto
Com os dedos? Com os textos alheios?
(...)
9
Juzo final do texto:
Serei julgado pela palavra
Do dador da palavra / do sopro / da chama.
O texto-coisa me espia
Com o olho de outrem.
Talvez me condene ao ergstulo.
O juzo final
Comea em mim
Nos lindes da
Minha palavra.
O MA+ SAMARI$ANO
Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
P g i n a | ;
Perto de um louco, de um triste, de um miservel,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida ligada dos outros,
Que outros precisam de mim que preciso de Deus
Quantas criaturas tero esperado de mim
Apenas um olhar que eu recusei.
SOMOS $ODOS POE$AS
Assisto em mim a um desdobrar de planos.
as mos vem, os olhos ouvem, o crebro se move,
A luz desce das origens atravs dos tempos
E caminha desde j
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua
alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsvel pela lepra do leproso e pela rbita vazia
do cego,
Pelos gritos isolados que no entraram no coro.
Sou responsvel pelas auroras que no se levantam
E pela angstia que cresce dia a dia.
A $EN$AO
Diante do crucifixo
Eu paro plido tremendo
" J que s o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz.
AS LA)ADEIRAS
As lavadeiras no tanque noturno
No responderam ao canto da sibila.
"Lavamos os mortos,
Lavamos o tabuleiro das idias antigas
E os balastres para repouso do mar...
Nele encontramos restos de galeras,
Quem nos desviar do nosso canto obscuro?
Nele descobrimos o augusto pudor do vento,
O balano do corpo do pirata com argolas,
Nele promovemos a sede do povo
E excitamos a nossa prpria sede...
As lavadeiras no tanque branco
Lavam o espectro da guerra.
Os braos das lavadeiras
No abismo noturno
Vo e vm.
MON$AN@AS DE O+RO PRE$O
A Lourival Gomes Machado
Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto
Na perfurada luz, em plano austero.
Montes contempladores, circunscritos,
Entre cinza e castanho, o olhar domado
Recolhe vosso espectro permanente.
Por igual pascentais a luz difusa
Que se reajusta ao corpo das igrejas,
E volve o pensamento descoberta
De uma luta antiqssima com o caos,
De uma reinveno dos elementos
Pela fora de um culto ora perdido,
Relquias de dureza e de doutrina,
Rude apetite dessa cousa eterna
Retida na estrutura de Ouro Preto.
AO ALEI>ADIN@O
Plida a lua sob o plio avana
Das estrelas de uma perdida infncia.
Fatigados caminhos refazemos
Da outrora mquina da minerao.
nossa prpria forma, o frio molde
Que maduros tentamos atingir,
Volvendo laje, pedra de olhos facetados,
Sem crispao, matria j domada,
O exemplo recebendo que ofereces
Pelo martrio teu enfim transposto,
Severo, machucado e rude Aleijadinho
Que te encerras na tenda com tua Bblia,
Suplicando ao Senhor infinito e esculpido
Que sobre ti descanse os seus divinos ps.
E<ERGO
Lacerado pelas palavras-bacantes
Visveis tcteis audveis
Orfeu
mpede mesmo assim sua dispora
Mantendo-lhes o nervo & a sgoma.
Orfeu Orftu Orfele
Orfns Orfvs Orfeles
M+RILOGRAMA PARA MALLARMA
No oblquo exlio que te aplaca
Mantns o bculo da palavra
Signo especioso do Livro
nabolvel teu & da tribo
A qual designas, idntica
Vitoriosamente semntica
Os dados lanando sbito
P g i n a | =
J tu indgete em decbito Na inclume glria te assume
MALLARM sibilino nome
P g i n a | 8
>ORGE DE LIMA
IN)ENES DE OR(E+
Canto
Poemas relativos
Cada a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.
Bronzes diludos
j no so vozes,
seres na estrada
nem so fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranas noturnas
mais que impalpveis,
gatos nem gatos,
nem os ps no ar,
nem os silncios.
O sono est.
E um homem dorme.
o
mar,
fmea
possessa.
sua fala
de suave
lmina
abissnia;
o ritmo
ondulado,
que flui
em espiral;
a preciso
especular
do teatro
aqutico;
o secreto
pugilato
que sulca
as rochas.
o
mar,
leoa
furiosa,
ensina
ao poeta
sua arte
plumria;
a dana-
escultura
das vagas
incessantes;
a pulsao
do poema,
seus ciclos
menstruais.
o
mar
ensina
ao poeta
sua arte
sem arte.
P g i n a | 1==
em aromas
de tantlico
negrume.
Nenhuma msica, ali; nada alm da carne
dos cogumelos
e seu escarro.
PARA(+SOH ES#ARA)EL@O
gua-de-serpente para esquecer jamais esta msica de peles.
Quem conta fmures e plos desalinhados
da fmea
apodrecida.
Mais negro do que a negra mariposa pedra do esquilo
roendo restos
de no.
Estamos custicos
e nus.
Corpo e palavra so flores pontiagudas
que laceram.
Voc sempre diz o azul-granizo:
cspede
ou spide
que anoitece.
Ser o lobo e mais que isso: ser o Lobo do vermelho
tardio em
jades de ninfeta:
aqui escrevo ilha facas de pomba cega,
estrela morta
em diapaso
ou luas
de capricrnio?
Tudo o que eu amo
sim
corre no tempo com a velocidade do parafuso
e do escaravelho.
(IL-SO(OSH #OG+MELOS
Rumor de verde-gua esse bosque de caninos que desaparece.
Trevos
na boca
odor
de cogumelos
BA+'ER'+#@
a .orge Luis /orges
Todos
os livros
os Sutras, o Coro
os Vedas, o Zohar
so enigmas: jardins verticais
rios insubmissos
listras de mrmore possesso;
todas as pginas
em lminas de argila, pele de carneiro
folhas de papyro ou rubro ouro esculpido
so impossveis, viscerais
areia alucinada.
Os livros, Borges, inventam os leitores
e os nomes de vales, savanas, estepes
e de amplas avenidas que ignoramos;
vivemos essa efmera realidade
para lermos suas secretas linhas,
e nossos filhos e netos.
Um dia, porm, os livros
ltimos demiurgos desaparecero,
como o grifo e o licorne
e ler ser apenas lenda.
PED+ENO SERMO AOS PEI<ES
a .os! 0o1er
a
gua
luz, a gua
smen, prata, mercrio
espelho esfrico de imagens trmulas
que brotam, flutuam e cessam
oh esplndidas carpas!
entre rajados cardumes, coroas de branca
espuma
e radiantes medusas
lminas prismticas de uma vasta
geografia
vi o galho curvo da cerejeira
uma nuvem, meu rosto
e a r
P g i n a | 1=8
e lua-de-
mosquitos .
Estranha senhora fnix viaja em
caligrafia sua
tiara
azul.
Vagares da lua de outono biombo jasmim drago
no teto
curvo
como atravessar
espelhos.
Armas e cascos de cavalos
ao longe .
Filsofos-de-laca conjeturam possveis amanhs
LE$RA NEGRA
23ou apenas %ragento$ eniga e
pa4oroso acaso5.
Fernando Pessoa
verde o segredo
verde o silncio
escrito em cicatriz
escrito em anti-flor-de-lis
para a necessria
abolio de mim
Se a tua vida se estender
Mais do que a minha
Lembra-te, meu dio-amor,
Das cores que vivamos
Quando o tempo do amor nos envolvia.
Do ouro. Do vermelho das carcias.
Das tintas de um cime antigo
Derramado
Sobre o meu corpo suspeito de conquistas.
Do castanho de luz do teu olhar
Sobre o dorso das aves. Daquelas rvores:
Estrias de um verde-cinza que tocvamos.
E folhas da cor de tempestades
Contornando o espao
De dor e afastamento.
Tempo turquesa e prata
Meu dio-amor, senhor da minha vida.
Lembra-te de ns. Em azul. Na luz da caridade.
X
Um cemitrio de pombas
Sob as guas
E guas-vivas na cinza
sseas e lassas sobras
Da minha e da tua vida,
Um pedao de muro
Na enxurrada
Prumos soterrados, nascituros
No cu
ndecifrveis sobras
Da minha e da tua vida.
Um crculo sangrento
Uma lua ferida de umas garras
Assim de ns dois o escuro centro.
E no abismo de ns
Havia sol e mel.
XV
Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derrudas.
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memria.
Porque assim preciso
Para que tu vivas.
P g i n a | 11
ARLE$E NOG+EIRA DA #R+B
#ON)I#O
Aqui, onde uma mulher se curva
e se inventa,
onde de uma dor imensa e turva
se alimenta.
Aqui, quando tonta e avulsa
se procura,
onde viva a luta lenta pulsa
e transfigura.
Aqui, onde o que e ser retorna
ao bero,
onde busca ncora, estrela, bigorna
e tero.
'+S#A MA$INAL
Bom, se tu me indicasses
nosso caminho,
como um orvalhado pastor matinal.
Bom, se tu me falasses
de um carinho,
inventado contra todo esse mal.
Bom, se me considerasses
coisa tua,
como quem caminha o mesmo cho.
Bom, se te acostumasses
mesma rua,
com a fidelidade de um irmo.
(Cano das horas unidas, 1973)
LI$ANIA DA )EL@A
O corpo da velha pesado de panos e ossos so ondas de enjo.
Os chinelos falidos arrastam desejos frustrados deixados ao cho.
O andar de to trpego inventa uma dana entre carros e homens.
O passo se ausenta na passagem dos erros e projeta o desastre.
As pernas se vergam para juntar o achado da intil valia.
As mos tateantes recolhem a moeda atirada ao desprezo.
A preciso avalia e guarda com zelo a oferenda do dia.
O bolso da saia o saco que abriga a redeno do passeio.
O mato desce sobre as paredes como cabeleiras protegendo a nudez.
As antigas alcovas se abrem em cloacas na incontinncia dos restos.
Os bancos da praa, por onde ela passa, so frios convites.
Os galhos so falsos trapzios erguidos no arco das horas.
As folhas paradas refletem o tempo amesquinhado que cala.
O jornal se corrompe em atroz estufa do lodo e do lucro.
Os dedos so ms catando do lixo a pompa dos dias.
Os olhos so fachos ardendo na febre de uma ausncia sentida.
A arrogncia dos homens espreita e apressa a gentil despedida.
A piedade injria que a velha acata com a gratido de quem bebe.
A velha mastiga uma espera e digere paciente o cansao.
A fome passa na expectativa cruel de no ser satisfeita.
A catarata nos olhos empasta azulada a transparente tristeza.
O olhar conformado desconfia do tempo que denuncia a tragdia.
As veias lhe saltam sob a pele das mos como afluentes sem rumo.
As guas aumentam e a chuva a espanca no vendaval de seus pingos.
P g i n a | 12
As mos se atordoam e buscam socorro nos fios das guas.
A sacola desce sobre a roupa molhada atropelando-lhe os passos.
O rosto congela uma queixa suave que se expande em ternura.
As guas afluem como lquidos leitos na disputa do corpo.
A imagem no cho se desfaz, espalhando sacola e pertences.
O vestido no fica nem vai, no balano do corpo to triste.
Os filhos de pedra investigam de longe o temor dos vencidos.
O vento sibila um enigma que se converte em profundo silncio.
(...)
A fcil flor, de poludas gretas, multiplica perdida vergonha.
As crianas, jacintos errantes, reclamam cuidados fraternos.
Os cuidados se esgotam no galopar de rubros sendeiros.
Os dentes perdidos choram o leite de uma infncia negada.
O corpo humilhado expe o segredo mais ntimo glria fugaz.
O sexo pousado, de vulvas marinhas, uma ave abatida.
As plumas to alvas tremulam nervosas do tiro certeiro.
O pano se estende curiosidade e ao frio de corpo to triste.
(Litania da 8elha, 1997)
P g i n a | 17
@ILDE'ER$O 'AR'OSA (IL@O
DES$INO
Decerto no sers feliz.
Algum orculo, estranho
e de longo tempo, anuncia.
mpondervel o teu destino.
Mesmo que o amor inunde o ptio
das tardes e as tardes inundem as margens
dos dias e os dias invadam o delta
das noites, decerto no sers feliz.
Os elos, mesmo os de sangue, ruiro.
O tempo, com sua agulha silente, tecer
a fbula febril da dor, os atrozes
elementos de tua insacivel agonia.
E nada restar a ti, ao animal
que s e foste nas horas extremas
dessa ancestral melancolia.
IMAGENS DE PALA)RA
Buscar a palavra
nas lies da vida.
E na morte prematura,
buscar a palavra,
embrio perdido
por entre os olhos
e os lbios sepultados.
Reter a palavra,
essncia tarda no cume
do poema, perfeito
paraso de degredos...
Ret-la no fremir
do verso, e no fremir
do verso, mold-la:
rigorosa linha entre
as manhs e as noites
do meu tdio.
Guardar a palavra:
gesto ltimo de quem
vazou o texto e no
beijou neblinas...
nem formas acabadas.
Perd-la no tempo
vazio e recomposto,
nico janeiro dos anos
estivais.
Plantar a palavra
no vero e no inverno,
alimento que povoa
o medo nos desertos
do papel
e entre slabas de dor
ganir o amor contido,
rio de luzes e sal
de agosto, dezembros
maculados...
Depar-la, fendida,
na geometria da paixo,
clculos infindos
para uma imagem
derradeira.
Buscar a palavra
esquecida na gaveta
e molhada na saliva
do silncio:
nico roteiro dos meus
sonhos irreais.
Liame do meu mundo
com o teu mundo
(itinerrio devastado) uma plancie que se fez
outono...
P g i n a | 14
E)ERARDO NORES
#ORPO
Teu corpo
se enxuga em minha gua:
calafeta,
enxgua.
Completa
o que no vem de mim.
E por ser gua e calma,
sonmbula
como a
distrada voz do lume,
lembra um vago perfume
de jasmim.
#A(A
Desencarno arbias
de uma xcara morna
de caf.
E um fio negro
me assedia a boca.
(Atravs da janela
o galho de pitanga
ostenta seu adorno
encarnado).
Viajo
pelo negror do p:
Dar-El-Salam,
Bombaim,
den
(sem Nizan, sem Rimbaud):
as colinas ocres,
a poeira dos dias.
De onde vem o gro
dessa saudade?
Desentranho arbias
dessa xcara fria.
Enquanto aguardo o dia
que no chega.
Desacordo e sorvo
a sombra morna
do que sou
na borra
do caf.
OS EN#O+RADOS
A tarde chega.
A luz se dispersa:
quem anunciar a morte,
soltar o chicote,
abrir a fresta?
Quem domar o espao
entre o gume e a alma,
entre a cerca e a palma,
entre o assombro e a calma?
E dormir no cio
de rvores cativas
ao solstcio das pedras,
no despencar das sombras?
A tarde chega,
a luz se dispersa.
uma luz de sede
do sol dos nhamuns:
branca e calada.
Os encourados se miram
num horizonte de varas.
A copa pequena:
na redondez dos cabos,
lminas severas.
Nem palavras:
o vento soletra a mata,
converte-se em faca.
Sumida nos esteiros,
detida nas vazantes,
segue,
na garupa,
a sina dos instantes.
Adonde vosmec,
alumia o sobrosso,
desmazelo do corpo?
A alma se estropia
nesses retirados
dentro dos Teus lustres...
A tarde chega.
A luz se dispersa.
E uma luz de sede
do sol dos nhamuns:
branca e calada.
Ponto de cruz ou estrela:
uma rede bordada.
(De Retbulo de .er+nio /osch, 2009)
A MESI#A
Para saac Duarte
Sem pedir licena,
insinua-se pelos cmodos,
invade os espelhos,
derrama suas jarras de luz.
Vejo-a
pelos canteiros da casa,
P g i n a | 15
na nitidez dos bordados
de minha me,
no brilhar de tua ris
quando os deuses descem
para beber a insensatez
das guas.
Depois,
ela se transforma em seios,
goiabas,
espigas.
E nua, adormece,
enquanto a lua brinca
entre meus dedos
e lagartixas
passeiam pelas pedras do ptio...
A R+A DO PADRE INGL,S
Na rua do Padre ngls
um louco joga xadrez.
Joga o xadrez da desgraa:
uma sombra na vidraa
o seu parceiro demente.
(Entre a dama e o cavalo,
corre um rio de afogados).
De sua cama, ainda quente,
um bafo de nicotina.
Vem um cheiro de latrina
da cela defronte sua.
Na rua do Padre ngls
um louco fala francs
com acentos de Baudelaire...
(O flamboyant encarnado
se mistura ao espetculo
da esquizofrnica rua).
O bispo toma o cavalo
das mos da dama de preto.
(So cinco horas da tarde:
as luzes se apagam cedo.)
Batente do meio-fio:
vem vindo a sombra da noiva,
sozinha, morta de medo.
(O louco avista das grades
as andorinhas azuis
que voam feito morcegos.)
Na rua do Padre ngls,
um cheiro de gasolina.
{O louco engendra seu mate
contra a sombra na vidraa.}
So cinco em ponto da tarde
(cinco de gnacio Mejas,
pensa o louco em sua cela)
dos girassis de Van Gogh
solido amarela...
O cavalo solta as crinas,
a noiva voa na rua
e nas vozes de um menino
acordes de um violino.
O louco sabe que o tempo
de dormir j vem chegando...
(Corujas soltas na cela
bicam as flores de papel
e uma boneca de pano).
Corre, corre, vem depressa,
Que a noite j vem chegando!
Na rua do Padre ngls
um louco joga xadrez...
$RIS$O
" p!$ ao sol e ao 4ento do sert)o$
ele n)o se decop+s.
Pedro 9a4a #Ba de Ossos*
As palavras no alforje. E o rosrio,
a escorrer das penas e dos dias.
O azul da barba lembra uma paisagem
onde campeiam cabras. E ramagens
desatam-se em sombras nas janelas.
A morrinha dos bichos. O mormao,
trazendo o desespero, em vez de maro:
um luto atravancando as taramelas.
A sela desapeada. E na garupa
do cavalo, a sentena das esporas.
Pendentes dos estribos, esto as horas,
relampejos de facas. E o sono da jurema.
O brao descarnado, o giz dos dentes,
e o olho alm do corpo do poema.
No cho do meu degredo, sempre cho,
sete frases do ofcio e um bordo.
SONE$O I
Agonizavam os rastros de novembro.
E os meus ossos, cansados das neblinas,
doam, no concerto das esquinas
da cidade, onde um dia, ainda me lembro,
penetrou-se de escuro a minha alma,
quando um co, a ladrar contra o sol-posto,
mordeu o lado oculto do meu rosto
e deixou seus sinais minha palma.
P g i n a | 1;
Lembro-me que era de tarde. Ainda chovia.
O eco dos espelhos conduzia
meus passos que jaziam pelas ruas.
Havia o som da gua que caa.
E no horizonte, alm da agonia,
um cemitrio de meninas nuas.
$+A (ALA
Tua fala parecia
uma rede de varandas,
branca,
no meio da sala.
(Uma coisa que envolve
e, ao mesmo tempo, se esquiva):
gesto seco de uma chama,
morrendo,
e sempre mais viva.
Era assim, tua palavra:
escorreita, sem medida.
Falas como ps descalos,
presos relva macia.
Ou um cheiro de curral
quando a manh principia.
(Tua fala parecia
a rede, toda bordada,
onde a noite amanhecia).
(De A Rua do Padre :ngl;s, 2006)