Eca de Queiros O Mandarim
Eca de Queiros O Mandarim
Eca de Queiros O Mandarim
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Universidade da Amaznia
O Mandarim
de Ea de Queirs
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N cl e o d e Ed u ca o
a D i st n ci a
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O Mandarim
de Ea de Queirs
1880
PRLOGO
1 AMIGO (bebendo conhaque e soda, debaixo de rvores, num terrao,
beira-d'gua)
Camarada, por estes calores do Estio que embotam a ponta da sagacidade,
repousemos do spero estudo da Realidade humana... Partamos para os campos do
Sonho, vaguear por essas azuladas colinas romnticas onde se ergue a torre
abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as runas do Idealismo...
Faamos fantasia!...
2 AMIGO
Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sbias e amveis
alegorias da Renascena, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta...
(COMDIA INDITA)
CAPTULO I
Eu chamo-me Teodoro e fui amanuense do Ministrio do Reino.
Nesse tempo vivia eu Travessa da Conceio n 106, na casa de hspedes
da D. Augusta, a esplndida D. Augusta, viva do major Marques. Tinha dois
companheiros: o Cabrita, empregado na Administrao do Bairro Central, esguio e
amarelo como uma tocha de enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro,
grande tocador de viola francesa.
A minha existncia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas
de lustrina carteira da minha repartio, ia lanando, numa formosa letra cursiva,
sobre o papel Tojal do Estado, estas frases fceis: Il.mo e Ex.mo Sr. Tenho a
honra de comunicar a V. Ex.a... Tenho a honra de passar s mos de V. Ex.a, Il.mo
e Ex.mo Sr...
Aos domingos repousava: instalava-me ento no canap da sala de jantar, de
cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava
limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no
Vero, era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafa da soalheira,
algum repique distante dos sinos da Conceio Nova e o arrulhar das rolas na
varanda; a montona sussurrao das moscas balanava-se sobre a velha
cambraia, antigo vu nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os
pratos de cerejas bicais; pouco a pouco o tenente, envolvido, num lenol como um
dolo no seu manto, ia adormecendo, sob a frico mole das carinhosas mos da D.
Augusta; e ela, arrebitando o dedo mnimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as
repas lustrosas com o pentezinho dos bichos... Eu ento, enternecido, dizia
deleitosa senhora:
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Ai D. Augusta, que anjo que !
Ela ria; chamava-me enguio! Eu sorria, sem me escandalizar. Enguio era
com efeito o nome que me davam na casa por eu ser magro, entrar sempre as
portas com o p direito, tremer de ratos, ter cabeceira da cama uma litografia de
Nossa Senhora das Dores que pertencera mam, e corcovar. Infelizmente corcovo
do muito que verguei no espinhao, na Universidade, recuando como uma pega
assustada diante dos senhores lentes; na repartio, dobrando a fronte ao p
perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convm ao bacharel; ela
mantm a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a
tranquilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca, e vinte mil ris mensais.
No posso negar, porm, que nesse tempo eu era ambicioso como o
reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lpido Couceiro. No que me
revolvesse o peito o apetite herico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos
humanos; no que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem
da Companhia, seguida de um correio choutando; mas pungia-me o desejo de
poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mo mimosa de
viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num xtase
mudo, sobre o seio fresco de Vnus. Oh! Moos que vos dirigeis vivamente a S.
Carlos, atabafados em palets caros onde alvejava a gravata de soire! Oh! Tipias,
apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros quantas vezes
me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil ris por ms e o
meu jeito encolhido de enguio, me excluam para sempre dessas alegrias sociais,
vinha-me ento ferir o peito como uma frecha que se crava num tronco, e fica
muito tempo vibrando!
Ainda assim, eu no me considerava sombriamente um pria. A vida humilde
tem douras: grato, numa manh de sol alegre, com o guardanapo ao pescoo,
diante do bife de grelha, desdobrar o Dirio de Notcias; pelas tardes de Vero, nos
bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idlio; saboroso noite no
Martinho, sorvendo aos goles um caf, ouvir os verbosos injuriar a ptria... Depois,
nunca fui excessivamente infeliz porque no tenho imaginao: no me consumia,
rondando e almejando em torno de parasos fictcios, nascidos da minha prpria alma
desejosa como nuvens da evaporao de um lago; no suspirava, olhando as lcidas
estrelas, por um amor Romeu ou por uma glria social Camors. Sou um positivo.
S aspirava ao racional, ao tangvel, ao que j fora alcanado por outros no meu
bairro, ao que acessvel ao bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma table
d'hte mastiga a bucha de po seco espera que lhe chegue o prato rico da charlotte
russe. As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como
portugus e como constitucional: pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das
Dores, e comprava dcimos da lotaria.
No entanto procurava distrair-me. E como as circunvolues do meu crebro
me no habilitavam a compor odes, maneira de tantos outros ao meu lado que se
desforravam assim do tdio da profisso; como o meu ordenado, paga a casa e o
tabaco, me no permitia um vcio tinha tomado o hbito discreto de comprar na
Feira da Ladra antigos volumes desirmanados, e noite, no meu quarto, repastavame dessas leituras curiosas. Eram sempre obras de ttulos ponderosos Galera da
Inocncia, Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal-Deserdados... O tipo venerando, o
papel amarelado com picadas de traa, a grave encadernao freirtica, a fitinha
verde marcando a pgina encantavam-me! Depois, aqueles dizeres ingnuos em
letra gorda davam uma pacificao a todo o meu ser, sensao comparvel paz
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penetrante de uma velha cerca de mosteiro, na quebrada de um vale, por um fim
suave de tarde, ouvindo o correr da gua triste...
Uma noite, h anos, eu comeara a ler, num desses in-flios vetustos, um
captulo intitulado Brecha das Almas; e ia caindo numa sonolncia grata, quando
este perodo singular se me destacou do tom neutro e apagado da pgina, com o
relevo de uma medalha de ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copio
textualmente:
No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a
fbula ou a histria contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante,
nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindveis, basta
que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltar apenas um
suspiro, nesses confins da Monglia. Ser ento um cadver: e tu vers a teus ps
mais ouro do que pode sonhar a ambio de um avaro. Tu, que me ls e s um
homem mortal, tocars tu a campainha?
Estaquei, assombrado, diante da pgina aberta: aquela interrogao homem
mortal, tocars tu a campainha? parecia-me faceta, picaresca, e todavia perturbavame prodigiosamente. Quis ler mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras
assustadas, e no vazio que deixavam, de uma lividez de pergaminho, l ficava,
rebrilhando em negro, a interpelao estranha tocars tu a campainha?
Se o volume fosse de uma honesta edio Michel-Levy, de capa amarela, eu,
que por fim no me achava perdido numa floresta de balada alem, e podia da
minha sacada ver branquejar luz do gs o correame da patrulha teria
simplesmente fechado o livro, e estava dissipada a alucinao nervosa. Mas aquele
sombrio in-flio parecia exalar magia; cada letra afetava a inquietadora configurao
desses sinais da velha cabala, que encerram um atributo fatdico; as vrgulas tinham
o retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos numa alvura de luar; no
ponto de interrogao final eu via o pavoroso gancho com que o Tentador vai
fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na inviolvel cidadela da
Orao!... Uma influncia sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me
devagar para fora da realidade, do raciocnio: e no meu esprito foram-se formando
duas vises de um lado um mandarim decrpito, morrendo sem dor, longe, num
quiosque chins, a um ti-li-tim de campainha; do outro toda uma montanha de ouro
cintilando aos meus ps! Isto era to ntido, que eu via os olhos oblquos do velho
personagem embaciarem-se, como cobertos de uma tnue camada de p; e sentia o
fino tinir de libras rolando juntas. E imvel, arrepiado, cravava os olhos ardentes na
campainha, pousada pacatamente diante de mim sobre um dicionrio francs a
campainha prevista, citada no mirfico in-flio...
Foi ento que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metlica me
disse, no silncio:
Vamos, Teodoro, meu amigo, estenda a mo, toque a campainha, seja um
forte!
O abat-jour verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a tremer.
E vi, muito pacificamente sentado, um indivduo corpulento, todo vestido de preto, de
chapu alto, com as duas mos caladas de luvas negras gravemente apoiadas ao
cabo de um guarda-chuva. No tinha nada de fantstico. Parecia to
contemporneo, to regular, to classe mdia como se viesse da minha repartio...
Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras;
o nariz brusco, de um aquilino formidvel, apresentava a expresso rapace e
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atacante de um bico de guia; o corte dos lbios, muito firme, fazia-lhe como uma
boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois clares de tiro, partindo
subitamente de entre as saras tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lvido
mas, aqui e alm na pele, corriam-lhe raiaes sangneas como num velho
mrmore fencio.
Veio-me idia de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo o
meu raciocnio se insurgiu resolutamente contra esta imaginao. Eu nunca acreditei
no Diabo como nunca acreditei em Deus. Jamais o disse alto, ou o escrevi nas
gazetas, para no descontentar os poderes pblicos, encarregados de manter o
respeito por tais entidades: mas que existam estes dois personagens, velhos como a
Substncia, rivais bonacheires, fazendo-se mutuamente pirraas amveis, um
de barbas nevadas e tnica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos
luminosos, entre uma corte mais complicada que a de Lus XIV; e o outro
enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chamas inferiores, numa
imitao burguesa do pitoresco Pluto no acredito. No, no acredito! Cu e
Inferno so concepes sociais para uso da plebe e eu perteno classe mdia.
Rezo, verdade, a Nossa Senhora das Dores: porque, assim como pedi o favor do
senhor doutor para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil
ris, implorei a benevolncia do senhor deputado; igualmente para me subtrair
tsica, angina, navalha de ponta, febre que vem da sarjeta, casca da laranja
escorregadia onde se quebra a perna, a outros males pblicos, necessito ter uma
proteo extra-humana. Ou pelo rapap ou pelo incensador, o homem prudente
deve ir fazendo assim uma srie de sbias adulaes, desde a Arcada at ao
Paraso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mstica nas alturas o
destino do bacharel est seguro.
Por isso, livre de torpes supersties, disse familiarmente ao indivduo vestido
de negro:
Ento, realmente, aconselha-me que toque a campainha?
Ele ergueu um pouco o chapu, descobrindo a fronte estreita, enfeitada de
uma gaforinha crespa e negrejante como a do fabuloso Alcides, e respondeu,
palavra a palavra: Aqui est o seu caso, estimvel Teodoro. Vinte mil ris
mensais so uma vergonha social! Por outro lado, h sobre este globo coisas
prodigiosas: h vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romane-Conti de 58 e o
Chambertin, de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze mil ris; e quem bebe o
primeiro clice, no hesitar, para beber o segundo, em assassinar seu pai...
Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de to suaves molas, de to
mimosos estofos, que prefervel percorrer nelas o Campo Grande, a viajar, como
os antigos deuses, pelos cus, sobre os fofos coxins das nuvens... No farei sua
instruo a ofensa de o informar que se mobilam hoje casas, de um estilo e de um
conforto, que so elas que realizam superiormente esse regalo fictcio, chamado
outrora a bem-aventurana. No lhe falarei, Teodoro, de outros gozos terrestres:
como, por exemplo, o Teatro do Palais Royal, o baile Laborde, o Caf Anglais... S
chamarei a sua ateno para este fato: existem seres que se chamam Mulheres
diferentes daqueles que conhece, e que se denominam Fmeas. Estes seres,
Teodoro, no meu tempo, a pginas 3 da Bblia, apenas usavam exteriormente uma
folha de vinha. Hoje, Teodoro, toda uma sinfonia, todo um engenhoso e delicado
poema de rendas, baptistes, cetins, flores, jias, caxemiras, gazes e veludos...
Compreende a satisfao inenarrvel que haver, para os cinco dedos de um
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cristo, em percorrer, palpar estas maravilhas macias; mas tambm percebe que
no com o troco de uma placa honesta de cinco tostes que se pagam as contas
destes querubins... Mas elas possuem melhor, Teodoro: so os cabelos cor do ouro
ou cor da treva, tendo assim nas suas tranas a aparncia emblemtica das duas
grandes tentaes humanas a fome do metal precioso e o conhecimento do
absoluto transcendente. E ainda tm mais: so os braos cor de mrmore, de uma
frescura de lrio orvalhado; so os seios, sobre os quais o grande Praxteles modelou
a sua Taa, que a linha mais pura e mais ideal da Antiguidade... Os seios, outrora
(na idia desse ingnuo Ancio que os formou, que fabricou o mundo, e de quem
uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram destinados nutrio
augusta da humanidade; sossegue porm, Teodoro; hoje nenhuma mam racional
os expe a essa funo deterioradora e severa; servem s para resplandecer,
aninhados em rendas, ao gs das soires, e para outros usos secretos. As
convenincias impedem-me de prosseguir nesta exposio radiosa das belezas que
constituem o fatal feminino... De resto as suas pupilas j rebrilham... Ora todas estas
coisas, Teodoro, esto para alm, infinitamente para alm dos seus vinte mil ris por
ms... Confesse, ao menos, que estas palavras tm o venervel selo da verdade!...
Eu murmurei, com as faces abrasadas:
Tm.
E a sua voz prosseguiu, paciente e suave:
Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, uma
bagatela... Mas enfim, constituem um comeo; so uma ligeira habilitao pra
conquistar a felicidade. Agora pondere estes fatos: o Mandarim, esse Mandarim do
fundo da China, est decrpito e est gotoso: como homem, como funcionrio do
Celeste Imprio, mais intil em Pequim e na humanidade, que um seixo na boca
de um co esfomeado. Mas a transformao da Substncia existe: garanto-lha eu,
que sei o segredo das coisas... Porque a terra assim: recolhe aqui um homem
apodrecido, e restitui-o alm ao conjunto das formas como vegetal vioso. Bem pode
ser que ele, intil como mandarim no Imprio do Meio, v ser til noutra terra como
rosa perfumada ou saboroso repolho. Matar, meu filho, quase sempre equilibrar as
necessidades universais. eliminar aqui a excrescncia para ir alm suprir a falta.
Penetre-se destas slidas filosofias. Uma pobre costureira de Londres anseia por ver
florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma flor consolaria aquela
deserdada; mas na disposio dos seres, infelizmente, nesse momento, a
Substncia que l devia ser rosa aqui na Baixa homem de Estado... Vem ento o
fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro leva lhe os intestinos;
enterram-no, com tipias atrs; a matria comea a desorganizar-se, mistura-se
vasta evoluo dos tomos e o suprfluo homem de governo vai alegrar, sob a
forma de amor-perfeito, a gua-furtada da loura costureira. O assassino um
filantropo! Deixe-me resumir, Teodoro: a morte desse velho Mandarim idiota traz-lhe
algibeira alguns milhares de contos. Pode desde esse momento dar pontaps nos
poderes pblicos: medite na intensidade deste gozo! desde logo citado nos
jornais: reveja-se nesse mximo da glria humana! E agora note: s agarrar a
campainha, e fazer ti-li-tim. Eu no sou um brbaro: compreendo a repugnncia de
um gentleman em assassinar um contemporneo: o espirrar do sangue suja
vergonhosamente os punhos, e repulsivo o agonizar de um corpo humano. Mas
aqui, nenhum desses espetculos torpes... como quem chama um criado... E so
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cento e cinco ou cento e seis mil contos; no me lembro, mas tenho-o nos meus
apontamentos... O Teodoro no duvida de mim. Sou um cavalheiro: provei-o,
quando, fazendo a guerra a um tirano na primeira insurreio da justia, me vi
precipitado de alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um trambolho
considervel, meu caro senhor! Grandes desgostos! O que me consola que o outro
est tambm muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jeov tem apenas
contra si um Satans, tira-se bem de dificuldades mandando carregar mais uma
legio de arcanjos; mas quando o inimigo um homem, armado de uma pena de
pato e de um caderno de papel branco est perdido... Enfim so seis mil contos.
Vamos, Teodoro, ai tem a campainha, seja um homem.
Eu sei o que deve a si mesmo um cristo. Se este personagem me tivesse
levado ao cume de uma montanha na Palestina, por uma noite de lua cheia, e a,
mostrando-me cidades, raas e imprios adormecidos, sombriamente me dissesse:
Mata o mandarim, e tudo o que vs em vale e colina ser teu, eu saberia replicarlhe, seguindo um exemplo ilustre, e erguendo o dedo s profundidades consteladas:
O meu reino no deste mundo! Eu conheo os meus autores. Mas eram cento e
tantos mil contos, oferecidos luz de uma vela de estearina, na Travessa da
Conceio, por um sujeito de chapu alto, apoiado a um guarda-chuva...
Ento no hesitei. E, de mo firme, repeniquei a campainha. Foi talvez uma
iluso; mas pareceu-me que um sino, de boca to vasta como o mesmo cu,
badalava na escurido, atravs do universo, num tom temeroso que decerto foi
acordar sis que faziam nen e planetas panudos ressonando sobre os seus
eixos...
O indivduo levou um dedo plpebra, e limpando a lgrima que enevoara um
instante o seu olho rutilante:
Pobre Ti Chin-Fu!...
Morreu?
Estava no seu jardim, sossegado, armando, para o lanar ao ar, um
papagaio de papel, no passatempo honesto de um mandarim retirado, quando o
surpreendeu este ti-li-tim da campainha. Agora jaz beira de um arroio cantante,
todo vestido de seda amarela, morto, de pana ao ar, sobre a relva verde: e nos
braos frios tem o seu papagaio de papel, que parece to morto como ele. Amanh
so os funerais. Que a sabedoria de Confcio, penetrando-o, ajude a bem emigrar a
sua alma!
E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapu, saiu, com o seu
guarda-chuva debaixo do brao.
Ento, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia de um pesadelo.
Saltei ao corredor. Uma voz jovial falava com a Madame Marques; e a cancela da
escada cerrou-se subtilmente.
Quem que saiu agora, D. Augusta? perguntei, num suor.
Foi o Cabritinha que vai um bocadinho batota...
Voltei ao quarto: tudo l repousava tranquilo, idntico, real. O in-flio ainda
estava aberto na pgina temerosa. Reli-a: agora parecia-me apenas a prosa
antiquada de um moralista caturra; cada palavra se tornara como um carvo
apagado...
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Deitei-me: e sonhei que estava longe, para alm de Pequim, nas fronteiras
da Tartria, no quiosque de um convento de lamas, ouvindo mximas prudentes e
suaves que escorriam, com um aroma fino de ch, dos lbios de um Buda vivo.
CAPTULO II
Decorreu um ms.
Eu, no entanto, rotineiro e triste, l ia pondo o meu cursivo ao servio dos
poderes pblicos, e admirando aos domingos a percia tocante com que a D.
Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era agora evidente para mim que, nessa noite,
eu adormecera sobre o in-flio e sonhara com uma Tentao da Montanha sob
formas familiares. Instintivamente, porm, comecei a preocupar-me com a China. Ia
ler os telegramas Havanesa; e o que o meu interesse l buscava, eram sempre as
notcias do Imprio do Meio; parece porm que, a esse tempo, nada se passava na
regio das raas amarelas... A Agncia Havas s tagarelava sobre a Herzegovina, a
Bsnia, a Bulgria e outras curiosidades brbaras...
Pouco a pouco fui esquecendo o meu episdio fantasmagrico: e ao mesmo
tempo, como gradualmente o meu esprito resserenava, voltaram de novo a moverse as antigas ambies que l habitavam um ordenado de director-geral, um seio
amoroso de Lola, bifes mais tenros que os da D. Augusta. Mas tais regalos
pareciam-me to inacessveis, to nascidos dos sonhos como os prprios milhes
do Mandarim. E pelo montono deserto da vida, l foi seguindo, l foi marchando a
lenta caravana das minhas melancolias...
Um domingo de Agosto, de manh, estirado na cama em mangas de camisa,
eu dormitava, com o cigarro apagado no lbio quando a porta rangeu
devagarinho e, entreabrindo a plpebra dormente, vi curvar-se ao meu lado uma
calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou:
O sr. Teodoro?... O sr. Teodoro do Ministrio do Reino?
Ergui-me lentamente sobre o cotovelo e respondi num bocejo:
Sou eu, cavalheiro.
O indivduo recurvou o espinhao: assim na presena augusta de el-rei
Bobeche se arqueia o corteso... Era pequenino e obeso: a ponta das suas
brancas roava-lhe as lapelas do fraque de alpaca: venerveis culos de ouro
reluziam na sua face bochechuda, que parecia uma prspera personificao da
Ordem: e todo ele tremia desde a calva lustrosa at aos botins de bezerro.
Pigarreou, cuspilhou, balbuciou:
So notcias para Vossa Senhoria! Considerveis notcias! O meu nome
Silvestre... Silvestre, Juliano & C... Um servial criado de Vossa Excelncia...
Chegaram justamente pelo paquete de Southampton... Ns somos correspondentes
de Brito, Alves & C, de Macau... Correspondentes de Craig and C, de Hong-Kong...
As letras vm de Hong-Kong...
O sujeito engasgava-se; e a sua mo gordinha agitava em tremuras um
envelope repleto, com um selo de lacre negro.
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Vossa Excelncia prosseguiu estava decerto prevenido... Ns que
o no estvamos... A atrapalhao natural... O que esperamos que Vossa
Excelncia nos conserve a sua benevolncia... Ns sempre respeitamos muito o
caracter de Vossa Excelncia... Vossa Excelncia nesta terra uma flor de virtude, e
espelho de bons! Aqui esto os primeiros saques sobre Bhering and Brothers, de
Londres... Letras a trinta dias sobre Rothschild...
A este nome, ressoante como o mesmo ouro, saltei vorazmente do leito:
O que isso, senhor? gritei.
E ele, gritando mais, brandindo o envelope, todo alado no bico dos botins:
So cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil contos sobre
Londres, Paris, Hamburgo e Amsterd, sacados a seu favor, excelentssimo
senhor!... A seu favor, excelentssimo senhor! Pelas casas de Hong-Kong, de Xangai
e de Canto, da herana depositada do mandarim Ti Chin-Fu!
Senti tremer o globo sob os meus ps e cerrei um momento os olhos.. Mas
compreendi, num relance, que eu era, desde essa hora, como uma encarnao do
Sobrenatural, recebendo dele a minha fora e possuindo os seus atributos. No
podia comportar-me como um homem, nem desconsiderar-me em expanses
humanas. At, para no quebrar a linha hiertica abstive-me de ir soluar, como
mo pedia a alma, sobre o vasto seio da Madame Marques...
De ora em diante cabia-me a impassibilidade de um deus ou de um
Demnio: dei, com naturalidade, um puxo s calas, e disse a Silvestre, Juliano &
C estas palavras:
Est bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse, portou-se com
cavalheirismo. Eu sei do que se trata: uma questo de famlia. Deixe a os papis...
Bons dias.
Silvestre, Juliano & C retirou-se, s arrecuas, de dorso vergado e fronte
voltada ao cho.
Eu ento fui abrir, toda larga, a janela: e, dobrando para trs a cabea,
respirei o ar clido, consoladamente, como uma cora cansada...
Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguesia se escoava,
numa pacata sada de missa, entre duas filas de trens. Fixei, aqui e alm,
inconscientemente, algumas cuias de senhoras, alguns metais brilhantes de arreios.
E de repente veio-me esta idia, esta triunfante certeza que todas aquelas tipias
as podia eu tomar hora ou ao ano! Que nenhuma das mulheres que via deixaria de
me oferecer o seu seio nu a um aceno do meu desejo! Que todos esses homens, de
sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um Cristo,
de um Maom ou de um Buda, se eu lhes sacudisse junto face cento e seis mil
contos sobre as praas da Europa!...
Apoiei-me varanda: e ri, com tdio, vendo a agitao efmera daquela
humanidade subalterna que se considerava livre e forte, enquanto por cima,
numa sacada de quarto andar, eu tinha na mo, num envelope lacrado de negro, o
princpio mesmo da sua fraqueza e da sua escravido! Ento, satisfaes do Luxo,
regalos do Amor, orgulhos do Poder, tudo gozei, pela imaginao; num instante, e
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de um s sorvo. Mas logo uma grande saciedade me foi invadindo a alma: e,
sentindo o mundo aos meus ps bocejei como um leo farto.
De que me serviam por fim tantos milhes seno para me trazerem, dia a dia,
a afirmao desoladora da vileza humana?... E assim, ao choque de tanto ouro, ia
desaparecer a meus olhos, como um fumo, a beleza moral do universo! Tomou-me
uma tristeza mstica. Abati-me sobre uma cadeira; e, com a face entre as mos,
chorei abundantemente.
Da a pouco Madame Marques abria a porta, toda vistosa nas suas sedas pretas.
Est-se sua espera para jantar, enguio! Emergi da minha amargura para
lhe responder secamente:
No janto!
Mais fica!
Nesse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo,
dia de touros: de repente uma viso rebrilhou, flamejou, atraindo-me deliciosamente:
era a tourada vista de um camarote; depois um jantar com champanhe; noite a
orgia, como uma iniciao! Corri mesa. Atulhei as algibeiras de letras sobre
Londres. Desci rua com um furor de abutre fendendo o ar contra a presa. Uma
caleche passava, vazia. Detive-a, berrei:
Aos touros!
So dez tostes, meu amo!
Encarei com repulso aquele reles pedao de matria organizada que
falava em placas de prata a um colosso de ouro! Enterrei a mo na algibeira
ajoujada de milhes e tirei o meu metal: tinha setecentos e vinte!
O cocheiro bateu a anca da gua e seguiu, resmungando. Eu balbuciei:
Mas tenho letras!... Aqui esto! Sobre Londres! Sobre Hamburgo!...
No pega.
Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lorde, andaluzas nuas, todo esse
sonho expirou como uma bola de sabo que bate a ponta de um prego.
Odiei a humanidade, abominei o numerrio. Outra tipia, lanada a trote,
apinhada de gente festiva, quase me atropelou naquela abstrao em que eu ficara
com os meus setecentos e vinte na palma da mo suada.
Cabisbaixo, enchumaado de milhes sobre Rothschild, voltei ao meu quarto
andar: humilhei-me Madame Marques, aceitei-lhe o bife crneo; e passei essa
primeira noite de riqueza bocejando sobre o leito solitrio enquanto fora o alegre
Couceiro, o mesquinho tenente de quinze mil ris de soldo, ria com a D. Augusta,
repenicando viola o Fado da Cotovia.
Foi s na manh seguinte, ao fazer a barba, que refleti sobre a origem dos
meus milhes. Ela era evidentemente sobrenatural e suspeita.
Mas como o meu racionalismo me impedia de atribuir estes tesouros
imprevistos generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, fices puramente
escolsticas; como os fragmentos de positivismo, que constituem o fundo da minha
filosofia, no me permitiam a indagao das causas primrias, das origens
essenciais bem depressa me decidi a aceitar serenamente este fenmeno e a
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utiliz-lo com largueza. Portanto corri de quinzena ao vento para o London and
Brazilian Bank...
A, arremessei para cima do balco um papel sobre o Banco de Inglaterra de
mil libras, e soltei esta deliciosa palavra:
Ouro!
Um caixeiro sugeriu-me com doura:
Talvez lhe fosse mais cmodo em notas...
Repeti secamente:
Ouro!
Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, icei-me para
uma caleche. Sentia-me gordo, sentia-me obeso; tinha na boca um sabor de ouro,
uma secura de p de ouro na pele das mos: as paredes das casas pareciam-me
faiscar como longas lminas de ouro: e dentro do crebro ia-me um rumor surdo
onde retilintavam metais como o movimento de um oceano que nas vagas rolasse
barras de ouro.
Abandonando-me oscilao das molas, rebolante como um odre mal firme,
deixava cair sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do ser repleto. Enfim,
atirando o chapu para a nuca, estirando a perna, empinando o ventre, arrotei
formidavelmente de flatulncia ricaa...
Muito tempo rolei assim pela cidade, bestializado num gozo de nababo.
Subitamente um brusco apetite de gastar, de dissipar ouro, veio-me enfunar o
peito como uma rajada que incha uma vela.
Pra, animal! berrei, ao cocheiro.
A parelha estacou. Procurei em redor com a plpebra meio cerrada alguma
coisa cara a comprar jia de rainha ou conscincia de estadista: nada vi;
precipitei-me ento para um estanco:
Charutos: de tosto! De cruzado! Mais caros! De dez tostes!
Quantos?... perguntou servilmente o homem.
Todos! respondi com brutalidade.
porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio, estendeu-me a
mo transparente. Incomodava-me procurar os trocos de cobre por entre os meus
punhados de ouro. Repeli-a, impaciente: e, de chapu sobre o olho, encarei
friamente a turba.
Foi ento que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu director-geral:
imediatamente achei-me com o dorso curvado em arco e o chapu cumprimentador
roando as lajes. Era o hbito da dependncia: os meus milhes no me tinham
dado ainda a verticalidade espinha...
Em casa despejei o ouro sobre o leito, e rolei-me por cima dele, muito tempo,
grunhindo num gozo surdo. A torre, ao lado, bateu trs horas; e o Sol apressado j
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descia, levando consigo o meu primeiro dia de opulncia... Ento, couraado de
libras, corri a saciar-me!
Ah, que dia! Jantei num gabinete do Hotel Central, solitrio e egosta, com a
mesa alastrada de Bordus, Borgonha, Champagne, Reno, licores de todas as
comunidades religiosas como para matar uma sede de trinta anos! Mas s me
fartei de Colares. Depois, cambaleando, arrastei-me para o lupanar! Que noite! A
alvorada clareou por trs das persianas; e achei-me estatelado no tapete, exausto e
seminu, sentindo o corpo e a alma como esvarem-se, dissolverem-se naquele
ambiente abafado onde errava um cheiro de p de arroz, de fmea e de punch...
Quando voltei Travessa da Conceio, as janelas do meu quarto estavam
fechadas, e a vela expirava, com fogachos lvidos, no castial de lato. Ento, ao
chegar junto cama, vi isto: estirada de travs, sobre a coberta, jazia uma figura
bojuda de mandarim fulminado, vestida de seda amarela, com um grande rabicho
solto; e entre os braos, como morto tambm, tinha um papagaio de papel!
Abri desesperadamente a janela; tudo desapareceu; o que estava agora
sobre o leito era um velho palet alvadio.
CAPTULO III
Ento comeou a minha vida de milionrio. Deixei bem depressa a casa de
Madame Marques que, desde que me sabia rico, me tratava todos os dias a
arroz-doce, e ela mesma me servia, com o seu vestido de seda dos domingos.
Comprei, habitei o palacete amarelo, ao Loreto: as magnificncias da minha
instalao so bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da Ilustrao Francesa.
Tornou-se famoso na Europa o meu leito, de um gosto exuberante e brbaro, com a
barra recoberta de lminas de ouro lavrado, e cortinados de um raro brocado negro
onde ondeiam, bordados a prolas, versos erticos de Catulo; uma lmpada,
suspensa no interior, derrama ali a claridade lctea e amorosa de um luar de Vero.
Os meus primeiros meses ricos, no o oculto, passei-os a amar a amar
com o sincero bater de corao de um pajem inexperiente. Tinha-a visto, como
numa pgina de novela, regando os seus craveiros varanda: chamava-se Cndida;
era pequenina, era loura; morava a Buenos Aires, numa casinha casta recoberta de
trepadeiras; e lembrava-me, pela graa e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem
criado de mais fino e frgil Mimi, Virgnia, a Joaninha do Vale de Santarm.
Todas as noites eu caa, em xtases de mstico, aos seus ps cor de jaspe.
Todas as manhs lhe alastrava o regao de notas de vinte mil reis: ela repelia-as
primeiro com um rubor, depois, ao guard-las na gaveta, chamava-me o seu anjo
Tot.
Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso tapete
srio, at ao seu boudoir ela estava escrevendo, muito enlevada, de dedinho no
ar: ao ver-me, toda tremula, toda plida, escondeu o papel que tinha o seu
monograma. Eu arranquei-lho, num cime insensato. Era a carta, a carta costumada,
a carta necessria, a carta que desde a velha Antiguidade a mulher sempre escreve;
comeava por Meu idolatrado e era para um alferes da vizinhana...
Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta venenosa.
Descri para sempre dos anjos louros, que conservam no olhar azul o reflexo dos
cus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocncia, o Pudor, e
outras idealizaes funestas, a cida gargalhada de Mefistfeles: e organizei
friamente uma existncia animal, grandiosa e cnica.
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Ao bater do meio-dia, entrava na minha tina de mrmore cor-de-rosa, onde os
perfumes derramados davam gua um tom opaco de leite: depois pajens tenros,
de mo macia, friccionavam-me com o cerimonial de quem celebra um culto: e
embrulhado num robe-de-chambre de seda da ndia, atravs da galeria, dando aqui
e alm um olhar aos meus Fortunys e aos meus Corots, entre alas silenciosas de
lacaios, dirigia-me ao bife inglesa, servido em Svres azul e ouro.
O resto da manh, se havia calor, passava-o sobre coxins de cetim cor de
prola, num boudoir em que a moblia era de porcelana fina de Dresde e as flores
faziam um jardim de Armida; a, saboreava o Dirio de Notcias, enquanto lindas
raparigas vestidas japonesa refrescavam o ar, agitando leques de plumas.
De tarde ia dar uma volta a p, at ao Pote das Almas: era a hora mais pesada
do dia: encostado bengala, arrastando as pernas moles, abria bocejos de fera
saciada e a turba abjeta parava a contemplar, em xtases, o nababo enfastiado!
s vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos ocupados da
repartio. Entrava em casa; e encerrado na livraria, onde o Pensamento da
Humanidade repousava esquecido e encadernado em marroquim, aparava uma
pena de pato, e ficava horas lanando sobre folhas do meu querido Tojal de outrora:
Il.mo e Ex.mo Sr. Tenho a honra de participar a V. Ex.a... Tenho a honra de
passar s mos de V. Ex.a!...
Ao comeo da noite um, criado, para anunciar o jantar, fazia soar pelos
corredores na sua tuba de prata, moda gtica, uma harmonia solene. Eu erguia-me
e ia comer, majestoso e solitrio. Uma populaa de lacaios, de librs de seda negra,
servia, num silncio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preo
de jias: toda a mesa era um esplendor de flores, luzes, cristais, cintilaes de ouro:
e enrolando-se pelas pirmides de frutos, misturando-se ao vapor dos pratos,
errava, como uma nvoa subtil, um tdio inenarrvel...
Depois, apoplctico, atirava-me para o fundo do coup e l ia s Janelas
Verdes, onde nutria, num jardim de serralho, entre requintes muulmanos, um viveiro
de fmeas: revestiam-me de uma tnica de seda fresca e perfumada, e eu
abandonava-me a delrios abominveis... Traziam-me semimorto para casa, ao
primeiro alvor da manh: fazia maquinalmente o meu sinal-da-cruz, e da a pouco
roncava de ventre ao ar, lvido e com um suor frio, como um Tibrio exausto.
Entretanto Lisboa rojava-se aos meus ps. O ptio do palacete estava
constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janelas da
galeria, eu via l branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero,
e luzir o suor da Plebe: todos vinham suplicar, de lbio abjecto, a honra do meu
sorriso e uma participao no meu ouro. s vezes consentia em receber algum velho
de ttulo histrico: ele adiantava-se pela sala, quase roando o tapete com os
cabelos brancos, tartamudeando adulaes; e imediatamente, espalmando sobre o
peito a mo de fortes veias onde corria um sangue de trs sculos, oferecia-me uma
filha bem-amada para esposa ou para concubina.
Todos os cidados me traziam presentes como a um dolo sobre o altar
uns odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelas ou
boquilhas, cada um a sua conscincia. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso,
na rua, uma mulher era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa ou
prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacncias da
lascvia.
Os jornalistas esporeavam a imaginao para achar adjetivos dignos da
minha grandeza; fui o sublime sr. Teodoro, cheguei a ser o celeste sr. Teodoro;
ento, desvairada, a Gazeta das Locais chamou-me o extraceleste sr. Teodoro!
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Diante de mim nenhuma, cabea ficou jamais coberta ou usasse a coroa ou o
coco. Todos os dias me era oferecida uma presidncia de Ministrio ou uma direo
de confraria. Recusei sempre, com nojo.
Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da
Monarquia. O Fgaro, corteso, em cada nmero falou de mim, preferindo-me a
Henrique V; o grotesco imortal que assina Saint-Genest dirigiu-me apstrofes
convulsivas, pedindo-me para salvar a Frana; e foi ento que as Ilustraes
estrangeiras publicaram, a cores, as cenas do meu viver. Recebi de todas as
princesas da Europa envelopes, com selos herldicos, expondo-me, por fotografias,
por documentos, a forma dos seus corpos e a antiguidade das suas genealogias.
Duas pilhrias que soltei durante esse ano foram telegrafadas ao universo pelos fios
da Agncia Havas; e fui considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e
que esse fino entendimento que se chama Todo-o-Mundo. Quando o meu intestino
se aliviava com estampido a humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz emprstimos
aos reis, subsidiei guerras civis e fui caloteado por todas as repblicas latinas que
orlam o golfo do Mxico. E eu, no entanto, vivia triste...
Todas as vezes que entrava em casa estacava, arrepiado, diante da mesma
viso: ou estirada no limiar da porta, ou atravessada sobre o leito de ouro l jazia
a figura bojuda, de rabicho negro e tnica amarela, com o seu papagaio nos
braos... Era o mandarim Ti Chin-Fu! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se
dissipava. Ento caa aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e murmurava no
silncio do quarto, onde as velas dos candelabros davam tons ensangentados aos
damascos vermelhos:
Preciso matar este morto!
E, todavia, no era esta impertinncia de um velho fantasma panudo,
acomodando-se nos meus mveis, sobre as minhas colchas, que me fazia saber mal
a vida.
O horror supremo consistia na idia, que se me cravara ento no esprito
como um ferro inarrancvel que eu tinha assassinado um velho!
No fora com uma corda em torno da garganta, moda muulmana; nem com
veneno num clice de vinho de Siracusa, maneira italiana da Renascena; nem com
algum dos mtodos clssicos, que na histria das monarquias tm recebido
consagraes augustas a punhal como D. Joo II, clavina como Carlos IX...
Tinha eliminado a criatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo,
fantstico, faceto. Mas no diminua a trgica negrura do facto: eu assassinara um
velho!
Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e como
uma coluna num descampado dominou toda a minha vida interior: de sorte que, por
mas desviado caminho que tomassem, os meus pensamentos viam sempre negrejar
no horizonte aquela memria acusadora; por mais alto que se levantasse o vo das
minhas imaginaes, elas terminavam por ir fatalmente ferir as asas nesse
monumento de misria moral.
Ah! Por mais que se considere Vida e Morte como banais transformaes da
Substncia, pavoroso o pensamento que se fez regelar um sangue quente, que
se imobilizou um msculo vivo! Quando, depois de jantar, sentindo ao lado o aroma
do caf, eu me estirava no sof, enlanguescido, numa sensao de plenitude,
elevava-se logo dentro em mim, melanclico como o coro que vem de um ergstulo,
todo um sussurro de acusaes:
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E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais
fosse gozado pelo venervel Ti Chin-Fu!...
Debalde eu replicava Conscincia, lembrando-lhe a decrepitude do
Mandarim, a sua gota incurvel... Facunda em argumentos, gulosa de controvrsia,
ela retorquia logo com furor:
Mas, ainda na sua atividade mais resumida, a vida um bem supremo:
porque o encanto dela reside no seu princpio mesmo, e no na abundncia das
suas manifestaes!
Eu revoltava-me contra este pedantismo retrico de pedagogo rgido: erguia
alto a fronte, gritava-lhe numa arrogncia desesperada:
Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? O teu grande nome de
Conscincia no me assusta! s apenas uma perverso da sensibilidade nervosa.
Posso eliminar-te com flor de laranja!
E imediatamente sentia passar-me na alma, com uma lentido de brisa, um
rumor humilde de murmuraes irnicas:
Bem, ento come, dorme, banha-te e ama... Eu assim fazia. Mas logo os
prprios lenis de bretanha do meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os
tons lvidos de uma mortalha; a gua perfumada em que me mergulhava arrefeciame sobre a pele, com a sensao espessa de um sangue que coalha: e os peitos
nus das minhas amantes entristeciam-me, como lpides de mrmore que encerram
um corpo morto.
Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti Chin-Fu
tinha decerto uma vasta famlia, netos, bisnetos tenros, que, despojados da herana
que eu comia farta em pratos de Svres, numa pompa de sulto perdulrio, iam
atravessando na China todos os infernos tradicionais da misria humana os dias
sem arroz, o corpo sem agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...
Compreendi ento porque me perseguia a figura obesa do velho letrado; e
dos seus lbios recobertos pelos longos plos brancos do seu bigode de sombra,
parecia-me sair agora esta acusao desolada: Eu no me lamento a mim, forma
meio morta que era; choro os tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu
vens do seio fresco das tuas amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade,
apinhados num grupo expirante, entre leprosos e ladres, na Ponte dos Mendigos,
ao p dos terraos do Templo do Cu!
Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chinesa! No podia levar boca um
pedao de po sem imaginar imediatamente o bando faminto de criancinhas, a
descendncia de Ti Chin-Fu, penando, como passarinhos implumes que abrem
debalde o bico e piam em ninho abandonado; se me abafava no meu palet, era
logo a viso de desgraadas senhoras, mimosas outrora de tpido conforto chins,
hoje roxas de frio, sob andrajos de velhas sedas, por uma manh de neve; o tecto
de bano do meu palacete lembrava-me a famlia do Mandarim, dormindo beira
dos canais, farejada pelos ces; e o meu coup bem forrado fazia-me arrepiar
idia das longas caminhadas errantes, por estradas encharcadas, sob um duro
Inverno asitico...
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O que eu sofria! E era o tempo em que a populaa invejosa vinha pasmar
para o meu palacete, comentando as felicidades inacessveis que l deviam habitar!
Enfim, reconhecendo que a Conscincia era dentro em mim como uma
serpente irritada decidi implorar o auxlio d'Aquele que dizem ser superior
Conscincia porque dispe da Graa.
Infelizmente eu no acreditava n'Ele... Recorri pois minha antiga divindade
particular, ao meu dileto dolo, padroeira da minha famlia, Nossa Senhora das Dores.
E, regiamente pago, um povo de curas e cnegos, pelas catedrais de cidades e pelas
capelas de aldeia, foi pedindo a Nossa Senhora das Dores que voltasse os seus olhos
piedosos para o meu mal interior... Mas nenhum alvio desceu desses Cus
inclementes, para onde h milhares de anos debalde sobe o calor da misria humana.
Ento eu prprio me abismei em prticas piedosas e Lisboa assistiu a este
espectculo extraordinrio: um ricao, um nababo, prostrando-se humildemente ao
p dos altares, balbuciando de mos postas frases da salve-rainha, como se visse
na Orao e no Reino do Cu, que ela conquista, outra coisa mais que uma
consolao fictcia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que no
possuem nada... Eu perteno burguesia; e sei que se ela mostra plebe
desprovida um Paraso distante, gozos inefveis a alcanar para lhe afastar a
ateno dos seus cofres repletos e da abundncia das suas searas.
Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e cantadas, para
satisfazer a alma errante de Ti Chin-Fu. Pueril desvario de um crebro peninsular! O
velho Mandarim, na sua classe de letrado, de membro da Academia dos Han-Lin,
colaborador provvel do grande tratado Khu Tsuane-Chu, que j tem setenta e oito mil
e setecentos e trinta volumes, era certamente um sectrio da doutrina, da moral
positiva de Confcio... Nunca ele, sequer, queimara mechas perfumadas em honra de
Buda: e os cerimoniais do sacrifcio mstico deviam parecer sua abominvel alma de
gramtico e de cptico como as pantomimas dos palhaos no teatro de Hong-Tung!
Ento prelados astutos, com experincia catlica, deram-me um conselho subtil
captar a benevolncia de Nossa Senhora das Dores com presentes, flores,
brocados e jias, como se quisesse alcanar os favores de Aspsia: e maneira de
um banqueiro obeso, que obtm as complacncias de uma danarina dando-lhe um
cottage entre rvores eu, por uma sugesto sacerdotal, tentei peitar a doce Me
dos Homens, erguendo-lhe uma catedral toda de mrmore branco. A abundncia das
flores punha entre os pilares lavrados perspectivas de parasos: a multiplicidade dos
lumes lembrava uma magnificncia sideral... Despesas vs! O fino e erudito cardeal
Nani veio de Roma consagrar a igreja; mas, quando eu nesse dia entrei a visitar a
minha hspeda divina, o que vi, para alm das calvas dos celebrantes, entre a mstica
nvoa dos incensos, no foi a Rainha da Graa, loira, na sua tnica azul foi o velho
malandro com o seu olho oblquo e o seu papagaio nos braos! Era a ele, ao seu
branco bigode trtaro, sua pana cor de oca, que todo um sacerdcio recamado de
oiro estava oferecendo, ao roncar do rgo, a Eternidade dos louvores!...
Ento, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, era
favorvel ao desenvolvimento destas imaginaes parti, viajei sobriamente, sem
pompa, com um ba e um lacaio.
Visitei, na sua ordem clssica, Paris, a banal Sua, Londres, os lagos
taciturnos da Esccia; ergui a minha tenda diante das muralhas evanglicas de
Jerusalm; e de Alexandria a Tebas, fui ao comprido desse longo Egipto
monumental e triste como o corredor de um mausolu. Conheci o enjo dos
paquetes, a monotonia das runas, a melancolia das multides desconhecidas, as
desiluses do bulevar: e o meu mal interior ia crescendo.
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Agora j no era s a amargura de ter despojado uma famlia venervel:
assaltava-me o remorso mais vasto de ter privado toda uma sociedade de um
personagem fundamental, um letrado experiente, coluna da Ordem, esteio de
instituies. No se pode arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor
de cento e seis mil contos, sem lhe perturbar o equilbrio... Esta idia pungia-me
acerbamente. Ansiei por saber se na verdade a desapario de Ti Chin-Fu fora
funesta decrpita China: li todos os jornais de Hong-Kong e de Xangai, velei a
noite sobre histrias de viagens, consultei sbios missionrios: e artigos, homens,
livros, tudo me falava da decadncia do Imprio do Meio, provncias arruinadas,
cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebelies, templos aluindo-se,
leis perdendo a autoridade, a decomposio de um mundo, como uma nau
encalhada que a vaga desfaz tbua a tbua!...
E eu atribua-me estas desgraas da sociedade chinesa! No meu esprito
doente Ti Chin-Fu tomara ento o valor desproporcionado de um Csar, um Moiss,
um desses seres providenciais que so a fora de uma raa. Eu matara-o; e com ele
desaparecera a vitalidade da sua ptria! O seu vasto crebro poderia talvez ter
salvado, a rasgos geniais, aquela velha monarquia asitica e eu imobilizara-lhe a
ao criadora! A sua fortuna concorreria a refazer a grandeza do Errio e eu
estava-a dissipando a oferecer pssegos em Janeiro s messalinas do Helder!...
Amigos, conheci o remorso colossal de ter arruinado um imprio!
Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me orgia. Instalei-me
num palacete da Avenida dos Campos Elsios e foi medonho. Dava festas
Trimalcio: e, nas horas mais speras de fria libertina, quando das charangas, na
estridncia brutal dos cobres, rompiam os cancs; quando prostitutas, de seio
desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados bomios, ateus
de cervejaria, injuriavam Deus, com a taa de champanhe erguida eu, tomado
subitamente como Heliogbalo de um furor de bestialidade, de um dio contra o
Pensante e o Consciente, atirava-me ao cho a quatro patas e zurrava
formidavelmente de burro...
Depois quis ir mais baixo, ao deboche da plebe, s torpezas alcolicas do
Assommoir: e quantas vezes, vestido de blusa, com o casquete para a nuca, de
brao dado com Mes-Bottes ou Bibi-la-Gaillarde, num tropel avinhado, fui
cambaleando pelos bulevares exteriores, a uivar, entre arrotos:
Allons, enfants de la patrie-e-e!...
Le jour de gloire est arriv...
Foi uma manh, depois de um destes excessos, hora em que nas trevas da
alma do debochado se ergue uma vaga aurora espiritual que me nasceu, de
repente, a idia de partir para a China! E, como soldados em acampamento
adormecido, que ao som do clarim se erguem, e um a um se vo juntando e
formando coluna outras idias se foram reunindo no meu esprito, alinhando-se,
completando um plano formidvel... Partiria para Pequim; descobriria a famlia de Ti
Chin-Fu; esposando uma das senhoras, legitimaria a posse dos meus milhes; daria
quela casa letrada a antiga prosperidade; celebraria funerais pomposos ao
Mandarim, para lhe acalmar o esprito irritado; iria pelas provncias miserveis
fazendo colossais distribuies de arroz; e, obtendo do imperador o boto de cristal
de mandarim, acesso fcil a um bacharel, substituir-me-ia personalidade
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desaparecida de Ti Chin-Fu e poderia assim restituir legalmente sua ptria, se
no a autoridade do seu saber, ao menos a fora do seu oiro.
Tudo isto, por vezes, me aparecia como um programa indefinido, nevoento,
pueril e idealista. Mas j o desejo desta aventura original e pica me envolvera; e eu
ia, arrebatado por ele, como uma folha seca numa rajada.
Anelei, suspirei por pisar a terra da China! Depois de altos preparativos,
apressados a punhados de ouro, uma noite parti enfim para Marselha. Tinha alugado
todo um paquete, o Ceilo. E na manh seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o vo
branco das gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborizavam as torres de Nossa
Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro pus a proa ao Oriente.
CAPTULO IV
O Ceilo teve uma viagem calma e montona at Xangai.
Da subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin num pequeno steamer da Companhia
Russel. Eu no vinha visitar a China numa curiosidade ociosa de touriste: toda a
paisagem dessa provncia, que se assemelha dos vasos de porcelana, de um tom
azulado e vaporoso, com colinazinhas calvas e de longe a longe um arbusto
bracejante, me deixou sombriamente indiferente.
Quando o capito do steamer, um yunkee impudente de focinho de chibo, ao
passarmos altura de Nanquim, me props parar ir percorrer as runas
monumentais da velha cidade de porcelana, eu recusei, com um movimento seco
de cabea, sem mesmo desviar os olhos tristes da corrente barrenta do rio.
Que pesados e soturnos me pareceram os dias de navegao de Tien-Tsin a
Tung-Chu, em barcos chatos que o cheiro dos remadores chineses empestava; ora
atravs de terras baixas inundadas pelo Pei-H, ora ao longo de plidos e infindveis
arrozais; passando aqui uma lgubre aldeia de lama negra, alm um campo coberto
de esquifes amarelos; topando a cada momento com cadveres de mendigos,
inchados e esverdeados, que desciam ao fio de gua, sob um cu fusco e baixo!
Em Tung-Chu fiquei surpreendido, ao dar com uma escolta de cossacos que
mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, herico oficial das campanhas
da sia Central, e ento embaixador da Rssia em Pequim. Eu vinha-lhe
recomendado como um ser precioso e raro: e o verboso intrprete S-T, que ele
punha ao meu servio, explicou-me que as cartas de selo imperial, avisando-o da
minha chegada, recebera-as ele, havia semanas, pelos correios da Chancelaria que
atravessam a Sibria em tren, descem a dorso de camelo at Grande Muralha
trtara, e entregam a a mala a esses corredores monglicos, vestidos de couro
escarlate, que dia e noite galopam sobre Pequim.
Camilloff enviava-me um pnei da Manchria, ajaezado de seda, e um carto
de visita, com estas palavras traadas a lpis sob o seu nome: Sade! O animal
doce de boca!
Montei o pnei: e a um hurra dos cossacos, num agitar herico de lanas,
partimos desfilada pela poeirenta plancie porque j a tarde declinava, e as
portas de Pequim fecham-se mal o ltimo raio de sol deixa as torres do Templo do
Cu. Ao princpio seguimos uma estrada, caminho batido do trnsito das caravanas,
atravancado de enormes lajes de mrmore dessoldadas da antiga Via Imperial.
Depois passamos a ponte de Pa Li-Kao, toda de mrmore branco, flanqueada de
drages arrogantes. Vamos correndo ento beira de canais de gua negra:
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comeam a aparecer pomares, aqui e alm uma aldeia de cor azulada, aninhada ao
p de um pagode: de repente, a um cotovelo do caminho, paro assombrado...
Pequim est diante de mim! E uma vasta muralha, monumental e brbara, de
um negro bao, estendendo-se a perder de vista, e destacando, com as arquiteturas
babilnicas das suas portas de tectos recurvos, sobre um fundo de poente de
prpura ensangentada...
Ao longe, para o norte, num vago de vapor roxo, esbatem-se, como
suspensas no ar, as montanhas da Monglia...
Uma rica liteira esperava-me Porta de Tung Tsen-Men, para eu atravessar
Pequim at residncia militar de Camilloff. A Muralha agora, ao perto, parecia
erguer-se at aos cus com o horror de uma construo bblica: sua base apinhavase uma confuso de barracas, feira extica, onde rumorejava uma multido, e a luz de
lanternas oscilantes cortava j o crepsculo de vagas manchas cor de sangue; os
toldos brancos faziam ao p do negro muro como um bando de borboletas pousadas.
Senti-me triste; subi liteira, cerrei as cortinas de seda escarlate todas
bordadas a ouro; e cercado dos cossacos, eis-me entrando a velha Pequim, por essa
porta bablica, na turba tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de charo, cavaleiros
monglicos armados de flechas, bonzos de tnica alvejante marchando um a um, e
longas filas de lentos dromedrios balanando a sua carga em cadncia...
Da a pouco a liteira parou. O respeito S-T correu as cortinas, e vi-me num
jardim, escurecido e calado, onde, por entre sicmoros seculares, quiosque
alumiados brilhavam com uma luz doce, como colossais lanternas pousadas sobre a
relva: e toda a sorte de guas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo
feito de madeiros pintados a vermelho, aclarado por fios de lmpadas de papel
transparente, esperava-me um membrudo figuro, de bigodes brancos, apoiado a
um grosso espado. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me para ele, eu sentia o
passo inquieto das gazelas fugindo de leve sob as rvores...
O velho heri apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo, segundo
os usos chineses, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de porcelana onde entre
rodelas finas de limo sobrenadavam esponjas brancas, num perfume forte de lils...
Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito fresco, de
gravata branca, entrava pelo brao de Camilloff no boudoir da generala. Era alta e
loira; tinha os olhos verdes das sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido
de seda branca pousava uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um
aroma fino de sndalo e de ch.
Conversamos muito da Europa, do niilismo, de Zola, de Leo XIII, e da
magreza de Sarah Bernhardt...
Pela galeria aberta penetrava um ar clido que recendia a heliotrpio. Depois
ela sentou-se ao piano e a sua voz de contralto quebrou at tarde os silncios
melanclicos da Cidade Trtara, com as picantes rias de Madame Favart e com as
melodias afagantes do Rei de Lahore.
Ao outro dia cedo, encerrado com o general num dos quiosques do jardim,
contei-lhe a minha lamentvel histria e os motivos fabulosos que me traziam a
Pequim. O heri escutava, cofiando sombriamente o seu espesso bigode cossaco.
O meu prezado hspede sabe o chins? perguntou-me de repente,
fixando em mim a pupila sagaz.
Sei duas palavras importantes, general: mandarim e ch.
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Ele passou a sua mo de fortes cordoveias sobre a medonha cicatriz que lhe
sulcava a calva:
Mandarim, meu amigo, no uma palavra chinesa, e ningum a entende
na China. o nome que no sculo XVI os navegadores do seu pas, do seu belo
pas...
Quando ns tnhamos navegadores... Murmurei, suspirando.
Ele suspirou tambm, por polidez, e continuou:
Que os seus navegadores deram aos funcionrios chineses. Vem do seu
verbo, do seu lindo verbo...
Quando tnhamos verbos... rosnei, no hbito instintivo de deprimir a
Ptria. Ele esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho e
prosseguiu paciente e grave:
Do seu lindo verbo mandar... Resta-lhe portanto ch. um vocbulo que
tem um vasto papel na vida chinesa, mas julgo-o insuficiente para servir a todas as
relaes sociais. O meu estimvel hspede pretende esposar uma senhora da
famlia Ti Chin-Fu, continuar a grossa influncia que exercia o Mandarim, substituir,
domstica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto dispe da palavra
ch. pouco.
No pude negar que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz
adunco de milhafre, ps-me ainda outras objees que eu via erguerem-se diante do
meu desejo como as muralhas mesmas de Pequim: nenhuma senhora da famlia Ti
Chin-Fu consentiria jamais em casar com um brbaro; e seria impossvel,
terrivelmente impossvel que o imperador, o Filho do Sol, concedesse a um
estrangeiro as honras privilegiadas de um mandarim...
Mas porque mas recusaria? exclamei. Eu perteno a uma boa famlia
da provncia do Minho. Sou bacharel formado; portanto na China, como em Coimbra,
sou um letrado! J fiz parte de uma repartio pblica... Possuo milhes... Tenho a
experincia do estilo administrativo...
O general ia-se curvando com respeito a esta abundncia dos meus atributos.
No disse ele enfim que o imperador realmente o recusasse: que
o indivduo que lho propusesse seria imediatamente decapitado. A lei chinesa, neste
ponto, explcita e seca.
Baixei a cabea, acabrunhado.
Mas, general murmurei eu quero livrar-me da presena odiosa do
velho Ti Chin-Fu e do seu papagaio!... Se eu entregasse metade dos meus milhes
ao Tesouro chins, j que no me dado pessoalmente aplic-los, como mandarim,
prosperidade do Estado...? Talvez Ti Chin-Fu se calmasse...
O general pousou-me paternalmente a vasta mo sobre o ombro:
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Erro, considervel erro, mancebo! Esses milhes nunca chegariam ao
Tesouro imperial. Ficariam nas algibeiras insondveis das classes dirigentes: seriam
dissipados em plantar jardins, colecionar porcelanas, tapetar de peles os soalhos,
fornecer sedas s concubinas: no aliviariam a fome de um s chins, nem
reparariam uma s pedra das estradas pblicas... Iriam enriquecer a orgia asitica. A
alma de Ti Chin-Fu deve conhecer bem o Imprio: e isso no a satisfaria.
E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer
particularmente, como filantropo, largas distribuies de arroz populaa faminta?
uma idia...
Funesta disse o general, franzindo medonhamente o sobrolho. A
corte imperial veria a imediatamente uma ambio poltica, o tortuoso plano de
ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dinastia... O meu bom amigo seria
decapitado... grave...
Maldio! berrei. Ento para que vim eu China?
O diplomata encolheu vagarosamente os ombros; mas logo, mostrando num
sorriso astuto os seus dentes amarelos de cossaco:
Faa uma coisa. Procure a famlia de Ti Chin-Fu... Eu indagarei do
primeiro-ministro, Sua Excelncia o Prncipe Tong, onde pra essa prole
interessante... Reuna-os, atire-lhes uma ou duas dzias de milhes... Depois
prepare ao defunto funerais rgios. Funerais de alto cerimonial, com um prstito de
uma lgua, filas de bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lanas,
plumas, andores escarlates, legies de carpideiras ululando sinistramente, etc., etc.
Se depois de tudo isto a sua conscincia no adormecer e o fantasma insistir...
Ento?
Corte as goelas.
Obrigado, general.
Uma coisa, porm, era evidente, e nela concordaram Camilloff, o respeitoso
S-T e a generala: que, para frequentar a famlia Ti Chin-Fu, seguir os funerais,
misturar-me vida de Pequim, eu devia desde j vestir-me como um chins
opulento, da classe letrada, para me ir habituando ao traje, s maneiras, ao
cerimonial mandarim...
A minha face amarelada, o meu longo bigode pendente favoreciam a
caracterizao e quando na manh seguinte, depois de arranjado pelos
costureiros engenhosos da Rua Ch-Cua, entrei na sala forrada de seda escarlate,
onde j rebrilhavam as porcelanas do almoo sobre a mesa de charo negro, a
generala recuou como apario do prprio Tong-Tch, Filho do Cu!
Eu trazia uma tnica de brocado azul-escuro abotoada ao lado, com o peitilho
ricamente bordado de drages e flores de oiro: por cima um casabeque de seda de
um tom azul mais claro, curto, amplo e fofo: as calas de cetim cor de avel
descobriam ricas babouches amarelas pespontadas a prolas, e um pouco da meia
picada de estrelinhas negras: e cinta, numa linda faixa franjada de prata, tinha
metido um leque de bambu, dos que tm o retrato do filsofo Lao-Ts e so
fabricados em Swa-Ton.
E, pelas misteriosas correlaes com que o vesturio influencia o caracter, eu
sentia j em mim idias, instintos chineses: o amor dos cerimoniais meticulosos, o
respeito burocrtico das frmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e tambm um
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abjecto terror do imperador, o dio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o
fanatismo da tradio, o gosto das coisas aucaradas...
Alma e ventre eram j totalmente um mandarim. No disse generala:
Bonjour, Madame. Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos fechados sobre a
fronte abaixada, fiz gravemente o chin-chin...
adorvel, precioso! dizia ela, com o seu lindo riso, batendo as
mozinhas plidas.
Nessa manh, em honra da minha nova encarnao, havia um almoo
chins. Que gentis guardanapos de papel de seda escarlate, com monstros
fabulosos desenhados a negro! O servio comeou por ostras de Ning-P. Exmias!
Absorvi duas dzias com um intenso regalo chins. Depois vieram deliciosas febras
de barbatana de tubaro, olhos de carneiro com picado de alho, um prato de
nenfares em calda de acar, laranjas de Canto, e enfim o arroz sacramental, o
arroz dos Avs...
Delicado repasto, regado largamente de excelente vinho de Cho-Chigne! E,
por fim, com que gozo recebi a minha taa de gua a ferver, onde deitei uma pitada
de folhas de ch imperial, da primeira colheita de Maro, colheita nica, que
celebrada com um rito santo pelas mos puras de virgens!...
Duas cantadeiras entraram, enquanto ns fumvamos; e muito tempo, numa
modulao gutural, disseram velhas cantigas dos tempos da Dinastia Ming, ao som de
guitarras recobertas de peles de serpente, que dois trtaros agachados repenicavam,
numa cadncia melanclica e brbara. A China tem encantos de um raro gosto...
Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a Femme Barbe: e quando
o general saiu com a sua escolta cossaca para o yamen do prncipe Tong, a
informar-se da residncia da famlia Ti Chin-Fu eu, repleto e bem disposto, sa
com S-T a ver Pequim.
A habitao de Camilloff ficava na Cidade Trtara, nos bairros militares e
nobres. H aqui uma tranquilidade austera. As ruas assemelham-se a largos
caminhos de aldeia sulcados pelas rodas dos carros; e quase sempre se caminha ao
comprido de um muro, donde saem ramos horizontais de sicmoros.
Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um pnei mongol, com
altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo nela oscila: o toldo, as cortinas
pendentes de seda, os ramos de plumas aos ngulos; e dentro entrev-se alguma
linda dama chinesa, coberta de brocados claros, a cabea toda cheia de flores,
fazendo girar nos pulsos dois aros de prata, com um ar de tdio cerimonioso. Depois
alguma aristocrtica cadeirinha de mandarim, que coolies vestidos de azul, de
rabicho solto, vo levando a um trote arquejante para os yamen do Estado; precedeos uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda com inscries
bordadas, insgnias de autoridade; e dentro o personagem bojudo, com enormes
culos redondos, folheia a sua papelada ou dormita de beio cado...
A cada momento parvamos a olhar as lojas ricas, com as suas tabuletas
verticais de letras douradas sobre fundo escarlate: os fregueses, num silncio de
igreja, subtis como sombras, vo examinando as preciosidades porcelanas da
Dinastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, sedas, armas marchetadas, os leques
maravilhosos de Swa-Ton: por vezes, uma fresca rapariga de olho oblquo, tnica
azul, e papoulas de papel nas tranas, desdobra algum raro brocado diante de um
grosso chins que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na pana: ao
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fundo o mercador, aparatoso e imvel, escreve com um pincel sobre longas tabuinhas
de sndalo: e um perfume adocicado, que sai das coisas, perturba e entristece...
Eis aqui a muralha que cerca a Cidade Interdita, morada santa do imperador!
Moos nobres vm descendo do terrao de um templo onde se estiveram
adestrando frecha. S-T disse-me os seus nomes: eram da guarda seleta, que
nas cerimnias escolta o guarda-sol de seda amarela, com o drago bordado, que
o emblema sagrado do imperador. Todos eles cumprimentaram profundamente um
velho que ia passando, de barbas venerandas, com o casabeque amarelo que o
privilgio do ancio; vinha falando s, e trazia na mo uma vara sobre que
pousavam cotovias domesticadas... Era um prncipe do Imprio.
Estranhos bairros! Mas nada me divertia como ver a cada instante, a uma
porta de jardim, dois mandarins panudos que para entrar se trocavam
indefinidamente salamals, cortesias, recusas, risinhos agudos de etiqueta, todo um
cerimonial dogmtico que lhes fazia oscilar de um modo picaresco, sobre as
costas, as longas penas de pavo. Depois, se erguia os olhos para o ar, l via
sempre pairar enormes papagaios de papel, ora em forma de drages, ora de
cetceos, ora de aves fabulosas enchendo o espao de uma inverosmil legio de
monstros transparentes e ondeantes...
S-T, basta de Cidade Trtara! Vamos ver os bairros chineses...
E l fomos penetrando na Cidade Chinesa, pela porta monstruosa de TchinMen. Aqui habita a burguesia, o mercador, a populaa. As ruas alinham-se como
uma pauta; e no solo vetusto e lamacento, feito da imundcie de geraes recalcada
desde sculos, ainda aqui e alm jaz alguma das lajes de mrmore cor-de-rosa que
outrora o calavam, no tempo da grandeza dos Ming.
Dos dois lados so ora terrenos vagos onde uivam manadas de ces
famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas tabuletas
esguias e sarapintadas, balouando-se de uma haste de ferro. distncia erguemse os arcos triunfais feitos de barrotes cor de prpura, ligados no alto por um telhado
oblongo de telhas azuis envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma multido
rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem
cessar; a poeira envolve tudo de uma nvoa amarelada; um fedor acre exala-se dos
enxurros negros; e a cada momento uma longa caravana de camelos fende
lentamente a turba, conduzida por mongis sombrios vestidos de pele de carneiro.
Fomos at s entradas das pontes sobre os canais, onde saltimbancos
seminus, com mscaras simulando demnios pavorosos, fazem destrezas de um
picaresco brbaro e subtil; e muito tempo estive a admirar os astrlogos de longas
tnicas, com drages de papel colados s costas, vendendo ruidosamente
horscopos e consultas de astros. Oh cidade fabulosa e singular!
De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que um
soldado, de grandes culos, ia impelindo com o guarda-sol, amarrados uns aos outros
pelo rabicho! Foi a, nessa avenida, que eu vi o estrepitoso cortejo de um funeral de
mandarim, todo ornado de auriflamas e de bandeirinhas; grupos de sujeitos fnebres
vinham queimando papis em fogareiros portteis; mulheres esfarrapadas uivavam de
dor espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, galhofavam, e um cooly vestido
de luto branco servia-lhes logo ch, de um grande bule em forma de ave.
Ao passar junto ao Templo do Cu, vejo apinhada num largo uma legio de
mendigos; tinham por vesturio um tijolo preso cinta num cordel; as mulheres, com
os cabelos entremeados de velhas flores de papel, roam ossos tranquilamente; e
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cadveres de crianas apodreciam ao lado, sob o vo dos moscardos. Adiante
topamos com uma jaula de traves, onde um condenado estendia, atravs das
grades, as mos descarnadas, esmola... Depois S-T mostrou-me
respeitosamente uma praa estreita: a, sobre pilares de pedra, pousavam pequenas
gaiolas contendo cabeas de decapitados: e gota a gota ia pingando delas um
sangue espesso e negro...
Uf! exclamei, fatigado e aturdido. S-T, agora quero o repouso, o
silncio, e um charuto caro...
Ele curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me s altas muralhas
da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de guerra a par podem
percorrer durante lguas.
E enquanto S-T, sentado num vo de ameia, bocejava, num desafogo de
cicerone enfastiado, eu fumando contemplei muito tempo aos meus ps a vasta
Pequim...
como uma formidvel cidade da Bblia, Babel ou Nnive, que o profeta
Jonas levou trs dias a atravessar. O grandioso muro quadrado limita os quatro
pontos do horizonte, com as suas portas de torres monumentais, que o ar azulado,
quela distncia, faz parecer transparentes. E na imensido do seu recinto
aglomeram-se confusamente verduras de bosques, lagos artificiais, canais
cintilantes como ao, pontes de mrmore, terrenos alastrados de runas, telhados
envernizados reluzindo ao sol; por toda a parte so pagodes herldicos, brancos
terraos de templos, arcos triunfais, milhares de quiosques saindo de entre as
folhagens dos jardins; depois espaos que parecem um monto de porcelanas,
outros que se assemelham a monturos de lama; e sempre a intervalos regulares o
olhar encontra algum dos basties, de um aspecto herico e fabuloso...
A multido, junto a essas edificaes grandiosas, apenas como gros de
areia negra que um vento brando vai trazendo e levando...
Aqui est o vasto palcio imperial, entre arvoredos misteriosos, com os seus
telhados de um amarelo de oiro vivo! Como eu desejaria penetrar-lhe os segredos, e
ver desenrolar-se pelas galerias sobrepostas, a magnificncia brbara dessas
dinastias seculares!
Alm ergue-se a torre do Templo do Cu, semelhando trs guarda-sis
sobrepostos: depois a grande Coluna dos Princpios, hiertica e seca como o gnio
mesmo da raa: e adiante branquejam numa meia-tinta sobrenatural os terraos de
jaspe do Santurio da Purificao...
Ento interrogo S-T: e o seu dedo respeitoso vai-me mostrando o Templo
dos Antepassados, o Palcio da Soberana Concrdia, o Pavilho das Flores das
Letras, o Quiosque dos Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados
que os cercam, os seus telhados lustrosos de faianas azuis, verdes, escarlates e
cor de limo. Eu devorava, de olho vido, esses monumentos da Antiguidade
asitica, numa curiosidade de conhecer as impenetrveis classes que os habitam, o
princpio das instituies, a significao dos cultos, o esprito das suas letras, a
gramtica, o dogma, a estranha vida interior de um crebro de letrado chins... Mas
esse mundo inviolvel como um santurio...
Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela plancie arenosa
que se estira para alm das portas at aos contrafortes dos montes monglicos; a
incessantemente redemoinham ondas infindveis de poeira; a toda a hora negrejam
filas vagarosas de caravanas... Ento invadiu-me a alma uma melancolia, que o
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silncio daquelas alturas, envolvendo Pequim, tornava de um vago mais desolado:
era como uma saudade de mim mesmo, um longo pesar de me sentir ali isolado,
absorvido naquele mundo duro e brbaro: lembrei-me, com os olhos umedecidos, da
minha aldeia do Minho, do seu adro assombreado de carvalheiras, a venda com um
ramo de louro porta, o alpendre do ferrador, e os ribeiros to frescos quando
verdejam os linhos...
Aquela era a poca em que as pombas emigram de Pequim para o Sul. Eu
via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos bosques dos templos e
dos pavilhes imperiais; cada uma traz, para a livrar dos milhafres, um leve tubo de
bambu que o ar faz silvar; e aquelas nuvens brancas passavam como impelidas de
uma aragem mole, deixando no silncio um lento e melanclico suspiro, uma
ondulao elica, que se perdia nos ares plidos...
Voltei para casa, pesado e pensativo.
Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com bonomia
as minhas impresses de Pequim.
Pequim faz-me sentir bem, general, os versos de um poeta nosso:
Sbolos rios que vo
Por Babilnia me achei ...
Pequim um monstro! disse Camilloff oscilando reflectidamente a calva.
E agora considere que a esta capital, classe trtara e conquistadora que
a possui, obedecem trezentos milhes de homens, uma raa subtil, laboriosa,
sofredora, prolfica, invasora... Estudam as nossas cincias... Um clice de Mdoc,
Teodoro!... Tm uma marinha formidvel! O exrcito, que outrora julgava destroar o
estrangeiro com drages de papelo donde saam bichas de fogo, tem agora ttica
prussiana e espingarda de agulha! Grave!
E todavia, general, no meu pas, quando, a propsito de Macau, se fala do
Imprio Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e dizem
negligentemente: Mandamos l cinqenta homens, e varremos a China...
A esta sandice fez-se um silncio. E o general, depois de tossir
formidavelmente, murmurou, com condescendncia:
Portugal um belo pais...
Eu exclamei com secura e firmeza:
uma choldra, general.
A generala, colocando delicadamente borda do prato uma asa de frango, e
limpando o dedinho, disse:
o pas da cano de Mignon. t que floresce a laranjeira...
O gordo Meriskoff, doutor alemo pela Universidade de Bona, chanceler da
Legao, homem de poesia e de comentrio, observou com respeito:
Generala, o doce pas de Mignon a Itlia: "Conheces tu a terra
privilegiada onde a laranjeira d flor?" O divino Goethe referia-se Itlia, Itlia
mater... A Itlia ser o eterno amor da humanidade sensvel!
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Eu prefiro a Frana! suspirou a esposa do primeiro-secretrio, uma
bonecazinha sardenta, de cabelo arruivascado.
Ah! A Frana!... murmurou um adido, revirando um bugalho de olho
ternssimo.
O gordo Meriskoff ajeitou os culos de oiro:
A Frana tem um mal, que a Questo Social...
Oh! A Questo Social! rosnou sombriamente Camilloff.
Ah! A Questo Social! ... considerou ponderosamente o adido.
E discreteando com tanta sapincia, chegamos por fim ao caf.
Au descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu
brao, murmurou-me junto face:
Ai, quem me dera viver nesses pases apaixonados, onde verdejam os
laranjais!..
l que se ama, generala segredei-lhe eu, levando-a docemente para a
escurido dos sicmoros...
CAPTULO V
Foi necessrio todo um longo Vero para descobrir a provncia onde residira o
defunto Ti Chin-Fu!
Que episdio administrativo to pitoresco, to chins! O servial Camilloff,
que passava o dia inteiro a percorrer os yamens do Estado, teve de provar primeiro
que o desejo de conhecer a morada de um velho mandarim no encobria uma
conspirao contra a segurana do Imprio; e depois foi-lhe ainda preciso jurar que
no havia nesta curiosidade um atentado contra os ritos sagrados! Ento, satisfeito,
o prncipe Tong permitiu que se fizesse o inqurito imperial: centenares de escribas
empalideceram noite e dia, de pincel na mo, desenhando relatrios sobre papel de
arroz; misteriosas conferncias sussurraram incessantemente por todas as
reparties da cidade Imperial, desde o Tribunal Astronmico at ao Palcio da
Bondade Preferida; e uma populao de coolies transportava da Legao russa para
os quiosques da Cidade Interdita, e da para o Ptio dos Arquivos, padiolas
estalando ao peso de maos de documentos vetustos...
Quando Camilloff perguntava pelo resultado, vinha-lhe a resposta satisfatria
que se estavam consultando os Livros Santos de Lao-Ts, ou que se iam explorar
velhos textos do tempo de Nor Ha-Chu. E para calmar a impacincia blica do russo,
o prncipe Tung remetia, com estes recados subtis algum substancial presente de
confeitos recheados, ou de gomos de bambu em calda de acar...
Ora enquanto o general trabalhava com fervor para encontrar a famlia Ti
Chin-Fu eu ia tecendo horas de seda e oiro (assim diz um poeta japons) aos ps
pequeninos da generala...
Havia um quiosque no jardim sob os sicmoros, que se denominava, maneira
chinesa, do Repouso Discreto: ao lado um arroio fresco ia cantando docemente sob
uma pontezinha rstica pintada de cor-de-rosa. As paredes eram apenas um cadeado
de bambu fino forrado de seda cor de ganga: o sol, passando atravs delas, fazia uma
luz sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um div de seda branca, de
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uma poesia de nuvem matutina, atraente como um leito nupcial. Aos cantos, em ricas
jarras transparentes da poca Yeng, erguiam-se, na sua gentileza aristocrtica, lrios
escarlates do Japo. Todo o soalho estava recoberto de esteiras finas de Nanquim; e
junto janela rendilhada, sobre um airoso pedestal de sndalo, pousava aberto ao alto
um leque formado de lminas de cristal separadas, que a aragem entrando fazia vibrar,
numa modulao melanclica e terna.
As manhs do fim de Agosto em Pequim so muito suaves; j erra no ar um
enternecimento outonal. A essa hora o conselheiro Meriskoff, os oficiais da Legao,
estavam sempre na Chancelaria fazendo a mala para So Petersburgo.
Eu ento, de leque na mo, pisando subtilmente na ponta das babouches de
cetim as ruazinhas areadas do jardim, ia entreabrir a porta do Repouso Discreto:
Mimi?
E a voz da generala respondia, suave como um beijo:
All right...
Como ela era linda vestida de dama chinesa! Nos seus cabelos levantados
alvejavam flores de pessegueiro; e as sobrancelhas pareciam mais puras e negras
avivadas a tinta de Nanquim. A camisinha de gaze, bordada a soutache de filigrana
de oiro, colava-se aos seus seios pequeninos e direitos: vastas, fofas calas de
foulard cor de rosa de ninfa, que lhe davam uma graa de serralho, recaam sobre o
tornozelo fino, coberto de meia de seda amarela: e apenas trs dedos da minha
mo cabiam na sua chinelinha...
Chamava-se Vladimira; nascera ao p de Nidji-Novgorod; e fora educada por
uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabelo empoado, e
parecia a grossa litografia cossaca de uma dama galante de Versalhes...
O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente as
folhas de ch, pedia-me histrias ladinas de cocottes, e dizia-me o seu culto por
Dumas filho...
Eu arregaava-lhe a larga manga do casabeque de seda cor de folha morta, e
ia fazendo viajar os meus lbios devotos pela pele fresca dos seus belos braos;
e depois sobre o div, enlaados, peito contra peito, num xtase mudo, sentamos
as lminas de cristal ressoar eolicamente as pegas azuis esvoaarem pelos
pltanos, o fugitivo ritmo do arroio corrente...
Os nossos olhos umedecidos encontravam s vezes um quadro de cetim preto,
por cima do div, onde em caracteres chineses se desenrolavam sentenas do Livro
Sagrado de Li-Nun sobre os deveres das esposas. Mas nenhum de ns percebia o
chins... E no silncio os nossos beijos recomeavam, espaados, soando
docemente, e comparveis (na lngua florida daqueles pases) a prolas que caem
uma a uma sobre uma bacia de prata... Oh suaves sestas dos jardins de Pequim,
onde estais vs? Onde estais, folhas mortas dos lrios escarlates do Japo?...
Uma manh, Camilloff, entrando na Chancelaria, onde eu fumava o cachimbo
da amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme sabre para um
canap, e contou-nos radiante as notcias que lhe dera o penetrante prncipe Tong.
Descobrira-se enfim que um opulento mandarim, de nome Ti Chin-Fu, vivera
outrora nos confins da Monglia, na vila de Tien-H! Tinha morrido subitamente: e a
sua larga descendncia residia l, em misria, num casebre vil...
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Esta descoberta, certo, no fora devida sagacidade da burocracia imperial
mas fizera-a um astrlogo do templo de Faqua, que durante vinte noites folheara
no cu o luminoso arquivo dos astros...
Teodoro, h-de ser o seu homem! exclamou Camilloff.
E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:
H-de ser o seu homem, Teodoro!
O meu homem... murmurei sombriamente.
Era talvez o meu homem, sim! Mas no me seduzia ir procurar o meu homem
ou a sua famlia, na monotonia de uma caravana, por essas desoladas extremidades
da China!... Depois desde que chegara a Pequim, eu no tornara a avistar a forma
odiosa de Ti Chin-Fu e do seu papagaio. A Conscincia era dentro em mim como
uma pomba adormecida. Certamente, o alto esforo de me ter arrancado s douras
do bulevar e do Loreto, de ter sulcado os mares at ao Imprio do Meio, parecera
Eterna Equidade uma expiao suficiente e uma peregrinao reparadora.
Certamente Ti Chin-Fu, acalmado, recolhera-se com o seu papagaio sempiterna
Imobilidade... Para que iria eu, pois, a Tien-H? Porque no ficaria ali, naquele
amvel Pequim, comendo nenfares em calda de acar, abandonando-me s
sonolncias amorosas do Repouso Discreto, e pelas tardes azuladas, dando o meu
passeio pelo brao do bom Meriskoff, nos terraos de jaspe da Purificao ou sob os
cedros do Templo do Cu?...
Mas j o zeloso Camilloff, de lpis na mo, ia marcando no mapa o meu
itinerrio para Tien-H! E mostrando-me, num desagradvel entrelaamento,
sombras de montes, linhas tortuosas de rios, esfumados de lagoas:0
Aqui est! O meu hspede sobe at Ni Ku-H, na margem do Pei-H...
Da, em barcos chatos, vai a My-Yun. Boa cidade, h l um Buda vivo... Da, a
cavalo, segue at fortaleza de Ch-Hia. Passa a Grande Muralha, famoso
espectculo!... Descansa no forte de Ku Pi-H. Pode l caar a gazela. Soberbas
gazelas... E com dois dias de caminhada est em Tien-H... Brilhante, hem?...
Quando quer partir? Amanh?...
Amanh rosnei, tristonho.
Pobre generala! Nessa noite, enquanto Meriskoff, ao fundo da sala, fazia com
trs oficiais da Embaixada o seu whist sacramental, e Camilloff, ao canto do sof, de
braos cruzados, solene como numa poltrona do Congresso de Viena, dormia de
boca aberta ela sentou-se ao piano. Eu ao lado, na atitude de um Lara, devastado
pela fatalidade, retorcia lugubremente o bigode. E a doce criatura, entre dois
gemidos do teclado, de uma saudade penetrante, cantou revirando para mim os
seus olhos rebrilhantes e midos:
L'oiseau s'envole,
L bas, l bas!...
L'oiseau s'envole...
Ne revien pas...
A ave h-de voltar ao ninho murmurei eu enternecido.
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E, afastando-me a esconder uma lgrima, ia resmungando furioso:
Canalha de Ti Chin-Fu! Por tua causa! Velho malandro! Velho garoto!...
Ao outro dia l vou para Tien-H com o respeitoso intrprete S-T, uma
longa fila de carretas, dois cossacos, toda uma populaa de coolies.
Ao deixar a muralha da Cidade Trtara, seguimos muito tempo ao comprido
dos jardins sagrados que orlam o templo de Confcio.
Era no fim do Outono; j as folhas tinham amarelecido; uma doura tocante
errava no ar...
Dos quiosques santos saa uma sussurrao de cnticos, de nota montona e
triste. Pelos terraos, enormes serpentes, venerandas como deuses, iam-se
arrastando, j entorpecidas da friagem. E aqui e alm, ao passar, avistvamos
budistas decrpitos, secos como pergaminhos e nodosos como razes, encruzados
no cho sob os sicmoros, numa imobilidade de dolos, contemplando
incessantemente o umbigo, espera da perfeio do Nirvana...
E eu ia pensando, com uma tristeza to plida como aquele mesmo cu de
Outubro asitico, nas duas lgrimas redondinhas que vira brilhar, despedida, nos
olhos verdes da generala!...
CAPTULO VI
J a tarde declinava, e o Sol descia vermelho como um escudo de metal
candente, quando chegamos a Tien-H.
As muralhas negras da vila erguem-se, do lado do sul, ao p de uma torrente
que ruge entre rochas: para o nascente, a plancie lvida e poeirenta estende-se at
a um grupo escuro de colinas onde branqueja um vasto edifcio que uma
misso catlica. E para alm, para o extremo norte, so as eternas montanhas roxas
da Monglia, suspensas sempre no ar como nuvens.
Alojamo-nos num barraco ftido, intitulado Estalagem da Consolao
Terrestre. Foi-me reservado o quarto nobre, que abria sobre uma galeria fixada em
estacas; era ornado estranhamente de drages de papel recortado, suspensos por
cordis do travejamento do tecto; menor aragem aquela legio de monstros
fabulosos oscilava em cadncia, com um rumor seco de folhagem, como tomada de
vida sobrenatural e grotesca.
Antes que escurecesse fui ver com S-T a vila: mas bem depressa fugi ao
fedor abominvel das vielas: tudo se me afigurou ser negro os casebres, o cho
barrento, os enxurros, os ces famintos, a populaa abjeta... Recolhi ao albergue
onde arrieiros mongis e crianas piolhosas me miravam com assombro.
Toda esta gente me parece suspeita, S-T disse eu, franzindo a testa.
Tem Vossa Honra razo. uma ral! Mas no h perigo: eu matei, antes
de partirmos, um galo negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. Pode Vossa
Honra dormir ao abrigo dos maus espritos... Quer Vossa Honra o ch?...
Traz, S-T.
Bebido o ch, conversamos do grande plano: na manh seguinte eu ia levar a
alegria triste choupana da viva de Ti Chin-Fu, anunciando-lhe os milhes que lhe
dava, depositados j em Pequim: depois, de acordo com o mandarim governador,
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faramos uma copiosa distribuio de arroz pela populaa: e noite iluminaes,
danas, como numa gala pblica...
Que te parece, S-T?
Nos lbios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confcio... Vai ser
grande! Vai ser grande!
Como vinha cansado, bem cedo comecei a bocejar, e estirei-me sobre o
estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas estalagens da China; enrolado na
minha pelia, fiz o sinal-da-cruz, e adormeci pensando nos braos brancos da
generala, nos seus olhos verdes de sereia...
Era talvez j meia-noite quando despertei a um rumor lento e surdo que
envolvia o barraco como de forte vento num arvoredo, ou uma maresia grossa
batendo um paredo. Pela galeria aberta, o luar entrava no quarto, um luar triste de
Outono asitico, dando aos drages suspensos do tecto formas, semelhanas
quimricas...
Ergui-me, j nervoso quando um vulto, alto e inquieto, apareceu na faixa
luminosa do luar...
Sou eu, Vossa Honra! murmurou a voz apavorada de S-T.
E logo, agachando-se ao p de mim, contou-me num fluxo de palavras roucas
a sua aflio: enquanto eu dormia, espalhara-se pela vila que um estrangeiro, o
Diabo estrangeiro, chegara com bagagens carregadas de tesouros... J desde o
comeo da noite ele tinha entrevisto faces agudas, de olho voraz, rondando o
barraco, como chacais impacientes... E ordenara logo aos coolies que
entrincheirassem a porta com os carros das bagagens, formados em semicrculo
velha maneira trtara... Mas pouco a pouco a malta crescera... Agora vinha de
espreitar por um postigo: e era em roda da estalagem toda a populaa de Tien-H,
rosnando sinistramente... A deusa Kaonine no se satisfizera com o sangue do galo
preto!... Alm disso ele vira porta de um pagode uma cabra negra recuar! ... A
noite seria de terrores!... E a sua pobre mulher, o osso do seu osso; que estava to
longe, em Pequim!...
E agora, S-T? perguntei eu.
Agora... Vossa Honra! Agora...
Calou-se: e a sua magra figura tremia, acaapada como um co que se roja
sob o aoite.
Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro fronteiro,
coberto de um alpendre, projetava uma funda sombra. A com efeito estava uma
turba negra apinhada. s vezes uma figura, rastejando, adiantava-se no espao
alumiado, espreitava, farejava as carretas e, sentindo a lua sobre a face, recuava
vivamente, fundindo-se na escurido: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava
um momento luz algum ferro de lana inclinada...
Que querem vocs, canalha? bradei eu em portugus.
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A esta voz estrangeira um grunhido saiu da treva; imediatamente uma pedra
veio ao meu lado furar o papel encerado da gelosia; depois uma flecha silvou,
cravou-se por cima da minha cabea, num barrote...
Desci rapidamente cozinha da estalagem. Os meus coolies, acocorados
sobre os calcanhares, batiam o queixo num terror; e os dois cossacos que me
acompanhavam, impassveis lareira, cachimbavam, com o sabre nu nos joelhos.
O velho estalajadeiro de culos, uma av andrajosa que eu vira no ptio
deitando ao ar um papagaio de papel, os arrieiros mongis, as crianas piolhosas,
esses tinham desaparecido; s ficara um velho, bbedo de pio, cado a um canto
como um fardo. Fora ouvia-se j a multido vociferar.
Interpelei ento S-T, que quase desmaiava, arrimado a uma viga: ns
estvamos sem armas; os dois cossacos, ss, no podiam repelir o assalto: era
necessrio pois ir acordar o mandarim governador, revelar-lhe que eu era um amigo
de Camilloff, um conviva do prncipe Tong, intim-lo a que viesse dispersar a turba,
manter a lei santa da hospitalidade!...
Mas S-T confessou-me, numa voz dbil como um sopro, que o governador
decerto quem estava dirigindo o assalto! Desde as autoridades at aos mendigos,
a fama da minha riqueza, a legenda das carretas carregadas de ouro inflamara
todos os apetites!... A prudncia ordenava, como um mandamento santo, que
abandonssemos parte dos tesouros, mulas, caixas de comestveis...
E ficar aqui, nesta aldeia maldita, sem camisas, sem dinheiro e sem
mantimentos?...
Mas com a rica vida, Vossa Honra!
Cedi. E ordenei a S-T que fosse propor turba uma copiosa distribuio de
sapeques se ela consentisse em recolher aos seus casebres, e respeitar em ns
os hspedes enviados por Buda...
S-T subiu sacada da galeria, a tremer; e rompeu logo a arengar malta,
bracejando, atirando as palavras com a violncia de um co que ladra. Eu abrira j
uma maleta, e ia-lhe passando cartuchos, sacos de sapeques que ele
arremessava aos punhados com um gesto de semeador... Em baixo havia por
momentos um tumulto furioso ao chover dos metais; depois um lento suspiro de gula
satisfeita; e logo um silncio, numa suspenso de quem espera mais...
Mais! murmurava S-T, voltando-se para mim ansioso.
Eu, indignado, l lhe dava outros cartuchos, mais rolos, molhos de moedas de
meio real enfiadas em cordis... J a maleta estava vazia. A turba rugia, insaciada.
Mais, Vossa Honra! suplicou S-T.
No tenho mais, criatura! O resto est em Pequim!
Oh Buda santo! Perdidos! Perdidos! clamou S-T, abatendo-se sobre
os joelhos.
A populaa, calada, esperava ainda. De repente, uma ululao selvagem
rasgou o ar. E eu senti aquela massa vida arremessar-se sobre as carretas que
defendiam a porta em semicrculo: ao choque todo o madeiramento da Estalagem da
Consolao Terrestre rangeu e oscilou...
Corri varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno dos carros
derrubados: os machados reluziam caindo sobre a tampa dos caixotes: o coiro das
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malas abria-se fendido faca por mos inumerveis: no alpendre, os cossacos
debatiam-se, aos urros, sob o cutelo. Apesar da lua, eu via em roda do barraco
errarem tochas, numa disperso de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo
ao longe uivar os ces; e de todas as vielas desembocava, corria populaa, sombras
ligeiras, agitando chuos e foices recurvas...
Subitamente, na loja trrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia pelas portas
despedaadas: decerto me procuravam, supondo que eu teria comigo o melhor do
tesouro, pedras preciosas ou oiros... O terror desvairou-me. Corri a uma grade de
bambus para o lado do ptio. Demoli-a, saltei sobre uma camada de mato grosso,
num cheiro acre de imundcies. O meu pnei, preso a uma trave, relinchava,
puxando furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre ele, empolguei-lhe as
crinas...
Nesse momento, do porto da cozinha arrombada rompia uma horda com
lanternas, lanas, num clamor de delrio. O pnei, espantado, salta um regueiro; uma
flecha silva a meu lado; depois um tijolo bate-me no ombro, outro nos rins, outro na
anca do pnei, outro mais grosso rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente
s crinas, arquejando, com a lngua de fora, o sangue a gotejar da orelha, vou
despedido numa desfilada furiosa ao longo de uma rua negra... De repente vejo
diante de mim a muralha, um bastio, a porta da vila fechada!
Ento, alucinado, sentindo atrs rugir a turba, abandonado de todo o socorro
humano precisei de Deus! Acreditei n'Ele, gritei-lhe que me salvasse; e o meu
esprito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe oferecer, fragmentos de oraes,
de salve-rainhas, que ainda me jaziam no fundo da memria... Voltei-me sobre a
anca do potro: de uma esquina ao longe surgiu um fogacho de tochas: era a corja!...
Larguei de golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma
vasta fita negra furiosamente desenrolada: de sbito avisto uma brecha, um
boqueiro eriado de esgalhos de saras, e fora a plancie que sob a lua parecia
como uma vasta gua dormente! Lancei-me para l, desesperadamente, sacudido
aos gales do potro... E muito tempo galopei no descampado.
De repente o pnei, eu, rolamos com um baque surdo. Era uma lagoa Entroume pela boca gua ptrida, e os ps enlaaram-se-me nas razes moles dos
nenfares... Quando me ergui, me firmei no solo, vi o pnei, correndo, muito
longe, como uma sombra, com os estribos ao vento...
Ento comecei a caminhar por aquela solido, enterrando-me nas terras
lodosas, cortando atravs do mato espinhoso. O sangue da orelha ia-me pingando
sobre o ombro; frialdade agreste, o fato encharcado regelava-se-me sobre a pele:
e por vezes, na sombra, parecia-me ver luzir olhos de feras.
Enfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto
negro, um daqueles montes de esquifes amarelos que os chineses abandonam nos
campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre um caixo, prostrado: mas um
cheiro abominvel pesava no ar: e ao apoiar-me senti o viscoso de um lquido que
escorria pelas fendas das tbuas... Quis fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiamme: e rvores, rochas, ervas altas, todo o horizonte comeou a girar em torno de
mim como um disco muito rpido. Fascas sangneas vibravam-me diante dos
olhos: e senti-me como caindo de muito alto, devagar, maneira de uma pena que
desce...
Quando recuperei a conscincia estava estirado num banco de pedra, no
ptio de um vasto edifcio semelhante a um convento, que um alto silncio envolvia.
Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha. Um ar fresco circulava; a
roldana de um poo rangia lentamente; um sino tocava a matinas: Ergui os olhos,
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avistei uma fachada branca com janelinhas gradeadas e uma cruz no topo: ento,
vendo naquela paz de claustro catlico como um recanto da ptria recuperada, o
abrigo e a consolao, rolaram-me das plpebras duas lgrimas mudas.
CAPTULO VII
De madrugada, dois padres lazaristas, dirigindo-se a Tien-H, tinham-me
encontrado desmaiado no caminho. E, como disse o alegre padre Loriot, era j
tempo; porque em redor do meu corpo imvel, um negro semicrculo desses grossos
e soturnos corvos da Tartria, j me estava contemplando com gula...
Trouxeram-me sem demora para o convento numa padiola e grande foi o
regozijo da comunidade quando soube que eu era um latino, um cristo e um
sbdito dos Reis Fidelssimos. O convento forma ali o centro de um pequeno burgo
catlico, apinhado em torno da macia residncia como uma casaria de servos
base de um castelo feudal. Existe desde os primeiros missionrios que percorreram
a Manchria. Porque ns estamos aqui nos confins da China: para alm j a
Monglia, a Terra das Ervas, imenso prado verde-escuro, lezrias sem fim, colorido
aqui e alm do vivo das flores silvestres...
A jaz a vasta plancie dos nmadas. Da minha janela eu via negrejar os
crculos de tendas cobertas de feltro ou de peles de carneiro; e por vezes assistia
partida de uma tribo, em filas de longas caravanas, levando os seus rebanhos para o
oeste...
O superior lazarista era o excelente padre Giulio. A longa permanncia entre as
raas amarelas tornara-o quase um chins: quando eu o encontrava no claustro com
a sua tnica roxa, o rabicho longo, a barba venervel, agitando devagar um enorme
leque parecia-me algum sbio letrado mandarim comentando mentalmente, na paz
de um templo, o Livro Sacro de Chu. Era um santo: mas o cheiro de alho que exalava
afastaria as almas mais doloridas e precisadas de consolao.
Conservo suave a memria dos dias ali passados! O meu quarto, caiado de
branco, com uma cruz negra, tinha um recolhimento de cela. Acordava sempre ao
toque de matinas. Em respeito aos velhos missionrios, vinha ouvir a missa capela:
e enternecia-me, ali, to longe da ptria catlica, naquelas terras monglicas, ver
clara luz da manh a casula do padre, com a sua cruz bordada, curvando-se diante do
altar, e sentir ciciar no fresco silncio os Dominus vobiscum e os Cum spiritu tuo...
De tarde ia escola, admirar os pequenos chineses declinando hora, hor...
E depois do refeitrio, passeando no claustro, escutava histrias de longnquas
misses, de viagens apostlicas ao Pas das Ervagens, as prises suportadas, as
marchas, os perigos, as crnicas hericas da F...
Eu por mim no contei no convento as minhas aventuras fantsticas: dei-me
como um touriste curioso, tomando apontamentos pelo universo. E esperando que a
minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, numa lassido de alma, quela paz de
mosteiro...
Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse imprio brbaro
que eu odiava agora prodigiosamente!
Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Ocidente para
trazer a uma provncia chinesa a abundncia dos meus milhes, e que apenas l
chegara fora logo saqueado, apedrejado, frechado enchia-me um rancor surdo,
gastava horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria para me
vingar do Imprio do Meio!
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Retirar-me com os meus milhes era a desforra mais prtica, mais fcil!
Demais, a minha idia de ressuscitar artificialmente, para bem da China, a
personalidade de Ti Chin-Fu, parecia-me agora absurda, de uma insensatez de
sonho. Eu no compreendia a lngua, nem os costumes, nem os ritos, nem as leis,
nem os sbios daquela raa: que vinha pois fazer ali seno expor-me, pelo aparato
da minha riqueza, aos assaltos de um povo que h quarenta e quatro sculos
pirata nos mares e traz as terras varridas de rapina?...
Alm disso, Ti Chin-Fu e o seu papagaio continuavam invisveis, remontados
decerto ao Cu chins dos Avs: e j o aplacamento do remorso visvel diminura
em mim singularmente o desejo da expiao...
Sem dvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas regies inefveis
para se vir estirar pelos meus mveis. Vira os meus esforos, o meu desejo de ser til
sua prole, sua provncia, sua raa e, satisfeito, acomodara-se regaladamente
para a sua sesta eterna. Eu nunca mais avistaria a sua pana amarela!...
E ento mordia-me o apetite de me achar j tranquilo e livre, no pacfico gozo
do meu oiro, ao Loreto ou no bulevar, sorvendo o mel s flores da Civilizao...
Mas a viva de Ti Chin-Fu, as mimosas senhoras da sua descendncia, os
netos pequeninos?... Iria eu deix-los barbaramente, na fome e no frio, pelas vielas
negras de Tien-H? No. Esses no eram culpados das pedradas que me atirara a
populaa. E eu, cristo, asilado num convento cristo, tendo cabeceira da cama o
Evangelho, cercado de existncias que eram encarnaes de Caridade no podia
partir do Imprio sem restituir queles que despojara a abundncia, esse conforto
honesto que recomenda o Clssico da Piedade Filial.
Ento escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjeta fuga, sob as pedras da
turba chinesa; o abrigo cristo que me dera a misso; o vivaz desejo de partir do
Imprio do Meio. Pedia-lhe que remetesse ele viva de Ti Chin-Fu os milhes
depositados por mim em casa do mercador Tsing-F, na Avenida de Ch-Cua, ao
lado do arco triunfal de Tong, junto ao templo da deusa Kaonine.
O alegre padre Loriot, que ia a Pequim em misso, levou esta carta, que eu
lacrara com o selo do convento uma cruz saindo de um corao em chamas...
Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas setentrionais
da Manchria: e eu ocupava-me a caar a gazela pela Terra das Ervas... Horas
enrgicas e fortemente vividas, as dessas manhs, quando eu largava desfilada,
no grande ar agreste da plancie, entre os monteadores monglicos que, com um
grito ululado e vibrante, batiam o matagal lanada! Por vezes, uma gazela saltava:
e, de orelha baixa, estirada e fina, partia no fio do vento... Soltvamos o falco, que
voava sobre ela, de asa serena, dando-lhe a espaos regulares, com toda a fora do
bico recurvo, uma picada viva no crnio. E amo-la abater, por fim, beira de alguma
gua morta, coberta de nenfares... Ento os ces negros da Tartria amontoavamse-lhe sobre o ventre, e, com as patas no sangue, iam-lhe, a ponta de dente,
desfiando devagar as entranhas...
Uma manh o leigo da portaria avistou enfim o alegre padre Loriot, galgando
lufa-lufa pelo caminho ngreme do burgo, de volta de Pequim, com a sua mochila
ao ombro e uma criancinha nos braos: tinha-a encontrado abandonada, nuazinha,
morrendo beira de um caminho: batizara-a logo num regato com o nome de BemAchado: e ali a trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que estugara o passo,
para dar depressa criaturinha esfomeada o bom leite da cabra do convento...
Depois de abraar os religiosos, de enxugar as grossas bagas de suor, tirou
da algibeira dos cales um envelope com o selo da guia russa:
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isto que manda o pap Camilloff, amigo Teodoro. Ficou timo. E a
senhora tambm... Tudo rijo.
Corri a um recanto do claustro a ler as duas folhas de prosa. Meu bom
Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como ele aliava to originalmente ao
senso fino de um hbil de chancelaria as caturrices picarescas de diplomata bufo! A
carta dizia assim:
Amigo, hspede, e carssimo Teodoro:
s primeiras linhas da sua carta ficamos consternados! Mas logo as seguintes
nos deram um grato alvio, por nos certificar que estava com esses santos padres da
misso crist.... Eu partia para o yamen imperial a fazer uma severa reclamao ao
prncipe Tong, sobre o escndalo de Tien-H. Sua Excelncia mostrou um jbilo
desordenado! Porque, se lamenta como particular a ofensa, o roubo e as pedradas
que o meu hspede sofreu, como ministro do Imprio v a doce oportunidade de
extorquir vila de Tien-H, em multa, em castigo da injria feita a um estrangeiro, a
vantajosa soma de trezentos mil francos, ou, segundo os clculos do nosso sagaz
Meriskoff, cinqenta e quatro contos de ris na moeda do seu belo pas! , como
disse Meriskoff, um excelente resultado para o Errio imperial, e fica assim a sua
orelha copiosamente vingada ... Aqui, comeam a picar os primeiros frios, e j
estamos usando peles. O bom Meriskoff l vai sofrendo do fgado, mas a dor no lhe
altera o critrio filosfico nem a sbia verbosidade... Tivemos um grande desgosto: o
lindo cozinho da boa Madame Tagarieff, a esposa do nosso amado secretrio, o
adorvel Tu-Tu, desapareceu na manh de 15... Fiz, na polcia, instncias urgentes:
mas o Tu-Tu no nos foi restitudo e o sentimento tanto maior, quanto sabido
que a populaa de Pequim aprecia extremamente esses cezinhos, guisados em
calda de acar... Deu-se aqui um fato abominvel e de consequncias funestas: a
ministra de Frana, essa petulante Madame Grijon, esse galho seco (como diz o
nosso Meriskoff), no ltimo jantar da Legao, deu, em desprezo de todas as regras
internacionais, o brao, o seu descarnado brao, e a sua direita mesa a um simples
adido ingls, Lord Gordon! Que me diz a isto? crvel? racional? destruir a ordem
social! O brao, a direita, a um adido, um escocs cor de tijolo, de vidro entalado no
olho, quando havia presentes todos os embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem
causado, no corpo diplomtico, uma sensao inenarrvel... Esperamos instrues
dos nossos governos. Como diz Meriskoff, oscilando tristemente a cabea
grave... muito grave! O que prova (e ningum o duvida) que Lord Gordon o
benjamim do galho seco. Que podrido! Que lodo!... A generala no tem passado
bem, desde a sua partida para a malfadada Tien-H; o doutor Pagloff no lhe percebe
o mal; uma languidez, um murchar, uma saudosa indolncia que a conserva horas e
horas imvel sobre o sof, no Pavilho do Repouso Discreto, com o olhar vago e o
lbio cheio de suspiros... Eu no me iludo: sei perfeitamente o que a mina: a
desgraada doena de bexiga, que lhe veio das ms guas, quando estivemos na
Legao de Madrid... Seja feita a vontade do Senhor!... Ela pede-me para lhe mandar
un petit bonjour, e deseja que o meu hspede apenas chegue a Paris, se for a Paris,
lhe remeta pela mala da Embaixada para So Petersburgo (da vir a Pequim), duas
dzias de luvas de doze botes, nmero cinco e trs quartos, da marca Sol, dos
Armazns do Louvre; assim como os ltimos romances de Zola, Mademoiselle de
Maupin, de Gautier; e uma caixa de frascos de Opoponax... Esquecia-me dizer-lhe
que mudamos de padeiro: fornecemo-mos agora da padaria da Embaixada inglesa:
deixamos a da Embaixada francesa, para no ter comunicaes com o galho seco...
A esto os inconvenientes de no termos aqui na Embaixada russa uma padaria
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apesar de tantos relatrios, tantas reclamaes que, sobre esse ponto, tenho feito
para a Chancelaria de So Petersburgo! Eles sabem bem que em Pequim no h
padarias, que cada legao tem a sua prpria, como um elemento de instalao e de
influncia. Mas qu! Na corte imperial desatendem-se os mais srios interesses da
civilizao russa!... Creio que tudo o que h de novo em Pequim e nas legaes.
Meriskoff recomenda-se, e todos desta Embaixada; e tambm o condezinho Arthur, o
Zizi da Legao espanhola, o Focinho Cado, e o Lulu; enfim todos; eu mais que
ningum, que me assino com saudade e afeio
General Camilloff
P. S. Enquanto viva e famlia de Ti Chin-Fu, houve um engano: o
astrlogo do templo de Faqua equivocou-se na interpretao sideral: no
realmente em Tien-H que reside essa famlia... no Sul da China, na provncia de
Canto. Mas tambm h uma famlia Ti Chin-Fu para alm da Grande Muralha,
quase na fronteira russa, no distrito de Kao-Li. A ambas morreu o chefe, a ambas
assaltou a pobreza... Portanto, esperando novas ordens, no levantei os dinheiros
da casa de Tsing-F. Esta recente informao mandou-ma hoje Sua Excelncia o
Prncipe Tong, com uma deliciosa compota de calombro... Devo anunciar-lhe que o
nosso bom S-T aqui apareceu, de volta de Tien-H, com um beio rachado e
leves contuses no ombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma
litografia de Nossa Senhora das Dores, que, pela inscrio a tinta, vejo que
pertencera a sua respeitvel mam... Os meus valentes cossacos, esses, l ficaram
numa poa de sangue. Sua Excelncia o Prncipe Tong condescende em nos pagar
a dez mil francos cada um, das somas extorquidas vila de Tien-H... S-T diz-me
que se o meu hspede, como natural, recomear as suas viagens atravs do
Imprio em busca dos Ti Chin-Fu ele considerar-se-ia honrado e venturoso em o
acompanhar, com uma fidelidade canina e uma docilidade cossaca...
Camilloff
No! Nunca! rugi com furor, amarrotando a carta, monologando a largas
passadas pelo melanclico claustro. No, por Deus ou pelo Demnio! Ir de novo
bater as estradas da China? Jamais! Oh sorte grotesca e desastrosa! Deixo os meus
regalos ao Loreto, o meu ninho amoroso de Paris, venho rolado pela vaga enjoadora
de Marselha a Xangai, sofro as pulgas das bateiras chinesas, o fedor das vielas, a
poeirada dos caminhos ridos e para qu? Tinha um plano, que se erguia at aos
Cus, grandioso e ornamentado como um trofu: por sobre ele cintilavam, de alto a
baixo, toda a sorte de aes boas: e eis que o vejo tombar ao cho, pea a pea,
numa runa! Queria dar o meu nome, os meus milhes e metade do meu leito de oiro
a uma senhora Ti Chin-Fu e no mo permitem os prejuzos sociais de uma raa
brbara! Pretendo, com o boto de cristal de mandarim, remodelar os destinos da
China, trazer-lhe a prosperidade civil e veda-mo a lei imperial! Aspiro a derramar
uma esmola sem fim por esta populaa faminta e corro o perigo ingrato de ser
decapitado como instigador de rebelies! Venho enriquecer uma vila e a turba
tumultuosa apedreja-me! Ia enfim dar a abundncia, o conforto que louva Confcio,
famlia Ti Chin-Fu e essa famlia some-se, evapora-se como um fumo, e outras
famlias Ti Chin-Fu surgem, aqui e alm, vagamente, ao sul, a oeste, como clares
enganadores... E havia de ir a Canto, a Kao-Li, expor a outra orelha a tijolos
brutais, fugir ainda pelos descampados, agarrado s crinas de um potro? Jamais!
Parei: e de braos erguidos, falando s arcadas do claustro, s rvores, ao ar
silencioso e fino que me envolvia:
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Ti Chin-Fu! bradei. Ti Chin-Fu! Para te aplacar, fiz o que era racional,
generoso e lgico! Ests enfim satisfeito, letrado venervel, tu, o teu gentil papagaio,
a tua pana oficial? Fala-me! Fala-me!...
Escutei, olhei: a roldana do poo, quela hora do meio-dia, rangia devagar, no
ptio: sob as amoreiras, ao longo da arcaria do claustro, secavam em papel de seda
as folhas de ch da colheita de Outubro: da porta meio cerrada da aula vinha um
sussurro lento de declinaes latinas: era uma paz severa, feita da simplicidade das
ocupaes, da honestidade dos estudos, do ar pastoril daquela colina, onde dormia,
sob um sol branco de Inverno, o burgo religioso... E com aquela serenidade
ambiente, pareceu-me receber na alma, de repente, uma pacificao absoluta!
Acendi com os dedos ainda trmulos um charuto, e disse, limpando na testa
uma baga de suor, esta palavra, resumo de um destino:
Bem, Ti Chin-Fu est contente.
Fui logo cela do excelente padre Giulio. Ele lia o seu Brevirio janela,
debicando confeitos de acar, com o gato do convento no colo.
Reverendssimo, volto Europa... Algum dos nossos bons padres vai por
acaso em misso, para os lados de Xangai?...
O venervel superior ps os seus culos redondos: e folheando com uno
um vasto registo em letra chinesa, ia assim murmurando:
Quinto dia da dcima Lua... Sim, h o padre Anacleto para Tien-Tsin, para
a novena dos Irmos da Santa Creche. Duodcima Lua, o padre Sanchez para TienTsin tambm, para a obra do Catecismo aos rfos... Sim, caro hspede, tem
companheiros para leste...
Amanh?
Amanh. dolorosa a separao nestes confins do mundo, quando as
almas se compreendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe faa um
bom farnel... Ns j o amvamos como irmo, Teodoro... Coma um confeito, so
deliciosos... As coisas esto em feliz repouso quando se acham no seu lugar e
elemento natural: o lugar do corao do homem o corao de Deus: e o seu est
nesse asilo seguro... Coma um confeito... Que isso, meu filho, que isso?
Eu estava colocando sobre o seu Brevirio, aberto numa pgina do
Evangelho de Pobreza, um rolo de notas do Banco de Inglaterra; e balbuciei:
Meu reverendssimo, para os seus pobres...
Excelente, excelente... O nosso bom Gutierrez que lhe faa um farnel
copioso... Amen, meu filho... In Deo omnia spes...
Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula
branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E a vamos para HiangHiam, vila negra e murada, onde atracam os barcos que descem a Tien-Tsin. J as
terras ao longo do Pei-H estavam todas brancas de neve: nas enseadas baixas j a
gua ia gelando: e embrulhados em peles de carneiro, em roda do fogareiro, popa
do barco, os bons padres e eu amos conversando de trabalhos de missionrios, de
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coisas da China, por vezes dos interesses do Cu passando em redor sem cessar
o grosso frasco da genebra...
Em Tien-Tsin separei-me daqueles santos camaradas. E da a duas semanas,
por um meio-dia de sol tpido, passeava, fumando o meu charuto e olhando a
azfama dos cais de Hong-Kong, no tombadilho do Java, que ia levantar ferro para a
Europa.
Foi um momento comovente para mim, aquele em que vi, s primeiras voltas
do hlice, afastar-se a terra da China.
Desde que acordara, nessa manh, uma inquietao surda recomeava a
pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera quele vasto imprio para
acalmar pela expiao um protesto temeroso da Conscincia: e por fim, impelido por
uma impacincia nervosa, a partia, sem ter feito mais que desonrar os bigodes
brancos de um general herico, e ter recebido pedradas pela orelha numa vila dos
confins da Monglia.
Estranho destino, o meu!...
At ao anoitecer estive encostado sombriamente borda do paquete, vendo o
mar liso, como uma vasta pea de seda azul, dobrar-se aos lados em duas pregas
moles: pouco a pouco grandes estrelas palpitaram na concavidade negra, e o hlice
na sombra ia trabalhando em ritmo. Ento, tomado de uma fadiga mole, fui errando
pelo paquete, olhando, aqui e alm, a bssola alumiada; os montes de cabrestantes;
as peas da mquina, numa claridade ardente, batendo em cadncia; as fagulhas que
fugiam do cano, num rolo de fumaraa negra; os marinheiros de barba ruiva, imveis
roda do leme; e as formas dos pilotos, sobre o pontal, altas e vagas na noite. Na
cabina do capito, um ingls de capacete de cortia, cercado de damas que bebiam
conhaque, ia tocando melancolicamente na flauta a ria de Bonnie Dundee...
Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes j estavam
apagadas: mas a Lua que se erguia ao nvel da gua, redonda e branca, batia o
vidro da cabina com um raio de claridade: e ento, a essa meia-tinta plida, l vi,
estirada sobre a maca, a figura panuda, vestida de seda amarela, com o seu
papagaio nos braos!
Era ele, outra vez!
E foi ele, perpetuamente! Foi ele em Singapura e em Ceilo. Foi ele
erguendo-se dos areais do deserto ao passarmos no canal de Suez; adiantando-se
proa de um barco de provises quando paramos em Malta; resvalando sobre as
rosadas montanhas da Siclia; emergindo dos nevoeiros que cercam o morro de
Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no Cais das Colunas, a sua figura
bojuda enchia todo o arco da Rua Augusta; o seu olho oblquo fixava-me e os
dois olhos pintados do seu papagaio pareciam fixar-me tambm...
CAPTULO VIII
Ento, certo que no poderia jamais aplacar Ti Chin-Fu, toda essa noite no
meu quarto ao Loreto, onde como outrora as velas inumerveis das serpentinas
davam aos damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir de mim, como um
adorno de pecado, esses milhes sobrenaturais. E assim me libertaria talvez
daquela pana e daquele papagaio abominvel!
Abandonei o palacete ao Loreto, a existncia de nababo. Fui, com uma
quinzena coada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e voltei
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repartio, de espinhao curvo, a implorar os meus vinte mil ris mensais, e a minha
doce pena de amanuense!...
Mas um sofrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me
arruinado todos aqueles que a minha opulncia humilhara cobriram-me de
ofensas, como se alastra de lixo uma esttua derrubada de prncipe decado. Os
jornais, num triunfo de ironia, achincalharam a minha misria. A Aristocracia, que
balbuciara adulaes aos ps do nababo, ordenava agora aos seus cocheiros que
atropelassem nas ruas o corpo encolhido do plumitivo de secretaria. O Clero, que eu
enriquecera, acusava-me de feiticeiro; o Povo atirou-me pedras; e a Madame
Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza grantica dos bifes,
plantava as duas mos cinta, e gritava:
Ora o enguio! Ento que quer voc mais? Aguente! Olha o pelintra!...
E apesar desta expiao, o velho Ti Chin-Fu l estava sempre minha
ilharga, obeso e cor de oca porque os seus milhes, que jaziam agora estreis e
intactos nos bancos, ainda de fato eram meus! Desgraadamente meus!
Ento, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo no meu palacete
e no meu luxo. Nessa noite, de novo o resplendor das minhas janelas alumiou o
Loreto: e pelo porto aberto, viram-se como outrora negrejar, nas suas fardas de
seda negra, as longas filas de lacaios decorativos.
Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus ps. A Madame Marques
chamou-me, chorando, filho do seu corao. Os jornais deram-me os qualificativos
que, de antiga tradio, pertencem Divindade: fui o Onipotente, fui o Omnisciente!
A Aristocracia beijou-me os dedos como a um tirano: e o Clero incensou-me como a
um dolo. E o meu desprezo pela humanidade foi to largo que se estendeu ao
Deus que a criou.
Desde ento uma saciedade enervante mantm-me semanas inteiras num
sof, mudo e soturno, pensando na felicidade do no-ser...
Uma noite, recolhendo s por uma rua deserta, vi diante de mim o
Personagem vestido de preto com o guarda-chuva debaixo do brao, o mesmo que
no meu quarto feliz da Travessa da Conceio me fizera, a um ti-li-tim de
campainha, herdar tantos milhes detestveis. Corri para ele, agarrei-me s abas da
sua sobrecasaca burguesa, bradei:
Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz
da misria!
Ele passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro brao, e
respondeu com bondade:
No pode ser, meu prezado senhor, no pode ser...
Eu atirei-me aos seus ps numa suplicao abjeta: mas s vi diante de mim,
sob uma luz mortia de gs, a forma magra de um co farejando o lixo.
Nunca mais encontrei este indivduo. E agora o mundo parece-me um
imenso monto de runas onde a minha alma solitria, como um exilado que erra por
entre colunas tombadas, geme, sem descontinuar...
As flores dos meus aposentos murcham e ningum as renova: toda a luz me
parece uma tocha: e quando as minhas amantes vm, na brancura dos seus
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penteadores, encostar-se ao meu leito, eu choro como se avistasse a legio
amortalhada das minhas alegrias defuntas...
Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhes
ao Demnio; pertencem-lhe; ele que os reclame e que os reparta...
E a vs, homens, lego-vos apenas, sem comentrios, estas palavras: S sabe
bem o po que dia a dia ganham as nossas mos: nunca mates o Mandarim!
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta idia: que do norte ao
sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartria at s ondas do mar
Amarelo, em todo o vasto Imprio da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu,
to facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhes, leitor,
criatura improvisada por Deus, obra m de m argila, meu semelhante e meu irmo!
Angers Junho de 1880.
FIM
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