Caetano Sordi - Carcacas e Maquinas Dequatro Estomagos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL


Caetano Sordi





DE CARCAAS E MQUINAS DE
QUATRO ESTMAGOS
Estudo das controvrsias sobre o consumo e a produo de carne no Brasil


Orientador: Bernardo Lewgoy



Porto Alegre
2013
2


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL



Caetano Sordi




DE CARCAAS E MQUINAS DE
QUATRO ESTMAGOS
Estudo das controvrsias sobre o consumo e a produo de carne no Brasil


Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
para obteno do ttulo de Mestre em
Antropologia Social.
Orientador: Bernardo Lewgoy





Porto Alegre
2013
3


Caetano Sordi




DE CARCAAS E MQUINAS DE QUATRO ESTMAGOS
Estudo das controvrsias sobre o consumo e a produo de carne no Brasil

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
para obteno do ttulo de Mestre em
Antropologia Social.


Aprovado em 04 de maro de 2013



BANCA EXAMINADORA:


____________________________
Profa. Dra. Cima Bevilaqua (UFPR)


____________________________
Profa. Dra. Maria Eunice Maciel (UFRGS)


_____________________________
Profa. Dra. Fabola Rohden (UFRGS)


_____________________________
Prof. Dr. Bernardo Lewgoy (orientador, UFRGS)







4

AGRADECIMENTOS

Dedico esta dissertao a todos aqueles que auxiliaram na sua construo. Os
nomes so vrios e a lista extensa. O imperativo de brevidade me impede de dizer
tudo aquilo que devido a todos, de modo que me restrinjo aqui s menes mais
pontuais. A ordem das menes, igualmente, no reflete qualquer tipo de prioridade.
Sou imensamente grato a todos os interlocutores e entrevistados que se
dispuseram a partilhar comigo suas histrias e vivncias, carnvoras ou vegetarianas,
consumptivas ou produtivas, que deram cor experiencial e hermenutica s temticas
aqui travadas.
Sado os colegas da turma de mestrado 2011, com os quais partilhei estes
ltimos dois anos de vivncia acadmica e para-acadmica. Devo aos meus vinte
colegas um grande e profundo aprendizado, erigido atravs de experincias
fundamentais que o tempo saber organizar e sedimentar na memria de todos ns. Em
especial, sou imensamente grato Stphanie Bexiga, ao Renan Santos, Luana Emil,
Natlia Silveira, Gabriela Sevilla e ao Rodrigo Dornelles, com os quais compartilhei
grande parte das leituras e da escrita da dissertao. Devo mencionar tambm os colegas
Rodrigo Toniol e Sara Guerra, assim como novamente o Renan, pela experincia
conjunta como Representantes Discentes no Conselho de Ps-Graduao e os
aprendizados polticos e profissionais da derivados. Sou grato aos amigos e colegas de
humanidades Bruno Morche e Federico Testa, pelas intensas trocas intelectuais.
Telma Lisowski e Bibiana Macedo, pelas sempre generosas acolhidas em So Paulo
(SP), cidade a qual aflui duas vezes por conta desta pesquisa. Aos meus demais amigos,
agradeo por todo o apoio e a pacincia em me ouvir falar intermitentemente sobre os
assuntos aqui esboados. Ao Diego Amaral, pelos insights, pelo carinho e pelo suporte
emocional, ao longo de todo este processo.
Agradeo a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal do Ensino Superior
(CAPES) pelo financiamento integral deste mestrado atravs do programa de bolsas
REUNI de auxlio graduao. Graas a este financiamento, pude desenvolver, em
paralelo a pesquisa, atividades de docncia e co-docncia que muito auxiliaram no meu
processo de formao profissional. Tambm sou grato, portanto, aos alunos de
graduao que comigo cruzaram ao longo deste tempo. O apoio institucional do
5

Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, bem como da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, tambm merecem o meu destaque. Agradeo
enormemente secretaria executiva do PPGAS, Rosimeri Feij, por sua dedicao e
pacincia com as demandas oriundas de todos ns. Sou grato aos docentes das
disciplinas cursadas nestes ltimos dois anos pela partilha do conhecimento e vivncia
profissional. Maria Eunice Maciel e os colegas do Ncleo Estudos Interdisciplinares
em Cultura e Alimentao (NEICA), dedico um especial agradecimento, bem como aos
integrantes do GENA (Grupo de Estudos sobre Natureza(s)). Agradeo tambm a
Fabola Rohden, Ceres Victora, Arlei Damo, Natacha Leal, Cristian Carrre, Guilherme
S, Cima Bevilaqua, Felipe Vander Velden, Samantha Gaspar, pela interlocuo.
Carlos Steil e Ondina Fachel Leal, juntamente com Fabola Rohden, pelo aprendizado
como Representante Discente na Comisso de Ps-Graduao.
Agradeo imensamente s colegas do Projeto e Grupo de Pesquisa Espelho
Animal: antropologia das relaes entre humanos e animais, que cito nominalmente:
Caroline Gonalves, rica Pastori, Ivana Teixeira, Priscila Borges e Patrcia Nardelli.
Sem o grupo, nada disso teria sido possvel. Sob a orientao do Bernardo Lewgoy - a
quem muito agradeo e tambm dedico esta dissertao, pela amizade, dedicao e
sintonia intelectual - construmos um espao no qual ressoam nossos interesses e no
qual pudemos realizar, ao longo dos trs ltimos anos, os nossos trabalhos.
Por fim, dedico e agradeo este esforo a todos os meus familiares, em especial
minha tia Dagmar Rosana e minha av Colorinda, alm das minhas primas-irms, que
sempre estiveram juntos comigo e sempre apoiaram minha trajetria acadmica e
profissional. In memorian tambm dedico esta dissertao aos meus pais.








6

RESUMO




O Brasil possui a segunda maior populao bovina do planeta. tambm o segundo
maior produtor de carne bovina do mundo (ultrapassado somente pelos Estados Unidos)
e o maior exportador deste produto. O mesmo sucesso ocorre com a avicultura e a
suinocultura nacional. Em paralelo a esta dinmica de crescimento do sistema-carne,
tem-se verificado a emergncia de discursos crticos pecuria e ao consumo de carne
em geral, sejam eles vinculados militncia por direitos e bem-estar animal, ou s
questes envolvendo o meio-ambiente e a sade humana. Atravs de metodologia
qualitativa e etnogrfica, este trabalho contrasta os argumentos e expresses retricas de
representantes e crticos da carne em trs principais eixos: relaes humano-animais e
socioambientais envolvidas na produo de carne; carnivorismo e comensalismo;
impactos do consumo de carne na constituio biolgica e moral do ser humano. A
partir da ideia de rastreamento de fluxos discursivos, a pesquisa visa mapear a paisagem
fenomenal das contemporneas guerras da carne, procurando elencar elementos para
responder seguinte questo: o que est em jogo, para as sociedades modernas, quando
produzem e consomem carne?

Palavras chave: Antropologia; Controvrsia Pblica; Carne; Brasil.












7

ABSTRACT


Brazil possesses the second largest bovine population in the world. It is also the second
largest producer of beef (surpassed only by the United States of America), as well as the
largest world exporter of this product. The same success occurs with Brazilian
aviculture and swine breeding. However, an emerging criticism of stockbreeding and
meat consumption in general has marked a parallel presence to this ever expanding meat
system. They are linked to militancy in favor of animal wellbeing and rights and
questions involving the environment and human health. Through qualitative and
ethnographic analysis, the investigation contrasts the arguments and rhetorical
expressions of meat representatives and critics in three main axes: human-animal
relations and environmental issues involved in the production of meat; carnivorism and
commensalism; impacts of meat consumption on biological and moral constitution of
the human-being. Through the idea of tracking discursive flows, the research aims to
chart the phenomenal landscape of contemporary meat wars, seeking elements to
answer the follow question: what is at stake for modern societies when they produce
and consume meat?

Keywords: Anthropology; Public Controversy; Meat; Brazil.










8

SUMRIO


INTRODUO ...................................................................................................................... 11
1 - VITRINES DA CARNE: NOTAS ETNOGRFICAS SOBRE EVENTOS
AGROPECURIOS ............................................................................................................... 23
1.1 O Caminho do Boi e o Caminho da Carne ........................................................................ 35
1.2 A Centralidade da Carne: Conjunturas globais e locais .................................................... 38
1.3 A situao etnogrfica disparadora ................................................................................... 45
1.4 A dialtica do pioneiro e do predador ............................................................................... 51
2 - A GRAMTICA SIMBLICA DA CARNE ................................................................... 57
2.1 A polissemia da carne .................................................................................................... 58
2.1.2 Sobre churrascos veganos, bifes de soja, vegebrgueres e outras assinaturas carnvoras
no campo vegetariano ............................................................................................................. 63
2.1.3 Pesquisa gacha contrape Harvard: notas sobre um Estado carnvoro ................. 65
2.2 Do carnivorismo ao naturalismo ....................................................................................... 74
3 - EVOLUO, NATUREZA, GNERO E MORALIDADE NAS GUERRAS DA CARNE
................................................................................................................................................. 78
3.1 Quando o homem do Pleistoceno vai ao supermercado .................................................... 80
3.1.1 Excurso sobre a alimentao de humanos e animais ..................................................... 89
3.2 O gnero da carne .............................................................................................................. 92
3.4 Os nimos da carne ........................................................................................................... 96
4 - A PRODUO DE CARNE E OS LABORATRIOS NUTRITIVOS ANIMAIS ... 102
4.1 O rmen, patrimnio da humanidade .............................................................................. 108
4.2 A centralidade da carcaa ................................................................................................ 111
4.3 Entre a subjetivao e a reificao .................................................................................. 119
4.4 O gado e o valor .............................................................................................................. 122
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................ 133
REFERNCIAS .................................................................................................................... 141






9

LISTA DE FIGURAS


Figura 1: FEICORTE, 2011 (Foto: Caetano Sordi). ................................................................... 11
Figura 2: FEICORTE, 2012 (Foto: Caetano Sordi) .................................................................... 23
Figura 3: aspecto geral da FEICORTE, edio 2012 (Foto: Caetano Sordi). ............................. 27
Figura 4: Stand de companhia farmacutica na FEICORTE, edio 2012. Repare-se o lema:
science for a better life cincia para uma vida melhor. Grande parte das mulheres da feira se
encontra alocadas nos servios de vendas e recepo. (Foto: Caetano Sordi) ........................... 28
Figura 5: aproximao cautelosa com zebu na FEICORTE edio 2011. (Foto: Caetano Sordi)
..................................................................................................................................................... 30
Figura 6: stand de medicamentos homeopticos na FEICORTE edio 2011. (Foto: Caetano
Sordi) ........................................................................................................................................... 33
Figura 7: eixo central do pavilho de exposies da FEICORTE, edio 2012, com as bandeiras
dos estados brasileiros. (Foto: Caetano Sordi) ............................................................................ 34
Figura 8: EXPOINTER, 2011 (Foto: Caetano Sordi) ................................................................. 57
Figura 9: printscreen da busca pelo verbete carne no Google imagens, acessado em 29 de
janeiro de 2013. ........................................................................................................................... 60
Figura 10: aougueiros em desmontagem didtica de carcaa na Vitrine da Carne Gacha, na
EXPOINTER 2011. (Foto: Caetano Sordi) ................................................................................. 69
Figura 11: EXPOINTER, 2011. (Foto: Caetano Sordi) .............................................................. 78
Figura 12: pecuria como atividade socio-ambientalmente nociva. Infogrfico produzido pelo
Estado de So Paulo, disseminado por militantes vegetarianos nas redes sociais. ..................... 90
Figura 13: material publicitrio para linha de suplementos proteicos Carnivor, com forte apelo
masculinidade ........................................................................................................................... 94
Figura 14: FEICORTE 2012. (Foto: Caetano Sordi) ................................................................ 102
Figura 15: material publicitrio de sementes evocando o ideal de converso de pasto em carne
................................................................................................................................................... 103
Figura 16 Fluxograma oferecido no site do SIC sobre as cadeias industriais dependentes do
abate de bovinos. ....................................................................................................................... 126
Figura 17: produtos base de gado ....................................................................................... 127
Figura 18: onde est a iluso?, resposta ao esquema produtos base de gado .................. 128










10

LISTA DE SIGLAS

ABCZ Associao Brasileira de Criadores de Angus
ABIEC Associao Brasileira das Indstrias Exportadoras de Carne
ANDA Agncia de Notcias de Direitos Animais
ASEAN Association of South Asian Nations
AU-IBAR - African Union - Interafrican Bureau for African Resources
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social
CNA Conferncia Nacional da Indstria
CNPC Conselho Nacional da Pecuria de Corte
DIEESE Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Econmicos
EEB Encefalopatia Espongiforme Bovina (Doena da Vaca Louca)
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria
EXPOINTER Exposio Agropecuria Internacional em Esteio, Rio Grande do Sul
ETCO Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e Ecologia Animal
FAO Food and Agriculture Organization
FAOSTAT Statistics Division of the Food and Agriculture Organization
FEICORTE Feira Internacional da Cadeia Produtiva da Carne
FEILEITE Feira Internacional da Cadeia Produtiva do Leite
FEINCO Feira Internacional de Caprinos e Ovinos
FENASUL Exposio Agropecuria em Esteio, Rio Grande do Sul
FPA Frente Parlamentar da Agropecuria
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
ILRI International Livestock Research Institute
ISO International Standartization Organization
MAPA Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento
MPS Ministrio da Previdncia Social
MTE Ministrio do Trabalho e Emprego
OCDE Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento Econmico
OIE Organizao Mundial de Sade Animal
OMC Organizao Mundial do Comrcio
PETA People for the Ethic Treatment of Animals
PSD/TO Partido Social-Democrata, seco Tocantins
SBMV Sociedade Brasileira de Medicina Veterinria
SEBRAE/RS - Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas, seco Rio
Grande do Sul
SIC Servio de Informao da Carne
SRB Sociedade Rural Brasileira
SWI Stockholm Water Institute
UDR Unio Democrtica Ruralista
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UNESP Universidade Estadual Paulista
USP Universidade de So Paulo
WSPA World Society for the Protection of Animals



11

INTRODUO


Figura 1: FEICORTE, 2011 (Foto: Caetano Sordi).

Este trabalho visa reconstruir, a partir de um conjunto de fontes textuais e
etnogrficas, as formas atravs das quais os agentes da cadeia produtiva da carne
brasileira: (1) narram, contemporaneamente, as relaes humano-animais e ambientais
envolvidas na sua atividade, e (2) defendem, aguerridamente, a centralidade do seu
produto para a dieta humana e a vida social em geral. Grande parte desta reconstruo
se faz a contrario, ou seja, explorando, de maneira paralela e relacionada, os discursos e
narrativas crticas ao consumo e a produo de carne hoje disseminadas no Brasil.
Trata-se, portanto, de uma investigao sobre aquilo que, em outra oportunidade, demos
o nome de as Guerras da Carne(Lewgoy e Sordi, 2012): isto , os conflitos discursivos,
12

travados na esfera pblica
1
online e offline, que tem como objeto referencial a carne,
sobretudo a bovina, no contexto brasileiro contemporneo.
Assim constituda, a dissertao se erige na interseco entre a antropologia da
alimentao e a antropologia das relaes entre humanos e animais. Esta interseco
possvel na medida em que o carnivorismo, como objeto para o pensamento, impe-se
em um duplo domnio ou domnio hbrido: sob seu aspecto alimentar, como regime
nutricional e estrutura de comensalidade; sob seu aspecto interespecfico, como prtica
ou regime de predao
2
. A ideia tratar tanto a carne quanto a sua matriz, o boi, como
uma coisa: isto , aquilo do que se fala ou aquilo a respeito do que se disputa
publicamente, tal como nos sugere este conceito quando explorado por Ingold (2012),
Heidegger (1987) e Latour (1994, 2001, 2004). A coisa jamais um objeto bem
definido, um fato consumado (Ingold, 2012, p. 29). Seu estatuto ontolgico encontra-
se em permanente e instvel erupo.
Alm de um interesse especfico pelo objeto emprico acima delimitado, esta
pesquisa animada por um questionamento antropolgico
3
mais amplo: de acordo com
Lvi-Strauss (2009, p. 78), o ato de matar seres vivos para se alimentar prop[e] aos
humanos, conscientemente ou no, um problema filosfico problema que todas as
sociedades tentam resolver. Frente s narrativas sobre a carne que hoje circulam na
esfera pblica brasileira, pergunta-se: o que est em jogo
4
, para as sociedades humanas
(e especificamente para as sociedades ocidentais modernas) quando se produz e se
consome carne? E ainda: qual a relao entre o consumo carnvoro, como prtica
alimentar (social e culturalmente mediada), e a produo de carne, como modalidade de

1
Por esfera pblica compreende-se a dimenso da vida social na qual assuntos de interesse pblico so
discutidos por agentes pblicos e privados, cada vez mais dependente de intermedirios miditicos.
Seguindo a perspectiva de Habermas (1984), este espao tambm pode ser considerado como a estrutura
intermediria que faz a mediao entre o mundo poltico, de um lado, e os setores privados do mundo da
vida e de ao especializados em funes, de outros.
2
Por hora, compreendo o conceito de predao apenas em seu sentido ecolgico, isto : um predador
pode ser definido como qualquer organismo que consome todo ou parte de outro organismo vivo
(Towsend et al., 2010, p. 249). Posteriormente introduzirei significados de ordem simblica e social para
predao.
3
Tomo aqui por antropolgico a definio proposta por Ingold (2011, p. 242) do que cabe
antropologia perscrutar: anthropology is an enquiry into the conditions and possibilities of human life in
the world.
4
Ao orientar a pesquisa pela busca do que est em jogo, procuro seguir Arthur e J oan Kleinman (1995,
p. 277) quando afirmam que a central orienting question in ethnography should be to interpret what is at
stake for particular participants in particular situations. That orientation will lead the ethnographer to
collective (...) and individual () levels of analysis of experience-near interests that, we hold, offer a
more valid initial understanding of what are social psychological characteristics of forms of life in local
moral worlds than either professional sociological categories or psychological terminology.
13

interao entre a espcie humana e outras formas de vida animal? Consciente dos
limites impostos pelo escopo da investigao, considero estas perguntas como
horizontes, isto , como guias ou luzeiros que modularam tanto a pesquisa quanto a
escrita em seu desenvolvimento.
maneira do que costuma ocorrer em antropologia, esta dissertao , em parte,
fruto de um impondervel da pesquisa etnogrfica. Em minha monografia de concluso
de curso em Cincias Sociais, defendida em 2010, estudei a militncia radical por
direitos animais (abolicionismo animal) tal como se organiza e opera no Rio Grande do
Sul. Durante este processo, ganhei familiaridade com aquilo que eu viria a denominar,
seguindo as recomendaes de Geertz (1997) para uma etnografia do pensamento, como
suas prticas lingusticas: as categorias e modos pragmticos pelos quais seu
pensamento se articula na esfera pblica e visa se disseminar pelo tecido social. Boa
parte destas prticas lingusticas tem como alvo os processos de produo de carne e o
modo com que os animais so tratados na indstria da protena animal, buscando revelar
o que h de ultrajante e degradante na srie de procedimentos tcnicos existentes do
pasto ao prato.
Neste intuito, abolicionistas articulam todo um corpo de imagens e figuras de
linguagem para explicitar uma suposta opacidade da carne exposta no mercado, que
esconderia ou sublimaria os processos cruis e de explorao contidos na sua produo.
Promover o desocultamento deste holocausto animal, a partir da elevao das
experincias de violao sofridas pelos animais ao nvel da conscincia, um tipo de
trabalho sobre o qual os coraes e mentes abolicionistas esto permanentemente
dedicados; algo que, na fala de um entrevistado, impregna toda a vida do militante.
A marca do entranhamento da causa na vida da pessoa modulada pela adoo do
veganismo (ou vegetarianismo tico), ethos que transcende a dieta exclusivamente
vegetal e toma contornos poltico-existenciais.
Os dados de pesquisa sugeriam que as militncias por direitos animais e as redes
de divulgao vegetarianas constituem-se, predominantemente, como uma amostra de
quadros mdios, urbanos, escolarizados (ensino superior completo ou incompleto), que
fazem macio uso de bens culturais e esto conectados a um grande nmero de
plataformas comunicacionais online. Ainda possuindo alguma dificuldade para se
legitimar como movimento social na esfera pblica, esta militncia se aproxima, bem
14

da verdade, daquele tipo de agncia crtica conceituado por Beck (2010) como prpria
da sociedade de risco: eles sabem argumentar, esto bem organizados, tm (...) acesso
a algumas publicaes e esto em condies de oferecer argumentos na esfera pblica e
nos tribunais (p. 300). Como salientam Fraser (2001, 2012) e Wilkie (2010), desde seu
aparecimento na esfera pblica dos pases europeus e anglo-saxnicos, a partir das
dcadas de 1960 e 1970, esta militncia tem auxiliado na conformao de uma nova
percepo sobre a criao animal, a qual seria: (1) contrria ao bem-estar dos animais;
(2) controlada por interesses corporativos; (3) motivada pelo lucro, ao contrrio dos
antigos regimes de criao; (4) causadora de fome no mundo; (5) produtora de
alimentos no saudveis; e (6) ambientalmente nociva. Tendo isto em vista, o trabalho
de concluso foi articulado a partir da investigao de como o abolicionismo desenvolve
estratgias retricas na esfera pblica, e do mapeamento de suas relaes com
instituies sociais como a cincia, o direito e a imprensa, o que revela bastante sobre
sua posio relativa no contexto social maior (Sordi, 2011).
Absorvido por estas questes, eu no havia operado, at ento, qualquer incurso
sistemtica pelo lado oposto ao abolicionismo. Eu no havia tentado investigar como
aqueles que produzem carne independentemente do seu lugar especfico na cadeia de
produo animal, que extensa narram e compreendem a atividade na qual se
encontram envolvidos. Isto mudou de figura quando me deparei, quase que
aleatoriamente, com o seguinte pargrafo inicial de um texto publicado em Zero Hora,
no dia 4 abril de 2011:
O consumidor interno e o mercado nacional so carentes de
informao sobre a carne brasileira. (...) Esses tempos li um artigo
que dizia precisamos explicar ao consumidor que leite no d em
caixinha e que bife no nasce em bandejinhas.

O excerto poderia ter sido perfeitamente retirado de um texto abolicionista de
denncia da pecuria. Seguramente, ele prosseguiria com o relato dos processos de
utilizao animal empregados pela agroindstria; a misria moral e humana dos
abatedouros; a insalubridade das granjas; o regime de trabalho forado das reses
leiteiras; a desumanidade que separa mes e filhotes e introjeta hormnios de
crescimento nos espcimes pequenos para que se desenvolvam de acordo com um
projeto humano de otimizao de suas partes comestveis. Por fim, se afirmaria que por
15

trs da caixinha e da bandejinha se oculta uma gigantesca indstria, movida pelo
lucro e insensvel s questes de sade humana e ambientais. No entanto, o excerto
pertencia a um artigo denominado Marketing da Carne, publicado no caderno Campo
e Lavoura do referido peridico, destinado s notcias da produo primria. E,
diferentemente do especulado acima, assim prosseguia o texto:
O consumidor precisa entender que por trs da carne ofertada
diariamente nas gndolas do varejo existe um homem do campo, um
trabalhador. Que luta contra as adversidades do clima, da economia,
do mercado e da poltica.

De repente, todo um outro conjunto de imagens a respeito da pecuria se
descortinava, bastante destoante daquele ao qual eu estava familiarizado: o trabalhador
do sistema-carne, que, no imaginrio dos direitos animais, tem sua conscincia
colonizada pelas foras do sistema (tal como os carrascos do sculo XX que
cometeram barbaridades seguindo ordens) tornara-se uma espcie de heri: algum
que luta permanentemente contra as adversidades naturais (as secas, as mudanas
climticas, etc.), do mercado (a presso por produtividade, gerada pela crescente
demanda, mas, no obstante, acompanhada de frequentes embargos, medidas
protecionistas, exigncias cada vez mais restritivas de qualidade sanitria, etc.), do
Estado (a m vontade dos polticos) e, como se no bastasse tudo isso, da sociedade (ou
da cultura, em sentido bastante lato): dado o surgimento de discursos refratrios e
combativos ao consumo do seu produto, como o uma parcela importante dos discursos
de direitos animais.
Desta maneira, espelhando-me no trabalho de Wilkie (2010), operei uma
mudana de objeto de pesquisa que pode ser classificada como do protesto para o
produto (p. 2). Sua experincia de pesquisa, realizada no millieu animalista da Gr-
Bretanha, derivara na constatao de que muitos defensores dos direitos animais no
esto diretamente envolvidos - e tampouco familiarizados - com as espcies mais
evocadas em seus discursos (vacas, galinhas, porcos e ovelhas, isto , prprias do
mundo rural, ou baleias, pandas e outros animais selvagens ameaados de extino)
5
.

5
Para a autora, este curioso trao permanece constante mesmo se tomadas em conta as diferentes
perspectivas existentes no meio animalitrio (bem-estarismo, abolicionismo gradual ou pragmtico,
abolicionismo radical): [There are] diverse and competing viewpoints, but they have a common basis:
Most of the commentaries are made by non-farming people located outside the industry (Wilkie, 2010,
p. 39). O mesmo reconhece Descola (1998, p. 23): Nascida da indignao com os maus-tratos infligidos
16

Motivada por este insight etnogrfico, Wilkie direcionou seus interesses para outra
questo de pesquisa: de que forma aqueles que trabalham diretamente com os animais
de fazenda [farm animals] significam suas interaes com eles?
Investigaes preliminares de discursos atualmente em circulao nos meios
ligados pecuria brasileira permitiram identificar a existncia, tambm no campo dos
produtores de carne, de uma retrica de esclarecimento e conscientizao. Atores do
sistema-carne, como a ABIEC (Associao Brasileira das Indstrias Exportadoras de
Carne), tm reconhecido abertamente a necessidade de defender o valor social do seu
produto contra os discursos crticos sua atividade, sejam eles ambientalistas,
animalistas, ou (o que no raras vezes acontece) hbridos destas duas tendncias. A
parcela da comunidade cientfica que, por diversos motivos, auxilia na formatao de
uma imagem negativa sobre a carne, tambm visada como um obstculo a ser
contornado. A criao, em 2001, de um Servio de Informao sobre a Carne (SIC),
congregando diversas entidades, denota o investimento de energia institucional do
sistema em prol da defesa pblica do seu produto.
Este trabalho procurou mapear, portanto, como os agentes do sistema-carne
brasileiro desenvolvem uma narrativa pblica a respeito dos vnculos que os ligam, de
um lado, aos animais que mobilizam em suas atividades, e, de outro, s demandas
sociais crescentes por bem-estar animal, qualidade da carne, segurana ambiental e
sanitria.
6
Alguns destes discursos so diretamente voltados a contrabalanar os
argumentos em contrrio, isto , as alegaes de risco (humano, animal e ambiental)
disseminadas no tecido social por obra de militantes e organizaes crticas ao consumo
carnvoro. Outros, por sua vez, tm o carter de uma assimilao construtiva destas
mesmas alegaes, respeitando uma lgica de otimizao do prprio risco (e sua

aos animais domsticos e de estimao, em uma poca na qual burros e cavalos de fiacre faziam parte do
ambiente cotidiano, atualmente, a compaixo nutre-se da crueldade a que estariam expostos seres com os
quais os amigos dos animais, urbanos em sua maioria, no tm nenhuma proximidade fsica: o gado de
corte, pequenos e grandes animais de caa, os touros das touradas, as cobaias de laboratrio e os animais
fornecedores de pele, as baleias e as focas, as espcies selvagens ameaadas pela caa predatria ou pela
deteriorao de seu habitat etc.
6
Internacionalmente, agncias envolvidas com a gesto dos recursos pecurios no planeta tambm tm
demonstrado forte preocupao em desenvolver uma narrativa mais coerente para o setor pecurio
global. Entre elas, a FAO (Food and Agriculture Organisation), o ILRI (International Livestock Research
Institute), a Unio Europia, o Banco Mundial, a ASEAN (Association of South Asian Nations), o AU-
IBAR (African Union-Interafrican Bureau for African Resources), entre outros. Estes organismos e seus
representantes estiveram reunidos recentemente (maro 2012) em Nairbi (Qunia), sede do ILRI, to
fulfill on an ambitious global livestock agenda to 2020 that would work simultaneously to protect the
environment, human health and socioeconomic equity. Disponvel em: http://tinyurl.com/7kzxozr,
consultado em 18 de maro de 2012.
17

atenuao) como florescente oportunidade de mercado (Beck, 2010, p. 55). Por fim, o
engendramento de um discurso que visa reativar a importncia da produo animal
como constitutiva da nacionalidade brasileira tambm se fez notar, apontando para
questes diretamente envolvidas com a etapa de desenvolvimento socioeconmico
vivida atualmente pelo Brasil, na qual a produo de protena animal (e primria, em
geral) exerce um papel nada coadjuvante.
Desde o incio, a questo da etnografia teve de ser considerada com especial
cuidado nesta pesquisa. Em consonncia com uma tendncia mais geral da disciplina
nas ltimas dcadas, o trabalho no tem como objeto uma comunidade ou situao em
particular, mas sim algo que ocorre em um sistema multilocal (Marcus, 1995). Da
mesma maneira, atravessado por questionamentos globais. Se, como reconhecem
Comaroff e Comaroff (2003, p. 152), nossos nativos no habitam mais contextos
sociais para os quais possumos um lxico persuasivo, nossas estratgias
metodolgicas tem de ser adaptadas.
Optei por realizar a etnografia em feiras e eventos agropecurios locais e
nacionais. Trata-se de um lcus estratgico para a pesquisa de campo na medida em que
eles so a faceta pblica da indstria agropastoril e seu mais relevante hub social
(Wilkie, 2010, p. 14). O tipo de fenmeno sobre o qual decidi me debruar, no entanto,
no ocorre somente nestes eventos: ele sentido, discutido, debulhado, trabalhado e
articulado neles, mas muito os transcende e supera. As disputas envolvendo a carne nas
sociedades contemporneas possuem uma estrutura fluidificada: esto na mdia,
circulam pela internet, por palestras e workshops destinados ao tema, na prtica
anticarnvora de vegetarianos militantes, em pareceres mdico-nutricionais e pesquisas
cientficas nas universidades, entre outras precipitaes momentneas e circunstanciais.
Esse um objeto que se articula em escalas bastante diferenciadas, pois perpassa
tanto a dificuldade de dietas alternativas vingarem em uma regio perifrica do Brasil,
onde o consumo de carne vermelha tem papel central, at discusses altamente
globalizadas, como a controvrsia cientfica a respeito dos nveis de CO
2
emitidos pela
pecuria. Torna-se necessrio, portanto, algum tipo de imaginao analtica
(Comaroff e Comaroff, 2003, p. 166) por parte do antroplogo, capaz de encompassar
em uma narrativa persuasiva como a define Strathern (1987) esta mirade de dados
18

heterclitos e aparentemente desconectados, mas que se coligem como partes de um
fluxo discursivo
7
multidimensional.
Se a questo metodolgica que se impe o rastreamento destes fluxos,
importante ressaltar, como o fazem Arthur e J oan Kleinman (1995), que os etngrafos
sempre adentram o fluxo da experincia vivida a partir um determinado corte espao-
temporal. a partir dele que os antroplogos conseguem experimentar como seus
interlocutores se deparam com o fluxo da experincia social, fluxo que encontra na
situao etnogrfica um dos seus mltiplos momentos de atualizao e precipitao.
Tomando estes aspectos em conta, a narrativa do trabalho segue a seguinte
lgica: parto de uma situao etnogrfica que classifico como disparadora. Ao tom-
la desta forma, procuro fazer com que a etnografia parta antes dos efeitos situados do
ver e do ouvir do que de alguma teoria ou meta-narrativa totalizadora sobre o objeto
em questo (Comaroff e Comaroff, 2003, p. 164). Dado que se trata de um assunto
polmico na esfera pblica, ao qual afluem muitos discursos totalizantes, de carter
normativo, preferi adotar a perspectiva de Florence Weber (2009, p. 27) segundo a qual
cabe ao antroplogo, antes de tudo, observar e escutar as pessoas, e no interrog-las,
para preservar suas iniciativas de classificao e o domnio sobre suas palavras.
A situao disparadora, no caso, uma palestra denominada Pecuria
Brasileira: desvendando mitos, ocorrida na 17 FEICORTE (Feira Internacional da
Cadeia Produtiva da Carne So Paulo, SP), em junho de 2011. Este evento contou
com a participao de cinco profissionais envolvidos com a cadeia da carne bovina e o
projeto do SIC, sendo dois deles oriundos do campo das biocincias (uma nutricionista
e um mdico).
A partir de algumas falas ouvidas nesta situao etnogrfica, cada captulo da
dissertao rastreia um fluxo discursivo diferente a respeito da carne na
contemporaneidade. Estes fluxos so compostos de certos temas animadores,
verdadeiros vernculos, que compem a paisagem fenomenal (Comaroff e Comaroff,

7
Discursive flows, although having focal centers, are inherently open, flexible in scope, and shifting in
both their content and their constituents. Determining what, exactly, falls whitin the purview of any such
flow is itself a product in part of paying careful attention, in part of inspired guesswork, in part of
theoretical and philosophical predilection; making sense of its substance depends on what we () have
spoken of as an imaginative sociology (Comaroff e Comaroff, 2003, p. 166).

19

2003) das contemporneas discusses sobre a carne onde quer que elas ocorram: (1)
riscos ambientais envolvidos na produo de carne; (2) o papel da mesma na dieta
humana, (isto , se ela prescindvel ou no em uma dieta considerada normal ou
adequada); (3) o estado-da-arte das relaes entre humanos e animais na obteno do
produto; sem esquecer-se (4) dos aspectos socioeconmicos e de gnero envolvendo o
consumo e a produo carnvora.
H tambm outro fluxo discursivo que conforma o quadro geral das polmicas
envolvendo a carne, particularmente interessante: as discusses em torno do quanto a
adoo de uma dieta carnvora, em determinado momento da Pr-Histria da espcie,
colaborou para a constituio biolgica dos seres humanos modernos [human kind] e
para a configurao moral da humanidade [humanity] em geral
8
.
A recorrncia de explicaes e justificaes filogenticas para defender o
consumo ou o abandono da carne indica um pouco da potncia, ainda vigorosa, que
argumentos de matriz evolucionria possuem nas sociedades do ocidente moderno.
Mais do que isto, manifesta a permanncia e a vivacidade, enquanto estrutura discursiva
ativa no meio social, de uma narrativa sobre o carter distintivo do humano em que
determinada vitria sobre (ou certo abandono da) animalidade tem um papel central
(Stoczowski, 1994, Ingold, 1995, Sahlins, 2007; Schaeffer, 2009). Nas discusses
enfocadas pelo presente trabalho, o carnivorismo aparece, muitas vezes, como o
dispositivo agenciador desta mudana de status ontolgico, tanto para o bem ou para o
mal: o consumo de carne encarado ora como elemento desencadeador de progresso
(biolgico e moral) da espcie, ora como princpio de degenerao do gnero humano,
dependendo do ponto de vista de quem mobiliza a narrativa evolucionria.
Em relao aos demais temas animadores das discusses sobre carne, a narrativa
da hominizao parece constituir-se, muitas vezes, como a ultima ratio que subjaz a
todos os demais fluxos discursivos quando estes se atualizam sob a forma de cadeias de
justificao: se comer carne indispensvel para a sade, porque nossos corpos foram
constitudos filogeneticamente assim; aos animais que consumimos como alimento, os
predamos porque co-evoluiram com a nossa espcie, e co-evoluiram justamente pelo
fato de serem predados; a carne um alimento viril porque remete caa como

8
Tomo emprestada aqui a distino proposta por Ingold (1995) entre humanidade [humanity], como
condio moral, e espcie humana [human kind], como tipo biolgico, para diferenciar estas duas
instncias.
20

atividade originria dos indivduos do sexo masculino no perodo pr-histrico; entre
outras associaes do tipo - associaes que os crticos ao consumo de carne tambm
no hesitam em inventar imagem e semelhana de suas convices.
Por inveno, no deve ser compreendida a forja de uma proposio ilegtima
ou inconsistente, fantasiosa, mas, ao contrrio, o processo que conduz ao
desenvolvimento e ao refinamento de um argumento. Esta uma acepo do conceito
derivada da inventio da arte retrica, tal como herdada de Aristteles, Ccero e
Quintiliano. Trata-se da busca, entre os elementos disponveis ao discurso, daqueles
atravs dos quais se consegue ser persuasivo em uma determinada circunstncia
discursiva. Neste sentido, importante ressaltar, lembrando Wagner (2010) que o
mundo natural, palco da filognese humana e das nossas relaes de predao alimentar,
tambm pode ser objeto de uma inveno, j que dispositivos ocidentais como a
cincia (e os usos sociais desta) parecem introduzir sistema na natureza e depois se
deleita(m) em descobri-lo ali, (p. 125).
De acordo com Ingold (2000), assim como os humanos possuem uma histria
das suas relaes com os animais, tambm os animais possuem uma histria da sua
relao com os humanos. No entanto, apenas os humanos constroem narrativas desta
histria. Em outras palavras, somente os humanos inventam, no sentido acima
exposto, histrias e narrativas sobre sua relao com os animais. Tambm neste caso
ocorre uma divergncia entre os dois coletivos aqui enfocados (defensores e crticos da
carne), pois uns inventam uma narrativa na qual os animais so vtimas de um sistema
exploratrio, e outros inventam uma narrativa em que esta explorao necessria e
at mesmo legtima desde o prprio ponto de vista do animal. Tal como coloca Serres
(2003, p. 37), os que comem nossa carne obtm uma vantagem decisiva se conseguem
nos persuadir de que esto nos ajudando. Mas, para no adiantar mais pontos do
trabalho que se segue, faz-se necessria uma breve exposio da estrutura dos captulos
da dissertao.
No Captulo 1, exponho a situao etnogrfica disparadora dentro de suas
instncias e circunstncias: a palestra Pecuria Brasileira: desvendando mitos. Como
pano de fundo desta situao etnogrfica especfica, descortina-se o grande evento da
pecuria de corte nacional, a FEICORTE. No Captulo 2, a partir de uma fala especfica
de um dos palestrantes, desenvolvo aspectos concernentes ao carnivorismo como
21

regime alimentar e estrutura de comensalidade, especialmente na sociedade brasileira
contempornea, evocando o auxlio de autores que se dedicaram, direta ou
indiretamente, antropologia da alimentao. No Captulo 3, exploro o fluxo discursivo
que se estrutura em torno de narrativas evolucionrias para defender a pertinncia ou
no do consumo de carne para a dieta humana, tal como exposto anteriormente. Deste
manancial discursivo sobre a evoluo humana, brotam tambm questes de gnero,
corpo e sade necessrias de serem pontuadas. Na sequencia, no captulo 4, desenvolvo
uma reflexo sobre o que pode estar em jogo, para os produtores de carne, quando
formulam uma narrativa positiva sobre as relaes humano-animais ensejadas por sua
atividade. desta narrativa que tomo elementos para compreender o que parece ser um
animal para uma sociedade que vive da sua predao, oscilando entre o sujeito e o
objeto.
Por fim, na concluso, procuro re-amarrar os distintos fluxos discursivos
originados da situao etnogrfica disparadora, a fim de auxiliar na elucidao, ainda
que provisria, do que afinal est em jogo quando produzimos e consumimos carne,
sobretudo no contexto brasileiro contemporneo. Mais do que concluses, prefiro
compreender este re-amarramento como a formulao de hipteses de segunda ordem,
empiricamente ilustradas
9
.
Do que se depreende dos discursos inventados por quem a produz, o ciclo da
carne indica se constituir como uma espcie de consumo produtivo (Marx, 2011;
Fausto, 2001, 2002; Ingold, 2011), ligeiramente diferente da narrativa mais ou menos
generalizada deste processo como algo que comea no pasto (produo) e termina no
prato (consumo). Em outras palavras, como algo que decai ou se dissipa at a
aniquilao total, imagem que se refora pelo fato da produo industrial de carne se dar
atravs de verdadeiras linhas de desmontagem (Dias, 2009).
O que ocorre aqum do pasto e alm do prato tambm so dimenses
importantes: a carne, bem da verdade, no surge como um actante - no sentido de
Latour (1994, 2004, 2009) - somente depois que o animal abatido. E tampouco se
esgota, como princpio agentivo, ao ser incorporada, consumida, pelo organismo
humano. Uma vez consumida, a carne continua produzindo efeitos dos mais diversos,

9
Sigo aqui, novamente, uma prescrio de Florence Weber (2009, p. 61): uma das caractersticas da
pesquisa de campo etnogrfica a de ser antes um fator de transformao de hipteses do que um
dispositivo para confirm-las ou invalid-las.
22

tanto dentro quanto fora dos sujeitos. E principalmente: entre eles. As pginas seguintes
procuraro elucidar como isto ocorre.


























23

1 - VITRINES DA CARNE: NOTAS ETNOGRFICAS SOBRE EVENTOS
AGROPECURIOS

Os nuer tm tendncias para definir todos os processos e
relacionamentos sociais em funo do gado. Seu idioma
social um idioma bovino.
Evans-Pritchard, Os nuer (2008, p. 27)
Porque ela [a pecuria] ainda est a, idntica ao passado,
nestas boiadas que, no presente, como ontem, palmilham o
pas, tangidas pelas estradas e cobrindo no seu passo lerdo
as distncias imensas que separam o Brasil; realizando o
que s o aeroplano conseguiu em nossos dias repetir: a
proeza de ignorar o espao.
Caio Prado J r., Formao do Brasil contemporneo ([1942]
2011, p. 196)


Figura 2: FEICORTE, 2012 (Foto: Caetano Sordi)


24

J unho de 2011.
A cidade de So Paulo, com seu infinito horizonte urbano, marcado pela
presena quase opressiva de enormes edifcios e vias automotivas expressas, parece se
configurar, primeira vista, como a anttese mais bem acabada do universo dito rural.
Do terminal metropolitano do J abaquara, onde desembarco da linha 1 do metr, at o
Parque de Exposies Imigrantes, meu destino final, interpe-se um emaranhado de
ruas e pequenas vielas prprias de um subrbio cinzento, metropolitano, abruptamente
interrompido, na sua fachada oeste, pelo enorme e agressivo vinco produzido na
paisagem pela rodovia homnima ao parque, sobre a qual cruzo atravs de um altssimo
viaduto. Os rudos so todos prprios do universo urbano: motores, aceleradores,
ambulncias, buzinas, helicpteros. Os odores, tambm: escapamento, fumaa
industrial, asfalto novo e recapado, lixo.
Do outro lado, ergue-se uma bem circunscrita e delimitada mancha verde em
meio ao universo predominantemente cinza: o Parque do Estado, que alm de abrigar o
referido centro de exposies, tambm alberga o J ardim Botnico de So Paulo e seu
J ardim Zoolgico. Supostas provncias de natureza em meio civilizao.
O animal mais improvvel de se deparar num contexto como este uma vaca -
relegada, de acordo com nosso imaginrio mais comum, a um buclico e verdejante
ambiente rural, da qual a rodovia dos Imigrantes e o terminal do J abaquara, o viaduto e
seus pilares de concreto, as paredes e muros pichados do subrbio homnimo,
constituir-se-iam como seus antemas quase perfeitos. A temporalidade da vaca - sua
lenta pacincia bovina - no parece ter lugar na atmosfera dinmica, industrial,
imediatista, de So Paulo.
Lugar de vaca tampouco no zoolgico, logo ali frente. Este o espao
prprio daquelas espcies consideradas exticas, distantes, que se apresentam, neste
mesmo espao, sob uma forma muito especial de magia metonmica na qual o
indivduo, devidamente catalogado e separado dos demais, aparece como eidos de toda
uma espcie, seu modo de ser e de ser-percebido pelo mundo humano: a jaula do
macaco, e no de um macaco; o aqurio da cobra, e no de uma cobra. Nada mais trivial
e repetitivo, pouco fabular, que uma vaca. A ideia de rebanho, firmemente ancorada na
imagem dos bovinos, o suprassumo metafrico da ideia de homogeneidade e
massificao. Do outro lado do viaduto, sei que se concentram centenas, qui milhares,
25

destes animais bovinos; especialmente trazidos desde o mundo rural para o seu grande
momento na metrpole: sua exposio anual, a FEICORTE.
Abreviao para Feira Internacional da Cadeia Produtiva da Carne, este o
maior evento indoor do setor pecurio de corte do mundo, ocupando anualmente os
enormes pavilhes do Parque de Exposies Imigrantes. Ao todo, so 50.000m
2
de rea
que, alm da FEICORTE, tambm sediam a FEILEITE (da cadeia do leite) e a FEINCO
(caprinos e ovinos). As trs exposies so organizadas pela empresa Agrocentro.
Em 2011, primeiro ano que a visitei, na sua 17 edio, a FEICORTE contou
com mais de 4.000 animais, de 20 raas bovinas, caprinas e ovinas. Nesta ocasio,
lembro-me de ter estranhado a ausncia de sunos e aves, pois alm dos animais j
citados, havia tambm alguns cavalos.
Das 20 raas bovinas, 13 tiveram competies e foram realizados oito leiles.
Alm disso, 250 empresas estiveram l representadas, das mais diversas naturezas:
entidades representativas do setor, rgos de desenvolvimento e pesquisa, frigorficos,
mquinas e implementos, laboratrios genticos, sade e nutrio animal, bancos e
rgos financeiros, entre outros. O pblico afluente foi de mais ou menos 25 mil
pessoas nos cinco dias de feira (13-17/06), superando os nmeros do ano anterior. De
acordo com seus organizadores, o evento
se destaca como principal vitrine do setor, referncia em qualidade,
pesquisa, tecnologia, equipamentos, produtos e servios. Evento
tradicional, com perfil moderno, a FEICORTE transforma So Paulo
na capital mundial da pecuria de corte, superando as expectativas a
cada edio. A feira oferece excelente oportunidade para contatos,
para o fortalecimento da imagem institucional e para a realizao de
negcios e investimentos. Tambm possibilita o intercmbio de
experincias sobre a cadeia produtiva da carne bovina, permitindo
acesso a um alto nvel de informaes, alm de propiciar discusses
de assuntos estratgicos com especialistas nacionais e
internacionais.
10



No segundo ano em que a visitei (2012), os nmeros prosseguiram
impressionantes: 30 mil visitantes; 22 raas de bovinos, ovinos, caprinos e equinos; 14
leiles e julgamentos de 13 destas 22 raas; negociaes na casa dos milhes de reais;

10
Disponvel em http://FEICORTE.com.br/index.php?p=view&id=1, consultado em 21 de agosto de
2012.
26

centenas de reses comercializadas; um sem nmero de palestras e workshops realizados.
Em seu site na internet, a 18 edio da feira foi saudada como se destacando por seu
pblico selecionado, a elite do setor agropastoril nacional:
Dcio Ribeiro dos Santos, diretor do Agrocentro, empresa
organizadora da FEICORTE, ressalta a presena de pblico
altamente selecionado no evento que foi prestigiado por
pesquisadores, estudantes, pecuaristas, grupos de estrangeiros,
lideranas e autoridades. Dentre os visitantes, destacamos a visita
do ministro da Agricultura Mendes Ribeiro Filho, que participou de
reunio com lideranas de vrias entidades representativas do
agronegcio brasileiro. Foi importante para o setor apresentar as
reivindicaes que afetam diretamente a cadeia produtiva da
agropecuria, avalia. Carla Tuccilio ressaltou o alto nvel dos
eventos paralelos, como congressos, workshops e palestras. A cada
ano, a feira melhora ainda mais.
11


Nesta edio da feira, tambm se realizou, em paralelo exposio de animais
propriamente dita, o Congresso Internacional da Pecuria de Corte, ao qual afluram,
como palestrantes, nomes de peso vinculados ao mundo agroempresarial nacional. A
conferncia magna do congresso foi proferida pelo ex-ministro da agricultura no
governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) Alysson Paulinelli, o qual versou sobre
as lies histricas e perspectivas para a agropecuria brasileira. Ao fim do evento, o
ex-ministro foi homenageado, sendo apresentado como pioneiro da revoluo verde
12

e da modernizao do campo no Brasil. Em 2012, o Agrocentro e seus parceiros
procuraram descentralizar a feira atravs do chamado Circuito FEICORTE, evento
itinerante que reproduziu em quatro capitais do pas
13
um pouco do que ocorre
anualmente em So Paulo.
Ao contrrio de outras feiras agropecurias que visitei sobretudo a
EXPOINTER e a FENASUL, que ocorrem anualmente no Parque de Exposies Assis
Brasil, em Esteio (RS), marcadas por uma esttica regionalista e ruralizada, prpria do
gauchismo e ancorada em certo aspecto rstico e tradicional a FEICORTE destaca-se

11
Disponvel em http://FEICORTE.com.br/index.php?p=noticias_view&id=335, consultado em 21 de
agosto de 2012.
12
Processo de modernizao tcnica vivida pela produo primria de pases menos desenvolvidos ao
longo da segunda metade do sculo XX. Caracteriza-se pelo uso intensivo de fertilizantes, agrotxicos e
outros insumos qumicos, assim como pelo melhoramento gentico de sementes e pela mecanizao da
produo.
13
Cuiab (MT), Salvador (BA), Goinia (GO) e Campo Grande (MS). J untamente com o Estado de So
Paulo, representam os principais plos de produo de gado de corte, onde se concentram mais de 55% do
total das cabeas de gado de corte do pas.
27

como um ambiente fortemente assptico, composto por divisrias de acrlico, uma
arquitetura efmera arrojada e um cdigo de vesturio eminentemente empresarial (fig.
3).

Figura 3: aspecto geral da FEICORTE, edio 2012 (Foto: Caetano Sordi).
O vnculo com o campo assinalado por alguns traos especficos, como a
onipresena musical do ritmo sertanejo; algumas menes esttica rural na arquitetura
e na decorao dos stands, como porteiras e bretes simulados (de plstico ou
compensado de madeira), barris de pinga e cangas-de-boi penduradas; alm de certa
fuso entre o referido vesturio bsico empresarial terno e gravata, palet, tailleur
com elementos oriundos da fazenda, como chapus de caubi, fivelas de cinto
ostensivas, varas de tocar boiada. Sobre este objeto, bastante comum entre os
frequentadores, transcrevo o dirio de campo:
Notei que diversos homens (no me recordo de nenhuma mulher)
carregavam consigo uma espcie de bengala muito fina de madeira
clara, mais grossa na ponta que entra em contato com a mo.
Perguntei a um rapazinho de posse de uma destas bengalas o que era
aquilo. Ao que ele me respondeu, primeiro com surpresa voc quer
saber o que isso?, e depois com gentileza, disse que se tratava de
um instrumento muito comum entre fazendeiros, que se valem dele,
28

dentre outras funes, para cutucar e encaminhar os bois. Como
traz a feira pra dentro de So Paulo, traz a vara tambm, disse o
garoto, que depois foi juntar-se a outros homens mais velhos tambm
de posse do instrumento.

O aspecto geral da feira causou-me a sensao paradoxal de se estar visitando
um enorme shopping center, ainda que povoado de animais de porte, os quais mugem,
balem, defecam, urinam e exalam odores bastante incomuns para minhas experincias
cotidianas. Soma-se a isto certa onipresena da biotecnologia, seus dispositivos, agentes
e discursos, pois boa parte dos pavilhes destinada aos stands da indstria
farmacutica, da indstria da nutrio animal e aparelhagem agropecuria (fig. 4).
Assim descrevo este aspecto da feira e minhas impresses a respeito no dirio:
Os stands, modernos e pasteurizados, lembrando um shopping Center,
avizinham-se dos currais cheios de feno e dos boxes impregnados de
odor animal. Alguns animais, mais jovens, perambulam para alm dos
seus locais de exposio e adentram alguns metros na rea
humana, explorando, sua maneira, as estranhas formas das
coisas dos seres humanos aqui e acol. Um bezerro branco avana
em direo a um stand vazio e comea a lamber o seu suporte. Isso
causa certa simpatia nas pessoas ao redor, que se sentem autorizadas
a tratar o bicho maneira de um pet.


Figura 4: Stand de companhia farmacutica na FEICORTE, edio 2012. Repare-se o lema: science for a
better life cincia para uma vida melhor. Grande parte das mulheres da feira se encontra alocadas
nos servios de vendas e recepo. (Foto: Caetano Sordi)
29

Os bovinos ocupam as pores laterais do pavilho central, e so ordenados
segundo a raa e o proprietrio. No corredor ao centro deste pavilho, localizam-se os
stands das grandes associaes de criadores e produtores (ABCZ, Angus, etc.), alguns
deles acompanhados de uma ou outra baia onde ficam reses mais importantes ou
destacadas. Aos caprinos, ovinos e cavalos so relegadas posies secundrias, logo que
se entra no Parque de Exposies.
Os momentos em que uma rs colocada no centro das atenes, como nas
premiaes, costumam causar algum desconforto nos animais, aparentemente
incomodados com a efervescncia humana a sua volta. Nas trs feiras visitadas
(EXPOINTER, FENASUL e FEICORTE), estes momentos eram acompanhados
musicalmente pelo tema da vitria popularmente conhecida no Brasil como a msica
do Ayrton Senna e forte exultao por parte de seus proprietrios e manejadores
humanos. Eis a descrio de uma destas cenas, ocorrida na FENASUL de 2011:
O anncio da vaca vencedora seguiu-se de uma aglomerao de
familiares do criador, funcionrios, amigos, colegas, fotgrafos e
curiosos ao redor da grande campe, conduzida ao centro do piquete.
A vaca parecia observar tudo maneira pachorrenta das reses,
esperando pacientemente cada uma das conformaes possveis de
fotografia (agora os amigos! agora com o juiz! vai l com o
pai, fulana!) se consumar. Um senhor idoso, fotgrafo, ficava a
alguns metros da vaca fazendo sinais com as mos para o animal,
com o objetivo de atrair o seu rosto naquela direo. Seu baile
mimtico, pontuado por mugidos e outras onomatopias estranhas,
era realmente digno de nota, e vrias pessoas riam do seu
comportamento. (dirio de campo)

A proximidade do pblico com os animais, principalmente por parte das pessoas
visivelmente alheias ao mundo rural, mediada por certa mistura de desconfiana,
receio e curiosidade. Na edio de 2011 da FEICORTE, observei uma faxineira
perguntando a um tratador se poderia limpar por aqui... se no tem perigo dele [o
animal] me dar um coice. Reao, alis, muito frequente, que eu mesmo havia
esboado alguns meses antes em outra oportunidade. Em meu dirio de campo da
FENASUL de 2011, descrevo a seguinte situao:
Achei digno de nota o modo com que insiders e outsiders (eu includo
na categoria) se portavam frente aos animais. Pessoas visivelmente
mais acostumadas com a lida destas exposies transitavam com
muito mais naturalidade e desenvoltura pelo pavilho, em franca e
ntida proximidade com os animais. Visitantes de fora receavam
30

avanar nos corredores dos bovinos e olhavam tudo com muita
curiosidade, no raro fotografando o momento como algo inusitado.
Do dilogo de um casal adulto-jovem, passeando entre as vacas
Jersey, ouvi algo como: manda essa foto pra tua me, ela no vai
acreditar!. Crianas demonstravam um misto de atrao e reserva.
Comecei a me dar conta que eu mesmo demonstrava sinais de receio,
na medida em que reparei que no encarava os animais maiores
diretamente nos olhos e me sentia muito mais a vontade entre as
ovelhas (aprisionadas, menores e evocadoras de mais
condescendncia) do que entre as vacas e os bois. Tambm me senti
um pouco ridculo ao notar que evitava ficar atrs das vacas por uma
espcie de reao espontnea contra supostos coices o que pode ser
esperado de um cavalo, mas no de uma vaca. Com o tempo, e com
mais segurana, comecei a observar melhor os bois e seu lento e
pacfico ritmo para tudo: comer, mugir, andar e se levantar. Evocou-
me muito a ideia de algo pesado, terrestre, pacfico. At me afeioei.

H um padro que se repete nestas rpidas e receosas aproximaes: as pessoas
se aproximam com cautela dos animais para tirarem fotos inusitadas de si prprias com
as reses e, para sua alegria, sobretudo das crianas, alguns bezerros permitem serem
afagados na testa, logo abaixo dos olhos (fig. 5). Animais maiores tambm se deixam
afagar pelos visitantes, mas a aproximao sempre cautelosa.

Figura 5: aproximao cautelosa com zebu na FEICORTE edio 2011. (Foto: Caetano Sordi)
31

Tambm na edio de 2011 da FEICORTE, um senhor idoso, visitante, estava
sentado entre as enormes reses zebunas da raa Sindi. Ao ser questionado por mim se
era o dono daqueles animais, respondeu-me que no, mas que era um apaixonado
[por bovinos]. Em suma, percebe-se imediatamente quem so os visitantes que possuem
certa educao da ateno (Ingold, 2000) na interao com os bovinos - o que no
pode ser aplicado, de maneira nenhuma, para o caso do prprio etngrafo.
J amais tive proximidade com o universo rural, e tampouco intimidade com
animais de produo. At ento, minha interao mais direta com animais havia se
restringido s espcies de companhia, notadamente ces e gatos, e, muito
excepcionalmente, alguns cavalos. Assim, o processo de aproximao com o universo
da carne tambm se configurou como uma verdadeira alfabetizao com seu modo de
vida e categorias prprias, atravs das quais a prpria atividade agropastoril e suas
relaes com o mundo circundantes so construdas e significadas.
A familiarizao com este parafraseando Evans-Pritchard (2008) - idioma
bovino, foi um processo bastante lento, ainda inacabado. Ao longo da pesquisa, fui
paulatinamente aprendendo a distinguir as raas e estirpes, bem como a aplicao de
conceitos e categorias at ento desconhecidas, como precocidade, rusticidade,
entre outras. As feiras agropecurias, como principais ns de rede do mundo pastoril
(Wilkie, 2010), conformaram-se neste sentido como um lcus privilegiado para a
observao de campo, pois em poucos e concentrados dias o idioma bovino era
verbalizado e atualizado livre e intensamente. tambm uma ocasio em que a cadeia
produtiva, nos seus vrios elos, exprime sua visibilidade. As pessoas esto propensas a
serem observadas e questionadas; tornam-se, bem por isso, mais acessveis para a
abordagem de visitantes e curiosos.
De maneira progressivamente diferencial, fui distinguindo primeiramente as
caractersticas prprias de taurinos (Bos taurus taurus) e zebunos (Bos taurus indicus).
Depois, fui conseguindo classific-las em suas declinaes raciais: Angus, Hereford,
Charols e demais variedades europeias de um lado; Sindi, Nelore, Brahman e demais
variedades indianas do outro. Os cruzamentos entre ambos tambm foram aparecendo,
assim como as mestiagens nacionais: Brangus, Canchim, Simbrasil, etc. Igualmente
familiar tornou-se a distribuio geogrfica destas raas no territrio brasileiro e suas
32

peculiaridades regionais: o predomnio das estirpes zebunas no Centro-oeste e a
especializao cada vez mais forte do Pampa nas reses europeias.
Como argumenta Leal (2011), as categorias utilizadas pelos pecuaristas para
falar de seus bois frequentemente se misturam com aquelas mobilizadas para se
referirem a si prprios e seu grupo social. Uma boa gentica um atributo aplicvel
tanto para seres humanos quanto para animais, principalmente s estrelas do milionrio
(e fortemente tecnicizado) mercado do gado de elite.
Nas feiras, e principalmente na FEICORTE, alguns animais recebem destaque
especial, o que se aplica ora raa, ora a alguns indivduos em particular. Do dirio de
campo, escrevo sobre um espcime em particular:
Da estirpe Canchim, destaca-se o macho Gato LS, propriedade da
fazenda Calabilu (Capo Bonito, SP). Gato era o primeiro animal
exposto no box 06. Pachorrentamente deitado, com seus 1.226Kg
sobre o cho, realmente um animal digno de nota, enorme de gordo
e prximo do que poderia ser classificado como uma besta. Alm
do tamanho colossal, Gato possui vrias caractersticas prprias de
sua ascendncia zebuna, que so ligeiramente mais excntricas que
aquelas das raas europeias. Acima de Gato havia um enorme pster
com as suas faanhas, dentre as quais: dez vezes Grande campeo,
27 vezes Campeo de Touro e filhos e 18 vezes campeo de
Prognie e pai. Alm disso, a revista da Associao de Canchim,
em reportagem especial denominada A frmula dos campees,
contm uma grande foto de Gato e seu criador, informando que o
animal pai de 832 filhos espalhados por 29 criatrios, sendo que
69 deles so premiados.

E tambm do dirio de campo, agora sobre uma raa inteira destacada na
exposio:
ainda no corredor de acesso (este, por sua vez, pavimentado com um
tapete vermelho), os visitantes so recepcionados por vrios
animais da linhagem Wagyu (originria do Japo) e produtora do
chamado Kobe beef, considerada a mais saborosa e sem dvida a
mais valorizada carne do mundo. As reses waygu expostas na entrada
da feira pertencem fazenda Yakult, que tambm possui um stand
promocional junto aos animais. Neste stand, h uma geladeira de
porta transparente que armazena os preciosos cortes para venda,
expondo tambm uma pequena lista de preos (estes, por sua vez,
nada pequenos). O corte mais caro, contra-fil Premium beef, custa
R$ 350,00 o Kg. Os cortes mais baratos oscilam entre R$ 70 e 80.
Segundo um orgulhoso funcionrio da fazenda Yakult, embora de
fora [o Waygu] no parea nada de mais, possvel faturar com um
animal de peso mdio at R$ 10.000, coisa que no se retira de um
33

Red Angus e outros animais aparentemente mais bem fornidos: de
um Angus[...] d pra tirar uns quatro, cinco mil.

Desde o incio, nota-se uma pronunciada diviso de gnero nos papis
representados pelo staff da FEICORTE, sendo a lida com os animais uma funo
visivelmente masculina e a recepo e os servios, bem como o atendimento nos stands,
uma funo manifestadamente feminina (e jovem). O pblico circulante composto, em
sua maioria, de homens de meia idade, predominantemente vestidos para negcios.
Alguns sotaques e modos de falar denotam o pertencimento de muitos visitantes aos
interiores do Brasil, mas a profuso de iPads, smartphones, notebooks, por sua vez,
denota sua forte insero nos padres do mercado global e do consumo tecnolgico. H
de se destacar, igualmente, a forte presena institucional (Faculdade de Veterinria da
USP, Secretarias estaduais da Agricultura, CNA, etc.) e financeira (Banco do Brasil,
Bovespa, etc.) entre os stands. Chama muita ateno as recorrentes menes ao Brasil e
nacionalidade por toda parte, revestidas de certo tom ufanista e grandiloquente. De
um banner afixado logo acima de uma das pistas de competio l-se: solues do
tamanho do Brasil. Mais diante, em um stand de medicamentos para animais, l-se:
Pecuria forte, Brasil forte(fig. 6). O eixo central do pavilho de exposies, por sua
vez, decorado com bandeiras de todos os estados brasileiros. como se a feira nos
dissesse, indiretamente, que a atividade pecuria une o territrio nacional (fig. 7).

Figura 6: stand de medicamentos homeopticos na FEICORTE edio 2011. (Foto: Caetano Sordi)
34


Figura 7: eixo central do pavilho de exposies da FEICORTE, edio 2012, com as bandeiras dos
estados brasileiros. (Foto: Caetano Sordi)
O pavilho mais ao fundo de todos (que tambm d acesso s salas onde
ocorrem as palestras, workshops e conferncias) destinado iniciativa denominada
Espao Carne, descrita pelos organizadores como uma ao focada na demonstrao
dos trabalhos realizados pelas empresas, pecuaristas e todos os envolvidos na cadeia
produtiva, na busca pela excelncia da carne brasileira
14
. Neste espao, encontram-se
reunidas as principais empresas que representam os diversos elos da cadeia de
produo de carne, visando o aumento do consumo, promoo dos conceitos de
sustentabilidade na pecuria de corte e divulgao das qualidades da carne
15
.
Em termos micos, a produo de carne descrita como possuindo etapas
dentro da porteira e fora da porteira, isto , respectivamente relacionadas com a
criao e preparao dos animais, de um lado, seu abate e transformao em carne, de
outro. H uma forte presso no universo da carne para que os elos desta cadeia, s vezes
muito distantes geograficamente, se tornem mais harmnicos em sua relao mtua.
Como argumentarei adiante, esta presso relaciona-se com a ideia de que todos os riscos
(atuais e potenciais) engendrados pela pecuria podem ser resolvidos com a
reconstruo e boa concatenao em larga escala de seus ciclos de produo e consumo,
desde que mediada pelo uso de novas e sofisticadas tecnologias limpas (Hanningan,

14
Disponvel em http://FEICORTE.com.br/index.php?p=view&id=12, consultado em 24 de outubro de
2012.
15
Idem.
35

2009; Spaargaren e Mol, 1992), donde a repetio, neste contexto, do chamado mantra
da sustentabilidade (Zhouri e Oliveira, 2012).
NA FEICORTE, o Espao Carne, alm de concentrar os stands destinados
degustao, responsabiliza-se pela concretizao espacial deste ideal de harmonia,
modernidade e transparncia da cadeia. a parcela da feira que mais se aproxima
ideia de uma vitrine da pecuria nacional como atividade dinmica e moderna, mas
ancorada em determinada tradio que garante seu diferencial em relao carne
produzida em outros pases e sua qualidade natural.
1.1 O Caminho do Boi e o Caminho da Carne
Na edio de 2011, uma iniciativa particularmente interessante se destacava no
Espao Carne, denominado Caminho do Boi
16
. Tratava-se de uma didtica
demonstrao de como deve ser o chamado manejo racional, prtica cientificamente
mediada cujo objetivo reduzir o nmero de contuses e o nvel de estresse das reses
nas suas horas mais crticas. Ao longo do percurso, diversos banners salientavam ao
produtor as vantagens de se adotar o sistema ali exposto, demonstrando, com muitos
dados estatsticos, as perdas de produtividade e lucratividade provocadas pelos mtodos
tradicionais.
Transcrevo a experincia tal como relatada do dirio de campo:
Assim que abre a porteira, somos colocados no brete coletivo. Uma
imensa p (devo chamar assim no desconhecimento do termo
especfico) nos empurra em direo a outra porteira. O mediador
explica que no manejo racional, diferentemente dos mtodos mais
rudimentares, esta p substitui os arpes e varas utilizados nos
abatedouros tradicionais, apontando para uma televiso de plasma
onde demonstrado o manejo antigo. As imagens parecem
intencionalmente feitas para chocar. Logo em seguida, cada visitante
encaminhado individualmente ao tronco de conteno, que
conduz, na sequencia, ao estgio onde os bois so pesados e
identificados. Neste momento, um totem de informaes pergunta
quanto custa esse percentual a mais de hematomas para o seu
negcio? (...)
Exposto ao stress e s batidas no desejveis, o boi acabar
produzindo uma carne pssima, 12 milhes de kg de carne so
jogados fora no Brasil por hematomas na carcaa, informa outro
totem. O stress pr-morte, igualmente, produz toxinas que acabam

16
O caminho era promovido por uma empresa do ramo de conteno e pesagem animal.
36

depreciando a qualidade da carne, o que ser sentido no bolso do
produtor e, em maior medida, na balana comercial nacional (...)
O momento crtico do circuito a chegada no box de
atordoamento, isto , o local onde as reses so mortas com um golpe
na testa. Ao contrrio do que eu ingenuamente imaginava, percorrer
o caminho do boi, como um boi, termina neste estgio. Ao chegar o
momento da morte, somos colocados de volta na posio do
manejador humano, que, atravs de um painel de manivelas, controla
toda a operao, desde fora. O perspectivismo limitado, portanto,
ao pr-abate. interessante notar tambm que vemos o box desde
cima, isto , de um ponto de vista nada prximo daquele do animal
que o experimenta. Em todo caso, foi a primeira vez que me encontrei
na presena do local/dispositivo que abate os animais: um ato que, no
manejo racional (ou abate humanitrio) feito basicamente
atravs de manivelas. (...)
O boi entra por uma portinhola, empurrado para frente por uma p,
sua cabea afixada por uma pescoceira (na lateral) e uma bandeja
(na vertical) que permitem ao abatedor mais agilidade e
instantaneidade na hora do golpe. A pescoceira e a bandeja evitam
que o animal balance sua cabea para todos os lados, suprindo uma
dificuldade dos mtodos tradicionais. Assim que dado o golpe
certeiro, uma das paredes laterais do box se abre e o boi despejado
para o lado, liberando espao para o prximo. (...)
Donizetti foi meu instrutor de abate racional. (...) comunicou que
havia estado recentemente no Rio Grande do Sul, visitando as plantas
da Marfrig na Campanha e no oeste do Estado. Gentilmente,
convidava as pessoas a operar as manivelas. Depois, manejava ele
mesmo, nos 13 segundos (apenas!) que se possvel de abater uma
res. Ao final, diz que o manejo racional para o bem estar dos dois
[animal e humano]. Assim que pergunto sobre a insalubridade do
trabalho de abate (para os humanos), Donizetti assente. Um consultor
do SEBRAE, logo atrs, mete-se na conversa e diz , da muita causa
trabalhista.


De fato, por conta do seu frentico ritmo industrial, o sistema-carne figura entre
as cadeias produtivas que comportam mais riscos para os trabalhadores. De acordo com
o Ministrio da Previdncia Social, as atividades relacionadas ao setor possuem grau de
risco trs vezes maior em relao a outras atividades (MPS e MTE, 2009). Na desossa
de frango, a chance de um funcionrio desenvolver tendinite 743% maior a de
qualquer outro trabalhador. Nas regies onde se concentram frigorficos, grande parte
dos processos que correm na J ustia do Trabalho diz respeito a esta atividade
17
. Por
conta desta e outras alegaes de risco (Beck, 2010) envolvendo etapas da cadeia da
carne, o setor tem em alta conta iniciativas pedaggicas e de esclarecimento como o

17
Informao disponvel em: http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1869, consultado em 21 de
maro de 2012.
37

Caminho do Boi, cuja existncia parece apontar para um objetivo duplo: por um lado,
fomentar uma imagem mais positiva e transparente do setor perante a sociedade; por
outro, instruir os produtores rurais a respeito da necessidade de adoo destas prticas
como oportunidade de negcio e diferenciao.
Na edio de 2012, o Caminho do Boi se expandiu e se tornou o Caminho da
Carne: uma representao mais completa e simplificada de toda a cadeia produtiva, e
no apenas do momento do abate. Enquanto no Caminho do Boi era proposta uma
espcie de experincia perspectivstica (colocar-se no lugar do animal ou do produtor),
na verso ampliada do circuito, o Caminho da Carne, era incentivado um verdadeiro
exame de conscincia por parte do produtor, que recebia no incio do trajeto uma
pequena planilha atravs da qual lhe era possvel realizar uma auto-avaliao da sua
prpria situao em contraste com o modelo ideal ali representado.
O Caminho do Boi enfocava o momento crtico do abate, pontuando o circuito
com informaes e dados sobre os danos qualidade da carne (e ao bolso do
pecuarista) derivados do modelo tradicional. O Caminho da Carne, em contrapartida,
propunha uma viso mais sistmica, articulando todos os passos da cadeia produtiva, do
qual o abate apenas um momento. Os esclarecimentos centravam-se agora na
importncia do agronegcio para o desenvolvimento nacional e da pecuria de corte
para o agronegcio, bem como sobre o potencial brasileiro de produzir protena
animal com qualidade para o resto do mundo. Logo na entrada, lia-se: Faa o caminho
da carne que d lucro e fortalece o Brasil. Outro banner, j dentro do circuito,
informava que a cadeia da carne corresponde a 7 milhes de empregos, 6,5 milhes de
reais em impostos arrecadados, e que 22,15% do PIB brasileiro do ano anterior (2011)
havia sido gerado pelas distintas cadeias do agronegcio nacional.
Outra diferena entre os dois circuitos era a presena de alguns animais no
Caminho da Carne, o que no havia em absoluto no Caminho do Boi. Estes, l se
encontravam para simular um confinamento modelo, bastante assptico, como todo o
resto da feira. O confinamento modelo servia para ilustrar, na prtica, as alegadas
vantagens da criao intensiva
18
. Informaes adicionais sobre sanidade e bem-estar

18
Alguns elementos apontam para a existncia de uma forte presso no agronegcio brasileiro a favor da
intensificao da pecuria de corte. Atualmente, a maior parte dos confinamentos brasileiros dedica-se
complementao da engorda na estao seca. A maior parte do rebanho criada extensivamente. A
38

animal, prticas sustentveis de manejo do sistema lavoura-floresta-pasto, nutrio
animal e financiamento rural tambm eram oferecidas, conformando uma exposio
didtica e miniaturizada dos diversos ciclos da cadeia da carne. Mas que cadeia, afinal
de contas, esta?
1.2 A Centralidade da Carne: Conjunturas globais e locais

O Brasil o segundo maior produtor de carne bovina atrs dos Estados Unidos,
sendo simultaneamente o maior exportador mundial deste produto. O pas tambm
lidera o ranking dos exportadores de frango e est em quarto lugar entre os exportadores
de carne suna. Em 2011, foram abatidas 21.776.467 cabeas de gado bovino no pas,
quase um boi para cada dez habitantes.
19
Tambm neste ano, o rebanho nacional atingiu
a marca de 212.797.824 cabeas (IBGE, 2011). Em suas projees, o MAPA considera
que
O pas dever manter a liderana de principal exportador de carnes,
bovina e suna, bem como manter seu terceiro ou quarto lugar nas
exportaes de carne suna. Em 2018/19 as relaes Exportao do
Brasil/Comrcio mundial, devem representar: Carne bovina, 60,6% do
comrcio mundial; carne suna, 21% do comrcio mundial; carne de
aves, 89,7% do mercado mundial (MAPA, 2009, p. 24).

Tambm de acordo com o ministrio, os complexos da protena animal, da soja e
sucro-alcooleiro foram os setores que mais contriburam para a o crescimento das
exportaes agrrias do pas entre 2004 e 2010. Do montante exportado em 2010, soja,
carne e derivados sucro-alcooleiros representaram quase 70% das exportaes agrrias
nacionais, dentre os quais 21,4% oriundos somente do setor de carnes (MAPA, 2011).
Tambm em 2010, os produtos bsicos somaram 44,6% das exportaes totais, o que
faz das carnes um dos principais produtos brasileiros no mercado externo. Em 2011, os
produtos bsicos elevaram para 47,8% sua participao na cesta de exportaes
nacionais. Para 2012, taxas parecidas se mantm
20
.

expanso dos gros, sobretudo da soja, no entanto, pressiona cada vez mais a pecuria a liberar terras para
a agricultura, o que j vem acontecendo de maneira regular desde 1999 (Brando et al, 2005).
19
Disponvel em: http://sigsif.agricultura.gov.br/sigsif_cons/!ap_abate_estaduais_cons?p_select=SIM,
consultado em 29 de agosto de 2012.
20
Disponvel em:
http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=1846&refr=608, consultado
em 25 de setembro de 2012.
39

Este protagonismo dos produtos de origem animal nas exportaes brasileiras
pode ser compreendido como uma das consequncias da reestruturao produtiva
nacional ocorrida na dcada de 1990 (Coutinho, 1997; Gonalves, 2001; Laplane e
Sarti, 2006; Lisboa, 2009; entre outros). Intensificou-se, a partir desta dcada, uma
especializao da pauta de exportaes brasileira, concentrada, em termos de valor, em
commodities agrcolas e minerais. O vido mercado chins tem sorvido grande parte
destes produtos primrios produzidos no Brasil, seja como insumo para sua cadeia
industrial, seja para suprir as necessidades alimentares de sua volumosa populao.
H, presentemente, uma intensa discusso a respeito de uma possvel
reprimarizao e desindustrializao da economia nacional (Nassif, 2006; DIEESE,
2011), acompanhada, segundo alguns autores, por uma viso triunfalista dos
agronegcios: segundo seus intrpretes, a (re)primarizao da economia brasileira tem
sido o grande motor do crescimento econmico e ns deveramos agradecer s
agroestratgias pela maneira como est se dando (Almeida, 2011, p. 37).
A reprimarizao da economia brasileira vem promovendo uma inteno de
identificar a pecuria no apenas com o Brasil retrgrado e dos sertes, mas de elev-la
uma ideia de nao moderna e agroindutrial (Bruno, 2009; Lewgoy e Sordi, 2012).
Iniciativas multissetoriais como a campanha publicitria Sou Agro, lanada em 2011
pela CNA e outros agentes do agromundo, so atualizaes desta inteno. O Estado,
por sua vez, parte ativa neste processo, na medida em que o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) quem subsidia os macroagentes da
atual produo brasileira de commodities, dentre eles os grandes frigorficos (Lisboa,
2009)
21
. Atualmente, o setor de carnes passa por um processo de grandes fuses e
formao de grandes complexos empresariais com insero internacional, como JBS
Friboi, Marfrig e BrFoods
22
.

21
Como salienta Singer (2012), o programa de 2010 do Partido dos Trabalhadores (PT), que atualmente
encabea a coalizo governista no pas, defende que cabe ao Estado aprofundar as polticas creditcias
para o setor produtivo por parte do BNDES e apoiar a internacionalizao das empresas brasileiras (p.
123).
22
Em maio de 2012, aps reunio com cerca de 1.500 pecuaristas, a Associao dos Criadores de Mato
Grosso do Sul (ACRISUL) e mais oito entidades da cadeia produtiva da carne publicaram a chamada
Carta de Campo Grande contra o monoplio dos frigorficos. No documento, redigido para ser entregue
Frente Parlamentar da Agropecuria (FPA), os produtores acusam o Governo Federal, atravs do
BNDES, de adotar uma poltica de capitalizao dessas empresas, cujas conseqncias seriam a
concentrao do setor em poucas mos. De acordo com o documento, A concentrao, alavancada
com recursos pblicos, afeta a rentabilidade do negcio pecurio e, consequentemente, dificulta
40

Em paralelo a esta pujana, alguns eventos das ltimas dcadas tm contribudo
para o adensamento da averso da carne nas sociedades industriais e o aumento do
nmero de adeptos de dietas vegetarianas, sobretudo nos pases do hemisfrio norte e do
mundo anglo-saxnico. A crise da Vaca Louca, nos anos 1990, alm de despertar
desconfianas sobre a qualidade sanitria da carne, tambm gerou certa repulsa social
em relao aos contemporneos mtodos de criao animal: a alimentao de bovinos
atravs de rao preparada com restos de seus semelhantes pde ser simetrizada na
opinio pblica com uma espcie de canibalismo (Lvi-Strauss, 2009). No contexto
brasileiro, para alm destes fatores, tambm contribuem para a consolidao de uma
retrica anti-carnvora em setores urbanos as frequentes denncias de trabalho escravo
envolvendo a produo pecuria nas regies norte e centro-oeste
23
, o avano do pasto
sobre os biomas do Cerrado e da Amaznia, tambm nestas regies (Almeida, 2011;
Mesquita, 2011; Costa, 2011; Greenpeace, 2009a, 2009b), alm das ms condies de
trabalho existentes no campo da indstria frigorfica. Lisboa (2009) insere a criao de
gado de corte no rol de commodities que
embora no requeiram demasiada energia, provocam desmatamento,
poluio ambiental e esgotamento de recursos hdricos como o caso
da soja, da cana de acar, da criao de gado e do eucalipto,
competindo entre si e com outras culturas pelo solo barato ou
apropriando-se da terra pblica por meio da grilagem, empurrando a
fronteira agrcola do pas cada vez mais adiante em meio ao cerrado e
Floresta Amaznica (p. 232)

Costa (2011), por sua vez, define a pecuria de corte em sua mais recente frente
de expanso (a Amaznia) como uma trajetria scio-tecnolgica de cunho patronal,
marcada pelo uso extensivo do solo, pela homogeneizao da paisagem (com alto
impacto para a biodiversidade) e pela formao intensa de dejetos. O Greenpeace, por
fim, atravs de sucessivos relatrios (2009a, 2009b), tem sido um importante vetor de
alegao pblica de riscos (Beck, 2010) envolvendo a produo de carne no Brasil. Em
seu detalhado documento sobre o estado do desmatamento em Mato Grosso, a
organizao chega a recomendar a adoo de um estilo de vida visando reduzir suas

a sustentabilidade do setor, baseada no trip: ambientalmente correta, socialmente justa e
economicamente vivel.Fonte: http://www.acrimat.org.br/noticias/5389, consultado em 29 de agosto de
2012.
23
A criao de gado bovino o segmento econmico mais recorrente na lista suja do trabalho escravo,
registro mantido pelo Ministrio do Trabalho e Emprego: 153 em um total de 391 entradas listadas.
Fonte: http://reporterbrasil.org.br/listasuja/resultado.php, consultado em 05 de dezembro de 2012.
41

prprias emisses de carbono. Isto pode incluir a reduo na quantidade de carne
consumida (Greenpeace, 2009b, p. 15).
Na arena internacional, a pecuria bovina passa por uma intensa crise de imagem
pblica desde a proliferao de estudos e relatrios tcnicos que estabelecem relaes
entre sua atividade e o fenmeno do aquecimento global. De acordo com vrios destes
estudos, grande parte das emisses de gs metano na atmosfera proviria das funes
excretoras dos animais da pecuria, sendo este setor da economia, juntamente com a
indstria pesada e o setor automobilstico, os principais fatores antrpicos no processo
de aquecimento do planeta.
Alertas a respeito do risco socioambiental envolvido na produo de carne e na
criao industrial de animais circulam na opinio pblica internacional pelo menos
desde 1992, quando o divulgador ambiental
24
J eremy Rifkin lanou o livro Beyond
Beef: rise and fall of cattle culture. Neste mesmo ano, Rifkin e seis organizaes civis,
dentre elas o Greenpeace, iniciaram uma campanha miditica encorajando a reduo do
consumo de carne vermelha nos Estados Unidos com o objetivo de diminu-lo em 50%.
Em 2006, a FAO publicou um famoso relatrio, denominado Livestocks Long
Shadow, sobre os efeitos da atividade pecuria no processo de aquecimento global.
25

J untando estas consternaes ambientais com a questo do crescimento demogrfico, a
mesma agncia das Naes Unidas passou a aventar a possibilidade de substituio da
carne por insetos comestveis [edible insects] em larga escala, incentivando pesquisas e
iniciativas a respeito
26
. Trs anos depois, outro documento, produzido por
parlamentares verdes da Escandinvia (Holm e J okkala, 2009) tece crticas de cunho
ambiental ainda mais agudas indstria da carne, e recomenda explicitamente a adoo
do vegetarianismo. Por fim, outro documento redigido na Escandinvia, de
responsabilidade do Stockholm Water Institute (SWI), denominado Feeding a thristy
world (2012), reitera a alegao de que h um desequilbrio em relao ao consumo de
recursos hdricos na balana agricultura/pecuria.

24
De acordo com Hanningan (2009), divulgadores e popularizadores ambientais costumam ser
personalidades com forte integrao miditica que assumem o papel de empreendedores argumentativos
para as causas socioambientais.
25
De acordo com o documento, A criao de principalmente de bovinos, alm de ocupar 70% das terras
agriculturveis, consumiria 8% da gua disponvel no planeta e despejaria um enorme volume de gs
metano (CH
4
) na atmosfera, constituindo-se, juntamente com a indstria pesada e o setor automobilstico,
como um dos principais responsveis pelo aquecimento da Terra.
2626
Informao disponvel em: http://www.fao.org/forestry/65429/en/, consultado em 28 de novembro de
2011.
42

Concomitantemente questo socio-ambiental, verifica-se atualmente uma
crescente globalizao do bem-estar animal (Singer e Park, 2012) como presso de
tipo upside-down. De acordo com Singer e Park, pessoas no mundo industrializado
esto comeando a demonstrar preocupao a respeito do tratamento de animais para
alm das fronteiras de seus pases (idem, p. 128): ou seja, o tipo de cobrana tica e
sanitria levada a cabo, nas ltimas dcadas, por organizaes de direitos animais na
Europa, na Amrica do Norte e na Oceania (a Austrlia, ptria de Singer, um dos
beros do movimento de direitos dos animais), passou a transcender as fronteiras destes
pases, atingindo seus fornecedores em desenvolvimento
27
.
Esta conjuntura afeta diretamente pases como o Brasil, que o maior
exportador de protena animal do planeta e que tem nos exigentes (e vidos por carne
28
)
mercados do mundo desenvolvido sua clientela preferencial. Embora o Brasil j se
constitua como uma potncia produtora e exportadora de carne, a maior parte dela ainda
consumida dentro do prprio pas (algo como 75% do total produzido
29
). A inteno
do setor conquistar estes mercados e ampliar a porcentagem da carne nacional
destinada exportao. Por vezes, a relao com os parceiros comerciais descrita de
maneira dramtica. Como relata uma publicao do setor (pertencente empresa que
organizara o Caminho do Boi),
os frigorficos so obrigados a fazer a conferncia de identificao,
por brincos ou chips, de todos os animais cuja carne ser exportada
para a Unio Europia. Se no houver conformidade na leitura, todo
o lote descartado para exportao. (Manejo, out-nov. 2009)

Rastros da efetivao prtica da demanda por bem-estar animal podem ser
notados atravs de diversos dispositivos de governana
30
, nacionais e globais,
atualmente em voga: em 2011, a ISO (International Organization for Standardization)

27
Fraser (2001, 2010) assinala a publicao do libelo Animal Machines (1964), de autoria da britnica
Ruth Harrison, como o grande evento desencadeador da nova percepo sobre as criaes animais nos
pases anglo-saxnicos. Ademais, h certo consenso na literatura sobre a vanguarda destas sociedades na
questo do bem-estar e dos direitos dos animais.
28
As cinco sociedades nacionais que mais consomem carne no mundo (per capita) so pases da OCDE:
Luxemburgo, Estados Unidos, Austrlia, Nova Zelndia e Espanha. (FAOSTAT, 2010).
http://faostat3.fao.org/, consultado em 25 de setembro de 2012. http://chartsbin.com/view/bhy, idem.
29
http://www.agricultura.gov.br/animal/mercado-interno, consultado em 25 de setembro de 2012.
30
Sigo a definio do conceito por Shore e Wright (1997): We use governance to refer to the more
complex process by which policies not only impose conditions, as if from outside or above, but
influence peoples indigenous norms of conduct so that they themselves contribute, not necessarily
conscious, to a governments model of social order.
43

lanou os parmetros para o selo de certificao ISO 26000, que pela primeira vez
incluem o respeito ao bem-estar dos animais envolvidos na prtica econmica (Park e
Singer, 2012). J a FAO, rgo das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura,
possui desde 2008 um portal na web denominado Gateway to Farm Animal Welfare,
que rene distintas informaes sobre a criao de animais, incluindo o estado-da-arte
do bem-estar em vrios pases e setores da produo agropastoril. O portal visa facilitar
a troca de informaes e experincias entre autoridades, especialistas e demais
interessados, baseando-se na ideia de que prticas de bem-estar animal, mesmo com
seus evidentes impactos positivos para a produtividade, encontram-se bastante
defasadas e insuficiente disseminadas ao redor do globo, tanto em unidades produtivas
industriais quanto tradicionais
31
. Alm disso, percebe-se uma lenta mudana de foco de
atuao da chamada OIE (Organizao para a Sade Animal), fundada em 1924, do
campo da sanidade animal, pura e simples, para o campo mais amplo do bem-estar e do
tratamento tico dos mesmos.
No Brasil, destacam-se dois documentos bastante importantes a este respeito. O
primeiro, a Instruo Normativa n
o
3, do Ministrio da Agricultura, Pecuria e
Abastecimento (MAPA), de 17 de janeiro de 2000, estabelece os requisitos mnimos
para a proteo dos animais de aougue e aves domsticas, bem como os animais
silvestres criados em cativeiro, antes e durante o abate, a fim de evitar a dor e o
sofrimento (MAPA, 2000). Complementarmente, a Portaria n 185, de 17 de maro de
2008, do mesmo Ministrio, estabelece a criao de uma Comisso Tcnica Permanente
responsvel pelo fomento de aes que garantam o bem-estar animal, da qual fazem
parte, alm do prprio rgo, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria
(EMBRAPA) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal
(ETCO) da UNESP (Universidade Estadual Paulista), sediado em J aboticabal/SP.
Atualmente, o Grupo ETCO o centro nevrlgico da cincia do bem-estar animal no
Brasil, servindo de parmetro tanto para pesquisadores de outros gupos, mais
perifricos, quanto para os prprios rgos governamentais e sua necessidade legal de
implementar polticas.
Ademais, a Unio, em 2007, por meio do MAPA, estabeleceu com a WSPA
(World Society for the Protection of Animals) - a maior organizao de promoo do

31
Disponvel em: http://www.fao.org/ag/againfo/home/en/index.htm, consultado em 13 de julho de 2012.
44

bem-estar animal do mundo - um acordo que prev o treinamento de fiscais
agropecurios para atuarem na rea de fiscalizao dos frigorficos. De acordo com o
documento que celebra o acordo (MAPA, 2007), cabe ao Ministrio assegurar-se da
correta aplicao da legislao brasileira que define os procedimentos de Abate
Humanitrio e o atendimento s diretrizes internacionais de abate humanitrio da OIE,
no qual o Brasil signatrio; WSPA, em contrapartida, cabe disponibilizar
profissionais habilitados, para ministrarem os cursos de capacitao em Bem Estar
Animal e Abate Humanitrio, a serem realizados em diferentes regies do pas,
buscando-se minimizar as despesas do MAPA, com deslocamentos dos servidores que
sero capacitados.
A efetivao de prticas de bem-estar animal, contudo, depende no somente da
aplicao de polticas em sentido top-down por parte de rgos de Estado e organismos
internacionais multilaterais, mas visa disseminar-se principalmente a partir de uma
espcie pedagogia dos produtores de carne a respeito dos benefcios do manejo racional
de bem-estar. Grandes frigorficos, como J BS Friboi e Marfrig, que hoje praticamente
monopolizam o mercado de protena animal no Brasil, possuem programas de instruo
e incentivo para seus fornecedores de matria prima em torno da questo das boas
prticas de manejo, inclusive com uma poltica de subsdios e premiaes remuneradas.
Abaixo, dois exemplos de atualizao desta dinmica, de acordo com os sites dos
supracitados conglomerados.
J BS Friboi:
Para garantir a transparncia no processo de aquisio de bovinos, a
JBS divulga e esclarece aos seus fornecedores que mantm relao
comercial com empresas que tm comprometimento e engajamento
com questes socioambientais que afetam a cadeia. A conduta da JBS
divulgada constantemente aos seus fornecedores por meio do
Manual de a Conduta tica da Companhia e prticas sustentveis.
Em todos os pases de atuao da JBS, a companhia estimula as boas
prticas junto aos seus fornecedores. A partir de programas de
qualidade, dissemina, estimula e apia os seus fornecedores a
adotarem condutas sustentveis.
32

Marfrig:
Atualmente temos um departamento exclusivo para tratar os assuntos
relacionados a bem-estar animal. Todas as unidades de abate de

32
Disponvel em: http://www.jbs.com.br/RelacaoJBSProdutores.aspx, consultado em 13 de julho de
2012.
45

bovinos possuem pelo menos um tcnico (zootecnista, agrnomo,
veterinrio) altamente capacitado, que promove o tratamento
adequado aos animais. Temos os mais modernos equipamentos de
conteno e insensibilizao dos animais, para que possamos sempre
ser fiis ao conceito de manejo racional e bem-estar. Os
colaboradores que trabalham com o gado, desde o transporte at o
manejo dentro das unidades, so cientes da responsabilidade que tm
de minimizar o sofrimento dos animais. Essa conscincia cultivada
atravs de treinamentos internos e externos, regulares e com revises
frequentes.
33


nesta conjuntura complexa, cheia de decalagens locais e globais, que se
configura, portanto, a produo de carne no Brasil. A FEICORTE, inserida neste
cenrio, funciona como uma espcie de caixa de ressonncia de todos estes
movimentos. Como se v, diversos traos desta conjuntura auxiliam a catalisar uma
imagtica negativa por parte do setor, de modo que o contexto explica, em parte, porque
os principais agentes deste setor se mostram to preocupados com sua imagem pblica e
com o desenvolvimento de ferramentas para melhor-la.
Passo agora a descrever a situao etnogrfica disparadora, a partir da qual se
delinearo os fluxos discursivos a serem rastreados nos prximos captulos. Como j
explicitado na introduo, trata-se da palestra Pecuria Brasileira: desvendando mitos,
da qual participaram distintos agentes do universo da carne nacional. Este evento ilustra
de maneira significativa como o setor tem encarado o desafio de resistir na esfera
pblica queles que o criticam.
1.3 A situao etnogrfica disparadora
A palestra ocorreu na manh do dia 16 de junho de 2011, em um dos sales de
conferncias contguos ao Espao Carne da FEICORTE. Logo que comeou, o pblico
presente ao evento no era muito expressivo, situao que foi paulatinamente se
revertendo at o fim da manh. Em geral, tratava-se das mesmas personagens-tipo j
descritas anteriormente, com visvel predominncia do plantel masculino sobre o
feminino.
A atmosfera entre os presentes era de bastante proximidade e informalidade.
Uma personagem em especfico, desde o incio, magnetizava a ateno. Tratava-se de

33
Disponvel em: http://www.marfrig.com.br/fomento/bem-estar-animal/index.asp, consultado em 13 de
julho de 2012.
46

um homem de meia idade, relativamente calvo, que vestia um terno azul e uma gravata
dourada. Cumprimentava a todos e fazia alguns gracejos. Logo depois, descobri que
seria ele o moderador da palestra. Desde o incio, avisara que, embora fosse o
moderador, seus comentrios seriam nada moderados.
J untamente com esta personagem - auto-identificada como um consultor,
detentor de vasta experincia internacional a servio da carne brasileira perfilavam-
se na mesa: um cirurgio-vascular, identificado como Dr. Rond; o diretor executivo da
ABIEC, Fernando Sampaio; outros dois consultores; e, por fim, a nica mulher da
mesa (e uma das poucas da sala), a nutricionista Dra. Licnia. Em termos gerais, a
estrutura da palestra era: o mediador animando o debate, participando das intervenes
dos demais com gracejos e comentrios informais; a nutricionista e o mdico
salientando a importncia da carne vermelha para a alimentao e a sade humana; os
consultores defendendo uma melhor estratgia de comunicao com o povo (sic);
e a plateia, por fim, reagindo ao mediador atravs de fortes risadas e concordando com
murmrios a cada conclamao para a reao da pecuria nacional contra os argumentos
dos seus detratores, fossem eles a imprensa (sensacionalista, interessada somente no
lado negativo das coisas), os defensores dos animais (fanticos, religiosos, adeptos de
modismos e frescuras), os ambientalistas anti-pecuria (desinformados,
tendenciosos), o governo brasileiro (corrupto, ineficiente) e as potncias
internacionais (verdadeiros culpados pela destruio da natureza, pois, nas palavras do
mediador, quando eles desmataram a floresta deles, ningum veio aqui perguntar pra
mim o que eu penso (...) em segundo lugar, so vocs que mais f* o ambiente, ento,
antes de falarem sobre mim e pedirem pra eu pagar uma conta que no minha
paguem a conta de vocs).
Os termos utilizados por todos oscilavam entre uma retrica do esclarecimento
(informar atravs de dados e fatos, argumentos cientficos) e uma retrica do
combate (a nutricionista falou dos seus dez anos de batalha frente do SIC, escrevendo
mensalmente textos e da dificuldade de se conversar com vegetarianos, porque
quando se trata de religio ou crena no tem como conversar). Sistematicamente, o
mediador e os demais procuraram objetar os argumentos mais comumente ouvidos
contra o consumo de carne, representando-os atravs de excertos de jornais e revistas
nacionais projetadas em Power Point.
47

Em relao sade humana, o Dr. Rond argumentou que ns evolumos
comendo carne (...) o crebro se desenvolveu e 70% do crebro gordura, ns
precisamos de gordura (...) foi a partir do consumo de carne que o homem comeou a
dominar a cadeia alimentar, comeou a ganhar msculos, se impor. J ocosamente, em
seu papel de mestre de cerimnias, o mediador relatou que ador[a] carne e que
acredit[a] que o homem essencialmente carnvoro . Depois disso, emendou com as
suas hipteses sobre a origem do vegetarianismo: pobreza extrema (quando elas [as
pessoas] recebem menos de US$ 7 por dia) ou frescura.
Para o Dr. Rond e a Dra. Licnia, os grandes viles alimentares do presente
seriam os carboidratos. No por uma vilanidade, por assim dizer, intrnseca deste tipo
de nutrientes. Mas sim pela maneira contempornea de consumi-los nas sociedades
urbano-industriais, as quais, para o mediador, seriam obesas por causa desta
combinao de pizza com batata frita. De acordo com a nutricionista, o trip da
nutrio : moderao, equilbrio e variedade. A dieta das pessoas estaria, portanto,
muito desregulada a favor dos carboidratos, situao agravada pela m-informao a
respeito da carne e suas potencialidades nutritivas. O Dr. Rond argumentou, com
bastante convico, que em algumas dcadas ns vamos nos transformar em soja e
milho, e que o primeiro elemento desta conjuno a soja seria o verdadeiro vilo
oculto dentre os alimentos (uma verdade que, na opinio do Dr. Rond os detratores
da carne resistiriam em admitir). Um dos presentes recordou que soja e milho
constituem a maior parte das raes oferecidas s reses mantidas em confinamento,
introduzindo, a partir da, a questo do diferencial da pecuria brasileira em relao
quela praticada nas naes do Atlntico Norte.
Neste momento, um esprito nacionalista tomou conta dos debatedores. Aqueles
diretamente envolvidos com a produo de carne no Brasil, como os consultores e o
diretor da ABIEC, ressaltaram as inmeras vantagens do nosso gado: extensivamente
criado; alimentado, em sua maioria, no pasto natural; e, muito importante, livre dos
graves problemas que consternam os mercados externos, como a Vaca Louca. A crtica
dos defensores dos animais, portanto, seria uma crtica deslocada: para o diretor da
ABIEC, os animalistas brasileiros no conheceriam suficientemente a realidade do
prprio pas, pois projetariam impune e injustamente a imagem dos grandes
confinamentos norte-americanos sobre o contexto nacional. Para o mediador, a
probabilidade de se morrer de vaca louca no Brasil seria igual a do Congresso
48

Nacional ser ocupado 100% por pessoas probas e honestas. Este comentrio provocou
diversos sinais de anuncia na plateia, o que se repetia a cada meno negativa a
respeito do Estado.
Para um dos integrantes da mesa, o Estado tem l seus interesses e ns temos
os nossos. O diretor da ABIEC, incitado pelo mediador a responder s acusaes de
que a pecuria estaria destruindo a Amaznia, arguiu que
o problema da Amaznia um problema do Estado (...) uma questo
de regulamentao fundiria e organizao do territrio (...) hoje em
dia tem 25 milhes de pessoas na Amaznia, quer dizer, no assim
que tem que parar de regulamentar o que est assentado (...) e hoje
em dia o governo tem uma fria demarcatria [de territrios
indgenas] (...) se tem algum que tem culpa no desmatamento da
Amaznia somos ns [sociedade em geral] e no o boi.

Estes eram os momentos em que o mediador mais se entusiasmava, e sua fala, j
incisiva, tornava-se ainda mais imponente. Evocava insistentemente um discurso de
nacionalidade, sobretudo de uma nacionalidade confrontada com um discurso externo
de ingerncia sobre os assuntos internos. Na sua fala, tambm se destacava certa
indiscernibilidade das pessoas do discurso, pois se referia ao Brasil e pecuria na
primeira pessoa, ora no plural, ora no singular, denotando um pouco da natureza do seu
trabalho como representante do sistema-carne brasileiro no exterior. Seguidas vezes,
aps a fala dos interlocutores, se dirigia plateia e dizia esto vendo? Isto a nossa
pecuria, este o setor que vocs representam, estas so as oportunidades a abertas... s
precisamos nos organizar para utilizar. Frente aos crticos da carne, fossem eles
fanticos defensores dos animais ou ambientalistas, o importante saber se
defender.
Neste sentido, houve concordncia de que era necessrio saber a linguagem do
povo. O termo foi usado largamente, tanto pelo mediador quanto pelos demais
palestrantes. Este primeiro, exaltado, bradava: o povo no quer saber de cido graxo,
de carbo-no-sei-o-qu (...) e sabe por qu? Porque vai ter sempre algum pra dizer que
a carne te faz mal... que a carne vai te dar cncer.... Seria necessrio, portanto,
desenvolver um sistema de pronta resposta, uma frente de pronta interveno,
essencialmente no passional, capaz de responder acusaes com fatos e verdades.
Todos citaram a necessidade de uma melhor estratgia de comunicao com o
49

consumidor, j que, num cenrio de ampliao cada vez maior da demanda
internacional por alimentos, seria necessrio valorizar este animal de quatro estmagos
que opera o milagre de transformar pasto cru em alimento (fala de um dos
consultores).
O Dr. Rond assentiu necessidade de modificar as estratgias de comunicao
com o consumidor e ironizou dizendo que veja s... ningum convida voc para um
salado no final de semana, sempre um churrasco, arrancando risos da plateia. O
mediador arremedou dizendo que o problema do vegetariano que ele no se
conforma somente em ser vegetariano, mas quer que voc tambm seja, e fica torrando
o seu saco.
Embora o tom geral da palestra tenha se centrado sobre a reiterada necessidade
de melhorar a comunicao com o pblico em geral, tambm foi sublinhado que ela
tinha tido a funo de melhorar, antes de tudo, a sintonia entre as prprias engrenagens
do sistema-carne. O argumento da coeso setorial foi vrias vezes enunciado. Quem se
responsabilizava por isso eram os ditos consultores. Ao mdico e nutricionista cabia
a parcela cientfica dos esclarecimentos, calcados numa espcie de redeno
profissionalmente mediada da importncia nutricional da carne.
O Dr. Rond, de maneira muito expressiva, relatou sua experincia de
converso desde uma perspectiva avessa carne, algumas dcadas atrs, para uma
perspectiva extremamente favorvel a ela, tendncia esta sustentada, nas suas palavras,
atravs do conhecimento adquirido com os pacientes e na bibliografia mdica mais
atualizada possvel. Segundo ele, havia lobby pelo carboidrato, mas logo se percebeu
que doenas antes atribudas protena s tinham aumentado base de carboidrato.
A gordura tambm foi destacada pelo mdico como um nutriente fundamental,
principalmente para o crebro. Haveria gorduras boas e gorduras ms. Aquela oriunda
da carne criada a pasto seria boa, quase azeite de oliva. A Dra. Licnia, por sua vez,
relembrou que vegetarianos radicais podem sofrer carncia de vitamina B12.
Em determinado momento, foi projetada uma apario da atriz norte-americana
Angelina J olie na revista Veja (08/09/2010), na qual se lia: meu segredo de beleza
um bife bem suculento. Agora, falando srio, eu amo a carne. Fui vegetariana por muito
50

tempo e quase morri por causa disso. O mediador, naturalmente, aproveitou a
oportunidade para fazer algum gracejo, chamando a prpria atriz de suculenta.
Outra projeo que causou certo furor foi uma reportagem do Fantstico
(03/04/2011) a respeito da iniciativa da FAO pela disseminao da cultura de insetos
comestveis como forma de atenuar impactos nocivos da pecuria. O mediador, que se
definira como um profundo conhecedor da organizao, disse que a FAO tem coisas
preciosas, mas muita imbecilidade. Por fim, a cultura de orgnicos tambm foi
criticada, principalmente em relao sua dificuldade de nutrir populaes em larga
escala. Um dos consultores alegou que o setor era de fato interessante, como nicho [de
mercado], para o Brasil, mas que a verdadeira sada para a produo eficiente de
alimentos vinha da evoluo pela cincia e a pesquisa em aditivos e defensivos. O
diretor da ABIEC emendou dizendo que para a planta, no faz diferena nenhuma se a
molcula vem de esterco ou de aditivo, logo, a preferncia por orgnicos algo que
depende das pessoas e suas intenes, sobretudo daquelas que podem pagar por elas.
As perguntas da assistncia foram poucas, todas orientadas no sentido de
reconfirmar o que j havia sido dito. Uma interveno me chamou particularmente a
ateno. Tratava-se de um pecuarista do Tocantins, que desenvolveu um argumento
bastante curioso a respeito do desmatamento na Amaznia. A seu juzo, tratava-se de
uma impropriedade afirmar, como fazem alguns setores da mdia, que o
desmatamento transformaria a Amaznia em um deserto. Pois, de acordo com a sua
prpria experincia, o clima local, por ser chuvoso, se responsabilizaria pela restaurao
da mata original: a gente mata num ano e depois t tudo l crescendo de novo. Esta
interveno causou algum silncio constrangedor e logo foi interrompido pelo
mediador, o qual proferiu mais outra crtica ao Estado brasileiro.
A palestra terminou por volta da hora do almoo, quando os aromas
atmosfricos j indicavam onipresena da carne assada, fartamente servida na
churrascaria central do evento e em alguns stands especficos, que possuam suas
prprias churrasqueiras. A disperso dos presentes foi rpida e silenciosa, destacando-se
do movimento geral apenas os efusivos cumprimentos finais trocados entre os
palestrantes.

51

1.4 A dialtica do pioneiro e do predador
Posteriormente, na EXPOINTER de 2011, pude novamente assistir a uma
palestra desta natureza, centrada, contudo, na exposio do projeto Pecuria do
Brasil/Brazilian Beef, conduzido pela ABIEC. Nesta ocasio, Fernando Sampaio fazia-
se novamente presente, compondo a mesa com outras personalidades do mundo rural.
No site da organizao, este projeto descrito da seguinte maneira:
Desde o descobrimento, a pecuria sempre teve um papel
fundamental para o desenvolvimento do Brasil. No passado, as
fazendas de gado ajudaram a demarcar nossas fronteiras. Hoje, as
receitas geradas com a exportao de carne, que beiram os 5 bilhes
de dlares, movimentam a economia de milhares de cidades em todo o
pas. Porm, essas histrias de sucesso protagonizadas pelos
pecuaristas brasileiros nunca foram devidamente contadas. Buscando
resgatar parte dessa memria e apresentar de forma transparente as
melhores prticas do setor, a Associao Brasileira das Indstrias
Exportadoras de Carnes (ABIEC) lana o projeto "Pecuria do
Brasil" um plano de comunicao que mostrar, atravs de
histrias reais, um setor cada vez mais moderno e sustentvel.
34


Entre as atividades planejadas, enumeram-se:
aes atravs de redes sociais, como o Facebook e Twitter, alm de
publicidade focada em formadores de opinio tambm esto dentro
da estratgia e sero fundamentais para levar a informao a um
nmero ainda maior de pessoas. No incio do prximo ano, est
previsto um evento nacional, onde sero apresentados os destaques
do setor no pas. O projeto "Pecuria do Brasil" isso: mostrar as
histrias de sucesso, reavivar o orgulho dos pecuaristas e motiv-
los na direo da sustentabilidade
35


Na palestra realizada na EXPOINTER, Sampaio pormenorizou uma srie de
esforos e iniciativas vinculados a este projeto, inclusive a contratao de antroplogos
para auxiliar na conformao de uma imagem melhor para a pecuria nacional. Alegou-
se indignado com o fato do pecuarista brasileiro ser retratado como um assassino
destruidor da Amaznia e do cerrado, enquanto nos Estados Unidos o cowboy
representado como pioneiro da nacionalidade e da expanso territorial.

34
Disponvel em: http://www.abiec.com.br/X_projetoPecuaria.asp, consultado em 24 de agosto de 2012.
35
Idem.
52

Como j afirmei em outra oportunidade (Lewgoy e Sordi, 2012, p. 142), a
dialtica entre o pioneiro e o predador evidencia uma tenso constituinte do
engajamento ambiental da pecuria bovina na Amrica do Sul. A colonizao
portuguesa do territrio americano teve no gado um importante aliado, verdadeira linha
de frente da sua biota porttil (Crosby, 2011)
36
. Tratou-se, a bem da verdade, da
declinao luso-americana de uma tendncia maior, prpria da expanso ibrica sobre
do novo mundo (Baretta e Markoff, 1978). O gado bovino, na vanguarda da expanso
territorial, permitiu e facilitou a ocupao europeia dos territrios mais distantes do
litoral (Velho, 1982), atravs do modelo de grande propriedade pastoril. Da mesma
maneira, a ocupao lusitana da conturbada regio do Prata, para onde convergiam os
limites extremos da duas Amricas coloniais ibricas, s foi possvel atravs da
emergncia de uma cultura e uma economia marcadamente pastoris, conformando a,
onde hoje se encontra o estado do Rio Grande do Sul, certa realidade material e social
bastante sui generis, destinada ao abastecimento proteico da fora de trabalho escrava
empregada nas regies mais ricas.
Caio Prado J r. escreve que
No com justia que se relega [a pecuria] em nossa histria para
um plano secundrio. Certo que no ostenta o lustre dos feitos
polticos, nem aparece na primeira ordem dos grandes acontecimentos
do pas. Recalcada para o ntimo dos sertes, escondem-na vista, a
intensa vida do litoral, os engenhos, os canaviais, as outras grandes
lavouras. E no tem os atrativos naturais do ouro e dos diamantes
(2011, p. 196).

Desta suposta injustia histrica com a pecuria, parece ser solidrio um autor
como Werneck Sodr, o qual, em seu pequeno opsculo Oeste (1941), acusa a grande
propriedade pastoril de perenizar o suposto atraso, a suposta barbrie e a condio de
selvageria do Brasil central. Identificada desde a poca colonial com os sertes e a
subsistncia, a pecuria prestou-se formulao terica de tipos humanos
caracterizados como possuidores de uma inclinao especial para a vida aventuresca e
avessos em princpio ao trabalho, para citar duas passagens em que Caio Prado J r.
(2011, p. 201) narra o sertanejo nordestino emFormao do Brasil contemporneo, de
1942. Adjetivos anlogos, embora s vezes mais generosos, tambm foram

36
De acordo com o autor (2011, p. 280), uma designao coletiva para os europeus e todos os
organismos que eles carregam consigo nos processos de colonizao.
53

classicamente atribudos ao gacho das plancies meridionais. De norte a sul, a pecuria
sempre carregou consigo a marca de um Brasil profundo, distante, semi-domesticado e
civilizatoriamente arcaico; carter este declinado ora positiva, ora negativamente,
dependendo dos objetivos polticos colocados em jogo em cada situao
37
. A
configurao atual da atividade, no entanto, j no se deixa mais ser circunscrita nos
limites desta representao.
H paralelos entre esta discusso e aquela a travada a respeito dos gauchos nos
pases platinos. J no sculo XIX, D.F. Sarmiento, em seu libelo Facundo (1845)
defendia ser a pampa um malssimo condutor de civilizao (2004, p. 63),
responsvel por todas as mazelas polticas que impediam a nao argentina de cumprir
seu papel no rol dos Estados modernizados. Esta impossibilidade se tornava visvel, de
acordo com Sarmiento, pela oposio entre Buenos Aires e as provncias. Alm disso, o
autor opunha uma suposta tendncia barbrie, inerente ao pastoreio, ao carter
civilizador e pacificador da agricultura, construtora de civilizaes. A vida na pampa,
na viso de Sarmiento, incutiria em seus habitantes uma resignao estica frente
morte violenta (idem, p. 60). As crianas exercitariam suas foras perseguindo e
seviciando terneiros e cabras (idem, p 72). Quando se tornassem adultas,
evidentemente, no hesitariam em descarregar com seu chicote de ferro (...) golpes que
causam contuses e feridas (idem, p. 65) Os grupos familiares, distanciados uns dos
outros por fora das lonjuras quilomtricas da plancie, no entrariam em comrcio
mtuo. O esprito acabaria, portanto, degenerando na religio natural e na barbrie,
numa propenso asitica ao despotismo e ao aparecimento de outro tipo de pastores:
no de animais, mas de homens, como o terrvel caudilho Facundo Quiroga que d
ttulo ao seu livro.
No Uruguai, lvarez (2012) relata a existncia de uma forte dicotomia no incio
do sculo XX entre projetos de modernizao nacional, calcados na defesa da
agricultura, e resistncias tradicionais, ancoradas na vigncia resiliente da pecuria
extensiva. J no Chile, Carrre (2012) demonstra a permanncia transandina deste
modelo agressivo de colonizao da terra e reproduo do ethos masculino atravs da
lida violenta com os animais. Ademais, a imagem dos povos pastores como
individualistas, irredentos, propensos vida em liberdade e avessos ao trabalho

37
A apologia ao gauchismo, em voga no Rio Grande do Sul, um exemplo de positivao da cultura
pastoril.
54

sistemtico, faz-se presente em etnografias clssicas como Os Nuer, de Evans-Pritchard,
e at mesmo na Poltica de Aristteles, onde se l que, das formas de vida humana, a
pastoril a mais indolente e ociosa (1256a 30).
No Brasil, da segunda metade do sculo vinte em diante, a carne saltou do status
de um produto secundrio, dedicado nica e exclusivamente para a subsistncia interna,
para o posto de um dos principais fiis da balana comercial nacional. Um rpido
passeio pela FEICORTE consegue demonstrar com propriedade o alto nvel de
imbricamento entre atividade pecuria e biotecnologia de ponta, por um lado, e entre
pecuria de corte e circulao intensiva de capital internacional, por outro. O Centro-
Oeste, contrariando as previses de Werneck Sodr, urbaniza-se e industrializa-se
atravs dos rendimentos do agronegcio, principalmente o pastoril. O investimento em
gado, por sua vez, tem atrado cada vez mais alguns setores das elites urbanas
brasileiras, inclusive aquele representado pelas celebridades e subcelebridades da
televiso e da msica popular, os quais se tornaram figuras frequentes nas feiras e
leiles agropecurios, alm de servirem como vetores publicitrios para o setor em
geral
38
.
A campanha Time Agro, encabeada pela CNA e pelo SEBRAE, tem Edson
Arantes do Nascimento, o Pel, como seu principal garoto-propaganda. O ex-jogador
apresentado na iniciativa como tambm sendo um produtor rural. Seu recrutamento,
embalado pelo perodo de vigncia da campanha, planejada at a Copa do Mundo de
2014, tem como objetivo a forja de uma imagem vencedora para o agronegcio
nacional, atravs da metfora futebolstica. Em um mesmo material publicitrio,
veiculado desde novembro de 2012 na grande imprensa, coincidem Pel, a senadora
Ktia Abreu e o j citado ex-ministro Paulinelli, todos vestindo a camiseta amarela da
Seleo Brasileira de Futebol. Outra celebridade que tem emprestado com frequncia a
sua imagem para o agronegcio nacional a atriz Regina Duarte, cujo posicionamento
pblico a favor dos proprietrios rurais em conflito com as comunidades Guarani-

38
A edio de novembro de 2010 da revista Dinheiro Rural, da Editora Trs, ilustra esta dinmica. Em
sua reportagem principal, a revista conta a histria da empresria Michelle Dorea, que teria trocado Wall
Street pelos lucros da gentica do gado. A reportagem narra o caso como uma espcie de converso
urbano-rural,retratando a empresria como uma mulher de negcios que abandonou os tailleurs de grife
para usar cala jeans e botas.Em outra matria, denominada Os rurais e os globais, ressalta o nmero
crescente de celebridades do mundo do entretenimento que direcionaram seus investimentos para o
agronegcio. Entre os exemplos citados, os mais emblemticos so a atriz Regina Duarte, a apresentadora
Ana Maria Braga e o ator Murilo Bencio, todos criadores de bovinos.
55

Kaiow, em Mato Grosso do Sul tem suscitado forte reao de movimentos
socioambientais.
Em determinados veculos e manifestaes pblicas do setor, parece ser dado
como pressuposto, mais ou menos natural, que a parcela do sistema produtivo de carne
dentro da porteira isto , no universo da criao de animais se d atravs de
linhagens familiares, por cujos liames de parentesco flui no somente torrentes de
capital, mas tambm certa substncia imaterial da lida com a fazenda e os animais,
prxima de um carisma ou mesmo um mana (Mauss, 2003) patrilinear. A cada gerao,
esta substncia se atualiza e se reproduz, mas sempre modulada pelas caractersticas
prprias do seu contexto histrico. Um exemplo retirado do informativo Manejo,
produzido pela empresa organizadora do Caminho do Boi, ilustra esta lgica:
No se pode esperar que a pessoa que realizou a transio da
explorao extensiva dos anos 70 para a produo semi-tecnificada
de 2010 carregue tambm a responsabilidade pela construo da
prxima fase da pecuria competitiva de alto desempenho. Quem
conduziu o negcio ao longo dos ltimos 20 anos dificilmente possui o
conhecimento e a energia empreendedora exigida para perpetuar a
atividade no novo contexto do conceito alimentar de 2020. (...) Um
dos caminhos para uma sucesso tranqila a chamada co-gesto
geracional (...) que combina a experincia e a sabedoria do pai com
os novos conhecimentos e o dinamismo de um ou vrios filhos.
(Manejo, abr-mai, 2012).

O paradigma da co-gesto geracional to presente no mundo rural brasileiro
que grandes eventos do setor, como a FEICORTE, contam com uma extensa
programao de palestras e workshops sobre modernizao administrativa da atividade
pecuria, na qual especialistas de diversas reas (marketing, economia, zootecnia,
veterinria, etc.) so chamados para versar sobre os mais distintos temas relativos ao
mercado agropecurio, tendo como pblico alvo as novas geraes de
empreendedores rurais.
Ao procurar reunir histrias de sucesso da criao de gado no Brasil, o projeto
Pecuria do Brasil/Brazilian Beef tem em vista recolher e reproduzir exatamente este
tipo de narrativa, em que o passado amalgamado com o presente, a tradio com a
tecnologia, o pioneirismo com a sustentabilidade. Tomando-se em conta que o projeto
ainda est em sua fase inicial, ainda muito cedo para se medir a eficcia do seu
engajamento em relao imagem pblica do setor. Contudo, as polmicas e disputas
56

em torno da carne, seu consumo e produo, aparecem por hora como plenamente
rastreveis. O prximo captulo d incio a este rastreamento, tomando como ponto de
partida uma das falas ouvidas na situao etnogrfica disparadora.



























57

2 - A GRAMTICA SIMBLICA DA CARNE

Nos acampamentos, sombra de um caponete, um gacho
acendia o braseiro, outro escolhia uma vara para espeto, outro
fincava uma posta de carne, e era s dar tempo para que o
assado fosse se tostando lentamente. (...) Uma vez pronto o
churrasco, cada um puxava a faca, se agachava junto ao
espeto e ia escolhendo e cortando, aqui e ali, finas tiras,
pedacinhos. lentido do assar sucedia, agora, a mansido do
degustar. Se a carne fosse mui gorda, no tinha importncia:
depois vinha um mate chimarro para corrigir, com seus
efeitos diurticos e estomacais, o excesso de gordura e
protena. Comida essencialmente masculina, dos
acampamentos e dos galpes, o churrasco sempre dispensou o
uso de pratos e talheres. Prato e talher s mesmo em casa de
estncia, nas comidas de panela preparadas por mulher.
(Barbosa Lessa, O gacho ontem e hoje, 1979, p. 12).




Figura 8: EXPOINTER, 2011 (Foto: Caetano Sordi)


58

Este captulo visa compreender o que est em jogo quando, numa situao como
a palestra descrita no captulo anterior, algum diz veja s... ningum convida voc
para um salado no final de semana, sempre um churrasco. Esta uma frase que se
deixa facilmente explicar no contexto da citada palestra, composta, ao que tudo indica,
de pessoas muito mais propensas a organizar um grande churrasco do que um buffet de
saladas no final de semana. Mas que outras camadas de significado, no entanto, fizeram-
se presentes no momento de sua enunciao? O que esta proposio aparentemente
desprovida de qualquer significado mais profundo pode revelar sobre o consumo
carnvoro em seus aspectos antropolgicos e socioculturais?
2.1 A polissemia da carne
Diversos autores inspirados pelo estruturalismo atribuem ao sistema culinrio as
mesmas propriedades constituintes dos sistemas de significado em geral (Lvi-Strauss,
2004, 2006, 2010; Montanari, 2008; Goody, 1998). De fato, como reconhecem Douglas
e Isherwood (2004, p. 113), a comida um meio de discriminar valores, e quanto mais
numerosas as ordens discriminadas, mais variedades de comida sero necessrias. Para
Montanari (2008, p. 165), em todas as sociedades, o modo de comer regrado por
convenes anlogas quelas que do sentido e estabilidade s linguagens verbais.
Desta maneira, todo sistema alimentar pode ser compreendido luz de uma gramtica, a
qual, mais que meramente aglutinar elementos dispersos (os alimentos, os sabores, os
modos de preparo), os ordena segundo uma estrutura de significado. Assim, antes de
partir para o exame da proposio elencada em suas instncias e circunstncias, faz-se
necessrio uma breve incurso pelos sentidos do prprio conceito de carne e sua
posio relativa nesta estrutura de significado.
De acordo com o Dicionrio Houaiss, o termo carne, em lngua portuguesa,
possui ao menos doze definies. As duas primeiras parecem designar aquilo atravs do
qual reconhecemos o ncleo semntico mais forte do termo: (1) parte macia do corpo de
um homem ou outro animal, especialmente vertebrado; (2) a poro comestvel de
mamferos, aves e peixes; a poro comestvel de qualquer outra espcie de animal.
No entanto, definies subsequentes tambm apontam para significados
interessantes de carne, sobretudo em suas declinaes metafricas: (6) a natureza
humana, por oposio natureza divina; (7) o corpo humano, por oposio ao esprito,
alma; (8) a natureza humana, considerada em suas fraquezas e apetites; (9) o instinto
59

sexual, o amor fsico; e, por ltimo, algo bem prximo dos antroplogos, (10)
consanguinidade, parentesco em linha direta.
Embora o conceito de carne possa ser aplicado s partes consumidas de
diversos animais, o contexto brasileiro atesta que, ao menos nacionalmente, o
imaginrio da carne dominado pela figura do gado bovino, ainda que este tipo de carne
no seja, de fato, o mais consumido no Brasil, perdendo quantitativamente para o
frango
39
. Em nvel institucional so as agremiaes dedicadas bovinocultura que
tomam para si o termo carne como um apangio prprio: a Associao Brasileira das
Indstrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), por exemplo, dedica-se defesa dos
interesses da carne bovina nacional. Os setores avcola e suinocultor, em contrapartida,
so representados por associaes cujos nomes fazem referncia direta s espcies
animais por eles mobilizados, e no carne. A FEICORTE, descrita no captulo
anterior, a Feira Internacional da Cadeia Produtiva da carne, e no da carne bovina.
Um informativo do setor
40
classifica como protenas alternativas os setores
suinocultor e avcola.
Algo da experincia cotidiana tambm atesta que comer carne, na linguagem
ordinria brasileira, significa, na maior parte das vezes, comer carne vermelha ou comer
carne bovina. Este englobamento do termo universal carne pela declinao particular
carne bovina digno de ser pensado. No intuito de respeitar o princpio metodolgico,
evocado na introduo, de considerar na pesquisa o que est em jogo (Kleinman e
Kleinman, 1995) para as sociedades humanas quando se produz e se consome carne,
decidi focar-me justamente sobre os processos sociais envolvendo a carne bovina, na
medida em que eles centralizam e metonimizam os processos sociais envolvendo a
carne em geral, ao menos para a sociedade brasileira contempornea. A figura abaixo
(fig. 9) ilustra este processo. Trata-se do printscreen
41
da busca pelo verbete carne na
plataforma de imagens do Google. Percebe-se a ntida predominncia das carnes
vermelhas sobre as demais carnes, o que tambm se reflete nas pesquisas relacionadas
sugeridas pelo prprio site: carne bovina, carne vermelha, etc.

39
De acordo com o MAPA, em 2010, o consumo per capita de carne de frango era de 43,9kg; de carne
bovina, 37,4kg e de carne suna 14,1kg. Disponvel em: http://www.agricultura.gov.br/animal/mercado-
interno, consultado em 25 de setembro de 2012.
40
SCOTT CONSULTORIA. Boi & Companhia, ano 19, 19 a 25 de novembro de 2012.
41
Em linguagem de internet, a captura em forma de imagem de tudo o que est disposto na tela do
computador em determinado momento.
60


Figura 9: printscreen da busca pelo verbete carne no Google imagens, acessado em 29 de janeiro de
2013.
As carnes parecem se dispor em um espectro de maior e menor carnicidade, se
me for permitido o neologismo. Entre muitos autodeclarados vegetarianos, existem
aqueles que se abstm do consumo de carne (de qualquer animal), mas prosseguem
comendo carne que no tem cara de carne, como classifica um interlocutor vegano o
suposto vegetarianismo de sua me, que inclui algumas pores de frios e embutidos.
Alguns vegetarianos mais radicais, inclusive, sugerem que outros produtos de origem
animal, como laticnios e ovos, tambm deveriam ser enquadrados sob a rubrica carne,
abrangendo ainda mais o escopo extensional
42
do conceito.
Diversos interlocutores relatam eventos de constrangimento social em que
solcitos anfitries procuraram agradar as suas especificidades alimentares, mas
acabaram confundindo os limites do vegetarianismo e do veganismo (servindo pratos
com laticnios ou ovos), ou foram pegos pela polissemia da carne. Servir peixe ou
frango aos vegetarianos por no comerem carne um mal-entendido muito recorrente.
Se pudssemos estabelecer provisoriamente uma imagem de como seria um provvel

42
De acordo com o dicionrio filosfico de Marcondes e J apiassu (1996), Do ponto de vista lgico, um
conceito caracterizado por sua extenso e por sua compreenso. A esta ltima, corresponde o conjunto
dos caracteres que constituem a definio do conceito (por exemplo, o ser humano ser vivo, animal,
bpede, mamfero, pensante, etc.). primeira, corresponde o conjunto dos elementos particulares dos
seres aos quais se estende este conceito. Bem por isso, compreenso e extenso esto sempre em relao
inversa: quanto maior for a compreenso, menor ser a extenso; quanto menor for a compreenso, maior
ser a extenso.

61

espectro de carnicidade relativa entre as diversas carnes, seguramente a carne bovina
figuraria em seu ponto extremo, seguida de outras carnes vermelhas e mamferas,
desceria em direo s aves e, por fim, atingiria os (no coincidentemente) chamados
frutos do mar, espcie de estgio limite entre a carne e a no-carne e que comporta um
grande nmero de vegetarianos abstmios de outras carnes, mas consumidores de peixes
e assemelhados. Dificuldades suplementares formulao deste espectro seriam
desencadeadas pela categoria das carnes selvagens ou exticas, assim como pela
igualmente problemtica categoria dos subprodutos e embutidos. Neste sentido,
variveis como o mtodo de obteno (caa, abate, etc.) e/ou preparao (o simples
corte ou processos de transformao mais elaborados, como a salsicharia, por exemplo)
tambm deveriam ser considerados, de modo que no cabe agora enveredar em tal
empreitada. Mesmo assim, o registro das dificuldades na formulao de um quadro
geral das carnes, maneira estruturalista, serve para corroborar o estatuto fludo e
deveras polissmico da carne, que no se aplica somente sociedade brasileira.
Em ingls, a distino entre meat e flesh respectivamente a carne-alimento,
objetivada, e carne-corpo, da qual somos feitos - salientada por alguns autores (Sahlins,
2007), inclusive alguns comprometidos com a causa animal. Para Singer, a confuso
semntica entre os dois termos ocultaria a realidade flesh da carne que se consome como
meat, isto , sua origem em um processo social de predao e dessubjetivao de seres
senscientes. J entre os dinamarqueses, apresentados por Delavigne (1999) como os
maiores consumidores de carne da Europa, no haveria diferena terminolgica entre a
carne que se come a carne da qual somos feitos, ambas sendo referidas pelo termo kd.
Nos Estados Unidos, como no Brasil, Sahlins (2007) tambm registra a existncia de uma
diferenciao entre carnes e vsceras, as primeiras se referindo s partes externas,
musculares dos animais, e as segundas s suas partes internas, referidas atravs de nomes
muitas vezes idnticos aos das suas contrapartes humanas (fgado, p. ex.). O autor
tambm registra que a sociedade estadunidense possui relao com a carne vermelha
anloga existente na sociedade brasileira, pois sua dieta decorre de um modelo de
refeio que inclui a carne [bovina] como componente central, com apoio perifrico de
carboidratos e legumes (Sahlins, 2007, p. 185).
J Fischler (2001) relata um processo de englobamento semntico bastante
elucidativo que ocorre na lngua francesa. De acordo com o autor, o sentido original da
palavra viande teria a ver com uma poro alimentar genrica, tendo se transformado, do
62

sculo XVIII para c, em sinnimo exclusivo de carne. Tambm na lngua inglesa,
informa Singer (2010), o termo carne originalmente designava qualquer alimento
slido, e no apenas a carne de animais. Traos deste significado anterior ainda
subsistiriam em expresses como carne de coco [coconut meat], ainda correntes. Para
o autor, isto auxiliaria linguisticamente a se evitar o fato de que o que estamos comendo
so realmente pedaos do corpo de um ser vivo (idem, p. 140). J para Fischler,
processos como estes - nos quais a carne metonimizada como alimento em geral
acabariam por conferir a ela o status de alimento absoluto
43
(2001, p. 121), de substncia
mais substanciosa entre todas as substncias, suprassumo material do prazer e da
sensao de plenitude envolvidos no ato digestivo
44
. No toa, portanto, que muitos
vegetarianos relatam terem de se defender contra a alegao de que no se alimentam
bem, de que no se alimentarem direito; de que salada no leva a nada; ou terem de
vencer, em seus primeiros tempos nesta condio, a sensao de que uma refeio sem
carne no uma refeio.
Tais relatos foram bastante frequentes em entrevistas e conversas informais que
realizei com adeptos de dietas vegs, e uma boa parte da literatura de apoio e propaganda
vegetariana se dedica a reverter esta concepo: como afirma um manual deste estilo de
vida, necessrio um plano gradual para perder o hbito, para que o organismo no se
ressinta (Scolnik e Scolnik, 1974, p. 24).
Ora, de distintas maneiras, a carne aparece como um objeto polissmico, social e
culturalmente mediado. No entanto, ao menos no que tangencia os exemplos suscitados
pelos casos acima (brasileiro, francs, estadunidense e dinamarqus), a carne possui outra
propriedade interessante: ela um elemento central em cada um destes sistemas
culinrios. Esta centralidade permite-nos formular a hiptese da existncia de uma
verdadeira gramtica simblica da carne, cuja potncia, cuja vigncia, faz-se sentir
fortemente em exemplos etnogrficos como os descritos a seguir.

43
Barthes (2001) relembra a relao entre a simblica da carne e a simblica do sangue como substncia
vital. Fora do registro das sociedades ocidentais, Fausto (2001, p. 153) relata a respeito dos parakan: o
movimento de disperso para a mata responde a um desejo de consumir carne em grande quantidade:
quando os parakans se dizem com fome, referem-se ausncia no de comida, mas sim de abundncia
de carne.
44
Bachelard (1996, p. 210): O alimento slido e consistente mais prezado. O beber no nada diante
do comer. Se a inteligncia se desenvolve ao seguir a mo que apalpa um slido, o inconsciente se arraiga
ao mastigar, de boca cheia, um prato de macarro. fcil perceber, na vida cotidiana, esse privilgio do
slido (...) a fome , portanto, a necessidade natural de possuir o alimento slido, durvel, integrvel,
assimilvel, verdadeira reserva de fora e de poder.
63

2.1.2 Sobre churrascos veganos, bifes de soja, vegebrgueres e outras assinaturas
carnvoras no campo vegetariano
Uma propriedade mais ou menos geral de qualquer estrutura, tal como de uma
gramtica, a sua durabilidade (Lvi-Strauss, 2004, 2006, 2010; Bourdieu, 2005). Isso
no quer dizer que estruturas sejam imutveis, ou que permaneam sempre iguais sua
formatao original. Defender tal perspectiva se configuraria num estruturalismo
ingnuo, invariantista, incapaz de dar conta analiticamente da mudana cultural e social.
O que ocorre, na verdade, uma tendncia a que a variao seja uma variao
estruturada. Assim, se num sistema cada elemento ocupa um lugar preciso, o primeiro
objetivo ser conservar este lugar (Montanari, 2008, p. 171). De maneira clara e
distinta, Lvi-Strauss explica da seguinte maneira a dialtica entre mudana e
permanncia existente em seu sistema de pensamento:
(...) os encaixes das estruturas umas nas outras no possui um carter
esttico. Longe de estar isolada das outras, cada uma das estruturas
contm um desequilbrio que s pode ser compensado utilizando um
termo tomado estrutura adjacente (Lvi-Strauss, 2006, p. 322).

Para o caso da presente anlise, esta dinmica de permanncia das formas
aplicadas a novos contedos, ou, nas palavras de Lvi-Strauss, de tomada de
emprstimo de termos da estrutura adjacente, se manifesta em exemplos como o
churrasco vegano, o bife de soja ou o vegburger todos, por assim, dizer, inovaes do
ponto de vista culinrio, mas, ainda sim, tributrios de significantes anteriores, oriundos
da gramtica carnvora que parece fundamentar o sistema culinrio das sociedades
ocidentais.
Um casal de veganos, com o qual tive contato em minha pesquisa anterior,
ilustrou uma reportagem do caderno Vida, de Zero Hora (2/4/2011), sobre seu tipo de
alimentao, na qual algumas linhas so dedicadas ao churrasco vegano, hbito que
passaram a cultivar depois de seu abandono do carnivorismo:
Os hbitos alimentares de M. e J., h cinco anos, mudaram da gua
para o vinho. Ou melhor, da carne para o brcolis. A famlia e os
amigos acharam que sairiam perdendo, j que J. era o churrasqueiro
oficial dos domingos. Para a alegria de todos, a churrascada do fim
de semana foi mantida. S que agora, nos espetos da residncia do
casal, entram apenas carne de soja, legumes, frutas e verduras. De
incio foi estranho, confessa M., mas depois tudo virou diverso. (...)
64

A no ser a extino dos cortes bovinos, nada mudou na confraria da
churrasqueira
45


Se os sistemas alimentares so gramticas, os modos de preparo e as prticas de
cozinha so a sua morfologia(Montanari, 2008). A permanncia da forma churrasco
se adqua s unidades lexicais que so os ingredientes, os contedos. No caso em
questo, substitui-se a carne e seus subprodutos por elementos puramente vegetais. O
espao onde se os prepara e o modo com que se prepara, contudo, continuam sendo a
churrasqueira e o fogo em brasa, prprios do fazer carnvoro. O churrasco, alm de um
modo de preparo, tambm um ritual (Maciel, 1996). E todo ritual tem uma sequencia,
uma ordem, uma sintaxe. Assim, o churrasco vegano, como qualquer outro churrasco,
tem sua ordem de apresentao dos pratos, sua liturgia, e, se em sua verso carnvora, a
centralidade ocupada por cortes considerados nobres, como a picanha ou o entrecot, a
tendncia nos churrascos veganos muitas vezes substitu-los por preparados fibrosos
cujo aspecto muito se assemelha carne quando postos para assar.
Tomando-se em conta o contexto em que vive o casal de veganos, compreende-
se porque a reportagem de Zero Hora tenha dado tanta nfase ao fato de se ter mantido
intacta a churrascada do final de semana. No Rio Grande do Sul, o churrasco foi
alado ao patamar de prato emblemtico (Maciel, 1996), e o consumo de substanciosas
quantidades de carne (principalmente bovina), em ocasies especficas, est integrado
ao calendrio alimentar de famlias e grupos sociais. Alm do seu aspecto litrgico, o
churrasco configura-se como um ritual na cultura sulina justamente ao excetuar-se,
como festa, da alimentao cotidiana.
Ele tambm traz consigo uma diviso sexual do trabalho culinrio
marcadamente forte, que nos remete s formulaes de Lvi-Strauss segundo as quais as
refeies assadas base de carne pertencem ao plo masculino, viril e exoculinrio, isto
, das comidas ostensivas, feitas para fora, em ocasies especiais; em oposio, por
conseguinte, s comidas vegetais, os cozidos e aos ensopados, que so femininos,
domsticos e rotinizados (Lvi-Strauss, 2006; Adams, 2010). Basicamente, o que pode
estar em jogo na questo do churrasco vegano parece ser a possibilidade de se
permanecer falante de uma gramtica social oriunda do carnivorismo sem

45
O churrasco dos veganos. Zero Hora, 2 de abril de 2011.
65

necessariamente ser carnvoro, substituindo alguns termos especficos do eixo
paradigmtico (os ingredientes, as unidades lexicais) em prol da permanncia do eixo
sintagmtico (as formas de preparo, a sintaxe e a liturgia).
O mercado mais geral de produtos vegetarianos tambm auxilia a ilustrar esta
dinmica. Por toda parte, veem-se modos de preparo prprios gramtica carnvora
aplicados a novos contedos, como nos casos da carne e do bife de soja, da glutadela
(mortadela de glten), e dos vegburgers e vegdogs hoje oferecidos em diversas casas do
ramo. De um anncio no site do Caf Bonobo, um dos principais pontos de encontro
vegetarianos de Porto Alegre, l-se: almoo de sbado no Bonobo: ALA-MINUTA!!!
46

glten acebolado, arroz integral com gersal e chia, batatas bolinhas assadas com merkn
(pimenta chilena defumada), feijo com tofu defumado e manjerico, salada
47
.
J o cardpio de outro restaurante apresenta: almndegas de gros e nozes,
tomates cereja e manjerico servidos ao pesto; kebaps de tofu e mix de vegetais
grelhados servidos com molho satay; entre outras transposies gramaticais
48
. O
manual vegetariano Hugues de Bonardi, Receitas da Cozinha Natural (1991) ensina a
fazer guisado expresso moda de Sidi Salmane, e o de Nakashima et al. (2005),
denominado Lar Vegetariano, contm receitas de estrogonofe de glten, hambrguer
protico, medalho de tofu, nuggets de resduo de soja, quibe de tofu, salsicha rpida,
croquete de batata, entre outros pratos. O escrutnio do cardpio de diversos restaurantes
e manuais de receita vegetarianos, que no cabe pormenorizar aqui, refora a
constatao emprica desta tendncia.
2.1.3 Pesquisa gacha contrape Harvard: notas sobre um Estado carnvoro
O mesmo furor com que fora assinalada em Zero Hora a permanncia da
churrascada de domingo na mesa do casal de veganos, foi repetido pelo peridico em
reportagem publicada em 15 de maro de 2012, na qual se lia que o churrasco de todo
domingo est garantido e at faz bem sade, desde que a carne vermelha tenha como
origem animais engordados somente no pasto. O ttulo da matria, bastante assertivo,

46
la minuta: termo utilizado no Rio Grande do Sul para se referir refeio denominada como Prato
Feito em outras regies do Brasil, composta, basicamente, de carne vermelha bovina, arroz, feijo e
batata frita.
47
Disponvel em: http://www.cafebonobo.com.br/?p=1312, consultado em 29 de agosto de 2012.
48
Disponvel em:
http://www.larougebistro.com.br/resources/Card%C3%A1pio%20La%20Rouge%20Bistr%C3%B4%20.p
df, consultado em 29 de agosto de 2012.
66

anunciava: Churrasco na mesa: Pesquisa gacha contrape Harvard, seguido do
seguinte subttulo: por ser produzida no pasto, carne gacha seria mais magra do que a
europia e a americana, cujo gado engordado com gros. Na ausncia de quaisquer
fotografias para acompanh-lo, o texto trazia o desenho bem-humorado de uma vaca -
made in RS - orgulhosamente exibindo-se para dois pesquisadores, sendo um deles
representado com traos fisionmicos orientais. De acordo com a reportagem,

A prestigiada universidade americana divulgou que comer uma
poro diria de carne vermelha pode aumentar o risco de morte
prematura em 20%, segundo estudo realizado com mais de 120 mil
pessoas nos Estados Unidos. Tambm deu evidncias de que comer
bifes aumenta o risco de doenas cardacas e cncer. (...) A boa
notcia, segundo pesquisadores do departamento de Zootecnia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria
com o Instituto de Cardiologia do Estado, que este dado precisa ser
relativizado, devido aos diferentes sistemas de criao e de engorde.
Enquanto o gado gacho se alimenta de pasto, o americano
engordado em confinamento, com dieta base de gros, como soja,
milho e trigo.

No dia anterior (14 de maro), o mesmo jornal j havia noticiado sucintamente a
peleia contra Harvard da seguinte forma:
CHURRASCO 1
Te cuida, Harvard!
A prestigiosa universidade americana divulgou esta semana uma
pesquisa realizada com mais de 120 mil homens e mulheres. O
resultado: quanto maior o nmero de refeies dirias com carne
vermelha, maiores os riscos de morte seja por problemas cardacos
ou por cncer. A notcia estava ontem na capa dos sites da BBC e da
CNN.
O contra-ataque gaudrio foi imediato.

Embora os riscos sade envolvendo o consumo de carne sejam objeto de
controvrsia cientfica h vrias dcadas (tratarei melhor deste ponto no prximo
captulo), o que chama ateno nesta reportagem, tal como na que trata do churrasco
vegano, a maneira com que frisada a permanncia do churrasco de todo o domingo a
despeito de tudo, bem como a flagrante associao entre consumo de carne vermelha e a
identidade regional. Como muitos vegetarianos apontam, realmente difcil abster-se de
carne no Rio Grande do Sul. A adoo de uma dieta alternativa acompanhada, quase
67

sempre, de mudanas na interao com conhecidos, colegas, amigos, e, sobretudo,
familiares, na medida em que o sujeito renunciante passa a excetuar-se de importantes
momentos da rotina social.
Um estudante vegano entrevistado relatou-me uma situao extremamente
emblemtica neste sentido: fora convidado pelo namorado a jantar pela primeira vez na
casa dos sogros, tpica famlia da classe mdia alta porto-alegrense. Mas o namorado se
esquecera de avisar aos pais a respeito da opo do companheiro, de modo que, em suas
palavras, teve que lidar com dois tipos de constrangimento: aquele porco enorme em
cima da mesa e parecer antiptico na frente deles, por acabar no comendo nada. De
acordo com o seu relato, tal primeira impresso no poderia ter sido pior. Por ser
vegetariano, no poderia tomar parte de pleno naquele ritual de comensalidade.
Outra vegetariana, de cujo caso tratarei com mais detalhe no prximo captulo,
afirmou-me que, para ela, a mesa[da prpria famlia] era como uma faixa de Gaza.
Desde o momento em que cessara de comer carne, passaram a consider-la como o
problema da famlia na medida em que, de acordo com a leitura dos parentes, ela no
comia nada. Embora relate que suas refeies sempre foram, de fato, bastante frugais,
assinala que, para seus familiares, sua alimentao s poderia ser completa com o
consumo de carne, de modo que no ingeri-la passou a ser compreendido como no
alimentar-se de maneira geral. Desde os doze anos esta entrevistada passou a fazer sua
prpria comida, at o ponto em que se formaram trs dispensas autnomas em casa:
uma para minha me [onvora], uma para minha irm [que segue dietas rigorosas de
emagrecimento] e uma para mim [vegetariana].
Ora, no parecemos estar to longe daquelas sociedades amerndias nas quais a
comensalidade reluz como um dos principais dispositivos identificatrios, para alm da
partilha do mesmo cdigo lingustico ou rol de representaes. Entre os Parakan, a
partilha da carne e a comensalidade no apenas marcam as relaes entre parentes,
como as produzem. Comer como algum e com algum um forte vetor de identidade
(Fausto, 2002, p. 15). A meu juzo, este um princpio plenamente aplicvel ao que
acontece no sul do Brasil em relao carne, respeitadas, evidentemente, as
pronunciadas diferenas cosmolgicas entre os Parakan e ns. Em ambos os contextos,
no comer como e com recusar o aparentamento, e tal recusa equivale a se colocar na
posio de inimigo (idem). Em relao Harvard, comer churrasco produz identidade
68

gacha, mas somente o churrasco moda gacha, isto , com gado criado a pasto. A
posio agonstica em relao universidade de Harvard aparece aqui como uma
posio agonstica em relao comida e aos modos de comer que so prprias ao
mundo do outro, representados, neste caso, pelo gado confinado.
Os outros so outros porque no comem da maneira que ns comemos, porque
no comem o que ns comemos. Parafraseando a famosa formulao de Brillat-Savarin,
poderamos argumentar que o outro aquilo que ele come e se deixa definir por isso. A
este respeito, escreve Sahlins (2007, p. 186):
Quanto aos cavalos, os americanos tm razes para desconfiar que
sejam comestveis. Existem boatos de que os franceses os comem,
mas a meno disso costuma ser suficiente para evocar o sentimento
totmico de que os franceses esto para os americanos assim como as
rs esto para as pessoas
49
.

A experincia da vida cotidiana em um lugar como o Rio Grande do Sul -
culturalmente constitudo como parte que se define agonisticamente com um todo
(Oliven, 2006), e no qual vigora, igualmente, certo imaginrio social marcadamente
viril, relacionado lida pastoril e o domnio humano sobre o animal (Leal, 1989) -
atesta o quanto estas questes identitrias fazem-se fundamentais neste contexto. O
investimento da mdia local, principalmente de seu principal grupo empresarial, na
manuteno deste imaginrio, denotativo do quanto estas questes colocam-se
realmente em jogo (Kleinman e Kleinman, 1995) no Rio Grande do Sul, muitas vezes
sob a forma de anedota.
Proliferam expresses acusatrias como churrasco de paulista ou churrasco
de catarina, as quais, no por acaso, tm como o alvo o modo com que os outros
brasileiros preparam carne. Da mesma maneira, circula em redes sociais como
Facebook um suposto mapa do Brasil segundo os gachos, no qual o Rio Grande do
Sul assinalado como civilizao; a faixa contnua de terra que leva do oeste
catarinense at Rondnia como extenso natural do Rio Grande do Sul (o que est
muito vinculado colonizao destas reas, no sculo XX, por pecuaristas e agricultores

49
A este respeito, tambm Barthes (2001) ressalta o papel constitutivo do bife com batatas fritas para a
identidade nacional francesa.
69

gachos); e Minas Gerais e Gois (estados fortemente vinculados pecuria), por fim,
como gente que no sabe fazer churrasco.
diferena da FEICORTE, que descrevi no captulo anterior como
profundamente ancorada em uma retrica de nacionalidade e modernidade, a
EXPOINTER se articula em torno de uma forte remitncia condio rio-grandense e
sua identidade mtica, donde decorre certa centralidade do churrasco moda gacha
(Maciel, 1996) nos quatro cantos do Parque de Exposies Assis Brasil. Nas suas duas
edies ocorridas ao longo do perodo de pesquisa (2011 e 2012), havia uma atrao
chamada Vitrine da Carne Gacha, patrocinada pelo SEBRAE/RS, na qual ocorria
uma verdadeira pedagogia do churrasco.
Confinados em uma espcie de aqurio refrigerado, cercado de vitrines por todos
os lados, dois aougueiros profissionais explicavam como bem aproveitar a carne
bovina, alm de ensinar tcnicas de corte das mais diversas (fig. 10). Ao redor do
aqurio, visitantes da feira contemplavam a desossa e o corte de dezenas de carcaas, as
quais chegavam penduradas e inteiras, e saiam fatiadas e desmontadas.

Figura 10: aougueiros em desmontagem didtica de carcaa na Vitrine da Carne Gacha, na
EXPOINTER 2011. (Foto: Caetano Sordi)
70

A cada dia da feira, uma associao de raa era responsvel pelas carcaas
desmontadas, e a elas tambm cabia a apresentao da estirpe e suas caractersticas.
Enquanto operava os instrumentos, o aougueiro principal aproveitava para dar nome a
cada um dos cortes, e demonstrar o modus operandi da sua obteno. Alm disso,
explicava minuciosamente as diferenas existentes entre carcaas zebunas e carcaas
europeias, sempre dando nfase ao notrio fato de que, no Rio Grande do Sul, se
destacava a produo destas ltimas, de melhor qualidade
50
.
Da mesma maneira que comer com e como algum um vetor de aparentamento
na sociedade parakan, se abster por ou com algum tambm o (Fausto, 2002, p.
15). O mesmo princpio tambm pode ser aplicado queles que, em nossa sociedade,
abandonam a carne e se tornam vegetarianos. Se, como afirmei anteriormente, o sujeito
renunciante passa a excetuar-se de importantes momentos da rotina social,
sociabilidades e afinidades alternativas surgem a partir da. Para aqueles vegetarianos
mais empenhados na disseminao da causa, o meio em que circulam no deixa de ser
uma espcie de crculo restrito maneira weberiana, que faz da comprovao explcita
de determinadas qualidades morais uma condio distintiva de admisso e participao
(Pierucci in Weber, 2004, p. 290). Isso acaba deixando margem para que seus
adversrios, como o plantel de especialistas reunidos na situao etnogrfica
disparadora, os descrevam como membros de uma seita, como fanticos, mais prximos
crena do que ao bom-senso.
No Rio Grande do Sul, a imprensa funciona como uma caixa de ressonncia
destes conflitos. Em Zero Hora, a ltima pgina do caderno semanal Nosso Mundo
Sustentvel, destinado s questes ambientais e s solues empresariais para lidar com
a emergncia do paradigma da sustentabilidade no mundo dos negcios, frequentemente

50
importante ressaltar que a regio sul do Brasil, embora carregue consigo uma identidade regional
marcadamente forjada atravs da pecuria, corresponde hoje a apenas 13,3% do efetivo bovino nacional
(IBGE, 2010). Isto faz com que o sistema meridional da pecuria de corte procure investir,
presentemente, no ganho de qualidade da carne em contraste com a quantidade produzida, apostando no
diferencial representado pelas suas condies naturais e seu plantel majoritariamente taurino (raas
europias). O governo do Rio Grande do Sul investe atualmente em um programa denominado Carne
Gacha, que visa profissionalizar a gesto da qualidade da carne produzida no Estado atravs do
alinhamento estratgico dos vrios setores envolvidos nesta cadeia produtiva, disseminao de boas
prticas de sanidade e manejo, rastreamento, etc. Em 2011, o lanamento do programa causou alguma
celeuma entre autoridades estaduais e representantes setoriais da carne bovina uruguaia e argentina, na
medida em que o governo do Estado planejava batiz-lo como Melhor carne do mundo. J o governo
de Santa Catarina orgulha-se do status de Zona Livre de Febre Aftosa sem vacinao, nico entre as
unidades da federao.
71

traz algumas notas sobre o vegetarianismo e a questo do consumo de carne. No dia 26
de dezembro de 2011, lia-se na coluna Ar Puro desta mesma pgina:
Aqui [RS], vegetarianos sofrem bullying (veganos ento nem se fala
so ETs). Diariamente escuto comentrios desagradveis, de gente
esclarecida, sobre quem fez essa opo. Diariamente. Dizer que no
come carne senha para ouvir desaforos e/ou provocaes.
Vegetarianos so tratados como gente do contra, como chatos,
como prias. At j ouvi que vegetarianismo coisa de gay, como
se desse para relacionar uma coisa com a outra. Claro, h os
vegetarianos radicais e esses incomodam tambm. O que
precisamos um pouco mais de tolerncia.

Em um editorial do mesmo jornal, denominado Gachos amam e maltratam
animais (12/09/2009), uma liderana dos direitos animais em Porto Alegre pergunta:

J que ces, golfinhos, bichos-preguia, ursos-panda apresentam as
mesmas capacidades de senscincia e de inocncia que porcos,
galinhas, ovelhas e bois, onde, afinal, residiria a diferena de
tratamento que lhes dispensamos? Porque protegemos, respeitamos,
mimamos alguns animais e a outros, mesmo existindo alternativas
alimentares saudveis, dispensamos o pior dos tratamentos e a
morte? Por que a uns tentamos garantir reservas ambientais e outros
submetemos a exposies, provas de velocidade e resistncia, para
diverso?

A publicao deste artigo tem como pano de fundo um perodo do ano bastante
importante para o gauchismo, o ms de setembro, em que a EXPOINTER recm fecha
seu balano anual de recordes e cifras milionrias, e centenas de milhares de gachos se
preparam Rio Grande afora para as comemoraes da Semana Farroupilha
51
, na qual
proliferam os churrascos, os rodeios e outras barbries antropocntricas de acordo
com o discurso dos direitos animais.
Em Porto Alegre, ocorre o acampamento farroupilha, em que centenas de
piquetes (galpes de costaneira de pinho) so montadas no Parque da Harmonia, s
margens do Guaba, para celebrar a identidade regional. Em meio ao barro acumulado

51
A Semana Farroupilha, que tem seu pice no dia 20 de setembro, mais importante comemorao
cvica do Rio Grande do Sul. Trata-se da celebrao anual dos acontecimentos da chamada Revoluo
Farroupilha (1835-1845), a mais longa e sangrenta revolta regional do perodo imperial, na qual a elite
pastoril gacha pegou em armas contra o poder central. Entre as principais causas disparadoras do
conflito estavam justamente os tributos cobrados pela coroa sobre o principal produto local, o charque,
que o deixava em situao desfavorvel em relao aos seus concorrentes platinos.
72

pelas constantes chuvas do perodo, circulam milhares de visitantes e acampados,
muitos dos quais se deslocam de outras partes do Estado, e at mesmo do pas, para l
residirem ao longo da celebrao. Nesta festa, impera o cheiro de churrasco por todos os
lados, e volumosa, ostensiva, quantidade de carne consumida. Contra este esprito,
levanta-se a trincheira vegetariana local: protestos e campanhas contra a EXPOINTER e
o esprito carnvoro do acampamento farroupilha so realizados, tanto online quanto
offline.
Evidentemente, isto provoca reaes. Em setembro de 2010, o jornalista J uremir
Machado da Silva, notrio polemista da imprensa estadual, publicou em sua coluna
diria no jornal Correio do Povo, sob o ttulo O cru e o cozido, as seguintes
consideraes:
Vou choc-los: eu gosto de matar animais. Para com-los. No fao
distino entre peixes, vacas, perdizes, patos, marrecos, gansos,
bfalos, cordeiros e frangos. Gosto de todos. Amo carne. Eu e quase
todo o Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul e quase todo o Brasil.
O Brasil e grande parte do mundo. (...) Sou mamfero. E sou
carnvoro. Um monstro sereno. Durmo sem qualquer remorso. Tive
um amigo vegetariano que se benzia ao passar diante das
churrascarias. (...) Que fazer? Somos especistas. (...) Vida de
carnvoro est ficando difcil. (...) Estou errado? Sou ignorante?
Preconceituoso? Pode ser. Deve ser. o meu gosto. Meu e da torcida
do Grmio e do Inter. H muitos crudistas [variante do veganismo,
em que s permitido o consumo de vegetais crus] nos Estados
Unidos. a turma da raw food. S podia. Bizarrices quase sempre
vm dos Estados Unidos. (...) Vou procurar um terapeuta. No
consigo sentir pena da vaquinha quando a vejo no meu prato. Quando
a vejo no pasto, comeo a salivar. Tenho cura?

Outro polemista local, o escritor David Coimbra, notabilizado por suas crnicas
e contos envolvendo futebol e mulheres em Zero Hora, assim escreve (31/8/2007):
Em tempos de Expointer, urge fazer uma pequena reflexo acerca de
algumas espcies, como as vacas, as galinhas e as vegetarianas.
Ateno! claro que no quero comparar as vegetarianas s vacas
ou s galinhas, embora saiba que, como amantes da Natureza, elas,
as vegetarianas, no se ofenderiam com isso. Mas sei que
vegetarianas, bilogas e castradores de gatos so muito suscetveis,
levam-se a srio, a gente no pode brincar com eles. Portanto, deixo
sublinhado que, para mim, uma vegetariana muito diferente de uma
galinha e at mesmo de uma vaca. No entanto, defende-as, vaca e
galinha, com todo o denodo, e esse aspecto que pretendo abordar.

73

Coimbra continua a crnica estabelecendo uma de tipologia comparada entre
galinhas, vacas e vegetarianas, tratadas como espcies diferentes:
Comecemos pela galinha. No gosto dela. A galinha um dos bichos
mais feios do planeta, s ganhando, talvez, da girafa. A galinha tem
asas, mas no voa; tem pernas, mas no sabe correr. A galinha no
morde, no bica ningum, no tem esporo e nem mesmo canta. A
nica coisa que a galinha faz com proficincia botar ovo. Um por
dia. O que muito importante. (...) Agora, a vaca. Ela no muito
diferente da galinha, nos quesitos animao e desenvoltura. A vaca s
pasta, o dia inteiro, sem parar. Pasta e pasta e pasta,
pachorrentamente. Bovinamente. No entanto, a vaca grande e forte,
pode enfurecer-se qualquer dia desses. Suscita certo respeito, pois.
Mas o interessante, no caso, que a vaca leva uma boa vida. Durante
o tempo em que ela rumina nesse Vale de Lgrimas, a vaca come
bem, passeia livremente pelos campos e tratada com carinho.
Quando chegada a sua hora, encontra uma morte rpida e, dizem os
pecuaristas, indolor. (...) Certo. Finalmente chegamos s
vegetarianas, categoria pela qual, repito, cultivo slida admirao. Vi
que as vegetarianas fizeram manifestaes na Expointer contra o
abate de vacas, galinhas e quejandos.

Por fim, realiza um determinado prognstico do que aconteceria se as propostas
de libertao animal viessem a ser aplicadas e o carnivorismo fosse substitudo pelo
vegetarianismo:
Porm, ah, porm, se a proposta delas vingasse, as vacas viveriam
livres por a, sem quem cuidasse delas. Teriam de procurar alimento
por elas prprias, como os gnus na frica. O que no fcil. No
existiria tanto pasto disponvel para uma vaca sem dono. O gnu sofre.
Alm disso, as vacas estariam expostas aos predadores, sem haver um
nico estancieiro que as protegesse. (...) Quanto s galinhas, seria
pior: elas dominariam o mundo. Ciscariam aos bilhes por toda a
Terra, consumindo os recursos, atacando homens e vacas e, por que
no?, inclusive as vegetarianas to bem- intencionadas, as bilogas
mais formosas e os queridos castradores de gatos. Como num filme de
terror. Como num pesadelo. Portanto, embora as vegetarianas gozem
de todo o meu afeto, advirto: elas no devem combater a execuo de
certos animais. Isso pode se voltar contra elas mesmas!

Esta crnica despertou a indignao da comunidade vegetariana local, que a
acusou de incitar ao machismo e misoginia. Como relata uma militante do
abolicionismo, um grupo de mulheres vegetarianas organizou, poca, um protesto
contra Coimbra por ocasio do lanamento de um livro seu. No prximo captulo,
74

comentarei de que maneira o carnivorismo tambm se articula com determinada poltica
de gnero, evidenciada no conflito entre Coimbra e as vegetarianas.
2.2 Do carnivorismo ao naturalismo
Fora do Rio Grande do Sul, tais embates envolvendo o consumo e a abstinncia
de carne tambm acabam, muitas vezes, sendo travados nas pginas da grande
imprensa. L-se do filsofo e articulista Luiz Felipe Pond, em artigo na Folha de So
Paulo denominado A carne tica (12/10/2009):
Vamos concordar que torturar animais feio, apesar de que grande
parte da vida esteja sustentada na necessidade da tortura de alguns
seres para que outros continuem a respirar. Tambm vejo nos olhos
dos meus cachorros a docilidade de quem veio a mundo para sofrer,
alis como todos ns, vtimas do nascimento. Mas ainda aprecio
suculentas picanhas. O que fazer, eu sou incoerente mesmo, amo
meus cachorros, mas sou indiferente aos pobres bezerrinhos.
Imagino que essas pessoas "conscientes" em breve proporo
tratamentos de choque para pessoas degeneradas como eu. Tombarei
gritando pelo direito s churrascarias. Por que essas pessoas
"conscientes" no falam dos direitos das rculas em continuarem, de
forma singela, a fazer fotossntese? Onde est a conscincia deles
quando torturam seres inocentes como as berinjelas, trituradas entre
nossos dentes horrorosos?

Entre as razes apontadas pelo filsofo como legitimadoras do consumo de
carne, ressalta-se certo pessimismo antropolgico em relao natureza, por sua vez
verificvel em sua obra acadmica, dedicada, em grande parte, ao exame de tradies
intelectuais como a filosofia pascaliana da desgraa (Pond, 2004) e a obra literria de
Fidor Dostoivski (Pond, 2003). Se nas pginas da Folha de So Paulo o autor
escreve que grande parte da vida esteja sustentada na necessidade da tortura de alguns
seres para que outros continuem a respirar, a verso erudita desta mesma convico
pode ser encontrada em uma obra acadmica sua (Pond, 2009, p. 131), na qual se l: a
vida no sustenta a si mesma, a no ser que alteremos o modo biolgico de manter a
fisiologia: a vida se alimenta da vida, logo, tal horizontalidade mortal. (...) Como fazer
poesia a partir do metalbolismo que digere outro ser vivo?. Em consonncia com esta
crena, o artigo do filsofo na Folha prossegue:
No h dvida de que h algo de monstruoso na humanidade, mas o
que me espanta nesses "conscientes" a cegueira para o fato de que a
natureza no seja um mar dcil, mas sim um espao de violncia. A
75

humanidade tem algo de monstruoso porque ela parte da natureza.
Se dependssemos desses "conscientes", no teramos sobrevivido
seleo natural. Teramos cado paralisados diante da necessidade de
matar para sobreviver, por um lado, e pelo outro lado, da dor de
conscincia por aniquilar a esperana de pequenos antlopes que
corriam livres e saltitantes pela savana africana. At hoje, quando
penso neles, choro noite: ohh, como ns somos cruis! Esses caras
so uns bobos que nunca viraram gente grande, por isso eles gritam
por a "rats have rights".
E por fim:
Gente grande sabe que a felicidade no faz parte dos planos da
natureza. O que escolher? A carne tica ou a rcula santa? Um dia
vo sair correndo dando pauladas em quem no se converter "Santa
Alimentao".

Os traos utpicos contidos no vegetarianismo servem muito frequentemente
como alvo de crtica por parte de seus adversrios. Embora a alimentao vegetariana
seja revestida de certa roupagem lingustica naturalizante (o vegetarianismo como
alimentao natural), h de se salientar que, para muitos adeptos do vegetarianismo
radical, ela portadora de fortes assinaturas anti-naturalistas. Esta tendncia atinge seu
horizonte mais radical atravs de utopias tecnolgicas altamente especulativas como a
chamada reprogramao gentica de predadores, proposta pelo filsofo britnico
David Pearce
52
, uma voz bastante influente no millieu mais ortodoxo da causa animal.
Segundo esta proposta,
uma biosfera sem sofrimento tecnicamente vivel. Em princpio, a
cincia pode produzir um mundo livre de crueldade, no qual no haja
a assinatura molecular da experincia desagradvel. No s o mundo
vivo pode sustentar a vida humana baseada em gradientes
geneticamente pr-programados de bem-estar humano. Se levado
plenamente a cabo, o projecto abolicionista implica a reconcepo de
ecossistemas, a imunocontracepo, nanorrobs marinhos, a rescrita
do genoma dos vertebrados, e o controlo do crescimento exponencial
dos recursos computacionais para gerir um ecossistema global
compassivo. Em ltima anlise uma escolha tica os agentes morais
inteligentes optarem ou no por criar tal mundo ou, ao invs,
exprimir os preconceitos do nosso status quo natural e perpetuar
indefinidamente a biologia do sofrimento. (...) Na sua maioria as
cerca de 50 000 espcies vertebradas do planeta so vegetarianas.

52
Filsofo utilitarista britnico. Em seu livro The Hedonistic Imperative, Pearce defende a abolio,
tecnicamente mediada, de todo e qualquer sofrimento sobre a face da terra. Acredita que os avanos da
engenharia gentica, da neurofarmacologia, da nanotecnologia e da neurocirurgia podem convergir para a
abolio total da experincia desagradvel e promover uma civilizao ps-humanista. Pearce advoga na
esfera pblica online e offline pelos direitos dos animais a partir de um esquadro ultra-abolicionista.
76

Mas entre a minoria de espcies carnvoras encontram-se algumas
das mais bem conhecidas criaturas do planeta. Dever-se-ia permitir
que estes assassinos em srie continuem a predar indefinidamente
outros seres senscientes?
53


No custa recordar que, para a tradio judaico-crist, alm de possuir uma
ntima relao com o consumo carnvoro e o primeiro assassinato (Gnesis, 1,29; 9,3), o
pecado original no s colocou o homem em estado de desgraa, como tambm a toda
natureza (Critchley, 2012; Thomas, 2010). Bem por isso, a relao entre salvao e
natureza um dos temas centrais da discusso teolgica e filosfica do ocidente desde o
advento do cristianismo, ainda que purgada de seus significados imediatamente
religiosos. Tomando-se isto em conta, interessante notar a ressonncia deste tema em
discusses aparentemente to secularizadas como o consumo de carne.
Em posturas como a de Pearce, seguida por uma parte pequena, porm
razoavelmente expressiva do movimento vegetariano, a abstinncia de carne e sua
possvel expanso para alm dos limites humanos articula-se a certa confiana na vitria
tcnica sobre uma natureza corrupta, assinalada com o estigma da predao. H
afinidades desta postura com certa tendncia salvfica marcionista
54
, segundo a qual a
realidade aps o juzo final no se deixa identificar com uma natureza original, pura,
mas, ao contrrio, instaura uma natureza totalmente nova, uma natureza reformada,
diferente de tudo que j existe ou existiu. J aqueles vegetarianos mais afeitos teoria
do vegetarianismo como dieta natural, parecem aproximar-se da tendncia salvfica
de retorno a uma natureza original rousseausta, degenerada atravs dos males da
civilizao carnvora. Por fim, alguns adversrios eruditos do vegetarianismo, como
Luiz Felipe Pond, reproduzem, no debate sobre a carne, alguns traos do pessimismo

53
Disponvel em: http://www.hedweb.com/abolitionist-project/reprogramming-predators.html,
consultado em 27 de julho de 2012.
54
O termo marcionismo refere-se doutrina hertica de Marcio de Snope (c. 85-170 d.C) durante o
cristianismo primitivo. De acordo com esta doutrina, os ensinamentos de Cristo, contidos no Novo
Testamento, bem como sua mensagem de redeno e salvao, seriam incompatveis com a mensagem do
Antigo Testamento. Para Marcio, o Deus da criao do mundo no o mesmo Deus da sua redeno.
Este primeiro, o demiurgo, seria uma deidade tribal invejosa, particularista, cuja Lei seria a encarnao da
justia violenta que impera no campo da realidade presente. J o Deus da salvao, a que J esus se refere
no Evangelho, seria um Deus universal e piedoso, que olha para humanidade com amor e compaixo.
Nesta sua diferenciao entre uma divindade redentora e outra demirgica, alguns intrpretes vem certa
vinculao de Marcio ao gnosticismo. Em todo caso, uma das conseqncias de sua doutrina uma
dissociao entre a realidade presente a realidade futura, ps-salvacionista, j que elas devm de
princpios totalmente diferentes. Critchley (2012) defende haver tendncias cripto-marcionistas
secularizadas em diversas doutrinas polticas messinicas da modernidade.
77

agostiniano em relao s possibilidades imanentes de salvao, de modo que procuram
defender, nestes debates, certa misria do mundo representada pela necessidade
inexorvel da vida alimentar-se da morte.
Evidentemente, as aproximaes acima suscitadas s podem ser consideradas
sob a forma de hipteses, uma vez que a matria verdadeiramente complexa e
necessitaria ser mais bem pormenorizada. Mesmo assim, a evocao do conceito de
natureza nas disputas envolvendo a carne incrivelmente frequente, ainda que nem
sempre da maneira filosoficamente sofisticada com que Pearce e Pond a mobilizam nos
exemplos acima mencionados. O prximo captulo do trabalho, portanto, procura
examinar esta dimenso.















78

3 - EVOLUO, NATUREZA, GNERO E MORALIDADE NAS
GUERRAS DA CARNE

Protenas so complexas combinaes de aminocidos. A
protena partida, liberando os aminocidos, que so
usados como tijolos para construir protenas no consumidor ou
convertidas em combustvel. Vinte e dois aminocidos so
necessrios na nutrio humana. Alguns destes podem ser
fabricados pelo corpo em quantidades adequadas, outros s
podem ser fabricados muito lentamente, e um grande nmero
delas no pode ser fabricado pelo corpo de maneira alguma, e
deve ser obtido da alimentao.
Sutton e Anderson, Introduction to Cultural Ecology
(2010, p, 71).
Caro roborat, pisces vero sunt parvi alimenti [Carne fortifica,
os peixes so alimento pobre]
Provrbio latino



Figura 11: EXPOINTER, 2011. (Foto: Caetano Sordi)
.
79

Louise, atualmente com seus vinte e poucos anos, no come carne desde a
infncia. De acordo com seu relato, no se trata de uma escolha deliberada. Ao
contrrio, no consegue comer carne desde que, em um momento fatdico aos seus
cinco anos de idade, rejeitou uma poro de carne no almoo e nunca mais voltou a
procur-la. A razo para isso, nos seus termos, seria obscura. Louise conta que a
ojeriza carne despertara desde muito cedo a preocupao de seus pais e familiares, de
modo que uma grande parte da sua infncia foi dedicada a um verdadeiro priplo de
consultas a mdicos e psiclogos, todos mobilizados em compreender e tratar esta sua
dificuldade.
O primeiro nvel de investigao foi de ordem neurolgica. Deveria haver algo
no seu crebro que explicasse a rejeio da carne. Nada encontrado nos neurnios, a
investigao deslocou-se para o sistema digestivo, o esfago, a garganta. Todos os
profissionais, no entanto, coincidiam com o diagnstico de que no havia nada de
errado com o corpo de Louise. Desta maneira, passou-se para as investigaes de cunho
psicolgico: a rejeio da carne deveria ter origem em algum trauma, capaz de ser
desvelado atravs da terapia clnica. Entre as diversas preocupaes dos familiares,
sobretudo pais e avs, figurava a possibilidade de Louise no desenvolver-se
intelectualmente, de modo que fora submetida at mesmo a um teste de QI. Afora isso,
temia-se pelo seu possvel mau desenvolvimento corporal, o risco de ficar anmica (a
cada seis meses eu fazia um exame de sangue) ou engordar em demasia, devido ao
excessivo consumo de carboidratos. Com o tempo, permanecendo as razes de seu
vegetarianismo ainda ocultas e seus ndices biolgicos na mais perfeita normalidade,
todos teriam se acostumado com sua condio anticarnvora, ainda que sua me, at
hoje, ainda guarde todos os exames com ela.
Tomando este caso em conta, pergunta-se: por que a abstinncia de carne, por
parte de algumas pessoas, precisa necessariamente ter razes? Uma vez encontradas
estas razes, o que faramos com elas?
H aqui qualquer coisa de semelhante com a fatigada discusso a respeito das
razes neurolgicas, sociais ou genticas da homossexualidade, uma condio pessoal
que parece necessitar sempre explicaes, qualquer que seja a matriz desta explicao.
Como afirma a crtica feminista e queer, este tipo de demanda justificatria jamais
aplicada ao indivduo heterossexual, assim como jamais aplicada ao indivduo
80

carnvoro, cujo carnivorismo aparece como grau zero da normalidade alimentar. Quem
come carne, normalmente no solicitado a apresentar razes para isso, a no ser que
seja interpelado por um vegetariano. E quem se dedica a escrutinar a paisagem
fenomenal das guerras da carne, logo percebe que a batalha por razes que
fundamentem o carnivorismo e o vegetarianismo pautada por uma intensa remisso ao
status normal de certa natureza humana, natureza esta capaz de ser comprovada
cientificamente.
Neste captulo, portanto, procuro analisar estas e outras dinmicas que acabam
por naturalizar o consumo de carne ou sua abstinncia desde um ponto de vista
cientificamente informado. Seguindo a trilha de Adams (2010) e Wilkie (2010), defendo
que estas naturalizaes da questo da carne no esto livres da manifesta poltica de
gnero que configura o consumo carnvoro em geral, sendo muitas vezes conformadas
por ela. As falas da situao etnogrfica disparadora que tomo como pontos de partida
para o captulo so as seguintes: o ser humano essencialmente carnvoro e foi a
partir do consumo de carne que o homem comeou a dominar a cadeia alimentar,
comeou a ganhar msculos, se impor. O que est em jogo quando se afirma isso?
3.1 Quando o homem do Pleistoceno vai ao supermercado
Como aponta Stoczowski (1994), narrativas de origem a partir da evoluo
natural tornaram-se cruciais para a definio moderna do que o ser humano,
disseminando-se no senso comum sob a forma de uma antropologia ingnua
(Stoczowski, 1994). De acordo com este paradigma,
A humanidade a definida por um conjunto de caractersticas s
quais se atribui o estatuto de traos distintivos da nossa famlia
biolgica; por conseguinte, explicar a antropognese explicar as
origens destas caractersticas humanas. Estas so consideradas como
mutualmente dependentes e as suas ligaes adquirem nos cenrios
uma natureza particular, que a da relao de causa e efeito: o
aparecimento de uma caracterstica humana suposto implicar a
emergncia de uma outra, esta d origem a uma subsequente e por a
em diante, at que esta sucesso etiolgica atinja o final do processo
da hominizao (idem, 1994, p. 55)

Ingold (1995) visualiza esta acepo comum da hominizao como disposta em
dois eixos perpendiculares: a evoluo biolgica da linhagem teria atingido,
horizontalmente, um determinado ponto de consolidao das caractersticas biolgicas
81

da humanidade como espcie natural [human kind] e, a partir deste ponto, teria
evoludo, agora verticalmente, em relao aos seus traos distintivos no-biolgicos ou
superorgnicos: cultura, linguagem, tecnologia, etc., dando origem humanidade como
condio moral [humanity]. Neste eixo vertical, imporia agora distinguir se a variao
cultural, lingustica e tcnica da humanidade seria disposta num s eixo progressivo
(paradigma do evolucionismo social), ou em vrios eixos paralelos, cada um deles
declinando de maneira prpria e espontnea a humanidade como condio moral
(postura adotada pelo relativismo em antropologia e suas escolas afins). Descola
argumenta que ambas as posturas, apesar de suas diferenas, partem do mesmo
consenso de fundo e modo de identificao (Descola, 1995) ontolgico: o paradigma
naturalista da cosmologia ocidental, segundo o qual h uma s e mesma fisicalidade
humana, dentro da qual orbitam inmeras culturas contingentes, isto , distintas
declinaes da interioridade (cultura, linguagem, moralidade, etc.).
A defesa da existncia de uma natureza humana bsica, imutvel, fsica e
natural, no tem apenas o carter de uma descrio do mundo como ele , mas,
frequentemente, esgueira-se para o campo de como ele deve ser. Se compreendermos,
maneira de Foucault (1999), o discurso evolucionrio como um regime de verdade,
teremos de seguir este autor e suspeitar que ele tambm seja um discurso normativo,
isto , que prescreva atitudes, padres de normalidade e julgamento moral. Como afirma
Dillon (2011, p. 272), comentando Foucault,
No hay recuento de lo real que no diga correspondientemente cmo
debemos ser gobernados en relacin con la naturaleza de lo real. En
otras palabras, no puedes decir la verdad sin el mandato que dice en la
medida en que esa es la verdad, entonces nosotros, el nosotros de
esa verdad, tiene que ser gobernado, o gobernar a s mismo, en
funcin de esa verdad.

Ato contnuo, se um determinado padro de normalidade corporal da espcie
humana emergiu da evoluo natural entre 2,6 milhes e 11.500 anos atrs, no chamado
Perodo Pleistocnico, muitos crticos e defensores do carnivorismo acreditam que a
resposta definitiva questo que se colocam, isto , se comer ou no comer carne
natural, est para ser encontrada num exame do que ocorrera com a espcie humana ao
longo deste perodo. Mais do que qualquer coisa, disputa-se a respeito de que trao ou
fator evolucionrio conduziu a espcie a comer carne, e at que ponto nossos corpos so
82

aptos para ou foram moldados por este consumo. O guia vegetariano de Avadhtika
nandamitra carya, denominado O que h de errado em comer carne?, argumenta,
por exemplo, que
depois de estudos e pesquisas recentes, cientistas concluram que os
ancestrais dos seres humanos eram vegetarianos e que no comiam
carne seno em perodos de extrema escassez de alimento. Foi na
ltima era glacial (h cerca de 12.000 anos), quando houve escassez
crucial de frutas, castanhas e vegetais, que os seres humanos
precisaram comer carne para sobreviver. Infelizmente, esse costume
se perpetuou at os dias de hoje, tanto pela necessidade de povos de
regies com clima frio (como foi o caso de esquims e certas tribos),
como tambm pela fora do hbito ou do condicionamento, ou ainda
por falta de conhecimento adequado. Entretanto, ao longo da histria,
certos indivduos e civilizaes mantiveram-se vegetarianos, dando
importncia alimentao natural e pura, por motivaes ligadas
sade, clareza da mente ou s questes espirituais (2011, p. 17)

A representao de comunidades humanas primitivas vivendo na mais pura
necessidade e escassez um tropo bastante disseminado no contexto ocidental
(Stoczowski, 1994; Sahlins, 2007; Ingold, 2000). Tal representao se articula com
aquela do perodo pleistocnico como sendo um perodo frio, a Era Glacial, em que
as florestas se transformaram em savanas, os homindeos desceram das rvores e se
depararam com feras emblemticas como o tigre dente-de-sabre, o mamute e outras
bestas da megafauna (Stoczowski, 1994). A inexistncia destas condies adversas no
contexto presente, de acordo com uma lgica muito evocada pela militncia
vegerariana, j nos permitiria abandonar o consumo carnvoro por sua obsolescncia
evolucionria. frequente que militantes vegetarianos argumentem, atravs de dados
cientficos, que o organismo humano no preparado para o consumo de carne; que o
seu sistema digestivo no adequado para o processamento dela e que, ao contrrio dos
demais animais carnvoros, nossa arcada dentria denota, por sua ausncia de presas -
assim como o comprimento de nosso intestino e outros detalhes anatmicos - que caar
no seria algo propriamente humano, tendo sido fruto, portanto, de certas escolhas e
presses ambientais num tempo hostil, em que nossos ancestrais eram governados por
necessidades.
Com o passar dos milnios, aquilo que havia surgido devido a presses
circunstanciais, teria se consolidado como prtica hegemnica, embora inadequada
prpria fisiologia e ao metabolismo humanos. De acordo com o manual de Hugues de
83

Bonardi, Receitas da Cozinha natural, a carne seria a causa de importantes doenas da
civilizao (1991, p. 12), como problemas cardiovasculares, alguns tipos de cncer,
alergia e reumatismos. Em consonncia, uma influente voz acadmica dos direitos
animais no Brasil, a filsofa Snia Filipe, assim escreve em um artigo publicado na
ANDA (Agncia de Notcias de Direitos Animais) em 1 de junho de 2011:
Humanos sofrem de ansiedade por alimentos de origem animal.
Conforme bem o explica o mdico Neal Barnard [fundador do Comit
dos Mdicos para a Medicina Responsvel, uma ONG que congrega
quase 10 mil mdicos], em seu livro Breaking the Food Seduction, e a
nutrloga Carol Simontacchi, em The Crazy Makers, a fissura por
gordura animal adico, como o a fissura por outros aditivos que
alteram o estado de conscincia. Portanto, ter um forte apetite ou
desejo de comer carnes, queijos, sorvetes, chocolates, no indcio de
que o organismo est precisando dos nutrientes contidos nesses
alimentos. o crebro que esperneia para obter mais gordura e
acar, seus dois alimentos preferidos. O fato que podemos dar a
ele gordura e acar de origem vegetal. Mas nossa cultura nos
induziu a pensarmos que estes no prestam, s os de origem animal.
55


Situando o carnivorismo como um costume, derivado de presses ambientais j
no mais presentes, a propaganda vegetariana visa expor sua suposta contingncia. Ou
seja, a inexistncia de sua necessidade. Ao argumentar nestes termos, muitos
vegetarianos acabam se aproximando, mesmo sem saber, da chamada hiptese do
grande erro [big mistake hypotesis] na teoria da evoluo humana, segundo a qual o
comportamento humano seria mal-adaptativo no ambiente contemporneo por ser
adequado em um ambiente ancestral radicalmente diferente. De acordo com a hiptese
do grande erro, nossa psicologia seria adaptada s exigncias de vida no Pleistoceno,
mas se tornou mal-adaptativa no ambiente de uma sociedade industrial (Abrantes e
Almeida, 2011, p. 283).
J a viso da pr-histria oferecida pelos defensores da carne ligeiramente
diferente. No exatamente em seu contedo descritivo. O cenrio original pleistocnico,
para todos os efeitos, permanece mais ou menos o mesmo: era glacial, deflorestamento,
grandes predadores, etc. O que muda, a bem da verdade, so as consequncias
normativas dele. Na plataforma virtual do SIC, h uma rubrica denominada Pr-
Histria, na qual se oferece o seguinte texto:

55
Disponvel em: http://www.anda.jor.br/01/06/2011/o-sono-das-galinhas, consultado em 12 de setembro
de 2012.
84

A carne o alimento que tem acompanhado a evoluo do homem
desde a poca em que ele habitava as escuras cavernas. Nos
primeiros tempos, a alimentao humana era essencialmente
vegetariana, baseada principalmente no consumo de frutos e de
algumas folhas. Mas, uma vez experimentada, a carne incorporou-se
definitivamente aos hbitos alimentares da espcie humana. Depois
da descoberta desse sabor, qualquer animal que andasse por cima da
terra, cruzasse os ares ou deslizasse sob as guas dos rios era
prenncio de um farto banquete. (...) Para isso, esse ancestral do
Homo sapiens saa caa munido de paus e pedras ou de uma arma
que, naquela poca, era o que havia de mais avanado em termos de
tecnologia: a lana de pau com ponta de pedra afiada. Essas batalhas
dirias pela sobrevivncia, travadas com as feras, garantiram a
perpetuao da espcie e contriburam para a sua evoluo at os
nossos dias.
56


Ou seja, ao contrrio de um vcio, o consumo de carne apresentado como
benfazejo fator disparador de humanizao e civilizao. Se o consumo de carne se trata
de um costume, ento ele seria, de fato, um bom costume: uma vez experimentada, a
carne incorporou-se definitivamente aos hbitos alimentares da espcie humana. Em
consonncia, o Dr. Drauzio Varela, influente personagem da divulgao mdica no
Brasil e que frequentemente defende publicamente o consumo de carne, assim escreve
em seu site:
A espcie humana sempre comeu carne. Nas cavernas, nossos
antepassados davam preferncia a ela, como concluram os estudos de
suas arcadas dentrias. provvel que o homem s se conformasse
com outros alimentos quando a caa rareava. Guiado pelo instinto do
paladar, corria atrs da carne por seu alto valor calrico: um grama
de gordura produz 9 calorias, um grama de acar ou protena, 4
calorias. Por milhes de anos, mesmo quando o homem buscou na
agricultura as calorias necessrias para manter a famlia, a
preferncia pela carne resistiu. E assim permanece. No fcil
subverter ordens estabelecidas em milhes de anos. A gentica me
castradora.
57


Assim, se a gentica me castradora, a questo translada-se do hbito
(contingente) para a natureza (necessria), e o corpo humano passa a ser um corpo
moldado, um corpo constitudo pelo (e para o) consumo de carne. O Dr. Rond,
presente na situao etnogrfica disparadora, dedica alguns captulos de seu livro Sinal
verde para a carne vermelha (2011) questo da histria da alimentao. Segundo ele,

56
Disponvel em: http://www.sic.org.br/prehistoria.asp, consultado em 12 de setermbro de 2012.
57
Disponvel em: http://drauziovarella.com.br/doencas-e-sintomas/obesidade/os-prazeres-da-carne-
vermelha/, consultado em 12 de setembro de 2012.
85

H cerca de 2.5 milhes de anos, eles [os proto-humanos] desceram
das rvores, desenvolveram ps-funcionais e adotaram a postura
ereta. Seus maiores predadores ainda eram os grandes felinos e, para
se proteger, passaram a se agrupar socialmente. Nessa evoluo,
aprenderam no somente a abater os predadores, mas tambm as
presas, transformando-se em caadores. Com isso, sua fonte
alimentar predominante comeou a mudar de vegetais para animais,
o que promoveu mudanas no seu trato digestivo herbvoros tm um
trato intestinal mais longo, que propicia mais tempo para a correta
quebra de celulose, enquanto carnvoros apresentam trato inicial
mais curto. (p. 91)

A mudana mais importante para o Dr. Rond, no entanto, teria sido aquela
produzida no crebro, tal como j anunciado em sua interveno na palestra
disparadora. De acordo com seu livro, seus crebros [dos homens primitivos], de
500cm
3
, desenvolveram-se at chegar aos atuais 1.530cm
3
. O aumento da capacidade
cerebral foi literalmente alimentado por carne. Quanto mais inteligentes eram nossos
ancestrais, mais chance tinham de se sobrepor aos seus predadores (2011, p. 91). O
livro segue argumentando que
passar a consumir carne ajudou na construo de vrias das nossas
caractersticas: formao do grupo social, trabalho em equipe,
deslocamento por longas distncias em busca de alimento, alm de
uma inteligncia mais apurada, forjada pela necessidade de proteger
o grupo, a prole e o prprio alimento (p. 92)

Haveria tambm uma diviso de gnero trabalho social oriunda do consumo de
carne, pois, de acordo com o Dr. Rond, a luta pela sobrevivncia no poderia se
desenvolver sem a participao de todos, e a atividade coletora, to importante quanto
necessria, cabia s mulheres (p. 92). Este aspecto da evoluo e a forma com que o
mdico o analisa so bastante ilustrativos, pois remetem o mbito feminino a uma
atividade lateral e complementar, que coloca a caa e o masculino em primeiro plano.
A crtica a esta interpretao da diviso primitiva do trabalho social, delineada
por autores feministas como Adams (2010), encontra ecos na controvrsia vigente no
campo da paleoantropologia entre a chamada hiptese do caador e a hiptese do
cozinheiro, respectivamente representadas por pesquisadores como Bunn (1997) e
Wrangham (1999, 2011). Para este ltimo, certamente a ingesto de carne foi um fator
importante na evoluo e na nutrio humana, mas teve menos impacto sobre nossos
corpos que o alimento cozido (2011, p. 48). Ao contrrio de Adams (2010), no entanto,
86

o que move Wrangham em sua crtica hiptese do caador menos uma consternao
com suas consequncias para as questes de gnero do que uma questo de genuno
aproveitamento energtico dos alimentos, o que tambm o diferencia da abordagem de
Lvi-Strauss (2004, 2006, 2010), que enfatiza os aspectos simblicos e classificatrios
do cozimento.
No contexto de apropriao de dados cientficos para subsidiar argumentos nas
controvrsias envolvendo a carne, os aspectos energticos e nutricionais tambm saltam
ao primeiro plano. Como se l no artigo do Dr. Druzio Varela, mesmo quando o
homem buscou na agricultura as calorias necessrias para manter a famlia, a
preferncia pela carne resistiu. E assim permanece. Em relao a este ponto, concorda
o Dr. Rond:
Gros e outros alimentos cultivados s se tornaram parte da dieta
humana h pouco mais de 10 mil anos. Pode parecer um longo
perodo do nosso ponto de vista, mas considere que 10 mil s
representam 0,4% do tempo em que a espcie humana encontra-se na
Terra, ou seja, apenas quinhentas geraes. Seria este o tempo
necessrio para as espcies ajustarem-se a uma alimentao base
de gros? (2011, p. 94)

E assim, numa surpreendente ativao da hiptese do grande erro, agora em prol
do carnivorismo, o cirurgio complementa:
Essencialmente, nossa gentica se mantm a mesma desde os nossos
ancestrais na Idade da Pedra, que no consumiam gros de maneira
alguma. Nossa necessidade nutricional no mudou fundamentalmente
desde ento. A verdade que, com a produo de gros, os humanos
tm se adaptado com maior ou menor intensidade presena desses
itens na alimentao. A quantidade tolervel de gros e seus
derivados varia enormemente de pessoa para pessoa, e muitos de ns
tm baixa ou nenhuma tolerncia a eles (idem)

Eis, portanto, o contraste: para uma parcela importante do vegetarianismo, o
carnivorismo improcedente porque no se conforma a uma fisiologia herdada de um
passado herbvoro e frugvoro. As possibilidades abertas pela agricultura e pela cincia,
no contexto contemporneo, j nos seriam suficientes para substituir quaisquer
necessidades proteicas oriundas da carne, com a vantagem de evitar as ditas doenas da
civilizao. J para alguns defensores do carnivorismo, o vegetarianismo estrito seria
improcedente porque no se conforma a uma fisiologia humana primitiva constituda a
87

partir do consumo de carne, alm de fazer a balana nutricional pender excessivamente
para o lado dos gros - ou seja, para o lado da agricultura, colocada agora, em
substituio caa, como verdadeiro pecado ou contingncia original. O que uns
enxergam como desvio de rumo no distante Pleistoceno (o consumo de carne), outros
enxergam como desvio no Neoltico (o incremento no consumo de gros). Lembremos
que um dos participantes da palestra disparadora tambm tinha sua verso das doenas
da civilizao: esta combinao de pizza com batata frita que estaria transformando
as sociedades ocidentais em sociedades obesas; e at mesmo o fato, tomado como
preocupante naquela ocasio, que nossa dieta rica em carboidratos estaria nos
transformando em soja e milho.
Em seu livro sobre as vantagens da carne vermelha, o Dr. Rond traa
comentrios pouco elogiosos soja, retratada como o tipo mais puro da imoderao
cerealfera contempornea:
Vegetarianos e simpatizantes que me desculpem, mas a soja um
veneno. Veja o que aconteceu com internos do Departamento de
Correo, em Illinois, depois que mudaram sua alimentao.
Inmeros casos de arritmia cardaca, infeces, queda de cabelo e
alergias. Alguns detentos foram submetidos remoo de parte do
clon, e houve at quem precisasse colocar marca-passo. A origem
desses problemas todos foi a mudana de alimentao, com reforo
expressivo de soja, elevada hoje ao status de alimento saudvel. (...)
Quem procura sade deve ficar o mais distante possvel da soja. Na
dcada passada, em especial, a propaganda a transformou em um dos
alimentos mais saudveis ao nosso alcance. Tudo mentira,
manipulao motivada por interesses comerciais. Se voc acha que
esses internos recebiam soja na alimentao como reforo de uma
dieta saudvel, hora de uma saudvel dose de realidade e de
voltar para um bom e raro pedao de carne. (2011, p. 82)

Em sua propaganda poltica, a militncia vegetariana frequentemente esboa
alertas a respeito da procedncia dos produtos. Ser vegetariano, e, sobretudo, vegano,
difcil numa sociedade em que a utilizao animal permeia uma srie de atividades
econmicas. Na impossibilidade de um consumo 100% animal free, a maior parte dos
adeptos deste modo de vida se empenha numa poltica de controle de danos, reduzindo
ao mximo o consumo de derivados animais e investigando minuciosamente a
procedncia dos produtos adquiridos. H redes de colaborao na internet destinadas
troca de informaes sobre produtos livres de insumo animal, com centenas de
seguidores. curioso notar, neste sentido, que o Dr. Rond, a favor da carne e contra a
88

soja, desenvolva uma retrica parecida dos vegetarianos em relao ao inimigo oculto
na gndola do supermercado, pregando o esclarecimento:
Nos dias de hoje, difcil encontrar alimento industrializado que no
contenha algum tipo de derivado de soja, como soja em flocos, leo
de soja, lecitina, protena de soja isolada e protena vegetal
texturizada. Mesmo leos vegetais e margarina contm soja. Por ser
um aditivo alimentar barato, a indstria a utiliza em batatas chips,
atum enlatado, sucos, bolachas, cereais e uma infinidade de outros
produtos. Na prxima vez que voc for ao supermercado, d uma
olhada mais atenta s gndolas: voc vai se surpreender com a
presena esmagadora de soja nos rtulos dos produtos. (idem, p. 83)

O perigoso lastro dos gros, argumenta o cirurgio, estende-se at mesmo
carne vermelha, objeto da sua defesa pblica. Cumpre notar que seu livro no defende e
nem recomenda o consumo de qualquer tipo de carne. Ao contrrio, traa comentrios
bastante desfavorveis ao gado criado em regime de confinamento, reproduzindo a
polmica esboada no captulo anterior entre o gado nacional, criado a pasto, e o gado
estrangeiro, criado confinado:
Outro entrave qualidade da carne de gado confinado a utilizao
excessiva de milho na alimentao dos animais. As plantaes de
monocultura recebem grande quantidade de herbicidas que,
indiretamente, acabam chegando at ns pelo consumo da carne. (...)
Ainda no possvel ter absoluta certeza de que a carne do mercado
em geral proveniente de animais criados a pasto. Por isso,
aconselho a procurar os comerciantes mais conhecidos pela
qualidade dos produtos que oferecem e fugir daqueles que podem
estar comercializando peas de gado criado em confinamento, o qual
normalmente alimentado com gros e tratado com antibiticos,
hormnios e conservantes. (idem, p. 50).

Tomando em conta este aspecto, realizarei um pequeno excurso sobre a questo
da dialtica entre confinamento e pasto antes de passar para a anlise mais detida das
relaes de gnero embutidas nestes discursos contra e a favor da carne, de modo a
refletir rapidamente sobre as suas consequncias para uma antropologia da alimentao
(Fischler, 2001). Como j esboado no captulo anterior, estas diferenas no modo de
criao do gado apontam para questes verdadeiramente cruciais envolvendo a distino
humano/animal.

89

3.1.1 Excurso sobre a alimentao de humanos e animais

dada grande nfase na discusso pblica ao aspecto espacial dos
confinamentos animais. Ou seja, em que medida a liberdade de ir e vir dos animais no
fica reduzida, neste mtodo de criao, ao nvel da mais pura crueldade. H, contudo,
outra dimenso bastante relevante que diferencia os mtodos extensivos dos mtodos
intensivos, diferena esta calcada, sobretudo, no modo de alimentao dos animais. Na
criao extensiva ou semi-extensiva, na qual a base da alimentao do animal so as
gramneas, preserva-se certa no-comensalidade entre o homem e o animal: eles comem
capim, e ns os comemos porque, graas s capacidades nicas de sua microbiota
ruminal, eles transformam capim, que no comemos, naquilo que eles so. Retornarei a
este ponto no captulo 4.
Por hora, cabe o reconhecimento do seguinte: ao se alimentarem de raes ou
preparados, os animais confinados passam a se alimentar de gros, soja ou milho, que
ns tambm comemos. Em certa medida, ao consumirem raes, os animais de
produo se tornam nossos comensais. Em tempos de crise ecolgica e nutricional, isto
implica dividir com eles uma parte da produo cerealfera. Para a crtica ambientalista
e vegetariana, a reserva desta parte (para no dizer a maior parte
58
) dos cereais para o
consumo animal vista como escandalosa, por ser ambiental e socialmente nociva.
exatamente a partir deste ponto que os crticos da carne desenvolvem uma narrativa
segundo a qual o consumo e a produo de carne so geradores de fome, desigualdade
social e desequilbrios ambientais.
Se, por um lado, defensores do confinamento argumentam que as raes
proporcionam uma converso de matria seca em carne muito rpida e proveitosa, os
crticos argumentam que, no cmputo geral, esta uma converso altamente custosa,
ineficiente e predatria. Para produzir um quilo de carne, objetam os crticos, seriam
necessrios muitos quilos de cereal e ainda muitos mais litros de gua, o que tornaria
este tipo de produo social e humanitariamente invivel
59
. H toda uma controvrsia

58
Wilkie (2010), evocando a FAO, assinala que 70% do milho colhido nos Estados Unidos tem como
destino a alimentao de animais confinados.
59
Um exemplo que subsidia as alegaes de ineficincia: Hoje em dia, nos pases em desenvolvidos e
nas camadas sociais abastadas dos pases em desenvolvimento, a rao mdia [humana] ultrapassa
folgadamente as 3.000 calorias dirias por pessoa, incluindo uma parte importante de calorias animais.
Consideremos agora uma rao mdia de 3.200 calorias por dia, compostas por 2.200 calorias vegetais e
de 1.000 calorias animais. Como vimos, para conseguir estas 2.200 calorias vegetais, preciso dispor de
90

sociotcnica, que no me cabe pormenorizar agora, envolvendo a porcentagem da gua
potvel disponvel no planeta destinada pecuria, bem como a quantidade de terras
agriculturveis nas mos da criao de animais e de cereais para alimentar animais que
poderia ser destinada a outras atividades.

Figura 12: pecuria como atividade socio-ambientalmente nociva. Infogrfico produzido pelo Estado de
So Paulo, disseminado por militantes vegetarianos nas redes sociais.
60


Atualmente, se vive no Brasil um momento de forte liberao de pastagens para
a cultura de gros (Brando, 2005, p. 2005), sobretudo a soja, a qual, exportada como
commodity, comprada por naes do norte, em grande parte, para alimentar seu gado
confinado. Paradoxalmente, dois produtos que para muitas pessoas envolvidas nas
guerras da carne aparecem como opostos (a carne bovina e a soja), acabam sendo fruto,

200kg de equivalente-cereal por pessoa e por dia. Alm disso, sabendo que preciso aproximadamente
sete calorias vegetais para uma caloria animal, preciso ainda dispor, para conseguir 1.000 calorias
animais, de aproximadamente 7.000 calorias vegetais (por pessoa e por dia), o que corresponde a 640kg
de equivalente-cereal por pessoa por ano. No total, preciso dispor de 200 +640 =840kg de equivalente
cereal por pessoa e por ano, ou seja, aproximadamente quatro vezes mais que o mnimo considerado
anteriormente (Mazoyer e Roudart, 2010, p. 95). [grifo meu]
60
Disponvel em : http://www.estadao.com.br/especiais/de-onde-vem-o-lixo-produzido-no-
mundo,148028.htm, acessado em 23/12/2012.

91

como afirma Almeida (2011), da mesma trajetria sociotcnica, ao menos na histria
recente da ocupao agrcola do Brasil.
Conforme os gros tomam o espao antes dedicado pecuria extensiva, a
tendncia tem sido a de ampliao dos confinamentos tambm em solo nacional, o que,
na viso de muitos produtores, uma maneira de produzir mais carne, mais rpido, mais
padronizadamente, e, o que crucial, em menos espao. Em um artigo apologtico ao
confinamento, recentemente publicado na plataforma Beef Point
61
, um especialista no
mercado bovino diz-se admirado com a capacidade dos norte-americanos abaterem
animais aos 24 meses com 700kg em mdia, praticamente 100% confinado, com
ganhos mdios de 2kg ao dia.
Nos eventos pblicos da pecuria de corte, como a FEICORTE, visvel o
entusiasmo e interesse de muitos produtores com as vantagens prometidas pelo
confinamento. Nestas ocasies, h premiaes para confinamentos exemplares, como o
Prmio Nelson Pineda, em homenagem a um dos pioneiros do mtodo no Brasil. A
indstria de insumos agrcolas (raes, medicamentos, etc.) tambm aproveita estes
eventos para promover seus produtos adequados ao confinamento.
Na edio de 2011 da FEICORTE, havia um enorme stand pertencente a um
grupo empresarial especializado em nutrio animal inteligente, prtica definida no
site do mesmo grupo como fundamentada na adequao da complementao mineral
dos rebanhos para atender necessidades de uma pecuria empresarial em que as metas
de desempenho so cada vez mais desafiadoras
62
. Em frente ao stand, duas promotoras
de venda distribuam pequenas caixas azuis (no maiores que uma mo) em cuja lateral
se lia: voc se alimenta de flakes? Seu boi tambm.
Dentro da caixa, os visitantes ganhavam um punhado de flocos de milho,
semelhante aos cereais matinais, e eram convidados a prov-los. Aquele mesmo
insumo, de fato, era ministrado aos bois confinados, conforme demonstrao in vivo
logo ao lado. A caixa ainda informava que aquele alimento to seguro que at mesmo
humanos poderiam consumir era usado em 70% dos confinamentos estadunidenses,
apresentados como os mais modernos no campo da pecuria intensiva. Pude observar

61
Disponvel em : http://www.beefpoint.com.br/cadeia-produtiva/espaco-aberto/que-tal-15-mil-litros-de-
agua-por-quilo-de-carne/, consultado em 24 de outubro de 2012.
62
Disponvel em: http://www.prodap.com.br/nutricao/nutricaoi2.php, consultado em 31 de agosto de
2012.
92

alguma hesitao dos visitantes em provar dos flocos. Talvez porque dividindo com os
animais a mesma comida, j no estivesse mais to assegurado nosso lugar no topo da
cadeia alimentar. As fronteiras especficas entre o eu e o outro, balizadas pelo que se
come (Haraway, 2008; Fischler, 2001) tendem, no contexto altamente tecnificado da
nutrio animal para confinamentos, a produzir hbridos cada vez mais inclassificveis.
Acredito que este iniciativa publicitria pode ser compreendida como uma
verso controlada e positivada do tipo de experincia causada pela exposio de
meandros socialmente ocultos das redes sociotcnicas (Latour, 1994, 2001, 2004)
agroalimentares. A verso negativada e descontrolada da mesma experincia
representada pelos surtos de Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB) a doena da
Vaca Louca que grassaram no hemisfrio norte ao longo das dcadas de 1980 e
1990. Tambm nesta ocasio, a opinio pblica fora informada, de maneira um tanto
mais trgica que os visitantes da FEICORTE, que os ruminantes que lhe serviam de
alimento eram, em certa medida, seus comensais, pois alimentavam indiretamente de
outros ruminantes.
Dividir com os animais de fazenda a produo cerealfera mundial levanta
problemas ambientais e socioecnmicos. Certo incmodo interespecfico, causado pela
comensalidade envolvendo uns e outros, tambm se faz presente. o que parece verter
de uma experincia como a dos flakes na FEICORTE: afinal de contas, quando ambos
se alimentam de flocos de milho, so os humanos que se alimentam como bichos ou os
bichos que se alimentam como humanos? J no caso da Vaca Louca, o que reluz o
tabu do canibalismo, representado por ruminantes que se alimentam indiretamente de
outros ruminantes (Lvi-Strauss, 2009). H um curto circuito nas fronteiras especficas
mediadas pelo ato alimentar. O lugar do ser humano no topo da cadeia alimentar j no
se trata mais de uma certeza absoluta. No coincidentemente, os males provocados pela
protena prinica, o agente etiolgico da EEB, so de ordem neurolgica. a prpria
atividade cerebral e cognitiva dos organismos atingidos humanos ou animais que se
v comprometida.
3.2 O gnero da carne
Feito este breve excurso, cabe agora retornar s questes deixadas em aberto no
item anterior. importante ressaltar que o ser humano enfocado nas controvrsias da
carne , para todos os efeitos, um homem: ou seja, ainda que se esteja falando da espcie
93

humana em geral, a figura de um indivduo masculino que vem ao primeiro plano nas
discusses envolvendo o consumo de carne. L-se no livro do Dr. Rond:
O consumo regular de carne vermelha, no mnimo trs vezes por
semana, importante para manter altos os nveis de andrognio,
hormnio esteride que estimula o desenvolvimento dos caracteres
masculinos secundrios. Estudos tm mostrado que a reduo no
consumo de carne vermelha e de gordura das carnes causa
diminuio dos nveis de andrognio nos homens. Em outro estudo,
trinta homens saudveis tiveram suas dietas alteradas, com reduo
de carne vermelha e da relao de gordura poli-instaurada/gordura
saturada. Aps seis semanas, seus nveis de testosterona diminuram
10% em mdia. (2011, p. 55)

significativo que logo depois de alertar para os perigos de alterao nos nveis
de testosterona devido abstinncia de carne, o autor passe diretamente a traar
comentrios sobre o que essencial para o ser humano em geral, transladando a sua fala
da parte (o gnero masculino) ao todo (a espcie humana) de maneira imediata e
englobante (no sentido de Dumont, 1985):
Vivemos uma parania contra a gordura e a protena de origem
animal. O quadro deveria ser diferente, pois precisamos desse tipo de
gordura e protena, essencial para o ser humano. No somos capazes
de produzi-la. No possvel produzir protena a partir de amido ou
carboidratos. Muitas dessas protenas so cruciais para todas as
clulas (idem)

Esta economia simblica do gnero envolvendo os humores e temperamentos
advinda do consumo de carne tem razes bastante profundas. J no alvorecer da
modernidade, Baruch Espinoza argumentava que a objeo ao abate de animais
baseava-se em superstio vazia e em feminina brandura e no na justa razo
(Thomas, 2010, p. 422). Para autoras da crtica ecolgica feminista como Adams
(2010), Merchant (1989), e, em certa medida, tambm Wilkie (2010), o carnivorismo
pode ser considerado um elemento central da dominao masculina que caracteriza a
civilizao do ocidente moderno.
Nas incurses etnogrficas pelo mundo do agronegcio, flagrante notar a forte
diviso de gnero existente neste meio. Embora haja certa retrica de modernidade
envolvendo a incluso de mulheres em cargos de liderana do agronegcio
representada, contemporaneamente, pela emblemtica figura da senadora Ktia Abreu
94

(PSD/TO), presidente da CNA , a lida com o campo e com os animais permanece uma
funo hegemonicamente masculina. O agronegcio financeirizado e profissionalizado
do sculo XXI tambm no escapa desta poltica de gnero marcadamente patriarcal.
Em reportagens que discutem a ascenso das mulheres no agronegcio, percebe-se forte
nfase no fato de que tais mulheres so mulheres apesar de tudo isto , no descuidam
da beleza e da feminilidade, dos gostos de grife, etc.
Sahlins (2007) j havia notado este aspecto quando argumenta, a respeito da
centralidade da carne para a sociedade norte-americana, que seu modelo alimentar
deriva de uma forma de explorao do meio ambiente, que, a seu juzo deve remontar
identificao indo-europeia do gado ou da riqueza multiplicvel com a virilidade (p.
185)
63
. Para o autor, bastaria se observar as refeies das equipes esportivas em
treinamento, especialmente o futebol americano, para se perceber a indispensabilidade
da carne como fora, e do fil como eptome das carnes viris (idem).

Figura 13: material publicitrio para linha de suplementos proteicos Carnivor, com forte apelo
masculinidade

Um exemplo etnogrfico que reproduzo abaixo, a partir do dirio de campo da
FEICORTE de 2012, pode auxiliar a ilustrar esta dimenso de gnero envolvida na
pecuria, assim como sua transposio para o caso do Brasil. Como argumenta Wilkie

63
Neste sentido, o autor retoma em uma nota ao texto as discusses de Benveniste sobre o pasu vra indo-
europeu, termo que remete ao conjunto da propriedade privada mvel, tanto de homens quanto de
animais. A relao etimolgica entre pecus [gado] e pecunia [dinheiro] tambm citada por Sahlins. Este
ponto ser mais bem trabalhado no captulo 4.
95

(2010), foroso reconhecer que nos contextos rurais os animais tambm acabam sendo
objeto de uma poltica de gnero:
Hoje havia uma demonstrao prtica de como casquear um bovino.
Tratava-se de um tronco de conteno estrategicamente posicionado
na entrada do Espao Carne, ocupado por uma viosa e incomodada
vaca branca, atada ao aparelho por cordames que prendiam suas
patas e envolviam sua barriga por baixo. Vrias pessoas
contemplavam o espetculo, que tambm era filmado por uma equipe
do Canal Rural. De maneira muito paciente, o casqueador erguia a
pata traseira da vaca atravs de uma manivela, a qual erguia o
referido membro at o ponto em que ficasse confortvel para ele, o
casqueador, realizar o seu trabalho. O animal, visivelmente
desconfortado, urrava e mugia a cada movimento de uma de suas
patas, permanecendo incomodado ao longo do processo inteiro. Ao
meu lado, uma promotora de vendas assistia a tudo bastante
impressionada, soltando comentrios condodos. Um senhor de uns
sessenta anos de idade se aproximou da moa e disparou o seguinte
comentrio: no se preocupa no, viu. sempre assim. Acho que s
vocs [mulheres] que no reclamam na hora de fazer as unhas.

Ora, se no campo do consumo a carne aparece como alimento mais identificado
com a produo da virilidade e sos corpos masculinos, no universo da produo o que
se verifica um correspondente (e muito frequente) paralelismo do animal que ser
consumido com o feminino. H uma ntima vinculao entre o episdio acima descrito e
aquela outra situao, vivenciada na palestra disparadora, em que o mediador chamara a
atriz Angelina J olie de suculenta. A carne consumida em sentido literal. A mulher,
em sentido metafrico: diz-se do ato sexual, no colquio, que a parte passiva do mesmo
comida pela parte ativa. A prpria expresso bofe, usada muitas vezes na gria
homossexual para se referir ao parceiro ativo, remete a um imaginrio carnvoro, pois o
bofe, na partio bovina uma carne que no se come.
As justificaes ao consumo de carne calcadas no mito do man the hunter - que
tm na discusso erudita e cientfica sua declinao sob a forma da hiptese do
caador parecem antes se relacionar com uma economia simblica do gnero e da
sexualidade na nossa sociedade do que com um trao natural e evolutivo da espcie
como um todo. Distintos trabalhos sugerem que algumas narrativas cientficas mais
persuasivas da modernidade esto calcadas em pressupostos e esteretipos de gnero
firmemente sedimentados, como a atribuio de intencionalidades masculinas e
96

femininas para espermatozoides e vulos nas narrativas sobre fecundao (Martin,
2007), por exemplo.
Schiebinger (1987) e Lorber (2003) assinalam o sculo XVIII como
representativo de um acirramento das distines de natureza entre homens e mulheres e
do advento da biomedicina como instncia de arbitragem para os casos limtrofes e
problemticos. Rohden (2002), por sua vez, analisa a ginecologia no sculo XX como
um saber que se constitui a partir da noo de que o corpo e o papel social femininos
so determinados pela funo procriativa (2002, p. 101). Atravs de uma progressiva
substancializao das diferenas de gnero no corpo, as distines do que cabe a cada
um dos sexos se desloca de uma materializao atravs dos rgos (tero, ovrios,
testculos) para outra radicada na mecnica dos hormnios (progesterona, testosterona)
e, mais recentemente, para aquela centrada nas diferenas genticas e neurolgicas. Ora,
o espectro temporal abordado por estas autoras coincide com aquele da constituio e
refinamento da hiptese do caador nas narrativas de evoluo da espcie, de modo
que podemos considerar, ttulo de hiptese, que ambos os processos sejam oriundos de
uma mesma matriz ideolgica.
Se h, portanto, uma gramtica carnvora na vida social, como explicitado no
captulo anterior, deve se reconhecer que esta tambm uma gramtica de gnero:
transversal ao discurso leigo e erudito, ao senso comum e cincia, sendo transposto de
um lado a outro por instrumentos de traduo cientfica como as obras de divulgao
mdica.
3.4 Os nimos da carne

Um dos obstculos epistemolgicos (Bachelard, 1996) aparentemente derrotados
pelo avano da biomedicina a partir do sculo XVIII seria aquele representado pela
antiga medicina galnica, a qual, longe de submeter o funcionamento dos corpos a uma
cega lei natural de tipo newtoniano, fazia dele uma morada dos humores
64
, cuja
avaliao se dava mais qualitativa que quantitativamente: haveria rgos secos e
rgos midos; temperamentos fleumticos, colricos e melanclicos; cada
qual relacionado com uma parte ou uma substncia do corpo, como se elas tivessem
agncia e intenes. Nesta medicina, os alimentos cumpriam um papel essencial. Como

64
Bachelard (1996) chama este processo de superao do obstculo animista nas explicaes
cientficas.
97

os humores, eles podem ser secos ou midos, quentes ou frios. Mais do que
isto, poderiam incidir sobre o carter e o temperamento das pessoas, alando a ingesto
ao patamar de um processo eminentemente moral.
Pese o desenvolvimento de uma abordagem cada vez mais calcada na avaliao
das propriedades fsico-qumicas dos alimentos (Montanari, 2008), ecos distantes do
paradigma galnico ainda tambm se fazem sentir nas discusses sobre carne, seja em
mbito profissional ou leigo. A argumentao do Dr. Rond em prol da carne vermelha,
por exemplo, baseia-se numa teoria de tipos metablicos. Segundo ela, a posio de
cada indivduo nesta tipologia prescreveria a dieta mais adequada para o seu caso
particular. De acordo com o mdico, no h uma receita de alimentao perfeita que
funcione igualmente para todos (Rond, 2011, p. 85), de modo que seria de
fundamental importncia conseguir identificar a que tipo de perfil cada pessoa
pertence
65
. O melhor a se fazer, defende o especialista, seria trabalhar em parceria com
um mdico (idem, p. 86) na descoberta do seu prprio perfil, atravs de exames
clnicos de laboratrio e outras identificaes mais precisas. No entanto, o livro traz
consigo um teste de vinte questes, divididas em duas partes, que auxilia o leitor na
identificao preliminar do seu perfil metablico.
So apresentados trs tipos metablicos: o tipo protena (cujo organismo aceita
muita protena, muita gordura e pouco carboidrato); o tipo carbo (cujo organismo
satisfaz-se com pouca protena, pouca gordura e muito carboidrato); e o tipo misto
(auto-explicativo, fuso dos outros dois). Para responder ao questionrio, preciso
assinalar verdadeiro ou falso de acordo com o que realmente acontece com voc
(idem, p. 87). interessante notar que, dentre as alternativas elencadas, h tanto
enunciados relativos a estados factuais (meu apetite no almoo forte preciso urinar
frequentemente durante o dia) quanto enunciados de sentido mais moral e subjetivo
(vivo para comer em vez de comer para viver).
Montanari (2008) relembra que na Idade Mdia o nobre se qualificava como
consumidor de carne, o alimento mais diretamente vinculado a ideia de fora, num
sentido tanto simblico quanto tcnico-funcional (p. 126). No coincidentemente,
experincias monsticas, de ascese ou de afastamento do mundo, nesta poca,

65
No se trata, evidentemente, de um caso isolado. Assim como h a dieta dos tipos metablicos, h
tambm a popular dieta dos tipos sanguneos, que prescreve estilos de vida alimentares diferentes para
perfis diferentes.
98

continham o rechao da carne, e, com ele, de um estilo de vida e de alimentao
culturalmente identificado com o exerccio do poder, da fora e da violncia (idem). O
mesmo assinala Weber (2004) a respeito de algumas verses radicais do protestantismo
asctico. Ainda mais distante no espectro temporal, Ginsburg (2012) apresenta dois
tipos de rejeio sectria religio oficial da polis grega, cada uma delas calcada em um
tipo de privao alimentar diferente:
a religio da cidade, que tinha no sacrifcio o seu prprio centro, foi
obrigada a enfrentar dupla contestao, representada pelas formas de
religiosidade radical que eram defendidas, respectivamente, pelos
seguidores de Pitgoras e Dioniso. Os primeiros condenavam de
forma menos ou mais decidida a alimentao com carne, vista como
obstculo no caminho de uma perfeio que deveria aproximar deuses
e homens. Os segundos tendiam a abolir a distncia entre homens e
animais recorrendo ao ritual sanguinrio da homofagia, em que os
animais eram despedaados e devorados ainda crus quase vivos (p.
271).

Enquanto os seguidores de Dioniso renegavam a religio da cidade atravs de
uma anticozinha (Montanari, 2008) que rejeitava o cozimento, isto , o modus operandi
do sacrifcio, os seguidores de Pitgoras procuravam uma comunicao mais imediata
com os deuses atravs da rejeio do prprio objeto do sacrifcio, a carne. Ambas as
formas de religiosidade alternativa buscavam divergir do sacrifcio oficial, mas de
maneira simetricamente oposta. Os primeiros buscavam se aproximar da animalidade
atravs de um contato mais direto com a matria crua, rejeitando o cozimento. Os
ltimos, em contrapartida, procuravam se divinizar atravs de um afastamento cada vez
mais pronunciado em relao matria, que tinha na carne sua figura mais absoluta e
emblemtica.
Pitgoras, como mito fundador do vegetarianismo ocidental, constitui-se como o
paradigma do vegetariano sbio, renunciante, cuja tradio se perenizou ao longo dos
sculos atravs de outras figuras emblemticas como Plutarco, Porfrio, Sneca, Milton,
Newton, Thomas Tyron, Leonardo da Vinci, Gandhi, George Bernard Shaw, entre
outros. Em seu tratado denominado Sobre a absteno de matar animais, Porfrio (232-
309 d.C.) j argumentava que a pureza e a autodisciplina da dieta vegetariana
importante para aqueles devotados a uma vida intelectual (apud Fraser, 2012, p. 37).
Um dos pioneiros do vegetarianismo na Inglaterra da Idade Moderna alegava que os
homens vulgares e ignorantes, quando mimados com uma variedade de comida animal,
99

so muito mais colricos, ferozes e cruis em seus temperamentos do que os que vivem
basicamente de vegetais (apud Thomas, 2010, p. 412). Neste sentido, podemos
considerar que a rejeio carne como alimento, no ocidente, contm consigo
elementos de uma rejeio carne como dimenso ontolgica: natureza humana, por
oposio natureza divina; corpo humano, por oposio ao esprito, alma; carne, por
fim, como a condio humana, considerada em suas fraquezas, seus apetites, sua
concupiscncia.
Traos desta assinatura fsico-moral so rastreveis na literatura vegetariana
contempornea. De acordo com o manual vegetariano de Scolnik e Scolnik (1979), ao
deixar a carne, a mente e os sentidos tornam-se mais aguados; os costumes se
moderam e os sentimentos se elevam e se enobrecem (p. 24). O de Avadhtika carya
(2011), bastante espiritualista, ressalta que atravs da histria, pessoas sbias e eruditas
adotaram a dieta vegetariana, e cita o exemplo de So Paulo, o qual, na epstola aos
romanos (14, 21), recomenda aos membros da comunidade crist a no comer carne.
Este manual tambm prope uma classificao dos alimentos entre sutis, mutatrios
e estticos, de acordo com a energia proporcionada por cada um deles. As carnes,
assim como as bebidas alcolicas, estariam contidas na categoria esttica, cuja energia
seria aquela do embrutecimento, da inrcia, da decadncia e da morte (carya, 2011,
p. 33). J para o guia de Bonardi (1991), a cozinha vegetariana alegre e otimista, livre
de qualquer metafsica (p. 13).
To frequentes quanto estas menes espiritualidade, elevao intelectual e
moral envolvendo a abstinncia de carne, so os relatos de vegetarianos que alegam
terem se tornado mais leves depois que pararam de consumir carne. A natureza desta
leveza engloba tanto o aspecto fsico quanto o psquico, o moral e o social. Leveza do
corpo, que passa a funcionar melhor, ter mais disposio; leveza da mente, que
compreende melhor as coisas, se pacifica; leveza do esprito, que se abre para a
solidariedade entre tudo o que vivo, os homens e os animais. H tambm a leveza de
quem ops-se fora cultural e optou por viver mais autenticamente, conforme
relato de uma interlocutora.
A prpria categoria de fora, inscrita com mais frequncia no domnio de
significados do carnivorismo, tambm mobilizada pelo vegetarianismo com um
100

significado prximo desta leveza discutida acima. De acordo com o manual de
carya (2011, p. 68):
Esses resultados [de pesquisas citadas anteriormente no livro]
demonstram que a dieta vegetariana a mais indicada para o
desenvolvimento da fora, da resistncia e da eficincia fsica. Na
verdade, os animais mais fortes e de vida mais longa so os
vegetarianos. O cavalo, o boi, o bfalo e o elefante, todos eles tm
corpos grandes e saudveis, resistncia e fora fenomenal (...).
Nenhum dos animais carnvoros tem vigor ou resistncia suficiente
para ser utilizado como animal de carga. (...) tambm interessante
notar que houve atletas vegetarianos que estabeleceram recordes
mundiais.

Aqui, a fora adquirida atravs do regime exclusivamente vegetal fonte de
vitalidade e espontaneidade, em contraposio fora como violncia e dominao,
prpria da predao carnvora. Neste sentido alternativo de fora como vitalidade,
como pureza e imediatez, o predador carnvoro se aproxima do parasita: o fraco que
sorve a energia vital do verdadeiramente forte, do genuinamente vigoroso. Em outras
palavras, quanto mais imediata for a relao de consumo com os nveis trficos mais
baixos (isto , daqueles que extraem sua energia diretamente da terra e da luz solar, via
fotossntese), mais perto se estaria de uma energia e uma fora mais autnticas,
originrias; desvinculadas, portanto, das mediaes dissipativas e violentas, nuas e
cruas, da predao.
interessante notar que a categoria de energia perpassa o discurso leigo e o
especializado, o espiritualista e o cientificista. A ideia de energia, de fato,
simultaneamente uma das mais evocadas e uma das menos definidas das nossas
categorias cotidianas, em diversos mbitos sociais (Soares, 1994; Taks, 2012). Em certa
medida, poderamos aloc-la no rol de outras categorias fundamentais do nosso
pensamento, como tempo ou espao, cuja dificuldade em se precisar o que so
inversamente proporcional sua capacidade de organizar a realidade de maneira
satisfatria num nvel pr-crtico ou pr-filosfico. Na esteira da tradio
durkheiminana e maussiana de investigao sociolgica, nos vemos forados a admitir
que tais categorias so categorias sociais acima de tudo, de modo que cumpre examinar
as condies sociais de seu emprego, emergncia e definio.
No prximo captulo, iniciarei a discusso a partir de uma das falas da palestra
disparadora em que certa racionalidade energtica fora acionada para se justificar o
101

emprego de animais como fonte de recursos alimentares. Trata-se da ideia do animal
como uma mquina transformadora de pasto em protena, uma mquina de quatro
estmagos, cujo emprego pela sociedade humana se faria necessrio e justificado desde
o ponto de vista de sua inigualvel capacidade de transferir energia desde o nvel trfico
mais inferior, fotossinttico, at os organismos humanos e suas sociedades.
Mesmo que se trate de uma racionalidade capaz de equivaler os animais de
produo com verdadeiras mquinas termodinmicas o que os reduziria ao nvel de
meros instrumentos de trabalho ou insumos industriais - procurarei mostrar que,
subjacente a tudo isso, o que se estabelece uma relao social com os ruminantes, cujo
lastro histrico estende-se at os princpios da domesticao dos animais.















102

4 - A PRODUO DE CARNE E OS LABORATRIOS NUTRITIVOS
ANIMAIS

Comte divide os animais em trs categorias. Na primeira
coloca os que, de uma maneira ou de outra, apresentam para o
homem um perigo, e prope simplesmente destru-los. Numa
segunda categoria, ele rene as espcies protegidas e criadas
pelo homem para se alimentar: bovinos, ovinos, porcos, aves
de galinheiro... Desde milnios o homem transformou to
profundamente esses animais que nem se pode mais cham-los
assim. Devem-se ver neles os "laboratrios nutritivos" nos
quais se elaboram os compostos orgnicos necessrios nossa
subsistncia.
Lvi-Strauss, A lio de sabedoria das vacas loucas (2009,
p. 213)
H to somente mquinas em toda parte, e sem qualquer
metfora: mquinas de mquinas, com seus acoplamentos e
conexes (...) Algo se produz: efeitos de mquina, e no
metforas.
Deleuze e Guatarri, Anti-dipo (2010, p.11)


Figura 14: FEICORTE 2012. (Foto: Caetano Sordi)

103

Em determinado momento da situao etnogrfica disparadora, uma das suas
personagens caracterizou o bovino como este animal de quatro estmagos que opera o
milagre de transformar pasto cru em alimento. Quando a registrei no meu dirio de
campo, acreditei estar diante de uma formulao deveras criativa do que seria um boi,
talvez uma idiossincrasia daquela personagem. Logo percebi, no entanto, que se tratava
de um tropo bastante comum no meio agropecurio. Um ano depois, em palestra sobre
sanidade animal realizada na FEICORTE de 2012, ouvi uma formulao parecida: esta
mquina fantstica capaz de produzir carne a partir de capim. Depois disso, ouvi-a
novamente. E de novo. Alm disso, deparei-me com o seguinte material publicitrio
num informativo do setor, cujas atualizaes semanais passei a acompanhar sob a forma
de newsletter na internet:

Figura 15: material publicitrio de sementes evocando o ideal de converso de pasto em carne

Acima esquerda, lia-se: aumente o potencial de produtividade da sua
pastagem. O resultado voc v na hora do abate; abaixo esquerda, sob a forma de um
selo, muito mais arroba por hectare; e ao centro, completando o cenrio, um produtor
devidamente caracterizado contemplava radiograficamente a futura carcaa desmontada
104

do seu boi zebu, cujos cortes ostentavam promissores cifres. O prprio nome do
produto (Convert) j indicava o que est em jogo na propaganda: a converso de um
tipo de matria orgnica (pasto) em outra (carne), seguida da converso desta ltima em
lucro.
Por fim, em dezembro de 2012, dois vdeos gravados em um campo
experimental da EMBRAPA em Coronel Pacheco (MG) provocaram acaloradas reaes
de vegetarianos e amigos da causa animal nas redes virtuais. O primeiro vdeo iniciava
enfocando desde muito perto uma sonda, a qual penetrava o interior de uma vaca desde
seu flanco esquerdo. Percebia-se que ali havia uma fstula ruminal, espcie de orifcio
produzido no corpo do animal para melhor acompanhar seu processamento digestivo.
Conforme a sonda ia e voltava para dentro e para fora da rs, um pouco da sua matria
estomacal era projetada para fora, escorrendo ao largo das costelas do bicho. Em
determinado momento do filme, a mo annima que manipulava a sonda projetava-se
diretamente para o interior da fstula, dispensando mediadores instrumentais. Uma voz
ao fundo anunciava que aquele procedimento repetido de duas em duas horas. Embora
se assemelhe a um tanque de processamento, cujo acesso se dava atravs daquela
inusitada escotilha, percebia-se que se trata de um organismo vivo, j que a espessa
massa que se vislumbrava dentro da cmara gstrica se movia ao ritmo das oscilaes
peristlticas. O prprio rosto do animal aparecia de quando em quando, e demonstrava
alguma indiferena em relao ao que ocorria logo atrs.
De repente, escuta-se um convite: todo mundo viu? Algum quer colocar na
mo?. Em resposta, apenas uma pessoa se candidata: d pra colocar mesmo?. A
mesma voz que fizera o convite ento assente, e dirigia-se a outra personagem,
solicitando que trouxesse uma caixa de luvas. O corajoso voluntrio, no entanto,
pergunta se no vai sem luva mesmo e assim que introduz a sua mo no interior do
animal, questiona: isso aqui ... dentro do rmen?. Ao que a primeira voz assente:
... dentro do rmen, uai.
J o segundo vdeo comeava com um homem introduzindo seu brao no
interior da fstula, acompanhado de uma voz feminina ao fundo que dizia: ai, que
nervoso gente!, seguido de algumas risadas. Uma mulher de meia idade se aproxima e,
visivelmente enojada, repete o procedimento, declarando que ali dentro quentinho.
Abrindo e fechando sua mo livre, indicava que vaca fica fazendo assim, isto , que
105

ela se movimentava peristalticamente. E ao retirar seu brao do animal - alegando que
tem medo de machucar ela [a vaca] - a mulher se depara com uma nova surpresa: o
animal comea a despejar fortemente a sua urina atravs de um esguicho para trs, e
novas risadas (entre o nervoso e o constrangido) so ouvidas desde o fundo. Passado o
susto, outro corajoso voluntrio reinicia o procedimento.
Como resultado da divulgao destes vdeos, comeou a circular na internet uma
petio pblica
66
direcionada EMBRAPA contra a viviseco e fistulao de bovinos
em suas estaes experimentais. O texto-base da petio solicitava que a empresa se
voltasse ao melhoramento das plantaes, no tortura de animais inocentes. At a
tarde do dia 14 de dezembro de 2012, o documento contava com 1197 assinaturas,
muitas delas acompanhadas de comentrios indignados.
Neste ltimo captulo, pergunto: o que est em jogo nesta descrio do animal
bovino como uma mquina de quatro estmagos? O que isto pode nos dizer a respeito
das relaes humano-animais que se estabelecem na produo de carne?
Como j foi comentado no excurso 3.1.1, evidente que a nutrio dos animais
de produo um dos focos de maior interesse institucional e empresarial do setor
pecurio. A categoria de precocidade, to mobilizada nas situaes comerciais
envolvendo bovinos, refere-se justamente capacidade do animal chegar ao ponto ideal
de maturao da sua carcaa em menos tempo: o aumento da idade de abate ocasiona
baixo rendimento da carcaa e menor qualidade da carne (Feij et al., 2001, p. 1016).
O contemporneo entusiasmo de vrios produtores brasileiros com as possibilidades
abertas pelo confinamento, tal como tratado no captulo anterior, tem relao com esta
dinmica (casos como os surtos de Vaca Louca poderiam ser considerados os perigosos
excessos potenciais desta hybris conversiva, desta engorda e produo de carne a
qualquer preo: valeria a pena converter restos animais em tecidos animais? Qual o
preo a se pagar por isso?).
O que poucas vezes visibilizado, contudo, so outros meandros desta cadeia
zootcnica destinada a produzir carcaas consideradas de boa qualidade. Na FEICORTE
de 2012 assisti a um evento paralelo aos leiles e exposies de animais denominado
Academia da Carne, gratuito, destinado a jovens e estudantes das reas de zootecnia,

66
Disponvel em: http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoListaSignatarios.aspx?pi=P2012N33277,
acessado em 14/12/2012.
106

veterinria e campos afins. Durante dois dias, este pblico pde assistir comunicaes
sobre diversos temas, que iam desde especificidades veterinrias sobre sanidade animal
at o mercado de boi gordo. Em relao nutrio de bovinos, destacaram-se trs
palestras paradigmticas. A primeira versava sobre fosfatos e foi conduzida por um
qumico. A segunda denominava-se a nutrio como ferramenta para otimizar o
sistema de produo de bovinos de corte, e foi ministrada por um mdico veterinrio
vinculado a uma grande empresa de alimentao animal. importante ressaltar que tais
empresas figuram entre os principais patrocinadores de feiras como FEICORTE, e se
responsabilizam por boa parte da organizao de seminrios e workshops.
De acordo com o qumico da primeira palestra, a carne seria um grande extrator
de fsforo do solo. O fsforo seria importante tanto para a formao de tecidos nos
animais quanto para seu processo metablico, de modo que um controle sobre a
quantidade e a qualidade dos fosfatos consumidos seria uma maneira de ter controle
sobre estes mesmos processos vitais. De acordo com sua conta, para produzir cada quilo
de carne, seria necessrio o consumo de dois gramas de potssio, obtidos atravs dos
trs principais fosfatos de clcio mais utilizados na produo animal: fosfato
monoclcico, fosfato biclcico e fosfato triclcico.
Para o palestrante, quem determina a dinmica econmica dos fosfatos a
indstria dos fertilizantes, o que seria uma conjuntura bastante complicada, pois
deixaria o Brasil, que jamais ser autossustentvel em fsforo, em uma condio de
eterna dependncia das flutuaes do mercado externo de fertilizantes. Em seu
raciocnio, o efeito domin produzido por esta carncia de fosfatos no nosso subsolo
seria preocupante: nossa economia dependeria da pecuria, a pecuria dependeria dos
fosfatos, logo, etc. A concretizao visvel deste drama seria a situao da mina de
Cajati (SP), responsvel, atualmente, por 60% do fsforo nacional direcionado para a
produo animal
67
. De acordo com o palestrante, a mina, cuja explorao se iniciara em
1938, era, nesta poca, um morro. Hoje, ao contrrio, seria uma cratera.
J na segunda comunicao, o veterinrio responsvel comeou afirmando que
o segredo da boa carcaa era a combinao tima de gentica, bom manejo, nutrio e

67
A mina de fosfato da Serrana est situada no municpio de CajatiSP, a 230 km da capital. A empresa,
que atua na rea de fertilizante, pertence ao grupo Bunge e desde 1946 produz fosfato nessa regio,
controlando desde a lavra da rocha fosftica at a aplicao dos produtos no campo. (Schnellrath, Silva,
Shimabukuro, 2002, p. 1).
107

sanidade. Tanto faz se atravs do pasto livre ou do confinamento, a conta que interessa
de converso biolgica o quanto de matria seca
68
tem de ser consumida para produzir
tantas arrobas no gancho. Haveria at mesmo um software para medir todo este
processo. Para ilustrar a indiferena do produto final em relao ao input inicial, o
palestrante contou com auxlio de uma projeo em data show na qual eram mostrados
dois inputs iniciais diferentes (pasto e confinamento), um s produto intermedirio (uma
carcaa) e um nico output final (um bife).
Na comunicao seguinte, agora sobre sanidade animal, o outro profissional
argumentou que a quadratura manejo nutrio sanidade gentica seria a
interao fundamental para a mquina [que produz carne atravs de capim] funcionar
bem. Alm disso, destacou que isso que produo sustentvel: produzir mais com
menos. Por fim, ponderou que todos ns que trabalhamos com fazenda adoramos
vaca, boi... mas o que ns precisamos de lucratividade.
Posto isso, percebe-se que h o desenvolvimento de toda uma indstria aqum
da porteira (para utilizar os termos da topologia mica do setor pecurio, que tem na
porteira seu elemento organizador central), aglutinando o complexo de nutrio
animal e o complexo farmacutico, destinada a otimizar o funcionamento da mquina
ruminal. Esta gigantesca indstria montante da criao em si um dos principais ns
de cadeia que vinculam a produo primria, alimentcia, qumica e biologia de
ponta, onde coabitam gigantes internacionais como BASF, Pfizer, Monsanto, Bayer e
Bunge. No aleatrio, portanto, que o Congresso Internacional da Pecuria de Corte,
realizado na FEICORTE de 2012, tenha homenageado o ex-ministro Paulinelli,
apresentado como o grande principiador da revoluo verde no Brasil.
O prprio modelo de sustentabilidade que se depreende das comunicaes
setoriais dependente desta maneira de articular a cadeia da carne: otimizao na
converso energtica; mais arroba no gancho em menos rea de pastagem;
disseminao tecnolgica; boa concatenao das engrenagens da cadeia. O produtor
constantemente investido de uma misso: alimentar o mundo, fornecer protena de
qualidade para o planeta, entre outras decalagens globais. Como expresso no primeiro
captulo, tal misso se relaciona com a forja de uma nova ideia de nacionalidade,

68
Matria seca um conceito biolgico. Ela representa a biomassa (i.e., massa de matria orgnica) em
sentido estrito, que representa, no caso, 20% do peso das plantas. 80% gua. (Mazoyer e Roudart, 2010,
p. 78).
108

calcada na figura de um Brasil agropotncia vocacionado a acabar com a fome no
mundo e liderar a produo primria no sculo XXI. As crticas ao modelo acabam
sendo relacionadas m-compreenso desta vocao natural, ao modismo, ao
elitismo. O diretor de sustentabilidade da ABIEC, por ocasio do Congresso
Internacional da Carne, realizado em junho de 2011 em Campo Grande (MS) assim
argumenta:
A gente vai dizer que mentira. Que um quilo de carne no gasta
quinze mil litros de gua. Que a pecuria no t produzindo carne
devastando a Amaznia. O problema da Amaznia muito mais uma
ausncia de Estado do que de produo pecuria. Essa a nossa
histria, e a histria de cada um que t aqui. A gente tem que ter
orgulho dessa histria. (...) Eu tenho orgulho de comer carne, porque
vegetariano coisa de elitista, eu nunca conheci um vegetariano
pobre. Porque quando voc precisa, a carne ao mesmo tempo
necessria e desejada. Vegetariano pra quem pode comer granola
de manh e jantar num restaurante japons noite. Isto aqui o
Brasil. O nordeste brasileiro tem um consumo de carne bovina igual
ao da China. Tem gente precisando de carne, e medida que a renda
destas pessoas aumenta, elas vo poder ter acesso carne. (...) Aqui
no Brasil e nos pases emergentes, eu no preciso convencer ningum
a comer carne. As pessoas comem carne porque quando elas ganham
mais dinheiro, elas entendem que elas precisam colocar carne no
prato das famlias delas.
69


Em suma, interessante notar que um dos argumentos acionados no confronto
com o discurso vegetariano e de direitos dos animais a ideia de que estas militncias,
ao fim e ao cabo, no reconhecem ou no tm conscincia do valor dos prprios
animais que alegam defender. Mas que valor este? De que maneira o valor dos
bovinos construdo no discurso daqueles que produzem e defendem a carne? Dada a
forte nfase percebida na questo da converso energtica, do pasto cru em protena,
inicio o exame atravs de uma anlise do lugar do rmen nestes discursos e em alguns
excertos da literatura zootcnica.
4.1 O rmen, patrimnio da humanidade
O rmen uma das quatro cmaras que compem o rgo digestivo dos bovinos
e outros mamferos que o possuem, muitos dos quais domesticados pelo homem. De
acordo com um manual zootcnico (Perry, 1980, p. 3), a forma mais abundante de

69
Trechos do discurso em http://www.youtube.com/watch?v=TXJ YGSuaCfU, consultado em 13 de
setembro de 2012.
109

energia renovvel neste mundo fibra e celulose. Infelizmente, o homem no capaz de
utilizar celulose. Felizmente, animais ruminantes so aptos a utiliz-la. Isto se daria
pelo fato de que
Ruminantes so encontrados em quase todo ambiente onde plantas
transformam energia solar em formas qumicas. Esta aptido a
manifestao do processo evolucionrio que os proveu de um aparato
alimentar capaz de liberar, de forma aproveitvel, a energia qumica
desde os carboidratos estruturais das plantas. Nenhuma enzima
degradativa doa mamferos capaz de quebrar esta cadeia.
interessante notar que a maior diferena entre amidos, que podem ser
digeridos por animais monogstricos, e celulose, que no pode, a
configurao espacial da (1,4-)cadeia glucosdica. (...) Esta sbita
diferena perpetrada pela Me Natureza um dos maiores efeitos que
conduziu ao desenvolvimento do animal ruminante. Ruminantes e
herbvoros adquiriram assim populaes microbianas simbiticas, as
quais os provm com as enzimas degenerativas requeridas. (idem)

Por fim, o manual defende que por causa destas relaes simbiticas entre o
animal ruminante e os microorganismos de seu rmen, estas espcies possuem um
grande valor para o homem (idem). De fato, dos chamados big five, isto , das cinco
principais espcies domesticadas pelas sociedades humanas com fins alimentares e
econmicos (Wilkie, 2010), trs so ruminantes: bovinos, caprinos e ovinos. As duas
outras (galinceos e sunos) so monogstricas.
Pesquisadores da domesticao corroboram esta nfase na ruminncia ao
destacarem a importncia da mesma para o surgimento de duradouros sistemas pastoris
envolvendo estes animais. Em lugares to dspares como a estepe eurasiana (Ingold,
2007), o Oriente Mdio (Haudricourt, 1962; Descola, 2005), a pampa sul-americana
(Crosby, 2011) ou a frica nilota (Evans-Pritchard, 2008), seres humanos tem se valido
historicamente das propriedades transformativas dos ruminantes para obter os vveres
necessrios sua subsistncia. Em maior ou menor grau de colaborao com a
agricultura, produtos oriundos das espcies ruminantes (l, couro, carne, leite, ossos,
etc.) tem exercido desde tempos milenares um importante papel na reproduo material
de vrias sociedades ao redor da Terra. Igualmente, muitos destes animais so
empregados desde tempos imemoriais como trao pelas sociedades pastoris, movendo
carros, moinhos ou simplesmente servindo como montaria. Tambm importante
relembrar o papel exercido pelos ruminantes do velho mundo na fixao das populaes
110

eurasianas na Amrica, na Oceania e em outras partes do mundo colonizado, servindo
como verdadeira vanguarda bitica do imperialismo ecolgico (Crosby, 2011; Baretta
e Markoff, 1978) a partir do sculo XV. Sabe-se o quanto a introduo destas novas
espcies de ruminantes alterou profundamente os ecossistemas e suas regulaes
socioecolgicas locais, produzindo alto impacto no modo de vida das populaes
nativas.
Tal imbricamento entre modos de subsistncia e o emprego econmico de
determinados animais fez com que alguns autores os considerassem os instrumentos
primitivos de trabalho das sociedades pastoris. Para Ingold (2007), esta seria uma viso
equivocada dos mesmos, na medida em que os descreve como meros objetos
disponveis, sem vontade ou intencionalidade. Somente com o advento da pecuria
industrial, argumenta Ingold (2000), que os animais teriam sido reduzidos, na prtica e
no s na teoria, aos meros objetos que os tericos da tradio ocidental sempre os
supuseram ser (p. 75). Assim, antes que os animais pudessem aparecer como meros
instrumentos de trabalho no sculo XIX, toda uma longa histria de relaes sociais
com os mesmos teria produzido esta configurao especfica da interao humano-
animal, capaz de faz-los parceiros do nosso labor. Para o autor, a condio necessria
para a transio da caa ao pastoralismo (ou seja, do momento em que a relao
estabelecida entre os dois polos, animal e humano, translada-se da confiana [trust]
para a dominao [domination]
70
) residiria na capacidade de alguns animais agirem
conforme o ambiente social circundante:
Nesta capacidade, reside o potencial dos animais serem capturados
[tamed] pelo homem: isto , de entrarem em relaes sociais de

70
A passagem da caa para o pastoreio em termos de uma alterao no modelo de engajamento com a
alteridade animal tratada por Ingold no quarto captulo de The Perception of the Environment (2000).
De acordo com o autor, sociedades de caa e coleta estabeleceriam relaes simtricas e recprocas com
os coletivos animais que lhe servem de presa, de maneira que a caa seria uma espcie de ciclo de ddiva
entre os coletivos humanos e animais. O modo de engajamento prprio destas sociedades com os animais
de caa se daria atravs do paradigma da confiana [trust]. Suas ferramentas, consequentemente, seriam
instrumentos de revelao da alteridade, e no de controle sobre a mesma. J no pastoralismo, o modo de
engajamento com os animais seria baseado na assimetria entre humanos e animais, sendo estes ltimos ao
mesmo tempo protetores, algozes e senhores. A confiana seria substituda pela dominao [domination],
ilustrada pelos instrumentos prprios do pastoralismo: chicote, relho, jugo, etc. J em Hunters.
Pastoralists and Ranchers (2007), o autor prope um modelo ligeiramente diferente, baseando-se na
experincia de campo e na literatura dos povos da franja rtica. Os princpios gerais do modelo, contudo,
permanecem os mesmos: simetria na caa, assimetria no pastoralismo. Alguns americanistas como Fausto
(2001, 2002) traam objees a Ingold no sentido de que nem toda sociedade caadora-coletora
estabelece crculos de ddiva com as suas presas. Ao menos para alguns povos das terras baixas
amaznicas, a caa compreendida de maneira agonstica, e no recproca.
111

dominao definidos pela subjugao da vontade dos animais em prol
dos propsitos humanos (Ingold, 2007, p. 88) [traduo prpria].

Em ltima anlise, a captura de animais pelos coletivos humanos jamais seria
um fenmeno puramente tecnolgico, como a extrao de um recurso natural qualquer.
Ao contrrio, esta captura sempre um fenmeno social, marcado por um determinado
tipo de interao intersubjetiva. Em jogo, para Ingold (2007), o que se desvela uma
certa produtividade econmica calcada em um uma produtividade ecolgica. Por
produtividade econmica, o autor compreende o emprego de trabalho humano (como o
dos pastores e pecuaristas) na produo de objetos para o consumo. Por produtividade
ecolgica, por sua vez, a criao de matria orgnica na natureza, atravs da radiao
solar (fotossntese). J foi exposto anteriormente de que maneira isto transparece nos
discursos do sistema-carne: o boi seria uma espcie de mquina capaz de transformar a
energia humanamente inaproveitvel da fibra de celulose em energia que somos capazes
de assimilar, como carne, leite e derivados.
Contudo, foroso reconhecer que h um enorme abismo entre os pastores que
so enfocados no trabalho de Ingold e a contempornea pecuria industrial, ainda que
ambos se valham dos milagres da ruminncia. Em outras palavras, ainda que os Nuer de
Evans-Pritchard (2008) e os pecuaristas da FEICORTE falem idiomas bovinos, h de
se reconhecer que so idiomas bovinos totalmente diferentes. Vejamos os porqus.
4.2 A centralidade da carcaa
Como argumentam alguns autores (Wilkie, 2010; Ingold, 2007; Fraser, 2012),
apenas tardiamente na histria da domesticao de animais que rebanhos passaram a ser
criados visando primeira e exclusivamente carne. H registros etnogrficos e histricos
de que povos pastores tradicionais muito excepcionalmente consomem a carne dos seus
grandes herbvoros, ainda que, quando o faam, o faam com alegre disposio e muito
bom-grado (Ingold, 2007; Evans-Pritchard, 2008) Em linhas gerais, os animais so
apropriados economicamente nestas sociedades tendo em vista primeiramente seus
subprodutos, sua fora de trabalho como trao e transporte e, muito recorrentemente,
como unidade de valor e troca (em contratos matrimoniais, por exemplo). O consumo
carnvoro acaba ocorrendo no caso de morte acidental das reses, em tempos de
condies econmicas adversas ou devido a ofcios sacrificiais.
112

Mesmo em sociedades cujo criatrio bovino se desenvolveu, desde seu incio,
em articulao aos mercados capitalistas como o caso de todo o continente
americano, de norte a sul no desde sempre que as reses foram vistas como
mquinas produtoras de carne. Fraser (2012) e Wilkie (2010) ressaltam a importncia
do desenvolvimento das tecnologias de refrigerao para o surgimento global de uma
indstria da carne, bem como para a consolidao deste produto como commodity no
mercado internacional. graas indstria frigorfica e a montagem de grandes parques
industriais destinados desmontagem de carcaas que a carne pde estar presente,
fresca e constante, mesmo em locais muito distantes dos polos produtores, alterando
para sempre o perfil tanto do consumo quanto da produo de carne.
Pensando no exemplo dos Estados Unidos, Wilkie argumenta: a crescente
interdependncia entre agricultores, criadores, invernistas, aougueiros e industriais
trouxe luz uma nova aliana agroindustrial muito poderosa, que alterar
fundamentalmente os hbitos carnvoros nos Estados Unidos e alm (2010, p. 32).
Fausto e Devoto (2004), comentando o caso argentino, revelam que somente aps a
implantao do primeiro parque frigorfico naquele pas, em 1882, que o consumo
interno de carne bovina superou o de carne ovina, um fenmeno inequivocamente
ligado expanso territorial e numrica do criatrio bovino, da refrigerao e dos
transportes ferrovirios.
O advento da indstria frigorfica, neste sentido, radicalizou e acentuou um
processo que j vinha sendo gerado nas sociedades modernas, calcado pelo
distanciamento progressivo entre a carne como produto e o animal como fornecedor.
Em seu trabalho sobre os animais de aougue no Brasil, Dias (2009) demonstra como os
abatedouros pblicos, mesmo antes do surgimento da indstria frigorfica, j se
encontravam em progressivo distanciamento dos centros consumidores urbanos.
Para Elias (1994), a ocultao progressiva do animal nas refeies carnvoras,
no ocidente, se liga a uma srie de fatores, todos eles acoplados aos processos de
modernizao, como especializao econmica, e civilizao, como refinamento dos
costumes e da sensibilidade. O ato de trinchar o animal mesa vai deixando de ser uma
atividade trivial conforme a especializao do trabalho com animais vai se distanciando
das unidades domsticas, cada vez mais identificadas como unidades de consumo e no
mais de produo. O que antes era parte constitutiva dos rituais de comensalidade,
113

chegando a se configurar como uma atitude distintiva da nobreza a arte de bem
trinchar - comea a ser delegado s instncias ocultas da cozinha e do aougue. A
relao imediata entre a carne e o animal passa a ser tratada com repulsa e afastamento.
A transformao do animal em carne relegada para os bastidores da vida social. O
processo civilizador, como dinmica de ocultamento para longe da vista daquilo que
se tornou repugnante (Elias, 1994, p. 128), reluz, no caso da histria do carnivorismo
moderno, com toda sua fora.
Eis como o autor retrata uma refeio carnvora medieval, com todos os seus
detalhes:
O animal morto ou grandes partes do mesmo eram trazidas inteiras
para a mesa. No s peixes e aves inteiras (s vezes, com as penas)
mas tambm coelhos, cordeiros e quartos de veado apareciam na
mesa, para no mencionar pedaos maiores de carne de caa, porcos e
bois assados no espeto. (Elias, 1994, p. 126)

Um outro trecho de Merchant (1989) vai ao encontro do excerto de Elias:
Enquanto aos servos e criados era permitido carne e peixe somente
uma vez por dia, as classes superiores consumiam enormes
quantidades de veado, frango e peixe. Animais inteiros com suas
plumas depenadas adornando-os na mesa de jantar. Vacas, renas e
bois eram assados em amplas fogueiras no prprio salo de banquete;
coelhos inteiros, carneiros e porcos eram servidos e decupados na
prpria mesa (Merchant, 1987, p. 41).

Para Vialles (1987a, 1987b), este processo pode ser compreendido atravs da
dicotomia entre sarcofagia e zoofagia. Refeies como as acima descritas seriam
zofagas, pois a animalidade ainda se faz muito presente no ato alimentar.
reconhecvel que isto uma pata traseira, que aquilo uma cauda. No incomum,
nestes contextos, que os comensais tenham se envolvido de alguma maneira no processo
de criao e abate das reses, ou, se este no for o caso, que o processo lhes seja uma
presena prxima, diria e familiar. Muitas vezes o animal tinha um nome e uma
histria social conjunta com o grupo de humanos que agora lhe consome. Teria sido
preciso dessubjetiv-lo antes de consumi-lo.
J refeies como aquelas que ocorrem todos os dias nas grandes metrpoles do
mundo globalizado, seriam sarcfagas: (do grego, sarx, carne), isto , calcadas em um
114

regime alimentar no qual a carne se transforma em uma matria comestvel bem
diferente do seu animal de origem e das partes que lhe identificam como tal: seu rosto,
suas penas, sua pelagem, e tambm seus membros, superiores ou inferiores,
integralmente dispostos. Tambm em um sentido simblico, deixa-se de incorporar as
propriedades do animal e passa-se a incorporar as propriedades da substncia carne, que
passam a ser compreendidas cada vez mais por seus termos biolgicos e moleculares:
protena, aminocidos, vitamina B12. No h mais intimidade nem proximidade
entre aquele que abateu o animal e aquele que o come. Circuitos de ddiva e/ou
prestaes totais, nos quais o animal abatido aparece muitas vezes sob a forma de
contradom, so substitudos por circuitos monetrios de prestaes parciais, em que a
carne se transforma numa mercadoria como qualquer outra. As personagens envolvidas
no abate, desmonte e consumo de um mesmo animal podem, muitas vezes, estar
continentalmente separadas, unidas somente pelos liames do comrcio mundial. A
carcaa se transforma em uma matria-prima a ser padronizada e estandardizada, sobre
a qual incide uma srie de tradues sociotcnicas e investimento de capital.
No meio agropecurio, se percebe a centralidade da carcaa por todos os lados.
De certa maneira, um evento como a FEICORTE um momento social em que
fornecedores de carcaas e compradores da mesma se encontram e celebram sua
parceria, que nem sempre amigvel. E como bem nos recorda o caso da desmontagem
didtica de carcaas na Vitrine da Carne da EXPOINTER, possvel at mesmo se
diferenciar raas e estirpes bovinas a partir de suas carcaas j extradas, para alm dos
detalhes anatmicos e fenotpicos que se destacam nos animais vivos. Se a quadratura
gentica sanidade manejo nutrio o segredo para a produo de uma boa
carcaa, percebe-se, pelo primeiro termo do conjunto, a gentica, que os prprios
animais tm sido produzidos ab ovo tendo em vista sua carcaa e suas capacidades de
produzir carne. No existe uma vaca ou um boi predados l fora, para que se consuma
sua carne. Ao contrrio, desde seu nascimento, suas carcaas j aparecem como objetos
ideais da produo, modulados pelas necessidades do consumo carnvoro. Como nos diz
Marx (2011) nos Grundrisse,
O consumo cria o estmulo da produo; cria tambm o objeto que
funciona na produo como determinante da finalidade. Se claro que
a produo oferece exteriormente o objeto do consumo, igualmente
claro que o consumo pe idealmente o objeto da produo como
imagem interior, como necessidade, como impulso e finalidade (pp.
46-47).
115


Com a emergncia da questo do bem-estar na produo de carne, abriu-se
espao para que a categoria do manejo racional pudesse ser mobilizada em prol do
prprio sistema produtivo, visando ao mesmo tempo uma imagem pblica positiva e a
preservao da integridade das carcaas. Sob este aspecto, a adoo de prticas
racionais, humanitrias ou inteligentes de manejo ante mortem tm como
objetivo, para alm do bem-estar animal, a minimizao de perdas econmicas
potenciais para o pecuarista, altamente dependente da avaliao que os demais agentes
da rede sociotcnica da carne fazem da carcaa que ele, o produtor, lhes envia. O
informativo Manejo, produzido pela mesma empresa que organiza o Caminho do Boi,
assim defende:
Em termos prticos significa dizer que em 1/3 das vezes o boi como
embalagem da carne mal aproveitado. E este ponto determinante
para a produtividade do rebanho @/ha/ano, rendimento de carcaa
no gancho pago ao produtor e pelos baixos rendimentos que
impactam diretamente na sua renda bruta. Tambm perde a indstria
por no maximizar sua produtividade com qualidade de matria-
prima (Manejo, jun-jul. 2010) [grifo meu]

Atravs da figura do boi como embalagem da carne, nos deparamos com a
ideia de que o boi a sua carcaa em desenvolvimento:
(...) quando avaliado o perfil das carcaas ao abate, observa-se um
grande nmero de carcaas com acabamento escasso ou ausente e
uma frequncia muito pequena de carcaas de alto padro de
qualidade. (Manejo, jul-ago-set. 2011)

Tambm na literatura zootcnica, a carcaa toma ares de produto aprimorvel,
que comporta graus de perfeio dependendo daquilo que seu portador/produtor o
animal incorpora a si:
A limitao do nvel alimentar durante a fase final de produo bovina
contribui para limitar a deposio de gordura. Entretanto, a vantagem
da restrio alimentar questionvel em funo do maior tempo de
terminao at atingir-se determinado grau de acabamento (Berge,
2001; apud Feij et al., 2001, p. 1016)

116

Levada ao seu extremo, esta perspectiva pode ser compreendida como a prpria
dissoluo do animal como um ente e sua transfigurao em um processo: o processo de
transformao de matria seca em carne. Voltando a Ingold (2000), percebe-se que o
tipo de causalidade pensada para os instrumentos de trabalho da pecuria uma
causalidade mecnica: o que preciso fazer para que tantas arrobas de carne sejam
produzidas em tanto tempo?
No entanto, mesmo que sejam compreendidos muitas vezes sob a forma de uma
linguagem mecnica (ou termodinmica, como mquina transformadora), os animais
permanecem sendo, para todos os efeitos, agentes intencionais. Porcher (2011), por
exemplo, chega concluso de que, do ponto de vista da indstria da produo animal,
os animais constituem-se cada vez mais como um verdadeiro entrave produo: eles
so vivos, sensveis, afetivos, comunicativos, podem ficar doentes, resistir ao trabalho,
criar vnculos com os trabalhadores (Porcher, 2011, p. 121). Para o bem ou para o mal,
os animais da pecuria moderna continuam to sociais e emotivos quanto aqueles do
pastoralismo tradicional. Este aspecto subjetivo o verdadeiro fantasma na mquina
de quatro estmagos, necessrio de ser contornado. No limite, talvez fosse melhor para
o sistema produtivo se as carcaas se produzissem sozinhas, evitando o contato com
este intermedirio problemtico.
Ainda que envoltos por um ar de fico cientfica, no so desprezveis os
significados das recentes iniciativas em prol da fabricao de carne atravs de
biorreatores (Bhat & Bhat, 2011) para esta discusso. Vrias destas iniciativas so
patrocinadas por organizaes de defesa dos direitos animais, como a PETA. Se, de
fato, o que importa no consumo carnvoro atualmente a substncia carne, a obteno
de uma carcaa-sem-boi isto , a partir da produo industrial de protenas sintticas
(Lvi-Strauss, 2009) - aparece no horizonte de possveis como o ltimo estgio da
sarcofagia, purgada em definitivo de seus traos zofagos, sua animalidade residual.
Tomando de emprstimo o clebre conceito de Deleuze e Guatarri (1996) e o
invertendo, percebe-se que tal carcaa-sem-boi emergiria desde um rgo-sem-corpo, j
que estes biorreatores tambm podem ser pensados como um rmen sem o bovino
sensciente e afetivo a sua volta.
Enquanto uma utopia destas no se realiza, a indstria prossegue desenvolvendo
formas de contornar a animalidade dos animais em prol da produo. Neste sentido,
117

tecnologias como o bem-estar animal e o manejo racional poderiam ser classificadas
como tecnologias de administrao da subjetividade animal, na medida em que buscam
dar conta de um aspecto ainda problemtico na obteno da substncia carne, cujo
valor e significado social h muito tempo se desvencilhou dos sujeitos animais que lhe
do origem
71
.
Na lida ante mortem, no entanto, a animalidade das reses permanece presente.
Como bem demonstram outros excertos do informativo Manejo, h uma oscilao
bastante interessante (e muito significativa) entre momentos de subjetivao e
objetivao dos animais, o que manifesta o locus fronteirio - entre o econmico e o
tico, o sujeito e o objeto - ocupado pelos animais que se transformam em carne.
Admite-se o momento do abate como uma situao crtica, potencialmente perigosa,
que necessita ser docilizada e bem administrada. A interioridade e os estados mentais
dos animais (principalmente o sofrimento) aparecem como um aspecto relevante em
ambas as perspectivas, mas ora eles so objeto de empatia, mediada pela interao com
os humanos, ora como objeto de metrificao, mediada pela interveno tcnica:
As mudanas s comeam quando o vaqueiro passa a compreender a
importncia e o significado do instinto de auto-preservao (...) A
partir dali, no existem mais vacas bravas, nem teimosas, nem
amuadas (Manejo, out-nov-dez. 2011)

O pesquisador Donald Broom, da Universidade de Cambridge (Reino
Unido), lembrou que j possvel medir o bem-estar animal a partir
do nvel de cortisol na carne e de leses na carcaa. (Manejo, jun-jul.
2010)


Quando centrada no aspecto subjetivo dos animais, a nfase recai sobre o
aperfeioamento das interaes entre humanos e animais, ambos considerados como
portadores de agncia:

Voc j pensou em como o gado v e sente a estrutura e o manejo que
recebe desde o pasto at o frigorfico? (Manejo, abr-mai-jun. 2011).

preciso considerar os animais como seres vivos, que sentem,
pensam, decidem e tm uma capacidade enorme de aprender se
tivermos disponibilidade interna para ensin-los (Manejo, out-nov-
dez, 2011)


71
possvel se pensar estas tecnologias como formas de dessubjetivao humanitria dos animais, o que
se aproxima, sob certo aspecto, s questes morais envolvendo a eutansia.
118


Em alguns momentos, o manejo racional aproxima-se de uma verdadeira tica,
pontuada por prescries normativas e consideraes de cunho teleolgico, como a vida
boados animais:

As pessoas que participam da produo deveriam entender que
trabalhamos com seres vivos e pensar assim: se o abate inevitvel
e o que estes animais tenham uma vida feliz (Manejo, jan-fev-mar.
2011)


Nesta perspectiva, o principal objetivo do manejo de baixo estresse que a
partir do conhecimento das necessidades internas dos animais e da conscincia de si
cada um po[ssa] forjar o seu prprio mtodo, sem ter que copiar o mtodo de ningum
(idem). A lida adequada dos trabalhadores com os animais aproxima-se,
normativamente, de uma verdadeira educao da ateno (Ingold, 2000), pautada pela
familiarizao de si com o outro a partir do engajamento mtuo:

(...) suas ferramentas mais importantes [do vaqueiro] so o seu corpo
e a maneira como se movimenta na presena do gado (...) quem lida
com o gado deve atender a trs prioridades bsicas: a sua prpria
segurana, a segurana dos animais e estar atento para que ao
terminar o trabalho os animais estejam inteiros, fsica, mental e
emocionalmente (Manejo, out-nov-dez. 2011)

Fica claro que os tratadores tm uma capacidade enorme de interagir
com os animais e colocar imediatamente em prtica a informao
passada. importante mostrar o beneficio da boa interao entre
homem e animal, o que gera uma nova prtica de manejo (Manejo,
jun-jul. 2010)
72
.


Contudo, quando a nfase dada no aspecto objetivo da produo animal,
ressurge a figura da carcaa, verdadeira matria-prima da produo de carne, cuja
integridade deve ser preservada:

(...) pesquisa realizada pelo Grupo ETCO (Grupo de Estudos e
Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal da Unesp de
Jaboticabal/SP) revela que pelo menos 50% dos bovinos abatidos no
Brasil apresentam leses na carcaa, o que significa perda mdia de
500g de carne por hematoma, ou seja, cerca de 12 milhes de quilos

72
O tom perspectivstico destas narrativas a respeito do manejo racional no aleatrio. Em verdade,
as tecnologias que hoje se desenvolvem sob esta rubrica tm origem nos experimentos conduzidos pela
Dra. Temple Grandin, nos Estados Unidos. Grandin foi pioneira no desenho de currais anti-estresse,
criados a partir da experincia de percorrer o curral se colocando no lugar das reses.
119

de carne por ano. Pelo menos 40% dessas leses so produzidas na
fazenda (Manejo, jul-ago-set. 2011)

Como relatam Wilkie (2010) e Porcher (2011) em suas etnografias, no de
completo bom grado que pequenos produtores, acostumados lida artesanal e subjetiva
com os animais, adotam os preceitos normativos oriundos da zootecnia ortodoxa.
Mesmo entre grandes produtores, o fato de um dos palestrantes supracitados ter
argumentado que todos ns gostamos de vaca boi, mas que o importante a
lucratividade d o que pensar. Assim, se inegvel reconhecer que impera na
contempornea criao animal uma ideologia zootcnica cada vez mais acentuada, h de
se pensar at que ponto esta tendncia homognea no modulada por pequenos
desvios e resistncias, localmente situados.
4.3 Entre a subjetivao e a reificao
A prpria distribuio espacial da FEICORTE reproduz a tenso, sempre
constante, entre reificao e subjetivao dos animais de produo: enquanto, ao fundo,
se realizam as palestras e workshops do Espao Carne - verdadeiras pedagogias
zootcnicas, nas quais os animais vm ao discurso quase que exclusivamente como
fornecedores de carne - nos pavilhes mais a frente, o que se v um mundo de
interaes humano-animais que de modo algum poderia ser reduzido aos termos da
mera causalidade mecnica, sendo mais bem caracterizado atravs da causalidade
pessoal ou intencional (Ingold, 2000). E no somente por parte dos visitantes (que,
como tratei no captulo 1, tendem a se aproximar dos bovinos como se fossem pets),
mas tambm por parte dos manejadores, avaliadores, funcionrios de limpeza, entre
outras personagens que circulam nos corredores do evento.
Quando um manejador conduz uma rs para dentro da pista de julgamento, por
exemplo, muito difcil negar que se trata de uma relao entre dois elementos
portadores de subjetividade. O animal empaca, teima, quer voltar. Ou, se estiver de bom
nimo, prossegue e se deixa ser guiada pelo manejador. perceptvel que o contato
visual uma ferramenta importante no processo de convencimento do animal a avanar.
No uma mquina que est sendo conduzida para o centro do picadeiro, ainda que o
sistema produtivo se interesse e invista fortemente na exacerbao do seu efeito de
mquina (Deleuze e Guatarri, 2010) produtora de coisas. Tal interesse se revela no
120

momento em que os juzes professam seu parecer sobre as reses expostas, como nestes
exemplos tirados do dirio de campo da FENASUL (2011) e da FEICORTE (2011):
Com o microfone em mos, o juiz traou primeiro uma srie de
cumprimentos lisonjeiros associao e seus representantes e, logo
em seguida, fez um breve resumo das caractersticas de cada vaca,
prximas ao que se espera de um relatrio tcnico: a vaca dois...
muito bom animal, grande produtora (...) estamos impressionados com
a capacidade produtora desta vaca (...) vaca trs anda bem, caminha
muito bem (...) temos aqui, de fato, um extraordinrio animal, essa
vaca realmente uma grande leiteira (...) ubres fortes, plo vistoso,
excelente condio de sade (...) um animal de grande resistncia,
muito forte, sensacional (...) vigorosa.
Um juiz, apenas, ditava o ritmo e conferia as premiaes, pautando-
as por um relatrio/justificao no final: escolhemos [ou seja,
colocando a si mesmo na terceira pessoa] a vaca trs porque (...). O
contedo do seu apanhado final situava-se atravs de termos como
feminilidade, precocidade, musculatura bem distribuda na
carcaa, carcaa moderna [?], concavidade da arqueadura,
funcionalidade, padro racial. Do seu parecer, depreende-se que
o julgamento feito a olho, por assim dizer, atravs de parmetros
do tipo aura meritocratis, isto , de uma justa medida entre as
supracitadas categorias e o que prprio daquele padro racial.
Tambm foram citados alguns cortes nobres como potencialidades
contidas naqueles animais: filet mignon, picanha, etc.

Outro aspecto espacial da FEICORTE que exemplifica a tenso entre
subjetivao e reificao dos animais a proximidade entre os animais expostos e os
stands destinados alimentao, muitos deles churrascarias. Como registrei em meu
dirio de campo a feira um dos poucos locais em que a populao urbana e distante
da produo rural pode degustar um fil de Angus a poucos metros de um Angus vivo.
Esta tenso, no entanto, no parece se abater sobre aqueles que trabalham na feira ou a
visitam. Para este pblico, ao contrrio, no parece haver tenso alguma. Ou
contradio alguma. Logo percebi, portanto, que era mais uma tenso do etngrafo, em
particular, e de certo discurso crtico em geral, com o qual o etngrafo se encontrava
familiarizado.
Para grande parte do pblico visitante destas feiras, a oscilao entre
subjetividade e reificao dos animais parece se impor como um fato perfeitamente
normal, algo inscrito na ordem natural das coisas. E interessante notar que se trata de
uma percepo dos animais como sujeitos no a partir de uma bibliografia filosfica
121

especfica (como o caso do reconhecimento da subjetividade dos animais por parte de
muitos militantes da causa animal), mas a partir de uma educao da ateno (Ingold,
2000) inscrita nas vivncias pessoais e familiares, possivelmente desde a infncia.
Abaixo, transcrevo uma passagem do dirio de campo referente FENASUL de 2011,
no qual descrevo um evento ilustrativo desta dinmica:
O carter extremamente familiar da atividade pecuria (ou, ao
menos, o que resta deste carter) reluziu de forma muito clara no
evento seguinte, destinado, nas palavras do representante da marca
Gadolando
73
, a gerar amor e carinho pela atividade pecuria nos
filhos dos produtores. Tratava-se de um concurso denominado
J ovem Puxador, em que crianas todas elas filhas de produtores -
conduziam pequenos bezerros pelo freio ao redor do piquete,
demonstrando suas habilidades nesta tcnica. As crianas competem
em trs categorias etrias: at 9 anos, de 9 a 11, e de 11 a 14. O
prmio era uma bicicleta. Ao longo de todo o percurso um pai ou
responsvel servia de acompanhante, orientando e salvaguardando a
criana de qualquer equvoco mais grave.

Outras mais, outras menos, todas as crianas tiveram em algum
momento dificuldades para puxar o gado. Em geral, resolviam
momentos de tenso, como empacadas, atravs da fora bruta,
tendendo a puxar o freio com veemncia, sendo prontamente
reorientadas pelos pais/responsveis. Em determinadas horas, os
adultos tomavam o bezerro para si e demonstravam s crianas como
elas deviam se comportar. O papel dos adultos tambm se concentrou
na difcil tarefa de deixar as crianas mais calmas e no entrarem em
pnico nos momentos difceis, fazendo-as retomarem o curso timo do
controle sobre os animais. Ao completarem a primeira volta, as
crianas recebiam dos representantes da associao um bon com a
marca Gadolando.

O fato de que os animais sejam reconhecidos como sujeitos pelos seus criadores
no implica dizer que a relao a estabelecida seja simtrica. Ao contrrio, ela
marcada por uma profunda assimetria, na medida em que o lugar referente ao animal e o
lugar referente ao humano so mais do que demarcados nestas situaes. No entanto,
este tipo de interao nos permite relativizar os limites da alegao segundo a qual os
animais de produo seriam considerados somente como mquinas pelos agentes
produtivos. As categorias de animal e bicho, neste sentido, me parecem comportar um
espectro gradativo complexo de subjetividade e reificao, que fazem delas categorias

73
Associao de criadores de Gado Holands no Rio Grande do Sul.
122

absolutamente hbridas: nem sujeito, nem objeto, nem coisa, nem pessoa, dependendo
enormemente da circunstncia que conforma o olhar.
A este respeito, cabe citar novamente Lvi-Strauss (2009, p. 78): o ato de matar
seres vivos para se alimentar prop[e] aos humanos, conscientemente ou no, um
problema filosfico problema que todas as sociedades tentam resolver. Em locais to
diversos quanto a Amaznia indgena (Fausto, 2002), a Frana e a Itlia rurais (Vialles,
1987; Dalla Bernardina, 1991) e o serto nordestino (Cavignac e Dantas, 2008), o
consumo de animais e seus produtos por grupos humanos sempre demandou algum tipo
de procedimento tcnico-ritual de dessubjetivao dos mesmos, capaz de reific-los
para melhor consumi-los. Cada cultura possui seus prprios meios de proceder esta
alquimia simblica, isto , seus prprios meios de reificao e dessubjetivao. Nossa
sociedade industrial tambm possui os seus, como bem ilustram os procedimentos de
manejo racional destinados a administrar a subjetividade animal na produo de
carne.
Da mesma maneira, toda produo de animais para o abate modulada por uma
compreenso e uma interpretao muito fina dos ciclos de vida e dos processos de
desenvolvimento etrio dos mesmos. certo que, nos termos da linguagem zootcnica,
estas etapas so como graus de uma maturao, quase como se fosse um produto
agrcola ou uma cultura de tecidos isolada num laboratrio. Na linguagem corrente dos
produtores e seus familiares, contudo, estas etapas da vida do animal so muitas vezes
metaforizadas com as etapas da vida humana, de modo que podemos pensar aqui em um
processo metafrico de subjetivao dos animais. Neste sentido, no parece haver
contradio entre a subjetivao e o abate das reses. Ao contrrio, se trata de um fato
inscrito na natureza da produo pecuria, qui na natureza em geral, em que a vida se
alimenta de morte e em que o sentido da vida do animal morrer na mo do aougueiro.
4.4 O gado e o valor
Mesmo que a produo e o consumo de carne venham um dia a se transformar
em uma sarcofagia plena, totalmente livre dos animais que lhe do origem, h de se
pensar nas demais atividades econmicas e sociais dependentes da produo animal, e o
que aconteceria com elas num contexto de dissociao absoluta entre animal e seus
produtos. Como argumentei anteriormente, o primado da carne como objeto ideal da
criao bovina um fenmeno bastante recente, articulado a expanso da indstria
123

frigorfica e outros fatores prprios da modernidade. Em paralelo carne e ao leite, no
entanto, outras atividades econmicas envolvendo bovinos se fazem presente na
sociedade contempornea, na medida em que, alm de laboratrios nutritivos onde so
processadas nossas substncias vitais, estes animais tambm permanecem sendo
unidades de troca e reserva de valor, dada uma determinada apropriao econmica de
sua produo ecolgica (Ingold, 2007).
Sob esta perspectiva, enquadram-se mercados como o da reproduo de gado de
elite, enfocado por Leal (2011) em sua pesquisa de doutorado. Segundo a autora, o gado
de elite se conforma como um setor muito particular da economia pecuria, na medida
em que seus espcimes no so criados para o abate. Ao contrrio, comportam-se como
verdadeiras reservas de valor gentico e genealgico, reserva esta que comercializada,
muitas vezes, como ativo financeiro. Individuados e subtrados do mercado comum do
boi gordo, touros de gentica e de genealogia so como emblemas garantidores do
valor de toda uma raa, maneira se me for permitida a aproximao do lastro em
outro que outrora garantia o valor do dinheiro em circulao. O objeto ideal da
produo destes animais no propriamente a sua carne, mas sim o seu smen,
substncia destinada a perpetuar materialmente a mstica de sua genealogia.
Neste ponto, urge retomar o que Sahlins afirma a respeito do gado em La Pense
bourgeoise (2007), isto , de que a relao da sociedade norte-americana com ele e seu
principal produto (a carne) deve remontar identificao indo-europeia do gado ou da
riqueza multiplicvel com a virilidade (p. 185). Este aspecto tambm ressaltado por
Serres, o qual argumenta que a troca de gado precedeu a moeda, o que testemunha a
palavra pecunirio que se emprega para isso, mas que significa a tropa conduzida pelo
pastor (2003, p. 89). Em consonncia, mile Benveniste dedica quatro captulos
inteiros de seu Vocabulrio das instituies indo-europias (1995) relao entre gado
e riqueza, e traa diversos comentrios ao radical indo-europeu peku-, que remeteria ao
conjunto da propriedade privada mvel, tanto de homens quanto de animais, donde a
relao etimolgica entre pecuria e pecnia, por exemplo. Da mesma forma, o
autor relembra que o termo ingls cattle, remonta ao latim capitale, o bem principal
(Benveniste, 1995, p. 57).
No captulo anterior, entre outras coisas, procurei expor o vnculo existente entre
carnivorismo e masculinidade. O que reluz agora sua identificao com a vida
124

econmica e a ideia de riqueza (ou posse) multiplicvel, que tem no gado um dos seus
principais e mais antigos avatares. De fato, a figura do rebanho se presta a esta
identificao. Ele homogneo: um indivduo potencialmente substituvel por
qualquer outro. Ele produtivo: cada indivduo pode fornecer mil e um produtos
derivados, como leite, carne, chifre e ossos. Cada um destes produtos gerador no s
de valor de uso, mas tambm de valor de troca. Como o dinheiro, ele um objeto que
atrai outros objetos (Fausto, 2001). Como unidade de troca nas relaes matrimoniais,
em sociedades que assim o empregam (Evans-Pritchard, 2008), ele tambm uma
ddiva que produz afins, produz parentesco, e mesmo novas pessoas, sob os regimes de
aliana e filiao. Por fim, o gado reprodutivo: cada indivduo pode produzir novos
indivduos, que tambm sero homogneos, produtivos e reprodutivos.
Nas guerras da carne, percebe-se o quanto os defensores do carnivorismo
procuram destacar este aspecto do gado como unidade de valor para combater
argumentos vegetarianos. No site do SIC, sob a categoria Voc sabia?, encontra-se
um texto denominado Para que serve um boi?. Em sua primeira frase, o texto
argumenta: muitas pessoas primeira vista podem achar que a resposta para essa
pergunta bvia: para produzir carne, e assim prossegue:
Esse um assunto muito interessante, e com certeza vai surpreender
muita gente, pois a maioria das pessoas no tem idia do que um boi
pode originar... No vamos nem comentar sobre a carne, pois acho
que todas as pessoas sabem o destino desse componente.
74


Ato contnuo, o texto passa a um cuidadoso inventrio de todos os produtos
oriundos do gado bovino. Do couro, alm da utilizao bvia para a confeco de
sapatos, cintos e roupas, o couro d origem gelatina neutra que ser usada na indstria
alimentcia na fabricao de maria-mole, chiclete, suspiros, recheios, coberturas,
iogurtes, sorvetes, cremes, etc. Esta gelatina, por sua vez, tambm descrita como
importante na clarificao de vinhos, cerveja, suco de fruta, produtos dietticos, na
indstria farmacutica (em cpsulas duras ou moles, comprimidos, drgeas, emulses,
leos, esponjas medicinais), na indstria foto e fonogrfica, adesivos, abrasivos,
fsforos, corantes, entre outros. Crinas e pelos prestam-se produo de escovas e
filtros de ar; o sebo utilizado pela indstria qumica, pelos curtumes, pela indstria do

74
Disponvel em: http://www.sic.org.br/sabia.php#noticia5, consultado em 19 de setembro de 2012.
125

sabo, pneus, lpis e velas; cascos e chifres so matria-prima de toda sorte de
artesanatos, madreprolas e prolas artificiais. Alm disso, quando modos, entram na
composio do p de extintor de incndios, o leo entra na composio dos leos da
indstria aeronutica como aditivo no lubrificante dos avies.
Inventariados estes usos do animal, o texto prossegue:
A blis usada na indstria qumica e de bebidas e na indstria
farmacutica, onde os sais biliares entram na composio de
remdios digestivos, reagentes para pesquisas e pomadas para
contuses. (...) A mucosa do estmago usada na indstria de
laticnios para a fabricao do coalho. Outras mucosas e glndulas
so usadas na industria farmacutica fornecendo diversas substncias
como insulina, hormnios da reproduo, enzimas digestivas, outros
compostos enzimticos, histamina, heparina, imunoestimulantes,
glucagon, oxitocina, somatotrofina bovina (hormnio do
crescimento), neurotransmissores, tiroxina (hormnio da tireide),
cerebrosdeos, etc, sendo estas substancias usadas na fabricao de
remdios para uso humano. (...) Alm disso tudo, h muitos outros
subprodutos aproveitados como, por exemplo: contedo rumenal,
usado como adubo orgnico e na produo de biogs, farinha de
carne e ossos usada na fabricao de raes para ces e gatos, os
intestinos so usados na fabricao de fios cirrgicos, cordas para
raquete de tnis, etc.

Por fim, alm de um rpido gracejo no exagero nenhum dizer que
absolutamente tudo do boi aproveitado, podemos dizer de forma simblica que at o
berro aproveitado, pois pode ser gravado e utilizado em msicas e trilhas sonoras de
filmes e novelas - o texto conclui com um alerta: A pecuria e o abate de bovinos
alm de gerar riquezas e empregos diretamente, contribui sobremaneira para o
funcionamento de diversos outros setores. Se o abate de bovinos parar, haver
paralisao direta de 49 dos mais variados segmentos industriais. Ao final, o texto
ainda oferece um fluxograma (fig. 16)
75
, no qual se expe que tipo de cadeia industrial
alimentada por um subproduto bovino.

75
Retirado de http://www.sic.org.br/images/fluxograma%20curvas%20pronto.pdf. Consultado em 19 de
setembro de 2012.
126


Figura 16 Fluxograma oferecido no site do SIC sobre as cadeias industriais dependentes do abate de
bovinos.
Imagens semelhantes a esta circulam nas redes sociais. No siteBeef Point,
fornecido outro fluxograma, bem mais completo. Ele serve para ilustrar um artigo
chamado Pecuria: a base da cadeia da carne, onde se l que
O pecuarista aquele cidado que tomou a sria deciso de ser
diferente dos demais, cuja semana dividida, parte dos dias teis ele
passa na cidade (negociando com bancos, fornecedores de rao, sal
mineral, produtos veterinrios, comprando a alimentao dos
vaqueiros e levando-os a mdicos, no vou listar aqui todas as suas
atividades citadinas) e o restante dos dias, inclusive os finais de
semana, afinal todo mundo conhece o adgio o boi s engorda sob
os olhos do dono na labuta da fazenda.
76


De acordo com a imagem, o ciclo do boi se articula com outros ciclos da
produo animal, como o do porco, o do frango e o do peixe, e tambm move diversos
setores industriais de apoio, como a indstria metalrgica, a de equipamentos de
segurana e a de roupas profissionais. No final, o autor do artigo argumenta que

76
Idem.
127

precisamos mostrar ao brasileiro que aquele fil suculento, mal
passado ou ao ponto, ou o cozido, com os quais ele se delicia, foi
cozido em menos de 40 minutos, entretanto, a carne levou de 2 a 4
anos, de muito sacrifcio, luta, trabalho e investimento, para chegar a
sua cozinha, diferente do seu automvel/nibus, roupa, talher, copo e
etc, que levaram menos de 5 dias para ser produzidos.
77


Tambm circula na internet a ilustrao abaixo (fig. 17), destinada
explicitamente a expor a suposta contradio de ser vegetariano num mundo
bovinodependente:

Figura 17: produtos base de gado


77
Idem.
128

Em reao a esta imagem, diversos blogs e sites vegetarianos passaram a
disseminar o seguinte viral (fig. 19)
78
, estruturado sob a forma de uma resposta ao
primeiro esquema. Em linhas gerais, a reao vegetariana evoca as principais alegaes
de risco sanitrio, ambiental e tico envolvidas na produo de carne, como a questo
do aquecimento global, o desmatamento na Amaznia, a crueldade com os animais e as
doenas humanas alegadamente relacionadas ao consumo frequente ou imoderado de
carne vermelha
79
:

Figura 18: onde est a iluso?, resposta ao esquema produtos base de gado

78
Em linguagem de internet, viral algum tipo de material virtual (principalmente vdeos ou imagens)
que se dissemina veloz e anonimamente pela web, sobretudo nas redes sociais. A rastreabilidade da sua
orgiem difcil, na medida em que sua disseminao se faz atravs de uma lgica multiplicativa de
compartilhamentos simultneos.
79
Ambos os esquemas retirados de http://consciencia.blog.br/tag/produtos-a-base-de-gado#.UF--
eI2PVCc, em 23 de setembro de 2012.
129

Longe de se tratar de um movimento circunscrito cadeia da carne, estas
movimentaes em prol da valorizao social do produto primrio um fenmeno
transversal ao agronegcio no Brasil, que hoje se v exposto a inmeras crticas por
conta de seu passivo ambiental e social. Em um editorial sugestivamente intitulado
Ceres (a deusa romana dos gros e do amor maternal), o ento ministro da agricultura,
Roberto Rodrigues (2003-2007), assim escreveu para a Folha de So Paulo
(21/07/2007):
Fazia um pouco de frio: junho estava muito mais para inverno que
para outono. Ela vestiu suas calas jeans de algodo do Paran e
suas longas belas pernas ficaram protegidas. Sobre uma blusinha
branca de seda, desenhada com dlias vermelhas, vestiu um
casaquinho de gacha l de ovelha, cor de rosa, combinando com as
meinhas da mesma cor que sumiram na elegante bota de couro de
gado do Mato Grosso. (...)Examinou os pneus de borracha
rondoniense do seu carro, entrou, fechou a porta e foi abastecer com
um pouco do etanol da cana-de-acar do Brasil. (...)Pensou ento na
extraordinria comunho da natureza com o homem, na dura faina
quotidiana da agricultura. Em como a terra solidria, cultivada,
fertilizada e corrigida com carinho pelo agricultor, produzia todos os
fatores essenciais para a vida: tudo! No s os alimentos, mas o
vesturio, o combustvel, a moda, plantas aromticas e medicinais; e
em como o trabalho do homem compunha uma sublime relao com o
ambiente. (...)Por fim, a linda Ceres chegou ao escritrio e mergulhou
no trabalho: servios de planejamento agropecurio, crdito, seguro,
apoio comercializao, tudo para agricultura. Era o mnimo,
pensou, o mnimo que podia fazer para honrar aqueles que garantiam
sua vida, seu bem estar e sua tranqilidade. (...) Era o mnimo, que
podia fazer para homenagear estes heris que dia aps dia, ano aps
ano, enfrentando a concorrncia desleal dos subsdios dos pases
ricos, fazem do Brasil um grande exportador de alimentos e fibras,
gerando empregos e riquezas para todos.
80


Em todo caso, o que interessa aqui so os bovinos, e a maneira com que eles so
compreendidos e discursivamente construdos na esfera pblica nacional. Atravs dos
exemplos suscitados acima nos vemos confrontados com a figura do gado como riqueza
multiplicvel, isto , como um valioso bem do qual derivam mil outros bens. A se julgar
pelo que alegam os textos transcritos, a utilizao social de animais no se constituiria,
portanto, como mais uma atividade entre outras da nossa sociedade. Ao contrrio. Ela
seria, a bem da verdade, uma atividade praticamente insubstituvel e absolutamente
fundamental para a reproduo da prpria sociedade.

80
RODRIGUES, Roberto. Ceres. Folha de So Paulo, 21/07/2007.
130

De acordo com a formulao de Mauss (2003), nos fatos sociais totais
exprimem-se, de uma s vez, as mais diversas instituies: religiosas,
jurdicas e morais estas sendo polticas e familiares ao mesmo tempo
-; econmicas estas supondo formas particulares da produo e do
consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuio -; sem contar
os fenmenos estticos em que resultam esses fatos e os fenmenos
morfolgicos que estas instituies manifestam (Mauss, 2003, p. 187).

Tomando isto em conta, percebe-se o quanto o consumo carnvoro, na condio
de eptome das demais formas de apropriao social dos produtos oriundos da criao
animal, impe-se como uma dimenso particular (alimentar) de um verdadeiro fato
social total, que se exprime jurdico, moral, econmico, esttico e politicamente em
nossa sociedade. A apropriao econmica dos ciclos ecolgicos dos animais um fato
social que se declina em todas estas dimenses, e parece-me importante assinalar que o
discurso crtico tem suas razes quando acusa a pecuria moderna de operar uma
objetivao dos animais de produo. No entanto, creio ser improcedente tratar este
fenmeno como uma novidade genuinamente moderna, e at mesmo exclusivamente
ocidental. Como argumentei anteriormente, a identificao entre a ontologia do gado e a
ontologia do valor parece radicar profundamente em nossa matriz civilizatria,
chegando at os primrdios da domesticao h mais de 10 mil anos atrs.
Em suma, trata-se de pensar que talvez no seja o gado que se transforma em
mercadoria e unidade de valor por causa do capitalismo, mas sim que a solidariedade
oculta que sempre existiu entre a ontologia do gado e a ontologia do valor ganha novos
contornos no capitalismo, o qual, atravs da industrializao, apenas radicalizou e
conferiu contornos cada vez mais dramticos para algo que sempre esteve latente em
nossa relao com os grandes herbvoros que vivem em rebanhos: sua quase inexorvel
identificao com a riqueza multiplicvel.
Dada a complexidade e a antiguidade desta identificao, percebe-se o quo
complexa e difcil pode ser uma tarefa poltica quanto o abolicionismo animal. Para
todos os efeitos, a prpria sociedade consumidora de carne, a sociedade predadora de
animais, que tambm produz os animais que ela mesma ir consumir. H milnios, as
sociedades pastoris tem realizado isto atravs da seleo artificial, qui o aspecto mais
duradouro do processo de domesticao. O avano da cincia no ltimo sculo permitiu
a substituio deste modelo, mais fenotpico, por outro, de escala microscpica e
131

molecular, calcado na engenharia gentica. Os animais domesticados, tal como os
conhecemos, no foram capturados l fora e simplesmente escravizados por uma
sociedade humana sedenta de seus produtos. bem possvel que seus ancestrais, estes
sim, tenham sido capturados por seus primeiros senhores humanos em sua forma
selvagem, tal como a seleo natural os produziu. Contudo, desde que os seres
humanos passaram a controlar os ciclos vitais e reprodutivos destas espcies, toda uma
outra dinmica ecolgica se instaurou, afetando somaticamente tanto humanos quanto
animais. Em suma, assim como a histria da espcie humana se confunde com a das
espcies domesticadas, a histria destas espcies se confunde com a nossa.
Desta maneira, torna-se legtimo refletir, juntamente com os defensores da
abolio animal, sobre qual a animalidade que poderia se seguir a uma libertao dos
bichos, assim como que outras maneiras de prosseguir prximos a eles poderiam ser
inventadas, no caso da explorao agropecuria e do petichismo (Digard, 1999) se
tornarem objeto dos livros de histria. Em seu artigo sobre a Vaca Louca, Lvi-Strauss
(2009) especula a respeito de um cenrio futuro nestes termos:
pois chegar um dia em que a ideia de que os homens do passado,
para se alimentar, criavam e massacravam seres vivos e expunham
complacentemente sua carne em pedaos nas vitrinas inspirar por
certo a mesma repulsa que, para os viajantes dos sculos XVI ou
XVII, as refeies canibais dos selvagens americanos, africanos ou
australianos (p. 212).

Entretanto, o autor acredita que o apetite pela carne nem por isso desapareceria,
de modo que,
sua satisfao se tornar apenas uma ocasio rara, custosa e cheia de
risco. (...) a carne figurar no cardpio em circunstncias
excepcionais. Ser consumida com a mesma mistura de reverncia
piedosa e de ansiedade que, segundo os antigos viajantes, impregnava
as refeies canibais de certos povos. Tendo desaparecido
completamente a criao de gado, no rentvel, essa carne comprada
em lojas de grande luxo h de provir apenas da caa. Nossos antigos
rebanhos, entregues a si mesmos, sero uma caa como outra qualquer
num campo devolvido selvageria (idem, p. 215-6).

O artigo termina evocando um cenrio bastante afeito fico cientfica, no qual
as criaes de gado e outros animais para o consumo desapareceriam e a fronteira
campo/cidade, animal/humano, se radicalizaria, pois
132

ao amontoar-se, como vemos hoje, em megalpoles to grandes como
provncias, uma populao antes mais distribuda esvaziar outros
espaos. Definitivamente abandonados por seus habitantes, esses
espaos retornariam a condies arcaicas e neles, aqui e ali, as mais
estranhas formas de vida se instalariam. Em vez de marchar para a
monotonia, a evoluo da humanidade acentuaria os contrastes e
criaria at mesmo novos, restabelecendo o reinado da diversidade
(idem, p. 216).

Assim, tal como Wilde se perguntara, certa feita, sobre a alma do homem sob o
socialismo, se a tendncia for mesmo a reduo da explorao animal at sua abolio
completa o que no parece ser uma tendncia nem a curto nem a mdio prazo -, talvez
seja interessante comear a se pensar sobre a alma (e o corpo) dos animais sob o
abolicionismo. Em outras palavras, se o sistema agropecurio corresponde escravido
dos bichos, nada exclui a possibilidade de que a abolio possa resvalar na guerra contra
os mesmos, no caso do afastamento entre as espcies no for acompanhado de novas
formas de aproximao entre elas. Como afirma Serres, a domesticidade designa um
conjunto de seres vivos que dependem de ns, e ns, deles (2003, p. 124). Abdicar da
proximidade com os animais domesticados pode significar a abdicao de uma parte
importante da nossa histria como espcie, alm de priv-los do contato com uma parte
importante das suas histrias enquanto espcies. Que outros mundos morais da nossa
relao com os animais domesticados seriam possveis?









133

CONSIDERAES FINAIS

Esto ali os pedaos do bicho, a cabea, as patas, a carne, os chifres.
Fico-me pela farinha regada com um molho cuja natureza prefiro
desconhecer. (...) Comemos em silncio. Escuta-se o febril mastigar
da carne. S quando ossos, j limpos, regressam panela, que
algum nos dirige a palavra. (...) O idoso volta a carga. Comenta o
fato de termos recusado servir da panela grande. Quem, neste mundo,
nega semelhante convite?
- Enganam-se, irmos. Esses, brancos, comem carne todos os dias.
essa gula que vai acabar com o mundo.
- O problema corrige outro campons no o que eles comem,
mas como comem.

Mia Couto, A confisso da leoa (2012, p. 113).


Partindo do ndulo discursivo representado pela situao etnogrfica
disparadora, procurei rastrear trs dos distintos fluxos sobre os quais se assenta a
paisagem fenomenal das contemporneas guerras da carne no Brasil. O mapeamento
desta paisagem, contudo, no se esgota com os rastreamentos operados at aqui. Como
afirmam Kleinman e Kleinman (1995), o fluxo da experincia social intermitente. Ele
prossegue depois que cessa o recorte temporal e analtico do trabalho antropolgico.
Ora, os fluxos discursivos aqui rastreados nada mais so do que uma parte deste fluxo
maior. E muito bem possvel que, antes mesmo da concluso da escrita desta
dissertao, a paisagem fenomenal das guerras da carne j tenha se alterado
substancialmente, demandando novas investigaes.
Tendo em vista estes aspectos, tendo a concordar com o que afirma Florence
Weber quando afirma que uma das caractersticas da pesquisa de campo etnogrfica
a de ser antes um fator de transformao de hipteses do que um dispositivo para
confirm-las ou invalid-las (2009, p. 61). Assim, muito mais do que concluses
propriamente ditas, o que se segue abaixo um pequeno rol de hipteses de segunda
ordem, as quais, espero, possam servir de base para novas incurses antropolgicas
neste tema e objeto.
Questionava-me, na introduo, sobre o que estaria em jogo, para as sociedades
humanas (em especial as sociedades ocidentais modernas) quando se produz e se
consome carne. Mais especificamente, tambm me questionava sobre quais seriam as
relaes entre o consumo carnvoro, como prtica alimentar (social e culturalmente
134

mediada), e a produo de carne, como modalidade de interao entre a espcie
humana e outras formas de vida animal.
Em sntese, ao longo do trabalho procurou-se demonstrar que um forte elemento
carnvoro pontua a gramtica alimentar sul-rio-grandense, brasileira e ocidental
(Captulo 2). Guardadas as especificidades de cada um destes conjuntos do grande
cdigo alimentar ocidental, a mesma centralidade da carne verificada como trao
constitutivo fundamental tanto no mais local quanto no mais abrangente deles. Os dados
levantados por esta pesquisa tendem a ratificar a posio de Fischler (2001) segundo a
qual a carne possui o estatuto de alimento absoluto na gramtica e forma de vida
alimentar do ocidente moderno, ilustrando, desde o ponto de vista brasileiro e sul-rio-
grandense, como isso si ocorrer em mbito local.
Alm disso, percebe-se que h uma distribuio desigual da carnicidade
aqui tomada enquanto virtude e qualidade que pode ser atribuda a um produto - entre as
diversas carnes oferecidas no mercado, de modo que a carne vermelha, bovina,
desponta como a mais emblemtica de todas as carnes, o que no s aproxima a
gramtica carnvora local de outros contextos, como tambm nos incita a perguntar
sobre que tipo de regime produtivo esta configurao de consumo - qui mais
bovinvoro do que carnvoro - se encontra assentado. Questiona-se, em primeiro
lugar, quem so seus agentes e quais os tipos de narrativa por eles engendrados
(Captulo 1); e, em segundo lugar, que tipo de configurao relacional humano-animal
decorre desta matriz produtivo-consumptiva marcadamente bovinocntrica e
ruminocntrica (Captulo 4).
Como foi ilustrado nos captulo 2 e 3, o consumo de carne uma espcie muito
curiosa (e eficiente) de produzir pessoas e corpos, afinidades e diferenas, nos contextos
estudados. Se verdade que h um modelo normativo de corporeidade na sociedade
ocidental, poderamos considerar, com segurana, o carnivorismo como sua
contrapartida alimentar. A carne tambm implica numa poltica de gnero, a qual se
declina tanto leiga quanto profissionalmente. Como explicar de outra maneira a nfase
dada por certos profissionais da rea mdica no papel da carne como alimento
andrognico? Que ela assim de fato o seja, no me cabe discutir. Que isto, no entanto,
aparea como argumento em sua defesa na esfera pblica, j d o que pensar. O que faz
algo legtimo e necessrio de ser consumido pelo fato de ser andrognico?
135

Igualmente, merece destaque nesta poltica sexual da carne a centralidade de
certa narrativa evolucionria calcada no mito do homem caador. Esta uma
narrativa eivada de genderificao, pois visa atribuir um suposto trao essencial da
espcie humana (o carnivorismo) a um tipo de atividade que, de acordo com o mito, era
realizada nica e exclusivamente por uma de suas metades (os homens). maneira de
Dumont (1985), esta metade pode ser considerada a metade englobante, a metade
dominante, da vida social. J o exato oposto deste mito no deixa de manifestar a
mesma geologia profunda: se o consumo de carne deve ser abolido por se tratar de
uma sobrevivncia pleistocnica em um mundo ps-neoltico, no qual no se viveria
mais sob o imprio da necessidade, segue-se que aquelas atividades de subsistncia
ancoradas no exerccio da fora e da violncia, como a morte de animais, deveriam dar
espao a um mundo plenamente domesticado, docilizado, o que no deixa de repetir
certa topologia de gnero entre um fora, selvagem e pastoril
81
, e um dentro,
domstico e agrcola, os quais tambm no deixam de ser genderificados.
Do que o carnivorismo concerne aos corpos, passemos agora aos demais
distanciamentos e proximidades sociais produzidos em torno da questo da carne. Como
procurei relatar no captulo 2, h a produo no s de laos de parentesco e afinidade
atravs da comensalidade carnvora, como tambm a pretenso de produo de um tipo
de identidade menos localizada que o parentesco, isto , a identidade cultural e nacional,
este tipo de afinidade ampliada e abstrata com a qual o ocidente moderno se acostumou
a pensar as fronteiras do eu e do outro em larga escala, tambm atravs da alimentao.
Assim, o caso quase anedtico da pesquisa gacha que contrape Harvard se une a
uma mirade de outros exemplos desta tendncia a se identificar o outro como outro a
partir do seu carnivorismo especfico. Afinal de contas, se a emergncia do tabu
coincide com a emergncia da cultura, a diferena entre o que considerado tabu
tambm coincide com a diferena entre as culturas.
Manuais de culinria que ostentam esquemas de partio de carcaas bovinas
so um bom exemplo disso. A geografia do boi francs totalmente diferente da do boi
britnico, que tambm guarda suas diferenas com o boi australiano e norte-americano.

81
O pastoreio no deixa de ser uma atividade domesticatria. No entanto, se trata daquela atividade
domesticatria limite entre o bravio e o domesticado; a ao direta positiva de que fala Haudricourt
(1962); a eterna necessidade de vigilncia e instrumentos de doma que caracteriza o pastoralismo
tradicional segundo Ingold (2000); ou mesmo a eterna desconfiana dos Nuer em relao ao seu gado
(Evans-Pritchard, 2008), cujo mito domesticatrio remonta a um dio original entre homens e gado.
136

Este tipo de variao estruturada sobre uma mesma matria emprica comum, que
recortada e classificada, arbitrariamente, ora de um jeito, ora de outro, refora ainda
mais a hiptese de que h, de fato, uma gramtica carnvora a operar em nosso sistema
alimentar mais geral, a qual, como langue, pode se efetivar atravs de distintas e
infinitas paroles (o carnivorismo ingls, francs, argentino, brasileiro, etc.).
Alm destes aspectos classificatrios, devo sublinhar que o mais importante
ainda me parece ser a produo de distintos tipos de pessoas atravs do consumo
carnvoro. Um determinado tipo de consumo de carne produz gachos (churrasco).
Outro, em contrapartida, produz ingleses, franceses, argentinos, uruguaios e norte-
americanos: a empregada francesa de um filme antigo sente-se ultrajada por ter
oferecido seu bife com batatas fritas para um espia alemo, infiltrado como patriota
(Barthes, 2001). Na Argentina, o entrecot alado condio de emblema nacional.
Nos Estados Unidos, alimenta-se a fora e a virilidade do jogador de futebol americano
com grandes quantidades de steaks (Sahlins, 2007). Mas isto no somente nominal e
classificatrio. H tambm um aspecto profundamente prtico envolvido nisso. Como
bem demonstra o exemplo do aougue-modelo descrito no captulo 2, h toda uma
educao da ateno (Ingold, 2000) envolvida na transformao da carcaa em cortes
de carne, que se processa scio-fenomenologicamente. Para isto acontecer, necessrio
um determinado tipo de engajamento [engagement] e habilidade [skill] prticos com a
matria carnosa que se d a manipular. Talvez caiba a uma futura etnografia de aougue
revelar outros aspectos desta relao prtica com a materialidade da carne, relao que a
presente pesquisa, por se centrar em outras arestas do mesmo objeto, no pde
pormenorizar
82
.
Tambm me perguntava, na introduo, pelas maneiras atravs das quais os
produtores de carne narram seu produto na esfera pblica, defendem-se das crticas
atribudas a ele e, por fim, disseminam estas narrativas e defesas pelo tecido social.
Pergunto-me agora: qual o sentido social de um engajamento to enrgico (e por vezes
to agressivo) em prol de um determinado produto e sua cadeia sociotcnica?
Simplesmente afirmar que isto se deve existncia de contradiscursos anticarnvoros
no basta, pois a prpria emergncia destes discursos tambm necessita ser explicada.

82
Alm disso, h outros tipos de engajamento prtico com a materialidade da carne que poderiam
engendrar interessantes etnografias, como o engajamento dos sentidos (tato, olfato, paladar) envolvidos
no ato alimentar.
137

Em outras palavras: donde provm a vaga anticarnvora do contemporneo? E por que
os debates envolvendo a carne so sempre to acalorados?
Em primeiro lugar, preciso destacar que h uma sobreposio de camadas de
sentido em relao a esta questo, as quais apontam para lados e temporalidades
diferentes. A alimentao exclusivamente vegetal, o repdio carne e a empatia com os
animais estendem-se em um espectro de relativamente longa durao na histria
ocidental (Thomas, 2010; Fraser, 2012). Contudo, a zootecnia industrial, o sistema-
mundo como rea de produo e distribuio de alimentos e, por fim, a questo
ambiental, reatualizaram e ressemantizaram, nos termos do presente, estes traos que
sempre fizeram da carne um produto moral e culturalmente problemtico.
A complexidade cada vez maior das cadeias produtivas contemporneas conduz
proliferao, em progresso geomtrica, de riscos potenciais, impurezas e alteridades
residuais nos interstcios do sistema. Entre estes outros residuais, me parece justo
incluir a subjetividade dos animais, que persiste operando como rudo tcnico e moral
da engrenagem produtora de carne e outros derivados. E na medida em que os riscos
envolvidos em uma cadeia de produo so dramatizados publicamente (Beck, 2010),
proliferam tambm as narrativas divergentes a respeito da prpria articulao da
cadeia, suas virtudes e vcios, benefcios e prejuzos, bem como o sentido representado
pela presena ou ausncia de rudos e intermedirios problemticos em seu
encadeamento.
importante ressaltar que a resistncia ao modelo industrial de produo de
carne no se restringe somente aos grupos vegetarianos e animalitrios, e que nem todas
as iniciativas de consumo alternativo ao modelo predominante so iniciativas
vegetarianas. Como bem relembra Weiss (2012), movimentos como o slow food e o
local food comportam em suas agendas formas de carnivorismo alternativas, para as
quais a questo primordial no exatamente a moralidade do consumo de animais no-
humanos, mas sim a simplicidade artesanal das (e o cuidado tico envolvidos nas)
cadeias de obteno do alimento. Igualmente, talvez mais ameaador para a cadeia da
carne que o vegetarianismo militante, seja o discurso nutricional contemporneo que
pregamoderao no consumo de carne, e no exatamente sua abolio.
138

O presente trabalho sublinhou os argumentos vegetarianos militantes contra a
carne por representarem uma espcie de posio limite, isto , o ponto extremo em que
a crtica da carne pode chegar. Todavia, a ideia de que o consumo de carne deva ser
moderado, diminudo, parece ser mais bem disseminado no tecido social que os
discursos radicais. Evidentemente, os cientistas e especialistas arregimentados pelo
sistema-carne no prescrevem o abuso do produto. O que indicam fazer, no entanto,
adequar o ideal normativo de moderao alimentar com a ideia de que a carne
substncia imprescindvel, necessria, para a sade humana.
Na Amaznia indgena, a predao (concreta ou metafrica) a relao
ontolgica fundamental (Viveiros de Castro, 2011; Fausto, 2001, 2002). interessante
observar como, naquele contexto, a questo sobre quem devora quem acaba sendo o
elemento crucial na definio do estatuto ontolgico de cada ente. O humano define-se
como humano em relao aos seus comensais, mas aparece como jaguar para os peixes
que aparecem como humanos para outros peixes. Inversamente, os humanos so como
presas para os jaguares, os quais se enxergam como humanos entre outros jaguares.
Tamanha nfase ontolgica sobre um ato somtico como a alimentao contrasta com a
tradio ocidental que identifica na mente (e no no corpo), no crebro (e no no
estmago), o diacrtico ontolgico fundamental.
Nos termos modernos de Arendt (2003), a alimentao e a reproduo, no
passariam de labor, a dimenso existencial menos importante da condio humana:
mera existncia orgnica, mera reproduo da fora de trabalho, mera facticidade
natural. O labor aquilo que, na descrio formal do mundo antigo proposta pela
autora, os homens livres deixavam a encargo do mbito domstico, econmico,
sustentado sobre a energia dos escravos
83
. J no espao pblico realizava-se a natureza
lgico-discursiva do ser humano, marca da sua diferena ontolgica em relao aos
outros animais.
Contudo, a predao da alteridade dita natural em prol do labor - o suposto
sustentculo econmico da vida poltica, a suposta atividade privada, que sustentaria,
como bastidor, a atividade pblica - ganha contornos titnicos atravs do industrialismo.
Desde as ltimas dcadas do sculo XX, esta produo/predao parece estar se
conduzindo ao limite dos seus prprios recursos de perpetuao. Subitamente, a gua

83
Cujo estatuto, devemos recordar, no se diferenciava muito daquele dos animais de produo.
139

passa a se configurar como um bem cada vez mais raro. A energia, cada vez mais cara.
As terras agriculturveis, cada vez mais escassas e pobres. A demanda por alimentos,
cada vez maior que a oferta. O clima, cada vez mais incerto. Tudo aquilo que parecia
pressuposto (economicamente) para que a sociedade se realizasse (poltica e
socialmente) vm tona, problematicamente. Desta maneira, o sistema agroalimentar
(assim como o setor energtico em geral) passa a expor as suas vsceras, suas
fragilidades e suas contradies. A seu respeito, encarnia-se mais e mais o debate
pblico. E o labor, por consequncia, deixa de se configurar matria nica e
exclusivamente de economia e passa a ser tema, fundamentalmente, de poltica.
Desta maneira, impossvel se pensar hoje nos temas clssicos da poltica (que
tipo de sociedade somos e que tipo de sociedade queremos ser) sem refletir
minimamente sobre a viabilidade do nosso sistema agroalimentar. A disputa de
narrativas sobre a carne enfocada neste trabalho, portanto, me parece se configurar,
acima de tudo, como um subcojunto deste problema mais geral. Falar da maneira que
comemos falar das relaes que estabelecemos uns com os outros, com os animais,
com a alteridade natural em geral. Falar da maneira que comemos falar de gnero,
falar de corpo, falar de diferena simblica e cultural. Falar do que comemos, por fim,
falar de como comemos - pois todas as coisas que consumimos, j dizia Marx, so
cristalizaes das nossas relaes de produo.
Por fim, cabe relembrar que este trabalho procurou investigar o que est em jogo
nas guerras da carne sublinhando algumas falas emblemticas para se pensar os fluxos
discursivos que compem a paisagem fenomenal destas citadas guerras. Se me fosse
solicitado escolher a mais emblemtica destas frases, eu selecionaria aquela segundo a
qual o carnivorismo nos colocou em condio de dominar a cadeia alimentar. Mais do
que qualquer outra das falas ressaltadas, esta em especfico parece condensar o ncleo
duro antropolgico, por assim dizer, dos significados do nosso carnivorismo ocidental.
Quando se afirma que estamos no topo da cadeia alimentar estamos
formulando uma interpretao bastante interessante e esclarecedora sobre nosso prprio
carnivorismo. O carnivorismo de quem se coloca no topo da cadeia alimentar o
carnivorismo de quem se encontra excetuado do circuito de predao. H uma diferena
muito grande entre comer um animal correndo o risco de ser comido por outro (como
parece ser a lgica cinegtica de compreenso das fronteiras entre o humano e o animal
140

nas sociedades amerndias, por exemplo) e comer um animal desde um suposto ponto
cego fora da predao ponto cego desde o qual somente os humanos so pessoas, e os
animais, meros animais.
No coincidentemente, este mesmo ponto cego fora da animalidade que
caracteriza a tese da exceo humana nos termos em que a descreve Schaeffer (2009):
isto , a ideia segundo a qual o ser humano se define por sua absoluta diferena
ontolgica em relao a todos os outros entes, sobretudo os demais seres do reino
animal. Na medida, portanto, em que nosso carnivorismo ocidental pode ser classificado
como antropocntrico, trata-se de compreender que nem todo carnivorismo
necessariamente o . Sobretudo aquele desenvolvido em contextos nos quais tanto a
vida humana quanto a no-humana encarada sob a mesma tica de fragilidade
ontolgica e articulao nos circuitos de predao. Contextos, em suma, nos quais
difceis se falar de um topo da cadeia alimentar seja l o que isto queira significar.













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