Ensaio Sobre O Conto Da Ilha Desconhecida.
Ensaio Sobre O Conto Da Ilha Desconhecida.
Ensaio Sobre O Conto Da Ilha Desconhecida.
Escrita pelo grande escritor portugus Jos Saramago, e publicada em 1998, o livro O conto da Ilha Desconhecida se configura como uma das grandes obras da literatura portuguesa. Saramago conhecido pela reconstituio da oralidade em sua escrita, ele prprio se reconhecia como narrador oral, e sendo assim, afirmava que no se utilizava de pontuao, pois o que importa a musicalidade da fala, como se a narrativa se desenrolasse como uma cano. Para ele, as pausas e demais elementos deveriam se pautar na eufonia, ou seja, em pausas e recursos que beneficiassem um bom ouvir. comum, em suas obras, no existir a marcao para pargrafos e a utilizao de travesses, para a introduo de falas dos personagens, porm, sem que isso comprometa a compreenso dos textos. Saramago foi de origem humilde, exerceu profisses como serralheiro, mecnico, editor, tradutor e outros. Apesar de seu brilhantismo, no possua formao acadmica, fato que no foi obstculo para a excelncia de sua obra, lembrando que, inclusive, o mesmo foi o ganhador do prmio Nobel de literatura no ano de 1998, no mesmo ano que publicou a obra O conto da Ilha Desconhecida. A obra, acima citada, nos leva a uma profunda reflexo a respeito dos padres atualmente difundidos, corrobora para questionamentos sobre a essncia da natureza humana. Predispe o leitor a compreender que a sua existncia no se resume ao ser material, mas que a imaginao e o intangvel tambm so marcas intrnsecas do nosso ser. A obra oferece uma nova dimenso, significado, para a palavra viver; designaes que se distanciam das pregadas pelo capitalismo, que insiste em apresentar se como a pea indispensvel para o adequado funcionamento do mundo. Atravs dele, novas necessidades so geradas, novos paradigmas, novas tendncias, porm, nenhuma delas suficiente para entender o homem em sua intimidade, em sua busca interior. O mundo perdeu vrios valores importantssimos e, em contrapartida, recebeu outros que o aprisionam em uma competitiva realidade v e vazia. No livro, uma narrao em primeira pessoa, um homem vai ao rei e pede um barco para viajar at uma ilha desconhecida. Esse homem representa a metonmia de toda
* Acadmicos do 4 perodo noturno do curso de Letras, do Instituto Superior de Educao da Faculdade Alfredo Nasser, no semestre letivo 2012/2.
uma humanidade perdida, que deve despertar para o desconhecido, isto , a procura de sua verdadeira identidade. Abaixo segue um fragmento da obra, para melhor anlise:
Um homem foi bater a porta do rei e disse-lhe, D-me um barco. [...] Como o rei passava todo o tempo sentado porta dos obsquios (entenda-se, os obsquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia algum chamar porta das peties fingiase desentendido, e s quando o ressoar contnuo da aldabra de bronze se tornava, mas do que notrio, escandaloso, tirando o sossego vizinana (as pessoas comeavam a murmurar, Que rei temos ns, que no atende), que dava ordem ao primeiro-secretrio para ir saber o que queria o impetrante, que no havia maneira de se calar. Ento, o primeiro-secretrio chamava o segundo-secretrio, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por a at chegar mulher da limpeza [...]. (SARAMAGO, Jos. 1998)
No trecho, percebe-se que Saramago no d um nome ao homem, nem ao rei, nem a nenhum outro personagem. Essa caracterstica visa mostrar como o homem contemporneo perdeu a sua identidade, uma crtica a sociedade moldada nas superficialidades hierrquicas de suas funes. O conto da ilha desconhecida, assim como suas demais obras, sempre busca a conscientizao do leitor, trata-se de um convite lucidez, isto , do reconhecimento da infelicidade, da angustia latente propiciada pelos modelos e sistemas culturais que rodeiam o homem. Como se sabe, Saramago era socialista, logo, adepto dos ideais marxistas. Essa impessoalidade dos personagens nos remete a coisificao do mundo, abordada por Karl Marx em sua obra O capital. Para ambos, a alienao e a reitificao contaminaram a humanidade, que cada vez mais se distancia de questes genuinamente espirituais, intelectuais e metafsicas e mergulha em uma viso (comportamento) que a aproxima de um objeto, cominando, consequentemente, em uma profunda degenerao do autentico sentido da vida. No mesmo fragmento, percebemos tambm a negligncia do estado para com os seus compatriotas. O homem que deseja se encontrar esbarra em uma imensa burocracia, tendo seus anseios ignorados e desprezados pelos quais, em teoria, deveriam defend-los. O rei tido como uma figura misantropa, indiferente s necessidades do seu povo, preferindo ocupar se das bajulaes e do conforto do seu trono. O homem somente agraciado com a presena do rei depois de muita insistncia em ser ouvido, fundamentado por sua vontade de se encontrar, de buscar a sua verdadeira essncia, motivo pelo qual no o fez desistir. Percebe-se que tal postura preocupou o rei, que com medo de ter que lidar com futuras imitaes desse comportamento, cedeu a suas reivindicaes; no por ser bondoso, mas para se livrar daquele sujeito que talvez viesse a se tornar um modelo a ser seguido, comprometendo, assim a soberania do seu imprio. importante lembrar que essas crticas se referiam diretamente a Portugal, ao deficitrio
sistema burocrtico, ao dogmatismo e a falta de um esprito crtico quanto s questes sociais e polticas do seu pas. Na dcada de noventa, Portugal foi palco de grandes mudanas nos setores polticos e econmicos. A sua insero a planos intervencionistas fundamentados pela Comunidade Europeia trouxerem, em curto prazo, grandes benesses ao povo portugus. O pas teve acesso a novas tecnologias, houve a redemocratizao da poltica e da vida social, o estado abriu a sua economia fazendo, com que os ndices de consumo fossem potencialmente alavancados, aconteceu uma grande expanso do crdito e da classe mdia. Todo esse panorama seria perfeito se no fossem os inevitveis efeitos colaterais oriundos do capitalismo. Ao final dos anos noventa, em 1998, houve o previsvel esgotamento do modelo sustentado na expanso econmica. A proposta no era auto-sustentvel, ou seja, a internacionalizao do mercado e construo de grandes obras pblicas (patrocinadas por fundos da Comunidade Europeia) no forneciam os meios adequados para manter os ndices cobrados pela Comunidade Europeia a Portugal. Dentro de pouco tempo ficou perceptvel que esse suposto caminho de sucesso no era to linear, a prova disso era o fato de um grande nmero de portugueses terem ficado de fora dos benefcios anunciados. A verdade que na virada do milnio a economia portuguesa apresentava indicadores recessivos e o cidado lusitano, agora j contaminado com os novos paradigmas, no se compreendia mais, se encontrava perdido. O homem do livro uma metfora do povo portugus, que, segundo o autor, deve se redescobrir; a mensagem uma ironia para aqueles que se preocupam apenas em sobreviver em um mundo em forma de selva. No novo a ideia de o capitalismo ditar os rumos e as necessidades do homem; dizer do que ele precisa, de quem ele precisa, de quem ele . Tudo se rendeu a ele, a arte, com a sua indstria da programao de massa, a cincia, pois tudo se desenvolve para um fim comercial, e agora o homem. Algum poderia perguntar em que sentido o homem em si teria se rendido, e um questionamento vlido, e a resposta o prprio Saramago categrico em sua obra, ou seja, o homem no sabe mais quem , perdeu a sua identidade. A mais alienada das pessoas certamente no achar sentido em tal problema, e isso completamente normal, tudo contribui para que todos pensem assim. O fato de muitas pessoas no chegarem, como Saramago e outros escritores e pensadores, a tal concepo sobre a atual condio humana a prova mais vlida de que o sistema funciona, de que as suas verdades so tidas como absolutas, inquestionveis. Na obra, somente uma pessoa se arrisca em
acompanhar o impetuoso homem em sua busca por si prprio, como se pode contatar no trecho abaixo:
A aldraba de bronze tornou a chamar a mulher da limpeza, mas a mulher da limpeza no est, deu a volta e saiu com o balde e a vassoura por outra porta, a das decises, que raro ser usada, mas quando , . Agora sim, pode se compreender o porqu da cara de caso com que a mulher da limpeza havia estado a olhar, foi esse preciso momento em que ela resolveu ir atrs do homem quando ele se dirigisse ao porto a tomar conta do barco. Pensou ela que j bastava de uma vida a limpar e a lavar palcios, que tinha chegado a hora de mudar de ofcio [...]. (SARAMAGO, Jos. 1998)
A mulher encarregada pela limpeza foi a nica que aceitou acompanhar o homem em sua empreitada, logo ela, que no tinha nenhuma posio de prestgio no palcio, pois se encontrara na base da pirmide hierrquica. Percebe-se que em uma sociedade moldada pelos princpios capitalistas, a grande maioria se encontra nessa situao, isto , na base das classes. Em um local que serve de alicerce para que uma minoria beneficiada se apoie. A iluso de um dia ascender na vida, de ter o acesso aos to desejveis bens de consumo, so as duas mais poderosas armas de manipulao usadas por essa espcie de sistema. a velha metfora do coelho que possui uma vara amarrada a sua cabea, enquanto na ponta dessa mesma vara se encontra fixada uma cenoura, que serve de combustvel para que o mesmo se mantenha sempre correndo, mesmo sem que nunca a alcance. No entanto, a mulher, desiste dessa vida sem futuro e embarca em busca do seu verdadeiro eu, do seu encontro com a sua verdadeira natureza. Infelizmente no conseguem tripulao, se lanam ao mar somente os dois, ningum mais acreditou na possibilidade de encontrar uma ilha desconhecida, pois todos acreditavam no existir mais nenhuma ilha a ser descoberta. Ningum se comprometeu a deixar o seu sossego, a sua estabilidade, a fim de se aventurar por lugares nunca antes navegados.
[...] Disseram-me que j no h ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, no iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da vida boa dos barcos de carreira para se meterem em aventuras ocenicas, procura de um impossvel, como se ainda estivssemos no tempo do mar tenebroso [...](SARAMAGO, Jos. 1998)
No trecho, o autor critica o comportamento caracterstico da sociedade contempornea que se encontra inserida nas propostas do sistema vigente. Todo legado filosfico da
humanidade, desde os gregos, foi deturpado, deixado de lado. A conscincia crtica a respeito da realidade, do mundo, deu lugar ao comodismo vazio e sem sentido de um mundo consumista, demasiadamente materialista. O homem negligencia o fato de que todos os avanos, sejam em quaisquer aspectos, foram frutos do ato de ir alm do conhecido, do desbravar novos horizontes. A raa humana de caracterstica intrinsecamente
fundamentalista, questionadora; por isso avanamos, conquistamos e moldamos a nossa realidade. O que Saramago enxergou na sociedade portuguesa ilustra perfeitamente um fenmeno que contaminou quase que toda a humanidade, independente do continente, pas e etnia. As raras excees se devem a pouqussimos pases asiticos, como o Buto, por exemplo; l foi criado o FIB (Felicidade Interna Bruta), trata-se de um ndice que deixa de lado indicadores capitalistas como o PIB (Produto Interno Bruto) e adotam aspectos que no se restringem ao crescimento econmico como parmetro absoluto para se medir o desenvolvimento do pas. Entendem que as finanas tm que estar associadas qualidade de vida de seus cidados. Para isso, concentram os seus esforos em garantir uma vida digna e feliz para os seus habitantes pautados em nove aspectos: Bem estar psicolgico, pautado no otimismo e emoes positivas, alm da autoestima; Sade, onde se avalia a qualidade do servio prestado, e tambm de padres de comportamento arriscados, exerccio, sono e etc.; Governana, baseado na impresso que o povo tem do governo; Padro de vida, avalia-se a realidade financeira das famlias; Uso do tempo, onde se pretende orientar o cidado na melhor administrao do seu tempo (lazer, trabalho, famlia e etc.); Vitalidade comunitria, orientado para as relaes sociais, a vida na coletividade; Educao, leva em conta valores em educao, ambiente; e por fim, Cultura, onde avalia-se as tradies e costumes locais, alm das manifestaes de cunho religioso e o desenvolvimento de capacidades artsticas. Percebese que por mais bvios que sejam, esses aspectos no so nenhum pouco fceis de aplicar atualmente. E a explicao , tambm, muito simples. O mundo hoje de quem tem capital, ou seja, de quem tem dinheiro, condio financeira. Aquele que detm essa prerrogativa, esse sim, vai ter acesso a uma boa educao, a um servio de sade com qualidade, a lazer e etc.; quem no se enquadra nessa posio, encontrar-se- alheio a todos esses componentes, que sim, so indispensveis para se alcanar uma eficaz qualidade de vida. O modelo atual discriminador, ele dita quem homem e quem coisa, porm, quem considerado homem nessa conjuntura que, de fato, se aproxima de ser coisa, pois coisa no tem conscincia, no tem sentimento, no age com solidariedade. Felizmente, os representantes dessa designao so a minoria. O conto da ilha desconhecida tem uma profundidade temtica vasta (subentendida, claro), visto que se pode apontar traos sociais, psicolgicos, filosficos e outros mais. Em seu aspecto filosfico podese traar um paralelo com a obra do polmico filsofo alemo Martin Heidegger, em Ser e Tempo.
Em Ser e Tempo, Heidegger procurou estabelecer como se processa a relao do homem com o mundo e como um e o outro poderiam ser definidos fora da dualidade sujeito/objeto. Para o filsofo, o homem do sculo vinte vivia uma existncia inautntica, isto , uma vida carregada de contextos e circunstncias que o afastavam do verdadeiro significado do que ser. Estaria sempre envolvido com os entes (o material), criando assim uma coisificao ou alienao. Esse comportamento cotidiano tende a distanciar o homem de sua individualidade, forando-o a se conformar com os padres de comportamento das massas. Heidegger criticava veementemente o comportamento padronizado e consumista caracterstico de sua poca (primeira metade do sculo vinte). Nota-se uma aproximao nesse mesmo sentido na obra de Saramago. Tanto Saramago quanto Heidegger tinham uma viso crtica sobre os rumos em que a sociedade, humanidade, tomava. claro que no so os nicos, pode-se citar dzias de escritores e pensadores que raciocinavam no mesmo sentido. Enquanto Saramago propunha uma busca pelo eu desconhecido, ou perdido, sufocado pelas novas tendncias; Heidegger afirmava que o homem deveria escutar o apelo do ser, fato que ocorreria no momento em que o indivduo assumisse a sua angstia existencial. notrio que em ambos os casos descritos, a resposta para tal impasse (pois apesar de maneiras distintas de abordar o problema, as duas tratam categoricamente da mesma questo) mora na inquietao interior, na percepo de que algo tem que mudar, de que o homem est regredindo, de que a humanidade tem que se encontrar novamente. Terminado o breve paralelo entre a obra de Saramago e a de Heidegger, conclumos a percepo deixada sobre a obra o O conto da ilha desconhecida, um livro que leva o leitor a uma verdadeira reflexo sobre os padres e as necessidades do homem na atualidade. memorvel como um escritor, auto-declarado, ateu nos remete a uma concepo crtica alheia ao materialismo, que em tese deveria ser seguido pelas instituies religiosas contemporneas ao autor (O protestantismo e o catolicismo), mas, como a histria prova, no seguiam. Um homem que apesar de no acreditar em uma meta-fsica de cunho religiosa, nos leva a uma meta-fsica filosfica, uma vez que nos conduz a questionamentos que s encontraro respostas quando o homem se observar de fora para dentro, ou seja, nos enxergarmos como uma ilha, que ao ser encontrada, representar o reencontro de ns com ns mesmos. Saramago prope desalienao, um despertar do transe que o modelo capitalista impe, o caminho de retorno a razo aristotlica, definindo a moral e as virtudes como os caminhos para a felicidade, e que para se alcanar esse fim, somente atravs do uso da razo, que intrnseca natureza do homem
REFERNCIAS IMBERT, Enrique Anderson. Mtodos de Crtica Literria. Traduzido de Eugenia Maria M. Madeira de Aguiar e Silva. Coimbra: Almedina, 1971. Martin Heidegger: O Humanismo. Disponvel em: <WWW.mundodosfilosofos.com.br>. Acesso em 05de dezembro de 2012. SARAMAGO, Jos. O conto da ilha desconhecida. S.l.: Editora Schwarcz LTDA, 1998. <http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/noticia/2012/03/adotado-no-butao-indice-de-felicidadeinterna-bruta-fib-ajuda-na-busca-por-um-novo-modelo-de-avaliacao-3685204.html> , acessado em 10/12/2012.