Tese Final

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SERVIO PBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS Benilde

de Nazar Lameira Rosa

DE JARDIM ENCANTADO A REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE CONSERVAO: uma anlise de ethos ambientais

Belm 2012

Benilde de Nazar Lameira Rosa

DE JARDIM ENCANTADO A REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE CONSERVAO: uma anlise de ethos ambientais

Benilde de Nazar Lameira Rosa

DE JARDIM ENCANTADO A REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE CONSERVAO: uma anlise de ethos ambientais

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao strictu sensu em Cincias Sociais (PPGCS), rea de concentrao em Sociologia, junto ao Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal do Par UFPA, como pr-requisito para obteno do grau de Doutora em Cincias Sociais (SOCIOLOGIA). Orientadora: Professora PhD. Ktia Marly Leite Mendona.

Belm 2012

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (Biblioteca de Ps-Graduao do IFCH/UFPA, Belm-PA)

Rosa, Benilde de Nazar Lameira De Jardim Encantado a Reino Desencantado das Unidades de Conservao: uma anlise de ethos ambientais / Benilde de Nazar Lameira Rosa; orientadora, Ktia Marly Leite Mendona. - 2012. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Par. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, Belm, 2012. 1. Reserva Extrativista Marinha Ara-Peroba (Augusto Corra, PA). 2. Reserva Extrativista Marinha de Soure (PA). 3. Proteo ambiental. 4. Meio ambiente. 5. Gesto ambiental. 6. Homem - Influncia sobre a natureza. 7. tica. I. Ttulo. CDD - 22. ed. 363.70098115

Benilde de Nazar Lameira Rosa

DE JARDIM ENCANTADO A REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE CONSERVAO: uma anlise de ethos ambientais

Banca examinadora: __________________________________________ Professora PhD Ktia Marly Leite Mendona (Orientadora - PPGCS/UFPA) __________________________________________ Professora Dr Lourdes Gonalves Furtado (Examinador Interna PPGCS/UFPA/Emlio Goeldi) __________________________________________ Professor Dr. Luis Fernando Cardoso e Cardoso (Examinador Interno PPGCS/UFPA) __________________________________________ Professora Dr Denise Machado Cardoso (PPGCS/UFPA) (Examinadora Interna PPGCS/UFPA) __________________________________________ Professor Dr. Jos Bittencourt da Silva (Examinador Externo PPGED/UFPA) __________________________________________ Professora Dra Maria Dolores Lima da Silva (Examinadora Externa PPGCP/UFPA)
_____________________________________________

Professora Dr Vernica do Couto Abreu (Examinadora Suplente ICSA/UFPA)

Aprovado em ____ /__________ / ________ Belm 2012

Ofereo o resultado deste trabalho a todos os usurios das RESEXs Ara-Peroba em


Augusto Corra e de Soure na ilha do Maraj, na perspectiva de que possa contribuir, de alguma forma, com a qualidade de vida dessas populaes;

Ofereo,

ainda, a todos os profissionais tcnicos das instituies pblicas

ambientais, que no af de uma sociedade mais justa, buscam por novas perspectivas a trilhar junto s populaes locais.

Considerar a justia como uma virtude, ao lado da prudncia, da temperana, da coragem, admitir que ela contribui para orientar a ao humana para um cumprimento, uma perfeio, da qual a noo popular de felicidade d uma idia aproximada. (RICOEUR, 1991, p. 91).

Dedico, mais uma vez e sempre, como produto de meu empenho, ao Philippe Rosa Portela
MEU ANJO DE LUZ, MEU FILHO, MINHA VIDA! Amigo e parceiro de todas as horas, inclusive nas que estive ausente em sua to doce e plena adolescncia, e agradeo pelas ajudas, todas elas...

Eu amo voc!

Em sua homenagem, filho:


Olha nos meus olhos, Esquece o que passou... Aqui, neste momento, Silncio e sentimento, Sou o teu poeta... Eu sou o teu cantor, Teu rei e teu escravo, Teu rio e tua estrada... Vem comigo, meu amado amigo, Nessa noite clara de vero. Seja sempre o meu melhor presente, Seja tudo sempre como . tudo que se quer!... Leve como o vento, Quente como o Sol, Em paz na claridade, Sem medo e sem saudade. Livre como o sonho, Alegre como a luz. Desejo e fantasia Em plena harmonia! Sou teu homem, sou teu pai, teu filho; Sou aquele que te tem amor... Sou teu par, o teu melhor amigo, Vou contigo, seja aonde for... E onde estiver, estou. Vem comigo, meu amado amigo, Sou teu barco neste mar de amor. Sou a vela que te leva longe Da tristeza... eu sei, eu vou. Onde estiver, estou!... E onde estiver, estou!... Tudo que se quer Composio: Andrew Lloyd Webber Verso: Nelson Motta

AGRADECIMENTOS
A todos os trabalhadores das RESEXs em estudo que me acolheram permitindo a realizao da pesquisa de campo deste trabalho, em especial ao Sr. Jos Antero e ao Sr. Rodrigo Leal. Todos, pessoas imprescindveis, cuja inteno tica de viver bem com e para os outros se fez presente na criao das UCs. A todos os servidores e agentes institucionais que entrevistei em seus locais de trabalho, que cederam seu tempo e se dispuseram a colaborar e qualificar este estudo, permitindo que os entrevistasse. Especialmente ao socilogo Otvio Albuquerque, pela percepo e ao em prol da sustentabilidade ambiental e social nas Reservas Extrativistas Marinhas do Par e a Agrnoma Lisngela Cassiano, analista ambiental do ICMBio pelo apoio prestado durante a pesquisa de campo e pela amizade que se solidificou nessa caminhada; A todos aqueles que fazem parte desta minha histria, meu pai Raimundo Rosa Portela, meu irmo Carlos Augusto, minha me Benedita Mendona, amigas Lourdes Maciel, Maria Leonardo e ngela Azevedo; Ao mozinho, meu companheiro Moacir Miranda, que se desdobrou como pde na inteno de me ajudar nessa jornada. Obrigada por me ensinar, mesmo que por caminhos tortos, que no construmos a vida, em qualquer plano que queiramos galgar, na solido; s servidoras da Biblioteca Central da UFPA, que no mediram esforos para ajudarme no acesso aos materiais ali disponveis; Aos meus colegas de trabalho Paulo Pinto e Rosngela Borges, pela amizade e disponibilidade constante em nos dar o apoio necessrio na secretaria do PPGCS; No poderia deixar de agradecer aos meus colegas de trabalho que sentiram comigo as minhas dores fsicas e psquicas, a todos, por suportarem minhas ausncias, meus anseios, minha qualificao rumo ao doutorado. Agradeo ainda, a minha colega de graduao, Maria Dolores Lima da Silva, a quem recorri diversas vezes no percurso deste doutoramento e que nunca se negou a compartilhar comigo todos os ritos pelos quais precisei passar. Inclusive a defesa de tese, na qual Dolores compe a banca. Obrigada pela disponibilidade, sempre; Aos demais Mestres que tambm se disponibilizaram a aceitar o convite para compor a banca de avaliao da tese: Professora Dr Lourdes Gonalves Furtado, Professsor Dr. Jos

Bittencourt da Silva, Professor Dr. Luis Fernando Cardoso e Cardoso; Professora Dr Vernica do Couto Abreu e Professsora Dr Denise Machado Cardoso; A todos os meus Mestres, que permitiram a mim e a tantos outros colegas alar voo na construo do conhecimento nas Cincias Sociais. Em especial, como no poderia deixar de ser, a dois anjos: ao professor Heraldo Maus e a professora Anglica Maus, pela serenidade e pelo afeto inerentes as suas pessoas e pela disponiblidade em compartilhar conosco suas sabedorias de vida. A professora Anglica em particular, por ouvir meus lamentos e aconselhar-me. Meu muito obrigada pela partilha nos momentos mais difceis desta trajetria; professora Leila Mouro, outro anjo que se fez em toda a minha trajetria acadmica; Agradeo ainda, imensamente pessoa Ktia Marly Leite Mendona, pela dedicao ao curso e: Pelas disciplinas ministradas, das quais fui aluna e sai maravilhada com a perspectiva de novas veredas a caminhar, por isso retornei a elas ainda mais uma vez, como ouvinte; Por aceitar minha orientao quando eu j trilhava o doutorado, e ainda assim, dandome o suporte acadmico tico e solidrio que me permitiu o mais de qualificao que tanto busquei nesse curso; Pelas demonstraes de afetividade, serenidade, solidariedade, em uma nica palavra de humanidade em uma sociedade em que esses sentidos da vida pouco afloram; Por mediar meu encontro com uma perspectiva que no se faz s para a produo acadmica, mas como conduta da vida. Professora Ktia, meu obrigada, grato e fraterno; Agradeo, de forma muito especial, ao Magnfico Reitor da Universidade Federal do Par, Professor Carlos Edilson de Almeida Maneschy, com quem pude contar em todo esse percurso, mediando as minhas atividades de trabalho e o doutoramento; Mnica Lizardo pelo apoio, colocando-se a inteira disposio para a leitura minuciosa e primordial do sexto captulo e de minhas concluses, quando at esses agradecimentos j estavam prontos, por isso inclui voc de forma especial. Obrigada Mnica, voc tem sido meu apoio nesses momentos finais ante a defesa da tese j marcada; Aproveito para agradecer ao Renan, pela gentileza de compartilhar comigo o tempo de sua me, com a amabilidade de poucos; A todos que, de algum modo, colaboraram para que esse momento se tornasse possvel. Meus sinceros agradecimentos.

Enfim, agradeo a Deus e a Nossa Senhora de Nazar, que se fazem presentes na minha vida em diversas nuances, em particular colocando esses anjos ao meu redor, tornando essa jornada mais suave e a caminhada da vida mais serena.

OBRIGADA MEU DEUS!

Acreditem, hoje sou mais feliz do que ontem, e vocs estiveram comigo nessa caminhada.

RESUMO Este estudo trata das relaes entre agentes sociais cujas racionalidades distintas condicionam os sentidos dados s suas aes no processo de execuo da poltica de Unidades de Conservao (UCs) no caso, Reservas Extrativistas (RESEXs). Nosso ponto de partida a concepo de Encantamento e Desencantamento do mundo presente na obra de Max Weber, buscando mostrar, por meio de tipos ideais, como coabitam no mesmo contexto racionalidades e ethos distintos. O estudo parte de articulao terica entre os conceitos de racionalidade e de ethos em Weber. Foi analisado o cenrio de participao das populaes extrativistas na criao de duas RESEXs Marinhas: Ara-Peroba no municpio de Augusto Corra, no nordeste paraense e Soure na Ilha do Maraj. Ao mesmo tempo foi analisada a participao daquelas populaes na elaborao da fase I de seus Planos de Manejo (PM). Apontamos a existncia de ethos ambientais distintos, ou seja, formas particulares de ao dos extrativistas locais, de acordo com as particularidades de suas relaes com o Outro em suas dimenses do natural, do humano e do sagrado e suas respectivas conexes com a relao homem/natureza. luz do pensamento de Paul Ricoeur, assinalamos possibilidades para uma reflexo acerca das relaes intersubjetivas, bem como acerca das relaes entre esfera pblica e populaes locais em Unidades de Conservao. No percurso do estudo, trs pontos centrais foram elencados: em primeiro lugar a existncia de racionalidades e ethos locais como trao definidor da materialidade, que apontam para a existncia de racionalidades e ethos ambientais, aos quais se vinculam princpios ticos. O segundo ponto se refere ao contexto da gesto participativa das RESEXs h assimetrias nas relaes entre o rgo gestor e as populaes locais e uma sobreposio de interesses, de princpios e de valores reafirmados pelo modus operandi funcional (ethos institucional) da dominao racional-legal. Finalmente, no terceiro ponto, indicamos a possibilidade de mediao entre essas assimetrias que poder constituir-se atravs de novas perspectivas conciliatrias de sentidos, o que enfatizado pela tica e pela Hermenutica no pensamento de Paul Ricoeur.

Palavras-chave: Unidades de Conservao. Meio-Ambiente. Ethos. tica. Racionalidade. Alteridade.

ABSTRACT This study discuss the relations between social agents whose different rationalities determine the meanings of their actions in the process of implementing the policy of conservation units (UCs) - in this case, extractive reserves (RESEXs). Our starting point is the conception of Enchantment and Disenchantment of the World present in the work of Max Weber, trying to show, by means of ideal types, as coexist in the same context distinct rationalities and ethos. The study explores the theoretical link between the concepts of rationality and ethos in Weber. We analyzed the scenario of participation of the local population in the creation of two marine extractive reserves: Ara-Peroba in the municipality of Augusto Corra (northeastern of Par) and Soure in the Maraj Island. At the same time we analyzed the participation of those locals in the development of phase I of their management plans (PM). We point out the existence of distinct environmental ethos, or particular forms of action of those local population, according to the particularities of its relations with the Other - natural, human and sacred - and their connections with the relations between man and nature. In light of the thought of Paul Ricoeur, we indicate a possible reflection about of interpersonal relations and about the relations between the public sphere and local population in protected areas. In the course of the study three central points were listed. First: the existence of local rationalities and ethos as a defining feature of materiality, which indicate the existence of environmental rationality and ethos linked to ethical principles. The second point concerns the context of management of RESEXs - there are asymmetries in the relations between the public instution and the local population and a overlapping of interests, values and principles reaffirmed by the functional modus operandi (institutional ethos) of rational-legal domination. Finally, in the third point is indicated the possibility of mediation between these asymmetries that may be managed through new conciliatory perspectives, which is emphasized by the Ethics and Hermeneutics in the Paul Ricoeur's thought.

Keywords: Conservation Units. Environment. Ethos. Ethics. Rationality. Alterity.

LISTA DE SIGLAS

ACS AFA AGB AMAM AMCC APCC APP APA ARPA ASMUPESQ ASPEPE ASSIBAMA ASSUREMAS AUREMAP

Associao dos Tiradores de Caranguejo de Soure Associao de Futebol do Ara Associao dos Gegrafos Brasileiros Associao dos Municpios do Arquiplago do Maraj Associao de Moradores da Comunidade do Cu Associao de Pescadores da Comunidade do Cu reas de Preservao Permanente rea de Proteo Ambiental Programa reas Protegidas da Amaznia Associao de Mulheres do Pesqueiro Associao dos Pescadores do Pesqueiro Associao dos Servidores do IBAMA Associao de Usurios da Reserva Extrativista Marinha de Soure Associao de Usurios da Reserva Extrativista Marinha AraPeroba

ASSUREMACATA Associao de Usurios da RESEX Caet-Tapera BID CEPLAC CEPNOR Banco Interamericano de Desenvolvimento Comisso Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira Centro de Pesquisa e Gesto de Recursos Pesqueiros do Norte do Brasil CGEE CNPT Centro de Estudos e Gesto Estratgica Centro Integrado de Desenvolvimento Sustentado das Populaes Tradicionais CNS CNUMAD Conselho Nacional dos Seringueiros Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento CNUC CONAMA CPNOR CR Cadastro Nacional de Unidades de Conservao do MMA Conselho Nacional do Meio Ambiente Centro de Pesquisa e Extenso Pesqueira do Norte do Brasil Coordenao Regional

DIUSP

Diretoria de Unidades de Uso Sustentvel e Populaes Tradicionais

DIREC DRNR EMATER FBCN FCAP FLONA FSC FUNBio GEF GT GTZ

Diretoria de Ecossistemas do IBAMA Departamento de Recursos Naturais Renovveis Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural Fundao Brasileira de Conservao da Natureza Faculdade de Cincias Agrrias do Par Floresta Nacional Forest Stewardship Council Fundo Brasileiro para a Biodiversidade Fundo para o Meio Ambiente Global Grupo de Trabalho Deutsche Gesellschaft fr Technische Zusammenarbeit (Agncia de Cooperao da Alemanha)

IBAMA

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

IBC IBDF ICMBio IDESP IDEFLOR IDH IFES IN INCRA IPAM ISO JICA KFW MMA MDS MOPEPA MRG MPEG

Instituto Brasileiro do Caf Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade Instituto do Desenvolvimento Econmico Social do Par Instituto de Desenvolvimento Florestal do Estado do Par ndice de Desenvolvimento Humano Instituies Federais de Ensino Superior Instrues Normativas Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria Instituto de Pesquisa Ambiental da Amaznia International Standard Organization Agncia Japonesa de Cooperao Internacional Entwicklungsbank (Banco Alemo de Desenvolvimento) Ministrio do Meio Ambiente Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate a Fome Movimento dos Pescadores do estado do Par Microrregio Museu Paraense Emlio Goeldi

MPF ONG PA PAC PAE PM PMs PNMA PNRA PNUD RPPN PPG-7 PPGCS

Ministrio Pblico Federal Organizao No Governamental Par Plano de Acelerao do Crescimento Projetos de Assentamento Extrativista Plano de Manejo Planos de Manejo Poltica Nacional do Meio Ambiente Programa Nacional de Reforma Agrria Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento Reserva Particular do Patrimnio Natural Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais

POLONOROESTE Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil PETROBRAS PU RDS RESEX SEAMA SECTAM SEMA SIPAM SISNAMA SNUC STR STF SUDEPE SUDHEVEA SUDECO UC UFRA UFRPE WWF ZEE Empresa Petrleo Brasileiro S/A Plano de Utilizao Reserva de Desenvolvimento Sustentvel Reserva Extrativista Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente Secretaria Executiva de Cincia, Tecnologia e Meio Ambiente Secretaria Especial do Meio Ambiente Sistema de Proteo da Amaznia Sistema Nacional do Meio Ambiente Sistema Nacional de Unidades de Conservao Sindicato dos Trabalhadores Rurais Supremo Tribunal Federal Superintendncia de desenvolvimento da Pesca Superintendncia da Borracha Superintendncia de Desenvolvimento do Centro-Oeste Unidades de Conservao Universidade Federal Rural da Amaznia Universidade Federal Rural de Pernambuco World Wide Fund For Nature Zoneamento Econmico Ecolgico

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Reservas extrativistas institudas no Brasil at 2010 Quadro 2 RESEXs Marinhas e Florestais institudas no estado do Par Quadro 3 Unidades de Conservao por categorias de manejo segundo o SNUC Quadro 4 Unidades de Conservao por categorias de manejo no Par no ano de 2010 distribudas pelas esferas de criao Quadro 5 Relao de proprietrios e fazendas abrangidas pela RESEX de Soure (2007)

LISTA DE GRFICOS

Grfico 1 rea desmatada em RESEXs no Brasil at 2007 Grfico 2 Percentual do territrio paraense por reas protegidas (2009)

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 Cartaz do defeso do caranguejo Imagem 2 Localizao dos bairros do distrito sede de Soure Ilha do Maraj Imagem 3 Imagem de satlite Soure/Salvaterra Imagem 4 Localizao do arquiplago, ilha do Maraj e do municpio de Soure Imagem 5 Microrregio bragantina, em destaque o municpio de Augusto Corra Imagem 6 Municpio de Augusto Corra rodovias, rios Urumaj, Embora e vila do Ara em relao sede municipal Imagem 7 Localizao da RESEX de Soure Imagem 8 Delimitao da RESEX de Soure e localizao das reas de manguezais Imagem 9 Localizao das vilas do Pesqueiro, Caju-una, Pedral, Cu e praias da Barra Velha e Araruna Imagem 10 Localizao da RESEX Ara-Peroba e outras unidades no nordeste paraense Imagem 11 RESEX Marinha Ara-Peroba

LISTA DE FOTOS Foto 1 Festividade de So Pedro Sede do municpio de Soure Foto 2 Sede da Associao dos Caranguejeiros bairro do Tucumamduba Foto 3 Casas no bairro do Tucumamduba Foto 4 Vila do Caju-una Foto 5 Casas financiadas pelo INCRA Foto 6 Portes da fazenda Bom Jesus Foto 7 Portes da fazenda Bom Jesus Foto 8 Recebimento de gua pelo carro pipa na Vila do Caju-una Fotos 9 Recebimento de gua pelo carro pipa na Vila do Caju-una Foto 10 Caminho de acesso vila do Cu Foto 11 Viagem vila do Cu pelo rio Pesqueiro Foto 12 Reunio conjunta das vilas do Cu e Caju-una Foto 13 Associao de Mulheres do Pesqueiro Foto 14 Presena de gado na praia do Pesqueiro/Soure Foto 15 Tcnica da rabiola no Pesqueiro Foto 16 Tcnica da rabiola no Pesqueiro Foto 17 Reunio na vila do Pedral Foto 18 Larva do Tucum vila do Pedral Foto 19 Portos na vila do Ara Foto 20 Portos na vila do Ara Foto 21 Vila do Ara Foto 22 Cartaz do Crio da vila do Ara Foto 23 Placa da estrada de acesso vila do Porto do Campo Foto 24 Vila do Porto do Campo Foto 25 Criao de gado na rea da vila do Porto do Campo Foto 26 Criao de gado na regio da reserva Ara-Peroba Foto 27 Trabalho escolar sobre a vila do Ara sede da RESEX Foto 28 Trabalho escolar sobre os encantados na Vila do Ara Foto 29 Letra de Forr sobre a origem da Vila apresentada como trabalho escolar Fotos 30 e 31 Sr. Raimundo Leal Fico, usando e apresentando o dente do jacar -au

SUMRIO

I INTRODUO I.I JUSTIFICANDO O PROBLEMA E DEFININDO CONCEITOS I.II A ESTRUTURA DE APRESENTAO dos captulos 1 DA PESQUISA 1.1 A HERMENUTICA COMO FUNDAMENTO DO ESTUDO 1.2 A METODOLOGIA ADOTADA 1.3 DA EXPERINCIA EM CAMPO 2 TENSES E ARRANJOS NA TRAJETRIA DAS RESEXs 2.1 DE MOVIMENTO SOCIAL A UNIDADE DE CONSERVAO

20 24 32 38 38 46 50 55 56

2.2 AS RESEXs NO CONTEXTO DAS UCs NO PAR E A MATERIALIDADE 66 JURDICA DO PRINCPIO DA PARTICIPAO 2.3 A INSTITUCIONALIDADE DAS UNIDADES DE CONSERVAO 3 DE NOSSO LUGAR A RESEXs MARINHAS 3.1 O LUGAR DAS POPULAES EXTRATIVISTAS 3.1.1 Soure 3.1.2 Vila do Caju-una 3.1.3 Vila do Cu 3.1.4 Vila do Pesqueiro 3.1.5 Vila do Pedral 3.1.6 As praias da Araruna, Barra Velha e Mata Fome 3.2 O MUNICPIO DE AUGUSTO CORRA-PA LUGAR DE PESCADOR 3.2.1 As vilas pesqueiras 3.2.1.1 Ara 3.2.1.2 Porto do Campo 3.2.1.3 Nova Olinda e outras Vilas na rea de influncia da RESEX Marinha 3.3 AS RESEXS MARINHAS uma nova territorialidade 3.3.1 Aspectos geossocioambientais da RESEX Marinha de Soure 3.3.2 Aspectos geossocioambientais da RESEX Marinha Ara-Peroba 4 E TUDO ERA ENCANTADO... 4.1 EM TORNO DA COMPREENSO 4.1.1 Racionalidade e ethos 79 92 97 97 113 118 121 126 128 128 133 133 137 141 143 144 151 163 163 167

4.1.2 A tradio como substncia de racionalidade e ethos 4.2 EM BUSCA DO JARDIM ENCANTADO 4.2.1 Da racionalidade prtica ao ethos ambiental local 4.2.2 O ethos ambiental local Tradio e mudana nas relaes de trabalho 5 NO REINO DAS UNIDADES DE CONSERVAO... 5.1 ESPECIALISTAS SEM ESPRITO? 5.1.1 Onde esto os especialistas? 5.1.2 Razo cientfica, mtodo e verdades 5.2 UM REINO DESENCANTADO

174 177 181 198 213 219 221 226 233

5.2.1 A poltica pblica ambiental brasileira no sculo XX nos marcos da 233 racionalidade ecolgica 5.2.2 Trabalho desencantado e desencantador do IBAMA ao ICMBio 5.2.2.1 O IBAMA no contexto da poltica pblica ambiental 5.2.2.2 O ICMBio e a Poltica de Unidades de Conservao 5.2.2.3 O ethos institucional o fazer de tcnicos, consultores e experts 6 PARTICIPAO E PERSPECTIVAS TICAS 6.1 NOVAS PERSPECTIVAS DE INTERAO tica e dilogo 6.1.1 Da tica e da Moral em Ricoeur 6.2 OS SENTIDOS DA PARTICIPAO - Perspectivas ticas 6.2.1 Participao e Meio Ambiente 6.2.2 O CONTEXTO PARTICIPATIVO NAS RESEXs MARINHAS 6.2.2.1 O processo de criao das RESEXs Marinhas de Soure e Ara-Peroba 6.2.2.2 A fase I de elaborao do Plano de manejo 247 249 256 263 275 276 277 280 286 293 293 321

GUISA DE CONCLUSES - Viver bem... A busca por uma conduta tica 330 conciliatria REFERNCIAIS ANEXOS 345 361

O saber desencantado nos oferece a fcil tentao de buscar no senso comum, na crena ingnua na positividade do real, tal como aparece, as bases de critrios de objetividade que no discurso acadmico se apresentam como validados pela autoridade da cincia. [...] Um saber caleidoscpico pressupe de nossa parte, enquanto cientistas, uma sensibilidade aguada para captarmos matizes, tons, climas, e todo esse tecido multicolorido de que feita a vida social, bem como a capacidade de nos expressarmos em diversas linguagens, compondo vises hologrficas. Lazarte (1996, p. 107)

INTRODUO

Introduo 20

I INTRODUO A tese intitulada De Jardim Encantado a Reino Desencantado das Unidades de Conservao uma anlise de ethos ambientais pretende ser uma narrativa das relaes que se estabelecem entre agentes sociais cujas racionalidades distintas condicionam os sentidos dados a suas aes no processo de execuo da poltica de Unidades de Conservao (UCs) no caso, Reserva Extrativista (RESEX). Partimos do ponto de referncia do Encantamento e Desencantamento do mundo em Weber, buscando mostrar, em tipos ideais, como coabitam no mesmo contexto perspectivas e ethos distintos. Para tanto, analisamos o cenrio de participao das populaes extrativistas tanto na criao de duas RESEXs a de Ara-Peroba, no nordeste paraense, no municpio de Augusto Corra e a RESEX de Soure, na Ilha do Maraj quanto na elaborao de seus planos de manejo (PM). O ttulo deste trabalho contrape duas metforas: Jardim Encantado,

reconhecidamente de Weber, apesar do pouco uso em suas obras (Ensaios Reunidos de Sociologia da Religio, 1915/1920) para se referir a contextos especficos (as religies asiticas China e ndia) quando da anlise do tipo ideal do encantamento mgico-religioso; e Reino das Unidades de Conservao, que se refere expresso usada por Carlos Minc (Ministro do Meio Ambiente no segundo mandato do Presidente Luiz Incio Lula da Silva) em relao ao contexto das Unidades de Conservao enquanto poltica pblica. Adjetivamos a expresso Reino Desencantado das Unidades de Conservao , para evidenciar a carncia de relaes de alteridade1, o que se configura na sobreposio da objetividade das aes tecnocrticas sobre o ser e o fazer local. Jardim Encantado em nosso estudo nos reporta organizao mtico/religiosa das populaes extrativistas sob a qual se assentam as relaes desses grupos com a natureza, em especial, as atividades produtivas. Em uma correlao a um imenso jardim encantado mgico (in einem ungeheuren magischen Zaubergarden) (PIERUCCI, 2005, p. 127). A Reino desencantado das Unidades de Conservao corresponde a perspectiva da racionalizao crescente, ao desencantamento no sentido da racionalizao cientfico-

Quando duas pessoas se encontram e trocam experincias, trata-se sempre do encontro de dois mundos, duas vises e duas imagens de mundo. No a mesma viso a respeito do mesmo mundo [...] o dilogo com os outros, suas objees ou sua aprovao, sua compreenso ou seus mal-entendidos, representam uma espcie de expanso de nossa individualidade e um experimento da possvel comunidade a que nos convida a razo (GADAMER, 2002, p. 246). Partindo da percepo gadameriana, devemos compreender que a relao de alteridade supe sujeitos distintos em suas historicidades, abertos para o dilogo e, desse modo, permitindo-se para alm de seus horizontes singulares, uma fuso de horizontes. Desse modo, relaes de alteridade supem a troca, a percepo mtua na troca entre suas diferenas.

Introduo 21

tecnocrtica dessacralizando a natureza e estabelecendo novos parmetros para as relaes entre os homens e homem/natureza nessas Unidades de Conservao. Partimos para nosso estudo, desse modo, de um ponto de referncia terico weberiano, tomando seus conceitos de racionalidade e ethos (1981, 1991, 1999). Cabe esclarecer que, de acordo com Weber, aos tipos puros de orientao ou racionalidades correspondem tipos de ao ou conduta social. Nossa abordagem adota, assim, a noo de racionalidade para compreender valores, crenas, perspectivas e sentidos determinados socioculturalmente que orientam a conduta social e, ethos para compreender a padronizao dessas condutas ou aes sociais, que mantm com aquela um estado de constante retroalimentao. Metodologicamente, adotamos tambm a elaborao de tipos ideais, por meio dos quais buscaremos compreender como os agentes sociais se relacionam mediados pelo preceito legal da participao na criao das RESEXs e elaborao de seus Planos de Manejo. Refletindo sobre racionalidades distintas as quais tipificamos enfatizadas em seus devidos contextos, procuramos compreender as diferentes formas de conceber e gerir o uso dos recursos naturais. Compreendemos que nosso enquadramento conceitual por meio de tipos ideais enquanto recursos heursticos so simplificaes, a que procedemos com caracterizaes unilateralmente evidenciadas de fenmenos complexos, os quais podem ser hipoteticamente concebidos para depois serem comparados realidade que devem explicitar. A partir da definio de encantamento, buscamos demonstrar como se estabelece a racionalidade prtica das populaes extrativistas locais no que se refere aos valores, crenas e sentidos que norteiam as relaes simblicas e materiais que estabelecem com a natureza, o que redunda na compreenso do ethos ambiental local. De outro, a definio de desencantamento refere-se perspectiva tcnico/cientfica, conforme enunciado por Weber (1999) para referir-se ao processo de crescente racionalizao do mundo ocidental. A partir dessa perspectiva, abordaremos o padro de pensamento e ao tcnico/institucional na implementao da poltica ambiental de UCs. No caso em anlise, a noo de desencantamento quer tipificar os caracteres de percepes e aes que se sustentam sob outras bases, que no as locais, para a compreenso das relaes homem natureza. Importa, portanto, esclarecer que nesse estudo buscamos compreender o contexto da criao das Reservas Extrativistas Marinhas e da elaborao de seus planos de manejo, tendo como recorte o processo participativo que se materializa nas aes compartilhadas e no debate entre os saberes das populaes locais, tcnicos, consultores e experts, tendo como pano de fundo os diferentes sentidos que partilham a partir de suas perspectivas ticas.

Introduo 22

Para compreendermos o processo participativo das populaes locais no contexto da poltica pblica das Unidades de Conservao, buscamos entender o sentido dado por esses agentes a suas aes a partir das racionalidades s quais esto vinculados, e por meio da compreenso do ethos ambiental grupal; ou seja, do modo como pensam e agem em relao ao uso dos recursos naturais. Nesse sentido, buscamos analisar os elementos constitutivos das racionalidades e ethos ambientais das populaes que vivem nessas reas protegidas em contraponto s formas de pensar e agir de tcnicos e experts que atuam na execuo da poltica pblica. Compreendemos, desse modo, as noes de racionalidade e ethos sustentadas sob tradies histricas distintas. Nosso suporte, para tanto, apoia-se no debate de Gadamer (2002, 2006, 2008), que resgata o conceito de tradio, por meio do qual podemos compreender esses agentes enquanto sujeitos histricos e finitos, portadores de sentidos, valores e percepes legados do passado que amoldam, em grande medida, o presente de suas aes. Desse modo, o sentido dado s aes pelos prprios agentes envolvidos no processo de criao e elaborao dos PM das RESEXs estrutura-se a partir do sistema de padres de pensamento e ao ao qual pertencem. Se pensado a partir de Heidegger (2008), esse sistema compe a situao histrica a que o ser-no-mundo modo de ser do homem, sua existncia est condicionado. O ser a (ser que interpreta) est imbricado em um contexto histrico, o que para ns determina o modo de ser e pensar a partir das particularidades que constituem o horizonte hermenutico. Desse modo, optamos pela estruturao do trabalho de modo a resgatar o histrico em termos de surgimento e criao das Reservas Extrativistas como produto de movimentos sociais apropriados pelas polticas agrria e ambiental brasileiras; situar a estrutura organizacional das reservas e apresentar o debate jurdico acerca dessa estrutura e, principalmente, sobre o princpio jurdico da participao das populaes locais no contexto da poltica. Apresentamos o contexto geossocioambiental das RESEXs Marinhas, locus do trabalho de campo. A partir desse cenrio de exposio de diversos aspectos que se apresentam, situamos o texto nas especificidades locais das RESEXs de Soure e Ara-Peroba. Situamos os meandros dos lugares onde vivem os extrativistas, usurios dessas unidades, com o objetivo de elucidar o cenrio de vida e trabalho dessas populaes. Buscamos, assim, apresentar o contexto no qual iremos evidenciar as simetrias e assimetrias do processo participativo de cogesto da poltica pblica de UCs, no caso,

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RESEXs, tendo como parmetro as diferenas de racionalidades e de seus sistemas ticomorais e ethos ambientais dos agentes sociais envolvidos na poltica. So trs os pontos centrais desta tese, a saber: primeiro, a existncia de racionalidades e ethos locais que se determinam mutuamente referindo-se ao conjunto das percepes e saberes que estruturam as relaes e aes desses extrativistas em todas as esferas de organizao da vida, quer seja religiosa, econmica, poltica; consubstanciando-se respectivamente no sistema de pensamento, valores, crenas e princpios ticos dos grupos extrativistas locais e no comportamento nas aes o modo de ser e fazer desses grupos. Trao definidor da materialidade, que aponta para a existncia de racionalidades e ethos ambientais, considerada a inegvel relao humana com a natureza, que nos grupos de extrativistas em anlise consolidam-se em valores de sacralizao da natureza; ou, quando no, de respeito aos preceitos que esta lhes impe, como as safras, perodo de reproduo das espcieis, o tempo da mar, o movimento da areia (ROSA, 2007), isso coadunado com a prpria necessidade de sobrevivncia, nas suas diversas gradaes. Essa racionalidade pode assim ser definida como racionalidade prtica, e por isso instrumental, destinada a atender fins imediatos e determinados. Aos ethos locais coadunam-se ethos ambientais modos de ser e agir do homem em relao ao uso dos recursos naturais enquanto elementares na estrutura organizacional dos grupos de extrativistas, particularmente na organizao do trabalho. O segundo, dos trs pontos centrais anunciados acima, refere-se ao contexto da gesto participativa ou co-gesto das RESEXs. H assimetrias nas relaes entre o rgo gestor e as populaes locais e uma sobreposio de interesses e princpios reafirmados pelo modus operandi funcional (ethos institucional) que se afirmam pela via da dominao racional legal. Essas assimetrias podem ser pensadas tambm como resultantes da ausncia de relaes ticoconciliatrias conforme pensado pela proposta tica de Ricoeur (1991) - entre a esfera pblica e as populaes locais, o que pode ser observado na implementao participativa da poltica de Unidades de Conservao. E no terceiro ponto, iremos proceder anlise da viabilidade de uma via de mediao entre essas assimetrias, que poder constituir-se por meio de novas perspectivas conciliatrias de sentidos, o que ser abordado por meio das perspectivas tica e de dilogo em Ricoeur (1965, 1988, 1995, s.d). Iremos assim observar do ponto de vista da perspectiva tica de Ricoeur, como se contrapem de um lado os princpios ticos e morais das populaes locais em contraponto ao regramento, a moral legal das insituies pblicas, apontando princpios ticos possveis de conciliao para o fim ltimo das aes humanas e em especial das aes das instituies poltico-sociais O viver bem.

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I.I JUSTIFICANDO O PROBLEMA E DEFININDO CONCEITOS

No Brasil, as experincias observadas tm demonstrado que, entre a criao das Unidades de Conservao e a elaborao e implementao dos Planos de Manejo (PM), ocorrem lapsos significativos, existindo um expressivo nmero de unidades sem esse instrumento que orienta o uso sustentvel dos recursos naturais. A ausncia dos PM participativos, conforme so denominados pelas Instrues Normativas (IN) do rgo gestor, tem levado a tenses entre as populaes que tradicionalmente se relacionam com os recursos disponveis nesses territrios e outros segmentos sociais locais, bem como com as autoridades pblicas responsveis pelas reas (municipais, estaduais ou federais), cuja ao tem sido restrita fiscalizao e proibio de atividades consideradas predatrias. No ano de 2009, o Ministrio do Meio Ambiente (MMA) por meio do Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio) 2 iniciou o processo de elaborao da fase I dos planos de manejo das nove RESEXs Marinhas situadas no estado, com apoio do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por meio de uma doao do governo da Noruega, conforme o Acordo de Cooperao com o Governo Brasileiro (BRA/08/002), que objetiva apoiar o Projeto "Gesto de Reservas Extrativistas Federais na Amaznia Brasileira". (Termo de Referncia n. 08 ICMBio). E sendo reafirmando o preceito legal da participao contido no Sistema Nacional de Unidades de Conservao (SNUC)3, por meio da IN n. 01 do ICMBio, de 18 de setembro de 2007, que disciplina as normas e procedimentos para elaborao do Plano de Manejo participativo. Tomamos essa constatao como ponto de partida para pensar a participao das populaes locais na criao das UCs e implementao dos planos de manejo. O descompasso entre a criao de uma UC e a implantao de seu PM manifesta um distanciamento que pode ser relacionado ao baixo grau de participao dos extrativistas quer pela ausncia de compartilhamento de aes, quer pela ausncia de debate entre os saberes cientifico/tcnico e local.

O ICMBio foi criado em 28 de agosto de 2007 por meio da lei 11.516, oriundo do desmembramento de outro rgo federal ligado ao MMA Ministrio do Meio Ambiente, o IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis. Tornando-se desde ento, em substituio ao Centro Nacional de Populaes Tradicionais CNPT/IBAMA, o rgo responsvel pelas aes da poltica de unidades de conservao da esfera federal, por meio da DIUSP Diretoria de Unidades de Conservao de Uso sustentvel e Populaes Tradicionais. 3 Lei n. 9.985 de 18 de junho de 2000, que regulamenta o art. 225, 1, incisos I, II, III, e VII da Constituio Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza e d outras providncias.

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Considerando que a participao dessas populaes uma exigncia legal, particularmente a RESEX, enquanto UC de uso sustentvel possui essa exigncia, quer para sua criao, quer para as demais etapas, visto que se constitui para atender a demanda das populaes extrativistas e como produto de contrato concesso real de uso entre o poder pblico e essa populao, com vistas explorao sustentvel de recursos naturais. Essas unidades, as Reservas Extrativistas, constituem duas subcategorias considerando a natureza dos recursos explorados as florestais e as marinhas. Estas abrangem manguezais, rios, lagos e praias demarcadas em regies costeiras e estuarinas; aquelas constituem reas de explorao de produtos florestais como andiroba, castanha, aa, frutos nativos em geral. As RESEXs pretendem atender as populaes que vivem no interior dessas reas no caso das florestais, e em seu entorno em relao s marinhas enquanto usurios dos recursos naturais disponveis, como instrumento de manuteno e reproduo das prticas socioeconmicas de forma sustentvel em relao capacidade de suporte desses recursos naturais renovveis (SNUC). A escolha da categoria RESEX Marinha para nosso estudo justifica-se pela sua caracterstica peculiar, de acordo com as disposies legais, de ter como agente primordial para sua criao e administrao os segmentos sociais tradicionais/extrativistas do lugar a ser decretado uma RESEX, associado ao fato de voltar-se para a produo para o mercado e pela sustentabilidade econmica baseada na capacidade de suporte dos recursos naturais renovveis com vistas sustentabilidade socioambiental. O significado social e econmico da pesca artesanal principal atividade das RESEXs Marinhas localizadas no litoral paraense evidencia a importncia dessa modalidade de pesca no contexto regional e nacional e a significncia da criao das RESEXs Marinhas. Destaquese aqui o nordeste paraense, caracterizado pela produo pesqueira, em particular artesanal, onde incide oito das nove RESEXs Marinhas do estado do Par. Elegemos assim, duas RESEXs Marinhas como locus de nosso estudo a de Soure localizada na Ilha do Maraj, por permitir o contraponto com as demais RESEXs Marinhas que esto situadas no nordeste paraense e com intensa atividade pesqueira. A RESEX Marinha de Soure foi a primeira reserva decretada no estado, relatos manifestam indcios de organizao social que favoreceu sua criao movimento dos de caranguejeiros, ONGs e debates ambientais no campus da UFPA do municpio. Alm do contexto econmico da Ilha do Maraj, considerando que apesar de compor reas de manguezais e da realizao de atividades extrativistas pesqueiras, visto que vilas de Soure foram feitorias de pesca determinada pela coroa portuguesa, o contexto do uso dos recursos naturais apresenta-se

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perpassado por uma diversidade de questes bem diferenciadas, sustentada principalmente nas fazendas de criao de bfalos, grandes latifndios e diversos conflitos que envolvem o uso dos recursos naturais na rea decretada reserva. A segunda RESEX Marinha a Ara-Peroba no nordeste paraense contexto peculiar da pesca artesanal paraense. Sua criao, contudo, no foi caracterizada pela presena imediata de uma organizao social que favorecesse a proposta de criao de uma reserva, mas tendo sido criada juntamente com mais quatro reservas contguas fomentadas pela iniciativa do IBAMA, que criou as condies legais junto populao local. As questes enunciadas abaixo se somam como elementos importantes para definir essas RESEXs como referncia para nosso estudo: os desdobramentos da problemtica socioambiental apresentada na relao dos usurios da RESEX de Soure com fazendeiros locais e com pescadores artesanais do nordeste paraense, dado o circuito da pesca 4, os quais so os usurios das outras oito RESEXs localizadas na mesorregio referida e, de outro, no caso da RESEX Ara-Peroba; a forte influncia do poder pblico federal representado pelo IBAMA em relao direta com o poder publico local para a criao da reserva, envolvido tambm, poca, com a criao da APA da Costa do Urumaj. Alm desse contexto da criao, incide a a elaborao do plano de manejo que congrega um mosaico das oito unidades federais na mesorregio. Desse modo, considerando as particularidades socioambientais das RESEXs em debate Soure e Ara-Peroba, buscamos compreender como se d essa relao entre o ser e o fazer-se local e o procedimento institucional diante dessas especificidades. Consideramos como principais aspectos norteadores do nosso estudo, a partir das observaes, o baixo grau de participao/estranhamento da populao local e forte influncia do poder pblico local e institucional no caso da RESEX Ara-Peroba no municpio de Augusto Corra. No caso da RESEX de Soure, os dados indicam uma experincia institucional sustentada na perspectiva dos caranguejeiros locais em resguardar o ambiente de trabalho e que suscitou a oportunidade para a criao da RESEX. Assim, o grande nmero de associaes (de moradores, usurios, categorias vrias de extrativistas) existentes na rea que compe essas RESEXs poderia indicar uma organizao social com um poder de representatividade, contudo mostra-se fragilizado e um apndice do processo de influncia institucional, conferindo certa legitimidade ao processo de institucionalizao desta nova territorialidade; isso principalmente na RESEX de Soure,

Acerca do movimento dos pescadores do nordeste paraense pelo litoral, vide Leito (1995).

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visto que na Ara-Peroba as associaes pr-existiam ao trabalho do IBAMA e esto mais organizadas em prol dos interesses de seus associados. Pela significncia estabelecida legalmente populao extrativista no processo de criao e gesto das RESEXs e pela importncia social das populaes pesqueiras na regio amaznica, particularmente no Par, onde a pesca artesanal desenvolveu-se tradicionalmente por indgenas e por populaes que foram se estabelecendo desde a colonizao at a atualidade, constituindo assim comunidades que tm nessas relaes sociais de produo sua principal atividade, justificamos a relevncia social deste estudo. Em especial, o estudo em questo poder contribuir para dar visibilidade ao papel social e poltico desses extrativistas no contexto das Unidades de Conservao de uso sustentvel, no qual deveriam estar inseridos enquanto agentes primordiais desse processo. Alm de contribuir com a constituio dos PMs ainda no elaborados, dada a estagnao da fase I dos PMs iniciados em 2009 que considere o saber local como fundamental para que o projeto de sustentabilidade se efetive, por meio da apreenso sociolgica acerca das perspectivas dos agentes locais e outros envolvidos. Nossa hiptese principal de trabalho que as formas de ser e agir desses grupos locais, includos a os saberes locais, no esto contemplados, tendo em vista a relao assimtrica entre os tomadores de decises e as populaes humanas atingidas pela poltica ambiental. Ou seja, a racionalidade mtico/prtica da populao local subordina-se racionalidade tecnocrtica por meio de seus arranjos instrumentais, aos quais a participao dessa populao est submetida no mbito da poltica pblica de Unidades de Conservao. Sustentamos ainda haver uma unicidade nas aes do IBAMA e ICMBio, que so condutoras de um esvaziamento ou degradao do contedo sociocultural desses grupos de extrativistas, no sentido de adequar os contextos especficos ao procedimento preestabelecido pelo rgo. Enquanto as respostas das populaes locais manifestam uma pluralidade e diversidade de formas de acordo com suas habituais formas de ser e agir ambientais. Diante dessas verificaes, nosso estudo priorizou a anlise da participao dos grupos extrativistas na criao das RESEXs Marinhas e implementao da fase I de seus PMs, entendendo que essa participao mediada por tcnicos, consultores 5, e experts6, agentes do
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Compreende-se para efeitos deste estudo a distino entre tcnicos e consultores, posta a contratao temporria e especfica destes para a coordenao, execuo e monitoramento das atividades descritas no termo de referncia, tanto no caso da criao das UCs quanto na fase I de elaborao do PM. 6 Para efeito deste estudo, nominamos de forma distinta os agentes que atuam em nome institucional, de acordo com as funes desempenhadas. Experts refere-se aos estudiosos, pesquisadores que atuam como profissionais contratados ou no para realizar os estudos preliminares e complementares que subsidiam o conhecimento sobre as regies que sero decretadas Reservas e, portanto, norteadoras das aes institucionais na poltica de UCs.

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Estado que atuam na efetivao desse reordenamento que no somente territorial, mas tambm socioeconmico, ambiental e cultural. Para o debate da participao das populaes locais na poltica de Unidades de Conservao, mediada pelas aes de tcnicos e outros profissionais responsveis pela implementao tcnica dessa poltica, objetiva-se pensar as interaes entre esses agentes por meio das noes de racionalidade 7 que Weber (1981, 1991, 1999) compreende como as normas institudas do pensamento ocidental que se estabelece em uma conduta ordenada e sistematizada de vida, podendo conduzir para vrios tipos de agir social, o que depende do tipo de orientao dessa conduta e ethos8 como a materialidade dessa conduta orientada, compreendido desse modo como uma prtica, um comportamento condicionado e condicionante da racionalidade que se traduzem na forma de pensar, sentir e agir dos agentes, no apenas como produto da sociedade sobre o indivduo, mas tambm a partir da capacidade criativa desses indivduos responderem a seu meio, atravs de suas aes e reaes face ao que se coloca em termos de interao que interfere, de forma mais ampla, na estrutura organizacional da vida coletiva. Desse modo, propomo-nos pensar a especificidade do comportamento das populaes locais, sustentada nas peculiaridades de suas inter-relaes no uso dos recursos naturais. Partimos assim da ideia de racionalidade e de ethos particularizados, entendidos como um sistema culturalmente padronizado de pensamento-ao que organiza os instintos, emoes, aes, como o esprito que anima essa coletividade, conforme caracterizado por Weber (1999, p. 20): De fato, o que nos aqui pregado no apenas um meio de fazer a prpria vida, mas uma tica peculiar. A infrao de suas regras no tratada como uma tolice, mas como um esquecimento do dever. Racionalidade e ethos ambientais, portanto, entendidos como no caso em estudo a padronizao de pensamentos, valores, princpios ticos, crenas singulares e de comportamentos sedimentados nesse horizonte estabelecido em relao ao uso dos recursos naturais, que cria modelos prprios de uso e conservao da natureza e que devem ser considerados como condutores da participao da coletividade na cogesto ou gesto participativa dos recursos naturais no caso das Unidades de Conservao. Importa ainda destacar que o padro de comportamento, no caso em estudo, muito marcado pela relao com a natureza, sustenta-se na tradio. Como afirma Gadamer (2002,
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Para Leff, o conceito de racionalidade em Weber abre perspectivas de anlise sobre a questo ambiental. Weber abre assim a possibilidade de incorporar ao estudo da racionalidade social uma multiplicidade de motivaes e foras sociais de mudana para analisar a transio para uma sociedade construda sobre os valores do ambientalismo (2006a, p. 122). 8 Em Weber (1999), ethos define uma conduta racional prtica, demarca o comportamento de um grupo guiado por regras de conduta, princpios ticos e valores.

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2008), a tradio substncia da razo, que exerce suas funes a partir da realidade histrica em que se insere. Tradio, para o autor, a substncia histrica que permanece apesar das mudanas. A tradio em Gadamer reabilitada por meio da compreenso de que h um movimento histrico no qual o passado lega ao presente e ao futuro perspectivas ticas, valores, costumes, percepes (um sistema de pensamento-ao) que se integram ao novo que se instaura. De acordo com Gadamer (2008):

Reconhecer que, ao lado dos fundamentos da razo, a tradio conserva algum direito e determina amplamente as nossas instituies e comportamentos [...] A tradio essencialmente conservao e como tal sempre est atuante nas mudanas histricas. Mas a conservao um ato da razo, e se caracteriza por no atrair a ateno sobre si. (p. 372-373).

Abordaremos como Gadamer compreende e resgata a tradio, e por isso importa o sentido dado a ela, para que possamos entend-la como substncia constitutiva de racionalidades e de ethos. O resgate de racionalidades distintas apresenta-se por meio do resgate da tradio. Do passado, da tradio vem a substncia tica que compe o ethos histrico ao qual pertencemos. Compreender a participao das populaes locais necessariamente se faz a partir das relaes sociais que se estabelecem sustentadas em racionalidades e ethos distintos. De um lado, uma racionalidade sustentada na compreenso tcnica e cientfica, que determina a poltica pblica de Unidades de Conservao e que, portanto, sustenta-se em uma tradio gerada no escopo da verdade cientfica moderna, que norteia o modo de fazer institucional. E de outro, as populaes locais sustentadas em uma racionalidade prtica e um ethos constitudo e sustentado por valores enraizados por uma tradio de verdades vivenciadas. Ao dar nfase instituio das RESEXS Marinhas no estado do Par, nosso objetivo destacar as formas institucionais indicadas de participao das populaes locais nesse processo, documentadas nos laudos e diagnsticos elaborados pelo Centro Integrado de Desenvolvimento Sustentado das Populaes Tradicionais (CNPT/IBAMA) e analisar a participao das populaes locais na implementao das Unidades como produto de uma gesto ambiental compartilhada, dando-se nfase assim no s a esse processo prvio que gera um procedimento legal e institucional de criao da Reserva, mas tambm a elaborao do Plano de Utilizao.

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Outro aspecto que congrega nesse sentido, da anlise da participao das populaes locais, a observao da chamada fase I 9 dos planos de manejo como um aspecto imprescindvel de percepo das formas de insero das populaes que habitam essas reas nesses processos. importante salientar que o uso dos referenciais de Weber (1967, 1981, 1991, 1999), Gadamer (2002, 2006, 2007, 2008) e Ricoeur (s.d., 1968, 1970, 1988, 1991, 1995) norteiam a constituio da problemtica apresentada neste estudo e iro conduzir o debate de base da tese. Sendo, portanto, entendidos como fio condutor de nossa compreenso, no suprindo um debate mais dirigido que ocorrer na elaborao dos captulos luz de debates como de Leff (2004, 2006a, 2006b), Adorno e Horkheimer (1985), Sahlins (2003), Gohn (2000, 2008), Diegues (2001, 2008), Simonian (2000), Maneschy, (1995), Furtado (1987), Maus (1980, 1999), Melo (1985), e Loureiro (1985), dentre outros referidos no corpo do trabalho. Partimos assim, da compreenso de Weber, analisando a constituio dos tipos ideais de racionalidade, em particular a racionalidade instrumental, como conceito chave para a compreenso das regras de pensamento e ao dos agentes tcnicos dessa poltica, que implica no direcionamento para alcanar fins prticos de modo formal. Quer seja pelo uso da razo, enquanto capacidade subjetiva de pensar "o uso da sua capacidade lgica e de clculo", quer seja, por sua objetivao processo pelo qual a subjetividade ou conscincia humana se corporifica em produtos avaliveis para ela e para os outros como elementos de um mundo comum; ou seja, quando essa capacidade se materializa em regras do comportamento grupal. Assim tambm podemos pensar sob a tica do debate de Horkheimer que as populaes locais so agentes de uma racionalidade instrumental tanto quanto os agentes tcnicos, pois tambm so portadores dessa "capacidade de calcular probabilidades e, desse modo, coordenar os meios corretos com um fim determinado" (2002, p. 15) considerando a seus interesses. Um tcnico, um consultor ou um expert possui a capacidade de estabelecer os nexos, calculando, refletindo, dimensionando seus comportamentos para atingir os resultados a que suas aes se destinam. Um pescador pode, por exemplo conhecedor da realidade em que

Segundo a Instruo Normativa IN 01/2007 do ICMBio a fase I corresponde a: Levantar, compilar e analisar dados e informaes disponveis sobre a rea e a regio, analisando as informaes em conjunto com a populao tradicional da Unidade e identificando e indicando se h necessidade de estudos complementares"; Alm disso, os consultores e tcnicos tm procedido reviso do PU e aos trabalhos de zoneamento das reas, conforme pde ser observado na pesquisa de campo.

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atua , estabelecer correlaes entre os tipos de armadilhas e as formas de serem usadas para render-lhe o pescado. Nas duas situaes est sendo usada a racionalidade instrumental. So trs as formas de racionalidade que orientam os tipos de ao. De acordo com Weber (1991), dentre os quatro tipos de ao social, a ao racional referente a fins pressupe que esse tipo mediado por determinados interesses com um sentido subjetivo para o agente ou agentes. Objetiva alcanar determinados resultados que fazem parte de suas expectativas e que so perseguidos racionalmente. Essa a definio que nortear de forma direta o estudo proposto, no entendimento das aes dos agentes individuais e coletivos envolvidos na poltica de Unidades de Conservao. A racionalidade materializa-se em ao, a esse processo Weber denomina racionalizao, referindo-se aplicabilidade de valores, normas e princpios no exerccio prtico, e tem a ver com a organizao social, com a organizao da vida coletiva por meio da formao do ethos. E atravs de Weber que podemos pensar em ethos distintos e diversos, conforme afirma:

Temos as racionalizaes da vida econmica, da tcnica, da pesquisa cientfica, do treino militar, do direito e da administrao. Alm disso, cada um desses campos pode ser racionalizado em termos consoantes com valores ltimos e finalidades muito diferentes, e o que racional de um certo ponto de vista, poder ser irracional de outro. Racionalizaes dos mais variados tipos tm existido em vrios setores da vida, e todas as reas da cultura. (WEBER, 1999, p. 09).

Assim, podemos pensar no regramento jurdico formal legal como base de sustentao como fator de importncia incontestvel para a racionalizao da ao nas diversas esferas pblicas, conforme norteia as aes institucionais IBAMA e ICMBio. Bem como podemos pensar na constituio de princpios ticos e uma moral tacitamente estabelecidos e respeitados como o que foi convencionado para organizar de forma especfica a vida de grupos sociais, ou seja, as suas aes. Conforme iremos observar a partir da distino entre tica e moral na proposta tica de Ricoeur (1995) exposta no captulo 6. A partir de Weber e da hermenutica da ao temos, desse modo, a ajuda para pensar os sentidos aproximados ou distintos entre grupos sociais que se inter-relacionam dentro do debate ambiental que se apresenta na poltica de UCs. De um lado, experts e tcnicos guiados por uma racionalidade sustentada em informaes tcnica e cientificamente sistematizadas e com fins claramente determinados, o que envolve as instituies responsveis pela poltica pblica em implementao. E de outro, as populaes locais amparadas em uma racionalidade

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mantida nos modos de ver e agir, claramente sustentados em formas culturais prprias de uso da natureza. Um contraponto entre a racionalidade formal-legal e a racionalidade mticoprtica das populaes locais, observadas ambas, como tipos ideais. Podemos pensar assim no contexto da poltica de Unidades de Conservao, em racionalidades a partir de tradies distintas de acordo com a realidade dos agentes envolvidos. Tcnico, consultores e experts sustentados numa racionalidade ecolgica 10 dentro dos marcos da racionalidade econmica dominante, sustentando-se em fins determinados e claros voltados para um manejo integrado e sustentvel dos recursos naturais, aliados a uma racionalidade tcnica que estabelece os meios para a eficcia desses fins de gesto ambiental. E, as populaes locais, cuja racionalidade sustenta-se em representaes e simbologias constitudas no exerccio cotidiano da vida local, com uma significao cultural de algum modo singular. possvel assim, pensar as aes sociais desses agentes em relao questo ambiental a partir das intenes ou do sentido visado de suas aes, seus desdobramentos e nexos. Para seguirmos nessa perspectiva terica que prope alternativas dentro dessa discusso da racionalidade, adotamos o debate de Gadamer e Ricoeur, por meio de uma discusso terica que valoriza a relao dialgica. Pretendemos analisar, portanto, interaes sociais que se sustentam em racionalidades distintas e que visam a fins tambm distintos. De acordo com Soares (1988, p. 101), o reconhecimento da relatividade das razes, acionadas na prtica singularizante de individualidades radicadas em horizontes particulares.

I.II A ESTRUTURA DE APRESENTAO Dos captulos

Nos captulos, procuramos, a partir dos caracteres enunciados no seu processo de elaborao, compreender a partir do conceito de racionalidade instrumental em Weber, enquanto tipo ideal a materializao de racionalidades que se apresentam no fazer estatal e no fazer-se local apreendidos por meio da noo de ethos. Desse modo, passamos a enunciar essas racionalidades designando-as a partir do que se apresenta como mais peculiar, a partir de referenciais como racionalidade institucional, cientfica, ecolgica, tcnica, prtica ou cultural, apoiando-nos em referenciais como Leff (2004, 2006a, 2006b) Gadamer (2002, 2007a, 2007b, 2008) e Sahlins (2003). Essa sequncia de categorizao nos ajuda a

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Acerca da definio de racionalidade ecolgica, vide Leff (2004, 2006a, 2006b).

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contextualizar o cenrio constitudo no bojo da poltica de Unidades de Conservao e a compreender diante da diversidade o processo participativo dos agentes sociais envolvidos. A estruturao dos captulos desta tese segue organizada em uma lgica que permita a compreenso da constituio originria das RESEXs at a apresentao dos meandros da cogesto ou gesto participativa dessas unidades. Para tanto, procuramos demonstrar, o contexto de vida e organizao social das populaes locais e o contexto de aes institucionais, para na sequncia compreender o processo participativo institudo pela poltica pblica. Conforme segue: O primeiro captulo destina-se a demonstrar o percurso da pesquisa, desde o contato com a realidade em anlise, o uso dos recursos metodolgicos, bem como o relato, em parte, da experincia em campo. Compartilhamos assim com o leitor ansiedades, angstias e surpresas que o trabalho de campo reserva, fazendo-nos repensar nossas estratgias a fim de alcanarmos os objetivos propostos, sem ultrapassar os limites impostos pelas relaes construdas nesse processo. Ainda nesse captulo, apresentamos, minimamente, nossa tentativa em tomar a hermenutica fenomenolgica como suporte de nossa interpretao e condutora de nossas aes. No segundo captulo, para melhor compreenso do contexto em anlise nos propusemos a resgatar o histrico em termos de surgimento e criao das Reservas Extrativistas como resultante de movimentos sociais apropriados pelas polticas agrria e ambiental que se instituem no Brasil. Pretendemos situar a estrutura organizacional das reservas, apresentar o debate jurdico acerca dessa estruturao e, principalmente, acerca do princpio jurdico da participao que coloca as populaes locais como agentes primordiais no contexto dessa poltica. Esse resgate, alm de situar o contexto histrico social das RESEXs, subsidiar a anlise do ltimo captulo desse trabalho, que analisa efetivamente o processo participativo das populaes locais no contexto da criao das RESEXs. Neste captulo retomamos um breve histrico acerca da criao das RESEXs, enfatizando o movimento social dos seringueiros e as conexes estabelecidas com o ambientalismo, bem como destacamos o processo de acomodao dessa ideia pelas instituies estatais, como poltica agrria e ambiental, atendendo a interesses e demandas de outras esferas por vezes contraditrias a demanda dos ento definidos como populaes tradicionais. A inteno do terceiro captulo situar o leitor nas especificidades das localidades onde foram decretadas as RESEXs de Soure e Ara-Peroba. Apresentamos os meandros de cada lugar vila ou bairro onde vivem os usurios dessas unidades, com o objetivo de

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elucidar o cenrio de vida e trabalho dessas populaes. Sustentamos para tanto nossa anlise nas noes antropolgicas de lugar e territorialidade social. Apresentamos tambm a constituio e a demarcao poltico/institucional das RESEXs Marinhas, particularmente das duas, locus do trabalho de campo, ainda na inteno de explicitar sob que aspectos geossocioambientais essas UCs so institudas, pois a uniformizao institucionalmente estabelecida, alm de sustentar-se sobre outra racionalidade acerca das relaes com a natureza, restabelece tambm, por meio da institucionalizao, o esvaziamento dos sentidos locais que apreendemos pela noo de no-lugar e o controle do poder estatal sobre as reas delimitadas como UC, o que define para ns uma nova territorialidade, agora no marco da retomada do controle poltico/institucional. A ideia central do quarto captulo E tudo era encantado... mostrar como se consubstanciam os ethos ambientais locais, tendo principalmente a inteno de destacar os sentidos dados pela racionalidade prtica local aos ethos ambientais locais em suas particularidades no uso dos recursos naturais, ou seja, por meio da ao social do trabalho. Isto posto, apresentamos uma interpretao do contexto desses ethos nas RESEXs a fim de apresentar no captulo quinto especificamente a racionalidade e o modus operandi institucional mostrando os contrapontos que se apresentam no processo participativo necessrio criao e elaborao dos PMs, haja vista o preceito legal da participao. Procuramos compreender nesse quarto captulo um ethos tecido na trama de relaes sacralizadas, por vezes mais no sentido da relao mtica e, por vezes, com forte influncia de elementos do cristianismo, mas primeiramente estruturado sob essas bases encantadas com sentidos particularizados. No quinto captulo No Reino das Unidades de Conservao... nossa proposta apresentar o outro lado do debate. Se no captulo anterior apresentamos o contexto local das populaes que vivem tradicionalmente em relaes diretas com a natureza , em que as subjetividades e intersubjetividades so ressaltadas, neste procuramos demonstrar o quanto as subjetividades so relegadas ao campo do irracional em nome da objetividade cientfica e tecnocracia institucional. Tomamos o debate acerca da coisificao das relaes humanas, impostas pela transferncia da racionalidade do mtodo cartesiano das cincias naturais transportada para as cincias humanas ou do esprito. Esse debate apresenta-se perpassado pelo debate filosfico, particularmente acerca da hermenutica filosfica de Gadamer, que apresenta a essas cincias uma nova perspectiva para a anlise dos fatos sociais. Compreend-los a partir do horizonte histrico, compreend-los compreendendo a ns mesmos. Compreender colocando em

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perspectiva verdades outras que no a verdade absoluta e universal que a cincia cartesiana impe. A partir dessa perspectiva, pretendemos demonstrar como essa cincia reificadora se constitui como a base sobre a qual se erigem as aes institucionais da poltica pblica de UCs. Nossa anlise se d, nesse ponto, sobre os estudos laudos e diagnsticos que se instituem como imprescindveis, por preceito legal, para a compreenso dos contextos a serem decretados RESEXs. Como se constitui esse conhecimento que, embora realizado sobre os contextos das localidades onde vivem as populaes extrativistas , no entorno das RESEXs, associado aos preceitos legais, orienta um trabalho desencantado que se quer objetivo, neutro e universal e por isso desencantador dos contextos simblicos e materiais das populaes locais que se coaduna ao contexto mais amplo dos interesses subsumidos na poltica pblica ambiental. Analisamos, a partir do referencial de desencantamento do mundo, essas relaes objetivadas e efetivamente calculadas que sustentam a implementao das RESEXs e elaborao da fase I dos PMs, ou pelo menos o que foi realizado dessa fase, por meio da ao do corpo tcnico institucional e de seus consultores. Para finalizar nossa anlise nesse captulo, apresentamos a forma como o comportamento ou ethos institucional se constitui nos (des)encontros dos interesses que se efetuam como dever institucional diante do outro local e diante das suas prprias subjetividade. Um outro ethos forjado na constit uio de um estilo de ser moderno, sustentando-se nos aportes cientficos e legais objetivados e, portanto, portador de uma dessacralizao das relaes em que as particularidades se perdem pela falta de sentido subjetivo. No sexto captulo Participao e perspectivas ticas , buscamos por meio da sustentao na hermenutica fenomenolgica, interpretar os sentidos que orientam as aes das populaes locais mediante as aes dos agentes institucionais. Nossa proposta aqui colocar em contraponto perspectivas distintas para o mesmo contexto, apresentando as assimetrias que se instituem a partir dos sentidos distintos dado a suas aes, posto partirem de perspectivas diferenciadas. Apontamos, luz de Ricoeur (s.d., 1965, 1968, 1988, 1991, 1995), possibilidades para pensar as relaes entre sujeitos bem como as relaes entre a esfera pblica e populaes locais em Unidades de Conservao por meio de novas perspectivas tica e de dilogo. Nosso objetivo ltimo ao apresentar nos captulos deste trabalho a tenso constante entre a organizao social das populaes locais e a ao institucional pblica no contexto da

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poltica de UCs constitui-se pela tentativa de apresentar a perspectiva tica como uma alternativa possvel de relao dialgica e de considerao a alteridade entre a racionalidade cientfico-tcnica e a racionalidade prtica local, a partir da apreenso do processo de interao entre seus agentes nas UCs. No bojo das relaes sociais e institucionais no marco da poltica de UCs seriam possveis vias de conciliao? Finalizamos esta introduo pretendendo que, por meio dessas novas perspectivas, torne-se possvel pensar em relaes ticas demarcadas pelo dilogo. Que esse dilogo torne menos dspares os diversos olhares sobre uma mesma realidade, podendo ampliar as perspectivas de ao conjunta em prol da conservao da biodiversidade e sociodiversidade amaznica.

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1.1 A HERMENUTICA COMO FUNDAMENTO DO ESTUDO

A hermenutica da forma como buscamos apreender para nosso estudo no se situa no contexto de um mtodo, ou, no dizer de Gadamer (2006, p. 10), uma metodologia hermenutica concebida maneira de Schleiermacher ou de Dilthey, ou como um corpo geral de princpios metodolgicos que subjazem a int erpretao (PALMER, 2006, p. 55), mas sim como uma postura compreensiva perante o mundo, visto que, de acordo com a filosofia de Heidegger retomada por Gadamer (2008), a compreenso/interpretao inerente a todos, no se constitui em uma capacidade mental possvel ou no, constitui o ser-nomundo, um ser relacional, um modo de estar no mundo: Compreender [...] , ao contrrio, a forma originria de realizao da pre-sena (p. 347).

Se encontramos sempre a interpretao no cotidiano e nos livros, para que serve a reflexo hermenutica? Certamente no para gerar um mtodo capaz de orientar as prticas interpretativas, na vida cotidiana ou na academia. Pelo menos se nos situarmos, como pretendemos, neste ensaio, prximos perspectiva de Hans-Georg Gadamer. (SOARES, 1988, p. 101).

A entrada do debate da hermenutica na construo cientfica, particularmente na produo sociolgica, constitui-se como referncia para uma nova racionalidade cientfica, cuja propenso se d mediante uma disposio da construo de um conhecimento dialgico no qual o texto, a ao social, o fato ou a obra se transforma em objeto de interpretao quando conduz o intrprete a uma pergunta e lhe acarreta uma abertura a outras perguntas e a novas possibilidades de sentidos voltado para uma interveno tica por meio do desvelamento dos saberes e experincias, princpios ticos e conforme afirma Souza Santos (2006), revelando experincias sociais desperdiadas, ou em parte invisibilizadas pela modelo racional dominante da cincia ocidental moderna. No caso de nossa pesquisa, o debate da hermenutica orienta-nos a uma justaposio entre os saberes, experincias e sentidos enquanto constructum que possa deixar e fazer ver (HEIDEGGER, 2008, p. 72) perspectivas distintas sobre o mesmo contexto. Visto que a circularidade gadameriana sugere um processo hermenutico em espiral, que se faz pelo movimento dialgico demarcado pela temporalidade histrica. De acordo com Palmer (2006, p. 24), a raiz grega mais antiga da palavra hermenutica sugere o processo de tornar compreensvel, sendo que sua forma verbal ( hermneuein)

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exprime o dizer, o explicar e o traduzir, trs significados que imprimem sentido ao verbo interpretar. Distinguindo a interpretao do compreender, Heidegger, em Ser e Tempo (2008), define a primeira como as elaboraes possveis esquematizadas pelo compreender. Para o autor interpretar no tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreenso, a interpretao explicita a compreenso (p. 209). A interpretao resulta da relao entre partes que se constituem a partir das suas experincias, ou seja, resultante do encontro dos horizontes histricos em que se inserem. Para Gadamer (2008), a interpretao a expresso da situao concreta em que se encontra o homem, pressupe assim as pr-compreenses historicamente determinadas (os preconceitos), uma relao dialgica e, portanto envolve os horizontes hermenuticos e pressupe uma fuso de horizontes: [...] toda a interpretao correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuies repentinas e da estreiteza dos hbitos de pensar imperceptveis, e voltar seu olhar para as coisas elas mesmas (GADAMER, 2008, p. 355). Toda interpretao apenas um ponto de vista, uma possibilidade dentre outras possveis, demarcada pela finitude e historicidade do ser. Quando interpretamos um texto, um objeto, uma obra ou um fato, estamos investigando o contexto no qual se deu a produo de seus agentes, j estamos situados no horizonte aberto pelo texto, assim como nos deparamos com nossas prprias pr-compreenses, visto que todo compreender acaba sendo um compreender-se (GADAMER, 2008, p. 349). Para esse autor, compreender sempre um movimento recorrente, contnuo e inacabado de interpretao. Esse crculo hermenutico abrange um movimento e uma totalidade relacional, se a compreenso materializa-se na relao, logo ao compreender, compreendemo-nos enquanto ser-no-mundo. Desse modo, para alm da ideia de interpretaes, cabe em sentido mais amplo o compreender, compreender-se, como um movimento da existncia humana, como um compreender o outro e um compreender -se a si mesmo enquanto dasein a complexa conjugao da presena humana em seus vrios nveis de re alizao finita (HEIDEGGER, 2008, p. 29).

Dasein indicao de experincia, onde compreender no diz agarrar a realidade com esquemas j dados, mas deixar-se tomar pelo que faz a compreenso buscar compreender. Dasein assim palavra indicativa, palavra condutora como o fio de Ariadne, a servio do pensamento. (HEIDEGGER, 2008, p. 17).

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O compreender, desse modo, como experincia da vida, em que j somos de acordo com Gadamer (2002, p. 79), o sentido de pertena refere-se ao fato de que antes de pensarmos o mundo j estamos no mundo e, portanto, j temos uma histria e uma tradio e nos compreendemos a partir da estrutura prvia do sentido, sugere-nos um movimento de interpretao e reinterpretao, tendo em vista a parcialidade que a interpretao introduz pelo carter finito e histrico do ser (GADAMER, 2006), e ainda o entendimento de que a compreenso/interpretao no se faz unicamente pela via da cincia; compreender/interpretar est para o ser nas suas mltiplas possibilidades. Conforme afirma Geertz acerca da interpretao antropolgica, os textos antropolgicos, so eles mesmos, interpretaes e, na verdade, de segunda e terceira mo (1989, p. 25). Logo partimos dessa anlise para nosso estudo com o entendimento de dois planos de compreenso, o primeiro refere-se percepo do que se d imediatamente, uma compreenso elementar (preconceito), conforme Gadamer (2006), e o outro uma compreenso que vai alm do significado imediato e coerente para os sentidos ocultos:

A compreenso implica sempre uma pr-compreenso que, por sua vez, prefigurada por uma tradio determinada em que vive o intrprete e que modela os seus preconceitos. (GADAMER, 2008, p. 347). A hermenutica o processo de decifrao que vai de um contedo e de um significado manifestos para um significado latente e escondido. O objecto de interpretao, i.., o texto no seu sentido mais lato, pode ser constitudo pelos smbolos de um sonho ou mesmo por mitos e smbolos sociais ou literrios. (PALMER, 2006, p. 52).

Para alm da sociologia compreensiva de Weber como ponto de referncia inicial, buscamos a um aprofundamento no sentido de uma orientao com vistas a uma postura sociolgica que imprima uma possibilidade de apreenso dos sentidos das aes sociais e das relaes que se estabelecem entre seus agentes, na busca da compreenso do modo de ser e fazer-se desses agentes a que estamos definindo como racionalidade e ethos. Sentidos esses subjacentes em suas narrativas, discursos, simbologias, ritos, mitos. Para Ricoeur (1965), esse universo constitui o campo privilegiado da hermenutica. Para o autor, os significados literais dissimulam os sentidos simblicos, exigindo, desse modo, o trabalho interpretativo para compreenso desses sentidos. Partimos, assim, para nosso estudo compreendendo que o conhecimento que se constitui da relao eu (pesquisador) tu (agentes/sujeitos do contexto em anlise) sofre a influncia do ser histrico de cada uma dessas partes, da tradio que lhes determina o

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horizonte hermenutico, em uma dialtica entre os contextos desses agentes e o contexto histrico-social do pesquisador. Esses aspectos levantados sugerem uma trilha, uma perspectiva no processo de amadurecimento enquanto pesquisador e que hoje nos indicam uma dupla postura sociolgica no movimento de compreenso compreender a si mesmo enquanto sujeito histrico nessa interao com o outro, consciente da elaborao de uma interpretao que prioriza um aspecto dentre uma multiplicidade e buscando a compreenso do contexto em anlise, considerando os sentidos subjacentes s interpretaes de seus agentes; o exerccio de uma sociologia da tica e da alteridade, situando a si mesmo enquanto sujeito histrico e percebendo os agentes como portadores de horizontes distintos em interao. A hermenutica, para Heidegger (2008), a busca do sentido do ser em geral, contudo, apenas o homem, entre todos os entes, capaz de se questionar e, portanto, compreender sobre o sentido do ser, sobre o modo de ser do homem, a sua existncia ( dasein). Essa ontologia Heidegger entende como hermenutica. Esse aporte sobre a compreenso/interpetao alimenta-se tambm, para ns, junto ao debate da fenomenologia, particularmente ao que Gadamer (2008) analisa como o projeto de Heidegger de uma fenomenologia hermenutica (p. 341). Conceitos-chave para a fenomenologia de Heidegger esto na fenomenologia de Husserl, como Lebenswelt (mundo da vida). A hermenutica da facticidade em Heidegger sustenta que a pre -sena, a existncia do ser-a (dasein), a existncia comprometida com uma situao histrica no escolhida a base ontolgica do questionamento fenomenolgico. Distanciando-se da interpretao idealista da fenomenologia husserliana. Para Heidegger (2008),

ontologia s possvel como fenomenologia. O conceito fenomenolgico de fenmeno prope, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificaes e seus derivados. [...] Atrs dos fenmenos da fenomenologia no h absolutamente nada. Contudo aquilo que deve tornarse fenmeno pode velar-se. A fenomenologia necessria justamente porque, numa primeira aproximao e na maioria das vezes, os fenmenos no esto dados. (p. 76-77, grifos do autor).

De acordo com Heidegger, para compreender o que fenomenologia deve-se ir origem do termo. Fenomenologia tem dois componentes: fenmeno e logos. O primeiro refere-se ao que se mostra, ao que se revela em si mesmo, pondo-se a claro, tornando-se visvel em si mesmo para alm da aparncia e, logos, apesar de polissmico, refere-se em seu exerccio concreto, a fala deixar ver. De acordo com Heidegger, reside no deixar e fazer

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ver algo (2008, p. 72), reside no desvelamento. Ou seja, refere -se ao que dito enquanto comunicao entre interlocutores. O logos como discurso refere-se quilo de que se fala, uma revelao daquilo a que se diz respeito (DARTIGUES 1992, p. 128).

A palavra fenomenologia exprime uma mxima que se pode formular na expresso para as coisas elas mesmas! [...] Contudo poder -se-ia objetar que se trata de uma mxima evidente por si mesma e que, ademais, exprime o princpio de todo conhecimento cientfico [...] com efeito uma evidencia que desejamos assumir mais de perto. (HEIDEGGER, 2008, p. 66, grifo do autor).

Ainda segundo Dartigues (1992), ir s coisas mesmas prolongar a investigao alm do dado, enraizando a inteno da anlise nas estruturas essenciais concretas. Substituindo o ser transcendental pela existncia em sua facticidade, o que o autor considera como uma passagem para a fenomenologia hermenutica consubstanciada em Heidegger, para o qual a fenomenologia trata do velamento e do desvelamento do ser -a, de um ser familiarizado com um conjunto de sentidos e significados dados espao-temporalmente. Hermenutica e fenomenologia, ambas referem-se inteno de trazer luz o que se oculta naquilo que se mostra, visam a interpretar o que se mostra, o que se manifesta a, visto que, na maioria das vezes, no se deixa ver de imediato. A partir desse debate da hermenutica e da fenomenologia, buscamos compreender as perspectivas de relao com as cincias do esprito, para da ocuparmo -nos, nesse ensaio, buscando seu norte de orientao.

A grande questo que a fenomenologia coloca no princpio das cincias humanas consequentemente a seguinte: "De que essas cincias so cincias?" evidentemente fcil responder: "Do homem", mas preciso ainda saber o que se deve entender por "o homem". (DARTIGUES, 1992, p. 61).

O paradigma predominante na cincia moderna constitui-se sustentado em uma racionalidade tcnico-especializada que estabelece uma desumanizao, posto o rigor cientfico que condiciona sua dimenso unssona por meio da busca da objetividade desse saber racionalista. Em geral, para a cincia moderna os fenmenos so tomados como coisas em si mesmas e so passiveis de demonstrao e experimentao cientfica. A questo que se coloca para as cincias humanas que, a partir do debate introduzido pela hermenutica e pela fenomenologia, elas se tornam cincias compreensivas a partir do

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princpio de que se fundam sobre o mundo vivido, e so para alm de uma relao com o mundo, uma relao com o outro, seus sentidos e suas interpretaes. A compreenso da forma como se apresenta na perspectiva hermenutica aqui discutida atribui s cincias humanas a possibilidade de acessar outras vivncias que no as nossas e que estabeleamos reflexes sobre relaes constitudas a priori. A pertena do pesquisador como ser-no-mundo.

A reflexo hermenutica pode, isto sim, nos ajudar a entender melhor o que est em jogo nos processos interpretativos, no movimento da compreenso. Mais do que isso, e a partir da, pode nos apoiar na tentativa de lidar com os prprios limites das assim chamadas cincias humanas. (SOARES, 1988, p. 101).

Nessa nova racionalidade, a distino entre sujeito e objeto, cincias da natureza e cincias humanas deixa de ter sentido, os sentidos e significados a partir dela decorrentes resultam do entrelaamento das experincias e saberes. No cabe a desconectar a construo do conhecimento em suas diversas dimenses de seus desdobramentos ticos e morais. Desse modo, encaminhamos nossa anlise articulada com a hermenutica da alteridade em Ricoeur, cujo dilogo com as cincias humanas nos reporta ao fazer tico, ao reconhecimento mtuo11. De outro, coloca-nos diante do dilema das cincias humanas e sociais em torno da compreenso, posta a negao da realizao de um conhecimento neutro e totalizante. A metodologia dessas cincias implica inelutavelmente um distanciamento, o qual, por sua vez, pressupe a destruio da relao primordial da pertena, sem o qual no haveria relao com o histrico enquanto tal (RICOEUR, 1988, p. 103). Ricoeur, em seus dilogos com a tradio hermenutica, resgata o embate de Gadamer entre a experincia da pertena histrica (na qual se vive a compreender) e o distanciamento alienante (com o qual se produz teoria nas cincias humanas e sociais). Alienante, visto que tenta livrar-se da experincia do pertencimento e de outro distanciamento, pois, ao tentar esquivar-se dessa experincia, impe uma lacuna, um vazio, posto o afastamento da pertena, do prprio ser-no-mundo. De acordo com Gadamer (2006), pertencer a uma tradio faz parte da existncia histrica e finita do ser humano. Desse modo, pertencemos a uma histria antes de ela nos pertencer, estamos sempre situados na histria e por isso no

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Ricoeur retoma o problema da alteridade por meio da teoria do reconhecimento em que busca resgatar a relao com e para o outro a partir da solicitude e do respeito, articulando a perspectiva tica e a moral, em oposio s chamadas teorias da deposio. (ROSSATTO, 2008).

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podemos abarc-la como mero objeto de pesquisa, negando assim nosso pertencimento a uma tradio resultante da fuso do passado ao presente. Para Ricoeur (1988), no podemos negar o distanciamento, devemos assumi-lo. De acordo com Mendona (2011), ao analisar as contribuies da hermenutica de Ricoeur como legado para a sociologia, a condio ontolgica hermenutica da humanidade repousa sobre a tenso dialtica entre pertena e distanciamento. Distanciamento no alienante, mas crtico e, pertencimento inelutvel. Para Ricoeur, ao escolher esse ponto de partida, at certo ponto diferente, [...] estaramos nos preparando para conferir ao problema do distanciamento, da alienao, uma significao mais positiva do que a que pode ser encontrada na avaliao de Gadamer (1988, p. 105).
Em todo caso ele tocou no problema capital, a meus olhos o do distanciamento, que no somente distncia temporal como na interpretao dos textos [...] Compete condio de uma conscincia exposta eficcia da histria s compreender com a condio da distncia, do distanciamento. A meus olhos, a mediao dos textos de um valor exemplar sem igual. Compreender um dizer significa, antes de tudo, opor-se a ele como um dito, acolh-lo em seu texto, desligado de seu autor. (RICOEUR, 1988, p. 93, grifo do autor).

Contrapondo a teoria crtica das ideologias de Habermas hermenutica das tradies de Gadamer, Ricoeur apresenta sua forma de lidar com o objeto das Cincias Sociais a ao social como texto e o texto como ao social. Prope o autor, desse modo, sua teoria do texto, apresentando a necessidade de um distanciamento crtico hermenutica das tradies e uma teoria da ao capaz de releituras a bem da prpria crtica para a teoria crtica das ideologias.

A ideologia sempre aquilo que permanece a grelha, o cdigo de interpretao, mediante o qual no somos intelectuais sem amarras e sem pontos de apoio, mas continuamos sendo transportados por aquilo que Hegel chamava de a substncia tica [...] nada nos mais necessrio, em nossos dias, que a renncia arrogncia da crtica, para empreendermos, com pacincia, o trabalho incessante retornado do distanciamento e do assumir nossa condio histrica. (RICOEUR, 1988, p. 95).

Na hermenutica de Paul Ricoeur, interpretar esclarecer os sentidos dos smbolos e da linguagem, seja ela explicitada ou no, admitindo a divergncia e multiplicidade de interpretaes. Desse modo, seu ponto de partida e foco central a questo do texto, que ganha vida prpria, s vezes gosto de dizer que ler um livro considerar o seu autor como j morto e o livro como pstumo (RICOEUR, s. d, p. 143). Escrito e delimitado torna-se o

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texto uma totalidade finita portadora de sentido. O qual se torna parmetro para a compreenso do sujeito, da histria e da ao social, conforme explicita Mendona (2011): Demarcando o terreno sensvel e frgil das cincias sociais em relao ideologia, Ricoeur nos traz uma outra abordagem da compreenso que o paradigma do texto para a interpretao da ao social (MENDONA, 2011, p. 4). O reino da coisa dita torna-se visvel pela mediao do texto. De acordo com Ricoeur, em Do texto aco (s.d), o texto constitui-se como um modelo para a interpretao da ao social:

A aco humana , em muitos aspectos, um quasi-texto. Ela exteriorizada de uma forma comparvel ao registro caracterstico da escrita. Ao destacarse de seu agente, a aco adquire uma autonomia semelhante autonomia semntica de um texto; ela deixa um rastro, uma marca; inscreve-se no curso das coisas e torna-se um arquivo e documento [...] finalmente, a aco , como um texto, uma obra aberta, dirigida a uma sucesso indefinida de leitores possveis. Os juzes no so os contemporneos, mas a histria posterior. (p. 177).

De acordo com a anlise de Mendona (2001), uma sociologia da tica torna-se vivel. Sua origem remonta a Durkheim por meio de sua construo terica, particularmente da conscincia coletiva, dando status de fato social ao fato moral. Ainda de acordo com a mesma autora, inegvel tambm a contribuio de Weber, por meio da compreenso de ethos, cujo sentido weberiano indica a presena de normas e valores que condicionam (assim como so condicionadas) a mdia da conduta de um grupo social determinado. A sociologia da tica a partir do dilogo com a hermenutica, particularmente a de Ricoeur, permite-nos desse modo, e de acordo com nossos objetivos de estudo, estabelecer uma relao dialgica por meio da abertura hermenutica para ver, ouvir, compreender costumes, valores, sentidos, perspectivas comuns e/ou em tenso concernentes s aes dos grupos sociais que vivenciam a implementao da poltica pblica de UCs, conforme explicitado no corpo deste trabalho. Neste sentido o dilogo da sociologia da tica com a chamada pequena tica de Ricoeur crucial, pois pessoa, espao pblico e responsabilidade, se encontram em ntima conexo com viver uma vida boa, com e para os outros e em instituies justas (MENDONA, 2011, p. 13). Uma sociologia da tica e da alteridade requer assim uma nova postura que busque os valores subjacentes s aes sociais e que se sustente em um fazer sociolgico capaz de revelar-se tico em suas variadas consequncias.

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A dimenso ontolgica se associa dimenso tica na narrativa sociolgica, pois a escritura da sociologia no somente instituda como ela tambm institui olhares, formas de ver o mundo e, por extenso, formas de agir, portanto relaes ticas. Isto principalmente vlido para os textos construdos no campo das cincias histrico-sociais. (MENDONA, 2011, p. 18).

1.2 A METODOLOGIA ADOTADA

O caminho percorrido na elaborao deste estudo constitui-se de trs momentos interligados: Primeiro, o estudo bibliogrfico, que nos permitiu uma aproximao com a temtica, considerando tambm os referenciais trabalhados nas disciplinas cursadas durante o doutorado e selecionadas de acordo com o nosso interesse na relao sociedade e meio ambiente, contextualizada na Amaznia. Segundo, o estudo da hermenutica na busca pela aquisio de um novo olhar no processo compreensivo voltado desse modo, para uma postura mais dirigida interpretao dos sentidos das aes ante a complexidade do contexto em anlise. A perspectiva hermenutica apresentada em nosso estudo a partir de um recorte histrico, quando se entrecruza com a fenomenologia, com as cincias do esprito e com o meio ambiente. Para tanto, centramo-nos nos referenciais de Heidegger (2008) Gadamer (2002, 2006, 2008) Buber (1974), Ricoeur (1965, 1988, 1995, s.d.) e Eliade (1978, 1989, 1992a, 1992b) como referenciais para esse novo olhar sobre os fenmenos sociais e sobre as perspectivas de uma relao dialgica naquele contexto. Esses dois momentos foram imprescindveis para que entrssemos em contato com categoriais de anlise que permitiram a apreenso da realidade em estudo, considerada tanto a partir de uma maior abstrao, como racionalidade, racionalidade instrumental, racionalidade prtica, racionalidade ambiental, ethos, tradio, horizonte, fuso de horizontes, tica e alteridade, que induzem desde a leitura dos clssicos a tericos contemporneos, at a busca de categorias mais contextualizadas para nossa anlise. o caso de noes como: populaes tradicionais, Unidades de Conservao, pesca/pescador artesanal, extrativismo, gesto ambiental, participao e desenvolvimento sustentvel na Amaznia. Estas, sustentadas em produes cientficas nacionais e, particularmente, em tericos regionais, que se debruam sobre o tema sociedade e meio ambiente na Amaznia. O terceiro momento constitui-se com a efetivao do trabalho de campo no qual se manteve em paralelo a reviso bibliogrfica em que passamos da fase da pesquisa exploratria para a coleta de dados e do uso de tcnicas de pesquisa de campo visando a

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alcanar os objetivos propostos. Considerando nosso interesse em perceber, para alm das estruturas objetivas, particularmente as percepes dos agentes sociais que vivem do extrativismo e do uso dos recursos naturais naquele meio social, buscamos fazer uso de algumas tcnicas que nos permitiram uma aproximao dos fatos de forma qualitativa. Nesse sentido, fizemos uso de entrevistas, conversas informais, anlises documentais, reportagens de jornais, observao direta, alm da participao em atividades que ocorreram nos locais, como reunies e audincias pblicas (nas quais no ramos apenas um observador atento, mas um sujeito em interao). As entrevistas semiestruturadas e livres permitiram que nos aproximssemos dos agentes sociais, por meio de conversas que em mdia duraram quatro horas cada, quando tambm procurvamos marcar novos contatos para outras conversas e mesmo para conhecer outros aspectos importantes para o estudo, como as visitas s vilas onde tambm tivemos oportunidade de observar o cotidiano da organizao social. Por meio das entrevistas e conversas, contatamos com: extrativistas, particularmente pescadores e caranguejeiros as entrevistas foram distribudas na RESEX de Soure a partir dos bairros, o que facilitou o acesso a esses usurios, na Ara-Peroba, nas vilas do Ara e Porto do Campo; representantes de Associaes de Moradores, pescadores e caranguejeiros e capatazes ou ex-capatazes da colnia de pescadores das localidades, principalmente, aqueles envolvidos com o processo de criao da RESEX; tcnicos e especialistas envolvidos na elaborao de laudos e executores da poltica junto ao IBAMA/ICMBio; presidente e ex-presidente da Associao de Usurios das RESEXs; integrantes de ONGs e do Conselho Deliberativo das RESEXs; esfera pblica representada por prefeitos, ex-prefeitos e secretrios. As entrevistas foram em geral gravadas e outras, quando no possvel usar desse recurso, anotadas. Foram, no total, vinte entrevistas individuais gravadas e vrias conversas informais e coletivas anotadas durante as visitas s Associaes, alm da gravao das reunies que ocorreram por polo (cada polo rene certo nmero de vilas, no caso da AraPeroba) e bairros, no caso de Soure. Na RESEX Ara- Peroba foram cinco viagens, cada uma reunindo de uma a trs vezes com cada polo, e na de Soure foram trs viagens, com reunies tambm diversas junto aos bairros e vilas. As reunies eram distribudas por categoria de extrativista ou por temtica definida pelos gestores com anuncia dos consultores das RESEXs. Outros recursos adotados no processo de pesquisa de campo, de grande significncia para a elaborao do trabalho foram:

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Observao das atividades da fase I de elaborao dos Planos de Manejo (PMs). O espao onde essas relaes se estabeleceram foram as reunies e audincias pblicas que ocorreram no ano de 2009. Desse modo, recorremos aos relatrios institucionais referentes s atividades realizadas, as nossas gravaes das reunies e memria desses agentes acerca do processo de criao das UCs e elaborao do Plano de Utilizao. Essa metodologia de resgate dos fatos a partir da percepo dos usurios adotada pela equipe tcnica do ICMBio foi denominada nas duas RESEXs como linha do tempo. Registro por imagens fotogrficas em que procuramos registrar imagens do cenrio socioambiental das RESEXs, das reunies e audincias, bem como de documentos que colaboram visualmente nas anlises elaboradas. Anlise documental cuja base de documentos de sustentao legal foi o SNUC, os decretos de regulamentao das Unidades de Conservao e as Instrues Normativas do ICMBio. Analisamos, alm disso, documentos que resultaram, em parte, de metodologias aplicadas como os diagnsticos cientficos nos quais a criao das RESEXs foi fundamentada e os planos de utilizao, alm de relatrios do CNPT/IBAMA, o Roteiro Metodolgico Para Elaborao do Plano de Manejo das Reservas Extrativistas e de Desenvolvimento Sustentvel Federais do ICMBio, os Termos de Referncia, Planos de Trabalho dos consultores e atas dos conselhos deliberativos bem como das Associaes me das UCs. Parte dos documentos acima referidos permitiu uma anlise acerca da legalidade das formas de participao, quem so os segmentos sociais locais, as suas origens, aspectos socioeconmicos e contexto local, as formas de participao enunciadas, atividades permitidas e proibidas pelos planos de utilizao, quem compe a equipe tcnico/cientfica, dentre uma diversidade de informaes que subsidiaram parte do estudo. Adotamos o uso de observao direta das etapas da fase I dos Planos de Manejo junto s populaes locais. A observao iniciada no ano de 2009 permitiu acompanhar as atividades da equipe tcnica do ICMBio, identificando aspectos das aes do rgo na fase I do PM junto s vilas e bairros que constituem as reas das RESEXs, bem como as adjacncias onde habitam usurios destas. Desse modo, pudemos tambm entrar em contato com uma diversidade de usurios das diferentes localidades. De outro, para a segunda etapa da pesquisa de campo em que, a partir de janeiro de 2010, deslocamo-nos para observao junto a essas populaes, concentramo-nos junto aos usurios que residem na vila do Ara, sede da RESEX Ara-Peroba e segunda maior vila de pescadores do municpio de Augusto Corra, e na vila do Porto do Campo, uma das duas localidades que esto localizadas dentro dos limites geogrficos da Reserva.

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No caso da Reserva de Soure, nosso contato por bairros se deu em virtude de a maioria dos usurios residirem nos bairros do distrito sede do municpio de Soure, visto que h certa concentrao por categorias de usurios, como tiradores de caranguejo, pescadores e extrativistas vegetais nesses bairros. Sem, contudo, deixar de resgatar os contatos na rea rural limtrofe da RESEX. As vilas do Caju-una, sede da Reserva, Cu, Pedral e Pesqueiro e as praias do Araruna e Barra Velha. As trs primeiras vilas so contguas, o que facilitou o acesso. Esse trabalho de campo foi possvel por conta dos dias em que nos dispusemos a permanecer nas localidades, objetivando alcanar a organizao sociocultural e econmica dos extrativistas, percebendo a interao no somente com os recursos naturais e entre si, mas com uma nova configurao dada ao lugar a partir da instituio da Unidade de Conservao. Consequentemente, observar tambm as interaes entre os saber local e cientfico a partir de perspectivas diferenciadas acerca da natureza e do manejo de seus recursos. Assim realizamos, alm das viagens para acompanhar as reunies e audincias pblicas, duas viagens durante a montagem do projeto com durao em mdia de uma semana cada, no ano de 2008, para a RESEX de Soure, duas viagens em 2009, visando a retomar os contatos iniciais, uma viagem de um ms durante julho de 2009, duas viagens para realizar entrevistas em dezembro de 2010 e janeiro de 2011. Intercalamos as viagens para a RESEX de Soure com as viagens para a RESEX Ara-Peroba, acompanhando tambm as reunies da fase I de elaborao do PM. Realizamos, logo em seguida, duas viagens para a vila do Ara e Porto do Campo, quando buscamos o levantamento de dados a partir da interpretao dos usurios acerca do uso dos recursos naturais e o resgate da criao da unidade e da participao local nesse processo. Buscamos, nesse perodo em que estivemos nas localidades sem a presena dos tcnicos do ICMBio, uma aproximao com as pessoas e o contexto histrico de cada lugar, as formas locais de representar as relaes com a natureza e a organizao social e do trabalho. As viagens realizadas pelo ICMBio para realizao das atividades da fase I de elaborao do PM para as RESEX Ara-Peroba e Soure acompanhadas por ns se deram conforme demonstramos abaixo:

Reunies da RESEX Ara-Peroba: 08 a 17 de janeiro de 2009 fiscalizao e conscientizao ICMBio nas adjacncias da RESEX perodo da andada do caranguejo.

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08 de maio de 2009 reunio do ICMBio para definir os grupos de trabalho (GT) das RESEXs dos municpios de Bragana, Augusto Corra e Viseu Apresentao do plano de trabalho da consultoria da Ara-Peroba. 02 a 04 de junho 2009 reunio do GT Ara-Peroba cmara de vereadores/reunio com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente. 15 de Setembro de 2009 reunio do GT para realizao das atividades da fase I do PM.

Reunies nos Polos: Polo Itapixuna 16 de setembro de 2009 vilas Areia Grossa e Cachoeira. Polo Ipixuna 17 de setembro de 2009 vilas Paxiba e Cedro. Polo Ara 18 de setembro de 2009 Vilas Caada e Porto do Campo.

Reunies nos Polos: 14 A 18 de outubro de 2009 Reunio do ICMBio com as vilas por polo.

Reunies da RESEX de Soure: 16 a 20 de abril de 2009 Reunio do ICMBio Emater / Fbrica de beneficiamento de coco / visita vila do Cu/ praia do Pesqueiro / reunio das ASSUREMAS. 23 a 27 de junho de 2009 Reunies por bairros com os usurios da RESEX de Soure aplicao da metodologia da linha do tempo. 25 de junho de 2009 Pesqueiro. 26 de junho de 2009 Vila do pedral. 27 de junho de 2009 Caju-una e Cu.

01 a 10 de setembro de 2009 reunio do ICMBio junto aos barraqueiros das


praias do Pesqueiro, Mata-Fome e Araruna.

1.3 DA EXPERINCIA EM CAMPO

Nosso primeiro contato com a localidade de Soure, j na inteno da pesquisa, foi durante uma semana no ms de fevereiro de 2009, em uma breve pesquisa exploratria. Ficamos hospedados na residncia de familiares de uma colega de trabalho, ali recebemos algumas orientaes para chegar at as vilas do Caju-una, Cu e Pesqueiro. Procurvamos

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ainda conhecer melhor a realidade local para propor com mais exatido o contexto de anlise, visto que acerca da RESEX Ara-Peroba j estvamos familiarizados pela aproximao que mantivemos durante a pesquisa de campo realizada na APA da Costa de Urumaj para a elaborao da dissertao de mestrado. Nossa primeira tentativa de chegar ao Caju-una frustrou-se em virtude de o porto da fazenda Bom Jesus estar fechado, e o funcionrio no permitir a passagem de pessoas estranhas sem a prvia autorizao das proprietrias da fazenda. Tivemos ento de retornar sede de Soure para providenciar a referida autorizao. Quebrado esse bloqueio, nosso contato com os moradores do Caju-una e Cu se deu por meio de visitas s residncias dos extrativistas, o que nos permitiu tambm o contato com as mulheres. Buscamos o levantamento de dados por meio de entrevistas semiabertas, guiadas por um roteiro pr-estabelecido, mas sempre procurando proceder a uma conversa sem formalidades, a fim de no criar constrangimentos. Nesse primeiro momento, tambm contatamos dirigentes das associaes de moradores, de pescadores e de mulheres. A partir desse momento nossa presena tornou-se familiar por conta de nossas idas acompanhando a equipe do ICMBio. Diferente da experincia em Soure, o contato com os usurios da RESEX Ara-Peroba se deu juntamente com a equipe do ICMBio, composta pelo chefe da RESEX Ara-Peroba (vice da UC Gurupi-Piri em Viseu) Marco Aurlio Santos, a consultora Carmem Pereira (que assumiu a consultoria da fase I nas RESEXs Ara-Peroba e Gurupi-Piri) e o vice-chefe da RESEX Ara-Peroba, Otvio Albuquerque (chefe da RESEX Gurupi-Piri), cujos trabalhos da fase I do PM nessas duas localidades se faziam em paralelo, justificando a presena desses trs agentes em ambas. A partir da que realizamos nossas incurses pessoais com vistas ao levantamento de dados. Contatamos ali com extrativistas pescadores e caranguejeiros , que atuaram diretamente na criao da reserva, principalmente por serem, poca, representantes de associaes e terem ainda participado dos movimentos anteriores reserva, que levaram a organizao dessa categoria e da formulao dos acordos de pesca realizados nas vilas com a ingerncia do IBAMA. Esse processo anterior teve forte influncia, j que se tratava de um debate acerca da conservao das espcies de recursos aquticos (peixes e crustceos) e introduzia acordos em torno de formas de manejo mais seletivas. Tambm fizemos contato com moradores locais, por meio dos quais acessamos dados acerca da organizao social local, bem como acerca das percepes que sustentam o comportamento da populao local.

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Em Soure, contatamos a Lisngela Cassiano, a princpio servidora do ICMBio responsvel pela fase I do PM e depois, lotada como chefe da RESEX de Soure, e o Rogrio Puerta, Consultor do ICMBio. Outras importantes referncias que contatamos foram a secretria de assistncia social Ivone Maus, que foi contatada por fazer parte da ONG Alternativa de Soure e o Prefeito municipal Joo Lus Melo, tambm integrante de referida ONG, bem como o Socilogo Carmelino Ramires, da ONG SOS Maraj, ambas de algum modo presentes no processo de criao da UC de Soure. O contato mais direto com os usurios se deu no perodo de dezembro de 2010 a janeiro de 2011, quando visitvamos a sede da ASSUREMAS (Associao de Usurios da Reserva Extrativista Marinha de Soure) durante as manhs, e ali reunamo-nos com os usurios presentes em rodas de conversas, enquanto eles aguardavam ser atendidos na Associao. Em geral, esperavam por notcias sobre algum benefcio oriundo de verbas do INCRA. Nessas manhs, amos contatando com usurios e, a partir da, marcando as visitas s residncias, na quais realizamos as entrevistas. Ouvamos tambm sobre a passagem de outros estudiosos ou outros que j estiveram por ali. Ouvamos primeiramente das mulheres os casos ocorridos envolvendo os encantados ou invisveis, verses confirmadas pelos extrativistas. Conviver minimamente com a populao local permitiu em maior intensidade a percepo de meandros e pequenos detalhes da vivncia local que somente o cotidiano capaz de revelar. O tempo local tornou-se determinante. Ao chegarmos, sentimos o impacto desse tempo to prprio na organizao das atividades. Dessa forma, nossas atividades tambm passaram a ser planejadas de acordo com essa temporalidade. Em nossa estadia nas localidades fazamos um movimento entre as vilas, no caso da RESEX Ara-Peroba, e entre bairros e vilas, no caso da RESEX de Soure. Esse processo de idas e vindas iniciado em 2009 e finalizado em junho de 2011 foi paralelamente permeado pela produo do texto que compe os captulos desta tese. Buscamos sempre nos ater s mincias das falas e percepes locais, para isso sempre em nossos retornos s localidades recorramos a algumas pessoas para submeter o nosso entendimento e conferir se estvamos conseguindo ter clareza sobre as questes em estudo. Tal procedimento tornou-se essencial, visto que, por vezes, percebamos que nossas prprias anlises sustentadas em outras informaes (nossas pr-compreenses) somavam-se aos dados e diluam em parte algumas mincias locais que precisavam ser preservadas, em virtude do prprio interesse do estudo, como por exemplo, os sentidos to particulares dos mitos.

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Dois desafios neste estudo apresentam-se para ns como imprescindveis, primeiro fazer uma interpretao no sentido de compreender os valores, sentidos e perspectivas das populaes locais em relao as RESEXs enquanto poltica pblica que se institui para o lugar, espao de organizao e pertena sociocultural, o que vale dizer dos costumes, dos valores e princpios compartilhados e, alm disso, como segundo desafio, no acessar os saberes locais no objetivo de subjuga-los ou conhecer para submeter com vistas a colaborar com o domnio e controle impondo-lhes novos olhares e usos sob o paradigma apenas da sustentabilidade cientfica. Nosso compromisso quer de algum modo contribuir com o rompimento das assimetrias impostas, conforme nos apresenta a noo de racionalidade ambiental cultural discutida por Leff (2006b), o que do ponto de vista prtico, da conduta humana se materializa por meio da sensibilizao para a percepo do outro, do diferente, um fazer tcnico-cientifico tico e comprometido com um fazer (ethos) institucional justo, conforme abordaremos a luz da tica ricoeuriana.

TENSES E ARRANJOS NA TRAJETRIA DAS RESEXs

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2 TENSES E ARRANJOS NA TRAJETRIA DAS RESEXs

Apresentamos neste captulo as RESEXs em sua origem, como resultantes da organizao de um movimento social em prol dos direitos dos seringueiros s terras de extrativismo, que alcanou patamares de visibilidade social e poltica aps dcadas de luta. A partir dessa perspectiva, procuramos demonstrar como a proposta advinda de um grupo social especfico passa a espelhar os interesses de uma coletividade e de suas organizaes sociais agrupada sob a definio de populaes tradicionais 12. Procuramos, tambm, demonstrar o entrelaamento de seus interesses mais especficos com a varivel ambiental em suas reivindicaes adicionando um novo sentido ao movimento, o que permitiu agregar aliados do movimento ambientalista em uma conexo por interesses comuns que fortaleceu ambos os movimentos no sentido da visibilidade alcanada e das conquistas que iro se materializar na constituio das RESEXs, destinadas especificamente para atender o direito de extrativismo associado conservao dos recursos naturais por meio do uso sustentado. Importa ainda destacar como a ideia de RESEX foi reapropriada e ajustada por instituies estatais, dentro da poltica agrria e ambiental, alcanando o patamar final de UC dentro do Sistema Nacional de Unidades de Conservao. Sendo reapropriada, a lgica de sua organizao perdeu muito do vis social originrio, passando a responder demanda da lgica estatal, dentro da racionalidade da resoluo de problemticas socioambientais para responder as presses internacionais que atrelavam as ajudas econmicas ao cumprimento de determinadas ordens. Representativos dessas determinaes foram os resultados das denncias e intervenes da sociedade civil sobre o Banco Mundial, no caso do Projeto Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (Polonoroeste) executado durante os anos oitenta, com recursos do governo brasileiro e do Banco Mundial, sob a coordenao da Superintendncia de Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO) e abrangeu a rea de

12

Cabe ressaltar que o termo populaes tradicionais engloba uma diversidade de grupos sociais, tendo como referncia a interao homem/natureza no exerccio material e simblico da organizao social. Importa esclarecer que neste estudo realizamos uma abordagem das especificidades referentes s populaes que vivem no entorno de RESEXs Marinhas no caso da RESEX Ara-Peroba, nomeadamente pescadores, camararoeiros e em menor escala, caranguejeiros; no caso da reserva de Soure, pescadores, camaroeiros, caranguejeiros e extrativistas vegetais cuja organizao sustenta-se na referida interao homem/natureza desse ponto, preferimos trata-los como populaes locais (o local aproxima-se da ideia de lugar e por conseguinte da ideia de identidade grupal) numa tentativa de que suas particularidades no se percam em definies demasiadamente amplas. desse modo que ns referimos as identidades grupais em acordo com as auto-definies caranguejeiro, marisqueiro, pescador dentre outras.

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influncia da rodovia BR-364. Nesse rastro, a questo do asfaltamento da BR 364 cujo emprstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no valor de US$ 146,7 milhes estabeleceu como condicionalidade medidas de proteo social e ambiental a serem cumpridas antes do recebimento dos primeiros recursos e, ainda por fora da repercusso do caso Polonoroeste, incluiu o valor de US$ 10 milhes destinados a mitigar os problemas ambientais e para as populaes indgenas atingidas. No Acre, a rea estabelecida como rea de influncia da estrada envolvia a regio em disputa pelos seringueiros do Xapuri. As mudanas estabelecidas no contrato servem para demonstrar as presses exercidas por entidades ambientalistas internacionais sobre os bancos multilaterais e o governo brasileiro. Nesse caso especfico, a argumentao das populaes da rea de influncia da estrada deu sustentao para o cancelamento pelo BID do desembolso dos recursos, j no governo civil de Jos Sarney em 1987 (ALLEGRETTI, 2002). dentro do contexto da legalidade na esfera da poltica ambiental, como Unidade de Uso Sustentvel, estabelecidos os limites a partir de uma estrutura fixa e burocrtica 13 para a criao e uso da RESEX, que consideramos haver um enrijecimento das relaes e posies subjacentes a elas, um enrijecimento tambm dos sentidos subjetivos que sustentam interesses e perspectivas dos grupos que se transpem, visto as assimetrias entre a racionalidade que subjaz aos agentes que atuam em nome do Estado em contraposio racionalidade das populaes locais, posto interesses e perspectivas diferentes e por vezes divergentes se pensados do lugar que cada um ocupa.

2.1 DE MOVIMENTO SOCIAL A UNIDADE DE CONSERVAO

Nossa primeira apreenso acerca das RESEXs se deu enquanto categoria de uso sustentvel instituda pela lei n. 9.985/2000 SNUC. No decurso de nosso trabalho, encontramo-nos com as particularidades dessa categoria, visto que a presena do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), de algum modo manifestada no contexto das RESEXs Marinhas, levou-nos ao questionamento da presena dessa entidade, poca ainda com essa nomenclatura, em reas destinadas conservao, mas no contexto da pesca artesanal. Na busca de dados que pudessem redesenhar a histria das RESEXs, que percebemos o percurso que vai do contexto dos movimentos sociais e, portanto, da
13

Conforme afirma Weber (1999), o mundo ocidental moderno baseia se no somente nos meios tcnicos, mas tambm em um determinado sistema legal e em uma administrao orientada por regras formais.

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racionalidade prtica na busca de resoluo dos problemas mais imediatos por um grupo social especfico apropriao pela poltica ambiental dessas particularidades, instituindo-as em categoria de Unidade de Conservao. Sob tal categorizao, subjaz uma leitura tcnica e cientfica acerca do contexto socioambiental e de onde emana toda a argumentao de sua instituio legal. O artigo 1 do Decreto 98.897/90, que dispe sobre Reservas Extrativistas, as define como espaos territoriais destinados explorao autossustentvel e conservao dos recursos naturais renovveis, por populao extrativista. Definio essa substituda por uma acepo mais acabada, do ponto de vista social, quando da instituio do SNUC no ano de 2000, segundo a qual:

A Reserva Extrativista uma rea utilizada por populaes extrativistas tradicionais, cuja subsistncia baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistncia e na criao de animais de pequeno porte, e tem como objetivos bsicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populaes, e assegurar o uso sustentvel dos recursos naturais da unidade. (art. 18 da lei 9.985/2000).

Essa definio que agrega, em grande medida, muito das reivindicaes dos seringueiros, remete a um longo processo de reivindicao que buscava solues para a legalizao da posse da terra fora dos moldes da poltica de Colonizao Agrcola do INCRA. Visto que o modelo de distribuio em lotes individuais para a produo agrcola no atendia o contexto das colocaes de seringais (em estradas) e a prpria atividade produtiva dos seringueiros. Mediante esse cenrio, continuavam na ilegalidade da regularizao fundiria, cujas terras de extrativismo viam ameaadas pelo avano do desmatamento e das fazendas de criao de gado. No caso da UC categoria RESEX, temos uma modalidade legitimamente brasileira, que se estabeleceu a partir de conflitos que envolvem os seringueiros do Acre e Rondnia, na dcada de 1970, contra fazendeiros, latifundirios e empresas, como a Bourbon, que objetivavam desmatar reas de seringais para empregar a pecuria extensiva de corte. Apresentam-se aqui materializadas as necessidades imediatas de uma categoria social, sobre as quais se organizou um movimento social que ganhou fora no mbito socioambiental. Dessas reas em disputa dependiam os seringueiros, de cuja posse sujeitava-se a organizao socioeconmica e cultural daqueles que ali desenvolviam suas atividades.

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desse contexto que se origina um movimento organizado em prol dos direitos de uso e posse dos seringais e que ficou conhecido nacional e internacionalmente os empates14. A visibilidade alcanada por meio desses conflitos para a situao dos seringueiros gerou uma identificao com a organizao de trabalhadores rurais, cujo suporte se deu por meio do Sindicato dos trabalhadores rurais (STR) com o apoio de setores progressistas da igreja catlica. Essa organizao por meio dos STRs, especialmente os de Brasileia e Xapuri, colocou na cena poltica o debate da reforma agrria contemplando as reivindicaes dos seringueiros e de outros "povos da floresta". No caso do Acre, o grande nmero de seringueiros na base sindical incidiu sobre a organizao dessa categoria e no fortalecimento do movimento organizado, o que gerou tambm uma grande incidncia de mortes anunciadas de suas lideranas, como Wilson Pinheiro (ALLEGRETTI, 2002), dentre as quais a mais conhecida foi o assassinato de Chico Mendes, que colocou na cena internacional os conflitos pela questo agrria no Brasil. Levando assim o governo brasileiro tomada de decises por polticas pblicas que viessem a amenizar a problemtica (CUNHA e LOUREIRO, 2009). Segundo Almeida (2004), a origem das Reservas Extrativistas est relacionada efervescncia do movimento dos seringueiros no Acre nas dcadas de 1980 e 1990, que marca o seu fortalecimento e cuja estratgia principal, embora no planejada, tenha sido a articulao de suas reivindicaes agrrias associadas a temas ambientais mais abrangentes. Em uma relao constante com organismos nacionais e internacionais que influenciavam uma viso mais ambientalista, o movimento inseriu esse discurso na fala de seus dirigentes, como Chico Mendes, Chico Ginu e Antnio Macedo. Tal discurso, ao ser apropriado, foi se ressignificando de acordo com as prticas locais e o sentido visado por seus agentes. Objetivando solues mais imediatas necessrias prpria organizao da vida social e produtiva dos seringueiros. Para usar uma noo gadameriana, a incorporao do tema ambiental em suas reivindicaes seria uma ampliao de horizonte, da capacidade de compreenso e questionamento das coisas que o cercam a partir do lugar que ocupam na estrutura social, sustentado na tradio. No dizer do autor:

horizonte o mbito da viso que abarca e encerra tudo que visvel a partir de um determinado ponto. Aplicando-se conscincia pensante falamos
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Organizados pelos seringueiros, os empates constituam-se no envolvimento em torno das seringueiras, nas colocaes, evitando a sua derrubada a mando de fazendeiros. Organizados com mulheres e crianas enfileiradas frente do movimento, no intuito de constituir uma barreira e evitar o confronto com os responsveis pelo derrubada das rvores. O primeiro empate ocorreu em 1976, sob a liderana do Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasileia, Wilson Pinheiro.

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ento da estreiteza do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes [...] aquele que no tem um horizonte um homem que no v suficientemente longe e que, por conseguinte supervaloriza o que lhe est mais prximo [...] aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles. (GADAMER, 1997, p. 452).

A capacidade de conectar interesses locais com motes ambientalistas mais amplos permitiu uma nova estrutura de organizao do movimento, que passou pela estruturao de eventos com alcance internacional e miditico, de interesse acadmico e poltico, do engajamento de pesquisadores e militantes, da estruturao de diversos sindicatos e da criao do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) 15, cujo estatuto foi elaborado em 1989. Nesse momento, a criao de Reservas Extrativistas objetivava e abrangia como trabalhadores extrativistas, alm dos seringueiros, os pequenos agricultores, pescadores, castanheiros e quilombolas. O tema da transformao de grandes reas de floresta em reas pblicas para uso coletivo segundo prticas tradicionais (ALMEIDA, 2004, p. 34) soou como um ecoar ambientalista, para alm das necessidades prticas do cotidiano dos seringueiros, que validou a luta dessa categoria e os tirou da invisibilidade sociopoltica. A origem da ideia que geraria mais tarde a expresso Reservas Extrativistas ocorreu em reunio preparatria (de 31 de agosto a 1 de setembro de 1985 em Ariquemes/Acre) para o Primeiro Encontro Nacional de Seringueiros (ocorrido posteriormente de 11 a 16 de outubro de 1985 em Braslia), evento organizado por Mary Allegretti a pedido de Chico Mendes, ficando registrado no documento final do referido evento. O sentido dado era por afinidade s reservas indgenas, conforme observa Allegretti (2002): Em outros casos, as reservas indgenas se transformaram em uma referncia fundamental para a proposio de alternativas e eles decidiram reivindicar, semelhana dos ndios, reas tambm reservadas e demarcadas para o extrativismo (p. 421). Em outro trecho, a autora faz referncia s proposies feitas pelos grupos de trabalho organizados nesse evento, demonstrando a proposio por aluso s reservas indgenas:
Grupo B Demarcar as reas onde j existe explorao de seringa, onde o seringueiro j est l dentro explorando; ento, demarcar essas reas para que ele continue l dentro e esta rea continue como uma reserva natural,
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Ao final do II Congresso das Populaes Extrativistas, que contou com a presena de mais de trezentos delegados dos estados da regio amaznica no perodo de 06 a 09 de junho de 2009, em Belm do Par, dentre as resolues, mudanas internas foram adotadas. A nomenclatura Conselho Nacional dos Seringueiros passou assim a ser substituda pela denominao Conselho Nacional das Populaes Extrativistas.

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porque a est preservando o meio ambiente e, ao mesmo tempo, est se dando sustento para o seringueiro. (p. 423).

A definio para a expresso Reserva Extrativista ocorreu em reunio do CNS em Brasileia no Acre no ano de 1996. Segundo a seguinte referncia:

Na realidade, o encontro de Brasilia, foi muito alm do que deslocar a ateno dos sindicalistas do problema da produo da borracha para o tema da conservao da floresta. Os participantes definiram ali o que seriam as reservas extrativistas, anunciadas em 1985: terras da Unio (formulao inspirada no modelo das reservas indgenas) sobre as quais os trabalhadores teriam direito perptuo de usufruto [...] s a ocupao coletiva e sem possibilidade de comercializar a terra evitaria a tragdia da privatizao da natureza que assolava os seringueiros [...] (ALMEIDA, 2004, p. 45).

Em 1985, na audincia pblica promovida pela Comisso de Brundtland, a participao dos seringueiros e do CNS sustentou-se na defesa por medidas que garantissem o modo de vida das populaes extrativistas. Paulo Nogueira Neto, Secretrio Especial de Meio Ambiente, anunciou o incio dos estudos com vistas criao de reservas ecolgicas extrativistas com o objetivo de atender a 500 mil seringueiros e castanheiros na regio amaznica. Essa foi a primeira grande repercusso e manifestao institucional da questo ambiental no contexto das Reservas Extrativistas. Do ponto de vista pblico/institucional, as Reservas Extrativistas surgiram com base na Portaria 627/87 do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), que institua os Projetos de Assentamento Extrativista (PAE), na inteno imediata de incorporar as reivindicaes do movimento organizado referido acima e que resultou em questes polticas expostas internacionalmente. Contudo, s foram reconhecidas como Unidades de Conservao no mbito da Poltica Nacional do Meio Ambiente (PNMA), por meio da Lei n. o 7.804, de 18 de julho de 1989 e do Decreto n.o 98.897, que regulamentou a PNMA, de 30 de janeiro de 1990. Segundo esta legislao, a instituio responsvel pelas reservas o IBAMA. Mediante Portaria n.o 22-N, de 10 de fevereiro de 1992 do IBAMA, o rgo gestor das questes relativas s reservas o CNPT (IBAMA, 2002). Segundo apontam Cunha e Loureiro (2009), o que levou a alterao do rgo gestor do INCRA para o IBAMA e, portanto, do foco agrrio para o ambiental foram alm dos crescentes apelos ambientais, a possibilidade de respostas mais rpidas quanto criao das Reservas Extrativistas, considerando a desobrigao da desapropriao prvia das terras. Contudo, a principal mudana no foco da poltica sustentou-se no fato que agregaria aliados j constitudos no movimento ambientalista como ONGs e instituies financeiras,

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 61

principalmente internacionais, que passam a ser aliadas em prol das causa dos seringueiros, como a World Wide Fund For Nature (WWF) dos Estados Unidos, o Threshold Fund e o Banco Mundial e consequentemente maior visibilidade tanto para as questes ambientais quanto para o movimento dos seringueiros e para as Reservas Extrativistas em mbito internacional. No contexto do IBAMA, at agosto de 2007, quando da criao do Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio)16, o CNPT assumia a responsabilidade, dentre outras, de supervisionar o desempenho das atividades nas RESEXs, estando sob sua responsabilidade: Executar polticas de uso sustentvel dos recursos naturais, tendo as reservas extrativistas como referncia, e por princpio a gesto comunitria e por prioridade a ampliao da base territorial destinada s unidades de Reservas Extrativistas . (IBAMA, 2001, p. 9). Atualmente no processo de desmembramento do IBAMA, todas essas

responsabilidades sobre as referidas Unidades de Conservao passam a ser da alada do ICMBio, por meio da Diretoria de Unidades de Uso Sustentvel e Populaes Tradicionais (DIUSP) e tendo o CNPT passado a compor esse rgo. No decurso desse processo, em 1987 ainda sob a poltica do PAE do INCRA foi criada a RESEX Figueira e, em 1988, a RESEX Cachoeira; em 1990 foi legalizada por meio do decreto n.o 98.863 a RESEX dos seringueiros do Alto Juru, assim como a RESEX de Xapuri RESEX Chico Mendes todas no Acre; no mesmo ano a RESEX do Rio Cajari no Amap e a RESEX Rio Ouro Preto em Rondnia. Em 1992, foi criada a primeira RESEX fora dos limites da Amaznia brasileira, uma RESEX Marinha, a de Pirajuba em Santa Catarina (MMA, 2004), j no quadro de proteo do bioma marinho da costa brasileira, que posteriormente ser contemplado no SNUC, conforme pode ser observado no Quadro 1 abaixo referente ao total de RESEX institudas no Brasil at o ano de 2010.

16

Sobre o ICMBio, ver subcaptulo do IBAMA ao ICMBio neste estudo.

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 62

Quadro 1 Reservas extrativistas institudas no Brasil at 2010, em destaque as RESEXs criadas no estado do Par
RESEXs institudas no Brasil at o ano de 2010

ORDEM 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27

ANO DE CRIAO 1987 1988 1988 1989 1990 1990 1990 1990 1992 1992 1992 1992 1992 1996 1997 1997 1998 1999 2000 2000 2000 2000 2001 2001 2001 2001 2001

RESEX Figueira* Cachoeira* Porto Dias* Remanso* Alto Juru Chico Mendes Rio Cajari Rio Ouro Preto Mata Grande Ciriaco Extremo Norte do Estado de Tocantins Quilombo do Flexal Pirajuba Jaci Paran Mdio Juru Arraial do Cabo Tapajs Arapiuns Lago de Cuni Alto Tarauaca Baia do Iguap Ponta do Corumbau Delta do Parnaba Baixo Juru Auati-Paran Barreiro das Antas Lagoa do Jequi Rio Cautrio

UF AC AC AC AC AC AC AP RO MA MA TO MA SC RO AM RJ PA RO AC BA BA PI AM AM RO AL RO

REA (HA) 25.973,20 24.098 22.345 43.502 506. 186 970. 570 481. 650 204. 583 10.450 7.050 9.280 9.542 1.444 191.324 253.226 56.769 647.610 55.850 151.199 8.117 38.174 27.021 187.982 146.950 107.234 10.203 73.817

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 63

28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61

2001 2002 2002 2002 2002 2002 2002 2002 2003 2004 2004 2004 2004 2005 2005 2005 2005 2005 2005 2005 2005 2006 2006 2006 2006 2006 2006 2006 2006 2007 2007 2008 2008 2008

Soure Cazumb Iracema Chocoar - Mato Grosso Rio Juta Mandira Maracan Me Grande de Curu So Joo da Ponta Batoque Lago de Capan Grande Verde Para Sempre Riozinho do Anfrsio Cururupu Riozinho da Liberdade Mapu Ipa Anizinho Arioca- Pruan Arai-Peroba Caet- Taperau Gurupi-Piri Tracuateua Terra Grande e Pracuba Rio Iriri Rio Unini Arapixi Lago do Cedro Rec. das Araras de Terra Ronca Gurup- Melgao Canavieiras Chapada Limpa Aca Goiana Mdio Purus Rio Xingu Ituxi

PA AC PA AM SP PA PA PA CE AM PA PA MA AC PA PA PA PA PA PA PA PA PA AM AM GO GO PA BA MA PB/PE AM PA AM

27.463 750.794 2.785 275.532 1.175 30.018 37.062 3.203 601 304.146 1.288.717 736.340 185.046 325.602 94.463 55.816 83.445 11.479 42.068 74.081 127.153 194.695 398.938 833.352 133.637 17.337 11.964 145.297 100.645 11.971 6.678 604.290 303.841 776.940

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 64

62 63 64

2009 2009 2009

Renascer Cassurub Prainha do Canto Verde

PA BA CE

211.741 100.687 29.794

* PAE Projeto de Assentamento Extrativista do INCRA Fonte: Allegretti (2002) ICMBio, CNS, IPAM (2010)

Dado interessante que do total de RESEXs criadas no Brasil at 2007 foram desmatados apenas 3% em hectares do total da rea protegida, segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amaznia (IPAM) e Centro de Estudos e Gesto Estratgica (CGEE), conforme pode ser visualizado pelo Grfico 1 a seguir, o que a princpio demonstra em grande medida a conquista do objetivo proposto pelo rgo gestor, que a conservao dos recursos naturais; no caso, florestais. Grfico 1 rea desmatada em RESEX no Brasil at 2007

Desmatamento em reas de RESEX no Brasil - 2007


3%

desmatamento at 2007 3%

97%

reas de RESEX conservadas 97%

Fonte: IPAM, CGEE (2009)

Embora legalizadas a partir da concepo de reservas para o contexto amaznico, no mbito do projeto Reservas Extrativistas do Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais do Brasil Projeto RESEX/PPG7 (Priority Project) financiado pelos pases do G7 as RESEXs tm se difundido por vrios estados no amaznicos, como Alagoas, Cear,

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 65

Bahia, Piau, Maranho, Rio de Janeiro e So Paulo, conforme se pode observar do Quadro 1 acima. A Reserva Extrativista foi absorvida em 2000 como uma categoria de Uso Sustentvel quando da instituio da Lei n.o 9.985/2000, que regulamenta o referido SNUC e tem por objetivo central o uso sustentado dos recursos naturais com vistas ao aproveitamento econmico pelas populaes extrativistas, assegurando-lhes os meios de vida e a manuteno da cultura local, conforme define o artigo 18 dessa lei. O apoio do movimento ambientalista de perspectiva socioambientalista, que entende a presena das populaes locais como imprescindvel para esse processo de conservao da natureza foi indispensvel para a institucionalizao da RESEX como Unidade de Conservao no contexto do SNUC. Importante salientar para efeito deste estudo que, ao se instituir enquanto UC sob o SNUC, a RESEX deixa de caracterizar-se pela autogesto reivindicada pelo movimento social, ficando sob a administrao do rgo gestor, representado por um chefe da Reserva enquanto servidor antes do IBAMA hoje do ICMBio e do Conselho deliberativo, instituindo-se a cogesto ou gesto participativa, reafirmando-se a o preceito participativo, tema a ser abordado na sequncia deste estudo. Instituda com a finalidade de permitir o aproveitamento econmico em bases sustentveis por populaes extrativistas, que so consideradas legalmente o elemento chave para a demanda e gesto dessas reas, a RESEX enquanto UC de uso sustentvel possui como exigncia a participao da populao local, quer para sua criao, quer para as demais etapas da poltica de implementao da unidade. Tal preceito participativo sustenta-se na origem reivindicativa popular do movimento iniciado pelos seringueiros. O discurso da democracia participativa constitui-se para atender a demanda das populaes extrativistas, resultando em um contrato entre o poder pblico e essa populao, com vistas explorao sustentvel de recursos como ltex, castanha, copaba, andiroba, babau, aa, pequi, bacuri, muruci, dentre outras plantas medicinais, oleaginosas e frutferas, alm dos recursos madeireiros quando previstos no plano de manejo, conforme artigo 25 e 26 do captulo VII, que trata da autorizao para a explorao de bens e servios, do Decreto 4.340/02, que regulamenta artigos do SNUC, no caso das RESEXs de recursos florestais e no caso das RESEXs Marinhas ou de recursos pesqueiros (peixes, crustceos e moluscos) . As RESEXs Florestais podem ser institudas pelo poder executivo nas trs esferas federal, estadual e municipal (art. 9, cap. VI da Lei Federal 7.804/89 e art. 2 do Decreto 98.897/90). No caso das RESEXs

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 66

Marinhas, so apenas decretadas pela esfera federal, em virtude das reas abrangidas manguezais e costa litornea. dentro dessa conjuntura que a RESEX passa da condio de uma reivindicao de um movimento popular organizado em prol de seus direitos a terras de extrativismo ao paradigma de desenvolvimento sustentvel com participao das populaes locais, previsto em lei.

A Reserva Extrativista (RESEX) uma categoria do SNUC cujo objetivo central o uso sustentado dos recursos naturais com vistas ao aproveitamento econmico pelas populaes extrativistas assegurando-lhes os meios de vida e a e a manuteno da cultura local, conforme define o artigo 18 dessa lei. 17

2.2 AS RESEXs NO CONTEXTO DAS UCs NO PAR E A MATERIALIDADE JURDICA DO PRINCPIO DA PARTICIPAO

No estado do Par, foram institudas vinte (20) RESEXs, segundo dados coletados at agosto de 2010, dentre as quais nove (09) so Marinhas e onze (11) Florestais. A primeira RESEX18 decretada no estado foi a Tapajs-Arapiuns, criada em 06 de novembro de 1998 e a ltima tambm uma florestal, a Renascer no municpio de Prainha, sendo datada sua criao de 05 de junho 2009. Conforme segue no quadro abaixo:

17 18

Disponvel em: <www.ibama.gov.br/siucweb/mostraDocLegal.php>. Acesso em: 28 ago. 2007. As RESEXs so institudas em duas subcategorias, de acordo com os recursos naturais a que se destina o uso pelas populaes locais as Florestais e as Marinhas ou de Recursos Pesqueiros.

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 67

Quadro 2 RESEXs Marinhas e Florestais institudas no estado do Par


RESERVAS EXTRATIVISTAS NO ESTADO DO PAR Municpio Mesorregio Florestais Oeiras do Par Baio Curralzinho e So Sebastio da Boa Vista Altamira Breves Altamira Sudoeste Maraj Sudoeste Rio Iriri Mapu Riozinho do Anfrsio Santarm e Aveiro Porto de Moz Baixo Amazonas Baixo Amazonas TapajsArapiuns Verde para Sempre Gurup/ Melgao Maraj Gurup Melgao Altamira Prainha Santarm Novo Sudoeste Baixo Amazonas Nordeste Rio Xingu Renascer Chocoar Mato Grosso So Joo da Ponta Curu Nordeste Nordeste So Joo da Ponta Me Grande de Curu Maracan Augusto Corra Bragana Viseu Soure Tracuateua Nordeste Nordeste Nordeste Nordeste Maraj Nordeste
Fonte: IBAMA, ICMBIO e CNS (2010)

RESEX Marinhas Arioca Pruan Ipa-Anilzinho Terra Grande Pracuba

Nordeste Nordeste Maraj

Maracan Arai Peroba Caet Taperau Gurupi Piri Soure Tracuateua

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 68

Pensando a questo ambiental no Brasil, podemos afirmar que a poltica ambiental tem seus primrdios nas preocupaes com a devastao, que datam do perodo da ocupao do Brasil por Portugal. Nesse perodo suscitaram-se as primeiras proibies, embora voltadas para proteger os interesses econmicos e predatrios da metrpole portuguesa. A primeira medida concreta para preservar espaos naturais da predao generalizada ocorreu 437 anos depois da descoberta do Brasil (URBAN, 1998, p. 30). Em Saudade do Mato, Urban (1998) permite-nos constatar a historicidade da explorao e devastao dos recursos naturais no pas, resgatando as medidas e aes que constituem a histria da conservao da natureza no Brasil, que, segundo a autora, representa apenas uma pequena referncia diante da histria da devastao. A atribuio de valores econmicos aos recursos naturais no Brasil foi imprescindvel para a tomada de decises que priorizavam o desenvolvimento econmico do pas em detrimento do combate devastao ambiental. Na Amaznia, so resultantes dessas decises os grandes projetos econmicos e programas governamentais que se basearam no mito do vazio demogrfico, r esultando da, em grande medida, a degradao do meio ambiente. Materializada, dentre outros, na destruio florestal com vistas atividade agropecuria e a explorao de recursos minerais. Um exemplo do comprometimento da existncia socioeconmica das populaes locais, conforme atesta Leonel (1998), a degradao dos cursos dgua em virtude do uso de produtos txicos como o mercrio na garimpagem, para alm da degradao dos saberes, tradio e organizao social de populaes que j habitavam a regio, como o caso de indgenas, posseiros e ribeirinhos. A elaborao de uma lei ambiental unificada que regulamenta as categorias de Unidades de Conservao representa uma conquista a favor da ambientalizao 19 no Brasil, o que se deu por meio do SNUC. As categorias de Unidades de Conservao antes dispersas entre os tipos estabelecidos pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e pela Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), rgos que estavam com funes duplicadas, segundo Rylands (2005), depois extintos com a criao do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
19

A noo de ambientalizao pode designar tanto o processo de adoo de um discurso ambiental genrico por parte dos diferentes grupos sociais, como a incorporao concreta de justificativas ambientais para legitimar prticas institucionais polticas, cientficas etc. Sua pertinncia terica ganha, porm, fora particular na possibilidade de caracterizar processos de ambientalizao especficos a determinados lugares, contextos e momentos histricos (ACSELRAD, 2010, p. 103).

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 69

Recursos Naturais Renovveis (IBAMA) em 1989, que reuniu as atribuies de mais dois rgos Superintendncia da Pesca (SUDEPE) e Superintendncia da Borracha (SUDHEVEA) coadunam os ideais de dois grupos, representados no Brasil pelos grupos que seguem uma linha mais biocntrica e os que entendem a relao natureza e cultura como uma condio sine qua non para que a conservao se efetive (SANTANNA, 2003). Essa dualidade reflete-se na constituio das duas categorias de classificao de Unidades de Conservao do SNUC, conforme quadro a seguir: Quadro 3 Unidades de Conservao por categorias de manejo segundo o SNUC Categorizao das UCs segundo o SNUC Unidades de Proteo Integral Estao Ecolgica Reserva Biolgica Parque Nacional Monumento Natural Refgio da Vida Silvestre Unidades de Uso Sustentvel rea de Proteo Ambiental rea de Relevante Interesse Ecolgico Floresta Nacional, Estadual ou Municipal Reserva Extrativista Reserva de Fauna Reserva de Desenvolvimento Sustentvel Reserva Particular do Patrimnio Natural
Fonte: SNUC (2000)

A partir do SNUC, a noo de uso sustentvel com vistas ao desenvolvimento orienta como alternativa terica e prtica a constituio das Unidades de Uso Sustentvel. O conceito de desenvolvimento sustentvel pressupe um repensar o desenvolvimento econmico com base na amenizao dos riscos gerados pela explorao capitalista e seus resqucios, quer ambientais, quer sociais, sugerindo propiciar um bem-estar socioeconmico s camadas populares e, impactos menores ao meio ambiente. Segundo alguns analistas do desenvolvimento sustentvel, como Becker (1993), esse um conceito em fase de construo, inacabado, no havendo consenso entre as diversas escolas da comunidade cientfica acerca do tema. Para Ribeiro (1992 apud SOUZA, 1994), h uma escassez muito grande de tericos do desenvolvimento que discutam a questo da

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 70

sustentabilidade, o que Carvalho (1994 apud SOUZA, 1994, p. 14) confirma: Portanto, a questo central reside na compreenso do que e como medir a sustentabilidade [...] A questo que segue : sustentabilidade do qu, quando, onde e por qu. Na linha do debate ambiental, a vertente socioambiental pretende oportunizar a expresso de modelos de desenvolvimento amparados em outra racionalidade, o que se materializa por meio da aplicabilidade do conceito de sustentabilidade no contexto das unidades de uso sustentvel. Esto a em referncia as racionalidades locais de uso e conservao dos recursos naturais, tendo em vista os modos de ser e fazer das populaes que se organizam em torno de atividades produtivas consideradas tradicionais, exatamente pelo fato de dependerem da relao direta com a natureza por meio do uso dos recursos naturais. A conservao se far, portanto, a partir dos preceitos da sustentabilidade no uso dos recursos naturais, visando qualidade futura de acesso a esses recursos e, s se torna vivel nos marcos da categoria de Unidades de Conservao de uso sustentvel, tecnicamente mediante um planejamento do uso que se traduz no Plano de Manejo, que por sua vez dever respeitar os modos locais de sustentabilidade. Para Lobo (2006), o SNUC representa, em sua aplicabilidade, um desvio da poltica ambiental em seu eixo social. O cerne dessa reflexo, para o autor, se d se pensarmos que as Unidades de Conservao de uso sustentvel so resultado da luta das populaes locais que conquistaram o direito de manter suas formas de organizao socioeconmica sustentadas na tradio do ser e fazer-se localmente. Relaes essas de subservincia ao modo de ser da natureza e as regras simblicas determinadas no grupo que sustentam essas relaes. Diante desse contexto, para o autor, o SNUC representa a sujeio desse saber e fazerse tradicional ao saber cientfico e s regras tecnocrticas que se impem como fundamento no plano de manejo enquanto documento tcnico. A exemplo, por meio da conceituao e classificao cientfica da natureza e, portanto, da dissoluo das particularidades locais, em virtude da perda de sentidos. Em suma, pelo desencantamento que se faz por meio da racionalizao empregada pela cincia e pela tcnica. De acordo com a anlise empreendida por Weber:

O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela uma racionalizao, pela intelectualizao, e, sobretudo, pelo desencantamento do mundo levou os homens a banirem da vida pblica os valores supremos e mais sublimes. Tais valores encontraram refgio na transcendncia da vida mstica ou na fraternidade das relaes diretas e recprocas entre indivduos isolados. (WEBER, 1967, p. 51).

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 71

Os estudos sociolgicos devem ser pensados como um dos pilares de sustentao das anlises ambientais. Ao apropriarem-se do conceito de desenvolvimento sustentvel que pressupe um desenvolvimento racionalizado e pautado na autossustentabilidade

socioambiental e econmica, tm por elemento de anlise no somente a biodiversidade, mas tambm a sociodiversidade. Ou seja, devem preocupar-se com as especificidades locais das relaes do homem com a natureza, das suas prticas socioculturais, das necessidades de sobrevivncia e do uso equilibrado dos recursos naturais pelas populaes extrativistas. Estudos focalizados nesses contextos podem colaborar com a efetivao prtica dessa poltica de UCs e com a eliminao das mazelas que dominam o cenrio de vida e reproduo social dessas populaes, particularmente na Amaznia, onde se associam a violncia de latifundirios e grileiros, grandes projetos, empresas e polticas pblicas que ignoram a historicidade dessas populaes na regio. Diante do exposto, buscamos compreender a insero das populaes locais nesse processo que envolve mudanas significativas no seu ambiente de vida e nas suas formas de ser e agir. Os interesses definidos pela poltica pblica ambiental condicionam, em certa medida, essas mudanas no ethos local. Contudo, Segundo Simonian (2000), referindo-se s polticas pblicas em relao aos agentes sociais locais das Unidades de Conservao, a eles efetivamente no so assegurados mecanismos apropriados de participao: Metas chegam a ser estabelecidas, planos elaborados e projetos implementados, mas dificilmente a destinao de recursos financeiros, a capacitao de tcnicos e o envolvimento das populaes tradicionais locais so assegurados de modo apropriado (p. 10, grifo nosso). Nesse cenrio das UCs e da legislao que rege seus ordenamentos, dados da SECTAM, IBAMA (2007), do CNS (2009) e ICMBio (2010) indicam a criao de sessenta e quatro (64) RESEXs no Brasil at o ano de 2010, de acordo com os dados que coletamos. Desse total, aproximadamente 60% esto localizadas na regio Norte, alterando sobremaneira e reordenando o modo de vida das populaes que vivem da extrao dos recursos naturais disponveis. No Par um dos estados da Amaznia brasileira que vem se destacando na criao de Unidades de Conservao nos ltimos anos tem-se hoje em seu territrio de 1.247.689, 5km (IBGE, 2002), aproximadamente 57,60% de reas protegidas (Unidades de Conservao e Terras Indgenas), correspondentes a 71.769.103ha, sem considerar as sobreposies territoriais20, distribudas conforme grfico a seguir:
20

As sobreposies territoriais de reas protegidas ocorrem particularmente entre terras indgenas e UCs de uso sustentvel, o que tambm sugere conflitos entre os segmentos sociais atingidos.

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 72

Grfico 2 Percentual do territrio paraense por reas protegidas (2009)

Percentual de reas protegidas


10,30% 2 22,50%

42,40%
reas no protegidas

Terras ndigenas

24,80% 24,80 %

Ucs de Desenv. Sustentvel Proteo Integral

Fonte: Elaborado a partir dos dados da SECTAM/IBAMA (2009)

Desse total de reas protegidas, 32,80% equivalentes a 40.866.360ha do territrio paraense, correspondentes a oitenta e trs (83) Unidades de Conservao, conforme segue no quadro abaixo:

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 73

Quadro 4 Unidades de Conservao por categorias de manejo no Par no ano de 2010 distribudas pelas esferas de criao
Unidades de Conservao no Estado do Par distribudas pelas esferas de domnio de acordo com as categorias de manejo do SNUC
UNIDADES DE CONSERVAO

ESFERA FEDERAL ESTADUAL MUNICIPAL PARTIC.

CATEGORIA DE MANEJO/SNUC

Parques Reservas biolgicas Estao Ecolgica Florestas Reservas extrativistas Reserva de desenvolvimento sustentvel APAs Reservas particulares Reserva Ecolgica rea de relevante interesse ecolgico TOTAL POR ESFERA

05 03

03 01

02 -

Proteo Integral Proteo Integral

02 14 20

01 04 -

Proteo Integral Uso Sustentvel Uso Sustentvel

01

02

Uso Sustentvel

02 -

08 -

08 -

05

Uso sustentvel Uso sustentvel

01

Proteo Integral

01

Uso Sustentvel

47

19

12

05

TOTAL GERAL 83

Fonte: Elaborado a partir dos dados da SECTAM, IBAMA (2009)

Do territrio do estado do Par, 28.067.994ha 22,50%, conforme Quadro 4, corresponde a sessenta e cinco (65) UCs de uso sustentvel, cuja principal diferena em

Tenses e Arranjos na Trajetria das RESEXs 74

relao a outras categorias a busca de conciliao entre o uso, a sustentabilidade social e a proteo ambiental. Especificamente em relao proposta de criao de RESEXs Marinhas no Par, esta surge a partir da existncia de conflitos envolvendo reas de manguezais e caranguejeiros nos municpios de Soure, So Caetano de Odivelas e Vigia. Sendo a primeira RESEX Marinha do estado instituda em 2001 a RESEX de Soure. Das outras RESEXs Marinhas, foram institudas no ano de 2002 a Maracan, a Chocoar Mato Grosso, a Me Grande de Curu e So Joo da Ponta, e em 2005 Ara-Peroba, Caet-Taperau, Gurupi-Piri e Traquateua. Contudo, imprescindvel esclarecer que essas Reservas so criadas j no contexto do SNUC e espelham este momento institucionalizado de uma poltica pblica. So produto resultante, conforme poder ser observado na sequncia deste estudo, da interao dos rgos institucionais responsveis pela poltica em ambientes com potencial socioambiental para a criao das Unidades. A presena de movimentos organizados locais vai fortalecer momentos do processo de criao e, sem dvida, atuam como legitimadores do processo e, portanto, das aes institucionais. Importa ainda esclarecer que a poltica de criao de UCs por meio da categoria RESEX Marinha no estado do Par, adqua-se poltica instituda pelo IBAMA-PA, por meio de seu corpo tcnico, cuja expertise estava ligada questo da pesca, posto serem muitos desses tcnicos oriundos da SUDEPE. E ainda, agrega-se a esse fato a questo de que para continuar no exerccio de uma poltica que entrava em pleno vigor a poltica de UCs realimentada pelos debates polticos anteriores e pela publicao do SNUC em 2000 constitua-se com maior facilidade a criao de RESEXs Marinhas, visto que, nesse caso, as questes fundirias at hoje insolveis deixavam de ser um problema, considerando que as reas costeiras e de manguezais so de domnio da unio.

Quando eu assumi o IBAMA, eu fiquei como chefe de Vigia, que era uma rea pesqueira, e quando eu sa de vigia, foi pra assumir o CNPT, e a eu coloquei pro chefe em Braslia tanto a minha ignorncia na parte florestal, porque quando a gente falava de Reserva Extrativista era Chico Mendes. Eu coloquei toda a minha ignorncia pra ele nessa rea e disse: Olha, minha rea pescador, e como nessa poca o Fernando Henrique Cardoso no tava dando condies pra se criar mais reservas florestais, at porque demandava recurso [...] na verdade o governo j tinha dado uma resposta situao, que j tinha sofrido muita presso, a ele refreou [...] a o chefe pegou e disse: Olha Otvio, o nosso carro chefe aqui essa Reserva Extrativista, e eu disse: Olha, o que eu conheo, a minha rea pesca, a ele falou: Bem, se isso, ento eu vou apostar nisso a, porque Reserva Marinha no tinha indenizao, porque teoricamente no tem conflito de posse de terra, ningum deve ser dono, dono o governo, de mar e de

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mangue e ningum diz que , tu entra invade, mas no teu, quer dizer facilitava para o CNPT, e no ia ter desentendimento, no ia ter indenizao nada disso (informao verbal) 21.

De outro lado, o significado da pesca na regio inquestionvel, tanto do ponto de vista social como econmico. Particularmente da pesca artesanal, o que comprovado por Mello (1985), segundo o qual, o Par, junto com a Bahia, apresentava na poca o maior contingente de pescadores artesanais, alm de um grande consumo de pescado. Leonel, na obra A Morte Social dos Rios (1998), refere-se a uma produo pesqueira artesanal do estado do Par que corresponde a 70% da produo nacional. A pesca artesanal conforme apresentada, no que pese, em geral, o descaso das polticas pblicas analisado por Leito (1997), tem sido responsvel pela maior parte da produo comercializada no mercado interno. O que demonstra a importncia dessa modalidade de pesca no contexto regional e nacional. Da decorrendo tambm a significncia dada criao das RESEXs Marinhas no litoral paraense. Destaque-se aqui o Nordeste paraense caracterizado pela produo pesqueira, em particular artesanal, onde incidem oito das nove RESEXs Marinhas do estado do Par, exceo da RESEX de Soure localizada na mesorregio Maraj. Nesse sentido, por sua tradicionalidade e importncia social na Amaznia, a pesca artesanal configura-se como uma das principais atividades a serem preservadas em reas de implantao e desenvolvimento de projetos baseados nos princpios do desenvolvimento sustentvel, em particular as RESEXs Marinhas. A constituio dessas UCs no grupo de uso sustentvel busca, segundo os documentos em anlise, conciliar as atividades humanas em geral e a ao de proteo ambiental na busca da sustentabilidade. Pretende-se, portanto, conciliar o desenvolvimento econmico e a capacidade de suporte da natureza. A ideia central, portanto, conservar e no preservar. Essa diferenciao est assim traduzida no SNUC, de acordo com as UCs categorizadas em:

I-Unidade de Proteo Integral; II-Unidade de Uso Sustentvel; 1 O objetivo bsico de Proteo Integral preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceo dos casos previstos nesta Lei. 2 O objetivo bsico das Unidades de Uso Sustentvel compatibilizar a conservao da natureza com o uso sustentvel de parcela de seus recursos naturais. (Art. 7, incisos I, II e pargrafos 1 e 2, grifos nossos).

21

Entrevista concedida por Otvio Albuquerque, socilogo, tcnico do IBAMA, em fevereiro de 2011.

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Para efeito deste estudo, o conceito de conservao acima referido no pargrafo 2 evidencia que, no caso das unidades de uso sustentvel, em particular da categoria RESEX, a participao da populao local no pode ser apenas um elemento legal. Do ponto de vista da praticidade, imprescindvel que os segmentos sociais que desenvolvem suas atividades extrativistas queiram e participem da estruturao da UC e da elaborao do Plano de Utilizao e, posteriormente, do Plano de Manejo. Sob a pena de que, se isso no ocorrer, o contrato firmado entre o Estado e a populao local representada pela Associao de Usurios poder extinguir-se, dando fim a essa possibilidade de gesto ambiental proposta com vistas sustentabilidade socioeconmica. No intuito de dirimir as fragilidades que a ausncia participativa possa acarretar poltica de UCs de uso sustentvel, o discurso da participao configura-se como um preceito legal e como tal imprescindvel para sua execuo. Na inteno de localizar a presena desse preceito e seus desdobramentos, buscamos analisar documentos oficiais norteadores das aes institucionais a fim de configurar sua materialidade. Nessa inteno, analisamos o Roteiro Metodolgico para Elaborao do Plano de Manejo das Reservas Extrativistas e de Desenvolvimento Sustentvel Federais do Governo Federal (MMA/IBMA/ISAM, 2007), se encontra a esse preceito incorporado no texto traduzindo-se na indicao de metodologias a serem aplicadas como formas participativas dessas populaes estudos etnoecolgicos, caracterizao social e a utilizao de metodologias participativas, caracterizao institucional sob as perspectivas das comunidades, na expectativa de conciliar a conservao ambiental e a manuteno e reproduo das prticas socioeconmicas dessas populaes. Como define o SNUC em seu artigo 27, Inciso II, sobre a participao das populaes residentes ou do entorno para o caso dos planos de manejo das UCs de uso sustentvel:

Na elaborao, atualizao e implementao do Plano de Manejo das Reservas Extrativistas, das Reservas de Desenvolvimento Sustentvel, das reas de Proteo Ambiental e, quando couber, das Florestas Nacionais e das reas de Relevante Interesse Ecolgico, ser assegurada a ampla participao da populao residente. (grifo nosso).

A questo que segue como essas metodologias participativas so implementadas do ponto de vista prtico. Segundo Houtzager (In: AVRITZER, 2004), a participao distinguese em participao individual dos agentes diretos e na dos atores colet ivos da sociedade civil. Nos casos em estudo, representados respectivamente pelos agentes sociais enquanto indivduos envolvidos nesse processo e nas Associaes de Pescadores, Associaes de

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Moradores, Associaes de Usurios, Associaes de Mulheres, ONGs e Conselho deliberativo das RESEXs. A participao desses agentes, individuais ou coletivos22, no condicionada apenas por sua vontade de participar ou no, determina-se pela histria desses agentes, pelas relaes estabelecidas e pelas determinaes polticas das instituies envolvidas no mbito das quais essas relaes so determinadas. No sendo possvel, assim, discutir a participao ou no participao sem considerar fatores como as relaes assimtricas que se estabelecem como a dominao, a desigualdade e interesses distintos. Partimos do pressuposto de que as formas estabelecidas de participao por meio dessas metodologias condicionam a insero da populao local nos processos decisrios, o que contribui, em grande medida, com a dificuldade na elaborao desse instrumento de planejamento das atividades econmicas em bases sustentveis o Plano de Manejo. A Instruo Normativa (IN) n. 01/2007 do ICMBio, que trata da elaborao do Plano de Manejo, define-o como o documento principal de gesto da unidade e ressalta que deve ser construdo junto com a populao tradicional. Cabe observar que a IN referida, alm de recomendar a participao local, indica caminhos a serem seguidos, conceituando populaes tradicionais, assim definidas como:

Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais; que possuem formas prprias de organizao social, que ocupam e usam territrios e recursos naturais como condio para sua reproduo cultural, social, religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes e prticas gerados e transmitidos pela tradio, conforme definido no Decreto n. 6.040 de 2007 como Povos e Comunidades Tradicionais.

Observa-se que a referida definio considera as populaes locais a partir de suas particularidades culturais, sociais, religiosas, ancestrais e econmicas, propondo que os planos de manejo sejam instrumentos concebidos a partir da multiplicidade de aspectos que

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Ao tomarmos o conceito agentes sociais, estamos adotando a leitura feita por Gohn (2008) ao analisar a definio de sujeito coletivo em Touraine, enquanto uma categoria fundamental que constitui e posiciona indivduos na histria dos processos sociais, culturais e polticos de uma sociedade. Para ns, importa pensar a partir da ideia de agentes individuais enquanto pessoas fsicas e agentes coletivos enquanto organizaes representativas da coletividade, participantes do processo de implementao da poltica de Unidades de Conservao no sentido de que o conceito confere protagonismo e ativismo aos indivduos e grupos sociais, transforma-os de atores sociais, polticos e culturais em agentes de seu tempo, de sua histria, de sua identidade (p. 112, grifo nosso). Ainda justificando a escolha do conceito de agentes sociais, conforme Bourdieu, que lhes atribui uma competncia central o sentido prtico a partir do conceito de habitus adotamos essa definio porque a sustentao de nossa anlise se d sobre a ao, o comportamento social, a participao dos agentes no caso especfico em estudo.

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constituem aqueles grupos em suas particulares condies histricas quando a essas particularidades se alia a tradio. Ainda em relao IN n. 01 do ICMBio, em seu artigo 4, ao referir-se ao processo de elaborao do PM, indica no pargrafo 2 o que considera uma metodologia participativa a constituio de Grupo de Trabalho (GT) constitudo por membros do Conselho Deliberativo23 ou indicado por estes. Constituindo-se a uma forma participativa por meio da representao da coletividade por um agente de representao indireta. No caso de inoperncia do Conselho, o GT dever constituir-se de membros do ICMBio e de membros da populao tradicional. O que nos sugere pensar nas formas possveis de escolha desses membros representantes da coletividade. Na IN n. 03/2007, destacam-se duas consideraes para o estabelecimento das diretrizes de criao das RESEXs no que se refere participao e importncia das populaes locais, onde se pode ler:

Considerando a Conveno sobre a Diversidade Biolgica, que ratifica a pertinncia da plena e eficaz participao de comunidades locais e setores interessados na implantao e gesto de Unidades de Conservao; Considerando o Decreto n. 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Poltica Nacional de Desenvolvimento Sustentvel de Povos e Comunidades Tradicionais. (grifos nossos).

Sustentando-se nessas consideraes, a IN n. 03 estabelece diretrizes que sugerem do ponto de vista da elaborao legal a integridade da participao dessas populaes. Considerando a sociodiversidade, o reconhecimento dos territrios como espaos de reproduo sociocultural, a necessidade de meios adequados de participao dessas populaes nos processos decisrios. Considerando ainda a necessidade do protagonismo desses grupos sociais locais, alm da incluso de melhores condies de vida e cidadania, como o acesso a servios bsicos, respeitando-lhes as especificidades, alm do papel formal como solicitante pela criao da Unidade, de acordo com o artigo 4, onde se l: A solicitao para a criao de RESEX ou RDS deve ser encaminhada formalmente ao Instituto Chico Mendes por populao tradicional ou sua representao (grifo nosso). Ao analisar a IN n. 02/2007, que trata de outra modalidade de participao local representada na constituio do conselho deliberativo, observa-se quanto aos segmentos sociais locais que podem ser representados por entidades ou outras formas organizativas

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Consultar sua composio no item sobre a estrutura organizacional da RESEX Marinha neste estudo.

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legalmente constitudas, bem como por pessoas fsicas legitimamente escolhidas dentre seus pares (artigo 8, IN 2/2007 ICMBio). Pode-se observar, desse modo, que a materialidade do princpio jurdico da participao apresenta-se a partir de duas alternativas proporcionadas nesses documentos a participao dos agentes individuais enquanto pessoas fsicas por meio da presena direta, sendo o instrumento participativo referido a consulta e reunies pblicas (IN 03/2007) e, por meio de espaos institudos como mecanismos de representao da coletividade, como as Associaes, mediante instrumentos participativos como os GTs e Conselhos Deliberativos, que de outro modo atuam na limitao da participao efetiva e direta da populao. Cabe, contudo, perguntar onde se encontra a interseo entre essa materialidade do princpio participativo enquanto preceito legal e a efetiva conduo das aes? As respostas a essa questo s sero possveis, e ainda assim em certa medida, quando observados os aspectos da racionalidade tecnocrtica-funcional e do ethos institucional no fazer tcnico da poltica por meio das tenses, ajustes e sobreposies que se estabelecem nas inter-relaes com os agentes locais, cujos sentidos sustentam-se sob outras bases. Aspectos que sero apresentados nos captulos subsequentes.

2.3 A INSTITUCIONALIDADE DAS UNIDADES DE CONSERVAO

fato que a gerao de problemas ambientais de diversos portes desestabiliza a organizao socioambiental de grupos como caranguejeiros, marisqueiros, pescadores, castanheiros, seringueiros, dentre outros. Essas populaes precisam ser pensadas dentro do contexto da gesto ambiental por meio da categoria de Unidade de Conservao de uso sustentvel. Devemos salientar tambm a importncia dos ecossistemas a serem protegidos, posta a conservao da biodiversidade amaznica, dada suas condies favorveis reproduo de diversas espcies. E que, portanto, fazem-se necessrias aes na esfera pblica que busquem a minimizao dos problemas que se apresentam no cerne dessas questes e que, contudo, no esto restritas s relaes que as populaes locais estabelecem no uso dos recursos naturais. Antes, essas populaes tm que ser pensadas como exemplo de comportamento no que se refere ao conhecimento, respeitabilidade e formas de manejo mais adequados dos recursos naturais.

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A institucionalizao na esfera pblica de modelos abrangentes de UCs de uso sustentvel orienta para que as diversidades culturais e sociais locais sejam penalizadas, por meio da imposio de uma srie de regras limitadoras e uniformizadoras do ser e fazer local. Isso a bem da conservao da natureza concebida a partir de outras perspectivas e em nome da minimizao da degradao ambiental que, em geral, tem suas vastas propores originadas fora das fronteiras dessas unidades, conforme se refere Lima:

A organizao social que se configure, mais ou menos igualitria, no entanto estar inserida em uma ordem social diversa, com a qual a populao local possui laos de dependncia e que oferece ao meio urbano, e no ao rural, seus maiores benefcios. necessrio, portanto, pensar tambm na fronteira social deste modelo de preservao da biodiversidade. (LIMA, 1997, p. 289).

No mbito dessas UCs, as populaes que vivem do uso dos recursos naturais so apenas um aspecto mnimo e no podem ser responsabilizadas em nome de todo o discurso da conservao ambiental. O mote das UCs tem invertido a lgica da poltica pblica ambiental no Brasil. As reas de conservao no podem ser compreendidas como a tbua da salvao de recantos paradisacos, verdadeiros parasos verdes, e as populaes a inseridas as grandes salvadoras ou no da natureza. Devemos nos perguntar que outras medidas, fora do mbito das UCs, tm sido garantidoras da conservao ambiental? Recentemente o Par tem se colocado na cena do debate ambiental em nome da construo da hidroeltrica de Belo Monte, alvo de descontentamento dos movimentos sociais e ambientais em oposio aguerrida defesa do Governo Federal. Para Allegretti (1994), a constituio de UCs de uso sustentvel resulta de um pacto entre o Estado e as comunidades em torno da gesto dos territrios e esse pacto requer regras mtuas de convivncia e de uso dos recursos e ambos devem cri-las em conjunto. Em relao especfica s RESEXs, essas so significativas para a biodiversidade e para a garantia da vida das populaes locais e das geraes futuras que vivem nas regies costeiras, estuarinas e ribeirinhas e que ali desenvolvem suas atividades produtivas e, a quem, as RESEXs legalmente devem atender como instrumento de manuteno e reproduo das prticas socioeconmicas de forma sustentvel em relao capacidade de suporte dos recursos naturais renovveis. A conservao do ambiente marinho e da atividade pesqueira artesanal no contexto das RESEXs constitui a atribuio legal tomada a cabo institucionalmente, tornando-se um parmetro universal a ser adotado independente da diversidade socioeconmica e cultural instituda pelas tradies locais. As especificidades de cada contexto se diluem e, dessa forma,

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contextos distintos so alocados na classificao de RESEX Marinha, submetidas nova ordem que se estabelece. Esse processo legal de proteo socioambiental traz no bojo da racionalizao instrumental a negao das subjetividades histricas para afirmar alternativas objetivantes e desestruturadoras dos sentidos e perspectivas locais na ausncia de mecanismos de ao institucional capaz ou interessada na respeitabilidade s particularidades, conforme Allegretti afirma ao analisar o roteiro metodolgico para elaborao dos planos de manejo:

O documento produzido pelo DISAM/IBAMA bastante abrangente e completo no que se refere a contemplar todas as reas de conhecimento requeridas para se alcanar um diagnstico exaustivo das Unidades de Conservao. A nica e principal ressalva a se fazer que nesse roteiro as comunidades locais so acessrias, ou seja, a existncia e a funo que desempenham nessa modalidade de UC em muito pouco influenciou os objetivos do PM (Plano de Manejo) ou a metodologia escolhida para realizlo. (ALLEGRETTI, 2006).

A fim de explicitar essa estrutura organizacional das RESEXs Marinhas, propomos pensar o processo de criao e implementao dessas unidades em trs etapas subsequentes, conforme a ordem necessria e burocrtica para a efetiva implementao da poltica pblica: 1 A etapa de estudos preliminares e decretao das RESEXs Marinhas; 2 A elaborao e implementao do Plano de Utilizao; 3 Os estudos e elaborao do PM. A partir dessas etapas, possvel visualizar a objetivao dos contextos que so subsumidos formatao unvoca e modelar da estrutura que se sobrepe. Na etapa de criao, existe uma srie de aes necessrias para que a RESEX seja decretada. Os estudos so uma exigncia legal, desses laudos e diagnsticos resultam aes como delimitao geogrfica da rea, reconhecimento das espcies, dos estoques, da diversidade dos ecossistemas e tambm dos aspectos sociais, quem so os usurios, de que localidades, quais as atividades produtivas, que tcnicas so utilizadas, dados da renda, aspectos culturais, dentre outros conforme os laudos biolgicos e socioeconmicos das RESEXs de Soure e Ara-Peroba, para criao das UCs. Conforme pode ser observado nos prprios laudos, os dados socioculturais restringemse a dados numricos, como nmero de moradores, classificao numrica por ocupao (nmero de pescadores, nmero de caranguejeiros etc.) e aos aspectos culturais mais amplos; podemos dizer at que se referem queles aspectos mais superficiais, no buscando as procedncias das relaes particularizadas homem/natureza, ao que efetivamente se destinam os laudos, visto que antecedem e subsidiam a criao de reas ambientalmente protegidas.

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No queremos dizer que esses dados sejam insignificantes, contudo, esses aspectos tomados per se no falam do lugar da identidade e da relao histrica e por isso tradicional dessas populaes com os ecossistemas locais, e aqui no se trata de uma percepo apenas sociolgica, mas antropolgica, histrica geogrfica e econmica.

Outro exemplo importante o que define a sustentabilidade ambiental e socioeconmica da Unidade e que est includo nos captulos dos Cenrios e dos Programas. Ambos tm como referncia as demandas das comunidades. Mas no existe um espao destinado ao levantamento e identificao das demandas e dos cenrios desenhados pelas prprias comunidades. Ou seja, o diagnstico no necessariamente levar a comunidade a discutir onde est e aonde quer chegar se no houver uma metodologia especificamente definida para este fim. (ALLEGRETTI, 2006).

O Plano de Utilizao (PU) uma exigncia a ser anexada ao processo de solicitao de criao da RESEX, ou seja, um documento provisrio que delineia os traos gerais das atividades permitidas e daquelas proibidas no mbito da UC e que deve compor o processo de pedido de criao da unidade. Tem como finalidade servir de guia para que os extrat ivistas realizem suas atividades dentro de critrios de sustentabilidade econmica, ecolgica e social conforme anuncia o Plano de Utilizao da RESEX Ara-Peroba/CNPT, elaborado em 2005 at que o PM seja elaborado. Essa etapa antecede o PM como forma de criar mecanismos de adaptao para a nova estrutura (UC) para o lugar. E a se torna imprescindvel sensibilidade e abertura tica para compreender o outro a partir do lugar que ele ocupa, posta a necessidade de percepo dos mnimos meandros do ser naquele lugar. Acompanhando os trabalhos da fase I de elaborao do PM, onde se d uma reviso do PU, pode-se observar que, em geral, as populaes locais desconhecem o contedo desses planos de utilizao, que embora discutidos e elaborados a partir de uma a duas reunies nas localidades, quando so levados aprovao do rgo gestor em Braslia, sofrem alteraes em virtude da legalidade e distanciam-se dos reais contextos locais. Na etapa de elaborao da fase I do PM segue-se a Instruo Normativa n. 01 de 2007 do ICMBio que estabelece as diretrizes para uma elaborao participativa. Pois, segundo seu artigo 2, pargrafo I:

Plano de Manejo Participativo de RESEX ou RDS: o documento que representa o principal instrumento de gesto da Unidade de Conservao, definindo sua estrutura fsica e de administrao, o zoneamento, as normas de uso da rea e de manejo dos recursos naturais e os programas de sustentabilidade ambiental e scio-econmica, construdo junto com a populao tradicional da Unidade. (grifo nosso).

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Essa etapa do PM constitui-se tambm do levantamento de estudos j elaborados pela via dos institutos de ensino e pesquisa, alm da execuo de novos estudos complementares que antecedem a elaborao propriamente dita do plano, enquanto documento escrito, ou seja, a definio das normas e de atividades a serem desenvolvidas e em que reas dentro do territrio decretado UC. Esses estudos so imprescindveis pelas possibilidades de oferecer ao corpo tcnico as bases de suas aes. O conhecimento da realidade local, tanto em seus aspectos biolgicos e naturais quanto socioculturais, imprescindvel para que se tenha um PM adequado realidade local e que se coadune com as perspectivas da sustentabilidade. A posterior elaborao do PM segue as aes determinadas no Plano de Trabalho elaborado pelo consultor24 responsvel e apresentado ao ICMBio para aprovao. Sua aprovao final exige resoluo do Conselho Deliberativo da reserva e sua harmonizao com o PU da unidade (Decreto n.o 4.340/2002). O que, em tese, manifesta a aprovao da populao local, pois no Conselho deliberativo das RESEXs possuem assento tambm representantes dos extrativistas da populao local principalmente por meio das associaes de moradores ou associaes das categorias de extrativistas como os pescadores e caranguejeiros. As aes que constituem as etapas acima referidas exigem legalmente um compartilhamento entre tcnicos, experts (colaboradores na elaborao dos laudos) e populaes locais. Para a efetivao dessas etapas, o SNUC exige metodologias participativas, deixando entrever a significncia estratgica e legitimadora do

compartilhamento das aes e a respeitabilidade aos saberes.

Uma metodologia verdadeiramente participativa requer um planejamento que antecipe o objetivo principal de um plano de manejo em reserva extrativista ou reserva de desenvolvimento sustentvel, que o pleno conhecimento da comunidade a respeito das riquezas e potencialidade de sua rea e das oportunidades e limites de uso desse patrimnio. (ALLEGRETTI, 2006).

As Reservas Extrativistas Marinhas so espaos territoriais de domnio da Unio porque terras de marinha 25 cuja explorao regulada por um contrato de concesso real de
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O consultor um tcnico no ocupante de cargo pblico efetivo, contratado em condies especficas pelo rgo gestor, e dever ser o responsvel ltimo pela ao para qual foi contratado, junto ao rgo. 25 A regulamentao das terras de marinha data de 1710 com a Ordem Rgia, que pretendia dar conta das riquezas que poderiam ser exploradas na costa martima, bem como cuidar da prpria defesa dessa rea. A primeira definio consta de Aviso de 1810. Atualmente as terras de marinha so consideradas patrimnio da Unio, de acordo com a Constituio Federal (1988) em seu artigo 20, pargrafo VII. Contudo, seu conceito

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uso entre o Estado e as populaes extrativistas, representadas pelas Associaes de Usurios da Reserva (chamada associao me, por ser a que congrega todas as categorias de usurios extrativistas associados). Esse contrato inclui tambm o plano de utilizao aprovado pelo rgo gestor (hoje ICMBio), que engloba posteriores projetos apresentados pelas diversas associaes organizadas, para aprovao junto a este rgo (Decreto n. o 98.897/90). Para compreender o funcionamento da RESEX, importa tambm compreender como se pensa em agregar suas adjacncias, em particular as RESEXs Marinhas, j que nessas no h grande quantitativo de moradores no seu interior e sim em seu entorno, em virtude de ser constituda em grande porcentagem de reas de manguezais. A zona de amortecimento, de acordo com o artigo 2, pargrafo XVIII, o entorno da Unidade de Conservao, protegido com vistas a minimizar os impactos negativos sobre a rea; os corredores ecolgicos so as pores de ecossistemas naturais ou seminaturais que interligam as Unidades de Conservao e, desse modo, permitem a disperso de espcies, bem como a restaurao de reas degradadas. A ideia a contida persiste na crena de favorecimento, contribuindo com a manuteno das populaes locais que vivem desses recursos e, portanto, sendo favorecidas com a extenso das reas conservadas. O SNUC define que o PM das RESEXs dever abranger a rea da UC, sua zona de amortecimento e os corredores ecolgicos a fim de promover a integrao econmica e social das comunidades vizinhas. Contudo, h tambm restries a atividades humanas tradicionais por meio de impeditivos legais da realizao de parte de suas atividades produtivas e, principalmente, esses impeditivos se impem na ausncia da relao dialgica entre uma racionalidade especializada e a racionalidade prtica dessas populaes. Em grande medida, esses impeditivos no so considerados por essas populaes ocasionando resistncia e sendo mesmo burlados (ROSA, 2007). Casos exemplares so possveis de se observar nas duas RESEXs em estudo. A exemplo, em ambas h forte resistncia ao perodo institudo pelo IBAMA como do defeso do caranguejo-u26 (Ucides cordatus). No pela falta de sensibilidade local reproduo animal, mas total falta de acomodao dos perodos decretados como defeso em Portaria do IBAMA em conjunto com o ICMBio aos contextos reais de andada do caranguejo -u.

consta do Decreto-Lei 9.760/46 onde se l: So terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posio da linha do preamar- mdio de 1831. O preamarmdio o nvel mdio das preamares calculado depois de longa srie de observaes. 26 Caranguejo-u refere-se espcie comestvel mais comum de caranguejo na regio.

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Andada27 como se referem os caranguejeiros no Par ao perodo em que o caranguejo-u se desloca para o acasalamento e reproduo da espcie. Em reas mais urbanizadas, eles se tornam presas fceis em virtude de atravessarem as vias (ruas, estradas) em busca da cpula. Segundo relatos dos moradores dessas localidades, eles ficam bestas referindo -se facilidade com que podem ser capturados. Embora tambm manifestem respeito pelo perodo real - de acordo com seus saberes - de reproduo dos animais. Em geral, afirmam que capturam o caranguejo nessa poca para comer, tendo respeito pela condurua, a fmea. Contudo, tambm reconhecem que, nos perodos decretados como defeso e que no h andada, h captura. Conhecedores do funcionamento da natureza, da forma como a mar e a lua influenciam, e principalmente sabedores do perodo de andada, os caranguejeiros questionam, principalmente, o longo perodo a que so obrigados a se submeter sem trabalhar. Embora manifestem seu descontentamento diante da imposio dos perodos, informam que, nos perodos proibitivos em que o caranguejo no anda, vo ao manguezal trabalhar. Havendo produo, h venda no prprio municpio e mesmo para comerciantes de fora. No ano de 2009, foi um total de 06 perodos proibitivos conforme pode ser observado na Imagem 1. Esses perodos so institudos dada as probabilidades com base nas maiores amplitudes das mars e nas ocorrncias das luas nova e cheia emitidas pelo saber cientficotcnico envolto em suas objetivaes sob o aporte legal universalizante j que a portaria sustenta-se em Instruo Normativa Interministerial (da Pesca e Meio Ambiente) que se destina para os estados onde h ocorrncia da espcie (Par, Amap, Alagoas, Bahia, Cear, Maranho, Paraba, Piau, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe e Esprito Santo). Pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria EMBRAPA/PI, em folder divulgado no ano de 2005, indicam que de forma geral, o defeso ocorre nos meses de dezembro, fevereiro e maro. Sendo comprovado por tcnicos do Ncleo de Pesca da Superintendncia do IBAMA na Paraba que, por vezes, o caranguejo, em virtude das condies fsicas e qumicas do meio ambiente, no anda nos perodos determinados em portaria. Essas observaes conferem sentido s ressalvas feitas pelos caranguejeiros.

27

Na regio da RESEX Caet-Taperau no municpio de Bragana, antes mesmo da criao da Unidade, j existiam campanhas de moradores locais e do campus da UFPA, conscientizando acerca desse perodo da andada e da travessia de caranguejos pela via. Inclusive, conhecida na regio a colocao de placas nas margens da estrada que d acesso praia de Ajuruteua, pois esta ao ser construda recortou o manguezal em duas partes. Sob a estrada, o manguezal soterrado; e as suas margens, as placas indicativas de Cuidado, caranguejo na pista!.

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Imagem 1 Cartaz do defeso do caranguejo

Fonte: IBAMA/ ICMBio (pesquisa de campo em janeiro de 2009)

Quando acompanhamos a equipe do IBAMA e do ICMBio no perodo imediatamente anterior ao 1 perodo do defeso 12 a 17 de janeiro de 2009 nas aes de conscientizao do perodo do defeso do caranguejo, em visitas s vilas de usurios das RESEXs, pudemos observar as tenses existentes entre o perodo estipulado pela Portaria e a convico dos caranguejeiros de que, de acordo com seus saberes, o caranguejo entra no perodo de andada por apenas um perodo, e eles sabiam indicar com requintes de detalhes precisamente qual era. De acordo com Diegues (1993), um aspecto relevante a ser considerado em relao s culturas tradicionais a existncia de modos de manejo dos recursos naturais imbudos de respeito aos ciclos naturais e, em certa medida, por uma explorao dentro da capacidade de suporte das espcies. O autor ressalta, ainda, que esses modos tradicionais de manejo no se

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caracterizam apenas como formas de explorao econmica, podendo da tambm ser apreendido uma diversidade de conhecimentos adquiridos pela tradio herdada das geraes anteriores. Contudo, h tambm, por outro lado, as presses que esses estoques sofrem diante da comercializao e da introduo de um modelo econmico que se impe a essas populaes. Em sua Anlise, Lima (In: CASTRO e PINTON, 1997) observa sobre as implicaes que a poltica de implantao desse tipo de UC acarreta em termos de organizao social e de trabalho para essas populaes. Para a autora, o acesso, em certa medida, igualitrio aos recursos naturais implica em outro aspecto tambm relevante de ser observado, ou seja, as relaes desse universo com o modelo diferenciado do ordenamento socioeconmico envolvente. Essas populaes relacionam-se com formas de organizao econmicas dominantes que configuram a coexistncia do tradicional e do moderno, por vezes em uma mesclagem ou adaptabildade entre ambas. segundo Stockinger (In: JACKSON, 2001), um reflexo das modificaes que ocorrem nas relaes tradicionais provocadas pelas transformaes geradas pelo atrelamento que os setores modernizantes impem e que impedem seu desenvolvimento autossustentado. Enquanto avanam as estruturas que j se reproduziam em bases mercantis, continua o desenvolvimento da economia de subsistncia, reestruturando o seu carter no sentido de uma maior dependncia, principalmente no que se refere apropriao de valor pelo capital comercial (p. 116). Retomando o debate acerca da objetivao por meio do enrijecimento institucional que circunda as subjetividades dessas populaes, no mbito do IBAMA, o CNPT28 assumia a responsabilidade, dentre outras, de supervisionar o desempenho das atividades sociais e de trabalho nas RESEXs, estando sob sua responsabilidade executar polticas de uso sustentvel dos recursos naturais, tendo as Reservas Extrativistas como referncia, e por princpio a gesto comunitria, por prioridade a ampliao da base territorial destinada s unidades de Reservas Extrativistas (IBAMA, 2002, p. 9). Sempre aliando a criao de UCs de acordo com o estabelecido s normas jurdicas, onde a questo social a mais problemtica no sentido de que efetivamente aquela que leva a necessidade de ao e contato direto dos tcnicos posto o preceito participativo.

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O Centro Integrado de Desenvolvimento Sustentado das Populaes Tradicionais responsvel pelas RESEXs passou recentemente por uma reestruturao e compe o Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio), criado a partir do desmembramento do IBAMA. Tornando-se o responsvel por todas as questes referentes s Unidades de Conservao na esfera federal.

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Cabe ao rgo gestor a administrao das RESEXs, presidindo o Conselho Deliberativo por meio de um servidor do rgo, denominado chefe da reserva de acordo com a IN n. 2/2007. importante ressaltar que durante o ltimo Congresso de Populaes Extrativas, no perodo de 06 a 09 de junho de 2009, em Belm do Par, uma das reivindicaes foi o fim dessa denominao e principalmente do papel estabelecido ao chefe da reserva. O que manifesta o interesse em levar o debate para a autogesto das Unidades de Conservao por parte do CNS, e a retirada do domnio poltico da esfera do poder pblico federal. O Conselho Deliberativo da RESEX a instncia legal de deliberao sobre a gesto da reserva e gerencia o plano de utilizao ou de manejo, se houver, da UC. Est constitudo pelo rgo responsvel pela sua administrao hoje o ICMBio, por representantes de rgos pblicos (rgos ambientais nos trs nveis da federao, rgos de pesquisa cientfica, educao, defesa nacional, cultura, turismo, paisagem, arquitetura, arqueologia e povos indgenas e assentados agrcolas) e organizaes da sociedade civil (comunidades cientficas, ONGs organizaes no governamentais ambientalistas com comprovada participao local, a populao residente e do entorno, populaes extrativistas, trabalhadores e setor privado, quando for o caso, e representantes dos Comits de Bacia Hidrogrfica) (SNUC, art. 18 Inciso 2; DECRETO 4.340/02 captulo V, art. 17, incisos 1, 2 e 3). Ainda possui assento no Conselho representantes da Associao de Usurios, entidade que se constitui

obrigatoriamente mediante a criao da Unidade de Conservao. Para que as RESEXs Marinhas sejam decretadas, as populaes locais devem se adequar a uma estrutura organizacional estabelecida por normatizaes legais. Impe-se assim um modelo de organizao que comina em um enrijecimento das relaes no processo de criao e concretizao das UCs. A exemplo, e no caso particular das RESEXs Marinhas no estado do Par, o pedido de criao e implantao nem sempre um apelo das populaes locais organizadas a partir de suas prprias percepes e sentidos, mas, por vezes, induzidas pela introduo por meio da via institucional de questes ambientais que so associadas a questes relativas s atividades produtivas e imprescindveis para a prpria existncia grupal. Em grande medida, a criao da RESEX Marinha aceita por eles como a nica alternativa que se apresenta na perspectiva da resoluo dos seus problemas, dentre os quais constam os referentes ao uso dos recursos naturais. As questes ambientais colocadas so representadas de forma diferenciada, atribuindo a elas um valor distinto do estabelecido pela racionalidade tecnocrtica funcional, em geral se apresentam na racionalidade dessas

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populaes como impedimentos para o exerccio do trabalho e, portanto, da subsistncia e por isso, significativas. Enquanto institucionalmente o cerne da questo prioritariamente relativo conservao direta dos recursos naturais em explorao e em risco de degradao. Conforme foi observado em Soure. De outro modo, a criao das reservas tem sido fortemente influenciada como produto de um longo processo de interaes entre essas racionalidades, de tal forma que no se pode distinguir claramente e demarcadamente uma sobreposio no processo restrito da criao. Posta a recorrente presena do rgo ambiental que se manteve atuando junto a essas populaes no que se refere s questes institucionais. Nesse processo de interaes, as populaes locais passaram a ressignificar questes ambientais e incorpor-las como significativas para seus contextos, ou seja, para a organizao da vida e do trabalho. possvel averiguar nos casos em que, antecipando a criao de Reservas Marinhas, o IBAMA atuou em vrias regies discutindo e incentivando os acordos de pesca 29, como em Augusto Corra, em que associava a conservao dos recursos naturais e proibia a pesca predatria das espcies como um elemento imprescindvel para a qualificao da atividade da pesca artesanal junto a essas populaes. Em grande medida, essas populaes, a partir das perspectivas criadas pelas promessas de mudana que so introduzidas pelo discurso em torno da criao dessas unidades, so levadas a constituir uma organizao garantidora da institucionalidade para alm do que elas convencionalmente se estruturam. assim que com o processo de criao da RESEX de Soure, por meio da interferncia direta da ASSUREMAS, com aporte financeiro do projeto Puxirum foram criadas 17 associaes: de mulheres, pescadores, artesos, moradores. A maioria dessas associaes hoje no possui uma ao ativa em termos organizativos das categorias, mas so indicadas como representativas, tanto que possuem assento no conselho deliberativo e so chamadas a representar as categorias em outras situaes, como nas reunies da fase I de elaborao do PM das RESEXs. As listas de frequncia dessas reunies so exemplares para esses casos, ao lado do nome dos presentes se observa a identificao da associao qual eles pertencem. Em geral, nas duas RESEXs em estudo, deparamo-nos com a constituio da organizao desses moradores em associaes, o que
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De acordo com a IN n. 29/2002 do IBAMA, entende-se por Acordo de Pesca, um conjunto de medidas especficas decorrentes de tratados consensuais entre os diversos usurios e o rgo gestor dos recursos pesqueiros em uma determinada rea definida geograficamente. No estado do Par, vrios so os acordos de pesca e ou de preservao ambiental ( incluindo nestes outras modalidades de extrativismo) que regularam as relaes de pescadores no uso dos recursos naturais em vrias vilas dos municpios em reas posteriormente indicadas para a criao de RESEX Marinha Curu, Maracan, Bragana, Ape-Salvador, Santarm Novo, Augusto Corra, dentre outros. (alguns esto a ttulo de exemplificao nos anexos desta tese)

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facilita do ponto de vista legal a representatividade participativa dessas populaes como legitimadoras do processo institucional que se apresenta. Observamos tambm que, a fim de garantir a institucionalidade da RESEX, outras estruturas tambm so valorizadas como legitimadoras, como a presena de organizaes no governamentais (ONGs). No caso da RESEX de Soure, a SOS Maraj, a Sociedade Alternativa e a Novos Curupiras so as mais atuantes, que em certa medida se envolveram nesse processo, conforme ser detalhado no captulo sexto, sobre a participao das populaes locais na gesto das RESEXs.

DE NOSSO LUGAR

A RESEXs MARINHAS

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em junho de 200930

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As imagens em questo mostram pescadores artesanais na sede do municpio de Soure e a placa da RESEX Marinha de Soure na praia do Pesqueiro, usadas aqui por ns para materializar o contraponto entre essas duas perspectivas.

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3 DE NOSSO LUGAR A RESEXs MARINHAS

Se um lugar pode se definir como identitrio, relacional e histrico, um espao que no pode se definir nem como identitrio, nem como relacional, nem como histrico definir um no-lugar [...]Acrescentemos que existe evidentemente o no-lugar como o lugar: ele nunca existe sob uma forma pura; lugares se recompem nele; relaes se reconstituem nele; as "astcias milenares" da "inveno do cotidiano" e das ,"artes de fazer" [...] podem abrir nele um caminho para si e a desenvolver suas estratgias. O lugar e o no-lugar so, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente palimpsestos em que se reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relao. (AUG, 1992, p. 74)

Abordamos neste captulo os contextos de vida e trabalho das populaes extrativistas a partir do conceito de lugar, por meio do qual se torna possvel evidenciar os sentidos identitrios e relacionais desses grupos, cuja coeso social sustenta-se em relaes de parentesco e amizade, sentidos morais, religiosos e laos comunitrios afetivos e ticos. Bem como, para alm das demarcaes materiais e imateriais culturais buscamos evidenciar os arranjos sociopolticos grupais que determinam o controle e o poder sobre seus territrios, possveis de ser compreendidos atravs do conceito de territorialidade social. Pretendemos, desse modo, apresentar meandros da organizao socioespacial desses grupos, que perpassam pelas noes de lugar e territrio como possibilidades analticas distintas e complementares.

O lugar permite focalizar o espao em torno das intenes, aes e experincias humanas desde as mais banais at aquelas eventuais ou extraordinrias e que sua essncia ser um centro onde so experimentados os eventos mais significativos de nossa existncia: o viver e o habitar, o uso e o consumo, o trabalho e o lazer etc.[...] Sob a noo de territrio, deve-se privilegiar a reflexo sobre o poder referenciado ao controle e gesto do espao. Nesse caso, tornou-se necessrio conceber o poder como sendo multidimensional, derivado de mltiplas fontes, inerente a todos os atores e presente em todos os nveis espaciais. [...] o territrio passou a ser entendido como espao mobilizado como elemento decisivo s relaes de poder e territorialidade como estratgia(s) utilizada(s) para delimitar e afirmar o controle sobre uma rea geogrfica, ou seja, para estabelecer, manter e reforar esse poder. (CABRAL, 2007, p. 148, 151-152, grifo nosso).

Destacamos tambm os aspectos da institucionalizao de uma nova territorialidade poltica que se associa a uma reestruturao do lugar, conferindo-lhe um esvaziamento

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operado por meio da poltica ambiental ou uma degradao de sentidos e valores compartilhados pelos grupos locais.

Os espaos ocupados podem ser os mesmos, mas certo que todas as mudanas nele promovidas so acompanhadas por uma ressignificao dos sentidos que lhe so atribudos. So os mesmos espaos, mas diferentes lugares. Podemos dizer preliminarmente que um espao pode conter diferentes lugares. Para alm de um mero espao geogrfico, o que um lugar representa depende dos significados que lhe so atribudos. (MOCELLIM, 2009, p. 02).

Objetivamos neste captulo demonstrar o contraponto entre uma forma de organizao social que se manifesta a partir dos sentidos dados pelos grupos que ali vivem h muitas geraes e que demarcam suas relaes com a natureza por meio de suas experincias materiais e simblicas. Buscamos demarcar esse contexto fundamentado na noo socioantropolgica de lugar. Apresentaremos tambm a delimitao e a constituio das RESEXs por meio dos elementos significativos geossocioambientais para a instituio dessas unidades que estabelecem para alm de uma nova roupagem a transformao desses lugares em territrios polticos, ressignificados em seus sentidos sociais locais e, portanto, passiveis de serem compreendidos por aproximao a partir da noo de espao vazio (GIDDENS, 1991) de slugar (RELPH, 1976) e no -lugares (AUG, 1994), posta a uniformizao e esvaziamento poltico a que esto submetidos. O que estamos propondo pontuar a demarcao de uma nova configurao polticoambiental constituda em reas de reservas pela poltica do IBAMA e ICMBio. A reconfigurao desses lugares de extrativistas em ambientes protegidos sugere, a partir da poltica de UCs, particularmente das RESEXs Marinhas, que as relaes homem-natureza devem ser regidas a partir do norte cientfico e legal e que esse modelo cabe indistintamente a diversas localidades, a despeito das particularidades sociais locais. De acordo com Giddens (1991), a modernidade estabelece uma separao entre espao e lugar, na qual se institui o espao vazio. O que se opera na modernidade que uma diversidade de atividades passa a ser independente das localidades, ou seja, des -localizadas ou des-lugarizadas. Para o autor, o lugar enquanto ambiente fsico, locus das atividades sociais, desse modo uma construo sociocultural local. Segundo Giddens, importa distinguir lugar de espao:

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O desenvolvimento de espao vazio pode ser compreendido em termos da separao entre espao e lugar. [...] Lugar melhor conceitualizado por meio da idia de localidade, que se refere ao cenrio fsico da atividade social como situado geograficamente. Nas sociedades pr-modernas, espao e tempo coincidem amplamente, na medida em que as dimenses espaciais da vida social so, para a maioria da populao, e para quase todos os efeitos, dominadas pela presena por atividades localizadas. O advento da modernidade arranca crescentemente o espao do tempo fomentando relaes entre outros ausentes, localmente distantes de qualquer situao dada ou interao face a face. (1991, p. 26-27).

A esse espao vazio referido em Giddens (1991) remetemos o conceito de no lugares de Aug (1994). Enquanto aquele se refere a relaes que independem de um lugar. Os no-lugares referem-se a relaes que mesmo localizadas em um espao geogrfico no tm uma identidade material e simblica delimitada por essa localidade. Em Aug (1994), essa noo refere-se a espaos de passagem, de movimento temporrio, de no residncia, por onde passam viajantes ou passeantes com diversos destinos, so espaos igua is, com a mesma caracterizao, independente da localizao:

Por oposio noo sociolgica de lugar, associada por Mauss e por toda uma tradio etnolgica quela de cultura localizada no tempo e no espao. Os no-lugares so tanto as instalaes necessrias circulao acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodovirios, aeroportos) quanto os prprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trnsito prolongado onde so estacionados os refugiados do planeta. (AUG, 1994, p. 36-37).

desse modo que, ao associarmos a ideia de espao vazio em Giddens (1991) como o espao de relaes esvaziadas de contedo socioespacial identitrio noo de deslugaridade31 (RELPH, 1976), pretendemos chamar a ateno para o efetivo esvaziamento que a poltica imprime ao sobrepor valores geoambientais s relaes sociais identitrias e ao sentimento de pertencimento, acolhidos pela noo de lugar. E de outro modo, ao aproximarmo-nos da noo de no-lugar, queremos demonstrar as RESEXs como espaos geogrficos onde se reinstitui o controle e a gesto poltico/institucional (agora pela esfera ambiental) que no se sustenta sobre essas relaes identitrias. Nesse caso, procuramos estabelecer uma analogia com a noo de no-lugar, contudo, importa esclarecer que em Aug (1994) refere-se a espaos construdos para determinados

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Relph, na obra Place and Placesesness (1976), em uma traduo livre Lugar e Des-lugaridade ou Deslugar, ao deter-se na anlise do conceito de lugar tambm aponta para o conceito de des-lugar atitude, segundo o autor, crescentemente dominante na modernidade que homogeneza paisagens minimizando o nmero de lugares significantes, suplantando desse modo os sentidos autnticos dos lugares.

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fins para a posteriori definir o perfil de seus usurios. Enquanto no que se refere s RESEXs, so espaos a priori habitados e apropriados por grupos sociais com uma identidade naquele local, aos quais a poltica impe uma estrutura diversa, reconstruindo politicamente, portanto, aquele espao e estabelecendo novos fins ou um remanejamento dos fins ambientais, dando a esses grupos sociais uma nova identidade de usurios ou beneficirios, subordinada a uma racionalidade tcnica-instrumental. O que significa afirmar a existncia de uma tenso entre lugar e no-lugar.

Na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os espaos, os lugares e os no-lugares misturam-se, interpenetram-se. A possibilidade do nolugar nunca est ausente de qualquer lugar que seja. A volta ao lugar o recurso de quem freqenta os no-lugares [...] Lugares e no-lugares se opem (ou se atraem), como as palavras e as noes que permitem descrevlas. Porm, as palavras em moda - as que no tinham direito existncia h uns 30 anos - so as do no-lugar. (AUG, 1994, p. 97). No-lugares so espaos alheios a significados definidos localmente. Seus significados so definidos previamente a sua habitao. Nos no-lugares todos so iguais porque a eles negada a diferena, ou de outro modo, a diferena irrelevante, porque diferentes ou no so tratados do mesmo modo. (MOCELLIM, 2009, p. 88).

O conceito de lugar sob as bases analticas da fenomenologia aborda o espao a partir de como ele vivenciado pelos grupos, suas experincias e vivncias localizadas em um espao e tempo determinados. A noo de lugar refere-se aos sentimentos, afetividade, aos laos estabelecidos entre os indivduos em um espao compartilhado. Desse modo, as singularidades dos grupos sociais nas suas interaes com a natureza so parte da identidade local (FERREIRA, 2000). Realizaremos neste captulo uma breve descrio do lugar em seus aspectos da organizao da vida e do trabalho daquelas populaes que vivem nas adjacncias das RESEXs de Soure e Ara-Peroba e nelas atuam por meio do extrativismo. Poderemos, desse modo, entender melhor o cenrio onde se institui a identidade grupal, que leva ao reconhecimento dos bairros de Soure, por exemplo, a partir da atividade produtiva de seus moradores e que permite nessa interao a formao da identidade do lugar dos pescadores, lugar dos caranguejeiros, dos camaroeiros, dos coletores de aa, dentre outros, em uma correlao inseparvel entre a organizao familiar, de moradia e de trabalho. Conformandose ainda assim, de acordo com Little (2002), uma territorialidade social, ou seja, uma ao, uma estratgia de poder e controle de grupos sobre pessoas, relaes recursos e fenmenos delimitados em uma rea geogrfica conforme poder ser observado na organizao do

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trabalho nos espaos geogrficos dentro das RESEXs incluindo-se a as reas de extrativismo vegetal bem como rios, igaraps e manguezais usados na atividade da pesca. De acordo com a definio do autor: a territorialidade constitui-se como o esforo coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela especfica de seu ambiente biofsico, convertendo-a assim em seu territrio (LITTLE, 2002, p. 03). Observaremos assim, os aspectos que demarcam uma nova territorialidade instituda a partir das aes e estratgias de controle que emanam da poltica pblica de Unidades de Conservao as RESEXs sob uma perspectiva geoambiental. Uma territorialidade alheia s singularidades sociais locais e que se impe por fora da determinao poltica, homogeneizando situaes sociais diversas a partir da delimitao fsica das Reservas Extrativistas Marinhas, que so demarcadas em reas costeiras e estuarinas e de manguezais, desconsiderando a os modos como as populaes locais organizam-se em seus meandros mais singulares, verdadeiros no-lugares institudos pela esfera pblica. Se por um lado as RESEXs foram institudas na inteno de uma cogesto dos territrios sociais, reconhecendo-os por meio do uso consuetudinrio, por outro, no marco da legalidade esses espaos territoriais pertencem ao Estado. Efetivamente, demandado uma dependncia dessas populaes em relao s resolues institucionais que se impem mediante a razo legalista e instrumental do Estado, sedimentada na noo de soberania exclusiva sobre as reas delimitadas, visto que so reas do litoral brasileiro e reas de proteo permanente do Estado com vistas proteo das fronteiras nacionais (costa) e de conservao ambiental (esturios e manguezais) Nossa proposta aqui contextualizar o espao biofsico sobre o qual se d o uso social material e simblico que se estabelece por meio da ao dos variados grupos de extrativistas em suas particularidades. Situando-o conceitualmente atravs da noo de lugar e de territorialidade social, no contraponto de no-lugar e territorialidade poltica para contextualizar a demarcao desses novos territrios geoambientais as RESEXs- Marinhas. Emerge desse debate que, ao serem redesenhados a partir de princpios norteadores da poltica de UCs, em grande medida, esses novos territrios condicionam a ressignificao ou o esvaziamento das relaes sociais pela perda de sentidos e valores das populaes substitudos por uma delimitao e gesto estratgica geoambiental, conformando uma territorialidade poltica que se impe por fora da legalidade sobre a identidade do lugar.
[...] a territorialidade tornou-se, na modernidade, instrumento polticoestratgico para alocar/deslocar significado ao espao, de tornar impessoais as relaes sociais e de obscurecer as fontes de poder. Entender o seu

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funcionamento significa aprender a interferir nos seus mecanismos de atuao, para us-la como contraponto ao poder [...] a essa altura que a territorialidade um meio de ao institucional no mbito de um territrio (espao scio-ecolgico delimitado), isto , de uma espacialidade econmico-poltica. Tanto serve, portanto, para manter a integridade do corpo territorial quanto para extrair recursos do estoque ecolgico-social desse contexto. (SANTOS, C., 2009, p. 06).

Nossa pretenso ao adotar o conceito de territorialidade exatamente correlacionar o sentimento de posse e controle dos espaos de moradia e trabalho (territorialidade social) ao sentimento de pertencimento (lugar), contrapondo relaes de poder local e identitrias, o poder-em-comum mencionado por Ricoeur (1991, p. 228) em contraponto dominao das instituies polticas (WEBER, 1991), ao poder institucional (territorialidade polticoinstitucional) e a des-lugaridade infligidos a esses ambientes sociais. Esses novos territrios enquanto demarcao poltico-geogrfica de reas ambientais protegidas tomam como marco de delimitao geogrfica em primeira instncia os ambientes naturais a serem conservados, sob os quais ficam subsumidas as questes da sociodiversidade e de suas prticas de manejo.

3.1 O LUGAR DAS POPULAES EXTRATIVISTAS

3.1.1 Soure
O lugar comum ao etnlogo e queles de quem ele fala um lugar [...] que nele vivem, nele trabalham, que o defendem, que marcam nele seus pontos fortes, que guardam suas fronteiras, mas nele detectam, tambm, os vestgios dos poderes ctonianos ou celestes, dos ancestrais ou dos espritos que o povoam e que animam sua geografia ntima, como se o pedacinho de humanidade que lhes dedica nesse lugar oferendas e sacrifcios fosse tambm sua quintessncia, como se no houvesse humanidade digna desse nome a no ser no prprio lugar do culto que lhes consagrado. (AUG, 1994, p. 43).

Ao discorrermos acerca da organizao socioespacial das populaes extrativistas, acentua-se a percepo de uma identidade local que se constitui da relao entre a identidade social e o lugar como partes indissociveis. Observa-se que essas categorias em relao a esses extrativistas sustentam-se em relaes com a natureza, imprescindvel para a referida organizao deles. Devendo ser considerados a todos os aspectos materiais e simblicos, incluindo-se os acordos tcitos existentes entre eles acerca dos domnios de posse e poder dos

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grupos em relao a suas localidades e reas destinadas atividade produtiva, o que, conforme exposto, pode ser apreendido a partir da noo de lugar e da noo de territrio e territorialidade social.

Outro elemento fundamental dos territrios sociais encontrado nos vnculos sociais, simblicos e rituais que os diversos grupos sociais diferenciados mantm com seus respectivos ambientes biofsicos [...] A identificao de lugares sagrados por um grupo determinado representa uma das formas mais importantes de dotar um espao com sentimento e significado, porm existe uma multiplicidade de outras. A noo de lugar tambm se expressa nos valores diferenciados que um grupo social atribui aos diferentes aspectos de seu ambiente. Essa valorizao uma funo direta do sistema de conhecimento ambiental do grupo e suas respectivas tecnologias. Essas variveis estabelecem a estrutura e a intensidade das relaes ecolgicas do grupo e geram a categoria social dos recursos naturais. (LITTLE, 2002, p. 10, grifo nosso).

Desse modo, compreender a organizao sociocultural desses extrativistas atravs da categoria de lugar, necessariamente nos leva tambm percepo das relaes de poder desses grupos sobre os ambientes naturais em que atuam por meio de suas atividades produtivas, cuja conceituao se d atravs da categoria de territorialidade social. A anlise da territorialidade possibilita a apreenso das relaes sociais recolocadas em seu contexto sciohistrico e espao-temporal dos bairros definindo-se, para as populaes aqui em anlise por meio da expresso lugar, o lugar da gente, o nosso lugar. Conforme Milton Santos:

Como j temos mencionado repetidamente, o territrio em si mesmo no constitui uma categoria de anlise ao considerarmos o espao geogrfico como tema das cincias sociais, isto , como questo histrica. A categoria de anlise o territrio utilizado. A partir desse ponto de vista, quando quisermos definir qualquer pedao de territrio, devemos levar em conta a interdependncia e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e o seu uso, que inclui a ao humana, isto o trabalho e a poltica. (2003, p. 274, grifo nosso).

Nosso primeiro contato com o universo das UCs e do extrativismo particularmente da pesca foi com o contexto do nordeste paraense, onde a percepo da atividade foi imediata nas vilas e reas mais distanciadas do centro urbano. Caminhamos com esse olhar em um primeiro contato com Soure. Buscvamos a percepo imediata da materialidade do ser e fazer-se pescador, e por isso nosso primeiro movimento foi de nos deslocarmos para as vilas, principalmente quelas delimitadas como RESEXs Marinhas Caju-una, Cu e Pesqueiro , na inteno de localizarmos ali lugares de pescador.

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Imediatamente vamos ali, vilas muito pequenas, pacatas e principalmente com poucos indcios de um lugar de pescadores, ou seja, no localizamos apetrechos de pesca, nenhuma organizao nas casas que sugerisse uma produo no campo da pesca no conjunto dos moradores, ou no mximo, por vezes, algumas redes de emalhar. O choque imediato, dada essa diferena evidente com o contexto do municpio de Augusto Corra com o qual j estvamos mais familiarizados nos levou a perguntar: onde esto os pescadores usurios da RESEX de Soure? Os dados do IBAMA, do cadastramento de usurios da poca da criao da Unidade, mostraram-nos outro aspecto que agora norteia nossa compreenso do contexto da populao extrativista de Soure, a organizao dos pescadores e de outros extrativistas principalmente nos bairros do distrito sede. Para compreendermos esse contexto, so necessrios alguns esclarecimentos, como segue. Antes, para entendermos os meandros da organizao social dessa populao de extrativistas, comecemos esclarecendo algumas confuses que se fazem acerca de Soure e da Ilha do Maraj. Soure Distrito sede do municpio homnimo apresenta-se para seus visitantes como a capital do Maraj, ttulo que lhe foi agregado a bem do turismo local. Agrega ainda como valor patrimonial e histrico o fato de ter sido planejada pelo paraense Arao Leal de Carvalho Reis em estilo semelhante Nova Iorque (EUA), suas ruas largas so denominadas por nmeros, as avenidas e travessas so distribudas em oito bairros So Pedro, Matinha, Umirizal, Pacoval, Macaxeira, Tucumanduba, Centro e bairro Novo , destes so ocupao recente o Tucumanduba, o bairro Novo, Umirizal e Pacoval. A prefeitura municipal atuou na regularizao dos loteamentos dessas ocupaes seguindo a planta original do distrito sede. A rea rural engloba ainda as vilas do Pesqueiro, Cu, Caju-una e Pedral e as praias da Araruna, Barra Velha e Mata fome que hoje compem a rea de influncia da reserva.

De Nosso Lugar a RESEXs Marinhas 100

Imagem 2 localizao dos bairros do distrito sede de Soure Ilha do Maraj

Fonte: Site Grande Brasil32 (adaptado)

A populao da sede de Soure est estimada pelo IBGE em 21.009 habitantes para o ano de 2010, considerados a o nmero de populao urbana, sendo que a esse total somam 1.986 de populao rural computando o nmero total de habitantes do municpio 33. O ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) para o municpio como um todo um dos mais baixos do estado do Par, ficando em 0.723 (PNUD, 2000). O que denota o cenrio social que se apresenta tambm no municpio de Soure e em toda a regio que compe o complexo de ilhas do Maraj. A questo fundiria em Soure chamou-nos a ateno quando em contato com a localidade j em pesquisa exploratria. Observamos os impasses fsicos existentes quanto liberdade de ir e vir da populao conforme preceito constitucional moradora das reas das vilas e praias. O municpio de Soure apresenta uma rea mais central (urbana) que se situa no contexto dos bairros, conforme pode ser observado na Imagem 2 acima e reas mais afastadas (rurais) que constituem as vilas, localizadas nas proximidades de manguezais e mar. Essa questo fundiria, relativa presena de fazendas, semelhana do restante da Amaznia brasileira, um tema recorrente quanto s grandes extenses de terra apropriadas bem como os conflitos com as minorias sociais como castanheiros, seringueiros, coletores de
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Disponvel em: < http://www.grandebrasil.com.br/Brasil/PA_Para/?Cidade_Soure>. Acesso em: 21 set. 2010. Disponvel em: < www.ibge.gov.br/cidadesat>. Acesso em: 07 dez. 2009.

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babau. Uma peculiaridade local, no caso de Soure, a alegada propriedade de sesmarias, que so ttulos que atestam a propriedade de terras na regio desde o sculo XVIII. A questo da legitimidade de tais ttulos deve ser primeiramente relativizada poca destes, antes, portanto, da independncia do Brasil e sculos antes da atual Constituio Federal, de 1988. Uma ligeira reviso da legislao e dos trabalhos de identificao fundiria na regio indica tais terras como consideradas bens da Unio, portanto, de nulo valor de direito quanto propriedade por particulares. A questo que se coloca como de fato resolver essa pendncia fundiria e como minimizar os conflitos com a populao local que atua no extrativismo, cujos relatos indicam conflitos no somente no acesso s vilas pela via das fazendas, mas tambm no acesso a reas de manguezais para coleta do caranguejo-u e na coleta de coco, aa e outros frutos e sementes, at mesmo nas praias, trechos de rios e igaraps supostamente parte das fazendas. Economicamente as atividades que se destacam em Soure a pecuria, com produo bubalina, bois, cavalos e porcos, como tambm a produo de coco e frutas nativas como bacuri, muruci, abric entre outras. A pesca uma aliada significativa para a economia do municpio, com grande exportao de caranguejo-u. As principais festividades da sede de Soure so a festa de So Pedro, padroeiro dos pescadores, cuja procisso envolve os moradores que se aglutinam em frente de suas casas para presenciar a passagem do santo ou acompanhando a procisso, conforme pode ser observado na Foto 1 abaixo. A procisso de So Pedro realizada de 27 a 29 de junho tendo como principal organizador a Colnia de pescadores Z-1, alm dessa festividade, ocorre tambm o Crio de Nossa Senhora de Nazar no primeiro domingo de novembro.

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Foto 1 Festividade de So Pedro Sede do municpio de Soure

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em junho de 2009)

Em Soure existe um hospital edificado, contudo, constantemente noticiada pela imprensa paraense a precariedade do atendimento sade pblica em toda a regio da ilha do Maraj. As vilas e bairros possuem escolas e postos de sade. Em vrios casos, os jovens se deslocam para a sede do municpio para frequentar as escolas de ensino mdio, em geral h conduo pblica para o deslocamento dos estudantes. Em nossos primeiros contatos com Soure, como citado acima, estranhamos a ausncia de apetrechos de pesca nas vilas e mesmo da prpria atividade produtiva, visto que so espaos mais prximos das reas pesqueiras mar, mangue, rios, lagos e igaraps e que a princpio seriam para ns o local por excelncia de moradia dos pescadores, esse fato levounos a compreender melhor a organizao geogrfica dos trabalhadores do extrativismo, distribudos principalmente entre os bairros localizados na sede do municpio. Em Soure, embora a pesca seja a principal atividade produtiva, no apenas ela se apresenta entre a populao local. Uma variedade de atividades produtivas em termos de extrativismo se apresenta no contexto local, conforme poderemos observar por meio da relao bairros onde est concentrada a grande maioria dos extrativistas e locais da atividade no extrativismo. O Tucumanduba considerado um bairro, ou seja, pertencente rea urbana, o bairro dos caranguejeiros. Ali os moradores vivem precariamente, no h asfaltamento nem rede de esgotos, semelhana das chamadas invases da capital do estado (Belm), com uma diferena, l se observa em demasia a carncia social. A quase totalidade das casas em enchimento e cobertas de palha, em um nvel precrio de saneamento, conforme as Fotos 2 e

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3. Nesse bairro, fica situada a Associao dos Tiradores de Caranguejo de Soure ACS que nica no estado. A concentrao de trabalhadores que atuam na pesca do caranguejo-u nesse bairro no significa que no se encontre esses trabalhadores em outros bairros tambm, principalmente em se tratando de uma das atividades principais da populao extrativista de Soure.

Foto 2 Sede da Associao dos Caranguejeiros bairro do Tucumamduba

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em julho de 2009)

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Foto 3 Casas no bairro do Tucumamduba

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em julho de 2009)

Fica ali tambm localizado uma sede da ONG Novos Curupiras, uma casa rstica, em enchimento e telha com uma placa em madeira na qual o nome da ONG est grafado. Quando visitamos essa entidade, nos foi informado que entraria em reforma. Tambm interessante observar que para os moradores dos arredores sempre que se fala da ACS, h uma ligao com a ONG. Muito embora, segundo relatos dos caranguejeiros do bairro, a entidade Novos Curupiras no tenha realizado aes efetivas em benefcio destes, apenas usando a sede da associao para alojar os alunos que participavam das excurses promovidas pela ONG pelos manguezais, j que o seu presidente professor da Universidade Federal Rural da Amaznia (UFRA), hoje aposentado. A populao do Tucumanduba, Bairro Novo e Bom Futuro coleta caranguejo-u em toda a rea de manguezal no litoral do municpio, chegando at a Ponta Fina (localizao espacial de pontos e localidades nominados por eles). Dentre as diversas categorias de extrativistas, observa-se que o nico grupo que transita sem maiores problemas pelas reas das fazendas dos supostos donos de manguezais so os caranguejeiros. Eles extraem tambm outros crustceos e mariscos como o siri, alm do turu 34 para consumo familiar. Importa destacar aqui como as noes de lugar e territrio so bem materializadas respectivamente nessas localizaes por bairros e na constituio da identidade grupal, bem como na recorrente diviso dos espaos geogrficos para o trabalho. Inclusive nas disputas
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Turu Substantivo masculino. O gnero-tipo dos teredindeos. Qualquer espcie desse gnero, trs das quais se conhecem no Brasil; tm aspecto vermiforme e numa das extremidades duas pequenas valvas com sulcos providos de dentes. Com eles, em movimento rotatrio, cava galerias em madeira submersa, com a qual se alimenta. Sinnimos: gusano, busano, turu, ubiraoca. (FERREIRA, 2001, p. 692).

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entre eles e entre esses extrativistas e fazendeiros em virtude dos interesses econmicos sobre esses territrios. De acordo com Brando, ao referir- se acerca das disputas e dos conflitos de classe:

O territrio unidade privilegiada de reproduo social, denominador comum, desembocadura, encarnao de processos diversos e manifestao de conflitualidades. Assim, o que est aqui em causa no a o territrio enquanto conjunto fsico de paisagens materiais, mas o territrio enquanto expresso e produto das interaes que os atores protagonizam. O territrio, nestas circunstncias, proximidade, atores, interaes. E tambm um elemento crucial da matriz de relaes que define a morfologia do poder nas sociedades contemporneas. (2007, p. 18-19, grifo nosso).

Os moradores do bairro Macaxeira utilizam a rea do rio do Saco, rea delimitada como RESEX, e o rio Paracauari para suas atividades extrativistas, alguns se deslocam at as regies dos lagos no Maraj. Conforme informaes de coletores de aa, em reunio realizada no Soure Hotel em setembro de 2009, j no mbito das discusses referentes reviso do plano de utilizao da Reserva, no contexto da fase I do Plano de Manejo, denunciam conflitos com fazendeiros que impedem o acesso, alegando a propriedade das reas e cobram pela coleta dos frutos dos aaizais, a lata do aa colhida pelos extrativistas adquirida ao preo de R$ 1,00 e vendida na feira da cidade a sete Reais (R$ 7,00). A populao extrativista de moradores desse bairro manifesta a existncia de conflitos com outros extrativistas moradores do Caju-una em virtude do uso da baliza35 os moradores do Caju-una determinam a rea onde no se pode adentrar para praticar a pesca em determinados perodos do ano em uma tcita demonstrao de gesto e controle sobre a rea do igarap do Caju-una. Denunciam ainda que os fazendeiros estariam contratando pessoas de fora para a coleta de palmito de aa ilegalmente, o que incide sobre a diminuio da coleta do fruto do aaizeiro, posta a necessidade da derrubada da rvore ainda jovem para a coleta do palmito. No bairro Novo est sediada a Associao de mulheres de Soure. Os moradores do bairro da Matinha pescam na Ponta de Soure, outros mariscam em frente a Soure no rio Paracauari, fora da rea delimitada como RESEX ou seu entorno, onde tambm atuam os usurios do bairro do Pacoval e Umirizal; capturam principalmente

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A baliza constitui na colocao de varas na diagonal com bandeirinhas vermelhas sinalizadoras do limite no curso dgua a partir do percurso em que eles no admitem determinadas tcnicas de pesca. Tal prtica uma regra instituda a partir de acordos tcitos entre os pescadores da vila do Caju-una; uma pratica feita na poca da safra da tainha.

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camaro, da ser esse bairro considerado nos arredores do distrito de Soure como o bairro dos camaroeiros. Nesse bairro fica localizada a associao dos camaroeiros. Os moradores dos dois ltimos bairros em referncia pescam tambm nos igaraps prximos das praias do Araruna e Barra Velha. Alm do camaro, referem-se pesca do pitu (Macrobrachium carcinus), conforme denominam a espcie de camaro considerada a de maior tamanho em guas doces. As exposies acima demonstram o movimento dos moradores no espao geogrfico por meio da organizao do trabalho e da moradia familiar. Sobretudo, compreendendo que a localizao e o uso dos recursos naturais como parte das atividades produtivas tradicionais so determinantes apresentam-se h muitas geraes para a definio da localizao da moradia familiar. Ou seja, a organizao espacial do ambiente familiar se faz em relao ntima localizao dos recursos naturais, no sentido de facilitar a reunio dos trabalhadores e o deslocamento para as reas de extrativismo. Consubstanciando esses ambientes de trabalho e moradia no lugar da organizao da vida. O trabalho marcante no cotidiano dessas pessoas e, sendo elemento fundamental na estrutura da organizao social, percebemos a sua influncia tanto na formao de uma identidade social quanto na constituio do lugar. perceptvel ento, uma moral adquirida que orienta o comportamento, a conduta dos grupos na organizao do trabalho. Tais observaes visam enunciar a problemtica ambiental, social e a complexidade das relaes presentes nesse lugar, onde concorrem interesses diversos, em uma imbricao da tradicionalidade modernidade. No que pese estarmos diante de uma Reserva Extrativista entendida como uma alternativa moderna que materializa uma poltica pblica ambiental sustentada no saber cientfico-tcnico procuramos aqui apresentar o cenrio de arranjos e rearranjos entre agentes sociais diversos e da ao e reao das populaes, denominadas tradicionais que ocupam esses espaos geoambientais. Soure enquanto um dos locus de nosso estudo constitui-se como uma dos principais municpios do Maraj. Contudo, para dirimir algumas confuses que so comuns em termos de entendimento geogrfico mesmo, torna-se necessrio informar as distines entre a cidade de Soure sede distrital do municpio de Soure e entre a Ilha do Maraj onde este se localiza e o arquiplago do Maraj, este ltimo constitudo de uma diversidade de ilhas menores que a ilha do Maraj. Soure o municpio um dos maiores da microrregio (MRG) do Arari, com 3.528,70 km, com uma populao de 22.849 habitantes para o ano de 2010, segundo o IBGE. O acesso a Soure se d por via area ou fluvial, seguido do transporte terrestre do Porto

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Camar pela PA 154, passando pela sede do municpio de Salvaterra at as margens do rio Paracauari onde de balsa se faz a travessia para o outro lado do mesmo rio, j em Soure. Localizado na costa leste da Ilha do Maraj, fica a 87 km de Belm em linha reta (Imagem 3). Imagem 3 Imagem de satlite Soure/Salvaterra

Distrito sede de Soure

Fonte: Site Grande brasil36 (adaptado)

O municpio de Soure comemorou no ltimo dia 20 de janeiro do ano de 2011 seu 152 aniversrio. Originariamente foi habitado por ndios maruanazes e mundins da tribo arus. Juntamente com Salvaterra constituam o povoado de Monforte. Soure traz na sua histria uma forte relao com a influncia catlica, at mesmo acerca da criao de bubalinos, que hoje umas das principais atraes econmicas e tursticas do municpio. No sculo XVII, o povoado chamava-se Freguesia do Menino Deus, mediante a chegada dos padres de Santo Antnio. Foi elevada categoria de vila em 1757

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Disponvel em: <http://www.grandebrasil.com.br/Brasil/PA_Para/?Cidade_Soure+4810>. Acesso em: 21 set. 2010.

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quando ainda fazia parte da comarca de Monsars. Em 1833, a Vila foi extinta e recriada em 1847, contudo, permanecendo seu territrio agregado a Monsars at 1859 quando foi realizada a instalao definitiva do municpio de Soure (IBGE, 2009)37. O municpio tem na pecuria sua principal atividade econmica, posta as grandes reas de fazendas, o turismo tambm outra atividade incentivada, mas o que sustenta a maioria da populao local a pesca artesanal e o extrativismo vegetal. Soure considerado o maior dos dezesseis municpios que compem o arquiplago. Desse total, doze integram a ilha do Maraj, subdividida em duas microrregies, a MRG do Arari, na parte oriental, onde se localizam os municpios de Cachoeira do Arari, Chaves, Salvaterra, Ponta de Pedras, Santa Cruz do Arari, Soure e Muan, e a MRG dos Furos de Breves, na parte ocidental, onde esto Afu, Curralinho, So Sebastio da Boa Vista, Breves e Anajs. J Portel, Bagre, Gurup e Melgao so os quatro ltimos municpios e possuem suas sedes na rea continental, compondo a MRG de Portel (SILVA, T., 2008). Essas microrregies constituem a mesorregio do Maraj e os municpios referidos esto representados em uma organizao civil de carter estadual a Associao dos Municpios do Arquiplago do Maraj AMAM. Consta na histria da ilha do Maraj que at o sculo XVIII a ilha era conhecida como Ilha Grande de Joanes, nome dado pelos espanhis, e que em 1754 recebeu o nome de Maraj38 conforme indicam as bibliografias (CRUZ, 1987; LOUREIRO, 1987) referentes ilha do Maraj. Ainda de acordo com relatos histricos, em 1498 quando navegava pelo rio Amazonas o espanhol Vicente Pizn localizou a ilha. Em suas crnicas de viagem, bem como nas crnicas de Amrico Vespcio encontram-se relatos sobre a ilha e a hostilidade dos ndios Arus (SILVA JR., 2005). Desse modo, os espanhis adentravam ao norte do Brasil, ultrapassando os limites impostos pelo Tratado de Tordesilhas fato por essa causa no divulgado que determinava que as terras que ficassem a leste do meridiano imaginrio, estabelecido a 370 lguas a oeste de Cabo Verde, pertenceriam a Portugal (CRUZ, 1987). No ano de 1500, Pedro lvares Cabral chegou ao Brasil, a um monte ao qual nominou Monte Pascoal. Viviam nessa regio do Maraj no perodo de povoamento, indgenas nuaruaques, vindos da costa andina e que no arquiplago formaram vrias aldeias. Na ilha do Maraj habitavam as tribos dos arus, os nhambiquaras, os mundins, os sacacas, os cais, os araris, os
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Disponvel em: <www.biblioteca.ibge.gov.br> Acesso em: 07 dez. 2009. Do tupi Mbara-y, que significa barreira do mar.

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anajs, os camontins, os muans e os maruanazes. Indgenas reconhecidos pela herana deixada na arte cermica marajoara. Dessas aldeias surgiram muitos dos municpios locais. Contudo, conforme relatam os estudos sobre a ilha, grande parte da populao indgena foi dizimada nas guerras entre portugueses e Arus e Nhambiquaras. A presena e resistncia desses indgenas s tornaram possvel a ocupao propriamente dita a partir de 1659, com a interferncia da Igreja Catlica junto a esses ndios, cujos missionrios se ocupavam tambm da criao de gado na regio, sendo pioneiros nessa atividade. Segundo dados de Silva Junior (2005), em 1758 os religiosos j eram os criadores mais prsperos, os Jesutas com 134.465, os Mercedrios39 com 80.000 e os Carmelitas com 18.000 reses. Constituda em capitania em 1665, a ilha foi doada a Antnio de Souza de Macedo. Duas doaes foram realizadas por seus herdeiros aos capuchos de Santo Antnio. Segundo o Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentvel do Arquiplago do Maraj (2007), entre 1721 e 1740 foram distribudas mais de 50 sesmarias. Esse sistema de sesmarias gerou a apropriao de reas extensas, constituindo uma estrutura de latifndios, so extensas as fazendas existentes, algumas com mais de 20.000 hectares, cujos donos alegam a propriedade de reas que incluem ecossistemas de manguezais. So conhecidos os conflitos existentes em virtude do uso dos recursos naturais nessas reas pelas populaes extrativistas. Refletindo em certa medida a desordem fundiria atual em todo o arquiplago. O que hoje representa uma importante questo a ser resolvida, por conta da instituio da RESEX e da elaborao de seu PM. Tambm na ilha visvel a influncia dessa estrutura latifundiria sobre a estrutura social. A populao desprovida de terras vive do extrativismo ou subempregados pelos patres donos de fazendas, questo essa significativa na constituio do ser e fazer marajoara. Quanto s distines entre a ilha e o arquiplago do Maraj, devemos esclarecer que a Ilha do Maraj (Imagem 4) a maior ilha flvio-martima do mundo, com uma rea de 49.606 km, localizada no arquiplago do Maraj, no norte do Brasil e no extremo norte do estado do Par, em um ponto central onde os principais rios da bacia amaznica, Par, Tocantins, Xingu e Amazonas desguam no Atlntico. J o arquiplago, composto de um grande nmero de ilhas, dentre as quais se destacam ainda a Grande Gurup, com 4.864 km, a Mexiana com 1.534 km e a Caviana com 4.968 km. A ilha do Maraj fica localizada entre o oceano Atlntico ao norte, ao leste e ao

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Religiosos da ordem das Mercs.

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sul com o rio Par e a oeste com uma srie de canais. Em relao a Belm, a capital do estado do Par, situa-se a sudeste do canal natural do rio Amazonas, conhecido como Rio Par e a leste da Baa do Maraj formada pela foz do rio Par separando a ilha do Maraj da parte continental. Imagem 4 Localizao do arquiplago, ilha do Maraj e do municpio de Soure

Ilha Grande Gurup

Fonte: Furtado, A. M. M. et al. (2009) (adaptado)

Dados de 2006 do IBGE indicam que a demografia da mesorregio de 425.163 habitantes. Aproximadamente 61% da populao residem na rea rural, sendo que apenas Breves, Soure e Salvaterra possuem uma populao urbana superior rural. O seu IDH mdio de 0,63 (Sistema de Informaes Territoriais, 200940). Em relao s questes fundirias atuais, segundo dados do Censo Agropecurio de 1995/96 25,8%, do total da rea da mesorregio correspondem rea de estabelecimentos agropecurios e 74,2% correspondem a terras devolutas ocupadas de forma irregular e por Unidades de Conservao somando um total de 10,41 milhes de hectares.
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Disponvel em: <http://sit.mda.gov.br>. Acesso em: 21 set. 2010.

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Quanto economia, a agricultura mais forte nas MRGs de Portel e dos Furos de Breves, o predomnio da agricultura de subsistncia. Na MRG do Arari, predominam os pastos naturais. O produto com maior expresso em todo o arquiplago a mandioca; destaca-se tambm a produo do abacaxi em Salvaterra, alm da produo de coco da Bahia e laranja em Ponta de Pedras. Na regio, h a presena de muruci, bacuri, mangaba, andiroba entre outras que se destacam como vegetao natural, apropriada para o extrativismo, segundo dados do Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentvel do Arquiplago do Maraj (2007). Quanto pecuria bovina e bubalina, caracteriza-se como a mais antiga do estado do Par; segundo Loureiro (1987), data do perodo de povoamento da ilha, quando se estabeleceram as primeiras fazendas de gado. A ausncia de uma poltica para esse setor considerada uma das causas da reduo do efetivo bovino e bubalino entre 1990 e 2004 em relao ao efetivo estadual, conforme dados do IBGE. Chaves, Muan e Ponta de Pedras so os maiores produtores de sunos. O extrativismo vegetal mais predatrio que ocorre no arquiplago localiza-se na regio de esturio, em geral nas margens dos rios, principalmente em Breves, com a extrao de madeira em tora. As espcies mais exploradas so virola (virola surinamensis), cedro (cedrela odorata) e o marup (simarouba amara). H produo de carvo vegetal. O extrativismo no madeireiro envolve a populao local e ocorre sazonalmente de acordo com o perodo dos frutos, o aa, bem como a extrao do palmito do aaizeiro so os mais expressivos. A pesca constituiu-se em uma atividade bsica para as populaes marginalizadas pela apropriao de terras. Com um ambiente natural propcio para a atividade em virtude da localizao das ilhas que esto sob a influncia das guas doces dos rios e a gua salgada do Atlntico, caracterizam-se reas de esturio, com grande biodiversidade e nutrientes significativos para as diversas espcies tanto nas guas continentais quanto marinhas. A pesca artesanal a principal forma desenvolvida nos municpios, como em todo o estado, com pouca infraestrutura e falta de apoio em termos de polticas pblicas, a atividade subsiste como responsvel pela alimentao de grande parte da populao local e com vistas comercializao. Os principais produtos so o caranguejo-u, o camaro e espcies de peixe como o tucunar (Cichla ocellaris), o poraqu ou peixe-eltrico (Gymnotus electricus), a pescada (Sciaena amaznica), a piraba (Piratinga piraiba), o pirarucu (Arapaima gigas sp.), as piranhas (Serrasalmo sp.), o candiru (Vandellia cirrhosa) e o tamuat (Callichrhys sp.). Em recente estudo realizado pela equipe de tcnicos do Centro de Pesquisa e Gesto de Recursos Pesqueiros do Norte do Brasil (CEPNOR/IBAMA), foram reconhecidas espcies

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existentes nos manguezais do Maraj. Entre os crustceos foram identificadas espcies de caranguejos aratu ou sarar (Aratus pisonii), caranguejo-u (Ucides cordatus) e o chamamars (Uca sp.); de camaro camaro canela ou regional (Macrobrachium amazonicum); de siri siri azul (Callinectes sp.); de ispode turu (Limnoria lignorum). O que comprova a riqueza da biodiversidade local. A pesca industrial proibida na baa de Maraj, desde a Portaria 007/76 da SUDEPE, que probe frotas pesqueiras em reas de esturio, mas denncias de pescadores locais e moradores da vila do Cu em Soure indicam que embarcaes penetram nessa rea no incio do vero, bem como denunciam a presena de ratos d'gua 41, que, segundo esses moradores, roubam e matam pescadores naquela regio. Uma questo crucial o fornecimento precrio de energia, em geral originada a leo diesel e destinada s reas urbanas dos municpios. Esse problema dificulta a manipulao de derivados da produo bubalina, produtos extrativistas e pescado e outras atividades para fins de consumo e comercial. Em relao questo ambiental, a mesorregio do Maraj conhecida pela diversidade de seus ecossistemas constitudos por campos inundveis, manguezais, vrzea, igaps e vegetao de terra firme, que servem de abrigo para espcies em rotas migratrias, tabuleiros de desova de quelnios, manguezais com rica fauna de peixes e crustceos e espcies vegetais e animais ameaadas de extino. O nmero de Unidades de Conservao institudas demonstra o reconhecimento da importncia da biodiversidade local. Os dados levantados demonstram o entrelaamento dessas questes aliadas percepo das questes sociais ligadas s populaes que vivem do uso dos recursos naturais a partir de suas atividades de trabalho. Desse modo, no que se refere decretao de UCs na mesorregio do Maraj, foram institudas seis UCs federais, na categoria de uso sustentvel relativos a 726.653 hectares, o que corresponde a 7% da rea total do arquiplago. De acordo com os dados que coletamos para o ano de 2009, so a Floresta Nacional FLONA, de Caxiuan, a RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentvel) Itatup-Baqui, as RESEXs florestais de Mapu, Terra Grande-Pracuba, Gurup-Melgao, e a RESEX Marinha de Soure, locus desse estudo. Em mbito estadual, a APA Maraj, criada em 05.10.1989, que recobre a rea fsica dos 12 municpios que compem a MRG de Arari e Furo de Breves e a Reserva Ecolgica da Mata do Bacurizal e do lago Caraparu, criada pela lei 109 de 19.06.1987, pertencente prefeitura de Salvaterra. Segundo o representante da

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Como a populao local se refere a assaltantes que atacam embarcaes no curso das guas.

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SEMA-PA em simpsio realizado pela Ps-Graduao em Geografia da UFPA, est em andamento o diploma legal da reserva da biosfera do Arquiplago do Maraj.

3.1.2 Vila do Caju-una

A localidade ocupa uma estreita faixa de areia contigua rea da vila do Cu, para onde a populao se mudou desde 1979 quando da enchente do rio Amazonas; fica a 16km do distrito sede de Soure. Na vila do Caju-una, moram 135 pessoas correspondentes a aproximadamente 50 famlias. Por trs das localidades, defrontamo-nos com os cursos dgua doce e salgada. Em nossas idas s vilas, experimentamos os dois caminhos possveis, por via da PA 154, que corta a fazenda Bom Jesus e motivo recorrente das manifestaes de descontentamento de seus moradores, e pelo rio do Pesqueiro atravessando reas de praias a p. Foto 4 Vila do Caju-una

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em fevereiro de 2009)

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Foto 5 Casas financiadas pelo INCRA

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em fevereiro de 2009)

Segundo informaes locais, a primeira vila originou-se do estabelecimento de um pesqueiro real, criado em 1692 por ordem do rei de Portugal. Esse estabelecimento passou a funcionar como feitoria de pesca, as terras foram posteriormente arrendadas e em 1872 vendidas. Foram doadas aos moradores em 1948, a essa poca por seus proprietrios, a Famlia de Alacid da Silva Nunes (SANTOS JR., 2005). Observamos na localidade uma organizao social pacata, semelhana das outras vilas, apenas rompida pela sada de ciclistas levando pequenas e mdias caixas de isopor com a produo pesqueira do dia para vender no mercado do distrito sede do municpio. Algumas mulheres foram observadas trabalhando com a semente de andiroba nas adjacncias de suas casas. Os moradores locais atuam ainda com a coleta da castanha, artesanato e principalmente pesca de camaro e peixe. Um dos conflitos mais significativos referente ao controle territorial para a populao da vila a relao com a fazenda Bom Jesus, cortada pela PA 154 e que d acesso vila. Segundo relato, em reunio ocorrida no dia 27.06.2009, do Sr. Raimundo Edson, conhecido como caranguejo, essa estrada tem seu incio no Porto do Camar e se prolonga at a vila do Caju-una, sendo que um ramal leva vila do Pesqueiro. A sua inteno ao fazer tal relato era dirimir a dvida existente a respeito da definio exata da estrada, se ela segue para o Pesqueiro ou para o Caju-una, devido a uma bifurcao que permite a via terrestre para as

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duas localidades. Desse modo, sendo uma rodovia estadual, uma grande parte dos moradores dessa vila no admite os problemas ocasionados pela fazenda Bom Jesus. Segundo relatos dos moradores, a populao que j conhecida tem acesso pelo porto de entrada de pedestres a p ou de bicicleta. desse modo que transportam o pescado, ou ainda em motos (Fotos 6 e 7). Conforme relata o Sr. Raimundo Edson:
Com referncia ao que voc colocou aqui acerca da nossa estrada, aquele porto l, que de conhecimento de todo mundo aqui. Ns temos um problema muito srio que faz parte at da falta do nosso desenvolvimento, aquela porteira atrapalha muito, probe muito a nossa desenvoltura, o nosso trabalho, o nosso pescado, a nossa produo. Porque nos vivemos aqui, mal comparado, como se fosse gado dentro de uma porteira, porque ns temos horrio pra passar pra l e pra passar pra c. Tanto a comunidade do Cajuuna como do Cu. [...] Ento, essa dificuldade porque ns no tivemos at hoje um gestor municipal com interesse pra brigar, pra nos acudir, pra nos dar esse socorro [sic] e retirar aquele porto (informao verbal) 42.

Foto 6 Portes da fazenda Bom Jesus

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em fevereiro de 2009)

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Relato do Sr. Raimundo Edson, morador do Caju-una, em reunio da fase I do PM em 28 de junho de 2009.

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Foto 7 Portes da fazenda Bom Jesus

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em fevereiro de 2009)

De acordo com Cunha (2008), ao analisar o conceito de territrio, quando agentes sociais entram em disputa pelo poder, afirma-se a tenso e o predomnio de determinadas intencionalidades sobre outras:

O territrio tem uma ocupao, e essa revela intencionalidades: a favor de que e contra que se posiciona. Nessa perspectiva, no h territrios neutros. A ocupao de um territrio se d no confronto entre foras. Ao ocuparmos os lugares, estamos fazendo escolhas que preenchero os espaos e os transformaro em territrios. A escolha de uma dimenso anula a condio da outra se estabelecer. Mesmo assumindo a possibilidade da contradio e da dialtica, as foras em tenso revelam predomnios que sinalizam disputas de poder. (p. 185).

Observamos tambm outros problemas que afligem a populao local e que se manifestam como sensao de abandono por parte das autoridades pblicas, conforme pde ser observado na fala acima do morador da vila e usurio da RESEX. Denunciam os problemas de energia e gua na localidade. A rede de energia s foi instalada quando os postes foram fixados margeando as reas de manguezal, considerando o impedimento das donas da fazenda Bom Jesus que no admitiram fixao destes s margens da estrada. Outra denncia da populao local a instalao da gua encanada que dever passar na mesma estrada. Hoje a populao local no possui gua potvel, possui apenas um poo de

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gua salobra43. Desse modo, na poca do inverno recolhem a gua da chuva para o uso dos afazeres domsticos e recebem gua de um carro pipa que faz a entrega, ou ainda costumam acordar s quatro horas da manh para pegar gua em um poo da vila do Cu. Momentos registrados por ns nas fotos a seguir: Foto 8 Recebimento de gua pelo carro pipa na Vila do Caju-una

Foto 9 Recebimento de gua pelo carro pipa na Vila do Caju-una

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em setembro de 2009)


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Diz-se da gua de salinidade inferior a das guas ocenicas e que contm em dissoluo alguns sais ou substncias que a fazem desagradvel (FERREIRA, 2001).

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Os moradores contam com um posto de sade, uma escola e uma igreja catlica. A principal festividade o crio de Nossa Senhora de Nazar de 14 a 16 de agosto. Na vila, observam-se vrias casas construdas em madeira e cujo financiamento se deu por meio do Programa Nacional de Reforma Agrria (PNRA) do INCRA e do Programa de Desenvolvimento Econmico, Social e Cultural, parceria do IBAMA e do INCRA (IBAMA, 2006). As principais atividades produtivas apontadas pelos moradores em reunio ocorrida em junho de 2009 com a ASSUREMAS so: o extrativismo de coco, cuja produo o ano todo; a andiroba, cuja safra de dezembro a julho, quando coletam aproximadamente 16 toneladas e vendem aproximadamente de 20 a 25 reais o litro; alm do camaro e peixes. Essas atividades produtivas so desenvolvidas na prpria rea da vila, cuja delimitao dos espaos feita por consenso entre os moradores do Caju-una e do Cu. A pesca tem como principal ponto o igarap do Caju-una. Os moradores esto organizados em uma Associao e possuem um centro comunitrio, denominado Centro Comunitrio de So Sebastio.

3.1.3 Vila do Cu

Nosso primeiro contato com a vila do Cu se deu pela PA-154 por meio da vila do Caju-una (Fotos 10 e 11), seguindo a p ou de carro at as proximidades de pequenos canais; na sequncia do caminho, somente a p se chega vila. Foto 10 Caminho de acesso vila do Cu

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em fevereiro de 2009)

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Foto 11 Viagem vila do Cu pelo rio Pesqueiro

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em abril de 2009)

Nosso segundo contato se deu pela praia do Pesqueiro, atravessando de voadeira 44 conforme pode ser observado na Foto 11 pelo rio Pesqueiro e caminhando pela orla da praia at o povoado. Nesse momento, acompanhvamos a equipe tcnica do ICMBio e a ASSSUREMAS para reunies do PM e do convnio do CNS/Instituto de Desenvolvimento Florestal do Estado do Par (IDEFLOR) no ms de abril de 2009. A vila do Cu assemelha-se em termos espaciais vila do Caju-una, um agregado de casas em madeira tambm adquiridas em sua quase totalidade pelo financiamento do INCRA , em uma pequena faixa litornea. Segundo dados do agente de sade, vivem ali um total de 180 moradores, que compem 39 famlias. A Vila do Cu originou-se de outro povoado Areio destrudo pela eroso das guas da bacia do Maraj e se estabeleceu no territrio que hoje ocupa por aquisio da prefeitura; est localizada a 16 km do distrito sede. Limtrofe com o Caju-una liga-se a sede municipal de Soure pela mesma estrada que atravessa a fazenda Bom Jesus. Conta com a Associao dos Moradores da Comunidade do Cu (AMCC), cujo presidente o senhor Tefilo da Silva Nunes, e a Associao de Pescadores da Comunidade do Cu (APCC). Como no caso do Pesqueiro, essas associaes no desenvolvem atividades conjuntas e existe um problema de legalizao da AMCC. A Principal festividade que congrega os moradores e que atrai os visitantes de vilas vizinhas o crio de Santa Maria de 12 a 19 de julho. A vila possui
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Tipo de embarcao pequena com motor de baixa potncia, muito usada como meio de locomoo nos cursos dgua no estado do Par pela populao e por pescadores.

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construda uma escola de ensino fundamental e uma igreja catlica, os moradores no possuem posto de sade e utilizam esse recurso na vila do Caju-una. Na vila, os moradores contam com dois poos, contudo, a falta de gua potvel tambm uma constante, em virtude dos mesmos problemas de salinidade existentes na vila do Caju-una. Observamos durante as reunies ocorridas no ms de setembro de 2009, em virtude da fase I do Plano de Manejo, alguns problemas entre os moradores do Cu e do Caju-una, principalmente em razo dos desacordos referentes demarcao dos lugares de pesca de cada vila. Essa disputa significativa, visto que a principal atividade produtiva local a pesca. Outra atividade produtiva na vila do Cu a coleta do coco. Durante as referidas reunies, alguns moradores informaram que produzem, apenas para consumo, carvo com a madeira seca; relatam ainda que negociam com fazendeiros o direito de coletar o coco em reas de suposta propriedade destes, e que os cocais localizados dentro da rea da vila foram negociados pelos comunitrios com as donas da fazenda Bom Jesus. Argumentaram durante as reunies que no venderam as terras e sim o direito de retirar os frutos das palmeiras produtivas:

Morador da vila do Cu: O pessoal aqui tira coco, tiram muito. Morador da Vila: Aqui tem marreteiro que compra, vo pegar dentro da rea aqui. Moradora da Vila: Essa rea aqui da Dra. Eliana [dona da fazenda Bom Jesus]. Tcnica do ICMBio: Mas essa rea de cocal aqui da Dra. Eliana? Ela alm de mandar tirar coco aqui dentro da rea da RESEX ainda tira dentro da rea do Cu? Moradora da Vila: Eu vendi pra ela. Tcnica do ICMBio: Vocs venderam pra ela? Moradores em conjunto: [tumulto alguns confirmam, outros negam, outros tentam justificar]. Moradora da Vila: Eu vendi a rea. Morador da Vila: Vendemos a plantao. Tcnica do ICMBio: A vocs tiram coco da rea que dela. Moradores da Vila: No! No! Deus o livre se tirar! Ela cerca (informaes verbais)45.

Relatam a existncia de reas de conflitos e a presena de grupos de extrativistas vindo de outros lugares, como da sede do municpio de Soure, outras vilas ou mesmo de outros municpios, que fazem uso da rea reconhecida como pertencente quela comunidade, outros conflitos tambm so relatados com fazendeiros, conforme segue de acordo com ocorrida reunio na Vila do Cu no dia primeiro de setembro de 2009:
45

Relatos colhidos em reunio da fase I de elaborao do PM na Vila do Cu no dia 01 de setembro de 2009.

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Moradora da Vila do Cu: Um grande problema que tem muito bfalo da fazenda, isso ningum vai tirar nunca [refere-se fazenda Bom Jesus], os daqui ficam presos [comentrios em geral], mais muito. Tem que ter regra de convivncia. Moradora da Vila: Eles vm pela estrada e invadem aqui, comem as plantas. Morador da Vila: A gente no que brigar, mas a gente quer uma soluo. Consultor: Isso realmente, tem que ser tratado com o ICMBio, a gente vai tentar resolver isso na conversa, aparentemente a D. Eva [outra proprietria da fazenda Bom Jesus, irm da Desembargadora Eliana Boufayat] a favor da RESEX, e realmente os bfalos no podem invadir a rea da reserva. Tcnica do ICMBio: Primeiro que a legislao impede que se tenha animal de grande porte na RESEX, principalmente em mangue [manguezal] Consultor: proibido at um na verdade. (informaes verbais)46.

Foto 12 Reunio conjunta das vilas do Cu e Caju-una

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em setembro de 2009)

3.1.4 Vila do Pesqueiro

Com acesso mais facilitado em virtude de a estrada ser asfaltada e pela ausncia de portes ou qualquer impedimento de chegada vila, a mais prxima da sede do municpio, fica localizada aproximadamente a 12 km do distrito sede do municpio de Soure, distrito

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Relatos colhidos em reunio da fase I de elaborao do PM na Vila do Cu no dia 01 de setembro de 2009.

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homnimo. Segundo informaes da presidente da ASSUREMAS, que moradora do Pesqueiro, l habitam 82 famlias que correspondem a aproximadamente 321 habitantes. A origem da vila remonta tambm ao estabelecimento de um pesqueiro real criado em 1692 por ordem do rei de Portugal datada de 1691, estendendo-se do igarap Caju-una at o igarap Araruna, entre os rios Igarap Grande (rio Paracauari) e rio Cambu. A origem da vila est associada ao deslocamento de pescadores da regio do Salgado que migravam para a regio do pesqueiro no vero, perodo da safra da tainha ( Mugil Cephalus), e passaram a se estabelecer ali com suas famlias s margens dos igaraps, formando o povoado do Pesqueiro. A vila localizava-se s proximidades do Igarap da praia do pesqueiro, mais prxima da vila do Cu e em virtude das inundaes ocorridas em 1940 mudou-se para a atual localizao. Hoje ocupa uma rea mnima, resumindo-se basicamente faixa de areia, as reas de manguezais da vila que compem parte da rea da RESEX Marinha so consideradas pelos fazendeiros locais como propriedades suas e, desse modo, somente permitem o uso dos igaraps para a pesca do peixe e do camaro, a coleta de recursos vegetais exclusiva dos supostos donos. A fazenda So Jernimo, s proximidades da praia do Pesqueiro, possui trilhas pelo manguezal e foi palco do programa da rede Globo No Limite no ano de 2001. Sua estrutura permanece como ponto turstico, sem licenciamento do rgo ambiental. Observa-se uma separao entre os moradores da vila propriamente dita e da praia do pesqueiro. Em reunio realizada pelo ICMBio para discusso da fase I do PM no dia 02 setembro de 2009, verificou-se na praia um pequeno nmero de moradores que vivem da atividade comercial, pois l existem edificadas barracas de venda de alimentos e bebidas e um quiosque de venda de artesanato da Associao de moradores, localizado s margens da estrada e na entrada da praia. So um total de onze bares fixos e trs que funcionam na temporada de frias ou feriados. A vila conta com duas associaes. a Associao de Mulheres do Pesqueiro (ASMUPESQ), fundada em 2002 segundo seu Estatuto, contava no ano de 2006 com 56 associadas. H uma pequena produo de artesanatos e remdios base de ervas medicinais. A outra Associao a Associao dos Pescadores do Pesqueiro (ASPEPE), criada em 2005, no ano subsequente contava com 92 associados, dos quais 23 mulheres (SANTOS JR., 2006). Atuam com artesanato e pesca, o caranguejo usado para alimentao.

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Foto 13 Associao de Mulheres do Pesqueiro (ASMUPESQ)

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em fevereiro de 2009)

Na vila do Pesqueiro, muitas casas tambm foram construdas em madeira com financiamento do INCRA. Observa-se que vrias dessas casas esto fechadas e so utilizadas, segundo os moradores, no perodo do vero por parentes dos moradores locais. Receberam tambm recursos para a aquisio de bens e apetrechos de pesca, contudo, o que se v, a princpio, um pequeno nmero de materiais de pesca e um nmero reduzido de pescadores. A localidade conta com posto de sade, escola de ensino fundamental e uma igreja, a principal atividade o crio de Santa Luzia de 12 a 13 de novembro. Em 2007, o Projeto Turismo da Amaznia do Maraj priorizou a vila e a praia do Pesqueiro para desenvolver o turismo. Houve a proposta da construo de uma pousada na vila do pesqueiro sob a gerncia da associao de moradores. Contudo, sob bases do ecoturismo, durante as discusses ficou decidido que os associados receberiam os visitantes em suas casas em sistema de rodzio, e com nmero limitado por temporada. Eles passaram um ano com diversos treinamentos, 60 famlias fazem parte do projeto. As hospedagens comeariam naquele ano de 2007 por meio do contato com a agncia Vagalume sediada em So Paulo ou com a Secretaria de Turismo da Prefeitura. Entretanto, nas diversas vezes que visitamos a vila, apenas ouvimos comentrios a respeito do projeto, mas nenhum comentrio sobre qualquer ao desenvolvida. A proposta de ecoturismo para a vila do Pesqueiro inclui passeio de bfalo pela praia do Pesqueiro, fato incompatvel com a legislao que regulamenta reas de reservas, visto que so animais de grande porte. Em reunio realizada pelo ICMBio na Praia do Pesqueiro no dia 02 de setembro de 2009, observou-se um apelo constante, principalmente da presidente da

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ASSUREMAS, pela manuteno dos bfalos naquela praia para passeios, esses realizados pelos moradores sem ligao direta com o referido projeto de turismo. A presena de animais de grande porte uma constante, inclusive s proximidades dos manguezais. Foto 14 Presena de gado na praia do Pesqueiro/Soure

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em setembro de 2009)

poca era uma constante as reclamaes acerca da ausncia de fiscalizao na praia e dos abusos cometidos pela populao do distrito sede e por turistas no perodo do vero, inclusive reportagens feitas pela TV Liberal denunciaram essa problemtica. Em nossa ltima visita praia em janeiro de 2011, observamos algumas medidas paliativas, como colocao de impedimentos fsicos para entrada de carro na praia, e placa indicativa da delimitao da RESEX. Um ponto bastante discutido na reunio foi a utilizao da tcnica da rabiola para a pesca (Fotos 15 e 16). A comunidade reivindica que a faixa de praia em frente vila seja de uso exclusivo para a pesca dos moradores daquela vila, uma vez que esse tambm um servio a ser oferecido na atividade do ecoturismo. A tcnica da rabiola realizada no banco de areia em frente vila, chamado pelas populaes locais, de croa. Enquanto atividade turstica permitiria ao visitante acompanhar o pescador na montagem da rede e na despesca.

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Foto 15 Tcnica da rabiola no Pesqueiro

Foto 16 Tcnica da rabiola no Pesqueiro

Fonte: ICMBio/Soure (2010)

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3.1.5 Vila do Pedral

Nosso contato inicial com a vila do Pedral se deu na primeira visita que iramos fazer s vilas do Caju-una e do Cu em fevereiro de 2009, quando no obtivemos autorizao para passar pelo porto da fazenda Bom Jesus. A escola dessa vila fica s margens da PA-154, a poucos metros do referido porto. A vila, conforme pudemos observar durante a primeira reunio dos tcnicos responsveis pela fase I do PM, mais prxima do manguezal do rio do Saco que do litoral. Adentrando pela estrada, a impresso que se tem de uma vila abandonada, a sede da Associao de moradores em condies precrias abrigou a referida reunio realizada no dia 26 de junho de 2009, conforme Foto 17 abaixo. As casas so de enchimento e sem condies de saneamento.

Foto 17 Reunio na vila do Pedral

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em junho de 2009)

Segundo relatos da Sra. Raimunda Dias da Silva, liderana religiosa local, so trinta e cinco casas na vila sendo que oito foram beneficiadas pelo projeto do INCRA. H uma forte expectativa dos locais em serem contemplados por essa poltica do rgo, na especificidade

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da construo das casas. A localidade possui um poo com bomba e caixa dgua, doados por um projeto da igreja catlica. A energia eltrica produzida a diesel cobrada pela prefeitura motivo de reclamao dos moradores em virtude dos valores altos. As atividades econmicas so a produo de carvo de capoeira47, coleta de caranguejo e o leo do bicho do tucum. Este ltimo tem sua produo destinada venda e ao consumo, em virtude de suas propriedades nutricionais e medicinais, segundo informaes locais, j testadas por profissionais da UFPA. O leo do bicho do tucum produzido artesanalmente por homens e mulheres. Em geral, os tucums apodrecidos so recolhidos por mulheres e crianas, o fruto deve cair naturalmente. Segundo relatos dos presentes antes do incio da reunio, o besouro deposita o ovo atravs de um orifcio feito no tucum, a larva se desenvolve (Foto 18); os tucums so assim recolhidos j em estado mais ressecado e no centro onde ficava o caroo do fruto encontra-se a larva, que retirada e frita em panelas sobre o fogo, o leo produto desse processo, que condicionado em vasilhames vendido ou consumido, servindo para baques, cabelo, pele, inflamaes e alimentao. O bicho torrado serve de alimento consumido com sal ou acar e farinha. O que foi feito na nossa presena, como demonstrativo. Foto 18 Larva do Tucum vila do Pedral

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em junho de 2009

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O carvo de capoeira produzido com restante de madeira encontrada em reas desmatadas pelo exerccio da agricultura migratria. Essas reas so abandonadas em pousio por longos perodos de tempo.

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3.1.6 As praias da Araruna, Barra Velha e Mata Fome

Em reunio ocorrida no dia trs de setembro de 2009 no horrio da tarde, com a presena de moradores das praias da Araruna e Barra Velha, foi possvel verificar que so ambientes conservados, considerando o relativo isolamento em relao sede do municpio. Vrios moradores so associados da ASSUREMAS. Jeane Guedes, moradora da praia do Araruna, faz parte da atual gesto da Associao. O acesso praia Araruna fica condicionado passagem pelo porto da fazenda Araruna, de propriedade da senhora Amlia Barbosa. Segundo sites de propaganda turstica48, na fazenda possvel andar de bfalo at a praia e remar de canoa pelos furos e canais encobertos pela densa vegetao de mangue, alm da hospedagem na pousada prpria da fazenda. Em geral, essas aes tursticas que adentram por reas de domnio da reserva no possuem autorizao do ICMBio nem do Conselho Deliberativo da Unidade, gestores legais da reserva. Aos moradores das praias resta tambm, conforme ocorre em outros lugares de Soure, a submisso ao domnio e controle exercido por fazendeiros sobre esses territrios. A principal atividade econmica dos moradores da praia Barra Velha o comrcio. So quinze bares, com apenas dois servindo tambm de moradia; no Araruna as casas, vinte no total, so de moradia e apenas quatro funcionam tambm como bar. Todas em construo rstica, em madeira e palha. Durante as reunies da consultoria do PM, foi informado que os moradores decidiram que no seria permitida a construo de nenhuma outra casa na rea dessas praias, para evitar a explorao imobiliria do local.

3.2 O MUNICPIO DE AUGUSTO CORRA-PA - LUGAR DE PESCADOR

Diferente do municpio de Soure, Augusto Corra no nordeste paraense, visivelmente um lugar de pescadores, a rea urbana j demonstra essa vocao a circulao principalmente do peixe e do caranguejo-u bem mais visvel. Em Soure, por se tratar de uma ilha (Maraj), a produo escoa pelos rios e canais e essa visibilidade imediata no se faz to presente. Ainda tambm em Soure, a atividade produtiva da pesca se mescla por safra atividade do extrativismo vegetal.

48

Vide <www.viajeaqui.abril.com.br/guia4rodas/fazenda-araruna>. Acesso em: 17 set. 2010.

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Em Augusto Corra, particularmente as vilas so bem definidas quanto separao entre a pesca e a agricultura. As duas principais atividades econmicas do municpio referemse dupla vocao caracterstica do Nordeste Paraense, como afirma Furtado (1987, p. 33), alm do extrativismo vegetal, esse com menor incidncia. As vilas que se localizam na estrada que se inicia na localidade do Patal, seguida do Recreio e Boa Esperana, dentre outras, so basicamente lugares onde seus habitantes vivem da prtica da agricultura de subsistncia, produzindo feijo caupi, milho, manga, pimenta do reino, coco, caf, caju, banana e outros produtos. Ocupando 11.783 trabalhadores rurais, segundo o censo agropecurio de 1995/96. As localidades cujo acesso se faz pela estrada do Anoir, Vila Nova, Aturia, Juta, Nova Olinda e Ara possuem pequena produo de feijo, arroz e outros gneros, tendo na pesca artesanal a principal atividade produtiva, considerando o maior contato com a costa do Atlntico e reas estuarinas. No setor industrial, existem trs fbricas de gelo que atendem a demanda do setor pesqueiro. Uma est localizada na sede municipal, uma na ilha das pedras, localizada no percurso do rio Urumaj e outra na vila de Nova Olinda. No Par, os municpios limtrofes ao oceano Atlntico compem a chamada zona fisiogrfica do Salgado. Dentro desse contexto, Augusto Corra limita-se, ao Norte, com este oceano, a Oeste e ao Sul com o municpio de Bragana e a Leste com o municpio de Viseu. O municpio, segundo dados do Instituto do Desenvolvimento Econmico Social do Par (IDESP) remonta a 1875, quando seus moradores construram uma capela para So Miguel Arcanjo, que se tornou padroeiro do municpio. Em 1895, constava como povoado do municpio de Bragana, ainda sob a denominao de Urumaj 49; elevado categoria de vila em 1898, alcanou o desmembramento em 29 de dezembro de 1961 por meio da Lei Estadual n. 2.460. O topnimo de Augusto Corra se deu por meio do decreto-lei 164 de 23 de janeiro de 1970 em homenagem ao poltico antibaratista, eleito por duas legislaturas estaduais por Bragana. Pertence Mesorregio do Nordeste Paraense e Microrregio Bragantina. Imagem 5 Microrregio bragantina, em destaque o municpio de Augusto Corra

49

Em tupi, Urumaj significa balaio grande. Contudo, a histria comumente relatada por populares e registrada no conto A aldeia, de Antonio Coutinho de Campos, de que a origem do nome est associada a uma m interpretao dada por um expedicionrio da milcia francesa enviada do Maranho por Daniel de La Touche para reconhecimento da regio. Ao indagar um caboclo local sobre o nome do rio, o militar teria recebido como resposta o nome de um pssaro muito frequente na regio acompanhado de sua designao Uru, Maj (major), tendo assim chamado o rio de Urumaj, nome posteriormente dado vila.

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Fonte: SESPA (2009)50

O acesso ao municpio se d por via terrestre pela BR-316 e pela PA-454. Est a 212 km de Belm, a 73 km de Capanema e a 18 km de Bragana, e por via fluvial, atravs dos diversos cursos dgua que se interligam na regio. O municpio constitui-se de 132 localidades, organizadas em 04 distritos, Augusto Corra (sede), Aturia, Embora e Itapixuna a diviso em distritos, segundo informaes de funcionrios da prefeitura, uma diviso poltica em vilas e distritos que facilita a administrao interligados pelas rodovias PA-454 Bragana/Augusto Corra, PA-242 Patal/Monte Alegre, PA-462 Aturia/Ara e estradas vicinais alm do rio Urumaj e seus afluentes, conforme croqui cedido por Miguel Reis, presidente da Associao agropesqueira da vila de Nova Olinda.

50

Disponvel em <www.portal.sespa.pa.gov>. Acesso em: 12 set. 2009.

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Imagem 6 Municpio de Augusto Corra rodovias, rios Urumaj, Embora e vila do Ara em relao a sede municipal

PA 462 Sede do Municpio PA 454 Rio Urumaj Vila do Ara

Rio Embora

PA 242

Fonte: Miguel Reis51 (pesquisa de campo, 2007, adaptado por computao grfica)

Sua populao, segundo estimativas do IBGE para 2009 52 soma 39.317 habitantes. Em 1980, a participao relativa da populao rural era de 77,5%, em 2000, por meio de dados do IBGE, essa mesma populao representava 59,6%, havendo, portanto, um decrscimo da populao rural. O IDH de 0.62. Com base nos dados do censo de 2000, 39% da populao de Augusto Corra se ocupa dessas atividades agropesqueiras; dentro desse quadro, as organizaes existentes so um Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural, um Sindicato de Trabalhadores Rurais e um Sindicato de Produtores Rurais, alm de 29 Associaes agropesqueiras formais, duas associaes informais e uma Colnia de Pescadores, a Z 18, fundada em 16 de abril de 1978, com cerca de 1.489 pescadores registrados. (Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente SEAMA).

51 52

Croqui cedido por Miguel Reis criador de ostras em cativeiro no rio Peroba, limite da RESEX Ara-Peroba. Disponvel em: <www.ibge.gov.br/cidadesat>. Acesso em: 14 ago. 2009.

De Nosso Lugar a RESEXs Marinhas 132

So predominantes no municpio as reas de manguezais e de terra firme com uma vegetao respectivamente de mangue e florestas secundrias. Segundo dados da Secretaria Executiva de Cincia, Tecnologia e Meio Ambiente (SECTAM), anlises do ano de 1986, de acordo com imagens LANDSAT-TM, demonstram que o desmatamento foi de 44,03%. A vegetao de manguezal considerada pelos analistas, preservada, se comparada de outras regies do Brasil. De acordo com informaes do relatrio que subsidiou a constituio da APA da Costa de Urumaj (2001), o litoral do Nordeste Paraense ainda encontra-se preservado, se comparado ao restante do litoral brasileiro, em virtude do difcil acesso e da distncia das sedes municipais. A hidrografia do municpio caracteriza-se pela presena de amplas baas litorneas para onde converge a rede de drenagem da regio. A noroeste destaca-se a baa do Caet, que recebe os rios Caet, que delineia o limite com Bragana, o Urumaj, que banha a sede de Augusto Corra prximo de sua foz e que tem como principal afluente, pela margem esquerda o rio Tijoca e Aturia na poro central, e cujas nascentes esto no municpio. A nordeste destacam-se as baas do Embora, do Chum e do Camar-Au, sendo que para a primeira dirigem-se os rios Embora e Ara; para a segunda, o rio Emboranunga, limite oriental com o municpio de Viseu. Destaca-se ainda a presena de ilhas, tais como da Coroa Comprida, Ponta do Cardoso, Ponta do Rodrigo, Camar-au, Ilha do Meio, Coroa Seca e da Felipa, pontos tursticos do municpio. Quanto s festividades municipais, destacam-se o Baile dos Coroas, no dia 13 de maio, a Feira da Cultura Arraial Urumaj no ms de Junho, o Uruluar serestas enluaradas no perodo de lua cheia, a Festividade de So Miguel Arcanjo Padroeiro da Cidade, que ocorre no ultimo final de semana de Setembro, alm da Festividade de So Benedito em dezembro, quando tambm acontece o circuito de corridas e o Crio de Nossa Senhora de Nazar, realizado no 1 Domingo de dezembro. O folclore diversificado, como exemplo, a Marujada, Boi-Bumb, Burrinha, Serra Velha, Quadrilha Tradicional Junina e o Pssaro junino.

De Nosso Lugar a RESEXs Marinhas 133

3.2.1 As vilas pesqueiras

As vilas de pescadores que compem o entorno da RESEX Marinha Ara-Peroba foram distribudas em trs polos, definidos pela equipe do ICMBio. Envolvem, alm das vilas que os nomeiam, localidades prximas cujos moradores tambm so usurios da Reserva. Desse modo, no polo Ipixuna alm dessa vila esto agregadas as vilas do Cedro e Paxiiba, o segundo polo o Itapixuna que rene tambm a vila Cachoeira e Areia Grossa e o terceiro o polo Ara que contempla essa vila e as vilas Caada e Porto do Campo. Alm dessas vilas consideradas rea de entorno imediato da Reserva, outras que no esto to prximas geograficamente tambm podem ser consideradas rea de influncia da RESEX, visto que grande parte da populao atua na pesca adentrando pelas guas interiores at as reas de mar aberto no litoral do municpio. Dentre essas, iremos nos ater as trs principais, considerando a produo pesqueira, no caso de Nova Olinda, a Vila do Ara sede da RESEX e Porto do Campo uma das duas vilas que esto dentro dos limites da Reserva, constitui-se de rea de manguezal aterrado.

3.2.1.1 Ara

O retorno vila do Ara, para uma reaproximao com a populao local, aps acompanhar o trabalho tcnico do ICMBio, permitiu uma aproximao maior com o lugar, podendo assim identificar com mais preciso o cotidiano social, a organizao socioespacial, bem como os meandros da vida econmica, cultural e do poder local. Meandros, em grande medida, determinantes para o entendimento das relaes humanas com a natureza. ltima localidade da rodovia PA-462, a vila ocupa as margens dessa estrada que finaliza no Porto da Ponta onde se encontra o rio do Ara, limite da RESEX. Segundo relatos locais, a vila surgiu a partir das margens do referido rio, as proximidades de um olho dgua onde a famlia Corra construiu uma casa, vindos da regio de Viseu, em busca de melhores condies de pesca. A localidade chamava-se ento Casa Branca, em referncia primeira casa da localidade, conforme veremos no captulo seguinte. Atualmente a vila possui quatro portos da Rocinha, Caju, Ara e o Porto da Ponta, sendo que somente o da rocinha possui um trapiche dando melhores condies para as embarcaes aportarem.

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Foto 19 Portos na vila do Ara

Foto 20 Portos na vila do Ara

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em janeiro de 2010)

Na vila do Ara, no localizamos o que se poderia denominar de centro ou rea urbana comercial, de propores bem menores que a vila de Nova Olinda a maior vila do municpio de Augusto Corra em nmero de moradores e nmero de pescadores. Entrando na

localidade por acesso da estrada, situam-se alguns pequenos comrcios, um campo de futebol, uma das duas escolas locais, sendo a primeira de ensino fundamental e mais adiante a de ensino mdio. Funciona ainda na vila uma turma do curso de pedagogia de uma faculdade particular nas dependncias da escola de ensino fundamental Emiliano Picano da Costa.

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Foto 21 Vila do Ara

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em janeiro de 2010)

Em geral, h de se pensar que a vila tem seu centro originrio na estrutura que congrega a igreja catlica, a praa e o porto do Ara, onde fica o lugar do antigo olho dgua, que hoje ainda brota quando a mar seca, embora esteja encoberto pelo lixo e aterro. Ao redor dessa estrutura, ficam as primeiras casas da vila, cronologicamente falando. A Vila cresceu no sentido Rio Ara para as margens da estrada. No entorno esto localizados dois clubes a Associao de Futebol do Ara (AFA) e o Nutico, uma quadra de esportes e outro campo de futebol. A populao local conta ainda com um posto mdico, um mdico e enfermeiras todos os dias. A ambulncia que atende os moradores da vila de Nova Olinda. Um problema econmico apontado pelos moradores a falta de um mercado e de uma fbrica de gelo. Segundo relatos de moradores locais, durante a reunio ocorrida em 15.10.09, a justificativa de tcnicos contratados para realizar uma avaliao acerca da construo da referida fbrica foi que o rio Ara na mar seca no comporta aportar barcos maiores para embarque do gelo e desembarque do pescado. A populao local distribui-se pelos bairros do Caju, Vila Nova, Caixa dgua, Rocinha, Favelinha 13 e Vila Mariana. Neste ltimo mora a maioria dos pescadores da vila,

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so populaes praieiras53 da Ilha do Meio. Segundo relato s, como a praia estava acabando, o Sr. Demtrio Corra cedeu-lhes as terras para morar. a segunda maior comunidade pesqueira com aproximadamente 2.700 habitantes e 600 pescadores. A pesca mais expressiva a do camaro branco, ocupando 47% dos pescadores, realizada com pu de arrasto54 e pu de muruada55, utilizam para espcies diversificadas de peixes redes fixas e, em menor expresso a tapagem, o espinhel e o curral. O maior nmero de caranguejeiros est localizado no bairro da Rocinha. O trabalho organizado em torno das duas atividades predominantes no municpio e caracterstico da regio do salgado paraense. H aqueles que atuam na roa, os que atuam na mar e os que ocupam as duas funes. Relatam ainda uma grande migrao da populao local em busca de outras fontes de renda, segundo um morador no Curuamb existe outro Ara, para se referir a grande migrao das pessoas da vila para o bairro do Curuamb no municpio de Ananindeua na regio metropolitana de Belm. A populao est organizada em seis associaes, sendo trs em vias de regularizao e trs legalizadas a Associao de Usurios da Reserva Ara-Peroba (AUREMAP), Associao de Mulheres, Associao de Pequenos Empreendedores da Reserva. Quanto s atividades culturais, so o crio de Nossa Senhora de Nazar no terceiro domingo de novembro e a Feira da Cultura em junho, alm do festival do camaro realizado por um marreteiro local, que ocorre em outubro.

53 54 55

A populao local denomina de praieiros aos moradores de bancos de areia, aos quais denominam praias. Rede em forma cnica usada em movimento. Rede semelhante ao pu de arrasto, diferencia-se apenas pelo seu uso fixo.

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Foto 22 Cartaz do Crio da vila do Ara

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em janeiro de 2010)

3.2.1.2 Porto do Campo

Ponto de partida para os debates acerca da criao da Reserva, Porto do Campo uma ilha, s margens do rio Peroba. Uma das duas localidades que esto dentro da rea delimitada como RESEX, a outra a vila do Cedro. O acesso se faz por via fluvial, a trs horas de barco da sede do municpio, e por via terrestre. Por estrada h a via municipal Ipixuna-Porto do Campo e por meio de ramal na PA-462, localizado um pouco antes da vila do Ara. De acordo com as informaes do Sr. Nelson Rabelo, pescador aposentado, morador da vila e atual presidente da Associao Agropesqueira local, a estrada e o ramal s foram viabilizados aps a candidatura do Mdico Milton Lobo, que, ao visitar o Porto do Campo em campanha eleitoral para a prefeitura do municpio, ficou ilhado pela mar cheia, constatando as dificuldades de acesso e locomoo. Feito o pedido e mediante os fatos, ento prometeu construir o acesso caso fosse eleito, o que ocorreu em 1996.

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Foto 23 Placa da estrada de acesso vila do Porto do Campo

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em outubro de 2009)

Seus primeiros moradores so oriundos de outra ilha que desapareceu em virtude da eroso. O prefeito poca, Osvaldo Sampaio, autorizou que as pessoas passassem a morar nas terras que hoje constituem a vila do Porto do Campo. Os primeiros moradores so, segundo o Sr. Nelson, a famlia de um senhor conhecido como Conrado Caranguejo, cujos filhos agora moram na Vila de Nova Olinda. Outras famlias foram chegando da ilha do Campo Grande e da praia Grande, esta tambm desaparecida em virtude da eroso, que escangalhou , como relata o Sr. Nelson. A Famlia Torres, uma das mais antigas, ainda mora na localidade cujo nome de antepassados est homenageado na nica escola de ensino fundamental Josefina Alves Torres. O prefeito Osvaldo Sampaio adquiriu por meio governo do Estado, mandato de Alacid Nunes, terrenos na ilha que doou para esses grupos familiares que iam chegando se estabelecerem e morar. Esses terrenos e o local onde esto construdas a Igreja, a escola e o campo de futebol foram adquiridos da famlia Torres, que adquiriu essas terras da Marinha do Brasil.

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Foto 24 Vila do Porto do Campo

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em janeiro de 2010)

Residiam no ano de 2000 aproximadamente 25 famlias, a contar pelo nmero de casas. Hoje so 65 casas, sendo dessas 38 construdas pelo programa do INCRA. Dados do agente de sade local indicam 60 famlias, envolvidas tanto na agricultura feijo, mandioca quanto na pesca de caranguejo, camaro e peixe, embora essa seja a atividade predominante. A localidade tem abastecimento de gua por meio de poo e caixa dgua, como em todas as vilas do municpio que contatamos. Algumas casas possuem poos nos quintais. A energia eltrica fornecida pela Rede Celpa. No possui posto de sade e para que os moradores possam usufruir desse servio deslocam-se para a vila do Ara e para a sede do municpio. Aproximadamente 40 pescadores utilizam a pesca de espinhel e rede de emalhar. Um dos principais problemas ambientais percebidos de imediato so as queimadas s margens do ramal, visando criao de gado (Fotos 25 e 26). Segundo a legislao, fica impedida a criao de animais de grande porte, em virtude da definio de Reserva Extrativista que prev atividades de extrativismo complementadas na agricultura de subsistncia e criao de animais de pequeno porte.

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Foto 25 Criao de gado na rea da vila do Porto do Campo

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em janeiro de 2010)

Foto 26 Criao de gado na regio da Reserva Ara-Peroba

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em junho de 2007)

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3.2.1.3 Nova Olinda e outras Vilas na rea de influncia da RESEX Marinha

No municpio de Augusto Corra, como em toda a regio do Salgado, h um grande quantitativo de pescadores artesanais. H, assim, um constante ir e vir das populaes pesqueiras, de acordo com os tipos, a safra e os locais de pesca, abrangendo lagos, rios, igaraps at o alto-mar. Desse modo, no somente a populao do municpio adentra nessas guas interiores ou faz uso dos recursos pesqueiros das guas de fora. Assim, h uma constante presena da populao pesqueira nessa regio, particularmente das vilas mais prximas. Dentre outras localidades nas adjacncias da reserva, destacamos abaixo algumas nos marcos do municpio, no sentido de apresentar com mais preciso o contexto social dos pescadores que atuam nessa reserva, para alm dos polos definidos pelo rgo gestor como rea de abrangncia direta. Nova Olinda uma das mais antigas e maiores em termos populacionais, com aproximadamente 4.000 habitantes, sendo aproximadamente 800 pescadores. A pesca de curral a mais frequente, cujas espcies mais capturadas, a partir das denominaes locais, so a tainha, pratiqueira, urutinga, corvina, bagre e cangat. Nas pescarias mais localizadas em direo ao alto-mar, utilizam redes de emalhar, chamadas malhadeiras, que servem para capturar pescada amarela, e nas pescarias interiores utilizam, entre outros instrumentos, a rede caiqueira, capturando espcies de peixes pequenos como a caca. Como no possuem instrumentos e embarcaes de mdio ou grande porte, a pesca fica mais restrita s guas interiores. A captura de espcies de peixes grandes como a pescada tambm pode ser realizada nessas guas, contudo no se faz pela ausncia de instrumentos de trabalho apropriados. Na vila da Croa Comprida, habitam cerca de 200 pessoas, das quais aproximadamente 40 so pescadores atuando na pesca de curral. Parte dessa comunidade deslocou-se para uma nova rea conhecida por vila do Perimirim, em virtude dos efeitos da eroso que atingiu parte do local. A pesca o nico meio de sobrevivncia dos habitantes locais. A vila do Perimirim foi criada a partir do desaparecimento de parte da vila da Coroa Comprida h aproximadamente 36 anos, com 800 habitantes e dentre estes aproximadamente 250 pescadores. Os principais tipos de pesca exercidos pelos pescadores da vila so os com uso de redes de emalhe56, espinhel e curral.

56

Redes de malha, que prendem ou colhem em malhas, usadas fixas ou mveis (ROSA, 2007).

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Aturia uma vila agropesqueira com aproximadamente 4.000 pessoas, das quais aproximadamente 150 so pescadores que atuam na Praia Grande com espinhel, redes, tapagem e curral em reas de esturios e regio costeira. Os esturios so considerados dentre os sistemas mais produtivos em termos de produo primria formao de substncias orgnicas ricas em energia, permitindo a fixao de carbono no ambiente (PEREIRA, 2002). Atuam tambm na pesca do camaro branco com pu de arrasto. Aqui podemos observar que, alm de atuarem em reas de significativa importncia ambiental como nos esturios, utilizam tcnicas pouco seletivas, como o caso da pesca do camaro, j que o pu de arrasto no permite a seleo do tamanho do camaro pescado, alm de remover microorganismos como os fitoplnctons e zooplnctons essenciais para a produo de nutrientes nessas guas. Na Ponta do Urumaj tambm predominam as atividades agropesqueiras. A localidade possui aproximadamente 300 habitantes, dos quais 60 so pescadores, predomina a a pesca do camaro branco com pu de arrasto. Em virtude das safras dos peixes, praticam tambm, como complementao, outros tipos de pesca. Essas comunidades pesqueiras de Augusto Corra desenvolvem a pesca durante todo o ano, com apoio de outros instrumentos de trabalho como a montaria movida a remo, tambm chamada pelos pescadores de bote ou casco, a canoa movida a vela ou a remo, a canoa motorizada, o barco de pequeno porte e barcos de mdio porte. (Relatrio tcnico Parcial JICA Agncia Japonesa de Cooperao Internacional, 2004). Nessas localidades pesqueiras do municpio de Augusto Corra, os conflitos relatados so em torno do uso dos recursos pesqueiros, em geral entre caranguejeiros da vila do Treme em Bragana que adentram a rea de manguezais pouco explorada pela populao de Augusto Corra. Os relatos indicam conflitos entre pescadores artesanais em virtude das artes de pesca, posto o uso de determinadas pescarias proibidas, em geral desenvolvidas por pescadores da sede do municpio, que adentram os cursos dgua das vilas ocasionando estragos e a diminuio dos estoques pesqueiros. Contudo, apesar desses relatos, observamos que o maior conflito existente em termos de disputa e invaso dos territrios sociais locais tem sido a entrada da pesca industrial que invade as dez milhas martimas da costa reservada para a pesca artesanal, prtica inclusive adotada por barcos lagosteiros (ROSA, 2007).

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3.3 AS RESEXS MARINHAS uma nova territorialidade

As experincias produtivas sustentveis no extrativismo so pioneiras, associadas luta pela criao de Reservas Extrativistas (RESEXs), verdadeiras territorialidades amaznicas. (BECKER, 2010, p. 21, grifo nosso).

O processo de criao das RESEXs Marinhas no litoral paraense demarca a institucionalizao de uma nova territorialidade novas formas de se relacionar e de gerir os territrios utilizados pelas populaes locais a ser assumida legalmente tanto pela esfera do Estado brasileiro quanto pelas populaes locais que vivem dos recursos naturais demandados dessas reas, em uma poltica de cogesto. A demarcao geoambiental dessas reas a serem conservadas institui-se em uma territorialidade poltico-institucional, refletida e deliberada pelas esferas de poder pblico e sustentada no aporte cientfico e tcnico, tanto para suas criaes quanto na etapa de institucionalizao dos modos de manejo dos recursos naturais que se d via Plano de Manejo. Essa nova territorialidade se sustenta sobre as mesmas bases territoriais sobre as quais as populaes locais erigiram suas identidades e estabeleceram pactos em torno dos espaos de extrativismo dos recursos naturais. Territrios quase sempre repletos de conflitos e disputas pelo poder em escalas distintas. So tenses intragrupais que disputam os mesmos espaos extrativistas no nvel da sobrevivncia e entre esses e grupos com poderio econmico, como no caso de fazendeiros na RESEX de Soure e da pesca industrial no caso da AraPeroba. Essa territorialidade que estamos designando poltico-institucional compreende outras formas de pensar, perceber e valorizar o uso dos recursos naturais dadas as perspectivas e os interesses que se apresentam no contexto das academias, centros de pesquisa e dos interesses que se apresentam na esfera poltica-institucional demandando, portanto, outras formas de relao do homem com a natureza em reas decretadas UCs e que efetivamente partem de sentidos distintos daqueles locais.

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3.3.1 Aspectos geossocioambientais da RESEX Marinha de Soure Imagem 7 Localizao da RESEX de Soure

Fonte: CNPT/IBAMA (2007)

Primeira Reserva Marinha decretada no estado do Par, a RESEX inicialmente denominada Maruanazes foi instituda em 2001. Sua criao est intimamente relacionada a conflitos em torno do uso dos recursos ali disponveis, principalmente do caranguejo-u. Conflitos sociais esses que se constituem em torno da manuteno do lugar enquanto contexto

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da sobrevivncia de modos de ser e fazer locais e que dependem do controle sobre os territrios delimitados pelo domnio implcito no uso consuetudinrio dos grupos sociais de extrativistas e que, desse modo, manifestam-se tambm como conflitos de posse. Com forte influncia sobre sua criao, tcnicos do IBAMA atuaram na rea juntamente com os representantes do CNS, que poca passou a ter presena mais constante na regio. Os interesses institucionais de criao da Reserva se agregaram em torno das reivindicaes dos caranguejeiros locais, que visibilizados por esses rgos passam a se organizar em prol da eliminao do uso indevido dos recursos por pescadores do nordeste paraense e de outros municpios do estado, encontrando na proposta do IBAMA, de criao da UC, a nica alternativa que se apresentou na expectativa da resoluo dos problemas presentes no contexto da pesca artesanal local, mais especificamente na explorao do caranguejo-u. Outras questes presentes no contexto dessa RESEX apontam para uma caracterizao particular quanto ao uso dos recursos naturais, o que, em grande medida, molda o comportamento da populao extrativista local. A formao de latifndios, procedente do perodo da colonizao na regio e os conflitos provenientes da quanto ao acesso s reas de manguezais, praias, igaraps e rios so uma constante nessa unidade. Assim, deve-se pensar que essa lgica da diviso da sociedade entre proprietrios de grandes reas de terra para uso principalmente da criao de gado bubalino e a populao desprovida de terra e meios de sobrevivncia engendra relaes estruturais nos modos de vida locais, onde coexistem o extrativismo e o trabalho para esses fazendeiros. Muitos moradores das adjacncias da RESEX migram para a rea urbana de Soure, distrito sede, para ali conciliar na atividade de trabalho, dentre outras ocupaes a de subempregados dos fazendeiros , como pees, empregadas domsticas, produtores de queijo e outros derivados do leite, seguranas e caseiros das fazendas e, em tempos de safra, o extrativismo, atuando como usurios da RESEX. No sentido de apresentar o contexto geoambiental no qual as interaes de grupos sociais distintos se materializam, por vezes, em resultados que coadunam interesses e, por vezes, sobrepem interesses divergentes, passamos a apresentar a diversidade do contexto local sob o foco da delimitao poltico-institucional. A RESEX Marinha de Soure, com aproximadamente 27.463,58ha, localiza-se na parte oriental do Maraj, dividida em duas grandes reas conhecidas como manguezal de Soure e manguezal do Rio do Saco, delimitao geogrfica que atende a demanda legal de conservao dos recursos de manguezais e reas litorneas, incluindo a os esturios conforme

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Imagem abaixo. A Reserva possui 15 ha de manguezal e um ha de espelho dgua, alm da rea de uma milha nutica para dentro do mar. Limita-se ao norte com o oceano Atlntico e ao sul com o municpio de Salvaterra, a leste com a baa do Maraj e a oeste com os municpios de Chaves e Cachoeira do Arari. Est sobreposta a outra UC APA arquiplago do Maraj. Imagem 8 Delimitao da RESEX de Soure e localizao das reas de manguezais

Fonte: CNPT/IBAMA (2007)

Dentre os principais problemas visualizados no que se refere efetiva institucionalizao da Reserva, um que se apresenta como constante a questo fundiria. So 12 fazendas abrangidas pela rea da RESEX Marinha de Soure, segundo dados do CNPT/IBAMA. Embora esse dado numrico, por si s, seja bastante significativo, possvel

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ainda localizar conflitos entre os usurios da RESEX com outros fazendeiros, cujas fazendas esto fora da rea da Reserva, mas que pela situao geogrfica e econmica condicionam o cotidiano das populaes extrativistas. O que quantifica em parte a problemtica social fundiria local em torno da RESEX. Inclusive problemas em relao concesso real de uso para os extrativistas usurios da rea, que se v transgredida. Embora, segundo informaes da presidente da ASSUREMAS, a efetivao legal dessa concesso s tenha ocorrido em meados de 2010, o uso tradicional dos recursos naturais em rios, igaraps, lagos, manguezais e praias sempre esteve condicionado a conflitos em virtude da suposta propriedade dessas extensas reas. Quadro 5 Relao de proprietrios e fazendas abrangidas pela RESEX de Soure (2007)
NOME Alacid Nunes Filho Eva e Eliana Boufayat Eduardo Ribeiro Irandilva Moura Edson Venceslau Carlos Augusto Nunes Gouva Amlia Barbosa Gedilson Figueiredo Cosme Antnio Carlos Santos Gomes Brito Tonho FAZENDA Camburupy Bom Jesus Bom Jardim No identificado o nome da fazenda Santa Catarina Mironga Fazendo (Araruna) Retiro Altamira Praia do Pesqueiro Fagundes So Jernimo (proximidades do pesqueiro) Boa Esperana

Fonte: CNPT/IBAMA (2007, adaptado)

A RESEX Marinha de Soure envolve dentro dos limites estabelecidos reas de manguezais, rios, canais e uma milha martima da costa de trs vilas, do Caju-una, Pesqueiro e Cu, conforme Figura 5. Havendo proposta de incluir a vila do Pedral, j que seus moradores so usurios do manguezal do Rio do Saco. Nos bairros da sede de Soure, reside a grande maioria dos usurios da RESEX Marinha. Segundo dados do CNPT/IBAMA, do primeiro cadastramento de usurios da Reserva, descrito como cadastro de usurios

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(pescadores) da RESEX, eram 1.112 usurios poca que viviam principalmente da coleta de caranguejo e da pesca, e das principais atividades extrativismo vegetal coco e aa. Atualmente so aproximadamente 132 famlias nas vilas que integram os limites da RESEX e 1.300 famlias de usurios (dados da Secretaria Municipal de Assistncia Social). Cerca de 278 caranguejeiros de 09 bairros atuam na rea, havendo, contudo, desse total uma maior concentrao nos bairros do Tucumanduba e bairro novo (CNPT/IBAMA, 2007). Imagem 9 Localizao das vilas do Pesqueiro, Caju-una, Pedral, Cu e praias da Barra Velha e Araruna

Pedral Cu

Barra Velha Araruna

Bairros

Fonte: IBAMA (2007, adaptado)

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Ainda no sentido de demonstrar a problemtica acerca dessa RESEX, particularmente para apresentar, em parte, as questes sociais que se constituem no local, em meio a institucionalizao da unidade, recorremos aos dados de uma carta da mesma associao ASSUREMAS e da ONG Novos Curupiras datada de 18 de agosto de 2007, seis anos depois de sua criao e publicada no site www.portalamazonia.globo.com, cujos trechos destacamos a seguir: a invaso de pessoas vindas da costa atlntica continental [...] criam-se novas reservas extrativistas na parte continental do Par, mais exatamente no Nordeste do estado, onde existem manguezais e a invaso aos nossos manguezais continua e pergunta: por que no se investe na criao de fato de um plano de manejo onde ns extrativistas de Soure possamos dizer o que queremos fazer em vez de trazer receitas e teorias prontas que no conhecemos e que no nos deixam conhecer para poder dizer nossa opinio e decidir melhor? Questes como essas demonstram no s a problemt ica em torno da participao local no bojo da poltica de Unidades de Conservao, mas tambm do contexto do extrativismo nessa RESEX. So problemticas como estas apresentadas, como o conflito entre pescadores da RESEX de Soure e pescadores do nordeste paraense, que devem ser pensadas como base para as aes locais. na percepo da organizao da pesca artesanal no litoral paraense, em suas particularidades, como o chamado circuito da pesca movimento dos pescadores artesanais pelo litoral paraense em virtude da sazonalidade apresentado em estudo de Leito (1995), dentre outros, que se ter condies mais adequadas para uma poltica ambiental de Unidades de Conservao e nesse contexto para a elaborao de Planos de Manejo. J em 2002, um ano depois de criada a RESEX Marinha, em ofcio datado de 25 de junho, a ASSUREMAS se dirigido ao procurador Geral da Republica Felcio Pontes, manifesta os conflitos que a populao j vivenciava poca em relao delimitao da rea. A denncia refere-se aos fazendeiros que alegavam a propriedade de reas de manguezais, igaraps e praias e que at a atualidade continuam proibindo o uso dos recursos que a RESEX oferece aos extrativistas locais. Uma das principais barreiras encontradas pelos usurios da RESEX o j referido porto, poca, segundo o ofcio, murado e eletrificado com mais de um Km cercando o manguezal nas delimitaes da fazenda Bom Jesus, visto que a fazenda atravessada por uma das vias da bifurcao da PA 154, estrada que d acesso e termina na comunidade de Caju-una, sede da RESEX de Soure, conforme j foi explanado anteriormente. Segundo relatos de usurios em reunio ocorrida em 01 de julho de 2009 com usurios dos bairros do Umirizal, Pacoval e praias do Araruna e Barra Velha, a mesma problemtica

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enfrentada por outros usurios, visto que os portes da fazenda Araruna impedem o acesso s praias, inclusive com cobrana de taxas para permitir a entrada. O que confirmado pelos sites de propaganda turstica das referidas praias, acessados na data de 16 de janeiro de 2010. A criao da RESEX sustentou-se sobre um diagnstico biolgico estrito acerca do caranguejo-u e do estudo socioeconmico realizado acerca da categoria dos caranguejeiros, espelhando a questo central que suscitou a criao da Reserva. A equipe, segundo o laudo da UC, compunha-se de 06 estudantes do campus da UFPA em Soure e 03 caranguejeiros. A metodologia aplicada comps-se de questionrios e observao de campo. Contraditoriamente, a elaborao do Plano de Utilizao (PU) produzido a partir de uma reunio na Vila do Pesqueiro e outra no salo paroquial na sede de Soure deixou margem as questes dos caranguejeiros. Nele no se encontra qualquer meno sobre essa atividade. Embora o princpio participativo pudesse ser argumentado com a presena de 03 caranguejeiros na equipe que realizou o levantamento de dados referente ao laudo biolgico, a elaborao do PU demonstrou a falta de conexo, posta a ausncia das questes referentes coleta do caranguejo-u, uma das principais atividades desenvolvidas na UC e a ser pensada nesse documento. De acordo com Allegretti57 em seus comentrios ao roteiro do Plano de Manejo (2006):

Uma metodologia verdadeiramente participativa requer um planejamento [...] que o pleno conhecimento da comunidade a respeito das riquezas e potencialidade de sua rea e das oportunidades e limites de uso desse patrimnio. O plano de manejo precisa ser um instrumento de trabalho para os moradores e no um documento acadmico para conservacionistas ou funcionrios pblicos. Assim o planejamento deve ter esse objetivo em mente: como combinar o conhecimento emprico com o cientfico, como debater e aprovar pela comunidade, como publicar de forma que cada morador veja sua contribuio no produto final.

A partir das manifestaes tornadas pblicas acima referidas, observamos que se retiram os sentidos dados pela populao local ao seu territrio social, submetendo-os a uma nova linguagem e por meio dela novas relaes, bem como restries ao tradicional daquele lugar, sem, contudo, estabelecer uma parceria entre essa nova territorialidade poltica e a territorialidade social.

57

Vide < http://www.maryallegretti.blogspot.com/2006/07/comentrios-ao-roteiro-de-plano-de.html> acesso 12 set. 2010

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O preceito da conservao aliado manuteno das populaes locais em UCs esbarra em uma invisibilidade do saber e fazer locais (LIMA, In: CASTRO & PINTON, 1997; CASTRO, In: Diegues, 2000; POMPA & KAUS In: DIEGUES, 2000) em geral despercebidos nos processos de criao e gesto dessas unidades, conforme afirma Lima (In: CASTRO e PINTON, 1997):

De fato, a parceria ecolgica tem sido constituda com base na desigualdade social. As populaes pobres, no entanto, esto sendo integradas s Unidades de Conservao sem que se tenha definido com clareza a meta social a ser atingida. A nica norma definida para o desenvolvimento, entendido como melhoria das condies de vida, restritiva que as atividades humanas no contrariem a preservao da biodiversidade. Do ponto de vista conservacionista, a permanncia das populaes humanas em si um benefcio oferecido s populaes. [...] A presena de populaes humanas vista como uma concesso de risco que se troca pela aceitao poltica da unidade de conservao e pela adoo de normas de uso sustentvel dos recursos. (p. 288).

Como j observado por Alegretti (2006), Lima (1997), Diegues (2000) dentre outros, em relao s assimetrias existentes quanto s populaes locais e quanto integrao destas nas deliberaes e gesto das UCs, a questo que se coloca que a delimitao dessa reserva de Soure priorizou os aspectos geoambientais, tomando como mote os conflitos em torno do uso dos recursos naturais, particularmente o caranguejo-u. por meio da decretao da Reserva, instituiu uma nova territorialidade que reafirma o poder estatal sobre a territorialidade social, inclusive afirmando novas formas de uso dos recursos naturais por meio do aporte legal, por vezes contrariando formas de manejo locais, posta a fragilidade em que se assenta a cogesto desse nova territoriedade.

3.3.2 Aspectos geossocioambientais da RESEX Marinha Ara-Peroba

Situada na zona fisiogrfica do Salgado Paraense, compe um conjunto de oito RESEXs Marinhas no nordeste Paraense, e est em aproximao com mais cinco APAs municipais na mesma mesorregio, formando um mosaico de UCs.

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Imagem 10 Localizao da RESEX Ara-Peroba e outras unidades no nordeste paraense

APA municipal da Costa do Urumaj

Fonte: CNPT/IBAMA (2007)

As condies geossocioambientais de todo o litoral do nordeste paraense constituiu-se como ponto de convergncia para a criao de Reservas Extrativistas por iniciativa do IBAMA. No ano de 2002, foram criadas quatro e em 2005 mais quatro, dentre elas a AraPeroba. Resultantes das aes e experincia de parte de seu corpo tcnico que j tinha uma atuao na rea pesqueira na mesorregio. Mediante tambm o conhecimento das diversas

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reclamaes da populao local em virtude da explorao dos recursos pesqueiros, mais especificamente do caranguejo-u. O papel da prefeitura municipal tambm foi significativo ao dar reconhecimento s questes socioambientais criando a APA da Costa do Urumaj e se integrando junto s aes do IBAMA para a criao da RESEX. Diversas denncias eram feitas por associaes agropesqueiras e de moradores junto aos agentes ambientais 58 do IBAMA e junto prefeitura. Relatos locais indicam e em entrevista o ex-prefeito e mdico no municpio, Milton Lobo, confirma as reclamaes da populao local em relao ao uso de filhotes de Guar (Eudocimus ruber) ave em risco de extino e muito comum na regio como isca para pescarias, o uso de tcnicas de pesca com substncias txicas, armadilhas e redes predatrias pelo uso inadequado da malha ou pela forma e lugar de colocao.

Quando ns assumimos a prefeitura, recebemos denncias e mais denncias sobre o abate de pssaros l nessa rea, essas denncias eram formalizadas por frequentadores do local, amigos nossos e pescadores com certo nvel de responsabilidade comearam a nos avisar, havia at o abate de pssaros, de guars, para serem usados como isca na pesca e o que ns fizemos foi a coisa certa [refere-se criao da APA da Costa do Urumaj] (informao verbal)59.

Dessas constataes, a prefeitura municipal, fortemente influenciada pela criao das APAs de Canela em Bragana e a do municpio de Viseu, iniciou os trabalhos para a criao da APA em rea contgua rea em que mais tarde o IBAMA criaria a RESEX Marinha. A criao dessas duas unidades se apresenta sem muita distino na fala da populao local, relatando fatos entremeados de uma e outra. A presena do IBAMA na atuao e organizao da pesca, por meio dos acordos de pesca, facilitou ao do rgo no processo de criao da RESEX, a partir da proposta da poltica ambiental brasileira de criao de reas protegidas. Importa esclarecer que, para a populao pesqueira usuria da RESEX Ara-Peroba, o problema central persiste, que o uso dos recursos por populaes de outros municpios, semelhana da RESEX de Soure, o entendimento de que os recursos da rea destinam-se populao usuria do municpio. Esse conflito uma questo que dever ser pensada na elaborao do PM das reservas contguas nessa regio, visto que so questes recorrentes na fala dos usurios, inclusive com resistncia no cadastramento desses grupos de outros municpios como usurios da Ara-Peroba pelo ICMBio, mas que pela maior aproximao
58

Os agentes ambientais possuam uma carteira de identificao fornecida pelo IBAMA aps a realizao de curso de formao para a populao local. Contudo, atualmente pelo ICMBio no mais possvel essa prtica. muito comum nas reunies nas duas RESEX em estudo, as reclamaes de que a ausncia fiscalizadora do rgo incide sobre a permanncia de aes prejudiciais, mesmo aps a criao da Unidade e que embora agindo em nome da instituio esses agentes no tm poder para impedir tais fatos. 59 Entrevista concedida por Milton Lobo em agosto de 2006, na poca prefeito do municpio de Augusto Corra.

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geogrfica com essa RESEX, como o caso da vila do Treme mais prxima dos manguezais dessa reserva atuam na tirao do caranguejo ali, embora moradores de outro municpio Bragana. Ao refletirmos sobre o contexto social e ambiental que levou instituio dessa reserva, defrontamo-nos com questes significativas para nossa anlise, visto que perceptvel que perspectivas e interesses distintos com fins diversos se inter-relacionam nesse processo de criao da reserva. Cabe, desse modo, buscar compreender os elementos constitutivos dessas formas de conceber a criao dessa unidade dos agentes desse processo e das expectativas em jogo. A Ara-Peroba abrange as reas de manguezais e esturios localizados entre os rios Peroba, Ara e Emburanunga, onde os pescadores artesanais das vrias vilas do municpio de Augusto Corra atuam, abrangendo 16.315ha (Imagem 10). A RESEX foi criada no ano de 2005, ano de criao das RESEXs Caet-Taperau, Gurupi-Piri e Traquateua, todas no nordeste paraense. Antecedendo esse perodo, outras unidades j haviam sido institudas, de 1990 a 1999 cinco APAs foram decretadas pelas esferas municipal e estadual, conforme segue: APA de Algodoal/Maiandeua; APA do arquiplago do Maraj; APA da ilha de Canelas, em Bragana; APA Jabotiteua-Jatium em Viseu; e a APA da Costa de Urumaj, em Augusto Corra. Antecedendo a essas questes de ordem institucional, particularmente no que se refere ordenao da poltica de Unidades de Conservao, os problemas ambientais e sociais localizados eram alvo de conflitos e debate pelos moradores em suas associaes, demandando a participao do rgo fiscalizador para orientao, o que gerou a constituio, por exemplo, de acordos de pesca. No caso do municpio de Augusto Corra, vrios acordos foram institudos a partir dos acordos tcitos existentes nas vilas e que passam a ter fora legal em virtude da IN n. 29/2002 do IBAMA, e mais tarde serviram de base para a elaborao do Plano de Utilizao da Unidade de Conservao. A criao da RESEX Ara-Peroba est intimamente relacionada ao movimento de criao da APA da Costa do Urumaj, motivada por uma srie de debates locais e nacionais que colocavam no centro da discusso a constituio de Unidades de Conservao no somente pela questo ambiental, mas pelos recursos financeiros que poderiam ser captados, bem como pelas melhorias entendam-se os benefcios do INCRA que a poltica agregaria vida das populaes locais envolvidas.

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No caso da RESEX Ara-Peroba, grande parte da iniciativa tomada pela Secretaria Municipal, poca, de Agricultura e Meio Ambiente, para institucionalizar a unidade, para alm do trabalho j iniciado pelos tcnicos do IBAMA, foi incentivado pelo fato de a RESEX ser uma unidade federal. Naquela poca, o Secretrio em conversa informal j indicava essa possibilidade da captao de recursos via INCRA. Mas tambm foi um processo suscitado a partir da inquietao da populao local, cuja experincia vivenciada ecoava a insatisfao diante dos conflitos no uso dos recursos naturais e a desobedincia s regras tcitas estabelecidas por meio da tradio local. A RESEX Ara-Peroba possui rea contigua APA, conforme pode ser observado na Imagem 11, abaixo. Ambas atendendo a populao local quanto ao uso dos recursos naturais. Na vila do Ara, assim como em outras localidades do municpio, so comuns as reclamaes pelo uso desapropriado nas reas de manguezais impetrado pela populao da vila do Treme do municpio de Bragana.

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Imagem 11 RESEX Marinha Ara-Peroba

RESEX AraPeroba

Fonte: CNPT/IBAMA (2007) (Adaptado)

Atualmente existe um processo tramitando em Braslia pela ampliao da RESEX, que abranger todo o litoral do municpio, includo a a ento APA da Costa do Urumaj, uma rea de 306,17 km. Inclui ao norte duas pontas marginadas pelas praias do Mandarit, do Cupim e Areia Branca, a sudeste a ilha do Meio e ilha Filipa, e a sudoeste uma vasta rea de manguezal com pequena mancha de campo salino (Lei Municipal de Augusto Corra de criao da APA, enviada para aprovao para a Cmara de vereadores e sancionada pela prefeitura sob o nmero 1352/98). A proposta para ampliao da RESEX Marinha Ara-

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Peroba foi encaminhada por meio de um ofcio da prefeitura municipal de Augusto Corra e ofcio da Associao dos Usurios da RESEX Marinha Ara-Peroba AUREMAP, dando origem ao processo n. 02001.000419/2007-61. O pedido de ampliao da RESEX justificado tendo em vista o quantitativo de vilas de populaes pesqueiras demandantes e a presena de ambientes bem conservados. Essa ampliao levada em comum acordo pelo rgo gestor, poca ainda o IBAMA, e pelo poder pblico local foi apresentada populao local em audincia pblica, ocorrida em junho de 2007. Ao acompanharmos a audincia, observamos que a populao que ali esteve presente se manifestou apenas no silncio, sendo literalmente toda ouvidos para a defesa da ampliao por tcnicos institucionais e polticos locais. Deve-se ainda observar que a ao tcnica do IBAMA foi oportunizada junto populao local, coincidentemente ou no, s vsperas das eleies municipais. As reas dessas Unidades de Conservao RESEX Marinha e APA compem um contnuo territorial e social no municpio de Augusto Corra, onde a populao pesqueira transita entre uma e outra UC, com o uso das mesmas tcnicas na apropriao dos recursos naturais j descritas em dissertao de mestrado (ROSA, 2007). A RESEX apresenta predominncia de manguezais na faixa litornea e semilitornea com influncia de salinidade do mar e esturios conservados, se comparado ao restante do litoral brasileiro, em virtude do difcil acesso e da distncia da sede municipal. Cumprindo assim importante papel na reproduo de peixes, bem como na preservao de espcies consideradas em extino (MPEG/FADESP/BASA, 2002). O guar (eudocimus ruber) um exemplo disso. Segundo a professora dria, membro titular da diretoria da Associao de moradores, os debates sobre a criao da reserva datam de 1997, antes de sua chegada em 1998 na localidade como professora de Histria para o ensino mdio. A presena constante de tcnicos do IBAMA nesse perodo, como Vergara Filho e Otvio Albuquerque, recorrente na fala de moradores do Ara. Essa presena se fazia para a realizao de reunies visando discutir a ideia de Unidade de Conservao e para o convencimento de que era uma boa alternativa a ser implantada com vistas resoluo dos problemas apresentados no uso dos recursos naturais locais. H referncias tambm presena de pesquisadores, em especial do Museu Paraense Emlio Goeldi, poca presentes para a realizao dos diagnsticos que redundaram na criao da APA da Costa do Urumaj, e que de forma direta se confunde com a prpria criao da RESEX, sete anos mais tarde. Segundo a prpria professora, j existia um anseio dos moradores locais pela resoluo de problemas, no necessariamente no sentido ambiental institucional, mas de uso

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dos recursos naturais utilizados por eles em suas atividades produtivas, conforme se pode observar:

O povo em si j estava ansiando por isso, que eles j tinham at travado brigas com pescadores, com o pessoal da fuzarca60, com os apoitadores 61, o pessoal que faz os arrastes, pessoal dos grandes barcos que apoitavam na nossa regio. Ento j havia essa mobilizao, j havia essa preocupao [...] antes mesmo j havia essa preocupao em proteger aquilo que fundamental para a sobrevivncia, que o rio, que a mar, proteger os mangues. O povo j sabia do problema do caranguejo de Bragana [...] Por isso, quando as pessoas dizem que isso aqui foi imposto, eu digo no, espera a, pode ser que a ideia de Unidade de Conservao tenha vindo de fora, mas a conservao em si, essa ideia eles tinham (informao verbal) 62.

Aproximadamente pelos anos de 1999/2000, houve um perodo de afastamento desses tcnicos e pesquisadores, logo aps a criao da APA. Em 2001, comeou a movimentao novamente em torno da criao da Reserva, discutia-se a questo da proteo ambiental, mas o que agregava a populao local naquele momento eram as informaes sobre as vantagens que poderiam alcanar as populaes atingidas pela RESEX. Essas questes vinham ao encontro do anseio dessas populaes em grande medida isoladas e desprotegidas, principalmente pelas polticas pblicas da pesca. O contexto dos pescadores artesanais locais era, e ainda , de carncia quanto aos recursos materiais, os apetrechos de pesca para executar o prprio trabalho; e agregado a essa perspectiva ainda ressoava a possibilidade da aquisio das casas do INCRA conforme expectativa das polulaes locais demonstrada na foto 27 abaixo, assim como melhores condies de saneamento. O que espelha essa situao para ns foi a observao da presena das pessoas na audincia pblica portando seus documentos civis para possveis inscries, o que ainda hoje, mesmo j criada a Reserva, serve como elemento de mobilizao da populao para os debates do PM, visto que ao serem indagados por ns, durante as reunies da fase I do PM, sobre como souberam da reunio e por que

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A fuzarca e o curral so armadilhas fixas semelhantes, construdas em sua maioria com madeira retirada do mangue, com uma abertura facilitando a entrada e obstruindo a sada dos peixes, diferenciam-se quanto ao interior, j que no curral os peixes ficam armazenados em uma rea denominada chiqueiro, enquanto na fuzarca so levados a uma rede cnica, a seletividade nesse caso depende do tamanho da malha, nesse sentido h uma diversidade de espcies capturadas (ROSA, 2007). 61 Apoitadores refere-se aos pescadores que apoitam, ou seja, a pesca de rede apoitada uma modali dade de captura que ocorre no vero, quando o pescado torna-se mais escasso. A denominao apoitada refere-se a quando a rede, cujo tamanho da malha de quatro a trs centmetros, fixada atravessando de margem a margem o furo, igarap ou rio, fundeada por poitas ou pesos, em geral de chumbo. A rede fixada aproximadamente de dez em dez braas por bodes poitas que fundeiam a parte inferior da rede e a parte superior fica elevada por boias submersas que tm por finalidade manter a rede distendida sob a gua, no sendo, portanto visvel nem na vazante. Apenas so visveis as duas boias das extremidades da rede, que ficam sobre a gua, o que facilita a localizao e a sua retirada (ROSA, 2007). 62 Relato da professora dria, professora de Histria da Vila do Ara, em janeiro de 2009.

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estavam ali, informarem que na mobilizao feita ou por representantes de associaes ou mesmo professores locais que haveria reunio para discutir as casas do INCRA. A entrada do programa do INCRA era uma consequncia direta da criao da Reserva, visto que esse rgo entende que os usurios das Reservas Marinhas so assentados e tm direito a ser, portanto, beneficirios da poltica de reforma agrria, j que com a legalizao da Reserva possuem o direito de uso por meio do contrato de concesso do direito real de uso. Foto 27 Trabalho escolar sobre a vila do Ara sede da RESEX63

Fonte: Jos Antnio G seca (pesquisa de campo em outubro de 2009)

O laudo socioeconmico que antecedeu e legitimou a criao da UC foi proveniente de trabalho realizado em trs vilas do Municpio de Augusto Corra Ara, Porto do Campo e Cachoeira as duas primeiras compem em suas reas de mangue e rios, reas da RESEX. Sendo que para sua realizao os tcnicos envolvidos informam no prprio laudo ter aplicado uma metodologia baseada em pesquisa de campo, entrevistas, observaes e vivncia no local. Dentre as questes levantadas no questionrio sobre as atividades produtivas da pesca, coleta de caranguejo, agricultura de subsistncia, a populao local manifestou

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Cartaz apresentado como parte de trabalho escolar na vila do Ara. Observa-se que exprime a expectativa de uma vida boa atravs da ao institucional que se revela, para a populao usuria da RESEX, por meio da construo das casas do INCRA. Fato relevante que o aluno autor do cartaz escolar trabalhou poca como pedreiro na construo de algumas das casas fomentadas pelo programa do INCRA.

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descontentamento quanto, dentre outras questes, a ausncia de um mercado para escoar a produo diretamente, sem interferncia de intermedirios e a pesca predatria. O contexto de delimitao e decretao da RESEX Marinha Ara-Peroba seguiu uma linha mais institucional se comparada criao da RESEX Marinha de Soure. Se de um lado, a UC de Soure foi a primeira e urgia a necessidade de apresent-la como produto da poltica no estado do Par, inclusive com a assessoria de tcnicos do IBAMA de Braslia. De outro, a institucionalizao da Ara-Peroba est diretamente relacionada necessidade de o IBAMAPA apresentar resultados dentro da poltica de UCs, sendo consideradas a pelos tcnicos locais, primeiramente, as condies geoambientais, para efeito de criao conjunta em 2005 das quatro (Traquateua, Bragana, Augusto Corra e Viseu) UCs no litoral do nordeste paraense. A questo social apresentava-se como um apndice dessas outras condies. Ao debater essas Unidades de Conservao RESEXs Marinhas enquanto nova territorialidade que se impe por fora da poltica pblica ocupando os espaos de relao identitria da populao local, ou seja, no contraponto ao lugar enquanto conceito sociolgico/antropolgico, recorremos a Giddens (1991), Relph (1976) e Aug (1994) e para pens-las no marco do esvaziamento institucional, visto a nova ordem que se estabelece legalmente para esses lugares de extrativistas.

Acrescentemos que existe evidentemente o no-lugar como o lugar: ele nunca existe sob uma forma pura; lugares se recompem nele; relaes se reconstituem nele; as astcias milenares da inveno do cotidiano e das artes de fazer, das quais Michel de Certeau props anlises to sutis, podem abrir nele um caminho para si e a desenvolver suas estratgias. O lugar e o no-lugar so, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente palimpsestos em que se reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relao. Os no-lugares, contudo, so a medida da poca; medida quantificvel e que se poderia tomar somando. (AUG, 1994, p. 73, grifos do autor).

A concepo de no-lugar, segundo Aug (1994), caracteriza-se pela ausncia por no ser relacional, identitrio e histrico. No caso das RESEXs essa ausncia se d a partir de sua constituio reificada e afastada das verdades e sentidos constitutivos do ser dessas populaes locais. Estando, portanto, em oposio direta s relaes interpessoais, as trocas simblicas e os sentidos compartilhados formadores do ethos locais. As RESEXs enquanto instituio poltica que se impem e estabelecem novas formas de se relacionar com a natureza, tambm estabelecem um sentimento de estranhamento por parte da populao, que v assim seu lugar de vida e trabalho regido por regras que no esto

De Nosso Lugar a RESEXs Marinhas 161

claras para eles, principalmente por que no veem ali reconhecidos seus modos de ser e fazer local, impondo-se para eles muito mais restries de uso dos recursos naturais, por meio da ao fiscalizadora dos rgos ambientais. De acordo com a tipificao de no-lugares de Aug (1994), as RESEXs podem ser compreendidas como no-lugares construdos para determinado fim, poltico e econmico, um no-lugar de uniformizao que se impe em um esvaziamento poltico do contedo social local. Estabelece-se nessa relao entre a esfera pblica e as populaes locais uma carncia de relaes de alteridade, na negao do outro local e na ausncia de dilogo.

E TUDO ERA ENCANTADO...

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em outubro de 2009)64

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As duas imagens acima retratam o cotidiano da atividade pesqueira na vila do Ara sede da RESEX AraPeroba, e as duas imagens abaixo retratram o cotidiano de pescadores e da coleta da semente de andiroba na RESEX de Soure. Singularidades do ser e fazer local.

E tudo era encantado... 163

4 E TUDO ERA ENCANTADO...


Entzauberung der Welt Eis a um marcador da diferena. Da diferena do pensamento, mas tambm da escrita de Max Weber. Em qualquer lngua do mundo a idia de encantamento se diz gostosamente, gozosamente, em formas belas, arrebatadoras, fascinantes: encanto, encantamento, encantado, encantador, encantaria... Desencantamento, seu negativo. (PIERUCCI, 2005, p. 31).

Foto 28 Trabalho escolar sobre os encantados na Vila do Ara65

Fonte: Jos Antnio G seca ( pesquisa de campo em outubro de 2009)

4.1 EM TORNO DA COMPREENSO

Nossa proposta de abordagem em busca da compreenso do contexto em anlise pretende demonstrar que, conforme afirmado por Weber, racionalidades e ethos so

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Cartaz parte do trabalho escolar a respeito da origem da vila do Ara. Observa-se na imagem mitos locais como o sapo encantado, mitos amaznicos curupira e me dgua entremeados a outros simbolismos como a bruxa. Manifestaes simblicas do sagrado em entes humanos e da natureza.

E tudo era encantado... 164

resultantes do processo civilizatrio66 por que passam as sociedades. Desse modo, esse processo civilizatrio pode ser compreendido como o conjunto de particularidades que se engendram em contextos distintos e que deixam seus sentidos no decurso do tempo. Ao qual Gadamer vai associar enquanto validade histrica dos costumes por meio do resgate da tradio como determinantes do horizonte atravs dos quais os grupos interpretam o mundo e consequentemente definem seus modos de ser e agir, suas formas de ser-no-mundo. De acordo com ele: Toda vivncia implica os horizontes do anterior e do posterior e se funde, em ltima anlise, com o continuum das vivncias presentes no anterior e no posterior para formar a unidade do fluxo da vida. (GADAMER, 2008, p. 329). Nesse percurso de compreenso, resgatamos em Leff sua base weberiana para a formulao do tipo ideal nominado racionalidade ambiental. Desse modo, vamos procede r a nossa anlise compreendendo que h na diversidade social aspectos que materializam nuances desse tipo puro, a partir das singularidades de cada contexto. desse modo que chegamos finalmente ideia de ethos ambientais sem, contudo, poder apart-los de suas racionalidades correspondentes, conforme ser demonstrado. De todo esse caminho trilhado, importa salientar que se objetiva demonstrar como os ethos ambientais locais consubstanciam-se em sentidos dados s relaes de trabalho. Visto que os grupos sociais em estudo so aqueles que dependem da natureza para a realizao de suas aes produtivas e reprodutivas da prpria vida, implicando sobre isso o fato de que os ecossistemas sobre os quais atuam produtivamente so reas decretadas protegidas. Neste captulo, chegamos ao primeiro dos trs pontos centrais desta tese. Destina-se, portanto, busca da compreenso a partir do conceito de racionalidade e de ethos, da existncia de racionalidade e ethos ambientais locais resultantes de uma longa tradio social, cujas bases so possveis de se apreender prioritariamente como um Jardim Encantado racionalidade valorativa (WEBER, 1914) dada forte presena de sentidos sagrados manifestados por meio de simbologias mticas sem, contudo, perder de vista os fins a que se destinam na perspectiva da racionalidade prtica/instrumental. Sentidos esses que, ao longo da experincia e das relaes estabelecidas, vo se degradando no sentido de apresentar-se imbricados a outras simbologias teolgicas marcadamente crists e dessacralizando-se, constituindo-se a partir de valores mais pragmticos e imediatos e consequentemente alterando esse ethos ambiental, que se torna mais dirigido para a realizao das necessidades do aqui e agora em termos da prpria
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Para um debate mais amplo acerca do processo civilizatrio, vide Norbert Elias (1994). O autor apresenta a diferena dos sentidos e significados da expressocivilizao, materializado no percurso histrico.

E tudo era encantado... 165

subsistncia. Pretendemos demonstrar como esse encantamento e seus sentidos na relao homem e natureza tambm se expressa no comportamento produtivo por meio do trabalho. Quanto aos dois pontos subsequentes da tese, sero o cerne dos captulos seguintes. Quando deveremos nos ater ao processo de participao no contexto da gesto das RESEXs cuja tese no contnuo do trabalho constitui-se em demonstrar que as interaes sociais (sustentadas em racionalidades e ethos distintos) so assimtricas, havendo assim uma sobreposio de interesses e valores reafirmados pelo ethos institucional, consubstanciado sob a racionalidade cientfico-tecnocrtica, contexto que abordamos como reino desencantado, para assim na sequncia afirmarmos vias de conciliao/mediao entre o encantamento e o desencantamento nesse contexto por meio do debate da tica da alteridade e do reconhecimento mtuo em Paul Ricoeur. A ideia aqui apresentar as particularidades dos ethos ambientais locais em duas RESEXs Marinhas como mecanismo para que possamos compreender as (des) conexes nas relaes que se estabelecem dentro do contexto da poltica de participao na gesto de unidades conservao cujo cerne do debate a organizao do trabalho sob a potica do encantamento e desencantamento do mundo. Reconhecer os contrapontos entre a perspectiva cientfico-tecnocrtica sustentada na racionalidade formal e outras perspectivas sustentadas em racionalidades prticas e ethos constitudos por valores e prticas incontestveis para os grupos que os vivenciam, permitir analisar as particularidades das populaes locais apoiadas em uma racionalidade prtica e um ethos sustentado por valores, princpios ticos e sentidos enraizados em uma tradio de verdades vivenciadas. Subjazem no decurso histrico afinidades com simbologias mticas e sagradas, emergidas do homo religiosus67 (ELIADE, 1992b, p. 15). Contudo, essas particularidades no so consideradas na poltica participativa de gesto das Unidades de Conservao, dada a sua sustentao em uma racionalidade cientfica e tecnocrtica funcional que determina a poltica pblica de Unidades de Conservao e que, portanto, sustenta-se no escopo de verdades cientificamente comprovadas, na objetividade, ou no dizer de Weber, na perda de sentido por meio do desencantamento. Um percurso marcado pela ruptura com a tica e pela frieza desse processo que erig iu em deusa a cincia (MENDONA, 2004: 02).

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A expresso homo religiosus em Eliade (1992b) refere-se ao homem que constitui uma sociedade cuja base social se d por laos arraigados em suas crenas e valores sagrados (sociedades tradicionais). Arqutipo do comportamento geral mtico/religioso do homem.

E tudo era encantado... 166

Segundo Diegues (1994), h uma relao de poder clara de onde advm, em grande medida, o no reconhecimento da racionalidade prtica e do ethos local, no que se refere realidade das reas protegidas e suas populaes:

Reconhecer a importncia do saber tradicional , implicitamente, reconhecer que as populaes tradicionais so sujeitos histricos, portadores desse conhecimento e que, portanto, devem ser considerados como agentes fundamentais no conhecimento e, sobretudo na gesto ou manejo das reas chamadas naturais. Esse reconhecimento poderia retirar uma parte do poder conferido pela cincia s corporaes tecnoburocrticas e acadmicas que se autoconferem a exclusividade do saber cientfico e dos princpios e metodologias que regem os chamados planos de manejo das reas naturais protegidas. Desconhecendo e at rejeitando o saber tradicional, as corporaes aninhadas nos rgos ambientais decisrios [...] acabam atribuindo fiscalizao e represso policial o papel da guardies da biodiversidade e os nicos defensores do mundo natural. (p. 90).

Ainda segundo as disputas de poder que envolvem essas populaes, observa-se que, para Almeida (2008), relevante o fato de essas populaes sustentarem suas relaes com a natureza em um sistema de conhecimento tradicional e destaca os caracteres j enunciados por Gadamer ao resgatar o conceito de tradio, visto que a tradio no estanque, ela o substrato da histria que se firma no presente e futuro, inclusive vinculada s reivindicaes dessas populaes que se vem coagidas diante das novas perspectivas de manejo e gesto dos recursos naturais estabelecidas pela via institucional.

H uma coliso de lgicas. Isso est nos levando a algumas situaes, digamos assim, de dramaticidade; h grupos hoje que tentam estabelecer em relao natureza uma forma de assegurar a sua reproduo fsica e social, mantendo uma forma de conhecimento tradicional que negada continuamente pelos aparatos de poder. H uma tenso permanente e incontornvel. Quero aproveitar para sublinhar que o conceito de tradio est mudando, ele no est ligado necessariamente histria ou ao passado remoto, ao contrrio mostra-se vinculado a reivindicaes contemporneas. (ALMEIDA, 2008, p. 98).

Desse modo, compreender este contexto de vida e trabalho das populaes extrativistas em reas decretadas protegidas RESEX sugere a percepo das tenses que se estabelecem a partir dos sentidos diversificados das aes dos agentes sociais envolvidos e que tm seu embrio originrio nas racionalidades e ethos distintos dos grupos que interagem as populaes locais e os agentes institucionais.

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4.1.1 Racionalidade e ethos

Nossas reflexes acerca de racionalidade e ethos iniciam-se a partir da aproximao com Weber como um clssico da Sociologia, a quem poderamos recorrer no processo de anlise das relaes que se estabelecem no contexto das reservas extrativistas e, como um orientador acerca dos caminhos que devemos tomar no processo de elaborao de uma sociologia compreensiva. A caminho da construo mais definida de nossa temtica, observamos que a hermenutica da ao desenvolvida por Weber permitia que nos aproximssemos de seus conceitos basilares como referncia de nossa compreenso, bem como poderamos tomar seus fundamentos metodolgicos como ponto de partida para penetrar no universo da atitude fenomenolgica, bastou-nos observar a permissividade do terico ao mergulhar no sentido das aes. A expresso ethos a qual adotamos para definir, de acordo com Weber, a conduta revestida por um sistema de valores, crenas e princpios das populaes locais e dos tcnicos responsveis pela implementao da poltica pblica das UCs vem do grego, e em uma das suas duas acepes significa a morada do homem, espao construdo e reconstrudo por ele segundo um logos, o que equivale dizer uma sabedoria prtica. , pois, no espao do ethos que o logos torna-se compreenso e expresso do ser do homem como exigncia radical do dever-ser ou do bem (VAZ, 1993, p. 13). Na sua segunda acepo , ethos refere-se a um comportamento resultante de hbitos. Portanto, ethos refere-se tanto a formas de habitar o mundo de acordo com sentidos dados do que melhor, quanto a comportamentos institudos socialmente, ou seja, a costumes, nos remete ao que se tornou habitual e bom para a organizao da vida (PACHECO, 2009). Em Weber (1999, p. 37), o ethos a formao de um estilo de vida normativo baseado e revestido de uma tica. Essa compreenso torna-se significativa para que possamos elucidar a ideia de ethos como o comportamento, o conjunto das disposies voltadas para a ao, produzidas em um tempo e em um lugar determinados, sustentado sob um sistema padronizado de pensamento a racionalidade que engloba o sistema tico. Da decorre o entendimento de que assim como o conceito de racionalidade no unvoco e responde tradio histrica que o sustenta, o conceito de ethos tambm no pode ser pensado de forma a homogeneizar comportamentos diversos. Como afirma Leff, a partir da conceituao de racionalidade ambiental cultural, reafirmando a diversidade sustentada por Weber:

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Uma racionalidade cultural, entendida como um sistema de significaes que conforma as identidades diferenciadas de formaes culturais diversas, que d coerncia e integridade a suas prticas simblicas, sociais e produtivas. A racionalidade cultural estabelece a singularidade de racionalidades ambientais heterogneas que no se submetem a lgica geral de uma racionalidade formal, mas alimenta a constituio de seres culturais diversos. (LEFF, 2006a, p. 255).

Desse modo nossa proposta para a compreenso torica de ethos ambiental, sustenta-se nos referenciais de ethos em Weber (1999) e de racionalidade ambiental cultural em Leff (2006a). Desses aspectos, pretende-se destacar os caracteres da noo de ethos que permitam pensar comportamentos grupais guiados por princpios e convices lgicos e coerentes ao contexto desses grupos. A partir dessa perspectiva da diversidade, passamos a pensar na noo de ethos ambientais distintos como um padro de comportamento que se orienta por uma racionalidade abarcando desse modo, um sistema tico, cujos valores ambientais so norteadores da (e norteados pela) conduta grupal em relao ao uso dos recursos da natureza e localizados de acordo como o tempo e o local e as perspectivas em jogo. Para Weber, a Sociologia a cincia da ao social (o ethos a padronizao de aes sociais), ao socilogo cabe compreend-la interpretativamente, ou seja, explicar o comportamento humano em suas interaes sociais, visto que a ao social refere-se a uma ao com sentido subjetivo, com intenes que se orientam pelo comportamento de outros (1991, p. 13). Desse modo, a ao social constitui-se como elemento nuclear da Sociologia weberiana, que busca compreender as conexes de sentido. Importa para Weber o sentido que os agentes atribuem a suas aes. A racionalidade materializa-se em ao. O cerne do estudo sociolgico para alm da objetividade das estruturas e instituies sociais (direito, religio, burocracia) compreender a conduta ou ao social. Compreender seria a captao do sentido visado pelos homens ou um grupo de homens no curso de seu comportamento social. Compreenso significa em todos estes casos apreenso interpretativa do sentido ou da conexo de sentido (WEBER, 1991, p. 6). Dentre os quatro tipos ideais de ao social, destaca-se na anlise do autor a ao racional referente a fins, que pressupe que esse tipo de aes sociais mediado por determinados interesses, com um sentido subjetivo para o agente ou agentes. Objetiva, assim, alcanar determinados resultados que fazem parte de suas expectativas e que so perseguidos racionalmente (1991).

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Observa-se tal tipo na tica Protestante e o Esprito do Capitalismo (1999), quando da anlise de um determinado ethos revestido de uma tica religiosa; embora a ao tambm tenha apresentado consequncias imprevistas significativas para o Ocidente, tm-se as bases para uma leitura da preocupao de Weber com a racionalidade que se constitui entre os sculos XVI e XVIII na Europa e que se institucionaliza no curso da racionalizao, como estrutura da sociedade ocidental (SILVA, 2001). Na trilha dessa perspectiva, Weber concentra-se em detectar que as crescentes intelectualizao e racionalizao levam ao desencantamento do mundo. Segundo Freund (2000, p. 23) o real se tornou aborrecido, cansativo e utilitrio. A definio da racionalizao em Weber deve ser pensada como a objetivao de aes ou comportamentos que condizem os meios aos fins a partir de um rigor do clculo, da lgica e da previsibilidade em diversas esferas como das artes, da poltica, das religies, da cincia e da economia no mundo ocidental. Tem a ver com a organizao social, com a organizao da vida coletiva por meio da materializao de um comportamento guiado por princpios ticos no qual os meios condizem com os fins, o que, desse modo, constitui a formao de um ethos, como o que caracterstico e predominante nas atitudes dos indivduos enquanto coletividade. Racionalizao tornar racional as esferas/setores da vida; a essa crescente racionalizao no contexto do capitalismo que Weber vai definir como desencantamento do mundo. Em weber podemos compreender que a forma como a racionalidade definida em cada sociedade depende do processo histrico social ao qual essa sociedade particular pertence. A civilizao Ocidental consolidou um modo de vida metdico, herdado dos gregos e que teve seu pice na Reforma Protestante, cuja mxima do trabalho como vocao condicionou um comportamento secular favorvel racionalizao utilitria. Esse racionalismo que se desenvolve no Ocidente moderno difere-se de outros racionalismos vigentes nas sociedades no ocidentais. Desse modo, consideramos, de acordo com a compreenso de Weber, possvel pensar em racionalidades distintas. No contexto de nossa abordagem, torna-se necessrio reafirmar que, no obstante a perspectiva das racionalidades distintas correspondentes a aes sociais tambm diversas, cujas relaes estabelecidas no processo de reordenamento institudo pela poltica pblica de Unidades de Conservao serem assimtricas, do ponto de vista conceitual, compreendemos ter que pens-las como instrumentais, ou seja, voltadas para os fins a que se determinam. Visto que tanto o padro de pensamento e ao dos tcnicos quanto dos grupos extrativistas locais possuem perspectivas claras quanto aos seus interesses. De um lado, interesses

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institucionais sustentados em nortes legais e cientficos para instituio da UC naqueles territrios, e, de outro, interesses grupais sustentados em princpios ticos, em uma moral e normatizao tcita no uso dos recursos naturais disponveis. Nesse sentido, buscaremos pautar a discusso da participao das populaes locais com vistas a destacar as formas como ocorre a participao nas deliberaes e atividades acerca das RESEXs Marinhas na sua criao e na elaborao do Plano de Manejo em contraponto ao de tcnicos, consultores e experts envolvidos na implementao da poltica. No contraponto da racionalidade prtica e do ethos ambiental local, encontra-se a racionalidade cientfico-tecnocrtica e o ethos institucional, a fim de deliberar principalmente sobre as formas de apropriao dos recursos naturais por meio da ao social do trabalho, conforme se apreende da regulamentao da criao das RESEXs e da definio de Plano de Manejo. O que pretendemos ento pensar a participao nesse contexto de interesses com sentidos distintos em disputa. Desse modo, participao pressupe relaes entre agentes distintos, reafirmando suas identidades ao buscar fazer valer os seus interesses em um determinado espao pblico. O que supe ento pens-los a partir dos seus padres sociais de pensamento, quando o conceito de racionalidade social em Weber se aplica como sistema de normas, princpios e valores que se estabelecem dentro de esferas organizativas do grupo, legitimando determinadas aes e conferindo um sentido de organizao da sociedade em seu conjunto (LEFF, 2006b) e dos sentidos das aes de cada grupo socialmente situado. Ao social referindo-se conduta que quanto a seu sentido visado pelo agente ou os agentes se refere ao comportamento de outros, orientando-se por este em seu curso (WEBER, 1991, p. 03). Nessa linha de compreenso, passamos a refletir de forma mais direcionada com Leff (2006a, 2006b) para pensar nos marcos do debate da racionalidade, uma racionalidade ambiental discutida por esse autor. Para que possa, desse modo, servir de parmetro para nosso estudo do contexto em anlise, compreendemo-lo como tipo puro capaz de abarcar uma diversidade de fenmenos objetivos possveis de serem apreendidos por noes complementares como racionalidade ecolgica e racionalidade ambiental cultural. No nos necessrio grande esforo para proceder ao reconhecimento da influncia de Weber na elaborao de Leff (2006a, 2006b), o prprio autor deixa claro que o conceito de racionalidade em Weber uma das trs teorias que aparecem como campos frteis para compreender os processos sociais que constituem uma racionalidade ambiental (2006a, p. 110).

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O conceito de racionalidade ambiental compreende um ordenamento de regras sociais e jurdicas, a sedimentao de novos valores culturais relativos relao homem-natureza, de significaes simblicas, conhecimentos, conceitos e teorias, um conjunto de objetivos claros, mtodos e tcnicas de produo (LEFF, 2006a, p. 127). A racionalidade ambiental para Leff apresenta-se como um processo, ou seja, uma sucesso de mudanas direcionadas para um novo modo social de relao com a natureza a racionalizao ambiental. Esse processo depende da simbiose entre fenmenos diversos que devero ser reorganizados e reconduzidos por meio das aes econmicas, cientficas e tcnicas, sustentadas em racionalidades que se colocam a servio dessa nova forma de conceber e de se relacionar com a natureza, respeitando os limites dos recursos naturais e a diversidade cultural no uso desses recursos, rompendo, desse modo, com a racionalidade econmica dominante, que unifica modos distintos de agir em relao aos recursos naturais e privilegia a superexplorao com vistas aos proveitos possveis dessa operao. A base sobre a qual Leff elabora o debate da racionalidade ambiental congrega aspectos de racionalidades tipificadas em Weber que encaminham para a racionalizao da conduta econmica sob bases legais de sustentao, tendo com referencial a diversidade de valores no trato com a natureza. O que Leff (2004, 2006a, 2006b) considera importante na abordagem sobre racionalidade em Weber a possibilidade de pensar de maneira integrada processos sociais distintos, mas imprescindveis para o nexo e para a eficcia de princpios materiais e valores culturais que sustentam uma organizao social baseada nos princpios da sustentabilidade ambiental. Leff vai destacar, a partir do tipo puro weberiano de racionalidade instrumental que compreende o uso de meios eficazes, ordenadamente determinados, para se alcanar os fins prticos visados na esfera econmica, o uso de tcnicas eficientes de produo, formas de controle e a racionalizao do comportamento social e, na esfera jurdica, a constituio de um ordenamento legal que normatiza a conduta social, conforme explicita Weber. Contudo, dando a esse debate o enfoque ambiental, da relao do homem e natureza. O tipo puro weberiano de racionalidade substantiva (referente a valores) compreende um ordenamento da ao social sustentado em postulados de valor (WEBER, 2002). Aqui para Leff (2004, 2006a, 2006b) se abre a perspectiva de compreenso da diversidade social posto os valores e interesses culturalmente diversos, sem que haja uma hierarquizao entre racionalidades distintas. Enfatizando a perspectiva da diversidade sociocultural referentes aos modos de pensar o uso dos recursos naturais.

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A racionalidade ambiental integra assim processos de racionalidade terica, instrumental e substantiva, instrumentalizando-se na anlise das bases materiais, instrumentos tcnicos e legais e aes e programas orientados para estes fins (ambientais) (LEFF, 2006b, p. 252). assim, uma categoria til para sistematizar os enunciados tericos do discurso ambiental, mas tambm para analisar sua coerncia prtica. Sua materialidade se constitui, desse modo, das mltiplas inter-relaes entre teoria e prxis. A racionalidade ambiental constitui-se assim por quatro instncias de racionalidade racionalidade ambiental terica, racionalidade ambiental tcnica ou instrumental, racionalidade ambiental substantiva e racionalidade ambiental cultural (LEFF, 2006b). Dentro dessa lgica de anlise, chama-nos a ateno o destaque que o autor faz ao processo de gesto ambiental participativa. Desse modo, a compreenso da ao social e de seu sentido subjetivo em Weber mostra no debate de Leff a possibilidade de incorporao de uma multiplicidade de motivaes e perspectivas, revelando a possibilidade de relaes de alteridade e reconhecimento, conforme Ricoeur (1965, 1968, 1988, 1991, 1995). Bem como das singularidades culturais que constituem as realidades distintas e que marcam dentro da construo terica de Leff a respeitabilidade diversidade cultural (racionalidade ambiental cultural), sustentada na noo de racionalidade substantiva e no princpio metodolgico de anlise dos sistemas sociais em suas caractersticas singulares tomados da teoria de Weber. Eis aqui a aproximao que Weber nos oferece para pensarmos as aes cotidianas em seus sentidos particularizados, conforme se apreende da atitude fenomenolgica. O foco da racionalidade ambiental cultural constitui-se em contraponto ideia de uma racionalidade cultural uniformizadora que castra as particularidades culturais dos grupos em suas relaes com o meio ambiente e que submete as diversidades culturais a uma homogeneizao ditada pela racionalidade formal. Para a construo dessa noo de racionalidade ambiental cultural, Leff (2006a) vai buscar sustentao na racionalidade substantiva de Weber, posto o valor da diversidade cultural e social que se contrape uniformizao da cultura. A racionalidade ambiental acolhe assim as diferentes formas culturais de aproveitamento dos recursos das comunidades para satisfazer suas necessidades fundamentais e sua qualidade de vida (LEFF, 2006a, p. 260). Em sua obra Ecologia, Capital e Cultura (LEFF, 2009), a cultura pensada como resultante da experincia vivenciada pelos grupos sociais que atribuem aos recursos naturais que lhes so significativos, valor no s material, mas primordialmente simblico. Imprimindo-lhes significaes, mas tambm recebendo deles sentidos norteadores, de tempo,

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localizao, organizao social, em uma relao de submisso as regras da natureza (ROSA, 2007).

Os valores que se entrelaam nas prticas tradicionais de uma formao cultural incorporam certos princpios da organizao ecolgica do meio em que se assentam e florescem os diversos grupos tnicos; por sua vez, a cultura imprime seu selo na natureza atravs de suas formas de significao do meio e dos usos socialmente sancionados dos recursos. (LEFF, 2006b, p. 260, grifo nosso).

Leff apresenta em seu debate a sugesto de novas perspectivas firmadas sob o ponto de vista da diversidade tnico-cultural e de afirmao do dilogo entre os saberes, em uma relao que supe respeitabilidade s populaes locais e seus saberes, no dizer de Ricoeur, relaes ticas e de reconhecimento mtuo.

A racionalidade ambiental cultural estabelece um vnculo entre o princpio da diversidade cultural e sua realizao dentro das organizaes culturais especficas. Dessa maneira, conduz a um dilogo de saberes, entre os saberes encarnados em identidades culturais e os saberes que, a partir da tica, da tcnica e do direito, fortalecem as identidades e capacidades locais. (2006b, p. 261, grifo nosso).

De todo modo, o maior interesse neste estudo apresenta-se em tomar como alternativas indicadas pela teoria de Leff, caminhos para pensarmos em racionalidades e ethos ambientais locais e capazes de articular a capacidade da natureza e a experincia criativa dos grupos locais na apropriao dos recursos naturais. O que, sob nosso entendimento, supe a sedimentao de racionalidades distintas e de ethos ambientais diversos. De acordo com a argumentao de Leff (2006b) para alm do debate de racionalidade e ethos em Weber:

Weber no se refere disperso do conceito de racionalidade para pensar as matrizes de racionalidade (de pensamento-ao) das populaes tradicionais. No entanto, o princpio da racionalidade substantiva que estabelece o valor da diversidade e do processo de diversificao ecolgica e cultural desconstri o conceito de racionalidade cultural entendido como uma ordem homognea e inclusive hegemnica para plasm-lo em suas diferenas irredutveis [...] A categoria da racionalidade integra as diversas formas organizacionais culturais e as racionalidades das diferentes formaes socioeconmicas dos povos e comunidades. (2006b, p. 260).

Sustentando-nos no debate de Weber (1981, 1991, 1999) e Leff (2004, 2006a, 2006b), racionalidade e ethos ambientais so entendidos como um sistema culturalmente padronizado de valores ambientais que organiza os instintos, as emoes, como o esprito que anima uma

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coletividade (racionalidade) e a padronizao dos comportamentos, das aes ( ethos ambientais) sedimentadas em valores referentes ao meio em que vivem e em suas relaes com a natureza, significativos desse modo para a conservao dos recursos naturais no caso das populaes que trabalham por meio de prticas tradicionais ; e que devem, de acordo com as premissas da racionalidade ambiental em Leff, estruturar a participao dessas populaes na autogesto ou cogesto participativa dos recursos naturais, assim como contribuir com a reelaborao interdisciplinar do saber, implicando a internalizao ou enunciao desses elementos na racionalidade dos variados agentes sociais envolvidos na gesto ambiental. Esse debate, em sentido mais amplo, nos sugere a possibilidade de respeitabilidade s particularidades de cada contexto e as racionalidades em tenso, em uma perspectiva de pensar caminhos viveis por meio dos quais seria efetivamente possvel um dilogo entre saberes distintos e uma participao efetiva que gere, mesmo nos marcos da racionalidade ecolgica68, caminhos para gradativamente revelar os valores ambientiais locais, o que se faz por meio da busca de compreenso/interpretao desse ethos que no se quer universal, mas particular para cada contexto especfico.

4.1.2 A tradio como substncia de racionalidade e ethos Ainda que a proposio de Leff de uma racionalidade ambiental enquanto tipo puro traduza-se de algum modo nas particularidades observveis das relaes humanas, importa ainda salientar as especificidades dos sentidos, valores, crenas, interesses e perspectivas que instauram significados e ressignificaes no fazer cotidiano das populaes locais, compreender as mincias herdadas por meio do tempo, que se solidificam na organizao do pensamento-ao. A sustentao de nosso debate aqui se estabelece a partir dessa perspectiva, da tradio como substncia de racionalidade e do ethos. Deste ponto de vista, os modos de pensar e agir sistematizados pelos grupos sociais ao longo do tempo so efetivamente um contexto racional sob os quais as relaes (e seus sentidos) homem e natureza se produzem. Buscamos com Gadamer (2002, 2008) compreender e resgatar a tradio, e por isso importa o sentido dado a ela, para que possamos entend-la como substncia constitutiva de racionalidades e de ethos locais. A proposta aqui pensar do ponto de vista terico o resgate

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Sobre a noo de racionalidade ecolgica (LEFF, 2006b), discutiremos no captulo seguinte.

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que Gadamer empreende a tradio, com vistas a aplic-lo ao entendimento da racionalidade mgico-prtica como condutora de valores e sentidos que se perpetuam nos ethos ambientais das populaes locais dando tambm sentidos especficos no uso dos recursos naturais. O significado da tradio em Gadamer revela-se na insero cotidiana dos agentes no mundo, no ser-no-mundo, na experincia, a tradio o substrato histrico que no morre na runa do tempo, a riqueza cultural que se sedimenta em detrimento de todo devir histrico (CARVALHO, 2005, p. 09). Em Gadamer, a tradio materializa-se em um horizonte de compreenso flexvel. Portanto, h uma produo do sentido da tradio que peculiar a cada contexto, desse modo podemos pensar em racionalidades e ethos diversos em sua sistematizao, por meio do sentido dado pelos agentes a suas aes cotidianas em um percurso histrico. Na qualidade de seres histricos, j estamos desde sempre assentes em determinadas tradies; a tradio nos implica em pr-compreenses de mundo. a partir dela que olhamos o mundo, as vivncias a priori em relao ao mundo fsico-qumico e geomtrico (CARVALHO, 2005, p. 34). Ao criticar o paradigma cientfico moderno que se sustenta como nico caminho para a verdade por meio do procedimento metodologicamente controlado, Gadamer reabilita a noo de tradio, buscando demonstrar a possibilidade da verdade de tradies, particularmente aquelas que consubstanciam verdades constitudas no exerccio prtico da vida. Dessa maneira, Gadamer convida-nos a pensar em verdades distintas, de acordo com a tradio, independentes da verdade atribuda como universal sustentada na razo cientfica moderna:

Essas consideraes nos levam a indagar se na hermenutica das cincias do esprito no devemos restabelecer de modo fundamental o direito do elemento da tradio [...] o que importa reconhecer o momento da tradio no comportamento histrico e indagar pela sua produtividade hermenutica. (GADAMER, 2008, p. 374-375).

nesse sentido que o debate do autor nos orienta na perspectiva da anlise das relaes que se estabelecem enquanto participao de experts, consultores, tcnicos e populaes locais na instituio das RESEXs Marinhas como poltica pblica. Pensar as conexes de sentido, apreenso interpretativa do sentido ou da conexo de sentido, captar o sentido visado pelos homens ou um grupo de homens no curso de seu comportamento social (WEBER, 1991, p. 06), e as relaes que se estabelecem a partir de verdades distintas.

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Importa assim, para este captulo, pensar acerca de uma hermenutica da experincia, da vivncia cotidiana, tendo como suporte esse debate da tradio, uma hermenutica fenomenolgica, por meio da apreenso dos sentidos que se instituem a partir da pluralidade de sujeitos e de suas interaes. Segundo Dartigues:

aqui que a fenomenologia deve mudar de orientao, no mais se contentar em ser descrio do que se d ao olhar, mas interrogao do dado que aparece, no mais como um espetculo a ver, mas como um texto a compreender [...] A "fenomenologia hermenutica" dever, pois, decifrar o sentido do texto da existncia, esse sentido que precisamente se dissimula na manifestao do dado. (1992, p. 132, grifo do autor).

Ao recuperar o sentido da tradio, Gadamer quer destacar o pertencimento dos homens a uma tradio como sua condio existencial de ser histrico e finito, pretende resgatar o passado que se manifesta no presente e futuro como um horizonte amplo que abarca outros horizontes relativos perspectivas sobre o mundo de onde se interpreta o texto69, no qual se est mergulhado:

Para interagir, sofrendo e causando influncias no mundo contingente, o sujeito colabora com a construo de uma histria, uma tradio da qual tambm passa a fazer parte to logo comece a interagir com elas. [...] a parte importante desse fenmeno que tanto o sujeito em foco quanto todos os outros do mundo contingente pertencem a essa histria, a essa tradio, tm algo em comum. (POLESI, 2008, p. 57).

Sustentando-se na filosofia prtica de Aristteles, Gadamer apresenta perspectivas de anlise de um saber legtimo fora dos padres da racionalidade cientfica moderna. Devemos considerar para nosso estudo a perspectiva da abordagem em Gadamer relativa a essa valorizao da compreenso relacionada ao mbito da prxis; ou seja, o reconhecimento de que a esfera da vida comum o espao em que a compreenso j acontece. Essa perspectiva confronta-se com a realidade moderna, marcada pelos avanos da cincia e da tecnologia, cuja manifestao em Gadamer caracteriza a degradao desse mbito originrio da experincia comum. A compreenso est para Gadamer na origem do homem vinculada experincia prtica na vida comunitria.

Qual seria nossa posio na vida e como lidaramos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de
69

Em Gadamer, assim como em Ricoeur, a expresso texto refere-se a tudo que pode ser compreendido. Segundo a hermenutica gadameriana, a partir de um determinado contexto qualquer objeto ou fato pode ser lido ou interpretado como um texto.

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tudo? Nossas decises ticas e polticas no devem ser nossas decises? [...] por isso, nas condies de nossa existncia finita que devemos buscar o fundamento do que possvel querer, desejar e realizar com nossa prpria ao. (GADAMER, 2002, p. 376-377).

4.2 EM BUSCA DO JARDIM ENCANTADO

Buscamos nessa etapa de nosso estudo apresentar as conexes que se estabelecem entre o modo de ser religioso (racionalidade mtico-mgica) de onde advm, em grande medida, preceitos tico-morais, valores e sentidos em relao natureza (sacralizada) e o ethos ambiental das populaes cuja atividade produtiva a pesca e, em menor escala, o extrativismo vegetal e que so usurias nos contextos institudos como RESEXs Marinhas, a saber, de Soure e Ara-Peroba, conforme j enunciado anteriormente. A primeira questo que se coloca nessa seco pensar que o que caracterstico e o que diferencia um ethos de outros so as formas distintas nas quais a racionalidade se reveste a partir das especificidades sociais onde se estruturam e com as quais esses ethos esto em relao dialtica. Desse modo, buscaremos mostrar em que medida esses ethos esto em consonncia com a racionalidade mtico-mgica, por meio da qual se reveste o sentido das diversas relaes do homem com a natureza na organizao da vida coletiva. Importa elucidar que ressaltadas as distines e as especificidades do comportamento tcnico-cientfico do qual trataremos em captulo especfico em relao aos ethos locais, nosso foco nesse momento destina-se a dar nfase compreenso acerca da racionalidade prtica e do ethos ambiental local, no que se refere s populaes extrativistas que vivem nessas reas legalizadas como RESEXs. Tomamos aqui como ponto de partida a noo de Encantamento em contraponto ao Desencantamento do mundo em Weber para pensar as formas como se materializam a racionalidade e o ethos ambiental local. Sustentamo-nos desse modo, a partir da, para compreender a noo de racionalidade prtica e de ethos ambiental, supondo originariamente uma relao de sacralizao da natureza, a qual trataremos de demonstrar no decurso deste captulo. Racionalidade prtica e ethos ambiental aqui compreendidos como os padres sociais de pensamento que movem os agentes ao de forma imediata, uma regularidade do comportamento social ligada virtude da phronesis em Aristteles (MACINTYRE, 1991), de forma a suprir as necessidades por meio da racionalizao do que imediatamente melhor no

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que se refere s relaes que se estabelecem nessa diacronia homem e natureza, devendo ainda destacar-se seu aspecto instrumental conforme pensado por Weber.

[...] e a ter de raciocinar a partir da compreenso do que bom e melhor como tal, visando a uma concluso sobre o que bom e melhor para ele realizar aqui e agora na sua situao particular [...] no mbito da famlia e da plis principalmente da plis que algum dever ter aprendido a exercer essa quinta habilidade (phronsis) e a apresentar as disposies que evidenciam sua posse. (MACINTYRE, 1991, p. 140-141).

Essa regularidade do modo de fazer, do ethos dessas populaes subentende a perspectiva tica presente em Ricoeur (1995). Na obra Em torno ao poltico, o autor apresenta tica e moral a partir de sua etimologia, ambas referentes ideia de costume ( ethos, mores), contudo distinguindo-as. Basta para esse momento referirmo-nos noo de tica o que estimado bom, um princpio tico que se constitui como parte integrante da racionalidade a qual cabe em ntima relao com o acima exposto, dada a forte influncia aristotlica presente na ideia de phronesis e de acordo com a citao acima de MacIntyre (1991). Para Ricoeur, o termo tica que s tem materialidade se pensando do ngulo da orientao da ao social est reservado para a inteno de uma vida realizada, sob o signo das aes estimadas boas (1995, p. 161). A inteno tica se constitui na motivao, na perspectiva da ao, na escolha do que se quer enquanto vida boa, com e para os outros, em instituies justas (p. 162), o que ser detalhado no captulo sexto. Observa-se que a citao mencionada acima de MacIntyre (1991) traz esses trs pilares vida boa, com e para os outros em instituies justas quando se refere sabedoria prtica em Aristteles (phronesis) deliberar sobre o que bom em sua situao particular, no mbito da famlia e, da plis. Posto esse debate acerca da inteno tica em Ricoeur (1995) que se constitui como uma aura da relao de alteridade , cabe esclarec-la como norteadora da estima de si e da solicitude, em que uma no se estabelece sem a outra, do contrrio nenhuma regra de reciprocidade seria possvel no campo da intersubjetividade. Deve-se ainda atentar nessa leitura cruzada da citao de MacIntyre (1991) e a proposta tica de Ricoeur que o termo poltico deriva do grego plis e, em Ricoeur, referese ao exerccio da deciso e da fora no nvel da comunidade, refere -se s instituies no campo da dinmica social e poltica, refere-se ao coletivo. Para alm das relaes

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interpessoais, refere-se ao bem comum, onde a esfera da justia70 estende-se a todos os que o face a face deixa fora a ttulo de terceiros (1995, p. 148-164). na esfera da plis, da esfera pblica, e, portanto, da representao do terceiro coletivo, que a moral universaliza-se. De acordo com Gadamer (2002), o ethos para nossa anlise em termos de comportamento das populaes locais cuja factualidade encontra-se na prxis enquanto distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse no desenvolve sua vida seguindo a pulso dos instintos, mas guiando-se pela razo (p. 375) consubstancia-se na tradio, compartilhando valores, crenas princpios ticos e decises, abarca uma interao social e uma aceitao das convenes comuns estabelecidas e no apenas conformismo.

Trata-se da factualidade das crenas, valoraes, usos partilhados por todos ns; o paradigma de tudo que constitui nosso sistema de vida. A palavra grega que designa o paradigma dessas factualidades o conhecido termo ethos, o que se consegue com o exerccio e o hbito. (GADAMER, 2002, p. 376). O homem um ser que apenas se torna o que e adquire seus modos de se comportar a partir do que ele faz, a partir do como de seu agir. nesse sentido que Aristteles distingue o domnio do ethos daquele da physis. (GADAMER, 2006, p. 48).

A racionalidade prtica71 em Aristteles constitui-se como um retorno empiria do ethos, o fazer humano est relacionado capacidade de uma regulao por meio da phrnesis como estrutura fundamental do agir tico.
A sabedoria prtica72, no entanto mais que uma simples disposio racional, pois possvel deixar de usar uma faculdade racional, mas no a sabedoria prtica. [...] A sabedoria prtica relaciona-se com as coisas humanas e coisas que podem ser objeto de deliberao [...] Deliberar acima de tudo a funo do homem dotado de sabedoria prtica, alis, deliberar bem. (ARISTTELES, s.d apud POLESI, 2008, p. 83).

Para Gadamer, a phronesis enquanto sabedoria prtica est entre o lgos e o ethos; um saber prtico que resulta do hbito, por meio do exerccio, da experincia. Constitui-se
70

A justia tratada no campo da virtude como perspectiva para uma vida boa, diferenciando-se do campo do moral/legal dos sistemas jurdicos. A justia enquanto virtude compreende uma igualdade proporcional ao mrito de cada um. 71 No capitulo 6 retomaremos o debate da phronesis a prudncia, sabedoria prtica , discutida por Ricoeur (s.d) do ponto de vista de sua aplicabilidade pelas instituies pblicas, tendo como fim ltimo a vida boa para o coletivo social. 72 A phronesis sabedoria prtica analisada por Aristteles, razo prtica em uma traduo de cunho kantiano, revisitada por Gadamer na articulao entre o universal e o particular, entre o saber e o saber-se, o ser no mundo por meio de analogia com o saber histrico (vide GADAMER, 1999, p. 478-479; POLESI, 2008).

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enquanto sabedoria requerida pelo agir tico diferenciando-se da epistme e da techn. A esse saber Gadamer entende como compreenso ontolgica, que se completa com a apreenso do universal por meio do horizonte particular do intrprete, que se insere em uma tradio. De acordo com o autor:

O saber tico verdadeiramente um saber peculiar. Abrange de modo especial os meios e os fins e com isso distingue-se do saber tcnico. Por isso no faz muito sentido distinguir aqui entre saber e experincia, o que, por sua vez, convm perfeitamente techne. O saber tico contm por si mesmo um certo tipo de experincia. (GADAMER, 2008, p. 424).

A compreenso/interpretao de cada sujeito est, assim, logicamente enraizada na histria de vida individual e coletiva e sua perspectiva apresenta-se na interpretao que faz do mundo. Desse modo, no contexto dessas reas protegidas podemos pensar em agentes sociais em interao, trazendo consigo toda sua tradio, interpretada aqui luz do Encantamento em contraponto ao Desencantamento do mundo enquanto racionalizao intelectualista criada pela cincia e tecnologia orientada cientificamente (WEBER, 1981, p. 96). Entender desse modo encaminha-nos para a interpretao de um contexto especfico, cujas simbologias que se apresentam por meio dos mitos locais so um passo significativo para compreender os sentidos que consubstanciam valores e perspectivas ticas nas relaes que as populaes locais estabelecem no uso dos recursos naturais, particularmente em reas nas quais esses recursos esto protegidos por lei. De acordo com nossa proposta, analisamos esse contexto com os pressupostos da hermenutica fenomenolgica, para Ricoeur, em De lInterpretacion (1970), os sinais, enquanto texto, suscetveis de interpretao, distinguem-se entre os smbolos unvocos e equvocos. Os unvocos so aqueles com sentido nico, j os equvocos so aqueles a que a hermenutica dedica-se. De acordo com Palmer (2006),

a hermenutica tem a ver com textos simblicos com mltiplos significados; estes podem constituir uma unidade semntica que tem ( como os mitos) um significado superficial totalmente coerente, tendo ao mesmo tempo um significado mais fundo. A hermenutica um sistema pelo qual o significado mais fundo revelado, para alm do contedo manifesto.(PALMER, 2006, p. 53, grifo nosso).

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4.2.1 Da racionalidade prtica ao ethos ambiental local

O fio inicial puxado pelo primeiro uso weberiano da expresso desencantamento do mundo, que me fez descobrir em Weber a admisso destemida de que a magia, ao lado de toda a sua acachapante irracionalidade, tambm dotada de racionalidade. Magia no porta racionalidade terica, nem sistemtica, mas sim prtica. (PIERUCCI, 2003, p. 80).

Aqui procederemos anlise dos princpios norteadores da organizao da vida e do trabalho, buscando evidenciar de que forma os sentidos sacralizados acerca da natureza que se estruturam simbolicamente na organizao da vida social, conforme ser exposto, apresentam-se nas relaes materiais e concretas por meio das atividades produtivas cotidianas dessas populaes. As observaes que seguem levam em considerao que no decurso histrico e social as relaes homem e natureza, no contexto das RESEXs, apresentam uma variedade de aspectos que enunciam, em certa medida, uma acentuao da dessacralizao da natureza em detrimento das perspectivas mticas. A ressignificao dessas perspectivas podem ser associadas s diferentes interaes que as populaes extrativistas travam com os mais variados agentes sociais, incluindo a agentes de instituies de pesquisa, academias, rgos ambientais e mesmo as interaes econmicas a que esto sujeitos dada as relaes com o sistema macro a que esto subordinados. Contudo, e apesar das mudanas que se impem, muito persiste enquanto racionalidade prtica, destinada a atender os interesses imediatos e pragmticos dos grupos locais, ainda que desmitologizada. E, por vezes, esse movimento indica uma imbricao de modos particulares de conservao no uso dos recursos naturais e outros modos menos seletivos de uso, que esto presentes internamente no ethos ambiental desses grupos. Essas formas de manejo so ditadas por necessidades mais imediatas, em uma perspectiva mais voltada para resolver os problemas de subsistncia, a sobrevivncia no aqui e agora. Ainda assim, em uma perspectiva muito particular, se pensada diante da forma como esses lugares de vida das populaes locais so reapropriados pela racionalizao cientfica e tecnocrtica com vistas objetividade da conservao pretendida pela poltica de Unidades de Conservao, de onde observamos o desencantamento73 mais pleno no que se refere a esses contextos sociais. Desse modo, passamos a abordar o contexto local, no qual os sentidos mticos simbolizam as relaes materiais estabelecidas entre o homem e a natureza.
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Desencantamento no sentido dado por Weber de perda de sentido(s) dada a objetividade resultante da racionalidade cientfico-tcnica.

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Nesse sentido, um dos primeiros contatos j na inteno da pesquisa que realizamos com os usurios da RESEX Ara-Peroba e da APA da Costa do Urumaj no nordeste paraense, foi no ano de 2005, quando iniciamos o curso de mestrado no Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais da UFPA74. quela poca, um fato nos marcou muito. E aqui decidimos comear por essa histria. Histria de pessoas simples, to solcitas, to amveis, to desamparadas de polticas pblicas e de respeitabilidade. Quando seguamos rumo vila de Nova Olinda, eu e meu filho meu parceiro de todas as horas e de pesquisa de campo avistamos um belo igarap, do qual no buscamos saber o nome, apenas paramos o carro em que viajvamos para fotografar to bela paisagem. Eis que ali estava o incio dessa nova histria da minha vida e a narrativa de parte da vida das pessoas daquele lugar. Um senhor de meia idade, apressou-se em sair de sua casa s margens do igarap, pegou pelas mos as crianas que ali se banhavam e posou para nossa lente fotogrfica. No trocamos sequer uma palavra, mas aquela cena nos tocou tanto, que hoje iniciamos essa nova caminhada pelas memrias daquele momento. Primeiro uma imensa emoo, que at hoje nos toca e em certa medida inexplicvel. A princpio indagamo-nos sobre a relao emoo e construo do conhecimento cientfico, nossas indagaes se voltavam para a nossa postura no mundo enquanto cientista social. Mais adiante no tempo, tecendo comentrios sobre essas experincias com a professora Anglica Maus, passamos a pensar sobre os motivos daquele homem que hoje homenageado na contracapa desse estudo ; o que ele objetivava dizer-nos por meio de seu impulso? Embora no tenha encontrado em pensamento a resposta para essa pergunta, imagino que quisesse chamar nossa ateno. Queria dizer-nos que esto ali ele e sua famlia, que fazem parte daquele cenrio para alm de uma bela paisagem natural um contexto social que se sustenta sob as relaes materiais e simblicas do homem com a natureza. Que aquele espao o seu mundo, seu lugar, onde o sagrado se manifesta por meio da comunho entre o homem e a natureza. Queria dizer-nos de sua humanidade, de seu ser-no-mundo e da sacralizao da natureza, por meio da atitude de mostrar-se parte daquele cosmos. Comecemos, desse modo, pelas relaes simblicas, mais especificamente pelos mitos to tnues em outros contextos, como se fossem apenas fbulas e to pujantes entre as

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No entanto, nosso contato com a regio muito anterior, datando de 1993, ano em que comeamos a ministrar a disciplina Metodologia do Trabalho Cientfico pelo campus da UFPA em Bragana, perodo no qual contatamos com as questes ambientais e sociais envolvendo pescadores em vilas do municpio de Augusto Corra, reas que anos depois vieram a ser decretadas Unidades de Conservao: APA da Costa do Urumaj e RESEX Ara-Peroba. Dados a respeito do boom de criao de UCs nesse municpio e em Bragana constam em dissertao de mestrado (ROSA, 2007).

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populaes amaznicas que em suas atividades produtivas se relacionam diretamente com os ecossistemas locais. Conforme Eliade, a funo mediadora do sagrado na relao do homem com o mundo que o cerca, revela-se por meio da teofania, do smbolo, do rito, da iniciao e do mito. Em Aspectos do Mito, Eliade (1978, p. 86) esclarece: o mito conta uma histria sagrada, narra um fato importante ocorrido no tempo primordial. Apontando trs funes sociais: o mito conta, o mito explica, o mito revela, tomemos emprestada a fala de Eliade:

H, portanto, uma diferena de experincia religiosa que se explica pelas diferenas de economia, cultura e organizao social, numa palavra, pela histria [...] Contudo, h uma similitude de comportamento que nos parece infinitamente mais importante do que suas diferenas: tanto uns como outros vivem num Cosmos sacralizado; uns como outros participam de uma sacralidade csmica, que se manifesta tanto no mundo animal como no mundo vegetal. Basta comparar suas situaes existenciais s de um homem das sociedades modernas, vivendo num Cosmos dessacralizado, para imediatamente nos darmos conta de tudo o que separa este ltimo dos outros. Do mesmo modo, damo-nos conta da validade das comparaes entre fatos religiosos pertencentes a diferentes culturas: todos esses fatos partem de um mesmo comportamento, que o do homo religiosus. (ELIADE, 1995, p. 16).

Segundo Campbell (1990, p. 16), todos ns precisamos compreender e contar nossa histria. Desse modo, aquilo que os seres humanos tm em comum se revela nos mitos. [...] Precisamos que a vida tenha significao, precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos. Gadamer (2007b) refere-se ao mito em oposio direta a compulso cientfica do sculo XIX (p. 194) pela legitimao:

Gostaria de dizer em sentido totalmente amplo: ns sabemos tudo por lembrana mtica. Com isso, no tenho em vista inicialmente seno aquilo que constitui a essncia de todo o mtico, a saber, o fato de ele no ser verificado e comprovado com vistas correo [...] mito no significa outra coisa seno narrao, mas uma narrao que se autolegitima, isto uma narrao para a qual no se busca legitimao e confirmao [...] Outrora, foi desenvolvida a cincia que continua sempre correspondendo em alguns aspectos quilo que denominamos hoje dessa forma [...] Portanto, se verdade que h uma cincia grega [...] ento tambm verdade que existia, alm disso, uma presena amplamente dominante da lembrana mtica que cunhou todo o horizonte mundano de todos os viventes e de todos os seres pensantes. (GADAMER, 2007b, p. 193-194).

Devemos observar que, ao fazer tal oposio, Gadamer remete ao prprio debate da tradio:

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Todos esses exemplos de uma ampliao da memria histrica giram em torno do fato da tradio. O que propriamente tradio? O que significa ser entregue a tradio? [...] Trata-se de monumentos. Um monumento algo junto ao qual nos vemos diante da necessidade de pensar algo e em que devemos pensar [...] depois da ruptura e da reconfigurao de tantas tradies, tal como elas ainda vivem em nossa conscincia histrica, novos fatos sempre despertaro uma vez mais nosso interesse. (GADAMER, 2007b, p. 192).

A partir desses referenciais, passamos a compreender uma srie de narrativas e mitos que nos foi apresentada durante as nossas viagens. Contudo, devemos destacar que, na AraPeroba, essas narrativas se exprimiam de forma mais imediata, eram-nos assim apresentadas enquanto visitantes ou estrangeiros. Conquanto na RESEX de Soure apresentem-se pontualmente, e quando seus usurios eram indagados a respeito. Esse imediatismo percebido na RESEX Ara-peroba justifica-se, em certa medida, conforme afirma Eliade:

que ao reatualizar os eventos fabulosos, exaltantes, significativos, assiste-se novamente s obras criadoras dos Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo de todos os dias e penetra-se num mundo transfigurado auroral, impregnado da presena dos Entes Sobrenaturais [...] Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida tm uma origem e uma histria sobrenaturais, e que essa histria significativa e exemplar. (1989, p. 22).

Para compreendermos o contexto mtico e no somente ele por si, visto que subjaz a preceitos ticos e morais que esto intimamente relacionados a uma racionalidade, particularmente no que se refere conduta desses grupos em relao natureza em um decurso histrico, e que se apresenta no ser e fazer dos usurios dessas RESEXs partimos de Weber, com vistas compreenso do tema final desta tese, ou seja, as relaes que se estabelecem entre agentes distintos no processo participativo de criao das Unidades de Conservao e elaborao de seus planos de manejo, analisadas a partir das noes de encantamento e desencantamento para refletir enquanto tipos ideais as conexes e tenses entre racionalidades e ethos de grupos sociais distintos. Segundo Pierucci (2005), em Weber existem duas formas, tomadas como tipos ideais, de relao do homem com o sagrado: a magia e a religio. A primeira acepo de desencantamento do mundo relaciona-se a essa esfera, diz respeito desmagificao do mundo pela religio, apoiada em uma viso racionalizada de intelectuais da religio, que introduz uma conduta doutrinria religiosa, rompendo-se com o aspecto mgico, cujo pice encontra-se no protestantismo actico, que estabelece uma ascese intramundana como

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caminho para a salvao. Impe-se uma racionalidade moralizante e metdica da conduta religiosa para a conduta secular em contraponto racionalidade instrumental mtico-mgica ordenadora de prticas descontnuas e isoladas (NEGRO, 2005). De acordo com Weber, acerca desse primeiro sentido do desencantamento do mundo:

O asceta intramundano um racionalista, tanto no sentido de uma sistematizao racional de sua prpria conduta de vida pessoal, quanto no sentido da rejeio de tudo o que esteticamente irracional, seja artstico, seja pessoal-sentimental, dentro do mundo e de suas ordens. Fica, porm, antes de tudo, a meta especfica: o domnio metdico vigilante da prpria conduta de vida. (WEBER, 1991, p. 366).

A segunda refere-se acepo utilizada por Weber em relao cincia, o desendeusamento (Entgtterung), a racionalizao cientfico-tecnocrtica, visto que uma das limitaes da cincia mais difceis de aceitar justamente essa sua incapacidade de nos salvar, de nos salvar a alma, de nos dizer o sentido da vida num mundo que ela desvela e confirma no tendo em si, objetivamente, sentido algum (PIERUCCI, 2003, p. 179). A partir dessa perspectiva, o homem deixa de sacralizar a natureza, tornando-a apenas um objeto de pesquisa. Tal desencantamento est associado racionalizao intelectualista atravs da cincia e da tcnica cientificamente orientada (WEBER, 1967, p. 30). Trata -se, portanto, do tipo ideal da racionalidade formal referente a fins, qual seja o domnio do mundo natural pela tecnologia, em oposio racionalidade referente a valores.

O homem moderno contempla o cu [...] sobre sua cabea como o faz qualquer criana, com seu Sol e suas estrelas, mas a lembrana das teorias astronmicas o impede de nele reconhecer sinais divinos. O cu deixou de ser para ele a manifestao natural do Esprito que engloba o mundo e o ilumina; substitui essa viso ingnua e profunda das coisas pelo saber cientfico, no como uma nova conscincia de uma ordem csmica superior, uma ordem da qual como homem faz parte, mas como uma desorientao, uma agonia irremedivel diante de abismos sem comum medida com a sua pessoa. (BURKHARDT 1982 apud LAZARTE, 1996, p.79).

Desencantamento , desse modo, nas duas acepes desmagificao e desendeusamento rompimento com sentidos e valores postos, quer pela substituio por outros valores e sentidos originrios da doutrina religiosa sobre a racionalidade pragmtica (sentido mgico) onde se assenta o significante mtico, quer pela total falta de sentido subjetivo ante a objetividade.

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Primeiro a religio (monotesta ocidental) desalojou a magia e nos entregou o mundo natural desdivinizado, ou seja, devidamente fechado em sua naturalidade, dando-lhe, no lugar do encanto mgico que foi exorcizado, um sentido metafsico unificado, total, maisculo; mas depois, nos tempos modernos, chega a cincia emprico-matemtica e por sua vez desaloja essa metafsica religiosa, entregando-nos um mundo ainda mais naturalizado, um universo reduzido a mecanismo causal, totalmente analisvel e explicvel, incapaz de qualquer sentido [...] e capaz apenas de se oferecer aos nossos microscpios e aos nossos clculos matemticos em nexos causais inteiramente objetivos mas desconexos entre si, avessos totalizao, um mundo desdivinizado que apenas eventualmente capaz de suportar nossa inestancvel necessidade de nele encontrar nexos de sentido, nem que sejam apenas subjetivos e provisrios, de alcance breve e curto prazo. (PIERUCCI, 2003, p. 145, grifo nosso).

A temtica do desencantamento introduzida aqui em sentido contrrio ao encantamento. Da presena e permanncia da magia atravs da viso simblica do mito que orienta os significados intersubjetivamente partilhados sobre o cosmos, a vida, a morte, a salvao e os mistrios da natureza, isto , a permanncia de uma ao orientada por crenas, valores e normas que ditam as regras do comportamento grupal. Mas, antes de tudo, a ideia de jardim encantado ( zaubergarden) por analogia a um mundo repleto de magia e encantamento pressupe em Weber (1915,1920) a coexistncia de simbologias, acessveis a todos, com significado especial para a organizao da vida econmica do grupo. H uma unidade no reino da mgica e na imagem puramente mgica do mundo, como observamos no caso do pensamento chins (WEBER, 1997, p. 181), como em um jardim, onde convivem em plena harmonia espcies diversas de plantas ornamentais teis. Eis no contexto das religies asiticas o jardim encantado que Weber (1915/1920) tipifica idealmente e no qual florescem as perspectivas da suma libertao e de um agir virtuoso. Enquanto tipo ideal, o Jardim Encantado weberiano plenamente mgico no se concretiza e, no caso em anlise, apresenta-se justaposto a uma racionalidade prtica/valorativa, relativa s aes imediatas na relao homens e natureza, permeadas de simbologias com sentido encantado, e, portanto, pleno de valores que fundamentam a organizao da vida local. Desse modo, partimos da ideia de encantamento materializado nos mitos das populaes usurias das RESEXs Ara-Peroba e Soure que dizem respeito relao do homem e natureza, como constituinte dos saberes locais, para coloc-los em dilogo com as percepes e sentidos de tcnicos e consultores nessa perspectiva do desencantamento do

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mundo, por meio da sustentao cientfica e legal que subjaz a racionalidade tecnocrticofuncional IBAMA e ICMBio. Ao estabelecer esse tipo ideal, cabe refletir sobre a degradao desse imaginrio no decurso das inter-relaes que ocorrem no processo de transformao deste cosmos local de protegido por seres sobrenaturais em territrio poltico protegido por leis e regras de uso advindas da sobreposio de ao e racionalidade tecnocrticas. Nosso primeiro contato com a localidade do Ara no municpio de Augusto Corra PA, agora em virtude do doutoramento, foi durante a primeira reunio para discutir a fase I do PM da RESEX, durante uma semana nos meados de 2009, quando acompanhamos a equipe do ICMBio, composta de dois tcnicos e da consultora, que tambm era responsvel pela elaborao da fase I do PM da RESEX Gurupi-Piri no municpio de Viseu. Buscvamos ali observar as relaes estabelecidas entre os agentes sociais do processo, buscando tambm identificar os aspectos socioambientais em uma breve pesquisa exploratria, alm da averiguao de pessoas-chave que pudessem subsidiar o levantamento de dados. Nesse momento, tnhamos feito contato com o Secretrio Municipal de Meio Ambiente, Lauro Cordeiro ou Laurinho que havamos conhecido no dia 08 de maio de 2009 no municpio de Bragana no Centro de Convenes Guadalupe, por ocasio da reunio para apresentao do Plano de Trabalho relativo elaborao dos PMs das RESEXs localizadas nos municpios de Traquateua, Bragana, Viseu e Augusto Corra e definio dos GTs locais que nos autorizou a hospedagem na casa dos professores municipais, na vila do Ara. Ali ficamos acompanhados da consultora, sendo que os dois tcnicos ficaram hospedados na casa do senhor Jos Antero, pescador aposentado e morador da vila do Ara, do qual um dos tcnicos j era conhecido desde a poca em que realizava trabalhos pela SUDEPE. A partir de nossa chegada na vila, uma das questes mais imediatas que nos foi apresentada pela populao local, particularmente pelo seu Z Antero e pelo seu filho Jos Antnio, conhecido como G seca mas que mais tarde veio a se configurar como um consenso entre os moradores do local foi a histria da origem da localidade, elemento marcante para identificarmos muito do imaginrio local e do simbolismo, conforme afirma Eliade (1992):

Se nos dermos ao trabalho de penetrar no autntico significado de um mito [...], no poderemos deixar de observar que esse significado demonstra um reconhecimento de uma determinada situao no Cosmo, [...] Mas, ainda que

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no exista a palavra, a coisa est presente; s que ela ser dita isto , revelada de forma coerente por meio de smbolos e mitos. (p. 11).

De acordo com informaes dos moradores da Vila do Ara75, a origem da localidade est relacionada chegada do Senhor Manoel Corra simboliza a imagem do heri civilizador responsvel pela finalizao da criao divina do cosmos , pescador que, vindo do municpio de Viseu atrs de boa pescaria e em busca de gua doce para o consumo durante o trabalho, localizou e se estabeleceu s proximidades de uma fonte a qual nominou olho d'gua onde se originou o primeiro ncleo da vila com a chegada de outros parentes e amigos que o seguiram para ali atuarem na pesca hoje um bairro da vila. Segundo Eliade (1992b) em O Sagrado e o Profano, a revelao do espao sagrado (p. 17) tem valor existencial, h uma sacralizao do espao, uma separao entre o espao sagrado (cosmos) e os espaos profanos (caos) e essa revelao que leva o homo religiosus a estabelecer-se no centro do mundo. Essa ideia de certo modo justifica o mito da origem da Vila do Ara, sede da RESEX Ara-Peroba, em virtude da particularidade da localidade que se desenvolveu a partir de uma fonte cristalina de gua que jorrava por baixo de grandes pedras. Embora se ressaltem esses aspectos, no podemos deixar de atentar para o fato de que a narrativa envolve diretamente a figura do pescador e da pesca enquanto ao intimamente relacionada localizao e ao bom uso de recursos naturais associado s boas condies de moradia. Nesse sentido, cabe retomar a ideia de racionalidade prtica, deliberar sobre o aqui e agora, deliberar bem com vistas a atender necessidades imediatas da famlia e do grupo ao qual pertence. No contexto do mito de origem da vila, os moradores referem-se tambm a uma casa, a primeira, uma casa branca, por intermdio da qual foi dado o primeiro nome da vila casa branca. Segundo Eliade (1992b), toda construo humana possui como modelo exemplar a cosmogonia, a criao de um mundo que se deliberou habitar, uma imagem do mundo (imago mundi) enquanto criao divina. Tanto a construo da casa quanto a deliberao de instalar-se em um territrio desconhecido exigem uma deciso imperativa que est relacionada ao ato de assumir a criao do mundo em imitao a obra dos deuses. Desse modo, toda habitao humana acolhe um aspecto sagrado por refletir o mundo.

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Observe que a denominao Ara em linguagem indgena significa gua doce, o que vem reafirmar acerca da histria da origem da vila por meio da chegada do pescador Manoel Corra naquele lugar em busca de gua para beber e por boas condies de pesca e, manifesta a relao local do homem com natureza em suas atividades produtivas.

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Foto 29 Letra de Forr sobre a origem da Vila apresentada como trabalho escolar

Fonte: Jos Antnio G seca ( pesquisa de campo em outubro de 2009)

O olho d'gua onde se origina o ncleo da vila do Ara surge nas narrativas cercado de muitas simbologias para a localidade, visto que ao mesmo tempo em que servia para banho, lavagem de roupas, louas, aquisio de gua potvel e para o lazer, ou seja, para as atividades humanas necessrias no cotidiano da organizao social que ali se formava, tambm trazia consigo alm da beleza natural, por conta da limpeza da fonte e a presena de animais, o inexplicvel e misterioso, nas relaes com a natureza. Aqui fica explcita a manifestao do sagrado por meio desses recursos da natureza, a gua, a pedra e tambm os animais como seres de um reino encantado:
A partir da mais elementar hierofania por exemplo, a manifestao do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma rvore [...] encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestao de algo de ordem diferente de uma realidade que no pertence ao nosso mundo em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo natural, profano. (ELIADE, 1992b, p. 13).

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Observa-se que a ideia de um reino encantado que se apresenta no mito da origem do Ara simboliza um mundo vvido de magia, cuja racionalidade mgico-prtica instrumental quanto aos fins de explicar-se no mundo, para sacralizar o espao natural sob domnio humano (o cosmos) em torno a uma imensido de natureza profanada pela presena de seres animados diversos (o caos). Essa noo mtica de um mundo onde homens e seres encantados coabitam, conforme explicita Pierucci: Para o qual o mundo dos espritos faz parte do mundo dos humanos tanto quanto os animais e vegetais, e onde inanimados no h, uma vez que tudo quanto existe tem alma, nima, animao. Um mundo animado, em suma. Um jardim encantado, dir Weber. (2003, p. 69). Podese observar tambm diante do mesmo debate acima realizado por Eliade (1992b) a consagrao dos manguezais das RESEXs Ara-Peroba e Soure como espao sagrado, com uma qualidade excepcional, nica, so lugares sagrados (p. 18). O manguezal nesse sentido apresenta-se como o limiar, o limite que tem seus guardies deuses ou espritos e constitui um smbolo e ao mesmo tempo um veculo de passagem entre o mundo humanamente habitado e o mundo dos seres encantados, coincidentemente o lugar do trabalho e subsistncia para grande parte dos usurios os mangues, rios, lagos e florestas.

O que caracteriza as sociedades tradicionais a oposio que elas subentendem entre o seu territrio habitado e o espao desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro o mundo, mais precisamente o nosso mundo, o Cosmos, o restante [...] uma espcie de outro mundo, um espao estrangeiro, catico, povoado de espectros, demnios, estranhos. (ELIADE, 1992b, p. 21).

Considerando-se ainda o fato da presena de seres antropomorfos, como o Atade figura masculina mtica, muito conhecida na regio bragantina, considerada o protetor dos manguezais e das reas internas, protetor dos seres animais e vegetais daquele ambiente em geral descrito como um homem muito grande de pele negra, com um rgo genital de tamanho acima do normal que costuma punir homens que adentram os manguezais sozinhos e aps as 18 horas por meio de assdio sexual. Nesse caso, o mito, para alm da proteo dos espaos naturais, pode ser pensado tambm como uma simbologia responsvel pela perpetuao da organizao do trabalho de forma coletiva, visto que no universo da pesca essa organizao se d pela parceria76, limitando tambm o tempo, o que pode ser justificado por
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A parceria aqui entendida quando dois ou trs pescadores usam o mesmo casco, redes e outros apetrechos de pesca que se somam no compartilhamento da atividade direta da pesca, no tempo de trabalho conjunto. Posto que, os pescadores locais tambm denominam como parceria a relao que resulta da associao da propriedade dos meios de produo por parte do atravessador/marreteiro e do trabalho vivo despendido pelo pescador direto,

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meio dos perigos que o ambiente apresenta por conta da presena de animais peonhentos. Faz-se referncia tambm a Atade, uma figura em forma de mulher que assedia os homens nos ranchos, liberando para os que a aceitam o uso dos recursos naturais em fartura.

O meu pai contava que [...] ele era pescador muito antigo, muito ligado a mar, ele tinha rancho77, trabalhava muito. A ele contava que era uma mulher que se manifestava, adormecia ele tambm, ele sempre via. Uma vez ela chegou e perguntou se ele queria ser rico, ele disse que no. A ela s disse assim: Se voc quiser ser rico s me acompanhar. Ele disse que no. A ela foi, foi at sumir. Depois disso aconteceu dele ser atacado quando despescava os anzis no mangue, umas quatro horas da manh. Ele contava s que sentiu um frio na espinha e um vulto por trs dele. [...] Meu sobrinho que achava que ele tava demorando saiu atrs dele e encontrou ele todo machucado, sangrando e com os anzis enrolados nele. [...] e muitas marcas no papai. (Informao verbal) 78.

comum na narrativa dos moradores do Ara o relato de que aparecia s margens do rio Ara e s proximidades do olho dgua um sapo que tambm desaparecia por baixo das grandes pedras ali localizadas. A referida fonte est ligada origem da habitao e permanncia das pessoas no lugar, associada s boas condies de pescaria que o rio Ara apresentava, intimamente relacionada abundncia dos recursos naturais associada proteo encantada do lugar, um espao sacralizado, abenoado, o nosso lugar, no dizer dos moradores locais. O sapo est relacionado aos donos do lugar como comumente os usurios da RESEX Ara-peroba denominam esses seres protetores dos ambientes naturais como um ser encantado que estava ali antes da chegada do homem e que seria o protetor do lugar, visto que ficou como um registro unnime na localidade a relao existente entre a fonte, o sapo e a presena humana, em decorrncia do fato ocorrido com um dos netos do Sr. Manoel Corra. Segundo relata a senhora Beth Picano, viva de Demtrio Corra filho do pescador Manoel Corra , que ouvia do marido, bem como o relato de diversos moradores, que afirmam essa narrativa como acerca da origem do Ara, um dos filhos do Sr. Demtrio, como era comum, sempre brincava s proximidades do olho d'gua e embora alguns comportamentos estranhos por parte das crianas fossem, por vezes, percebidos ficavam
localmente tambm chamada de sociedade entre o patro e o pescador na diviso da produo. No caso dos caranguejeiros, deslocam-se em grupos para a rea de manguezal, em geral familiares, sendo cada um dono de seus apetrechos de pesca e de sua produo. 77 Habitaes temporrias, construdas em pontos estratgicos das praias ou na linha litornea. nesse tipo de construo que os pescadores se acomodam sazonalmente para as pescarias. Muitos levam a famlia e l se acomodam durante a temporada de pesca. 78 Relato de uma moradora da Vila de Nova Olinda em uma roda de conversa em frente casa do Sr. Ben em julho de 2006.

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assustadas e choravam ao serem levadas pelas mes ou irmos para tomar banho ali o menino de 07 anos ao brincar flechou um sapo, que desapareceu por baixo de uma das pedras. Contudo, nos dias seguintes as pessoas que foram at a fonte ouviam gemidos, atribudos ao sapo, e no mesmo dia em que a criana flechou o sapo, ela adoeceu, passou a manifestar forte febre e dores de cabea tendo inclusive vises do sapo dentro de sua residncia e de uma mulher de aparncia idosa s proximidades de sua rede. Relatam os moradores que, aps a presena de benzedeiras e curandeiros que no tinham explicao para a doena da criana ela veio a falecer s cinco horas da manh, horrio que parentes retiraram de dentro da casa um sapo, dizem tambm que enquanto perdurou a doena da criana ouviam-se os gemidos do sapo embaixo da pedra, somente cessando quando do falecimento do menino. Outros sapos foram vistos s proximidades da fonte, contudo hoje no possvel visualiz-la, apenas na mar seca possvel perceber a gua escorrendo. Segundo relatos locais, a morte do sapo simbolizou o fim de seu reino encantado, e de acordo com o sentido que dado, o abandono por parte desses seres encantados gera o desaparecimento ou desorganizao dos ambientes, antes protegidos. De acordo com os relatos do moradores da vila, a fonte foi encoberta pelo lixo e aterro, uma clara demonstrao da renncia dos seres protetores, cujo lugar ficou abandonado prpria sorte, tendo sido usado por, aproximadamente, quarenta e cinco anos. Relatam ainda que se ouvia ali, por baixo das pedras, barulhos semelhantes ao som de motores de barco, a ideia a presente deixa subentender que por baixo daquela fonte existiria um mundo encantado (foto 29). Indicam tambm a existncia de outra fonte chamada de chaleira que fica no bairro Mariana, habitado majoritariamente por pescadores. A fora dessa narrativa na vila do Ara manifesta, conforme tambm foi observado em outras localidades dos municpios da regio Bragantina bem como na regio do Maraj, a atribuio aos animais ou seres sobre-humanos o poder de proteo e manuteno do ambiente natural, cabendo punio aos homens que se desarmonizarem com esse ambiente. Dentre as narrativas comuns entre os moradores do Ara, h diversos relatos de crianas que, ao ferir animais, so visitadas pelo ser encantado em sua forma original ou na forma humana e que, aps a visita, adoecem e morrem. Esses relatos criam nos outrora crianas e atualmente adultos que ouviam as narrativas um temor, recordado com certa garantia da veracidade dos fatos e que gerou um comportamento, desde a infncia, de medo da punio no mau trato em relao natureza. Diversos so os exemplos desses seres encantados, alguns j referidos em dissertao de mestrado (ROSA, 2007) no caso da RESEX Ara-peroba, alm do Atade Protetor dos

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manguezais a Atade sedutora dos pescadores, as donas do lugar que habitam os bancos de areia, os meninos donos da praia e as avs do lugar. Ainda que seja em um contexto de predominncia dessa racionalidade mtico-prtica, nada nos impede de afirmar que existe a embutida nuances que podem concretamente materializar caracteres do tipo da racionalidade ambiental conceituada por Leff (2006a, 2006b, 2004). Encontramos, por meio das narrativas mticas dessas populaes, congregados valores e sentidos referentes a uma natureza sacralizada que possuem significado para a organizao da vida coletiva, mas tambm de organizao do trabalho e da necessidade de conservao da natureza, evidentemente a praticidade dessa racionalidade local no se vincula conservao da natureza pelo seu valor intrnseco, a natureza como um fim em si mesmo ou ainda poltico ou ecolgico em sentido restrito, mas pelas necessidades materiais e simblicas dos grupos locais, conforme vem sendo exposto. Na RESEX de Soure, o mais conhecido desses seres sobre-humanos o pretinho da bacabeira, protetor das margens do rio Paracauari, outro exemplo de rea limtrofe entre o cosmos e o caos (ELIADE, 1992B). Esse nos foi apresentado na rea urbana de Soure, j como um produto cultural para turistas, mas manifesta-se na fala dos usurios da Reserva principalmente pelas surras desferidas contra pessoas conhecidas, segundo relatos locais. O vaqueiro Boaventura protetor dos campos e alagados e a mulher cheirosa que enfeitia os homens e os leva para o manguezal. Todos seres humanos encantados que passam a proteger a natureza. Para os quais os usurios sempre pedem permisso para retirar os recursos naturais, buscando, contudo, no desperdi-los. Outros entes encantados tambm aparecem nas narrativas locais, seja da forma animal ou vegetal, protetores das guas ou no, como o toco que sempre que aparece boiando ereto nas guas dos rios em Soure indica o sinal de que alguma embarcao vai naufragar e por vezes desaparecer, e a gara protetora do lago do Pedral.

Eles contam sempre de uma parte que fica l pra trs, na lagoa do Cajual, tinha uma me, era uma gara, se chamava Lindalva, parecia animal, mas era uma mulher que aparecia l, os mais antigos que contam (informao verbal)79.

So seres que, para alm da forma humana, mineral, vegetal ou animal, estando no reino encantado, possuem a capacidade de se fazer respeitar pelos poderes sobre-humanos e
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Relato de Mrio Caetano, morador da vila do Pedral, em Soure em 04 de janeiro de 2011.

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pelo poder de punio que exercem. Portanto, a manuteno do lugar, especialmente em seus aspectos naturais, est confiada a eles. O que justifica o desaparecimento ou degradao dos ambientes ao desinteresse ou abandono desses seres (ROSA, 2007).

O pessoal l, viam [sic] dois pretinhos, eles achavam que eles moravam l, os pretinhos brincavam de pira, tomavam banho, rapidinho eles sumiam. Dizem o pessoal l, que a praia se acabou porque com certeza eles se mudaram de l, enquanto eles estiverem l, se o lugar comear a escangalhar eles se mudam, a praia da Ligeira era muito bonita, depois se acabou e o pessoal foi pro Muruci. Todo lombo de praia tem seu dono, quando se acaba eles se mudam (informao verbal)80.

Ainda, segundo Eliade (1992b), o mito tem relao com o sagrado quando se d aos personagens esse poder sobre-humano e poder de coero, segundo o autor em referncia, o sagrado equivale ao poder (p. 14). Nas relaes que se estabelecem e que se firmam em um processo de submisso do homem em relao natureza, observamos que para os usurios locais o fenmeno de desaparecimento dos lugares, particularmente das praias que ocorre por meio do movimento da areia, quando aparecem e desaparecem gradativamente os bancos de areia se d pela existncia e ao desses seres invisveis ou encantados. Para os usurios da RESEX Ara -Peroba, por exemplo, o desaparecimento das praias est associado ao desaparecimento dos seres donos do lugar, ao abandono do local por seus protetores. As presses ecolgicas so representadas por meio do abandono desses seres que tm como papel a proteo daquele ambiente. So seres que possuem a capacidade de se fazer respeitar pelos poderes sobre-humanos e pelo poder de punio que exercem. Portanto, a manuteno do lugar, especialmente em seus aspectos naturais, est confiada a eles.

Toda praia, ela tem um dono, formou um lombo [banco de areia] aqui, a tem aquele dono. A chega l o cara, tem que pedir! Quer levantar um rancho, tem que pedir, mas tem cara que no. Naquele rancho nosso, no outro lado, eles no mexem com ningum, s do lado daqui que acontece (informao verbal)81.

O cerne dessas narrativas representa tambm a fora da tradio do lugar, dos valores que se mantm apesar das mudanas, conforme Gadamer:

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Relato do Sr. Ben Benedito Brito, pescador e marreteiro da Vila de Nova Olinda, usurio da RESEX AraPeroba, em julho de 2006. 81 Relato do Sr. Ben Benedito Brito, pescador e marreteiro da Vila de Nova Olinda, usurio da RESEX AraPeroba, em julho de 2006.

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Na realidade, a tradio sempre um momento da liberdade e da prpria histria. Tambm a tradio mais autntica e a tradio melhor estabelecida no se realizam naturalmente em virtude da capacidade de inrcia que permite ao que est a de persistir, mas necessita ser afirmada, assumida e cultivada. A tradio essencialmente conservao e como tal sempre est atuante nas mudanas histricas. Mas a conservao um ato da razo [...] em meio suposta mudana de todas as coisas, do antigo conserva-se muito mais do que se poderia crer, integrando-se com o novo em uma nova forma de validez. (GADAMER, 2008, p. 373-374).

As explicaes mticas para fenmenos naturais e sociais que geram impactos ambientais so simbologias que se estruturam como parte da racionalidade prtica e que no deixa de atender aos fins determinados e visados pelos locais. Essa racionalidade prtica materializa-se por meio do que Weber define como a ao social determinada tradicionalmente, tornando se costume devido a uma longa prtica (2002, p. 41). Se materializando, portanto, na conduo do ethos local em termos de respeitabilidade no uso dos recursos naturais. Pode-se observar como os valores a presentes se perpetuam na coletividade dessa populao, onde coexistem categorias sociais vrias, que vo desde os pescadores e extrativistas em geral agentes, prioritariamente, de uma racionalidade prtica a profissionais especializados como pedagogos, mdicos e engenheiros de pesca agentes de uma racionalidade terica, mas que se coaduna, em grande medida, com um vis da racionalidade prtica que dita essas regras simblicas, pela narrativa desses prprios agentes locais conforme segue:
Certa vez nos fomos tirar turu no mangue, eu ainda disse: J vai dar seis horas [18h]. O pessoal ficou fazendo graa. Eu avisei pra no ficar brincando. Dali a pouco era uma ventania to forte que dobrava as folhas, um assovio fino e forte. Olha, foi mais quem correu com medo [...] Eu avisei (informao verbal)82.

Perceber as manifestaes mitolgicas locais, fazer a interpretao dessas manifestaes, indica uma necessidade e as formas que a populao local tem de encontrar mecanismos de proteo para o seu lugar diante das alteraes que percebem em seu meio como ao do prprio homem e da sua prpria inabilidade de faz-lo. Contudo, cabe salientar que essas manifestaes nem sempre so obedecidas. Por vezes, pela prpria necessidade imediata por valores de uso, os extrativistas locais retiram
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Relato de Maria Jos Santana, diretora escolar no municpio de Augusto Corra, em julho de 2006.

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esses recursos para o consumo por meio de tcnicas moralmente censuradas (muitas das quais proibidas pelos acordos de pesca das vilas) como o caso de uso de produtos txicos como o timb na pesca (ROSA, 2007). Porm, faz-se necessrio registrar que h relatos locais de respostas desses seres sobrehumanos que atuam como juzes, por meio de castigos fsicos como acidentes, psquicos como assombraes e mesmo com a morte.

Tem aquele homem que morreu, l pro Z Castor, que essa pessoa [refere-se ao Atade] bateu muito nele e ele veio a morrer. Meu sobrinho descreve as marcas no tijuco, eram ps grandes e muita marca de rastro, como se eles tivessem brigado (informao verbal)83.

Essas expresses simblicas, que no dizer de Gadamer linguagem visto que o ser que pode ser compreendido linguagem (2002, p. 386), no so apenas representaes acerca da natureza, mas tambm querem dizer a respeito da conservao dos recursos naturais e, portanto, servem de orientadoras das aes, dando um sentido especfico a elas. Pensando em comum acordo com Weber, acerca da condio do homo religiosus, como um tornar-se ou fazer-se constantemente, podemos observar localmente o hibridismo entre sentidos mtico-religiosos. Particularmente quanto agregao aos mitos locais de elementos do cristianismo. De acordo com Negro (2005):

Na formao da sociedade brasileira [...] nada houve de semelhante tica protestante [...] formou-se a partir da um catolicismo popular [...] conviveu aqui com religies afro-brasileiras e indgenas, com as quais trocou deuses, crenas e rituais, formando uma mentalidade religiosa hbrida e sincrtica, densamente mgica e encantada. No se quebrou o feitio, nem sua influncia sobre a mentalidade popular (p. 34).

Na vila do Pedral, nas adjacncias da RESEX de Soure, observa-se o aspecto de vulnerabilidade social dos moradores, e de um contexto econmico de precariedade, mesmo em se tratando de extrativistas de recursos naturais, conforme referenciado no captulo trs. Ali, mora a senhora Raimunda Dias da Silva, uma das mais antigas moradoras, tambm conhecida como liderana religiosa, ela quem nos expe uma narrativa que se encontra entre o mito e a forte influncia do cristianismo, sob a qual se subentende o sentido de pertencimento social a um lugar sagrado, santificado visto que por ali teria passado Jesus quando criana em contraponto perceptvel carncia e sentimento de abandono local:
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Relato de uma moradora da Vila de Nova Olinda em uma roda de conversa em frente casa do Sr. Ben em julho de 2006.

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Naquele tempo que Jesus andava no mundo, ele andou pelo Pedral. E tinha uma pedra grande, aonde ele se ajoelhou, ele fez um poo na pedra, onde ele bebeu gua. Ficou o rastrinho do joelho e do p na pedra. E o rastro da burra que ele desceu ficou na pedra tambm. Era uma coisa linda, o rastro de criana. Eu vi, todo mundo aqui, os velhos do Pedral chegaram a ver. Agora esta pedra desapareceu (informao verbal)84. Eu ainda cheguei a ver a pedra, ela era do outro lado da pista, quem vai l pro lado do aterro, a tinha uma pedra grande onde tinha uma cuinha [lugar com formato cncavo por analogia cuia] e tinha a marca do joelho do menino Jesus, s que roubaram essa pedra. Arrancaram a pedra de l (informao verbal)85.

Ainda nessa linha de anlise muito comum tambm no nordeste paraense essa simbologia em que se agregam elementos da natureza e da sociedade local, particularmente entre os usurios da RESEX Ara-Peroba, a personagens do cristianismo. Como afirma Eliade (1992), manifesta uma necessidade de se colocar no centro do cosmos , estar no centro do mundo. Conforme narram usurios e moradores da vila de Nova Olinda, Nossa Senhora ao passar por aquela regio em fuga, em vista das ameaas de Herodes, no podendo atravessar os rios, teria pedido ajuda ao caranguejo que se negando enterrou-se nos manguezais. Tendo, contudo, o siri se oferecido para ajud-la ficou com o formato chato pelo peso que carregou, mas como forma de compens-lo, Nossa Senhora abenoou-lhe com sua imagem nas costas. Segundo observamos a partir das leituras de Weber (1891, 1991, 1999), esses elementos mgicos so descartados no processo de desmagificao ou desencantamento religioso do mundo, h uma predominncia da moralizao da conduta religiosa no Ocidente que vai no sentido da substituio da racionalidade mgico-prtica por uma racionalidade terico-teolgica, uma racionalizao religiosa, sem fins racionais imediatos para a vida prtica, voltada para uma vida ps-morte o desencantamento do mundo na primeira acepo analisada por Pierucci como desmagificao.

nessa chave que Weber vai poder olhar para a religiosidade tico-asctica do Ocidente, depreciadora e perseguidora implacvel da magia, s que agora de um ponto de vista comparativo com a religio dos mandarins chineses, que nesses precisos termos nunca peitou as prticas mgicas, nem na base da argumentao, nem violentamente. (PIERUCCI, 2005, p. 118).

84 85

Relato de D. Raimunda em janeiro de 2011. Relato de Mrio Caetano, morador da vila do Pedral, em janeiro de 2011.

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As duas referncias acima, de moradores da vila do Pedral e da Vila de Nova Olinda, demonstram como esto imbricadas, nos contextos locais no nordeste paraense e no Maraj, explicaes mticas arqutipos com explicaes originariamente locais a elementos da religio crist, sobretudo do catolicismo, em uma adaptabilidade aos anseios explicativos acerca da natureza e das relaes que assim se estabelecem em comum acordo com o que est colocado como divinizao universal. Importa salientar que, dentre os usurios das RESEXs de Soure e Ara-Peroba, apresentam-se desse modo, imbricados se pensarmos do ngulo dos tipos ideais, enquanto polos distintos, embora gnero da mesma espcie mito e religio, em uma sntese entre as manifestaes simblicas de hierofania em entes da natureza e hierofanias supremas para os cristos a encarnao de Deus na forma humana, por meio da Jesus Cristo (ELIADE, 1992) e a sacralizao humana por meio de Nossa Senhora. Observando que entes da natureza manifestam uma sacralidade csmica como o siri na RESEX Ara-Peroba e a pedra na Vila do Pedral na RESEX de Soure, e simbolizam por meio do contato com as manifestaes do sagrado religioso cristo Nossa Senhora e o menino Jesus a sacralizao do lugar onde vivem. Formas sincrticas de manifestar o estar-no-mundo pela necessidade de afirmao do sentimento de pertena ao lugar sagrado, o Centro do Mundo. Essa divinizao da natureza confere sentidos s relaes que o homem estabelece com a natureza. A sacralizao da natureza apresenta-se para alm da divinizao das pedras, dos animais ou vegetais. Exercita-se por meio da racionalidade prtica no uso cotidiano e nas relaes de reciprocidade que se estabelecem entre o homem e a natureza, dada a particularidade dessas populaes que vivem do extrativismo em reas hoje determinadas como Unidades de Conservao. Qual a relao desses sentidos e valores encantados manifestos no ethos ambiental dessas populaes em relao organizao do trabalho? De que modo esses sentidos encantados influenciam a organizao do trabalho extrativista nessas reas protegidas? Passemos a um novo momento desse estudo. 4.2.2 O ethos ambiental local Tradio e mudana nas relaes de trabalho Quem de ns, amaznidas, imersos na modernidade, nunca apelou para um amuleto da sorte? A exemplo, no estado do Amazonas, na poro setentrional da Amaznia brasileira, o dente de jacar-au serve como amuleto de proteo e para estimular o nascimento de dentes em humanos; a gordura do jacar medicamento utilizado para frieira, derrame e

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picada de serpente; e o casco utilizado como defumador (SILVA, 2008), no interior do estado do Par, utiliza-se pequena parte da cartilagem do poraqu como amuleto a ser introduzido em inciso no pulso, que aps cicatrizado, fortalece aquele que fez uso desta quase simbiose, em Belm e no estado do Par, a boneca de papel atrs da porta se oferece para que a chuva de todo dia a tarde pare imediatamente. Qual poder se esconde nos amuletos que agem sobre os domnios da natureza? Sentidos dados e sentidos ressignificados no decurso do tempo. O mote que nos leva a iniciar esse subcaptulo gerou em ns a recordao dos nossos amuletos amaznicos diante da natureza prodigiosa. O que chamou-nos a ateno para essas questes foi um colar que adornava um jovem indgena da tribo dos Guaranis, aluno do doutorado em Antropologia/UFPA. Perguntado sobre de que animal era o dente que pendia, respondeu de ona. Nesse momento comeam nossas reflexes sobre o ethos ambiental local e a atividade produtiva extrativista em ntima relao com os encantados locais. Recebi como resposta, para alm da informao de que o dente era de ona, similaridades de comportamentos, de condutas do homem amaznico em relao natureza. Reportamo-nos s observaes de campo e s conversas realizadas tanto na RESEX AraPeroba quanto na de Soure, fazendo uma interligao do imaginrio social a partir da ideia de amuleto. A primeira questo que a conversa referida nos suscitou e que agora tomamos como referncia, foi o comportamento dos caranguejeiros do bairro do Pacoval em Soure alis, o significado da palavra pacoval me foi dado pelo indgena: bananal ou banana da terra, derivado de pacova todos ali, ou pelo menos a maioria, utilizam o ferro de cova para retirada do caranguejo do manguezal, principalmente no perodo do vero quando o solo fica mais seco. Essa tcnica proibida por lei por agredir as razes da vegetao de mangue seria a princpio a informao mais importante, j que aqui se trata de um estudo da questo socioambiental. Contudo, ao entrevistar, o senhor Raimundo Leal, conhecido como Fico, morador do bairro do pacoval e atual presidente da ACS, observamos que usava um colar, semelhante ao do jovem indgena referido acima, sem tantos enfeites, mas com um dente como pingente. Ao ser perguntado da origem do dente, informou-nos ser de jacar-au. As proximidades poderiam ser encerradas a. O decorrer da conversa, nos dois casos, trouxe-nos ento o sentido do uso do colar, um sentido de simbiose, de empoderamento, que se manifesta da fora do animal, representada pelo dente. Segundo Eliade, o objeto surge como receptculo de uma fora exterior que o diferencia de seu prprio meio, e lhe d significado e valor (1992, p. 12).

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muito arriscado [o trabalho do caranguejeiro], d muita cobra, a gente tem um dente de jacar-au que a gente usa contra cobra venenosa, um pra cada. Isso aqui cobra venenosa no encosta, onde ela tiver, ela sente e vai embora. Se ela tiver braba, pode colocar assim num pedao de pau e pode colocar na direo dela que ela pe a cabea assim pra baixo e vai embora com medo (informao verbal)86.

O sentido do uso do dente do jacar-au, nos dois casos visto que o indgena referido tambm fez aluso a ele na continuidade de nossa conversa surge como uma espcie de comunho entre seres o animal e o homem. Para alm das nossas incrdulas indagaes iniciais sobre a possibilidade do efeito sobre a cobra venenosa ser uma questo da exalao de algum odor, para as populaes locais o que est colocado a fora sagrada de um ente natural em forte sintonia com a apropriao humana dessa fora. O cotidiano de trabalho do caranguejeiro constitui-se em um rotineiro ritual que vai da preparao do corpo por meio do uso do leo queimado para proteo de picadas de insetos at o uso do colar de dente de jacar-au, acompanhado das rezas para combater a picada de cobras venenosas, que, por vezes, so encontradas nos buracos do manguezal onde esto os caranguejos. Nesse aspecto, pode-se observar uma forte influncia da racionalidade mgico-mtica sobre a prtica cotidiana dos usurios das RESEXs em estudo, conforme se pode inferir do comportamento dos caranguejeiros de Soure bem como de outros usurios.

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Relato do Sr. Raimundo Leal em janeiro de 2011.

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Fotos 30 e 31 Sr. Raimundo Leal Fico, usando e apresentando o dente do jacar-au

Fonte: Philippe Portela (pesquisa de campo em janeiro de 2011)

Compreender a racionalidade e o ethos ambiental dessas populaes imprime cuidado, visto que, embora no seja possvel separar um ethos originrio de um ethos ressignificado em virtude das relaes estabelecidas no decurso da prpria continuidade da vida social, buscamos apresentar o nosso texto de forma a fixar um comportamento da populao local mais constitudo pelas necessidades intrnsecas da prpria organizao grupal, embora tenhamos claro que nenhuma organizao social se faa no isolamento e na ausncia de trocas materiais e simblicas. Importa para esse momento deixar claro que nossa inteno aqui enunciar aspectos de uma organizao do trabalho que recai sobre o uso dos recursos naturais e que responde de forma mais imediata as suas necessidades. Visto que estabelecer um mundo comum de convenes no significa a imposio de regras externas, mas a identidade entre o agente e as valoraes presentes na consci ncia coletiva. A racionalidade a presente a celebre racionalidade instrumental de Max Weber (GADAMER, 2002, p. 377), pois o que est estabelecido convencionalmente por um grupo possui fins determinados e compreende o saber dos meios que permitem e dos que no permitem alcan-los. Nesse sentido, o saber faz parte do ethos. Desse modo, importa primeiramente enunciar em termos de esclarecimento para podermos compreender a organizao do trabalho extrativista local ante a tradio local e as

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mudanas que se agregam por meio da poltica pblica que as populaes locais que so usurias das reservas extrativistas de Soure e Ara-Peroba embora identifiquem os rgos do Estado IBAMA e ICMBio e seus agentes funcionais, reconhecendo-lhes a autoridade subjacente e, portanto, identifiquem a expresso RESEX chegando a confundi-la e compreend-la como sinnimo da Associao de Usurios no se identificam com a UC, ou seja com a nova territorialidade que se impe pela ao estatal enquanto espao geogrfico sob o poder estatal. Esse um primeiro ponto significativo para a compreenso de como o trabalho se organiza mediante um ethos ambiental consolidado no tempo por essas populaes, e as restries e mudanas que se insituem mediante a criao da unidade e o estabelecimento da nova territorialidade, visto que as UCs representam para eles, muito mais as limitaes legais que se impem ao fazer cotidiano, ao trabalho e, desse modo, organizao da vida coletiva. A exemplo, as limitaes fsicas das unidades e as restries de uso normatizadas no se tornaram para eles, at a presente data, mais expressivas que as prprias delimitaes espaciais usuais, demarcadas pelo valor til dos recursos existentes e pelas determinaes dos seres protetores do lugar. Um exemplo pertintente para a demonstrao da manuteno dos costumes regidos pela crena nos encantados se d nas reas protegidas do municpio de Augusto Corra, os usurios respeitam muito mais s dezoito horas como limite temporal para a explorao do manguezal, no sentido tico e tcito, pela crena nas reaes punitivas do Atade do que pelo mangue per se, institudo pela cincia e reafirmado pela tecnocracia como berrio das espcies. Enunciando seus prprios espaos sacralizados, conforme exposto. Outro exemplo do domnio sobre esse espao fsico do territrio decretado reserva que ele nomeado e identificado em seus diversos pontos pela grande maioria dos usurios. Dado constatado nas reunies da fase I do PM, conforme verificamos a partir das correes acerca dos nomes das localidades por esses usurios no mapa de delimitao da rea apresentado pelos tcnicos e ainda esclareciam a origem ou o porqu das nominaes. Um fato que colabora para essa nossa interpretao e que se torna recorrente nas reunies relativas ao debate do PM os tcnicos inici-las com alguns esclarecimentos sobre o que a RESEX, em virtude dos usurios costumarem nominar a Associao de usurios pela nomenclatura RESEX. Desse modo, para os usurios, o que se concretiza, o que est mais prximo e o que novo nos contextos vividos a Associao enquanto entidade representativa que congrega seus interesses e intermedia a relao com os rgos estatais para recebimento dos benefcios advindos das polticas pblicas. Da a analogia imediata da

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Associao de usurios em relao sigla RESEX, isso ocorrendo nas duas unidades em estudo. Esses usurios sentem aquele espao de trabalho e subsistncia simplesmente como o nosso lugar, lugar compartilhado e imprescin dvel para organizao da vida social. A compreenso da populao local est para alm da UC enquanto delimitao territorial. Cabe, nesse caso, o entendimento como ambiente assinalado pela ao, vivncias, representaes e simbologias dos grupos que l vivem seu cotidiano. Ainda que marcado pelas inter-relaes que ocorrem com outras perspectivas e sentidos que se estabelecem sobre o mesmo espao. Para Yzigi (2002, p. 29), a personalidade do lugar tem sido entendida como as relaes sociais, instituies, arquitetura, urbanismo e toda a cultura material, costumes e vrios outros itens que se repetem em todas as partes, marcados pela particularidade que se constitui em cada contexto. Sustenta-se a a tradio local e consequentemente a reafirmao de uma identidade grupal, considerando-se que essas populaes vivenciam essas reas a geraes, sustentados em saberes locais. A hermenutica de Gadamer destaca a tradio como o elemento por meio do qual o homem se compreende, onde consubstancia sua identidade. A tradio o elemento que permite ao homem ver o mundo de forma diferenciada em relao a outras tradies. Como seres histricos, os grupos sociais esto envolvidos em determinadas tradies que abarcam as pr-compreenses de mundo, conforme podemos o bservar na relao com os encantados. por meio da linguagem cotidiana que os valores histricos se firmam nos indivduos e se revela a tradio, o ethos de um povo. De acordo com Carvalho:

Na nossa experincia cotidiana e natural de mundo, que se d no seio de tradies, ocorre o mesmo, deparamo-nos com verdades que no esto asseguradas na sua certeza, mas que so aceitas como evidentes. H valores de tradio que so indiscutveis, so to evidentes quanto a beleza, ou, muitas vezes, traduzem-se em prticas scio-ambientais sustentveis e brandas, ligadas arte de viver. (CARVALHO, 2003, p. 47).

Nesse momento de nosso estudo, devemos observar que o horizonte hermenutico no dizer de Gadamer dessas populaes, que consubstancia a perspectiva da relao com a natureza, sustenta-se na relao de respeitabilidade, mas tambm de uso para atender as suas necessidades, postas, em grande medida, as relaes mticas que esto se reatualizando no imaginrio social local e que, conforme Cassirer em Linguagem e Mito (1992), cada forma simblica reproduz um modo peculiar de compreender e comunicar-se com o mundo. Aqui

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temos que comprender que o nosso lugar para as populaes extrativistas d a eles o direito sobre o uso dos recursos naturais disponveis, visto que ali ergeu-se o cosmos que escolheram para habitar, o que supe relaes sustentadas em simbologias que em ltima instncia sustentam a reproduo social e a manuteno ou conservao das condies para tal. Desse modo, passamos a compreender que a tradio local repousa sobre um modo de ser especfico, um estilo, um jeito de ser do indivduo e da coletividade que reage ao fluxo histrico em uma relao entre a tradio e a mudana. Resultam da mecanismos de adaptao ao novo, que reafirmam permanncias do ethos local, nessa perspectiva diante da sacralizao da natureza.

A realidade dos costumes, p. ex., e continua sendo, em sentido amplo, algo vlido a partir da herana histrica e da tradio. Os costumes so adotados livremente, mas no so criados nem fundados em sua validade por um livre discernimento. isso, precisamente que, denominamos tradio: ter validade sem precisar de fundamentao. (GADAMER, 2008, p. 372).

O ethos guarda em si o que Bourdieu (2005a, 2005b) por meio do conceito de habitus define como estrutura estruturada, o que permanece enquanto essncia da coletividade, os aspectos estruturados, solidificados no ser coletivo e a estrutura estruturante em um fazer -se cotidiano por meio das relaes que se impem no fluxo histrico, por meio da ao de outros sujeitos e de presses conjunturais com as quais interagem:

Ns temos uma rea de preservao que foi adotada, que a rea da cabeceira, se algum tira por desobedincia daquilo que foi acordado. Ns temos as nossas regras aqui de pescaria, no pode passar pra cabeceira, no pode apoitar rede, no pode arrastar pu87, no pode tirar camaro, se tem alguns que tiram por desobedincia (informao verbal)88.

H de se observar tambm a ressignificao de saberes e valores nesse contexto de reordenamento, implicando a internalizao ou enunciao de novos elementos na racionalidade desses agentes sociais, ou seja, os processos de mudana que agregam a tradio local matizes inovadoras, conforme afirma Caniello (2003):

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Rede apoitada e arrasto de pu referem-se a tcnicas de pesca adotadas na rea da RESEX Ara-Peroba. So consideradas menos seletivas ambientalmente do ponto de vista tcnico e legal. Essas formas de pesca predatria so consideradas pelos pescadores locais como aquelas que ocasionam estrago, ou seja, quando h o abate, o no consumo e deteriorao do pescado no prprio curso dgua. 88 Relato de um pescador do Ara em reunio da fase I do PM em outubro de 2009.

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Me dediquei a demonstrar que o estilo ou o jeito de ser de um povo vale dizer, o signo e a essncia da tradio cultural que define o indivduo e sua sociedade (cf. DaMatta 1986:15) reage ao fluxo histrico, equilibrando- se em uma dialtica que, embora explicite mudanas, ressalta, sobretudo, permanncias. Ou seja, na relao entre tendncias de estabilidade estrutural e presses modificadoras conjunturais, o estilo de um povo, o seu jeito de ser, mantm a integridade modulando-se no tempo, isto , sintetizando tradio e mudana. Na busca do refinamento dessa idia, chegamos ao conceito de ethos, palavra antiga j usada por Homero [...] e Aristteles [...], que foi apropriada pelas cincias sociais. (p. 31-32).

No contexto da atividade produtiva da pesca as cabeceiras (nascentes) dos rios so simbolizadas por meio da prpria noo da casa, a partir da expresso local a casa dos peixes, designando assim para os pescadores locais o local onde os peixes encontram um ambiente propcio e harmonioso para o abrigo, alimentao e procriao. H a uma racionalidade prtica destinada conservao de reas imprescindveis para o uso na pesca que se justifica por meio do simbolismo mtico-mgico, por meio de analogia a sacralizao da morada humana. preciso, pois, imitar a obra dos deuses, a cosmogonia, por meio da criao do mundo que se escolheu habitar, do amparo, do significado de ponto de referncia para o comeo de tudo ou da renovao, por relao ao prprio Cosmos (ELIADE, 1992b, p. 31). A analogia aqui estabelece um mediador em torno da casa como esfera inviolvel, o respeito ao ambiente sagrado que a habitao humana e o respeito a morada ou casa dos peixes, como comumente os pescadores locais definem as cabeceiras ao defend las do mau uso. As cabeceiras dos rios e igaraps locais so assim conservadas no somente pela introduo da perspectiva cientfica no fazer cotidiano dessas populaes, mas e principalmente pelo respeito suscitado ao ambiente sagrado da casa com um vis pragmtico da obrigatoriedade dos pescadores respeitarem a reproduo das espcies para a prpria reproduo e manuteno do ser pescador. Um mecanismo muito utilizado pelos usurios da RESEX de Soure, na vila do Cajuuna para a proteo da casa dos peixes nos igaraps o balizamento. Tcnica adotada pelos pescadores locais no perodo da safra da tainha no principal igarap da vila. O balizamento consiste em estabelecer uma demarcao e ao mesmo tempo uma barreira fsica por meio de estacas fincadas na diagonal com bandeiras nas extremidades superiores, fechando em grande medida a boca do igarap, demarcando assim a proibio tcita da entrada de pescadores com redes no curso dgua interior ao balizamento. Sem, no entanto, ser um consenso, visto que pescadores de outras vilas questionam a localizao das estacas que dificultam o acesso ao

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canal mais estreito. Contudo, importa lembrar que o balizamento, segundo relatos dos moradores da vila, muito antigo, resultante das aes de seus antepassados visando proteger os recursos da m ao de pessoas de fora. A racionalidade a presente est estreitamente relacionada com as atividades humanas marcadas pelo interesse pragmtico. Dessa maneira, em termos de interesse cotidiano, a racionalidade prtica revela-se como o clculo preciso dos meios mais adequados para o alcance de fins prticos. Em decorrncia dessa racionalidade, os indivduos tendem a ordenar seu modo de vida em torno do seu prprio interesse, e assim organizam a relao atividade produtiva e ambiente natural. Os indivduos guiados por esse tipo de racionalidade subordinam-se realidade dada ou conhecida, a percepo dos pequenos detalhes com os quais lidam diante da natureza so os indicadores de suas vivncias, e a partir da modelam suas atividades produtivas, expressando-se tambm por meio de sentidos dados simbolicamente a essas relaes com a natureza, conforme se pde observar no contexto das RESEXs.

No que se refere racionalidade prtica, liga-se ordenao direta da ao voltada para interesses egostas e pragmticos. Aceita o status quo, os valores e as tradies e procura o melhor meio de lidar com eles. Calcula os meios para alcanar os fins. Inclina-se a se opor a todas as orientaes baseadas na transcendncia axiolgica, religiosa, poltica (utopias) e intelectual (racionalidade terica); est presente em todas as pocas e culturas, mesmo as mais msticas. A racionalizao prtica implica a subordinao dos indivduos realidade dada. (THIRY-Cherques, 2009, p. 903-904).

No nos propusemos como tarefa por no ser o foco deste estudo demonstrar as diversas interaes sociais que agregam valores e sentidos ao comportamento das populaes locais em relao ao uso dos recursos naturais, assim como causam tenses, quer seja por aes advindas de externalidades pesca industrial que ocorre em reas destinadas pesca artesanal, a estrutura macroeconmica no contraponto da economia local e as relaes que se engendram como as de marretagem e atravessadores, o turismo de massa e a valorizao turstica local, e com eles a entrada de outros estilos de vida, doenas e consumo de produtos demandados da natureza, alm da construo de estradas, pirataria por meio da ao de ratos dgua dentre outras, s quais esto submetidos ou quer seja em termos do habitus89, ou

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Das estruturas sociais de nossa subjetividade que se constituem inicialmente por meio de nossas primeiras experincias (habitus primrio), e depois, de nossa vida adulta (habitus secundrio) (CORCUFF, 1995, p. 51).

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seja, da prpria experincia grupal, a fim de demonstrar as ressignificaes, mudanas ou degradao dos sentidos e valores mais sacralizados em relao natureza. Propusemo-nos apenas a compreender como esses comportamentos manifestam-se e por se tratar, hoje, de espaos decretados Unidades de Conservao, compreender em que medida as formas de conceber e agir dessas populaes se entrecruzam em relao s aes de agentes da poltica pblica e o que resulta em termos locais desse (des) encontro entre racionalidades distintas. Desse modo, cabe salientar a forte presena de instituies pblicas atuando nessas regies e interagindo no processo de degradao dos sentidos mticos e em outra medida religiosos tambm, posta a forte introduo da objetividade dos procedimentos, que so ou pretendem ser, estritamente relativos percepo da natureza a partir do referencial cientfico-tcnico, esvaziando esses contextos de sentidos subjetivos. histrica a presena do Estado nessas regies por meio das polticas adotadas e assim apresentando-se nesses contextos tenses entre horizontes distintos a princpio girando em torno da pesca por meio das Colnias de pescadores, com vistas proteo das fronteiras nacionais por intermdio da SUDEPE e mais recentemente do IBAMA e do ICMBio na poltica ambiental. Interaes melhor detalhadas no quinto captulo. Ao participarmos das diversas reunies ocorridas no ano de 2009 para a execuo da fase I dos PMs das RESEXs, acompanhamos atentamente os (des) encontros entre perspectivas e sentidos dados entre os grupos de agentes presentes nesse processo. De um lado as populaes locais e de outro os agentes institucionais da poltica tcnicos e consultores do ICMBio. Procuramos assim compreender duas questes bem focalizadas, de acordo com nosso interesse de estudo: 1 os modos particulares de agir em relao ao uso dos recursos naturais dentro do contexto de cada Reserva, aos quais, de acordo com Weber, nominamos ethos; 2 as formas de interao entre as perspectivas locais, visto que elas definiriam para ns o modo participativo desses agentes no processo de elaborao do PM, participao que dever ser analisada no sexto captulo. Dessas observaes, no mais imediatas, modos similares nos foram apresentados nas duas reservas, apreendidos por meio das falas e defesas realizadas pelos usurios durante as reunies da fase I de elaborao dos PMs. No que pese a presena ou ausncia dos elementos mticos e ou sagrados, os modos de uso dos recursos naturais pelas populaes extrativistas apresentam a manuteno de atividades tradicionais dentro desses espaos institudos como de Unidades de Conservao.

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No obstante essas atividades tradicionais comuns nas vilas e bairros de Soure e de Augusto Corra, observa-se que, por um lado, h denncias por parte dos prprios usurios de uso menos seletivo dos recursos naturais, e de outro, existe a prtica sustentada em uma lgica da explorao dos recursos da natureza entre os usurios das RESEXs, justificada pela imediata necessidade de alimentao, de sobrevivncia. Ressaltamos, contudo, que muitas aes extrativistas locais fundam-se pela praticidade e comodidade com a qual os usurios se deparam naquele momento. Como o caso do consumo de camaleoas na poca da desova, visto que, pela prpria observao dos usurios das RESEXs, nessa poca a camaleoa aparece mais que o camaleo j que ela se expe na busca de lugares para depositar os ovos. Na RESEX de Soure, foram presenciadas tambm prticas relativas ao consumo e venda de camalees. No perodo da desova, costumam operar a camaleoa, que consiste em pegar as fmeas, que esto mais expostas nesse perodo, abrir a barriga para retirada dos ovos, em seguida costurar e soltar novamente. Conforme pode ser observado por meio do dilogo reproduzido abaixo em reunio de reviso do Plano de utilizao com vistas elaborao do Plano de Manejo:

Usurio 1: Na minha opinio, tinha que ser assim: o ovo que t debaixo da terra no pode mexer, agora o camaleo que t l no ganho pode pegar pra comer. Usurio 2: Geralmente aqui, em setembro at outubro, d camaleoa ovada e muitas das vezes [sic] no tem o peixe pra pegar, eu j peguei pra alimentar minha famlia. Usurio 3: Esse um hbito anual. Tcnica do ICMBio : Olha s, vamos redigir assim: Fica proibido pegar os animais na poca de reproduo. T bom assim? [reclamaes] Vocs s pegam quando esto ovadas? Olha gente, essa lei no vai pegar, sabe por qu? A lei no permite que se pegue nenhum animal em poca de reproduo. Usurio 4: A questo que criar uma lei muito fcil, agora d suporte pra que ela seja cumprida que difcil (informaes verbais)90.

Observam-se certas arguies, por parte de alguns usurios conhecedores das regras proibitivas, como mecanismos de burlar o debate em torno dessas proibies, no apenas no que se refere ao consumo e venda da camaleoa, mas tambm quanto a caa do pato do mato, tcnicas de pesca, uso de apetrechos e mesmo a manuteno de animais de grande porte por essas populaes, como o caso do bfalo em Soure. Observa-se tambm que, sustentados na argumentao legal, tcnicos e consultores deixam de alegar questes ambientais e sociais que esto na sustentao da criao dessas leis e que deveriam ser esclarecidas no sentido de
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Relatos colhidos durante a reunio do Plano de Manejo em Soure em junho de 2009.

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sensibilizar essas populaes para que paulatinamente fossem introduzidas na racionalidade local enquanto princpios ticos e nos ethos locais. Conforme observamos nas diversas viagens realizadas em ambas as reservas, a populao local adota outras prticas tecnicamente consideradas menos seletivas, como o uso de filhotes de guars como isca para pesca, retirada de vegetao de mangue para produo de currais, caa de vrios animais para a venda, mas tambm vivenciam conflitos que devem ser pensados conjuntamente para a efetivao dos Planos de Manejo, como na coleta de coco e aa nas praias (reas protegidas), na pesca do caranguejo, face a imposio de supostos donos dessas reas (os fazendeiros em Soure supostamente donos) que legalmente so de domnio da Unio, e que por isso podem ser exploradas atravs da concesso real de uso pelas populaes extrativistas usurias das reas protegidas. Alguns modos de uso dos recursos naturais menos seletivos so, em certa medida, rejeitados pela populao local, como o uso do ferro de cova na captura do caranguejo na Ara-Peroba visto que em Soure usado sem nenhuma rejeio , e a pesca com produtos txicos (timb e cunambi). Visualizamos, assim, por meio da fala de vrios extrativistas, valores claramente difundidos por meio das denncias nas reunies de vrias formas que so prejudiciais, no somente natureza em si, como o caso da operao da camaleoa, mas tambm para o conjunto dos moradores, por trazer diversos problemas s atividades produtivas extrativismo. A inquietude de alguns moradores locais se d visto que, ao se tornarem essas reas Reservas Extrativistas Marinhas, foram imprimidas limitaes s atividades produtivas, principalmente por fora da ao fiscalizadora dos rgos responsveis, apesar da carncia j manifestada dessa ao. As principais atividades so relacionadas ao extrativismo de peixe, camaro, turu e caranguejo, a fiscalizao, quando ocorre, nesses casos se d em relao s tcnicas utilizadas de acordo com os apetrechos, a poca de reproduo e ao tamanho das espcies. A prtica do extrativismo vegetal e animal soma-se ao trabalho da pesca, embora a caa seja proibida pelo SNUC nessas reservas extrativistas, conforme pargrafo 6 do artigo 18 onde se l; So proibidas a explorao de recursos minerais e a caa amadorstica ou profissional. O que reafirmado pelo Plano de U tilizao das Reservas, apenas com exceo no caso extremo de se tratar da prpria sobrevivncia. Colidem assim, em vrios sentidos, o fazer local com a legislao estabelecida, base do fazer tcnico que se sustenta na autoridade do conhecimento cientfico para prever essas proibies, conforme se pode observar:

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Consultor: No ser permitida a captura de aves, coleta de ovos e destruio dos ninhais na rea da RESEX, fica proibida a captura de rpteis jacars, camalees, tartarugas (leitura do item 11 e 12 do PU). Usurio: s vezes pra me alimentar, de vez em quando eu pego uma. Tcnica do ICMBio: Uma o qu? Usurios: Camaleo, jacar, pato do mato [vrias respostas ao mesmo tempo] Usurio: Aqui a gente pega capivara, no pra vender, pra comer, o caador tira a boia dele, tira a do parceiro e o resto negocia [...] Consultor: Gente, vamos deixar claro uma coisa, a questo da legislao, isso trabalho nosso, vocs vo falando quais so as formas de uso e se tiver alguma coisa em desacordo, eu vou comunicar a vocs que isso a legislao no permite (informaes verbais) 91.

Neste contexto de reestruturao por meio do Plano de Manejo h pouco dilogo no sentido de entendimento e busca de compreenso para a resoluo efetiva das pendncias existentes, na quase total ausncia de entendimento e esclarecimento dos motivos que impulsionam as aes tecnocrticas, havendo a uma dificuldade de reconhecimento por parte dos moradores locais da significncia socioambiental em relao conservao dos recursos naturais, demarcada pela racionalidade tecnocrtica-funcional. Soma-se a isso um impasse na conduta das aes por parte de consultores e tcnicos que no esto munidos de uma perspectiva que os oriente para uma interpretao/compreenso dos modos locais de ser e fazer, ou seja, que possibilitem apreender os sentidos mais latentes dessas populaes na busca dos melhores arranjos possveis para que haja um encontro a favor da conservao do ambiente natural, mas tambm da sociodiversidade local. preciso resgatar a tradio que, embora latente, a memria social, ponto de partida das aes, e que em certa medida esto abertas para novas percepes e valores que conformaro uma nova tradio. De acordo com Horkheimer:

Essas velhas formas de vida que esto latentes sob a superfcie da civilizao moderna ainda fornecem, em muitos casos, o calor de qualquer prazer [...] A reao esttica do homem est relacionada na sua pr-histria com diversas formas de idolatria; sua crena na virtude ou na sacralidade de alguma coisa precede a sua fruio do belo [...] Todas essas idias acalentadas pelo homem, todas essas foras que, acrescentando-se fora fsica e ao interesse material, conservam unida a sociedade, ainda subsistem mas tm sido solapadas pela formalizao da razo. (2002, p. 40-41 ).

Torna-se necessrio reafirmar que, no obstante o exposto, nosso estudo encontra-se em torno do debate sobre as aes desses grupos sociais experts, tcnicos institucionais e populaes locais cujas percepes, valores e sentidos diferentes (racionalidades), enfatizam
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Relatos colhidos durante reunio com usurios das vilas do Caju-una e Cu em junho de 2009.

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a ideia de que os sujeitos se constituem por prticas socioculturais nas quais esto inseridos historicamente (ethos). Desse modo, definem-se relaes especficas de participao na constituio de uma poltica pblica destinada a atender as necessidades socioambientais de populaes extrativistas. Em grande medida as prticas institucionais pautam-se na conservao da natureza a partir de princpios diversos daqueles apresentados por estas populaes, sem conseguir coadunar a bom termo as suas aes com o preceito participativo que pretende envolver as populaes locais. Desse encontro, por orientao do princpio legal da participao, deveria ser respeitado o modo de vida forjado no passado que legou ao presente e ao futuro valores e perspectivas que orientam as suas relaes locais e o modo especfico de sustentabilidade dos recursos naturais, da serem denominadas populaes tradicionais. Essa perspectiva confronta-se com a realidade moderna, marcada pelos avanos da cincia e da tecnologia, cuja manifestao pauta-se na objetividade da aplicabilidade das determinaes legais e nas definies dos laudos e estudos socioambientais produzidos aqum das verdades vivenciadas pelos principais agentes transformadores desses lugares convertidos em territrios polticos de conservao.

NO REINO DAS UNIDADES DE CONSERVAO...

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em janeiro de 2009)92

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As imagens acima se referem s reunies para constituio dos GTs da fase I de elabrao dos planos de manejo nas duas RESEXs, e as imagens abaixo correspondem, respectivamente, a divulgao do perodo do defeso do caranguejo normatizado pelos rgos responsveis e a ficha da ASSUREMAS para cadastramento dos extrativistas usurios da RESEX de Soure. Correspondem ao processo formal-legal relativo s RESEXs.

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5 NO REINO DAS UNIDADES DE CONSERVAO ...

Pode-se desencantar o mundo ordenando-o sob um sentido que unifica como fez a profecia tico-metafsica, e pode-se desencant-lo estilhaando este sentido unitrio, como tem feito a cincia emprico-matemtica. (PIERUCCI, 2005, p. 185).

Nosso objetivo apresentar o resultado de nossa caminhada em busca da compreenso do contexto das Reservas Extrativistas particularmente o contexto das relaes sociais que se estabelecem a partir de horizontes hermenuticos distintos e que se manifestam em nossa interpretao a partir da perspectiva weberiana dos tipos ideais de Jardim Encantado e de Desencantamento do Mundo, como contrapontos para a anlise das interaes entre agentes sociais distintos. Nossa proposta de anlise sustenta-se sobre a compreenso da interao entre o Estado, por meio da atuao institucional de tcnicos, consultores e experts
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e as populaes locais na gesto de Unidades de Conservao. Nossa sustentao terica a partir de Max Weber se d considerando que o autor

costuma ser lembrado como O homem que fez da idia de desencantamento no meramente um tema importante para pensar a vida moderna, mas talvez o mais essencial aspecto da modernidade, um autntico desencantador. (GOLDMAN, 1988 apud PIERUCCI, 2005). Desse modo, neste captulo iremos nos ater em demonstrar como se configura no cenrio nacional o contexto da ao estatal a partir da estruturao da poltica ambiental como cenrio em que predomina a racionalidade formal, para, na sequncia, compreendermos seus desdobramentos em termos de organizao institucional IBAMA/ICMBio eminentemente caracterizados por uma racionalidade tecnocrtica-funcional, no sentido da organizao de um sistema de pensamento e indicadores de um comportamento institucional marcado pela sustentao legal e cientfica conformadora do ethos de seus servidores tcnicos. De outro modo, apresentamos outra face dentre outras possveis de se apreender desses servidores tcnicos, que se constitui pela apresentao das suas perspctivas quando do desmembramento do IBAMA e criao do ICMBio. Suas subjetividades degradadas mediante o desencantamento da trabalho desencantado e desencantador como ttulo do subcaptulo referente discusso que se materializa pela sobreposio de interesses poticos, guiados por uma racionalidade que predomina no cenrio nacional.
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Usamos a expresso experts apenas para nominar aqueles especialistas em reas do conhecimento cientfico contratados temporariamente para atuar nos estudos e laudos necessrios poltica das UCs. O uso da expresso, desse modo, apenas para no fazer uso da mesma definio de especialistas, visto que esta usada, como em Weber (1991, 2004), para referir-se tanto aos agentes especializados na esfera do conhecimento cientfico quanto especializados no mbito do trabalho tcnico-burocrtico.

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Procuramos, desse modo, interpretar o cenrio das RESEXs a partir da noo de desencantamento quando da aplicabilidade no contexto das UCs de critrios como da objetividade, generalizao/universalizao, calculabilidade, lgica e previsibilidade herdados do mtodo cientfico cartesiano. Para tanto, resgatamos de forma breve o debate acerca da cincia moderna, o mtodo e sua influncia sobre a atitude cientfica, particularmente sobre as cincias do esprito. Agregamos a esse debate a perspectiva da hermenutica gadameriana sobre a compreenso como fenmeno ontolgico e a concepo de verdades outras para alm da certeza cientfica, pois, no dizer de Gadamer (2002), o que predomina agora a ideia do mtodo. Em sentido moderno, o mtodo, apesar de toda a variedade apresentada nas diversas cincias, um conceito unitrio. [...] Ento o parmetro que mede o conhecimento no mais a verdade, mas sua certeza. (GADAMER, 2002, p. 61-62).

A presente investigao toma p nessa resistncia que vem se afirmando no mbito da cincia moderna, contra a pretenso de universalidade da metodologia cientfica. Seu propsito rastrear por toda parte a experincia da verdade, que ultrapassa o controle da metodologia cientfica. (GADAMER, 2008, p. 29-30).

Comecemos ento a partir da noo base para sustentao de nossa leitura Entzauberung der Welt agora na segunda acepo analisada por Pierucci (2003) a perda de sentido ante a objetividade provocada pela racionalizao intelectual por meio da cincia e da tcnica desenvolvidas no mundo moderno ocidental. O que significa isso? Com a palavra Weber:

A crescente intelectualizao e racionalizao no indicam, portanto, um conhecimento maior e geral das condies sob as quais vivemos. Significa mais alguma coisa, ou seja, o conhecimento ou crena em que, se quisssemos, poderamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Significa principalmente, portanto, que no h foras misteriosas incalculveis, mas que podemos em princpio, dominar todas as coisas pelo clculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. J no precisamos recorrer aos meios mgicos para dominar ou implorar aos espritos [...] Os meios tcnicos e os clculos realizam esse servio. (WEBER, 1982, p. 97, grifo do autor).

A noo de racionalizao a partir de Weber (1981, 1991, 1999) configura-se como a objetivao de aes ou comportamentos que condizem os meios aos fins em diversas esferas (das artes, da poltica, das religies, da cincia, do trabalho e da economia) no mundo ocidental. No que se refere s atividades institucionais, estas devem ser pensadas a partir da

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padronizao das aes no que diz respeito obedincia s normatizaes que incidem em uma unicidade das aes adotadas pelo corpo tcnico e que condutora de um esvaziamento do contexto social, no sentido de adequar os contextos especficos ao procedimento preestabelecido pelo rgo. A crescente racionalizao das organizaes pblicas se d mediante a predominncia da racionalidade formal amparada na impessoalidade da burocracia e do sistema jurdico. Implica regras, hierarquias, especializao e treinamento; institui diretamente normas de ao social. A racionalidade formal compreende conceitos precisos e abstratos por meio dos quais possvel o controle e domnio da realidade, podendo compor uma viso de mundo dominante. Capaz, assim, de tornar-se viso dominante nas variadas esferas da vida social, inclusive em termos de preciso do clculo econmico e entendimento dos processos produtivos, o que apresenta relao direta com as formas de apropriao dos recursos naturais e a degradao ambiental. Desse modo, implica a instrumentalizao no direcionamento para alcanar fins prticos de forma metdica sob clculos precisos e tcnicas eficientes, sob o suporte da intelectualizao cientfica.

Acompanhando a idia mais ampla e mais imponente porquanto mais crtica, da perda de sentido. Uma vez que o que a cincia visa com sua racionalidade racional formal referente a fins [Zweckrationalitt] o domnio tcnico do mundo natural pela tecnologia, opondo com isso aguerrida averso e resistncia expanso, no cotidiano, da racionalidade substantiva com relao a valores [Wertrationalitt], perde seu cho mesmo a pertinncia mesma da questo do sentido [...] Ela que pretende tudo calcular, prever e dominar no capaz de definir nenhum valor. (PIERUCCI, 2003, p 152).

A racionalidade substantiva compreende um ordenamento da ao social sustentado em postulados de valor. No se restringe ao tradicional, guiada pelo costume, mas abrange valores e interesses diferentes. Apresentando-se nesse cenrio da ao institucional/estatal em uma tenso permanente entre essas perspectivas da racionalidade formal de tcnicos, consultores e experts e a racionalidade substantiva/pragmtica das populaes locais. Leff (2006a, 2006b) prope do ponto de vista terico uma mediao desses embates sociais que se do em torno de questes ambientais a partir da formulao da noo de racionalidade ambiental cultural. O autor vai buscar sustentao nesse debate da racionalidade substantiva de Weber, posto o valor da diversidade cultural e social que se contrape a uma uniformidade da cultura.

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A racionalidade ambiental acolhe assim as diferentes formas culturais de aproveitamento dos recursos das comunidades para satisfazer suas necessidades fundamentais e sua qualidade de vida (LEFF, 2006a, p. 260). A racionalidade ambiental substantiva (LEFF, 2006a) est fundada em princpios de um desenvolvimento ecologicamente sustentvel, socialmente equitativo, culturalmente diverso e politicamente democrtico (p. 130). Sustenta-se, desse modo, em princpios

qualitativos e valorativos que norteiam perspectivas ticas para a realidade socioambiental e que devem sedimentar novos comportamentos socioeconmicos por meio da respeitabilidade ao valor da diversidade social e dos ecossistemas, o que dar suporte noo mais ampla de racionalidade ambiental cultural discutida pelo autor. Essa noo central em Leff (2004, 2006a, 2006b) constitui-se a partir da existncia de uma crise ambiental mundial que, para o autor, espelha a crise da civilizao moderna. O domnio dessa razo que instrumentalizou a relao do homem com a natureza, o desencantamento do mundo por meio da racionalizao e a quebra dos valores mticos diante da natureza tm levado, contraditoriamente, de uma atividade econmica cujo critrio o da calculabilidade e da utilidade a uma calamidade. Em Leff (2004, 2006a, 2006b), a noo de racionalidade ambiental contrape-se noo de racionalidade ecolgica. Enquanto a primeira questiona a racionalidade da sociedade capitalista e prope transformaes profundas impostas pela problemtica ambiental, posto o modo como esto estabelecidas as relaes homem e natureza sob o jugo da racionalidade formal instrumental. A segunda apresenta-se nos marcos do sistema, criando mecanismos que permitam uma refuncionalizao da racionalizao econmica capitalista. Nesse sentido, o autor critica as polticas pblicas ambientais que comporiam uma lgica comum unificadora e procuram internalizar as externalidades ambientais (explorao excessiva dos recursos naturais, degradao ambiental e consequncias que da advm) com o propsito de dar um vis mais ecologizado racionalidade econmica. Aqui, importante pensarmos que nesse processo, a que Leff compreende como subordinado racionalidade ecolgica (embora concordando com o autor acerca dessa lgica unificadora e uniformizadora) movimentos so organizados, normas jurdicas so aprovadas, polticas pblicas paralelas so adotadas e regras sociais estabelecem-se a partir das tenses que se instituem. Esse contexto deve ser compreendido como espao possvel para criar mecanismos de participao, mudanas de racionalidade e de comportamentos dentre uma diversidade de alteraes sociais, polticas e econmicas, estabelecendo perspectivas para aquela que ele mesmo denomina racionalidade ambiental, se pensada de fato como um

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processo de racionalizao de valores ambientais respeitadores da diversidade proposta pela noo de racionalidade ambiental cultural. O exerccio tico-democrtico se abre, desse modo, participao popular e s diferentes manifestaes de racionalidade, dentre as quais, as que o prprio autor conceitua e que so propositivas da prpria racionalidade ambiental enquanto estrutura macro. Enfatizamos neste captulo aspectos da poltica pblica ambiental implementada no Brasil no sculo XX, sustentada sob uma lgica que prioriza o crescimento econmico. Essa poltica apoiada em padres utilitrios e desenvolvimentistas da racionalidade econmica dominante deixou as questes ambientais em segundo plano, apesar das constantes manifestaes e aes de intelectuais ecologistas 94, e, portanto, portadores de uma racionalidade substantiva, que ocupavam cargos em rgos governamentais, o que por vezes foi decisivo para que a poltica ambiental tomasse um curso cujos resultados se apresentavam com carter de uma racionalidade mais valorativa em termos ambientais e no puramente econmicos.

Para a interpretao compreensvel das aes pela Sociologia [...] essas formaes (Estado, cooperativa, sociedade por aes, fundao) nada mais so do que desenvolvimentos e concatenaes de aes especficas de pessoas individuais, pois s estas so portadoras compreensveis para ns de aes orientadas por um sentido. (WEBER, 2002, p. 09).

No Brasil, a poltica macro voltada para o desenvolvimento industrial e de infraestrutura manteve-se aliada lgica da explorao dos recursos naturais implementada desde o perodo colonial, por meio dos chamados ciclos econmicos pau-brasil, drogas do serto, acar, caf, ltex os quais levavam no s exausto desses recursos naturais, mas tambm a desmatamentos e desgaste dos solos, assim como a problemas sociais tpicos desses processos migrao rural, crises na agricultura familiar, desestruturao das organizaes locais e degradao da identidade dos grupos atingidos. Essas polticas associadas passam a sofrer presses internas e externas, principalmente por meio de movimentos sociais organizados. Essas manifestaes ecoam e fortalecem as aes de grupos institudos em prol de uma poltica ambiental mais dirigida, principalmente aps eventos internacionais que discutem a situao do planeta diante dos desastres ambientais. A questo ambiental alcana um patamar de problema global valorativo.
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Grande parte desses intelectuais tinha o foco na proteo do ambiente natural, no se cogitava a questo social, conforme pode ser observado em entrevistas reproduzidas por Urban em Saudade do Mato (1998).

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No Brasil, esse ecoar espelha a formao de uma legislao especfica e a constituio de infraestrutura institucional burocrtica nas esferas governamentais, para responder s problemticas que se apresentam emanando por resolues. Contudo, cabe refletir sobre que bases essas organizaes estatais foram estruturadas e quais os princpios norteadores dessa poltica. Por trs da elaborao legislativa do direito racional-formal, revestida de uma impessoalidade e universalidade, as legislaes atendiam a interesses polticos e econmicos em jogo no cenrio brasileiro. Atualmente, essa forte influncia desses interesses em jogo na elaborao legislativa pode ser observada de perto, com o debate em torno do novo Cdigo Florestal Brasileiro. Esto em contraponto nessa pendenga os interesses econmicos de ruralistas e os valores ambientalistas de grupos locais, movimentos sociais e ONGs nacionais e internacionais. Mais uma vez se contrapem horizontes de percepo definidos no escopo da racionalidade econmica dominante versus uma racionalidade subjetiva. O contexto que nos propomos a analisar, constitudo pela busca por solues dentro da institucionalidade poltica pblica marcado por um dilogo com as demandas sociais visibilizadas por vezes pelos meios intelectuais organizados e por vezes por organizaes populares, estudado luz do encontro entre suas racionalidades na busca da compreenso do significado da participao para os grupos envolvidos e quais as consequncias que emergem das interaes entre seus sentidos no processo de implementao da poltica de Unidades de Conservao. Considerando que essas relaes sustentam-se em formas de pensar e agir distintas, procuramos compreender como se materializam as assimetrias nessas relaes no sentido da dominao, em Weber, como uma forma de poder que no se sustenta na fora, mas sim na legitimidade que possui o indivduo ou grupo dominante para exigir e obter obedincia dos dominados, impondo-lhes a sua vontade (WEBER, 1991). No marco dessa lgica, buscamos analisar a prtica ambiental do IBAMA e os motivos que levaram criao do ICMBio e caracterizar a prtica ambiental do rgo dentro da poltica do Estado. Avaliar em que momento histrico se d a criao do ICMBio, o que leva criao de um rgo que trata da especificidade das UCs e qual o significado disso, para da pensarmos essas UCs dentro do quadro da poltica ambiental. Quais as mudanas de orientaes na poltica pblica ambiental. Essas questes tornam-se relevantes visto que possibilitam enunciar o sentido que subjaz e orienta as aes dos tcnicos que atuam na criao das reservas e elaborao de seus Planos de Manejo, na perspectiva de enunciar o modus operandi tanto de tcnicos do rgo quanto de consultores e experts contratados.

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Objetivamos assim caracterizar tambm o envolvimento desses experts, em virtude da autoridade dos conhecimentos construdos acerca dos contextos nos quais se concentram a criao de Unidades de Conservao para efetivao da poltica de Unidades de Conservao e enquanto olhar especializado orientador do trabalho tcnico em execuo. A compreenso dos sentidos visados por esses agentes em suas aes permite buscar as conexes com a participao das populaes locais, bem como o sentido dessa participao para as populaes envolvidas e as distines das perspectivas nesse processo. De acordo com o exposto, neste captulo procuraremos distinguir as formas como a racionalidade desses diversos agentes institucionais se materializa a partir de um conjunto parcial de caractersticas marcantes que conduzem para sua solidificao. A abordagem deste captulo, sob o aporte terico do desencantamento do mundo em Max Weber como elemento para a compreenso sociolgica do contexto em anlise, pretende identificar aspectos das relaes sociais que indiquem uma sobreposio da racionalidade cientfico-tecnocrtica sobre outros tipos de racionalidade e ainda evidenciar formas como essa racionalidade se materializa no campo do debate ambiental e da poltica pblica de Unidades de Conservao.

5.1 ESPECIALISTAS SEM ESPRITO?

Em vez do senhor das ordens mais antigas, movido por simpatia pessoal, favor, graa e gratido, a cultura moderna exige para o aparato externo em que se apoia o especialista no-envolvido pessoalmente e, por isso, rigorosamente objetivo, e isto tanto mais quanto mais ela se complica e especializa. E tudo isto a estrutura burocrtica oferece numa combinao favorvel. (WEBER, 2004, p. 213).

A nossa anlise aqui tem dois propsitos, visa estabelecer sob que bases se sustenta a produo cientfica, particularmente as Cincias Sociais como suporte da ao tecnocrtica, enquanto conhecimento construdo que respaldar a aplicao da poltica pblica das UCs no caso RESEX e, portanto, nesse nvel devemos observar as fortes influncias metodolgicas que demarcam o fazer cientfico na modernidade. E tambm explicitar como a construo de conhecimentos objetivados de experts tem demarcado o comportamento e a racionalidade tecnocrtica-funcional de tcnicos e consultores responsveis pelas aes diretas da poltica que se apropriam e aplicam esse conhecimento em relao s realidades

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das Reservas Marinhas. Ambas atividade cientfica e tecnocrtica submetidas burocratizao empreendida sob a racionalidade instrumental formal.
Tentar reduzir-me a mero objeto pela cincia ou pela tcnica significa, para mim, uma violncia, quase uma profanao daquilo que, em mim rejeita qualquer reduo a mero objeto, minha subjetividade, a plena conscincia do meu eu corporal volitivo, imaginativo, emotivo, moral. (VON ZUBEN, 2006, p. 253)

A partir da elaborao de diagnsticos, laudos, caracterizao das populaes locais, estudos complementares e estabelecimento de procedimentos a serem adotados que se tornam como produto do conhecimento cientfico construdo, o alicerce das aes planejadas por tcnicos e consultores cabe, de forma imprescindvel, compreender como esses experts adquam seus estudos lgica burocrtica e legal que formata a aplicabilidade da poltica de criao de UCs e da elaborao de seus Planos de Manejo. Compreender a forma como o saber cientfico posiciona-se na leitura dos aspectos socioeconmicos e culturais relativos s populaes dessas UCs, e quais tm sido as especialidades cientficas a tratar desses elementos, conduz ao entendimento das formas tecnocrticas estabelecidas de dilogo, do estabelecimento dos procedimentos e formas de participao para essas populaes e tambm dos preceitos legais que incidem sobre a participao destas na criao das UCs, instituio do Plano de Utilizao 95 e posterior criao e implementao do Plano de Manejo, como fase de coroamento dessa poltica pblica. Segundo Diegues (2001), ao analisar o papel das cincias acerca do debate da conservao nos trpicos: revelador o fato de que ainda so raros os cientistas sociais que acham importante as questes relativas conservao, seja por receio do determinismo geogrfico seja por considerarem tambm essas questes como feudos dos cientistas naturais (p. 66). Consubstanciando esse debate do papel de experts acerca da questo socioambiental em Reservas Extrativistas Marinhas, onde a principal atividade a pesca artesanal, cabe ressaltar a significativa produo acadmica na regio, especificamente a respeito das relaes na pesca no estado do Par, conforme percebido por Diegues (2001) ao analisar as questes da pesca no norte do Brasil: O surgimento da pesca industrial capitalista no litoral norte do

95

O Plano de Utilizao estabelece as regras de convivncia e as regras gerais de uso dos recursos naturais. o documento base para que seja firmado o Termo de Compromisso para a concesso do direito real de uso populao local. Documento a ser substitudo em at cinco anos pelo Plano de Manejo da UC.

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Brasil e os conflitos da decorrentes foram uma das causas para uma crescente produo cientfica, centrada no Museu Emilio Goeldi e Universidade Federal do Par (p. 154). Pode-se destacar, em relao aos estudos sobre a pesca na regio, a produo de Verssimo (1970), Furtado (1987), Maneschy (1995), Leito (1995), Motta Maus (1980, 1999), Mello (1985) e Loureiro (1985). Recentemente teve incio uma produo acadmica mais dirigida temtica das reas protegidas, enquanto Unidades de Conservao, embora j se fizesse o debate em torno da questo ambiental e do uso dos recursos naturais, bem como sobre as populaes extrativistas, destacamos Simonian (2000, 2002) Castro (2000, 2001, 2005), Coelho (2000, 2001, 2009) e Lima (1997). Contudo, no a essa produo que estamos nos referindo aqui, mas produo dos laudos e diagnsticos realizados por experts contratados pelos rgos institucionais IBAMA e ICMBio especificamente destinados para o fim de criao das RESEXs e elaborao do Plano de Manejo, trabalho que est submetido estruturao do Plano de Trabalho do rgo e que, por vezes, envolve como contratado ou apoio, instituies de ensino superior e de pesquisa. Muito embora, seja da alada do consultor realizar levantamento de estudos j realizados acerca dos contextos, enquanto dados secundrios.

5.1.1 Onde esto os especialistas?


Ningum sabe quem viver, no futuro, nesta priso ou se, no final deste tremendo desenvolvimento surgiro profetas inteiramente novos, ou se haver um grande ressurgimento de velhas idias e ideais ou se, no lugar disso tudo, uma petrificao mecanizada ornamentada com um tipo de convulsiva auto significncia. Neste ltimo estgio de desenvolvimento cultural, seus integrantes podero de fato ser chamados de especialistas sem esprito, sensualistas sem corao; nulidades que imaginam ter atingido um nvel de civilizao nunca antes alcanado. (WEBER, 1999, p. 86)

Considerando que o estudo aqui proposto se constitui da anlise de aes, comportamentos, relaes sociais que se estabelecem entre os agentes sociais no contexto da poltica pblica de UCs, compreendemos que o ncleo de nossa tese passa pela presena ou ausncia de uma inteno tica que nos fala por dentro das relaes sociais que se estabelecem a partir dos sentidos das aes desses agentes, de acordo com Hilton Jupiassu na apresentao da obra Interpretao e Ideologias de Ricoeur (1988):

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Porque consiste na tentativa de exprimir e de dizer o sentido no dito, embora dizvel, da existncia e da vida. E justamente por isso que ela essencialmente hermenutica, vale dizer, interpretao e explicao de um sentido pr-dado, de um sentido que constitui a sedimentao de uma vida e o dom de uma tradio. (RICOEUR, 1988, p. 07, grifos do autor).

Consideramos significativo pensar as conexes de sentido e tenses entre uma racionalidade sustentada no saber cientfico e na legalidade como base das orientaes da poltica pblica e determinantes do modus operandi tcnico enrijecido por essas estruturas norteadoras e, de outro lado, as populaes locais cujo saber fazer se estabelece sobre uma racionalidade prtica em estreita consonncia a valores institudos na tradio do lugar. Se as relaes estabelecidas pelo corpo tcnico se pautam pelo distanciamento do outro local, com o qual obrigatoriamente interage, apresenta-se a nesse afastamento uma carncia de relaes ticas, de percepo do Outro nas suas singularidades. O que nos leva ao entendimento do comportamento de tcnicos, consultores e experts tanto na criao quanto na fase I do Plano de Manejo como um ethos modelado pela burocracia e pela legalidade, que dificulta a maleabilidade necessria no processo de implementao da poltica de UCs no que se refere ao dilogo necessrio junto s populaes locais e suas tradies, cuja racionalidade sustenta e sustentada por prticas determinadas pelas necessidades que se fazem de acordo com as interaes sociais do cotidiano da vida, ou seja, pelos ethos locais que manifestam especificidades do fazer legitimadas nas particularidades marcantes das relaes simblicas e materiais com os recursos naturais. Aps as viagens de campo realizadas, essa questo tornou-se significativa em termos comparativos para nosso estudo nas duas RESEXs. A unicidade das aes tecnocrticas, por parte do rgo gestor, que se revelou como uma frmula a ser aplicada independente do contexto e a pluralidade das respostas e comportamentos das populaes locais, mostrando o contraste e os conflitos iminentes entre as racionalidades em questo. Desse modo, uma tenso contnua se apresenta entre perspectivas distintas demarcadas por sentidos desencantados nas aes da esfera pblica e, de outro, os sentidos do lugar. Uma exigncia legal para a criao das Unidades de Conservao (UCs) bem como de seus PM so os diagnsticos cientficos, os quais, muitas vezes so quase ou totalmente desconhecidos daqueles que anteriormente utilizavam e utilizam os recursos naturais das reas institudas como UCs para dali retirarem a subsistncia por meio de atividades tradicionais como a pesca, a agricultura e o extrativismo vegetal.

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Pessoas do Emlio Goeldi passaram por aqui, fazendo levantamento scio econmico da regio, fazendo o levantamento necessrio na poca, estavam muito interessados nessas questes (informao verbal)96.

Importa ento salientar que o dilogo entre as populaes locais, seus saberes e a cincia se faz imprescindvel, salientada a interao que se impe como preceito legal em todo esse processo de estabelecimento dessas unidades. Este preceito torna-se imprescindvel do ponto de vista prtico se considerarmos a problemtica em questo. Conforme o relatrio de 2007 de gesto das RESEXs e das Reservas de Desenvolvimento Sustentvel do ICMBio:

As particularidades dos processos de gesto destas categorias (de Unidades de Conservao) demandaram o estabelecimento de procedimentos que garantissem a participao qualificada da populao local e o uso de metodologias que permitam gerar uma interao dos conhecimentos tradicionais/locais com os tcnico-cientficos. (ICMBio, 2007).

Na Sociologia Compreensiva de Weber, so elementos basilares o problema do papel da cincia e os seus aspectos metodolgicos. Para o autor, a cincia disponibiliza em primeiro lugar certo nmero de conhecimentos que nos permitem dominar tecnicamente a vida, em segundo lugar, a cincia nos fornece mtodos de pensamento, isto , instrumentos e uma disciplina e em terceiro lugar a cincia contribui para a clareza (1967, p. 45). Em Weber, perceptvel a preocupao com o papel da cincia, cuja finalidade seria o autoesclarecimento e o conhecimento dos fatos:
A cincia atualmente uma vocao alicerada na especializao e posta a servio de uma tomada de conscincia de ns mesmos e do conhecimento das relaes objetivas. A cincia no produto de revelaes, nem graa de um profeta ou um visionrio. (WEBER, 1967, p. 47).

Em Weber, j se tem claro o papel do cientista social ou das cincias histrico-sociais, a clareza da finitude de sua compreenso e a necessidade do dilogo com o contexto histricosocial do qual o fato decorre e sobre o qual ser um determinante em um devir histrico: Jamais pode ele [o especialista das Cincias Humanas] compreender seno uma parte finita e em constante mutao do desenvolvimento catico e prodigioso dos acontecimentos que se desenrolam no tempo (FREUND, 2000, p. 52). No contexto das RESEXs, a fim do cumprimento das normas regulamentadoras, a participao de experts restringe-se aos diagnsticos e anlises preliminares encomendados

96

Relato da professora dria na vila do Ara em Outubro de 2009.

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pelo rgo gestor na fase de criao destas, alm da compilao de dados tericos secundrios que compem os relatrios, como documentos tcnicos imprescindveis para fundamentar o ato de criao das unidades. No compartilham do processo de elaborao do Plano de Utilizao, e no caso dos Planos de Manejo tambm se restringe elaborao de anlises dos contextos geogrfico, biolgico e socioeconmico, quando considerado necessrio pelo consultor responsvel pelo Plano de Manejo da Reserva. De acordo com o Plano de Trabalho da consultoria da RESEX de Soure,
no esto previstos neste Plano de Trabalho a contratao de terceiros para a realizao de estudos complementares ou para o auxlio das atividades propostas na primeira fase de elaborao do Plano de Manejo, ou seja, no est prevista para a execuo dos trabalhos desta primeira fase a elaborao de Termos de Referncia de qualquer espcie. [...] a consultoria dever indicar a necessidade ou no de estudos complementares com riqueza suficiente de detalhes que possibilitem a elaborao dos Termos de Referncia97. Para subsidiar estes termos subsequentes, sero descritos na primeira fase do Plano de Manejo os oramentos, prazos de execuo, logstica necessria, requisitos mnimos da equipe envolvida bem como as metas a serem atingidas frente s lacunas de pesquisa e frente s principais demandas oriundas das populaes tradicionais da reserva. (Plano de Trabalho da consultoria da RESEX de Soure, 2009, p. 12, grifo nosso).

O trabalho desses experts, em grande medida, est condicionado pelos rgos fomentadores da poltica, se pensado do ponto de vista burocrtico institucional, conforme se observa na transcrio acima. Em geral, constituem-se dos laudos socioeconmicos e biolgicos para desencadear a criao. No caso das duas RESEXs em anlise, os profissionais atuaram como colaboradores eventuais, seguindo inclusive orientao direta dos tcnicos institucionais poca envolvidos com a criao das Unidades. Na etapa seguinte, de elaborao dos Planos de Utilizao das Reservas, o trabalho institucional foi realizado somente por tcnicos, por vezes no sendo eles que atuaram na criao como ocorreu na RESEX de Soure e no adotavam como prtica a busca desses estudos como norteadores, guiando-se muito pelo bom senso mediante os resultados dos contatos realizados nas localidades. O que comprovado pelas discrepncias, por exemplo, entre o contedo dos estudos em comparao ao contedo do Plano de Utilizao no caso de Soure98. Bem como foi recorrente na fase I de elaborao do PM, perodo em que os tcnicos

97

OsTermos de Referncia so os contratos realizados entre o rgo gestor da poltica (ICMBio) e pesquisadores (experts) contratados temporariamente para a realizao de estudos especficos, a cargo decisrio do consultor que indica a necessidade ou no por meio da montagem do Plano de Trabalho da consultoria. 98 Esses dados sero detalhados nos itens subsequentes deste estudo.

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e consultores adotavam metodologias de trabalho e participao da populao local guiados pelos resultados imediatos das suas aes. Contudo, se pensarmos do ponto de vista mais amplo, a participao de estudiosos pode se fazer presente pela via das instituies de pesquisa e de ensino, suscitando o interesse pela temtica, estabelecendo um vnculo de comprometimento pela via da escolha da ao tica, inclusive respondendo aos apelos das populaes locais, que, em contato com pesquisadores e professores, solicitam a presena e aes como formas de ajuda no debate da questo socioambiental. Nas reunies que participamos da fase I de elaborao do PM, os pedidos de colaborao observados foram muitos, principalmente pelos gestores das associaes de usurios das Reservas. Importa salientar que essas instituies de ensino e pesquisa atuantes nas localidades, como a UFPA em Soure e Bragana, possuem o direito a assento no conselho deliberativo, perspectiva que abre a possibilidade de aes diretas junto gesto das Unidades. Conforme j afirmvamos em dissertao de mestrado (ROSA, 2007) para o caso da APA da Costa do Urumaj, ausentam-se do processo de institucionalizao da poltica de UCs os saberes especializados cientficos, particularmente os saberes na rea

socioantropolgica. A participao de professores e pesquisadores das IFES (Instituies Federais de Ensino Superior), por exemplo, no caso da RESEX Ara-Peroba (UFPA) se deu somente nas reunies mais amplas em relao fase I do PM. No caso da RESEX de Soure, apesar da maior facilidade e proximidade com o espao urbano, a presena no se d nas reunies do conselho deliberativo e nem nas reunies da fase I de elaborao do PM, podemos dizer que existe uma presena de alguns profissionais no ligados as IFES (socilogos, assistentes sociais, engenheiros de pesca), mas por meio da representao municipal e de ONGs que tm assento no conselho deliberativo. Faz-se necessrio atuar de forma interdisciplinar com vistas a uma percepo mais acabada no sentido das especificidades de cada rea do saber cientfico em dilogo com as especificidades locais. De acordo com Diegues (1994),

H uma grande necessidade de se conhecer melhor as relaes entre a manuteno da diversidade biolgica e a conservao da diversidade cultural. Quase nenhuma pesquisa sistemtica foi realizada nesse sentido. At hoje, no Brasil, a avaliao de uma rea a ser declarada unidade de conservao tem sido responsabilidade nica dos cientistas naturais. necessria uma viso interdisciplinar, onde trabalhem de forma integrada

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bilogos, engenheiros florestais, socilogos, antroplogos e cientistas polticos, entre outros. (p. 145).

Se por um lado constata-se a ausncia desses saberes cientficos especializados, de outro, observa-se um engessamento tanto da atividade de experts contratados como colaboradores eventuais, e principalmente dos prprios tcnicos dos rgos fomentadores, dada a rigidez das aes e os tempos determinados para que estejam em devida consonncia com a legislao e os interesses em jogo, conforme ser explanado no item acerca do ethos institucional, no qual iremos detalhar o modus operandi dos agentes institucionais tcnicos, consultores e experts. Diante do exposto, cabe-nos perguntar: qual o marco de racionalidade que nos sugere a prtica cientfica moderna?

5.1.2 Razo cientfica, mtodo e verdades

No cabe na inteno deste item analisar profundamente, nem tampouco entrar nas mincias do amplo debate acerca da cincia e do mtodo cientfico. Nosso objetivo indicar de forma sucinta e simplificada alguns pontos sobre a natureza da cincia e do mtodo em que h concordncia entre filsofos da cincia particularmente apresentar a perspectiva crtica gadameriana para o debate no intuito de demonstrar caminhos possveis de uma relao dialgica entre esse saber e outros saberes, que se sustentam no sob uma verdade absoluta, mas sob verdades singulares, cunhadas no escopo da vida cotidiana, e por isso contextualizadas e que, particularmente, as cincias do esprito devem compreender. A partir dessa perspectiva apontada como vlida para as relaes que se estabelecem entre saberes distintos, vislumbra-se abrir uma possibilidade de dilogo mais simtrica, conforme afirma Gadamer (2002, 2006, 2008) e Souza Santos (1995, 2004, 2006) por meio de sua sociologia das Ausncias. Especialmente a Sociologia e a Antropologia possuem um papel significativo, por tratarem das questes socioculturais, mesmo do lugar que ocupam na estrutura da poltica pblica de UCs, conforme j enunciado por Diegues (2001). Nesse contexto das UCs, a racionalidade instrumental formal por meio da racionalidade cientfico-tecnocrtica, da burocracia e da regra jurdica, sustenta o comportamento do corpo de servidores tcnicos que implantam a poltica em aes diretas

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junto s populaes locais. Cabe perguntar se essa racionalidade tem dialogado com as expectativas e significaes dessas populaes, agentes primordiais desse processo. Vejamos: existe certo consenso sociolgico sobre o futuro trgico da modernidade. A anlise parte de Max Weber e pode ser apreendida pelos dois sentidos de desencantamento do mundo (PIERUCCI, 2003) e se expande at a escola de Frankfurt, denotando o afastamento do homem de suas experincias mais significativas e relaes qualitativas. Em Dialtica do Esclarecimento (1985), Adorno e Horkheimer compreendem o esclarecimento como saber. Buscam a relao dialtica entre mito e esclarecimento, em que o primeiro em sua origem j era esclarecimento e este ao super-lo em sua principal forma de ser na modernidade a cincia transforma-se em uma nova mitologia. O mito j racionalidade no sentido de que busca explicar, dizer a origem, na sua afinidade com a natureza, sem, entretanto, empreender o distanciamento objetivante cunhado pela razo moderna ocidental. Diante da desmagificao do mundo, o esclarecimento, que supostamente leva o homem objetividade, visando livrar-se do medo e tornar-se senhor do saber, leva-o ao caos, a uma nova espcie de barbrie, contextualizada no processo civilizacional em que o ocidente est imerso por meio de uma irrefrevel racionalizao. No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objectivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posio de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 5). Sob o legado da racionalizao utilitria, o homem passa a estabelecer relaes sociais reificadas nas quais o outro um mero objeto. Sustentadas sob o signo da razo cientfica, as relaes sociais tornam-se objetivadas. Os autores referidos acima, em Dialtica do Esclarecimento, alm de lanar um olhar crtico sobre a razo esclarecida manifestam a angstia acerca do progresso do pensamento e suas consequncias sociais, visto que o programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginao pelo saber (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 5). O conceito de esclarecimento para esses autores indica um processo histrico de busca do homem em dominar a natureza e tornar-se senhor. Trata-se, portanto, da relao homem versus natureza, o que os homens querem aprender da natureza como empreg -la para dominar completamente a ela e aos homens (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 20). Em Weber, a racionalizao utilitria que vai caracterizar as modernas sociedades parte do processo de desencantamento do mundo. Weber aponta diferentes ritmos dessa racionalizao que parte dessa noo de desencantamento da racionalizao religiosa e da

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racionalizao por meio do saber cientfico. A racionalizao abrange todas as esferas da vida, refere-se s aes sociais racionalmente orientadas pelo clculo, previsibilidade e objetividade. No mundo moderno, Weber refere-se institucionalizao crescente da racionalidade instrumental formal que vai do Estado economia. Significa a submisso a um ceticismo moral, uma submisso das singularidades s regras legais universalizantes e burocrticas. Em relao racionalizao poltica e jurdica, iremos nos ater ao analisar as formas institucionais da poltica pblica ambiental e sua relao direta com a racionalidade formal. A cincia enquanto racionalidade terica em substituio ao pensamento sistemtico dos feiticeiros, sacerdotes e telogos prov a explicao do mundo na modernidade. Mediante essa f na cincia (o des-encantamento), em sua objetividade e viso desprovida de valores e sentidos subjetivos, assiste-se ao domnio desse pensamento transformador ao introduzir padres de ao tidos como universalmente vlidos, corretos e lgicos, matematicamente calculveis e eficientes e que se traduzem na burocratizao, alienao e reificao das atividades humanas. O que afirmado por Adorno e Horkheimer condizente com o pensamento de Gadamer:

Doravante, a matria deve ser dominada sem o recurso ilusrio a foras soberanas ou imanentes, sem a iluso de qualidades ocultas. O que no se submete ao critrio da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 6). A pretenso da cincia superar pela via do conhecimento objetivo a causalidade da experincia subjetiva, a linguagem constituda de uma simbologia plurissemntica, pela univocidade do conceito. (GADAMER, 2002, p. 63).

Segundo anlise de Mendona (2004), a cincia enquanto portadora do progresso conhecido pela modernidade foi deificada. Pensamos aqui acerca dessa sua divinizao, que por todos esses elementos desencantou o mundo e colocou-se substituindo os mitos e deuses os quais ela relegou ao mundo da irracionalidade.

Desencantar o mundo destruir o animismo. Xenfanes zombava da multido de deuses, porque eram iguais aos homens, que os produziram, em tudo aquilo que contingente e mau, e a lgica mais recente denuncia as palavras cunhadas pela linguagem como moedas falsas, que ser melhor substituir por fichas neutras. O mundo torna-se o caos. [...] No trajecto para a cincia moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituram o conceito pela frmula, a causa pela regra e pela probabilidade. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 5-6).

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Sob a influncia das ideias do Iluminismo, a razo pura foi colocada como paradigma, tendo como pressuposto o rompimento com os efeitos do passado, com as crenas e valores das culturas tradicionais. Nesse contexto, a cincia moderna transpira mtodo e sua verdade tomada como certeza. O indivduo desprende-se de sua historicidade guiando-se pela razo esclarecida. A subjetividade assim vista como impedimento para o conhecimento: O esquema corrente do Iluminismo, segundo o qual o processo de desencantamento do mundo leva necessariamente do mito para o logos, parece-me um preconceito moderno (GADAMER, 2002, p. 151). Na modernidade, a investigao separa-se do ethos enquanto capacidade de enraizamento e abertura que caracteriza o humano (o mito da neutralidade cientfica) e abrese ao infinito de uma especializao cada vez mais apurada. Contudo, desenraizada do mundo da vida em que, apesar de tudo, o homem continua a ser, a viver e a compreender, o caminho da especializao cientfico-tecnocrtica acaba por converter-se em uma sria ameaa, que se estende vida tica e social do homem. Isto , como nos diz Gadamer (2002), no caminho de um progresso que se despe de toda e qualquer responsabilidade. Gadamer (2002, 2008) critica o esprito instrumental da modernidade, conduzindo sua anlise para a perspectiva de que a sabedoria no se restringe a essa viso tecnicista sob o clculo. Questiona, desse modo, o paradigma da racionalidade cientfica considerada como nica voz legitima de compreenso e da decorrendo como nico caminho para a verdade. Assim a verdade como um produto do mtodo infalvel, ignora as verdades da experincia contidas dentro de uma tradio cultural comum (LAWN, 2007, p. 61). Para o filsofo, a compreenso resultado do ser-no-mundo, enfatiza assim o passado como imprescindvel para a compreenso. O autor questiona o modelo de compreenso sustentado na razo lgica da testabilidade e da verificabilidade para as cincias do esprito, buscando demonstrar a disposio interpretativa:

Compreender no um ideal resignado da experincia de vida humana na idade avanada do esprito [...] ao contrrio, a forma originria de realizao da pr-sena, que o ser-no-mundo. Antes de toda diferenciao da compreenso nas diversas direes do interesse pragmtico ou terico, a compreenso o modo de ser da pr-sena, na medida em que poder-ser e possibilidade. [...] Compreender o carter ontolgico original da prpria vida humana.[...] (GADAMER, 2008, p. 347-348, grifos do autor).

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A trajetria de Gadamer concentra-se em debater junto hermenutica uma mudana de perspectiva, da hermenutica como mais que uma tcnica geral para a compreenso em todas as esferas da vida. Influenciada por Heidegger, a hermenutica deixa de ser um mtodo para se tornar essencialmente um jeito, um estilo. A compreenso como um fenmeno ontolgico que, portanto, torna possvel outras racionalidades a racionalidade social do mundo da vida que no a racionalidade cientfica moderna. Estar dentro de uma tradio no significa, para o autor, diminuio da racionalidade, mas apenas sendo reconhecida a sua finitude, ou seja, seus limites contextuais e sua impossibilidade de validade universal. O sentido de finitude est relacionado ao fato de que quando conhecemos, o fazemos a partir de uma determinada situao, a partir de um horizonte hermenutico limitado que determina nossas possibilidades de ver; vemos em uma perspectiva e, portanto, temos uma interpretao. O debate realizado por Gadamer no se faz no sentido extremo de negar o mtodo cientfico, como se atribui a Paul Feyerabend, cuja obra mais conhecida Contra o Mtodo (1997) apresenta o anarquismo epistemolgico como referncia contra a validade nica e imutvel de um conjunto de regras que pretendem ser universalmente vlidas. Contudo, h de se observar passagens na obra de extrema significncia para o debate do enunciado em nosso estudo:
Tanto a cincia quanto o mito recobrem o senso comum de uma superestrutura teortica. H teorias de diferentes graus de abstrao e elas so utilizadas de acordo com os diferentes requisitos de explicao que se colocam. A construo de teoria consiste em partir os objetos do senso comum para reunir os fragmentos de maneira diversa. Os modelos teorticos nascem da analogia, mas gradualmente se distanciam do padro em que a analogia se apoiava. E assim por diante. (FEYERABEND, 1977, p. 451).

Em O que Cincia afinal? Chalmers (1993) chama ateno para o debate sobre o domnio da verdade cientfica e a perspectiva do uso ou desuso que se faz sobre os contextos conhecidos, destacando o uso da verdade na perspectiva do conhecimento cientfico para o domnio instrumental, ou seja, destinado a fins especficos:

As descries do mundo observvel sero verdadeiras ou falsas se descritas corretamente ou no. As elaboraes tericas, no entanto, so projetadas para nos dar um controle instrumental do mundo observvel e no devem ser julgadas em termos de verdade ou falsidade, mas antes em termos de sua utilidade como instrumentos. (p. 190).

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Gadamer (2002, 2008) no nega o mtodo, apenas indica que a compreenso algo que no depende somente dele, a compreenso anterior ao mtodo. Ao criticar a modelagem cientfica moderna, prope uma crtica radical e uma remodelagem de seu paradigma. Um repensar sobre o estar no mundo como nico, em um mundo de diversidades, diferenas, de assimetrias a serem pensadas. O resgate de racionalidades distintas apresenta-se por meio do resgate da tradio. Do passado, da tradio vem a substncia tica que compe o ethos histrico ao qual pertencemos. nesse sentido que adotamos a abordagem de Gadamer, sem negar a verdade cientfica nem o mtodo como um caminho para a compreenso. Contudo, buscando explicitar a inadequao do absolutismo do mtodo como caminho nico da verdade, visto que se torna necessrio compreender outras formas de interpretao, outros saberes como interpretaes cunhadas a partir de horizontes hermenuticos distintos e historicamente situados. Portanto, deve-se destacar que, para alm da questo metodolgica, o autor est preocupado com a questo que antecede a compreenso ontolgica , modo de ser fundamental da existncia humana. Desse modo, pensamos a hermenutica de Gadamer como uma forma de debater a supremacia dessa razo objetiva e universalizante, visto que nesse debate fica claro que, para o autor em questo, no possvel negar as subjetividades histricas. Dessa maneira, torna-se possvel um repensar sobre o encontro dessas racionalidades, cientfico-tcnica e mtico-prtica, das formas de compreenso sobre os contextos das Reservas Extrativistas Marinhas, a partir do pressuposto da alteridade ao saber e fazer local, o que poderia sustentar uma relao de encontro, uma relao dialgica e, portanto, tica no sentido proposto por Ricoeur (1965, 1968, 1988, 1991, 1995) como inteno de vida boa. Cada um carregando sua tradio, seus preconceitos revisados no processo de dilogo entre os agentes distintos que se encontram por meio da aplicabilidade da poltica de Unidades de Conservao.
Gadamer questiona as fundaes do Iluminismo, mais especificamente, ele rejeita sua dependncia numa concepo de mtodo obtida dos procedimentos da cincia natural. O mtodo, como concebido pela era moderna, obscurece elementos de sabedoria e entendimento sobre o mundo. Invariavelmente, mais prticas que tericas, as formas de entendimento ofuscadas pelo mtodo podem ser recuperadas como aspectos da autoridade, preconceito e tradio. Entretanto, as noes de autoridade, preconceito e tradio precisam ser vistas, no como obstculos e embaraos libertao da razo, mas sim como os prprios veculos da razo e liberao. (LAWN, 2007, p. 62).

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Interessar-nos pela hermenutica, conforme Gadamer e Ricoeur, estabelecer laos imediatos com o debate tico e humano nas cincias do esprito, romper com as decises disfaradas mediante ndices e estatsticas que se prestam somente para criar imagens que no correspondem realidade (GACKI, 2006, p. 10, grifo nosso). Para ns, diferentemente de Gracki, no diramos evidentemente somente, mas em grande medida, e ainda, acrescentaramos, compreender a realidade em suas distintas particularidades. como, por exemplo, compreender os arqutipos pensados por Eliade (1992) para anlise dos mitos, mas observando as mincias do que singular, a essncia de cada contexto. O fio condutor do debate de Gadamer e Ricoeur , antes de ser epistemolgico, tico-poltico, articulando-se a favor de uma postura tica diante da dominao da racionalidade instrumental utilitria e sua objetivao.

verdade que a cincia moderna desde, o sculo XVII, suscitou um novo mundo, renunciando radicalmente ao conhecimento das substncias e limitando-se ao projeto matemtico da natureza e ao emprego metodolgico da medio e dos experimentos, para assim abrir a via construtiva para o domnio da natureza. Foi isso que impulsionou a expanso planetria da civilizao tcnica. Mas s em nosso sculo foi se acirrando cada vez mais, junto com os crescentes xitos, a tenso entre nossa conscincia do progresso cientfico e nossa conscincia scio-poltica. (GADAMER, 2002, p. 293).

Diante do cenrio de sobreposio da objetivao cientfico-tcnica, para Souza Santos (1995), para alm da primeira ruptura epistemolgica quando a cincia se afasta do senso comum objetivando a sua constituio como um sistema de novos conceitos e de relaes entre conceitos, inventando um novo cdigo de leitura do real (p. 34) , h uma necessidade do reencontro por meio da segunda ruptura epistemolgica que transforma o senso comum com base na cincia constituda e no mesmo processo transforma a cincia. Com essa dupla ruptura, pretende-se um senso comum esclarecido e uma cincia prudente (p. 34). A no-existncia do local d-se pela desqualificao das experincias locais por meio da abstrao das peculiaridades ou particularidades em prol do universal. A Sociologia das ausncias de Souza Santos (2006) prope uma desconstruo dessa lgica excludente: a ideia central da sociologia das ausncias neste domnio que no h ignorncia em geral nem saber em geral. Toda a ignorncia ignorante de um certo saber e todo saber a superao de uma ignorncia particular (p. 106). A cincia sob a tica da sociologia das ausncias permanece enquanto tal, com seus cdigos de percepo, linguagem e comunicao,

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dialogando com o saber local, no sentido de trocar percepes, cada qual produzindo informaes de acordo com suas particularidades, permitindo assim no dizer de Boaventura Santos uma cincia prudente e um senso comum esclarecido (2004).

5.2 UM REINO DESENCANTADO

Nesse momento do estudo, procuramos demonstrar sob que bases se estrutura a poltica ambiental brasileira e qual o padro de pensamento norteador das aes no mbito dessa poltica. Partimos da para compreender como se estruturam os rgos ambientais, responsveis pela aplicabilidade da poltica, e quais as limitaes de suas aes diante do atrelamento a interesses polticos e econmicos que dirigem a poltica nacional. Ao que buscamos compreender por meio da conexo a uma racionalidade que se sobrepe na esfera estatal em nome do desenvolvimento do pas. Some-se a essa perspectiva, a anlise de que ao processo de racionalizao utilitria da poltica ambiental brasileira, a conformao do modus operandi dos agentes das instituies ambientais se arranja por meio de determinadas estruturas racionalizantes. Aqui se explicita a racionalidade formal instrumental por meio do amalgamento dessas estruturas edificantes o direito, a burocracia, a cincia e a tcnica - estabelecendo os contornos da racionalizao que segue a perspectiva da sobreposio de um saber que se cr objetivo e universal e que efetivamente se presta ao desencantamento do mundo natural e social a ele atrelado, por meio da desmitologizao, desmagificao e desendeusamento banindo os mitos, os sentidos cosmolgicos qualitativos e particulares e os deuses - como mecanismos possveis de atrelar o domnio desse saber objetivado sobre a natureza s regras da racionalidade poltico e econmica dominante. 5.2.1 A poltica pblica ambiental brasileira no sculo XX nos marcos da racionalidade ecolgica
No falo, portanto de um Estado mau, de um Estado totalitrio, falo do Estado, daquilo que faz com que o Estado seja Estado [...] Basta-nos que o Estado considerado o mais justo, o mais democrtico, o mais liberal, se revele como que a sntese da legitimidade e da violncia, isto , como poder moral de exigir e poder fsico de obrigar (RICOEUR, 1968, P. 238, grifo nosso).

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De fato, o saber que se outorgou o poder revelador desnudando a natureza dos sentidos subjetivos, que de modo mais geral e mais fundo, desvaloriza o misterioso porque incalculvel, em favor do conhecimento hipottico-matemtico cientificamente configurado, para o qual possvel, em princpio, tudo dominar mediante o clculo (PIERUCCI, 2003, p. 161, grifo do autor) no h outra alternativa que submeter-se verdade que emana da subjetividade. Existe uma crise, conforme apontado por Leff (2004, 2006a, 2006b), e no uma crise marcada historicamente como tantas outras o crash de 1929, as crises do petrleo, o efeito tequila, o efeito tango, a crise oriunda do ataque terrorista de 11 de setembro, a crise econmica de 2008 todas essas dentre outras, constituindo crises sociais, econmicas e financeiras. A crise qual nos referimos definida como crise ambiental; verdade que seus fatores levam a uma crise socioeconmica financeira, contudo, h de chamar a ateno o seu adjetivo nominal. A crise da civilizao moderna traduz-se na crise ambiental, e desse modo ela majoritariamente valorativa e tica. Constitui-se a partir da ausncia de relaes de alteridade com o Outro natural e consequentemente com os outros sociais. Abordaremos esse cenrio a partir do debate em Leff (2004, 2006a, 2006b) acerca da diferenciao entre racionalidade ambiental e racionalidade ecolgica. Enquanto a primeira questiona a racionalidade da sociedade capitalista e prope transformaes profundas impostas pela problemtica ambiental, posto o modo como esto estabelecidas as relaes homem e natureza sob o jugo da racionalidade formal instrumental, a segunda apresenta-se nos marcos do sistema, criando mecanismos que permitam uma refuncionalizao da racionalizao econmica capitalista. As contradies entre racionalidade ambiental e a racionalidade capitalista uma confrontao de interesses opostos arraigados em estruturas institucionais, paradigmas de conhecimento e processos de legitimao que enfrentam diferentes agentes, classes e grupos sociais (LEFF, 2006a, p. 125). Mas ento devemos perguntar o que caracteriza a crise ambiental? De acordo com Larrre (1997):

Uma enorme quantidade de danos precisos, de populaes localizadas, de perigos identificados, mas tambm catstrofes exemplares (Seveso, Bhopal, Chernobyl, a morte do mar de Aral, as mars negras) e mesmo a provvel ameaa que paira sobre os nossos recursos (eroso da diversidade biolgica, desflorestao das regies tropicais) ou sobre a nossa vida (buraco da camada de ozone, efeito estufa, etc.) A Cimeira da Terra reunida no Rio de Janeiro em junho de 1992, foi o reconhecimento oficial de que a crise existe e tem uma dimenso planetria. Todos os pases do mundo estiveram

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representados na Cimeira, tanto pelos seus Estados como pelas Organizaes No Governamentais. (p. 09).

a partir dessa constatao da crise ambiental como fato que partiremos para a enunciao de episdios no cenrio nacional sem deixar de correlacion-los com o cenrio internacional, a fim de no cometer o equvoco de fragmentar contextos interligados por aes globais que sugerem consequncias locais assim como aes locais com consequncias globais apontando os passos da poltica pblica ambiental no Brasil a fim de demonstrar sob que lgica e princpios ela se implementa. A Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD) referida pelos autores acima, mais conhecida como Eco 92, realizada entre 03 e 14 de junho de 1992 no Rio de Janeiro, cujo objetivo principal era buscar meios de conciliar o desenvolvimento socioeconmico com a conservao e proteo dos ecossistemas da terra, consagrou o conceito de desenvolvimento sustentvel. A despeito dos resultados frustrantes referidos por Larrre (1997) no que se refere tomada de decises mais imediatas acerca de prticas politicas de conservacionismo, bem como ao fato de no ter produzido mecanismos efetivos de alcance global para assegurar a aplicao de suas resolues, a responsabilidade pelo cumprimento das decises foi transferida aos estados, que priorizaram seus interesses nacionais de acordo com o que afirma Vieira (2010)99. Na avaliao dos resultados que desse evento decorrem para as polticas ambientais no mbito do Brasil, e de acordo com que afirma Little (2003), a dcada de 1990 apresentou resultados significativos quanto introduo da temtica ambiental na agenda poltica nacional e institucionalizao do segmento ambiental governamental, por meio da criao de rgos, da promulgao de leis ambientais e de oramento pblico destinado. A Conferncia tambm lanou novas polticas fomentadas por doaes de cooperao internacional, PPG-7, como o Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil, e o projeto ARPA (Programa reas Protegidas da Amaznia), compromisso do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998, para a ampliao das reas protegidas de florestas tropicais no Brasil em colaborao entre o Banco Mundial e o Fundo Mundial para a Natureza (WWF). Segundo Ione Amaral Silva, da Associao dos Gegrafos Brasileiros (AGB - sesso Rio), distinguem-se trs fases nas quais posturas particulares foram adotadas pelo Estado
99

Disponvel em: <http://www.lisztvieira.pro.br/artigos>. Acesso em: 13 jun. 2010.

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brasileiro em relao gesto ambiental. Diviso tambm adotada por Irving e Medeiros (2006). A primeira, a partir da dcada de 1930 com o surgimento dos primeiros instrumentos legais voltados para a criao de reas protegidas; a segunda engloba o perodo da ditadura militar, de 1964 a 1984, perodo em que o sentido dado s reas protegidas estava, sobretudo, relacionado ao controle do territrio, destacando-se tambm nesse perodo a criao de organismos governamentais e uma grande mobilizao internacional que atuou como ponto de presso sobre a poltica ambiental do pas; e a terceira fase, que envolve o perodo ps 1985, marcado pela condensao por meio de um nico rgo responsvel por essa poltica ambiental o IBAMA e mais tarde a criao de um sistema integrado para as Unidades de Conservao SNUC, e mais recentemente, em 2007, da criao do ICMBio. Esse cenrio marcado pela minimizao das funes do Estado dentro da poltica neoliberal, empreendida de 1987 a 2002. A primeira fase, representada por meio da formulao de cdigos e regulamentos de rgos especficos corresponderia a uma fase normativa-setorial , como o primeiro Cdigo Florestal do Brasil, decretado em 23 de janeiro de 1934, (Decreto n. 23.793), que, de acordo com as anlises de Urban (1998), adotava uma postura revolucionria ao limitar o direito de propriedade subordinando-o ao interesse coletivo, j que considerava as florestas em seu conjunto como bem de interesse comum. De acordo com Irving e Medeiros (2006), a consolidao desse novo iderio est vinculada ao processo de modernizao ao qual o pas foi conduzido, por meio da Revoluo de 30 e da transio para a industrializao e urbanizao. Coroando esse momento, a constituio de 1934 em seu captulo I artigo 10 outorgou natureza valor de patrimnio nacional a ser preservado e alm do Cdigo Florestal, outros dispositivos legais tambm foram criados nesse mesmo ano, o Cdigo de Caa e Pesca, o Cdigo de guas e o Decreto de Proteo dos Animais. O cenrio social e econmico sob o qual o primeiro Cdigo Florestal se constituiu e que se apresentava no pas no incio do sculo XX marcava a atividade florestal pelo intenso extrativismo, a cafeicultura, que j avanava pelos morros do Vale da Paraba, substituindo a vegetao nativa, a criao de gado tambm se fazia de forma extensiva e o cultivo de rvores florestais manifestava-se por meio das atividades da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, no estado de So Paulo, que, necessitando de madeiras para dormentes e carvo, por meio do trabalho de Edmundo Navarro de Andrade, introduziu o cultivo de espcies de Eucalyptus trazidos da Austrlia, o que mais tarde fomentou a criao de hortos florestais em So Paulo.

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Embora essas atividades econmicas fossem lcitas, a decretao desse cdigo bem como dos demais foi significativa para o processo ambiental subsequente, particularmente o Cdigo Florestal, que introduziu a ideia de categorias de manejo, considerando as especificidades e finalidades da rea criada. Tornando o cenrio favorvel para a criao do de Parques e Florestas Nacionais no Brasil, como o Parque Nacional de Itatiaia em 1937, como mecanismo de proteo dos recursos florestais brasileiros. Torna-se importante ressaltar que, dentro do marco da racionalidade de proteo de reas ambientais, apesar da forte influncia do movimento internacional de criao dos parques na lgica preservacionista, conforme entende Diegues (2008), a exemplo dos Estados Unidos da Amrica, o Brasil agregava criao tambm a lgica da conservao e do uso; isso fortemente determinado pela ao de intelectuais brasileiros com formao europeia e organizao de movimentos na linha do que mais tarde se convencionou denominar socioambientalismo. Essa uma demonstrao da existncia de inmeras especificidades e caracteres presentes na vida histrica, infinita e multifacetria apreendidas a partir de um tipo ideal de racionalidade, cuja seleo arbitrria de caracter sticas objetiva simplesmente criar conceitos teis para finalidades especiais e para orientaes (WEBER, 1981, p. 345). J na reformulao do Cdigo Florestal que ocorreu em 1965 (Lei 4.771), apresentouse um forte olhar sobre a misria, a destruio da riqueza pblica e a falta de controle sobre os bens. Muito embora conduzida por Duarte Pereira, Urban (1998) destaca a presena de um olhar produtivista sobre o tema (p. 78). Tal destaque se d em virtude da vaga referncia nesse novo Cdigo acerca da proteo da fauna, at ento de menor importncia econmica. Isto posto, relevante ressaltar que plumagens, couro e peles de animais atingiam o mercado internacional e que at o ano de 1969 o Brasil exportou 1.670 toneladas s em couros e peles de animais silvestres (p. 106), mesmo tendo a Lei de Proteo Fauna sido criada em 1967. O que no se concretizou pelo aspecto prtico, do ponto de vista da legalidade inaugura uma nova fase na legislao ambiental brasileira. Segundo a autora em questo, a lei acima referida marca uma nova fase efetivamente conservacionista100, que se afastou da lgica apenas prtico-comercial, desde o incio da colonizao marcada pela necessidade de controlar o comrcio da madeira. Visto que a
100

Segundo Paulo Nogueira Neto: Conservao da natureza a utilizao racional dos recursos naturais e isso a distingue da preservao preservao uma coisa mais restrita, a conservao permite um uso menos restrito [...] O racional, nesse caso, tem uma grande parte subjetiva, mas no h outra maneira. Supe-se que aquilo que racional para um pode no ser para outro, mas se o objetivo proteger a natureza, ento est dentro do racional (Entrevista concedida a Tereza Urban (1998). Paulo Nogueira Neto foi dirigente da Secretaria Especial de Meio Ambiente de 1971 a 1986, dentre outras ocupaes na rea ambiental no Brasil e em organismos transnacionais).

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prpria proposio originria do Cdigo Florestal, de 1934, normatizou a proteo e o uso das florestas com o propsito de proteger os solos, as guas, mas tambm a estabilidade do comrcio de madeira, agregando aos recursos florestais mais valor de troca. Essa lgica utilitria dos recursos florestais permaneceu no novo Cdigo de 1965. Ao se considerar como de utilidade pblica as atividades de segurana nacional e proteo sanitria e as obras essenciais de infraestrutura destinadas aos servios pblicos de transporte, saneamento e energia, de interesse pblico a difuso e adoo de mtodos tecnolgicos que visem a aumentar economicamente a vida til da madeira e o seu maior aproveitamento em todas as fases de manipulao e transformao (Lei 4.771/65). Pode-se ler, de acordo com o texto do prprio Cdigo, no artigo 3:
1 A supresso total ou parcial de florestas de preservao permanente s ser admitida com prvia autorizao do Poder Executivo Federal, quando for necessria execuo de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pblica ou interesse social. (Cdigo Florestal de 1965, grifo nosso).

Ressalte-se que, apesar das inmeras modificaes por meio de emendas e medidas provisrias, esse Cdigo continua em vigncia 101 e juntamente com o SNUC (2000), representam os principais dispositivos legais de proteo da natureza. Desse perodo tambm decorre a criao de alguns servios na rea ambiental como a Defesa Sanitria Animal e Vegetal, Irrigao, Reflorestamento e Colonizao e o Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Desse modo, podemos compreender que o regramento jurdico institudo no bojo desse perodo constitua-se como base para a regulamentao ambiental visando a um fim preciso referente s relaes comerciais, tendo, portanto, objetivos precisos e claros voltados para os fins econmicos que norteavam as diversas esferas de ao pblica o desenvolvimento econmico a qualquer preo. O aporte legal funcionava como um mecanismo de satisfao das expectativas dos grupos que agiam em prol da conservao e preservao ambiental nacional e internacionalmente. Contudo, em seu interior, as questes mais significativas do ponto de vista dos grupos predominantes estavam resguardadas e se materializavam em orientaes dentro dos rgos governamentais, tornando-se a linha mestra do legtimo fazer institucional.

101

Est em discusso (maio de 2011) na Cmara dos deputados, sob o governo presidencial de Dilma Rousseff, a votao do Novo Cdigo Florestal brasileiro.

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Observa-se aqui a presena marcante da elaborao de uma legislao, nesse sentido devemos observar que a racionalizao compreendida por Weber no se restringe ao advento da cincia e da tcnica, mas atinge vrias esferas da vida, dentre elas a do direito. O direito aqui a lei escrita, no se vinculando a a ideia de justia ou quaisquer outros valores. Essa legislao especfica sustenta a estruturao burocrtica estatal guiando a efetividade das aes polticas ambientais. A exemplo, em 1967 a criao do IBDF (Decreto-Lei 289) alterou as perspectivas de implementao de um vis mais conservacionista na poltica pblica ambiental brasileira em virtude da imposio desse novo rgo que se estabeleceu a partir da desestruturao de outros rgos governamentais que possuam funes ambientais especficas, em face de uma poltica de deduo de imposto de renda em virtude de reflorestamento. Vrios so os fatores apontados para a ineficincia do IBDF. As atribuies que lhe foram conferidas iam muito alm do que seus recursos oramentrios e humanos podiam impetrar em alguns anos; seu oramento era insignificante se comparado ao de outros rgos que demandavam de forma direta maior rentabilidade econmica, como o Instituto Brasileiro do Caf (IBC) e a Comisso Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC). Segundo Alceo Magnanini:

Quando foi criado o IBDF, 99% do pessoal vinha do Instituto Nacional do Pinho com mentalidade de derrubar a mata e exportar a madeira [...] Ficaram poucos funcionrios do Departamento de Recursos Naturais. Uns trs ou quatro [...] quando foi criado o IBDF recebeu um oramento especial que nenhuma repartio pblica jamais recebeu no ato de criao, mas no teve preparo para empregar estes recursos, que simplesmente foram devolvidos. Quase 60% devolvidos. (In: URBAN, 1998, p. 253).

Tendo herdado a estrutura funcional do Instituto Nacional do Pinho, manteve-se restrito a tratar das questes comerciais e de produo do pinho, atendendo a demanda economicista que se sustentou at a dcada de 1970. Ainda durante a realizao da Conferncia de Estocolmo, em 1972, o Brasil defendia a ideia de que o melhor instrumento para combater a poluio era o desenvolvimento econmico e social. Ressalte-se que no perodo entre 1968 e 1973, conhecido como o milagre econmico brasileiro, enquanto outros pases discutiam a degradao ambiental, os representantes brasileiros, do governo do General Emlio G. Mdici (1969-1974), ofereciam o pas para a explorao de seus recursos naturais sem nenhuma restrio.

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Podemos inferir dessa conjuntura uma postura estatal dirigida mais estritamente por interesses econmicos e para a manifestao do poder do Estado sobre a regulamentao do uso dos recursos da natureza com vistas a esse fim econmico, j que, h de se observar, do ponto de vista das aes governamentais, as estruturas que se foram estabelecendo voltavamse para atender em tese demandas da sociedade, mas visando como fim ltimo ao incenti vo poltica de desenvolvimento, o que caracterizava a explorao dos recursos naturais sob o discurso do combate pobreza e misria, a proteo dos recursos da natureza e a segurana da sociedade nacional. Conforme j observou no prprio texto do novo Cdigo Florestal, as aes do Estado brasileiro referentes ao meio-ambiente, especialmente na Amaznia, esto associadas aos conceitos de segurana nacional e estratgia de desenvolvimento nacional. Outro elemento que permite observar a recorrncia dessa lgica o movimento constante dos governos em institucionalizar novos rgos por meio da fuso de rgos j decadentes ou no propsito da renovao e apesar disso, mantm no novo rgo as estruturas e os antigos interesses dos rgos extintos. Em uma relao de apenas institucionalizar em novas vestimentas velhas estruturas burocrticas. Conforme Weber (2004, p. 216): O decisivo para ns que, em princpio, atrs de todo ato de uma autntica administrao burocrtica encontra-se um sistema de razes racionalmente discutveis, isto , a subsuno a normas ou a ponderao de fins e meios. H de se observar, contudo, nesse contexto a presena de personalidades marcadamente voltadas para a preocupao com o meio ambiente e o uso responsvel dos recursos naturais. Dessa incidncia institucional e social, por meio dos movimentos e entidades da sociedade civil, avanos so conquistados no processo de ambientalizao da poltica brasileira, mesmo nos marcos do que Leff (2004, 2006a, 2006b) define como Racionalidade Ecolgica. So personalidades que enunciam uma racionalidade que advoga a conservao dos recursos naturais em detrimento da racionalidade economicista, cujas aes dirigidas por valores ambientais determinaram, em grande medida, o caminho a ser percorrido nos meandros da poltica pblica ambiental no Brasil, a saber: Andr Rebouas, que nos idos de 1876 publicou um artigo chamado Parque Nacional, em que se espelha na criao do parque de Yellowstone para pensar reas protegidas no Brasil e o potencial econmico turstico da decorrente. A criao do primeiro Parque Nacional, do Araguaia, foi proposta por ele nesse mesmo ano. De Andr Rebouas herdamos tambm o valor difundido, inclusive no captulo 225 da Constituio Brasileira de 1988, da proteo natureza a bem das geraes futuras. Destacam-se tambm nesse cenrio Joaquim Nabuco, abolicionista que associava a poltica da

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escravido devastao florestal e esgotamento dos solos; Alberto Torres, que props reviso constitucional baseada na preservao dos recursos virgens, na conservao e reparao daqueles em explorao e uma adequada explorao; Edgar Roquette Pinto, pesquisador na rea e; Wanderbilt Duarte de Barros, cuja dedicao luta pela conservao era por ele definida como um reflexo da cultura. Paralelo a esse movimento, constituiu-se tambm nos grandes centros urbanos uma classe mdia esclarecida, no seio da qual o iderio ambientalista em uma perspectiva menos naturalista encontra fora. A exemplo, em 1978 no 1 Simpsio Nacional de Ecologia organizado na cidade de Curitibano estado do Paran, que resultou no documento denominado Carta de Curitiba, fortes crticas foram tecidas poltica econmica brasileira e os problemas ambientais considerados tambm pelo prisma sociocultural. O perodo de 1970 e 1980 caracterizou- se pelo esboo inicial das aes inter-setoriais e de redao de uma legislao especfica, tendo como marco a criao da Secretaria Especial de Meio Ambiente SEMA. Como resposta s presses internacionais e nacionais, em virtude das posies a partir da conferncia de Estocolmo, que acusavam o governo brasileiro de defender o desenvolvimento a qualquer custo, era emergente a necessidade de se criar um projeto ambiental nacional que contribusse para reduzir os impactos ambientais decorrentes do crescimento causado pela poltica desenvolvimentista. De acordo com Genebaldo Dias na conferncia de Estocolmo, o comportamento da representao brasileira era clara:

Para espanto do mundo, representantes do Brasil pedem poluio, dizendo que o pas no se importaria em pagar o preo da degradao ambiental desde que o resultado fosse o aumento do PNB (Produto Nacional Bruto). Um cartaz anuncia: Bem vindos poluio, estamos abertos para ela. O Brasil um pas que no tem restries. Temos vrias cidades que receberiam de braos abertos a sua poluio, porque o que ns queremos so empregos, so dlares para o nosso desenvolvimento. (2003, p. 36).

Destaque-se para esse perodo especificamente as determinaes referentes s reas protegidas, mais tarde definidas como Unidades de Conservao, a exemplo o Decreto 84.017/79 referente aos Parques Nacionais e o Decreto 73.791/74 que criou a primeira Reserva Biolgica do Brasil Poos das Antas, em Silva Jardim-RJ , o ltimo remanescente do habitat original do mico-leo-dourado (Leontopithecus r. rosalia) e a FLONA do TapajsPA. Foram criados ainda, entre 1971 e 1989, vinte Parques Nacionais, em virtude das aes de um grupo de conservacionistas que se manteve no IBDF oriundos do extinto Departamento de Recursos Naturais Renovveis (DRNR), ligado ao Ministrio da

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Agricultura. Se por um lado houve nessas dcadas um avano em relao s reas protegidas, por outro, o avano da fronteira agrcola sobre a Amaznia sustentava-se em bases desenvolvimentistas e utilitrias e desastrosas ambientalmente. Quanto legislao, no que referente poltica ambiental brasileira, houve a promulgao da Lei n. 6938/81, que instituiu a Poltica Nacional de Meio Ambiente, estabelecendo como instrumentos de planejamento do desenvolvimento dos territrios o Zoneamento Econmico Ecolgico (ZEE) e como um dos instrumentos de poltica ambiental a avaliao de impactos ambientais. Alm disso, foram criados tambm o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), que passam a ser os principais instrumentos de uma poltica ambiental orientada para aes descentralizadas. Assim, o prvio licenciamento de competncia do rgo estadual ambiental, integrante do SISNAMA e do IBAMA, criado em 1989. Nesse contexto, cruzam-se a racionalidade economicista por meio do sentido visado pelo Estado brasileiro, que se materializa nas estratgias do desenvolvimento econmico nacional e a racionalidade voltada para a proteo dos recursos naturais de grupos de intelectuais, que, por vezes, desempenhavam o papel de tcnicos dos rgos governamentais, levando, do ponto de vista prtico, estrutura governamental o sentido de suas aes sustentadas pela percepo da relao com os recursos naturais renovveis, ancorada em dimenses morais de no esgotamento desses recursos a bem das geraes presentes e futuras, ou seja, do uso racional dos recursos naturais, visto que a internalizao da definio uso sustentvel ainda fazia pouco eco. Desse modo, ao buscar a compreenso das aes sociais e das relaes sociais que se estabelecem, identificamos caracteres da racionalidade instrumental, viabilizadas por meio de aes materializadas pela orientao racional referente a fins a valores que se potencializam no contexto em anlise. Destacam-se ainda personalidades como Aldemar Coimbra, com mais de duzentos trabalhos publicados e uma extensa bagagem de aes ambientais dirigidas recuperao de espcies florestais e proteo de animais em risco de extino, como o mico-leo-dourado; Alceo Magnanini, que ocupou cargos pblicos nas principais instituies responsveis pela poltica de conservao da natureza, publicou vrios textos com a temtica ambiental e participou da Fundao Brasileira de Conservao da Natureza (FBCN), primeira ONG a tratar dessa temtica no Brasil; Ibsen de Gusmo Cmara, Almirante da Marinha brasileira, por meio da qual se aproximou das questes ambientais na Amaznia em virtude da fiscalizao sobre os abusos cometidos contra a fauna e a flora por fora da Lei da Patrulha

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Costeira, de 1955, foi presidente da FBCN e articulador poltico junto aos setores governamentais; o professor Paulo Nogueira Neto, titular da SEMA e responsvel por delegaes brasileiras em muitos encontros internacionais sobre a questo ambiental; assim como Nogueira Neto e Jos Lutzenberger, considerados grandes nomes do movimento ambientalista brasileiro. Associado ao crescente interesse pelas questes ambientais e o surgimento de novos movimentos sociais na segunda metade da dcada de 1970 e na dcada de 1980, que visavam a uma organizao em prol da redemocratizao do pas, o movimento ambientalista nacional, em suas vertentes, inclusive a socioambientalista, ganhava fora com o apoio internacional. Aliando os aspectos da conjuntura poltica a aspectos sociais e ambientais, os movimentos ganham fora e visibilidade. A exemplo, o movimento dos seringueiros, conforme j referido em captulo anterior. Por fora dessa conjuntura e das fortes presses internacionais que condicionavam o apoio econmico, o Governo Federal na constituinte de 87/88 dedicou um captulo questo ambiental, bem como na sequncia da Eco 92 foi criado o MMA, como resposta mais imediata s repercusses da Conferncia. A terceira fase teve incio em meados da dcada de 1980 e representou uma continuidade da segunda fase. Sua principal caracterstica relaciona-se tomada de conscincia, no mbito das decises pblicas, do que j vinha sendo alardeado pelos movimentos portadores de uma racionalidade substantiva a globalizao dos problemas ambientais. Do ponto de vista institucional, estabeleceu-se um processo de descentralizao das aes, distribudas entre as esferas municipal, estadual e federal e da disseminao das questes ambientais nos diferentes rgos pblicos, bem como a definio de leis e mecanismos que reforaram o seu aparato institucional. Dentro dessa lgica e para responder s presses acerca da questo e do debate ambiental, a poltica pblica ambiental no Brasil deu um salto em relao legislao ambiental com a aprovao de leis que permitiram novos instrumentos para a concretude da questo, com a promulgao da Lei n. 9.985 SNUC, e da Lei de Crimes Ambientais ou Lei da Natureza, n. 9.605/98. A sociedade brasileira, os rgos ambientais e o Ministrio Pblico passaram a contar com um instrumento que lhes garante agilidade e eficcia na punio aos infratores do meio ambiente.

A superao dos problemas ambientais perseguida por meios gerenciais, dentro de uma perspectiva reformista e tecnocentrista, confiando na

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expertise profissional [...] A interveno estatal via planejamento, considerada indispensvel para reduzir ou evitar os efeitos nocivos dos processos de crescimento econmico, ou ainda, para poder eliminar ou reparar distrbios e danos j existentes. (FREY, 2001, p. 7).

A percepo dos problemas ambientais em mbito planetrio impulsionou a participao da sociedade civil por meio de movimentos ambientalistas nacionais e transnacionais, particularmente as ONGs, que para alm da representatividade da sociedade passassem a ter um papel de executor parceiro do poder poltico constitudo. Essa postura marca o cenrio brasileiro quanto ao uso dos recursos naturais por meio de tomada de posicionamento mais dirigido, no somente do setor pblico e da sociedade civil brasileira, mas tambm do setor empresarial em relao a fomentar aes mitigadoras da degradao ambiental. O setor empresarial passa a responder a essa problemtica, inicialmente atendendo as medidas impostas pelo poder pblico. Um mercado verde estrutura -se, respondendo demanda por produtos que possuam um valor ambiental agregado. Adotou-se na dcada de 1990 a certificao por meio de selos para produtos ecologicamente manejados; foram criados em 1994 no mbito da International Standard Organization (ISO), normas e diretrizes aplicveis em contextos empresariais distintos e dirigidas aos setores produtivos visando atingir uma gesto empresarial responsvel em relao aos recursos naturais. As atenes desdobram-se dentro da perspectiva da racionalidade ecolgica, ou seja, a compatibilidade entre o desenvolvimento econmico e a conservao dos recursos naturais. Dentro dessa perspectiva de desenvolvimento, o crescimento econmico no pode sofrer entraves em nome de uma poltica de sustentabilidade socioambiental; em uma correlao de foras, h a predominncia do econmico sobre a sustentabilidade, seja ela social, no combate pobreza, ou ecolgica, na conservao dos recursos. A certificao ambiental tem se tornado um mecanismo recorrente no mercado nacional e internacional, como um modo de identificao de produtos e prticas que exercem padres e requerimentos especficos. Enquanto algumas certificaes, como ISO, so destinadas para a indstria, outras se destinam produo das comunidades rurais. Sistemas de certificao na agricultura, como a certificao orgnica e social e a certificao florestal, so incentivos com vistas ao gerenciamento tico de recursos naturais, o Conselho de Manejo Florestal (FSC Forest Stewardship Council) o principal certificador com credibilidade mundial dentro da lgica da construo de uma prtica que reflete valores e perspectivas de diminuio ou amenizao dos danos ambientais, por meio de certificaes. A exemplo os

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crditos de carbono, certificao que introduz na lgica de mercado os poluentes emitidos pelos pases desenvolvidos de acordo com o Protocolo de Kyoto (1997), um dos mecanismos para que esses pases reduzam suas emisses de gases do efeito estufa:

Comprar os chamados crditos de carbono de pases que diminuram suas emisses. Assim, uma empresa brasileira, por exemplo, pode desenvolver um projeto para reduzir as emisses de suas indstrias. Esse projeto passa pela avaliao de rgos internacionais e, se for aprovado, elegvel para gerar crditos. Nesse caso, a cada tonelada de CO que deixou de ser emitida, a empresa ganha um crdito, que pode ser negociado diretamente com as empresas ou por meio da bolsa de valores. (NOVA ESCOLA, mai. 2009).

De outro modo, essa lgica do mercado verde torna a questo ambiental instrumento de mercado, como uma estratgia de marketing, possibilitando um diferencial no mercado, viabilizando a permanncia ou a expanso da participao nos mercados, alm da criao de novos mercados, mediante o processo de conscientizao do uso mais racionalizado dos recursos naturais. No contexto das UCs, a certificao ambiental, que se iniciou com a produo madeireira, apresenta-se como uma estratgia de reafirmao das relaes entre as populaes locais e os recursos naturais florestais, visto que e stima-se que (700-800 milhes de ha) das florestas do mundo subdesenvolvido so gerenciados ou de propriedades das comunidades (MACIEL, 2007). A RESEX de Xapuri foi a primeira unidade no Brasil a receber, em 2002, a certificao ambiental pelo FSC sobre o manejo florestal sustentvel com produo de borracha e castanha. Contudo, apenas 1% do total de reas gerenciadas pelas populaes locais estava certificada poca. Alguns benefcios apontados por Maciel (2007) so as melhores condies de trabalho, auxlio na legitimao fundiria e o sobrepreo agregado em virtude da certificao. Para o autor, a certificao apresenta-se como uma estratgia competitiva a agregar as polticas de gesto ambiental. Desse ponto de vista, cabe refletir sob a perspectiva da racionalidade ecolgica como caminho que, se por um lado, reafirma a estrutura racional economicista dominante, de outro, abre possibilidades e perspectivas de ressignificao de valores e de possibilidades de visibilidade de ethos ambientais com sentidos qualitativos como caminhos viveis e exemplares a serem respeitados. A poltica ambiental brasileira, analisada aqui luz dos interesses objetivados nas aes governamentais, foi, portanto, compreendida como uma poltica subordinada poltica econmica abrangida a partir da lgica utilitria e desenvolvimentista adotada no Brasil.

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Mudanas no foco da poltica ambiental com vistas a responder s presses internas e externas em vez de redimensionar essas aes apenas mascararam por meio de uma nova roupagem os mesmos interesses com a criao de novos rgos que herdavam no somente a estrutura material e os recursos humanos, mas principalmente a obrigao de agregar as funes e os velhos interesses, como ocorreu at recentemente entre IBAMA e ICMBio. O avano na legislao e mesmo da poltica de Unidades de Conservao, embora represente melhorias, apresenta tambm srias necessidades quando pensadas para alm da criao legal dessas Reservas, visto que uma srie de outras legalidades est pendente demarcao de terras, regularizao fundiria, regularizao da concesso de direito real de uso, elaborao de Plano de Manejo. O marco para a leitura da poltica pblica ambiental brasileira sustentou-se na noo de racionalidade ecolgica de Leff (2006b), visto que nesse percurso as aes institucionalizadas tm sido marcadas pela necessidade de amenizao dos danos ambientais agregados aos danos sociais, com vistas a manter a lgica do desenvolvimento econmico predominante no pas. desse modo que a partir da dcada de 1990 uma srie de medidas ambientais mitigadoras com vistas sustentabilidade econmica agregada esfera econmica privada associando-se s aes do Estado, como as certificaes e selos ambientais, entre uma prtica voltada para a sustentabilidade socioambiental e uma necessidade de atender a demanda de um novo mercado, caracterizando o que Leff (2006a, 2006b) conceitua como racionalidade ecolgica. Destaque-se a forte influncia dos setores sociopolticos que impulsionam esse processo rumo a uma perspectiva defendida nas bases da racionalidade valorativa, estabelecendo uma relao qualitativa com a natureza, ainda que esta no seja marcada pelos mitos ou deuses conforme Weber, no h possibilidade desse retorno ao sagrado (PIERUCCI, 2003, p. 201) ; Contudo, sustentada no valor imprescindvel da natureza para a organizao da vida humana, considerada a dependncia do homem em relao ao uso dos recursos naturais. Desse ponto resgatamos Marx na sua concepo dialtica entre o homem e a natureza:

A histria pode ser vista por dois lados: ela pode ser dividida em histria da natureza e histria do homem. Os dois lados, porm, no devem ser vistos como entidades independentes. Desde que o homem existe, a natureza e o homem se influenciam mutuamente. (MARX e ENGELS, 1967 apud FOSTER, 2005, p. 311).

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5.2.2 Trabalho desencantado e desencantador do IBAMA ao ICMBio

O decisivo para ns que, em princpio, atrs de todo ato de uma autntica administrao burocrtica encontra-se um sistema de razes racionalmente discutveis, isto , a subsuno a normas ou a ponderao de fins e meios. (WEBER, 2004, p. 216).

O Estado Moderno Ocidental, conforme Weber, (1967) consiste em uma relao de dominao do homem sobre o homem sustentado em uma autoridade que se impe em razo da legalidade. Desse modo, toda ao de seus funcionrios segue o carter legal das normas e regulamentos, atendendo a uma organizao sistemtica do trabalho sustentada em uma racionalidade instrumental que adqua as aes aos objetivos a serem atingidos. Segundo as reflexes de Weber (1981) sobre a organizao burocrtica, o funcionrio obedece a regras e normas tcnicas que regulamentam suas aes no exerccio do cargo. As aes so, desse modo, racionais referentes a fins porque condizem com os objetivos institucionais visados. Nesse contexto, cabe refletir a presena do Estado como regulador das relaes que se estabelecem e que se materializam no somente na regulao das aes dos funcionrios, atribuindo a elas legitimidade, mas tambm impondo uma acomodao nas aes e reaes das populaes locais, por meio da imposio da legalidade sobre o habitus102, inclusive sujeitando essas populaes a novas formas organizativas pr-estabelecidas e influenciadas pela racionalidade de grupos alheios, em grande medida, ao modo de ser e fazer desses locais, como as formas organizativas em associaes percebidas nas UCs em estudo. E, principalmente, pela determinao das polticas ambientais que no Brasil demarcam a sustentao da lgica desenvolvimentista em detrimento das questes propriamente ambientais. O que sugere uma imposio da prpria vontade, como afirma Weber (1981), ao comportamento de terceiros ou ainda a imposio da vontade do ou dos grupos que detm o poder. A presena do Estado brasileiro tambm se materializa a partir do estabelecimento de legislaes especficas que regulamentam a poltica de Unidades de Conservao bem como
102

Com essa definio, o autor refere-se s disposies que os agentes tm para a ao, sua criatividade e capacidade de responder s diversas interaes demarcadas no somente pelo tempo e pelo lugar, mas tambm pela posio na hierarquia social, de onde as disposies durveis podem, a partir das relaes de poder, ser negadas, contrariadas ou confirmadas. Conforme Bourdieu, o conceito de habitus restitui ao agente um poder gerador e unificador, construtor e classificador, lembrando ainda que essa capacidade de construir a realidade social, ela mesma socialmente construda, no a de um sujeito transcendental, mas a de um corpo socializado, investido na prtica dos princpios organizadores socialmente construdos e adquiridos no curso de uma experincia social situada e datada (2001, p. 167).

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por meio da Poltica de Meio Ambiente e das relaes de poder que seus agentes diretos estabelecem no processo prtico de implementao da poltica. a relao do Estado ao cidado uma relao assimtrica, no recproca, de autoridade a submisso; mesmo quando ela interiamente democrtica e perfeitamente legtima (RICOEUR, 1968, p. 240). Segundo Guerra e Coelho (2009), no Brasil, conforme explicita o SNUC, a criao e o manejo de Unidades de Conservao papel do Estado:

O Estado o gestor dessas reas, porm essa gesto, segundo o SNUC, deve ser realizada com a participao da sociedade civil [...] No que essa lei enfraquea o papel do Estado, mas, ao contrrio, fortalece, uma vez que permite a participao do controle social sobre a administrao estatal sem enfraquecer o papel do Estado na formulao e implantao das diretrizes polticas para a conservao. (p. 54).

A proposta que se delineia aqui na perspectiva de analisar a instituio do IBAMA e os fatores que levam criao do ICMBio, caracterizando a prtica ambiental desses rgos dentro da poltica ambiental do Estado; em que momento histrico se d a criao do ICMBio, quais os fatores que levam a criao de um rgo cuja responsabilidade a gesto de Unidades de Conservao, qual o significado sociopoltico dessa ao para, desse modo, pensarmos o contexto das RESEXs Marinhas em estudo dentro do quadro do pensamentoao do IBAMA/ICMBio. Desse ponto de vista, importa refletir sobre as mudanas de orientao na poltica pblica ambiental sob a desagregao das funes do IBAMA e criao do ICMBio na expectativa de comprovar as mudanas e em que sentido elas apontam, a partir da lgica do uso dos recursos naturais e sua conservao nos marcos da poltica de Unidades de Conservao de uso sustentvel. Esta, compreendida nos marcos da instrumentalizao da poltica para atingir determinados fins institucionais sob a lgica da racionalidade ecolgica, no sentido da amenizao da explorao sob bases da sustentabilidade. Maria Tereza Jorge Pdua, ao referir-se noo de desenvolvimento sustentvel inserida no contexto das Unidades de Conservao, afirma: Tambm acho que o termo foi muito infeliz e se prestou a muitos desvios [...] O problema que sob esse guarda-chuva do desenvolvimento sustentvel coube tudo [...] Sob o termo desenvolvimento sustentvel cabe exatamente tudo103.

103

Entrevista concedida a Urban, 1998, p. 336.

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5.2.2.1 O IBAMA no contexto da poltica pblica ambiental

A criao do IBAMA respondeu a um momento da poltica pblica ambiental brasileira que se orientava para uma poltica sustentada na ideia de gesto integrada. Nesse momento, havia vrios rgos que tratavam da questo ambiental em diferentes ministrios e com diferentes vises, por vezes contraditrias. O rgo criado logo aps a euforia da Assembleia Constituinte e da ateno que a questo ambiental mereceu na elaborao da Constituio Federal de 1988, o que fomentou a elaborao de uma legislao ambiental consistente. Segundo dados da assessoria de comunicao do IBAMA, a criao do rgo representou o resultado de um longo processo da poltica ambiental brasileira que caminhou para a gesto integrada, por forte presso principalmente internacional, aps a participao do Brasil na Conferncia das Naes Unidas para o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo (Sucia), em 1972.

O IBAMA, da forma que foi conhecido at o dia 26 de abril desse ano realmente apresenta uma srie de problemas de gesto. Entretanto, diversos desses problemas so heranas da forma em que o rgo foi criado, com a fuso de entidades com finalidades totalmente diversas. (MANIFESTO104 dos servidores do IBAMA/PR sobre a MP 366/2007, mai. 2007).

O rgo responsvel pelo trabalho poltico e de gesto era a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA) instituda pelo Decreto n. 73.030, de 30 de outubro de 1973, vinculada ao Ministrio do Interior. Outro rgo que tambm atuava na rea ambiental era o IBDF, criado por meio do Decreto-Lei n. 289, de 1967, foi responsvel pela administrao das Unidades j criadas, incluindo-se s suas atribuies a de criar novos parques nacionais, reservas biolgicas, florestas nacionais e os parques de caa, mantendo a gesto das florestas e da explorao madeireira. Alm dele, j havia sido criada a SUDEPE, por meio da Lei delegada n. 10, de 11 de outubro de 1962, que mantinha a gesto do ordenamento pesqueiro. Ambos vinculados ao Ministrio da Agricultura. Alm da SUDHEVEA, criada por meio da Lei n. 5.227, de 18 de janeiro de 1967, e cuja funo era viabilizar a produo da borracha ligada ao Ministrio da Indstria e Comrcio. Esses rgos foram decretados extintos na criao do IBAMA, vinculado ao Ministrio do Interior, sendo que a SEMA e a SUDEPE foram imediatamente extintas no ato de criao do novo rgo (Lei n. 7.735/89) e a

104

Disponvel em: < http://www. ibama.wordpress.com/>, acessado em: 02 de junho de 2009.

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SUDHEVEA, extinta pela Lei n. 7.732, de 14 de fevereiro de 1989, assim como IBDF extinto pela Lei n. 7.732, de 14 de fevereiro de 1989.105 Transferiram-se nesse ato todo o patrimnio, os recursos oramentrios,

extraoramentrios e financeiros, a competncia, as atribuies, o pessoal, inclusive inativos e pensionistas, os cargos, funes e empregos para o IBAMA. O novo rgo herdou, alm das atribuies dos rgos referidos, particularmente da SEMA, por curto perodo, a coordenao do SISNAMA e a manteve at 1990, ficando com a misso de formular, coordenar e executar a Poltica Nacional de Meio Ambiente. Quando o presidente Fernando Collor criou a

Secretaria do Meio Ambiente da Presidncia da Repblica, essa atribuio voltou para o primeiro escalo do governo, desse modo, quando a nova Secretaria retomou a funo ministerial de formulao das polticas, o IBAMA manteve a funo fiscalizadora. Segundo Maria Tereza Jorge Pdua106, quando se comeou a pensar na fuso desses rgos, existiam para cada um valores monetrios expressivos e, desse modo, na fuso o IBAMA tinha uma previso oramentria aprovada pelo Congresso Nacional de duzentos e cinquenta milhes de dlares; assim, aglutinar esses rgos foi colocar seus interesses em disputa para no perderem seus domnios oramentrios concentrados no novo rgo. Importa esclarecer que essa constituio do IBAMA, criado a partir da extino das quatro instituies referidas acima, tornou-se senso comum quando se fala na origem do rgo. Contudo, pode-se observar que esse recorte dado do ponto de vista legal e a partir das instncias em Braslia, onde o IBAMA est sediado, vai diferenciar-se da constituio das sedes regionais situadas em estados brasileiros a partir da estrutura de recursos humanos, das especificidades locais e da finalidade do rgo que se sobrepunha em termos de poltica pblica local e que foi extinto. Sobrepondo-se, portanto, a especificidade e a fora poltica e econmica que cada rgo anterior ao IBAMA exercia localmente, a partir da correlao de foras dentro do novo rgo, conforme poder ser observado para o caso do Par. dessas constituies locais que o IBAMA ter suas funes definidas localmente e do ponto de vista prtico. A fora dos rgos extintos se manter na forma de polticas do IBAMA por meio da ao de seus tcnicos em disputa pela sobreposio dos interesses de seus rgos de origem. Fortes presses ambientais marcaram as dcadas de 1970 e 1980, particularmente sobre os empreendimentos econmicos com alto impacto ambiental, destinados a integrar a Amaznia em uma lgica da racionalidade economicista do desenvolvimento a qualquer
105 106

Disponvel em: <www.jusbrasil.com.br/legislao>. Acesso em: 02 de janeiro de 2010. Em entrevista concedida e publicada na obra Saudade do Mato (URBAN, 1998).

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preo, que desconsiderou as consequncias socioambientais que lastrearam a misria social e a degradao ambiental. o caso da construo da rodovia BR-230, a Transamaznica, inaugurada em 1972, que corta o Brasil de forma transversal do estado da Paraba at o Amazonas, com 4.000 quilmetros de extenso e cuja construo gerou um saldo ambiental significativo at a presente data, com grande desmatamento imagens de satlite mostram as tpicas conformaes de desflorestao formadas pela estrada e suas vicinais em forma de espinha de peixe e o isolamento das populaes herdeiras da colonizao, alm dos srios conflitos sociais, dentre outros, que levaram a desastres socioambientais, se pensados do ponto de vista das noes do risco ambiental (BECK, 2001) e risco social. Outro exemplo foi o uso de agente laranja como desfolhante em Tucuru107, quando da construo da hidreltrica iniciada em 1976. Beck (2001) afirma que, se por um lado temos uma generalizao do risco ambiental nas posies de risco global, temos por outro posies de risco especfico embutido nas condies de classe que no se perderam e que demarcam situaes sociais diferenciadas e consequentemente formas diferenciadas de entender, reagir e conviver com os problemas ambientais locais. Segundo o prprio autor, o sistema fomenta uma atrao entre pobreza extrema e risco extremo. Na Amaznia, essa lgica da integrao da regio pelo vis utilitarista tem materializado no universo das populaes locais o risco social (BECK, 2001) configurado com a perda dos saberes, da tradio e da identidade desses grupos. A sobreposio da racionalidade utilitria e desenvolvimentista sobre a racionalidade das populaes locais tem gerado a degradao do ser local, impondo a apropriao dos recursos naturais em um nexo puramente econmico cujo fundamento do valor de troca analisado por Marx (1978) submete o valor de uso, que se apresenta na racionalidade prtica das populaes locais na sequncia inversa, ou seja, para essas populaes o valor de uso dos recursos naturais se sobrepe para atender as necessidades imediatas, visto que a produo para venda refere-se a um

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O uso de desfolhante foi uma fonte de controvrsia persistente em torno de Tu curu. A CAPEMI foi acusada de usar desfolhante secretamente para desmatar a floresta. A CAPEMI armazenou barris de desfolhante, segundo notcias para uso nesta tarefa [...] Em junho de 1983, uma inspeo da rea do acampamento feita por Eletronorte e consultores acompanhantes encontrou 373 barris, quase todos vazios (ELETRONORTE, 19 84, p. 3). Os consultores acrescentaram que no houve desertificao ou devastao de espcies vegetais ( Ibidem, p. 2). As herbicidas achadas [(3,5,6-tricloroporidinol)oxo] cido actico [Triclopir], cido 2,4-diclorofenoxoacetico [2,4-D] e pentaclorofenol [Tordon-101 BR]) estavam sendo injetadas nos troncos de castanheiras aneladas, em lugar de estarem sendo pulverizadas de avies. Um ms depois de inundar o reservatrio, a Eletronorte contratou consultores adicionais para amostrar e analisar gua de cima do local onde tinha sido o acampamento da CAPEMI. Nenhum herbicida foi achado na gua analisada. (In: FEARNSIDE, 2002).

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excedente do pescado ou da produo extrativista enquanto valor de troca que possibilita aos moradores locais o acesso a outros valores de uso de primeira necessidade. Conforme concluem Maus e Mota Maus (1999) em sua anlise da comunidade de Itapu no municpio de Vigia, podemos compreender que a atividade produtiva dessas populaes possui certa independncia do macrossistema e uma coerncia distinta da lgica racional de mercado. Contudo, no deixando de interagir com ele e criando seus mecanismos de defesa, digamos assim, preservando algumas peculiaridades que lhe permitem essa independncia em um processo de sntese entre a tradio local e a mudana, e que por outro lado, tornam-se dependentes quando as atividades tradicionais so submetidas a novas formas de trabalho mais voltadas para o trabalho assalariado ou trabalho urbano informal. A essas manifestaes a que esto expostos compreende-se como risco social em um nexo causal imediato mudana dos modos de uso e relao com os recursos da natureza e aos riscos ambientais provenientes dos desmandos no uso desses recursos, conforme exemplificaes acima. Alm dessas questes, outras se somam: o ndice de desmatamento alarmante que em 1988 chegou a 21.050 km, segundo dados do IBAMA. A caa e pesca predatrias sem controle e crescentes conflitos envolvendo as populaes que vivem de atividades tradicionais, como os seringueiros, que tiveram como pice a morte de vrias lideranas. Com tantos incidentes, houve muita presso interna e externa. Isso fez surgir no governo a urgncia de mapear os rgos federais com atuao ambiental, com o intuito de fortalecer o processo de gesto ambiental integrada. Foi criado, ento, em 1988, pelo presidente Jos Sarney, o Programa Nossa Natureza, que tinha como um dos objetivos estruturar o sistema de proteo ambiental. Aps discusses e debates, foi ento institudo o IBAMA, com a funo de ser o grande executor da poltica ambiental e de gerir de forma integrada a questo ambiental no pas. Passando a responder em uma lgica da racionalidade ecolgica, com vistas institucionalmente minimizar os danos ambientais e por esse vis responder s questes sociais que se aglutinavam no pas. Com essa misso, o IBAMA foi institudo por meio da Lei n. 7.735, de 22 de fevereiro de 1989, composto pelos seguintes unidades: Diretoria de Controle e Fiscalizao; Diretoria de Recursos Naturais Renovveis; Diretoria de Ecossistemas; Diretoria de Incentivo Pesquisa e Divulgao e; Diretoria de Administrao e Finanas. Assumia como poltica institucional por meio do texto original (sem as diversas alteraes posteriores) da lei:

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Art. 2 - criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis, entidade autrquica de regime especial, dotada de personalidade jurdica de direito pblico, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministrio do Interior com a finalidade de formular, coordenar, executar e fazer executar a poltica nacional do meio ambiente e da preservao, conservao e uso racional, fiscalizao, controle e fomento dos recursos naturais renovveis. (grifo nosso).

De acordo com entrevista de Otvio Albuquerque108, socilogo do IBAMA, a constituio do rgo em nvel estadual abrange basicamente dois rgos SUDEPE e IBDF, em virtude da natureza de suas atribuies e a estrutura desses rgos no estado; o IBDF principalmente pela questo madeireira e a SUDEPE em virtude da pesca, os dois grandes valores comerciais da regio. H de se fazer lembrar que o papel da SUDEPE sempre esteve ligado aos incentivos pesca industrial, deixando a pesca artesanal rf de polticas pblicas dirigidas, fato j observado por Leito (1995) e ressaltado por Diegues A pesca artesanal, entre 1967/1977, havia recebido somente 15% do equivalente aos fundos investidos na indstria pesqueira por meio de incentivos fiscais (1983, p. 137). Segundo o mesmo tcnico, dentro da prpria estrutura nacional do IBAMA, o rgo mais forte e que se sobreps foi o IBDF; e o rgo secundrio, a SUDEPE. Os outros rgos, ou possuam sede apenas em Braslia, como o caso da SEMA, ou possuam sedes regionais setorizadas como a SUDHEVEA. Em 1992, o IBAMA instituiu o CNPT por meio da Portaria n. 22, mantendo at 1995 a nomenclatura de Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populaes Tradicionais, alterado para Centro Nacional para o Desenvolvimento Sustentado das Populaes Tradicionais e a partir de 2004, Centro Nacional de Populaes Tradicionais e Desenvolvimento Sustentvel. Apesar da recorrente alterao no substancial da denominao, o CNPT foi criado com a finalidade de elaborar e implementar aes demandadas pelas populaes tradicionais, por meio de suas representaes ou de rgos governamentais da rea ou ainda por meio de ONGs. Desse modo, o CNPT foi o responsvel pela poltica de implementao das Reservas Extrativistas e o seu corpo tcnico passou a integrar o novo rgo constitudo em 2007, o ICMBio, no antes de diversas polmicas. Importante salientar que a poltica de Unidades de Conservao que o novo rgo herdou do IBAMA apresentava-se com um grande nmero de Unidades criadas, mas que em sua grande maioria no possuam Plano de Manejo e no caso das RESEXs, nem mesmo o contrato de concesso do direito real de uso foi regularizado, ao somente iniciada em 2010,
108

Otvio Albuquerque socilogo, servidor oriundo da SUDEPE, atualmente lotado no IBAMA/Belm.

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e desse modo a questo fundiria uma constante. O IBAMA mais reconhecido pela sua ao fiscalizadora e que atinge, no caso das reas delimitadas como Reservas extrativistas, muito mais as populaes locais, visto que so as que esto sempre presentes nesses espaos, ao contrrio, por exemplo, da pesca industrial que adentra clandestinamente nessas Reservas. Conforme pode ser observado no noticirio regional:

O problema que a costa do Nordeste j d sinais de esgotamento na produo de lagosta, forando as embarcaes a buscarem a rea paraense, aproveitando-se da falta de fiscalizao. Alm da investida dos nordestinos, a costa paraense ainda fica merc de embarcaes estrangeiras, principalmente das Guianas, sem que o IBAMA tome qualquer medida punitiva. (DIRIO DO PAR, 12 jun. 2005).

De acordo com a explanao de pescadores da RESEX Ara-Peroba e da APA da Costa do Urumaj (ROSA, 2009, 2010), o papel desempenhado pelo IBAMA tem sido mais intenso ou mais sentido em relao fiscalizao com relao a eles usurios de UCs, conforme se pode observar:

preciso ter mais explicao para o pessoal. Teve uma reunio que eu ouvi o pessoal do IBAMA falando desse negcio de pesca proibida, eles disseram que iam proibir o curral, que curral tem que ser malhudo. Por uma parte eu concordo com eles, mas na poca de peixe, seja qual for o curral ele estraga peixe. Olha, esse negcio de pesca proibida, rede apoitada , zangaria109, ns daqui [Nova Olinda] no temos zangaria, mas que vem l do Urumaj [sede municipal], ns aqui no temos rede de tapagem de uricica, de matar uriciquinha, mas l no Ara [outra vila] tem, o pessoal vem pescar aqui. Eles [IBAMA] estavam com machado e motosserra pra derrubar os currais. (informao verbal) 110.

Observa-se que a atuao do IBAMA em relao criao das Unidades de Conservao, em particular das RESEXs no estado do Par, restringia-se ao cumprimento das obrigaes institucionais, respeitando as normatizaes e sem um cuidado mais atento aos aspectos sociais. Tanto que essas unidades no possuem, at a presente data, elementos constitutivos da prpria estrutura das UCs e imprescindveis para o fortalecimento dos modos de ser e fazer locais, como regularizao da concesso de direito real de uso e Plano de Manejo, muitas das quais nem mesmo tm seus conselhos deliberativos funcionando e, at o ano de 2007, quando da criao do ICMBio, seus servidores nessas reas eram em nmero

109

Zangaria uma modalidade de pesca considerada predatria em virtude do tamanho da rede, do tamanho da malha e da forma como coloca no curso dgua. Sobre essa tcnica ler Rosa (2007). 110 Relato de Seu Nonato, ex-pescador de zangaria nas adjacncias da RESEX Ara-Peroba, em junho de 2006.

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insignificante e morando em lugares distantes das sedes das Reservas; ou, quando muito, tinham os chefes nomeados. Consideramos significativo esse cenrio em termos comparativos, para perceber adiante como se estrutura o rgo responsvel por essas unidades a partir de 2007. A lgica que se sedimentou nesse processo de criao de UCs, principalmente na Amaznia, foi quantitativa, essas unidades foram demarcadas e institudas e, por vezes, fiscalizadas. O trabalho tcnico se deu no processo que antecedeu as criaes, fazendo reconhecimento das reas, contato com as populaes para convencimento e criando condies favorveis para a instituio destas, em particular no caso das RESEXs Marinhas, por meio do incentivo criao de associaes das populaes locais, de modo a que estas se mantivessem organizadas de acordo com o que estabelecido institucionalmente e introduzindo junto s populaes os instrumentais necessrios solicitao de criao. Esse foi um processo consequente da presena dos tcnicos do IBAMA, que atuando na fiscalizao da pesca, acaloravam perspectivas e possibilidades percebidas entre as populaes com mecanismos de proteo e apoio institucional motivando-se a estabelecer os primeiros passos em torno do uso dos recursos naturais nos moldes institucionais, em alguns casos em toda a regio bragantina e nas vilas da RESEX Ara-Peroba por meio dos acordos de pesca com vistas ao controle da pesca predatria 111. Torna-se significativo esclarecer que, por dentro da sua estrutura, tivessem servidores que passaram a fazer da causa ambiental o valor ltimo de suas aes, conforme poder ser observado na ao desses servidores do IBAMA em greve quando da ciso do rgo para criao do ICMBio. Segundo informaes da Associao dos Servidores do IBAMA (ASSIBAMA), essa deliberao do governo Lula foi vista pela categoria dos servidores como uma forma que o governo encontrou de impor seus projetos em detrimento aos interesses do meio ambiente, ou seja, na perspectiva da imposio por agentes sociais que respondem pela cena poltica nacional de interesses mais imediatos em detrimento da poltica ambiental stricto sensu.

importante frisar que o governo se volta contra ns, quando estamos prezando pela qualidade do trabalho e no por questes salariais como se
111

A expresso pesca predatria encontra-se nos documentos emitidos com a Lei Ambiental do Estado do Par (Lei n. 5887 de maio de 1995), seo III, artigo 117 e Lei de Pesca do Estado do Par (Lei n. 6713 de janeiro de 2005), bem como nos Acordos de Pesca referidos. O termo refere-se aos tipos de pesca legalmente determinados em virtude dos apetrechos, substncias e mtodos utilizados, das reas de pesca e das pocas de reproduo, quantidade e tamanho do pescado, distanciamento legal alm daquelas que necessitam de autorizao ou licena de rgo competente, nos casos que couber, e espcies decretadas para serem preservadas.

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imagina. [...] nossa paralisao diz respeito apenas qualidade e fortalecimento do IBAMA (informao verbal)112.

De acordo com o conceito de dominao em Weber (2000), a dominao de carter racional sustenta-se na legitimidade das ordens institudas e do direito de mando de quem ou de onde elas emanam. No caso conflitante entre os funcionrios do IBAMA e as ordens que emanam da estrutura governamental, esta se ampara no que o autor expe c omo um certo mnimo de vontade de obedecer, isto de interesse (externo ou interno) na obedincia (p. 139) como parte de toda relao autntica de dominao. De fato, a instituio do IBAMA trouxe em seu bojo a velha frmula da poltica ambiental brasileira: substituir desgastados rgos por meio da injeo de investimentos em um novo, que surge na cena poltica como uma renovao das expectativas, mas antes de tudo atendendo a uma lgica da racionalidade utilitria com fins econmicos. H ainda de se observar o atrelamento da poltica instituda por esse rgo aos interesses da poltica econmica brasileira que, a despeito da questo ambiental, manteve em paralelo uma lgica amenizadora no que se refere ao meio ambiente e lgica econmica de explorao dos recursos naturais, dando a ela inclusive legalidade, j que emanava de um rgo ambiental. A diviso do rgo no ano de 2007 volta a repetir a velha frmula politicamente correta, qual seja, atendia a apelos de ONGs internacionais e um movimento em prol das reas protegidas e ao mesmo tempo enfraquecia o rgo que, contrariamente aos interesses governamentais, por meio de sua autonomia tcnica, reacendia uma racionalidade valorativa ambiental em detrimento desses interesses econmicos do governo.

5.2.2.2 O ICMBio e a Poltica de Unidades de Conservao

A diviso do IBAMA ocorreu no governo Lula, sob o Ministrio do Meio Ambiente de Marina Silva, por meio da medida provisria 366/2007 que se converteu na Lei n. 11.516, de 28 de agosto de 2007, separando as funes de fiscalizao, monitoramento, licenciamento ambiental, controle de qualidade ambiental, autorizao de uso dos recursos naturais a cargo do IBAMA e da execuo da poltica nacional de Unidades de Conservao federais para o ICMBio. Segundo a Ministra Marina Silva, a criao do ICMBio traria prioridade gesto

112

Milton Isidoro, servidor do IBAMA, em depoimento no jornal da Associao dos Servidores do IBAMA em 15 de maio de 2007.

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das UCs federais, melhorando as condies de trabalho e recursos afetos s unidades (MANIFESTO dos Chefes das UCs da Amaznia julho/2008). A situao que levou criao do Instituto Chico Mendes foi, em grande medida, um mecanismo para reduzir a insero do IBAMA em questes de carter econmico e que redundavam em acertos polticos, como a questo do licenciamento madeireiro. Se por um lado, acordava-se na liberao dos licenciamentos de outro, o governo brasileiro criava um rgo gestor das reas protegidas, para dentro dessa lgica tornar pblica a preocupao poltica com a questo ambiental, mais especificamente por meio das Unidades de Conservao, e ainda responder s presses de ONGs responsveis por muitas das parcerias econmicas para projetos nessas reas, canalizando desse modo novos arranjos econmicos. De acordo com Otvio Albuquerque, socilogo e tcnico do IBAMA/Belm:

A minha viso parcial, porque uma viso de servidor do IBAMA. Quando o IBAMA foi criado, a gente viu a fora da unio e no da diviso e o IBAMA hoje um nome de referncia. A o seguinte, a questo da diviso, a informao que ns temos que uma questo que envolve as ONGs, que era quem dava respaldo poltico, a a nossa verso, a que ns temos o seguinte, que na verdade a ideia de criar um novo Instituto era tirar [...] enfraqueceria o IBAMA que tava muito forte; o IBAMA era um rgo muito poderoso, ento a estratgia de diviso de um lado enfraquece esse rgo poderoso que pode impedir os licenciamentos que eu [governo] quero, que pode no impedir, mas criar dificuldades, criar embaraos; mas, por outro lado, visava atender os interesses de ONGs, que eram ONGs nacionais e internacionais que davam respaldo. No foi toa que a primeira ministra anunciada pelo Lula foi a Marina (informao verbal) 113.

O descontentamento institucional dentro do IBAMA se refletiu em aes que resultaram, a exemplo, na greve que iniciou em 14 de maio de 2007, conforme indica a petio apresentada ao Congresso Nacional, que expressa a indignao diante da compreenso dos tcnicos acerca dos motivos que levam o governo ao esfacelamento do IBAMA, no Mandado de Segurana contra a tramitao irregular da Medida Provisria n. 366/2007 que criou o Instituto Chico Mendes e na Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4029, na qual a Associao Nacional dos Servidores do IBAMA (ASIBAMA) questiona no Supremo Tribunal Federal (STF) a Lei 11.516/2007, em que foi convertida a Medida Provisria, que criou o ICMBio. A criao do Instituto Chico Mendes para alm da conservao da biodiversidade compreendida como um mecanismo para enfraquecer o IBAMA em virtude de interesses de

113

Entrevista concedida por Otvio Albuquerque em fevereiro de 2011.

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grandes empresrios e em prol de uma reconsiderao dos critrios do licenciamento ambiental com vistas a favorecer o desenvolvimento econmico no sustentvel programado pelo governo federal. Conforme expressa Fabiano Gumier, atual coordenador regional do ICMBio em Belm:

Imprime-se ao nosso pas um ritmo frentico e irresponsvel de crescimento a todo custo sob a bandeira do PAC [Plano de Acelerao do Crescimento]. E nesse contexto que pretendem esfacelar o IBAMA, dividi-lo e enfraquec-lo. Restar um IBAMA pr-licenciamento, que autoriza, que aprova, que licencia tudo sem incomodar os grandes empresrios e interesses polticos que sempre colocam as questes ambientais e sociais em ltimo plano. (CARTA aberta sobre a diviso do IBAMA, 2007)114.

As questes socioambientais que se colocam na ordem do dia quando da criao do IBAMA se revestem de nova roupagem e encontram eco na sobreposio dos interesses econmicos dentro da estrutura governamental quando da criao do ICMBio. O mote ambiental mais uma vez usado a reboque de interesses econmicos em uma perspectiva atual de mitigar os problemas ambientais com solues que respondam aos interesses econmicos e polticos. Criado em 28 de agosto de 2007 por meio da Lei n.o 11.516, oriundo dessa ciso com o IBAMA, ligado ao MMA e tornando-se desde ento, em substituio ao CNPT/IBAMA, o rgo responsvel pelas aes da poltica de Unidades de Conservao da esfera federal, por meio da DIUSP, o ICMBio enfrentou forte resistncia dos servidores do IBAMA para sua estruturao. O ICMBio foi institudo com a misso de executar a poltica nacional de Unidades de Conservao, responsabilizando-se pela administrao das unidades federais e, dentro desse bojo, executar as polticas de uso sustentvel dos recursos naturais renovveis e de apoio ao extrativismo e s populaes locais nas Unidades de Conservao federais de uso sustentvel (Lei n.o 11.516/07). A DIUSP desse Instituto responsvel pela gesto das RESEXs e pela elaborao dos Planos de Manejo participativos. Aps trs anos de sua instituio o ICMBio recebe severas crticas, inclusive de seu corpo tcnico, em grande parte remanejado do IBAMA, que alega falta de infraestrutura, isolamento, impossibilidade de operar recursos, e total ausncia de contato com o rgo em Braslia.

114

Fabiano Gumier, Analista Ambiental do IBAMA, atual Coordenador Regional do ICMBio em Belm em Carta Aberta sobre a diviso do IBAMA, em 2007.

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Dentre os muitos problemas apresentados, um ecoa com maior preocupao: a reduo dos recursos que davam sustentao financeira manuteno de vrias Unidades de Conservao federais no bioma amaznico. O programa reas Protegidas da Amaznia (ARPA), criado em 2002 a partir de doaes internacionais principalmente de fundos oriundos do Fundo para o Meio Ambiente Global (GEF), Banco Mundial, Entwicklungsbank (KFW - Banco Alemo de Desenvolvimento), Deutsche Gesellschaft fr Technische

Zusammenarbeit (GTZ - Agncia de Cooperao da Alemanha), WWF-Brasil e do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBio), reduziu significativamente os recursos em 2008, em virtude de problemas apresentados no oramento segundo informaes de analistas ambientais do ICMBio e gestores de Reservas no estado do Amazonas conforme relata um manifesto dos servidores do ICMBio no estado do Amazonas Presidncia da Repblica de julho de 2008. A avaliao do FUNBio, organizao responsvel pelas finanas do ARPA, indicava poca que a queda do oramento previsto, de 50 milhes para 11 milhes de reais, se deu em virtude do fim da primeira fase do Programa. Segundo Carlos Minc, Ministro do Meio Ambiente que substituiu Marina Silva, em coletiva imprensa datada de julho de 2008, algo no vai bem no reino das Unidades de Conservao. De acordo com a compreenso de servidores do IBAMA e ICMBio, a questo de prioridade, gastou-se muito mais para se criar uma identidade institucional com uma infraestrutura colossal em Braslia do que com as reas objeto da poltica do novo rgo, conforme se pode observar:

A ausncia de recursos uma questo de prioridade. Olha, se gastou muito mais dinheiro com o aluguel de um prdio luxuoso do ICMBio em Braslia, do Lus Estevo, do que com oramento das reas de proteo ambiental, ento se tem prioridades (informao verbal) 115. Enquanto a maioria das UCs sequer possui sede prpria, servios de vigilncia patrimonial e limpeza, a direo do ICMBio realiza uma licitao milionria para alugar um prdio para sua sede em Braslia, contra a vontade e convenincia de todos os funcionrios (MANIFESTO dos chefes de UCs no Estado do Amazonas, jul. 2008)

O fato que do total de parques nacionais, Reservas Extrativistas, refgios de vida silvestre e outras reas protegidas federais para o ano de 2008, 58% no tinham sequer um

115

Entrevista concedida por Otvio Albuquerque em fevereiro de 2011.

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fiscal e 28% no possuam nenhum servidor. Alm disso, s 24% j tinham Planos de Manejo em vias de elaborao.116 No ano de 2009, o ICMBio iniciou o processo de elaborao da fase I dos Planos de Manejo em vrias Unidades de Conservao totalizando aproximadamente 65 unidades a serem beneficiadas. Dentre as quais as nove 117 RESEXs Marinhas situadas no estado do Par, com apoio do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) por meio de uma doao do governo da Noruega. Conforme o Acordo de Cooperao com o Governo Brasileiro (BRA/08/002) que objetiva apoiar o Projeto Gesto de Reservas Ext rativistas Federais na Amaznia Brasileira. (Termo de Referncia n. 08 ICMBio). Considerada a principal ao desse rgo, a realizao da fase I do PM das RESEXs, por diversos motivos foi encerrada a ausncia de tcnicos em nmero suficiente para deslocamento e estada nas reas das UCs, a falta de investimento na qualificao dos tcnicos, as dificuldades tcnicas para atuar junto s populaes locais, incluindo a as dificuldades referentes aos consultores, em geral de outras regies do pas e sem um comprometimento maior com a questo, as dificuldades internas desses consultores com os trmites do rgo e a falta de propriedade ou de consenso acerca do que , digamos, mais significativo para a elaborao do PM (entre os tcnicos do ICMBio e consultores), a dificuldade de materializar a execuo do PM, e isso est ligado ao fato de que existem orientaes produzidas para esse fim (Roteiro Metodolgico, Instrues Normativas, Termos de Referncia), o que pode ser observado em entrevista do consultor da Reserva de Soure, que pediu seu afastamento durante o processo de execuo da fase I:

Ainda em relao anlise do produto dois, que foi o contexto da RESEX, notou-se claramente que os diferentes pareceristas de Braslia tendiam a fazer observaes relacionadas sua rea de especialidade especfica. Assim, o documento recebia comentrios muito direcionados determinada rea de conhecimento de um determinado parecerista, que exigia um aprofundamento no condizente ao contexto mnimo que foi o exigido no termo de referncia (informao verbal) 118.

Observa-se que a poltica pblica ambiental brasileira, ao repetir com a criao do ICMBio aquela velha frmula politicamente correta, tem se mostrado ineficiente visto que a criao de novos rgos e a diviso de tarefas sob a viso institucional de uma natureza

116 117

118

disponvel em: <http://www.oeco.com.br>. Acesso em: 06 fev. 2011. A RESEX de Maracan est com seu PM sendo elaborado com verba do Programa de rea Protegidas (ARPA) do MMA. Entrevista concedida por Rogrio Puerta, consultor do ICMBio, em dezembro de 2009.

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compartimentada tem se mostrado ao longo da histria um mecanismo que no agrega viabilidade em torno dos problemas ambientais que se avolumam. Fato que comprova essa ineficcia a partir da separao das funes entre o IBAMA e o ICMBio so as manifestaes de descontentamento pela equipe tcnica de todo o Brasil. A prpria criao do novo rgo em um processo feito nos bastidores da poltica nacional, cuja estruturao foi assumida pela consultoria Publix, causou como reao o perodo de greve e de constantes reclamaes pela ausncia de transparncia. A competio instalada entre os rgos em questo se acirrou em torno dos recursos humanos e econmicos, aumentando a instabilidade da poltica ambiental no Brasil.

A criao do Instituto Chico Mendes no foi precedida de qualquer tipo de discusso. O que mais chocante, nem mesmo dentro dos rgos ambientais se deu a anlise desse projeto. Dirigentes recm-exonerados do Ministrio, com coragem e de forma altiva, no hesitam em reconhecer que a idia no constava da pauta de discusses da pasta. Nasceu arbitrria e viciada, e da mesma forma tenta agora se impor foradamente aos servidores pblicos ambientais e sociedade brasileira. (CARTA aberta dos servidores do IBAMA Ministra Marina Silva, mai. 2007).

No pacote de novas medidas com vistas a solucionar tais problemticas que se apresentam no reino das Unidades de Conservao, onde as internalidades mais gritantes para a resoluo so intocveis, coube ao ministro Carlos Minc anunciar as novas medidas para conteno da crise da poltica ambiental instalada no pas: concurso imediato para contratao de fiscais, analistas ambientais e brigadistas para o IBAMA e ICMBio, repasse de verbas dos recursos de compensao ambiental, melhores condies de infraestrutura, como combustvel e veculos, em um cenrio em que as regionais, em especial as localizadas no Par, encontram-se atuando em prdios cedidos ou limitados a cesses de espaos na infraestrutura do IBAMA. No Par, O ICMBio constitui-se de duas coordenaes regionais, a CR 4 Belm e a CR 3 Itaituba. Sendo que a de Belm funciona em uma sala cedida pelo Sistema de Proteo da Amaznia (SIPAM), em Bragana funciona em uma sala cedida pelo Frum, em Curu funciona em uma casa cedida pela prefeitura, em Breves e Soure funcionam no espao do IBAMA. Quanto CR 3, a situao no muda, em Itaituba funciona com uma sala alugada e uma parte no mesmo espao fsico do IBAMA, em Santarm so salas cedidas pelo IBAMA, com constantes disputas pelo espao, em Trombetas funciona em sala cedida pela minerao Rio do Norte, em Altamira funciona junto ao IBAMA.

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H de se perguntar que identidade institucional se pode agregar nas regionais que at recentemente tinham que pedir ajuda ao IBAMA e confrontar-se com as mazelas e a resistncia que se manifestava na subjetividade de cada servidor em virtude da ciso do rgo. Em Soure, presenciamos as dificuldades de infraestrutura do novo rgo e o boicote dos servidores do IBAMA, em Bragana se quer a poca existia o rgo estruturado por meio da regional que atenderia alm do municpio de Bragana, o municpio de Augusto Correa, ao qual pertence o territrio da RESEX Ara-Peroba. Como cumprir com tarefas funcionais bsicas na ausncia total de recursos materiais, sem contar os parcos recursos humanos, em parte resolvidos com a chegada de novos concursados, como ocorreu nas RESEXs Ara-Peroba e Soure? Mas que agrega questes qualitativas da ausncia de capacitao via rgo desses recursos humanos, colocada a inexperincia dos novos servidores e a falta de conhecimento das questes regionais e dos contextos sociais das populaes locais, visto que na sua totalidade os novos servidores so estrangeiros por aqui, j que so oriundos das regies sul e sudeste do pas, portadores de uma bagagem acadmica e cultural diversa do contexto amaznico. Outra questo a ser pensada, a partir dessa ausncia enquanto identificao do rgo so as dificuldades de acesso s RESEXs Marinhas na relao de usurios e tcnicos mutuamente. A centralizao desses escritrios das regionais em reas distantes geograficamente, considerando as distncias e dificuldades de locomoo e comunicao dado o fator amaznico das chuvas e rios, uma questo a ser considerada. O que se observa, no entanto, que, a exemplo, no caso da RESEX Marinha Ara-Peroba, o servidor chefe est instalado na rea urbana do municpio de Bragana que experincia poder ser vivenciada a to distante contato com a rea da Reserva e de seus usurios? No caso da RESEX Marinha de Soure, os tcnicos lotados encontram-se dividindo espao com o IBAMA na rea do distrito sede, contudo, ali a proximidade se faz em virtude tambm da presena da ASSUREMAS nesse distrito, o que gera um deslocamento dos associados at essas instituies; por outro lado a distncia espacial para as vilas bem menor, podendo ser percorrida de carro, moto, bicicleta ou casco 119 pela via dos rios e igaraps. A racionalidade utilitria marcada por arranjos polticos e econmicos com vistas a captar recursos e atender as presses de organismos internacionais parceiros da causa ambiental , em grande medida, surpreendida pelos arroubos e ideais ambientalistas de seu

119

Pequena embarcao a remo muito usada pelas populaes e pescadores locais.

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corpo tcnico, o que mostra o choque e o enfrentamento ocorridos no processo de esfacelamento do IBAMA e criao do ICMBio e posteriormente pelas diversas divulgaes das reais condies de trabalho dos servidores e da situao de abandono por que passam as Unidades de Conservao federais. Contudo, muito pouco se v nos documentos e falas a respeito das condies de abandono que sofrem as populaes submetidas aos novos arranjos territoriais com a decretao dessas unidades e com as dificuldades de organizao da poltica pblica, das quais so os principais beneficirios. Considerando a exposio dos pormenores que se apresentam, enquanto conflitos internos no processo de separao dos rgos e que manifestam para ns o desencontro de interesses entre os servidores e a estrutura governamental, observa-se que a criao do novo rgo dentro da mesma estrutura da racionalidade formal com vistas a atender prioritariamente os interesses poltico-econmicos conflitua com perspectivas subjetivas dos agentes institucionais, por vezes presentes nas reivindicaes que priorizam o dever ser funcional conduzido por uma racionalidade valorativa ambiental por si mesma, em uma postura reivindicativa de um comportamento tico-profissional.

5.2.2.3 O ethos institucional o fazer de tcnicos, consultores e experts

A racionalidade formal concerne s estruturas de dominao (legais, econmicas, cientficas e a forma burocrtica). Deriva da racionalizao instrumental com referncia a regras, leis, regulamentos. referida s normas abstratas, sem conexo com pessoas, a regras universalistas, no sentido em que no considera os interesses e qualidades individuais. O caso tpico da racionalizao formal o da observncia disciplinada s convenes implicada a dominao burocrtica para as organizaes. (THIRY-CHERQUES, 2009, p. 904).

A partir de nossas observaes no que se refere atuao dos rgos no contexto em anlise, podemos dizer que a racionalidade tecnocrtica-funcional que se apresenta na prtica do IBAMA e ICMBio manifesta-se por uma forte influncia do que Weber denominou racionalidade formal, por meio do uso do clculo e da regra jurdica, sustentando suas aes sob essas bases a fim do cumprimento do dever funcional. Seguindo o padro de organizao do trabalho tanto no IBAMA quanto no ICMBio no que se refere s UCs, por meio dos norteadores da ao institucional Roteiros Metodolgicos, Instrues Normativas e as legislaes pertinentes iremos proceder anlise da atuao de tcnicos, consultores e experts no contexto da criao das RESEXs e na

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efetivao da fase I de elaborao do PM, lembrando que cronologicamente a criao das RESEXs Marinhas est relacionada atuao do IBAMA e elaborao da fase I do PM ao ICMBio, em virtude da referida diviso das tarefas entre os rgos e da criao do ICMBio em 2007. Cabe esclarecer antes de adentrarmos mais objetivamente no cerne desse item, quando trataremos da especificidade do fazer dos profissionais que atuam na efetivao da poltica de Unidades de Conservao a quem estamos denominando tcnicos, consultores e experts. Consideramos assim, para efeito de nossa anlise, tcnicos aqueles servidores de carreira efetivos e aqueles contratados para o trabalho interno do rgo e para atuao junto gesto das UCs. Os Consultores so aqueles contratados por tempo determinado a fim de dirigir e executar os trabalhos especficos referentes criao da Unidade e ou da elaborao de seu Plano de Manejo, ou outro trabalho que couber. Esses consultores devero, segundo a normatizao, ser selecionados por edital por meio de um Termo de Referncia que ir nortear seu trabalho de consultoria. De acordo com orientao do ICMBio, o consultor o responsvel pelo levantamento bibliogrfico e anlise dos dados secundrios conhecimento cientfico construdo nas mais diversas instituies de ensino e pesquisa sistematizao das informaes em relatrios temticos e a produo do relatrio final. Dever ainda identificar lacunas do conhecimento acerca dos contextos locais, as necessidades de aprofundamento de estudos considerados significativos para o planejamento da unidade de conservao. Os diagnsticos ou laudos a serem produzidos por experts contratados temporariamente, consistem na sistematizao de informaes ambientais, socioeconmicas e histrico-culturais do lugar a ser decretado Unidade de Conservao ou para elaborao do PM e sua regio, de modo a se obter um produto integrado sobre o meio fsico, bitico e socioeconmico que subsidie o trabalho a ser realizado. Cabe ao consultor deliberar acerca da necessidade desses estudos. criao das RESEXs, de acordo com a exigncia legal, precede a elaborao de estudos especficos laudos e diagnsticos a serem efetivados a cargo do rgo executor. Desse modo, os laudos e diagnsticos para a criao de ambas as unidades foram resultantes do contato direto do chefe do CNPT/IBAMA de Belm, poca Otvio Albuquerque, como ser observado a seguir. E, no processo da fase I do PM iniciado no ano de 2009 , ficou a critrio do consultor, por determinao do termo de referncia, que a partir do levantamento de dados secundrios definiria que reas do conhecimento iriam ser acessadas em termos de aprimoramento de informaes a fim de subsidiar as aes institucionais.

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Diante do cenrio que se estruturou no processo de criao das RESEXs Marinhas de Soure e Ara-Peroba, observa-se a predominncia de um fazer tecnocrtico muito mais estruturado sob a legalidade das aes do que um fazer dialogal com a esfera do conhecimento cientfico como base de sustentao. A contribuio desses experts nesse contexto se restringe aos diagnsticos e anlises preliminares encomendados pelo rgo gestor na fase de criao, alm da compilao de dados tericos secundrios, a fim do cumprimento como uma etapa necessria. No houve compartilhamento do processo de elaborao do Plano de Utilizao, efetivado sem a participao de experts, estudiosos dos aspectos geogrfico, biolgico ou scio-economico nas localidades onde as UCs foram decretadas, e no caso dos Planos de Manejo tambm se restringiu a deliberao pelo consultor responsvel pelo Plano de Manejo da Reserva, acerca da necessidade ou no dos estudos ou laudos. Em termos de contribuio, os laudos e diagnsticos realizados na inteno da criao dessas RESEXs foram instrumentos tcnicos para cumprir a etapa legal necessria decretao da unidade. Esses laudos foram solicitados pelo CNPT/IBAMA-Belm a profissionais que, apesar da vinculao com instituies de ensino e pesquisa pblicas, no o realizaram por essas instituies de origem, mas como um trabalho paralelo. No caso da Reserva de Soure, o laudo biolgico dos manguezais do municpio de Soure, coordenado por uma engenheira de pesca da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) que atuava poca pelo Centro de Pesquisa e Extenso Pesqueira do Norte do Brasil CPNOR/IBAMA, funcionando no campus da Faculdade de Cincias Agrrias do Par (FCAP), hoje UFRA ateve-se a uma anlise limitada se pensada a partir dos limites geogrficos demarcatrios da Reserva. O estudo realizado na vila do Caju-una e nos bairros da Matinha, Pacoval e Tucumanduba no respondiam efetivamente pelas reas de uso dos recursos naturais, e sim a reas de moradia da populao, detendo-se mais aplicao de questionrios junto populao do que a um levantamento que sustentasse de sua parte o argumento da necessidade de conservao desses recursos e as formas de manejo empreendidas. Trabalho esse realizado dentro de um prazo limite de trs meses maio, junho e julho de 1998. As limitaes visveis no relatrio so assim confirmadas no prprio texto, conforme segue: com relao ao caranguejo -u, foram realizadas amostras aleatrias para se ter uma indicao de sua incidncia; e em outro trecho afirma: necessrio uma [sic] pesquisa constante no local, para que os aspectos bioecolgicos sejam estudados de maneira que possam dar respostas seguras ao comportamento animal durante todos os meses do ano.

No Reino das Unidades de Conservao... 266

Devido ao pequeno perodo em que foi realizado o estudo fica invivel qualquer concluso (Laudo biolgico dos manguezais de Soure, 1998, p. 09). Quanto ao diagnstico socioeconmico, ateve-se ao contato com os caranguejeiros, tendo ficado fora desse estudo uma diversidade de outros agentes sociais que viviam e vivem do extrativismo na rea e que mais tarde passariam categoria de usurios da RESEX. O trabalho foi coordenado por Maria Justina dos Santos servidora vinculada ao campus da UFPA em Soure e por Joo Carmelino Ramires, poca aluno de Cincias Sociais do campus e integrante da ONG SOS Maraj, que participou de forma efetiva no processo de criao da RESEX, a respeito do diagnstico refere-se:

Ns fizemos um questionrio e atuamos com os caranguejeiros, era um laudo socioeconmico, questes do local onde trabalhavam, renda familiar, condies de trabalho, j pra colocar a questo da RESEX em prtica mesmo, e depois veio a questo da sensibilizao das comunidades, nos reunamos por bairro em escolas, em cada comunidade rural, j para reunir elementos para a criao (informao verbal)120.

Importa salientar que, conforme observamos em outros captulos, esses estudos deixaram de lado vrios fatores significativos para a compreenso da organizao sociocultural local que precisavam ser compreendidos no sentido de agregar as percepes e os valores locais acerca do uso dos recursos naturais. Tambm importa observar que esses estudos ficando a critrio do prprio IBAMA, no tinham uma relao mais direta com uma produo cientfica acadmica, voltando-se apenas para atender os preceitos legais do processo de criao das Unidades. J o laudo socioeconmico realizado por pesquisadores a servio do CNPT/IBAMA para implantao da RESEX Ara-Peroba, foi elaborado em conjunto com o laudo das outras RESEXs decretadas no nordeste paraense. Observa-se de imediato que esses laudos seguem um modelo estrutural fazendo uma panormica de dados gerais acerca dos municpios, sem um aprofundamento de informaes especficas que deveriam ser tratadas como prioritrias para o bom entendimento das particularidades e singularidades locais na relao homem e natureza. Dado considervel para nosso estudo que compuseram a equipe de elaborao dos estudos socioeconmicos das RESEXs no nordeste paraense um socilogo do CNPT/IBAMA, Otvio Albuquerque, uma antroploga da regio de Bragana e uma economista. Tambm se deve ressaltar que como aplicadores dos formulrios e cadastramento da populao foram

120

Entrevista concedida por Joo Carmelino em janeiro de 2011.

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treinadas pessoas das vilas locais, denominadas nos laudos socioeconmicos como lideranas das comunidades. No caso da RESEX Ara-Peroba foram ouvidos moradores das vilas do Ara, Porto do Campo e Cachoeira, tendo sido aceitas as condies pela comunidade. Frase do laudo socioeconmico para criao da RESEX (s.d.) que denota, dentre outras coisas, em todo o laudo, uma condio externa de favorecimento, esclarecimento e organizao em relao populao local. Uma das questes a serem pensadas poder pautar-se exatamente nesse princpio relativo metodologia do trabalho dos colaboradores eventuais do IBAMA junto s populaes locais. Parte-se da concepo que essas populaes no esto organizadas nem esclarecidas acerca de suas atividades produtivas naquele lugar. Da a condio de favorecimento e no de trabalho conjunto. Conforme afirma Milani (2006), as formas de participao institudas podem caracterizar a legalidade do processo, mas podem no constituir a legitimidade dos locais, considerando inclusive manipulaes polticas possveis. Segundo o prprio laudo socioeconmico:

A importncia da participao da comunidade nesse processo o jeito que se tem de envolver a populao local e fazer com que se sintam sujeitos importantes na realizao do projeto, elevar sua auto - estima e faz-los acreditarem que suas vidas possam ter mais qualidade, bem como serem os gerenciadores das Reservas, participando com suas opinies na soluo dos problemas e sugestes para realizao de alternativas comunidade. (LAUDO socioeconmico de criao da RESEX Ara-Peroba, s.d.).

O contato inicial dos tcnicos se deu por meio de pessoas consideradas lideranas locais e da prefeitura, visando marcar reunies locais. O objetivo das referidas reunies era a apresentao por tcnicos do CNPT dos objetivos e da proposta de instituio da RESEX. O passo seguinte foi a realizao de um seminrio que divulgou exemplos de Reservas j institudas e de seus resultados, alm de relatos de lideranas de outras reas pesqueiras sobre a experincia vivida em suas comunidades, demonstrando os resultado considerados positivos a partir da organizao da populao local. Nesse seminrio, segundo o estudo socioeconmico, contou-se com a presena de lideranas das diversas localidades e vilas municipais a serem atingidas pela RESEX. Essas lideranas foram treinadas para realizar a aplicao de questionrios junto ao seu local de moradia, com apoio de estudantes e da equipe de apoio do IBAMA. Esses questionrios objetivavam obter os dados que iriam subsidiar os estudos para confeco do laudo socioeconmico para criao da RESEX. Cento e um questionrios foram aplicados com chefes de famlias de pescadores; para sua realizao, os tcnicos envolvidos

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informam no prprio laudo ter aplicado uma metodologia baseada em pesquisa de campo, entrevistas, observaes e vivncia no local. (Laudo socioeconmico de criao da RESEX Ara-Peroba s.d.) Os trabalhos realizados nesse processo envolveram dirigentes de Associaes e pessoas da comunidade, em geral contatados por tcnicos e pesquisadores para colaborar, visto que conheciam a rea e ser viam de guias no processo de reconhecimento e estudo dos aspectos ambientais e como facilitadores no acesso aos ambientes e populaes, ou ainda como fonte de informaes com referncia s atividades humanas desenvolvidas naquele lugar.
O problema a falta de inovao e o papel passivo de consulta delegado s comunidades. No faz jus histria das reservas extrativistas nem coerente com o processo de criao de uma reserva extrativista que requer mobilizao, organizao e ativa defesa de seus interesses. Ao se inserir nas malhas do Estado, toda essa riqueza vai se burocratizar e virar documento de tecnocrata e de acadmico e no instrumento de mobilizao para a mudana da realidade. (ALLEGRETTI, 2006).

O debate que se instala em nosso estudo acerca da racionalidade mtico-prtica versus racionalidade cientfico-tcnica como modelo de anlise de duas perspectivas distintas no quer afirmar que no ocorra uma imbricao entre estas no contexto das aes tcnicas. Apenas estamos procurando demonstrar que existe uma maior incidncia em termos de caracteres que moldam essas perspectivas distintas e que se relacionam com as definies em debate. De todo modo, inegvel que, colocadas as relaes que se estabelecem no universo das UCs, podemos visualizar que embora o fazer dos tcnicos institucionais esteja sustentado no aporte legal e subsidiando-se no que seria um conhecimento cientfico dirigido para atender os tramites burocrticos do processo, h uma caracterstica no fazer imediato das aes por parte de alguns servidores que se sustenta na experincia e na prtica e que serve de aporte para as aes, conforme compreende Gadamer:

A pergunta de Aristteles a seguinte: em que consiste essa racionalidade prtica entre a autoconscincia do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do tcnico, do arteso etc. Que relao tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competncia tcnica? Mesmo sem conhecer nada de Aristteles deve-se reconhecer que essa racionalidade prtica possui lugar relevante [...] Por isso nas condies de nossa existncia finita que devemos buscar o fundamento do que possvel querer, desejar e realizar com nossa prpria ao. (GADAMER, 2002, p. 375-376).

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As experincias alargadas pelo fazer cotidiano permitem pensar e instituir as aes nas RESEXs Marinhas no Par com maior refinamento no trato, particularmente no que se refere s questes sociais e os seus contextos, conforme afirma Vergara Filho, bilogo que atuou pelo IBAMA na implementao de Reservas Extrativistas Marinhas no Par, acerca de sua experincia na criao e na implementao do Plano de Utilizao da RESEX de Soure:

O que foi que eu fiz: acertada ou erradamente, fui vendo o que tinha, por que no existia modelo, tudo era adaptado, existiam poucas Reservas Extrativistas Marinhas criadas e com contextos bem distintos da de Soure. [...] ento eu sofri muito porque era uma cultura diferente. Se hoje eu tivesse que recomear, eu trabalharia na contramo. Em So Joo da Ponta, hoje eu estou fazendo diferente, trabalho com a ideia de empoderamento. Essa orientao vem de uma experincia recente de vida e de uma leitura intuitiva, precauo, bom senso, confiabilidade e respeito ao prximo (informao verbal)121.

Ainda no sentido de reafirmar a forte influncia da prtica cotidiana do fazer e fazer-se enquanto tcnico que delibera e busca deliberar bem, conforme a noo de phrnesis, reapropriada por Gadamer da filosofia de Aristteles, reproduzimos a fala de Otvio Albuquerque, socilogo oriundo da SUDEPE, atualmente no IBAMA e que exerceu cargo de confiana no ICMBio, durante a implementao da fase I para elaborao de PM no ano de 2009, que retrata sua profissionalizao a partir do vivido, da experincia adquirida como elemento de sua capacidade de deliberar e atuar acerca:

Mas eu entrei na SUDEPE em 82, ento comecei a trabalhar com os pescadores e a minha cabea mudou totalmente [...] Quando eu assumi o IBAMA, eu fiquei como chefe do escritrio em Vigia, que era uma rea pesqueira, e quando eu sa de Vigia, foi pra assumir o CNPT, e a eu coloquei pro chefe em Braslia, toda minha ignorncia [...] e eu disse: Olha, minha rea pescador.[...] Olha, o que eu conheo, a minha rea pesca, a ele falou: Bem, se isso, ento eu vou apostar nisso a. (informao verbal)122.

Dentro do cenrio de polmicas institucionais, seguimos pensando acerca da ao dos tcnicos, consultores e experts que materializam o fazer institucional. O mote das reas protegidas tem se tornado a carta na manga do governo brasileiro quando se trata de justificar as aes pblicas em prol da ambientalizao do pas.

121

Entrevista concedida por Vergara Filho, bilogo contratado do ICMBio, chefe da RESEX de So Joo da Ponta em janeiro de 2011. 122 Entrevista concedida por Otvio Albuquerque em fevereiro de 2011.

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A partir do conceito de desencantamento, a ideia central aqui desenvolvida demonstrar como a racionalidade tecnocrtica-funcional se despe da capacidade de compreenso dos valores e perspectivas locais a fim de apenas implementar tecnicamente as unidades como dever funcional, sustentado para tal em um comportamento unvoco e modelar que se estrutura sobre os princpios legais universalizantes e sob conceitos cientficos objetivados, isolados dos contextos sociais e de seus sentidos sobre os quais se materializam. De modo a reafirmar o que vem sendo dito nesse subcaptulo, chamamos a ateno para observao de como o modelo concebido legalmente por meio das instrues normativas desses rgos engessa as aes de tcnicos e consultores. O trabalho tcnico se reduz aplicabilidade de instrumentos legais que visam fundamentar e materializar o processo de institucionalizao das RESEXs, em um contexto de domnio tcnico coisificando as relaes sociais do homem com a natureza e dos homens entre si. O engessamento das aes institucionais segue um padro de tarefas a serem vencidas, que vai do reconhecimento das caractersticas ambientais das localidades por meio dos preceitos legais e cientficos objetivados, entre outras, pelas noes de manguezal, rea costeira e litornea, esturios enquanto espaos fsicos per se, deslocados das significaes simblicas que lhes so atribudas no uso desses espaos pelas populaes locais, ou no dizer de Weber, dos sentidos que lhes so atribudos. Em Weber, a realidade no pode ser reduzida a esquemas conceituais, posto o hiatus irracionalis entre ambos. A realidade concreta e singular e os conceitos abstratos e gerais. De acordo com Pierucci (2003):

Nos tempos modernos, com efeito, andam juntas a cincia e a falta de sentido. A cincia sendo objetiva inevitavelmente termina por nos desvendar os olhos ante a objetiva ausncia de sentido objetivo [...] tudo se passa como se para Weber a falta de sentido emprico do acontecer natural fosse de longe a maior descoberta da cincia moderna o grande desvelamento, e Enthullung me parece aqui belo sinnimo para Entzauberung. (p. 153).

A sequncia de aes determinadas pelas instrues normativas passam pelas reunies, audincias pblicas, abaixo-assinados, criao de associaes, produo de laudos e formao do processo jurdico e burocrtico com vistas institucionalizao da UC. Essa unicidade nas aes dos rgos condutora de um esvaziamento dos contextos sociais, no sentido de adequar os contextos especficos ao procedimento preestabelecido pelo rgo. Por

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outro lado, as respostas das populaes locais manifestam uma pluralidade e diversidade de formas, sentidos e valores de acordo com suas habituais formas de ser e agir ambientais. H uma sobreposio, por meio desses instrumentais, dos interesses estatais, tanto na criao das RESEXs quanto na elaborao do Plano de Manejo. A exemplo, a adequao das regras do PM legislao, que nem sempre se coaduna com as formas de pesca e os saberes que sustentam essas prticas, estabelecendo regras a serem respeitadas, mas que impedem o efetivo exerccio do atividade produtiva, em virtude da intransigncia tcnica mediante a respeitabilidade obrigatria legislao. Como no caso da tapagem proibida por lei. Na vila do Ara, sede da RESEX Ara-Peroba, a tapagem tem uma forma especfica, e a principal arte de pesca adotada pelos pescadores locais. Chamada de tapagem de cacuri, conforme utilizada localmente, constitui-se como uma forma mais seletiva visto que praticada na meia mar quando a mar est enchendo e respeitando as cabeceiras de rios e igaraps. Deveria a, nesse caso, em virtude das particularidades locais, ser considerado o tipo de material usado a rede de malha bem como o tamanho da malha se apropriado segundo a legislao para no aprisionar as espcies juvenis e os espaos proibitivos reas de reproduo das espcies. Ao contrrio, apenas se considera a generalizao a partir da tipificao legalmente constituda e proibitiva a tapagem. Nesse caso, em geral desobedecida de forma tcita pelos pescadores. Sobrepem-se assim tambm aos saberes locais, entendimentos tcnicos e preceitos legais universalizantes. No caso desse tipo de pesca a tapagem a legislao e os acordos de pesca do municpio de Augusto Corra indicam a proibio, muito embora no se veja rejeio por parte dos pescadores em relao tapagem dos furos e igaraps. Somente ocorrendo quando usada em paralelo ao timb (substncia txica) (ROSA, 2007). Isto posto, importante lembrar que outras formas de tapagem so extremamente danosas posto o material utilizado, conforme enunciado pelo tcnico do IBAMA em ao contra a tapagem no nordeste paraense:

Tapagens com talas, cips, varas e tela de arame nos igaraps no podem ser utilizados para a pesca, porque agridem os animais e trazem desequilbrio ecolgico. Isso porque, quando uma tapagem feita, todo tipo de animal aqutico preso. Os pescadores escolhem o que serve para eles e se desfazem dos demais (informao verbal) 123.

123

Entrevista concedida por Cludio Rocha em agosto de 2008.

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Evidentemente algumas proibies legais e do prprio Plano de Utilizao em alguns aspectos especficos colaboram no controle de hbitos ambientalmente menos seletivos das populaes locais, relaes de utilizao, desse modo relaes Eu-Isso124 de acordo com Buber (1974). A exemplo, a captura e operao da camaleoa, a caa para venda, o uso de filhotes de guars como iscas conforme j foi exposto contudo devem ser entendidos como produto da tradio cultural local, o que torna assim necessria uma relao dialgica para a sua alterao, o que no ocorre. Em outros aspectos, e em grande medida, a moral e a prtica local esto submetidas lgica da racionalidade tecnocrtica. O que redunda dizer que tanto para a criao das RESEXs quanto para elaborao dos seus Planos de Manejo o preceito legal da participao a ser impetrado pelo fazer institucional tem sido marcado por arranjos que pouco integram essas populaes no sentido do compartilhamento das aes e debate entre os saberes. Durante nossas observaes nas reunies referentes fase I do PM em ambas as Reservas ficou clara uma flexibilidade e adaptabilidade na relao sentido populaes locais ICMBio, denotando uma capacidade de fazer o debate, manifestar resistncia e chegar a um acordo comum, como no caso da caa. Por outro lado, na relao ICMBio populaes locais, notou-se uma certa rigidez e inflexibilidade sustentada na legalidade e nos arranjos tcnicos, por vezes instituindo um descontentamento da populao presente nas reunies. O discurso da racionalidade estatal que toma como marco da territorialidade poltica da UC, a desvalorizao do passado e da tradio das populaes locais, e, portanto no concebendo concretamente essas populaes como tradicionais no sentido dado pela legislao (Instrues Normativas 1 e 2 do ICMBio) pode tambm ser apreendido por meio da transformao do lugar no no-lugar no incorporado pelos locais conforme apresentado em captulo anterior. De acordo com o conceito de burocracia em Weber, as aes de tcnicos e consultores passam a ser caracterizadas dessa forma, sobretudo, por possuir um amplo aspecto tecnocrtico, encerrando como instrumento de superioridade o saber profissional
124

Em Eu e Tu (BUBER, s/d), obra seminal, Buber ir tipificar a estrutura dual das relaes humanas e da existncia que se confirma a partir delas: a relao Eu-Tu e a relao Eu-Isso. Na relao Eu-Tu h a presentificao do Eu cuja construo se d atravs da relao com o Outro o Tu. O encontro entre o Eu e o Tu um evento no qual h o olhar face a face. H reciprocidade. Enquanto na relao Eu-Tu o Eu uma pessoa, na relao Eu-Isso, o eu um eu egtico. Embora dimenso necessariamente constitutiva da relao do homem com o mundo, a relao Eu-Isso se originariamente no boa, nem m diz respeito a uma relao instrumental que permite ao homem se relacionar de modo ordenado e coerente com o mundo, responsvel pelas aquisies cientificas e tecnolgicas da humanidade. Mas, tambm, a relao Eu-Isso ser fonte de relaes, como diria Marx, reificadas, interdio para o encontro do Outro e assim para conformao da humanidade mesma que se realize atravs do Outro. (MENDONA, 2011, p. 36).

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especializado. a partir da noo de burocracia que Weber se apoia para construir o conceito de dominao legal e desse modo que, ao analisar as aes dos servidores desses rgos nas aes da poltica de Unidades de Conservao, compreendemos que entre as suas aes desenvolvidas nas duas RESEXs impe se uma dominao da racionalidade institucional e que essa se faz muito mais pela ao tecnocrtica.

A incorporao ao cargo pblico exige do funcionrio uma formao especfica, tcnica, e sua [...] seleo se realiza visando classificao profissional que fundamenta sua nomeao. Pode ser feito por meio de provas de proficincia ou apresentando diplomas que certifiquem a capacitao do candidato para o cargo. (WEBER, p. 121, 1991).

O que caracteriza o processo participativo nas Reservas Extrativistas Marinhas so as regras estabelecidas legalmente, o comportamento dos proponentes institucionais, e a ausncia de distribuio do poder. Um olhar mais crtico leva percepo de que a participao social tem sentido de legitimadora das aes institucionais, para manuteno do controle e dos lugares de dominao, posto o significado que esses tcnicos tm das populaes locais como incapazes de decidir, principalmente no que se refere ao planejamento, concebido como ao puramente tcnica como meio para atingir fins determinadamente legais.

PARTICIPAO E PERSPECTIVAS TICAS

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo em julho de 2006)

125

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de campo junho de 2007 e maio de 2009)126

125

As duas imagens acima so de usurios da RESEX Ara-Peroba O reboque dos cascos (pequenas embarcaes a vela) dos pescadores no bote (embarcao de mdio porte com funcionamento a diesel) do Sr. Ben e o conserto de rancho tambm na UC, demonstraes tcitas de amizade, solidariedade, solicitude, princpios ticos to caros ao viver bem com e para os outros... 126 As imagens referem-se respectivamente a audincia pblica para ampliao da RESEX Ara-Peroba e reunio ampliada para apresentao dos planos de trabalho dos consultores responsveis pela fase I dos PMs das RESEXs do nordeste paraense. Espaos por excelncia em que a esfera pblica poderia exercitar relaes dialgicas e abertura para a percepo da alteridade.

Participao e Perspectivas ticas 275

6 PARTICIPAO E PERSPECTIVAS TICAS


A alteridade de outrem, como toda outra alteridade se constitui em (in) mim e a partir de (aus) mim, mas precisamente como outro que o estranho constitudo [...] como um sujeito de experincia a mesmo ttulo que eu, sujeito capaz de perceber a mim mesmo como pertencendo ao mundo de sua experincia. (RICOEUR, 2006, p. 169).

Nesse captulo desenvolvemos uma proposta de anlise que se encontra intrinsecamente articulada perspectiva tica proposta por Paul Ricoeur, atravs da qual o terico concebe as relaes inter-humanas pautadas pelos por princpios como da reciprocidade, da alteridade e da justia. A partir da buscamos compreender como se do as relaes entre os agentes sociais em interao, no processo participativo da criao das RESEXs Marinhas e de seus Planos de Manejo. Objetivamos interpor sentidos e perspectivas ticas conciliatrias das assimetrias que se impem entre os agentes sociais em questo, na inteno da vida boa e do sentido de justia, colocando em contraponto os sentidos e as perspectivas das populaes locais mediados pelas aes e perspectivas do corpo de agentes institucionais. Buscamos a partir das assimetrias percebidas sugerir conforme a proposta tica de Ricoeur perspectivas de superao pela via do reconhecimento mtuo aquela exigncia que me leva a dizer: a tua liberdade vale a minha (s.d, p.397). De acordo com o autor, a esfera da ao poltica tem a precedncia de prolongar a perspectiva tica, bem como prolongar a exigncia tica do reconhecimento mtuo. Na expresso do terico O Estado de direito , nesse sentido, a realizao da inteno tica na esfera do poltico (s.d, p. 397). Buscamos compreender as perspectivas desses agentes locais e o sentido de suas aes como parte de suas racionalidades e de seus ethos grupais de seus modos de ser e fazer, que seguem princpios ticos distintos daqueles que so constituintes do ethos institucional, ou no apenas distintos, mas no caso em questo, ausentes na especificidade desse fazer institucional. Na construo deste captulo objetivamos interpor sentidos e perspectivas ticas conciliatrias das assimetrias, que se fazem necessrias entre os agentes sociais em questo, na inteno da vida boa e do sentido de justia. Para tanto, apontamos as possibilidades de um agir tico por meio de aes estimadas boas, que sustentem um fazer comprometido e tico a partir das trs teses da proposta tica ricoeuriana que no se refira somente ao si mesmo, mas ao Outro e queles da relao mediada pelas instituies, queles que o face a face deixa de fora como annimos.

Participao e Perspectivas ticas 276

6.1 NOVAS PERSPECTIVAS DE INTERAO tica e dilogo

O dilogo [...] no tem por fora que ser to marcadamente assimtrico, ainda que o preo seja a neutralizao parcial das fronteiras entre as disciplinas - muito especialmente entre as chamadas cientficas e o pensamento ordinrio, ou seja, as razes comuns nas quais jogamos nosso jogo de linguagem, e onde, afinal, emerge o sentido (SOARES, 1988, p.102).

O ser tico aquele que se abre ao dilogo e perspectiva de uma vida boa para si com os outros, amparando-se em princpios ticos - ainda que por meio das instituies a que esteja vinculado por sua funo social - como a base de suas aes (Ricoeur, 1995). Em consonnia com este pensamento, e a partir da anlise da participao como critrio sine qua non para implementao das RESEXs Marinhas, indagamos: qual tem sido, em termos de efetividade, a aplicao do princpio legal da participao das populaes locais, e at onde os descompassos entre a legalidade e a sua aplicabilidade podem causar transtornos para essa poltica no que se refere efetivao da criao das UCs e dos PMs participativos das RESEXs? Dito de outro modo, as formas institudas de participao, em virtude do preceito legal, tm permitido s populaes locais efetivamente o compartilhamento das aes e o debate entre os saberes, na perspectiva de que essas populaes se sintam co-partcipes? Tm sido essas relaes abertas a perspectivas ticas e de dilogo? Condies sem as quais, a criao legal ocorre e o Plano de Manejo poder at ser elaborado, a partir de orientaes tcnico-cientficas; Contudo, jamais aplicado, efetivado, visto que para tal torna-se imprescindvel a insero daqueles que vivem e fazem o cotidiano das relaes socio-ambientais locais. Desse modo, apresentamos um breve debate da proposta tica de Ricoeur, correlacionando as definies de tica e moral do autor como mbitos orientadores enquanto estruturas constituintes do sistema de pensamento-ao do comportamento

humano, de modo a pensarmos por estes parmetros as interrelaes entre populaes locais e os agentes insititucionais na criao das UCs e na elaborao da fase I de seus PMs. Na sequncia deste estudo buscaremos discorrer sobre os contextos participativos para, na sequncia, apresentarmos os princpios ticos da teoria de ricoeuriana correlacionando-os ao contexto participativo das RESEXs. A anlise se ancora na proposta tica do autor, a partir da qual propomos novas perspectivas de interao sustentadas em seus princpios viabilizadores da possibilidade de relaes dialgicas e de alteridade entre os agentes em estudo.

Participao e Perspectivas ticas 277

6.1.1 Da tica e da Moral em Ricoeur

Novamente retormamos Weber (1967), a partir da compreenso da tica da responsabilidade,127 para da avanarmos nos caminhos filosficos e hermenuticos que possuem como ponto central a preocupao com a ao humana que tambm um dilogo com as cincias sociais, compreender o homem em sua historicidade, uma compreenso das relaes sociais e da sociedade em que vivemos desta vez, sustentados na Proposta tica de Paul Ricoeur, a pensar em especial as aes das instituies polticas, como gerenciadoras da perspectiva do viver bem. Antes, preciso distinguir tica e moral. Para Ricoeur, nada etimologicamente distingue os termos. tica e moral derivam da idia de costumes (ethos do grego e mores do latim). Conforme enunciado no captulo 4, ethos pode ser compreendido primeiro com o significado de morada do homem justamente por meio do ethos que o mundo se torna habitvel para ns, ou mais ainda, a partir da que o mundo social se constitui. A necessidade de estabelecer relaes com a natureza ( physis) constitui-se pela abertura do espao humano do ethos, no qual se inscrevem os costumes, os hbitos, os valores e as aes. De acordo com Ricouer:

Desse ponto de vista, as relaes dos homens entre si no deixam de incluir as relaes dos homens com a natureza [...] sob essas condies que a organizao dos sistemas sociais pode [...] contribuir com a formao da identidade das pessoas no plano moral e poltico (2006, p. 218)

e segundo como indicao de um comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. Dessa dupla acepo do termo deriva a expresso tica . E no por acaso no texto tica e Moral que integra a obra Leituras 1- Em torno ao Poltico, Ricoeur (1995) a define como a inteno de uma vida realizada sob o signo das aes estimadas boas (p.161) remetendo-nos s aes que se enrazam e constituem enquanto costume a busca por um viver bem. As bases dessa definio se instituem sob a inteno tica aristotlica, por meio do trip ricoeuriano, inteno da vida boa, com e para os outros, em instituies justas. Ou ainda, compreendida a partir da articulao da estima de si, da solicitude e do sentido de justia (p.162). Desse modo, em Ricoeur a tica distingue-se da
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De acordo com Weber (1967) ao analisar a relao da tica com a poltica O partidrio da tica da responsabilidade, ao contrrio, contar com as fraquezas comuns do homem [...] e entender que no pode lanar a ombros alheios as conseqncias previsveis de sua prpria ao. Dir, portanto: Essas conseqncias so imputveis a minha prpria ao (p, 113-114, grifo nosso). Desse modo, a percepo ricoeuriana acerca da responsabilidade humana sobre suas aes (je peux me tenir responsable de mes actions (RICOEUR, 1999, p. 2) coaduana-se com a tica da responsabilidade analisada por Weber.

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moral. Para o autor, a distino entre ambas refere-se a uma gradao sutil, de um lado, a tica como a perspectiva de vida boa que orienta as aes e, de outro, a moral como essa perspectiva articulada em normas, orientadoras das aes, aladas pretenso de universalidade e de efeito coercitivo, emanando o respeito a elas, nesse caso, ligando o sujeito obedincia das normas, Ricoeur:
Que acontece agora com a distino proposta entre tica e moral? Nada a impe na etimologia ou na histria do emprego dos termos. Um vem do grego, o outro do latim; e os dois remetem a idia intuitiva de costumes [...] , portanto, por conveno que eu reservarei os termos tica para a perspectiva de uma vida realizada, e moral para a articulao dessa perspectiva em normas caracterizadas ao mesmo tempo pela pretenso universalidade e por um efeito de constrangimento (1991, p. 200, grifos do autor).

o que engloba tambm o obrigatrio na lei. De acordo com

Designam os termos tica e moral na teoria ricoeuriana, respectivamente, o sentido do que bom de acordo com a tradio teleolgicoaristotlica, e o que obrigatrio

acompanhando a tradio deontolgico-kantiana. Ricoeur no procede a uma polarizao entre esses dois mbitos da ao humana, interpe-lhes uma relao dialtica explicitada nos captulos stimo e oitavo de sua obra O Si Mesmo Como Um Outro (1991). O debate realizado por Ricoeur acerca da moral concerne em torno do que sociologicamente compreendemos como normatividade e regularidade do comportamento social. Com Durkheim foi abordado como conscincia coletiva, o campo da moral as regras morais so fatos sociais que possuem autoridade, o que implica na noo de dever-ser, a norma moral como reguladora da ao humana, que se eleva acima dos indivduos enquanto constructo coletivo, e a ausncia de seu cumprimento torna-se passvel de constrangimento e coero (DURKHEIM, 1999). O campo da moral abordado por na Critica da Razo Prtica (1974) tem suas bases sustentadas no contexto da razo prtica por meio do agir moral. De acordo com Kant no corolrio do livro I: A razo pura por si mesma prtica, facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral (Kant, 1974, p. 41, grifo do autor). A razo pura prtica desvenda as leis do mundo social, e o imperativo categrico um dos instrumentos dessa razo que orienta a ao, cuja mxima do dever-ser, da moral, institucionaliza-se mediante a liberdade do homem de fazer valer suas vontades. A lei fundamental da razo pura prtica afirma no imperativo categrico: Age de tal modo que a mxima de tua vontade possa sempre valer simultaneamente como um princpio para uma legislao geral (KANT, 1974, p. 42).

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Ou seja, a prtica cotidiana que dever conduzir universalizao das mximas, a moral est no campo da regulamentao de mximas que orientam a ao constituindo assim deveres cujo valor universal a dignidade humana, sem isso, para Ricoeur, o formalismo kantiano cai num vazio (1991, p. 308).

A questo da moralidade somente surge em decorrncia dessa indeterminao do dever ser ou do mundo social, onde os homens tm a liberdade de fazer valer as suas vontades, fixar os seus prprios objetivos ou fins. por isso que nesse mundo a ao dos homens pode ser julgada segundo os critrios do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto. Os critrios do julgamento encontram-se arraigados na razo prtica pura; seu instrumento privilegiado , como vimos, o imperat ivo categrico. (FREITAG, 1989, p. 08)

A essa necessidade contundente de moralizar a razo prtica, Ricoeur em Do texto aco (s.d) faz sua crtica a Kant; para o autor, outros aspectos so possveis para alm do dever-ser (obrigatrio) ante a conduta humana. Voltando sua ateno para Hegel, Ricoeur toma como ponto de partida a busca das origens e dos recursos da ao sensata a vida tica concreta, enquanto sentido do agir (PETIT, 2007).

Ningum comea a vida tica; todos a encontramos j a, num estado de costumes em que se sedimentaram as tradies fundadoras da sua comunidade [...] ela continua, todavia, a agir, e permanece efectiva, atravs das sedimentaes da tradio e graas s interpretaes incessantemente novas que se do destas tradies e da sua fundao original. (RICOEUR, s.d, P. 250).

J se ressalta a partir dessa leitura, uma primazia da tica sobre a moral. O sujeito j se encontra imerso numa tica, um ser-no-mundo-da-tica. A vida tica j a encontramos dada, atravs dos princpios norteadores dos ethos grupais, forjados ambos na tradio de cada comunidade e sedimentados no percurso histrico, por via da compreenso/interpretao de seus entes que os refazem incessantemente. No bojo dessa distino, observa-se uma inteno originria do ser-no-mundo ainda no alada esfera da moral. Dessa distino entre tica e moral, Ricoeur (1991) estabelece suas teses: 1) a primazia da tica sobre a moral (assim como da estima de si sobre o respeito de si), demarcando a antecedncia da perspectiva teleolgica de vida boa; 2) a necessidade da perspectiva tica, passar pelo crivo da norma, incidindo desse modo o respeito ao que se impe como obrigatrio e; 3) inversamente, legtimo que a norma se oriente pelo horizonte tico, quando dela (norma) decorrem impasses prticos, divergncias e situaes novas, ao que Ricoeur

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concebe como um recurso sabedoria prtica. Isto posto, a moral que legtima e indispensvel constitui-se como uma efetivao limitada da perspectiva tica. A tica continua Ricoeur (1991), engloba a moral. Conforme Ricoeur (1991) no texto O Justo entre o legal e o bom, o sentido tico de justia (bom) passa pelo formalismo legal (o crivo da norma moral) e esse no pode subtrair se a uma representao do bem, assim como no possui a primazia sobre a tica. A moral estabelece com a tica uma relao dialtica qualitativa e subordinativa A tica antecede a moral, contudo uma recorre outra. A tica recorre norma moral para se antepor ao mal e, em face aos conflitos interpostos em situaes concretas a norma moral deve recorrer visada tica; da decorre, em Ricoeur, o recurso sabedoria prtica, ltima instncia na sua proposta tica da prtica da justia, mediadora entre a norma moral e a inteno tica. A esses elementos voltaremos adiante a fim de demonstrar o debate do autor acerca da dimenso tica em uma perspectiva onde o outro , assim, aquele que pode dizer eu como eu e, como eu ser considerado um agente, autor e responsvel pelos seus atos ( RICOEUR, 1995, p.163).

6.2 OS SENTIDOS DA PARTICIPAO - Perspectivas ticas


Existe, porm, outro sentido que reagrupa todos os minsculos encontros deixados de lado pela histria dos grandes; outra histria, uma histria dos atos, dos acontecimentos, das compaixes pessoais, tecidas na histria das estruturas, dos eventos, das instituies. Mas esse sentido e essa histria esto ocultos (RICOEUR, 1968, p.102, grifo nosso em negrito, grifos do autor em itlico).

Partimos da hermenutica da ao de Weber, de sua sociologia compreensiva e recorremos fenomenologia hermenutica para analisar os sentidos das aes de grupos distintos que se relacionam no contexto da gesto das RESEXs Ara-Peroba e Soure, mais especificamente no contexto do processo participativo de criao das unidades e da fase I de elaborao de seus PMs. Tal conduta ou atitude nos ajuda a pensar os sentidos aproximados ou distintos entre grupos sociais que se inter-relacionam dentro do contexto socioambiental que se apresenta na poltica das UCs.
No caso da hermenutica, no vivido que ela pretende tematizar e do qual pretende decifrar o sentido, est presente o passado histrico mediatizado pela transmisso de documentos escritos, de obras, de instituies e monumentos. E a pertena no seno a nossa participao e insero neste passado histrico, a conscincia de estarmos expostos aos efeitos histricos. (FONSECA, 2009, p.15)

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Nossa proposta, em paralelo, apresentar perspectivas de interao por meio dos princpios ticos em Ricoeur e realar em que aspectos da poltica de UCs essas perspectivas se perdem mediante as turbulncias intrnsecas poltica e sociedade que, cada vez mais pem o homem frente a uma realidade que investe contra o historicamente estabelecido, atravs da perda de sentido, o de seu esvaziamento por meio da racionalidade formal.

Como se instaura a mundanidade? o resultado da interao do homem com tudo o que est a sua volta, o ambiente [...] Tal relao uma relao de sentido [...]. O homem habita o mundo basicamente de dois modos: pela ao (prxis) e pela compreenso. [...] Sob a gide da categoria da ao, refere-se como o seu solo primeiro de expresso daquilo que se entende como experincias vividas concretas. Como chegar por essas ao homem? Atravs do feito devemos chegar ao sentido do fazer [...] A reflexo se esfora para ir dos efeitos de uma ao ao sentido mesmo dessa ao. (VON ZUBEN, 2006, p 247-249, grifo nosso em negrito, grifos do autor em itlico).

A ao enquanto poltica pblica atividade que se estende para alm de ser si mesmo, compreende uma inteno institucional que atinge um sem nmero de pessoas a ttulo, como diz Ricoeur, de cada um, qualquer um. Contudo, h efeitos que fogem relao primeira, h efeitos maus, negativos e h o encontro da ao de um com a do outro ocasionando o inesperado, o no intencionado. Assim, os efeitos da ao poltica institucional, ao se estenderem adiante e para longe do agente institucional, fazem-se abrangentes e autnomos incidindo sobre uma diversidade de realidades, as quais a ao poltica no d conta de enxergar dada a ausncia de princpios ticos e de dilogo conforme apresentado na proposta tica de Ricoeur. De um lado, experts, consultores e tcnicos referidos como agentes institucionais guiados por informaes cientificamente sistematizadas, por princpios reificadores das relaes humanas e com fins claramente determinados, que procedem das instituies responsveis pela poltica pblica em implementao. Pessoas e natureza tratadas como meio para alcanar determinados fins. EU-ISSO instaura o mundo do Isso, o lugar e o suporte da experincia, do conheciment o, da utilizao (BUBER, 1974, p. LI). No outro lado esto as populaes locais, com modos de ver e agir sustentados em formas culturais diversificadas de uso e valorizao da natureza. Relaes de alteridade em referncia aos domnios da natureza, do homem e do sagrado. O homem local por meio de seu ethos e sua eticidade ambiental, mantm entre si, com a rvore, o rio, a mata, os seres inanimados e animados uma interao, uma reciprocidade, ou seja, o Outro to sagrado e

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dotado de dignidade e direitos quanto eu (ROSA, 2011). Evidencia-se aqui a questo antropolgica do sent ido da existncia (BUBER, 1974, p. XLIV). Um horizonte em que os sentidos de verdadeiro, justo, belo, sagrado trocam entre si as suas significaes.

O critrio de maior valor repousa sobre a reciprocidade. Assim a relao de maior valor existencial o encontro dialgico, a relao inter-humana onde a invocao encontra sua verdadeira e plena resposta. [...] EU-TU no exclusivamente a relao inter-humana. H muitas maneiras de EU-TU e o TU pode ser qualquer ser que esteja presente no face a face: homem, Deus, uma obra de arte, uma pedra, uma flor [...] O Isso pode ser qualquer ser que considerado um objeto de uso, de conhecimento de experincia de um Eu. (BUBER, 1974, p. LV)

De acordo com a perspectiva buberiana (1974), mencionada acima, e no que se refere a nossa perspectiva de anlise, as relaes que as populaes locais usurias das RESEXs Marinhas estabelecem nesses trs domnios, so o oposto se comparadas s relaes estabelecidas pelos agentes institucionais, de acordo com caracteres evidenciados por ns enquanto tipos ideais 128. Relaes com uma natureza sacralizada, repleta de sentidos para a organizao da vida. Relaes de solidariedade e alteridade perante o Outro natural e humano, ambas perpassadas pela respeitabilidade ao sagrado que se manifesta. Contudo, h de se observar, conforme afirma o prprio autor, o mundo do Isso, ordenado e coerente, indispensvel para a existncia humana (p. LIII), e a esse respeito em relao as populaes locais, embora no seja objeto principal desse estudo, iremos pontuar oportunamente. Por outro lado, quanto s aes que se estabelecem por parte dos agentes institucionais em primeiro lugar, s aes institucionalizadas constituem-se como uniformizadoras, onde se perde as especificidades em nome da universalizao normativa/legal e da objetivao cientfico-tecnocrtica. A natureza constitui-se de ecossistemas a serem conservados, em um cenrio de referencial poltico-econmico de uso dos recursos naturais coisificados, sem nenhum sentido subjetivo. Em Segundo lugar, no que se refere s relaes que se estabelecem entre a esfera pblica e as populaes locais usurias dos recursos naturais dessas Unidades de Conservao enquanto o Outro humano sustenta-se por consequncia, atravs do que Weber (1981) denominou desencantamento, no sentido da desmitologizao, desmagificao e
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Importa esclarecer que evidenciamos um conjunto parcial de caractersticas por meio das quais tipificamos as condutas grupais locais, e a conduta dos agentes institucionais. Contudo, esses aspectos ressaltados por ns no constituem como nicos para cada contexto, outras aspectos e caractersticas so constituintes dessas realidades, e a elas nos reportaremos dentro das possibilidades. Aqui o caso de evidenciarmos as relaes, as quais Buber (1974), refere-se como relaes EU-TU, em outros momentos iremos nos referir a relaes EU-ISSO, no que dizem respeito s relaes estabelecidas pelas populaes locais com a natureza.

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desendeusamento. Contrapem- se assim o modo de ser e fazer das populaes locais sustentados em costumes arraigados no desconsiderando, obviamente, o aspecto dinmico da cultura, observado pelo prprio conceito de tradio e a objetividade cientfica e universalizao legal aplicada pelas instituies polticas. Tratamos, desse modo, de grupos sociais em interao, cujas relaes esto sustentadas em perspectivas distintas, instalando-se a poltica de UCs pela predominncia dos interesses institucionais, portanto, dentro da lgica do conceito de dominao elaborado por Weber (2004).

A dominao [...] um dos elementos mais importantes da ao social. Sem dvida, nem toda ao social apresenta uma estrutura que implica dominao. Mas, na maioria de suas formas, a dominao desempenha um papel considervel, mesmo naquelas em que no se supe isto primeira vista (WEBER, 2004, p. 187).

O que pretendemos ento pensar a participao enquanto interao social que se institui pelo jogo de interesses que move o sentido das aes dos grupos, seus desdobramentos e nexos. O que admite pens-la no contexto de sistemas de pensamento-ao distintos, um constitudo pelos sentidos conjuntos vivenciados na coletividade local e que d orientao organizativa ao grupo, e outro constitudo no bojo do avano cientfico e tcnico que orienta os sentidos emanados pelos agentes institucionais por meio da aplicabilidade da poltica pblica. Ou seja, o processo participativo para alm da disputa por interesses em jogo, supe a reafirmao de modos de ser e fazer diferenciados a partir dos sentidos dados e de como esses agentes distintos se reconhecem nele. Podemos, portanto, pensar no contexto da poltica de Unidades de Conservao, racionalidades a partir das conjunturas distintas dos agentes envolvidos, conforme foi apresentado nos captulos 4 e 5. Agentes institucionais guiados por uma racionalizao instrumental dentro do marco dos valores e normas do sistema socioeconmico do minante, a razo instrumental faz da barbrie aquele processo que elimina o outro ou no o percebe em sua humanidade. Processo que torna o homem indisponvel para o Encontro tico porque despido est ele de sentimento! (Mendona, 2004, p. 4), e a populao local que se sustenta em representaes e simbologias constitudas no exerccio cotidiano da vida local, uma vida comunitria em que predominam as relaes face a face e com uma significao cultural de algum modo singular.

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Aqui se abre a perspectiva do princpio tico da alteridade tomado por ns da hermenutica de Ricoeur para pensar perspectivas ticas para essas relaes. S existe alteridade na medida em que percebo o Outro como outro e a diferena do Outro em relao a mim. Ento sou capaz de entrar em relao com ele pela via tica possvel de conciliao a via do reconhecimento mtuo, para usarmos uma expresso to cara a Ricoeur na obra Percurso do Reconhecimento (2006), a via da tica da estima de si, da solicitude e do sentido de justia; a via do respeito, conforme a norma moral em Ricoeur; a via do reconhecimento dos direitos e deveres, se usarmos a expresso jurdica. Ou seja, isso supe a via mais justa da comunicao humana, que a da racionalidade dialgica, da capacidade de compreender o Outro a partir da sua experincia de vida e da sua interioridade. Nossa compreenso se orienta a partir do entendimento da participao desses grupos locais constituda pelo debate e (des) conexes entre os saberes, sentidos, valores, princpios ticos e morais e percepes, bem como o compartilhamento de aes. Quais os sentidos visados pelos agentes locais no curso de suas aes mediadas pela racionalidade dos agentes institucionais que atuam na efetivao da poltica? A partir desse enfoque, torna-se fundamental delimitarmos a definio de participao com a qual objetivamos apreender o contexto em anlise, para assim compreendermos como se coadunam em nosso estudo esse debate e o debate das racionalidades, ethos e perspectiva tica. De acordo com Teixeira (2002), a participao supe uma relao entre agentes, que a partir dos recursos que dispem procuram fazer valer seus interesses, seus valores, afirmando suas identidades e atuando como sujeitos de direitos e obrigaes, em espao pblico. A esfera pblica o ponto de encontro e o local de disputas entre esses sujeitos e o sentido de suas aes. Observa-se aqui, a partir dessa definio, que o processo participativo supe agentes sociais distintos em interao e, portanto, lgico compreend-los a partir dos padres sociais de pensamento dos grupos aos quais pertencem e que so institudos no escopo de tradies historicamente situadas. Para MacIntyre (2001), a racionalidade sempre interna tradio, os recursos da racionalidade adequada s nos so disponveis nas tradies e atravs delas (p. 396) Nesse sentido, outras formas de sentir, pensar e agir, devem ser compreendidas como formas no menos expressivas que a racionalidade institucional que predomina no processo de criao e gesto dessas Unidades geridas por representao do Estado - por meio das instituies ambientais pblicas.

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Nesse propsito, buscaremos pautar a discusso da participao das populaes locais com vistas a destacar as formas como ocorre essa participao nas deliberaes sobre as RESEXs Marinhas na criao e na elaborao da fase I do Plano de Manejo em contraponto a ao e seus sentidos pautados na norma legal e na objetividade cientfica dos agentes institucionais envolvidos na implementao da poltica. Compreender a participao a partir desse foco sugere sua interpretao no como um fim em si mesmo, idealizado, mas como um mecanismo engendrado na tessitura do regime poltico democrtico e no contexto das contradies da sociedade brasileira. Desse modo que, antecipando a abordagem desse captulo, apresentamos no captulo anterior o contexto da poltica pblica ambiental instituda no Brasil e, os desdobramentos decorrentes da ao institucional do IBAMA ao ICMBio (captulo 5), como rgos direcionadores da poltica de Unidades de Conservao. Desse exerccio hermenutico da histria da poltica ambiental brasileira, passamos compreenso da participao das populaes locais inseridas nesse contexto, cujo norte se constitui no contraponto entre a racionalidade institucional que se manifesta na uniformizao de suas aes por meio do aporte legal e burocrtico que fundamenta o fazer tcnico, impondo-se racionalidade prtica local. De acordo com Von Zuben:

Ter como mira de esforo compreensivo os eventos, as experincias da vida cotidiana, implica na necessidade de se encarar, em complexidade, o prprio dado humano, a condio humana. Encarar em complexidade significa evitar as alternativas. Como disse acima, explicao e compreenso, cincias humanas e filosofia, articulam-se dialeticamente em fertilizao mtua no empreendimento comum de conhecimentos da condio humana. (2006, p. 257)

Para nosso estudo, torna-se imprescindvel pensarmos alternativas de percepo, como as apontadas, que permitam entender as relaes que se estabelecem entre os agentes sociais envolvidos, e as simetrias ou assimetrias que se impem nessas relaes. Esse o marco que se atribui para pensar a participao social no mbito da poltica pblica de Unidades de Conservao. Por efeito do fazer institucional, do impacto de suas realizaes, do desconhecimento das consequncias, da inadequao mediante os ethos locais e uma permissividade de fazer legal quase anmica posto haver divergncias ou conflitos entre os princpios ticos e morais locais e a aplicao da lei enquanto norma poltico-social torna-se difcil para as populaes locais a efetivao da poltica, ou respeit-la em sua totalidade.

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A proposta tica de Ricoeur invocada aqui na busca por uma perspectiva que aponte para mudanas, oriente os comportamentos, provoque aes transitivas para o

restabelecimento do sentido da ao. Um agir tico se faz necessrio a fim de que se encontre um fio condutor que viabilize o convvio social equitativo e conserve os recursos da natureza.

6.2.1 Participao e Meio Ambiente Cronologicamente, os anos 90 marcam a institucionalizao da participao, posto que no se pode consider-la uma concesso do Estado. No Brasil, muito das conquistas participativas ocorrem fora dessa esfera, marcadamente por conquistas da sociedade civil por meio de demandas de direitos civis e sociais (sufrgio universal, direitos trabalhistas, liberdade de expresso, dentre outros). esse movimento que legitima a incorporao no regime democrtico de direito brasileiro da participao por meio de sua introduo na constituio de 1988, como referencial do desenvolvimento social, fortalecimento da democracia e eficincia na execuo de polticas pblicas (COSTA; BURSZTYN E; NASCIMENTO, 2009). Do ponto de vista da conquista de uma cidadania ativa, o processo participativo se faz em nome do reconhecimento da identidade dos agentes sociais envolvidos, da incluso das necessidades demandadas por esses sujeitos e, de novas agendas de gesto da coisa pblica (Jacobi, 2003). Os principais canais recentemente introduzidos para concretizar a participao social, alm dos oramentos participativos, enquanto experincia dos governos de esquerda so os conselhos gestores de polticas pblicas nas reas da educao, sade, assistncia social, cultura e meio ambiente. O tema da incluso social por meio da participao na gesto de reas protegidas tornou-se matria de importncia fundamental tanto para a agenda poltica ambiental brasileira quanto internacional. No mbito do Brasil, ganhou visibilidade atravs dos movimentos sociais organizados e das aes concebidas por instituies governamentais, como o Plano Estratgico Nacional de reas Protegidas PNAP (Decreto N. 5.758/06) elaborado no governo do presidente Lus Incio Lula da Silva e sob o ministrio de Marina Silva (MMA, 2009). Objetiva estabelecer at o ano de 2015 um sistema abrangente de reas protegidas, englobando as Unidades de Conservao, as terras indgenas e os territrios quilombolas. Essa proposta foi resultante de um processo de debate iniciado em 2004, com a

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assinatura de um protocolo de intenes entre o MMA, ONGs e movimentos sociais, que deu origem ao Frum Nacional de reas Protegidas como um espao de participao e controle social sobre essa poltica, apresentando nesse momento uma conotao de legitimidade no que se refere participao dos grupos e populaes em relao s polticas ambientais, particularmente em relao s reas protegidas. Essa perspectiva da implementao de instrumentos de participao social consolidada no PNAP, fora apresentada na criao do Sistema Nacional de Unidades de Conservao SNUC (2000), abrindo um leque de novas possibilidades em um cenrio politico-ambiental de gesto centralizada pelo poder pblico. Esta lgica seguiu assim um percurso de organizao social, reivindicaes que encontram eco a partir da Poltica Nacional de Meio Ambiente (1981) e da Constituio (1988). Dentre os instrumentos de gesto de Unidades de Conservao apresentados no SNUC, se potencializaram como espaos participativos, o Plano de Manejo PM, e o Conselho Gestor, que, no caso das RESEXs, tem carter deliberativo. Esses mecanismos materializam duas formas institucionalizadas de participao para a populao local, que dependendo dos instrumentais participativos adotados podem ser classificadas em direta e indireta. A participao direta refere-se ao direta de pessoas da populao sem intermediao; a indireta ocorre atravs de intermedirios, com a presena de representaes sejam elas via associaes, delegados eleitos ou outros mecanismos (TEIXEIRA, 2002). O interesse deste captulo visa tomar como ambientes de anlise espaos significativos de participao dentro da existncia legal das RESEXs. A partir desse ponto referencial, selecionamos o processo de criao das Unidades de Conservao e a elaborao da fase I dos PMs, cabendo salientar que a agregao da consulta e audincia pblica (participao direta) como instrumentais participativos, por meio das INs do ICMBio, bem como a constituio dos conselhos (participao indireta) como instncia de debate e espao deliberativo, congregariam, em tese, a favor de uma gesto compartilhada, postas as aes conjuntas a serem desenvolvidas na UC. So vrias as definies de participao social (TEIXEIRA, 2002) que, em geral, referem-se ao envolvimento de beneficirios de polticas pblicas em aes locais, com vistas demanda e controle social, sob a gide da incluso dos agentes locais como ativos do processo. Segundo Texeira (2002, p. 27), entender a participao como processo significa perceber a interao contnua entre os diversos atores que so partes, o Estado, outras instituies polticas e a sociedade.

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Duas dimenses podem ser destacadas de modo a permitir uma melhor compreenso do sentido que a participao social a participao poltico-institucional e a participao comunitria apresenta para os agentes distintos no processo de institucionalizao das reservas extrativistas, em acordo com os dois nveis de instituio ordenados por Ricoeur (1991, 1995), a instituio poltica governamental e a instituio societria. A participao poltico-institucional caracteriza a participao local dentro dos espaos abertos negociao no interior do aparelho do Estado e, portanto a partir das instituies pblicas, espaos esses abertos, assim como no caso em anlise, pelo arcabouo legal e estrutura funcional do rgo que define o modelo de participao, conforme foi referido acima, e que obedece conduta de encaminhamento dos agentes institucionais envolvidos a partir das normas estabelecidas. Tal percepo desses organismos governamentais enquanto estrutura organizadora da poltica e dos modos participativos pode ser abrangida por um dos dois nveis de apreenso dados por Ricoeur (1995) noo de instituio a instituio poltica governamental. Para o Autor, no primeiro nvel, a instituio poltica governamental, caracteriza a repartio, que se refere a direitos e deveres, rendimentos e patrimnio s, responsabilidades e poderes (RICOEUR, 1991, p. 227), podendo aqui se pensar nos variados organismos polticos governamentais que tm por funo administrar o viver junto; assim podem ser pensadas as organizaes de segurana e sade pblicas, as esferas do poder jurdico, bem como os rgos ambientais, dentre outros. E, no segundo nvel, a instituio societria aludindo ao povo, nao, religio (1995, p. 164), referindo-se organizao em si do viverjunto, a instituio societria caracteriza-se pelo ethos de um grupo, de uma comunidade, de um povo. A qual podemos relacionar segunda dimenso da participao social a participao comunitria a outra dimenso da participao em contraponto a participao institucional, compreendida como o processo pelo qual a populao local toma parte nas tomadas de decises nas polticas pblicas institucionais e programas que se estabelecem e que afetam suas vidas, em uma lgica consensual a partir dos valores comunitrios, caracterizadores do movimento da populao local em prol de interesses comuns ao grupo. E, exatamente por isso, porque nas duas definies de instituio esto em referncia as pessoas, os seus problemas, os seus dramas, os seus interesses, seus ofcios e os seus sonhos, que as instituies (nos dois sentidos) nos captulos 4 e 5 deste estudo, procuramos humanizar os dois nveis conceituais de instituio dados por Ricoeur so tambm responsveis pela aplicao da justia.

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Em tica e Moral constante da obra Leituras 1 Em torno ao Poltico (1995), a instituio poltica governamental define-se enquanto estrutura organizacional que configura o regimento de esferas do viver em comum em um determinado contexto histrico. Cujo papel normativo, de acordo com Ricoeur, seria de mediadora do bem comum, portadora da justia na busca da vida boa, englobando os indivduos presentes no convvio social a ttulo de terceiros. O sentido final das instituies o servio que por intermdio delas se presta s pessoas; se ningum h que tire delas proveito e cresciment o, elas so vs (Ricoeur, 1968, p. 111). Desse ponto de vista, sob o Estado democrtico de direito, no bojo das polticas pblicas em sentido mais amplo, e no contexto da poltica pblica ambiental, sob a qual elaboramos este estudo, podemos compreender as instituies polticas governamentais no apenas como as edificaes, muros, paredes ou regulamentos, mas sim unidades sociais vivas, animadas por pessoas, conforme foi demonstrado no captulo anterior, onde nos reportamos s instituies ambientais federais, observadas pelo vis da poltica. De outro ponto, ao conceber a organizao social das populaes extrativistas enquanto instituio societria, aquela do viver-junto somos levados ao ethos de onde a tica tira seu nome (RICOEUR, 1991, p. 228). Ou seja, ao nos apropriarmos dessa segunda definio de instituio em Ricoeur, somos levados a pensar na organizao destas populaes locais, de suas racionalidades internas, seus sistemas ticos e seus comportamentos grupais. Neste contexto impem-se os costumes s regras legais. E como tal, a instituio societria, conforme compreende Ricoeur acima, no se refere somente ao passado, ela constitui-se do presente e do querer permanecer, sendo assim, relativa tambm ao futuro, perspectiva de manter-se enquanto tal, de perpetuar-se, apesar do decurso do tempo, das mudanas incorporadas e das imposies que se fazem nas relaes de poder e subordinao.

O viver bem no se limita s relaes interpessoais, mas estende-se vida das instituies. [...] a justia apresenta traos ticos que no esto contidos na solicitude, a saber, para o essencial uma exigncia de igualdade. (RICOEUR, 1991, p. 227, grifos do autor)

Nessas organizaes societrias, conforme observamos no captulo 4 predominam um sistema de pensamento-ao ligado ao cotidiano da experincia, vale repetir, da racionalidade prtica ao ethos local, peculiarizado pela phronesis de Aristteles, a prudncia, a fim de que prevalea o justo estabelecido na e para a comunidade.

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Ao abordamos as UCs como resultantes de uma instituio poltica governamental, enquanto estrutura estabelecida para as populaes locais e, ainda se apreendermos conforme referido acima em um segundo nvel conceitual (instituio societria) os contextos comunitrios locais que analisamos neste estudo, veremos, conforme Ricoeur (1991), em consonncia com Weber (1991), relaes de dominao, assimtricas, no contraponto da reciprocidade como regra da conduta tica, sob a qual as desigualdades poderiam ser corrigidas pelo reconhecimento.

Uma maneira feliz de sublinhar o primado tico do viver junto sobre os constrangimentos ligados aos sistemas jurdicos e organizao poltica marcar, com Hannah Arendt, a distncia que separa o poder-em-comum da dominao. (RICOEUR, 1991, P. 228, grifo nosso)

Somos levados ento, com Ricoeur, a pensar em um patamar de igualdade por meio do reconhecimento da reconduo pela solicitude, alteridade e pela justia as relaes interpessoais, sociais e jurdicas assimtricas que se estabelecem no processo participativo das populaes locais, mediadas pela instituio pblica responsvel pela criao das RESEXs e elaborao dos PMs, como ser demonstrado no subcaptulo sequencial. Devemos ento perguntar, acompanhando a lgica de distribuio das teses de Ricoeur, por que precisamos recorrer norma, por que a necessidade da perspectiva tica passar pelo crivo da norma? No seria suficiente adotarmos uma atitude tica? A questo da norma est vinculada em Ricoeur em torno da temtica do mal. Afirma ento o autor: La transition entre thique (tlologique) et morale (dontologique) me parat impose par les situations de conflit et de violence [...] (RICOEUR, 1999, p. 8). A natureza humana falvel leva a um agir no tico, o mal um problema da ausncia tica, o respeito moral, lei, interdita o mal. por causa do mal e da violncia que necessitamos do recurso moral, norma, ou seja, a lei, garantindo assim certos princpios que so impostos pelo seu poder coercitivo.

por causa da violncia que se deve passar da tica moral [...] Em face dessas mltiplas figuras do mal, a moral se exprime por interditos: no matars no mentirs [...] A todas as figuras do mal, da violncia, responde o interdito moral. (RICOEUR, 1995, p. 166/167)

Assim, a passagem da visada tica norma moral torna-se necessria posto que a ao humana implica uma capacidade de fazer (agir) que se constitui como mal-fazer, como poder

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exercido por um coletivo sobre outro, nesse mbito que a violncia se mostra em todas as suas formas. De acordo com a proposta tica de Ricoeur, poderamos nos indagar sobre a conduta tica e moral que sustenta as instituies pblicas responsveis pela poltica de UCs. Sobre o primado da tica sobre a moral, ou ainda, sobre a complementaridade entre tica e moral nesse contexto, teses to caras proposta tica de Ricoeur. Note-se que, aqui neste estudo, j apresentamos em captulo anterior, que essas instituies respondem a uma lgica da racionalidade dominante, cujos princpios so norteados por interesses de grupos que detm o poder poltico e econmico, e o monoplio legtimo da fora (Weber, 1997) exercido pelo Estado. Retornamos neste ponto ao racionalismo burocrtico e sua primazia que determina a competncia das instituies e institui por lei (enquanto aspecto deontolgico da ideia de justia) os procedimentos de mediao entre as instituies pblicas (representao do Estado) e a sociedade, sendo que essas instituies gozam de legitimidade. Aqui reside o primado da lei, ou seja, as pessoas devem obedincia norma, ao obrigatrio na lei. Instala-se desse modo o conflito, a tenso e disputa, a busca de hegemonia, logo o que se disputa no jogo da violncia o poder. Em um nvel mais local, analisamos a ordenao burocrtica e legal das instituies pblicas e a ao legtima de seus agentes como mediadoras da (re) ordenao imposta vida das populaes extrativistas locais que possuem seus valores e princpios ticos particulares. O que implica dizer que a legitimidade do monoplio da fora que emana das instituies pblicas enquanto representao do Estado impe uma adaptabilidade dessas populaes ante as tenses que se constituem, tendo em vista os diversos valores historicamente tecidos por essas populaes em relao s suas dimenses socioculturais, econmicas e ambientais. Essa percepo nos leva ao que Ricoeur compreende como possibilidade do mal. Esse mal consubstanciado nas distores que se agregam no decurso de implementao da poltica, sob as quais as populaes locais so o terceiro coletivo. Aqueles que a lei enquanto instrumento da racionalidade formal cerceia, por meio de seu carter universalizante, de manter o arbtrio tico da inteno de vida boa, limitando as suas condutas de forma objetivada e uniformizadora conforme detalharemos no subcaptulo conseguinte neste intervalo que se pode afirmar a existncia da violncia legtima.

Mas h outra face do problema: o Estado como fora. O grande socilogo alemo Max Weber no deixava de integrar esta componente da fora na sua

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definio do Estado [...] Para ele o Estado no pode ser definido se no se incorporar na sua funo o monoplio da violncia legtima (RICOEUR, s.d, p. 394)

Para o autor e aqui nos interessa mais especificamente dado o carter formal legal da poltica pblica em estudo a idia de justia tambm implica em um sentido formal, por meio do qual se insere no campo da moral, a justia institucional-legal. Em nossas sociedades ocidentais, secularizadas e laicas, a justia foi gradativamente substituindo o sentido tico de justia por uma justia normativa e abstrata do socius, aquele a quem chego atravs de sua funo social; a relao ao socius uma relao mediata; atinge o homem na qualidade disto ou daquilo (RICOEUR, 1968, p. 102).

A teoria da justia passou para o lado deontolgico, vale dizer, uma concepo na qual todas as relaes morais, jurdicas e polticas so postas sob a idia de legalidade, de conformidade com a lei [..] significa conformidade com as leis surgidas da atividade legislativa do corpo poltico (RICOEUR, 1991, p. 95-96).

A noo de justia se constitui desse ponto, na relao da tica com a poltica, visto que a tica s completa como poltica po rque o conjunto dos homens, a comunidade que orientada para o viver bem e desse ponto, a dimenso poltica realiza-se pela via do Estado (RICOEUR, 2002 apud BRONDANI, 2010, P. 9). Na esfera do poltico, se tem uma ao dirigida a do sentido da aco racional (RICOEUR, s.d, p. 391) do viver em comum que em sua interseco com o tico, inteno de vida boa - e onde se instala a tenso relativa ao poder e dominao, a justia pode aparecer a pelo emprego da fora pblica. Para Ricoeur, uma necessidade poltica, e por vezes, jurdica, estabelecer a ordem a fim de dar cumprimento ao institucional-legal, no caso dos agentes institucionais que analisamos, na forma do dever de ofcio. A proposta de Ricoeur nos permite contrapor duas concepes distintas de justia que se coadunam s noes de instituio em anlise. Os sentidos de bom, bem viver pautados na tradio do cotidiano das populaes nos quais o significado de justo recebe uma conotao tica, e a concepo de justia que permanece estruturada nas capacidades jurdicas do legal. A tese defendida por Ricoeur a que a dialtica do bom e do legal seria inerente ao papel de idia reguladora, que pode ser atribuda idia de justia com relao prtica social que nela se reflete (RICOEUR, 1995, p.91) Posto dessa forma, concentramos nossos esforos para compreender o sentido da participao para os agentes envolvidos na criao das RESEXs Marinhas e na elaborao de

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seus PMs e suas (des) conexes com a perspectiva tica, cujo norte ser dado pelos princpios ticos enunciados por Ricoeur a pensar um caminho rumo ao que justo na inteno de vida boa.

6.2.2 O CONTEXTO PARTICIPATIVO NAS RESEXS MARINHAS Devemos comear essa anlise considerando que o ethos ambiental local analisado no captulo 4, foi apresentado no intuito de evidenciar os valores e sentidos manifestados na organizao social e do trabalho daquelas populaes. Observe-se que as formas simblicas e materiais de representar as relaes homem/natureza constituem-se como um mecanismo de organizao do uso dos recursos naturais e manuteno do modo de ser do grupo. Desse modo, essas populaes locais orientam-se em busca da prpria sobrevivncia e da reproduo social das categorias pescadores, caranguejeiros, camaroeiros, coletores. Ao ser apresentado s essas populaes a possibilidade de criao de uma rea protegida, o sentido primeiro o da proteo desses recursos para a manuteno de suas formas de organizao. Contudo, o que se apresenta por meio da implementao da poltica so modos de compreender e agir distintos daqueles comuns ou esperados pelos locais. O dever institucional a cargo de seus agentes constitui-se em relaes que embora orientadas enquanto discurso legal e cientfico para o respeito pelo outro, enquanto sujeito do processo, se apresentam como aes objetivamente orientadas aos fins que se destinam, esvaziando de seus valores, sentidos e expectativas prprias o contexto local. Impe-se assim um misto dessa nova territorialidade imbricado ao modo de ser e fazer locais, que se desdobra em novos arranjos socioeconmicos e culturais, de forma a lidar com os arranjos da poltica que se impe a eles.

6.2.2.1 O processo de criao das RESEXs Marinhas de Soure e Ara-Peroba

A unidade de conservao de Soure, como j dissemos, foi a primeira RESEX marinha criada no estado do Par. Desse ponto de vista, o processo de criao esteve sustentado nas experincias institucionais de criaes anteriores, mesmo que as outras RESEX marinhas criadas no Brasil at aquele momento, Pirajuba (RJ) e Delta do Parnaba (PI), apresentassem ecossistemas bem distintos do contexto amaznico.

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O processo que culminou com a criao da reserva extrativista marinha de Soure no ano de 2001, tomou como mote ambiental a questo especfica dos manguezais, demandada poca pelos caranguejeiros em virtude dos conflitos com a mesma categoria de trabalhadores de outras regies do Par e, do uso indevido dos recursos, inclusive com tcnicas danosas por prejudicar a vegetao de mangue e aprisionar o caranguejo-u em tamanho juvenil, alm das fmeas as conduruas. Muito embora os caranguejeiros locais praticassem, e ainda pratiquem, tcnicas tambm consideradas danosas (de acordo com legislao especfica) como o ferro de cova129. A inteno das denncias realizadas pelos caranguejeiros se fazia conforme expe o senhor Rodrigo Leal, primeiro presidente da Associao dos Caranguejeiros de Soure (ACS), uma alternativa para tentar coibir esse uso dos recursos naturais por pessoas de fora do municpio, em detrimento da categoria local:

Aqui ns ficamos meio revoltados, por causa da laao, de todo tipo de armadilha que o pessoal de Bragana, Vigia, usa aqui na Costa do Maraj. Ento ns ficamos assim, revoltado [sic] por causa do lao, das armadilhas, inclusive o tapa buraco que o caranguejo j sai quase morto. A, se despesca muito bem, se no, morre [...] Aqui ns estamos ficando sem o caranguejo [...] A, ns pensamos como amos fazer e ns levamos ao conhecimento do IBAMA, era a Carmem Dolores e o Dr. Antonio Melo. (informao verbal)130

A presena constante dos servidores do escritrio do IBAMA na cidade de Soure desde a extino da SUDEPE aproximou os tcnicos da populao local no que se refere s suas constantes demandas. De acordo com relatos recorrentes entre os diversos agentes sociais envolvidos nesse processo tanto usurios quanto tcnicos do IBAMA, representantes de ONGs, associaes e vereadores poca essa significao apresenta-se como o mote para os debates e a introduo da ideia da reserva em Soure. Importa, contudo, observar que so tambm recorrentes na fala dos caranguejeiros alguns descontentamentos que perduram at os dias de hoje, dentre os quais se destaca um, que d maior sentido participao direta e comunitria dessa categoria no processo que culminou com a criao da UC; a necessidade de

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O ferro de cova uma cavadeira reta com cabo utilizada pelos caranguejeiros para perfurar o solo dos manguezais em busca do caranguejo-u. Na regio da RESEX de Soure muito utilizado em virtude dos manguezais serem mais densos, o que se agrava durante o vero. O problema no uso desse instrumento, de acordo com relatos de tcnicos e orientaes legais, que o ferro de cova corta as razes da vegetao de mangue. 130 Entrevista concedida pelo Sr. Rodrigo Leal primeiro presidente da ACS, em dezembro de 2010.

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conservao dos recursos naturais para a manuteno e sobrevivncia da categoria territorialmente situada, ou seja, especificamente os caranguejeiros de Soure. Vale salientar conforme Castro (In: DIEGUES, 2000) a noo de territrio em aproximao com a noo de lugar, levando em considerao as dimenses subjetivas, afetivas e culturais que se manifestam nos laos existentes entre a atividade produtiva ser caranguejeiro e, o ambiente de trabalho os manguezais de Soure. A autora parte da definio de territrio como o espao no qual um grupo garante de forma estvel os direitos de acesso, uso e controle dos recursos naturais, alm de sua disponibilidade de uso no tempo. Portanto, essa disponibilidade subentende acesso aos recursos dos quais necessitam e exploram sob condies dadas. No plano local, as disputas pela territorialidade entre os agentes locais, se do em virtude da possibilidade de produo e reproduo da vida e da manuteno de identidades de grupo, conforme foi possvel observar em campo. A unidade de conservao apresentou-se para essa categoria com o sentido primeiramente de atender as questes socioeconmicas do grupo com vistas sobrevivncia, conforme evidenciado na fala dos caranguejeiros. Esse o principal interesse pelo qual o grupo se manteve organizado tanto na Associao de Caranguejeiros de Soure ACS, como no primeiro momento da criao da UC, em acordo mtuo com os tcnicos do IBAMA. Desse modo, podemos considerar que a participao dessa categoria local obedeceu a uma lgica de reafirmao da identidade grupal:

Ns tnhamos interesse na reserva, at porque era pro pessoal no vim [sic] pegar o caranguejo aqui nosso, porque quando fizeram a reunio disseram que depois que se tornasse reserva ningum ia poder pegar o caranguejo, era aqui, s ns. No adiantou nada, porque fiscalizao no tem (informao verbal) 131

Naquela poca, o pessoal do IBAMA, quem era a favor, era a Dr. Carmem quando era viva e o Antonio quando estava aqui [...] Eles eram a favor da gente, sempre a favor da gente [...] Isso que ns espervamos que viesse, era essa prosperidade com a criao da reserva que eu esperava. Quando ns comeamos a reunir, era o que eu esperava. Mas no tem fiscalizao, se tivesse fiscalizao [...] a entrada desse pessoal continua, to prova que vai comear agora o perodo do defeso do caranguejo, ns estamos certos de que vai comear, mas pra eles l no tem nada, para aqui, a gente no pode ir ali no mangal tirar caranguejo pra comprar alimentao, mas eles levam de

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Entrevista concedida por Fico, Sr. Raimundo Leal, caranguejeiro, atual presidente da ACS e morador do bairro do Pacoval, em janeiro de 2011.

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milheiro, porque eles pescam l e de l eles atravessam pra Belm ou pra Vigia, Curu, ento pra eles no tem proibio. (informao verbal)132

Essa percepo dos caranguejeiros de Soure muito clara para a equipe tcnica do IBAMA que atuou nesse processo. Esse o fato recorrente na fala dos tcnicos do IBAMA como propulsou do cenrio que vai desencadear a existncia legal da UC. E com essa mesma significao, o argumento foi usado para justificar e convencer os caranguejeiros que a criao da unidade seria a alternativa de soluo para a problemtica apresentada, graas ao poder fiscalizador do rgo. De acordo com Otvio Albuquerque:

A criao da Reserva envolve s a eles [refere-se aos caranguejeiros] tanto que a colnia [de pescadores] no tem participao nesse processo, basicamente os tiradores [caranguejeiros]; fizemos uns cursos de beneficiamento do caranguejo, reunies; eram eles, e depois eles foram excludos do processo [...] e a, eles usam [refere-se a outros tcnicos

atuantes na elaborao do Plano de Utilizao], quer dizer usam os caranguejeiros, eles so afastados do processo, a entidade representativa encostada [refere-e a ACS], essa a historia. (informao verbal) 133 Esse encaminhamento, que agregou especificamente a categoria dos caranguejeiros, legitimando a ao institucional, gerou uma ciso posterior no que se refere participao destes nas aes concernentes unidade, uma vez que durante o processo de elaborao do Plano de Utilizao, encaminhado por outro tcnico do IBAMA que no havia participado do processo de criao Vergara Filho os devidos esclarecimentos passaram a ser realizados e outros sentidos institucionais se impusseram. A RESEX no atenderia somente a essa categoria e, tambm, no impediria a entrada de outros usurios, mesmo de outras regies. De acordo com Vergara Filho:
Houve uma insero poltica nesse processo, a ONG Novos Curupiras e o deputado Mrio Couto acostumaram muito mal a Associao dos Caranguejeiros. S que os caranguejeiros que peitaram o pessoal de So Caetano que entravam [sic] pra tirar caranguejo, eles queriam criar a reserva s pra eles. A minha entrada visava mostrar que a reserva era para todos os tipos de extrativistas, no s caranguejeiro. Eu pratiquei isso, chamando todas as modalidades de pesca para o debate. (informao verbal)134

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Entrevista concedida pelo Sr. Rodrigo Leal caranguejeiro e morador do bairro Novo, em dezembro de 2010. Entrevista concedita por Otvio Albuquerque, socilogo, tcnico do IBAMA, em fevereiro de 2011. 134 Entrevista concedida por Vergara Filho, bilogo atualmente contratado do ICMBio, em fevereiro de 2011.

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Assim na elaborao do PU quanto na criao da ASSUREMAS e na criao do Conselho Deliberativo segue um curso de isolamento da categoria dos caranguejeiros, cuja associao ACS se quer possua assento. Fato esse que, de acordo com o relato do presidente da ACS, justifica o afastamento deles:

Quando surgiu [fala sobre a reserva], o Vazinho nunca tinha participado de nada, de uma reunio [...] A quando eu me espantei, foi uma grande reunio e j era pra o Vazinho ser presidente provisrio da RESEX [ASSUREMAS]. Depois ele foi candidato reeleio e eu tambm fui [...] foi feita muita bandalheira, as assinaturas dos scios no apareceu [sic], aqueles que votavam em mim. Tiraram os nomes dos scios da memria do computador, saiu at confuso l no prdio, porque o pessoal queria votar em mim. (Informao verbal)135 S que eles [refere-se aos caranguejeiros] que iniciaram as discusses s pensavam em preservar mesmo, mas eles no pensaram nessa possibilidade, que na verdade a RESEX iria trazer um beneficio maior [...] quando o Vergara chegou aqui em Soure foi com uma ideia diferente, que nos deu mais vontade de trabalhar [...] quando ele colocava pra comunidade que a RESEX trazia um benefcio tipo crdito, ele j trazia essas novidades pra ns. (informao verbal)136

Nesse momento a questo ambiental se atrela a outras polticas viabilizadoras de recursos econmicos, como a poltica do INCRA. Entram em cena interesses particulares de gerir e dar destinao a esses recursos. A populao de extrativistas visando o recebimento das casas e outros benefcios como geladeiras, freezers e apetrechos de trabalho valores assumidos como dvida pelos beneficirios junto ao rgo financiador era induzida a pactuar em torno desses benefcios, sobre os quais proveitos eram auferidos. Denncias so recorrentes na fala de usurios e de tcnicos do IBAMA, como, por exemplo, de que dez por cento do recurso destinado a aquisio desses benefcios ficava a ttulo de colaborao por cada usurio beneficiado na conta da Associao dos Usurios e que o valor empregado na construo das casas e na aquisio dos outros benefcios no correspondia ao valor destinado para tal. Segundo dados informados por Joo Carmelino Ramires da ONG SOS Maraj, a ideia da Reserva se constituiu como consequncia dos conflitos vivenciados pelos caranguejeiros e das constantes denncias, tornando pblica a problemtica. Desse modo, foram convidados a participar de um debate em uma jornada pedaggica realizada pelo Campus da Universidade
135 136

Entrevista concedida pelo Sr. Rodrigo Leal, em dezembro de 2010. Entrevista concedida por Valdemil Medeiros, o Vazinho, primeiro presidente da ASSUREMAS, em janeiro de 2011.

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Federal do Par (UFPA) no ano de 1996, onde tambm participavam representantes do IBAMA local. Dessa jornada, o principal encaminhamento foi a criao de uma Associao, o que fortaleceria a categoria e permitiria a eles ter representatividade junto as diversas esferas institucionais participativas, tendo sido criada a Associao dos Caranguejeiros de Soure (ACS), cujo primeiro presidente e vice foram Rodrigo Leal e respectivamente. Contudo, sabe-se que a criao da ACS foi, a partir de perspectiva institucional, o ponto de partida para que a ideia de reserva fosse concretizada e para o seu efetivo procedimento, j que o primeiro preceito legal a ser garantido pelo rgo ( poca o IBAMA) que a demanda para criao da UC partisse da populao local, logo, a criao da ACS cumpriria essa funo de legitimar a demanda local e demonstrar organizao social. Inclusive, ficando a cargo dessa associao a coleta de assinaturas, por meio de abaixoassinado, para a solicitao de criao da reserva que comps os autos do processo de criao da unidade.
Ao participar do debate, eles [caranguejeiros] levantaram a problemtica. Uma era o conflito com donos de terra, mas o principal problema era com os caranguejeiros do outro lado, que pra eles pescavam de forma predatria [...] a veio a ideia da associao. (informao verbal)137

Antnio Souza Almeida

A partir da problemtica apresentada pelos caranguejeiros, o IBAMA/Soure a fim de agregar em torno do debate ambiental e do interesse institucional para a criao da UC, incentivou a formalizao dessa associao, que a nica no Estado do Par. O processo precisou de apoio da Promotoria Pblica de Soure para a regularizao e elaborao do estatuto, em virtude do alto ndice de no alfabetizao entre os caranguejeiros, conforme relatos confirmados tambm pelos dados do laudo socioeconmico para a criao da reserva analisado com fins a este estudo por ns. A esse respeito pode-se ponderar que depois de organizados na ACS, os caranguejeiros passaram a se organizar com o interesse de criar melhores condies de trabalho e renda, o que se apresenta como uma consequncia das atitudes iniciais desses extrativistas que buscavam o apoio do rgo ambiental para tratar primeiramente dos problemas que afetavam o exerccio de suas atividades produtivas.

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Entrevista concedida por Joo Carmelino Ramires, socilogo, morador local e a poca colaborador da ONG Novos Curupiras, em Janeiro de 2011.

Participao e Perspectivas ticas 299

Nessa poca, a ONG Novos Curupiras j atuava no bairro do Tucumanduba, onde mora grande quantitativo dos caranguejeiros e, onde fica localizada a sede da ACS (construda com apoio do ento deputado Mario Couto), e que por meio de um aporte financeiro da empresa Petrleo Brasileiro S/A (PETROBRAS), veiculou a aprovao de uma unidade de beneficiamento da massa do caranguejo, projeto encampado pela ACS. Contudo, segundo informaes de pessoas que, naquele perodo se encontravam envolvidas com o debate, a ONG desviou a verba para outros projetos e a PETROBRAS cancelou o restante da verba quando de vistoria tcnica ao bairro, a unidade de beneficiamento no se concretizou.

Os curupiras [ONG] fizeram um projeto de um milho e duzentos mil Reais da PETROBRAS. Parece que eles pegaram quinhentos mil, faltando setecentos. [...] E aonde ia ter uma fbrica de beneficiamento do caranguejo na Associao de Caranguejeiros. Quando foi uma vez, o Gondim chegou aqui e disse que ia fazer a fbrica l, mas que ia trazer uma pessoa que era pra dirigir a fbrica, porque o caranguejeiro no tinha condio de dirigir a fbrica. [...] E a a gente ia ter uma participao se a gente trabalhasse, era uma cota. Eu ento disse pra ele que era pra eles procurarem uma rea pra construir a fbrica na rea deles, porque l [ACS] pra ns. E ficou nisso da. Parece que veio um fiscal da PETROBRAS, chegou l no tinha nem pedra [...] com o dinheiro eles andaram fazendo a umas [...] incurses pelo mangal que levava caranguejeiros e os estudantes pra ver quantos caranguejos dava por cada 100 metros. E os 500 mil foi [sic] embora. (informao verbal)138

Podemos inferir que o sentido da ao empreendida pelos caranguejeiros de Soure acerca das denncias dos conflitos vivenciados buscava o reconhecimento da causa social, da condio de vida e trabalho daquele grupo. O fato de passarem imediatamente a ter respaldo junto ao escritrio local do IBAMA e o interesse suscitado em outros espaos pblicos Universidade, Igreja, Promotoria Pblica gerando credibilidade para a categoria, reforou a ideia de que as aes davam visibilidade s questes do grupo de extrativistas. Observa-se, desse modo, que essa categoria age orientada por valores grupais relativos no questo ambiental que subjaz a sua atividade produtiva, mas principalmente com vistas manuteno do trabalho, para o qual dependem dos recursos do manguezal, em uma clara manifestao de participao comunitria, conforme definimos acima. O sentido norteador da ao dos caranguejeiros de Soure, que foi, em certa medida, compreendido pelos tcnicos do IBAMA local, foi no momento inicial do processo resignificado como um apelo ambiental pelos tcnicos do CNPT/IBAMA-Belm, quando da abertura da perspectiva de criao de uma reserva extrativista marinha no Estado. Essa re138

Entrevista concedida pelo Sr. Rodrigo Leal, em dezembro de 2010.

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significao norteou as aes dos tcnicos buscando caminhos para a criao da terceira RESEX marinha do Brasil, quando o CNPT, por meio de sua diretora Jucinia Teixeira reuniu-se com os caranguejeiros a fim de agilizar as etapas necessrias para a constituio do processo de solicitao de criao da reserva. Desse modo, podemos aferir que os agentes sociais envolvidos na origem da ideia de criao da reserva possuam interesses diversos e suas aes tinham sentidos distintos diante da problemtica dos manguezais de Soure, conforme Weber (2002, p. 46):

Todas as partes mutuamente orientadas numa dada relao social no manifestam necessariamente o mesmo sentido subjetivo, ou seja, no precisa haver qualquer reciprocidade [...], pois uma parte pode manifestar uma atitude inteiramente diferente da de outra [...] a relao social, para cada parte, simplesmente assimtrica.

Caberia, desse ponto de vista, e de acordo com a perspectiva tica de Ricoeur, que essas assimetrias fossem dirimidas a partir da ideia de reconhecimento, alicerada para o autor nos princpios da reciprocidade e da alteridade. Na filosofia ricoeuriana, o si ser tico, visto que, ao ser traspassado pela alteridade, um si mesmo que procura ser reconhecido com e para o outro, um si mesmo como um outro. na solicitude que est a chave para estabelecer uma igualdade entre o si e os diversos Outros. Para Ricoeur, a similitude o resultado da troca entre a estima de si e a solicitude. Essa troca autoriza a dizer que no posso me estimar eu mesmo sem estimar outrem como eu mesmo (1991, p. 226).

Talvez esteja a a prova suprema da solicitude, que a desigualdade de potncia venha a ser compensada por uma autntica reciprocidade na troca, a qual, na hora da agonia, refugia-se no murmrio dividido das vozes ou no aperto dbil de mos que se cumprimentam (RICOEUR, 199, p. 224, grifo nosso).

Contudo, o que subjaz desse processo um conjunto de percepes, sentidos e condicionalidades grupais constitudo em contextos distintos e que impulsionam as aes desses agentes em interao. Reafirma-se aqui uma significao por parte dos caranguejeiros sustentada em uma racionalidade prtica entendida conforme afirma Sahlins: a criao do significado a qualidade que distingue e constitui os homens [...] de modo que pelos processos de valorizao e significao diferenciais, as relaes entre os homens, bem como entre eles e a natureza, so organizadas (2003, p. 105), e por outro lado, uma racionalidade

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tecnocrtica subjetivada no dever do ofcio para os agentes institucionais. De onde no se compreende que o percurso em direo a si mesmo s possvel pela via longa, atravs do outro, tomando aqui o outro no sentido lato, de tudo que outro face a mim, seja o texto, a narrao ou o outro eu. O outro Si, o outro homem. (FONSECA, 2009, p. 04, grifos da autora). Embora no se possa negar que a presena do rgo ambiental e a criao da UC tenham estabelecido ou ressignificado valores e sentidos locais acerca do uso dos recursos naturais e de sua conservao, conforme explanao abaixo, relaes dialgicas e de Encontro no se fazem naquele contexto com os outros, aqueles sem face, terceiros que no sero jamais rostos (RICOEUR, 1991, p.229) com os quais os agentes da ao pblica no trocam sentidos, sentimentos.

A camaleoa a gente pegava tirava os ovos e ela a gente cozinhava e comia. Era assim antes de criar a Reserva. O caranguejo tambm a mesma coisa. Se eu lhe contar uma coisa, cansei de pegar caranguejo na hora de cruzar, porque fica um l com ela [a condurua] e o resto fica aqui na briga, pegava s os machos, tava fazendo o mau, mas no sabia. Hoje no, eu no ia pegar ele cruzando. Hoje quando se pega o caranguejo, se pega o grande, no pega o mido, porque esse ainda t em fase de crescimento, j um meio de preservao. [...] (informao verbal)139

Importa em torno da citao acima de forma concisa resgatar Buber (1974) acerca do mundo do Isso, conforme indicamos acima, posto que de acordo com o terico, no relacionamento Eu-Isso o outro no encontrado como outro em sua alteridade (p. LII). E aqui gostaramos de pontuar um momento dessa relao das populaes locais que de utilizao da natureza, como referncia a outras possibilidades possveis de serem apreendidas nesse contexto. No bojo da institucionalizao da reserva, ainda em 1997, o IBAMA de Soure, na pessoa de Antnio Melo, organizou o Primeiro Encontro dos Manguezais com a participao dos caranguejeiros e com a presena de instituies pblicas municipais e federais entre as quais o Ministrio Pblico Federal (MPF) e o CNPT, alm do CNS. Reafirmou-se a ideia de criao da RESEX marinha de Soure, e isso apontava como um ganho poltico institucional. De acordo com Ricoeur (1968, p. 103) A evoluo das instituies polticas modernas [...] forjam pouco a pouco um tipo de relaes humanas cada vez mais dilatadas, sempre mais complexas, sempre mais abstratas.
139

Entrevista concedida pelo Sr. Rodrigo Leal, em Dezembro de 2010.

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Cabe desse modo, compreender que as aes institucionais encaminhadas pelos tcnicos com o objetivo ltimo de criao das RESEXs enquadram-se sob a orientao da ao racional referente aos fins (legais-institucionais) quando pensadas a partir do sentido do cumprimento do dever funcional, podendo ser relativizadas, se considerarmos que muitos tcnicos so tambm ambientalistas, ou que os cargos tcnicos so ocupados por militantes da causa ambiental e/ou da poltica partidria, ressaltando-se o valor de suas aes. Nesse sentido, essas aes, podem ser apreendidas a partir do tipo racional referente a valor, ou seja, no dizer de Weber a ao s racional referente a fins no que se refere aos meios [...] a orientao racional referente a valores pode, portanto, estar em relaes muito diversas com a orientao referente a fins (2002, p. 16). Embora as aes institucionais, tivessem como fim ltimo a criao da reserva por meios tecnicamente definidos, levaram a resultados conflitantes com a categoria dos caranguejeiros, que foram dirimidos de acordo com o interesse institucional e de acordo com os interesses particulares e de grupos atrelados s polticas agregadas.

Foi a que comeou a desgostar a gente, comearam a aparecer os interesses, comearam a vislumbrar a arrecadao de recursos, comearam a chegar, por exemplo, o CNS. Eu no sou contra, mas a gente tinha que ver a partir da criao da Reserva. L dentro do IBAMA, a gente via elementos com pronto interesse na manipulao desses recursos [...] a quando veio esse outro pessoal foi que levou a reserva para esse outro caminho, dava outro tom pra coisa, desviou do interesse ambiental (informao verbal)140

De acordo com Vergara Filho, bilogo que atuou na elaborao dos Planos de Utilizao das RESEXs Marinhas no Par, a questo dos interesses, principalmente polticopartidrios uma constante nesse processo de implementao das unidades no Brasil:

O grande problema daqui [Par] e da maioria do Brasil que militante quer ser governo, militante quando no tcnico, que no tem formao tcnica. Muitos cargos no governo so ocupados por pessoas sem formao tcnica, com muita contribuio poltica, faltando a compreenso tcnica do processo (informao verbal)141

Por outro lado, a participao dos extrativistas locais nas aes da poltica de UCs, em diversos momentos foi norteada por interesses grupais que comungam. Desta forma, antes do
140 141

Entrevista concedida por Joo Carmelino Ramires, em Janeiro de 2011. Entrevista concedida por Joo Vergara Filho, em Fevereiro de 2011.

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valor ambiental ou outros valores agregados, falavam mais alto os interesses mais imediatos ao grupo, a partir da racionalidade prtica do que bom, aqui e agora. A partir do sentido dado pelos tcnicos do CNPT/IBAMA, cursos de capacitao foram adotados como parte da poltica. Os quais foram oferecidos a fim de constituir um grupo de agentes ambientais, em que foram envolvidos tanto caranguejeiros quanto universitrios e integrantes de ONGs locais. Este mecanismo participativo visava atender aos interesses insitutucionais acerca da fiscalizao, prtica comum para suprir a carncia de servidores do rgo e um apelo constante do IBAMA para que as populaes extrativistas servissem de apoio no combate aos desmandos ambientais no litoral. A carteira de agente ambiental fornecida pelo rgo dava aos extrativistas locais um sentido de Empowerment na resoluo de problemas e conflitos de uso dos recursos naturais e que, alm disso, era percebido pelos extrativistas com o sentido do reconhecimento do domnio tcito sobre aquele lugar de organizao da vida social local. Reafirmava-se por meio dessa ao do IBAMA, como consequncia inesperada, a noo de territorialidade social, cujo cerne o domnio e a posse desses lugares pelas populaes que vivem da explorao desses recursos a vrias geraes. Atualmente recorrente na fala dos usurios em ambas as reservas Soure e AraPeroba , a falta de autoridade deles para interferir localmente acerca das questes referentes ao uso dos recursos naturais, bem como a falta de condies para executar a tarefa fiscalizadora quando da ausncia de fiscais do rgo. Percebemos ainda, que comum certa lembrana saudosa da poca em que usavam as referidas carteiras, posto que o ICMBio, hoje como o rgo gestor das unidades, no pode emiti-las.

Esse problema [fiscalizao] muito srio aqui, agora eu acho que ns aqui ou pelo menos a reserva [refere-se Associao de Usurios AUREMAP] deveria ter se preocupado mais com isso [...] tinha que ter um pouco de conscincia porque quando se fizesse um negcio desse, era primeiro pra pensar qual a finalidade da reserva; no preservar? Ento eu vou munir quem quer que seja que se apresente voluntariamente para trabalhar, mas eu vou dar o mnimo de dignidade para ele. Eu vi l no Cedro [refere-se a vila do Cedro], o pessoal sai de l, vo [sic] at o Porto do Campo a remo pra fiscalizar, no deram nem um barco motorizado pra que eles pudessem fazer isso. (informao verbal)142

Essa prtica, de delegar s populaes locais a tarefa fiscalizadora, remonta a um comportamento antigo, historicamente situado no perodo da Primeira Guerra Mundial,
142

Usurio no identificado, em reunio da faseI de elaborao do PM da RESEX Ara-Peroba, em Dezembro de 2009.

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adotado pelo Estado brasileiro, que associava aos pescadores a fiscalizao e o cuidado com a fronteira brasileira, por meio da criao das colnias de pescadores, sob a tutela da Marinha de Guerra e que mais tarde, nos anos 60, esteve sob os cuidados da SUDEPE. No caso da RESEX de Soure, o processo de criao sugestivo de uma constante distribuio de tarefas delegadas sociedade por meio da atuao de pescadores, estudantes, vereadores, dirigentes de associaes, todos envolvidos na realizao material da criao da unidade. Contudo, sem um esclarecimento maior acerca dos reais caracteres da RESEX, da funo e limitaes inerentes ao rgo. Por vezes, possvel entrever que o prprio rgo usou como recurso os interesses grupais e pessoais dos locais, canalizando suas aes para seu fim ltimo, a criao da unidade como recurso de proteo ambiental e ganho poltico. Esse uso do interesse e do trabalho da populao local caracteriza a participao como institucional, conforme interesse e espaos abertos pelo rgo. Todo o processo de criao da RESEX de Soure apresenta-se perpassado por interesses polticos que permeiam o processo originrio de interesse da categoria dos caranguejeiros para a resoluo do problema do mau uso dos recursos naturais por caranguejeiros de outros municpios:

Ento ele [Atanagildo Matos] mandou que a gente procurasse outras reas pra criar reservas, florestais, terra firme, e disse bem claramente dinheiro tem, tem rgos internacionais bancando, e ele no queria menos que 50 mil hectares, quanto mais reas a gente conseguisse mais dinheiro tinha. Ento a obrigao da gente era sair atrs de rea; quer dizer, a demanda no vinha at ns, ns que amos caar demanda, e s abrir um parntese, que na verdade a nica das nove Marinhas, a nica que partiu de l, quer dizer, ns tnhamos o remdio para o conflito, mas a nica que partiu de l foi Soure, quer dizer, ns estamos com uma situao. Como que a gente resolve? Olha, tem uma estratgia aqui de criar uma Reserva, nos outros municpios no. Ns fomos nos municpios dizendo Olha ns temos aqui uma estrutura, conflito tem entendeu, tem os conflitos, pra tentar resolver os conflitos tem a Reserva, ento Soure tem um diferencial das demais (informao verbal)143

A situao primeira e fomentadora da criao da reserva de Soure exemplar para a definio de participao comunitria, uma vez que a categoria dos caranguejeiros apoiada por ONGs e outras organizaes da sociedade civil buscavam inserir-se na resoluo de problemticas locais, demandando solues junto esfera pblica. Muito embora, devam-se salientar, conforme exposto, os diferentes interesses e sentidos diversos que perpassaram o processo participativo de criao.

143

Entrevista concedida por Otvio Albuquerque, socilogo do IBAMA, em fevereiro de 2011.

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No caso da reserva Ara-Peroba, a participao local caracterizou-se por uma participao institucionalizada, considerando a interferncia direta do rgo no sentido de criar condies e difundir a idia de reserva para a populao, conforme relata acima Otvio Albuquerque. O mote da criao foram tambm os conflitos vivenciados pelos pescadores nessa reserva o extrativismo vegetal pouco praticado 144 situaes j conhecidas pela equipe tcnica, atravs de atuao anterior que resultou nos acordos de pesca das vilas do municpio. A partir da, o passo seguinte no sentido da criao da Reserva, foi pactuar com a esfera pblica municipal.

Ns temos encampado essa luta, o que melhor para o municpio melhor para todos ns, inclusive para a administrao pblica municipal. Ns temos tido sim a preocupao de pedir aos rgos pblicos competentes, ao CNPT, que viesse fazer o estudo para ampliao da RESEX, visando incluso social daqueles muncipes que ainda no fazem parte e levar todos esses benefcios a todas as pessoas (informao verbal)145

A participao da populao local se deu por meio de reunies e audincias pblicas. Convencida dos benefcios que a poltica traria particularmente a poltica do INCRA, com recursos para apetrechos de pesca e moradia constitui-se um pacto pela criao da RESEX Ara-Peroba por meio da busca de apoio e legitimao de pessoas de referncia nas vilas. Foi o caso do senhor Jos Antero, capataz da colnia de pescadores em Augusto Corra, na poca em que a SUDEPE atuava, e do senhor Nelson Rabelo, da Associao Agropesqueira da Vila do Porto do Campo, ambos atuantes e j conhecidos dos tcnicos do rgo desde as suas aes via SUDEPE.

H treze anos atrs[ sic] ns iniciamos um trabalho aqui no municpio de Augusto Corra [...] o Ara conhecido como a terra do camaro, o seu Z Antero nos procurou em Belm falando do situao de misria que o povo do Ara tava passando, porque estavam [sic] com as piores prticas de pesca predatria daquele municpio, ele foi atrs de uma soluo;[...] estivemos no Ara e nos reunimos com as pessoas que queriam resolver o problema. Foi a que surgiram os acordos de pesca e da surgiu, acho, o embrio da RESEX [...] h oito anos atrs [sic] junto ao CNPT, eu coloquei o interesse em fazer esse trabalho e ns j tnhamos o embrio em Augusto Corra (informao verbal)146
144

Essa atividade ocorre principalmente em localidades mais distantes do litoral do municpio, como as vilas do Ipixuna e Itapixuna. Nas reunies da fase I para elaborao do PM, observamos, em certa medida, essa atividade secundarizada em relao a atividade pesqueira, nas aes tcnicas. 145 Ams Bezerra, Prefeito Municipal de Augusto Corra em Audincia Pblica na vila do Aturia, em julho de 2007. 146 Otvio Albuquerque em Audincia Pblica na vila do Aturiai RESEX Ara Peroba, em julho 2007.

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O fortalecimento da ideia de criao da RESEX que ocorreu nas vilas do municpio de Augusto Corra se deu tambm pela via participativa institucional indireta, por meio das associaes de moradores e pescadores que j existiam, posto o processo de atuao institucional da SUDEPE poca sob as aes de Otvio Albuquerque, que retorna a essas localidades para efetivar a ideia da RESEX, desta vez j atuando pelo IBAMA. O que difere substancialmente as formas de como a ideia de criao da RESEX se apresenta em Soure e Augusto Corra. No ano de criao da reserva de Soure, houve uma reunio com vrias representantes de associaes para discutir esse processo de criao. Relatos de usurios ocorridos em atividade do ICMBio do dia primeiro de julho de 2009 no bairro do Umirizal indicam que na reunio referida participaram apenas esses representantes, no havendo participao direta da populao. Informam ainda que dois anos depois o INCRA entrou com a poltica de crditos. Essa poltica insituiu-se a partir da Portaria n 627/87, que criou a modalidade de Projeto de Assentamento Extrativista (PAE), e possibilitou o repasse de subsdios para os usurios das reservas. O que se pode observar a partir desses dados uma semelhana no direcionamento no processo de criao das unidades, no sentido do aproveitamento das reclamaes das populaes locais pelo rgo como mote da criao, conduzindo as necessidades locais para um nico objetivo institucional as etapas legais e burocrticas de criao das UCs. A presena tanto de tcnicos do IBAMA quanto do CNS (este no caso da RESEX de Soure) influenciou e conduziu fortemente esse debate e, em grande medida, conduziu a materialidade dos fatos como, por exemplo, a criao das associaes, de modo a adequar as exigncias legais para efeito de criao das unidades. Relatos de usurios ocorridos durante a reunio do dia vinte e trs de junho de 2009, da fase I para elaborao do Plano de Manejo, no bairro do Tucumanduba em Soure, relembraram o fato que desencadeou o processo de discusso para criao da Reserva de Soure e, nesse bojo, a criao de vrias associaes, muitas das quais financiadas via ASSUREMAS com verba articulada pelo CNS junto ao governo da Finlndia por meio do Convnio PUXIRUM. O espao onde hoje funciona a ASSUREMAS no centro de Soure foi adquirido com esse recurso, conforme relata a atual presidente da ASSUREMAS, acerca da criao da Associao de mulheres do Pesqueiro, processo no qual esteve envolvida:

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Foi a que veio o CNPT/IBAMA, na pessoa do seu Vergara, o Vazinho pela ASSUREMAS, que j conhecia o trabalho l no Pesqueiro. Na semana que ns amos nos reunir para criar um clube de mes pela Igreja Catlica, foi quando eles chegaram l na comunidade perguntando o que que a gente queria na comunidade, a gente ainda no sabia da criao da associao dos usurios da RESEX, a comunidade ainda no conhecia. A eles fizeram uma reunio e ai foi tirado [sic] criar uma associao de mulheres do Pesqueiro. (informao verbal)147

A criao das vrias associaes a partir desse processo indica o que seria o fortalecimento da participao indireta da populao local como beneficiria, por meio das representaes associativas, legitimando a RESEX e ao mesmo tempo criando supostas condies de organizao local com vistas articulao financeira pelos canais articulados por meio da poltica. O que se manifesta enquanto interesse para os tcnicos envolvidos apresentar uma sociedade local organizada, por isso a interferncia direta na organizao da populao local em associaes, com vistas a garantir o investimento de ONGs, rgos nacionais, internacionais e multinacionais, colocando frente dessas associaes pessoaschave, como ocorreu na eleio de Waldemil Medeiros (Vazinho) e de Patrcia Farias, essa primeiro aclamada presidente da Associao de Mulheres do Pesqueiro e depois eleita Presidente da ASSUREMAS. Outra questo que se apresenta acerca da criao das associaes, particularmente as associaes de usurios das RESEX, o recorrente uso dos cargos como trampolim para a carreira poltica, conforme foi noticiado em matria de O Liberal de 31 de maio de 2009, no caderno atualidades, sob o ttulo Associaes so mina de favorecimento e comprovado em pesquisa de campo. Vrios dirigentes das associaes em RESEX marinhas se elegeram vereadores e outros polticos aproveitaram-se dos benefcios casas, apetrechos de pesca, cascos, redes da poltica de UCs para se favorecerem tentando as eleies ou reeleies. Foi o caso do Vazinho em Soure, candidato a vereador que no obteve xito , e o caso de Francisco Paulo Tavares Silva 148, o Chico do Ara presidente da AUREMAP, poca eleito vereador pelo municpio de Augusto Corra. Quanto aos cargos polticos esclarece o vereador Zeca Rocha, ex-presidente da Associao de Usurios da RESEX Caet-Taperau (ASSUREMACATA) o municpio de Bragana ao Jornal O Liberal:

No h nenhum impedimento legal para isso. O Nelso (prefeito de So Joo da Ponta), o Zacarias (vereador de Viseu) o Chico (vereador
147

Entrevista concedida por Patrcia Farias, ex- presidente da Associao de Mulheres do Pesqueiro e atual presidente da ASSUREMAS, em Janeiro de 2011. 148 Chico, como conhecido na vila do Ara, faleceu em meados de nossa pesquisa de campo.

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em Augusto Corra) e eu, aqui em Bragana, passamos pela direo das RESEX (Associaes de Usurios). Mas todos ns temos histrico de trabalho de movimento social. Eu, desde a dcada de 70, no antigo MOPEPA. (O Liberal, 31 de maio de 2009)149

Alm das constantes denncias acerca da corrupo e desperdcio de verba pblica por meio de manobras que se agregam a concesso dos crditos da reforma agrria via INCRA. Essas manobras inclusive incidindo em ameaas a uma servidora do ICMBio em Soure. De acordo com relatos a cerca do cadastramento para acessar o benefcio na RESEX Ara-Peroba:

Com relao a essa questo do cadastro, quando veio pra c, o INCRA estabeleceu quem seria assentado, quem deveria [sic] ser os beneficirios. Ns tentamos cumprir a cartilha conforme eles mandaram, as regras. Aposentado no poderia ser beneficirio, funcionrio pblico tambm no podia [...] ns samos na comunidade fazendo campanha, a o seu INCRA chega e comea a chamar o povo pra cadastrar. Num primeiro momento ele seguiu o que ele determinou na cartilha. Na segunda vez que ele veio j comeou a chamar todo mundo [...] no final da histria, chamaram todo mundo que queria se cadastrar, isso porque tinha que atender um nmero exato, a questo era completar, eles tinham meta a alcanar. Graas a Deus a gente conseguiu colocar isso em ATA. (informao verbal)150

No que se refere criao da Associao de usurios da RESEX de Soure, a ASSUREMAS, apresenta-se na fala dos caranguejeiros e de tcnicos do IBAMA envolta em articulaes polticas e interesses econmicos que o CNS acessava, principalmente aps a sada de tcnicos institucionais da direo do CNPT/IBAMA, que foi assumida por Atanagildo de Deus Matos, antigo diretor do CNS e militante do PT, conforme relato abaixo:

S um detalhe, eu j tinha sado do CNPT, mas eu tava correndo por fora, em Soure pintou [sic] uma grana da Finlndia, era uma grana, mas s se fosse para Reserva Marinha [...] tinha uma relao com o PT, e num certo momento ento, quer dizer, eram pessoas que no tinham uma expresso poltica, mas era um cara que podia ser trabalhado, era um cara que j trabalhava com movimento da igreja, era de l do municpio [refere-se ao Vazinho, eleito primeiro presidente da ASSUREMAS] (informao verbal)151

149

Entrevista concedida por Zeca Rocha Vereador pelo PT em Bragana e dirigente da AUREMACATA, em O Liberal, em maio de 2009. 150 Relato da Professora dria, moradora da vila do Ara em reunio da fase I de elaborao do PM da RESEX Ara-Peroba, em Outubro de 2009. 151 Entrevista concedida por Otvio Albuquerque, em fevereiro de 2011.

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Essa aclamao do primeiro presidente da ASSUREMAS apresenta-se para os caranguejeiros como uma manobra para colocar pessoas da confiana poltica e retirar da cena a ACS e a categoria dos caranguejeiros inclusive pelo desencontro de interesses entre caranguejeiros e representantes do rgo institucional at ento a associao bem mais organizada e participativa nos moldes da participao comunitria, cuja vontade do coletivo era mudar a situao de conflito com outros caranguejeiros, em torno da posse e uso desses recursos, ou seja, das condies de trabalho. De acordo com o primeiro presidente da ACS, Sr. Rodrigo Leal, os interesses polticos se davam tambm em torno das verbas que eram recebidas pela ASSUREMAS. Os ajustes necessrios manuteno do poder decisrio se davam por meio dessas articulaes, o que manifesta total ausncia de reconhecimento dimenso do coletivo local na autonomia e no respeito alteridade. De acordo com Ferreira (2002), os tcnicos do IBAMA passaram a adotar uma poltica de descrdito em relao ACS e categoria dos caranguejeiros, subentendida por meio de questionamentos quanto legitimidade do presidente e com relao prpria representatividade da associao pelo senhor Rodrigo Leal, em vista de problemas de ordem jurdica e burocrtica para a aquisio de financiamentos. Os dados levantados por ns no apontam nessa direo, demonstram uma ao para alm do rgo, do grupo que, poca, atuava em Soure junto ASSUREMAS, o CNS e um tcnico do IBAMA atuante nessa fase ps criao da Reserva e de elaborao do Plano de Utilizao. Observa-se, contudo, que houve um distanciamento da categoria dos caranguejeiros quando da elaborao do plano de utilizao, aspecto evidente e com explicaes sugestivas de origens diversas para o afastamento. De acordo com relatos de usurios da RESEX de Soure durante as reunies realizadas em 2009 pela consultoria para elaborao do PM, em 2001 o INCRA j atuava na zona rural do municpio com crditos por meio do Programa Nacional de Reforma Agrria (PNRA), o que mais tarde se estende para os usurios da Reserva em acordo com a Portaria interministerial n 03 de outubro de 2008, tendo em vista o disposto, dentre outras legislaes, na lei 4.504/64 Estatuto da terra. De 2001 at 2006, Vergara Filho, a servio do IBAMA, foi presena constante na regio. Em 2006/2007 identificaram presena de Marco Solimes, outro tcnico do IBAMA/Belm, tambm em 2007 comeava a atuao da Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (EMATER) e em 2008 inicia-se a discusso do programa Territrios da Cidadania, do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS), que atende aos 16 municpios do Maraj. Como parte das aes institucionais por meio de polticas pblicas que demandam aes tambm na abrangncia da RESEX.

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Desde o ano de 2001, outras entidades se agregam nesse processo por meio de suas polticas bem como organizaes de movimentos sociais, como o Movimento dos Pescadores do Estado do Par (MOPEPA). A presena do MOPEPA foi apoiada pelo CNPT/IBAMA para a orientao dos trabalhos de elaborao do plano de utilizao para tanto, foi destinado o valor de quinze mil Reais (R$ 15.000,00) que, como j referido, centrou-se no debate da pesca em sentido restrito, retirando da cena do debate os representantes da ACS. Segundo Ferreira (2002) em reunio ocorrida em 23 de junho de 2001 diversos agentes sociais se manifestaram contra essa deciso do CNPT, como os extrativistas e at representantes polticos partidrios e parlamentares locais. Embora o sentido dado criao dessa unidade seja distinto do ponto de vista dos agentes envolvidos, importa salientar que tais sentidos de um lado, a reafirmao da identidade grupal local, e de outro, como uma oportunidade de criao de uma rea protegida para alm dos interesses que intermediaram esse processo formam-se no momento do encontro de horizontes distintos, mas que no apresentaram uma relao dialgica. No houve nesse momento uma abertura por parte dos tcnicos inteno de atender as demandas e interesses dos extrativistas locais, j que o objetivo primeiro colocado o processo de institucionalizao legal da Reserva. Desse modo, os tcnicos institucionais buscam sustentao para suas aes dividindo os extrativistas por categoria. Se em um primeiro momento, os agentes principais do processo foram os caranguejeiros, em momento posterior, para elaborao do Plano de Utilizao, recorreram legitimao dos pescadores, lanando mo para isto das estruturas polticas j organizadas, como o MOPEPA. O que houve foi uma sobreposio de interesses e o desvio das aes da populao local com vistas a legitimar esse processo. Desse modo, a retirada da cena pblica de qualquer posicionamento oriundo dos extrativistas que pudessem caracterizar descontentamento se fez. Essa inteno, quando percebida pelos caranguejeiros, conduziu tambm decepo e ao afastamento dos mesmos. Nesse momento, os tcnicos do IBAMA so outros que no os do perodo da criao da UC; particularmente atuou ali Vergara Filho, que se manteve no CNPT/Belm quando da sada de Otvio Albuquerque, que por motivos polticos voltou a ocupar sua funo no setor de educao ambiental dentro do prprio IBAMA/Belm. Desse modo, torna-se notrio como a instituio se impe com vistas aos seus interesses e, ao mesmo tempo, cria condies para estabelecer uma acomodao dos interesses locais a fim de atingir os fins determinados pela poltica, desempenhando uma

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funo reguladora das aes locais que mesmo sendo projetadas pelos agentes locais com vistas a suas necessidades mais imediatas, so submetidas a esse ordenamento externo. Fatos enunciam essa submisso. Os estudos, laudos socioeconmico e biolgico, realizados para a criao da RESEX se detiveram ao entendimento de questes referentes categoria dos caranguejeiros, espelhando a questo central que levou criao da Reserva. Segundo os laudos, as equipes responsveis pelos estudos, compunham-se de seis estudantes do campus da UFPA em Soure e trs caranguejeiros, esclarecendo que essa estratgia facilitou o contato com a categoria. Os trabalhos foram coordenados por servidores ligados a UFPA e UFRA, antiga Faculdade de Cincias Agrrias do Par (FCAP). A metodologia aplicada comps-se de questionrios e observao de campo. Contraditoriamente, o Plano de Utilizao produzido a partir de uma reunio na Vila do Pesqueiro e outra no salo paroquial na sede de Soure deixou margem, questes relativas aos caranguejeiros que imperaram no ato da criao. No h no PU nenhuma referncia atividade dos caranguejeiros, normatizando apenas o uso dos recursos do pescado. Esse deslocamento se fez mediante o isolamento dos caranguejeiros e a entrada dos pescadores artesanais por meio da atuao nesse momento do MOPEPA. O que refletiu politicamente na eleio da primeira diretoria da ASSUREMAS, cuja articulao poltica do candidato Vazinho, ligado colnia de pescadores de Soure e ao MOPEPA deixou de fora o representante da categoria dos caranguejeiros e pr-candidato Rodrigo Leal. Esses arranjos surgem na narrativa dos caranguejeiros como parte de arranjos polticos macro, em Belm e em Braslia, norteados por uma poltica partidria. Muitos usurios manifestam descontentamento em relao forma como o PU foi discutido e aprovado, conforme se pode observar no dilogo entre o mediador da reunio, o consultor Rogrio Puerta, Jos Santos morador do Caju-una, e a representante da ASSUREMAS Patrcia Farias Ribeiro, em reunio realizada no dia 28 de junho de 2009, em que a pauta era a reviso do PU:

Patrcia: Houve uma reunio no pesqueiro, mas no teve representante das duas comunidades [Caju-una e Cu]. Jos: Ento eu pergunto: Houve uma comunicao para os moradores daqui? Patrcia: No houve tempo! [segue uma discusso que demonstra desconfiana e descontentamento] [...] Ns tivemos uma reunio que comeou s 8 horas da manh e que terminou s 19 horas, foi esse o horrio que ns samos de uma sala de aula l do Pesqueiro. Os pescadores de l foram dizendo, o que t a [no PU]. A, quando os tcnicos do IBAMA voltaram, foi s pra ser aprovado, l no

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CNS [refere-se casa comprada pelo CNS, onde hoje funciona a ASSUREMAS]. Rogrio: T, ento t entendido, foi uma reunio l no Pesqueiro que no teve representante nem do Cu, nem do Caju-una. (informao verbal)152

A forma como essas reunies para criao e da fase I do PM foram encaminhadas pelo rgo demonstra que a participao foi muito mais legalista, como um item a se cumprir para atender os interesses burocrticos e legais do processo. A continuidade da participao entendida como um processo de co-autoria nas deliberaes no ocorre e, os agentes individuais e coletivos locais pessoas, lideranas locais e associaes, ONGs so arregimentados nos momentos em que os tcnicos e consultores entendem como uma necessidade, muito mais como um brao colaborador, sem a introduo de mecanismos de comprometimento, mobilizao e responsabilidade com os resultados no decorrer do processo. De acordo com Bursztyn (2009, p.108), a viso que se tem da participao ainda passiva e burocrtica, como consulta pblica e coleta de dados, no avanado no sentido de oferecer co-autoria das decises aos supostos participantes e longe ainda de poder ser chamado de cidadania ativa. (2009:108). Embora o aspecto participativo no caso das RESEXs Marinhas possa ser relacionado ao critrio legal da participao, cuja exigncia determina que a criao de RESEX e elaborao dos PMs tm que partir de uma solicitao e ter a efetiva participao da populao local, o que se materializa por meio do abaixo-assinado que acompanha os autos do processo de criao e das demandas e problemas sentidos pela populao local, observa-se nas UCs em estudo que a criao das Unidades um sentido que se acopla a partir da insero das atividades tcnicas norteadas para esse fim. Desse modo, podemos pensar em uma sobreposio da racionalidade institucional sobre a racionalidade (prtica) local que se atm aos interesses do cotidiano e por isso mais imediatos. O processo que culminou na criao da RESEX de Soure diferencia-se da AraPeroba, pois se em Soure o processo inicia a partir de um movimento social decorrente de conflitos e interesses de um grupo na manuteno de suas atividades produtivas e reprodutivas; evidentemente essas aes e suas significaes foram ressignificadas pela ao tcnica que conduziu no sentido da legitimao da implementao da poltica de UCs, sem contudo, dialogar com as reais demandas locais, apenas tomando os problemas e conflitos apresentados como mola propulsora para o desencadeamento da poltica.

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Relatos colhidos em reunio ocorrida na vila do Caju-una, sede da RESEX de Soure, em junho de 2009.

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O princpio da gesto descentralizada e participativa ainda incipiente e os entraves so significativos. Entre eles, est a lgica, que ainda permeia o processo decisrio, de colocar a deciso nas mos de tcnicos, desqualificando a participao daqueles que no detm o conhecimento cientfico, mas que so os beneficirios ou as vtimas das polticas pblicas. Isso cria uma participao acentuadamente assimtrica (FREY, 2001).

No caso da RESEX Ara-Peroba, assim como das outras criadas mesma poca no nordeste paraense, houve politicamente uma inverso. A demanda social enquanto preceito legal que coloca na cena poltica as questes sociais deixou de ser a referncia para a criao da Unidade do ponto de vista prtico, uma vez que essa demanda foi condicionada e sofreu influncia direta da experincia dos tcnicos do IBAMA acerca do contexto local, definindo e convencendo a populao sobre a aceitabilidade da RESEX como resoluo, primeiro, da vulnerabilidade social. Explicitamente colocando a resoluo das questes socioeconmicas dessas populaes, para da trazer a reboque as questes reais de interesse do rgo a saber, a implementao da RESEX, no pelo sentido, sobretudo ambiental, mas pela captao de recursos econmicos, via polticas agregadas. Essa demanda poltica uma exigncia do rgo por criao de novas Unidades de Conservao condicionou a atividade dos agentes institucionais que atuantes, junto com a esfera pblica municipal, pactuaram em torno de interesses polticos e econmicos, desencadeando o processo, para tanto fazendo da populao local um brao colaborador mediante as promessas de melhoria de vida, de onde vinha rebocada a questo do uso dos recursos naturais e a sustentabilidade socioambiental. O processo de criao da RESEX Ara-Peroba caracteriza-se de forma bem diferenciada em comparao ao de Soure. Ali a equipe tcnica do CNPT /IBAMA buscou deliberadamente aspectos socioambientais que pudessem legitimar a criao de novas reservas extrativistas, uma vez que j conheciam os problemas e conflitos existentes na regio em torno do uso dos recursos naturais, ou seja, no exerccio da atividade produtiva local. Desse modo, as cinco RESEXs Marinhas criadas em conjunto no mesmo ano de 2005 no nordeste paraense no partem efetivamente de uma demanda local, tendo sido induzidas por interesse direto do rgo, pois o caminho poltico institucional para a criao de novas RESEXs Marinhas no litoral paraense foi uma orientao sustentada na experincia do coordenador do CNPT em Belm em acordo com o diretor da DIUSP em Braslia. Os dados observados indicam uma insero, poca, do IBAMA estabelecendo as condies necessrias para a criao da Reserva.

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Desse modo, as aes tcnicas com vistas participao institucional indireta dos extrativistas locais tm incio por ocasio realizao de trs reunies com representantes dos municpios que iriam ser atingidos pela criao das RESEXs, ocorridas uma em Belm, uma em Bragana e uma em Augusto Corra com vistas a cumprir os tramites necessrios.

Eu participei das trs reunies da RESEX, uma aqui, outra em Belm e outra em Bragana. Eles explicavam que iam criar a RESEX aqui, que a gente ia receber, mas que o governo federal ia exigir uma regra de uso. Mas s que no to executando. [...] Pra essas regras, ns participamos de reunio em Belm, foram trs pessoas daqui do Porto do Campo, foram trs dias de reunio. Passamos um dia e uma noite em Augusto Corra tambm. Tinha gente de todo lugar, do Cear, do Maraj, participaram at padres, doutor [...] (informao verbal)153

Nesse caso, a uniformizao dos contextos socioeconmicos e culturais levada a termo pelo rgo institucional, para o caso das RESEXs do nordeste paraense est explicitada na forma como as reunies foram conduzidas, sem considerar os aspectos e as especificidades locais. Nessas reunies, vivncias de contextos j desenvolvidos em outras reservas eram enunciados, como forma de convencimento dos representantes dos municpios em que seriam implantadas as novas RESEXs Marinhas a estratgia visava agilizar o trmite do processo. Como a criao dessas Unidades era uma questo de pendncia da prpria poltica do IBAMA, elas foram impetradas s populaes locais. Resultou desse processo participativo que, ao observar os laudos e diagnsticos bem como os Planos de Utilizao dessas RESEXs Marinhas, foi possvel perceber que o diferencial em seus contedos se restringe to somente as denominaes geogrficas de cada lugar e aos dados estatsticos populacionais. Os documentos das Reservas so cpias fieis uns dos outros, e ainda assim compuseram o processo que conduziu a criao das mesmas. Uma uniformizao que passa pelo descaso em relao s especificidades culturais, materiais e simblicas dessas populaes, que conforme demonstrado, em captulos anteriores, significativo para demonstrar o esvaziamento das particularidades da vida social daqueles grupos. Sobrepondo-se assim a racionalidade instrumental e tecnocrtica por meio da uniformizao e universalizao abstrata de contextos sociais mpares que orientou a ao dos agentes institucionais envolvidos na poltica revelia do reconhecimento das diferenas locais. De tudo o que possvel conceber no mundo, e mesmo em geral fora do mundo, no
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Entrevista concedida pelo Sr. Nelson Rabelo, morador da Vila Porto do Campo e usurio da RESEX AraPeroba, em janeiro de 2010.

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existe nada que possa sem restrio ser considerado bom se no existe boa vontade ( KANT s.d apud RICOEUR, 1991, p. 239). Ricoeur com tal citao assinala que o enfoque deontolgico (do dever) tem, em Kant, uma conotao teleolgica (do fim ltimo do bem viver) que se deixa ver nessa ideia de boa vontade, embora limitada a uma mxima do deverser, que no se visualiza no dever de ofcio institucional em questo. Segundo relatos dos moradores locais, como o Sr. Armando Torres, morador da vila do Porto do campo, a respeito da criao da RESEX Ara-Peroba, a discusso da Reserva comeou na vila do Porto do Campo. Esse debate por vezes se confunde tambm com o da criao da APA da Costa do Urumaj em 1998. As questes enunciadas so semelhantes; a denncia de usurios junto associao do Ara relativas pesca predatria, principalmente do camaro, e o abuso na coleta de caranguejo-u por caranguejeiros vindos da vila do Treme em Bragana. Essas problemticas foram aproveitadas institucionalmente para induzir a aceitao da RESEX como resoluo desses problemas. O rgo buscava sobrepor o sentido ambiental aos sentidos socioeconmicos e de sobrevivncia e reproduo social dos extrativistas locais. No caso da RESEX Ara-Peroba, os contatos e aes dos tcnicos vo desde aes anteriores, por intermdio da SUDEPE, e reunies e atividades para elaborao dos acordos de pesca de vrias vilas do municpio, como do Ara em 1997 e Nova Olinda em 1998, o estabelecimento de relaes com a colnia Z-18, indicando moradores das vilas para se constiturem como capatazes da Colnia, no sentido de fortalecer a fiscalizao sobre os tipos predatrios de pesca, at a organizao de reunies e seminrios para propor a criao da RESEX, j sobre a ingerncia do IBAMA. Observa-se tambm uma interveno do poder pblico local no sentido de criar estratgias de mobilizao da populao local com vistas criao da Reserva. Contudo, e apesar do trabalho ambiental desses rgos, o sentido dessa UC para os moradores locais, usurios dos recursos naturais naquela regio, somente se deu com a entrada dos crditos do INCRA, quando passaram a vivenciar mudanas matrias provenientes dos benefcios recebidos. A questo ambiental ficou revelia desses crditos.

Gente, muito bom que se tenha verba, que se ganhe enquanto cidado, mas voc vai ter que saber cuidar, zelar. [...] Sejam bem -vindos RESEX, sejam bem vindos a esse projeto. (informao verbal)154

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Relato colhido da professora dria, moradora da vila do Ara em audincia pblica da RESEX Ara-Peroba na vila do Aturiai, em Julho 2007..

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Uma das questes a questo da cidadania, e quando a gente ia buscar qualquer benefcio nunca se conseguia porque no conseguia provar se era caador, pescador, porque no tinha nem documento [...] porque com certeza absoluta muita gente que veio aqui, e isso no demrito para ningum, naquela nsia de tambm conseguir a casa, tambm conseguir o barco, a rede, de conseguir o ramal, a luz, isso uma coisa natural, mas o mais importante voc ser cidado e saber que um direito seu [...] ser que aquele benefcio que est vindo atravs de um rgo federal, o valor aquele? As pessoas esto acompanhando, esto fiscalizando? Isso cidadania. (informao verbal)155

Desta forma, torna-se claro os interesses e sentidos que conduzem a execuo da poltica de criao das UCs. Devemos, contudo, ressalvar as dificuldades tcnicas para execuo do trabalho mediante o jogo e as interferncias polticas que atrelam o trabalho tcnico aos interesses que se impem e que tornaram a poltica ambiental um apndice, quer seja da macro-estrutura poltico-econmica, quer seja dos usos polticos locais. significativo tambm compreender que tanto na RESEX de Soure quanto na AraPeroba diversos interesses esto em conexo, no caso dos extrativistas locais a questo mais evidente a da sobrevivncia, no sentido da organizao do trabalho com vistas manuteno da produo das condies materiais de reproduo social, a produo da prpria existncia, e sua manuteno com uma identidade prpria. Posto que, para eles, o territrio ali disponvel bem como seus recursos como uma extenso da prpria vida, eles no o concebem como algo separado ou que compe um campo sobre o qual eles no tm direito ou tm direitos limitados. O meio ambiente o ambiente da vida deles e, portanto no concebido de forma separada. As preocupaes ambientais so aquelas que dizem respeito direto prpria existncia, como a rarefao dos recursos, no h particularmente uma preocupao com o meio natural em si e para si. Por outro lado, diversos interesses esto em pauta no processo de criao dessas reservas. Na Ara-Peroba, de acordo com conversa informal com o Secretrio de Meio Ambiente do municpio na poca de criao da Reserva, o interesse imediato manifestado era a entrada de recursos federais, posto ser a Unidade de domnio federal, conforme pode ser observado na fala dos interlocutores em reunio na vila do Aturia:

Eles [moradores] no entendiam o que era a RESEX, eles s vieram entender agora, depois que foi comeado[sic] a fazer essas habitao [sic] [crditos do INCRA], foi que eles foram acreditar, mas que eles at ento no

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Relato colhido de Otvio Albuquerque, representante do IBAMA em audincia pblica da RESEX AraPeroba na vila do Aturiai, em Julho 2007.

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acreditavam. Depois do cadastramento dos nomes pra levar l pro INCRA, foi que o pessoal passou a acreditar (informao verbal)156

Desse modo, de um lado se tem a poltica ambiental sendo implementada pela via das UCs e de outro a populao local que somente a visualiza a partir de outras polticas agregadas. A associao direta da criao da Reserva a uma poltica de benefcios, materializa para essa populao o suprimento de necessidades de primeira ordem, desse modo, o que se evidencia entre eles. A questo ambiental, nos moldes institucionais, confronta-se com as necessidades mais imediatas da populao local, que se evidencia no interesse maior pelos benefcios gerados pela poltica de outros rgos, que no o ambiental. Assim, pode-se antever que a prtica dos gestores da poltica ambiental acompanha a histria das polticas pblicas no Brasil que, em geral sobrepe os interesses institucionais s questes significativas demandadas pela populao. No h, por parte da poltica e seus gestores, umprocesso efetivo de participao ativa, seno ara cumprir tecnicamente as ordenaes legais. Isso por vezes justificado nas condies adversas de trabalho, como o tempo exguo para a realizao das aes institucionais. H desse modo, uma predominncia dos interesses do rgo em detrimento da opinio dos extrativistas, inclusive com as deliberaes sendo apresentadas e os cronogramas de aes informados sem passar por um debate com os presentes nas reunies. Sob a observao incua dos locais. O que demonstra a ausncia de participao ativa, o que efetivamente colaborou com o atual distanciamento que existe das populaes em relao Reserva enquanto institucionalidade o que pode ser observado pelo baixo nmero de participantes nas reunies do plano de manejo e pela dificuldade de mobilizao que pudemos presenciar.

Como fatores limitantes participao no campo da gesto ambiental (embora no sejam exclusivos desse campo), podem ser acrescentados o desequilbrio de poder na arena decisria e a irregularidade da participao causada pela freqente troca de representantes. Ocorre ainda a dificuldade da apatia e do desinteresse da populao quanto participao, resultado da reduzida cidadania, da descrena nos polticos e do descrdito das instituies (Jacobi, 2003, p.333).

O que se enuncia aqui uma resultante da ao institucional que impe o seu poder legitimo, porque estatal, sobre um coletivo, ou seja, a interao que se institui confronta

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Entrevista concedida pelo Sr. Nelson Rabelo morador da vila do Porto do Campo RESEX Ara-Peroba, em Janeiro de 2010.

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agentes em condies desiguais, sob essa situao que Ricoeur (1995) entende ser o espao permanente da violncia e do mal, faltando-lhe os critrios positivos do justo. Quanto ao entendimento institucional/tcnico acerca do processo participativo nas RESEXs de Soure e Ara-Peroba, a priori o que se observa nos laudos biolgico e socioeconmico analisados uma oposio entre a retrica e a ao, ou seja, entre o que o discurso da participao nos documentos norteadores Roteiro Metodolgico, Instrues Normativas e legislaes e a execuo, o modo de como efetiv-la, que metodologias, estratgias e procedimentos podem ser adotados. Por vezes, a participao compreendida como a representao por parte de supostas lideranas, o preenchimento de questionrios, a colaborao nas aes ou a presena fsica em consultas e audincias pblicas. O preceito legal no est esquecido, contudo, est prejudicado por essa falta de vinculao clara por meio de metodologias definidas que permitam um processo participativo no sentido da tomada de decises bem como na anlise conjunta das questes a serem decididas. Assim como tambm pelas condies reais de trabalho de tcnicos e pesquisadores, refletidas pela presso de um tempo limite, dos alcances da funo desempenhada e a ausncia de maior clareza acerca das atividades e suas finalidades quando apropriadas pelo rgo gestor, sem contar com as presses sofridas a partir dos interesses macro polticos e econmicos que submetem as aes ambientais a esses interesses. Em Soure, a equipe responsvel pela fase I do Plano de Manejo constituda nas primeiras reunies, de uma tcnica do ICMBio e de um Consultor aps constituir o Grupo de Trabalho (GT); reuniu o Conselho Deliberativo que estava inoperante e a partir das lideranas que ali se apresentaram, informou acerca do incio das reunies nas vilas e bairros onde residem usurios da RESEX. No presenciamos, no entanto, uma organizao de atividades que levasse em considerao a opinio dos membros locais do GT. A programao considerava sempre a disponibilidade e o tempo institucional para a resoluo de problemas de infra-estrutura junto ao ICMBio e a liberao por parte desse rgo das aes planejadas pelo consultor. Em grande medida, a participao se deu por meio do cumprimento de tarefas por parte de membros da ASSUREMAS. As reunies visando reviso do Plano de Utilizao, com vistas a proceder elaborao da fase I do Plano de Manejo nas localidades seguiam um cronograma aprovado no plano de trabalho documento tcnico que norteava as atividades da fase I de elaborao do Plano de Manejo por meio da execuo de oficinas e assembleias comunitrias nas

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quais o consultor apresentou a leitura do Plano de Utilizao e resgatou atravs da metodologia Linha do Tempo a histria da construo do referido plano. Conforme observamos na audincia pblica para ampliao da RESEX Ara-Peroba e nas reunies para reviso do Plano de Utilizao voltada fase I do Plano de Manejo nas reservas em estudo, o preceito da participao se resume ao cumprimento das diretrizes legais e tcnicas. Em todas as reunies observadas, a equipe atuou seguindo um planejamento apresentado para aprovao no rgo e, segundo o cronograma deliberado pelo consultor e a equipe tcnica, as consultas so mais um espao de exposio das justificativas, nas quais os argumentos ou questionamentos da populao so observados, em geral, com base na legalidade ou ilegalidade, fato recorrente j observado no documento Gesto Participativa do SNUC onde se l:
A consulta pblica acaba por se traduzir em mera exposio tcnica de argumentos ambientalistas para a criao de nova rea protegida, em que a perplexidade e a falta de entendimento ou de reao por parte dos presentes so geralmente interpretadas como concordncia da sociedad e.

Em geral, as exposies dos tcnicos so sustentadas na legalidade acerca da temtica do extrativismo caa, coleta de frutos e sementes e principalmente da pesca h pouca flexibilidade quanto a essas inquietaes, particularmente dos pescadores (que so a maioria dos usurios). Conforme pode ser observado na fala de um pescador da RESEX Ara Peroba a respeito da lei que probe a pesca de tapagem, tcnica utilizada na vila do Ara:
Esse pessoal que faz as leis no entende nada de pesca, porque essa histria de tapar s um tero do rio mesmo que nada [...] a pesca de tapagem de cacuri no estraga peixe, a gente coloca a rede na meia mar. (informao verbal)157

Encontramos assim enunciado por Ricoeur ns estamos para alm de uma moral puramente formal; porque a racionalidade, aqui, no se limita ao acordo do indivduo consigo mesmo nas suas mximas, e la pretende ser a racionalidade de uma prtica coletiva (s.d, p.392). Quando o terico se refere Antgona de Sfocles, a exemplo do trgico da ao, h a evidenciao do conflito que ope herona, a instituio poltica. Aqui nos importa o exemplo de autor visto as aporias, os conflitos entre regras costumeiras como ponto de origem do permitido e do proibido em uma comunidade determinada aos problemas interpostos pela aplicao institucional da lei. De Acordo com Petit a respeito da proposta tica de Ricoeur:
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Relato de usurio no identificado da RESEX Ara-Peroba em reunio da fase I do PM na vila do Ara, em Outubro de 2009.

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Foi isto que o fez encarar ainda com mais fora e nitidez o que sempre o interpelou, a saber, o confronto da lei, da norma, com o trgico da ao. A questo que se impe a de como julgar com sabedoria?, segundo o que Aristteles designara como phronesis, isto , esta virtude prtica que a sabedoria do julgar (2007, p. 13).

Quanto ao processo participativo da populao podemos inferir as deficincias participativas com relao ao plano de utilizao nas RESEXs analisadas. As regras estabelecidas ai so pouco conhecidas e adotadas. Em geral a maior incidncia participativa nas reunies foi de moradores que j atuaram ou atuam como dirigentes comunitrios por meio de associaes e no Conselho Deliberativo. Um elemento mobilizador e aglutinador para as reunies e que, em certa medida funcionava, era a aluso aos benefcios dos programas de crdito e reforma agrria do INCRA.

O crdito do INCRA, ele bem-vindo se ele for bem trabalhado, agora quem tinha pernas para controlar no controlou que era o Ministrio Pblico. Ningum quer discutir RESEX, quer discutir necessidades materiais. (informao verbal)158

Ao refletirmos a forma como efetivamente o princpio legal da participao se materializa por meio das aes e atividades que se desencadeiam no processo de criao das reservas e na elaborao e implementao de seus Planos de Manejo, realizamos uma anlise a partir dos dados levantados. No caso da criao das UCs, no presenciamos nos laudos manifestaes de um trabalho mais dirigido para a questo de criao de uma UC colocando em foco o debate ambiental junto s populaes locais, que considerasse para tanto, as particularidades referentes s representaes socioculturais acerca do uso dos recursos naturais, as relaes estabelecidas e suas simbologias; posto o entendimento de que se trata de formas distintas de ver e sentir e agir sustentadas em outras bases racionais e que da decorre sentidos distintos e, portanto, a espera por resultados tambm distintos dos programados pela equipe tcnica que atua em consonncia com as diretrizes institucionais-legais. Segundo Irving e Ayres (2006), a participao social tema que abrange questes amplas, complexas e ambguas, pois envolve a construo coletiva e a convivncia social nas comunidades, em contraponto a questes

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Entrevista concedida por Vergara Filho, bilogo contratado pelo ICMBio, em Janeiro de 2011.

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histricas internalizadas pelas polticas pblicas, dentre elas a ciso entre natureza e sociedade. Apesar da preocupao em ouvir atravs de questionrios as populaes, no percebemos o uso de metodologias participativas que permitam uma efetiva insero das populaes locais no processo de instituio das Unidades de Conservao e implementao de seus Planos de Utilizao. Quanto a esses dados secundrios em geral dos laudos de criao quer sejam os socioeconmicos ou biolgicos, a participao das populaes se d como informantes, e no mais, como aplicadores dos questionrios. No foi possvel detectar aes voltadas para a promoo de atitudes que favorecessem o exerccio pleno da participao, como a prpria deliberao acerca das questes; por exemplo, no Plano de Utilizao de Soure os conflitos de interesses deixaram de fora a categoria de caranguejeiros, visto que a forma como esses se organizaram, com propsito aos seus interesses, entrou em contradio com as decises do rgo. Ainda segundo Irving e Ayres (2006), a participao s ser efetiva na medida em que os indivduos se sintam comprometidos com o projeto. Desse modo a participao se torna no um instrumento, mas uma exigncia sine qua non para que todos os envolvidos se sintam agentes responsveis, e somente desse modo esse projeto poder ser compreendido como coletivo, e no para terceiros annimos e abstrados de suas subjetividades.

6.2.2.2 A fase I de elaborao do Plano de manejo O Plano de Manejo das Unidades de Conservao considerado o instrumento responsvel pelo planejamento das atividades a serem desenvolvidas nos limites da UC, como em reas de manguezais, bem como no seu entorno ou zona de amortecimento159. De acordo com o SNUC, as UCs devem apresentar um Plano de Manejo no prazo mximo de cinco anos a partir de sua data de criao, devendo esse ser revisado a cada cinco anos de sua execuo. O que efetivaria a poltica de conservao ou de preservao conforme a categoria. Para tanto o SNUC o define no artigo 2, Inciso XVII:

Documento tcnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma Unidade de Conservao, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da rea e o manejo dos recursos naturais,
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O entorno de uma Unidade de Conservao onde as atividades humanas esto sujeitas a normas e restries especficas, com o propsito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade (SNUC, 2000; Decreto 4340/02).

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inclusive a implantao das estruturas fiscais necessrias gesto da Unidade (SNUC).

Instrumento esse, muito difundido pelo SNUC, Decreto 4.340/02, e pelos roteiros metodolgicos para elaborao de PM. Na dcada de 90, o IBAMA em parceria com a Deutsche Gessellschaft Fr Technische Zusammenarbeit (GTZ), elaborou a primeira verso de um roteiro metodolgico para UCs de Uso Indireto ou de Proteo Integral. Posteriormente, o IBAMA, por meio da Diretoria de Ecossistemas (DIREC) elaborou roteiros metodolgicos voltados para a orientao e elaborao de PMs de reas de Proteo Ambiental (APAs), de Parques Nacionais, Reservas e Estaes Biolgicas, Florestas Nacionais (FLONAs) e Reservas Particulares do Patrimnio Natural (RPPNs). Alm do Roteiro Metodolgico para elaborao dos Planos de Manejo de Reservas Extrativistas Marinhas, cujo processo inicial de formulao ocorreu em evento realizado entre os dias 16 e 21 de maro de 2003, no distrito sede de Soure-Pa, sob a coordenao do CNPT e com a participao do CNS, o Grupo de Trabalho Amaznico e a Secretaria de Comunicao da Amaznia do MMA. Todos esses roteiros manifestam a necessidade de um planejamento participativo envolvendo as populaes atingidas pela poltica de UCs, cujo discurso considera no somente a conservao dos recursos naturais, mas principalmente a conservao desses recursos para a sobrevivncia fsica das definidas populaes tradicionais esse termo mesmo, uniformizador e principalmente para a manuteno sociocultural e econmica dessas populaes, ou seja, visando reproduo social das categorias que vivem desses recursos naturais. O roteiro metodolgico introduz o conceito de uso mltiplo para a elaborao dos PMs, o que diferencia os planos da decorrentes, visto que os anteriores direcionavam-se apenas para um recurso ou apenas uma atividade produtiva. Um total de sete PMs na esfera federal foi elaborado inicialmente na dcada de 70 pelo IBDF. Somente a partir da criao do Programa Nacional de Meio Ambiente (1981) retomado a elaborao de planos de manejo, impulsionados pela criao de mecanismos de compensao ambiental e pelo prprio SNUC. Contudo o nmero de UCs com Planos de Manejo elaborados represente uma pequena porcentagem, a exemplo que, dentre as cinquenta e uma RESEXs catalogadas no Cadastro Nacional de Unidades de Conservao (CNUC) do MMA no ano de 2007, apenas treze apresentavam seus Planos de Manejo em fase de elaborao apenas treze estavam com o seu PM em fase de elaborao, (SCARDUA In: DEBETIR e ORTH, 2007). Vrios estudos

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(MILANO, 1997; 2000, PDUA, 2002) discutem a elaborao de Planos de Manejo, os problemas apresentados, e possveis solues. Alguns dos problemas apresentados por esses autores podem ser percebidos nessa fase inicial de elaborao do PM nas RESEXs em estudo, dentre os quais destacamos: A) A sistemtica de contratao externa de servios de planejamento pela administrao pblica por meio de servios de consultoria que, em grande medida, so alheios realidade local dessas reservas, assumindo em paralelo, outros compromissos fora da regio e dificultando o trabalho de aproximao necessrio para uma familiaridade maior com os outros agentes sociais presentes no processo de elaborao do PM e com o prprio contexto socioambiental; B) O uso dos resultados das etapas de trabalho do PM como produtos em geral utilizados com outras intenes, nesse caso, mais como um comprovante da eficcia tcnica e do cumprimento do dever pelo rgo gestor mediante instncias superiores e em nvel de divulgao. A espera por aprovao em Braslia desses produtos, por parte da consultoria, condiciona as prximas aes na execuo do plano de trabalho da fase I dos PMs, o que em geral atrasa os prazos pr-determinados para as aes, bem como condiciona a liberao dos recursos previstos. Esses atrasos ocasionam nos outros agentes sociais diretores de associaes, usurios, rgos parceiros alm de um distanciamento, um descrdito e descrena no processo, elemento desmotivador em virtude dessa descontinuidade, principalmente para as populaes locais que tm sido as principais assediadas, da decorrendo frustraes diante das expectativas criadas; C) Pessoal tcnico em nmero insuficiente e com qualificao restrita, considerando que o ICMBio s recentemente destinou concursados para as RESEXs e, somente no ano de 2009 comeou a estruturar as regionais, aproximando de algum modo seus tcnicos das localidades onde se instituram as UCs. tambm pertinente ressaltar que os tcnicos lotados nessas reas so em sua maioria profissionais da rea das Cincias Naturais e Agrrias e das regies sul e sudeste do pas. Observe-se que os concursos pblicos destinados seleo de analistas ambientais embora abertos a graduados, possuem contedo programtico da rea em referncia, o que por si s j um critrio de seleo. Quanto referncia em relao origem regional dos profissionais, deve-se ao fato de, em grande medida, serem esses analistas jovens e recm-concursados com pouca ou nenhuma experincia referente aos contextos multiculturais e biodiversos da Amaznia brasileira, sem tornar essa observao um demrito, queremos ressaltar a necessidade de constituio de um corpo tcnico multidisciplinar e atento s peculiaridades regionais.

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Outra questo que agrega no sentido da desqualificao do trabalho desses recmcontratados do ICMBio a sua constante redistribuio, com vistas a atender outras UCs com ausncia de recursos humanos, em um movimento que no permite uma solidificao do conhecimento acerca dos contextos singulares de cada lugar; D) As questes que envolvem a contratao dos consultores alm do distanciamento geogrfico, implica ainda no distanciamento social considerando que o consultor da RESEX de Soure tinha residncia em Braslia, desenvolvendo apenas aes pontuais na Reserva, alm do pouco tempo para estabelecer certa reciprocidade com vistas elaborao do PM. Alm disso, os processos de seleo foram agilizados a toque de caixa, cujas entrevistas se deram por telefone e de forma condensada, conforme informado por um dos consultores contratados nas RESEXs em estudo. No caso da RESEX Arai-Peroba, a consultora tambm responsvel pelo PM da RESEX Gurupi-Piri, acumulando processos distintos, se pensados a partir das especificidades de cada RESEX, e embora residente na capital do Par, observa-se nesse caso um maior distanciamento em relao populao de usurios, principalmente em virtude do afastamento das aes que so planejadas pela equipe tcnica em Belm, visto o chefe da Ara-Peroba no residir na localidade e das dificuldades de comunicao e de acesso a Reserva; E) A ausncia participativa da academia, particularmente da UFPA, que possui campi nos interiores do Par e com um campus em Soure e outro em Bragana, as proximidades de Augusto Corra. A participao de professores e pesquisadores nos trabalhos da fase I de elaborao do PM foi constatada nas reunies para discutir e apresentar o plano de trabalho dos consultores e, constituir o GT. Nenhuma outra ao foi observada, a exceo, cabe esclarecer, no caso da criao da RESEX de Soure. Da decorre tambm; F) A falta de informaes acerca da realidade socioeconmica e das condies de sustentabilidade; G) as precrias formas de participao social e principalmente; H) Dificuldades na execuo dos PMs, conforme ocorre nas RESEXs Marinhas do estado do Par. Nesse processo, o que se ressalta uma inteno legal para que haja representatividade dos vrios segmentos sociais. Contudo, o que se observa a dificuldade das equipes tcnicas das RESEXs em estudo em coadunar suas atividades, por exemplo, com o GT, eles so institudos por ao do rgo em um ato de cumprimento da legalidade, mas no h uma mobilizao de seus componentes para efetivamente participar, para alm da convocatria de

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reunies, assim como no h um interesse manifesto por parte dos membros. A ideia dos GTs seria que seus membros organizassem o trabalho, pontuando as aes e manifestando as necessidades locais junto equipe tcnica e que cada membro servisse de multiplicador e catalisador da participao dos demais usurios por meio do debate e da deliberao sobre o que bom para o conjunto de cada categoria de extrativista, ou conjunto de moradores. Observamos, no caso da RESEX Ara-Peroba em uma reunio do GT, que a equipe tcnica (tcnicos e consultora) indicava para o grupo como reunir e discutir com os moradores de suas localidades as questes referentes ao PM, contudo as condies precrias para realizao dessas aes as inviabilizava. Em geral, reunies com os moradores de uma localidade condicionam a perda do dia de trabalho e longos deslocamentos, assim como incide na necessidade da alimentao fora do domiclio. Essa infra-estrutura no era oferecida no caso das reunies da Ara-Peroba. No caso da RESEX de Soure, pudemos presenciar que alguns membros do GT encontravam-se presentes nas atividades realizadas nas diversas vilas e bairros onde moram os usurios, mas sem que houvesse um compartilhamento de tarefas e aes que antecediam as reunies ou conhecimento das decises. Em geral, atribuio da equipe tcnica. Isso se d tanto no que se refere aos agentes individuais quanto com agentes representativos da coletividade como a Associao de pescadores do Pesqueiro, na pessoa do senhor Altino Pinheiro Amaral, e mesmo a Associao de Usurios da RESEX, por meio de alguns de seus membros como Patrcia Farias Ribeiro, presidente, e Darlene Santos, primeira secretria. Nesse caso, apenas servem como um brao colaborador na mobilizao dos usurios em suas localidades de moradia. No caso de Soure, os trabalhos iniciais contavam apenas com a tcnica chefe da Reserva e o consultor, ambos atentos questo da infra-estrutura das reunies, que em geral duravam o dia todo. Os tcnicos recm-concursados e lotados em meados de 2009 eram trs, que residiam na sede do municpio e que cumpriam carga horria de trabalho na sede do IBAMA, j em nossa visita em 2010, um dos tcnicos havia sido redistribudo para outra Reserva no estado do Maranho. No caso da RESEX Ara-Peroba, essa insero do GT, ainda menos presente, embora este tenha sido definido, a equipe tcnica agia de modo mais isolado, atuando junto populao local de forma direta nos perodos em que se deslocam para as localidades. No existia no ano de 2009 nenhum tcnico lotado na regio, apenas a perspectiva de criao de um escritrio do ICMBio em Bragana para atender toda essa regio bragantina, o que ocorreu no ms de janeiro de 2010, nas dependncias do Frum de Bragana.

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Em geral, nas atividades da RESEX Ara-Peroba atuavam a consultora para elaborao do Plano de Manejo, que a mesma que atua tambm na elaborao do PM da RESEX Gurupi-Piri no municpio de Viseu e os dois gestores ou chefes dessas RESEXs. Comumente as atividades dessas UCs eram realizadas em continuidade pela aproximao geogrfica, conteno de tempo e despesas. Observamos que as atividades eram marcadas sem antecedncia e informadas s vsperas tanto no que se referem s populaes locais, lideranas de associaes, conselheiros e autoridades pblicas, como Secretrio de Meio Ambiente e outros, incidindo em um percentual baixo quanto presena dos usurios nas atividades. Para a realizao das atividades da fase I do PM, houve a necessidade de reativar os Conselhos deliberativos das RESEX (composio em anexo) que so de acordo com Gohn (2000, p.178) instrumentos de expresso, representao e participao da sociedade civil organizada, mas com regulao do poder pblico, com vistas s deliberaes a cerca das prticas que dizem respeito gesto da Unidade. O Conselho deliberativo da RESEX de Soure foi criado em 2003, pela Portaria 76 do IBAMA, dois anos depois de oficializada a RESEX. Tendo seu regimento aprovado em 2006 (Portaria 28/06/IBAMA). O Conselho deliberativo da RESEX de Soure, de acordo com Ata da Assemblia de Criao datada de setembro de 2002 (em anexo) composto por 19 instituies, dentre elas o rgo federal gestor, rgos estadual, rgos municipal, a UFPA, rgos da sociedade civil, organizaes no governamentais, representantes da igreja catlica e de associaes comunitrias. Atualmente em virtude dos trabalhos da fase I do Plano de Manejo, o Conselho Deliberativo que h pelo menos dois anos no se reunia foi reativado por meio da presena de uma nova "gestora" ou "chefe" da RESEX, que a princpio foi nomeada pelo ICMBio como responsvel institucional nesse processo de elaborao do PM e que na sequncia foi nomeada como gestora ou chefe da Reserva. A primeira reunio, ocorrida em 22 de agosto de 2009, foi um primeiro passo para a realizao dos trabalhos do PM, que no poderiam acontecer sem a constituio do j referido GT determinado pela IN n 01/2007 e reativao do Conselho, preceitos reafirmados pelo Termo de Referncia para elaborao do Plano de manejo participativo Fase I da RESEX de Soure. Quanto ao Conselho deliberativo da RESEX Ara-Peroba criado pela portaria 42/07 do ICMBio, no presenciamos nenhuma reunio e nenhum movimento dos agentes

institucionais em reativ-lo. O que foi realizado durante as aes da fase I do PM da RESEX Ara-Peroba, em respeito IN, foi a constituio legal de um Grupo de Trabalho GT.

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No sentido referido acima, o contexto que se apresenta enquanto atividades tcnicas tanto para o processo de criao das RESEXs marinhas quanto para elaborao da fase I do Plano de manejo seguem um procedimento que vai desde o reconhecimento da localidade, por meio dos laudos, em seus aspectos sociais e ambientais, reunies, audincias pblicas, abaixoassinado, criao de associaes, at a formao dos autos do processo propriamente dito. Esse procedimento, do qual o rgo tem total controle, por ser dele a iniciativa dos encaminhamentos, possibilita a participao institucional quer direta quer indireta. De todo modo, importa esclarecer que se por um lado o rgo introduz a populao nas aes institucionais locais, h de se observar que essa participao tende muito mais a legitimar essas aes, visto que coloca as associaes, ONGs e os usurios como co-partcipes na condio de legitimadores das aes institucionais da poltica pblica. Aes essas muito mais dirigidas para alcanar os resultados de fundamentao tcnica para a efetivao da UC identificao e reconhecimento da rea como adequada criao de UC e convencimento da populao local do que com o propsito de instrumentalizar essa populao com vistas a que ela delibere sobre os assuntos pertinentes sua relao com o meio circundante, onde as relaes de vida e trabalho dessa populao acontecem. De outro modo, as questes que se apresentam na argumentao da populao local so tomadas como meio para atingir os fins institucionais. Tomemos o caso da RESEX Ara-Peroba quando de sua criao, a equipe tcnica treinou um grupo local para atuar como aplicadores de formulrios para a elaborao do laudo socioeconmico. Do mesmo modo, na RESEX de Soure, a equipe tcnica contou com a participao direta de caranguejeiros, bem como na quase totalidade das aes locais referentes criao da Unidade. Embora se possa considerar como participao direta nas aes, por outro lado no se pode afirmar que sem nenhum tipo de intermediao, dada a clara tutela do rgo. Desse modo, podemos observar que a ao institucional obedece aos preceitos da ao racional referente a fins, definidas por Weber (2002) visto que os objetivos claros a serem alcanados nas aes se voltam para as expectativas referentes ao comportamento de outros agentes sociais e tais expectativas funcionam como meio pelo qual alcanam os fins prprios perseguidos. A constituio dessas RESEXs tem sido sustentada nas expectativas das populaes locais referentes resoluo de conflitos sociais entre as categorias de extrativistas, a necessidade de aquisio de ajudas por meio de polticas de fomentos de apetrechos de trabalho e moradia, a melhoria da qualidade de vida e, em ltima anlise, a prpria sobrevivncia. O sentido no qual se assenta a ao tcnico/institucional no outro se

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no a delimitao de reas protegidas, onde se legitima a dominao do rgo gestor, por meio de uma racionalizao burocrtica. Uma das questes centrais para esse entendimento resultante do acompanhamento das aes da fase I do PM, durante as quais pudemos vivenciar as tenses entre os interesses e sentidos locais e os institucionais. A organizao social desses grupos locais ainda responde, em grande medida, s formas simblicas sob as quais predominam os sentidos dados s suas relaes. Dentre as quais a magia e o mito na produo de sentidos e de conhecimento sobre as coisas. O poder de dar sentido estruturao social sustentada na relao homem/natureza ainda apresenta-se basicamente vinculada a essa instituio do ethos local. A questo que centraliza as relaes socioambientais nesses grupos a ideia de que a natureza oferece seus frutos ao homem, que o que est no ambiente natural para ser usado e as formas de controle desse uso se fazem mediante os seres mticos mgicos, conforme enunciamos no captulo 4, sustentados em uma racionalizao valorativa. Esses sentidos mtico-mgicos falam da manuteno desses recursos pelo significado ltimo a prpria subsistncia, valor primeiro no rumo da racionalidade prtica local. Embora esses sentidos no curso das relaes sociais estabelecidas estejam sendo ressignificados ou degradados, no h outro lugar de onde sentir e viver as condies de vida e trabalho se no a partir das relaes diretas com os recursos naturais:
Todo dia o pessoal sai pro mangal, porque o caranguejo t assim como dizendo [sic], sendo o meio de sobrevivncia do pessoal aqui do Ara. Porque o camaro tinha falhado e por isso o caranguejo tava sendo muito consumido. (informao verbal) 160

Considerar as dimenses subjetivas materiais e simblicas conduziria a ao dos agentes institucionais envolvidos nas aes de implementao da poltica a uma abertura para uma conduta tica de alteridade e, portanto, na perspectiva das aes ticas conforme a proposta tica de Ricoeur e a tica da responsabilidade em Weber, que implica na responsabilidade de escolhas contextualizadas, a responsabilidade perante o futuro (WEBER, 1967, p. 110). Desse modo, conforme Mendona, impe-se a violncia concebida como a relao dialgica no estabelecida, o encontro no realizado, o face a face

160

Relato colhido de usurio no identificado da RESEX Ara - Peroba em reunio da fase I do PM, em outubro de 2010.

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interditado (2001, p. 465). Porque, no dizer de Weber O instrumento decisivo da poltica a violncia (1967, p. 114).

GUISA DE CONCLUSO
Viver bem... A busca por uma conduta tica conciliatria

O prximo, dizamos ao trmo de nosso primeiro desenvolvimento, a maneira pessoal pela qual me encontro com outrem para alm de toda mediao social, o encontro cujo sentido no deriva de nenhum critrio imanente histria. a sse ponto de partida que devemos finalmente voltar (RICOEUR, 1968, p. 110).

Guisa de Concluso 331

GUISA DE CONCLUSO - Viver bem... A busca por uma conduta tica conciliatria

verdade que a igualdade perante a lei no ainda a igualdade de oportunidades, a igualdade de condies. Tambm aqui, a nossa reflexo confina com a utopia, a utopia de um Estado que poderia dizer: a cada um segundo as suas necessidades; [...] Por minha parte, no hesito em dar, alm disso, uma significao tica no apenas a prudncia exigida aos governos [...] No hesito em pensar em termos ticos, a democracia considerada do ponto de vista da sua teleologia (RICOEUR, s.d, p. 397, grifo nosso).

Nossa pretenso ao estabelecer Viver Bem... A busca por uma conduta tica conciliatria sustenta-se na leitura da pequena tica de Ricoeur , que indica um caminho a percorrer concernente ao que justo. Desse modo, tomamos como parmetro a proposta tica ricoeuriana para pensar modos de interao sustentados na perspectiva de que viver bem mais que uma esperana ou probabilidade, um projeto tico, e desse modo, de ao, e como tal no um projeto solitrio ou individual, mas social e poltico, constitudo por regras de conduta como de similitude, reciprocidade e alteridade, tendo ainda em vista a mediao desse projeto pelas instituies pblicas cuja normatizao deveria ater-se s regras da justia, da viver bem com e para os outros em instituies justas (RICOEUR, 1995, P.162). Nesse sentido, viver bem seria o coroamento e o fim ltimo das aes pessoais, mas tambm institucionais sociais e polticas para abranger os dois nveis conceituais de instituio em Ricoeur (1995). Nossa inteno primeira constituiu-se por demonstrar a partir da proposta de Ricoeur a tica como uma possibilidade do agir humano, a possibilidade de relaes ticas conciliatrias das diferenas entre os agentes que interagem no contexto da poltica pblica de UCs. Enunciando assim a responsabilidade de cada agente individual ou coletivo por suas aes. A proposta do autor em questo enuncia de forma conexa a estima de si, a solicitude e o sentido de justia, que para ns incide na primazia de um fazer institucional antes de tcnico, tico, posto o reconhecimento do Outro, do diferente, marcado pela abertura ao dilogo. A tica para o autor no somente um empreendimento terico no escopo do debate filosfico. Trata-se, para alm disso, de possibilidades, perspectivas que se articulam a partir da experincia vivida em uma conduta comprometida, reflexiva e que faz do homem senhor de suas aes a caminho do bem comum, da paz e da no violncia. Sua proposta tica

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constitui-se como empreendimento reflexivo posto a interpretar o mundo no caminho de uma prtica justa, sua finalidade a ao humana estimada boa. Em Ricoeur, a tica e a moral constituem um conjunto reciprocamente imbricado e assim, um agir moral-legal no pode suplantar, na forma de aes objetivadas e reificadoras, os princpios ticos, dissociando a perspectiva tica do viver bem com e para os outros das aes tecnocrticas sustentadas na racionalidade formal-legal. Vias de conciliao ho de ser pensadas. Nossa proposta constituiu-se ao trazer para o debate a perspectiva tica do autor sem dissoci-la de sua teoria da ao, com vistas a pensarmos outras formas de interao para os agentes sociais e polticos envolvidos no processo de implementao da poltica de UCs no estado do Par, por meio do reconhecimento das diferenas e da possibilidade de relaes que se sustentem sob o paradigma de uma hermenutica da alteridade base da proposta de Ricoeur. Esses subsdios, pensados em articulao com o contexto analisado, sugerem para ns uma sociologia comprometida com a produo terica/textual, mas principalmente com uma ao, uma prtica colaborando, ainda que minimamente, no fazer das polticas pblicas que possa reconhecer ethos diversos aos quais correspondem sistemas ticos distintos, sustentados em histrias e, por conseguinte em horizontes de compreenso tambm distintos. Polticas pblicas contextualizadas e dirigidas s populaes locais, sensveis a compreenso da organizao local a partir de seus ethos ambientais singulares, experienciados e vivenciados em torno do uso dos recursos naturais na Amaznia brasileira. Desse modo compreendemos conforme Ricoeur que:

Se no existe sociologia do prximo, talvez exista uma sociologia a partir da fronteira do prximo [...] o prximo a prpria conduta de se tornar presente [...] a cincia do prximo imediatamente interceptada por uma prxis do prximo; no se tem um prximo; fao-me o prximo de qualquer um (1968, p. 99-100, grifo nosso).

De acordo com Ricoeur destacam-se quatro capacidades realadas no uso do verbo poder: Je peux parler, je peux agir, je peux raconter, je peux me tenir responsable de mes actions (RICOEUR, 1999, p. 2). Dois desses aspectos em particular se destacam da proposta tica de Ricoeur para nosso estudo sociolgico primeiro que tanto a tica quanto a moral constituem possibilidades do agir humano. Portanto, Ricoeur debrua-se sobre o agir, sobre o sujeito das aes (je peux agir) e, assim, capaz de mudar o curso da histria, capaz de fazer escolhas, a capacidade de agir intencionalmente, em seguida a capacidade de introduzir

Guisa de Concluso 333

mudanas no curso das coisas, de comear alguma coisa no mundo, em poucas palavras a capacidade de iniciativa (1995, p.162). Desse modo, que em nosso estudo nos reportamos a um agir tecnocrtico que podemos concluir antes de ser tico, sustentou-se na estrutura moral-legal (do dever-ser) para sedimentar a poltica ambiental de UCs e que conduziu para a reafirmao das assimetrias evidenciadas em nosso estudo e para o esvaziamento das perspcectivas das populaes locais, do ponto de vista da aplicao da poltica. Contudo, h que ser lembrado que do outro, persistem esses modos de ser e fazer locais que se constituram a partir da sedimentao de seus costumes partilhados em seus grupos sociais (pescadores, caranguejeiros, camaroeiros, coletores de espcies nativas, etc) e suas instituies societrias. No podemos deixar de responsabilizar, a luz de Ricoeur, as instituies pblicas ambientais pelas aes de seus agentes, pela tomada de decises sustentadas numa racionalidade que uniformiza contextos scio-ambientais forjados em particularidades vivenciadas no decurso do tempo, que desconhecem e no reconhecem os saberes correspondentes a estes contextos. Da decorre pela ausncia de relaes dialgicas e de abertura para o Outro assimetrias contundentes, sentidos e ressignificaes de sentidos que no concorrem para os mesmos objetivos buscados pelos dois nveis de estruturas institucionais (societrias e polticas), a saber, a busca do viver bem. Quanto ao segundo aspecto referente s capacidades destacadas por Ricoeur em relao ao verbo poder Temos que o sujeito que pode agir tambm capaz de interpretar-se como autor de suas aes (je peux me tenir responsable de mes actions), seja guiado por seus princpios ticos seja por normas morais-legais, e desse modo, Interpretar o texto da ao interpretar a si prprio, no plano tico, a interpretao de si [de aes compree ndidas como boas em relao ao Outro, o outro externo ao si e o outro do si mesmo] torna-se estima de si (1991, P. 211) e por isso capaz de responsabilizar-se por sua conduta. Conforme enuncia Ricoeur: Eu sou esse ser que pode avaliar suas aes e, estimando bons os fins de algumas dentre
elas, capaz de se avaliar a si prprio, de se estimar bom (RICOEUR, 1991, P. 212, grifo nosso).

A ideia do sujeito que age eticamente em Paul Ricoeur uma noo reflexiva e hermenutica, posto que o si somente existe em relao ao Outro, s se compreende mediante essa relao. A estima de si o aspecto reflexivo da perspectiva tica. a estima de si visto que ela s ocorre mediante aes estimadas boas que d origem perspectiva de vida boa e, a solicitude a dimenso dialogal, zelo, desvelo pelo Outro. A solicitude intrnseca a ideia da estima de si. S estima-se a si mesmo aquele que solcito para com o Outro. Assim como

Guisa de Concluso 334

enuncia Ricoeur: fundamentalmente marcada pela troca entre dar e receber (1991, p. 221), uma relao interpessoal como inerente ao prprio si. por essa troca mtua entre os agentes da relao, pela reciprocidade de suas aes que se abre o horizonte da vida boa. por essa perspectiva que pensamos ser possvel, vias de conciliao das assimetrias observadas no contexto das relaes que se constituem na criao das RESEXs e na elaborao de seus planos de manejo. Sustenta-se assim a primeira tese da proposta tica de Ricoeur A primazia da tica sobre a moral. E como a esses elementos se encadeia o componente da justia? Em Ricoeur a estima de si consta do plano do si mesmo, a solicitude no nvel da interpessoalidade, que no podem ser vividas e pensadas uma sem a outra (1991, p. 212) e na esfera da interpessoalidade a justia equidade. Assim, a passagem da visada tica norma moral, como a segunda tese da proposta tica de Ricoeur, submete a tica ao crivo da norma. uma tica enriquecida pela passagem atravs da norma e investida no julgamento moral em situao (RICOEUR, 1991, p. 237), desse ponto, tica e moral se complementam e nessa passagem a noo de justia institucionaliza-se, o justo institui-se pela via legal. Na esfera do terceiro coletivo na esfera da instituio societria ou poltica governamental aonde as instituies so assim medidoras da vida em comum, e onde se encontra presente o senso de justia, a igualdade o fim ltimo. O que permanece pela via da instituio que o campo de aplicao da igualdade no se restringe ao face a face das relaes interpessoais, mas estende-se ao terceiro annimo por meio da moral-legal. O senso de justia no restringe em nada a solicitude, ele a supe, visto que ela tem as pessoas como insubstituveis. Em compensao, a justia acrescenta solicitude, uma vez que o campo de aplicao da igualdade um grupo extenso de pessoas, comunidades, povos, naes, a humanidade inteira.
A igualdade, de qualquer maneira que a modulemos, para a vida nas instituies o que a solicitude nas relaes interpessoais. A solicitude d como comparao de si um outro que um rosto [...] A igualdade lhe d como comparao um outro que um cada um. [...] o campo da igualdade a humanidade inteira. (RICOEUR, 1991, P. 236 grifos do autor)

Implica desse entendimento que o ser humano no vive isoladamente, e que conforme j analisado em Weber (1999) o agir humano (a ao social) envolve outros seres humanos. Se no quisermos ampliar essa perspectiva conforme Buber (1974) a partir dos trs domnios

Guisa de Concluso 335

do mundo do tu: da vida com os homens, da vida com a natureza e da vida com os seres espirituais. O nosso agir implica consequncias para outros e para a sociedade. Se para Ricoeur, em O Si Mesmo como um Outro (1991), a instituio, em sentido mais amplo, enquanto instituio societria, a estrutura do viver junto de uma comunidade histrica [...] irredutveis s relaes interpessoais, o viver junto estende-se para alm das relaes interpessoais abrangendo um sem nmero de outros que podem ser designados, na expresso de Ricoeur como cada um (Ricoeur, 1991, p.236). Sobrepem-se para ao autor, neste nvel conceitual (da instituio societria), a prxis coletiva, os costumes comuns, sobre as regras constrangedoras (que so orientadoras da ao institucional poltica governamental) (RICOEUR, 1991, p. 227). Sob a instituio societria compartilham-se costumes comuns consolidados na tradio, na coeso, costumes que fazem referncia ao passado e se colocam com vistas ao futuro, conservao do grupo. E desse modo, somos levados a pensar no que se faz justo no contexto comunitrio das populaes extrativistas locais em anlise seus modos seculares de se relacionar no uso dos recursos naturais bem como suas formas de dirimir as diferenas entre si, o que se faz por uma norma moral subentendida as suas formas organizacionais. Diante desses contextos temos os princpios ticos submetidos ao crivo da norma moral local. Um bom exemplo para essa situao refere-se ao j comentado uso da baliza nas proximidades da cabeceira do igarap da vila do Caju-una em Soure, utilizado para coibir a pesca da tainha na poca da reproduo. Essa situao no agrada os moradores da vila do Cu que querem adentrar a rea, mas que se submetem a regra em virtude da aceitao pela maioria dos usurios e em virtude do igarap se localizar no espao territorial do Caju-una. Em outro nvel de apreenso dado por Ricoeur (1995), a instituio (a instituio poltica governamental) constitui-se como as estruturas governamentais que organizam e regulamentam o viver junto dos agrupamentos sociais de forma contextualizada, quer dizer, regulamentam as formas concretas do viver em comum na busca da vida boa. Essa inteno regulamentadora, de acordo com Ricoeur, d s instituies polticas governamentais a funo de mediadoras do bem comum, responsveis desse modo, pela justia. A ideia de instituio, nas duas apreenses pressupe a perspectiva do viver bem e por essa via remete noo do Outro e de justia.

A instituio como ponto de aplicao da justia, e a igualdade como contedo tico do sentido da justia, tais so os dois princpios da investigao sobre o terceiro componente da perspectiva tica [sob instituies justas]. Dessa dupla inquirio resultar uma determinao nova

Guisa de Concluso 336

do si, a do cada um: a cada um o seu direito. ( (RICOEUR, 1991, P.227 grifo nosso).

Do ponto vista referido acima, no que se diz respeito s instituies polticas governamentais, importa trazer alguns aspectos constantes de nosso estudo a serem pensados guisa de concluso. Dentre os quais, pensarmos no somente as instituies responsveis de forma direta pela poltica ambiental (IBAMA e ICMBio) mas, propormos s instituies pblicas que possuem insero no processo ou ainda, que tem ou podem ter assento nos espaos abertos participao como o Conselho Deliberativo das RESEXs criar

mecanismos de insero mais dirigidos e atuantes. Temos no contexto da criao das RESEXs, bem como da elaborao da Fase I dos PMs a presena eventual de Instituies de Ensino e Pesquisa, como a UFPA, a UFRA, o Museu Paraense Emlio Goeldi (MPEG) e o CPNOR. Alm, evidentemente de outras instituies que de algum modo, foram co-partcipes ainda que apenas para legitimar os momentos formais respaldando os ritos necessrios de criao das Reservas. Entretanto se ausentam desses novos momentos, nos quais se firma (ou no) a proposta de conservao de espaos naturais, com insero social (das populaes locais) a partir do paradigma do desenvolvimento sustentvel, conforme observado por Rosa (2007, 2010). Dentre essas instituies pblicas cabe ressaltar o Ministrio Pblico, as Promotorias pblicas, os rgos estaduais e municipais competentes (conforme se pode observar a presena de vrios rgos registrados na ATA de posse do Conselho Deliberativo da RESEX de Soure em Fevereiro de 2004,
em anexo).

H ainda que se observar que no cabe apenas constituir-se membro do Conselho Deliberativo e atuar nas reunies, fazendo apenas o debate nesse foro, mas torna-se necessrio tomar parte, participar, atuar envolvendo mltiplos saberes e perspectivas nas aes , posto que de acordo com o artigo oitavo, pargrafo segundo do SNUC:

A Reserva Extrativista ser gerida por um Conselho Deliberativo presidido pelo rgo responsvel por sua administrao e constitudo por representantes dos rgo pblicos, de organizaes da sociedade civil e da populaes tradicionais residentes na rea, conforme dispuser em regulamento e no ato de criao da unidade. (SNUC, grifo nosso).

Desse debate e a partir do nono captulo do Si mesmo como um Outro (1991), buscamos o debate da justia que Ricoeur estabelece no terceiro momento da perspectiva

Guisa de Concluso 337

tica. Para o autor, a ideia de justia - seja qual for o sentido e o seu contedo rege a prtica social. Da por derivao lgica viver bem abrange o sentido de justia (em instituies justas). De acordo com Ricoeur, conforme j pontuado, a justia tem traos ticos no contidos na solicitude. A igualdade tem para as instituies justas uma exigncia que difere da equidade no campo da intersubjetividade. A instituio justa aquela que assegura o direito de cada um, no somente do ponto de vista legal, mas proporcionando formas de participao e de interao adequadas aos contextos sociais especficos, assegurando a cada um o que lhe de direito. A virtude das instituies , pois, a justia. Para o autor, a ideia de justia implica tambm em um sentido formal, a justia jurdico-legal, ou seja, mediante a lei. Daqui procede nossa anlise sobre a aplicabilidade do formal-legal das instituies responsveis pela poltica de UCs mediante a participao das populaes locais, o justo se faz somente por intermdio do legal institucional? Qual a perspectiva tica em Ricoeur possvel de ser adotada para a resoluo das conflitualidades presentes nessa poltica? Desse ponto, a ideia de justia bem como de igualdade, no fica apenas no campo da abstrao jurdico-legal, estende-se aos sentidos que passam a ser dados, que orientaram as aes, as interpretaes e aos julgamentos que fazemos sobre nossas prprias aes em relao ao mundo. Essa perspectiva institucionalizada (legal) da justia, que Ricoeur analisa, possui consequncias materiais e simblicas para a organizao da vida e direcionamento das aes; ressignifica o olhar sobre o viver bem redirecionado pela legalidade; prefigura a convivncia humana atual, segundo um modo de viver que prioriza a realizao individual, a convivncia respeitosa de acordo com a lei, as individualidades gritantes na sociedade, como se pode observar nas interaes divergentes entre os agentes da poltica de UCs. Diante da implementao, burocrtica e legalista, da poltica pblica de UCs, no bojo da qual se estabelecem situaes conflitantes e, posta a mediao do Estado, ele prprio tutor da justia (institucional-legal), portanto legitimador da poltica pblica como justa porque legal; podemos perguntar por quais princpios deve se guiar o agir tecnocrtico diante dos conflitos de sentidos e interesses que se apresentam no contexto em anlise? A tica apresentada por Ricoeur, campo dos princpios guias de um viver bem e que tem como fim ltimo para as aes humanas as relaes de alteridade, reciprocidade, similitude, solicitude e o senso de justia, torna-se uma empreitada rdua e frgil porque calcada no bem, nos bons sentimentos, princpios que se esvaziaram pela perda de referenciais

Guisa de Concluso 338

e de valores, pela falta de valores estveis, ou ainda pela ausncia de sentido, posto o desencantamento das aes, particularmente aqui em anlise, das aes poltico-institucionais. Na proposta tica de Ricoeur, apresenta-se como sada a possibilidade do recurso sabedoria prtica situada no plano da phonesis aristotlica, que se traduz em prudncia, que conduz em situaes conflitantes decises equitativas. Esse o recurso disponvel tica do viver bem. A sabedoria prtica constitui-se para o autor como a melhor resposta ante o conflito ocasionado pela discordncia entre o formalismo legal e a convico dos costumes, em concordncia com o contexto de assimetrias entre o fazer tecnocrtico (institucional-legal) e o fazer-se local (consuetudinrio) em estudo. De acordo com o autor:

Conflitos nos quais se enfrentam a moral dos direitos do homem e a apologia das diferenas culturais [...] eu no deixaria de invocar a sabedoria prtica em situaes particulares, que so, muito amide, situaes aflitivas, e no deixaria de defender uma fina dialtica entre a solicitude dirigida s pessoas concretas e o respeito de regras morais e jurdicas indiferentes a essas situaes aflitivas (1995, p. 170-171).

Seguindo essa linha de raciocnio e visando chamar as instituies pblicas para um modelo de democracia mais prximo do senso de justia e de igualdade, o que para nosso estudo caracteriza a perspectiva da abertura participativa para as populaoes e saberes locais, Ricoeur afirma Essa sabedoria prtica no mais uma questo pessoal: , se podemos dizer, uma phronesis de muitos, pblica como o prprio debate. Aqui a eqidade mostra-se superior justia abstrata (1995, p. 173).

A razo disso que a lei sempre algo geral e h casos especficos para os quais no possvel formar um enunciado geral que a eles se aplique com certeza [...] Tal a natureza do eqitativo: ser um corretivo da lei, onde a lei deixou de estatuir por causa de sua generalidade. (ARISTTELES s.d apud RICOEUR, 1995, P. 173).

Ricoeur firma desse modo, a primazia da tica, a passagem dessa tica pelo crivo da norma e por fim a superao de questes conflitivas pela via do retorno mesmo s fontes do sentido tico.

O resultado o mesmo, a saber, o nascimento de um carter trgico da ao sobre o fundo de um conflito de deveres. para fazer face a essa situao que se requer uma sabedoria prtica, sabedoria ligada ao juzo moral em situao e para a qual a convico mais decisiva do que a prpria regra. Essa convico, contudo, no arbitrria, na medida que recorre s fontes do

Guisa de Concluso 339

sentido tico mais originrio que no passaram para a norma (RICOEUR, 1991: 170, grifos do autor).

Para o autor a sabedoria prtica supe uma mediao entre a tica e a norma moral, indo buscar, em caso de desacordos entre partes, o uso do bom senso na mediao, respaldando nos princpios ticos a orientao para a resoluo dos conflitos quando a norma moral em sua universalizao j no d conta. Ou seja, em casos conflitantes torna-se necessrio s partes ou a quem de direito, no somente prover-se de pressupostos ticos e morais, mas ir respaldar-se nos princpios enunciados pelo autor como resultantes da experincia da vida em uma inteno tica estima de si, solicitude e senso de justia. De acordo com Ricoeur:
o trgico da ao, ilustrado para sempre pela Antgona de Sfocles 161, que reconduz o formalismo moral ao mais essencial da tica. O conflito cada vez o aguilho desse recurso de apelao, nas trs regies j duas vezes sulcadas, o si universal, a pluralidade das pessoas e o ambiente institucional. (1991, p. 293).

Dessa discusso decorre para nosso estudo que, mediante a implementao da poltica pblica ambiental sustentada na legalidade, por meio da qual o justo confunde-se com as determinaes legais e deliberaes institucionais, se impe a necessidade de reconhecer as contradies e antagonismos que ocorrem no processo de ambientalizao, que afetam, principalmente pelas vias legais, formas seculares de ao e interao das populaes locais com os recursos da natureza, ou seja, o prprio ethos ambiental local. Por fora da funo do dever de ofcio, que se constitui nos marcos de uma estrutura poltica e social dominante, so impostas medidas constrangedoras s prticas tradicionais dessas populaes. Essas medidas fundamentam-se a partir da apropriao do discurso do desenvolvimento sustentvel e da necessidade de amenizao dos problemas socioambientais que a prpria racionalidade econmica dominante forjou na lgica do desenvolvimento e do mercado. desse modo que, a poltica de Unidades de Conservao, dentro dos marcos da poltica ambiental brasileira, impe as populaes das RESEXs Marinhas, por meio de legislao especfica e do trabalho tcnico dos rgos competentes, restries, particularmente
161

Em relao ao uso de Antgona de Sofcles como exemplo do trgico da ao, diz o autor: Se, com efeito, eu escolhi Antgona, foi porque essa tragdia diz alguma coisa nica no tocante ao carter inelutvel do conflito na vida moral e, alem disso, esboa uma sabedoria [...] capaz de nos orientar nos conflitos de uma natureza completamente diferente, que abordaremos mais adiante no exemplo do formalismo moral [...] A tragdia comparvel, a esse respeito, s experincias-limites, geradoras de aporias (RICOUER, 1991, p. 285-286)

Guisa de Concluso 340

a pesca principal atividade extrativista nas reas em estudo que no se coadunam com a realidade local. Em nome da conservao das espcies ameaadas se impem a proibio de tcnicas secularmente empregadas por esses pescadores e por outros extrativistas. Cabe ainda salientar que tais artes de trabalho tradicionais esto sendo consideradas legalmente predatrias a partir da identificao, enquanto problema ambiental, do aumento da explorao e da fragilidade dos estoques. Tais desequilbrios, no entanto, tm sido causados, principalmente pela lgica da explorao de mercado, como a explorao madeireira (outra explorao caracterstica em reas de proteo no estado do Par) e, particularmente em se tratando de RESEX Marinhas da pesca industrial que avana sobre a costa martima reservada pesca artesanal com tecnologia que devasta os estoques em nome da exportao dos pescados de alto valor comercial. Configuram-se antagonismos quase insuperveis pelas relaes assimtricas estabelecidas na gesto dessas Unidades. Resta ento perguntar: existe alguma via de conciliao? O recurso a sabedoria prtica, a phronesis, agora em outro nvel que no o da sabedoria prtica do julgar pelo que melhor no aqui e agora da cotidianeidade da vida, como abordamos no captulo 4 para o caso das populaes locais, mas de acordo com Ricouer, agora na esfera do Estado, de suas representaes:

Chamvamos prudncia arte de conjugar a racionalidade tecno-economica e o razovel acumulado pela histria dos costumes. Definamos, assim, a prudncia interna do Estado. A passagem no-violncia generalizada representaria a face externa da virtude de prudncia. Esta no-violncia generalizada e, de certa forma, institucionalizada , sem dvida nenhuma, a utopia maior da vida poltica moderna (RICOEUR, s.d, p. 396)

Para o autor a tnica das instituies pblicas enquanto lado razovel do Estado constitui-se tambm na independncia da funo pblica, no servio do Estado por uma burocracia ntegra Afirma o autor ainda a cerca destas instituies designaria um dos lugares onde se exerce a sabedoria prtica, a saber, a hierarquia das mediaes institucionais que essa sabedoria prtica deve atravessar para que a justia merea verdadeiramente o ttulo de equidade (RICOEUR: 1991, p. 293). A sabedoria prtica um recurso vinculado as convices bem ponderadas, o recurso tico que permite instituio conduzir as prprias aes de modo mais justo a caminho da amenizao dos conflitos. Possibilita, na ocasio do conflito, tentar elaborar algum tipo de relao que sirva para se construir um caminho na via do consenso.

Guisa de Concluso 341

As aporias do dever criam situaes em que a estima de si aparece no somente como origem, mas como o recurso do respeito quando j nenhuma norma certa oferece guia segura para o exerccio hic et nunc (aqui e agora) do respeito (RICOEUR, , 1991, p. 201).

Acerca da interao entre a tica e a poltica Ricoeur enuncia a fraqueza da capacidade do agir tico de nossas instituies polticas governamentais no exato momento em que a poltica evoca a moral-legal. Desse ponto, de acordo com Weber na Poltica como Vocao (1967), e a partir da leitura da leitura do ethos da poltica, tem-se de um lado, agentes institucionais guiados pela convico do dever de ofcio, da aplicabilidade do legal porque justo enquanto causa a defender (1967, p. 109). E de outro, a responsabilidade mediante suas aes representativas da esfera estatal, das quais incide a responsabilidade tica sobre as conseqncias de suas aes, sobre as quais poderia incindir a tica da responsabilidade. Mediante tal compreesso, Ricoeur expe:

Gostaria de concluir com um conselho sbio que peo emprestado a Max Weber [...] a poltica quebra a tica em duas: por um lado, h uma moral de convico que eu poderia definir pela excelncia do prefervel, e uma moral de responsabilidade que se define pelo realizvel num dado contexto histrico e acrescentava Weber o uso moderado da violncia (RICOEUR, s.d, p.399).

De acordo com Weber referindo-se a dualidade, na poltica, entre convico e responsabilidade, tem-se:

A originalidade prpria dos problemas ticos no campo da poltica reside, pois, em sua relao com o instrumento especfico da violncia legtima, instrumento de que dispem os agrupamentos humanos. Seja qual fr o objetivo das aes que pratica, todo homem que pactua com aqule instrumento [...] se expe s conseqncias que le acarreta (1967, p. 118).

Ao final do percurso faz-se necessrio registrarmos que muito fica por ser apreendido da realidade que se buscou compreender. Pensarmos a questo ambiental a partir da insero das populaes extrativistas e suas atividades tradicionais no contexto da poltica de UCs, uma tarefa que se coloca como uma condio imprescindvel dentro de um contexto no qual, a cada dia, novas UCs de uso sustentvel so criadas na regio, como soluo a problemas ambientais e ou polticos postos em pauta. Nesse processo, configuram-se populaes atingidas em suas organizaes econmico-sociais e culturais, principalmente.

Guisa de Concluso 342

Assim, entende-se que as inter-relaes entre o corpo tcnico institucional e as populaes locais na constituio das UCs so reveladoras das assimetrias existentes entre os que legalmente instituem as reservas e dirigem a elaborao de seus Planos de Manejo a justificar a proteo ambiental e o bem viver (percebido s de fora); e os que retiram do locus com o qual estabelecem relaes de reciprocidade sua reproduo fsica e social, conforme exposto no corpo desse trabalho. Por essa razo, colocamos em relevo o modo de ser e fazer dos extrativistas locais, enunciando suas formas de pensar e agir atravs dos sentidos dados s suas aes, como forma de enunciar os modos singulares das populaes locais a lidar com a perspectiva legal e burocrtica do fazer tecnocrtico. Foi necessrio compreender, em especial, esse ser e fazer local, para podermos demonstrar o contraponto entre a racionalidade e ethos locais em relao ao institucionallegal, com vistas a compreender os diferentes sentidos desses agentes que interagem na poltica de UCs. imprescindvel a compreenso dos elementos constituintes da identidade dessas populaes, seus princpios ticos e seus ethos ambientais para que uma relao dialgica e de alteridade se efetive no processo de criao das UCs e elaborao de seus Planos de Manejo. Condio sem a qual o preceito da participao se constitui mais como um subterfgio legal. No negamos que nessas interaes entre as populaes locais e os agentes insituticionais novos sentidos e percepes sejam forjados ou ressignificados, apenas que a um custo demasiado, posta a perspectiva de um esvaziamento uniformizante com o qual a poltica tende a impor-se diante das particularidades locais. No bojo dessa tenso, essas populaes se recriam, se refazem cotidianamente, em arranjos scio-polticos, conforme expusemos no corpo deste estudo, na tentativa de simplesmente permanecerem, conservarem-se adiante no decurso do tempo, que para eles o tempo da mar (ROSA, 2007), o tempo de ser e fazer-se pescador, coletor, caranguejeiro, camaroeiro162. Sujeito de suas aes na busca pela via de viver bem. Perceber em que contexto se deu o processo de criao das RESEXs tornou-se imprescindvel para nosso estudo, permitindo compreendermos os sentidos dados por esses segmentos locais a lidar com regras, perspectivas e um ordenamento scio-espacial to dspares das verdades vivenciadas por eles na organizao social e do trabalho.
162

Reforamos aqui a identidade de cada segmento social local, atravs da auto-identidade assumida. Usar em nosso estudo categorias como, por exemplo, de pescador diluir particularidades, especificidades de segmentos como os camaroeiros, os caranguejeiros e os pescadores (do peixe) em relaes entre si e particularmente com a natureza, ou seja, no permitiria evidenciar os ethos ambientais locais.

Guisa de Concluso 343

Os extrativistas em geral e os pescadores, como agentes sociais da maior atividade desenvolvida naqueles ambientes, ainda hoje, se encontram a margem do processo decisrio sobre essas UCs. A fase I do Plano de Manejo sucumbiu mediante as dificuldades burocrticas institucionais e as prioridades polticas. As RESEXs Marinhas em anlise destinadas conservao ambiental a partir da racionalidade cientfico-tecnocrtica, no se coaduna aos sentidos impetrados na mobilizao social das populaes locais, que a seu modo sentiam e sentem os problemas ambientais conforme expusemos mas isso concretamente no foi considerado para efeito de desfechos a serem pensados nos Planos de Utilizao e de Manejo, ou no que foi realizado desse ltimo, ou ainda no foi dado acesso a essas populaes, informao, condies de compreenso do contedo desses documentos tcnicos a fim de concretiz-los enquanto princpios norteadores relacionados aos seus ethos ambientais locais. Como respeitar normas de polticas pblicas que no dialogam com o ser e fazer locais e que, portanto, se distanciam dos sentidos condutores do comportamento dos sujeitos a que se destinam? Isto, nos detendo no mbito do descompasso existente entre as distintas prticas e racionalidades (a local, e a institucional). Se considerarmos a questo ligada aplicabilidade da poltica, as distores se ampliam, na medida em que os fins institucionais preponderam a partir do que se encontra normatizado pelas leis ambientais; situaes dspares e conflitivas se estabelecem, portanto, entre as propostas polticas inicialmente apresentadas, sua aplicabilidade e o que a populao espera das intervenes institucionais. Informaes das populaes locais e de agentes institucionais que atuaram nas UCs indicam que o trabalho institucional realizado junto a essas populaes tomou parte delas como informante, quer seja sobre o ambiente local, os recursos naturais e a localizao dos mesmos dentro daquela rea limitada, para efeito de suas anlises na elaborao dos diagnsticos e laudos. Assim como tambm, ressignificando os sentidos locais para atender os interesses institucionais no processo de criao das Unidades, conforme afirma Souza Santos: A razo metonmica que se reivindica como a nica forma de racionalidade, por conseguinte, no se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, f-lo apenas para as tornar em matria prima (2006, p. 95). A anlise dos dados dos relatrios que subsidiaram a criao das UCs aponta lacunas, muitas questes a serem consideradas no que se refere s atividades extrativistas locais, dada a grande variedade de tipos que ocorrem e que no foram observados poca nos laudos e diagnsticos. Assim foi tambm, na fase posterior, a criao das unidades, na elaborao do

Guisa de Concluso 344

PU, onde segmentos de extrativistas no tomaram parte desse processo, apesar do preceito legal da participao. Nosso estudo ao colaborar com essa perspectiva da anlise social, torna mais evidente o quanto se faz necessria a colaborao das cincias humanas e sociais no processo de implantao de polticas pblicas ambientais, conforme afirma Diegues (1994) em referncia a necessidade de estudos interdisciplinares na constituio de Unidades de Conservao, quando nelas incide a permanncia das populaes locais, como o caso em anlise. importante ressaltar tambm, para futura fase de elaborao dos Planos de Manejo a serem constitudos para essas Reservas, a necessidade de insero que considere o saber e o fazer locais, essenciais para o manejo dos recursos. Assim, como no pode ser pensada de forma a deix-los margem de um processo cujos resultados so impensveis sem eles, vistas as peculiaridades daqueles ambientes to bem conhecidas por seus usurios. Conclumos nossa exposio por meio da constatao de que percorremos muitos caminhos at chegar aqui. Este estudo quer ensaiar um novo olhar, uma nova perspectiva, perspectivas para uma conduta tica que nos foram oferecidas pelas disciplinas ministradas e pela orientao dada pela professora Ktia Mendona (PPGCS/UFPA). Nesse momento, ento, temos de agradecer pelo todo conseguido e pedir desculpas por no percorrer para muito mais alm. Mas, como em todo processo, seja de construo terica e/ou prtica, este no cabe em si, apenas estamos parando, por hora, por fora da defesa desta tese. E, enquanto hermenutica de uma prxis, nos leva a pensar de que modo contribuir ou aplic-lo junto ao contexto analisado.

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ANEXOS

Anexos 362

ANEXO 1 Acordo de pesca da vila do Ara rea da RESEX Ara-Peroba municpio de Augusto Corra/PA

Anexos 363

ANEXO 2 Acordo de pesca da vila de Nova Olinda rea de influncia da RESEX AraPeroba municpio de Augusto Corra/PA

Anexos 364

ANEXO 3 - Acordo de Preservao Ambiental da vila da Caratateua rea de influncia da RESEX Caet Taperau municpio de Bragana/PA

Anexos 365

ANEXO 4 Acordo de Preservao Ambiental da vila de Pauxis rea de influncia da RESEX de Maracan no municpio de Maracan/PA

MINISTRIO DO MEIO AMBIENTE MMA INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVVEIS IBAMA CENTRO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTADO DAS POPULAES TRADICIONAIS CNPT/PA

Lei n. 7.679 de 23/11/88 Port n. 466 de 08/11/72 Port. n. 13 de 13/05/87

Lei n. 5.197, de 03/01/67 Port. n. 2-N, de 09/01/92 Lei Orgnica Municipal Art. 126 e 127

Port. n. N-17 de 19/08/88

ACORDO COMUNITRIO DE PRESERVAO AMBIENTAL Em reunio realizada no dia 14 de Outubro de 1999, na Comunidade de PAUXIS no Municpio de Maracan/PA, contando com a presena dos moradores, do CNPT/IBAMA, Prefeitura Municipal, Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Colnia de Pescadores Z-07, ficou decidido e estabelecido as seguintes normas para o uso da pesca, caa e coleta de aa, na referida comunidade.

I - FICA PROIBIDO:

1. Pescar com rede apoitada ou de arrasto. 2. Atravessar rede de pesca nos rios e igaraps. 3. Pescar com uso de substncias txicas, como: Timb, Cunamb e outros. 4. Capturar caranguejo com uso de lao ou tapa e capturar a fmea do caranguejo (Condessa ou Condurua). 5. Na poca do Sauat, pessoas no credenciadas (registradas) no podero capturar o caranguejo. 6. Caar com armadilha (bofete), com cachorro, quando a caa estiver prenha e para vender. 7. Cortar os aaizeiros, apanhar os cachos que ainda no estiverem maduros totalmente e coletar aa nas propriedades particulares sem autorizao do proprietrio. 8. Todos os moradores tem como obrigao fazer cumprir o presente acordo e denunciar os infratores e irregularidades na Prefeitura, Sindicato, Colnia e no IBAMA.

PAUXIS - Maracan/PA, 14 de Outubro de 1999.

De acordo

Anexos 366

ANEXO 4 Membros do Conselho Deliberativo da RESEX Ara-Peroba

Anexos 367

ANEXO 5 - ATA de reunio do Conselho Deliberativo da RESEX de Soure/2009


ATA da 1 Reunio Ordinria do Conselho Deliberativo da RESEX Marinha de Soure do ano de 2009. Aos vinte e dois dias do ms de agosto do ano de dois mil e nove, se reuniram no auditrio da Prefeitura Municipal de Soure os membro do conselho deliberativo da Reserva Extrativista Marinha de Soure. A reunio teve iniciou s 15:30 horas com a participao de 10 instituies (ICMBio, Associao de Moradores do Povoado do Cu, Comunidade do Caju una, Comunidade do Pesqueiro, SOS Maraj, ASSUREAMAS, Associao de Mulheres de Soure, Associao dos Caranguejeiros, CNS, Associao de Mulheres da Vila do Pesqueiro). Todos se apresentaram (nome e instituio) alm de informar como havia sido feita a escolha dos mesmos para ocupar o cargo de conselheiros. O representante da vila do pesqueiro colocou tambm sua angustia ao ver este conselho 2 anos parado. E a representante da SOS Maraj, colocou a preocupao do RESEX est se tornando assistencialista e deixando as causas ambientais em segundo plano. Os pontos de pautas da reunio e suas deliberaes foram: 1- Indicaes dos novos representantes das instituies que fazem parte deste conselho, ficando indicados os seguintes nomes para Conselheiro e Suplente respectivamente: a ICMBio Lisngela Aparecida Pinheiro Cassiano e Eduardo de Macedo; b ASSUREAMAS Patrcia Farias Ribeiro e Jeane c - Ass. das Mulheres do Pesqueiro Maria Izabel Leal Amaral e Maria Margarete Costa; d- Associao dos Pescadores do Pesqueiro Altino Pinheiro do Amaral e Alfredo Leal dos Santos; e - Associao das Mulheres de Soure Lucidalva Silva Figueiredo f Comunidade do Caju una Raimundo Edson e Rubiane Moraes g- UFPA Juliano Cssio da Silva Conceio e Jos Rinaldo Vasconcelos Lobato h- Associao de Moradores do Povoado do Cu Tefilo da Silva Neves e Lourival Nascimento Guedes; I Associao dos caranguejeiros de Soure Antnio Carlos Dias J SOS Maraj Leila Solange Barbosa Ramio l- Conselho Nacional dos Seringueiros - Waldemil da Gama Medeiros M- Prefeitura Municipal de Soure Jos M. Costa Guedes N MOPEPA Darlene S. Santos O Sociedade Alternativa de Soure Rodrigo Melo Gonzaga; 2- Modificaes do Regimento interno do Conselho Deliberativo. As modificaes foram: a No artigo 3 acrescentou-se o item III Secretrio. d o artigo 6 foi alterado para: Art. 6 Os membros do Conselho Deliberativo tero mandato de dois anos, podendo ser renovado por mais um mandato consecutivo. c- Foi acrescentado o Artigo: Art 7 O secretrio ser eleito dentre os membros do Conselho Deliberativo; d Foi acrescentado tambm o artigo: Art 9 Em caso de extrema urgncia de deliberao a mesa diretora (presidente, vice e secretrio) ter autonomia de deliberao, sendo a pauta levada a conhecimento de todos na prxima reunio do conselho; 3- Foi eleito por unanimidade o Sr. Rodrigo Melo Gonzaga para ocupar o cargo de Secretrio deste conselho. 4- Ficou estabelecido que em Dezembro ser realizada a 2 reunio ordinria de 2009 deste conselho. E que em cada reunio se marcar a data da reunio ordinria subseqente. 5- Foi alterada e aprovada a Programao das Reunies de reviso do Plano de Utilizao da RESEX de Soure que ocorrero no perodo de 1 a 05 de Setembro de 2009 sob a coordenao do consultor Rogrio Puerta contratado pelo PNUD para elaborao do Plano de Manejo Fase I desta Unidade.

A reunio foi encerrada as 18:33 horas sem a presena dos representantes das instituies: Cmara Municipal de Soure, CTR, Colnia de Pescadores Z-1, SEMA e Pastoral da Cidadania. Sem mais questionamento, eu, Lisngela Pinheiro Cassiano lavrei esta Ata.

Anexos 368

ANEXO 6 - ATA de Posse do Conselho Deliberativo da RESEX de Soure/2004

MINISTRIO DO MEIO AMBIENTE Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis - IBAMA Gerncia Executiva I do IBAMA no Estado do Par ATA DE POSSE DO CONSELHO DELIBERATIVO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE SOURE PAR Ata da assemblia de posse do conselho deliberativo da reserva extrativista marinha de Soure, aos 10 dias de fevereiro de 2004, no auditrio da Cmara Municipal de Soure, Par. Com a presena de representante das entidades conselheiras, da sociedade civil de Soure, de gerncia do Ibama Par, CNPT/DF/PA, MMA (FMNA) e da coordenadoria agroestrativista da secretaria da Amaznia e deputado estadual, que assinaram a lista de freqncia anexa. A abertura da posse deste conselho foi presidida pela Dr. Maria do Carmo Oliveira Brgido, Coordenadora da Diviso Multifuncional de Proteo Ambiental - DMPA/PA, ora representando o Sr. Gerente do IBAMA/GEREX-I/Belm/Par , Dr. Marclio de Abreu Monteiro, nesta solenidade, da qual falou da importncia do deste ato de posse, e em seguida fez a chamada para a composio da mesa das seguintes autoridades.: Sr. Waldemar Londres Vergara Filho Coordenador do CNPT/Belm/Par; Sr. Atanagildo de Deus Matos Chefe Nacional do CNPT/DF; Sr. Marco Antonio Cunha Solimes Chefe do Escritrio Regional do IBAMA/ Soure Sr. Arton Faleiro Deputado Estadual do PT/ Par; Dr. Raimunda Monteiro Diretora do FMNA/DF; Dr. Ana Lange Coordenadora do Setor de Agroextrativismo da Secretaria de Coordenao Amaznia do MMA/DF; Sr. Joo Carmelino Ramos Ramires Vereador do PcdoB/Soure; Sr. Joo Luiz Oliveira Souza Melo Vereador do PT/Soure; Dr. Eliezr Monteiro Lopes Promotor de Justia do Frum de Soure; Foi convidado pela Dr. Maria do Carmo Oliveira Brgido, para fazer uso da palavra o Sr. Waldemar Londres Vergara Filho, que cumprimentado a mesa e a todos os participantes da cerimnia, esplanou a respeito do histrico de criao da reserva extrativista marinha de Soure, como tambm dos instrumentos de implementao da Gesto desta unidade extrativista, tais como, associao dos usurio, j criada, fase de finalizao dos cadastramento dos usurios, plano de uso e a criao oficial do conselho deliberativo, aprovao do regimento interno em Ata, e da criao desta, finalizando sua fala enfatizou e valorizou as participaes dos companheiros do IBAMA que participaram do histrico de criao desta reserva, tais como a Sr. Carmem Dolores, In Memorian, Sr. Antnio Melo, Sr. Juscinia e Sr. Otvio Albuquerque, fazendo um agradecimento especial aos caranguejeiros de Soure, esta categoria que desencadeou todo processo de criao, hoje contemplando todas as categorias de pesca artesanal, falou tambm sobre o regimento interno deste conselho, aprovado na integra, segundo a ata da Assemblia de Criao deste e da sua importncia como instrumento de gesto do referido conselho, este, endossado por todas as entidades e conselheiros presentes neste ato de posse. Em seguida fez uso o Exc. Sr. Promotor de Justia do Frum de Soure, Dr. Eliezr Monteiro Lopes, que esplanou sobre a importncia do Ministrio Pblico, na proteo ambiental e a participao da sociedade civil no processo de preservao do meio ambiente, ressaltando a necessidade do fortalecimento das relaes entre os gestores municipais e federais no exerccio da aplicao da poltica nacional do Meio Ambiente. Em seguida, o Sr. Atanagildo de Deus Matos do CNPT/DF, esplanou a respeito da importncia da conquista de uma reserva extrativista, na luta das populaes tradicionais, ressaltando a concesso do direito real de uso, e tambm o fortalecimento das associaes comunitrias, na busca da melhoria da qualidade de vida, na reserva , conjuntamente aos rgos de apoio governamentais e no governamentais, finalizando sua fala, ressaltou a importncia da Prefeitura Municipal de Soure e a Cmara de Vereadores, como parceiros primordiais, para que possa

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avanar e solidificar o Conselho Deliberativo desta reserva. Dando continuidade, fez uso da palavra a Sr. Raimunda Monteiro, Diretora do Fundo Nacional do Meio Ambiente, falando da importncia deste, no apoio de aes ligadas sreservas extrativistas, gesto ambiental e conservao dos recursos naturais e da aprovao do projeto de consolidao da gesto desta unidade extrativista, atravs da associao dos usurios e Conselho Nacional de Seringueiros, atravs de projeto aprovado pelo edital do FNMA. Logo Aps esta explanao ,a Sr. Ana Lange da Coordenadoria de Agroextrativismo do MMA, parabenizou a todos, expressou a felicidade de estar presente nesta posse e falou da importncia do setor que ela coordena, do desenvolvimento de aes e apoio a projetos ligados a organizao, gesto e agregao de valores aos produtos extrativistas na Amaznia, ressaltando a participao feminina na reserva e na composio deste conselho, enfatizando a atuao da famlia no processo de consolidao da reserva. Dando continuidade a plenria fez uso da palavra o Sr. Marco Antonio Cunha Solimes, Chefe do Escritrio Regional do IBAMA Soure, que esplanou sobre a grande importncia da criao da reserva extrativista de Soure e participao da comunidade no auxilio s atividades de fiscalizao, lembrou das dificuldades e excluso histrica, sofridas pelos marajoaras, agradecendo a participao efetiva da comunidade no processo de criao da reserva extrativista marinha de Soure, parabenizando-os pelas conquistas alcanadas, colocando a disposio de todos, o escritrio regional do IBAMA Soure, e sua pessoa em particular para contribuir no que se fizer necessrio. O Deputado Arton Faleiro, cumprimentando a todos, fez uso da palavra, esplanando sobre o papel do parlamentar no processo de criao de reservas extrativistas, tendo o mesmo declarado ao pblico presente o seu apoio incondicional concluindo assim a sua fala. Em seguida o vereador Joo Carmelino Ramos Ramires, que saudando a todos, enfatizou a participao da senhora Carmem Dolores, In Memorian, na criao desta reserva, salientando tambm as dificuldades enfrentadas pelos extrativistas no processo de criao da reserva, ressaltando que aes que envolvam a sociedade so importantes para que no faltem alimentos e matria prima, nas reas de reserva extrativista, destacando, ainda, a importncia histrica do Maraj para o restante do estado do Par. Na seqncia o Vereador Joo Luiz Oliveira de Souza Melo, aps cumprimentar as autoridades e a todos os presentes, lembrou da responsabilidade de todos, pela manuteno da reserva e que ainda h muito trabalho a ser feito e outras dificuldades superar, e que devemos utilizar racionalmente a reserva extrativista para que no nos falte oportunidades para utilizao futura. Foi facultada a palavra aos presentes, aonde foram convidados, o Sr. Odalvo Castro dos Santos, Gerente do Banco do Brasil, Agncia Soure, o Sr. Antonio Rodrigo Figueiredo Leal, Presidente da Associao dos Caranguejeiros de Soure, a Dr. Eva Maria Daher Abufaiad, Mdica Veterinria e empresria voltada para o Ecoturismo, e o Sr. Valdemir da Gama Medeiros, presidente da Resex (ASSUREMAS) Soure, tendo estes apresentado seu apoio e colocando-se a disposio para colaborar no que se fizer necessrio. Dando prosseguimento a cerimnia a Dr. Maria do Carmo Oliveira Brgido, convidou as entidades conselheiras, atravs de seus conselheiros, titulares e suplentes, para serem empossados, como tambm apresentou aos membros deste conselho a nomeao do seu presidente, representante do IBAMA o Sr. Waldemar Londres Vergara Filho, coordenador do CNPT/IBAMA/Belm/Par, e do seu vice presidente, o Sr. Jos Ronaldo Guedes dos Santos, representante da Associao dos Usurios desta reserva extrativista . Aps a posse, foi dado por encerrado este ato. O senhor Henrique Rodrigues Nunes Filho, Tcnico Administrativo do Escritrio Regional do IBAMA Soure, na funo de secretrio desta cerimnia de posse, aonde subscrevo. ___________________________________________ Henrique Rodrigues Nunes Filho n. Mat: 0687006 Tcnico Administrativo IBAMA - Soure

Fonte: Benilde Rosa (pesquisa de Campo 2007 -2012)

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