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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Caetano Sordi
DE CARCAAS E MQUINAS DE QUATRO ESTMAGOS Estudo das controvrsias sobre o consumo e a produo de carne no Brasil
Orientador: Bernardo Lewgoy
Porto Alegre 2013 2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Caetano Sordi
DE CARCAAS E MQUINAS DE QUATRO ESTMAGOS Estudo das controvrsias sobre o consumo e a produo de carne no Brasil
Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Bernardo Lewgoy
Porto Alegre 2013 3
Caetano Sordi
DE CARCAAS E MQUINAS DE QUATRO ESTMAGOS Estudo das controvrsias sobre o consumo e a produo de carne no Brasil
Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
_____________________________ Prof. Dr. Bernardo Lewgoy (orientador, UFRGS)
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AGRADECIMENTOS
Dedico esta dissertao a todos aqueles que auxiliaram na sua construo. Os nomes so vrios e a lista extensa. O imperativo de brevidade me impede de dizer tudo aquilo que devido a todos, de modo que me restrinjo aqui s menes mais pontuais. A ordem das menes, igualmente, no reflete qualquer tipo de prioridade. Sou imensamente grato a todos os interlocutores e entrevistados que se dispuseram a partilhar comigo suas histrias e vivncias, carnvoras ou vegetarianas, consumptivas ou produtivas, que deram cor experiencial e hermenutica s temticas aqui travadas. Sado os colegas da turma de mestrado 2011, com os quais partilhei estes ltimos dois anos de vivncia acadmica e para-acadmica. Devo aos meus vinte colegas um grande e profundo aprendizado, erigido atravs de experincias fundamentais que o tempo saber organizar e sedimentar na memria de todos ns. Em especial, sou imensamente grato Stphanie Bexiga, ao Renan Santos, Luana Emil, Natlia Silveira, Gabriela Sevilla e ao Rodrigo Dornelles, com os quais compartilhei grande parte das leituras e da escrita da dissertao. Devo mencionar tambm os colegas Rodrigo Toniol e Sara Guerra, assim como novamente o Renan, pela experincia conjunta como Representantes Discentes no Conselho de Ps-Graduao e os aprendizados polticos e profissionais da derivados. Sou grato aos amigos e colegas de humanidades Bruno Morche e Federico Testa, pelas intensas trocas intelectuais. Telma Lisowski e Bibiana Macedo, pelas sempre generosas acolhidas em So Paulo (SP), cidade a qual aflui duas vezes por conta desta pesquisa. Aos meus demais amigos, agradeo por todo o apoio e a pacincia em me ouvir falar intermitentemente sobre os assuntos aqui esboados. Ao Diego Amaral, pelos insights, pelo carinho e pelo suporte emocional, ao longo de todo este processo. Agradeo a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) pelo financiamento integral deste mestrado atravs do programa de bolsas REUNI de auxlio graduao. Graas a este financiamento, pude desenvolver, em paralelo a pesquisa, atividades de docncia e co-docncia que muito auxiliaram no meu processo de formao profissional. Tambm sou grato, portanto, aos alunos de graduao que comigo cruzaram ao longo deste tempo. O apoio institucional do 5
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, bem como da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tambm merecem o meu destaque. Agradeo enormemente secretaria executiva do PPGAS, Rosimeri Feij, por sua dedicao e pacincia com as demandas oriundas de todos ns. Sou grato aos docentes das disciplinas cursadas nestes ltimos dois anos pela partilha do conhecimento e vivncia profissional. Maria Eunice Maciel e os colegas do Ncleo Estudos Interdisciplinares em Cultura e Alimentao (NEICA), dedico um especial agradecimento, bem como aos integrantes do GENA (Grupo de Estudos sobre Natureza(s)). Agradeo tambm a Fabola Rohden, Ceres Victora, Arlei Damo, Natacha Leal, Cristian Carrre, Guilherme S, Cima Bevilaqua, Felipe Vander Velden, Samantha Gaspar, pela interlocuo. Carlos Steil e Ondina Fachel Leal, juntamente com Fabola Rohden, pelo aprendizado como Representante Discente na Comisso de Ps-Graduao. Agradeo imensamente s colegas do Projeto e Grupo de Pesquisa Espelho Animal: antropologia das relaes entre humanos e animais, que cito nominalmente: Caroline Gonalves, rica Pastori, Ivana Teixeira, Priscila Borges e Patrcia Nardelli. Sem o grupo, nada disso teria sido possvel. Sob a orientao do Bernardo Lewgoy - a quem muito agradeo e tambm dedico esta dissertao, pela amizade, dedicao e sintonia intelectual - construmos um espao no qual ressoam nossos interesses e no qual pudemos realizar, ao longo dos trs ltimos anos, os nossos trabalhos. Por fim, dedico e agradeo este esforo a todos os meus familiares, em especial minha tia Dagmar Rosana e minha av Colorinda, alm das minhas primas-irms, que sempre estiveram juntos comigo e sempre apoiaram minha trajetria acadmica e profissional. In memorian tambm dedico esta dissertao aos meus pais.
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RESUMO
O Brasil possui a segunda maior populao bovina do planeta. tambm o segundo maior produtor de carne bovina do mundo (ultrapassado somente pelos Estados Unidos) e o maior exportador deste produto. O mesmo sucesso ocorre com a avicultura e a suinocultura nacional. Em paralelo a esta dinmica de crescimento do sistema-carne, tem-se verificado a emergncia de discursos crticos pecuria e ao consumo de carne em geral, sejam eles vinculados militncia por direitos e bem-estar animal, ou s questes envolvendo o meio-ambiente e a sade humana. Atravs de metodologia qualitativa e etnogrfica, este trabalho contrasta os argumentos e expresses retricas de representantes e crticos da carne em trs principais eixos: relaes humano-animais e socioambientais envolvidas na produo de carne; carnivorismo e comensalismo; impactos do consumo de carne na constituio biolgica e moral do ser humano. A partir da ideia de rastreamento de fluxos discursivos, a pesquisa visa mapear a paisagem fenomenal das contemporneas guerras da carne, procurando elencar elementos para responder seguinte questo: o que est em jogo, para as sociedades modernas, quando produzem e consomem carne?
Palavras chave: Antropologia; Controvrsia Pblica; Carne; Brasil.
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ABSTRACT
Brazil possesses the second largest bovine population in the world. It is also the second largest producer of beef (surpassed only by the United States of America), as well as the largest world exporter of this product. The same success occurs with Brazilian aviculture and swine breeding. However, an emerging criticism of stockbreeding and meat consumption in general has marked a parallel presence to this ever expanding meat system. They are linked to militancy in favor of animal wellbeing and rights and questions involving the environment and human health. Through qualitative and ethnographic analysis, the investigation contrasts the arguments and rhetorical expressions of meat representatives and critics in three main axes: human-animal relations and environmental issues involved in the production of meat; carnivorism and commensalism; impacts of meat consumption on biological and moral constitution of the human-being. Through the idea of tracking discursive flows, the research aims to chart the phenomenal landscape of contemporary meat wars, seeking elements to answer the follow question: what is at stake for modern societies when they produce and consume meat?
Keywords: Anthropology; Public Controversy; Meat; Brazil.
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SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................................... 11 1 - VITRINES DA CARNE: NOTAS ETNOGRFICAS SOBRE EVENTOS AGROPECURIOS ............................................................................................................... 23 1.1 O Caminho do Boi e o Caminho da Carne ........................................................................ 35 1.2 A Centralidade da Carne: Conjunturas globais e locais .................................................... 38 1.3 A situao etnogrfica disparadora ................................................................................... 45 1.4 A dialtica do pioneiro e do predador ............................................................................... 51 2 - A GRAMTICA SIMBLICA DA CARNE ................................................................... 57 2.1 A polissemia da carne .................................................................................................... 58 2.1.2 Sobre churrascos veganos, bifes de soja, vegebrgueres e outras assinaturas carnvoras no campo vegetariano ............................................................................................................. 63 2.1.3 Pesquisa gacha contrape Harvard: notas sobre um Estado carnvoro ................. 65 2.2 Do carnivorismo ao naturalismo ....................................................................................... 74 3 - EVOLUO, NATUREZA, GNERO E MORALIDADE NAS GUERRAS DA CARNE ................................................................................................................................................. 78 3.1 Quando o homem do Pleistoceno vai ao supermercado .................................................... 80 3.1.1 Excurso sobre a alimentao de humanos e animais ..................................................... 89 3.2 O gnero da carne .............................................................................................................. 92 3.4 Os nimos da carne ........................................................................................................... 96 4 - A PRODUO DE CARNE E OS LABORATRIOS NUTRITIVOS ANIMAIS ... 102 4.1 O rmen, patrimnio da humanidade .............................................................................. 108 4.2 A centralidade da carcaa ................................................................................................ 111 4.3 Entre a subjetivao e a reificao .................................................................................. 119 4.4 O gado e o valor .............................................................................................................. 122 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................ 133 REFERNCIAS .................................................................................................................... 141
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: FEICORTE, 2011 (Foto: Caetano Sordi). ................................................................... 11 Figura 2: FEICORTE, 2012 (Foto: Caetano Sordi) .................................................................... 23 Figura 3: aspecto geral da FEICORTE, edio 2012 (Foto: Caetano Sordi). ............................. 27 Figura 4: Stand de companhia farmacutica na FEICORTE, edio 2012. Repare-se o lema: science for a better life cincia para uma vida melhor. Grande parte das mulheres da feira se encontra alocadas nos servios de vendas e recepo. (Foto: Caetano Sordi) ........................... 28 Figura 5: aproximao cautelosa com zebu na FEICORTE edio 2011. (Foto: Caetano Sordi) ..................................................................................................................................................... 30 Figura 6: stand de medicamentos homeopticos na FEICORTE edio 2011. (Foto: Caetano Sordi) ........................................................................................................................................... 33 Figura 7: eixo central do pavilho de exposies da FEICORTE, edio 2012, com as bandeiras dos estados brasileiros. (Foto: Caetano Sordi) ............................................................................ 34 Figura 8: EXPOINTER, 2011 (Foto: Caetano Sordi) ................................................................. 57 Figura 9: printscreen da busca pelo verbete carne no Google imagens, acessado em 29 de janeiro de 2013. ........................................................................................................................... 60 Figura 10: aougueiros em desmontagem didtica de carcaa na Vitrine da Carne Gacha, na EXPOINTER 2011. (Foto: Caetano Sordi) ................................................................................. 69 Figura 11: EXPOINTER, 2011. (Foto: Caetano Sordi) .............................................................. 78 Figura 12: pecuria como atividade socio-ambientalmente nociva. Infogrfico produzido pelo Estado de So Paulo, disseminado por militantes vegetarianos nas redes sociais. ..................... 90 Figura 13: material publicitrio para linha de suplementos proteicos Carnivor, com forte apelo masculinidade ........................................................................................................................... 94 Figura 14: FEICORTE 2012. (Foto: Caetano Sordi) ................................................................ 102 Figura 15: material publicitrio de sementes evocando o ideal de converso de pasto em carne ................................................................................................................................................... 103 Figura 16 Fluxograma oferecido no site do SIC sobre as cadeias industriais dependentes do abate de bovinos. ....................................................................................................................... 126 Figura 17: produtos base de gado ....................................................................................... 127 Figura 18: onde est a iluso?, resposta ao esquema produtos base de gado .................. 128
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LISTA DE SIGLAS
ABCZ Associao Brasileira de Criadores de Angus ABIEC Associao Brasileira das Indstrias Exportadoras de Carne ANDA Agncia de Notcias de Direitos Animais ASEAN Association of South Asian Nations AU-IBAR - African Union - Interafrican Bureau for African Resources BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social CNA Conferncia Nacional da Indstria CNPC Conselho Nacional da Pecuria de Corte DIEESE Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Econmicos EEB Encefalopatia Espongiforme Bovina (Doena da Vaca Louca) EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria EXPOINTER Exposio Agropecuria Internacional em Esteio, Rio Grande do Sul ETCO Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e Ecologia Animal FAO Food and Agriculture Organization FAOSTAT Statistics Division of the Food and Agriculture Organization FEICORTE Feira Internacional da Cadeia Produtiva da Carne FEILEITE Feira Internacional da Cadeia Produtiva do Leite FEINCO Feira Internacional de Caprinos e Ovinos FENASUL Exposio Agropecuria em Esteio, Rio Grande do Sul FPA Frente Parlamentar da Agropecuria IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica ILRI International Livestock Research Institute ISO International Standartization Organization MAPA Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento MPS Ministrio da Previdncia Social MTE Ministrio do Trabalho e Emprego OCDE Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento Econmico OIE Organizao Mundial de Sade Animal OMC Organizao Mundial do Comrcio PETA People for the Ethic Treatment of Animals PSD/TO Partido Social-Democrata, seco Tocantins SBMV Sociedade Brasileira de Medicina Veterinria SEBRAE/RS - Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas, seco Rio Grande do Sul SIC Servio de Informao da Carne SRB Sociedade Rural Brasileira SWI Stockholm Water Institute UDR Unio Democrtica Ruralista UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UNESP Universidade Estadual Paulista USP Universidade de So Paulo WSPA World Society for the Protection of Animals
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INTRODUO
Figura 1: FEICORTE, 2011 (Foto: Caetano Sordi).
Este trabalho visa reconstruir, a partir de um conjunto de fontes textuais e etnogrficas, as formas atravs das quais os agentes da cadeia produtiva da carne brasileira: (1) narram, contemporaneamente, as relaes humano-animais e ambientais envolvidas na sua atividade, e (2) defendem, aguerridamente, a centralidade do seu produto para a dieta humana e a vida social em geral. Grande parte desta reconstruo se faz a contrario, ou seja, explorando, de maneira paralela e relacionada, os discursos e narrativas crticas ao consumo e a produo de carne hoje disseminadas no Brasil. Trata-se, portanto, de uma investigao sobre aquilo que, em outra oportunidade, demos o nome de as Guerras da Carne(Lewgoy e Sordi, 2012): isto , os conflitos discursivos, 12
travados na esfera pblica 1 online e offline, que tem como objeto referencial a carne, sobretudo a bovina, no contexto brasileiro contemporneo. Assim constituda, a dissertao se erige na interseco entre a antropologia da alimentao e a antropologia das relaes entre humanos e animais. Esta interseco possvel na medida em que o carnivorismo, como objeto para o pensamento, impe-se em um duplo domnio ou domnio hbrido: sob seu aspecto alimentar, como regime nutricional e estrutura de comensalidade; sob seu aspecto interespecfico, como prtica ou regime de predao 2 . A ideia tratar tanto a carne quanto a sua matriz, o boi, como uma coisa: isto , aquilo do que se fala ou aquilo a respeito do que se disputa publicamente, tal como nos sugere este conceito quando explorado por Ingold (2012), Heidegger (1987) e Latour (1994, 2001, 2004). A coisa jamais um objeto bem definido, um fato consumado (Ingold, 2012, p. 29). Seu estatuto ontolgico encontra- se em permanente e instvel erupo. Alm de um interesse especfico pelo objeto emprico acima delimitado, esta pesquisa animada por um questionamento antropolgico 3 mais amplo: de acordo com Lvi-Strauss (2009, p. 78), o ato de matar seres vivos para se alimentar prop[e] aos humanos, conscientemente ou no, um problema filosfico problema que todas as sociedades tentam resolver. Frente s narrativas sobre a carne que hoje circulam na esfera pblica brasileira, pergunta-se: o que est em jogo 4 , para as sociedades humanas (e especificamente para as sociedades ocidentais modernas) quando se produz e se consome carne? E ainda: qual a relao entre o consumo carnvoro, como prtica alimentar (social e culturalmente mediada), e a produo de carne, como modalidade de
1 Por esfera pblica compreende-se a dimenso da vida social na qual assuntos de interesse pblico so discutidos por agentes pblicos e privados, cada vez mais dependente de intermedirios miditicos. Seguindo a perspectiva de Habermas (1984), este espao tambm pode ser considerado como a estrutura intermediria que faz a mediao entre o mundo poltico, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e de ao especializados em funes, de outros. 2 Por hora, compreendo o conceito de predao apenas em seu sentido ecolgico, isto : um predador pode ser definido como qualquer organismo que consome todo ou parte de outro organismo vivo (Towsend et al., 2010, p. 249). Posteriormente introduzirei significados de ordem simblica e social para predao. 3 Tomo aqui por antropolgico a definio proposta por Ingold (2011, p. 242) do que cabe antropologia perscrutar: anthropology is an enquiry into the conditions and possibilities of human life in the world. 4 Ao orientar a pesquisa pela busca do que est em jogo, procuro seguir Arthur e J oan Kleinman (1995, p. 277) quando afirmam que a central orienting question in ethnography should be to interpret what is at stake for particular participants in particular situations. That orientation will lead the ethnographer to collective (...) and individual () levels of analysis of experience-near interests that, we hold, offer a more valid initial understanding of what are social psychological characteristics of forms of life in local moral worlds than either professional sociological categories or psychological terminology. 13
interao entre a espcie humana e outras formas de vida animal? Consciente dos limites impostos pelo escopo da investigao, considero estas perguntas como horizontes, isto , como guias ou luzeiros que modularam tanto a pesquisa quanto a escrita em seu desenvolvimento. maneira do que costuma ocorrer em antropologia, esta dissertao , em parte, fruto de um impondervel da pesquisa etnogrfica. Em minha monografia de concluso de curso em Cincias Sociais, defendida em 2010, estudei a militncia radical por direitos animais (abolicionismo animal) tal como se organiza e opera no Rio Grande do Sul. Durante este processo, ganhei familiaridade com aquilo que eu viria a denominar, seguindo as recomendaes de Geertz (1997) para uma etnografia do pensamento, como suas prticas lingusticas: as categorias e modos pragmticos pelos quais seu pensamento se articula na esfera pblica e visa se disseminar pelo tecido social. Boa parte destas prticas lingusticas tem como alvo os processos de produo de carne e o modo com que os animais so tratados na indstria da protena animal, buscando revelar o que h de ultrajante e degradante na srie de procedimentos tcnicos existentes do pasto ao prato. Neste intuito, abolicionistas articulam todo um corpo de imagens e figuras de linguagem para explicitar uma suposta opacidade da carne exposta no mercado, que esconderia ou sublimaria os processos cruis e de explorao contidos na sua produo. Promover o desocultamento deste holocausto animal, a partir da elevao das experincias de violao sofridas pelos animais ao nvel da conscincia, um tipo de trabalho sobre o qual os coraes e mentes abolicionistas esto permanentemente dedicados; algo que, na fala de um entrevistado, impregna toda a vida do militante. A marca do entranhamento da causa na vida da pessoa modulada pela adoo do veganismo (ou vegetarianismo tico), ethos que transcende a dieta exclusivamente vegetal e toma contornos poltico-existenciais. Os dados de pesquisa sugeriam que as militncias por direitos animais e as redes de divulgao vegetarianas constituem-se, predominantemente, como uma amostra de quadros mdios, urbanos, escolarizados (ensino superior completo ou incompleto), que fazem macio uso de bens culturais e esto conectados a um grande nmero de plataformas comunicacionais online. Ainda possuindo alguma dificuldade para se legitimar como movimento social na esfera pblica, esta militncia se aproxima, bem 14
da verdade, daquele tipo de agncia crtica conceituado por Beck (2010) como prpria da sociedade de risco: eles sabem argumentar, esto bem organizados, tm (...) acesso a algumas publicaes e esto em condies de oferecer argumentos na esfera pblica e nos tribunais (p. 300). Como salientam Fraser (2001, 2012) e Wilkie (2010), desde seu aparecimento na esfera pblica dos pases europeus e anglo-saxnicos, a partir das dcadas de 1960 e 1970, esta militncia tem auxiliado na conformao de uma nova percepo sobre a criao animal, a qual seria: (1) contrria ao bem-estar dos animais; (2) controlada por interesses corporativos; (3) motivada pelo lucro, ao contrrio dos antigos regimes de criao; (4) causadora de fome no mundo; (5) produtora de alimentos no saudveis; e (6) ambientalmente nociva. Tendo isto em vista, o trabalho de concluso foi articulado a partir da investigao de como o abolicionismo desenvolve estratgias retricas na esfera pblica, e do mapeamento de suas relaes com instituies sociais como a cincia, o direito e a imprensa, o que revela bastante sobre sua posio relativa no contexto social maior (Sordi, 2011). Absorvido por estas questes, eu no havia operado, at ento, qualquer incurso sistemtica pelo lado oposto ao abolicionismo. Eu no havia tentado investigar como aqueles que produzem carne independentemente do seu lugar especfico na cadeia de produo animal, que extensa narram e compreendem a atividade na qual se encontram envolvidos. Isto mudou de figura quando me deparei, quase que aleatoriamente, com o seguinte pargrafo inicial de um texto publicado em Zero Hora, no dia 4 abril de 2011: O consumidor interno e o mercado nacional so carentes de informao sobre a carne brasileira. (...) Esses tempos li um artigo que dizia precisamos explicar ao consumidor que leite no d em caixinha e que bife no nasce em bandejinhas.
O excerto poderia ter sido perfeitamente retirado de um texto abolicionista de denncia da pecuria. Seguramente, ele prosseguiria com o relato dos processos de utilizao animal empregados pela agroindstria; a misria moral e humana dos abatedouros; a insalubridade das granjas; o regime de trabalho forado das reses leiteiras; a desumanidade que separa mes e filhotes e introjeta hormnios de crescimento nos espcimes pequenos para que se desenvolvam de acordo com um projeto humano de otimizao de suas partes comestveis. Por fim, se afirmaria que por 15
trs da caixinha e da bandejinha se oculta uma gigantesca indstria, movida pelo lucro e insensvel s questes de sade humana e ambientais. No entanto, o excerto pertencia a um artigo denominado Marketing da Carne, publicado no caderno Campo e Lavoura do referido peridico, destinado s notcias da produo primria. E, diferentemente do especulado acima, assim prosseguia o texto: O consumidor precisa entender que por trs da carne ofertada diariamente nas gndolas do varejo existe um homem do campo, um trabalhador. Que luta contra as adversidades do clima, da economia, do mercado e da poltica.
De repente, todo um outro conjunto de imagens a respeito da pecuria se descortinava, bastante destoante daquele ao qual eu estava familiarizado: o trabalhador do sistema-carne, que, no imaginrio dos direitos animais, tem sua conscincia colonizada pelas foras do sistema (tal como os carrascos do sculo XX que cometeram barbaridades seguindo ordens) tornara-se uma espcie de heri: algum que luta permanentemente contra as adversidades naturais (as secas, as mudanas climticas, etc.), do mercado (a presso por produtividade, gerada pela crescente demanda, mas, no obstante, acompanhada de frequentes embargos, medidas protecionistas, exigncias cada vez mais restritivas de qualidade sanitria, etc.), do Estado (a m vontade dos polticos) e, como se no bastasse tudo isso, da sociedade (ou da cultura, em sentido bastante lato): dado o surgimento de discursos refratrios e combativos ao consumo do seu produto, como o uma parcela importante dos discursos de direitos animais. Desta maneira, espelhando-me no trabalho de Wilkie (2010), operei uma mudana de objeto de pesquisa que pode ser classificada como do protesto para o produto (p. 2). Sua experincia de pesquisa, realizada no millieu animalista da Gr- Bretanha, derivara na constatao de que muitos defensores dos direitos animais no esto diretamente envolvidos - e tampouco familiarizados - com as espcies mais evocadas em seus discursos (vacas, galinhas, porcos e ovelhas, isto , prprias do mundo rural, ou baleias, pandas e outros animais selvagens ameaados de extino) 5 .
5 Para a autora, este curioso trao permanece constante mesmo se tomadas em conta as diferentes perspectivas existentes no meio animalitrio (bem-estarismo, abolicionismo gradual ou pragmtico, abolicionismo radical): [There are] diverse and competing viewpoints, but they have a common basis: Most of the commentaries are made by non-farming people located outside the industry (Wilkie, 2010, p. 39). O mesmo reconhece Descola (1998, p. 23): Nascida da indignao com os maus-tratos infligidos 16
Motivada por este insight etnogrfico, Wilkie direcionou seus interesses para outra questo de pesquisa: de que forma aqueles que trabalham diretamente com os animais de fazenda [farm animals] significam suas interaes com eles? Investigaes preliminares de discursos atualmente em circulao nos meios ligados pecuria brasileira permitiram identificar a existncia, tambm no campo dos produtores de carne, de uma retrica de esclarecimento e conscientizao. Atores do sistema-carne, como a ABIEC (Associao Brasileira das Indstrias Exportadoras de Carne), tm reconhecido abertamente a necessidade de defender o valor social do seu produto contra os discursos crticos sua atividade, sejam eles ambientalistas, animalistas, ou (o que no raras vezes acontece) hbridos destas duas tendncias. A parcela da comunidade cientfica que, por diversos motivos, auxilia na formatao de uma imagem negativa sobre a carne, tambm visada como um obstculo a ser contornado. A criao, em 2001, de um Servio de Informao sobre a Carne (SIC), congregando diversas entidades, denota o investimento de energia institucional do sistema em prol da defesa pblica do seu produto. Este trabalho procurou mapear, portanto, como os agentes do sistema-carne brasileiro desenvolvem uma narrativa pblica a respeito dos vnculos que os ligam, de um lado, aos animais que mobilizam em suas atividades, e, de outro, s demandas sociais crescentes por bem-estar animal, qualidade da carne, segurana ambiental e sanitria. 6 Alguns destes discursos so diretamente voltados a contrabalanar os argumentos em contrrio, isto , as alegaes de risco (humano, animal e ambiental) disseminadas no tecido social por obra de militantes e organizaes crticas ao consumo carnvoro. Outros, por sua vez, tm o carter de uma assimilao construtiva destas mesmas alegaes, respeitando uma lgica de otimizao do prprio risco (e sua
aos animais domsticos e de estimao, em uma poca na qual burros e cavalos de fiacre faziam parte do ambiente cotidiano, atualmente, a compaixo nutre-se da crueldade a que estariam expostos seres com os quais os amigos dos animais, urbanos em sua maioria, no tm nenhuma proximidade fsica: o gado de corte, pequenos e grandes animais de caa, os touros das touradas, as cobaias de laboratrio e os animais fornecedores de pele, as baleias e as focas, as espcies selvagens ameaadas pela caa predatria ou pela deteriorao de seu habitat etc. 6 Internacionalmente, agncias envolvidas com a gesto dos recursos pecurios no planeta tambm tm demonstrado forte preocupao em desenvolver uma narrativa mais coerente para o setor pecurio global. Entre elas, a FAO (Food and Agriculture Organisation), o ILRI (International Livestock Research Institute), a Unio Europia, o Banco Mundial, a ASEAN (Association of South Asian Nations), o AU- IBAR (African Union-Interafrican Bureau for African Resources), entre outros. Estes organismos e seus representantes estiveram reunidos recentemente (maro 2012) em Nairbi (Qunia), sede do ILRI, to fulfill on an ambitious global livestock agenda to 2020 that would work simultaneously to protect the environment, human health and socioeconomic equity. Disponvel em: http://tinyurl.com/7kzxozr, consultado em 18 de maro de 2012. 17
atenuao) como florescente oportunidade de mercado (Beck, 2010, p. 55). Por fim, o engendramento de um discurso que visa reativar a importncia da produo animal como constitutiva da nacionalidade brasileira tambm se fez notar, apontando para questes diretamente envolvidas com a etapa de desenvolvimento socioeconmico vivida atualmente pelo Brasil, na qual a produo de protena animal (e primria, em geral) exerce um papel nada coadjuvante. Desde o incio, a questo da etnografia teve de ser considerada com especial cuidado nesta pesquisa. Em consonncia com uma tendncia mais geral da disciplina nas ltimas dcadas, o trabalho no tem como objeto uma comunidade ou situao em particular, mas sim algo que ocorre em um sistema multilocal (Marcus, 1995). Da mesma maneira, atravessado por questionamentos globais. Se, como reconhecem Comaroff e Comaroff (2003, p. 152), nossos nativos no habitam mais contextos sociais para os quais possumos um lxico persuasivo, nossas estratgias metodolgicas tem de ser adaptadas. Optei por realizar a etnografia em feiras e eventos agropecurios locais e nacionais. Trata-se de um lcus estratgico para a pesquisa de campo na medida em que eles so a faceta pblica da indstria agropastoril e seu mais relevante hub social (Wilkie, 2010, p. 14). O tipo de fenmeno sobre o qual decidi me debruar, no entanto, no ocorre somente nestes eventos: ele sentido, discutido, debulhado, trabalhado e articulado neles, mas muito os transcende e supera. As disputas envolvendo a carne nas sociedades contemporneas possuem uma estrutura fluidificada: esto na mdia, circulam pela internet, por palestras e workshops destinados ao tema, na prtica anticarnvora de vegetarianos militantes, em pareceres mdico-nutricionais e pesquisas cientficas nas universidades, entre outras precipitaes momentneas e circunstanciais. Esse um objeto que se articula em escalas bastante diferenciadas, pois perpassa tanto a dificuldade de dietas alternativas vingarem em uma regio perifrica do Brasil, onde o consumo de carne vermelha tem papel central, at discusses altamente globalizadas, como a controvrsia cientfica a respeito dos nveis de CO 2 emitidos pela pecuria. Torna-se necessrio, portanto, algum tipo de imaginao analtica (Comaroff e Comaroff, 2003, p. 166) por parte do antroplogo, capaz de encompassar em uma narrativa persuasiva como a define Strathern (1987) esta mirade de dados 18
heterclitos e aparentemente desconectados, mas que se coligem como partes de um fluxo discursivo 7 multidimensional. Se a questo metodolgica que se impe o rastreamento destes fluxos, importante ressaltar, como o fazem Arthur e J oan Kleinman (1995), que os etngrafos sempre adentram o fluxo da experincia vivida a partir um determinado corte espao- temporal. a partir dele que os antroplogos conseguem experimentar como seus interlocutores se deparam com o fluxo da experincia social, fluxo que encontra na situao etnogrfica um dos seus mltiplos momentos de atualizao e precipitao. Tomando estes aspectos em conta, a narrativa do trabalho segue a seguinte lgica: parto de uma situao etnogrfica que classifico como disparadora. Ao tom- la desta forma, procuro fazer com que a etnografia parta antes dos efeitos situados do ver e do ouvir do que de alguma teoria ou meta-narrativa totalizadora sobre o objeto em questo (Comaroff e Comaroff, 2003, p. 164). Dado que se trata de um assunto polmico na esfera pblica, ao qual afluem muitos discursos totalizantes, de carter normativo, preferi adotar a perspectiva de Florence Weber (2009, p. 27) segundo a qual cabe ao antroplogo, antes de tudo, observar e escutar as pessoas, e no interrog-las, para preservar suas iniciativas de classificao e o domnio sobre suas palavras. A situao disparadora, no caso, uma palestra denominada Pecuria Brasileira: desvendando mitos, ocorrida na 17 FEICORTE (Feira Internacional da Cadeia Produtiva da Carne So Paulo, SP), em junho de 2011. Este evento contou com a participao de cinco profissionais envolvidos com a cadeia da carne bovina e o projeto do SIC, sendo dois deles oriundos do campo das biocincias (uma nutricionista e um mdico). A partir de algumas falas ouvidas nesta situao etnogrfica, cada captulo da dissertao rastreia um fluxo discursivo diferente a respeito da carne na contemporaneidade. Estes fluxos so compostos de certos temas animadores, verdadeiros vernculos, que compem a paisagem fenomenal (Comaroff e Comaroff,
7 Discursive flows, although having focal centers, are inherently open, flexible in scope, and shifting in both their content and their constituents. Determining what, exactly, falls whitin the purview of any such flow is itself a product in part of paying careful attention, in part of inspired guesswork, in part of theoretical and philosophical predilection; making sense of its substance depends on what we () have spoken of as an imaginative sociology (Comaroff e Comaroff, 2003, p. 166).
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2003) das contemporneas discusses sobre a carne onde quer que elas ocorram: (1) riscos ambientais envolvidos na produo de carne; (2) o papel da mesma na dieta humana, (isto , se ela prescindvel ou no em uma dieta considerada normal ou adequada); (3) o estado-da-arte das relaes entre humanos e animais na obteno do produto; sem esquecer-se (4) dos aspectos socioeconmicos e de gnero envolvendo o consumo e a produo carnvora. H tambm outro fluxo discursivo que conforma o quadro geral das polmicas envolvendo a carne, particularmente interessante: as discusses em torno do quanto a adoo de uma dieta carnvora, em determinado momento da Pr-Histria da espcie, colaborou para a constituio biolgica dos seres humanos modernos [human kind] e para a configurao moral da humanidade [humanity] em geral 8 . A recorrncia de explicaes e justificaes filogenticas para defender o consumo ou o abandono da carne indica um pouco da potncia, ainda vigorosa, que argumentos de matriz evolucionria possuem nas sociedades do ocidente moderno. Mais do que isto, manifesta a permanncia e a vivacidade, enquanto estrutura discursiva ativa no meio social, de uma narrativa sobre o carter distintivo do humano em que determinada vitria sobre (ou certo abandono da) animalidade tem um papel central (Stoczowski, 1994, Ingold, 1995, Sahlins, 2007; Schaeffer, 2009). Nas discusses enfocadas pelo presente trabalho, o carnivorismo aparece, muitas vezes, como o dispositivo agenciador desta mudana de status ontolgico, tanto para o bem ou para o mal: o consumo de carne encarado ora como elemento desencadeador de progresso (biolgico e moral) da espcie, ora como princpio de degenerao do gnero humano, dependendo do ponto de vista de quem mobiliza a narrativa evolucionria. Em relao aos demais temas animadores das discusses sobre carne, a narrativa da hominizao parece constituir-se, muitas vezes, como a ultima ratio que subjaz a todos os demais fluxos discursivos quando estes se atualizam sob a forma de cadeias de justificao: se comer carne indispensvel para a sade, porque nossos corpos foram constitudos filogeneticamente assim; aos animais que consumimos como alimento, os predamos porque co-evoluiram com a nossa espcie, e co-evoluiram justamente pelo fato de serem predados; a carne um alimento viril porque remete caa como
8 Tomo emprestada aqui a distino proposta por Ingold (1995) entre humanidade [humanity], como condio moral, e espcie humana [human kind], como tipo biolgico, para diferenciar estas duas instncias. 20
atividade originria dos indivduos do sexo masculino no perodo pr-histrico; entre outras associaes do tipo - associaes que os crticos ao consumo de carne tambm no hesitam em inventar imagem e semelhana de suas convices. Por inveno, no deve ser compreendida a forja de uma proposio ilegtima ou inconsistente, fantasiosa, mas, ao contrrio, o processo que conduz ao desenvolvimento e ao refinamento de um argumento. Esta uma acepo do conceito derivada da inventio da arte retrica, tal como herdada de Aristteles, Ccero e Quintiliano. Trata-se da busca, entre os elementos disponveis ao discurso, daqueles atravs dos quais se consegue ser persuasivo em uma determinada circunstncia discursiva. Neste sentido, importante ressaltar, lembrando Wagner (2010) que o mundo natural, palco da filognese humana e das nossas relaes de predao alimentar, tambm pode ser objeto de uma inveno, j que dispositivos ocidentais como a cincia (e os usos sociais desta) parecem introduzir sistema na natureza e depois se deleita(m) em descobri-lo ali, (p. 125). De acordo com Ingold (2000), assim como os humanos possuem uma histria das suas relaes com os animais, tambm os animais possuem uma histria da sua relao com os humanos. No entanto, apenas os humanos constroem narrativas desta histria. Em outras palavras, somente os humanos inventam, no sentido acima exposto, histrias e narrativas sobre sua relao com os animais. Tambm neste caso ocorre uma divergncia entre os dois coletivos aqui enfocados (defensores e crticos da carne), pois uns inventam uma narrativa na qual os animais so vtimas de um sistema exploratrio, e outros inventam uma narrativa em que esta explorao necessria e at mesmo legtima desde o prprio ponto de vista do animal. Tal como coloca Serres (2003, p. 37), os que comem nossa carne obtm uma vantagem decisiva se conseguem nos persuadir de que esto nos ajudando. Mas, para no adiantar mais pontos do trabalho que se segue, faz-se necessria uma breve exposio da estrutura dos captulos da dissertao. No Captulo 1, exponho a situao etnogrfica disparadora dentro de suas instncias e circunstncias: a palestra Pecuria Brasileira: desvendando mitos. Como pano de fundo desta situao etnogrfica especfica, descortina-se o grande evento da pecuria de corte nacional, a FEICORTE. No Captulo 2, a partir de uma fala especfica de um dos palestrantes, desenvolvo aspectos concernentes ao carnivorismo como 21
regime alimentar e estrutura de comensalidade, especialmente na sociedade brasileira contempornea, evocando o auxlio de autores que se dedicaram, direta ou indiretamente, antropologia da alimentao. No Captulo 3, exploro o fluxo discursivo que se estrutura em torno de narrativas evolucionrias para defender a pertinncia ou no do consumo de carne para a dieta humana, tal como exposto anteriormente. Deste manancial discursivo sobre a evoluo humana, brotam tambm questes de gnero, corpo e sade necessrias de serem pontuadas. Na sequencia, no captulo 4, desenvolvo uma reflexo sobre o que pode estar em jogo, para os produtores de carne, quando formulam uma narrativa positiva sobre as relaes humano-animais ensejadas por sua atividade. desta narrativa que tomo elementos para compreender o que parece ser um animal para uma sociedade que vive da sua predao, oscilando entre o sujeito e o objeto. Por fim, na concluso, procuro re-amarrar os distintos fluxos discursivos originados da situao etnogrfica disparadora, a fim de auxiliar na elucidao, ainda que provisria, do que afinal est em jogo quando produzimos e consumimos carne, sobretudo no contexto brasileiro contemporneo. Mais do que concluses, prefiro compreender este re-amarramento como a formulao de hipteses de segunda ordem, empiricamente ilustradas 9 . Do que se depreende dos discursos inventados por quem a produz, o ciclo da carne indica se constituir como uma espcie de consumo produtivo (Marx, 2011; Fausto, 2001, 2002; Ingold, 2011), ligeiramente diferente da narrativa mais ou menos generalizada deste processo como algo que comea no pasto (produo) e termina no prato (consumo). Em outras palavras, como algo que decai ou se dissipa at a aniquilao total, imagem que se refora pelo fato da produo industrial de carne se dar atravs de verdadeiras linhas de desmontagem (Dias, 2009). O que ocorre aqum do pasto e alm do prato tambm so dimenses importantes: a carne, bem da verdade, no surge como um actante - no sentido de Latour (1994, 2004, 2009) - somente depois que o animal abatido. E tampouco se esgota, como princpio agentivo, ao ser incorporada, consumida, pelo organismo humano. Uma vez consumida, a carne continua produzindo efeitos dos mais diversos,
9 Sigo aqui, novamente, uma prescrio de Florence Weber (2009, p. 61): uma das caractersticas da pesquisa de campo etnogrfica a de ser antes um fator de transformao de hipteses do que um dispositivo para confirm-las ou invalid-las. 22
tanto dentro quanto fora dos sujeitos. E principalmente: entre eles. As pginas seguintes procuraro elucidar como isto ocorre.
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1 - VITRINES DA CARNE: NOTAS ETNOGRFICAS SOBRE EVENTOS AGROPECURIOS
Os nuer tm tendncias para definir todos os processos e relacionamentos sociais em funo do gado. Seu idioma social um idioma bovino. Evans-Pritchard, Os nuer (2008, p. 27) Porque ela [a pecuria] ainda est a, idntica ao passado, nestas boiadas que, no presente, como ontem, palmilham o pas, tangidas pelas estradas e cobrindo no seu passo lerdo as distncias imensas que separam o Brasil; realizando o que s o aeroplano conseguiu em nossos dias repetir: a proeza de ignorar o espao. Caio Prado J r., Formao do Brasil contemporneo ([1942] 2011, p. 196)
Figura 2: FEICORTE, 2012 (Foto: Caetano Sordi)
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J unho de 2011. A cidade de So Paulo, com seu infinito horizonte urbano, marcado pela presena quase opressiva de enormes edifcios e vias automotivas expressas, parece se configurar, primeira vista, como a anttese mais bem acabada do universo dito rural. Do terminal metropolitano do J abaquara, onde desembarco da linha 1 do metr, at o Parque de Exposies Imigrantes, meu destino final, interpe-se um emaranhado de ruas e pequenas vielas prprias de um subrbio cinzento, metropolitano, abruptamente interrompido, na sua fachada oeste, pelo enorme e agressivo vinco produzido na paisagem pela rodovia homnima ao parque, sobre a qual cruzo atravs de um altssimo viaduto. Os rudos so todos prprios do universo urbano: motores, aceleradores, ambulncias, buzinas, helicpteros. Os odores, tambm: escapamento, fumaa industrial, asfalto novo e recapado, lixo. Do outro lado, ergue-se uma bem circunscrita e delimitada mancha verde em meio ao universo predominantemente cinza: o Parque do Estado, que alm de abrigar o referido centro de exposies, tambm alberga o J ardim Botnico de So Paulo e seu J ardim Zoolgico. Supostas provncias de natureza em meio civilizao. O animal mais improvvel de se deparar num contexto como este uma vaca - relegada, de acordo com nosso imaginrio mais comum, a um buclico e verdejante ambiente rural, da qual a rodovia dos Imigrantes e o terminal do J abaquara, o viaduto e seus pilares de concreto, as paredes e muros pichados do subrbio homnimo, constituir-se-iam como seus antemas quase perfeitos. A temporalidade da vaca - sua lenta pacincia bovina - no parece ter lugar na atmosfera dinmica, industrial, imediatista, de So Paulo. Lugar de vaca tampouco no zoolgico, logo ali frente. Este o espao prprio daquelas espcies consideradas exticas, distantes, que se apresentam, neste mesmo espao, sob uma forma muito especial de magia metonmica na qual o indivduo, devidamente catalogado e separado dos demais, aparece como eidos de toda uma espcie, seu modo de ser e de ser-percebido pelo mundo humano: a jaula do macaco, e no de um macaco; o aqurio da cobra, e no de uma cobra. Nada mais trivial e repetitivo, pouco fabular, que uma vaca. A ideia de rebanho, firmemente ancorada na imagem dos bovinos, o suprassumo metafrico da ideia de homogeneidade e massificao. Do outro lado do viaduto, sei que se concentram centenas, qui milhares, 25
destes animais bovinos; especialmente trazidos desde o mundo rural para o seu grande momento na metrpole: sua exposio anual, a FEICORTE. Abreviao para Feira Internacional da Cadeia Produtiva da Carne, este o maior evento indoor do setor pecurio de corte do mundo, ocupando anualmente os enormes pavilhes do Parque de Exposies Imigrantes. Ao todo, so 50.000m 2 de rea que, alm da FEICORTE, tambm sediam a FEILEITE (da cadeia do leite) e a FEINCO (caprinos e ovinos). As trs exposies so organizadas pela empresa Agrocentro. Em 2011, primeiro ano que a visitei, na sua 17 edio, a FEICORTE contou com mais de 4.000 animais, de 20 raas bovinas, caprinas e ovinas. Nesta ocasio, lembro-me de ter estranhado a ausncia de sunos e aves, pois alm dos animais j citados, havia tambm alguns cavalos. Das 20 raas bovinas, 13 tiveram competies e foram realizados oito leiles. Alm disso, 250 empresas estiveram l representadas, das mais diversas naturezas: entidades representativas do setor, rgos de desenvolvimento e pesquisa, frigorficos, mquinas e implementos, laboratrios genticos, sade e nutrio animal, bancos e rgos financeiros, entre outros. O pblico afluente foi de mais ou menos 25 mil pessoas nos cinco dias de feira (13-17/06), superando os nmeros do ano anterior. De acordo com seus organizadores, o evento se destaca como principal vitrine do setor, referncia em qualidade, pesquisa, tecnologia, equipamentos, produtos e servios. Evento tradicional, com perfil moderno, a FEICORTE transforma So Paulo na capital mundial da pecuria de corte, superando as expectativas a cada edio. A feira oferece excelente oportunidade para contatos, para o fortalecimento da imagem institucional e para a realizao de negcios e investimentos. Tambm possibilita o intercmbio de experincias sobre a cadeia produtiva da carne bovina, permitindo acesso a um alto nvel de informaes, alm de propiciar discusses de assuntos estratgicos com especialistas nacionais e internacionais. 10
No segundo ano em que a visitei (2012), os nmeros prosseguiram impressionantes: 30 mil visitantes; 22 raas de bovinos, ovinos, caprinos e equinos; 14 leiles e julgamentos de 13 destas 22 raas; negociaes na casa dos milhes de reais;
10 Disponvel em http://FEICORTE.com.br/index.php?p=view&id=1, consultado em 21 de agosto de 2012. 26
centenas de reses comercializadas; um sem nmero de palestras e workshops realizados. Em seu site na internet, a 18 edio da feira foi saudada como se destacando por seu pblico selecionado, a elite do setor agropastoril nacional: Dcio Ribeiro dos Santos, diretor do Agrocentro, empresa organizadora da FEICORTE, ressalta a presena de pblico altamente selecionado no evento que foi prestigiado por pesquisadores, estudantes, pecuaristas, grupos de estrangeiros, lideranas e autoridades. Dentre os visitantes, destacamos a visita do ministro da Agricultura Mendes Ribeiro Filho, que participou de reunio com lideranas de vrias entidades representativas do agronegcio brasileiro. Foi importante para o setor apresentar as reivindicaes que afetam diretamente a cadeia produtiva da agropecuria, avalia. Carla Tuccilio ressaltou o alto nvel dos eventos paralelos, como congressos, workshops e palestras. A cada ano, a feira melhora ainda mais. 11
Nesta edio da feira, tambm se realizou, em paralelo exposio de animais propriamente dita, o Congresso Internacional da Pecuria de Corte, ao qual afluram, como palestrantes, nomes de peso vinculados ao mundo agroempresarial nacional. A conferncia magna do congresso foi proferida pelo ex-ministro da agricultura no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) Alysson Paulinelli, o qual versou sobre as lies histricas e perspectivas para a agropecuria brasileira. Ao fim do evento, o ex-ministro foi homenageado, sendo apresentado como pioneiro da revoluo verde 12
e da modernizao do campo no Brasil. Em 2012, o Agrocentro e seus parceiros procuraram descentralizar a feira atravs do chamado Circuito FEICORTE, evento itinerante que reproduziu em quatro capitais do pas 13 um pouco do que ocorre anualmente em So Paulo. Ao contrrio de outras feiras agropecurias que visitei sobretudo a EXPOINTER e a FENASUL, que ocorrem anualmente no Parque de Exposies Assis Brasil, em Esteio (RS), marcadas por uma esttica regionalista e ruralizada, prpria do gauchismo e ancorada em certo aspecto rstico e tradicional a FEICORTE destaca-se
11 Disponvel em http://FEICORTE.com.br/index.php?p=noticias_view&id=335, consultado em 21 de agosto de 2012. 12 Processo de modernizao tcnica vivida pela produo primria de pases menos desenvolvidos ao longo da segunda metade do sculo XX. Caracteriza-se pelo uso intensivo de fertilizantes, agrotxicos e outros insumos qumicos, assim como pelo melhoramento gentico de sementes e pela mecanizao da produo. 13 Cuiab (MT), Salvador (BA), Goinia (GO) e Campo Grande (MS). J untamente com o Estado de So Paulo, representam os principais plos de produo de gado de corte, onde se concentram mais de 55% do total das cabeas de gado de corte do pas. 27
como um ambiente fortemente assptico, composto por divisrias de acrlico, uma arquitetura efmera arrojada e um cdigo de vesturio eminentemente empresarial (fig. 3).
Figura 3: aspecto geral da FEICORTE, edio 2012 (Foto: Caetano Sordi). O vnculo com o campo assinalado por alguns traos especficos, como a onipresena musical do ritmo sertanejo; algumas menes esttica rural na arquitetura e na decorao dos stands, como porteiras e bretes simulados (de plstico ou compensado de madeira), barris de pinga e cangas-de-boi penduradas; alm de certa fuso entre o referido vesturio bsico empresarial terno e gravata, palet, tailleur com elementos oriundos da fazenda, como chapus de caubi, fivelas de cinto ostensivas, varas de tocar boiada. Sobre este objeto, bastante comum entre os frequentadores, transcrevo o dirio de campo: Notei que diversos homens (no me recordo de nenhuma mulher) carregavam consigo uma espcie de bengala muito fina de madeira clara, mais grossa na ponta que entra em contato com a mo. Perguntei a um rapazinho de posse de uma destas bengalas o que era aquilo. Ao que ele me respondeu, primeiro com surpresa voc quer saber o que isso?, e depois com gentileza, disse que se tratava de um instrumento muito comum entre fazendeiros, que se valem dele, 28
dentre outras funes, para cutucar e encaminhar os bois. Como traz a feira pra dentro de So Paulo, traz a vara tambm, disse o garoto, que depois foi juntar-se a outros homens mais velhos tambm de posse do instrumento.
O aspecto geral da feira causou-me a sensao paradoxal de se estar visitando um enorme shopping center, ainda que povoado de animais de porte, os quais mugem, balem, defecam, urinam e exalam odores bastante incomuns para minhas experincias cotidianas. Soma-se a isto certa onipresena da biotecnologia, seus dispositivos, agentes e discursos, pois boa parte dos pavilhes destinada aos stands da indstria farmacutica, da indstria da nutrio animal e aparelhagem agropecuria (fig. 4). Assim descrevo este aspecto da feira e minhas impresses a respeito no dirio: Os stands, modernos e pasteurizados, lembrando um shopping Center, avizinham-se dos currais cheios de feno e dos boxes impregnados de odor animal. Alguns animais, mais jovens, perambulam para alm dos seus locais de exposio e adentram alguns metros na rea humana, explorando, sua maneira, as estranhas formas das coisas dos seres humanos aqui e acol. Um bezerro branco avana em direo a um stand vazio e comea a lamber o seu suporte. Isso causa certa simpatia nas pessoas ao redor, que se sentem autorizadas a tratar o bicho maneira de um pet.
Figura 4: Stand de companhia farmacutica na FEICORTE, edio 2012. Repare-se o lema: science for a better life cincia para uma vida melhor. Grande parte das mulheres da feira se encontra alocadas nos servios de vendas e recepo. (Foto: Caetano Sordi) 29
Os bovinos ocupam as pores laterais do pavilho central, e so ordenados segundo a raa e o proprietrio. No corredor ao centro deste pavilho, localizam-se os stands das grandes associaes de criadores e produtores (ABCZ, Angus, etc.), alguns deles acompanhados de uma ou outra baia onde ficam reses mais importantes ou destacadas. Aos caprinos, ovinos e cavalos so relegadas posies secundrias, logo que se entra no Parque de Exposies. Os momentos em que uma rs colocada no centro das atenes, como nas premiaes, costumam causar algum desconforto nos animais, aparentemente incomodados com a efervescncia humana a sua volta. Nas trs feiras visitadas (EXPOINTER, FENASUL e FEICORTE), estes momentos eram acompanhados musicalmente pelo tema da vitria popularmente conhecida no Brasil como a msica do Ayrton Senna e forte exultao por parte de seus proprietrios e manejadores humanos. Eis a descrio de uma destas cenas, ocorrida na FENASUL de 2011: O anncio da vaca vencedora seguiu-se de uma aglomerao de familiares do criador, funcionrios, amigos, colegas, fotgrafos e curiosos ao redor da grande campe, conduzida ao centro do piquete. A vaca parecia observar tudo maneira pachorrenta das reses, esperando pacientemente cada uma das conformaes possveis de fotografia (agora os amigos! agora com o juiz! vai l com o pai, fulana!) se consumar. Um senhor idoso, fotgrafo, ficava a alguns metros da vaca fazendo sinais com as mos para o animal, com o objetivo de atrair o seu rosto naquela direo. Seu baile mimtico, pontuado por mugidos e outras onomatopias estranhas, era realmente digno de nota, e vrias pessoas riam do seu comportamento. (dirio de campo)
A proximidade do pblico com os animais, principalmente por parte das pessoas visivelmente alheias ao mundo rural, mediada por certa mistura de desconfiana, receio e curiosidade. Na edio de 2011 da FEICORTE, observei uma faxineira perguntando a um tratador se poderia limpar por aqui... se no tem perigo dele [o animal] me dar um coice. Reao, alis, muito frequente, que eu mesmo havia esboado alguns meses antes em outra oportunidade. Em meu dirio de campo da FENASUL de 2011, descrevo a seguinte situao: Achei digno de nota o modo com que insiders e outsiders (eu includo na categoria) se portavam frente aos animais. Pessoas visivelmente mais acostumadas com a lida destas exposies transitavam com muito mais naturalidade e desenvoltura pelo pavilho, em franca e ntida proximidade com os animais. Visitantes de fora receavam 30
avanar nos corredores dos bovinos e olhavam tudo com muita curiosidade, no raro fotografando o momento como algo inusitado. Do dilogo de um casal adulto-jovem, passeando entre as vacas Jersey, ouvi algo como: manda essa foto pra tua me, ela no vai acreditar!. Crianas demonstravam um misto de atrao e reserva. Comecei a me dar conta que eu mesmo demonstrava sinais de receio, na medida em que reparei que no encarava os animais maiores diretamente nos olhos e me sentia muito mais a vontade entre as ovelhas (aprisionadas, menores e evocadoras de mais condescendncia) do que entre as vacas e os bois. Tambm me senti um pouco ridculo ao notar que evitava ficar atrs das vacas por uma espcie de reao espontnea contra supostos coices o que pode ser esperado de um cavalo, mas no de uma vaca. Com o tempo, e com mais segurana, comecei a observar melhor os bois e seu lento e pacfico ritmo para tudo: comer, mugir, andar e se levantar. Evocou- me muito a ideia de algo pesado, terrestre, pacfico. At me afeioei.
H um padro que se repete nestas rpidas e receosas aproximaes: as pessoas se aproximam com cautela dos animais para tirarem fotos inusitadas de si prprias com as reses e, para sua alegria, sobretudo das crianas, alguns bezerros permitem serem afagados na testa, logo abaixo dos olhos (fig. 5). Animais maiores tambm se deixam afagar pelos visitantes, mas a aproximao sempre cautelosa.
Figura 5: aproximao cautelosa com zebu na FEICORTE edio 2011. (Foto: Caetano Sordi) 31
Tambm na edio de 2011 da FEICORTE, um senhor idoso, visitante, estava sentado entre as enormes reses zebunas da raa Sindi. Ao ser questionado por mim se era o dono daqueles animais, respondeu-me que no, mas que era um apaixonado [por bovinos]. Em suma, percebe-se imediatamente quem so os visitantes que possuem certa educao da ateno (Ingold, 2000) na interao com os bovinos - o que no pode ser aplicado, de maneira nenhuma, para o caso do prprio etngrafo. J amais tive proximidade com o universo rural, e tampouco intimidade com animais de produo. At ento, minha interao mais direta com animais havia se restringido s espcies de companhia, notadamente ces e gatos, e, muito excepcionalmente, alguns cavalos. Assim, o processo de aproximao com o universo da carne tambm se configurou como uma verdadeira alfabetizao com seu modo de vida e categorias prprias, atravs das quais a prpria atividade agropastoril e suas relaes com o mundo circundantes so construdas e significadas. A familiarizao com este parafraseando Evans-Pritchard (2008) - idioma bovino, foi um processo bastante lento, ainda inacabado. Ao longo da pesquisa, fui paulatinamente aprendendo a distinguir as raas e estirpes, bem como a aplicao de conceitos e categorias at ento desconhecidas, como precocidade, rusticidade, entre outras. As feiras agropecurias, como principais ns de rede do mundo pastoril (Wilkie, 2010), conformaram-se neste sentido como um lcus privilegiado para a observao de campo, pois em poucos e concentrados dias o idioma bovino era verbalizado e atualizado livre e intensamente. tambm uma ocasio em que a cadeia produtiva, nos seus vrios elos, exprime sua visibilidade. As pessoas esto propensas a serem observadas e questionadas; tornam-se, bem por isso, mais acessveis para a abordagem de visitantes e curiosos. De maneira progressivamente diferencial, fui distinguindo primeiramente as caractersticas prprias de taurinos (Bos taurus taurus) e zebunos (Bos taurus indicus). Depois, fui conseguindo classific-las em suas declinaes raciais: Angus, Hereford, Charols e demais variedades europeias de um lado; Sindi, Nelore, Brahman e demais variedades indianas do outro. Os cruzamentos entre ambos tambm foram aparecendo, assim como as mestiagens nacionais: Brangus, Canchim, Simbrasil, etc. Igualmente familiar tornou-se a distribuio geogrfica destas raas no territrio brasileiro e suas 32
peculiaridades regionais: o predomnio das estirpes zebunas no Centro-oeste e a especializao cada vez mais forte do Pampa nas reses europeias. Como argumenta Leal (2011), as categorias utilizadas pelos pecuaristas para falar de seus bois frequentemente se misturam com aquelas mobilizadas para se referirem a si prprios e seu grupo social. Uma boa gentica um atributo aplicvel tanto para seres humanos quanto para animais, principalmente s estrelas do milionrio (e fortemente tecnicizado) mercado do gado de elite. Nas feiras, e principalmente na FEICORTE, alguns animais recebem destaque especial, o que se aplica ora raa, ora a alguns indivduos em particular. Do dirio de campo, escrevo sobre um espcime em particular: Da estirpe Canchim, destaca-se o macho Gato LS, propriedade da fazenda Calabilu (Capo Bonito, SP). Gato era o primeiro animal exposto no box 06. Pachorrentamente deitado, com seus 1.226Kg sobre o cho, realmente um animal digno de nota, enorme de gordo e prximo do que poderia ser classificado como uma besta. Alm do tamanho colossal, Gato possui vrias caractersticas prprias de sua ascendncia zebuna, que so ligeiramente mais excntricas que aquelas das raas europeias. Acima de Gato havia um enorme pster com as suas faanhas, dentre as quais: dez vezes Grande campeo, 27 vezes Campeo de Touro e filhos e 18 vezes campeo de Prognie e pai. Alm disso, a revista da Associao de Canchim, em reportagem especial denominada A frmula dos campees, contm uma grande foto de Gato e seu criador, informando que o animal pai de 832 filhos espalhados por 29 criatrios, sendo que 69 deles so premiados.
E tambm do dirio de campo, agora sobre uma raa inteira destacada na exposio: ainda no corredor de acesso (este, por sua vez, pavimentado com um tapete vermelho), os visitantes so recepcionados por vrios animais da linhagem Wagyu (originria do Japo) e produtora do chamado Kobe beef, considerada a mais saborosa e sem dvida a mais valorizada carne do mundo. As reses waygu expostas na entrada da feira pertencem fazenda Yakult, que tambm possui um stand promocional junto aos animais. Neste stand, h uma geladeira de porta transparente que armazena os preciosos cortes para venda, expondo tambm uma pequena lista de preos (estes, por sua vez, nada pequenos). O corte mais caro, contra-fil Premium beef, custa R$ 350,00 o Kg. Os cortes mais baratos oscilam entre R$ 70 e 80. Segundo um orgulhoso funcionrio da fazenda Yakult, embora de fora [o Waygu] no parea nada de mais, possvel faturar com um animal de peso mdio at R$ 10.000, coisa que no se retira de um 33
Red Angus e outros animais aparentemente mais bem fornidos: de um Angus[...] d pra tirar uns quatro, cinco mil.
Desde o incio, nota-se uma pronunciada diviso de gnero nos papis representados pelo staff da FEICORTE, sendo a lida com os animais uma funo visivelmente masculina e a recepo e os servios, bem como o atendimento nos stands, uma funo manifestadamente feminina (e jovem). O pblico circulante composto, em sua maioria, de homens de meia idade, predominantemente vestidos para negcios. Alguns sotaques e modos de falar denotam o pertencimento de muitos visitantes aos interiores do Brasil, mas a profuso de iPads, smartphones, notebooks, por sua vez, denota sua forte insero nos padres do mercado global e do consumo tecnolgico. H de se destacar, igualmente, a forte presena institucional (Faculdade de Veterinria da USP, Secretarias estaduais da Agricultura, CNA, etc.) e financeira (Banco do Brasil, Bovespa, etc.) entre os stands. Chama muita ateno as recorrentes menes ao Brasil e nacionalidade por toda parte, revestidas de certo tom ufanista e grandiloquente. De um banner afixado logo acima de uma das pistas de competio l-se: solues do tamanho do Brasil. Mais diante, em um stand de medicamentos para animais, l-se: Pecuria forte, Brasil forte(fig. 6). O eixo central do pavilho de exposies, por sua vez, decorado com bandeiras de todos os estados brasileiros. como se a feira nos dissesse, indiretamente, que a atividade pecuria une o territrio nacional (fig. 7).
Figura 6: stand de medicamentos homeopticos na FEICORTE edio 2011. (Foto: Caetano Sordi) 34
Figura 7: eixo central do pavilho de exposies da FEICORTE, edio 2012, com as bandeiras dos estados brasileiros. (Foto: Caetano Sordi) O pavilho mais ao fundo de todos (que tambm d acesso s salas onde ocorrem as palestras, workshops e conferncias) destinado iniciativa denominada Espao Carne, descrita pelos organizadores como uma ao focada na demonstrao dos trabalhos realizados pelas empresas, pecuaristas e todos os envolvidos na cadeia produtiva, na busca pela excelncia da carne brasileira 14 . Neste espao, encontram-se reunidas as principais empresas que representam os diversos elos da cadeia de produo de carne, visando o aumento do consumo, promoo dos conceitos de sustentabilidade na pecuria de corte e divulgao das qualidades da carne 15 . Em termos micos, a produo de carne descrita como possuindo etapas dentro da porteira e fora da porteira, isto , respectivamente relacionadas com a criao e preparao dos animais, de um lado, seu abate e transformao em carne, de outro. H uma forte presso no universo da carne para que os elos desta cadeia, s vezes muito distantes geograficamente, se tornem mais harmnicos em sua relao mtua. Como argumentarei adiante, esta presso relaciona-se com a ideia de que todos os riscos (atuais e potenciais) engendrados pela pecuria podem ser resolvidos com a reconstruo e boa concatenao em larga escala de seus ciclos de produo e consumo, desde que mediada pelo uso de novas e sofisticadas tecnologias limpas (Hanningan,
14 Disponvel em http://FEICORTE.com.br/index.php?p=view&id=12, consultado em 24 de outubro de 2012. 15 Idem. 35
2009; Spaargaren e Mol, 1992), donde a repetio, neste contexto, do chamado mantra da sustentabilidade (Zhouri e Oliveira, 2012). NA FEICORTE, o Espao Carne, alm de concentrar os stands destinados degustao, responsabiliza-se pela concretizao espacial deste ideal de harmonia, modernidade e transparncia da cadeia. a parcela da feira que mais se aproxima ideia de uma vitrine da pecuria nacional como atividade dinmica e moderna, mas ancorada em determinada tradio que garante seu diferencial em relao carne produzida em outros pases e sua qualidade natural. 1.1 O Caminho do Boi e o Caminho da Carne Na edio de 2011, uma iniciativa particularmente interessante se destacava no Espao Carne, denominado Caminho do Boi 16 . Tratava-se de uma didtica demonstrao de como deve ser o chamado manejo racional, prtica cientificamente mediada cujo objetivo reduzir o nmero de contuses e o nvel de estresse das reses nas suas horas mais crticas. Ao longo do percurso, diversos banners salientavam ao produtor as vantagens de se adotar o sistema ali exposto, demonstrando, com muitos dados estatsticos, as perdas de produtividade e lucratividade provocadas pelos mtodos tradicionais. Transcrevo a experincia tal como relatada do dirio de campo: Assim que abre a porteira, somos colocados no brete coletivo. Uma imensa p (devo chamar assim no desconhecimento do termo especfico) nos empurra em direo a outra porteira. O mediador explica que no manejo racional, diferentemente dos mtodos mais rudimentares, esta p substitui os arpes e varas utilizados nos abatedouros tradicionais, apontando para uma televiso de plasma onde demonstrado o manejo antigo. As imagens parecem intencionalmente feitas para chocar. Logo em seguida, cada visitante encaminhado individualmente ao tronco de conteno, que conduz, na sequencia, ao estgio onde os bois so pesados e identificados. Neste momento, um totem de informaes pergunta quanto custa esse percentual a mais de hematomas para o seu negcio? (...) Exposto ao stress e s batidas no desejveis, o boi acabar produzindo uma carne pssima, 12 milhes de kg de carne so jogados fora no Brasil por hematomas na carcaa, informa outro totem. O stress pr-morte, igualmente, produz toxinas que acabam
16 O caminho era promovido por uma empresa do ramo de conteno e pesagem animal. 36
depreciando a qualidade da carne, o que ser sentido no bolso do produtor e, em maior medida, na balana comercial nacional (...) O momento crtico do circuito a chegada no box de atordoamento, isto , o local onde as reses so mortas com um golpe na testa. Ao contrrio do que eu ingenuamente imaginava, percorrer o caminho do boi, como um boi, termina neste estgio. Ao chegar o momento da morte, somos colocados de volta na posio do manejador humano, que, atravs de um painel de manivelas, controla toda a operao, desde fora. O perspectivismo limitado, portanto, ao pr-abate. interessante notar tambm que vemos o box desde cima, isto , de um ponto de vista nada prximo daquele do animal que o experimenta. Em todo caso, foi a primeira vez que me encontrei na presena do local/dispositivo que abate os animais: um ato que, no manejo racional (ou abate humanitrio) feito basicamente atravs de manivelas. (...) O boi entra por uma portinhola, empurrado para frente por uma p, sua cabea afixada por uma pescoceira (na lateral) e uma bandeja (na vertical) que permitem ao abatedor mais agilidade e instantaneidade na hora do golpe. A pescoceira e a bandeja evitam que o animal balance sua cabea para todos os lados, suprindo uma dificuldade dos mtodos tradicionais. Assim que dado o golpe certeiro, uma das paredes laterais do box se abre e o boi despejado para o lado, liberando espao para o prximo. (...) Donizetti foi meu instrutor de abate racional. (...) comunicou que havia estado recentemente no Rio Grande do Sul, visitando as plantas da Marfrig na Campanha e no oeste do Estado. Gentilmente, convidava as pessoas a operar as manivelas. Depois, manejava ele mesmo, nos 13 segundos (apenas!) que se possvel de abater uma res. Ao final, diz que o manejo racional para o bem estar dos dois [animal e humano]. Assim que pergunto sobre a insalubridade do trabalho de abate (para os humanos), Donizetti assente. Um consultor do SEBRAE, logo atrs, mete-se na conversa e diz , da muita causa trabalhista.
De fato, por conta do seu frentico ritmo industrial, o sistema-carne figura entre as cadeias produtivas que comportam mais riscos para os trabalhadores. De acordo com o Ministrio da Previdncia Social, as atividades relacionadas ao setor possuem grau de risco trs vezes maior em relao a outras atividades (MPS e MTE, 2009). Na desossa de frango, a chance de um funcionrio desenvolver tendinite 743% maior a de qualquer outro trabalhador. Nas regies onde se concentram frigorficos, grande parte dos processos que correm na J ustia do Trabalho diz respeito a esta atividade 17 . Por conta desta e outras alegaes de risco (Beck, 2010) envolvendo etapas da cadeia da carne, o setor tem em alta conta iniciativas pedaggicas e de esclarecimento como o
17 Informao disponvel em: http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1869, consultado em 21 de maro de 2012. 37
Caminho do Boi, cuja existncia parece apontar para um objetivo duplo: por um lado, fomentar uma imagem mais positiva e transparente do setor perante a sociedade; por outro, instruir os produtores rurais a respeito da necessidade de adoo destas prticas como oportunidade de negcio e diferenciao. Na edio de 2012, o Caminho do Boi se expandiu e se tornou o Caminho da Carne: uma representao mais completa e simplificada de toda a cadeia produtiva, e no apenas do momento do abate. Enquanto no Caminho do Boi era proposta uma espcie de experincia perspectivstica (colocar-se no lugar do animal ou do produtor), na verso ampliada do circuito, o Caminho da Carne, era incentivado um verdadeiro exame de conscincia por parte do produtor, que recebia no incio do trajeto uma pequena planilha atravs da qual lhe era possvel realizar uma auto-avaliao da sua prpria situao em contraste com o modelo ideal ali representado. O Caminho do Boi enfocava o momento crtico do abate, pontuando o circuito com informaes e dados sobre os danos qualidade da carne (e ao bolso do pecuarista) derivados do modelo tradicional. O Caminho da Carne, em contrapartida, propunha uma viso mais sistmica, articulando todos os passos da cadeia produtiva, do qual o abate apenas um momento. Os esclarecimentos centravam-se agora na importncia do agronegcio para o desenvolvimento nacional e da pecuria de corte para o agronegcio, bem como sobre o potencial brasileiro de produzir protena animal com qualidade para o resto do mundo. Logo na entrada, lia-se: Faa o caminho da carne que d lucro e fortalece o Brasil. Outro banner, j dentro do circuito, informava que a cadeia da carne corresponde a 7 milhes de empregos, 6,5 milhes de reais em impostos arrecadados, e que 22,15% do PIB brasileiro do ano anterior (2011) havia sido gerado pelas distintas cadeias do agronegcio nacional. Outra diferena entre os dois circuitos era a presena de alguns animais no Caminho da Carne, o que no havia em absoluto no Caminho do Boi. Estes, l se encontravam para simular um confinamento modelo, bastante assptico, como todo o resto da feira. O confinamento modelo servia para ilustrar, na prtica, as alegadas vantagens da criao intensiva 18 . Informaes adicionais sobre sanidade e bem-estar
18 Alguns elementos apontam para a existncia de uma forte presso no agronegcio brasileiro a favor da intensificao da pecuria de corte. Atualmente, a maior parte dos confinamentos brasileiros dedica-se complementao da engorda na estao seca. A maior parte do rebanho criada extensivamente. A 38
animal, prticas sustentveis de manejo do sistema lavoura-floresta-pasto, nutrio animal e financiamento rural tambm eram oferecidas, conformando uma exposio didtica e miniaturizada dos diversos ciclos da cadeia da carne. Mas que cadeia, afinal de contas, esta? 1.2 A Centralidade da Carne: Conjunturas globais e locais
O Brasil o segundo maior produtor de carne bovina atrs dos Estados Unidos, sendo simultaneamente o maior exportador mundial deste produto. O pas tambm lidera o ranking dos exportadores de frango e est em quarto lugar entre os exportadores de carne suna. Em 2011, foram abatidas 21.776.467 cabeas de gado bovino no pas, quase um boi para cada dez habitantes. 19 Tambm neste ano, o rebanho nacional atingiu a marca de 212.797.824 cabeas (IBGE, 2011). Em suas projees, o MAPA considera que O pas dever manter a liderana de principal exportador de carnes, bovina e suna, bem como manter seu terceiro ou quarto lugar nas exportaes de carne suna. Em 2018/19 as relaes Exportao do Brasil/Comrcio mundial, devem representar: Carne bovina, 60,6% do comrcio mundial; carne suna, 21% do comrcio mundial; carne de aves, 89,7% do mercado mundial (MAPA, 2009, p. 24).
Tambm de acordo com o ministrio, os complexos da protena animal, da soja e sucro-alcooleiro foram os setores que mais contriburam para a o crescimento das exportaes agrrias do pas entre 2004 e 2010. Do montante exportado em 2010, soja, carne e derivados sucro-alcooleiros representaram quase 70% das exportaes agrrias nacionais, dentre os quais 21,4% oriundos somente do setor de carnes (MAPA, 2011). Tambm em 2010, os produtos bsicos somaram 44,6% das exportaes totais, o que faz das carnes um dos principais produtos brasileiros no mercado externo. Em 2011, os produtos bsicos elevaram para 47,8% sua participao na cesta de exportaes nacionais. Para 2012, taxas parecidas se mantm 20 .
expanso dos gros, sobretudo da soja, no entanto, pressiona cada vez mais a pecuria a liberar terras para a agricultura, o que j vem acontecendo de maneira regular desde 1999 (Brando et al, 2005). 19 Disponvel em: http://sigsif.agricultura.gov.br/sigsif_cons/!ap_abate_estaduais_cons?p_select=SIM, consultado em 29 de agosto de 2012. 20 Disponvel em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=1846&refr=608, consultado em 25 de setembro de 2012. 39
Este protagonismo dos produtos de origem animal nas exportaes brasileiras pode ser compreendido como uma das consequncias da reestruturao produtiva nacional ocorrida na dcada de 1990 (Coutinho, 1997; Gonalves, 2001; Laplane e Sarti, 2006; Lisboa, 2009; entre outros). Intensificou-se, a partir desta dcada, uma especializao da pauta de exportaes brasileira, concentrada, em termos de valor, em commodities agrcolas e minerais. O vido mercado chins tem sorvido grande parte destes produtos primrios produzidos no Brasil, seja como insumo para sua cadeia industrial, seja para suprir as necessidades alimentares de sua volumosa populao. H, presentemente, uma intensa discusso a respeito de uma possvel reprimarizao e desindustrializao da economia nacional (Nassif, 2006; DIEESE, 2011), acompanhada, segundo alguns autores, por uma viso triunfalista dos agronegcios: segundo seus intrpretes, a (re)primarizao da economia brasileira tem sido o grande motor do crescimento econmico e ns deveramos agradecer s agroestratgias pela maneira como est se dando (Almeida, 2011, p. 37). A reprimarizao da economia brasileira vem promovendo uma inteno de identificar a pecuria no apenas com o Brasil retrgrado e dos sertes, mas de elev-la uma ideia de nao moderna e agroindutrial (Bruno, 2009; Lewgoy e Sordi, 2012). Iniciativas multissetoriais como a campanha publicitria Sou Agro, lanada em 2011 pela CNA e outros agentes do agromundo, so atualizaes desta inteno. O Estado, por sua vez, parte ativa neste processo, na medida em que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) quem subsidia os macroagentes da atual produo brasileira de commodities, dentre eles os grandes frigorficos (Lisboa, 2009) 21 . Atualmente, o setor de carnes passa por um processo de grandes fuses e formao de grandes complexos empresariais com insero internacional, como JBS Friboi, Marfrig e BrFoods 22 .
21 Como salienta Singer (2012), o programa de 2010 do Partido dos Trabalhadores (PT), que atualmente encabea a coalizo governista no pas, defende que cabe ao Estado aprofundar as polticas creditcias para o setor produtivo por parte do BNDES e apoiar a internacionalizao das empresas brasileiras (p. 123). 22 Em maio de 2012, aps reunio com cerca de 1.500 pecuaristas, a Associao dos Criadores de Mato Grosso do Sul (ACRISUL) e mais oito entidades da cadeia produtiva da carne publicaram a chamada Carta de Campo Grande contra o monoplio dos frigorficos. No documento, redigido para ser entregue Frente Parlamentar da Agropecuria (FPA), os produtores acusam o Governo Federal, atravs do BNDES, de adotar uma poltica de capitalizao dessas empresas, cujas conseqncias seriam a concentrao do setor em poucas mos. De acordo com o documento, A concentrao, alavancada com recursos pblicos, afeta a rentabilidade do negcio pecurio e, consequentemente, dificulta 40
Em paralelo a esta pujana, alguns eventos das ltimas dcadas tm contribudo para o adensamento da averso da carne nas sociedades industriais e o aumento do nmero de adeptos de dietas vegetarianas, sobretudo nos pases do hemisfrio norte e do mundo anglo-saxnico. A crise da Vaca Louca, nos anos 1990, alm de despertar desconfianas sobre a qualidade sanitria da carne, tambm gerou certa repulsa social em relao aos contemporneos mtodos de criao animal: a alimentao de bovinos atravs de rao preparada com restos de seus semelhantes pde ser simetrizada na opinio pblica com uma espcie de canibalismo (Lvi-Strauss, 2009). No contexto brasileiro, para alm destes fatores, tambm contribuem para a consolidao de uma retrica anti-carnvora em setores urbanos as frequentes denncias de trabalho escravo envolvendo a produo pecuria nas regies norte e centro-oeste 23 , o avano do pasto sobre os biomas do Cerrado e da Amaznia, tambm nestas regies (Almeida, 2011; Mesquita, 2011; Costa, 2011; Greenpeace, 2009a, 2009b), alm das ms condies de trabalho existentes no campo da indstria frigorfica. Lisboa (2009) insere a criao de gado de corte no rol de commodities que embora no requeiram demasiada energia, provocam desmatamento, poluio ambiental e esgotamento de recursos hdricos como o caso da soja, da cana de acar, da criao de gado e do eucalipto, competindo entre si e com outras culturas pelo solo barato ou apropriando-se da terra pblica por meio da grilagem, empurrando a fronteira agrcola do pas cada vez mais adiante em meio ao cerrado e Floresta Amaznica (p. 232)
Costa (2011), por sua vez, define a pecuria de corte em sua mais recente frente de expanso (a Amaznia) como uma trajetria scio-tecnolgica de cunho patronal, marcada pelo uso extensivo do solo, pela homogeneizao da paisagem (com alto impacto para a biodiversidade) e pela formao intensa de dejetos. O Greenpeace, por fim, atravs de sucessivos relatrios (2009a, 2009b), tem sido um importante vetor de alegao pblica de riscos (Beck, 2010) envolvendo a produo de carne no Brasil. Em seu detalhado documento sobre o estado do desmatamento em Mato Grosso, a organizao chega a recomendar a adoo de um estilo de vida visando reduzir suas
a sustentabilidade do setor, baseada no trip: ambientalmente correta, socialmente justa e economicamente vivel.Fonte: http://www.acrimat.org.br/noticias/5389, consultado em 29 de agosto de 2012. 23 A criao de gado bovino o segmento econmico mais recorrente na lista suja do trabalho escravo, registro mantido pelo Ministrio do Trabalho e Emprego: 153 em um total de 391 entradas listadas. Fonte: http://reporterbrasil.org.br/listasuja/resultado.php, consultado em 05 de dezembro de 2012. 41
prprias emisses de carbono. Isto pode incluir a reduo na quantidade de carne consumida (Greenpeace, 2009b, p. 15). Na arena internacional, a pecuria bovina passa por uma intensa crise de imagem pblica desde a proliferao de estudos e relatrios tcnicos que estabelecem relaes entre sua atividade e o fenmeno do aquecimento global. De acordo com vrios destes estudos, grande parte das emisses de gs metano na atmosfera proviria das funes excretoras dos animais da pecuria, sendo este setor da economia, juntamente com a indstria pesada e o setor automobilstico, os principais fatores antrpicos no processo de aquecimento do planeta. Alertas a respeito do risco socioambiental envolvido na produo de carne e na criao industrial de animais circulam na opinio pblica internacional pelo menos desde 1992, quando o divulgador ambiental 24 J eremy Rifkin lanou o livro Beyond Beef: rise and fall of cattle culture. Neste mesmo ano, Rifkin e seis organizaes civis, dentre elas o Greenpeace, iniciaram uma campanha miditica encorajando a reduo do consumo de carne vermelha nos Estados Unidos com o objetivo de diminu-lo em 50%. Em 2006, a FAO publicou um famoso relatrio, denominado Livestocks Long Shadow, sobre os efeitos da atividade pecuria no processo de aquecimento global. 25
J untando estas consternaes ambientais com a questo do crescimento demogrfico, a mesma agncia das Naes Unidas passou a aventar a possibilidade de substituio da carne por insetos comestveis [edible insects] em larga escala, incentivando pesquisas e iniciativas a respeito 26 . Trs anos depois, outro documento, produzido por parlamentares verdes da Escandinvia (Holm e J okkala, 2009) tece crticas de cunho ambiental ainda mais agudas indstria da carne, e recomenda explicitamente a adoo do vegetarianismo. Por fim, outro documento redigido na Escandinvia, de responsabilidade do Stockholm Water Institute (SWI), denominado Feeding a thristy world (2012), reitera a alegao de que h um desequilbrio em relao ao consumo de recursos hdricos na balana agricultura/pecuria.
24 De acordo com Hanningan (2009), divulgadores e popularizadores ambientais costumam ser personalidades com forte integrao miditica que assumem o papel de empreendedores argumentativos para as causas socioambientais. 25 De acordo com o documento, A criao de principalmente de bovinos, alm de ocupar 70% das terras agriculturveis, consumiria 8% da gua disponvel no planeta e despejaria um enorme volume de gs metano (CH 4 ) na atmosfera, constituindo-se, juntamente com a indstria pesada e o setor automobilstico, como um dos principais responsveis pelo aquecimento da Terra. 2626 Informao disponvel em: http://www.fao.org/forestry/65429/en/, consultado em 28 de novembro de 2011. 42
Concomitantemente questo socio-ambiental, verifica-se atualmente uma crescente globalizao do bem-estar animal (Singer e Park, 2012) como presso de tipo upside-down. De acordo com Singer e Park, pessoas no mundo industrializado esto comeando a demonstrar preocupao a respeito do tratamento de animais para alm das fronteiras de seus pases (idem, p. 128): ou seja, o tipo de cobrana tica e sanitria levada a cabo, nas ltimas dcadas, por organizaes de direitos animais na Europa, na Amrica do Norte e na Oceania (a Austrlia, ptria de Singer, um dos beros do movimento de direitos dos animais), passou a transcender as fronteiras destes pases, atingindo seus fornecedores em desenvolvimento 27 . Esta conjuntura afeta diretamente pases como o Brasil, que o maior exportador de protena animal do planeta e que tem nos exigentes (e vidos por carne 28 ) mercados do mundo desenvolvido sua clientela preferencial. Embora o Brasil j se constitua como uma potncia produtora e exportadora de carne, a maior parte dela ainda consumida dentro do prprio pas (algo como 75% do total produzido 29 ). A inteno do setor conquistar estes mercados e ampliar a porcentagem da carne nacional destinada exportao. Por vezes, a relao com os parceiros comerciais descrita de maneira dramtica. Como relata uma publicao do setor (pertencente empresa que organizara o Caminho do Boi), os frigorficos so obrigados a fazer a conferncia de identificao, por brincos ou chips, de todos os animais cuja carne ser exportada para a Unio Europia. Se no houver conformidade na leitura, todo o lote descartado para exportao. (Manejo, out-nov. 2009)
Rastros da efetivao prtica da demanda por bem-estar animal podem ser notados atravs de diversos dispositivos de governana 30 , nacionais e globais, atualmente em voga: em 2011, a ISO (International Organization for Standardization)
27 Fraser (2001, 2010) assinala a publicao do libelo Animal Machines (1964), de autoria da britnica Ruth Harrison, como o grande evento desencadeador da nova percepo sobre as criaes animais nos pases anglo-saxnicos. Ademais, h certo consenso na literatura sobre a vanguarda destas sociedades na questo do bem-estar e dos direitos dos animais. 28 As cinco sociedades nacionais que mais consomem carne no mundo (per capita) so pases da OCDE: Luxemburgo, Estados Unidos, Austrlia, Nova Zelndia e Espanha. (FAOSTAT, 2010). http://faostat3.fao.org/, consultado em 25 de setembro de 2012. http://chartsbin.com/view/bhy, idem. 29 http://www.agricultura.gov.br/animal/mercado-interno, consultado em 25 de setembro de 2012. 30 Sigo a definio do conceito por Shore e Wright (1997): We use governance to refer to the more complex process by which policies not only impose conditions, as if from outside or above, but influence peoples indigenous norms of conduct so that they themselves contribute, not necessarily conscious, to a governments model of social order. 43
lanou os parmetros para o selo de certificao ISO 26000, que pela primeira vez incluem o respeito ao bem-estar dos animais envolvidos na prtica econmica (Park e Singer, 2012). J a FAO, rgo das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura, possui desde 2008 um portal na web denominado Gateway to Farm Animal Welfare, que rene distintas informaes sobre a criao de animais, incluindo o estado-da-arte do bem-estar em vrios pases e setores da produo agropastoril. O portal visa facilitar a troca de informaes e experincias entre autoridades, especialistas e demais interessados, baseando-se na ideia de que prticas de bem-estar animal, mesmo com seus evidentes impactos positivos para a produtividade, encontram-se bastante defasadas e insuficiente disseminadas ao redor do globo, tanto em unidades produtivas industriais quanto tradicionais 31 . Alm disso, percebe-se uma lenta mudana de foco de atuao da chamada OIE (Organizao para a Sade Animal), fundada em 1924, do campo da sanidade animal, pura e simples, para o campo mais amplo do bem-estar e do tratamento tico dos mesmos. No Brasil, destacam-se dois documentos bastante importantes a este respeito. O primeiro, a Instruo Normativa n o 3, do Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento (MAPA), de 17 de janeiro de 2000, estabelece os requisitos mnimos para a proteo dos animais de aougue e aves domsticas, bem como os animais silvestres criados em cativeiro, antes e durante o abate, a fim de evitar a dor e o sofrimento (MAPA, 2000). Complementarmente, a Portaria n 185, de 17 de maro de 2008, do mesmo Ministrio, estabelece a criao de uma Comisso Tcnica Permanente responsvel pelo fomento de aes que garantam o bem-estar animal, da qual fazem parte, alm do prprio rgo, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (EMBRAPA) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal (ETCO) da UNESP (Universidade Estadual Paulista), sediado em J aboticabal/SP. Atualmente, o Grupo ETCO o centro nevrlgico da cincia do bem-estar animal no Brasil, servindo de parmetro tanto para pesquisadores de outros gupos, mais perifricos, quanto para os prprios rgos governamentais e sua necessidade legal de implementar polticas. Ademais, a Unio, em 2007, por meio do MAPA, estabeleceu com a WSPA (World Society for the Protection of Animals) - a maior organizao de promoo do
31 Disponvel em: http://www.fao.org/ag/againfo/home/en/index.htm, consultado em 13 de julho de 2012. 44
bem-estar animal do mundo - um acordo que prev o treinamento de fiscais agropecurios para atuarem na rea de fiscalizao dos frigorficos. De acordo com o documento que celebra o acordo (MAPA, 2007), cabe ao Ministrio assegurar-se da correta aplicao da legislao brasileira que define os procedimentos de Abate Humanitrio e o atendimento s diretrizes internacionais de abate humanitrio da OIE, no qual o Brasil signatrio; WSPA, em contrapartida, cabe disponibilizar profissionais habilitados, para ministrarem os cursos de capacitao em Bem Estar Animal e Abate Humanitrio, a serem realizados em diferentes regies do pas, buscando-se minimizar as despesas do MAPA, com deslocamentos dos servidores que sero capacitados. A efetivao de prticas de bem-estar animal, contudo, depende no somente da aplicao de polticas em sentido top-down por parte de rgos de Estado e organismos internacionais multilaterais, mas visa disseminar-se principalmente a partir de uma espcie pedagogia dos produtores de carne a respeito dos benefcios do manejo racional de bem-estar. Grandes frigorficos, como J BS Friboi e Marfrig, que hoje praticamente monopolizam o mercado de protena animal no Brasil, possuem programas de instruo e incentivo para seus fornecedores de matria prima em torno da questo das boas prticas de manejo, inclusive com uma poltica de subsdios e premiaes remuneradas. Abaixo, dois exemplos de atualizao desta dinmica, de acordo com os sites dos supracitados conglomerados. J BS Friboi: Para garantir a transparncia no processo de aquisio de bovinos, a JBS divulga e esclarece aos seus fornecedores que mantm relao comercial com empresas que tm comprometimento e engajamento com questes socioambientais que afetam a cadeia. A conduta da JBS divulgada constantemente aos seus fornecedores por meio do Manual de a Conduta tica da Companhia e prticas sustentveis. Em todos os pases de atuao da JBS, a companhia estimula as boas prticas junto aos seus fornecedores. A partir de programas de qualidade, dissemina, estimula e apia os seus fornecedores a adotarem condutas sustentveis. 32
Marfrig: Atualmente temos um departamento exclusivo para tratar os assuntos relacionados a bem-estar animal. Todas as unidades de abate de
32 Disponvel em: http://www.jbs.com.br/RelacaoJBSProdutores.aspx, consultado em 13 de julho de 2012. 45
bovinos possuem pelo menos um tcnico (zootecnista, agrnomo, veterinrio) altamente capacitado, que promove o tratamento adequado aos animais. Temos os mais modernos equipamentos de conteno e insensibilizao dos animais, para que possamos sempre ser fiis ao conceito de manejo racional e bem-estar. Os colaboradores que trabalham com o gado, desde o transporte at o manejo dentro das unidades, so cientes da responsabilidade que tm de minimizar o sofrimento dos animais. Essa conscincia cultivada atravs de treinamentos internos e externos, regulares e com revises frequentes. 33
nesta conjuntura complexa, cheia de decalagens locais e globais, que se configura, portanto, a produo de carne no Brasil. A FEICORTE, inserida neste cenrio, funciona como uma espcie de caixa de ressonncia de todos estes movimentos. Como se v, diversos traos desta conjuntura auxiliam a catalisar uma imagtica negativa por parte do setor, de modo que o contexto explica, em parte, porque os principais agentes deste setor se mostram to preocupados com sua imagem pblica e com o desenvolvimento de ferramentas para melhor-la. Passo agora a descrever a situao etnogrfica disparadora, a partir da qual se delinearo os fluxos discursivos a serem rastreados nos prximos captulos. Como j explicitado na introduo, trata-se da palestra Pecuria Brasileira: desvendando mitos, da qual participaram distintos agentes do universo da carne nacional. Este evento ilustra de maneira significativa como o setor tem encarado o desafio de resistir na esfera pblica queles que o criticam. 1.3 A situao etnogrfica disparadora A palestra ocorreu na manh do dia 16 de junho de 2011, em um dos sales de conferncias contguos ao Espao Carne da FEICORTE. Logo que comeou, o pblico presente ao evento no era muito expressivo, situao que foi paulatinamente se revertendo at o fim da manh. Em geral, tratava-se das mesmas personagens-tipo j descritas anteriormente, com visvel predominncia do plantel masculino sobre o feminino. A atmosfera entre os presentes era de bastante proximidade e informalidade. Uma personagem em especfico, desde o incio, magnetizava a ateno. Tratava-se de
33 Disponvel em: http://www.marfrig.com.br/fomento/bem-estar-animal/index.asp, consultado em 13 de julho de 2012. 46
um homem de meia idade, relativamente calvo, que vestia um terno azul e uma gravata dourada. Cumprimentava a todos e fazia alguns gracejos. Logo depois, descobri que seria ele o moderador da palestra. Desde o incio, avisara que, embora fosse o moderador, seus comentrios seriam nada moderados. J untamente com esta personagem - auto-identificada como um consultor, detentor de vasta experincia internacional a servio da carne brasileira perfilavam- se na mesa: um cirurgio-vascular, identificado como Dr. Rond; o diretor executivo da ABIEC, Fernando Sampaio; outros dois consultores; e, por fim, a nica mulher da mesa (e uma das poucas da sala), a nutricionista Dra. Licnia. Em termos gerais, a estrutura da palestra era: o mediador animando o debate, participando das intervenes dos demais com gracejos e comentrios informais; a nutricionista e o mdico salientando a importncia da carne vermelha para a alimentao e a sade humana; os consultores defendendo uma melhor estratgia de comunicao com o povo (sic); e a plateia, por fim, reagindo ao mediador atravs de fortes risadas e concordando com murmrios a cada conclamao para a reao da pecuria nacional contra os argumentos dos seus detratores, fossem eles a imprensa (sensacionalista, interessada somente no lado negativo das coisas), os defensores dos animais (fanticos, religiosos, adeptos de modismos e frescuras), os ambientalistas anti-pecuria (desinformados, tendenciosos), o governo brasileiro (corrupto, ineficiente) e as potncias internacionais (verdadeiros culpados pela destruio da natureza, pois, nas palavras do mediador, quando eles desmataram a floresta deles, ningum veio aqui perguntar pra mim o que eu penso (...) em segundo lugar, so vocs que mais f* o ambiente, ento, antes de falarem sobre mim e pedirem pra eu pagar uma conta que no minha paguem a conta de vocs). Os termos utilizados por todos oscilavam entre uma retrica do esclarecimento (informar atravs de dados e fatos, argumentos cientficos) e uma retrica do combate (a nutricionista falou dos seus dez anos de batalha frente do SIC, escrevendo mensalmente textos e da dificuldade de se conversar com vegetarianos, porque quando se trata de religio ou crena no tem como conversar). Sistematicamente, o mediador e os demais procuraram objetar os argumentos mais comumente ouvidos contra o consumo de carne, representando-os atravs de excertos de jornais e revistas nacionais projetadas em Power Point. 47
Em relao sade humana, o Dr. Rond argumentou que ns evolumos comendo carne (...) o crebro se desenvolveu e 70% do crebro gordura, ns precisamos de gordura (...) foi a partir do consumo de carne que o homem comeou a dominar a cadeia alimentar, comeou a ganhar msculos, se impor. J ocosamente, em seu papel de mestre de cerimnias, o mediador relatou que ador[a] carne e que acredit[a] que o homem essencialmente carnvoro . Depois disso, emendou com as suas hipteses sobre a origem do vegetarianismo: pobreza extrema (quando elas [as pessoas] recebem menos de US$ 7 por dia) ou frescura. Para o Dr. Rond e a Dra. Licnia, os grandes viles alimentares do presente seriam os carboidratos. No por uma vilanidade, por assim dizer, intrnseca deste tipo de nutrientes. Mas sim pela maneira contempornea de consumi-los nas sociedades urbano-industriais, as quais, para o mediador, seriam obesas por causa desta combinao de pizza com batata frita. De acordo com a nutricionista, o trip da nutrio : moderao, equilbrio e variedade. A dieta das pessoas estaria, portanto, muito desregulada a favor dos carboidratos, situao agravada pela m-informao a respeito da carne e suas potencialidades nutritivas. O Dr. Rond argumentou, com bastante convico, que em algumas dcadas ns vamos nos transformar em soja e milho, e que o primeiro elemento desta conjuno a soja seria o verdadeiro vilo oculto dentre os alimentos (uma verdade que, na opinio do Dr. Rond os detratores da carne resistiriam em admitir). Um dos presentes recordou que soja e milho constituem a maior parte das raes oferecidas s reses mantidas em confinamento, introduzindo, a partir da, a questo do diferencial da pecuria brasileira em relao quela praticada nas naes do Atlntico Norte. Neste momento, um esprito nacionalista tomou conta dos debatedores. Aqueles diretamente envolvidos com a produo de carne no Brasil, como os consultores e o diretor da ABIEC, ressaltaram as inmeras vantagens do nosso gado: extensivamente criado; alimentado, em sua maioria, no pasto natural; e, muito importante, livre dos graves problemas que consternam os mercados externos, como a Vaca Louca. A crtica dos defensores dos animais, portanto, seria uma crtica deslocada: para o diretor da ABIEC, os animalistas brasileiros no conheceriam suficientemente a realidade do prprio pas, pois projetariam impune e injustamente a imagem dos grandes confinamentos norte-americanos sobre o contexto nacional. Para o mediador, a probabilidade de se morrer de vaca louca no Brasil seria igual a do Congresso 48
Nacional ser ocupado 100% por pessoas probas e honestas. Este comentrio provocou diversos sinais de anuncia na plateia, o que se repetia a cada meno negativa a respeito do Estado. Para um dos integrantes da mesa, o Estado tem l seus interesses e ns temos os nossos. O diretor da ABIEC, incitado pelo mediador a responder s acusaes de que a pecuria estaria destruindo a Amaznia, arguiu que o problema da Amaznia um problema do Estado (...) uma questo de regulamentao fundiria e organizao do territrio (...) hoje em dia tem 25 milhes de pessoas na Amaznia, quer dizer, no assim que tem que parar de regulamentar o que est assentado (...) e hoje em dia o governo tem uma fria demarcatria [de territrios indgenas] (...) se tem algum que tem culpa no desmatamento da Amaznia somos ns [sociedade em geral] e no o boi.
Estes eram os momentos em que o mediador mais se entusiasmava, e sua fala, j incisiva, tornava-se ainda mais imponente. Evocava insistentemente um discurso de nacionalidade, sobretudo de uma nacionalidade confrontada com um discurso externo de ingerncia sobre os assuntos internos. Na sua fala, tambm se destacava certa indiscernibilidade das pessoas do discurso, pois se referia ao Brasil e pecuria na primeira pessoa, ora no plural, ora no singular, denotando um pouco da natureza do seu trabalho como representante do sistema-carne brasileiro no exterior. Seguidas vezes, aps a fala dos interlocutores, se dirigia plateia e dizia esto vendo? Isto a nossa pecuria, este o setor que vocs representam, estas so as oportunidades a abertas... s precisamos nos organizar para utilizar. Frente aos crticos da carne, fossem eles fanticos defensores dos animais ou ambientalistas, o importante saber se defender. Neste sentido, houve concordncia de que era necessrio saber a linguagem do povo. O termo foi usado largamente, tanto pelo mediador quanto pelos demais palestrantes. Este primeiro, exaltado, bradava: o povo no quer saber de cido graxo, de carbo-no-sei-o-qu (...) e sabe por qu? Porque vai ter sempre algum pra dizer que a carne te faz mal... que a carne vai te dar cncer.... Seria necessrio, portanto, desenvolver um sistema de pronta resposta, uma frente de pronta interveno, essencialmente no passional, capaz de responder acusaes com fatos e verdades. Todos citaram a necessidade de uma melhor estratgia de comunicao com o 49
consumidor, j que, num cenrio de ampliao cada vez maior da demanda internacional por alimentos, seria necessrio valorizar este animal de quatro estmagos que opera o milagre de transformar pasto cru em alimento (fala de um dos consultores). O Dr. Rond assentiu necessidade de modificar as estratgias de comunicao com o consumidor e ironizou dizendo que veja s... ningum convida voc para um salado no final de semana, sempre um churrasco, arrancando risos da plateia. O mediador arremedou dizendo que o problema do vegetariano que ele no se conforma somente em ser vegetariano, mas quer que voc tambm seja, e fica torrando o seu saco. Embora o tom geral da palestra tenha se centrado sobre a reiterada necessidade de melhorar a comunicao com o pblico em geral, tambm foi sublinhado que ela tinha tido a funo de melhorar, antes de tudo, a sintonia entre as prprias engrenagens do sistema-carne. O argumento da coeso setorial foi vrias vezes enunciado. Quem se responsabilizava por isso eram os ditos consultores. Ao mdico e nutricionista cabia a parcela cientfica dos esclarecimentos, calcados numa espcie de redeno profissionalmente mediada da importncia nutricional da carne. O Dr. Rond, de maneira muito expressiva, relatou sua experincia de converso desde uma perspectiva avessa carne, algumas dcadas atrs, para uma perspectiva extremamente favorvel a ela, tendncia esta sustentada, nas suas palavras, atravs do conhecimento adquirido com os pacientes e na bibliografia mdica mais atualizada possvel. Segundo ele, havia lobby pelo carboidrato, mas logo se percebeu que doenas antes atribudas protena s tinham aumentado base de carboidrato. A gordura tambm foi destacada pelo mdico como um nutriente fundamental, principalmente para o crebro. Haveria gorduras boas e gorduras ms. Aquela oriunda da carne criada a pasto seria boa, quase azeite de oliva. A Dra. Licnia, por sua vez, relembrou que vegetarianos radicais podem sofrer carncia de vitamina B12. Em determinado momento, foi projetada uma apario da atriz norte-americana Angelina J olie na revista Veja (08/09/2010), na qual se lia: meu segredo de beleza um bife bem suculento. Agora, falando srio, eu amo a carne. Fui vegetariana por muito 50
tempo e quase morri por causa disso. O mediador, naturalmente, aproveitou a oportunidade para fazer algum gracejo, chamando a prpria atriz de suculenta. Outra projeo que causou certo furor foi uma reportagem do Fantstico (03/04/2011) a respeito da iniciativa da FAO pela disseminao da cultura de insetos comestveis como forma de atenuar impactos nocivos da pecuria. O mediador, que se definira como um profundo conhecedor da organizao, disse que a FAO tem coisas preciosas, mas muita imbecilidade. Por fim, a cultura de orgnicos tambm foi criticada, principalmente em relao sua dificuldade de nutrir populaes em larga escala. Um dos consultores alegou que o setor era de fato interessante, como nicho [de mercado], para o Brasil, mas que a verdadeira sada para a produo eficiente de alimentos vinha da evoluo pela cincia e a pesquisa em aditivos e defensivos. O diretor da ABIEC emendou dizendo que para a planta, no faz diferena nenhuma se a molcula vem de esterco ou de aditivo, logo, a preferncia por orgnicos algo que depende das pessoas e suas intenes, sobretudo daquelas que podem pagar por elas. As perguntas da assistncia foram poucas, todas orientadas no sentido de reconfirmar o que j havia sido dito. Uma interveno me chamou particularmente a ateno. Tratava-se de um pecuarista do Tocantins, que desenvolveu um argumento bastante curioso a respeito do desmatamento na Amaznia. A seu juzo, tratava-se de uma impropriedade afirmar, como fazem alguns setores da mdia, que o desmatamento transformaria a Amaznia em um deserto. Pois, de acordo com a sua prpria experincia, o clima local, por ser chuvoso, se responsabilizaria pela restaurao da mata original: a gente mata num ano e depois t tudo l crescendo de novo. Esta interveno causou algum silncio constrangedor e logo foi interrompido pelo mediador, o qual proferiu mais outra crtica ao Estado brasileiro. A palestra terminou por volta da hora do almoo, quando os aromas atmosfricos j indicavam onipresena da carne assada, fartamente servida na churrascaria central do evento e em alguns stands especficos, que possuam suas prprias churrasqueiras. A disperso dos presentes foi rpida e silenciosa, destacando-se do movimento geral apenas os efusivos cumprimentos finais trocados entre os palestrantes.
51
1.4 A dialtica do pioneiro e do predador Posteriormente, na EXPOINTER de 2011, pude novamente assistir a uma palestra desta natureza, centrada, contudo, na exposio do projeto Pecuria do Brasil/Brazilian Beef, conduzido pela ABIEC. Nesta ocasio, Fernando Sampaio fazia- se novamente presente, compondo a mesa com outras personalidades do mundo rural. No site da organizao, este projeto descrito da seguinte maneira: Desde o descobrimento, a pecuria sempre teve um papel fundamental para o desenvolvimento do Brasil. No passado, as fazendas de gado ajudaram a demarcar nossas fronteiras. Hoje, as receitas geradas com a exportao de carne, que beiram os 5 bilhes de dlares, movimentam a economia de milhares de cidades em todo o pas. Porm, essas histrias de sucesso protagonizadas pelos pecuaristas brasileiros nunca foram devidamente contadas. Buscando resgatar parte dessa memria e apresentar de forma transparente as melhores prticas do setor, a Associao Brasileira das Indstrias Exportadoras de Carnes (ABIEC) lana o projeto "Pecuria do Brasil" um plano de comunicao que mostrar, atravs de histrias reais, um setor cada vez mais moderno e sustentvel. 34
Entre as atividades planejadas, enumeram-se: aes atravs de redes sociais, como o Facebook e Twitter, alm de publicidade focada em formadores de opinio tambm esto dentro da estratgia e sero fundamentais para levar a informao a um nmero ainda maior de pessoas. No incio do prximo ano, est previsto um evento nacional, onde sero apresentados os destaques do setor no pas. O projeto "Pecuria do Brasil" isso: mostrar as histrias de sucesso, reavivar o orgulho dos pecuaristas e motiv- los na direo da sustentabilidade 35
Na palestra realizada na EXPOINTER, Sampaio pormenorizou uma srie de esforos e iniciativas vinculados a este projeto, inclusive a contratao de antroplogos para auxiliar na conformao de uma imagem melhor para a pecuria nacional. Alegou- se indignado com o fato do pecuarista brasileiro ser retratado como um assassino destruidor da Amaznia e do cerrado, enquanto nos Estados Unidos o cowboy representado como pioneiro da nacionalidade e da expanso territorial.
34 Disponvel em: http://www.abiec.com.br/X_projetoPecuaria.asp, consultado em 24 de agosto de 2012. 35 Idem. 52
Como j afirmei em outra oportunidade (Lewgoy e Sordi, 2012, p. 142), a dialtica entre o pioneiro e o predador evidencia uma tenso constituinte do engajamento ambiental da pecuria bovina na Amrica do Sul. A colonizao portuguesa do territrio americano teve no gado um importante aliado, verdadeira linha de frente da sua biota porttil (Crosby, 2011) 36 . Tratou-se, a bem da verdade, da declinao luso-americana de uma tendncia maior, prpria da expanso ibrica sobre do novo mundo (Baretta e Markoff, 1978). O gado bovino, na vanguarda da expanso territorial, permitiu e facilitou a ocupao europeia dos territrios mais distantes do litoral (Velho, 1982), atravs do modelo de grande propriedade pastoril. Da mesma maneira, a ocupao lusitana da conturbada regio do Prata, para onde convergiam os limites extremos da duas Amricas coloniais ibricas, s foi possvel atravs da emergncia de uma cultura e uma economia marcadamente pastoris, conformando a, onde hoje se encontra o estado do Rio Grande do Sul, certa realidade material e social bastante sui generis, destinada ao abastecimento proteico da fora de trabalho escrava empregada nas regies mais ricas. Caio Prado J r. escreve que No com justia que se relega [a pecuria] em nossa histria para um plano secundrio. Certo que no ostenta o lustre dos feitos polticos, nem aparece na primeira ordem dos grandes acontecimentos do pas. Recalcada para o ntimo dos sertes, escondem-na vista, a intensa vida do litoral, os engenhos, os canaviais, as outras grandes lavouras. E no tem os atrativos naturais do ouro e dos diamantes (2011, p. 196).
Desta suposta injustia histrica com a pecuria, parece ser solidrio um autor como Werneck Sodr, o qual, em seu pequeno opsculo Oeste (1941), acusa a grande propriedade pastoril de perenizar o suposto atraso, a suposta barbrie e a condio de selvageria do Brasil central. Identificada desde a poca colonial com os sertes e a subsistncia, a pecuria prestou-se formulao terica de tipos humanos caracterizados como possuidores de uma inclinao especial para a vida aventuresca e avessos em princpio ao trabalho, para citar duas passagens em que Caio Prado J r. (2011, p. 201) narra o sertanejo nordestino emFormao do Brasil contemporneo, de 1942. Adjetivos anlogos, embora s vezes mais generosos, tambm foram
36 De acordo com o autor (2011, p. 280), uma designao coletiva para os europeus e todos os organismos que eles carregam consigo nos processos de colonizao. 53
classicamente atribudos ao gacho das plancies meridionais. De norte a sul, a pecuria sempre carregou consigo a marca de um Brasil profundo, distante, semi-domesticado e civilizatoriamente arcaico; carter este declinado ora positiva, ora negativamente, dependendo dos objetivos polticos colocados em jogo em cada situao 37 . A configurao atual da atividade, no entanto, j no se deixa mais ser circunscrita nos limites desta representao. H paralelos entre esta discusso e aquela a travada a respeito dos gauchos nos pases platinos. J no sculo XIX, D.F. Sarmiento, em seu libelo Facundo (1845) defendia ser a pampa um malssimo condutor de civilizao (2004, p. 63), responsvel por todas as mazelas polticas que impediam a nao argentina de cumprir seu papel no rol dos Estados modernizados. Esta impossibilidade se tornava visvel, de acordo com Sarmiento, pela oposio entre Buenos Aires e as provncias. Alm disso, o autor opunha uma suposta tendncia barbrie, inerente ao pastoreio, ao carter civilizador e pacificador da agricultura, construtora de civilizaes. A vida na pampa, na viso de Sarmiento, incutiria em seus habitantes uma resignao estica frente morte violenta (idem, p. 60). As crianas exercitariam suas foras perseguindo e seviciando terneiros e cabras (idem, p 72). Quando se tornassem adultas, evidentemente, no hesitariam em descarregar com seu chicote de ferro (...) golpes que causam contuses e feridas (idem, p. 65) Os grupos familiares, distanciados uns dos outros por fora das lonjuras quilomtricas da plancie, no entrariam em comrcio mtuo. O esprito acabaria, portanto, degenerando na religio natural e na barbrie, numa propenso asitica ao despotismo e ao aparecimento de outro tipo de pastores: no de animais, mas de homens, como o terrvel caudilho Facundo Quiroga que d ttulo ao seu livro. No Uruguai, lvarez (2012) relata a existncia de uma forte dicotomia no incio do sculo XX entre projetos de modernizao nacional, calcados na defesa da agricultura, e resistncias tradicionais, ancoradas na vigncia resiliente da pecuria extensiva. J no Chile, Carrre (2012) demonstra a permanncia transandina deste modelo agressivo de colonizao da terra e reproduo do ethos masculino atravs da lida violenta com os animais. Ademais, a imagem dos povos pastores como individualistas, irredentos, propensos vida em liberdade e avessos ao trabalho
37 A apologia ao gauchismo, em voga no Rio Grande do Sul, um exemplo de positivao da cultura pastoril. 54
sistemtico, faz-se presente em etnografias clssicas como Os Nuer, de Evans-Pritchard, e at mesmo na Poltica de Aristteles, onde se l que, das formas de vida humana, a pastoril a mais indolente e ociosa (1256a 30). No Brasil, da segunda metade do sculo vinte em diante, a carne saltou do status de um produto secundrio, dedicado nica e exclusivamente para a subsistncia interna, para o posto de um dos principais fiis da balana comercial nacional. Um rpido passeio pela FEICORTE consegue demonstrar com propriedade o alto nvel de imbricamento entre atividade pecuria e biotecnologia de ponta, por um lado, e entre pecuria de corte e circulao intensiva de capital internacional, por outro. O Centro- Oeste, contrariando as previses de Werneck Sodr, urbaniza-se e industrializa-se atravs dos rendimentos do agronegcio, principalmente o pastoril. O investimento em gado, por sua vez, tem atrado cada vez mais alguns setores das elites urbanas brasileiras, inclusive aquele representado pelas celebridades e subcelebridades da televiso e da msica popular, os quais se tornaram figuras frequentes nas feiras e leiles agropecurios, alm de servirem como vetores publicitrios para o setor em geral 38 . A campanha Time Agro, encabeada pela CNA e pelo SEBRAE, tem Edson Arantes do Nascimento, o Pel, como seu principal garoto-propaganda. O ex-jogador apresentado na iniciativa como tambm sendo um produtor rural. Seu recrutamento, embalado pelo perodo de vigncia da campanha, planejada at a Copa do Mundo de 2014, tem como objetivo a forja de uma imagem vencedora para o agronegcio nacional, atravs da metfora futebolstica. Em um mesmo material publicitrio, veiculado desde novembro de 2012 na grande imprensa, coincidem Pel, a senadora Ktia Abreu e o j citado ex-ministro Paulinelli, todos vestindo a camiseta amarela da Seleo Brasileira de Futebol. Outra celebridade que tem emprestado com frequncia a sua imagem para o agronegcio nacional a atriz Regina Duarte, cujo posicionamento pblico a favor dos proprietrios rurais em conflito com as comunidades Guarani-
38 A edio de novembro de 2010 da revista Dinheiro Rural, da Editora Trs, ilustra esta dinmica. Em sua reportagem principal, a revista conta a histria da empresria Michelle Dorea, que teria trocado Wall Street pelos lucros da gentica do gado. A reportagem narra o caso como uma espcie de converso urbano-rural,retratando a empresria como uma mulher de negcios que abandonou os tailleurs de grife para usar cala jeans e botas.Em outra matria, denominada Os rurais e os globais, ressalta o nmero crescente de celebridades do mundo do entretenimento que direcionaram seus investimentos para o agronegcio. Entre os exemplos citados, os mais emblemticos so a atriz Regina Duarte, a apresentadora Ana Maria Braga e o ator Murilo Bencio, todos criadores de bovinos. 55
Kaiow, em Mato Grosso do Sul tem suscitado forte reao de movimentos socioambientais. Em determinados veculos e manifestaes pblicas do setor, parece ser dado como pressuposto, mais ou menos natural, que a parcela do sistema produtivo de carne dentro da porteira isto , no universo da criao de animais se d atravs de linhagens familiares, por cujos liames de parentesco flui no somente torrentes de capital, mas tambm certa substncia imaterial da lida com a fazenda e os animais, prxima de um carisma ou mesmo um mana (Mauss, 2003) patrilinear. A cada gerao, esta substncia se atualiza e se reproduz, mas sempre modulada pelas caractersticas prprias do seu contexto histrico. Um exemplo retirado do informativo Manejo, produzido pela empresa organizadora do Caminho do Boi, ilustra esta lgica: No se pode esperar que a pessoa que realizou a transio da explorao extensiva dos anos 70 para a produo semi-tecnificada de 2010 carregue tambm a responsabilidade pela construo da prxima fase da pecuria competitiva de alto desempenho. Quem conduziu o negcio ao longo dos ltimos 20 anos dificilmente possui o conhecimento e a energia empreendedora exigida para perpetuar a atividade no novo contexto do conceito alimentar de 2020. (...) Um dos caminhos para uma sucesso tranqila a chamada co-gesto geracional (...) que combina a experincia e a sabedoria do pai com os novos conhecimentos e o dinamismo de um ou vrios filhos. (Manejo, abr-mai, 2012).
O paradigma da co-gesto geracional to presente no mundo rural brasileiro que grandes eventos do setor, como a FEICORTE, contam com uma extensa programao de palestras e workshops sobre modernizao administrativa da atividade pecuria, na qual especialistas de diversas reas (marketing, economia, zootecnia, veterinria, etc.) so chamados para versar sobre os mais distintos temas relativos ao mercado agropecurio, tendo como pblico alvo as novas geraes de empreendedores rurais. Ao procurar reunir histrias de sucesso da criao de gado no Brasil, o projeto Pecuria do Brasil/Brazilian Beef tem em vista recolher e reproduzir exatamente este tipo de narrativa, em que o passado amalgamado com o presente, a tradio com a tecnologia, o pioneirismo com a sustentabilidade. Tomando-se em conta que o projeto ainda est em sua fase inicial, ainda muito cedo para se medir a eficcia do seu engajamento em relao imagem pblica do setor. Contudo, as polmicas e disputas 56
em torno da carne, seu consumo e produo, aparecem por hora como plenamente rastreveis. O prximo captulo d incio a este rastreamento, tomando como ponto de partida uma das falas ouvidas na situao etnogrfica disparadora.
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2 - A GRAMTICA SIMBLICA DA CARNE
Nos acampamentos, sombra de um caponete, um gacho acendia o braseiro, outro escolhia uma vara para espeto, outro fincava uma posta de carne, e era s dar tempo para que o assado fosse se tostando lentamente. (...) Uma vez pronto o churrasco, cada um puxava a faca, se agachava junto ao espeto e ia escolhendo e cortando, aqui e ali, finas tiras, pedacinhos. lentido do assar sucedia, agora, a mansido do degustar. Se a carne fosse mui gorda, no tinha importncia: depois vinha um mate chimarro para corrigir, com seus efeitos diurticos e estomacais, o excesso de gordura e protena. Comida essencialmente masculina, dos acampamentos e dos galpes, o churrasco sempre dispensou o uso de pratos e talheres. Prato e talher s mesmo em casa de estncia, nas comidas de panela preparadas por mulher. (Barbosa Lessa, O gacho ontem e hoje, 1979, p. 12).
Figura 8: EXPOINTER, 2011 (Foto: Caetano Sordi)
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Este captulo visa compreender o que est em jogo quando, numa situao como a palestra descrita no captulo anterior, algum diz veja s... ningum convida voc para um salado no final de semana, sempre um churrasco. Esta uma frase que se deixa facilmente explicar no contexto da citada palestra, composta, ao que tudo indica, de pessoas muito mais propensas a organizar um grande churrasco do que um buffet de saladas no final de semana. Mas que outras camadas de significado, no entanto, fizeram- se presentes no momento de sua enunciao? O que esta proposio aparentemente desprovida de qualquer significado mais profundo pode revelar sobre o consumo carnvoro em seus aspectos antropolgicos e socioculturais? 2.1 A polissemia da carne Diversos autores inspirados pelo estruturalismo atribuem ao sistema culinrio as mesmas propriedades constituintes dos sistemas de significado em geral (Lvi-Strauss, 2004, 2006, 2010; Montanari, 2008; Goody, 1998). De fato, como reconhecem Douglas e Isherwood (2004, p. 113), a comida um meio de discriminar valores, e quanto mais numerosas as ordens discriminadas, mais variedades de comida sero necessrias. Para Montanari (2008, p. 165), em todas as sociedades, o modo de comer regrado por convenes anlogas quelas que do sentido e estabilidade s linguagens verbais. Desta maneira, todo sistema alimentar pode ser compreendido luz de uma gramtica, a qual, mais que meramente aglutinar elementos dispersos (os alimentos, os sabores, os modos de preparo), os ordena segundo uma estrutura de significado. Assim, antes de partir para o exame da proposio elencada em suas instncias e circunstncias, faz-se necessrio uma breve incurso pelos sentidos do prprio conceito de carne e sua posio relativa nesta estrutura de significado. De acordo com o Dicionrio Houaiss, o termo carne, em lngua portuguesa, possui ao menos doze definies. As duas primeiras parecem designar aquilo atravs do qual reconhecemos o ncleo semntico mais forte do termo: (1) parte macia do corpo de um homem ou outro animal, especialmente vertebrado; (2) a poro comestvel de mamferos, aves e peixes; a poro comestvel de qualquer outra espcie de animal. No entanto, definies subsequentes tambm apontam para significados interessantes de carne, sobretudo em suas declinaes metafricas: (6) a natureza humana, por oposio natureza divina; (7) o corpo humano, por oposio ao esprito, alma; (8) a natureza humana, considerada em suas fraquezas e apetites; (9) o instinto 59
sexual, o amor fsico; e, por ltimo, algo bem prximo dos antroplogos, (10) consanguinidade, parentesco em linha direta. Embora o conceito de carne possa ser aplicado s partes consumidas de diversos animais, o contexto brasileiro atesta que, ao menos nacionalmente, o imaginrio da carne dominado pela figura do gado bovino, ainda que este tipo de carne no seja, de fato, o mais consumido no Brasil, perdendo quantitativamente para o frango 39 . Em nvel institucional so as agremiaes dedicadas bovinocultura que tomam para si o termo carne como um apangio prprio: a Associao Brasileira das Indstrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), por exemplo, dedica-se defesa dos interesses da carne bovina nacional. Os setores avcola e suinocultor, em contrapartida, so representados por associaes cujos nomes fazem referncia direta s espcies animais por eles mobilizados, e no carne. A FEICORTE, descrita no captulo anterior, a Feira Internacional da Cadeia Produtiva da carne, e no da carne bovina. Um informativo do setor 40 classifica como protenas alternativas os setores suinocultor e avcola. Algo da experincia cotidiana tambm atesta que comer carne, na linguagem ordinria brasileira, significa, na maior parte das vezes, comer carne vermelha ou comer carne bovina. Este englobamento do termo universal carne pela declinao particular carne bovina digno de ser pensado. No intuito de respeitar o princpio metodolgico, evocado na introduo, de considerar na pesquisa o que est em jogo (Kleinman e Kleinman, 1995) para as sociedades humanas quando se produz e se consome carne, decidi focar-me justamente sobre os processos sociais envolvendo a carne bovina, na medida em que eles centralizam e metonimizam os processos sociais envolvendo a carne em geral, ao menos para a sociedade brasileira contempornea. A figura abaixo (fig. 9) ilustra este processo. Trata-se do printscreen 41 da busca pelo verbete carne na plataforma de imagens do Google. Percebe-se a ntida predominncia das carnes vermelhas sobre as demais carnes, o que tambm se reflete nas pesquisas relacionadas sugeridas pelo prprio site: carne bovina, carne vermelha, etc.
39 De acordo com o MAPA, em 2010, o consumo per capita de carne de frango era de 43,9kg; de carne bovina, 37,4kg e de carne suna 14,1kg. Disponvel em: http://www.agricultura.gov.br/animal/mercado- interno, consultado em 25 de setembro de 2012. 40 SCOTT CONSULTORIA. Boi & Companhia, ano 19, 19 a 25 de novembro de 2012. 41 Em linguagem de internet, a captura em forma de imagem de tudo o que est disposto na tela do computador em determinado momento. 60
Figura 9: printscreen da busca pelo verbete carne no Google imagens, acessado em 29 de janeiro de 2013. As carnes parecem se dispor em um espectro de maior e menor carnicidade, se me for permitido o neologismo. Entre muitos autodeclarados vegetarianos, existem aqueles que se abstm do consumo de carne (de qualquer animal), mas prosseguem comendo carne que no tem cara de carne, como classifica um interlocutor vegano o suposto vegetarianismo de sua me, que inclui algumas pores de frios e embutidos. Alguns vegetarianos mais radicais, inclusive, sugerem que outros produtos de origem animal, como laticnios e ovos, tambm deveriam ser enquadrados sob a rubrica carne, abrangendo ainda mais o escopo extensional 42 do conceito. Diversos interlocutores relatam eventos de constrangimento social em que solcitos anfitries procuraram agradar as suas especificidades alimentares, mas acabaram confundindo os limites do vegetarianismo e do veganismo (servindo pratos com laticnios ou ovos), ou foram pegos pela polissemia da carne. Servir peixe ou frango aos vegetarianos por no comerem carne um mal-entendido muito recorrente. Se pudssemos estabelecer provisoriamente uma imagem de como seria um provvel
42 De acordo com o dicionrio filosfico de Marcondes e J apiassu (1996), Do ponto de vista lgico, um conceito caracterizado por sua extenso e por sua compreenso. A esta ltima, corresponde o conjunto dos caracteres que constituem a definio do conceito (por exemplo, o ser humano ser vivo, animal, bpede, mamfero, pensante, etc.). primeira, corresponde o conjunto dos elementos particulares dos seres aos quais se estende este conceito. Bem por isso, compreenso e extenso esto sempre em relao inversa: quanto maior for a compreenso, menor ser a extenso; quanto menor for a compreenso, maior ser a extenso.
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espectro de carnicidade relativa entre as diversas carnes, seguramente a carne bovina figuraria em seu ponto extremo, seguida de outras carnes vermelhas e mamferas, desceria em direo s aves e, por fim, atingiria os (no coincidentemente) chamados frutos do mar, espcie de estgio limite entre a carne e a no-carne e que comporta um grande nmero de vegetarianos abstmios de outras carnes, mas consumidores de peixes e assemelhados. Dificuldades suplementares formulao deste espectro seriam desencadeadas pela categoria das carnes selvagens ou exticas, assim como pela igualmente problemtica categoria dos subprodutos e embutidos. Neste sentido, variveis como o mtodo de obteno (caa, abate, etc.) e/ou preparao (o simples corte ou processos de transformao mais elaborados, como a salsicharia, por exemplo) tambm deveriam ser considerados, de modo que no cabe agora enveredar em tal empreitada. Mesmo assim, o registro das dificuldades na formulao de um quadro geral das carnes, maneira estruturalista, serve para corroborar o estatuto fludo e deveras polissmico da carne, que no se aplica somente sociedade brasileira. Em ingls, a distino entre meat e flesh respectivamente a carne-alimento, objetivada, e carne-corpo, da qual somos feitos - salientada por alguns autores (Sahlins, 2007), inclusive alguns comprometidos com a causa animal. Para Singer, a confuso semntica entre os dois termos ocultaria a realidade flesh da carne que se consome como meat, isto , sua origem em um processo social de predao e dessubjetivao de seres senscientes. J entre os dinamarqueses, apresentados por Delavigne (1999) como os maiores consumidores de carne da Europa, no haveria diferena terminolgica entre a carne que se come a carne da qual somos feitos, ambas sendo referidas pelo termo kd. Nos Estados Unidos, como no Brasil, Sahlins (2007) tambm registra a existncia de uma diferenciao entre carnes e vsceras, as primeiras se referindo s partes externas, musculares dos animais, e as segundas s suas partes internas, referidas atravs de nomes muitas vezes idnticos aos das suas contrapartes humanas (fgado, p. ex.). O autor tambm registra que a sociedade estadunidense possui relao com a carne vermelha anloga existente na sociedade brasileira, pois sua dieta decorre de um modelo de refeio que inclui a carne [bovina] como componente central, com apoio perifrico de carboidratos e legumes (Sahlins, 2007, p. 185). J Fischler (2001) relata um processo de englobamento semntico bastante elucidativo que ocorre na lngua francesa. De acordo com o autor, o sentido original da palavra viande teria a ver com uma poro alimentar genrica, tendo se transformado, do 62
sculo XVIII para c, em sinnimo exclusivo de carne. Tambm na lngua inglesa, informa Singer (2010), o termo carne originalmente designava qualquer alimento slido, e no apenas a carne de animais. Traos deste significado anterior ainda subsistiriam em expresses como carne de coco [coconut meat], ainda correntes. Para o autor, isto auxiliaria linguisticamente a se evitar o fato de que o que estamos comendo so realmente pedaos do corpo de um ser vivo (idem, p. 140). J para Fischler, processos como estes - nos quais a carne metonimizada como alimento em geral acabariam por conferir a ela o status de alimento absoluto 43 (2001, p. 121), de substncia mais substanciosa entre todas as substncias, suprassumo material do prazer e da sensao de plenitude envolvidos no ato digestivo 44 . No toa, portanto, que muitos vegetarianos relatam terem de se defender contra a alegao de que no se alimentam bem, de que no se alimentarem direito; de que salada no leva a nada; ou terem de vencer, em seus primeiros tempos nesta condio, a sensao de que uma refeio sem carne no uma refeio. Tais relatos foram bastante frequentes em entrevistas e conversas informais que realizei com adeptos de dietas vegs, e uma boa parte da literatura de apoio e propaganda vegetariana se dedica a reverter esta concepo: como afirma um manual deste estilo de vida, necessrio um plano gradual para perder o hbito, para que o organismo no se ressinta (Scolnik e Scolnik, 1974, p. 24). Ora, de distintas maneiras, a carne aparece como um objeto polissmico, social e culturalmente mediado. No entanto, ao menos no que tangencia os exemplos suscitados pelos casos acima (brasileiro, francs, estadunidense e dinamarqus), a carne possui outra propriedade interessante: ela um elemento central em cada um destes sistemas culinrios. Esta centralidade permite-nos formular a hiptese da existncia de uma verdadeira gramtica simblica da carne, cuja potncia, cuja vigncia, faz-se sentir fortemente em exemplos etnogrficos como os descritos a seguir.
43 Barthes (2001) relembra a relao entre a simblica da carne e a simblica do sangue como substncia vital. Fora do registro das sociedades ocidentais, Fausto (2001, p. 153) relata a respeito dos parakan: o movimento de disperso para a mata responde a um desejo de consumir carne em grande quantidade: quando os parakans se dizem com fome, referem-se ausncia no de comida, mas sim de abundncia de carne. 44 Bachelard (1996, p. 210): O alimento slido e consistente mais prezado. O beber no nada diante do comer. Se a inteligncia se desenvolve ao seguir a mo que apalpa um slido, o inconsciente se arraiga ao mastigar, de boca cheia, um prato de macarro. fcil perceber, na vida cotidiana, esse privilgio do slido (...) a fome , portanto, a necessidade natural de possuir o alimento slido, durvel, integrvel, assimilvel, verdadeira reserva de fora e de poder. 63
2.1.2 Sobre churrascos veganos, bifes de soja, vegebrgueres e outras assinaturas carnvoras no campo vegetariano Uma propriedade mais ou menos geral de qualquer estrutura, tal como de uma gramtica, a sua durabilidade (Lvi-Strauss, 2004, 2006, 2010; Bourdieu, 2005). Isso no quer dizer que estruturas sejam imutveis, ou que permaneam sempre iguais sua formatao original. Defender tal perspectiva se configuraria num estruturalismo ingnuo, invariantista, incapaz de dar conta analiticamente da mudana cultural e social. O que ocorre, na verdade, uma tendncia a que a variao seja uma variao estruturada. Assim, se num sistema cada elemento ocupa um lugar preciso, o primeiro objetivo ser conservar este lugar (Montanari, 2008, p. 171). De maneira clara e distinta, Lvi-Strauss explica da seguinte maneira a dialtica entre mudana e permanncia existente em seu sistema de pensamento: (...) os encaixes das estruturas umas nas outras no possui um carter esttico. Longe de estar isolada das outras, cada uma das estruturas contm um desequilbrio que s pode ser compensado utilizando um termo tomado estrutura adjacente (Lvi-Strauss, 2006, p. 322).
Para o caso da presente anlise, esta dinmica de permanncia das formas aplicadas a novos contedos, ou, nas palavras de Lvi-Strauss, de tomada de emprstimo de termos da estrutura adjacente, se manifesta em exemplos como o churrasco vegano, o bife de soja ou o vegburger todos, por assim, dizer, inovaes do ponto de vista culinrio, mas, ainda sim, tributrios de significantes anteriores, oriundos da gramtica carnvora que parece fundamentar o sistema culinrio das sociedades ocidentais. Um casal de veganos, com o qual tive contato em minha pesquisa anterior, ilustrou uma reportagem do caderno Vida, de Zero Hora (2/4/2011), sobre seu tipo de alimentao, na qual algumas linhas so dedicadas ao churrasco vegano, hbito que passaram a cultivar depois de seu abandono do carnivorismo: Os hbitos alimentares de M. e J., h cinco anos, mudaram da gua para o vinho. Ou melhor, da carne para o brcolis. A famlia e os amigos acharam que sairiam perdendo, j que J. era o churrasqueiro oficial dos domingos. Para a alegria de todos, a churrascada do fim de semana foi mantida. S que agora, nos espetos da residncia do casal, entram apenas carne de soja, legumes, frutas e verduras. De incio foi estranho, confessa M., mas depois tudo virou diverso. (...) 64
A no ser a extino dos cortes bovinos, nada mudou na confraria da churrasqueira 45
Se os sistemas alimentares so gramticas, os modos de preparo e as prticas de cozinha so a sua morfologia(Montanari, 2008). A permanncia da forma churrasco se adqua s unidades lexicais que so os ingredientes, os contedos. No caso em questo, substitui-se a carne e seus subprodutos por elementos puramente vegetais. O espao onde se os prepara e o modo com que se prepara, contudo, continuam sendo a churrasqueira e o fogo em brasa, prprios do fazer carnvoro. O churrasco, alm de um modo de preparo, tambm um ritual (Maciel, 1996). E todo ritual tem uma sequencia, uma ordem, uma sintaxe. Assim, o churrasco vegano, como qualquer outro churrasco, tem sua ordem de apresentao dos pratos, sua liturgia, e, se em sua verso carnvora, a centralidade ocupada por cortes considerados nobres, como a picanha ou o entrecot, a tendncia nos churrascos veganos muitas vezes substitu-los por preparados fibrosos cujo aspecto muito se assemelha carne quando postos para assar. Tomando-se em conta o contexto em que vive o casal de veganos, compreende- se porque a reportagem de Zero Hora tenha dado tanta nfase ao fato de se ter mantido intacta a churrascada do final de semana. No Rio Grande do Sul, o churrasco foi alado ao patamar de prato emblemtico (Maciel, 1996), e o consumo de substanciosas quantidades de carne (principalmente bovina), em ocasies especficas, est integrado ao calendrio alimentar de famlias e grupos sociais. Alm do seu aspecto litrgico, o churrasco configura-se como um ritual na cultura sulina justamente ao excetuar-se, como festa, da alimentao cotidiana. Ele tambm traz consigo uma diviso sexual do trabalho culinrio marcadamente forte, que nos remete s formulaes de Lvi-Strauss segundo as quais as refeies assadas base de carne pertencem ao plo masculino, viril e exoculinrio, isto , das comidas ostensivas, feitas para fora, em ocasies especiais; em oposio, por conseguinte, s comidas vegetais, os cozidos e aos ensopados, que so femininos, domsticos e rotinizados (Lvi-Strauss, 2006; Adams, 2010). Basicamente, o que pode estar em jogo na questo do churrasco vegano parece ser a possibilidade de se permanecer falante de uma gramtica social oriunda do carnivorismo sem
45 O churrasco dos veganos. Zero Hora, 2 de abril de 2011. 65
necessariamente ser carnvoro, substituindo alguns termos especficos do eixo paradigmtico (os ingredientes, as unidades lexicais) em prol da permanncia do eixo sintagmtico (as formas de preparo, a sintaxe e a liturgia). O mercado mais geral de produtos vegetarianos tambm auxilia a ilustrar esta dinmica. Por toda parte, veem-se modos de preparo prprios gramtica carnvora aplicados a novos contedos, como nos casos da carne e do bife de soja, da glutadela (mortadela de glten), e dos vegburgers e vegdogs hoje oferecidos em diversas casas do ramo. De um anncio no site do Caf Bonobo, um dos principais pontos de encontro vegetarianos de Porto Alegre, l-se: almoo de sbado no Bonobo: ALA-MINUTA!!! 46
glten acebolado, arroz integral com gersal e chia, batatas bolinhas assadas com merkn (pimenta chilena defumada), feijo com tofu defumado e manjerico, salada 47 . J o cardpio de outro restaurante apresenta: almndegas de gros e nozes, tomates cereja e manjerico servidos ao pesto; kebaps de tofu e mix de vegetais grelhados servidos com molho satay; entre outras transposies gramaticais 48 . O manual vegetariano Hugues de Bonardi, Receitas da Cozinha Natural (1991) ensina a fazer guisado expresso moda de Sidi Salmane, e o de Nakashima et al. (2005), denominado Lar Vegetariano, contm receitas de estrogonofe de glten, hambrguer protico, medalho de tofu, nuggets de resduo de soja, quibe de tofu, salsicha rpida, croquete de batata, entre outros pratos. O escrutnio do cardpio de diversos restaurantes e manuais de receita vegetarianos, que no cabe pormenorizar aqui, refora a constatao emprica desta tendncia. 2.1.3 Pesquisa gacha contrape Harvard: notas sobre um Estado carnvoro O mesmo furor com que fora assinalada em Zero Hora a permanncia da churrascada de domingo na mesa do casal de veganos, foi repetido pelo peridico em reportagem publicada em 15 de maro de 2012, na qual se lia que o churrasco de todo domingo est garantido e at faz bem sade, desde que a carne vermelha tenha como origem animais engordados somente no pasto. O ttulo da matria, bastante assertivo,
46 la minuta: termo utilizado no Rio Grande do Sul para se referir refeio denominada como Prato Feito em outras regies do Brasil, composta, basicamente, de carne vermelha bovina, arroz, feijo e batata frita. 47 Disponvel em: http://www.cafebonobo.com.br/?p=1312, consultado em 29 de agosto de 2012. 48 Disponvel em: http://www.larougebistro.com.br/resources/Card%C3%A1pio%20La%20Rouge%20Bistr%C3%B4%20.p df, consultado em 29 de agosto de 2012. 66
anunciava: Churrasco na mesa: Pesquisa gacha contrape Harvard, seguido do seguinte subttulo: por ser produzida no pasto, carne gacha seria mais magra do que a europia e a americana, cujo gado engordado com gros. Na ausncia de quaisquer fotografias para acompanh-lo, o texto trazia o desenho bem-humorado de uma vaca - made in RS - orgulhosamente exibindo-se para dois pesquisadores, sendo um deles representado com traos fisionmicos orientais. De acordo com a reportagem,
A prestigiada universidade americana divulgou que comer uma poro diria de carne vermelha pode aumentar o risco de morte prematura em 20%, segundo estudo realizado com mais de 120 mil pessoas nos Estados Unidos. Tambm deu evidncias de que comer bifes aumenta o risco de doenas cardacas e cncer. (...) A boa notcia, segundo pesquisadores do departamento de Zootecnia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com o Instituto de Cardiologia do Estado, que este dado precisa ser relativizado, devido aos diferentes sistemas de criao e de engorde. Enquanto o gado gacho se alimenta de pasto, o americano engordado em confinamento, com dieta base de gros, como soja, milho e trigo.
No dia anterior (14 de maro), o mesmo jornal j havia noticiado sucintamente a peleia contra Harvard da seguinte forma: CHURRASCO 1 Te cuida, Harvard! A prestigiosa universidade americana divulgou esta semana uma pesquisa realizada com mais de 120 mil homens e mulheres. O resultado: quanto maior o nmero de refeies dirias com carne vermelha, maiores os riscos de morte seja por problemas cardacos ou por cncer. A notcia estava ontem na capa dos sites da BBC e da CNN. O contra-ataque gaudrio foi imediato.
Embora os riscos sade envolvendo o consumo de carne sejam objeto de controvrsia cientfica h vrias dcadas (tratarei melhor deste ponto no prximo captulo), o que chama ateno nesta reportagem, tal como na que trata do churrasco vegano, a maneira com que frisada a permanncia do churrasco de todo o domingo a despeito de tudo, bem como a flagrante associao entre consumo de carne vermelha e a identidade regional. Como muitos vegetarianos apontam, realmente difcil abster-se de carne no Rio Grande do Sul. A adoo de uma dieta alternativa acompanhada, quase 67
sempre, de mudanas na interao com conhecidos, colegas, amigos, e, sobretudo, familiares, na medida em que o sujeito renunciante passa a excetuar-se de importantes momentos da rotina social. Um estudante vegano entrevistado relatou-me uma situao extremamente emblemtica neste sentido: fora convidado pelo namorado a jantar pela primeira vez na casa dos sogros, tpica famlia da classe mdia alta porto-alegrense. Mas o namorado se esquecera de avisar aos pais a respeito da opo do companheiro, de modo que, em suas palavras, teve que lidar com dois tipos de constrangimento: aquele porco enorme em cima da mesa e parecer antiptico na frente deles, por acabar no comendo nada. De acordo com o seu relato, tal primeira impresso no poderia ter sido pior. Por ser vegetariano, no poderia tomar parte de pleno naquele ritual de comensalidade. Outra vegetariana, de cujo caso tratarei com mais detalhe no prximo captulo, afirmou-me que, para ela, a mesa[da prpria famlia] era como uma faixa de Gaza. Desde o momento em que cessara de comer carne, passaram a consider-la como o problema da famlia na medida em que, de acordo com a leitura dos parentes, ela no comia nada. Embora relate que suas refeies sempre foram, de fato, bastante frugais, assinala que, para seus familiares, sua alimentao s poderia ser completa com o consumo de carne, de modo que no ingeri-la passou a ser compreendido como no alimentar-se de maneira geral. Desde os doze anos esta entrevistada passou a fazer sua prpria comida, at o ponto em que se formaram trs dispensas autnomas em casa: uma para minha me [onvora], uma para minha irm [que segue dietas rigorosas de emagrecimento] e uma para mim [vegetariana]. Ora, no parecemos estar to longe daquelas sociedades amerndias nas quais a comensalidade reluz como um dos principais dispositivos identificatrios, para alm da partilha do mesmo cdigo lingustico ou rol de representaes. Entre os Parakan, a partilha da carne e a comensalidade no apenas marcam as relaes entre parentes, como as produzem. Comer como algum e com algum um forte vetor de identidade (Fausto, 2002, p. 15). A meu juzo, este um princpio plenamente aplicvel ao que acontece no sul do Brasil em relao carne, respeitadas, evidentemente, as pronunciadas diferenas cosmolgicas entre os Parakan e ns. Em ambos os contextos, no comer como e com recusar o aparentamento, e tal recusa equivale a se colocar na posio de inimigo (idem). Em relao Harvard, comer churrasco produz identidade 68
gacha, mas somente o churrasco moda gacha, isto , com gado criado a pasto. A posio agonstica em relao universidade de Harvard aparece aqui como uma posio agonstica em relao comida e aos modos de comer que so prprias ao mundo do outro, representados, neste caso, pelo gado confinado. Os outros so outros porque no comem da maneira que ns comemos, porque no comem o que ns comemos. Parafraseando a famosa formulao de Brillat-Savarin, poderamos argumentar que o outro aquilo que ele come e se deixa definir por isso. A este respeito, escreve Sahlins (2007, p. 186): Quanto aos cavalos, os americanos tm razes para desconfiar que sejam comestveis. Existem boatos de que os franceses os comem, mas a meno disso costuma ser suficiente para evocar o sentimento totmico de que os franceses esto para os americanos assim como as rs esto para as pessoas 49 .
A experincia da vida cotidiana em um lugar como o Rio Grande do Sul - culturalmente constitudo como parte que se define agonisticamente com um todo (Oliven, 2006), e no qual vigora, igualmente, certo imaginrio social marcadamente viril, relacionado lida pastoril e o domnio humano sobre o animal (Leal, 1989) - atesta o quanto estas questes identitrias fazem-se fundamentais neste contexto. O investimento da mdia local, principalmente de seu principal grupo empresarial, na manuteno deste imaginrio, denotativo do quanto estas questes colocam-se realmente em jogo (Kleinman e Kleinman, 1995) no Rio Grande do Sul, muitas vezes sob a forma de anedota. Proliferam expresses acusatrias como churrasco de paulista ou churrasco de catarina, as quais, no por acaso, tm como o alvo o modo com que os outros brasileiros preparam carne. Da mesma maneira, circula em redes sociais como Facebook um suposto mapa do Brasil segundo os gachos, no qual o Rio Grande do Sul assinalado como civilizao; a faixa contnua de terra que leva do oeste catarinense at Rondnia como extenso natural do Rio Grande do Sul (o que est muito vinculado colonizao destas reas, no sculo XX, por pecuaristas e agricultores
49 A este respeito, tambm Barthes (2001) ressalta o papel constitutivo do bife com batatas fritas para a identidade nacional francesa. 69
gachos); e Minas Gerais e Gois (estados fortemente vinculados pecuria), por fim, como gente que no sabe fazer churrasco. diferena da FEICORTE, que descrevi no captulo anterior como profundamente ancorada em uma retrica de nacionalidade e modernidade, a EXPOINTER se articula em torno de uma forte remitncia condio rio-grandense e sua identidade mtica, donde decorre certa centralidade do churrasco moda gacha (Maciel, 1996) nos quatro cantos do Parque de Exposies Assis Brasil. Nas suas duas edies ocorridas ao longo do perodo de pesquisa (2011 e 2012), havia uma atrao chamada Vitrine da Carne Gacha, patrocinada pelo SEBRAE/RS, na qual ocorria uma verdadeira pedagogia do churrasco. Confinados em uma espcie de aqurio refrigerado, cercado de vitrines por todos os lados, dois aougueiros profissionais explicavam como bem aproveitar a carne bovina, alm de ensinar tcnicas de corte das mais diversas (fig. 10). Ao redor do aqurio, visitantes da feira contemplavam a desossa e o corte de dezenas de carcaas, as quais chegavam penduradas e inteiras, e saiam fatiadas e desmontadas.
Figura 10: aougueiros em desmontagem didtica de carcaa na Vitrine da Carne Gacha, na EXPOINTER 2011. (Foto: Caetano Sordi) 70
A cada dia da feira, uma associao de raa era responsvel pelas carcaas desmontadas, e a elas tambm cabia a apresentao da estirpe e suas caractersticas. Enquanto operava os instrumentos, o aougueiro principal aproveitava para dar nome a cada um dos cortes, e demonstrar o modus operandi da sua obteno. Alm disso, explicava minuciosamente as diferenas existentes entre carcaas zebunas e carcaas europeias, sempre dando nfase ao notrio fato de que, no Rio Grande do Sul, se destacava a produo destas ltimas, de melhor qualidade 50 . Da mesma maneira que comer com e como algum um vetor de aparentamento na sociedade parakan, se abster por ou com algum tambm o (Fausto, 2002, p. 15). O mesmo princpio tambm pode ser aplicado queles que, em nossa sociedade, abandonam a carne e se tornam vegetarianos. Se, como afirmei anteriormente, o sujeito renunciante passa a excetuar-se de importantes momentos da rotina social, sociabilidades e afinidades alternativas surgem a partir da. Para aqueles vegetarianos mais empenhados na disseminao da causa, o meio em que circulam no deixa de ser uma espcie de crculo restrito maneira weberiana, que faz da comprovao explcita de determinadas qualidades morais uma condio distintiva de admisso e participao (Pierucci in Weber, 2004, p. 290). Isso acaba deixando margem para que seus adversrios, como o plantel de especialistas reunidos na situao etnogrfica disparadora, os descrevam como membros de uma seita, como fanticos, mais prximos crena do que ao bom-senso. No Rio Grande do Sul, a imprensa funciona como uma caixa de ressonncia destes conflitos. Em Zero Hora, a ltima pgina do caderno semanal Nosso Mundo Sustentvel, destinado s questes ambientais e s solues empresariais para lidar com a emergncia do paradigma da sustentabilidade no mundo dos negcios, frequentemente
50 importante ressaltar que a regio sul do Brasil, embora carregue consigo uma identidade regional marcadamente forjada atravs da pecuria, corresponde hoje a apenas 13,3% do efetivo bovino nacional (IBGE, 2010). Isto faz com que o sistema meridional da pecuria de corte procure investir, presentemente, no ganho de qualidade da carne em contraste com a quantidade produzida, apostando no diferencial representado pelas suas condies naturais e seu plantel majoritariamente taurino (raas europias). O governo do Rio Grande do Sul investe atualmente em um programa denominado Carne Gacha, que visa profissionalizar a gesto da qualidade da carne produzida no Estado atravs do alinhamento estratgico dos vrios setores envolvidos nesta cadeia produtiva, disseminao de boas prticas de sanidade e manejo, rastreamento, etc. Em 2011, o lanamento do programa causou alguma celeuma entre autoridades estaduais e representantes setoriais da carne bovina uruguaia e argentina, na medida em que o governo do Estado planejava batiz-lo como Melhor carne do mundo. J o governo de Santa Catarina orgulha-se do status de Zona Livre de Febre Aftosa sem vacinao, nico entre as unidades da federao. 71
traz algumas notas sobre o vegetarianismo e a questo do consumo de carne. No dia 26 de dezembro de 2011, lia-se na coluna Ar Puro desta mesma pgina: Aqui [RS], vegetarianos sofrem bullying (veganos ento nem se fala so ETs). Diariamente escuto comentrios desagradveis, de gente esclarecida, sobre quem fez essa opo. Diariamente. Dizer que no come carne senha para ouvir desaforos e/ou provocaes. Vegetarianos so tratados como gente do contra, como chatos, como prias. At j ouvi que vegetarianismo coisa de gay, como se desse para relacionar uma coisa com a outra. Claro, h os vegetarianos radicais e esses incomodam tambm. O que precisamos um pouco mais de tolerncia.
Em um editorial do mesmo jornal, denominado Gachos amam e maltratam animais (12/09/2009), uma liderana dos direitos animais em Porto Alegre pergunta:
J que ces, golfinhos, bichos-preguia, ursos-panda apresentam as mesmas capacidades de senscincia e de inocncia que porcos, galinhas, ovelhas e bois, onde, afinal, residiria a diferena de tratamento que lhes dispensamos? Porque protegemos, respeitamos, mimamos alguns animais e a outros, mesmo existindo alternativas alimentares saudveis, dispensamos o pior dos tratamentos e a morte? Por que a uns tentamos garantir reservas ambientais e outros submetemos a exposies, provas de velocidade e resistncia, para diverso?
A publicao deste artigo tem como pano de fundo um perodo do ano bastante importante para o gauchismo, o ms de setembro, em que a EXPOINTER recm fecha seu balano anual de recordes e cifras milionrias, e centenas de milhares de gachos se preparam Rio Grande afora para as comemoraes da Semana Farroupilha 51 , na qual proliferam os churrascos, os rodeios e outras barbries antropocntricas de acordo com o discurso dos direitos animais. Em Porto Alegre, ocorre o acampamento farroupilha, em que centenas de piquetes (galpes de costaneira de pinho) so montadas no Parque da Harmonia, s margens do Guaba, para celebrar a identidade regional. Em meio ao barro acumulado
51 A Semana Farroupilha, que tem seu pice no dia 20 de setembro, mais importante comemorao cvica do Rio Grande do Sul. Trata-se da celebrao anual dos acontecimentos da chamada Revoluo Farroupilha (1835-1845), a mais longa e sangrenta revolta regional do perodo imperial, na qual a elite pastoril gacha pegou em armas contra o poder central. Entre as principais causas disparadoras do conflito estavam justamente os tributos cobrados pela coroa sobre o principal produto local, o charque, que o deixava em situao desfavorvel em relao aos seus concorrentes platinos. 72
pelas constantes chuvas do perodo, circulam milhares de visitantes e acampados, muitos dos quais se deslocam de outras partes do Estado, e at mesmo do pas, para l residirem ao longo da celebrao. Nesta festa, impera o cheiro de churrasco por todos os lados, e volumosa, ostensiva, quantidade de carne consumida. Contra este esprito, levanta-se a trincheira vegetariana local: protestos e campanhas contra a EXPOINTER e o esprito carnvoro do acampamento farroupilha so realizados, tanto online quanto offline. Evidentemente, isto provoca reaes. Em setembro de 2010, o jornalista J uremir Machado da Silva, notrio polemista da imprensa estadual, publicou em sua coluna diria no jornal Correio do Povo, sob o ttulo O cru e o cozido, as seguintes consideraes: Vou choc-los: eu gosto de matar animais. Para com-los. No fao distino entre peixes, vacas, perdizes, patos, marrecos, gansos, bfalos, cordeiros e frangos. Gosto de todos. Amo carne. Eu e quase todo o Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul e quase todo o Brasil. O Brasil e grande parte do mundo. (...) Sou mamfero. E sou carnvoro. Um monstro sereno. Durmo sem qualquer remorso. Tive um amigo vegetariano que se benzia ao passar diante das churrascarias. (...) Que fazer? Somos especistas. (...) Vida de carnvoro est ficando difcil. (...) Estou errado? Sou ignorante? Preconceituoso? Pode ser. Deve ser. o meu gosto. Meu e da torcida do Grmio e do Inter. H muitos crudistas [variante do veganismo, em que s permitido o consumo de vegetais crus] nos Estados Unidos. a turma da raw food. S podia. Bizarrices quase sempre vm dos Estados Unidos. (...) Vou procurar um terapeuta. No consigo sentir pena da vaquinha quando a vejo no meu prato. Quando a vejo no pasto, comeo a salivar. Tenho cura?
Outro polemista local, o escritor David Coimbra, notabilizado por suas crnicas e contos envolvendo futebol e mulheres em Zero Hora, assim escreve (31/8/2007): Em tempos de Expointer, urge fazer uma pequena reflexo acerca de algumas espcies, como as vacas, as galinhas e as vegetarianas. Ateno! claro que no quero comparar as vegetarianas s vacas ou s galinhas, embora saiba que, como amantes da Natureza, elas, as vegetarianas, no se ofenderiam com isso. Mas sei que vegetarianas, bilogas e castradores de gatos so muito suscetveis, levam-se a srio, a gente no pode brincar com eles. Portanto, deixo sublinhado que, para mim, uma vegetariana muito diferente de uma galinha e at mesmo de uma vaca. No entanto, defende-as, vaca e galinha, com todo o denodo, e esse aspecto que pretendo abordar.
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Coimbra continua a crnica estabelecendo uma de tipologia comparada entre galinhas, vacas e vegetarianas, tratadas como espcies diferentes: Comecemos pela galinha. No gosto dela. A galinha um dos bichos mais feios do planeta, s ganhando, talvez, da girafa. A galinha tem asas, mas no voa; tem pernas, mas no sabe correr. A galinha no morde, no bica ningum, no tem esporo e nem mesmo canta. A nica coisa que a galinha faz com proficincia botar ovo. Um por dia. O que muito importante. (...) Agora, a vaca. Ela no muito diferente da galinha, nos quesitos animao e desenvoltura. A vaca s pasta, o dia inteiro, sem parar. Pasta e pasta e pasta, pachorrentamente. Bovinamente. No entanto, a vaca grande e forte, pode enfurecer-se qualquer dia desses. Suscita certo respeito, pois. Mas o interessante, no caso, que a vaca leva uma boa vida. Durante o tempo em que ela rumina nesse Vale de Lgrimas, a vaca come bem, passeia livremente pelos campos e tratada com carinho. Quando chegada a sua hora, encontra uma morte rpida e, dizem os pecuaristas, indolor. (...) Certo. Finalmente chegamos s vegetarianas, categoria pela qual, repito, cultivo slida admirao. Vi que as vegetarianas fizeram manifestaes na Expointer contra o abate de vacas, galinhas e quejandos.
Por fim, realiza um determinado prognstico do que aconteceria se as propostas de libertao animal viessem a ser aplicadas e o carnivorismo fosse substitudo pelo vegetarianismo: Porm, ah, porm, se a proposta delas vingasse, as vacas viveriam livres por a, sem quem cuidasse delas. Teriam de procurar alimento por elas prprias, como os gnus na frica. O que no fcil. No existiria tanto pasto disponvel para uma vaca sem dono. O gnu sofre. Alm disso, as vacas estariam expostas aos predadores, sem haver um nico estancieiro que as protegesse. (...) Quanto s galinhas, seria pior: elas dominariam o mundo. Ciscariam aos bilhes por toda a Terra, consumindo os recursos, atacando homens e vacas e, por que no?, inclusive as vegetarianas to bem- intencionadas, as bilogas mais formosas e os queridos castradores de gatos. Como num filme de terror. Como num pesadelo. Portanto, embora as vegetarianas gozem de todo o meu afeto, advirto: elas no devem combater a execuo de certos animais. Isso pode se voltar contra elas mesmas!
Esta crnica despertou a indignao da comunidade vegetariana local, que a acusou de incitar ao machismo e misoginia. Como relata uma militante do abolicionismo, um grupo de mulheres vegetarianas organizou, poca, um protesto contra Coimbra por ocasio do lanamento de um livro seu. No prximo captulo, 74
comentarei de que maneira o carnivorismo tambm se articula com determinada poltica de gnero, evidenciada no conflito entre Coimbra e as vegetarianas. 2.2 Do carnivorismo ao naturalismo Fora do Rio Grande do Sul, tais embates envolvendo o consumo e a abstinncia de carne tambm acabam, muitas vezes, sendo travados nas pginas da grande imprensa. L-se do filsofo e articulista Luiz Felipe Pond, em artigo na Folha de So Paulo denominado A carne tica (12/10/2009): Vamos concordar que torturar animais feio, apesar de que grande parte da vida esteja sustentada na necessidade da tortura de alguns seres para que outros continuem a respirar. Tambm vejo nos olhos dos meus cachorros a docilidade de quem veio a mundo para sofrer, alis como todos ns, vtimas do nascimento. Mas ainda aprecio suculentas picanhas. O que fazer, eu sou incoerente mesmo, amo meus cachorros, mas sou indiferente aos pobres bezerrinhos. Imagino que essas pessoas "conscientes" em breve proporo tratamentos de choque para pessoas degeneradas como eu. Tombarei gritando pelo direito s churrascarias. Por que essas pessoas "conscientes" no falam dos direitos das rculas em continuarem, de forma singela, a fazer fotossntese? Onde est a conscincia deles quando torturam seres inocentes como as berinjelas, trituradas entre nossos dentes horrorosos?
Entre as razes apontadas pelo filsofo como legitimadoras do consumo de carne, ressalta-se certo pessimismo antropolgico em relao natureza, por sua vez verificvel em sua obra acadmica, dedicada, em grande parte, ao exame de tradies intelectuais como a filosofia pascaliana da desgraa (Pond, 2004) e a obra literria de Fidor Dostoivski (Pond, 2003). Se nas pginas da Folha de So Paulo o autor escreve que grande parte da vida esteja sustentada na necessidade da tortura de alguns seres para que outros continuem a respirar, a verso erudita desta mesma convico pode ser encontrada em uma obra acadmica sua (Pond, 2009, p. 131), na qual se l: a vida no sustenta a si mesma, a no ser que alteremos o modo biolgico de manter a fisiologia: a vida se alimenta da vida, logo, tal horizontalidade mortal. (...) Como fazer poesia a partir do metalbolismo que digere outro ser vivo?. Em consonncia com esta crena, o artigo do filsofo na Folha prossegue: No h dvida de que h algo de monstruoso na humanidade, mas o que me espanta nesses "conscientes" a cegueira para o fato de que a natureza no seja um mar dcil, mas sim um espao de violncia. A 75
humanidade tem algo de monstruoso porque ela parte da natureza. Se dependssemos desses "conscientes", no teramos sobrevivido seleo natural. Teramos cado paralisados diante da necessidade de matar para sobreviver, por um lado, e pelo outro lado, da dor de conscincia por aniquilar a esperana de pequenos antlopes que corriam livres e saltitantes pela savana africana. At hoje, quando penso neles, choro noite: ohh, como ns somos cruis! Esses caras so uns bobos que nunca viraram gente grande, por isso eles gritam por a "rats have rights". E por fim: Gente grande sabe que a felicidade no faz parte dos planos da natureza. O que escolher? A carne tica ou a rcula santa? Um dia vo sair correndo dando pauladas em quem no se converter "Santa Alimentao".
Os traos utpicos contidos no vegetarianismo servem muito frequentemente como alvo de crtica por parte de seus adversrios. Embora a alimentao vegetariana seja revestida de certa roupagem lingustica naturalizante (o vegetarianismo como alimentao natural), h de se salientar que, para muitos adeptos do vegetarianismo radical, ela portadora de fortes assinaturas anti-naturalistas. Esta tendncia atinge seu horizonte mais radical atravs de utopias tecnolgicas altamente especulativas como a chamada reprogramao gentica de predadores, proposta pelo filsofo britnico David Pearce 52 , uma voz bastante influente no millieu mais ortodoxo da causa animal. Segundo esta proposta, uma biosfera sem sofrimento tecnicamente vivel. Em princpio, a cincia pode produzir um mundo livre de crueldade, no qual no haja a assinatura molecular da experincia desagradvel. No s o mundo vivo pode sustentar a vida humana baseada em gradientes geneticamente pr-programados de bem-estar humano. Se levado plenamente a cabo, o projecto abolicionista implica a reconcepo de ecossistemas, a imunocontracepo, nanorrobs marinhos, a rescrita do genoma dos vertebrados, e o controlo do crescimento exponencial dos recursos computacionais para gerir um ecossistema global compassivo. Em ltima anlise uma escolha tica os agentes morais inteligentes optarem ou no por criar tal mundo ou, ao invs, exprimir os preconceitos do nosso status quo natural e perpetuar indefinidamente a biologia do sofrimento. (...) Na sua maioria as cerca de 50 000 espcies vertebradas do planeta so vegetarianas.
52 Filsofo utilitarista britnico. Em seu livro The Hedonistic Imperative, Pearce defende a abolio, tecnicamente mediada, de todo e qualquer sofrimento sobre a face da terra. Acredita que os avanos da engenharia gentica, da neurofarmacologia, da nanotecnologia e da neurocirurgia podem convergir para a abolio total da experincia desagradvel e promover uma civilizao ps-humanista. Pearce advoga na esfera pblica online e offline pelos direitos dos animais a partir de um esquadro ultra-abolicionista. 76
Mas entre a minoria de espcies carnvoras encontram-se algumas das mais bem conhecidas criaturas do planeta. Dever-se-ia permitir que estes assassinos em srie continuem a predar indefinidamente outros seres senscientes? 53
No custa recordar que, para a tradio judaico-crist, alm de possuir uma ntima relao com o consumo carnvoro e o primeiro assassinato (Gnesis, 1,29; 9,3), o pecado original no s colocou o homem em estado de desgraa, como tambm a toda natureza (Critchley, 2012; Thomas, 2010). Bem por isso, a relao entre salvao e natureza um dos temas centrais da discusso teolgica e filosfica do ocidente desde o advento do cristianismo, ainda que purgada de seus significados imediatamente religiosos. Tomando-se isto em conta, interessante notar a ressonncia deste tema em discusses aparentemente to secularizadas como o consumo de carne. Em posturas como a de Pearce, seguida por uma parte pequena, porm razoavelmente expressiva do movimento vegetariano, a abstinncia de carne e sua possvel expanso para alm dos limites humanos articula-se a certa confiana na vitria tcnica sobre uma natureza corrupta, assinalada com o estigma da predao. H afinidades desta postura com certa tendncia salvfica marcionista 54 , segundo a qual a realidade aps o juzo final no se deixa identificar com uma natureza original, pura, mas, ao contrrio, instaura uma natureza totalmente nova, uma natureza reformada, diferente de tudo que j existe ou existiu. J aqueles vegetarianos mais afeitos teoria do vegetarianismo como dieta natural, parecem aproximar-se da tendncia salvfica de retorno a uma natureza original rousseausta, degenerada atravs dos males da civilizao carnvora. Por fim, alguns adversrios eruditos do vegetarianismo, como Luiz Felipe Pond, reproduzem, no debate sobre a carne, alguns traos do pessimismo
53 Disponvel em: http://www.hedweb.com/abolitionist-project/reprogramming-predators.html, consultado em 27 de julho de 2012. 54 O termo marcionismo refere-se doutrina hertica de Marcio de Snope (c. 85-170 d.C) durante o cristianismo primitivo. De acordo com esta doutrina, os ensinamentos de Cristo, contidos no Novo Testamento, bem como sua mensagem de redeno e salvao, seriam incompatveis com a mensagem do Antigo Testamento. Para Marcio, o Deus da criao do mundo no o mesmo Deus da sua redeno. Este primeiro, o demiurgo, seria uma deidade tribal invejosa, particularista, cuja Lei seria a encarnao da justia violenta que impera no campo da realidade presente. J o Deus da salvao, a que J esus se refere no Evangelho, seria um Deus universal e piedoso, que olha para humanidade com amor e compaixo. Nesta sua diferenciao entre uma divindade redentora e outra demirgica, alguns intrpretes vem certa vinculao de Marcio ao gnosticismo. Em todo caso, uma das conseqncias de sua doutrina uma dissociao entre a realidade presente a realidade futura, ps-salvacionista, j que elas devm de princpios totalmente diferentes. Critchley (2012) defende haver tendncias cripto-marcionistas secularizadas em diversas doutrinas polticas messinicas da modernidade. 77
agostiniano em relao s possibilidades imanentes de salvao, de modo que procuram defender, nestes debates, certa misria do mundo representada pela necessidade inexorvel da vida alimentar-se da morte. Evidentemente, as aproximaes acima suscitadas s podem ser consideradas sob a forma de hipteses, uma vez que a matria verdadeiramente complexa e necessitaria ser mais bem pormenorizada. Mesmo assim, a evocao do conceito de natureza nas disputas envolvendo a carne incrivelmente frequente, ainda que nem sempre da maneira filosoficamente sofisticada com que Pearce e Pond a mobilizam nos exemplos acima mencionados. O prximo captulo do trabalho, portanto, procura examinar esta dimenso.
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3 - EVOLUO, NATUREZA, GNERO E MORALIDADE NAS GUERRAS DA CARNE
Protenas so complexas combinaes de aminocidos. A protena partida, liberando os aminocidos, que so usados como tijolos para construir protenas no consumidor ou convertidas em combustvel. Vinte e dois aminocidos so necessrios na nutrio humana. Alguns destes podem ser fabricados pelo corpo em quantidades adequadas, outros s podem ser fabricados muito lentamente, e um grande nmero delas no pode ser fabricado pelo corpo de maneira alguma, e deve ser obtido da alimentao. Sutton e Anderson, Introduction to Cultural Ecology (2010, p, 71). Caro roborat, pisces vero sunt parvi alimenti [Carne fortifica, os peixes so alimento pobre] Provrbio latino
Figura 11: EXPOINTER, 2011. (Foto: Caetano Sordi) . 79
Louise, atualmente com seus vinte e poucos anos, no come carne desde a infncia. De acordo com seu relato, no se trata de uma escolha deliberada. Ao contrrio, no consegue comer carne desde que, em um momento fatdico aos seus cinco anos de idade, rejeitou uma poro de carne no almoo e nunca mais voltou a procur-la. A razo para isso, nos seus termos, seria obscura. Louise conta que a ojeriza carne despertara desde muito cedo a preocupao de seus pais e familiares, de modo que uma grande parte da sua infncia foi dedicada a um verdadeiro priplo de consultas a mdicos e psiclogos, todos mobilizados em compreender e tratar esta sua dificuldade. O primeiro nvel de investigao foi de ordem neurolgica. Deveria haver algo no seu crebro que explicasse a rejeio da carne. Nada encontrado nos neurnios, a investigao deslocou-se para o sistema digestivo, o esfago, a garganta. Todos os profissionais, no entanto, coincidiam com o diagnstico de que no havia nada de errado com o corpo de Louise. Desta maneira, passou-se para as investigaes de cunho psicolgico: a rejeio da carne deveria ter origem em algum trauma, capaz de ser desvelado atravs da terapia clnica. Entre as diversas preocupaes dos familiares, sobretudo pais e avs, figurava a possibilidade de Louise no desenvolver-se intelectualmente, de modo que fora submetida at mesmo a um teste de QI. Afora isso, temia-se pelo seu possvel mau desenvolvimento corporal, o risco de ficar anmica (a cada seis meses eu fazia um exame de sangue) ou engordar em demasia, devido ao excessivo consumo de carboidratos. Com o tempo, permanecendo as razes de seu vegetarianismo ainda ocultas e seus ndices biolgicos na mais perfeita normalidade, todos teriam se acostumado com sua condio anticarnvora, ainda que sua me, at hoje, ainda guarde todos os exames com ela. Tomando este caso em conta, pergunta-se: por que a abstinncia de carne, por parte de algumas pessoas, precisa necessariamente ter razes? Uma vez encontradas estas razes, o que faramos com elas? H aqui qualquer coisa de semelhante com a fatigada discusso a respeito das razes neurolgicas, sociais ou genticas da homossexualidade, uma condio pessoal que parece necessitar sempre explicaes, qualquer que seja a matriz desta explicao. Como afirma a crtica feminista e queer, este tipo de demanda justificatria jamais aplicada ao indivduo heterossexual, assim como jamais aplicada ao indivduo 80
carnvoro, cujo carnivorismo aparece como grau zero da normalidade alimentar. Quem come carne, normalmente no solicitado a apresentar razes para isso, a no ser que seja interpelado por um vegetariano. E quem se dedica a escrutinar a paisagem fenomenal das guerras da carne, logo percebe que a batalha por razes que fundamentem o carnivorismo e o vegetarianismo pautada por uma intensa remisso ao status normal de certa natureza humana, natureza esta capaz de ser comprovada cientificamente. Neste captulo, portanto, procuro analisar estas e outras dinmicas que acabam por naturalizar o consumo de carne ou sua abstinncia desde um ponto de vista cientificamente informado. Seguindo a trilha de Adams (2010) e Wilkie (2010), defendo que estas naturalizaes da questo da carne no esto livres da manifesta poltica de gnero que configura o consumo carnvoro em geral, sendo muitas vezes conformadas por ela. As falas da situao etnogrfica disparadora que tomo como pontos de partida para o captulo so as seguintes: o ser humano essencialmente carnvoro e foi a partir do consumo de carne que o homem comeou a dominar a cadeia alimentar, comeou a ganhar msculos, se impor. O que est em jogo quando se afirma isso? 3.1 Quando o homem do Pleistoceno vai ao supermercado Como aponta Stoczowski (1994), narrativas de origem a partir da evoluo natural tornaram-se cruciais para a definio moderna do que o ser humano, disseminando-se no senso comum sob a forma de uma antropologia ingnua (Stoczowski, 1994). De acordo com este paradigma, A humanidade a definida por um conjunto de caractersticas s quais se atribui o estatuto de traos distintivos da nossa famlia biolgica; por conseguinte, explicar a antropognese explicar as origens destas caractersticas humanas. Estas so consideradas como mutualmente dependentes e as suas ligaes adquirem nos cenrios uma natureza particular, que a da relao de causa e efeito: o aparecimento de uma caracterstica humana suposto implicar a emergncia de uma outra, esta d origem a uma subsequente e por a em diante, at que esta sucesso etiolgica atinja o final do processo da hominizao (idem, 1994, p. 55)
Ingold (1995) visualiza esta acepo comum da hominizao como disposta em dois eixos perpendiculares: a evoluo biolgica da linhagem teria atingido, horizontalmente, um determinado ponto de consolidao das caractersticas biolgicas 81
da humanidade como espcie natural [human kind] e, a partir deste ponto, teria evoludo, agora verticalmente, em relao aos seus traos distintivos no-biolgicos ou superorgnicos: cultura, linguagem, tecnologia, etc., dando origem humanidade como condio moral [humanity]. Neste eixo vertical, imporia agora distinguir se a variao cultural, lingustica e tcnica da humanidade seria disposta num s eixo progressivo (paradigma do evolucionismo social), ou em vrios eixos paralelos, cada um deles declinando de maneira prpria e espontnea a humanidade como condio moral (postura adotada pelo relativismo em antropologia e suas escolas afins). Descola argumenta que ambas as posturas, apesar de suas diferenas, partem do mesmo consenso de fundo e modo de identificao (Descola, 1995) ontolgico: o paradigma naturalista da cosmologia ocidental, segundo o qual h uma s e mesma fisicalidade humana, dentro da qual orbitam inmeras culturas contingentes, isto , distintas declinaes da interioridade (cultura, linguagem, moralidade, etc.). A defesa da existncia de uma natureza humana bsica, imutvel, fsica e natural, no tem apenas o carter de uma descrio do mundo como ele , mas, frequentemente, esgueira-se para o campo de como ele deve ser. Se compreendermos, maneira de Foucault (1999), o discurso evolucionrio como um regime de verdade, teremos de seguir este autor e suspeitar que ele tambm seja um discurso normativo, isto , que prescreva atitudes, padres de normalidade e julgamento moral. Como afirma Dillon (2011, p. 272), comentando Foucault, No hay recuento de lo real que no diga correspondientemente cmo debemos ser gobernados en relacin con la naturaleza de lo real. En otras palabras, no puedes decir la verdad sin el mandato que dice en la medida en que esa es la verdad, entonces nosotros, el nosotros de esa verdad, tiene que ser gobernado, o gobernar a s mismo, en funcin de esa verdad.
Ato contnuo, se um determinado padro de normalidade corporal da espcie humana emergiu da evoluo natural entre 2,6 milhes e 11.500 anos atrs, no chamado Perodo Pleistocnico, muitos crticos e defensores do carnivorismo acreditam que a resposta definitiva questo que se colocam, isto , se comer ou no comer carne natural, est para ser encontrada num exame do que ocorrera com a espcie humana ao longo deste perodo. Mais do que qualquer coisa, disputa-se a respeito de que trao ou fator evolucionrio conduziu a espcie a comer carne, e at que ponto nossos corpos so 82
aptos para ou foram moldados por este consumo. O guia vegetariano de Avadhtika nandamitra carya, denominado O que h de errado em comer carne?, argumenta, por exemplo, que depois de estudos e pesquisas recentes, cientistas concluram que os ancestrais dos seres humanos eram vegetarianos e que no comiam carne seno em perodos de extrema escassez de alimento. Foi na ltima era glacial (h cerca de 12.000 anos), quando houve escassez crucial de frutas, castanhas e vegetais, que os seres humanos precisaram comer carne para sobreviver. Infelizmente, esse costume se perpetuou at os dias de hoje, tanto pela necessidade de povos de regies com clima frio (como foi o caso de esquims e certas tribos), como tambm pela fora do hbito ou do condicionamento, ou ainda por falta de conhecimento adequado. Entretanto, ao longo da histria, certos indivduos e civilizaes mantiveram-se vegetarianos, dando importncia alimentao natural e pura, por motivaes ligadas sade, clareza da mente ou s questes espirituais (2011, p. 17)
A representao de comunidades humanas primitivas vivendo na mais pura necessidade e escassez um tropo bastante disseminado no contexto ocidental (Stoczowski, 1994; Sahlins, 2007; Ingold, 2000). Tal representao se articula com aquela do perodo pleistocnico como sendo um perodo frio, a Era Glacial, em que as florestas se transformaram em savanas, os homindeos desceram das rvores e se depararam com feras emblemticas como o tigre dente-de-sabre, o mamute e outras bestas da megafauna (Stoczowski, 1994). A inexistncia destas condies adversas no contexto presente, de acordo com uma lgica muito evocada pela militncia vegerariana, j nos permitiria abandonar o consumo carnvoro por sua obsolescncia evolucionria. frequente que militantes vegetarianos argumentem, atravs de dados cientficos, que o organismo humano no preparado para o consumo de carne; que o seu sistema digestivo no adequado para o processamento dela e que, ao contrrio dos demais animais carnvoros, nossa arcada dentria denota, por sua ausncia de presas - assim como o comprimento de nosso intestino e outros detalhes anatmicos - que caar no seria algo propriamente humano, tendo sido fruto, portanto, de certas escolhas e presses ambientais num tempo hostil, em que nossos ancestrais eram governados por necessidades. Com o passar dos milnios, aquilo que havia surgido devido a presses circunstanciais, teria se consolidado como prtica hegemnica, embora inadequada prpria fisiologia e ao metabolismo humanos. De acordo com o manual de Hugues de 83
Bonardi, Receitas da Cozinha natural, a carne seria a causa de importantes doenas da civilizao (1991, p. 12), como problemas cardiovasculares, alguns tipos de cncer, alergia e reumatismos. Em consonncia, uma influente voz acadmica dos direitos animais no Brasil, a filsofa Snia Filipe, assim escreve em um artigo publicado na ANDA (Agncia de Notcias de Direitos Animais) em 1 de junho de 2011: Humanos sofrem de ansiedade por alimentos de origem animal. Conforme bem o explica o mdico Neal Barnard [fundador do Comit dos Mdicos para a Medicina Responsvel, uma ONG que congrega quase 10 mil mdicos], em seu livro Breaking the Food Seduction, e a nutrloga Carol Simontacchi, em The Crazy Makers, a fissura por gordura animal adico, como o a fissura por outros aditivos que alteram o estado de conscincia. Portanto, ter um forte apetite ou desejo de comer carnes, queijos, sorvetes, chocolates, no indcio de que o organismo est precisando dos nutrientes contidos nesses alimentos. o crebro que esperneia para obter mais gordura e acar, seus dois alimentos preferidos. O fato que podemos dar a ele gordura e acar de origem vegetal. Mas nossa cultura nos induziu a pensarmos que estes no prestam, s os de origem animal. 55
Situando o carnivorismo como um costume, derivado de presses ambientais j no mais presentes, a propaganda vegetariana visa expor sua suposta contingncia. Ou seja, a inexistncia de sua necessidade. Ao argumentar nestes termos, muitos vegetarianos acabam se aproximando, mesmo sem saber, da chamada hiptese do grande erro [big mistake hypotesis] na teoria da evoluo humana, segundo a qual o comportamento humano seria mal-adaptativo no ambiente contemporneo por ser adequado em um ambiente ancestral radicalmente diferente. De acordo com a hiptese do grande erro, nossa psicologia seria adaptada s exigncias de vida no Pleistoceno, mas se tornou mal-adaptativa no ambiente de uma sociedade industrial (Abrantes e Almeida, 2011, p. 283). J a viso da pr-histria oferecida pelos defensores da carne ligeiramente diferente. No exatamente em seu contedo descritivo. O cenrio original pleistocnico, para todos os efeitos, permanece mais ou menos o mesmo: era glacial, deflorestamento, grandes predadores, etc. O que muda, a bem da verdade, so as consequncias normativas dele. Na plataforma virtual do SIC, h uma rubrica denominada Pr- Histria, na qual se oferece o seguinte texto:
55 Disponvel em: http://www.anda.jor.br/01/06/2011/o-sono-das-galinhas, consultado em 12 de setembro de 2012. 84
A carne o alimento que tem acompanhado a evoluo do homem desde a poca em que ele habitava as escuras cavernas. Nos primeiros tempos, a alimentao humana era essencialmente vegetariana, baseada principalmente no consumo de frutos e de algumas folhas. Mas, uma vez experimentada, a carne incorporou-se definitivamente aos hbitos alimentares da espcie humana. Depois da descoberta desse sabor, qualquer animal que andasse por cima da terra, cruzasse os ares ou deslizasse sob as guas dos rios era prenncio de um farto banquete. (...) Para isso, esse ancestral do Homo sapiens saa caa munido de paus e pedras ou de uma arma que, naquela poca, era o que havia de mais avanado em termos de tecnologia: a lana de pau com ponta de pedra afiada. Essas batalhas dirias pela sobrevivncia, travadas com as feras, garantiram a perpetuao da espcie e contriburam para a sua evoluo at os nossos dias. 56
Ou seja, ao contrrio de um vcio, o consumo de carne apresentado como benfazejo fator disparador de humanizao e civilizao. Se o consumo de carne se trata de um costume, ento ele seria, de fato, um bom costume: uma vez experimentada, a carne incorporou-se definitivamente aos hbitos alimentares da espcie humana. Em consonncia, o Dr. Drauzio Varela, influente personagem da divulgao mdica no Brasil e que frequentemente defende publicamente o consumo de carne, assim escreve em seu site: A espcie humana sempre comeu carne. Nas cavernas, nossos antepassados davam preferncia a ela, como concluram os estudos de suas arcadas dentrias. provvel que o homem s se conformasse com outros alimentos quando a caa rareava. Guiado pelo instinto do paladar, corria atrs da carne por seu alto valor calrico: um grama de gordura produz 9 calorias, um grama de acar ou protena, 4 calorias. Por milhes de anos, mesmo quando o homem buscou na agricultura as calorias necessrias para manter a famlia, a preferncia pela carne resistiu. E assim permanece. No fcil subverter ordens estabelecidas em milhes de anos. A gentica me castradora. 57
Assim, se a gentica me castradora, a questo translada-se do hbito (contingente) para a natureza (necessria), e o corpo humano passa a ser um corpo moldado, um corpo constitudo pelo (e para o) consumo de carne. O Dr. Rond, presente na situao etnogrfica disparadora, dedica alguns captulos de seu livro Sinal verde para a carne vermelha (2011) questo da histria da alimentao. Segundo ele,
56 Disponvel em: http://www.sic.org.br/prehistoria.asp, consultado em 12 de setermbro de 2012. 57 Disponvel em: http://drauziovarella.com.br/doencas-e-sintomas/obesidade/os-prazeres-da-carne- vermelha/, consultado em 12 de setembro de 2012. 85
H cerca de 2.5 milhes de anos, eles [os proto-humanos] desceram das rvores, desenvolveram ps-funcionais e adotaram a postura ereta. Seus maiores predadores ainda eram os grandes felinos e, para se proteger, passaram a se agrupar socialmente. Nessa evoluo, aprenderam no somente a abater os predadores, mas tambm as presas, transformando-se em caadores. Com isso, sua fonte alimentar predominante comeou a mudar de vegetais para animais, o que promoveu mudanas no seu trato digestivo herbvoros tm um trato intestinal mais longo, que propicia mais tempo para a correta quebra de celulose, enquanto carnvoros apresentam trato inicial mais curto. (p. 91)
A mudana mais importante para o Dr. Rond, no entanto, teria sido aquela produzida no crebro, tal como j anunciado em sua interveno na palestra disparadora. De acordo com seu livro, seus crebros [dos homens primitivos], de 500cm 3 , desenvolveram-se at chegar aos atuais 1.530cm 3 . O aumento da capacidade cerebral foi literalmente alimentado por carne. Quanto mais inteligentes eram nossos ancestrais, mais chance tinham de se sobrepor aos seus predadores (2011, p. 91). O livro segue argumentando que passar a consumir carne ajudou na construo de vrias das nossas caractersticas: formao do grupo social, trabalho em equipe, deslocamento por longas distncias em busca de alimento, alm de uma inteligncia mais apurada, forjada pela necessidade de proteger o grupo, a prole e o prprio alimento (p. 92)
Haveria tambm uma diviso de gnero trabalho social oriunda do consumo de carne, pois, de acordo com o Dr. Rond, a luta pela sobrevivncia no poderia se desenvolver sem a participao de todos, e a atividade coletora, to importante quanto necessria, cabia s mulheres (p. 92). Este aspecto da evoluo e a forma com que o mdico o analisa so bastante ilustrativos, pois remetem o mbito feminino a uma atividade lateral e complementar, que coloca a caa e o masculino em primeiro plano. A crtica a esta interpretao da diviso primitiva do trabalho social, delineada por autores feministas como Adams (2010), encontra ecos na controvrsia vigente no campo da paleoantropologia entre a chamada hiptese do caador e a hiptese do cozinheiro, respectivamente representadas por pesquisadores como Bunn (1997) e Wrangham (1999, 2011). Para este ltimo, certamente a ingesto de carne foi um fator importante na evoluo e na nutrio humana, mas teve menos impacto sobre nossos corpos que o alimento cozido (2011, p. 48). Ao contrrio de Adams (2010), no entanto, 86
o que move Wrangham em sua crtica hiptese do caador menos uma consternao com suas consequncias para as questes de gnero do que uma questo de genuno aproveitamento energtico dos alimentos, o que tambm o diferencia da abordagem de Lvi-Strauss (2004, 2006, 2010), que enfatiza os aspectos simblicos e classificatrios do cozimento. No contexto de apropriao de dados cientficos para subsidiar argumentos nas controvrsias envolvendo a carne, os aspectos energticos e nutricionais tambm saltam ao primeiro plano. Como se l no artigo do Dr. Druzio Varela, mesmo quando o homem buscou na agricultura as calorias necessrias para manter a famlia, a preferncia pela carne resistiu. E assim permanece. Em relao a este ponto, concorda o Dr. Rond: Gros e outros alimentos cultivados s se tornaram parte da dieta humana h pouco mais de 10 mil anos. Pode parecer um longo perodo do nosso ponto de vista, mas considere que 10 mil s representam 0,4% do tempo em que a espcie humana encontra-se na Terra, ou seja, apenas quinhentas geraes. Seria este o tempo necessrio para as espcies ajustarem-se a uma alimentao base de gros? (2011, p. 94)
E assim, numa surpreendente ativao da hiptese do grande erro, agora em prol do carnivorismo, o cirurgio complementa: Essencialmente, nossa gentica se mantm a mesma desde os nossos ancestrais na Idade da Pedra, que no consumiam gros de maneira alguma. Nossa necessidade nutricional no mudou fundamentalmente desde ento. A verdade que, com a produo de gros, os humanos tm se adaptado com maior ou menor intensidade presena desses itens na alimentao. A quantidade tolervel de gros e seus derivados varia enormemente de pessoa para pessoa, e muitos de ns tm baixa ou nenhuma tolerncia a eles (idem)
Eis, portanto, o contraste: para uma parcela importante do vegetarianismo, o carnivorismo improcedente porque no se conforma a uma fisiologia herdada de um passado herbvoro e frugvoro. As possibilidades abertas pela agricultura e pela cincia, no contexto contemporneo, j nos seriam suficientes para substituir quaisquer necessidades proteicas oriundas da carne, com a vantagem de evitar as ditas doenas da civilizao. J para alguns defensores do carnivorismo, o vegetarianismo estrito seria improcedente porque no se conforma a uma fisiologia humana primitiva constituda a 87
partir do consumo de carne, alm de fazer a balana nutricional pender excessivamente para o lado dos gros - ou seja, para o lado da agricultura, colocada agora, em substituio caa, como verdadeiro pecado ou contingncia original. O que uns enxergam como desvio de rumo no distante Pleistoceno (o consumo de carne), outros enxergam como desvio no Neoltico (o incremento no consumo de gros). Lembremos que um dos participantes da palestra disparadora tambm tinha sua verso das doenas da civilizao: esta combinao de pizza com batata frita que estaria transformando as sociedades ocidentais em sociedades obesas; e at mesmo o fato, tomado como preocupante naquela ocasio, que nossa dieta rica em carboidratos estaria nos transformando em soja e milho. Em seu livro sobre as vantagens da carne vermelha, o Dr. Rond traa comentrios pouco elogiosos soja, retratada como o tipo mais puro da imoderao cerealfera contempornea: Vegetarianos e simpatizantes que me desculpem, mas a soja um veneno. Veja o que aconteceu com internos do Departamento de Correo, em Illinois, depois que mudaram sua alimentao. Inmeros casos de arritmia cardaca, infeces, queda de cabelo e alergias. Alguns detentos foram submetidos remoo de parte do clon, e houve at quem precisasse colocar marca-passo. A origem desses problemas todos foi a mudana de alimentao, com reforo expressivo de soja, elevada hoje ao status de alimento saudvel. (...) Quem procura sade deve ficar o mais distante possvel da soja. Na dcada passada, em especial, a propaganda a transformou em um dos alimentos mais saudveis ao nosso alcance. Tudo mentira, manipulao motivada por interesses comerciais. Se voc acha que esses internos recebiam soja na alimentao como reforo de uma dieta saudvel, hora de uma saudvel dose de realidade e de voltar para um bom e raro pedao de carne. (2011, p. 82)
Em sua propaganda poltica, a militncia vegetariana frequentemente esboa alertas a respeito da procedncia dos produtos. Ser vegetariano, e, sobretudo, vegano, difcil numa sociedade em que a utilizao animal permeia uma srie de atividades econmicas. Na impossibilidade de um consumo 100% animal free, a maior parte dos adeptos deste modo de vida se empenha numa poltica de controle de danos, reduzindo ao mximo o consumo de derivados animais e investigando minuciosamente a procedncia dos produtos adquiridos. H redes de colaborao na internet destinadas troca de informaes sobre produtos livres de insumo animal, com centenas de seguidores. curioso notar, neste sentido, que o Dr. Rond, a favor da carne e contra a 88
soja, desenvolva uma retrica parecida dos vegetarianos em relao ao inimigo oculto na gndola do supermercado, pregando o esclarecimento: Nos dias de hoje, difcil encontrar alimento industrializado que no contenha algum tipo de derivado de soja, como soja em flocos, leo de soja, lecitina, protena de soja isolada e protena vegetal texturizada. Mesmo leos vegetais e margarina contm soja. Por ser um aditivo alimentar barato, a indstria a utiliza em batatas chips, atum enlatado, sucos, bolachas, cereais e uma infinidade de outros produtos. Na prxima vez que voc for ao supermercado, d uma olhada mais atenta s gndolas: voc vai se surpreender com a presena esmagadora de soja nos rtulos dos produtos. (idem, p. 83)
O perigoso lastro dos gros, argumenta o cirurgio, estende-se at mesmo carne vermelha, objeto da sua defesa pblica. Cumpre notar que seu livro no defende e nem recomenda o consumo de qualquer tipo de carne. Ao contrrio, traa comentrios bastante desfavorveis ao gado criado em regime de confinamento, reproduzindo a polmica esboada no captulo anterior entre o gado nacional, criado a pasto, e o gado estrangeiro, criado confinado: Outro entrave qualidade da carne de gado confinado a utilizao excessiva de milho na alimentao dos animais. As plantaes de monocultura recebem grande quantidade de herbicidas que, indiretamente, acabam chegando at ns pelo consumo da carne. (...) Ainda no possvel ter absoluta certeza de que a carne do mercado em geral proveniente de animais criados a pasto. Por isso, aconselho a procurar os comerciantes mais conhecidos pela qualidade dos produtos que oferecem e fugir daqueles que podem estar comercializando peas de gado criado em confinamento, o qual normalmente alimentado com gros e tratado com antibiticos, hormnios e conservantes. (idem, p. 50).
Tomando em conta este aspecto, realizarei um pequeno excurso sobre a questo da dialtica entre confinamento e pasto antes de passar para a anlise mais detida das relaes de gnero embutidas nestes discursos contra e a favor da carne, de modo a refletir rapidamente sobre as suas consequncias para uma antropologia da alimentao (Fischler, 2001). Como j esboado no captulo anterior, estas diferenas no modo de criao do gado apontam para questes verdadeiramente cruciais envolvendo a distino humano/animal.
89
3.1.1 Excurso sobre a alimentao de humanos e animais
dada grande nfase na discusso pblica ao aspecto espacial dos confinamentos animais. Ou seja, em que medida a liberdade de ir e vir dos animais no fica reduzida, neste mtodo de criao, ao nvel da mais pura crueldade. H, contudo, outra dimenso bastante relevante que diferencia os mtodos extensivos dos mtodos intensivos, diferena esta calcada, sobretudo, no modo de alimentao dos animais. Na criao extensiva ou semi-extensiva, na qual a base da alimentao do animal so as gramneas, preserva-se certa no-comensalidade entre o homem e o animal: eles comem capim, e ns os comemos porque, graas s capacidades nicas de sua microbiota ruminal, eles transformam capim, que no comemos, naquilo que eles so. Retornarei a este ponto no captulo 4. Por hora, cabe o reconhecimento do seguinte: ao se alimentarem de raes ou preparados, os animais confinados passam a se alimentar de gros, soja ou milho, que ns tambm comemos. Em certa medida, ao consumirem raes, os animais de produo se tornam nossos comensais. Em tempos de crise ecolgica e nutricional, isto implica dividir com eles uma parte da produo cerealfera. Para a crtica ambientalista e vegetariana, a reserva desta parte (para no dizer a maior parte 58 ) dos cereais para o consumo animal vista como escandalosa, por ser ambiental e socialmente nociva. exatamente a partir deste ponto que os crticos da carne desenvolvem uma narrativa segundo a qual o consumo e a produo de carne so geradores de fome, desigualdade social e desequilbrios ambientais. Se, por um lado, defensores do confinamento argumentam que as raes proporcionam uma converso de matria seca em carne muito rpida e proveitosa, os crticos argumentam que, no cmputo geral, esta uma converso altamente custosa, ineficiente e predatria. Para produzir um quilo de carne, objetam os crticos, seriam necessrios muitos quilos de cereal e ainda muitos mais litros de gua, o que tornaria este tipo de produo social e humanitariamente invivel 59 . H toda uma controvrsia
58 Wilkie (2010), evocando a FAO, assinala que 70% do milho colhido nos Estados Unidos tem como destino a alimentao de animais confinados. 59 Um exemplo que subsidia as alegaes de ineficincia: Hoje em dia, nos pases em desenvolvidos e nas camadas sociais abastadas dos pases em desenvolvimento, a rao mdia [humana] ultrapassa folgadamente as 3.000 calorias dirias por pessoa, incluindo uma parte importante de calorias animais. Consideremos agora uma rao mdia de 3.200 calorias por dia, compostas por 2.200 calorias vegetais e de 1.000 calorias animais. Como vimos, para conseguir estas 2.200 calorias vegetais, preciso dispor de 90
sociotcnica, que no me cabe pormenorizar agora, envolvendo a porcentagem da gua potvel disponvel no planeta destinada pecuria, bem como a quantidade de terras agriculturveis nas mos da criao de animais e de cereais para alimentar animais que poderia ser destinada a outras atividades.
Figura 12: pecuria como atividade socio-ambientalmente nociva. Infogrfico produzido pelo Estado de So Paulo, disseminado por militantes vegetarianos nas redes sociais. 60
Atualmente, se vive no Brasil um momento de forte liberao de pastagens para a cultura de gros (Brando, 2005, p. 2005), sobretudo a soja, a qual, exportada como commodity, comprada por naes do norte, em grande parte, para alimentar seu gado confinado. Paradoxalmente, dois produtos que para muitas pessoas envolvidas nas guerras da carne aparecem como opostos (a carne bovina e a soja), acabam sendo fruto,
200kg de equivalente-cereal por pessoa e por dia. Alm disso, sabendo que preciso aproximadamente sete calorias vegetais para uma caloria animal, preciso ainda dispor, para conseguir 1.000 calorias animais, de aproximadamente 7.000 calorias vegetais (por pessoa e por dia), o que corresponde a 640kg de equivalente-cereal por pessoa por ano. No total, preciso dispor de 200 +640 =840kg de equivalente cereal por pessoa e por ano, ou seja, aproximadamente quatro vezes mais que o mnimo considerado anteriormente (Mazoyer e Roudart, 2010, p. 95). [grifo meu] 60 Disponvel em : http://www.estadao.com.br/especiais/de-onde-vem-o-lixo-produzido-no- mundo,148028.htm, acessado em 23/12/2012.
91
como afirma Almeida (2011), da mesma trajetria sociotcnica, ao menos na histria recente da ocupao agrcola do Brasil. Conforme os gros tomam o espao antes dedicado pecuria extensiva, a tendncia tem sido a de ampliao dos confinamentos tambm em solo nacional, o que, na viso de muitos produtores, uma maneira de produzir mais carne, mais rpido, mais padronizadamente, e, o que crucial, em menos espao. Em um artigo apologtico ao confinamento, recentemente publicado na plataforma Beef Point 61 , um especialista no mercado bovino diz-se admirado com a capacidade dos norte-americanos abaterem animais aos 24 meses com 700kg em mdia, praticamente 100% confinado, com ganhos mdios de 2kg ao dia. Nos eventos pblicos da pecuria de corte, como a FEICORTE, visvel o entusiasmo e interesse de muitos produtores com as vantagens prometidas pelo confinamento. Nestas ocasies, h premiaes para confinamentos exemplares, como o Prmio Nelson Pineda, em homenagem a um dos pioneiros do mtodo no Brasil. A indstria de insumos agrcolas (raes, medicamentos, etc.) tambm aproveita estes eventos para promover seus produtos adequados ao confinamento. Na edio de 2011 da FEICORTE, havia um enorme stand pertencente a um grupo empresarial especializado em nutrio animal inteligente, prtica definida no site do mesmo grupo como fundamentada na adequao da complementao mineral dos rebanhos para atender necessidades de uma pecuria empresarial em que as metas de desempenho so cada vez mais desafiadoras 62 . Em frente ao stand, duas promotoras de venda distribuam pequenas caixas azuis (no maiores que uma mo) em cuja lateral se lia: voc se alimenta de flakes? Seu boi tambm. Dentro da caixa, os visitantes ganhavam um punhado de flocos de milho, semelhante aos cereais matinais, e eram convidados a prov-los. Aquele mesmo insumo, de fato, era ministrado aos bois confinados, conforme demonstrao in vivo logo ao lado. A caixa ainda informava que aquele alimento to seguro que at mesmo humanos poderiam consumir era usado em 70% dos confinamentos estadunidenses, apresentados como os mais modernos no campo da pecuria intensiva. Pude observar
61 Disponvel em : http://www.beefpoint.com.br/cadeia-produtiva/espaco-aberto/que-tal-15-mil-litros-de- agua-por-quilo-de-carne/, consultado em 24 de outubro de 2012. 62 Disponvel em: http://www.prodap.com.br/nutricao/nutricaoi2.php, consultado em 31 de agosto de 2012. 92
alguma hesitao dos visitantes em provar dos flocos. Talvez porque dividindo com os animais a mesma comida, j no estivesse mais to assegurado nosso lugar no topo da cadeia alimentar. As fronteiras especficas entre o eu e o outro, balizadas pelo que se come (Haraway, 2008; Fischler, 2001) tendem, no contexto altamente tecnificado da nutrio animal para confinamentos, a produzir hbridos cada vez mais inclassificveis. Acredito que este iniciativa publicitria pode ser compreendida como uma verso controlada e positivada do tipo de experincia causada pela exposio de meandros socialmente ocultos das redes sociotcnicas (Latour, 1994, 2001, 2004) agroalimentares. A verso negativada e descontrolada da mesma experincia representada pelos surtos de Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB) a doena da Vaca Louca que grassaram no hemisfrio norte ao longo das dcadas de 1980 e 1990. Tambm nesta ocasio, a opinio pblica fora informada, de maneira um tanto mais trgica que os visitantes da FEICORTE, que os ruminantes que lhe serviam de alimento eram, em certa medida, seus comensais, pois alimentavam indiretamente de outros ruminantes. Dividir com os animais de fazenda a produo cerealfera mundial levanta problemas ambientais e socioecnmicos. Certo incmodo interespecfico, causado pela comensalidade envolvendo uns e outros, tambm se faz presente. o que parece verter de uma experincia como a dos flakes na FEICORTE: afinal de contas, quando ambos se alimentam de flocos de milho, so os humanos que se alimentam como bichos ou os bichos que se alimentam como humanos? J no caso da Vaca Louca, o que reluz o tabu do canibalismo, representado por ruminantes que se alimentam indiretamente de outros ruminantes (Lvi-Strauss, 2009). H um curto circuito nas fronteiras especficas mediadas pelo ato alimentar. O lugar do ser humano no topo da cadeia alimentar j no se trata mais de uma certeza absoluta. No coincidentemente, os males provocados pela protena prinica, o agente etiolgico da EEB, so de ordem neurolgica. a prpria atividade cerebral e cognitiva dos organismos atingidos humanos ou animais que se v comprometida. 3.2 O gnero da carne Feito este breve excurso, cabe agora retornar s questes deixadas em aberto no item anterior. importante ressaltar que o ser humano enfocado nas controvrsias da carne , para todos os efeitos, um homem: ou seja, ainda que se esteja falando da espcie 93
humana em geral, a figura de um indivduo masculino que vem ao primeiro plano nas discusses envolvendo o consumo de carne. L-se no livro do Dr. Rond: O consumo regular de carne vermelha, no mnimo trs vezes por semana, importante para manter altos os nveis de andrognio, hormnio esteride que estimula o desenvolvimento dos caracteres masculinos secundrios. Estudos tm mostrado que a reduo no consumo de carne vermelha e de gordura das carnes causa diminuio dos nveis de andrognio nos homens. Em outro estudo, trinta homens saudveis tiveram suas dietas alteradas, com reduo de carne vermelha e da relao de gordura poli-instaurada/gordura saturada. Aps seis semanas, seus nveis de testosterona diminuram 10% em mdia. (2011, p. 55)
significativo que logo depois de alertar para os perigos de alterao nos nveis de testosterona devido abstinncia de carne, o autor passe diretamente a traar comentrios sobre o que essencial para o ser humano em geral, transladando a sua fala da parte (o gnero masculino) ao todo (a espcie humana) de maneira imediata e englobante (no sentido de Dumont, 1985): Vivemos uma parania contra a gordura e a protena de origem animal. O quadro deveria ser diferente, pois precisamos desse tipo de gordura e protena, essencial para o ser humano. No somos capazes de produzi-la. No possvel produzir protena a partir de amido ou carboidratos. Muitas dessas protenas so cruciais para todas as clulas (idem)
Esta economia simblica do gnero envolvendo os humores e temperamentos advinda do consumo de carne tem razes bastante profundas. J no alvorecer da modernidade, Baruch Espinoza argumentava que a objeo ao abate de animais baseava-se em superstio vazia e em feminina brandura e no na justa razo (Thomas, 2010, p. 422). Para autoras da crtica ecolgica feminista como Adams (2010), Merchant (1989), e, em certa medida, tambm Wilkie (2010), o carnivorismo pode ser considerado um elemento central da dominao masculina que caracteriza a civilizao do ocidente moderno. Nas incurses etnogrficas pelo mundo do agronegcio, flagrante notar a forte diviso de gnero existente neste meio. Embora haja certa retrica de modernidade envolvendo a incluso de mulheres em cargos de liderana do agronegcio representada, contemporaneamente, pela emblemtica figura da senadora Ktia Abreu 94
(PSD/TO), presidente da CNA , a lida com o campo e com os animais permanece uma funo hegemonicamente masculina. O agronegcio financeirizado e profissionalizado do sculo XXI tambm no escapa desta poltica de gnero marcadamente patriarcal. Em reportagens que discutem a ascenso das mulheres no agronegcio, percebe-se forte nfase no fato de que tais mulheres so mulheres apesar de tudo isto , no descuidam da beleza e da feminilidade, dos gostos de grife, etc. Sahlins (2007) j havia notado este aspecto quando argumenta, a respeito da centralidade da carne para a sociedade norte-americana, que seu modelo alimentar deriva de uma forma de explorao do meio ambiente, que, a seu juzo deve remontar identificao indo-europeia do gado ou da riqueza multiplicvel com a virilidade (p. 185) 63 . Para o autor, bastaria se observar as refeies das equipes esportivas em treinamento, especialmente o futebol americano, para se perceber a indispensabilidade da carne como fora, e do fil como eptome das carnes viris (idem).
Figura 13: material publicitrio para linha de suplementos proteicos Carnivor, com forte apelo masculinidade
Um exemplo etnogrfico que reproduzo abaixo, a partir do dirio de campo da FEICORTE de 2012, pode auxiliar a ilustrar esta dimenso de gnero envolvida na pecuria, assim como sua transposio para o caso do Brasil. Como argumenta Wilkie
63 Neste sentido, o autor retoma em uma nota ao texto as discusses de Benveniste sobre o pasu vra indo- europeu, termo que remete ao conjunto da propriedade privada mvel, tanto de homens quanto de animais. A relao etimolgica entre pecus [gado] e pecunia [dinheiro] tambm citada por Sahlins. Este ponto ser mais bem trabalhado no captulo 4. 95
(2010), foroso reconhecer que nos contextos rurais os animais tambm acabam sendo objeto de uma poltica de gnero: Hoje havia uma demonstrao prtica de como casquear um bovino. Tratava-se de um tronco de conteno estrategicamente posicionado na entrada do Espao Carne, ocupado por uma viosa e incomodada vaca branca, atada ao aparelho por cordames que prendiam suas patas e envolviam sua barriga por baixo. Vrias pessoas contemplavam o espetculo, que tambm era filmado por uma equipe do Canal Rural. De maneira muito paciente, o casqueador erguia a pata traseira da vaca atravs de uma manivela, a qual erguia o referido membro at o ponto em que ficasse confortvel para ele, o casqueador, realizar o seu trabalho. O animal, visivelmente desconfortado, urrava e mugia a cada movimento de uma de suas patas, permanecendo incomodado ao longo do processo inteiro. Ao meu lado, uma promotora de vendas assistia a tudo bastante impressionada, soltando comentrios condodos. Um senhor de uns sessenta anos de idade se aproximou da moa e disparou o seguinte comentrio: no se preocupa no, viu. sempre assim. Acho que s vocs [mulheres] que no reclamam na hora de fazer as unhas.
Ora, se no campo do consumo a carne aparece como alimento mais identificado com a produo da virilidade e sos corpos masculinos, no universo da produo o que se verifica um correspondente (e muito frequente) paralelismo do animal que ser consumido com o feminino. H uma ntima vinculao entre o episdio acima descrito e aquela outra situao, vivenciada na palestra disparadora, em que o mediador chamara a atriz Angelina J olie de suculenta. A carne consumida em sentido literal. A mulher, em sentido metafrico: diz-se do ato sexual, no colquio, que a parte passiva do mesmo comida pela parte ativa. A prpria expresso bofe, usada muitas vezes na gria homossexual para se referir ao parceiro ativo, remete a um imaginrio carnvoro, pois o bofe, na partio bovina uma carne que no se come. As justificaes ao consumo de carne calcadas no mito do man the hunter - que tm na discusso erudita e cientfica sua declinao sob a forma da hiptese do caador parecem antes se relacionar com uma economia simblica do gnero e da sexualidade na nossa sociedade do que com um trao natural e evolutivo da espcie como um todo. Distintos trabalhos sugerem que algumas narrativas cientficas mais persuasivas da modernidade esto calcadas em pressupostos e esteretipos de gnero firmemente sedimentados, como a atribuio de intencionalidades masculinas e 96
femininas para espermatozoides e vulos nas narrativas sobre fecundao (Martin, 2007), por exemplo. Schiebinger (1987) e Lorber (2003) assinalam o sculo XVIII como representativo de um acirramento das distines de natureza entre homens e mulheres e do advento da biomedicina como instncia de arbitragem para os casos limtrofes e problemticos. Rohden (2002), por sua vez, analisa a ginecologia no sculo XX como um saber que se constitui a partir da noo de que o corpo e o papel social femininos so determinados pela funo procriativa (2002, p. 101). Atravs de uma progressiva substancializao das diferenas de gnero no corpo, as distines do que cabe a cada um dos sexos se desloca de uma materializao atravs dos rgos (tero, ovrios, testculos) para outra radicada na mecnica dos hormnios (progesterona, testosterona) e, mais recentemente, para aquela centrada nas diferenas genticas e neurolgicas. Ora, o espectro temporal abordado por estas autoras coincide com aquele da constituio e refinamento da hiptese do caador nas narrativas de evoluo da espcie, de modo que podemos considerar, ttulo de hiptese, que ambos os processos sejam oriundos de uma mesma matriz ideolgica. Se h, portanto, uma gramtica carnvora na vida social, como explicitado no captulo anterior, deve se reconhecer que esta tambm uma gramtica de gnero: transversal ao discurso leigo e erudito, ao senso comum e cincia, sendo transposto de um lado a outro por instrumentos de traduo cientfica como as obras de divulgao mdica. 3.4 Os nimos da carne
Um dos obstculos epistemolgicos (Bachelard, 1996) aparentemente derrotados pelo avano da biomedicina a partir do sculo XVIII seria aquele representado pela antiga medicina galnica, a qual, longe de submeter o funcionamento dos corpos a uma cega lei natural de tipo newtoniano, fazia dele uma morada dos humores 64 , cuja avaliao se dava mais qualitativa que quantitativamente: haveria rgos secos e rgos midos; temperamentos fleumticos, colricos e melanclicos; cada qual relacionado com uma parte ou uma substncia do corpo, como se elas tivessem agncia e intenes. Nesta medicina, os alimentos cumpriam um papel essencial. Como
64 Bachelard (1996) chama este processo de superao do obstculo animista nas explicaes cientficas. 97
os humores, eles podem ser secos ou midos, quentes ou frios. Mais do que isto, poderiam incidir sobre o carter e o temperamento das pessoas, alando a ingesto ao patamar de um processo eminentemente moral. Pese o desenvolvimento de uma abordagem cada vez mais calcada na avaliao das propriedades fsico-qumicas dos alimentos (Montanari, 2008), ecos distantes do paradigma galnico ainda tambm se fazem sentir nas discusses sobre carne, seja em mbito profissional ou leigo. A argumentao do Dr. Rond em prol da carne vermelha, por exemplo, baseia-se numa teoria de tipos metablicos. Segundo ela, a posio de cada indivduo nesta tipologia prescreveria a dieta mais adequada para o seu caso particular. De acordo com o mdico, no h uma receita de alimentao perfeita que funcione igualmente para todos (Rond, 2011, p. 85), de modo que seria de fundamental importncia conseguir identificar a que tipo de perfil cada pessoa pertence 65 . O melhor a se fazer, defende o especialista, seria trabalhar em parceria com um mdico (idem, p. 86) na descoberta do seu prprio perfil, atravs de exames clnicos de laboratrio e outras identificaes mais precisas. No entanto, o livro traz consigo um teste de vinte questes, divididas em duas partes, que auxilia o leitor na identificao preliminar do seu perfil metablico. So apresentados trs tipos metablicos: o tipo protena (cujo organismo aceita muita protena, muita gordura e pouco carboidrato); o tipo carbo (cujo organismo satisfaz-se com pouca protena, pouca gordura e muito carboidrato); e o tipo misto (auto-explicativo, fuso dos outros dois). Para responder ao questionrio, preciso assinalar verdadeiro ou falso de acordo com o que realmente acontece com voc (idem, p. 87). interessante notar que, dentre as alternativas elencadas, h tanto enunciados relativos a estados factuais (meu apetite no almoo forte preciso urinar frequentemente durante o dia) quanto enunciados de sentido mais moral e subjetivo (vivo para comer em vez de comer para viver). Montanari (2008) relembra que na Idade Mdia o nobre se qualificava como consumidor de carne, o alimento mais diretamente vinculado a ideia de fora, num sentido tanto simblico quanto tcnico-funcional (p. 126). No coincidentemente, experincias monsticas, de ascese ou de afastamento do mundo, nesta poca,
65 No se trata, evidentemente, de um caso isolado. Assim como h a dieta dos tipos metablicos, h tambm a popular dieta dos tipos sanguneos, que prescreve estilos de vida alimentares diferentes para perfis diferentes. 98
continham o rechao da carne, e, com ele, de um estilo de vida e de alimentao culturalmente identificado com o exerccio do poder, da fora e da violncia (idem). O mesmo assinala Weber (2004) a respeito de algumas verses radicais do protestantismo asctico. Ainda mais distante no espectro temporal, Ginsburg (2012) apresenta dois tipos de rejeio sectria religio oficial da polis grega, cada uma delas calcada em um tipo de privao alimentar diferente: a religio da cidade, que tinha no sacrifcio o seu prprio centro, foi obrigada a enfrentar dupla contestao, representada pelas formas de religiosidade radical que eram defendidas, respectivamente, pelos seguidores de Pitgoras e Dioniso. Os primeiros condenavam de forma menos ou mais decidida a alimentao com carne, vista como obstculo no caminho de uma perfeio que deveria aproximar deuses e homens. Os segundos tendiam a abolir a distncia entre homens e animais recorrendo ao ritual sanguinrio da homofagia, em que os animais eram despedaados e devorados ainda crus quase vivos (p. 271).
Enquanto os seguidores de Dioniso renegavam a religio da cidade atravs de uma anticozinha (Montanari, 2008) que rejeitava o cozimento, isto , o modus operandi do sacrifcio, os seguidores de Pitgoras procuravam uma comunicao mais imediata com os deuses atravs da rejeio do prprio objeto do sacrifcio, a carne. Ambas as formas de religiosidade alternativa buscavam divergir do sacrifcio oficial, mas de maneira simetricamente oposta. Os primeiros buscavam se aproximar da animalidade atravs de um contato mais direto com a matria crua, rejeitando o cozimento. Os ltimos, em contrapartida, procuravam se divinizar atravs de um afastamento cada vez mais pronunciado em relao matria, que tinha na carne sua figura mais absoluta e emblemtica. Pitgoras, como mito fundador do vegetarianismo ocidental, constitui-se como o paradigma do vegetariano sbio, renunciante, cuja tradio se perenizou ao longo dos sculos atravs de outras figuras emblemticas como Plutarco, Porfrio, Sneca, Milton, Newton, Thomas Tyron, Leonardo da Vinci, Gandhi, George Bernard Shaw, entre outros. Em seu tratado denominado Sobre a absteno de matar animais, Porfrio (232- 309 d.C.) j argumentava que a pureza e a autodisciplina da dieta vegetariana importante para aqueles devotados a uma vida intelectual (apud Fraser, 2012, p. 37). Um dos pioneiros do vegetarianismo na Inglaterra da Idade Moderna alegava que os homens vulgares e ignorantes, quando mimados com uma variedade de comida animal, 99
so muito mais colricos, ferozes e cruis em seus temperamentos do que os que vivem basicamente de vegetais (apud Thomas, 2010, p. 412). Neste sentido, podemos considerar que a rejeio carne como alimento, no ocidente, contm consigo elementos de uma rejeio carne como dimenso ontolgica: natureza humana, por oposio natureza divina; corpo humano, por oposio ao esprito, alma; carne, por fim, como a condio humana, considerada em suas fraquezas, seus apetites, sua concupiscncia. Traos desta assinatura fsico-moral so rastreveis na literatura vegetariana contempornea. De acordo com o manual vegetariano de Scolnik e Scolnik (1979), ao deixar a carne, a mente e os sentidos tornam-se mais aguados; os costumes se moderam e os sentimentos se elevam e se enobrecem (p. 24). O de Avadhtika carya (2011), bastante espiritualista, ressalta que atravs da histria, pessoas sbias e eruditas adotaram a dieta vegetariana, e cita o exemplo de So Paulo, o qual, na epstola aos romanos (14, 21), recomenda aos membros da comunidade crist a no comer carne. Este manual tambm prope uma classificao dos alimentos entre sutis, mutatrios e estticos, de acordo com a energia proporcionada por cada um deles. As carnes, assim como as bebidas alcolicas, estariam contidas na categoria esttica, cuja energia seria aquela do embrutecimento, da inrcia, da decadncia e da morte (carya, 2011, p. 33). J para o guia de Bonardi (1991), a cozinha vegetariana alegre e otimista, livre de qualquer metafsica (p. 13). To frequentes quanto estas menes espiritualidade, elevao intelectual e moral envolvendo a abstinncia de carne, so os relatos de vegetarianos que alegam terem se tornado mais leves depois que pararam de consumir carne. A natureza desta leveza engloba tanto o aspecto fsico quanto o psquico, o moral e o social. Leveza do corpo, que passa a funcionar melhor, ter mais disposio; leveza da mente, que compreende melhor as coisas, se pacifica; leveza do esprito, que se abre para a solidariedade entre tudo o que vivo, os homens e os animais. H tambm a leveza de quem ops-se fora cultural e optou por viver mais autenticamente, conforme relato de uma interlocutora. A prpria categoria de fora, inscrita com mais frequncia no domnio de significados do carnivorismo, tambm mobilizada pelo vegetarianismo com um 100
significado prximo desta leveza discutida acima. De acordo com o manual de carya (2011, p. 68): Esses resultados [de pesquisas citadas anteriormente no livro] demonstram que a dieta vegetariana a mais indicada para o desenvolvimento da fora, da resistncia e da eficincia fsica. Na verdade, os animais mais fortes e de vida mais longa so os vegetarianos. O cavalo, o boi, o bfalo e o elefante, todos eles tm corpos grandes e saudveis, resistncia e fora fenomenal (...). Nenhum dos animais carnvoros tem vigor ou resistncia suficiente para ser utilizado como animal de carga. (...) tambm interessante notar que houve atletas vegetarianos que estabeleceram recordes mundiais.
Aqui, a fora adquirida atravs do regime exclusivamente vegetal fonte de vitalidade e espontaneidade, em contraposio fora como violncia e dominao, prpria da predao carnvora. Neste sentido alternativo de fora como vitalidade, como pureza e imediatez, o predador carnvoro se aproxima do parasita: o fraco que sorve a energia vital do verdadeiramente forte, do genuinamente vigoroso. Em outras palavras, quanto mais imediata for a relao de consumo com os nveis trficos mais baixos (isto , daqueles que extraem sua energia diretamente da terra e da luz solar, via fotossntese), mais perto se estaria de uma energia e uma fora mais autnticas, originrias; desvinculadas, portanto, das mediaes dissipativas e violentas, nuas e cruas, da predao. interessante notar que a categoria de energia perpassa o discurso leigo e o especializado, o espiritualista e o cientificista. A ideia de energia, de fato, simultaneamente uma das mais evocadas e uma das menos definidas das nossas categorias cotidianas, em diversos mbitos sociais (Soares, 1994; Taks, 2012). Em certa medida, poderamos aloc-la no rol de outras categorias fundamentais do nosso pensamento, como tempo ou espao, cuja dificuldade em se precisar o que so inversamente proporcional sua capacidade de organizar a realidade de maneira satisfatria num nvel pr-crtico ou pr-filosfico. Na esteira da tradio durkheiminana e maussiana de investigao sociolgica, nos vemos forados a admitir que tais categorias so categorias sociais acima de tudo, de modo que cumpre examinar as condies sociais de seu emprego, emergncia e definio. No prximo captulo, iniciarei a discusso a partir de uma das falas da palestra disparadora em que certa racionalidade energtica fora acionada para se justificar o 101
emprego de animais como fonte de recursos alimentares. Trata-se da ideia do animal como uma mquina transformadora de pasto em protena, uma mquina de quatro estmagos, cujo emprego pela sociedade humana se faria necessrio e justificado desde o ponto de vista de sua inigualvel capacidade de transferir energia desde o nvel trfico mais inferior, fotossinttico, at os organismos humanos e suas sociedades. Mesmo que se trate de uma racionalidade capaz de equivaler os animais de produo com verdadeiras mquinas termodinmicas o que os reduziria ao nvel de meros instrumentos de trabalho ou insumos industriais - procurarei mostrar que, subjacente a tudo isso, o que se estabelece uma relao social com os ruminantes, cujo lastro histrico estende-se at os princpios da domesticao dos animais.
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4 - A PRODUO DE CARNE E OS LABORATRIOS NUTRITIVOS ANIMAIS
Comte divide os animais em trs categorias. Na primeira coloca os que, de uma maneira ou de outra, apresentam para o homem um perigo, e prope simplesmente destru-los. Numa segunda categoria, ele rene as espcies protegidas e criadas pelo homem para se alimentar: bovinos, ovinos, porcos, aves de galinheiro... Desde milnios o homem transformou to profundamente esses animais que nem se pode mais cham-los assim. Devem-se ver neles os "laboratrios nutritivos" nos quais se elaboram os compostos orgnicos necessrios nossa subsistncia. Lvi-Strauss, A lio de sabedoria das vacas loucas (2009, p. 213) H to somente mquinas em toda parte, e sem qualquer metfora: mquinas de mquinas, com seus acoplamentos e conexes (...) Algo se produz: efeitos de mquina, e no metforas. Deleuze e Guatarri, Anti-dipo (2010, p.11)
Figura 14: FEICORTE 2012. (Foto: Caetano Sordi)
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Em determinado momento da situao etnogrfica disparadora, uma das suas personagens caracterizou o bovino como este animal de quatro estmagos que opera o milagre de transformar pasto cru em alimento. Quando a registrei no meu dirio de campo, acreditei estar diante de uma formulao deveras criativa do que seria um boi, talvez uma idiossincrasia daquela personagem. Logo percebi, no entanto, que se tratava de um tropo bastante comum no meio agropecurio. Um ano depois, em palestra sobre sanidade animal realizada na FEICORTE de 2012, ouvi uma formulao parecida: esta mquina fantstica capaz de produzir carne a partir de capim. Depois disso, ouvi-a novamente. E de novo. Alm disso, deparei-me com o seguinte material publicitrio num informativo do setor, cujas atualizaes semanais passei a acompanhar sob a forma de newsletter na internet:
Figura 15: material publicitrio de sementes evocando o ideal de converso de pasto em carne
Acima esquerda, lia-se: aumente o potencial de produtividade da sua pastagem. O resultado voc v na hora do abate; abaixo esquerda, sob a forma de um selo, muito mais arroba por hectare; e ao centro, completando o cenrio, um produtor devidamente caracterizado contemplava radiograficamente a futura carcaa desmontada 104
do seu boi zebu, cujos cortes ostentavam promissores cifres. O prprio nome do produto (Convert) j indicava o que est em jogo na propaganda: a converso de um tipo de matria orgnica (pasto) em outra (carne), seguida da converso desta ltima em lucro. Por fim, em dezembro de 2012, dois vdeos gravados em um campo experimental da EMBRAPA em Coronel Pacheco (MG) provocaram acaloradas reaes de vegetarianos e amigos da causa animal nas redes virtuais. O primeiro vdeo iniciava enfocando desde muito perto uma sonda, a qual penetrava o interior de uma vaca desde seu flanco esquerdo. Percebia-se que ali havia uma fstula ruminal, espcie de orifcio produzido no corpo do animal para melhor acompanhar seu processamento digestivo. Conforme a sonda ia e voltava para dentro e para fora da rs, um pouco da sua matria estomacal era projetada para fora, escorrendo ao largo das costelas do bicho. Em determinado momento do filme, a mo annima que manipulava a sonda projetava-se diretamente para o interior da fstula, dispensando mediadores instrumentais. Uma voz ao fundo anunciava que aquele procedimento repetido de duas em duas horas. Embora se assemelhe a um tanque de processamento, cujo acesso se dava atravs daquela inusitada escotilha, percebia-se que se trata de um organismo vivo, j que a espessa massa que se vislumbrava dentro da cmara gstrica se movia ao ritmo das oscilaes peristlticas. O prprio rosto do animal aparecia de quando em quando, e demonstrava alguma indiferena em relao ao que ocorria logo atrs. De repente, escuta-se um convite: todo mundo viu? Algum quer colocar na mo?. Em resposta, apenas uma pessoa se candidata: d pra colocar mesmo?. A mesma voz que fizera o convite ento assente, e dirigia-se a outra personagem, solicitando que trouxesse uma caixa de luvas. O corajoso voluntrio, no entanto, pergunta se no vai sem luva mesmo e assim que introduz a sua mo no interior do animal, questiona: isso aqui ... dentro do rmen?. Ao que a primeira voz assente: ... dentro do rmen, uai. J o segundo vdeo comeava com um homem introduzindo seu brao no interior da fstula, acompanhado de uma voz feminina ao fundo que dizia: ai, que nervoso gente!, seguido de algumas risadas. Uma mulher de meia idade se aproxima e, visivelmente enojada, repete o procedimento, declarando que ali dentro quentinho. Abrindo e fechando sua mo livre, indicava que vaca fica fazendo assim, isto , que 105
ela se movimentava peristalticamente. E ao retirar seu brao do animal - alegando que tem medo de machucar ela [a vaca] - a mulher se depara com uma nova surpresa: o animal comea a despejar fortemente a sua urina atravs de um esguicho para trs, e novas risadas (entre o nervoso e o constrangido) so ouvidas desde o fundo. Passado o susto, outro corajoso voluntrio reinicia o procedimento. Como resultado da divulgao destes vdeos, comeou a circular na internet uma petio pblica 66 direcionada EMBRAPA contra a viviseco e fistulao de bovinos em suas estaes experimentais. O texto-base da petio solicitava que a empresa se voltasse ao melhoramento das plantaes, no tortura de animais inocentes. At a tarde do dia 14 de dezembro de 2012, o documento contava com 1197 assinaturas, muitas delas acompanhadas de comentrios indignados. Neste ltimo captulo, pergunto: o que est em jogo nesta descrio do animal bovino como uma mquina de quatro estmagos? O que isto pode nos dizer a respeito das relaes humano-animais que se estabelecem na produo de carne? Como j foi comentado no excurso 3.1.1, evidente que a nutrio dos animais de produo um dos focos de maior interesse institucional e empresarial do setor pecurio. A categoria de precocidade, to mobilizada nas situaes comerciais envolvendo bovinos, refere-se justamente capacidade do animal chegar ao ponto ideal de maturao da sua carcaa em menos tempo: o aumento da idade de abate ocasiona baixo rendimento da carcaa e menor qualidade da carne (Feij et al., 2001, p. 1016). O contemporneo entusiasmo de vrios produtores brasileiros com as possibilidades abertas pelo confinamento, tal como tratado no captulo anterior, tem relao com esta dinmica (casos como os surtos de Vaca Louca poderiam ser considerados os perigosos excessos potenciais desta hybris conversiva, desta engorda e produo de carne a qualquer preo: valeria a pena converter restos animais em tecidos animais? Qual o preo a se pagar por isso?). O que poucas vezes visibilizado, contudo, so outros meandros desta cadeia zootcnica destinada a produzir carcaas consideradas de boa qualidade. Na FEICORTE de 2012 assisti a um evento paralelo aos leiles e exposies de animais denominado Academia da Carne, gratuito, destinado a jovens e estudantes das reas de zootecnia,
66 Disponvel em: http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoListaSignatarios.aspx?pi=P2012N33277, acessado em 14/12/2012. 106
veterinria e campos afins. Durante dois dias, este pblico pde assistir comunicaes sobre diversos temas, que iam desde especificidades veterinrias sobre sanidade animal at o mercado de boi gordo. Em relao nutrio de bovinos, destacaram-se trs palestras paradigmticas. A primeira versava sobre fosfatos e foi conduzida por um qumico. A segunda denominava-se a nutrio como ferramenta para otimizar o sistema de produo de bovinos de corte, e foi ministrada por um mdico veterinrio vinculado a uma grande empresa de alimentao animal. importante ressaltar que tais empresas figuram entre os principais patrocinadores de feiras como FEICORTE, e se responsabilizam por boa parte da organizao de seminrios e workshops. De acordo com o qumico da primeira palestra, a carne seria um grande extrator de fsforo do solo. O fsforo seria importante tanto para a formao de tecidos nos animais quanto para seu processo metablico, de modo que um controle sobre a quantidade e a qualidade dos fosfatos consumidos seria uma maneira de ter controle sobre estes mesmos processos vitais. De acordo com sua conta, para produzir cada quilo de carne, seria necessrio o consumo de dois gramas de potssio, obtidos atravs dos trs principais fosfatos de clcio mais utilizados na produo animal: fosfato monoclcico, fosfato biclcico e fosfato triclcico. Para o palestrante, quem determina a dinmica econmica dos fosfatos a indstria dos fertilizantes, o que seria uma conjuntura bastante complicada, pois deixaria o Brasil, que jamais ser autossustentvel em fsforo, em uma condio de eterna dependncia das flutuaes do mercado externo de fertilizantes. Em seu raciocnio, o efeito domin produzido por esta carncia de fosfatos no nosso subsolo seria preocupante: nossa economia dependeria da pecuria, a pecuria dependeria dos fosfatos, logo, etc. A concretizao visvel deste drama seria a situao da mina de Cajati (SP), responsvel, atualmente, por 60% do fsforo nacional direcionado para a produo animal 67 . De acordo com o palestrante, a mina, cuja explorao se iniciara em 1938, era, nesta poca, um morro. Hoje, ao contrrio, seria uma cratera. J na segunda comunicao, o veterinrio responsvel comeou afirmando que o segredo da boa carcaa era a combinao tima de gentica, bom manejo, nutrio e
67 A mina de fosfato da Serrana est situada no municpio de CajatiSP, a 230 km da capital. A empresa, que atua na rea de fertilizante, pertence ao grupo Bunge e desde 1946 produz fosfato nessa regio, controlando desde a lavra da rocha fosftica at a aplicao dos produtos no campo. (Schnellrath, Silva, Shimabukuro, 2002, p. 1). 107
sanidade. Tanto faz se atravs do pasto livre ou do confinamento, a conta que interessa de converso biolgica o quanto de matria seca 68 tem de ser consumida para produzir tantas arrobas no gancho. Haveria at mesmo um software para medir todo este processo. Para ilustrar a indiferena do produto final em relao ao input inicial, o palestrante contou com auxlio de uma projeo em data show na qual eram mostrados dois inputs iniciais diferentes (pasto e confinamento), um s produto intermedirio (uma carcaa) e um nico output final (um bife). Na comunicao seguinte, agora sobre sanidade animal, o outro profissional argumentou que a quadratura manejo nutrio sanidade gentica seria a interao fundamental para a mquina [que produz carne atravs de capim] funcionar bem. Alm disso, destacou que isso que produo sustentvel: produzir mais com menos. Por fim, ponderou que todos ns que trabalhamos com fazenda adoramos vaca, boi... mas o que ns precisamos de lucratividade. Posto isso, percebe-se que h o desenvolvimento de toda uma indstria aqum da porteira (para utilizar os termos da topologia mica do setor pecurio, que tem na porteira seu elemento organizador central), aglutinando o complexo de nutrio animal e o complexo farmacutico, destinada a otimizar o funcionamento da mquina ruminal. Esta gigantesca indstria montante da criao em si um dos principais ns de cadeia que vinculam a produo primria, alimentcia, qumica e biologia de ponta, onde coabitam gigantes internacionais como BASF, Pfizer, Monsanto, Bayer e Bunge. No aleatrio, portanto, que o Congresso Internacional da Pecuria de Corte, realizado na FEICORTE de 2012, tenha homenageado o ex-ministro Paulinelli, apresentado como o grande principiador da revoluo verde no Brasil. O prprio modelo de sustentabilidade que se depreende das comunicaes setoriais dependente desta maneira de articular a cadeia da carne: otimizao na converso energtica; mais arroba no gancho em menos rea de pastagem; disseminao tecnolgica; boa concatenao das engrenagens da cadeia. O produtor constantemente investido de uma misso: alimentar o mundo, fornecer protena de qualidade para o planeta, entre outras decalagens globais. Como expresso no primeiro captulo, tal misso se relaciona com a forja de uma nova ideia de nacionalidade,
68 Matria seca um conceito biolgico. Ela representa a biomassa (i.e., massa de matria orgnica) em sentido estrito, que representa, no caso, 20% do peso das plantas. 80% gua. (Mazoyer e Roudart, 2010, p. 78). 108
calcada na figura de um Brasil agropotncia vocacionado a acabar com a fome no mundo e liderar a produo primria no sculo XXI. As crticas ao modelo acabam sendo relacionadas m-compreenso desta vocao natural, ao modismo, ao elitismo. O diretor de sustentabilidade da ABIEC, por ocasio do Congresso Internacional da Carne, realizado em junho de 2011 em Campo Grande (MS) assim argumenta: A gente vai dizer que mentira. Que um quilo de carne no gasta quinze mil litros de gua. Que a pecuria no t produzindo carne devastando a Amaznia. O problema da Amaznia muito mais uma ausncia de Estado do que de produo pecuria. Essa a nossa histria, e a histria de cada um que t aqui. A gente tem que ter orgulho dessa histria. (...) Eu tenho orgulho de comer carne, porque vegetariano coisa de elitista, eu nunca conheci um vegetariano pobre. Porque quando voc precisa, a carne ao mesmo tempo necessria e desejada. Vegetariano pra quem pode comer granola de manh e jantar num restaurante japons noite. Isto aqui o Brasil. O nordeste brasileiro tem um consumo de carne bovina igual ao da China. Tem gente precisando de carne, e medida que a renda destas pessoas aumenta, elas vo poder ter acesso carne. (...) Aqui no Brasil e nos pases emergentes, eu no preciso convencer ningum a comer carne. As pessoas comem carne porque quando elas ganham mais dinheiro, elas entendem que elas precisam colocar carne no prato das famlias delas. 69
Em suma, interessante notar que um dos argumentos acionados no confronto com o discurso vegetariano e de direitos dos animais a ideia de que estas militncias, ao fim e ao cabo, no reconhecem ou no tm conscincia do valor dos prprios animais que alegam defender. Mas que valor este? De que maneira o valor dos bovinos construdo no discurso daqueles que produzem e defendem a carne? Dada a forte nfase percebida na questo da converso energtica, do pasto cru em protena, inicio o exame atravs de uma anlise do lugar do rmen nestes discursos e em alguns excertos da literatura zootcnica. 4.1 O rmen, patrimnio da humanidade O rmen uma das quatro cmaras que compem o rgo digestivo dos bovinos e outros mamferos que o possuem, muitos dos quais domesticados pelo homem. De acordo com um manual zootcnico (Perry, 1980, p. 3), a forma mais abundante de
69 Trechos do discurso em http://www.youtube.com/watch?v=TXJ YGSuaCfU, consultado em 13 de setembro de 2012. 109
energia renovvel neste mundo fibra e celulose. Infelizmente, o homem no capaz de utilizar celulose. Felizmente, animais ruminantes so aptos a utiliz-la. Isto se daria pelo fato de que Ruminantes so encontrados em quase todo ambiente onde plantas transformam energia solar em formas qumicas. Esta aptido a manifestao do processo evolucionrio que os proveu de um aparato alimentar capaz de liberar, de forma aproveitvel, a energia qumica desde os carboidratos estruturais das plantas. Nenhuma enzima degradativa doa mamferos capaz de quebrar esta cadeia. interessante notar que a maior diferena entre amidos, que podem ser digeridos por animais monogstricos, e celulose, que no pode, a configurao espacial da (1,4-)cadeia glucosdica. (...) Esta sbita diferena perpetrada pela Me Natureza um dos maiores efeitos que conduziu ao desenvolvimento do animal ruminante. Ruminantes e herbvoros adquiriram assim populaes microbianas simbiticas, as quais os provm com as enzimas degenerativas requeridas. (idem)
Por fim, o manual defende que por causa destas relaes simbiticas entre o animal ruminante e os microorganismos de seu rmen, estas espcies possuem um grande valor para o homem (idem). De fato, dos chamados big five, isto , das cinco principais espcies domesticadas pelas sociedades humanas com fins alimentares e econmicos (Wilkie, 2010), trs so ruminantes: bovinos, caprinos e ovinos. As duas outras (galinceos e sunos) so monogstricas. Pesquisadores da domesticao corroboram esta nfase na ruminncia ao destacarem a importncia da mesma para o surgimento de duradouros sistemas pastoris envolvendo estes animais. Em lugares to dspares como a estepe eurasiana (Ingold, 2007), o Oriente Mdio (Haudricourt, 1962; Descola, 2005), a pampa sul-americana (Crosby, 2011) ou a frica nilota (Evans-Pritchard, 2008), seres humanos tem se valido historicamente das propriedades transformativas dos ruminantes para obter os vveres necessrios sua subsistncia. Em maior ou menor grau de colaborao com a agricultura, produtos oriundos das espcies ruminantes (l, couro, carne, leite, ossos, etc.) tem exercido desde tempos milenares um importante papel na reproduo material de vrias sociedades ao redor da Terra. Igualmente, muitos destes animais so empregados desde tempos imemoriais como trao pelas sociedades pastoris, movendo carros, moinhos ou simplesmente servindo como montaria. Tambm importante relembrar o papel exercido pelos ruminantes do velho mundo na fixao das populaes 110
eurasianas na Amrica, na Oceania e em outras partes do mundo colonizado, servindo como verdadeira vanguarda bitica do imperialismo ecolgico (Crosby, 2011; Baretta e Markoff, 1978) a partir do sculo XV. Sabe-se o quanto a introduo destas novas espcies de ruminantes alterou profundamente os ecossistemas e suas regulaes socioecolgicas locais, produzindo alto impacto no modo de vida das populaes nativas. Tal imbricamento entre modos de subsistncia e o emprego econmico de determinados animais fez com que alguns autores os considerassem os instrumentos primitivos de trabalho das sociedades pastoris. Para Ingold (2007), esta seria uma viso equivocada dos mesmos, na medida em que os descreve como meros objetos disponveis, sem vontade ou intencionalidade. Somente com o advento da pecuria industrial, argumenta Ingold (2000), que os animais teriam sido reduzidos, na prtica e no s na teoria, aos meros objetos que os tericos da tradio ocidental sempre os supuseram ser (p. 75). Assim, antes que os animais pudessem aparecer como meros instrumentos de trabalho no sculo XIX, toda uma longa histria de relaes sociais com os mesmos teria produzido esta configurao especfica da interao humano- animal, capaz de faz-los parceiros do nosso labor. Para o autor, a condio necessria para a transio da caa ao pastoralismo (ou seja, do momento em que a relao estabelecida entre os dois polos, animal e humano, translada-se da confiana [trust] para a dominao [domination] 70 ) residiria na capacidade de alguns animais agirem conforme o ambiente social circundante: Nesta capacidade, reside o potencial dos animais serem capturados [tamed] pelo homem: isto , de entrarem em relaes sociais de
70 A passagem da caa para o pastoreio em termos de uma alterao no modelo de engajamento com a alteridade animal tratada por Ingold no quarto captulo de The Perception of the Environment (2000). De acordo com o autor, sociedades de caa e coleta estabeleceriam relaes simtricas e recprocas com os coletivos animais que lhe servem de presa, de maneira que a caa seria uma espcie de ciclo de ddiva entre os coletivos humanos e animais. O modo de engajamento prprio destas sociedades com os animais de caa se daria atravs do paradigma da confiana [trust]. Suas ferramentas, consequentemente, seriam instrumentos de revelao da alteridade, e no de controle sobre a mesma. J no pastoralismo, o modo de engajamento com os animais seria baseado na assimetria entre humanos e animais, sendo estes ltimos ao mesmo tempo protetores, algozes e senhores. A confiana seria substituda pela dominao [domination], ilustrada pelos instrumentos prprios do pastoralismo: chicote, relho, jugo, etc. J em Hunters. Pastoralists and Ranchers (2007), o autor prope um modelo ligeiramente diferente, baseando-se na experincia de campo e na literatura dos povos da franja rtica. Os princpios gerais do modelo, contudo, permanecem os mesmos: simetria na caa, assimetria no pastoralismo. Alguns americanistas como Fausto (2001, 2002) traam objees a Ingold no sentido de que nem toda sociedade caadora-coletora estabelece crculos de ddiva com as suas presas. Ao menos para alguns povos das terras baixas amaznicas, a caa compreendida de maneira agonstica, e no recproca. 111
dominao definidos pela subjugao da vontade dos animais em prol dos propsitos humanos (Ingold, 2007, p. 88) [traduo prpria].
Em ltima anlise, a captura de animais pelos coletivos humanos jamais seria um fenmeno puramente tecnolgico, como a extrao de um recurso natural qualquer. Ao contrrio, esta captura sempre um fenmeno social, marcado por um determinado tipo de interao intersubjetiva. Em jogo, para Ingold (2007), o que se desvela uma certa produtividade econmica calcada em um uma produtividade ecolgica. Por produtividade econmica, o autor compreende o emprego de trabalho humano (como o dos pastores e pecuaristas) na produo de objetos para o consumo. Por produtividade ecolgica, por sua vez, a criao de matria orgnica na natureza, atravs da radiao solar (fotossntese). J foi exposto anteriormente de que maneira isto transparece nos discursos do sistema-carne: o boi seria uma espcie de mquina capaz de transformar a energia humanamente inaproveitvel da fibra de celulose em energia que somos capazes de assimilar, como carne, leite e derivados. Contudo, foroso reconhecer que h um enorme abismo entre os pastores que so enfocados no trabalho de Ingold e a contempornea pecuria industrial, ainda que ambos se valham dos milagres da ruminncia. Em outras palavras, ainda que os Nuer de Evans-Pritchard (2008) e os pecuaristas da FEICORTE falem idiomas bovinos, h de se reconhecer que so idiomas bovinos totalmente diferentes. Vejamos os porqus. 4.2 A centralidade da carcaa Como argumentam alguns autores (Wilkie, 2010; Ingold, 2007; Fraser, 2012), apenas tardiamente na histria da domesticao de animais que rebanhos passaram a ser criados visando primeira e exclusivamente carne. H registros etnogrficos e histricos de que povos pastores tradicionais muito excepcionalmente consomem a carne dos seus grandes herbvoros, ainda que, quando o faam, o faam com alegre disposio e muito bom-grado (Ingold, 2007; Evans-Pritchard, 2008) Em linhas gerais, os animais so apropriados economicamente nestas sociedades tendo em vista primeiramente seus subprodutos, sua fora de trabalho como trao e transporte e, muito recorrentemente, como unidade de valor e troca (em contratos matrimoniais, por exemplo). O consumo carnvoro acaba ocorrendo no caso de morte acidental das reses, em tempos de condies econmicas adversas ou devido a ofcios sacrificiais. 112
Mesmo em sociedades cujo criatrio bovino se desenvolveu, desde seu incio, em articulao aos mercados capitalistas como o caso de todo o continente americano, de norte a sul no desde sempre que as reses foram vistas como mquinas produtoras de carne. Fraser (2012) e Wilkie (2010) ressaltam a importncia do desenvolvimento das tecnologias de refrigerao para o surgimento global de uma indstria da carne, bem como para a consolidao deste produto como commodity no mercado internacional. graas indstria frigorfica e a montagem de grandes parques industriais destinados desmontagem de carcaas que a carne pde estar presente, fresca e constante, mesmo em locais muito distantes dos polos produtores, alterando para sempre o perfil tanto do consumo quanto da produo de carne. Pensando no exemplo dos Estados Unidos, Wilkie argumenta: a crescente interdependncia entre agricultores, criadores, invernistas, aougueiros e industriais trouxe luz uma nova aliana agroindustrial muito poderosa, que alterar fundamentalmente os hbitos carnvoros nos Estados Unidos e alm (2010, p. 32). Fausto e Devoto (2004), comentando o caso argentino, revelam que somente aps a implantao do primeiro parque frigorfico naquele pas, em 1882, que o consumo interno de carne bovina superou o de carne ovina, um fenmeno inequivocamente ligado expanso territorial e numrica do criatrio bovino, da refrigerao e dos transportes ferrovirios. O advento da indstria frigorfica, neste sentido, radicalizou e acentuou um processo que j vinha sendo gerado nas sociedades modernas, calcado pelo distanciamento progressivo entre a carne como produto e o animal como fornecedor. Em seu trabalho sobre os animais de aougue no Brasil, Dias (2009) demonstra como os abatedouros pblicos, mesmo antes do surgimento da indstria frigorfica, j se encontravam em progressivo distanciamento dos centros consumidores urbanos. Para Elias (1994), a ocultao progressiva do animal nas refeies carnvoras, no ocidente, se liga a uma srie de fatores, todos eles acoplados aos processos de modernizao, como especializao econmica, e civilizao, como refinamento dos costumes e da sensibilidade. O ato de trinchar o animal mesa vai deixando de ser uma atividade trivial conforme a especializao do trabalho com animais vai se distanciando das unidades domsticas, cada vez mais identificadas como unidades de consumo e no mais de produo. O que antes era parte constitutiva dos rituais de comensalidade, 113
chegando a se configurar como uma atitude distintiva da nobreza a arte de bem trinchar - comea a ser delegado s instncias ocultas da cozinha e do aougue. A relao imediata entre a carne e o animal passa a ser tratada com repulsa e afastamento. A transformao do animal em carne relegada para os bastidores da vida social. O processo civilizador, como dinmica de ocultamento para longe da vista daquilo que se tornou repugnante (Elias, 1994, p. 128), reluz, no caso da histria do carnivorismo moderno, com toda sua fora. Eis como o autor retrata uma refeio carnvora medieval, com todos os seus detalhes: O animal morto ou grandes partes do mesmo eram trazidas inteiras para a mesa. No s peixes e aves inteiras (s vezes, com as penas) mas tambm coelhos, cordeiros e quartos de veado apareciam na mesa, para no mencionar pedaos maiores de carne de caa, porcos e bois assados no espeto. (Elias, 1994, p. 126)
Um outro trecho de Merchant (1989) vai ao encontro do excerto de Elias: Enquanto aos servos e criados era permitido carne e peixe somente uma vez por dia, as classes superiores consumiam enormes quantidades de veado, frango e peixe. Animais inteiros com suas plumas depenadas adornando-os na mesa de jantar. Vacas, renas e bois eram assados em amplas fogueiras no prprio salo de banquete; coelhos inteiros, carneiros e porcos eram servidos e decupados na prpria mesa (Merchant, 1987, p. 41).
Para Vialles (1987a, 1987b), este processo pode ser compreendido atravs da dicotomia entre sarcofagia e zoofagia. Refeies como as acima descritas seriam zofagas, pois a animalidade ainda se faz muito presente no ato alimentar. reconhecvel que isto uma pata traseira, que aquilo uma cauda. No incomum, nestes contextos, que os comensais tenham se envolvido de alguma maneira no processo de criao e abate das reses, ou, se este no for o caso, que o processo lhes seja uma presena prxima, diria e familiar. Muitas vezes o animal tinha um nome e uma histria social conjunta com o grupo de humanos que agora lhe consome. Teria sido preciso dessubjetiv-lo antes de consumi-lo. J refeies como aquelas que ocorrem todos os dias nas grandes metrpoles do mundo globalizado, seriam sarcfagas: (do grego, sarx, carne), isto , calcadas em um 114
regime alimentar no qual a carne se transforma em uma matria comestvel bem diferente do seu animal de origem e das partes que lhe identificam como tal: seu rosto, suas penas, sua pelagem, e tambm seus membros, superiores ou inferiores, integralmente dispostos. Tambm em um sentido simblico, deixa-se de incorporar as propriedades do animal e passa-se a incorporar as propriedades da substncia carne, que passam a ser compreendidas cada vez mais por seus termos biolgicos e moleculares: protena, aminocidos, vitamina B12. No h mais intimidade nem proximidade entre aquele que abateu o animal e aquele que o come. Circuitos de ddiva e/ou prestaes totais, nos quais o animal abatido aparece muitas vezes sob a forma de contradom, so substitudos por circuitos monetrios de prestaes parciais, em que a carne se transforma numa mercadoria como qualquer outra. As personagens envolvidas no abate, desmonte e consumo de um mesmo animal podem, muitas vezes, estar continentalmente separadas, unidas somente pelos liames do comrcio mundial. A carcaa se transforma em uma matria-prima a ser padronizada e estandardizada, sobre a qual incide uma srie de tradues sociotcnicas e investimento de capital. No meio agropecurio, se percebe a centralidade da carcaa por todos os lados. De certa maneira, um evento como a FEICORTE um momento social em que fornecedores de carcaas e compradores da mesma se encontram e celebram sua parceria, que nem sempre amigvel. E como bem nos recorda o caso da desmontagem didtica de carcaas na Vitrine da Carne da EXPOINTER, possvel at mesmo se diferenciar raas e estirpes bovinas a partir de suas carcaas j extradas, para alm dos detalhes anatmicos e fenotpicos que se destacam nos animais vivos. Se a quadratura gentica sanidade manejo nutrio o segredo para a produo de uma boa carcaa, percebe-se, pelo primeiro termo do conjunto, a gentica, que os prprios animais tm sido produzidos ab ovo tendo em vista sua carcaa e suas capacidades de produzir carne. No existe uma vaca ou um boi predados l fora, para que se consuma sua carne. Ao contrrio, desde seu nascimento, suas carcaas j aparecem como objetos ideais da produo, modulados pelas necessidades do consumo carnvoro. Como nos diz Marx (2011) nos Grundrisse, O consumo cria o estmulo da produo; cria tambm o objeto que funciona na produo como determinante da finalidade. Se claro que a produo oferece exteriormente o objeto do consumo, igualmente claro que o consumo pe idealmente o objeto da produo como imagem interior, como necessidade, como impulso e finalidade (pp. 46-47). 115
Com a emergncia da questo do bem-estar na produo de carne, abriu-se espao para que a categoria do manejo racional pudesse ser mobilizada em prol do prprio sistema produtivo, visando ao mesmo tempo uma imagem pblica positiva e a preservao da integridade das carcaas. Sob este aspecto, a adoo de prticas racionais, humanitrias ou inteligentes de manejo ante mortem tm como objetivo, para alm do bem-estar animal, a minimizao de perdas econmicas potenciais para o pecuarista, altamente dependente da avaliao que os demais agentes da rede sociotcnica da carne fazem da carcaa que ele, o produtor, lhes envia. O informativo Manejo, produzido pela mesma empresa que organiza o Caminho do Boi, assim defende: Em termos prticos significa dizer que em 1/3 das vezes o boi como embalagem da carne mal aproveitado. E este ponto determinante para a produtividade do rebanho @/ha/ano, rendimento de carcaa no gancho pago ao produtor e pelos baixos rendimentos que impactam diretamente na sua renda bruta. Tambm perde a indstria por no maximizar sua produtividade com qualidade de matria- prima (Manejo, jun-jul. 2010) [grifo meu]
Atravs da figura do boi como embalagem da carne, nos deparamos com a ideia de que o boi a sua carcaa em desenvolvimento: (...) quando avaliado o perfil das carcaas ao abate, observa-se um grande nmero de carcaas com acabamento escasso ou ausente e uma frequncia muito pequena de carcaas de alto padro de qualidade. (Manejo, jul-ago-set. 2011)
Tambm na literatura zootcnica, a carcaa toma ares de produto aprimorvel, que comporta graus de perfeio dependendo daquilo que seu portador/produtor o animal incorpora a si: A limitao do nvel alimentar durante a fase final de produo bovina contribui para limitar a deposio de gordura. Entretanto, a vantagem da restrio alimentar questionvel em funo do maior tempo de terminao at atingir-se determinado grau de acabamento (Berge, 2001; apud Feij et al., 2001, p. 1016)
116
Levada ao seu extremo, esta perspectiva pode ser compreendida como a prpria dissoluo do animal como um ente e sua transfigurao em um processo: o processo de transformao de matria seca em carne. Voltando a Ingold (2000), percebe-se que o tipo de causalidade pensada para os instrumentos de trabalho da pecuria uma causalidade mecnica: o que preciso fazer para que tantas arrobas de carne sejam produzidas em tanto tempo? No entanto, mesmo que sejam compreendidos muitas vezes sob a forma de uma linguagem mecnica (ou termodinmica, como mquina transformadora), os animais permanecem sendo, para todos os efeitos, agentes intencionais. Porcher (2011), por exemplo, chega concluso de que, do ponto de vista da indstria da produo animal, os animais constituem-se cada vez mais como um verdadeiro entrave produo: eles so vivos, sensveis, afetivos, comunicativos, podem ficar doentes, resistir ao trabalho, criar vnculos com os trabalhadores (Porcher, 2011, p. 121). Para o bem ou para o mal, os animais da pecuria moderna continuam to sociais e emotivos quanto aqueles do pastoralismo tradicional. Este aspecto subjetivo o verdadeiro fantasma na mquina de quatro estmagos, necessrio de ser contornado. No limite, talvez fosse melhor para o sistema produtivo se as carcaas se produzissem sozinhas, evitando o contato com este intermedirio problemtico. Ainda que envoltos por um ar de fico cientfica, no so desprezveis os significados das recentes iniciativas em prol da fabricao de carne atravs de biorreatores (Bhat & Bhat, 2011) para esta discusso. Vrias destas iniciativas so patrocinadas por organizaes de defesa dos direitos animais, como a PETA. Se, de fato, o que importa no consumo carnvoro atualmente a substncia carne, a obteno de uma carcaa-sem-boi isto , a partir da produo industrial de protenas sintticas (Lvi-Strauss, 2009) - aparece no horizonte de possveis como o ltimo estgio da sarcofagia, purgada em definitivo de seus traos zofagos, sua animalidade residual. Tomando de emprstimo o clebre conceito de Deleuze e Guatarri (1996) e o invertendo, percebe-se que tal carcaa-sem-boi emergiria desde um rgo-sem-corpo, j que estes biorreatores tambm podem ser pensados como um rmen sem o bovino sensciente e afetivo a sua volta. Enquanto uma utopia destas no se realiza, a indstria prossegue desenvolvendo formas de contornar a animalidade dos animais em prol da produo. Neste sentido, 117
tecnologias como o bem-estar animal e o manejo racional poderiam ser classificadas como tecnologias de administrao da subjetividade animal, na medida em que buscam dar conta de um aspecto ainda problemtico na obteno da substncia carne, cujo valor e significado social h muito tempo se desvencilhou dos sujeitos animais que lhe do origem 71 . Na lida ante mortem, no entanto, a animalidade das reses permanece presente. Como bem demonstram outros excertos do informativo Manejo, h uma oscilao bastante interessante (e muito significativa) entre momentos de subjetivao e objetivao dos animais, o que manifesta o locus fronteirio - entre o econmico e o tico, o sujeito e o objeto - ocupado pelos animais que se transformam em carne. Admite-se o momento do abate como uma situao crtica, potencialmente perigosa, que necessita ser docilizada e bem administrada. A interioridade e os estados mentais dos animais (principalmente o sofrimento) aparecem como um aspecto relevante em ambas as perspectivas, mas ora eles so objeto de empatia, mediada pela interao com os humanos, ora como objeto de metrificao, mediada pela interveno tcnica: As mudanas s comeam quando o vaqueiro passa a compreender a importncia e o significado do instinto de auto-preservao (...) A partir dali, no existem mais vacas bravas, nem teimosas, nem amuadas (Manejo, out-nov-dez. 2011)
O pesquisador Donald Broom, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), lembrou que j possvel medir o bem-estar animal a partir do nvel de cortisol na carne e de leses na carcaa. (Manejo, jun-jul. 2010)
Quando centrada no aspecto subjetivo dos animais, a nfase recai sobre o aperfeioamento das interaes entre humanos e animais, ambos considerados como portadores de agncia:
Voc j pensou em como o gado v e sente a estrutura e o manejo que recebe desde o pasto at o frigorfico? (Manejo, abr-mai-jun. 2011).
preciso considerar os animais como seres vivos, que sentem, pensam, decidem e tm uma capacidade enorme de aprender se tivermos disponibilidade interna para ensin-los (Manejo, out-nov- dez, 2011)
71 possvel se pensar estas tecnologias como formas de dessubjetivao humanitria dos animais, o que se aproxima, sob certo aspecto, s questes morais envolvendo a eutansia. 118
Em alguns momentos, o manejo racional aproxima-se de uma verdadeira tica, pontuada por prescries normativas e consideraes de cunho teleolgico, como a vida boados animais:
As pessoas que participam da produo deveriam entender que trabalhamos com seres vivos e pensar assim: se o abate inevitvel e o que estes animais tenham uma vida feliz (Manejo, jan-fev-mar. 2011)
Nesta perspectiva, o principal objetivo do manejo de baixo estresse que a partir do conhecimento das necessidades internas dos animais e da conscincia de si cada um po[ssa] forjar o seu prprio mtodo, sem ter que copiar o mtodo de ningum (idem). A lida adequada dos trabalhadores com os animais aproxima-se, normativamente, de uma verdadeira educao da ateno (Ingold, 2000), pautada pela familiarizao de si com o outro a partir do engajamento mtuo:
(...) suas ferramentas mais importantes [do vaqueiro] so o seu corpo e a maneira como se movimenta na presena do gado (...) quem lida com o gado deve atender a trs prioridades bsicas: a sua prpria segurana, a segurana dos animais e estar atento para que ao terminar o trabalho os animais estejam inteiros, fsica, mental e emocionalmente (Manejo, out-nov-dez. 2011)
Fica claro que os tratadores tm uma capacidade enorme de interagir com os animais e colocar imediatamente em prtica a informao passada. importante mostrar o beneficio da boa interao entre homem e animal, o que gera uma nova prtica de manejo (Manejo, jun-jul. 2010) 72 .
Contudo, quando a nfase dada no aspecto objetivo da produo animal, ressurge a figura da carcaa, verdadeira matria-prima da produo de carne, cuja integridade deve ser preservada:
(...) pesquisa realizada pelo Grupo ETCO (Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal da Unesp de Jaboticabal/SP) revela que pelo menos 50% dos bovinos abatidos no Brasil apresentam leses na carcaa, o que significa perda mdia de 500g de carne por hematoma, ou seja, cerca de 12 milhes de quilos
72 O tom perspectivstico destas narrativas a respeito do manejo racional no aleatrio. Em verdade, as tecnologias que hoje se desenvolvem sob esta rubrica tm origem nos experimentos conduzidos pela Dra. Temple Grandin, nos Estados Unidos. Grandin foi pioneira no desenho de currais anti-estresse, criados a partir da experincia de percorrer o curral se colocando no lugar das reses. 119
de carne por ano. Pelo menos 40% dessas leses so produzidas na fazenda (Manejo, jul-ago-set. 2011)
Como relatam Wilkie (2010) e Porcher (2011) em suas etnografias, no de completo bom grado que pequenos produtores, acostumados lida artesanal e subjetiva com os animais, adotam os preceitos normativos oriundos da zootecnia ortodoxa. Mesmo entre grandes produtores, o fato de um dos palestrantes supracitados ter argumentado que todos ns gostamos de vaca boi, mas que o importante a lucratividade d o que pensar. Assim, se inegvel reconhecer que impera na contempornea criao animal uma ideologia zootcnica cada vez mais acentuada, h de se pensar at que ponto esta tendncia homognea no modulada por pequenos desvios e resistncias, localmente situados. 4.3 Entre a subjetivao e a reificao A prpria distribuio espacial da FEICORTE reproduz a tenso, sempre constante, entre reificao e subjetivao dos animais de produo: enquanto, ao fundo, se realizam as palestras e workshops do Espao Carne - verdadeiras pedagogias zootcnicas, nas quais os animais vm ao discurso quase que exclusivamente como fornecedores de carne - nos pavilhes mais a frente, o que se v um mundo de interaes humano-animais que de modo algum poderia ser reduzido aos termos da mera causalidade mecnica, sendo mais bem caracterizado atravs da causalidade pessoal ou intencional (Ingold, 2000). E no somente por parte dos visitantes (que, como tratei no captulo 1, tendem a se aproximar dos bovinos como se fossem pets), mas tambm por parte dos manejadores, avaliadores, funcionrios de limpeza, entre outras personagens que circulam nos corredores do evento. Quando um manejador conduz uma rs para dentro da pista de julgamento, por exemplo, muito difcil negar que se trata de uma relao entre dois elementos portadores de subjetividade. O animal empaca, teima, quer voltar. Ou, se estiver de bom nimo, prossegue e se deixa ser guiada pelo manejador. perceptvel que o contato visual uma ferramenta importante no processo de convencimento do animal a avanar. No uma mquina que est sendo conduzida para o centro do picadeiro, ainda que o sistema produtivo se interesse e invista fortemente na exacerbao do seu efeito de mquina (Deleuze e Guatarri, 2010) produtora de coisas. Tal interesse se revela no 120
momento em que os juzes professam seu parecer sobre as reses expostas, como nestes exemplos tirados do dirio de campo da FENASUL (2011) e da FEICORTE (2011): Com o microfone em mos, o juiz traou primeiro uma srie de cumprimentos lisonjeiros associao e seus representantes e, logo em seguida, fez um breve resumo das caractersticas de cada vaca, prximas ao que se espera de um relatrio tcnico: a vaca dois... muito bom animal, grande produtora (...) estamos impressionados com a capacidade produtora desta vaca (...) vaca trs anda bem, caminha muito bem (...) temos aqui, de fato, um extraordinrio animal, essa vaca realmente uma grande leiteira (...) ubres fortes, plo vistoso, excelente condio de sade (...) um animal de grande resistncia, muito forte, sensacional (...) vigorosa. Um juiz, apenas, ditava o ritmo e conferia as premiaes, pautando- as por um relatrio/justificao no final: escolhemos [ou seja, colocando a si mesmo na terceira pessoa] a vaca trs porque (...). O contedo do seu apanhado final situava-se atravs de termos como feminilidade, precocidade, musculatura bem distribuda na carcaa, carcaa moderna [?], concavidade da arqueadura, funcionalidade, padro racial. Do seu parecer, depreende-se que o julgamento feito a olho, por assim dizer, atravs de parmetros do tipo aura meritocratis, isto , de uma justa medida entre as supracitadas categorias e o que prprio daquele padro racial. Tambm foram citados alguns cortes nobres como potencialidades contidas naqueles animais: filet mignon, picanha, etc.
Outro aspecto espacial da FEICORTE que exemplifica a tenso entre subjetivao e reificao dos animais a proximidade entre os animais expostos e os stands destinados alimentao, muitos deles churrascarias. Como registrei em meu dirio de campo a feira um dos poucos locais em que a populao urbana e distante da produo rural pode degustar um fil de Angus a poucos metros de um Angus vivo. Esta tenso, no entanto, no parece se abater sobre aqueles que trabalham na feira ou a visitam. Para este pblico, ao contrrio, no parece haver tenso alguma. Ou contradio alguma. Logo percebi, portanto, que era mais uma tenso do etngrafo, em particular, e de certo discurso crtico em geral, com o qual o etngrafo se encontrava familiarizado. Para grande parte do pblico visitante destas feiras, a oscilao entre subjetividade e reificao dos animais parece se impor como um fato perfeitamente normal, algo inscrito na ordem natural das coisas. E interessante notar que se trata de uma percepo dos animais como sujeitos no a partir de uma bibliografia filosfica 121
especfica (como o caso do reconhecimento da subjetividade dos animais por parte de muitos militantes da causa animal), mas a partir de uma educao da ateno (Ingold, 2000) inscrita nas vivncias pessoais e familiares, possivelmente desde a infncia. Abaixo, transcrevo uma passagem do dirio de campo referente FENASUL de 2011, no qual descrevo um evento ilustrativo desta dinmica: O carter extremamente familiar da atividade pecuria (ou, ao menos, o que resta deste carter) reluziu de forma muito clara no evento seguinte, destinado, nas palavras do representante da marca Gadolando 73 , a gerar amor e carinho pela atividade pecuria nos filhos dos produtores. Tratava-se de um concurso denominado J ovem Puxador, em que crianas todas elas filhas de produtores - conduziam pequenos bezerros pelo freio ao redor do piquete, demonstrando suas habilidades nesta tcnica. As crianas competem em trs categorias etrias: at 9 anos, de 9 a 11, e de 11 a 14. O prmio era uma bicicleta. Ao longo de todo o percurso um pai ou responsvel servia de acompanhante, orientando e salvaguardando a criana de qualquer equvoco mais grave.
Outras mais, outras menos, todas as crianas tiveram em algum momento dificuldades para puxar o gado. Em geral, resolviam momentos de tenso, como empacadas, atravs da fora bruta, tendendo a puxar o freio com veemncia, sendo prontamente reorientadas pelos pais/responsveis. Em determinadas horas, os adultos tomavam o bezerro para si e demonstravam s crianas como elas deviam se comportar. O papel dos adultos tambm se concentrou na difcil tarefa de deixar as crianas mais calmas e no entrarem em pnico nos momentos difceis, fazendo-as retomarem o curso timo do controle sobre os animais. Ao completarem a primeira volta, as crianas recebiam dos representantes da associao um bon com a marca Gadolando.
O fato de que os animais sejam reconhecidos como sujeitos pelos seus criadores no implica dizer que a relao a estabelecida seja simtrica. Ao contrrio, ela marcada por uma profunda assimetria, na medida em que o lugar referente ao animal e o lugar referente ao humano so mais do que demarcados nestas situaes. No entanto, este tipo de interao nos permite relativizar os limites da alegao segundo a qual os animais de produo seriam considerados somente como mquinas pelos agentes produtivos. As categorias de animal e bicho, neste sentido, me parecem comportar um espectro gradativo complexo de subjetividade e reificao, que fazem delas categorias
73 Associao de criadores de Gado Holands no Rio Grande do Sul. 122
absolutamente hbridas: nem sujeito, nem objeto, nem coisa, nem pessoa, dependendo enormemente da circunstncia que conforma o olhar. A este respeito, cabe citar novamente Lvi-Strauss (2009, p. 78): o ato de matar seres vivos para se alimentar prop[e] aos humanos, conscientemente ou no, um problema filosfico problema que todas as sociedades tentam resolver. Em locais to diversos quanto a Amaznia indgena (Fausto, 2002), a Frana e a Itlia rurais (Vialles, 1987; Dalla Bernardina, 1991) e o serto nordestino (Cavignac e Dantas, 2008), o consumo de animais e seus produtos por grupos humanos sempre demandou algum tipo de procedimento tcnico-ritual de dessubjetivao dos mesmos, capaz de reific-los para melhor consumi-los. Cada cultura possui seus prprios meios de proceder esta alquimia simblica, isto , seus prprios meios de reificao e dessubjetivao. Nossa sociedade industrial tambm possui os seus, como bem ilustram os procedimentos de manejo racional destinados a administrar a subjetividade animal na produo de carne. Da mesma maneira, toda produo de animais para o abate modulada por uma compreenso e uma interpretao muito fina dos ciclos de vida e dos processos de desenvolvimento etrio dos mesmos. certo que, nos termos da linguagem zootcnica, estas etapas so como graus de uma maturao, quase como se fosse um produto agrcola ou uma cultura de tecidos isolada num laboratrio. Na linguagem corrente dos produtores e seus familiares, contudo, estas etapas da vida do animal so muitas vezes metaforizadas com as etapas da vida humana, de modo que podemos pensar aqui em um processo metafrico de subjetivao dos animais. Neste sentido, no parece haver contradio entre a subjetivao e o abate das reses. Ao contrrio, se trata de um fato inscrito na natureza da produo pecuria, qui na natureza em geral, em que a vida se alimenta de morte e em que o sentido da vida do animal morrer na mo do aougueiro. 4.4 O gado e o valor Mesmo que a produo e o consumo de carne venham um dia a se transformar em uma sarcofagia plena, totalmente livre dos animais que lhe do origem, h de se pensar nas demais atividades econmicas e sociais dependentes da produo animal, e o que aconteceria com elas num contexto de dissociao absoluta entre animal e seus produtos. Como argumentei anteriormente, o primado da carne como objeto ideal da criao bovina um fenmeno bastante recente, articulado a expanso da indstria 123
frigorfica e outros fatores prprios da modernidade. Em paralelo carne e ao leite, no entanto, outras atividades econmicas envolvendo bovinos se fazem presente na sociedade contempornea, na medida em que, alm de laboratrios nutritivos onde so processadas nossas substncias vitais, estes animais tambm permanecem sendo unidades de troca e reserva de valor, dada uma determinada apropriao econmica de sua produo ecolgica (Ingold, 2007). Sob esta perspectiva, enquadram-se mercados como o da reproduo de gado de elite, enfocado por Leal (2011) em sua pesquisa de doutorado. Segundo a autora, o gado de elite se conforma como um setor muito particular da economia pecuria, na medida em que seus espcimes no so criados para o abate. Ao contrrio, comportam-se como verdadeiras reservas de valor gentico e genealgico, reserva esta que comercializada, muitas vezes, como ativo financeiro. Individuados e subtrados do mercado comum do boi gordo, touros de gentica e de genealogia so como emblemas garantidores do valor de toda uma raa, maneira se me for permitida a aproximao do lastro em outro que outrora garantia o valor do dinheiro em circulao. O objeto ideal da produo destes animais no propriamente a sua carne, mas sim o seu smen, substncia destinada a perpetuar materialmente a mstica de sua genealogia. Neste ponto, urge retomar o que Sahlins afirma a respeito do gado em La Pense bourgeoise (2007), isto , de que a relao da sociedade norte-americana com ele e seu principal produto (a carne) deve remontar identificao indo-europeia do gado ou da riqueza multiplicvel com a virilidade (p. 185). Este aspecto tambm ressaltado por Serres, o qual argumenta que a troca de gado precedeu a moeda, o que testemunha a palavra pecunirio que se emprega para isso, mas que significa a tropa conduzida pelo pastor (2003, p. 89). Em consonncia, mile Benveniste dedica quatro captulos inteiros de seu Vocabulrio das instituies indo-europias (1995) relao entre gado e riqueza, e traa diversos comentrios ao radical indo-europeu peku-, que remeteria ao conjunto da propriedade privada mvel, tanto de homens quanto de animais, donde a relao etimolgica entre pecuria e pecnia, por exemplo. Da mesma forma, o autor relembra que o termo ingls cattle, remonta ao latim capitale, o bem principal (Benveniste, 1995, p. 57). No captulo anterior, entre outras coisas, procurei expor o vnculo existente entre carnivorismo e masculinidade. O que reluz agora sua identificao com a vida 124
econmica e a ideia de riqueza (ou posse) multiplicvel, que tem no gado um dos seus principais e mais antigos avatares. De fato, a figura do rebanho se presta a esta identificao. Ele homogneo: um indivduo potencialmente substituvel por qualquer outro. Ele produtivo: cada indivduo pode fornecer mil e um produtos derivados, como leite, carne, chifre e ossos. Cada um destes produtos gerador no s de valor de uso, mas tambm de valor de troca. Como o dinheiro, ele um objeto que atrai outros objetos (Fausto, 2001). Como unidade de troca nas relaes matrimoniais, em sociedades que assim o empregam (Evans-Pritchard, 2008), ele tambm uma ddiva que produz afins, produz parentesco, e mesmo novas pessoas, sob os regimes de aliana e filiao. Por fim, o gado reprodutivo: cada indivduo pode produzir novos indivduos, que tambm sero homogneos, produtivos e reprodutivos. Nas guerras da carne, percebe-se o quanto os defensores do carnivorismo procuram destacar este aspecto do gado como unidade de valor para combater argumentos vegetarianos. No site do SIC, sob a categoria Voc sabia?, encontra-se um texto denominado Para que serve um boi?. Em sua primeira frase, o texto argumenta: muitas pessoas primeira vista podem achar que a resposta para essa pergunta bvia: para produzir carne, e assim prossegue: Esse um assunto muito interessante, e com certeza vai surpreender muita gente, pois a maioria das pessoas no tem idia do que um boi pode originar... No vamos nem comentar sobre a carne, pois acho que todas as pessoas sabem o destino desse componente. 74
Ato contnuo, o texto passa a um cuidadoso inventrio de todos os produtos oriundos do gado bovino. Do couro, alm da utilizao bvia para a confeco de sapatos, cintos e roupas, o couro d origem gelatina neutra que ser usada na indstria alimentcia na fabricao de maria-mole, chiclete, suspiros, recheios, coberturas, iogurtes, sorvetes, cremes, etc. Esta gelatina, por sua vez, tambm descrita como importante na clarificao de vinhos, cerveja, suco de fruta, produtos dietticos, na indstria farmacutica (em cpsulas duras ou moles, comprimidos, drgeas, emulses, leos, esponjas medicinais), na indstria foto e fonogrfica, adesivos, abrasivos, fsforos, corantes, entre outros. Crinas e pelos prestam-se produo de escovas e filtros de ar; o sebo utilizado pela indstria qumica, pelos curtumes, pela indstria do
74 Disponvel em: http://www.sic.org.br/sabia.php#noticia5, consultado em 19 de setembro de 2012. 125
sabo, pneus, lpis e velas; cascos e chifres so matria-prima de toda sorte de artesanatos, madreprolas e prolas artificiais. Alm disso, quando modos, entram na composio do p de extintor de incndios, o leo entra na composio dos leos da indstria aeronutica como aditivo no lubrificante dos avies. Inventariados estes usos do animal, o texto prossegue: A blis usada na indstria qumica e de bebidas e na indstria farmacutica, onde os sais biliares entram na composio de remdios digestivos, reagentes para pesquisas e pomadas para contuses. (...) A mucosa do estmago usada na indstria de laticnios para a fabricao do coalho. Outras mucosas e glndulas so usadas na industria farmacutica fornecendo diversas substncias como insulina, hormnios da reproduo, enzimas digestivas, outros compostos enzimticos, histamina, heparina, imunoestimulantes, glucagon, oxitocina, somatotrofina bovina (hormnio do crescimento), neurotransmissores, tiroxina (hormnio da tireide), cerebrosdeos, etc, sendo estas substancias usadas na fabricao de remdios para uso humano. (...) Alm disso tudo, h muitos outros subprodutos aproveitados como, por exemplo: contedo rumenal, usado como adubo orgnico e na produo de biogs, farinha de carne e ossos usada na fabricao de raes para ces e gatos, os intestinos so usados na fabricao de fios cirrgicos, cordas para raquete de tnis, etc.
Por fim, alm de um rpido gracejo no exagero nenhum dizer que absolutamente tudo do boi aproveitado, podemos dizer de forma simblica que at o berro aproveitado, pois pode ser gravado e utilizado em msicas e trilhas sonoras de filmes e novelas - o texto conclui com um alerta: A pecuria e o abate de bovinos alm de gerar riquezas e empregos diretamente, contribui sobremaneira para o funcionamento de diversos outros setores. Se o abate de bovinos parar, haver paralisao direta de 49 dos mais variados segmentos industriais. Ao final, o texto ainda oferece um fluxograma (fig. 16) 75 , no qual se expe que tipo de cadeia industrial alimentada por um subproduto bovino.
75 Retirado de http://www.sic.org.br/images/fluxograma%20curvas%20pronto.pdf. Consultado em 19 de setembro de 2012. 126
Figura 16 Fluxograma oferecido no site do SIC sobre as cadeias industriais dependentes do abate de bovinos. Imagens semelhantes a esta circulam nas redes sociais. No siteBeef Point, fornecido outro fluxograma, bem mais completo. Ele serve para ilustrar um artigo chamado Pecuria: a base da cadeia da carne, onde se l que O pecuarista aquele cidado que tomou a sria deciso de ser diferente dos demais, cuja semana dividida, parte dos dias teis ele passa na cidade (negociando com bancos, fornecedores de rao, sal mineral, produtos veterinrios, comprando a alimentao dos vaqueiros e levando-os a mdicos, no vou listar aqui todas as suas atividades citadinas) e o restante dos dias, inclusive os finais de semana, afinal todo mundo conhece o adgio o boi s engorda sob os olhos do dono na labuta da fazenda. 76
De acordo com a imagem, o ciclo do boi se articula com outros ciclos da produo animal, como o do porco, o do frango e o do peixe, e tambm move diversos setores industriais de apoio, como a indstria metalrgica, a de equipamentos de segurana e a de roupas profissionais. No final, o autor do artigo argumenta que
76 Idem. 127
precisamos mostrar ao brasileiro que aquele fil suculento, mal passado ou ao ponto, ou o cozido, com os quais ele se delicia, foi cozido em menos de 40 minutos, entretanto, a carne levou de 2 a 4 anos, de muito sacrifcio, luta, trabalho e investimento, para chegar a sua cozinha, diferente do seu automvel/nibus, roupa, talher, copo e etc, que levaram menos de 5 dias para ser produzidos. 77
Tambm circula na internet a ilustrao abaixo (fig. 17), destinada explicitamente a expor a suposta contradio de ser vegetariano num mundo bovinodependente:
Figura 17: produtos base de gado
77 Idem. 128
Em reao a esta imagem, diversos blogs e sites vegetarianos passaram a disseminar o seguinte viral (fig. 19) 78 , estruturado sob a forma de uma resposta ao primeiro esquema. Em linhas gerais, a reao vegetariana evoca as principais alegaes de risco sanitrio, ambiental e tico envolvidas na produo de carne, como a questo do aquecimento global, o desmatamento na Amaznia, a crueldade com os animais e as doenas humanas alegadamente relacionadas ao consumo frequente ou imoderado de carne vermelha 79 :
Figura 18: onde est a iluso?, resposta ao esquema produtos base de gado
78 Em linguagem de internet, viral algum tipo de material virtual (principalmente vdeos ou imagens) que se dissemina veloz e anonimamente pela web, sobretudo nas redes sociais. A rastreabilidade da sua orgiem difcil, na medida em que sua disseminao se faz atravs de uma lgica multiplicativa de compartilhamentos simultneos. 79 Ambos os esquemas retirados de http://consciencia.blog.br/tag/produtos-a-base-de-gado#.UF-- eI2PVCc, em 23 de setembro de 2012. 129
Longe de se tratar de um movimento circunscrito cadeia da carne, estas movimentaes em prol da valorizao social do produto primrio um fenmeno transversal ao agronegcio no Brasil, que hoje se v exposto a inmeras crticas por conta de seu passivo ambiental e social. Em um editorial sugestivamente intitulado Ceres (a deusa romana dos gros e do amor maternal), o ento ministro da agricultura, Roberto Rodrigues (2003-2007), assim escreveu para a Folha de So Paulo (21/07/2007): Fazia um pouco de frio: junho estava muito mais para inverno que para outono. Ela vestiu suas calas jeans de algodo do Paran e suas longas belas pernas ficaram protegidas. Sobre uma blusinha branca de seda, desenhada com dlias vermelhas, vestiu um casaquinho de gacha l de ovelha, cor de rosa, combinando com as meinhas da mesma cor que sumiram na elegante bota de couro de gado do Mato Grosso. (...)Examinou os pneus de borracha rondoniense do seu carro, entrou, fechou a porta e foi abastecer com um pouco do etanol da cana-de-acar do Brasil. (...)Pensou ento na extraordinria comunho da natureza com o homem, na dura faina quotidiana da agricultura. Em como a terra solidria, cultivada, fertilizada e corrigida com carinho pelo agricultor, produzia todos os fatores essenciais para a vida: tudo! No s os alimentos, mas o vesturio, o combustvel, a moda, plantas aromticas e medicinais; e em como o trabalho do homem compunha uma sublime relao com o ambiente. (...)Por fim, a linda Ceres chegou ao escritrio e mergulhou no trabalho: servios de planejamento agropecurio, crdito, seguro, apoio comercializao, tudo para agricultura. Era o mnimo, pensou, o mnimo que podia fazer para honrar aqueles que garantiam sua vida, seu bem estar e sua tranqilidade. (...) Era o mnimo, que podia fazer para homenagear estes heris que dia aps dia, ano aps ano, enfrentando a concorrncia desleal dos subsdios dos pases ricos, fazem do Brasil um grande exportador de alimentos e fibras, gerando empregos e riquezas para todos. 80
Em todo caso, o que interessa aqui so os bovinos, e a maneira com que eles so compreendidos e discursivamente construdos na esfera pblica nacional. Atravs dos exemplos suscitados acima nos vemos confrontados com a figura do gado como riqueza multiplicvel, isto , como um valioso bem do qual derivam mil outros bens. A se julgar pelo que alegam os textos transcritos, a utilizao social de animais no se constituiria, portanto, como mais uma atividade entre outras da nossa sociedade. Ao contrrio. Ela seria, a bem da verdade, uma atividade praticamente insubstituvel e absolutamente fundamental para a reproduo da prpria sociedade.
80 RODRIGUES, Roberto. Ceres. Folha de So Paulo, 21/07/2007. 130
De acordo com a formulao de Mauss (2003), nos fatos sociais totais exprimem-se, de uma s vez, as mais diversas instituies: religiosas, jurdicas e morais estas sendo polticas e familiares ao mesmo tempo -; econmicas estas supondo formas particulares da produo e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuio -; sem contar os fenmenos estticos em que resultam esses fatos e os fenmenos morfolgicos que estas instituies manifestam (Mauss, 2003, p. 187).
Tomando isto em conta, percebe-se o quanto o consumo carnvoro, na condio de eptome das demais formas de apropriao social dos produtos oriundos da criao animal, impe-se como uma dimenso particular (alimentar) de um verdadeiro fato social total, que se exprime jurdico, moral, econmico, esttico e politicamente em nossa sociedade. A apropriao econmica dos ciclos ecolgicos dos animais um fato social que se declina em todas estas dimenses, e parece-me importante assinalar que o discurso crtico tem suas razes quando acusa a pecuria moderna de operar uma objetivao dos animais de produo. No entanto, creio ser improcedente tratar este fenmeno como uma novidade genuinamente moderna, e at mesmo exclusivamente ocidental. Como argumentei anteriormente, a identificao entre a ontologia do gado e a ontologia do valor parece radicar profundamente em nossa matriz civilizatria, chegando at os primrdios da domesticao h mais de 10 mil anos atrs. Em suma, trata-se de pensar que talvez no seja o gado que se transforma em mercadoria e unidade de valor por causa do capitalismo, mas sim que a solidariedade oculta que sempre existiu entre a ontologia do gado e a ontologia do valor ganha novos contornos no capitalismo, o qual, atravs da industrializao, apenas radicalizou e conferiu contornos cada vez mais dramticos para algo que sempre esteve latente em nossa relao com os grandes herbvoros que vivem em rebanhos: sua quase inexorvel identificao com a riqueza multiplicvel. Dada a complexidade e a antiguidade desta identificao, percebe-se o quo complexa e difcil pode ser uma tarefa poltica quanto o abolicionismo animal. Para todos os efeitos, a prpria sociedade consumidora de carne, a sociedade predadora de animais, que tambm produz os animais que ela mesma ir consumir. H milnios, as sociedades pastoris tem realizado isto atravs da seleo artificial, qui o aspecto mais duradouro do processo de domesticao. O avano da cincia no ltimo sculo permitiu a substituio deste modelo, mais fenotpico, por outro, de escala microscpica e 131
molecular, calcado na engenharia gentica. Os animais domesticados, tal como os conhecemos, no foram capturados l fora e simplesmente escravizados por uma sociedade humana sedenta de seus produtos. bem possvel que seus ancestrais, estes sim, tenham sido capturados por seus primeiros senhores humanos em sua forma selvagem, tal como a seleo natural os produziu. Contudo, desde que os seres humanos passaram a controlar os ciclos vitais e reprodutivos destas espcies, toda uma outra dinmica ecolgica se instaurou, afetando somaticamente tanto humanos quanto animais. Em suma, assim como a histria da espcie humana se confunde com a das espcies domesticadas, a histria destas espcies se confunde com a nossa. Desta maneira, torna-se legtimo refletir, juntamente com os defensores da abolio animal, sobre qual a animalidade que poderia se seguir a uma libertao dos bichos, assim como que outras maneiras de prosseguir prximos a eles poderiam ser inventadas, no caso da explorao agropecuria e do petichismo (Digard, 1999) se tornarem objeto dos livros de histria. Em seu artigo sobre a Vaca Louca, Lvi-Strauss (2009) especula a respeito de um cenrio futuro nestes termos: pois chegar um dia em que a ideia de que os homens do passado, para se alimentar, criavam e massacravam seres vivos e expunham complacentemente sua carne em pedaos nas vitrinas inspirar por certo a mesma repulsa que, para os viajantes dos sculos XVI ou XVII, as refeies canibais dos selvagens americanos, africanos ou australianos (p. 212).
Entretanto, o autor acredita que o apetite pela carne nem por isso desapareceria, de modo que, sua satisfao se tornar apenas uma ocasio rara, custosa e cheia de risco. (...) a carne figurar no cardpio em circunstncias excepcionais. Ser consumida com a mesma mistura de reverncia piedosa e de ansiedade que, segundo os antigos viajantes, impregnava as refeies canibais de certos povos. Tendo desaparecido completamente a criao de gado, no rentvel, essa carne comprada em lojas de grande luxo h de provir apenas da caa. Nossos antigos rebanhos, entregues a si mesmos, sero uma caa como outra qualquer num campo devolvido selvageria (idem, p. 215-6).
O artigo termina evocando um cenrio bastante afeito fico cientfica, no qual as criaes de gado e outros animais para o consumo desapareceriam e a fronteira campo/cidade, animal/humano, se radicalizaria, pois 132
ao amontoar-se, como vemos hoje, em megalpoles to grandes como provncias, uma populao antes mais distribuda esvaziar outros espaos. Definitivamente abandonados por seus habitantes, esses espaos retornariam a condies arcaicas e neles, aqui e ali, as mais estranhas formas de vida se instalariam. Em vez de marchar para a monotonia, a evoluo da humanidade acentuaria os contrastes e criaria at mesmo novos, restabelecendo o reinado da diversidade (idem, p. 216).
Assim, tal como Wilde se perguntara, certa feita, sobre a alma do homem sob o socialismo, se a tendncia for mesmo a reduo da explorao animal at sua abolio completa o que no parece ser uma tendncia nem a curto nem a mdio prazo -, talvez seja interessante comear a se pensar sobre a alma (e o corpo) dos animais sob o abolicionismo. Em outras palavras, se o sistema agropecurio corresponde escravido dos bichos, nada exclui a possibilidade de que a abolio possa resvalar na guerra contra os mesmos, no caso do afastamento entre as espcies no for acompanhado de novas formas de aproximao entre elas. Como afirma Serres, a domesticidade designa um conjunto de seres vivos que dependem de ns, e ns, deles (2003, p. 124). Abdicar da proximidade com os animais domesticados pode significar a abdicao de uma parte importante da nossa histria como espcie, alm de priv-los do contato com uma parte importante das suas histrias enquanto espcies. Que outros mundos morais da nossa relao com os animais domesticados seriam possveis?
133
CONSIDERAES FINAIS
Esto ali os pedaos do bicho, a cabea, as patas, a carne, os chifres. Fico-me pela farinha regada com um molho cuja natureza prefiro desconhecer. (...) Comemos em silncio. Escuta-se o febril mastigar da carne. S quando ossos, j limpos, regressam panela, que algum nos dirige a palavra. (...) O idoso volta a carga. Comenta o fato de termos recusado servir da panela grande. Quem, neste mundo, nega semelhante convite? - Enganam-se, irmos. Esses, brancos, comem carne todos os dias. essa gula que vai acabar com o mundo. - O problema corrige outro campons no o que eles comem, mas como comem.
Mia Couto, A confisso da leoa (2012, p. 113).
Partindo do ndulo discursivo representado pela situao etnogrfica disparadora, procurei rastrear trs dos distintos fluxos sobre os quais se assenta a paisagem fenomenal das contemporneas guerras da carne no Brasil. O mapeamento desta paisagem, contudo, no se esgota com os rastreamentos operados at aqui. Como afirmam Kleinman e Kleinman (1995), o fluxo da experincia social intermitente. Ele prossegue depois que cessa o recorte temporal e analtico do trabalho antropolgico. Ora, os fluxos discursivos aqui rastreados nada mais so do que uma parte deste fluxo maior. E muito bem possvel que, antes mesmo da concluso da escrita desta dissertao, a paisagem fenomenal das guerras da carne j tenha se alterado substancialmente, demandando novas investigaes. Tendo em vista estes aspectos, tendo a concordar com o que afirma Florence Weber quando afirma que uma das caractersticas da pesquisa de campo etnogrfica a de ser antes um fator de transformao de hipteses do que um dispositivo para confirm-las ou invalid-las (2009, p. 61). Assim, muito mais do que concluses propriamente ditas, o que se segue abaixo um pequeno rol de hipteses de segunda ordem, as quais, espero, possam servir de base para novas incurses antropolgicas neste tema e objeto. Questionava-me, na introduo, sobre o que estaria em jogo, para as sociedades humanas (em especial as sociedades ocidentais modernas) quando se produz e se consome carne. Mais especificamente, tambm me questionava sobre quais seriam as relaes entre o consumo carnvoro, como prtica alimentar (social e culturalmente 134
mediada), e a produo de carne, como modalidade de interao entre a espcie humana e outras formas de vida animal. Em sntese, ao longo do trabalho procurou-se demonstrar que um forte elemento carnvoro pontua a gramtica alimentar sul-rio-grandense, brasileira e ocidental (Captulo 2). Guardadas as especificidades de cada um destes conjuntos do grande cdigo alimentar ocidental, a mesma centralidade da carne verificada como trao constitutivo fundamental tanto no mais local quanto no mais abrangente deles. Os dados levantados por esta pesquisa tendem a ratificar a posio de Fischler (2001) segundo a qual a carne possui o estatuto de alimento absoluto na gramtica e forma de vida alimentar do ocidente moderno, ilustrando, desde o ponto de vista brasileiro e sul-rio- grandense, como isso si ocorrer em mbito local. Alm disso, percebe-se que h uma distribuio desigual da carnicidade aqui tomada enquanto virtude e qualidade que pode ser atribuda a um produto - entre as diversas carnes oferecidas no mercado, de modo que a carne vermelha, bovina, desponta como a mais emblemtica de todas as carnes, o que no s aproxima a gramtica carnvora local de outros contextos, como tambm nos incita a perguntar sobre que tipo de regime produtivo esta configurao de consumo - qui mais bovinvoro do que carnvoro - se encontra assentado. Questiona-se, em primeiro lugar, quem so seus agentes e quais os tipos de narrativa por eles engendrados (Captulo 1); e, em segundo lugar, que tipo de configurao relacional humano-animal decorre desta matriz produtivo-consumptiva marcadamente bovinocntrica e ruminocntrica (Captulo 4). Como foi ilustrado nos captulo 2 e 3, o consumo de carne uma espcie muito curiosa (e eficiente) de produzir pessoas e corpos, afinidades e diferenas, nos contextos estudados. Se verdade que h um modelo normativo de corporeidade na sociedade ocidental, poderamos considerar, com segurana, o carnivorismo como sua contrapartida alimentar. A carne tambm implica numa poltica de gnero, a qual se declina tanto leiga quanto profissionalmente. Como explicar de outra maneira a nfase dada por certos profissionais da rea mdica no papel da carne como alimento andrognico? Que ela assim de fato o seja, no me cabe discutir. Que isto, no entanto, aparea como argumento em sua defesa na esfera pblica, j d o que pensar. O que faz algo legtimo e necessrio de ser consumido pelo fato de ser andrognico? 135
Igualmente, merece destaque nesta poltica sexual da carne a centralidade de certa narrativa evolucionria calcada no mito do homem caador. Esta uma narrativa eivada de genderificao, pois visa atribuir um suposto trao essencial da espcie humana (o carnivorismo) a um tipo de atividade que, de acordo com o mito, era realizada nica e exclusivamente por uma de suas metades (os homens). maneira de Dumont (1985), esta metade pode ser considerada a metade englobante, a metade dominante, da vida social. J o exato oposto deste mito no deixa de manifestar a mesma geologia profunda: se o consumo de carne deve ser abolido por se tratar de uma sobrevivncia pleistocnica em um mundo ps-neoltico, no qual no se viveria mais sob o imprio da necessidade, segue-se que aquelas atividades de subsistncia ancoradas no exerccio da fora e da violncia, como a morte de animais, deveriam dar espao a um mundo plenamente domesticado, docilizado, o que no deixa de repetir certa topologia de gnero entre um fora, selvagem e pastoril 81 , e um dentro, domstico e agrcola, os quais tambm no deixam de ser genderificados. Do que o carnivorismo concerne aos corpos, passemos agora aos demais distanciamentos e proximidades sociais produzidos em torno da questo da carne. Como procurei relatar no captulo 2, h a produo no s de laos de parentesco e afinidade atravs da comensalidade carnvora, como tambm a pretenso de produo de um tipo de identidade menos localizada que o parentesco, isto , a identidade cultural e nacional, este tipo de afinidade ampliada e abstrata com a qual o ocidente moderno se acostumou a pensar as fronteiras do eu e do outro em larga escala, tambm atravs da alimentao. Assim, o caso quase anedtico da pesquisa gacha que contrape Harvard se une a uma mirade de outros exemplos desta tendncia a se identificar o outro como outro a partir do seu carnivorismo especfico. Afinal de contas, se a emergncia do tabu coincide com a emergncia da cultura, a diferena entre o que considerado tabu tambm coincide com a diferena entre as culturas. Manuais de culinria que ostentam esquemas de partio de carcaas bovinas so um bom exemplo disso. A geografia do boi francs totalmente diferente da do boi britnico, que tambm guarda suas diferenas com o boi australiano e norte-americano.
81 O pastoreio no deixa de ser uma atividade domesticatria. No entanto, se trata daquela atividade domesticatria limite entre o bravio e o domesticado; a ao direta positiva de que fala Haudricourt (1962); a eterna necessidade de vigilncia e instrumentos de doma que caracteriza o pastoralismo tradicional segundo Ingold (2000); ou mesmo a eterna desconfiana dos Nuer em relao ao seu gado (Evans-Pritchard, 2008), cujo mito domesticatrio remonta a um dio original entre homens e gado. 136
Este tipo de variao estruturada sobre uma mesma matria emprica comum, que recortada e classificada, arbitrariamente, ora de um jeito, ora de outro, refora ainda mais a hiptese de que h, de fato, uma gramtica carnvora a operar em nosso sistema alimentar mais geral, a qual, como langue, pode se efetivar atravs de distintas e infinitas paroles (o carnivorismo ingls, francs, argentino, brasileiro, etc.). Alm destes aspectos classificatrios, devo sublinhar que o mais importante ainda me parece ser a produo de distintos tipos de pessoas atravs do consumo carnvoro. Um determinado tipo de consumo de carne produz gachos (churrasco). Outro, em contrapartida, produz ingleses, franceses, argentinos, uruguaios e norte- americanos: a empregada francesa de um filme antigo sente-se ultrajada por ter oferecido seu bife com batatas fritas para um espia alemo, infiltrado como patriota (Barthes, 2001). Na Argentina, o entrecot alado condio de emblema nacional. Nos Estados Unidos, alimenta-se a fora e a virilidade do jogador de futebol americano com grandes quantidades de steaks (Sahlins, 2007). Mas isto no somente nominal e classificatrio. H tambm um aspecto profundamente prtico envolvido nisso. Como bem demonstra o exemplo do aougue-modelo descrito no captulo 2, h toda uma educao da ateno (Ingold, 2000) envolvida na transformao da carcaa em cortes de carne, que se processa scio-fenomenologicamente. Para isto acontecer, necessrio um determinado tipo de engajamento [engagement] e habilidade [skill] prticos com a matria carnosa que se d a manipular. Talvez caiba a uma futura etnografia de aougue revelar outros aspectos desta relao prtica com a materialidade da carne, relao que a presente pesquisa, por se centrar em outras arestas do mesmo objeto, no pde pormenorizar 82 . Tambm me perguntava, na introduo, pelas maneiras atravs das quais os produtores de carne narram seu produto na esfera pblica, defendem-se das crticas atribudas a ele e, por fim, disseminam estas narrativas e defesas pelo tecido social. Pergunto-me agora: qual o sentido social de um engajamento to enrgico (e por vezes to agressivo) em prol de um determinado produto e sua cadeia sociotcnica? Simplesmente afirmar que isto se deve existncia de contradiscursos anticarnvoros no basta, pois a prpria emergncia destes discursos tambm necessita ser explicada.
82 Alm disso, h outros tipos de engajamento prtico com a materialidade da carne que poderiam engendrar interessantes etnografias, como o engajamento dos sentidos (tato, olfato, paladar) envolvidos no ato alimentar. 137
Em outras palavras: donde provm a vaga anticarnvora do contemporneo? E por que os debates envolvendo a carne so sempre to acalorados? Em primeiro lugar, preciso destacar que h uma sobreposio de camadas de sentido em relao a esta questo, as quais apontam para lados e temporalidades diferentes. A alimentao exclusivamente vegetal, o repdio carne e a empatia com os animais estendem-se em um espectro de relativamente longa durao na histria ocidental (Thomas, 2010; Fraser, 2012). Contudo, a zootecnia industrial, o sistema- mundo como rea de produo e distribuio de alimentos e, por fim, a questo ambiental, reatualizaram e ressemantizaram, nos termos do presente, estes traos que sempre fizeram da carne um produto moral e culturalmente problemtico. A complexidade cada vez maior das cadeias produtivas contemporneas conduz proliferao, em progresso geomtrica, de riscos potenciais, impurezas e alteridades residuais nos interstcios do sistema. Entre estes outros residuais, me parece justo incluir a subjetividade dos animais, que persiste operando como rudo tcnico e moral da engrenagem produtora de carne e outros derivados. E na medida em que os riscos envolvidos em uma cadeia de produo so dramatizados publicamente (Beck, 2010), proliferam tambm as narrativas divergentes a respeito da prpria articulao da cadeia, suas virtudes e vcios, benefcios e prejuzos, bem como o sentido representado pela presena ou ausncia de rudos e intermedirios problemticos em seu encadeamento. importante ressaltar que a resistncia ao modelo industrial de produo de carne no se restringe somente aos grupos vegetarianos e animalitrios, e que nem todas as iniciativas de consumo alternativo ao modelo predominante so iniciativas vegetarianas. Como bem relembra Weiss (2012), movimentos como o slow food e o local food comportam em suas agendas formas de carnivorismo alternativas, para as quais a questo primordial no exatamente a moralidade do consumo de animais no- humanos, mas sim a simplicidade artesanal das (e o cuidado tico envolvidos nas) cadeias de obteno do alimento. Igualmente, talvez mais ameaador para a cadeia da carne que o vegetarianismo militante, seja o discurso nutricional contemporneo que pregamoderao no consumo de carne, e no exatamente sua abolio. 138
O presente trabalho sublinhou os argumentos vegetarianos militantes contra a carne por representarem uma espcie de posio limite, isto , o ponto extremo em que a crtica da carne pode chegar. Todavia, a ideia de que o consumo de carne deva ser moderado, diminudo, parece ser mais bem disseminado no tecido social que os discursos radicais. Evidentemente, os cientistas e especialistas arregimentados pelo sistema-carne no prescrevem o abuso do produto. O que indicam fazer, no entanto, adequar o ideal normativo de moderao alimentar com a ideia de que a carne substncia imprescindvel, necessria, para a sade humana. Na Amaznia indgena, a predao (concreta ou metafrica) a relao ontolgica fundamental (Viveiros de Castro, 2011; Fausto, 2001, 2002). interessante observar como, naquele contexto, a questo sobre quem devora quem acaba sendo o elemento crucial na definio do estatuto ontolgico de cada ente. O humano define-se como humano em relao aos seus comensais, mas aparece como jaguar para os peixes que aparecem como humanos para outros peixes. Inversamente, os humanos so como presas para os jaguares, os quais se enxergam como humanos entre outros jaguares. Tamanha nfase ontolgica sobre um ato somtico como a alimentao contrasta com a tradio ocidental que identifica na mente (e no no corpo), no crebro (e no no estmago), o diacrtico ontolgico fundamental. Nos termos modernos de Arendt (2003), a alimentao e a reproduo, no passariam de labor, a dimenso existencial menos importante da condio humana: mera existncia orgnica, mera reproduo da fora de trabalho, mera facticidade natural. O labor aquilo que, na descrio formal do mundo antigo proposta pela autora, os homens livres deixavam a encargo do mbito domstico, econmico, sustentado sobre a energia dos escravos 83 . J no espao pblico realizava-se a natureza lgico-discursiva do ser humano, marca da sua diferena ontolgica em relao aos outros animais. Contudo, a predao da alteridade dita natural em prol do labor - o suposto sustentculo econmico da vida poltica, a suposta atividade privada, que sustentaria, como bastidor, a atividade pblica - ganha contornos titnicos atravs do industrialismo. Desde as ltimas dcadas do sculo XX, esta produo/predao parece estar se conduzindo ao limite dos seus prprios recursos de perpetuao. Subitamente, a gua
83 Cujo estatuto, devemos recordar, no se diferenciava muito daquele dos animais de produo. 139
passa a se configurar como um bem cada vez mais raro. A energia, cada vez mais cara. As terras agriculturveis, cada vez mais escassas e pobres. A demanda por alimentos, cada vez maior que a oferta. O clima, cada vez mais incerto. Tudo aquilo que parecia pressuposto (economicamente) para que a sociedade se realizasse (poltica e socialmente) vm tona, problematicamente. Desta maneira, o sistema agroalimentar (assim como o setor energtico em geral) passa a expor as suas vsceras, suas fragilidades e suas contradies. A seu respeito, encarnia-se mais e mais o debate pblico. E o labor, por consequncia, deixa de se configurar matria nica e exclusivamente de economia e passa a ser tema, fundamentalmente, de poltica. Desta maneira, impossvel se pensar hoje nos temas clssicos da poltica (que tipo de sociedade somos e que tipo de sociedade queremos ser) sem refletir minimamente sobre a viabilidade do nosso sistema agroalimentar. A disputa de narrativas sobre a carne enfocada neste trabalho, portanto, me parece se configurar, acima de tudo, como um subcojunto deste problema mais geral. Falar da maneira que comemos falar das relaes que estabelecemos uns com os outros, com os animais, com a alteridade natural em geral. Falar da maneira que comemos falar de gnero, falar de corpo, falar de diferena simblica e cultural. Falar do que comemos, por fim, falar de como comemos - pois todas as coisas que consumimos, j dizia Marx, so cristalizaes das nossas relaes de produo. Por fim, cabe relembrar que este trabalho procurou investigar o que est em jogo nas guerras da carne sublinhando algumas falas emblemticas para se pensar os fluxos discursivos que compem a paisagem fenomenal destas citadas guerras. Se me fosse solicitado escolher a mais emblemtica destas frases, eu selecionaria aquela segundo a qual o carnivorismo nos colocou em condio de dominar a cadeia alimentar. Mais do que qualquer outra das falas ressaltadas, esta em especfico parece condensar o ncleo duro antropolgico, por assim dizer, dos significados do nosso carnivorismo ocidental. Quando se afirma que estamos no topo da cadeia alimentar estamos formulando uma interpretao bastante interessante e esclarecedora sobre nosso prprio carnivorismo. O carnivorismo de quem se coloca no topo da cadeia alimentar o carnivorismo de quem se encontra excetuado do circuito de predao. H uma diferena muito grande entre comer um animal correndo o risco de ser comido por outro (como parece ser a lgica cinegtica de compreenso das fronteiras entre o humano e o animal 140
nas sociedades amerndias, por exemplo) e comer um animal desde um suposto ponto cego fora da predao ponto cego desde o qual somente os humanos so pessoas, e os animais, meros animais. No coincidentemente, este mesmo ponto cego fora da animalidade que caracteriza a tese da exceo humana nos termos em que a descreve Schaeffer (2009): isto , a ideia segundo a qual o ser humano se define por sua absoluta diferena ontolgica em relao a todos os outros entes, sobretudo os demais seres do reino animal. Na medida, portanto, em que nosso carnivorismo ocidental pode ser classificado como antropocntrico, trata-se de compreender que nem todo carnivorismo necessariamente o . Sobretudo aquele desenvolvido em contextos nos quais tanto a vida humana quanto a no-humana encarada sob a mesma tica de fragilidade ontolgica e articulao nos circuitos de predao. Contextos, em suma, nos quais difceis se falar de um topo da cadeia alimentar seja l o que isto queira significar.
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