Bianca - Rechaco A Imigracao Ou Rechaco A Pobreza
Bianca - Rechaco A Imigracao Ou Rechaco A Pobreza
Bianca - Rechaco A Imigracao Ou Rechaco A Pobreza
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
16
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001.
73
Janaína Machado Sturza (Organizadora)
e as vidas em risco nesse cenário, em que tais apelos são rejeitados, a pesquisa se justifica
como mecanismo de compreensão das causas de rejeição e da tentativa de superá-las pela
sensibilização.
Os problemas orientadores são os seguintes: por quais motivos rejeita-se o
migrante? De quais vulnerabilidades estamos tratando a respeito de crianças em condição
de migração e refúgio? Como hipótese, consideramos a tese de Adela Cortina (2017, 2020),
para quem a rejeição não se explica exclusivamente pela condição de origem ou etnia, mas
pela pobreza. Embora o termo xenofobia e sua ideia central tenham explicado parte da
aversão ao estrangeiro, acreditamos, assim como Cortina, que essa aversão não se deve
exclusivamente a um fator de pertencimento, embora possa se somar a outros problemas.
A presente hipótese se apoia na possibilidade da rejeição se portar à condição
de pobreza em que o migrante se encontra (uma pobreza econômica, sim, mas
não exclusivamente financeira), isto é, a aporofobia. A criança, nesse contexto,
é hipervulnerabilizada. Isso porque sua idade e sua condição de pessoa em desenvolvimento
a tornam dependente de outrem para suprir muitas necessidades básicas, além de estar em
um estágio peculiar de desenvolvimento e mais suscetível a riscos. Os perigos incluem ser
violentada, explorada, afastada de sua família.
Os objetivos desta análise compreendem investigar, ainda que de forma breve, as
articulações de ordem social/moral na relação com migrantes e refugiados, que envolvem
seu desprezo e sua rejeição pelas pessoas naturais de determinado espaço/nação; além
disso, contribuir na divulgação dos estudos de Cortina e possibilitar, por esta forma, um
subsídio teórico na articulação de políticas públicas e relações sociais com pessoas em
condição de migração, sobretudo crianças, através de reflexão, sensibilização e empatia.
Para tanto, o método de abordagem é o hipotético-dedutivo, a partir dos dois
problemas de pesquisa mencionados, testados com as hipóteses, confirmadas ao
final. Acerca dos procedimentos técnicos de pesquisa, reúnem-se a forma de pesquisa
bibliográfica, de pesquisa documental, em fontes disponíveis em meios físicos e
eletrônicos, especialmente a produção audiovisual Adú (2020).
74
Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos
No entanto, desse deslocamento, nasce outra questão que deve ser analisada e se
expressa pela possibilidade, ou não, de aceitação do estranho como um igual, estranho
que se depara, muitas vezes, com um olhar de desprezo e violento do seu acolhedor. As
noções tradicionais de direitos humanos, dignidade e tolerância que sustentam as teses
de acolhimento, respeito e proteção aparecem fragilizadas quando o que está em jogo é a
preservação das identidades individuais, culturais e sociais de determinada comunidade
diante da presença do outro, estranho, estrangeiro, migrante e refugiado.
Nesse contexto, emerge a necessidade de pensar a estrutura de uma ordem política
capaz de refletir os interesses do universal ou da pluralidade humana. “A passagem da
caridade à justiça começa nesse momento, na necessidade de comparar outrem com o
terceiro e de refletir sobre a igualdade entre as pessoas” (CHALIER, 1996, p. 135). É
nesse instante, em que o outro se responsabiliza pelos outros, considerando-os iguais,
que floresce a noção de agir de acordo com a “sabedoria do amor”. Seria a primeira
manifestação em prol de uma ordem política justa, porém tal noção pressupõe-se como
diferente da trabalhada pelos filósofos contratualistas. Está orientada pela ideia do “viver
em um mundo de cidadãos” e pela noção de fraternidade. A exigência de uma fraternidade
A paz ética pensada por Levinas (apud CHALIER, 1996, p. 169-170) impõe não o
acomodar-se, mas o agir a partir de uma responsabilidade infinita pelo outro, denominada
pelo autor substituição, ilação indispensável para um projeto duradouro de paz. Há nesse
momento uma ruptura com a tradição filosófica com relação à existência humana,
imposta pela nova ética, a ética da alteridade. “Esta ética começa a partir do momento em
que ‘a-inquietude-pela-morte-do-outro-homem’, prevalece sobre a preocupação pela sua
própria sorte”. Ao manifestar-se sobre a questão dos conflitos bélicos entre Estados e suas
implicações para o convívio dos seres humanos,
75
Janaína Machado Sturza (Organizadora)
Nesse contexto, a paz pensada por Levinas (apud CHALIER, 1996, p. 184) passa
pelo âmbito do Estado, mas, para além disso, configura-se como uma paz no interior de
cada indivíduo, visto que a paz advinda por meio dos poderes estatais pode representar
uma estabilidade insuficiente, por isso é necessária a presença de instituições justas que
efetivamente defendam os direitos do homem. Isso evidencia a verdadeira justiça, na
qual o eu adquire responsabilidade pelo outro, superando qualquer desejo de preservação
individual, no momento em que o Estado — ou melhor, o representante estatal —
responsabiliza-se por seus cidadãos e realmente deseja o bem de todos, e não somente
uma paz artificial motivada por interesses políticos. Assim, a construção de instituições
justas possibilitaria a permanência dos indivíduos em seus próprios Estados, evitando
deslocamentos e busca por refúgio em Estados supostamente mais democráticos e
estáveis, pois “quando a interioridade de cada um foge ao imperativo de responsabilidade
por outrem, até as instituições justas estão em perigo”.
A paz estaria para além da totalidade e da história. A “[...] possibilidade da paz,
portanto, está intrinsecamente ligada a uma nova concepção de subjetividade marcada
mais profundamente pela ética do que pela outorga [...]” (PIVATTO, 2008, p. 119). Por mais
que Levinas exponha sua tendência em acreditar naquilo que denomina uma possibilidade
para a guerra com vistas à paz, qual seja, a “escatologia da paz messiânica”, ele também
deixa dúvidas se ela seria uma alternativa utópica aceitável para um projeto de paz futuro.
Pensa-se, no entanto, que a questão da paz e sua relação com o respeito aos
direitos humanos encontrariam guarida quando analisada sob a ótica de Levinas (1997),
no momento em que o autor apresenta sua proposta de uma justiça que passaria pela ética
das instituições, mas, mais ainda, teria seu início numa nova cultura de paz que permeia
todas as sociedades e habitaria o humano.
Assim a figura do outro é presença constante nos debates que cercam a noção
de direitos humanos. A temática é recorrente em razão do maciço e constante fluxo
migratório que impõe uma nova realidade e altera a estabilidade interna dos Estados.
A chegada de migrantes e refugiados de diversos contextos, sujeitos que se apresentam
como rostos que vêm em busca de acolhimento e oportunidades, convocam uma diferente
forma de olhar, uma diferente forma de estar (ser) em convivência com outros povos,
outras realidades de uma profética concretude nos encontramos diante da experiência da
fragilidade mais frágil. Essa concretude nos convoca ao reconhecimento, ao acolhimento
do outro em sua condição mais básica e frágil, sua condição de ser humano.
O pensamento de Levinas (2003) aparece como esse espaço de onde o outro
surge como alteridade materialmente ética, de onde a convocação parte. No entanto,
o reconhecimento da emergência do outro não poderá se dar como empatia adotada
conscienciosamente, mas apenas como um responsabilizar-se involuntário:
76
Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos
O outro é tão livre quanto o eu, e sua liberdade não começa na minha, isto é,
minha responsabilidade para com o outro, não começa como uma decisão consciente, e
a minha liberdade não é anterior à do outro; não no sentido de aprisionamento, mas no
sentido de responsabilidade que não habita o mesmo presente, o que me torna refém do
outro em minha responsabilidade irrepresentável para com ele. O primado da dominação
do outro pelo eu ainda é um espectro da tradição filosófica em que Levinas levanta sua
crítica, sendo que tal responsabilidade para com o outro é “uma dívida contraída antes de
toda liberdade, antes de toda consciência, antes de todo presente” (LEVINAS, 2003, p.
56). É uma anterioridade que pode ser compreendida pelo trecho a seguir:
77
Janaína Machado Sturza (Organizadora)
Congo (Tatou) busca ingressar no país espanhol ao tentar atravessar a cerca que reveste
a cidade de Melilla, contudo o homem fica preso entre os arames da cerca e acaba sendo
morto por um policial da Guarda Civil, cuja consciência do visto atormenta e culpa outro
policial, Mateo. O filme se inicia, justamente, na fronteira entre a União Europeia e o
Marrocos, na cidade de Melilla. Já no seu início, contém cenas angustiantes da proporção
dos riscos que os imigrantes estão dispostos a correr, como ficar preso na cerca, em uma
tentativa desesperadora de atravessar a fronteira para viver, ou melhor, de sobreviver.
Nos primeiros minutos, o drama de Tatou explicita o fim de seu direito humano mais
elementar (a vida), no escape de sangue negro que cobre o espaço em que seu corpo
despenca (ADÚ, 2020).
A segunda história se desenvolve entre um espanhol ambientalista (Gonzalo) e
sua filha (Sandra). Ele trabalha em uma reserva de elefantes e experiencia as dificuldades
de proteger os animais e seu habitat natural, ao mesmo tempo que despreza as pessoas
com as quais convive. Já a terceira dessas histórias é a que dá nome ao filme, a respeito
da realidade do menino Adú; em um primeiro momento, com sua família (em uma aldeia
situada em Mbouma, no país africano de Camarões), e depois na jornada dolorosa pela
sobrevivência, apesar da pouca idade, na companhia do jovem Massar (ADÚ, 2020;
FARINHA, 2020; FERNÁNDEZ-SANTOS, 2020).
Três narrações que objetivam conformar um doloroso retrato e seus percursos, um
cruel mapa de idas e vindas sobre um continente e uma população mundial condenados ao
indizível, face à desigualdade, à pobreza, à ganância e à miséria humana (FERNÁNDEZ-
SANTOS, 2020). Uma jornada cruel provocada por perversidades que se realizam em
ambos os cenários: daquele nos quais as pessoas buscam sair e naquele intentam ingressar,
mas são duramente rechaçados, quando não extirpados do plano da existência. Cenas de
desespero e busca enlouquecida pelo ingresso na Espanha são detalhes da indignação
e do incômodo que o filme provoca, a par de toda a angústia ao acompanhar a jornada
sofrida de Adú. Dessas três histórias paralelas, é sobre a última que a presente pesquisa
se concentra.
A realidade do menino Adú é — também para a crítica — a mais difícil delas.
O longa-metragem “[...] se detiene ante una tragedia humana de tales proporciones que
cuesta digerir sus 90 minutos” (FERNÁNDEZ-SANTOS, 2020). E custa fazê-lo, porque
a apresentação dos fatos não provém da imaginação humana e sua arte inventiva, mas de
situações reais — e, infelizmente, múltiplas. São meninas e meninos perdidos nas ruas
e no mar; enganados por exploradores; invisíveis aos órgãos de proteção; escondidos no
trem de pouso dos aviões; enfrentando absurdamente sozinhos o medo, a fome, a doença,
a dor e a morte; explorados sexualmente em troca de alimento. A conexão entre as três
histórias paralelas no filme concentra-se no aspecto geográfico, porque exploram as
proximidades da Espanha e do continente africano, bem como na crise dos refugiados. Adela
Cortina (2020, p. 17) observa como essa crise recrudesceu na Europa depois de 2007, diante de
questões políticas, conflito bélico e da pobreza. São pessoas desesperadas que fogem de suas
casas, quando as possuem. “Suas histórias não são fictícias, mas contundentemente reais”.
78
Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos
Na ficção que escancara a realidade, Adú tem 6 anos e mora em uma aldeia de
Mbouma, em Camarões, com a mãe e a irmã (de aproximadamente 10 anos de idade). Nas
primeiras cenas, o menino e a irmã (Alika) brincam na Reserva Natural de Dja, quando
presenciam a morte de um elefante da reserva e caçadores perto do animal. É desse
testemunho que, possivelmente, originou a invasão da casa da família, com o objetivo de
eliminar as crianças. Em uma noite, a casa é repentinamente invadida por homens que
acabam matando a mãe delas, que, antes de sofrer o desfecho, consegue alertar os filhos para
fugirem. Neste momento, inicia uma jornada desesperadora para as crianças (ADÚ, 2020).
Adú e Ali buscam chegar até uma familiar, para entrar em contato com o pai. O
percurso até ela já demonstra as dificuldades próprias de deslocamento, condição física
e capacidade, contextos que apresentam de diferentes formas a dor de continuar vivendo
e com esperança. Destemida, Ali é uma criança que se torna responsável por si e pelo
irmão, a principal e única referência de Adú.
Quando chegam até a familiar, são direcionados a um rapaz, pago pelo pai das
crianças, para que as leve até Marrocos. Todavia, essa pessoa coloca Adú e Alika em um
caminho sem alternativa: viajar não por terra, mas escondidos no trem de pouso de um
avião. Sem oportunidade de escolha, é o que fazem. Novamente, em uma das cenas mais
fortes da produção, Adú experimenta a dor da morte. Para proteger o irmão, Alika preza
por aquecê-lo, ao passo que ela morre por hipotermia. No momento em que o avião se
prepara para aterrissar, seu corpo, já sem vida, é lançado do alto dos céus (ADÚ, 2020).
Perdido e sozinho, Adú aterrissa em Dacar, no Senegal. Logo, aquele corpo, negro
e pobre, é percebido por fiscais. É percebido por ser “alguém” não autorizado a circular na
área restrita, não pelo fato de ser criança, de ser frágil e vulnerável; uma criança confusa
e tomada pelo abandono. O que se apresenta diante dos olhos de fiscais não tem nada de
peculiar ou apto a gerar comoção. A isso, a interpretação que promovemos pode explicar:
talvez pela naturalização daquela circunstância, a não gerar comoção ou indignação;
talvez pelo fato de aquela criança ser uma entre as desprezadas, porque pobre, porque
perturbadora da ordem em que se insere ou na qual busca se inserir para autopreservar-se
(CORTINA, 2017, 2020).
Adú é invisível diante de todos os olhos como criança. Sua condição de pessoa
extremamente vulnerável e com necessidades próprias da idade não reclama a atuação de
entidades especializadas no cuidado da criança, com exceção de um momento ou outro;
quando o fazem, tratam-no como caso de polícia. Aparenta inexistir lugar para a infância
neste mundo, como ocorria até por volta do século XII, conforme observava Philippe
Ariès (2014). Ou, por outro lado, é possível dizer que inexiste lugar para a infância e a
adolescência pobres (ZEIFERT; PAPLOWSKI, 2020), salvo na condição de objetos de
repressão, controle e disciplina.
Sua apreensão na pista de pouso é antecedida pelo desmaio do menino, que é levado
para um aparente departamento policial. Lá estando, conhece um adolescente, Massar
(que aparenta ter saído da Somália), iniciando uma jornada compartilhada entre ambos,
na qual Massar age como se fosse irmão mais velho do menino. Juntos, empreendem fuga
79
Janaína Machado Sturza (Organizadora)
e desenvolvem vínculos de afeto após marcas de dor e perda. Em cada dia, estão em um
lugar diverso, buscando sobreviver de acordo com as circunstâncias, submetendo-se ao
trabalho infantil e, inclusive, à exploração sexual (como é o caso de Massar), em troca
de poder calar a fome que atinge ambos (ADÚ, 2020). A realidade constante da violência
sexual com a contraprestação para assegurar a sobrevivência se insere no rol das violações
de direitos humanos a que crianças e adolescentes se deparam, prejudicando a integridade
física e mental, inclusive em longo prazo.
O caminho de Adú está repleto de ansiedade sobrevivencialista, perigos e
separações, como de tantas outras crianças em igual situação (MARTINEZ, 2020). Já
consciente de que as poucas pessoas que ele tem, ama e confia acabam falecendo, Adú
indaga se Massar vai morrer e pede ao jovem para prometer que não faleceria, como se
isso dependesse de sua vontade; para Adú, Massar não é o mesmo que aos olhos dos
demais, que veem, em ambos, “vidas precárias, desperdiçadas, nuas, sem papéis, [...]
como refugos, como sobras da globalização” (LUCAS, 2016, p. 98).
Adú e Massar chegam a uma espécie de acampamento, ao norte de Marrocos.
Nesse momento, a debilidade de Massar é enfatizada. Doente, o jovem se recusa a ir a
um hospital, sob a justificativa de que não tem documentos. Nessa passagem, a produção
expõe a proporção da vulnerabilidade diante da ausência de coisas elementares para a
consideração de cidadania, como possuir documentos pessoais de identificação e registro.
A invisibilidade de crianças e adolescentes como Adú e Massar não se limita, portanto,
a entidades de proteção, fiscais, agentes públicos e pessoas em geral: eles inexistem para
o sistema, salvo quando sua presença gera incômodo na paisagem, quando sua chegada a
determinado território não traz recursos, mas problemas (CORTINA, 2020).
O episódio de não portar documentos implica graves consequências e pode revelar a
existência de outra situação, igualmente complexa, que é a apatridia. Considera-se apátrida
a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a legislação, seu nacional
(consoante a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas). Em estudo desenvolvido por
Estela Cristina Vieira de Siqueira e Amanda Eiras Testi (2019), a respeito de crianças em
situação de refúgio e apatridia, verifica-se a dupla vulnerabilidade a que são submetidas
as pessoas nessa circunstância, a compreender uma verdadeira lacuna normativa, a qual
afeta com maior intensidade, justamente, crianças.
Gera dupla vulnerabilidade, porque soma os riscos próprios da idade e do período
em desenvolvimento, com a ausência de proteção, os abusos e abalos suscetíveis do
deslocamento. O apátrida se traduz em alguém que vê a si em uma lacuna, na qual inexiste
vínculos formais e materiais com um Estado apto a exigir dele a proteção de seus direitos.
“O fato de não portar documentos exclui essas crianças do acesso a direitos básicos,
como o acesso à saúde e à educação, sendo que tais garantias são fundamentais para o
desenvolvimento pleno de todo ser humano [...]” (SIQUEIRA; TESTI, 2019, p. 240). Nesse
passo, não ter vínculo com o Estado e ser rejeitado por outro reforçam a desconsideração
da pessoa — e, neste caso, da criança — como sujeitos de direitos, como portador de
direitos humanos por algo que lhe é inerente: a condição de pessoa humana.
80
Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos
81
Janaína Machado Sturza (Organizadora)
82
Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos
83
Janaína Machado Sturza (Organizadora)
84
Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos
Os riscos a que essas crianças estão expostas foram em boa parte destacados na
produção de Adú, por meio das separações, da violência, da fome, do risco constante à
morte, de inúmeras formas, além dos perigos de tráfico de pessoas para a exploração
sexual, dos abusos sexuais, do recrutamento para o tráfico de drogas e para os conflitos
armados. Imersas em uma realidade cruel que negligencia os direitos mais básicos da
pessoa humana (os direitos humanos), são milhões de crianças alheias à efetivação de
direitos como “[...] saúde, educação, o direito ao seu nome, sem ter como provar sua
identidade ou saber sua idade, além de estarem mais vulneráveis a violações de Direitos
Humanos” (SIQUEIRA; TESTI, 2019, p. 236).
A exploração da mão de obra infantil também se insere no rol das vulnerabilidades
e violações comuns a que crianças em condição de pobreza enfrentam, o que inclui as
crianças em refúgio, inclusive quando acompanhadas das famílias. A América Latina
tem exemplos sobre o tema, como a exploração de bolivianos na indústria da moda.
Considerando as condições de vida na Bolívia, um dos países latino-americanos mais
pobres, o desejo de sair do país para viver sob condições melhores torna-se um ponto fácil
para aliciamento de mão de obra barata, que se converte em escravidão contemporânea e
impõe sua exploração inclusive sobre as crianças (SIQUEIRA; TESTI, 2019).
Crianças são pessoas com necessidades específicas da idade e do desenvolvimento.
Em condição de migração e refúgio, se desacompanhadas ou em famílias monoparentais,
encontram-se em maior vulnerabilidade quando comparadas àquelas que estão sob a
proteção de ambos os genitores, observa Martuscelli (2017), para quem a condição de
meninas refugiadas igualmente demanda observação, dadas as necessidades específicas
pelo gênero e os riscos a que são submetidas a depender da região, como escravidão
sexual e mutilação genital (fatores que, muitas vezes, motivam o deslocamento).
Siqueira e Testi (2019, p. 230) são enfáticas ao afirmar que o grupo mais vulnerável
nesse contexto é o conformado por crianças refugiadas e apátridas: “[...] Há indivíduos que
permanecem até 20 anos fora de seus lugares de origem, o que significa que há crianças
que jamais vivenciaram experiências além daquelas da guerra. Há crianças que, apartadas
de sua origem, não possuem sequer um lugar para chamar de lar”. O sofrimento dessa
população, que reúne negligência, exploração, violência, crueldade e opressão, exige uma
sensibilização global sobre o assunto, tanto mais a considerar que atualmente há múltiplos
movimentos forçados, em diferentes espaços e regiões no mundo.
Desenvolver um rol de vulnerabilidades não se propõe, exatamente, a uma tarefa
adequada, tendo em vista que cada criança tem relações sociais, familiares e pessoais
próprias, bem como uma história de vida peculiar que demandou o deslocamento. Isso
exige, em verdade, que saibamos desta realidade e que não nos conformemos com ela;
que sejamos acolhedores, não aporófobos; que reconheçamos que uma família humana,
como estampado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não é composta apenas
por pessoas que compartilham dos mesmos hábitos e da mesma condição econômica e de
nacionalidade. Uma família humana demanda empatia e acolhimento, sobretudo aos mais
vulneráveis, na ampla acepção do termo, com um cuidado particular às necessidades mais
urgentes de crianças e adolescentes.
85
Janaína Machado Sturza (Organizadora)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
86
Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CORTINA, Adela. Aporofobia: el rechazo al pobre. Buenos Aires: Ediciones Paidós, 2017.
FERNÁNDEZ-SANTOS, Elsa. Una realidad incómoda. El País, [s. l.], 31 jan. 2020.
Disponível em: <https://elpais.com/cultura/2020/01/30/actualidad/1580339032_984908.
html>. Acesso em: 12 mai. 2021.
87
Janaína Machado Sturza (Organizadora)
FARINHA, Ricardo. “Adú” é o filme emocional e dramático da Netflix que nos faz
questionar a vida. NiT - New in Town, Portugal, 12 jul. 2020. Disponível em: <https://
www.nit.pt/cultura/cinema/adu-e-o-filme-emocional-e-dramatico-da-netflix-que-faz-
questionar-vida>. Acesso em: 27 mai. 2021.
LAFER, Celso. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). In: MAGNOLI,
Demétrio (org.). História da paz. São Paulo: Contexto, 2008. p. 297-327.
LEVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Tradução de
Antonio Pintor Ramos. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2003.
MARTINEZ, Pedro. Adú: drama que une três histórias na África. Folha de Campo
Grande, Nova Bandeirantes, 5 ago. 2020. Disponível em: <https://www.folhacg.com.
br/na-poltrona-do-cinema-com-pedroka/adu-drama-que-une-3-historias-na-africa/>.
Acesso em: 27 mai. 2021.
MELO, Nélio Vieira de. A Ética da alteridade em Emmanuel Levinas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003.
88
Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos
SIQUEIRA; Estela Cristina Vieira de; TESTI, Amanda Eiras. O princípio do melhor
interesse da criança e a apatridia de crianças refugiadas: um diálogo sobre alteridade.
Revista Saberes da Amazônia, Porto Velho, v. 4, n. 8, p. 224-243, jan./jun. 2019.
Disponível em: < https://www.fcr.edu.br/ojs/index.php/saberesamazonia/article/
view/344>. Acesso em: 27 mai. 2021.
89