Acselrad - Vulnerabilidade Ambiental-2006
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Da noo de risco noo de vulnerabilidade, buscou-se melhor articular as condies que favorecem a suscetibilidade de sujeitos a agravos. Conforme assinala Ayres: Enquanto com a noo de risco buscou-se calcular a probabilidade de ocorrncia de um agravo em um grupo qualquer com determinada caracterstica, abstradas outras condies intervenientes, com a noo de vulnerabilidade procura-se julgar a suscetibilidade do grupo a esse agravo, dado um certo conjunto de condies intercorrentes1. A disposio a tratar as condies de vulnerabilidade como uma questo de direitos humanos, por sua vez, apresentada tambm como destinada a vincul-las s suas razes sociais mais profundas, estimulando e potencializando a mobilizao das pessoas para a transformao destas condies. Ao justificar a busca de elementos para a caracterizao objetiva das condies de vulnerabilidade dos sujeitos, tal disposio esbarra, porm, em duas dificuldades a de considerar a vulnerabilizao como um processo e a condio de vulnerabilidade como uma relao. 1) Processo de vulnerabilizao O processo associado correntemente a tres fatores individuais, poltico-institucionais e sociais. A abordagem pelo lado do indivduo leva a sugerir forte intervenincia de escolhas individuais: a) os que vivem em condio de risco evocam rituais de busca extrema do limite humano, aproximando-se da morte por meio de condutas arriscadas ou b) cometem rros de clculo quando deixam de investir ou fazem ms escolhas na constituio de sua carteira de ativos, comprometendo, p. ex., a sua empregabilidade, ou sua capacidade de acessar a estrutura de oportunidades sociais ... Mas mesmo quando consideramos que a vulnerabilidade socialmente produzida e que prticas polticoinstitucionais concorrem para vulnerabilizar certos grupos sociais, o lcus da observao tende a ser o indivduo e no o processo. Nas definies mais correntes, a condio apontada est posta nos sujeitos sociais e no nos processos que os tornam vulnerveis. Uma alternativa politizadora seria, por exemplo, a de definir os vulnerveis como vtimas de uma proteo desigual. Esta a formulao do Movimento de Justia Ambiental dos EUA: pe-se foco no dficit de responsabilidade do
# Comunicao ao II Encontro Nacional de Produtores e Usurios de Informaes Sociais, Econmicas e Territoriais, FIBGE, Rio de Janeiro, 24/8/2006. * Professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do CNPq. 1
cf. AYRES, J.R.C.M. Vulnerabilidade e aids: para uma resposta social epidemia. Boletim epidemiolgico - C.R.T. - DST/AIDS - C.V.E. - Ano XV - N 3 - Dezembro 1997, So Paulo, p.2-4 e AYRES, J.R.C.M. et al. Aids, vulnerabilidade e preveno. Rio de Janeiro, ABIA/IMS-UERJ, II Seminrio Sade Reprodutiva em Tempos de Aids, 1997.
Estado e no no dficit de capacidade de defesa dos sujeitos2. Neste caso a pergunta se poria sobre os mecanismos que tornam os sujeitos vulnerveis e no sobre a sua condio de destitudos da capacidade de defender-se (o que diga-se de passagem fundamental do ponto de vista da constituio de sujeitos coletivos, mas desde que em cofronto com as obrigaes pbclias que lhes so devidas como diretos e que devem, em primeiro lugar, ser cobradas). Interessa determinar e, assim, interromper os processos decisrios que impem riscos aos mais desprotegidos decises alocativas de equipamentos danosos, dinmicas inigualitrias do mercado de terras etc. Focalizar-se- neste caso a proteo aos cidados como responsabildade poltica dos Estados democrticos, em lugar apenas de se mensurar os dficits nas capacidades de auto-defesa dos mesmos. No caso da proteo desigual, a sociedade procura problematizar e demandar que se desfaam os mecanismos de vulnerabilizao. Como? Requerendo do Estado polticas de atribuio equnime de proteo e combate aos processo decisrios que concentram os riscos sobre os menos capazes de se fazer ouvir na esfera pblica. No outro caso, aquele centrado no deficit dos sujeitos, o Estado que afirmar pretender dar aos vulnerveis diz-se - defesas contra os danos, capacidade de controlar as foras que modelam seu destino aumento no seu capital social e cultural, sempre uma suplementao de uma carncia e no uma ao sobre o processo de vulnerabilizao. No primeiro caso, sublinha-se algo que lhes devido como um direito o que aponta para o conjunto de decises de natureza distributiva intercorrentes; no segundo, para algo que lhes falta, capacidade que buscar-se- atribuir-lhes ou dizer pretender atribuir-lhes. Neste caso, pretende-se dar ao cidado algo que ele no tem, enquanto no anterior, aponta-se para o processo atravs do qual esta capacidade de autodefesa lhe em permanncia subtrada atravs do que chamamos de relaes de vulnerabilidade. 2) Relao de vulnerabilidade. A vulnerabilidade uma noo relativa - est normalmente associada exposio aos riscos e designa a maior ou menor susceptibilidade de pessoas, lugares, infra-estruturas ou ecossistemas sofrerem algum tipo particular de agravo. Se a vulnerabilidade decorrncia de uma relao histrica estabelecida entre diferentes segmentos sociais, para eliminar a vulnerabilidade ser necessrio que as causas das privaes sofridas pelas pessoas ou grupos sociais sejam ultrapassadas e que haja mudana nas relaes que os mesmos mantm com o espao social mais amplo em que esto inseridos3. Fatores com ao diferenciada concorrem para a maior ou menor exposio ao agravo ou a maior ou menor chance de proteo contra ele. Isto porque h mecanismos de distribuio desigual de tal proteo. Estes fatores so objetivos, sim: uns tm o poder de se proteger, de
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cf. R. Bullard, R.D. Bullard, Anatomy of Environmental Racism and the Environmental Justice Movement, in Bullard, R.D., Confronting Environmental Racism Voices from the Grassroots, South End Press e K. A. Gould, Classe Social, justia ambiental e conflito poltico, in H. Acselrad, S. Herculano, J. A. Pdua (orgs.), Justia Ambiental e Cidadania, Rio de Janeiro, Relume Dumar, 2004, p. 69-80.
cf. M.C. Guimares, S.C.Novaes. Trabalho do LIM38 de Soroepidemiologia/Instituto de Medicina Tropical/Fac. de Medicina/USP.
se tornarem menos vulnerveis via mobilidade espacial, influncia nos processos decisrios, controle do mercado das localizaes etc., enquanto que outros tero sua mobilidade restrita aos circuitos da vulnerabilidade de debaixo de um viaduto para cima de um oleoduto etc... Mas h tambm fatores subjetivos ocorrem diferentes concepes do que seja tolervel ou intolervel numa dada condio de existncia4. A condio de vulnerabilidade , pois, socialmente construida. Ela ser sempre definida a partir de um ponto de vista. Sabemos que os grupos sociais convivem com horizontes e expectativas de vida distintas: quanto mais estreito for o arco das expectativas, maior a propenso a aceitar condies, em outras circunstncias, momentos e lugares, inaceitveis. Ou seja, a desigualdade, lembram Novaes e Guimares, compromete a capacidade dos mais vulnerveis livremente expressar sua vontade. Existe, assim, uma sociologia da recusa e do consentimento com relao s condies de vulnerabilidade. A subjetividade coletiva nesta sociologia no poder ser reduzida, consequentemente, ausncia de defesas mencionada na definio de Chambers 5 ou incapacidade de livremente expressar suas vontades 6 ou controlar as foras que modelam o seu prprio destino 7. Ela incorporar diferentes inflexes na fronteira entre o que distintos grupos sociais consideram tolervel ou intolervel. Segundo uma fala colhida para a dissertao de Maria Auxiliadora Vargas no IPPUR/UFRJ em 2006: - Eu morava num pedacinho de cu. O prazer de ter minha casinha com terreirinho pra plantar uma couve, pois eu estava dentro do que meu, onde podia acordar agarrada com meus doze filhos era como descrevia sua habitao uma moradora de encosta perigosa de Juiz de Fora8. V-se aqui o que podemos considerar um emblemtico depoimento sobre o viver sob o neoliberalismo. Assim, o consentimento para com os riscos e danos impostos ser tanto maior quanto maior for a condio de destituio, levando, por exemplo, a que moradores de reas perifricas paguem para que caminhes de transporte clandestino de lixo qumico lhes forneam material txico para pavimentar suas ruas, que comunas chinesas aceitem receber e derreter o lixo eletrnico produzido de forma acelerada pela obsolescncia programada nos departamentos de pesquisa e desenvolvimento das grandes corporaes norte-americanas etc. So estas relaes de vulnerabilidade as responsveis pela produo da chamada superposio de carncias.
..o intolervel no pra de se deslocar, de se extender, de se recompor. (...) Ainda que jamais formulada como tal, uma diferenciao do intolervel se instituiu, seguindo uma linha divisria do mundo, desta feita entre aqueles cuja vida pode ainda ser considerada como sagrada e aqueles cuja vida tornou-se sacrificvel, cf. D. Fassin, Lordre moral du monde essai sur lintolrable, in D. Fassin P.Bourdelais (eds.), Les constructions de lintolrable tudes danthropologie et dhistoire sur les forntires de lespace moral, La Decouverte, Paris, 2005, p. 48. 5 cf. Chambers, 1989, apud J.M.Pinto da Cunha, Um sentido para a vulnerabilidade socio-demogrfica nas metrpoles paulistas, in R. Bras. Est. Pop., Campinas, v. 21, n. 2, p. 343-347, jul./dez. 2004. cf. M.C. Guimares, S.C.Novaes. Trabalho do LIM38 de Soroepidemiologia/Instituto de Medicina Tropical/Fac. de Medicina/USP. cf. Katzman, 2000 apud J.M.Pinto da Cunha, Um sentido para a vulnerabilidade socio-demogrfica nas metrpoles paulistas, in R. bras. Est. Pop., Campinas, v. 21, n. 2, p. 343-347, jul./dez. 200 8 cf. M A.R. Vargas, Construo social da moradia de risco: trajetrias de despossesso e resistncia a experincia de Juiz de Fora, IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.
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A condio de vulnerabilidade ser definida/enunciada, via de regra, pelo Estado9 ou por movimentos sociais que denunciam no espao pblico a inaceitabilidade de determinadas condies de existncia. Outros discursos, porm, tambm disputaro a autoridade de designar os vulnerveis. Esta condio poder ser definida, por exemplo, por empresas desejosas de estabilizar suas relaes comunitrias, qualidade valorizada no exame do chamado risco social oferecido s empresas, quando as mesmas so apontadas como portadoras de riscos sociais ou ambientais. Pode ocorrer, assim, uma espcie de retrica transferencial: alega-se preocupao com as populaes em situao de risco social para empreender, de fato, aes de proteo da prpria empresa contra o risco que a sociedade parea oferecer aos seus negcios. Ou ento um discurso eufemstico tpico de organismos multilaterais: textos do Banco Mundial nomeiam as populaes a serem deslocadas compulsoriamente para a construo de barragens pelo setor eltrico como populaes em risco de empobrecimento... ou em risco de mobilidade social descendente quando descreve-se os que apresentam desvantagem competitiva em sua capacidade de responder a crises e acessar a estrutura de oportunidades econmicas, culturais que provem do Estado, do mercado e da sociedade. Se a vulnerabilidade uma relao e no uma carncia, no poder ser atacada atravs da oferta compensatria de bens. Com frequncia, o sujeito ser includo na categoria de classificao que o define como desprovido de algo, casa, comida, sade. No entanto, eis o que sugere o depoimento de um jovem morador da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, registrado por uma pesquisa antropolgica: Tenho medo at de ir da escola ao ponto de nibus e ser parado pela polcia; e se a polcia no for com a minha cara?Quando eu recebia a bolsa-auxlio, referente ao Programa Capacitao Solidria, morria de medo, porque, numa batida policial, no podia aparecer o dinheiro. Teve colega que chegou todo machucado, porque apanhou da polcia e ficou ainda sem o dinheiro10. Ou, no caso da oferta de um curso de capacitao da populao: segundo Santos apesar do grande esforo dos tcnicos para desenhar um programa em dilogo com a populao, as vagas no foram preenchidas, pois as mulheres argumentavam que no tinham com quem deixar os filhos; os homens diziam que o curso era longo e impedia-os de realizar atividades com retorno em
Um paradoxo diz respeito ao processo de escolha da populao. Cabe aos tcnicos selecionar os vulnerveis, isto , dentre os pobres, aqueles que precisam da ajuda, da assistncia pblica. Em todo caso, os tcnicos enfrentam dificuldades para distinguir os mais e menos "vulnerveis", para definir os limites do tolervel no que diz respeito a violncia, cuidado da criana, desemprego, doena... Para complicar, mesmo quando os tcnicos reconhecem padres particulares no modo de vida, valores e prticas, da populao, estes so percebidos como fatores que levam vulnerabilidade. Cf. Simone Ritta dos Santos, da equipe tcnica do ndice de vulnerabilidade social infanto-juvenil de Porto Alegre, Procempa Prefeitura de Porto Alegre apud S.R.Santos, Resgatando a cidadania: perspectivas antropolgicas, Frum Social Mundial, 2003. Ao mesmo tempo que atentamos para as lgicas diversas presentes na sociedade complexa, lidamos e, em geral, endossamos, certos valores universais promovidos pelos Estado Moderno. O desafio saber como conjugar o universal e o particular no "resgate de cidadania" do Estado Moderno, cf. Denise Jardim, antroploga da UFRGS, apud S.R.Santos, Resgatando a cidadania: perspectivas antropolgicas, Frum Social Mundial, 2003. 10 cf. R. Adorno, Juventude: conceitos e vises, in Encontro Estadual de Poltica Pblicas de Juventude; So Paulo, 2004.
dinheiro mais imediato. Dentre as que se matricularam nos cursos, certas mulheres apanharam de seus maridos, que queriam impedir sua participao no programa.11 Consideradas pois as relaes e contextos, h diferentes vulnerabilidades, diferentes situaes e condies que se articulam nos distintos momentos e localizaes. Como sugere R. Adorno, no Rio de Janeiro os jovens da Baixada se referem em prioridade aos constrangimentos em seu direito de ir e vir. Em So Paulo, a vulnerabildade de ser jovem na periferia pode ser vivida em associao ao fato de a cidade ser tida como a cidade do dinheiro, onde o trabalho representa ascenso social12. O negro que dirige um carro de alto valor monetrio estar particularmente vulnervel ao discriminatria de agentes policiais etc. Nesta perspectiva, para se captar a dimenso societal da vulnerabilizao, a pretenso de mensurar estoques de indivduos considerados em situao de vulnerabilidade social deveria ser acompanha de um esforo de contextualizao e ser associada caracterizao dos processos de vulnerabilizao relativa, para os fins de sua posterior interrrupo.
11 cf. S.R.Santos, Resgatando a cidadania: perspectivas antropolgicas, Frum Social Mundial, Porto Alegre, 2003. 12 cf. R. Adorno, op.cit.