Agustina Bessa-Luís - A Ronda Da Noite
Agustina Bessa-Luís - A Ronda Da Noite
Agustina Bessa-Luís - A Ronda Da Noite
Agustina Bessa-Lus
2006
Badana Esquerda Todas as grandes obras implicam um segredo que nunca ser desvendado. Elas so o motivo das coisas que no podem ser ditas antes de o seu tempo ter chegado. Por intuio e no por entendimento assumido pela cultura, os artistas descobrem o caminho de novas propostas da criao do mundo. Agustina Bessa-Lus, neste romance que no se despede da conversao com a sua poca, descobre novos predicados no que parece ser apenas um caso do dia: um desfile duma companhia de arcabuzeiros chefiados pelo senhor Banning Cocq cujo retruco parece ser a finalidade da obra. No tal. O pintor excede a encomenda e atinge uma verdade conflituosa e profunda. A companhia de Banning Cocq no est disposta a obedecer ordem de marcha. Simplesmente recusa-se a ser diferente daquilo que a cidade lhe prope. Cada um faz o que a sua conscincia lhe dita. A virtude criadora da destruio est encadeada na vida pblica que a Ronda da Noite.
Badana direita Rembrandt, com as suas limitadas noes de cultura, pinta livremente, sem estar prisioneiro dos costumes e das ideias recebidas. E entra no carcter da poca que desponta e que se traduz pela frase: O direito a injustia. O princpio da autoridade entra em colapso, e quando Banning Cocq comanda a sua companhia no obedecido, porque toda a ditadura uma lei e toda a lei uma injustia. A disciplina que a guerra pretende impor uma farsa. Sucede-lhe a destruio criadora que nos sculos seguintes se ir afirmar, ainda que sob o aspecto duma desordem. O princpio da autoridade, pregado desde os plpitos polticos, guerreiros, partidrios, quer ter alcance sobre todo o ensino oficial; sobre o estado militar, os laos conjugais, o prestgio paterno e a vida pblica em geral. Rembrandt pinta, Martinho decifra. A Ronda da Noite um fenmeno mundial, ao mesmo tempo um apocalipse e uma interveno genial em que a cultura se inventa, se precipita, se nega e reflecte a destruio criadora. To visvel e perturbadora na Ronda da Noite. Como o leitor sabe: porque o turbilho de nuvens e de clares j comeou.
CAPTULO I DIA DE FINADOS Naquele ano coube a Martinho Dias Nabasco acompanhar o que restava duma famlia numerosa e abastada, ao cemitrio da terra natal. Ainda havia muitos descendentes no estrangeiro, mas a casa em que se reuniam objectos e memrias mais presentes estava praticamente desabitada. Com o mau humor que caracteriza os jovens ao ter que proteger publicamente os velhos, Martinho deu a mo av para ela no tropear nos seixos levantados da calada. Um mar de automveis cobria a estrada. Uns em movimento, outros procurando um lugar mesmo diante dos portes e entradas que prometiam no ser frequentadas na manh austera de Finados, as carrocerias brilhavam ao sol aberto. O cemitrio, que Martinho conhecera ainda meio rural, com alguns jazigos de capela elevando-se sobre as campas de terra, alargara-se, apinhado de sepulturas recentes; os mrmores e o granito polido davam ao camposanto um aspecto de cozinhas bem arrumadas, alegradas por braadas de flores. Entre a massa de crisntemos, despontavam orqudeas claras. Era um luxo, uma glria prestados aos mortos. E que mortos! Martinho admirava os rostos patticos em caixilhos dourados e as letras tambm douradas nas lpides novas em folha. - Parece que morreram todos ao mesmo tempo - disse, ainda a segurar a mo da av, fria e de dedos esquelticos e bonitos. - Tem compostura e sobretudo no me faas rir. - Eu? A av que se ri de tudo sem compaixo. Sabe bem que sim. Como o nosso jazigo est estragado! Mas tem dignidade assim como est. - O fio da sua camisola pegou-se balaustrada do jazigo que fora inovador no seu tempo. Era cercado por troncos fingidos de cimento, o que na poca devia representar o mximo, se no de bom gosto, pelo menos de ousadia. Comeava a poca do beto, e o velho engenheiro, de quem Martinho mal sabia o nome, deixava ali a sua marca desafiadora. Era av do av, o que para Martinho vinha a dar um parentesco distante e labirntico. Pelos retratos, via-se que era um homem elegante, no seu fato de pied-de-poule cinzento e a barba que provavelmente lhe escondia o queixo fraco. O mesmo que Martinho herdara, um pouco fugidio, o que fazia sobressair o nariz avanado e estreito. Um nariz de judeu, e est tudo dito. No deixava por isso de ser bonito, o jovem Martinho. Era doce como o acar quando queria e paciente como Cristo. Se bem que, tambm como Cristo, tivesse sbitas cleras que s a av compreendia. - Isto vai passar. um homem e os homens so imprevisveis - dizia ela me de Martinho, a sua filha Paula, uma morena de olhos soberbos, quase verdes, e que no tinham perdido ainda o brilho. A av passara o cabo dos cinquenta anos com alguma dificuldade, e um fibroma que se desenvolvera
nessa idade diminua-a a ponto de a pr nervosa e pronta a desfazer-se em lgrimas. Consultou em Paris um mdico velho e compassivo; passou-lhe uma receita que ela aviou Praa da pera, indo depois comer ostras entre desenganada e ligeira de sentimentos. Como Proust, Martinho Dias Nabasco crescera entre duas mulheres que o amavam. Era um amor sujeito a mudanas, como tudo na vida. Nesse ano, Paula Nabasco demorou mais tempo as frias em Biarritz e no pde ir florir a campa dos mortos, cada vez mais distante na provncia que fora o bero dos Nabasco e que se urbanizara at ficar irreconhecvel. O que ligava Paula a Biarritz era uma velha histria de famlia; o exlio dos Nabasco nos tempos da Repblica e tambm a fortuna de que dispunham para se fazerem respeitar sem se olhar ao nome ou origem. Duma irmandade de muitos irmos, que mais parecia convento do que lar de propores normais, os Nabasco tinham-se corrompido a ter poucos filhos, depois da guerra de 14, quando a vida se tornou bizarra e divertida. Ter s um filho ou um "casalinho" tornou-se um capricho da burguesia bem nascida. O tempo do av Nabasco, o do jazigo em beto armado, fora o ltimo da procriao natural sem o recurso ao preservativo e ao coito interrompido. Teve nove filhos, dos quais trs eram deficientes mentais, de instintos matreiros e pirmanos, e assim por diante. Mas Maria Rosa Nabasco, a av de Martinho, limitou-se a dar luz um rapaz e uma rapariga a quem ps o nome de Paula, nome que ainda no existia na famlia e que ela, a av, achava indispensvel numa genealogia catlica. S. Paulo era, entre outros, o seu amigo preferido por razes que ela dificilmente abordava mas que no eram as mais cannicas. At aos nove anos, Martinho Nabasco esteve convencido que o mundo era partilhado por pessoas inteligentes, inventivas e criadoras. Quando se apercebeu que havia muita gente "parada", como a av Maria Rosa dizia, isso perturbou-o. Numa famlia em que at os deficientes mentais eram bem servidos de massa cinzenta que dava origem a anedotas, ditos de esprito e calembures geniais, o facto de se perceber que aquilo no era tudo e que podia haver verdadeiras hordas de brutos e de melanclicos activos e passivos, teve grande efeito em Martinho. At os Cunhas, que eram por tradio criados dos Nabasco, constituam uma elite de gente apurada de gostos e de entendimento. Os Cunhas eram sete irmos e uma irm chamada Ana. Muito feia, ao contrrio dos outros, que eram elegantes e bonitos rapazes, ela detinha o esprito mais elevado e a graa correspondente. Nunca casou e Maria Rosa chamava-a muitas vezes para lhe alegrar o corao, que era dado a sbitas apreenses, como o rei David. - Acho que somos parentes. Tambm eu gosto de msica como remdio e no como prazer - dizia. Os Cunhas eram bons tocadores de viola e cavaquinho, sabiam cantigas completamente graciosas e cozinhavam muito bem. Durante duas geraes foram presentes na casa dos Nabasco e contriburam para a felicidade dos dias que nem sempre eram de aproveitar.
Atrs de Maria Rosa e do neto Martinho ia uma herdeira dos Cunhas e que carregava as flores do dia de finados. Simples crisntemos, novelo, brancos e redondos como nuvens brancas e redondas. A Elisa era uma mulher robusta que vestia um uniforme azul-marinho, ou o que ela fazia parecer um uniforme, com colarinho e um gilet cizento a completar. O efeito era sbrio mas parecia uma extravagncia numa poca em que os costumes eram ditados pelos espaos de pronto-a-vestir. Ela orgulhava-se de no se converter aos jeans, se bem que ao preferir as saias de pregas estava a valorizar o porte de matrona. - Ainda havemos de ver o dia em que os homens usem saias. So mais cmodas e mais arejadas dizia. Estabeleciam-se grandes discusses em volta de questes pequenas, e aquilo despertava o esprito e tornava-o incandescente. Na hora perto do jantar, quando se entrava na cozinha para destapar as panelas e provar os molhos, acontecia aquela variada conversa sobre palavras, hbitos e o que os explicava. Martinho j no conhecera a casa da Rua de Belomonte que tinha a cozinha e a sala de jantar no terceiro andar voltado ao rio. Ao que parecia, era uma casa mtica. s seis horas da tarde abria-se a porta do quintal aos ces e eles subiam pelas escadas como um esquadro da guarda. Iam para a cozinha, derrubando cadeiras, abanando as caudas como chicotes. Ganindo de alegria. Eram ces de caa; e embora no houvesse mais caadores em casa, alimentava-se essa tradio com os setters bonitos, cor de fogo cujo plo luzia ao lume do fogo de lenha. Porque at muito tarde se cozinhava a lenha e se usava a lenha para os foges de sala. Ouvia-se o crepitar das achas secas como um rudo de bom augrio na manh enevoada. O rio tinha ainda humores de estao, crescia no Inverno e acumulava nas margens laranjas e traves partidas; e algum cabrito morto vinha na corrente, rpido na flor das ondas j invadidas pelo mar aberto. Tudo isso Martinho no tinha conhecido. Nem a me dele, Paula, que se distinguia por ser dessas mulheres enclausuradas ainda, e que aprendem equitao para o caso de ir viver em grande estilo com um senhor das lezrias ou com um lorde ingls. Imaginaes que se desvaneciam ao primeiro baile de debutantes, j em declnio mas ainda consultoria de casamentos. Martinho apertou, sem querer, o brao da av ao ter diante dos olhos a pesada pedra do tmulo. Era de facto terrvel, com as argolas de ferro enferrujadas e o musgo negro que a cobria. "No vou deixar que a metam aqui" - pensou, desolado. E um toque de p-de-arroz na face dela, junto orelha esquerda, enterneceu-o como o rasto duma mulher bonita. "At ao fim somos amantes uns dos outros" - pensou, triste. A educao de mulheres dera-lhe um descaramento ritual, sem nada de perverso, s amadurecido pela reflexo. Deteve-se a olhar para as campas cobertas de inscries saudosas, de flores caras, de candeeiros vermelhos dentro dos quais uma chama curta ia sucumbindo. A morte tinha-se tornado uma vaidade mais, uma festa de anos em que s faltava o "parabns a voc" mas no a mesa abundante. - Tem frio, av? - perguntou.
- No, s um pouco de fome. Mas, espera: no fome, talvez no seja. A morte excitante. Esta gente toda vai comer demais e enrolar-se na cama com pegas e tudo. No se devem frequentar lugares destes na minha idade. So lbricos e quase mal afamados. Um dente dela abanava quando ela falava, e Martinho podia distinguir um ligeiro ciciar da voz que dantes no tinha. "Pronto, a velhice est a bater-lhe porta. No vamos pensar nisso, no quero pensar nisso. Pronto, acabou, pensamentos vagabundos!" Beijou-a, a rir-se, e notou que os cabelos dela tinham um cheiro de ferro frisado. Os cabelos. De repente as mulheres puseram-se a usar franja e Nietzsche disse que era para esconder a testa e o que ela presume: inteligncia, independncia de vida, sexo, gerncia dos negcios e outras coisas. Por mais que olhasse para todos os lados, as mulheres no pareciam diferentes. Quer dizer: talvez se adaptassem com mais dificuldade a um destino de donas de casa e mes de cinco filhos ranhosos e impertinentes. A verdade estava vista, a crueldade era uma forma de razo prtica, mas isso sempre existira entre as mulheres e os homens tambm. S uma educao muito rgida as controlava. Casavam-se por amor, mas o amor inclua tudo o que se pode imaginar como na histria do Humpty Dumpty. Cascas de ostras e peles de raposa ou daquelas guas de Colnia estafadas cujos frascos eram sempre uma ralao pois no pertenciam a nenhum lugar: nem ao lixo nem a uma coleco, nem para encher outra vez. Paula Nabasco disse que outra vez que lhe dessem um frasco desses o mandava de volta de presente para outra pessoa. - Eu s gosto de lavanda. Mas quando fiquei grvida do Martinho enjoei a lavanda e nunca mais a pude suportar. Isto deve ter um sentido, no sei. Paula penteava os compridos cabelos pretos. To pretos quanto podiam ser, com reflexos metlicos. H coisas que se lem nos livros mas que, nem por isso, deixam de ser assim. Negro asa de corvo existia. Eram os cabelos de Paula. "A est uma coisa que no se desfaz depressa. O cabelo" - pensou Martinho. Ps-se a olhar para a cabea das pessoas que enchiam o cemitrio e ficou desconcertado. Pareciam todas como as dos condenados guilhotina ou ao machado, pontas cortadas ao acaso segundo o critrio do barbeiro da priso. Os pensamentos dele voaram noutra direco, conduzidos por uma curiosidade que o fazia memorizar os momentos menos interessantes da vida. Coisas de que ningum se lembrava saam da memria como ratos dum queijo gigantesco. Era uma ideia tola mas divertida como as crianas costumam gostar. A av apoiou-se ao gradeamento da campa e ficou um instante recolhida depois de fazer o sinal da cruz. Martinho tomou um ar compungido, se bem que com a av no se podia ter a certeza de nada. Decerto estava a pensar em coisas com-pletamente alheias ocasio e que tinham que ver com
necessidades bsicas, pequenas compras ou contactos com as amigas. Tinha poucas, grande parte delas tinham morrido, o que a no a afectara muito. Os velhos so para morrer e as capoeiras devem ser remoadas, com o cacarejo alegre das novas frangas. Sempre o galo de plumas ruivas e brilhantes a fazia rir. - Parece um mosqueteiro com esporas e tudo! - Ela ajuntou as pregas do vestido e endireitou-se como se lhe fossem tirar uma fotografia. Odiava que a fotografassem. Tinha, como muitos povos antigos, um receio de que a fotografia lhe levasse a alma, o que no deixava de ter algum fundamento. Martinho pensou que ela tinha a pose perfeita para ser retratada, tendo aos ps, at cintura, a massa de crisntemos brancos e enormes. Era uma mulher linda, mais ainda do que fora em nova. Paula tinha muitos cimes dela, passara o tempo a imit-la, rastejando em volta dela como um cozinho que implorasse carinhos. A av era parca em beijos e afagos. - "Do-me volta ao estmago, as crianas felizes dispensam-nos muito bem" - dizia. Cabelos pretos. A primeira vez que Martinho verificou o indestrutvel dos cabelos foi quando abriram o tmulo de Patrcia Xavier para procederem a reparaes de alvenaria. Os cabelos estavam intactos. Enrolados debaixo da cabea reduzida a caveira completamente descarnada, pareciam uma almofada. Martinho estava presente porque o jazigo pertencia aos Nabasco e, por deferncia, estando o tmulo dos Xavier ocupado pelos sucessivos mortos desta famlia, Patrcia ficou sepultada numa antiga capela do cemitrio da Lapa, duas vezes assaltada depois da Revoluo dos Cravos. Tinha as propores majestosas dum andar de boa rea, um T1, digamos assim. Velhas rendas pingavam do altar, donde os candelabros de prata tinham sido roubados; e, por terra, jaziam alfaias do culto, o suporte do Evangelho e umas galhetas com borras de vinagre. O lampadrio, que viera de Veneza, tambm faltava. O ar era hmido, havia infiltraes e os ratos tinham rodo papis, talvez pagelas com a vida dos santos ou restos de bouquets amarrotados como lixo e deixados a um canto. E os cabelos. Espessos, abundantes, como tantas vezes Martinho vira em Patrcia. Ela ia jogar bridge com Maria Rosa Nabasco, s quartas-feiras. Ao todo, quatro mulheres vestidas a rigor e que calavam luvas de sude e tomavam ch na confeitaria Oliveira, uma vez por outra, quando saam para compras. Eram mulheres em que se sentiam os hbitos caros, que no perguntavam o preo das coisas, que se limitavam a "mandar a casa". No estavam dependentes do oramento e, praticamente, eram seguras do marido que tinham e da modista que as vestia. O gnero de mulheres de que Maria Rosa Nabasco era a ltima, como relquia dum tempo acabado, tempo de privilgios que tinham a sua moda, como os chapus e as receitas de pastelaria e os pudins sem um p de farinha. Patrcia Xavier fora a primeira "a faltar", como se dizia. Era alta, sempre bem calada e com meias to finas que era preciso vesti-las com luvas, como se recomendava sempre na embalagem de origem.
No se podia imaginar que ela morrera dum aborto mal sucedido, mas foi assim. O espanto varrera as salas descobrindo o segredo mais do que era permitido. Mas, para Paula, que tinha doze anos, aquilo ficou encoberto e ela no sofreu nenhum prejuzo no seu Natal em que tudo correu normalmente; sem faltarem os presentes de Patrcia Xavier, coisas de preo como era costume ela dar, caxemiras e estojos para as unhas de pele de qualquer bicho raro, ventre de aligator ou assim. Patrcia foi sepultada na capela dos Nabasco, no porque no houvesse lugar no jazigo de famlia dela, mas porque se levantou uma resistncia muito dura devido s causas da morte. Um aborto no era to extraordinrio e sobretudo depois dos quarenta anos as mulheres recorriam aos mdicos para se recomporem dum acidente que, na verdade, tinham previsto mas no acautelado. Patrcia disse apenas a Maria Rosa o que tencionava fazer. - O Rogrio Conceio, em oito segundos, resolve isto. Oito segundos o recorde dele. Maria Rosa olhou para ela com inquietao. No a censurava, mas tudo aquilo lhe parecia parte duma maldio que pesava sobre as mulheres. Algum lhe tinha dito que o mundo s tinha salvao quando as mulheres deixassem de ter filhos e os sexos fossem um s. Era inconcebvel, mas talvez se chegasse l um dia. - Onde ouviste isso? - disse Patrcia. Aquilo parecia-lhe um atentado sua dignidade, embora ela visse, nesse momento, a sua dignidade bastante comprometida. - No sei. - Comigo no faas mistrios. - No fao mistrios, no sou pessoa para isso. Foi uma coisa que li. - O que andas tu a ler, menina? Depois da Lady Chaterley julguei que j tinhas lido tudo. E agora vens-me com essa do sexo nico. Fazes ideia do que ests a dizer? - Fao. J no te metias em sarilhos nem ias parar a uma clnica onde te remexem nas entranhas como se estivessem a abrir um cofre em oito segundos! J ser perito de arrombamento! Fazes-me rir e chorar ao mesmo tempo. - Tu nunca choras, Maria Rosa. - s vezes. Chorei um dia, quando tinha quatro anos e me cortaram o cabelo rapaz. Dei gritos tamanhos que at se ouviram nos vizinhos. E no era pequena distncia; ns vivamos num chal dentro dum jardim grande. - No querias parecer um rapaz. - No sei. Era uma grande pena. Nunca me senti to infeliz depois disso. s vezes pensava no que me fez chorar tanto e no encontro o motivo. Morreu-me um filho em pequenino mas no a mesma coisa. Ests certa que sermos mulheres a origem de todo o mal? O desejo dos homens, o prazer com
que convencem o desejo, so coisas horrveis, se lhes pintarmos toda a sorte de maldades que so o excitante necessrio. J agora que falaste de Lady Chaterley, essa mulher tremenda e sem compaixo. Sem compaixo, o sexo uma batalha vulgar, um crime como no h outro igual. - Deixas-me arrasada. Agora no sei se hei-de fazer o aborto ou no. Dizes bem: aquele burro do Lawrence no percebeu nada das mulheres. Ou s percebeu o que era para perceber por ele prprio. No houve o primeiro Ado mas a primeira Eva. D-me mais uma pinga de ch. Onde compras o ch? A mam comprava-o numa loja de modas, era chique. Nunca percebi a diferena do que chique e do que no chique. Disse-me o Mariano, que professor na Universidade: "Porque que o amarelo no h-de dizer com o rosa?" Depois as cores psicadlicas ficaram na moda. uma questo de votos e no de gostos? O que que faz o voto? - Tem pena de mim. Choveu todo o dia e a chauffage avariou. O voto uma inveja compulsiva, a tens. Passados dias Patrcia Xavier morreu e aquilo entendeu-se como um desastre. Os mdicos calaramse no diagnstico, o que levantou mais suspeitas, tanto mais que ela tinha recorrido a uma parteira e no teve a assistncia do tal experiente arrombador de cofres. Maria Rosa afastou do esprito a ideia de que a amiga se achara invulnervel e que no era possvel acontecer-lhe nada. No viu o perigo, quando o perigo nos rodeia por toda a parte e no nos d trguas. H quinhentos milhes de anos ramos mais espertos, quer dizer, o crocodilo dos pntanos com o seu olho que no se sabe se est a dormir ou acordado. Talvez no dormisse nunca e os seus quatro comandos cerebrais estivessem sempre alerta. Sendo assim, no nos temos aperfeioado, mas sim a natureza cometeu erros uns atrs dos outros. Que vida! Patrcia Xavier ia impecavelmente penteada quando foi para o caixo; e parecia bem, que era o que ela mais desejava. O velho "pardieiro" dos Nabasco, como lhe chamava o doutor Horcio Assis, merecia agora o nome. O estrado que lhe dava acesso a cavalo tinha sofrido derrocadas tais que era um perigo frequent-lo. Diferente das outras propriedades cuja casa se encontrava a meia-encosta, aquela fazia-se notar porque se erguia no cimo duma colina. A cor amarela, na tradio vienense, tinha desbotado a ponto de parecer parda. Rodeava-a uma srie de planos que iam at um ptio que justificava em tempos a entrada principal e que guardava a beleza primitiva, hmida, musgosa e tranquila. E dentro, como acomodaes, havia trs salas consecutivas com retratos de famlia e canaps de jacarand. O mais estranho era uma cpia nas dimenses naturais da Ronda da Noite de Rembrandt. Ocupava toda uma parede da sala de jantar, e os ps do capito Banning Cocq e do seu lugar-tenente tocavam o cho. Para prevenir qualquer avaria, um dos famosos canaps protegia a parte baixa do quadro. O que durante os anos de infncia de Martinho, lhe causava terror e curiosidade.
Os Nabasco viveram sempre de heranas, de peclios de tios e tias, da chegada de arcas com enxovais intactos, de loias, livros e mais retratos de damas rgidas e fessimas. Nos Nabasco a beleza chegou tarde com os casamentos que j no eram com primas, mas bonitas passeantes de Carreiros, na Foz do Douro. Dantes, o casamento planeava-se desde o bero; depois passou a ser mais inspirado e insubmisso. Justamente Maria Rosa pertencia a essa nova era dum aps-guerra em que a Europa, ao recompor-se dos seus desastres, produzira um prodgio de cultura, a cultura de imitao. Era bonita, fazia ginstica e punha de parte o "bordado a cheio" e os romances de Delly. Alm disso, convertera-se a uma religio a que chamava personalidade. Com isso da "personalidade", Patrcia Xavier, com quarenta anos feitos, faleceu de processo abortivo como uma personagem de Stefan Zweig. Era mais nova que Maria Rosa seis anos, que tinha j um neto que falava e andava, Martinho Dias Nabasco. O Outono tinha feito a sua apario e, entre nuvens ligeiras, um sol derretia o gel dos cabelos. Quase todos, rapazes sobretudo, usavam um gel que lhes espetava o cabelo como pregos e isso dava-lhes um ar marginal como eles queriam. Martinho continuava a segurar a av pela cintura, o que o obrigava a torcer-se um pouco. Todas as vezes que ela falava inclinava-se para a ouvir, embora no fosse preciso. Era um tique que impunha submisso fazendo-a levantar o rosto para lhe chegar ao ouvido. - Como ests surdo, Marto! Na nossa famlia fica-se surdo muito cedo. - No estou nada surdo. E se estivesse no vergonha nenhuma. - No era para Beethoven, mas nem todos so como ele. Em ti no passava dum defeito fsico, quando nele era outra coisa. - Outra coisa, o qu? - Um aviso, no sei. Conheces aquilo de Deus que o marcou alguma coisa lhe encontrou?! - No conheo. Por favor no meta os ps na gua. Olhe esse degrau. - Ele era mau, como todos os msicos. Esta cancela tem que ser arranjada. Algum tem que arranjar isto. - um trabalho difcil - disse Elisa, a sacudir de cima dela os restos das flores. - Difcil, como? Temos que o pagar at que parea fcil. o nico meio. Onde est ele? Martinho! A voz tomava um acento desesperado quando o chamava. Como se ele tivesse morrido e ela no o soubesse ainda; quando j todos estivessem informados e preparassem o luto. No como dantes, as tarjas de l preta no brao ou na lapela, o fumo no chapu. Sabia-se como se dirigir a uma pessoa assim; com alguma cerimnia, descia-se do passeio para ela passar, levantava-se alto o guarda-chuva para lhe dar lugar direita. Um rpido esboo de d no pregar dos lbios e ele ou ela, l iam, com a
troca dum cumprimento mais quente. Dizia-se, ao falar do morto: "que Deus tenha, que Deus guarde..." Ou ento, como na gente dos Cunhas que eram, com toda a certeza, cristos-novos: "Deus o tenha na sua santa guarda". Conheciam-se os conversos pela sua rigorosa presena nos sacramentos. Ajudavam missa, tocavam na igreja. Um olhar em que nadava um certo abandono da verdade, fazia-os diferentes. Os Cunhas eram diferentes, diga-se o que se disser. Olhem para Elisa (o pai dela chamava-se Eliseu e o ltimo filho, o stimo, era Ado para no "correr o fado" e no ter natureza de lobisomem). Tem graa que at Maria Rosa Nabasco acreditava nisso. Se algum esperasse o amaldioado, numa encruzilhada, meia-noite, e lhe fizesse sangue, o mau encanto acabava. Para tudo h uma soluo, era o que aquilo queria dizer. Viu Martinho que andava longe a ler as lpides e investigar o nome dos antigos ali sepultados. Vizinhos e parentes, reduzidos a um feixe de ossos no melhor dos casos; porque de tempos a tempos, por razes de limpeza ou de obras, tudo era varrido para a vala comum, pesquisando-se o ouro das prteses dentrias, uma renda para o coveiro, que lhe aproveitasse. Porque coveiro e carrasco so afinidades negras. Martinho no se lembrava de ningum. Velhos lavradores e os filhos deles, com os anos de opulncia marcados nas mos brancas de unhas com estrias, ainda ele vira na casa do av Nabasco. Mas do bisav Nabasco, nem sombras. O primeiro homem que estudara na famlia fora um dos rapazes que fora para Coimbra cursar Direito; e depois disso no fez mais nada na vida, que os Nabasco no eram para trabalhar, para isso havia criados, caseiros, hortelos, rapazes que at aos dez anos pediam esmola e depois se empregavam nos armazns e nas terras, a colher azeitona. Alguns faziam um ofcio de faz-tudo. Acompanhando caadores, limpando o calado, a fazer recados e a mandriar o mais que podiam. Entre eles e os filhos da casa fazia-se uma amizade que durava uma vida. Eram alcoviteiros fiis, carregavam segredos com austeridade do corao mas no lealdade absoluta. Mentiam muito e eram mal agradecidos. Ser pobre era um ofcio que s vezes compensava. Martinho no teve desses contratos de convivncia em que cabia tudo, a clera, a vingana e a dedicao pura e clara. Era o mais urbano da casa, fez Filosofia e Letras, passava um Vero inteiro a ler o sculo dezassete francs e ingls. Foi uma espcie de rfo por vocao, porque quando o pai morreu ele sentiu um pouco de alvio; e quando me, Paula, casou outra vez, com um oficial da Marinha, ele agradeceu ficar com a av para sempre. Como se ela fosse imortal, destinada a uma vida faranica e substancial, rodeada de objectos de toilette e vestidos caros, como ela gostava tanto na vida como na morte. Muitas vezes, Martinho surpreendia os olhos dela banhados de lgrimas. No chegavam a correr, pareciam fazer parte daquele azul-pardo das pupilas. Mas eram lgrimas que lhe eram destinadas, a ele,
Martinho Nabasco. Envergonhava-se de a preocupar; e assim, voltou para trs, deixando a leitura da inscries lapidares e saltando uma ou outra campa escurecida pela chuva. - Vamos embora - disse Maria Rosa. Era ainda uma mulher alta nos seus sapatos rasos que, no Vero, eram sempre tnis brancos. Tinha a elegncia das propores e aliava o desdm mais fina escolha dos pormenores. Surpreendia sempre, com os seus ombros largos e as charpes compridas como quedas de gua. Martinho quase a abraou para a conduzir ao carro; e Elisa, que guiava e no ele, fez-se esperar um pouco porque ela tinha orgulho na arte de se fazer indispensvel. Fingia sempre contratempos vrios. Ora dizia faltar a gasolina, ora pressagiava tempestade ou censurava o trnsito, o tempo, as estradas, carregando de improprios os que mandam. Havia uma certa felicidade nessa soltura de humor descontente. E Maria Rosa deixava-a falar. - Ela gosta do delito dos outros. Enfraquece os dela. - Que pacincia a tua, av! O que eu acho que ela malcriada, rabujenta e intratvel. Merecia ser Messalina ou Agripina ou outra como elas. - Deixa-a l, que tem doena que chegue. - Doena? Que doena? - Coisas da blis negra, como dizia o Hipcrates. Pode dar em cancro, entendes? - B! Nunca se sabe quando ests a falar a srio ou a brincar. No outro dia ainda foram ao cemitrio da Lapa onde estava a gente do Porto, ou parte dela. Tambm estava l uma criada, a Dores, que foi casada e se separou por no se adaptar a espaos pequenos. Em geral, os homens no gostavam das criadas de ricos para casar. Eram dissipadoras e gastavam demais; propensas boa cozinha e aos costumes fidalgos, davam esmolas acima das posses que tinham e eram orgulhosas para com os vizinhos. - No por nada mas no me dou com maltrapilhos - diziam alto, para que as ouvissem. O marido batia-lhes. Se para alguma coisa Maria Rosa tinha boa memria era para as empregadas que tinham servido os Nabasco. De solteira, de casada e j no estado em que estava, o de viuvez. "O estado natural da mulher", como dizia Mat, ou Mateus, um escritor dotado e com algumas luzes de Histria. Era familiar dos Nabasco, um primo talvez, e dava pistas para as conversas de domingo. Ao domingo (aquilo era muito antigo) os almoos prolongavam-se at s cinco da tarde; se Maria Rosa se esquecia que devia levantar-se primeiro, ningum se mexia, e os jarres da China, aos quatro cantos da sala, pareciam convivas empanturrados de dobrada com feijo branco ou carne assada para quem queria outra coisa. Eram almoos abundantes, com muito acar e bebidas fortes. S mais tarde que se serviu coca-cola, que tinha os seus adeptos porque "limpava os canos". As criadas j no acabavam o resto dos copos
nem eram gulosas como dantes. Faziam dietas e sabiam muito de cremes faciais e de fibras, que comiam ao pequeno-almoo, em vez das tigelas de caf com sopas de po fresco. s vezes, o duro era para os patres, salpicado de gua e metido no micro-ondas. Sabem porque as mulheres eram gulosas dantes? - dizia Mat, segurando com fora os braos da cadeira como se fosse lanar-se gua. - Porque eram tratadas como os ces da tribo e s lhes tocavam os ossos. Habituaram-se a roubar comida para elas e para os filhos esfomeados. Mesmo estando saciadas roubavam sempre, como Yolanda, que tinha debaixo da cama uma mala com provises, como os antigos seminaristas. - No acredito - disse Maria Rosa, franzindo os olhos para evitar o fumo do cigarro. Fumava durante o dia todo, esmagando o resto mal ardido no cinzeiro. - No gosto que se fale dos criados como se fossem cegos e surdos. Eles tm o ouvido muito apurado e tambm sabem ler nos olhos, como eu os ensino. Um piscar para no servir mais vinho; dois pestanejos para trazer gua com gs para limpar uma ndoa. No se imagina como os homens sujam as gravatas com salpicos da salada. - Sempre os homens! - E Mat, com uma cabea poderosa e olhos de pastor, pequeninos e metidos nas rbitas, decerto de vigiar o rebanho, dava-se muito ares de proletrio rico; tinha muitos filhos por fora e dinheiro em quantidade suficiente para ser avaro. Havia um parentesco qualquer com os Nabasco que ele, de vez em quando, fazia entrar nos seus romances. Esteve muito tempo apaixonado por Paula e ela chamava-lhe o matricida porque estava convencido que s Maria Rosa se opunha aos seus amores. - Eu no me oponho a nada - disse ela -, o estilo Lao Tz, ou coisa que o valha. Vencer cedendo, cansar o inimigo sem lhe dar luta. Isto dito assim mesa de jantar um bocado indigesto. - O Nabasco, que depois morreu dum enfarte, bateu no copo com a colher do caf e todos pensaram que ele pedia silncio e que ia falar. Era o dia de finados ao almoo e comiam rojes com sangue. Coisa que Martinho achava absolutamente primitivo e alvar. - No me posso lembrar que estou a comer um animal domstico, quase uma pessoa de famlia. Algum fora para o piano e improvisara um concerto de jazz no sem algum talento. Toda a gente tocava alguma coisa um pouco acima do amadorismo. Os Nabasco no suportavam amadores, fosse na arte, fosse nos negcios ou na poltica. Mas o pas estava cado na rede larga dos amadores que navegavam pela internet moldando o perfil com os resduos do esprito passado. Durante trs dias, todos os anos, honravam os mortos da famlia com visitas s campas que estavam meio ao abandono durante o resto do tempo. Eram trs jazigos de dimenses no colossais mas mesmo assim do tipo mausolu. O do Porto era o maior, uma capela onde se podia celebrar missa e que tinha dentro espao para seis ou sete pessoas e genuflexrios forrados de veludo carmesim. Os ratos deram em roer uma parte, decerto tentados pelos pingos de cera. Os candelabros de prata, como j disse,
tinham sido roubados, e o lampadrio, tambm de prata, cara do tecto, provavelmente devido a infiltraes da chuva. Maria Rosa sentou-se, verificando antes se o assento oferecia segurana. - J no sei muito bem quem est aqui. Mexeram com isto, faz alguns anos, porque apareceu um caixo deslocado e disseram que tinham metido nele uma pessoa viva. No acredito. Foram s os gases que explodiram. - O barulho devia ter acordado os mortos - disse Martinho. E Elisa olhou para ele, marcando o silncio como uma reprovao. O culto dos defuntos era para ela sagrado e acreditava na ressurreio da carne no dia do Juzo Final. Entornou deliberadamente a gua da limpeza a ponto de a fazer chegar aos ps de Martinho. - Saia l para fora que me est a estorvar. - Parecia um anjo da vingana com o seu fato preto at s orelhas, donde tirara os brincos de ouro. Era o nico dia do ano em que se separava dos brincos. Martinho obedeceu-lhe, um pouco envergonhado. Era dado a um esprito ligeiro e no deixava escapar a ocasio para um dito vivo. A av dizia que por a se conhecia o mau carcter que ele tinha. Mau carcter no sentido de fazer mal a algum, atraioar um amigo ou viciar um testamento. Coisas dessas a que a famlia era sujeita como a uma doena de pele. Se a expresso "em bom pano cai a ndoa" tinha aplicao, era nos Nabasco, burgueses de quatro geraes que foram acumulando bens e tambm foram merecendo a confiana da cidade para quem o dinheiro no suja as mos nem corrompe a memria. No entanto, Maria Rosa punha de parte o velho Nabasco fazedor de fortunas, rspido como tudo, intransigente, perfeccionista. Depois dele fora o dilvio dos decadentes, amigos mas no sedentos de mulheres e com o gosto pelas viagens. As letras entraram na famlia pela porta grande, e a menina Margarida Isabel, apoquentara as pessoas l de casa com o seu gnio. Era cunhada de Maria Rosa e parecia, no meio dos Nabasco, uma flor de paixo, com os seus versos e a aristocracia que lhe corria no sangue. Descendia ela duma aafata da rainha D. Mariana, mulher do nosso rei-sol D. Joo V, e no deixava que isso esquecesse a ningum. Muito menos a ela, Margarida Isabel, ou Marg, para abreviar, que se lembrava de tudo que lhe acontecera desde que viera para o Porto para casar. As irms, Ana e Estefnia, ficaram para sempre em Lisboa, donde tambm casaram sem mudar de stio, posto que vivas voltaram casa paterna, na Graa. Marg ajeitou-se mal com a famlia Nabasco que achava petulante, ainda que sem dote. Os rapazes beijavam a mo s senhoras e at s solteiras, estivessem enluvadas ou no. Muito do trato de corte tinha-se perdido, mas Marg, como emigrante que era, procurava lembrar as antigas tradies. No que ela era perfeita era na poesia. Tinha o sentido nobre do verso, sem cair em melancolia, e, para ela, no seu ntimo, dava pouca importncia fidalguia cheia de bons 27 sentimentos para com os criados e as amas de leite. Ela tinha um rabo de judeu ao fim das costas, como se dizia; e por isso era
capaz de malcia fina e fantstica. Sofreu bastante com o desdm das cunhadas, menos de Maria Rosa que sentia pena dela pelo marido que tinha, to sem imaginao que no distinguia um boi duma vaca nem o ch preto do ch verde, e coisas assim. Mas tambm verdade que no tinham muito que dizer uma outra e que havia entre elas silncios de "cortar faca". Quando Paula Nabasco se casou pela segunda vez com um capito da marinha, Maria Rosa tomou Martinho sua conta e deixou de se interessar pelo resto dos parentes. Marg acabou por voltar para Lisboa com os filhos, vivendo de rendimentos escassos como se fossem abundantes. Depois morreu, no sei como. Havia nessas famlias um esprito de cl que as fazia bonacheironas, com prazenteiro gosto pelos almoos de domingo ou os bailes em que se comiam doces de coco predilectos dos homens. Mas se algum estranho era introduzido na sala, em geral por leviandade dum dos rapazes da casa, logo se amotinavam os coraes e inventavam partidas para o afugentar. Em Lisboa era o mesmo. A democracia cobrira de beijos a massa cinzenta dos novos poderes; todavia, por detrs da graa crist e a aparncia de fraternidade, permanecia uma espcie de ira que varria brutalmente quem julgava aceder ao lugar do "grupo". Presumia-se que, embora parecessem carroceiros, se lhes via a raa porque tinham uma pinta de sangue ao canto dos olhos. Coisa curiosa! As antigas bonecas de Nuremberg tinham essa pinta vermelha ao canto dos olhos. Martinho ria-se mas, no fundo, respeitava essas impertinncias com que se fazia um reino e se sustentava o ego duma nao. Por vontade dele no perdia o tempo a visitar os mortos, que estavam bem onde estavam e dispensavam apresentaes. Era incrvel a quantidade de vivas que havia na famlia. Alm das solteiras, verdadeiros enxames delas, umas elegantes outras quase no limite do ridculo porque no abandonaram as modas do seu tempo e em que o paradigma do bom-tom era a rainha de Inglaterra com saia de pregas e um leno atado debaixo do queixo como quando visitava as vtimas dos bombardeamentos. Isso que era ter raa, qualquer coisa que no depende de saber estar mesa ou escolher um chapu. Ou melhor ainda: saber quando meter as mos nos bolsos no parece mal. Martinho divertia-se com os temas que Maria Rosa lhe propunha como conversa. - Os pequenos assuntos fazem o pensamento vivo. No a dizer a frmula de Einstein que nos tornamos inteligentes - dizia. - Ento como ? - a dar resposta ao que parece no a ter. - Como por exemplo? - Por exemplo: porque que se rolam os polegares quando se est sentado sem fazer nada? - um costume que eu no tenho.
- Porqu? O que mudou para fazer desaparecer esse costume? - Os lojistas? Aqueles que esperavam o fregus com uma resignao crist. J no h gente dessa. Ele tinha visto os gregos rolarem as contas nos dedos de maneira laica e no religiosa e pensou que o rolar dos polegares teria o mesmo significado: uma distraco que evitava a impacincia. Maria Rosa maravilhou-se daquela explicao, achando admirvel um rapaz como aquele, que improvisava as respostas mais saborosas sem lhes dar o acento da erudio. Mantinha a inocncia dos primeiros anos e o gosto de interrogar. Mas, dentro de pouco tempo, ele teria de casar e entrar no que se chamava "o rol da gente sria". Que mulher lhe seria destinada? J no se davam jantares para convidar os pais de raparigas casadoiras e avaliar dos seus predicados: fortuna, sade, incluindo as taras como inclinao ao suicdio. E tambm os bailes concorridos pelas jovens a serem colocadas como esposas virtuosas e condescendentes estavam mais ou menos desertos. Quem ia uma vez no ia mais. As bonitas herdeiras j no esperavam a declarao na sala que dava para o jardim mostrando-se radiantes ainda que apreensivas. E as coisas do sexo tornavam-se imposturas da tentao. A metafsica do corpo no fora ainda escrita e as raparigas contentavam-se com a preparao do enxoval que, para algumas, era ocupao da vida inteira. Herdavam-se bas com camisas e penteadores, cheios de laos to frescos como se sassem de vspera da fbrica ou do atelier de costura. Um noivado desfeito, a morte dum dos namorados, vinha suspender o casamento, sem que ficasse o desejo de reatar o estado de promessa. As sempre-noivas abundavam nesses lares de mulheres teis, sensatas, livres de dores de parto e das infidelidades matrimoniais. Viviam uma felicidade paralela, criando sobrinhos ou servindo na casa como dedicadas tias de algum que partia um dia para iniciar uma era de lgrimas e de risos falsos, porque o riso da juventude tinha-se quebrado e tudo decorria naquela forma de piedade que o amor da carne e do perdo. Maria Rosa foi a nica das irms que casou. Sem falar duma outra que se fez freira e teve uma histria com certo escndalo com o mdico do convento. Nem por isso abandonou os votos e, depois da sua aventura, ficou mais fortalecida para a ideia platnica da feminilidade. Enquanto passeava pelas leas do cemitrio, no segundo dia de Finados, levando atrs de si Martinho embevecido de a ver to nova e elegante, Maria Rosa ia anotando os mortos i conhecidos e dos quais sabia a histria apcrifa. No era s Cristo que tinha os seus apcrifos; as famlias notveis da cidade (e todas as outras tambm) tinham a gesta escolhida para constar nas conversas pblicas ou particulares. S um olhar penetrante como o das mulheres plebeias, criadas ou mestras de piano, sabia entrar nessas meadas de factos, inconfessveis, ou simplesmente incuas, que faziam a lenda perdida das famlias. Incestos, testamentos viciados, bastardias, runas, perdies do amor e do jogo, tudo estava ali sepultado debaixo do musgo das lpides, atrs dos ferros dos portes das capelas morturias. Ela prpria, Maria Rosa, esteve durante um ano sequestrada pelo marido, quando era nova, sob a
suspeita de traio. A priso domiciliria era o tratamento dado s esposas infiis. Tinha dois benefcios: reforava os laos erticos e evitava o descrdito da separao. Maria Rosa no se lembrava de ter sofrido muito no seu tempo de recluso. De resto, no se tratava dum calabouo mas duma propriedade que o Nabasco tinha, toda murada e com glicnias a cobrir os muros. Ela fez depressa a sua casa de aventura, com cretones inglesa e livros de viagens. O Nabasco no suspeitou nunca de que a mulher o enganava com ele prprio. Achou-a mais encantadora com os cabelos cortados sobre as orelhas, Colette, e as pernas bronzeadas ao sol de Maro, o mais doce e forte para queimar a pele. "O sol de Maro queima a dama no pao", dizia-se assim. Ela fez boas amigas entre caseiras e filhas delas, doidas a contar coisas secretas, sem circunspeco nenhuma e guardando o carcter jovial de quem no tem segredos. - Nada pior para a personalidade do que a circunspeco. Foi Oscar Wilde quem o disse. - E disse bem. - A av falou, sem se voltar para ele, como se estivesse espera de encontrar algum conhecido. Muitos tinham morrido, esse ano tinha sido fatal para os fumadores. Ela lembrou-se do Manuel Fontes, um dos seus amores da juventude. Era to rica de adoradores que quase no dava por eles. Martinho pensou: "Que bonita deve ter sido mas no tem nenhum trao bonito. mais uma iluso de ptica." Enquanto a me no se casou outra vez ele sentia o mesmo acanhamento em andar com ela na rua. Fazia com que no caminhassem a par e, se encontrava um colega do liceu, fingia que Paula era uma estranha e no respondia se ela se lhe dirigia. Tinha uma espcie de vergonha em acompanhar uma mulher nova e atraente que os outros rapazes podiam desejar. Um dia em que um colega foi a casa dos Nabasco (o que lhe causou um choque porque no os imaginava to abastados) Paula apareceu entrada da sala, vinda da rua. Tinha umas luvas altas enroladas nos pulsos e aquilo fazia a impresso de ela pertencer ao mundo das actrizes. Ainda ningum pintava os olhos, mas ela tinha sombras azuis e os dentes brilhavam entre os lbios quase dourados. Martinho percebeu a perturbao do amigo. Ningum tinha uma me como ele, e a ideia de que pudesse haver um lao incestuoso entre ele e Paula deixava-o irritado. Quando ela saiu de casa, com o seu capito da marinha, sentiu-se mais descansado. A av j no despertava pensamentos pecaminosos em ningum; mas, mesmo assim, era melhor no facilitar. Continuou a guardar alguma distncia quando eram vistos nos concertos ou em qualquer outro lugar concorrido. "No tem nenhum trao bonito" - pensava, como para se defender dalguma surpresa desagradvel. Considerando que Maria Rosa fora muito mais interessante do que Paula, estava a afastar aquela amarga sensao de a partilhar a ela, Paula, com todos os amigos que diziam dela coisas indecentes ou simplesmente abonatrias. Convenceu-se de que iam l a casa s para a ver, o que era exagerado. Mas era talvez por isso que Maria Rosa s tomava ao seu servio raparigas notoriamente belas, como Yolanda ou Marina que pareciam panteras enjauladas, movendo-se de um lado para o outro
com um passo cauteloso como se pisassem a selva. Nunca se ps o caso de Martinho namorar qualquer dessas musas de avental, preto na maioria das ocasies, porque seria impensvel parecerem criadas de farda, ainda que talhada por modistas caras. Coisa que Maria Rosa no se proibia de pr em prtica nos tempos de que restava apenas uma memria apagada. O maior defeito de Maria Rosa continuava a ser o da curiosidade; por isso, a memria no era muito respeitada e facilmente esquecia coisas que podiam significar muito para outra pessoa. Ainda falando de Yolanda, que teve um xito breve como alternadeira, j no se verificava o empenho das raparigas pobres e bonitas que era ter um filho dum homem com fortuna. Agora no tinham mais um objectivo calculista, porque no filho punham a consumao dum futuro desafogado; agora queriam divertir-se e ir s discotecas com botas altas, se possvel num carro de luxo, desses a que os homens chamam "o terceiro tomate" e que causava sempre uma sensao arrasadora. Yolanda contraiu uma doena m, nada de sexual como seria natural no caso da Dama das Camlias, mas qualquer coisa de conversvel como uma laringite infecciosa, maneira de referir um cancro. Martinho ainda a foi ver com Maria Rosa, ao hospital e comoveu-se de a ver to mudada. Se pudesse casar com todas as mulheres apertadas pela desgraa como por uma algema de ferro, fazia-o. Era sujeito a uma sensualidade da misria e acreditava que a pobreza, a dor, e todo o gnero de malvadez no mundo eram acicate do desejo. Um homem resistia a uma deusa mas no a uma qualquer desamparada, ignorante e sem mais esprito do que uma gata vadia. Maria Rosa achava que ele ou lera demais ou era maricas. - Em qualquer dos casos no me surpreendes. O melhor, nas mulheres, so os defeitos. Com as virtudes chega-se ao altar mas no a um trono, quer dizer a uma boa cama. Quando se punha assim, a dizer "verdades como punhos", a av estava francamente irritada. No que no houvesse uma dose de lgica no que dizia. Consultando a Histria e os dicionrios de grandes personagens, o que se encontrava l eram mulheres suspeitas. Suspeitssimas. Envenenadoras, meretrizes, mentirosas e, na maioria dos casos, muito pouco interessadas nos homens. A luxria delas era fingida. Por isso o corpo criava tantos impedimentos, que no eram seno evasivas. Que ia acontecer quele rapaz que ela amava tanto? Ia ser enganado, arrancavam-lhe a pele e as unhas, tudo o que era proteco, em troca dum prazer que no passava de submisso. Talvez ele preferisse a guerra como iniciao. As guerras eram feitas com a iniciao dos mancebos, tudo era permitido ao mesmo tempo: a violao, o roubo, a morte, o jogo, o chegar ao fim do horror e ainda insaciado. Quem diz que tem recordaes da guerra que o impedem de falar um hipcrita. O que o impede de falar o prazer, aquele fraternal aceno antes de premir o gatilho e que quer dizer " a tua vez, eu sigo-te". H um momento em que no h deuses, em que no so necessrios.
Ela preocupava-se com Martinho. Mas quem a visse, caminhando entre os mortos com o vestido curto que lhe descobria as pernas magras como as velhas tm, ligeiramente arqueadas como se fossem cair de joelhos, diria que dava um passeio na tarde de sol, gozando o parque florido, honrosamente florido de macios de crisntemos amarelos e magenta. Deixou cair uma luva e Martinho apanhou-a. Era uma luva de pelica cinzenta em que os dedos estavam moldados. Ele sabia onde as tinha comprado, sabia tudo a respeito dela; escondia a ele prprio que sabia tantas coisas para no ter que explicar isso. Elisa vinha atrs com o jarro onde fora buscar gua para limpar o jazigo e disse qualquer coisa sobre o mau estado de tudo. A seu ver, deviam-se juntar os mortos num s lugar em vez de andar naquela correria de Finados. - Ests doida? Sabes quanto custa uma trasladao? - disse Maria Rosa, sem deixar o seu passo de passeio. "Quem pobre no tem vcios" - foi o que Elisa pensou. Sempre conhecera nos Nabasco aquelas crises que iam desde os emprstimos ruinosos at penria. Depois levantavam-se com uma herana ou um novo crdito cuja origem ficava sempre obscura. Negcios de volfrmio, vendas de patrimnio que, at a, no se sabia que existia, nem onde. - No se mudam os mortos de casa, uma questo de decncia. Assim como no se despejam os inquilinos que ficaram pobres. - Eu s quis dizer que um desperdcio. Em flores, em deslocaes, em tudo. Mas ela calou-se, filosofando para o seu ntimo que com aquela gente era intil ter razo. Nem sabiam o que isso era, no obedeciam a leis seno quando era do proveito deles. No lhes perdoava terem-lhe feito pagar a dentadura postia que fora um golpe muito duro nas suas economias. Era a avareza dos ricos, que alimentava um rancor activo durante toda uma vida. Sem isso, provavelmente no havia redeno e fidelidade que durasse. Maria Rosa lembrava-se de Patrcia Xavier que se queixava de no prender em casa nenhuma empregada. A boa ndole que tinha fazia-as mais soberbas e indisciplinadas do que se fosse injusta e at de humor tirnico. A violncia fixa o erotismo, o que ela pensava. Tinha com Maria Rosa conversas "abominveis", interrompidas por repentino medo de irem muito alm nas suas cogitaes. O que sabem as mulheres d para arrasar montanhas. Patrcia morreu de maneira desastrosa mas no digamos que imerecida. Tinha-se empenhado em no ter filhos antes dos quarenta e fez o aborto como um facto mais no seu quotidiano, esperando noite estar em estado de jantar fora. Era uma mulher alegre e sem problemas profundos. Dava pena contempl-la morta, bonita e maquilhada como se esperasse pelo vestido verde esmeralda de que tanto gostava. O verde era a sua prova de boa pele e esprito festivo. No ia bem seno com as mais belas, claras e de cabelos de bano, no completamente pretos. Ningum como Patrcia para gozar o mundo e contentar-se com o que tinha. Sabia vestir-se com um trapo, agradar sem compromissos, beber sem cair
de bbada. Parava quando alguma coisa lhe dizia que podia perder as chaves do carro; gostava de carros bonitos e de homens feios; que eram os melhores, como os figos maduros. Era o que ela dizia. L estava, debaixo duma lpide que se partira e s tinha em cima algumas flores fulgurantes mas que eram artificiais. O marido tinha casado outra vez e ela estava esquecida como um gato morto. - Pe a as violetas africanas que eu trouxe. - Maria Rosa rezou um Padre-Nosso. Mexia os lbios mas como no se lembrava exactamente da orao, fingia murmurar as palavras que, de resto, j no eram iguais. Martinho reparou que ela tinha um tero no pulso, um tero dum s mistrio e feito de ametistas lapidadas delicadamente. Usava sempre as coisas apropriadas dum gosto muito pessoal difcil de detectar, como um crime perfeito. De repente, sentiu-se mal mas esperou um bocado at ver se se recompunha. E se morresse num cemitrio, s onze da manh, quando devia estar a lavar as meias no lavatrio? No meio daquela multido que ia empanturrar-se de carne de porco com alho e castanhas. Como as castanhas lhe lembravam os mortos, cozidas, deixando uma ndoa de sangue velho onde cassem! Martinho nem notou que ela se encostou demasiado a uma grade; o olhar penetrante dele aflorou-lhe o rosto plido. Mas no disse nada. Caam uns pingos de chuva, grossos, espaados, anunciando o aguaceiro de Outono que sacode os ramos ainda cobertos de folhagem e dobra a ponta dos ciprestes. Elisa tinha posto o cesto das flores na cabea e comeara a andar depressa. Sem ela, a vida de casa seria muito mais difcil, sem pontualidade, sem torradas quentes ao primeiro almoo e s quatro da tarde. Todos os Cunhas eram extraordinrios no servio domstico; todos sabiam cozinhar e depenar galinhas ou esfolar coelhos, e danar o vira, e tocar viola. Gostavam de usar bigodes retorcidos, era um princpio, como o de ser baptizados. Eram bonitos, mas a nica irm que tinham, essa no era bonita. Quem era ento Elisa se no era irm deles? Maria Rosa deu conta de que os seus acessos de confuso, como uma paragem do sangue imperceptvel no crebro, comeavam com um sbito interrogar-se sobre coisas de interesse nulo. Como eram as luvas de Patrcia quando foi de dama-de-honor ao seu casamento? At ao cotovelo ou pouco acima do punho? Tentou lembrar-se mas no conseguiu. E se armasse uma cilada a Elisa? Ela estava l e no esquecera nada. Mas no sabia como perguntar-lhe sem levantar suspeitas. Que tinham a ver as luvas de Patrcia com o dia de Finados ao fim da manh? Elisa ia desconfiar e achar que ela estava senil. Procurou derivar, pensar noutra coisa; mas l estavam as luvas de Patrcia, duma cor indefinida. De repente lembrou-se nitidamente: "Eram rosa-cravo, altas. Nem podia deixar de ser, tratando-se de Patrcia Xavier." Ficou to satisfeita que aquilo se reflectiu na cara. "Ainda bonita, nunca mais deixa de ser bonita", pensou Martinho. Havia muito tempo que se faziam verdadeiras adivinhas sobre aquele rosto fresco e liso como marfim. "Minerva passou-lhe com a mo pelo rosto", disse um dos noivos que passavam l por
casa e nem sempre se comprometiam no noivado. De quem era a culpa de haver tantas solteiras na famlia? Passado o primeiro desgosto da quebra do namoro, elas criavam asas e todas se envolviam com os seus hbitos carinhosos (eram mesmo carinhosos?) quanto vida urbana. Iam aos concertos ou ao cinema, viajavam, compravam bolsas novas e falavam de tudo com delicadeza, procurando no ferir ningum, nem mesmo os prncipes do Mnaco. Eram to isentas quanto, de facto, no punham paixo nas coisas, s um pouco de incerteza quanto sua realidade. Maria Rosa disse que os extraterrestres vinham de noite dar-lhe uma injeco e que ficava no lenol, junto do brao esquerdo, uma gota de sangue. E l estava o pingo de sangue, s vezes outro mais pequeno. Se no fosse um estratagema dela, ou algo parecido com magia, ento no se podia explicar. Os homens faziam ouvidos moucos. - D para perceber? - No, no d para perceber. E calem-se. As coisas ficavam por aqui. Martinho, porm, desde pequeno que no a largava, ficava atrs duma porta para a surpreender caso acontecesse uma coisa dessas que povoam o corao da infncia e so irresistveis de esperar, de desejar. S Helena, uma amiga da casa, a primeira que se empregou na companhia inglesa dos telefones, olhava com doura a pequena Maria Rosa que no teria mais de cinco anos e comeava a aprender a ler. Helena Prates com a irm Augusta, eram raparigas vistosas e que tomavam o mundo como se fosse inventado por loucos. Tambm elas nunca se casaram talvez porque tinham muito amor no segredo da sua alma. Fora de casa, com mais um irmo solteiro e bondoso a ponto de parecer excntrico, elas levavam uma vida angelical; embora, com a idade, se tornassem ridculas mas sempre respeitosas com as pessoas de alto nvel, como os banqueiros e os professores. Quem muito critica, ofende a ordem das coisas. E, no entanto, Maria Rosa achava-as estranhamente cheias de humor e quase estupefactas de o mundo girar ao contrrio do seu prprio juzo. Teve um sobressalto; acabava de eliminar o marido do seu passeio de finados. verdade que ele tinha morrido bem h quinze anos e, nesse momento pelo menos, sem a ajuda de fotografias e momentos picos das suas vidas (quer dizer, momentos infelizes mas que tinham deixado um rasto indelvel, no completamente para desdenhar), no via nitidamente as feies dele. Nunca compreendera como ele se fixava numa empregada do escritrio de maneira to compulsiva. Tivesse ela maus dentes, ou falasse com a boca cheia, alm de cheirar a amostras de perfumes, ficava cado por ela. Parecia empenhado em arrebat-la aos colegas como se fosse um saque de guerra. Nem se incomodava a perguntar se estavam a v-lo assumir o papel de lobo da alcateia, ia com ela para a cama e comeava uma relao de fidelidades ao nvel dos negcios. E compensava Maria Rosa com uma generosidade de sexo, ou mesmo um objecto que sabia ela ter na ideia, um frigorfico novo, por
exemplo. Isto se ela tinha para com "a outra", a chamada "criatura" dos anos cinquenta mas que agora era a colaboradora, a tradutora dos meandros da escrita, a mo esquerda do seu brao direito. Onde estavam os homens cautelosos como se caminhassem na selva onde se escondiam armadilhas para ursos? Eles faziam a constncia do casamento, mentiam, mostrando s vezes o jogo para provocar a sorte mas no com o objectivo de mandar ao ar o baralho. Eram eles que selavam a instituio com um beijo na testa, coisa que exasperava Maria Rosa pelo que tinha de inquo, de respeitoso, de quase insultuoso no seu castigo boa mulher que ela era. Mas quem podia dizer que ela era a boa mulher das Escrituras, a prola das esposas, vestida de saco quando chorava os seus mortos? Ela escorregou nas pedras onde crescera o musgo e Martinho deu uma corrida para ampar-la. - Mandei ou no rezar uma missa pelo teu av? - No sei. Venha para casa. Est a precisar duma sopa quente. Tem os lbios roxos. - Estou a precisar dum espelho, queres tu dizer. Detesto que me vejam com m cara. - No digo que est com m cara. - Tambm a Menina dos Fsforos do Andersen no se dizia que tinha m cara. Mas fazia pena. Deve ter casado bem, se que resistiu ao Inverno de Copenhaga. A neve um bom condutor da literatura. Sentirmo-nos abrigados enquanto o frio glacial espreita pelas nossas janelas deve dar uma fora poderosa mo que escreve e ao corao do escrevente. No achas? Mas ela j no esperava pela resposta, nunca esperava pela resposta. Estava a visionar o marido no cadeiro de veludo verde e que parecia indestrutvel. Tinha ganho um tom pardo, as franjas estavam desbotadas mas intactas. Era um veludo alemo resistente a tudo, guerra e s mudanas de casa. "Como pude aturar tudo aquilo?" - pensou, com calma e demorando o passo para que Elisa tambm esperasse. No queria mostrar-se mais gil do que ela, velho mostrengo de ps espalmados como o dos gansos, ou nades, ou o que fosse. Gostava de Elisa, fazia parte da moblia, tinha uma alma como a moblia tinha. Acontecia-lhe ver o p num mvel e voltar atrs para o limpar com o leno, pedindo desculpa. As coisas inanimadas enterneciam-na. No se sabia at que ponto eram inanimadas. A sua funo era uma forma de articulao viva, como nas pessoas. O Nabasco av, quem o podia descrever? Talvez deix-lo para outro captulo. Era um suicida falhado. Tentou matar-se quatro vezes e nunca acertou. Primeiro com fsforos (outra aluso Menina dos Fsforos) que diluiu num copo de gua; mais tarde, mergulhando na piscina e mantendo-se no fundo at que algum o puxou para cima e lhe fez respirao boca-a-boca. Talvez o jardineiro, episdio de que o Nabasco no queria recordar-se. Ter aquela boca mole como um verme contra a sua boca,
causava-lhe repugnncia. Tambm usou uma arma de fogo mas porque a empunhou com a mo esquerda, v-se l saber porqu, o tiro no o atingiu mortalmente. A nossa vida est cheia de actos falhados que no tm outra inteno seno a de causar aflio aos outros. Tortur-los, porque, mais ou menos, todos somos torcionrios. Tudo isto aconteceu estando o Nabasco (Filipe Tadeu Nabasco, imagine-se!) solteiro. Depois de casar com Maria Rosa retraiu-se um pouco e j no armava grandes cenas melodramticas que eram devidas ao seu temperamento nervoso e a crises de depresso. Mas distraa-se a fingir que a enganava e a criar um clima de suspeio. At que ambos envelheceram e se foram aceitando como eram, perdendo muito da sua velhacaria e esprito histrinico. s vezes Maria Rosa tinha que recriar o Nabasco porque Martinho lhe fazia perguntas a respeito dele. No o tinha conhecido seno nos seus tenros anos e no se lembrava seno dum homem comprido como um poste, nesse caso um poste derrubado pois estava sempre estendido no cadeiro e s se levantava para ir almoar fora. Tinha uma mesa sempre marcada no restaurante mais elegante da cidade e onde o tratavam com uma deferncia litrgica, desembaraando-o do sobretudo como duma capa de asperges. O restaurante, de resto, respirava um ar de sacristia, ningum falava alto e os criados pareciam deslizar em pantufas. Quase no apareciam mulheres e Maria Rosa nunca acompanhava o marido. Era como gente dum clube, ou duma seita, melhor dito; porque no falavam entre eles, como se, decorados os estatutos, j nada houvesse a dizer. O Filipe Nabasco destacava-se como um pelourinho da cidade. O ponto mais alto da carreira dele fora o de proprietrio dum jornal de sucesso que ele amava como um filho. A fortuna dos Nabasco no provinha de negcios, nem de propriedades. Era dessas fortunas slidas, alimentadas por heranas ou rendimentos acumulados, resultado de aplicaes financeiras especulativas. Nada que o obrigasse a levantar-se intempestivamente do seu cadeiro verde ou a atrasar o seu almoo da uma e um quarto da tarde. Era um desses homens cujo estatuto se media pelos sapatos feitos em Londres e pelo leno de bolso de cambraia branca, sem monograma. No era uma pessoa divertida, ainda que tivesse esprito. Mas no gostava de se expor apreciao dos outros que, no seu entender, no mereciam que se lhes desse motivos de experincia. A experincia e o treino so coisas diferentes e no tempo dos Nabasco sabia-se isso. "A experincia faz o cavalheiro, o treino faz a profisso." O que se advertia era que Filipe Nabasco no tinha uma profisso, era um auto-didacta com referncias. A cidade no o punha prova em qualquer circunstncia da vida; limitava-se a mant-lo dentro do crculo de influncias que com que se fazem as conspiraes da Histria. Filipe Nabasco no tinha grande importncia como inovador de ideias ou criador de doutrinas; ou mesmo como mecenas, que o papel que se reserva aos que acreditam nos benefcios da cultura. Maria Rosa contava com ele para lhe dar o brao ao descer umas
escadas em pblico e moderar assim os efeitos da sua artrite reumatide. No se julgue que era s isso. Amava-o com uma delicadeza que faz a felicidade dum casamento destinado a durar. Nessa hora em que passava pelas campas de muitos amigos mortos, uma ternura parecida saudade tocou-lhe o corao. Filipe Nabasco tinha sido um marido slido, se no perfeito e admirava-a um pouco, o que o segredo das relaes estveis. Isso impedia que no fossem nunca demasiado familiares e que se no respeitassem a ponto de degradarem o casamento com um excesso de razes para o trarem. Martinho disse que ela devia calar as luvas, tinha as mos geladas. - Sempre tive as mos frias. bom sinal. - Porque bom sinal? - disse ele, a rir-se; porque os velhos lhe faziam essa alegria sbita de lhes sobreviver. - Mos frias, corao quente, o que se diz. - No sabia. - Deve haver uma razo qualquer para se dizer isso. Hei-de perguntar ao doutor Horcio. O doutor Horcio Assis pertencia ao escol dos mdicos de famlia que, como os advogados, tinham uma clientela escolhida cujos segredos estavam a bom recato nas suas pastas. O segredo era um princpio de ouro num contrato de tratamento, fosse de sade ou de finanas. Horcio Assis sabia mais da vida da sua clientela do que sabia da sua prpria cincia. De resto, dizia ele, para curar h duas receitas: dieta e ps quentes. No acreditava na grande parada do laboratrio e, na verdade, perdia-se um bom bocado no diagnstico que era sempre o mesmo. "As pessoas sofrem quase todas de insignificncia e s as podemos aliviar dizendo-lhes que escrevam um livro, plantem uma rvore e faam um filho." Isso traduzido para os tempos mais recentes resumia-se em comprar um automvel, fumar erva e ir a um concerto de rock. O paciente acabara. Agora o que o substitura era um non-sense que j no tinha a sensualidade dum Felini mas que fazia com que a liberdade se parecesse com um rito de passagem: sexo e crueldade mental. O doutor Horcio, diga-se, era to velho que dava o lugar s mulheres no autocarro, sobretudo se estivessem grvidas. O que fez com que uma bonita rapariga lhe dissesse que tambm ia ter uma criana. No parecia, era delgada como uma agulha. - De trs dias - explicou, para escndalo do doutor que tinha os modos dum mdico de famlia real inglesa. Ele usava luvas de camura cinzenta, ningum mais se atrevia com aquilo. A prpria Maria Rosa, que se tinha por avanada, embora o seu jogo de canasta das quintas-feiras no fosse exactamente um expoente de modernidade, costumava rir do doutor Horcio com um timbre de maldade; porque rir j por si s um mau prenncio, embora se diga que o esprito de Deus s desce
sobre quem tem uma alma alegre. possvel. De qualquer maneira o doutor Horcio, alto e mirrado, fora em tempo muito dado s damas e elas achavam-no "o mximo", com o seu beija-mo e os gostos musicais. Quando chegava a ser ntimo duma mulher era como se a tomasse ao seu servio e, na verdade, tratava-a distraidamente. De resto, era muito distrado, era um dos seus encantos ser distrado. Maria Rosa perguntava-se se era de facto ele que jazia na sua grande capela de estilo manuelino ou se se enganara e fora parar a qualquer outro lugar no qual se perdesse. Como perdia os filhos quando eram pequenos e a prpria mulher, voltando sozinho do teatro sem pensar que a levara na sua companhia. - Bem me parecia que me faltava alguma coisa - desculpava-se. Era compassivo at s lgrimas e fora o primeiro a conhecer o estado de Patrcia Xavier, que recorreu a ele j desfeita por dentro como qualquer mulher de m vida s mos duma abortadeira vulgar, dessas que s falam dos netos lindos que tm e que respiram a virtude do matrimnio. O doutor Horcio ficou esmagado; tirava e punha os culos e limpava-os com a aba do casaco. - Como foi isto? Como foi, respondam-me! Patrcia j estava morta, com a dobra do lenol puxada para o rosto, e ele soluava ainda, encostado a um mvel, o nariz a pingar, ridculo, triste, vagabundo na sua prpria aflio. Tinha pena das mulheres, sempre a sangrar, sempre avariadas de dentro, carregando a cruz do sexo, maior que a de Cristo. No perdoava que fossem to mal feitas para o amor, com buracos a mais, sempre a desfazerem-se de medo, de sofrimento, e, no entanto, "prontas para outra", batendo fortemente os taces com a vitalidade das suas entranhas que at lhes saam pelos olhos radiantes. E depois escreviam versos, as pobres coitadas! Todavia, quanto poder no sangue do seu ventre! Maria Rosa viu uma campa to coberta de flores que parecia um canteiro de orqudeas verdes. Havia muitas orqudeas, dantes nem se viam e ficavam no profundo da selva amaznica, tenras como carne de mulher nova. Um rosto, um medalho de esmalte mostrava uma rapariga com brincos compridos, sorrindo timidamente. "De que morreu ela?" - pensou Maria Rosa. - "De que se morre to nova?" Nem sequer tinha visto os filmes mais famosos, a cores, cavalgadas, bailes da corte, amores em fiacres, um beijo com a cabea descada para trs ou o p direito levantado em sinal de rendio. Ela sentiu um frio trespass-la mas recomps-se logo, endireitando-se para corresponder ao cumprimento de quem a tinha reconhecido. Era um emblema da cidade, Maria Rosa Nabasco, aspirante eternidade, como toda a gente que ali estava morta ou viva, no dia de Finados.
CAPTULO II A PICADA DUMA PULGA Uma famlia no funcionava perfeitamente sem os seus criados, gente de fora e parentes pobres. Alm dos directamente implicados na sua sade e estado das firmas e propriedades: os mdicos, os advogados, os capeles (que eram os procos da freguesia ou, com mais elevao, os secretrios do episcopado). Depois vinham os fornecedores de vveres e vesturio, os responsveis da apresentao urbana, os merceeiros de grosso, ou de garrafeira, os alfaiates, ourives, decoradores e mestres-de-obras. Tambm tinham o seu lugar marcado na agenda da casa os explicadores, as baby-sitters, pessoal muito reduzido face ao de antigamente que compreendia a professora de piano e a jovem au-pair que ensinava lnguas e acompanhava as meninas da casa, tratando tambm de assegurar o futuro com algum bom partido que se apresentasse. A casa era um mundo que fervilhava de convites e contas para pagar, de despesas faustosas ou midas, de renovao de cortinas ou de roupa de casa, de projectos para os filhos, de penses para os que estudavam no estrangeiro, de pequenas paixes e rivalidades domsticas e de grandes crises tanto financeiras como amorosas. Um casal bem instalado e digamos que exemplar, conhecia pelo menos dois ou trs dramas sentimentais, duas quebras na fortuna, algum casamento desastroso e uma morte mal explicada e que passava por ataque sbito ou um diagnstico que pressupunha uma febre tropical, coisa difcil de inventar, quanto mais de ser credvel. As famlias eram classificadas pelas suas tendncias e bizarrias; havia as com inclinao loucura, ao jogo e s ideias extraordinrias, como os fazedores de maquinaria que no servia para nada, os criadores de pssaros, os caadores, que eram respeitados at medula das suas capacidades de tiro e de agremiao. De quem no se falava abertamente era dos desaparecidos em lugar incerto, dos homossexuais e das mal casadas. Um parente dos Nabasco esteve dez anos no interior do Amazonas a confraternizar com os ndios e com os voluntrios duma tropa de choque, na selva. Voltou, mas no disse nada da sua experincia, nem ningum insistiu em lhe perguntar. Polticos, havia poucos. Algum secretrio de Estado rejeitado pela capital, no por ordem da sua inaptido mas porque no se adaptava, no gostava de comer mal nem de amigos de ocasio. - Prefiro ser enganado na minha terra, a ser trado na corte - dizia, com boa dose de esprito prtico. O Natal em casa e a amante num segundo lar, era o que ele considerava o paraso sua medida, que a medida da maioria. Havia os melmanos que se diferenavam dos intelectuais porque no punham por escrito a sua sabedoria. Frequentavam Weimar e conheciam a fundo as vozes, os intrpretes e a maneira de tratar uma ria italiana ou um gospel. Chamavam a Boccelli "pobre homem" e a Pavarotti algum a medir
com Gigli. Os melmanos eram fechados a qualquer outro prazer; as mulheres pareciam-se com palhaos do circo quando confrontadas com a voz dos grandes cantantes. Falavam alto e compunham o cabelo, quando no saam para telefonar, encostadas s portas e alimentando conversas duma vacuidade exasperante. Era Schopenhauer quem dizia que se espantava sempre que as mulheres abandonassem a sala no momento mais importante dos concertos. Porque faziam elas aquilo ele no podia descortinar. Mas Maria Rosa dizia: - porque no suportam o gnio nem nada que as ultrapasse. - Acha que isso? - Martinho tinha por costume duvidar de tudo que ela tinha como certo. Abrandava aquela indignao de a julgar superior a ele, ou antes, infalvel. Porque tudo se concertava para ela lhe ganhar quaisquer que fossem as circunstncias e as apostas lanadas sobre elas. Apostavam, duma maneira indiferente da parte de Maria Rosa e da parte de Martinho, duma maneira que parecia concisa mas que era, na realidade, um desesperado face-a-face com a morte. Ela no arriscava nada, ele comprometia-se at alma. Decerto era esse lao que os unia desde que ele era uma migalha de gente e ia pendurar-se nos lenis da cama dela, se o av no estava, para que ela o puxasse para cima, rindo-se, com aquela gargalhada franca e radiante que o cativava antes mesmo de saber falar. Era um menino gordo e cambaleante, com ps que pareciam almofadas, o que atrasava o andar dele. Aos dois anos ainda no corria; levantava-se nas patas traseiras, como ela dizia, e ficava muito tempo de p, surpreendido e sem se atrever a dar um passo. J pensavam que ele tinha qualquer defeito e Patrcia Xavier, que vinha de manh partilhar o primeiro almoo com Maria Rosa (viviam no mesmo prdio e as varandas eram contguas), dizia muito cruelmente que ele nunca mais falaria direito. Era tremendamente ciumenta e Maria Rosa dava-lhe o desconto. - No vou zangar-me pela picada duma pulga - dizia. Arrebatava nos braos o pequeno Martinho. Diz alguma coisa, vamos, diz uma coisa qualquer. - Ele olhava-a, com os olhos assombrados, srio, porque o amor se quer srio e ele amava-a. At que um dia (estando Patrcia a sacudir no p a chinela de cetim claro, s se vestia pelas duas horas da tarde e, s vezes, andava at noite a arrastar a camisa enxovalhada mas que, com as suas costas curvas, a fazia parecer fatal e lnguida, no gnero das mulheres dos anos 30, mulheres ricas, bem entendido), at que um dia Martinho, de p no seu babygrow amarelo, disse, peremptoriamente: - Merda. Ambas ficaram sideradas, Maria Rosa de contentamento no cabia na pele, quanto mais no robe j muito lavado e com manchas de leite bolsado e outras coisas, compota e verniz das unhas. At gema de ovo, que era difcil de sair, como muito bem se conta num romance da boa era americana dos
romances. Sempre se aprende alguma coisa naquelas narrativas de arredores, com vizinhos a beber cerveja logo pela manh. Enfim, Patrcia Xavier levou a mal aquela primeira voz do jovem Martinho e vaticinou logo ali. . - Que ele havia de dar desgostos famlia e que seria mau estudante, no que acertou completamente. No era mau, era um caso perdido. Ficava nas aulas a olhar para tudo atentamente, nem sequer desejoso de sair para o recreio, que achava uma rea inspita, com um vago sabor a presdio. . - Patrcia Xavier disse que ele no era inteligente. - Talvez seja s curioso como Einstein. Com a curiosidade fazem-se mais coisas do que com a inteligncia - disse Maria Rosa. - Depende de que coisas. Matar e roubar deve-se mais curiosidade do que inteligncia. Sem que dessem por ele, Martinho, aos cinco anos, ou at antes, j sabia ler e no lhe escapavam as notcias e os obiturios dos jornais de que era assduo leitor. Gostava dos nomes das pessoas e divertiase a acumul-los na memria como se fossem borboletas espetadas com um alfinete. S dois anos depois que, estando Maria Rosa doente, eele lhe leu a correspondncia sem se enganar numa palavra. Ela no se admirou; sempre tinha esperado que Martinho no a ia decepcionar. Gostava tanto dele que seria impossvel o seu amor no ser correspondido. Ele correspondia-lhe com desprendimento, como se esperasse um ajuste de contas um dia que ela morresse. Ento se veria se a amava ou no; sem o saber, carregava as emoes como um fardo de que no se sabe o que contm. - s um jerico, mais nada - disse Marg, a segunda mulher do seu tio-av e que o achava mimado demais. - Assim no se faz nada de ti. Tens que misturar-te com os outros rapazes e aprender com eles as coisas da vida. Nem que tenhas que ir para a cama com um ou outro. Mas assim, to engravatado e a comer flocos de aveia, no vais a lado nenhum. - Toda a gente come flocos de aveia, moda. Por a no que o gato vai s filhoses - interrompeu Elisa, que estava a polir os talheres de prata. Uma vez por ano tirava-os dos estojos de flanela e davalhes lustro, apagando as manchas amarelas. Era uma perda de tempo. Nunca mais eram usados desde que os grandes jantares tinham acabado e na mquina no se podiam lavar. - Que gato, e que filhoses? - disse Marg. - Nunca percebi isso. Fazes o favor de falar para que a gente entenda. Elisa no deu resposta, aplicada como estava a limpar as facas novas de trinchar que nunca tinham sido usadas. Eram bonitas e espelhantes mas no cortavam bem. " o que acontece com as coisas bonitas" - pensou Elisa. - "No tm muita serventia".
Marg II era a segunda mulher de Tadeu Nabasco. Por coincidncia tinha o nome da primeira, a Margarida Isabel cujo destino me escapa. Morreu nova, na sagrada companhia da famlia de origem aristocrtica mas que nunca se honrou do seu talento potico e que lhe censurava as amizades de esquerda. Tadeu sentiu-se livre duma esposa incmoda porque valia mais do que ele e que, para a possuir, tinha praticamente de a violar. Casou outra vez com Marg II que descobriu no casino como choca; era o nome que se dava s mulheres que atraam para o jogo os forasteiros e os incautos. Marg II, a cunhada de Maria Rosa, andava pela casa dos Nabasco desde que lhe morrera o marido e nem sequer fazia a cama dela. Tambm no arrumava a roupa que despia e deixava tudo espalhado pelo quarto. Ouvira dizer que uma princesa no tocava em nada que lhe partisse as unhas ou lhe desmanchasse o penteado. Tambm no andava pela casa com chinelos nem que fossem de cetim com pompons, como ela gostava. Tinha gostos de mulher mantida e a mania de se parecer com princesas vinha da. No enganava Elisa, que estava farta de saber distinguir uma senhora duma fedncia qualquer. A maneira como ela dizia fedncia era racista de todo. Uma senhora aprende a calar as luvas aos cinco anos e nunca mais se esquece: primeiro os quatro dedos bem alisados, depois o polegar. Mas nem nas luvarias de Paris sabiam isso. Era uma pena, mas tambm no se perdia nada. - Elisa, voc muito atrevida mas no lhe levo a mal - disse Marg. - As vezes dou-lhe razo mas veja l se brune as rendas das minhas camisas de noite. E os folhos, e as fitas. Hoje ningum respeita nada. Voc diferente. Trata mal as pessoas mas no as coisas. Porqu? No, no diga nada. Se comea a falar nunca mais acaba. Elisa esfregou com mais empenho a colher que tinha na mo. Quem a desenhara sabia o que fazia. Ergueu-a altura dos olhos para lhe admirar o brilho. E achou que a maior parte das pessoas no percebia nada de nada. O seu ventre produziu sons que a aborreceram e deixou cair a colher para dissimular. Agora urinava-se pelas pernas abaixo quando se levantava duma cadeira e aquilo envergonhava-a. Juntou as coxas com fora mas a urina soltou-se na mesma e ela ficou zangada. Que estava ali a fazer Marg? Ao tempo que ficara viva e tinha vindo para passar uns dias e nunca mais despegara de casa! A nica coisa que fazia era encher os aucareiros e cortar papel para forrar as gavetas. Grande ajuda! Mas, diga-se a verdade, Marg tinha bom feitio e podia-se falar com ela vontade. Tinha um passado de pobre porque era filha duma costureira que nada mais sabia do que fazer bainhas. A cortar, era um desastre; acabou a fazer fardas para os colgios e, mesmo assim, no era de fiar, deixava sempre um ombro abaixo e outro acima. Aos quinze anos Marg parecia uma esttua da liberdade, com a cabea pequena em cima dum tronco alto e bem proporcionado. Os olhos eram castanhos, quase no se via o branco dos olhos. Tinha corao de pega, muito compadecido, os homens gostavam mas deixavam-na depressa. Teve um filho que morreu antes de chegar a andar e a quem ela
chamava "o meu anjinho". Fazia abortos consecutivos, uns davam para bem, outros para mal; mas escapou sempre, ainda que tivesse ficado estril sem o saber. Enchia a casa com a sua beleza serpenteante, o penteador a desdobrar-se pelo sof. Era a nica pessoa da casa que tinha um sof aos ps da cama, assim como um toucador com folhos de cambraia, de gosto muito duvidoso. Filipe Nabasco, o marido de Maria Rosa, no gostava de a ver l por casa. O que no impediu, quando o cunhado morreu, de lhe propor sustent-la em troca de amores descomprometidos. - No fao isso Maria Rosa, poa - disse Marg, que s vezes falava de maneira pouco acadmica. Como que um homem culto e snobe como o irmo de Rosa, perdera a cabea com uma mulherzinha to vulgar? Amava-a mas no se atrevia a casar com ela porque a irm era a chefe da famlia, por ser mais velha e ter uma boa posio. Mas quando caiu doente e Marg o tratou com uma dedicao de irm da caridade, ela comoveu-se. - Se queres casar, casa. Abraaram-se com um n de lgrimas na garganta. Vinha ao de cima a infncia comum, a felicidade e o castigo de muitos dias descontados j para a morte. Os ces que tinham tido, a primeira bicicleta, o namoro de Rosa com um amigo do irmo, o nascimento de Martinho de quem ele fora o padrinho. E selava esse pacto com uma palmada furiosa sempre que o via. Porque lhe batia, era um enigma. Por despeito, porque no lhe perdoava ter achado lugar entre ele e Rosa. No lhe perdoava tanta coisa, a partir dum silncio que ia aumentando como um tumor maligno. O silncio dos desejos insatisfeitos, da cadeia impossvel de ser quebrada e que fazia o amor durar eternamente ou o mais parecido com eternamente! As coisas com Marg eram diferentes. Era a amante disponvel, que podia desprezar e que o fazia sentir bem com as suas fantasias, as suas francas aberraes, a maneira de praticar sexo sem medo, sem vergonha, como num quarto de acaso; longe da famlia e do respeito que lhe devia e que s vezes lhe apetecia provocar. Era um vagabundo por sentimento, um pouco cobarde porque fugia da aventura. Mas do que ele gostava era de ir para frica caar a pacaa e, ao pr-do-sol, ver a silhueta dos negros recortar-se na savana. Fora um bom engenheiro de estradas e caminhos de ferro, levara Marg com ele, o que deu mau resultado. Todos os homens caram de desejo por ela e foi preciso mand-la para Portugal com as suas botas de couro da Rssia e o capacete colonial. Marg estava no melhor da idade, era alta, com seios pequenos e um pouco cados, mos e ps como de criana. Mexia com os homens, no s porque fosse bonita mas porque se convertia em gazela diante deles, uma pea de caa em fuga ou em repouso, com aqueles olhos de perfeita esfera palpitante de medo e graa infinita do medo. O desejo era aguado pelo medo, pela indefesa corte que o medo faz morte. Marg era irresistvel por
ser to oferecida ao seu destino que, de resto, acabava por vingar-se do caador. Foi assim que aconteceu. - Que aconteceu o qu? - disse Martinho. A av estava a escolher entre as torradas aquela que fosse mais tenra; j no tinha os dentes slidos, capazes de mastigar com o peso de meia tonelada. - Aconteceu que Marg deixou o meu irmo no meio do caminho, como um tolo, e disse que no queria nada mais dele. Os homens no se importam de ser enganados seja qual for o pretexto. Mas se no h pretextos ficam desesperados. No h vergonha que se compare dum homem abandonado sem pretexto. - Isso parece obra do diabo - disse Martinho. - Nunca ouvi nada igual. - Nem vais ouvir nada igual nem que vivas cem anos. Que cem anos? Duzentos anos que a idade normal duma vida humana. - Da sua, no da minha. No vou viver muito. um pressentimento. - Os pressentimentos so fceis de enganar. A tua tia Marg chegou um dia c a casa e mostrou-me a aliana do casamento partida em duas. "Caiu-me ao cho e partiu-se", disse ela. "Isto quer dizer alguma coisa". - Quer dizer que estava mal soldada ou coisa assim. - De qualquer maneira quer dizer alguma coisa. Estou a v-la com o chapelinho com uma pena posta ao lado e aquele vestido azul escuro com uma gola branca e punhos tambm brancos. Sabia como vestir-se para os homens, quanto mais pecadoras mais srias. - Ela era pecadora? - No. No sei. Acabmos por nos zangar porque eu nunca soube. Ela recebeu a herana do meu irmo quando ele morreu, e saiu daqui de candeias s avessas com toda agente. Chegou a inventar que o filho que tinha tido em solteira era do meu irmo. Disse o que lhe apeteceu e foi-se embora. O que ela no disse que j no tinha nada a ver com o casamento. Mas no se separava nem nada. "Acho que estou apaixonada" - disse ela. - Por quem? Perguntei. - Por ningum. A que est. Por ningum. Cheguei a pensar que seria por um assentador de alcatifas que foi a nossa casa fazer um trabalho, mas no. Pelo porteiro? Cheira a tabaco. No lava a roupa desde a Pscoa e estamos em Novembro. Os amigos do teu irmo? Quem podia ser? Um esqueltico, com nariz nobre? Gosto dos homens esquelticos, mas vestidos. Acredita que pensei nisto durante muito tempo. Choro por qualquer coisa, fico feliz por qualquer coisa. Agrada-me cozinhar, mas depois deito tudo fora e vou para a varanda sem fazer nada. Um gato do vizinho, nem vais acreditar:
veio l para casa e olha para mim como se fosse gente. Instalou-se l e de l no sai. Uma planta que estava seca, floriu de repente como se abrisse as asas vermelhas. - Que planta ? - No me perguntes, no sei nada de plantas. Mas aquela deixou-me meio assustada. O gato comportava-se como uma pessoa; a planta era como uma pessoa. Um dia, a mulher da lavandaria (nunca pude com isso de lavar roupa, tu sabes) olhou para mim e acho que perdeu o juzo, fugiu de casa, perdeu o emprego e juntou-se com um homem mais novo vinte anos. - Isso do homem mais novo ou muito mais velho sintomtico. - O qu? O qu? Repete l - disse Marg, como se se estivesse a despedir num cais de embarque, cheia de malas de viagem. - O tempo tem que ver com a paixo. Quando no acertamos com a durao do tempo porque estamos apaixonados. - J te aconteceu? - No. - Estamos a desconversar. Tu sabes muito mais do que dizes. - Toda a gente sabe mais do que diz, mas no d conta. Maria Rosa estava transfigurada, parecia de novo ter vinte anos e uma sensualidade como um rio cobria-lhe as feies da terna alma da juventude. Que formosa era, esculpida na massa do tempo que o corpo de Eros inteiramente! Marg achou nesse momento a explicao de tudo; porque a terra girava em volta do sol, porque as amijoas sabiam a beijos molhados. O co veio de rojo e a gemer pedir-lhe-uma carcia. Ela fez uma pirueta e abriu os braos: - Vale a pena incomodar a Deus pela picada duma pulga - disse. E desatou a rir, inconsolvel. O irmo aceitou um novo contrato para frica e todos pensaram que aquilo ia mat-lo. Com suborno ou no, declararam-lhe a sade suficiente para aguentar o clima e via-se que estava acabado, sempre febril e a suar muito. Voltou para morrer, dizendo-se cansado, nada mais do que cansado. Escrevia cartas que pareciam dum letrado, bonitas de se ler mas um bocado escusadas. Parecia querer interessar Martinho, que tinha quinze anos, nas jovens da Cidade do Cabo, desinibidas e alegres como as europeias no eram. No ficou dele seno umas polainas de cordes e algumas camisas de kaki. Era pobre como um rato, tinha algumas dvidas que Filipe Nabasco pagou, no sem mostrar que era generosidade e no dever. Maria Rosa chorou como se aquilo fosse o primeiro desgosto da sua vida. Martinho custou-lhe a consol-la e pensou que havia melhores maneiras de perder o tempo. No sabia nada de sofrimento e aquilo fazia-o parecer desalmado. Maria Rosa lembrava-se de quando a me dela a tratava por desalmada quando se calava friamente s suas ordens e reprimendas, sem contudo obedecer de boa vontade. Muitas coisas que a me tinha por educativas a ela pareciam-lhe apenas
conflituosas segundo o seu estilo de vida. Aos doze anos tinha j um estilo de vida que era amadurecer os seus gostos que diferiam muito dos das suas companheiras, algumas mais bem sucedidas nos estudos, nos amores e no desporto. Mais audaciosas do que ela no que tocava a perseguir um lugar brilhante na sociedade; casando bem ou doutorando-se com distino. A ela, Maria Rosa, no sobrava seno a continuao da formatura domstica e aquela confortvel monotonia de segunda filha dum casal que, afinal, no era como os outros. Sentia-se isso nas conversas mesa atravessadas pelo esprito pcaro do pai e as reticncias da me que no o aprovava. Servia-o mas no tinha por ele grande estima moral. Era um homem com relaes da noite, que jogava bilhar com percia e fazia vela. Nunca estava completamente falido mas vivia debaixo dessa ameaa. Um negcio (gostava do negcio como se gosta duma amante, prevendo as infidelidades dela), uma herana, contribuam para o seu bom humor que no o abandonava. Nunca trabalhara e isso fazia-o culpado mas sem ser vtima fosse do que fosse. Maria Rosa amava-o no sem uma ponta de desprezo, o que bom para o sentido de famlia. Os defeitos dos outros favorecem o prprio ego. Ela cresceu aprendendo a trabalhar, o que o pai achava um pouco ridculo, presenteando-a s vezes com coisas caras como se lhe pedisse desculpa. No fundo, esperava dela um casamento proveitoso para as suas finanas sempre em dfice, como ele dizia. Era um bom pai, comparado com outros. Que outros, Maria Rosa no sabia nem estava interessada em averiguar. No havia uma crise de geraes, simplesmente um contrato que se podia definir de liberdade como paixo. Todos queriam ser livres, os mais velhos com os seus vcios de madurez, os novos com as suas curiosidades. Era preciso no mexer no territrio privado de cada espcie, no deixar pistas e viver superficialmente as relaes de parentesco. Escavando um pouco, havia surpresas chocantes, erros, esboos de crimes, violncias que no chegavam a consumar-se. Maria Rosa, quando no tinha mais do que trs anos, reteve uma cena que lhe pareceu fantstica: o pai atirou um prato contra a parede e ela pensou se no seria um jogo ou uma prova de qualquer habilidade. Reteve a cor dos abat-jours, que eram verdes e a sala estava mergulhada numa penumbra verde; o que ela achava bonito, fazendo com que ela parasse no seu lugar, espera do que se seguisse. No se seguiu nada de importante, a me saiu a chorar e isso pareceu-lhe vagamente decepcionante. As pessoas choravam e gritavam como as crianas no bero. Queriam os seus brinquedos e libertar-se das suas fraldas. E ser adulto no era diferente. Olhava para Martinho como se ele lhe provocasse o riso. A filha deixara-o ao seu cuidado quando se casou segunda vez com um oficial de marinha e praticamente desapareceu como se fosse tragada por uma farda com gales dourados. Teve ainda mais filhos, mas Maria Rosa ignorou-os. Chamava-lhes os cadetes, no sabia como os tratar. Paula ofendia-se e cada vez se afastou mais da me. No se atrevia a
tirar-lhe Martinho porque isso seria criar dificuldades herana que esperava dumas mos que no eram muito liberais. A medida que envelhecia, Maria Rosa tornava-se no potencial pote de libras enterrado para ser partilhado pelos sobreviventes. Perguntavam-lhe pela filha e os netos, ela dizia: - No temos filhos, temos herdeiros, quando a morte se aproxima. Os laos de famlia eram transferidos para aquele calculado sentimento de abono merecido. Um fundo de fria tristeza andava a par da sua natural sovinice. Achava um desperdcio tudo o que gastava com gente do seu sangue; e, contudo, era generosa com estranhos. Era um trao do feitio paterno, que punha nos desconhecidos uma probabilidade de ganho. Um bom nome era melhor do que dinheiro no banco. No sabia que homem estava a preparar com a educao que lhe dava. Como os prncipes, tivera preceptores escolhidos na elite tanto clerical como leiga. Aos poucos, via nascer em Martinho o carcter, onde s havia temperamento que carecia de interesse pelo risco e era, por natureza, fleumtico. Mas ao despertar para os princpios prticos que haviam de obter-lhe sucesso na vida, apareceu nele a clera que s com dificuldade dominava com a razo. Era um rapaz de estatura abaixo da mediana, com disposio para a autoridade, o que o fazia perder os amigos. E tambm as primeiras namoradas o receavam, e tinha, como os jovens solitrios, um desdm pela entrega da sua intimidade; depressa o tomavam como uma pessoa vaidosa e pueril. Tinha a faculdade de prever e por isso conhecia as debilidades que iam arruinar as relaes. No era emotivo porque era capaz de paixes. A av disse que ele se parecia a um toiro no meio duma praa e que, de repente, arremete sem que se possa perceber o que lhe chamou a ateno. - um visionrio - disse o doutor Horcio, que lia Kant como pedagogo. Via o estado de distraco em que Martinho incorria e, ainda que isso fosse sintoma de preocupao profunda, era-o tambm duma natureza enganadora. Tinha muitas caras ao longo do dia e, no geral, no se podia dizer que alguma delas era a verdadeira. O seu ltimo preceptor, professor jubilado e com muita experincia da juventude escolar, estava mais vontade com as emoes pela franqueza em que elas se manifestam. So mais prprias de mulheres, pela sua versatilidade; mas tambm h homens que se emocionam facilmente, aqueles que tiveram uma vida perigosa e que se deixam levar por sbitos desejos de redeno, chorando com a simples lembrana do lar paterno ou dum co que morreu e de quem eram amigos. Esses so homens de aco mas no de paixo. Maria Rosa seguiu o conselho do preceptor, que lhe disse para pr Martinho a dieta severa. No comia po branco seno ao ch, e carne s duas vezes por semana. No bebia vinho, ainda que lhe fosse permitido um whisky antes de jantar. Nunca se sentava mesa sem
gravata, ainda que s vezes descalasse 62 os sapatos debaixo da mesa. Isto era a prova duma confiana absoluta em si mesmo. - No conheo ningum que se atreva a descalar-se enquanto come a sopa que, em geral, fumega. Os ps podem fumegar mais do que o vulco. ou no ? - disse Martinho. As raparigas que estavam por ali e o ouviram, mostraram-se desconfiadas. Nada as incomodava mais do que o humor dum homem srio. O humor estava ligado ao aturdimento e no razo. Uma das coisas que impedia que o bom gosto se desenvolvesse nas pessoas era a falta de se reunirem volta duma mesa, escolhendo a comida e os convivas. A maior parte das vezes as pessoas juntavam-se ao acaso, sem preparao para travarem uma conversa a no ser com objectivos imediatos de melhorarem a sua vida ou dar a impresso de que a melhoravam. As pessoas j no coravam, se ouviam uma palavra obscena, sobretudo se estavam mulheres presentes, limitavam-se a sorrir de maneira rpida, como se tivessem pressa de deixar passar uma indiscrio; se o caso se repetia, algum travava com o vizinho uma conversa que parecia importante e no passava dum par de tolices. A banalidade afasta o compromisso. Para desconcertar a solido em que Martinho vivia, no s pelo exibicionismo da av, mas porque ele era um rapazinho dbil, chamava para casa s quintas-feiras alguns vizinhos. At aos dez anos Martinho adoecia sem razo aparente e tinha febre. Ficava na cama, bem resguardado no seu pijama de flanela, e comia batatas fritas. Isto durava seis dias, depois do que se levantava e ia para o jardim dando voltas casa na bicicleta. Mal chegava aos pedais e o volante de corrida obrigava-o a uma posio incmoda. Mas a incomodidade dava-lhe um prazer invulgar; tinha uma particular admirao pelo sofrimento e imaginava possuir dons extraordinrios, de transformao em pessoas prodigiosas capazes de voar e de vencer grandes perigos. Isto era, em parte, resultado dos filmes que via e que lhe provocavam uma excitao sombria. Aparentemente era obediente e amvel para toda a gente, mas guardava uma soma de ideias maliciosas que um dia talvez se iriam libertar. Sobretudo o facto de haver na sala de jantar um quadro que era a cpia da Ronda da Noite de Rembrandt. Na sua vaidade mstica que no admitia contradio, Maria Rosa habituara-se a no duvidar. Para ela a Ronda da Noite era autntica e tudo o mais que pudesse assemelhar-se era pura falsificao. Bastava um s olhar para ver que Rembrandt no lhe pusera a mo. Mas o mesmo se diz do quadro que com tanta fama se pode ver no Rijksmuseum. Filipe Nabasco, no tinha uma ideia muito clara de quem era o pintor, nem isso lhe interessava. Bastava-lhe acumular na honra da famlia o factor duma celebridade. Entre os amigos de Martinho havia dois irmos que no se impressionavam com A Ronda da Noite. Tiveram mesmo a ideia destruidora de apagar uma figura a que chamavam o quarto mosqueteiro. Nos
dois anos em que frequentaram a casa dos Nabasco, tomaram como entretenimento fazer pequenas alteraes no quadro como se faz nos enigmas "quais as diferenas". Ningum ia descobrir, tanto mais que A Ronda da Noite, como a tela era conhecida, nunca foi observada com ateno. Mas isso ficou gravado to profundamente em Martinho que sonhava amide com A Ronda da Noite, como uma cena que estivesse por detrs dum porto chapeado de ferro e impossvel de mover. No entanto, ele abria-se lentamente e A Ronda da Noite ganhava vida. Como na realidade, tratava-se da preparao dum desfile onde 64 todos procuravam o lugar certo, fazendo daquela agitao uma festa ou preparativos para uma festa. Os amigos de Martinho depressa cresceram e esqueceram A Ronda da Noite e os seus pequenos vandalismos. Mas Martinho no. De tempos a tempos, tinha aquele sonho, ntido e sem alteraes nos seus pormenores. Constava que Filipe Nabasco tinha vendido o quadro, porque vendia tudo sem o mais pequeno remorso e mesmo sem precisar de dinheiro. A fortuna deu-lhe at ao fim da vida e Maria Rosa quando ele morreu teve algumas surpresas desagradveis. Tinham desaparecido algumas jias de famlia, dessas que no so usadas pela falta de ocasio adequada, que eram os bailes da corte, no tempo da rainha Maria Pia. Na famlia Nabasco houve duas aafatas cujos vestidos de gala estavam ainda guardados dentro de folhas de papel de seda. A educao que Maria Rosa (Maria Rosa Firmina, era o nome dela) dava a Martinho era ainda um resduo desse passado que no tinha nada de austero e onde a educao literria era reputada como pedantaria. Com a viuvez da soberana D. Amlia fez-se um concerto beato entre a corte e o clero e chamaram-lhe a santa Amlia. Foi depois da implantao da Repblica que a famlia se dividiu, ficando o ncleo monrquico dos Nabasco, imigrando no Brasil na poca mais agitada, e tomando o rumo da esquerda os que tinham sido afectos burguesia intelectual de inclinao republicana. No Brasil, o Nabasco desse tempo apanhou hbitos francamente vagabundos, jogava e valia-se da sua estirpe europeia para exercer influncia numa sociedade opulenta e ainda ancorada nos costumes da escravatura. O hbito de presentear com ouro as criadas e que durou at aos meados do sculo vinte em Portugal, era, ou parecia ser, um captulo da casa de engenho, onde as escravas se adornavam com ouro em abundncia. Fosse como fosse, os Nabasco antigos trouxeram, quando voltaram do exlio, uma criada preta chamada Esperana que foi lendria, pelo lado mau, na famlia. Maria Rosa teve a parte mais favorvel da histria porque se casou com o Nabasco enriquecido no se sabe porque combinaes de negcios de guerra e expropriaes, ou coisa pior ainda. Foi nessa altura que A Ronda da Noite entrou em casa, pela janela, ou seja, por uma varanda envidraada das traseiras, porque pela porta no cabia. O facto de ter havido parentes que foram embaixadores em Berlim e Amsterdo dava um pouco de crdito autenticidade de Rembrandt.
Os dias mais felizes de Martinho decorreram no campo, na propriedade que ficou a chamar-se a Ronda. Porque o quadro lhe serviu de estudo antes que soubesse ler e contar. Com a sade do av avariada, foram para a cidade, onde havia melhores recursos mdicos. E a Ronda da Noite ficou na parede, travada pelo sof de jacarand. O Nabasco durou pouco. Martinho lembrava-se de que o caixo deu problemas para sair de casa, que tinha uma escada de caracol ngreme como tudo. Era a Casa do Co, assim chamada pelas suas dimenses apertadas no meio dum parque luxuriante. De qualquer modo, os amigos da casa mais acreditados em coisas de arte, afianavam que se tratava duma falsificao. Ou, quando muito, duma obra do atelier de Rembrandt mas dum dos seus discpulos. Havia, ao que diziam, pinturas originais e outras esprias que se reconheciam porque no tinham mos ou estas se encontravam dobradas para vencer a dificuldade de as desenhar. A Ronda da Noite dos Nabasco sofria desse defeito ou digamos que evasiva do seu autor. Mas o quadro abandonado na casa da Ronda continuou a estar presente nos sonhos de Martinho. Adormecia, e l estava A Ronda da Noite com os seus cavaleiros a tomar medidas para incorporar um cortejo mas pouco dispostos a colaborar, s a gozar a sua liberdade. Martinho acabou por tomar o sonho como uma premonio e isso aumentou a confiana nele prprio. Acreditava que lhe estava destinado um papel no mundo e que, como Cristo, nascera num lugar desconhecido para melhor formular um pensamento original. Era, aos doze anos, um rapaz de paixes e que facilmente se entregava a desvairadas crises de irrealidade ou de ambio contida. A Companhia do Capito Frans Banning Cocq, como se deve chamar A Ronda da Noite, um homem rico e futuro presidente da cmara de Amesterdo, uma composio atrevida duma cena que no reflecte o passado. No a pose de qualquer coisa que deve ser lembrada na sua imobilidade acadmica, mas um momento em que aco se junta com uma espcie de entusiasmo fogoso. No o que aconteceu que l est, mas um acontecimento em vias de se produzir. Por isso que, to inesperadamente, como o smbolo da inspirao, aparece a menina luxuosamente vestida, como uma figura de procisso mas qual no foi distribudo o seu papel. Martinho reflectiu nisto, ou seja, na Companhia do Capito Frans Banning Cocq, como numa charada que lhe fosse proposta a ele somente. Como lhe explicou um amigo da av, provavelmente algum que a tinha amado quando era nova, A Ronda da Noite no significava nada de militar, mas talvez uma confraria que se prepara para se juntar em dia de festa, tendo frente o capito Cocq e o seu lugar-tenente, vestidos para o luxuoso retrato em propores grandiosas. To grandiosas que no coube na parede da cmara de Amesterdo. Quando o capito foi eleito presidente, ou burgomestre, quis dar ao quadro o lugar conveniente; s que no cabia. Ento mandou cortar o tambor e uma parte esquerda, sem prejuzo da cena, ao que ele julgava. As suas relaes com Rembrandt, que era ntimo dos burgomestres
e os pintava com grande respeito e sofisticao (quem paga tem direito mincia e at a um olhar desvanecido) favoreceram o estilo do quadro. Um estilo eufrico, prprio duma alegre parada que se prepara na melhor das intenes, simulando gente armada mas, de facto, sem movimento blico. Martinho lembrava-se de que quando Maria Rosa punha o colar de prolas, Bento Webster, que tinha tido numa trajectria pelas casas de vinhos, a visitava. Pelo aspecto que ele tinha, tendo j dobrado os sessenta anos, fora um elegante cavalheiro que fazia poesia e agradava s mulheres. Usava ainda luvas de camura clara e Maria Rosa tratava-o com deferncia, como se ele fosse parente da rainha de Inglaterra. O bigode loiro e a corpulncia majestosa, faziam supor que fosse um filho do rei D. Carlos. Tambm havia a hiptese de Bento dever a paternidade ao Infante D. Afonso, a quem chamavam o arreda porque passeava em Lisboa a conduzir os seus Mercedes com mo mais inbil do que segura. De qualquer modo, Bento Webster Soares era um homem de sociedade, casado com uma senhora da provncia, do tempo em que a provncia tinha pequenas cortes lindamente servidas de jovens e de peixe assado. Ele enganou-a sempre, porque um poeta sempre um Eros faminto de emoes novas. Cultivava a dor imaginria e a nostalgia dos emigrados, ainda que nunca tivesse sado do Porto nem isso lhe fizesse falta. S depois dos anos cinquenta, mais precisamente depois da segunda Guerra Mundial que as pessoas comearam a querer viajar, mais por curiosidade sexual do que por esprito de aventura. Maria Rosa, s depois de casar saiu do pas e foi ao Louvre conhecer a Mona Lisa, que estava, muito vulnervel, altura dos olhos de qualquer estudante. No geral, s os ricos iam para a neve, em Saint Moritz, e davam a primeira queda antes dos vinte anos. Maria Rosa, aos trinta e seis anos era o que se chama uma mulher que apetece elogiar, justamente porque no se tem a ideia de casar com ela. Era culta, polida, inteligente; e tinha muitos apaixonados, casados e solteiros, e sobretudo daqueles rapazes em vias de ficar solteires por excesso de bom gosto e pela faculdade, que alguns tm, de antecipar as coisas, como a felicidade improvvel no casamento. As mulheres costumam respeitar os incasveis e permitem-lhes que entrem nas casas delas como se fossem maridos platnicos. Bento Webster Soares pensou em tirar uma mulher dos braos dum marido, seno por algumas horas, ao fim da tarde. O adultrio tem o seu horrio, como o calista e as provas na modista tinham o seu. J no h calistas, no Porto creio que tem dois ou trs; foram substitudos pelas manicuras, o que no a mesma coisa, nem se lhe compara. - Um calista era uma arte, uma manicura uma profisso - disse Maria Rosa, que tinha estranhos dilogos com Bento Webster. Como poeta, como homem, como tudo, ele estava fora de moda. Era destes homens de quem se tem vergonha de ser vista a almoar no restaurante, mas que se convida para
jantar. Fica bem mesa e no se embaraa com os talheres. Do seu trato com ingleses, tinha uma sombria simpatia pela jardinagem; depois de regar o jardim (havia muitos jardins no Porto) vestia o smoking nem que fosse para comer uma talhada de vitela fria que j tinha trs dias de frigorfico. Nunca desejara ser rico, isso pertencia a um mundo que a alma viril no habita. Detestava as mulheres muito novas e os pickles de conserva. - Ambos so legumes avariados - disse Webster. Martinho ouviu isto, tinha oito anos, e pensou que Bento Webster Soares era de desconfiar. Desconfiava das pessoas adultas como se fossem ladres ou chantagistas em potncia. Um dia o colar de prolas da av desaparecia e s ele sabia quem o tinha levado no bolso do sobretudo. O colar de prolas que servira vrias vezes como cauo, quando as finanas estavam por baixo e no havia dinheiro seno para as despesas elementares. Para comprar um bonito par de prolas cinzentas, no havia; nem para trazer para o salo o espelho de Veneza com aquela moldura de flores de cristal, no havia. O suprfluo, o que envolve o prazer sensvel na sensao dum objecto belo, arrastava-os como a paixo do jogo. Os Nabasco jogavam por prazer e no por vcio. De resto, tinham a ideia de que podiam suspender de repente uma vasa, levantarem-se e ir embora s porque o txi chegara. No era verdade mas - que importa? A verdade era uma coisa prescindvel e no de todo se podia avaliar. S os ricos sabem o valor do dinheiro, dizia o Nabasco, fumando a sua cigarrilha que lhe dava o prazer dum beijo. Como Maria Rosa odiava aquela cigarrilha! Ele fumava como se fizesse sexo, com uma lentido mascada, uma visvel audincia dada ao prazer. Nunca a beijara daquela maneira; com aquele contido ardor, o silencioso pasmo de se achar possudo. "Nem eu queria" - disse ela. E veio ao de cima um vmito, como se tomasse conscincia da sua violao, qualquer coisa que a segurava terra e punha dentro dela um insecto a que era preciso dar um nome e uma identidade. - Que querem de mim? - disse ela. A ideia de que um dia no daria luz, nem teria prazer nem dor, agiu nela como um sedativo. Libertao do desejo e da morte. Era decerto isso que estava na Ronda da Noite. Gente que se preparava para um festejo, a sua liberdade; mas estava armada e vestida como se de antemo lhe destinassem um papel que no tinham escolhido. O burgomestre vestido para presidir sesso solene com a sua faixa de gala e os sapatos de laos das grandes ocasies; o lugar-tenente, segurando a acha com que daria sinal para a audincia comear. O chapu com plumas brancas no podia ser mais adequado. As botas acima do joelho, as galochas a meia-perna. A casaca bordada com arabescos e os cabelos ondulados como que com ferro de frisar. E atrs dele as armas aperradas, os piques alados, risos e exclamaes. O tambor-mor, o tal que ficou mutilado porque no cabia na parede; um belo cavaleiro de gola frisada como s se frisava em
Amesterdo; os cascos, as mos toscas, a bandeira, um negro ou um gnomo que foge por entre a multido. A criana luminosa e feliz, to vontade no meio dos homens que vo desfilar e no combater. De repente, tudo pode mudar e todos tomam um lugar diferente na parada. As expresses mudam, aquele que est escondido atrs dum brao estendido, adianta-se. um espio, o que sabe qual o rumo a tomar? O burgomestre sabe alguma coisa, tem um olhar surpreendido, vai tomar a palavra. Ter tempo para isso ou apenas um gesto teatral, ensaiado, inofensivo? Pode ser mal interpretado e o capito Cocq est em riscos de fazer da sua Companhia um monto de cadveres. No est previsto e tudo est em movimento. O desfecho? A menina no conta com nenhum desfecho e tem o rosto inocente e est vontade no meio da gente que ela conhece bem, todos familiares e que lhe prometeram um lugar importante no desfile. Nos seus sonhos, Martinho, quando tinha sete anos, gostaria de se vestir como a menina, a pequena Saskia, uma herdeira rica. Punha uma camisa da av, do tempo em que se usavam as baby-doll, e danava abrindo os braos, sem parar. Maria Rosa surpreendeu-o mais de uma vez e bateu-lhe. Arrependeu-se logo porque Martinho no percebeu se tinha feito algum mal. Tinha os olhos cheios de lgrimas mas no se queixou. - No quis magoar-te - disse a av, embaraada. - No gosto que mexas nas minhas gavetas. - No estava fechada. - o mesmo. Tira isso e vamos almoar. Deixou-o s para que ele se despisse, e o quarto tomou a dimenso dum teatro, com o arco que separava a alcova da sala onde estava o cofre e os restantes mveis. Abria para uma varanda envidraada com estores de lona branca; era a casa-de-banho, ocupada a todo o comprimento pela tina e as outras loias dum verde claro. Na borda da banheira, a esponja parecia ainda hmida. Estava a apodrecer e tinha uma cor parda de carne cozida. Martinho odiava ser lavado com ela, era como um animal morto boiando na gua espumosa. Pensava laboriosamente no que tinha feito para encolerizar tanto a av. Havia mistrios no comportamento das pessoas e, como na Ronda da Noite, elas dissimulavam qual era o papel que desempenhavam. O av Nabasco, que Martinho conhecera desde os quatro anos e depois ele desapareceu, com o cabelo cortado escovinha e o ar divertido que ele punha para falar com crianas! Dizia sempre uma adivinha difcil de perceber e tratava todos como se fossem idiotas. S fazia uma excepo para os Cunhas, a dinastia de criados que o serviam e em que ele depositava toda a confiana. Ado e Miguel, ao mesmo tempo hortelos e capazes de cozinhar e servir mesa como ningum. Tiravam os pratos pela direita e punham outro pela esquerda. Ou seria o contrrio? Martinho gostava de estar na cozinha com eles e com Ana, a irm feia como um trovo, mas a melhor criatura do mundo. Parecia horrenda, tinha sempre os cantos da boca molhados, e os seios caam-lhe at barriga.
Ficara sempre apegada aos costumes da sua aldeia e, noite, metia a camisa numa bacia de gua para afogar as pulgas. -J no temos pulgas, Ana Cunha - dizia a av. - Tanto faz. - Ela gostava do seu ritual, de tomar ch de cidreira noite, de acender lamparinas aos santos, de fazer dieta quando era menstruada, isso at depois de velha e seca por dentro. - So coisas minhas, sinto-me bem assim. - A Ana Cunha uma bruxa, tenho medo de comer o que ela faz - diziam as novas, as dos quartos, as brunideiras e criadas de meninos. Mas no resistiam porque ela era boa cozinheira. Estava sempre s voltas com as massas e os refogados, via passar com amargura o tempo da boa mesa, dos grandes assados de peixe e dos capes recheados. Agora poupava-se, sem falar na guerra em que se comia soja e se adoava o caf com mosto. Ela durou pouco depois do armistcio, a grande Ana Cunha. Deixou o oiro Maria Rosa e dela pouco ficou; os aventais remendados no ventre porque se coavam ao roarem-se pela borda da mesa e pela pedra do tanque. Tinha sempre alguma pea de roupa ensaboada no lavadouro, embora se usassem mquinas para tudo. Martinho teve sempre um pouco de medo dela. - A Ana Cunha era uma santa - disse a av, olhando para as mos que comeavam a encher-se de manchas. Quem a substituiu foi a Elisa, uma sobrinha que, essa sim, era bonita a valer. Alta, de cor morena clara e os cabelos pretos sempre a escorregar-lhe para o rosto. Rosto cavado, olhos grandes, um ar de deusa prestvel e singular. Foi casar com um tio que estava no Brasil e que ela nunca tinha visto. Assim se perdeu um modelo para um costureiro do melhor que h, em Paris ou na Itlia, ou por a. Depois de enviuvar, voltou e nunca mais saiu da casa. Martinho no se esqueceu da clera da av quando o viu danar com uma camisa dela vestida. Quer dizer: esqueceu-se mas, quando j era homem, lembrava-se; e parecia-lhe que ela tinha surpreendido alguma coisa de alarmante, como se visse a esttua de Galateia tomar forma sob os traos dum rapazinho. De vez em quando (os Nabasco eram novos ainda, e at aos vinte e oito anos perdoava-se-lhes tudo: dvidas, mulheres de m fama e excentricidades maiores) acontecia qualquer coisa que ficava no rol dos segredos de famlia. Por exemplo, quando Filipe Nabasco se apaixonou por uma afilhada dele e da mulher e se separou de Maria Rosa. No foi viver com a jovem, mas deu-lhe casa e um bem-estar de acordo com o nome dele. No houve filhos e dizia-se que o Nabasco nunca lhe tocara. A predileco que Maria Rosa tinha pela afilhada incomodou-o tanto que quis assumir a paixo por ela quando afinal o que sentia era cime pela mulher. Foi uma poca de grande sofrimento para ambos, mas tudo acabou em bem e o Nabasco veio envelhecer para casa dele, passada a sua voracidade dos sentidos que ningum foi capaz de suspeitar. Ou talvez fosse. As pessoas no deixam escapar nada do que a onda dos afectos em que dificilmente sobrenadam e raramente se salvam. Todos vivem numa comunidade,
ligados pelo sentimento de se protegerem, mesmo que tenham de derramar sangue para isso. Houve um momento em que a afilhada correu perigo de vida. Acima de tudo estava a camada nobre do procedimento e a unio quase perfeita do casal Nabasco. Rangiam dentes, estalavam ossos, sob a presso do eros insatisfeito. Mas era preciso assim para que o mundo rolasse no sentido que lhe fora dado. A morte de Filipe no foi um drama para ningum. Maria Rosa estava cansada de cuidar dele e o primeiro luto que fez quando soube que o marido estava condenado, durou pouco. Depressa retomou os seus hbitos e ia jantar com as amigas ou a Londres comprar qualquer coisa que lhe fazia falta. Os ricos so pessoas muito especiais, vivem por sua conta, que uma coisa que mais ningum faz. O gosto, que tem a tendncia a estabelecer os princpios da moralidade, influenciado pelo preo e no pela noo do sublime. O jogo da sensibilidade, desde que no haja um factor exterior que ameace o estado das coisas, facilmente atribudo ao bom gosto, seja no vestir, ou no gozar um espectculo ou escolher um marido ou uma mulher. Filipe Nabasco, uma vez perdida a esperana de recobrar a sade, viu crescer sua volta os hbitos em que teria que morrer e que eram o seu ltimo passo na Ronda da Noite. Maria Rosa ficou senhora do neto desde que Paula tivera filhos do segundo matrimnio, os cadetes, como ela lhes chamava. Casada com um oficial da marinha, que resumia a vida social ao crculo da sua patente, Paula depressa abandonou as praxes da famlia e j no aparecia no Natal nem nas frias. Perdeu pouco a pouco a memria de Martinho, de quem se orgulhava apenas quando lhe diziam que crescia em graa e em sabedoria. No era um rapaz dotado para os tempos futuros porque no se enquadrava no comum. Em parte devido sua educao de prncipe, com preceptores mais do que com profissionais do ensino. Martinho chegou aos quinze anos muito ignorante da vida de rapaz, ainda que a av lhe proporcionasse companheiros de brincadeiras enquanto viveram no lugar da Maia, numa pequena propriedade de recreio que tinha uma histria secreta. Constava dum chal pequeno onde s cabia um casal e dois criados e talvez uma cadela biegle. O lugar chamava-se Aguas Santas e nos primeiros anos de vida de Martinho pertencia a um amigo de Filipe Nabasco que faliu estrondosamente arrastando na runa a famlia e a amante titular para quem ele comprara o chal conhecido pela Casa do Co pela exiguidade do tamanho. Mas o parque era assombroso, com um pequeno bosque de rvores raras e, no meio do bosque, um lago, com uma ilha. No meio da ilha um pinheiro rasteiro e a sombra inquietante dos seus ramos. A propriedade, de recreio, como eu disse, estendia-se em u, ladeada por tlias gigantes. Ao lado havia uma boua onde pernoitavam os paves que, como se sabe, gostam dos ramos altos. A lenda de que os paves trazem desgraa no sei de onde veio. O seu grito estridente talvez concorra para a triste fama que tm. Mas, a verdade que o antigo dono de guas Santas se suicidara pondo o
cano duma arma de caa debaixo do queixo e disparando. Tinha construdo uma garagem no lugar duma capela que mandou arrasar, e aquilo contribuiu mais ainda para o mau nome da propriedade. Nesse tempo era muito vulgar os grandes capitalistas, negociantes ou donos de fbricas, terem uma amiga nos arredores da cidade a quem dispensavam todas as atenes, menos uma: a da liberdade. No podiam sair vontade pela cidade nem receber seno a modista ou o estofador. Quanto modista era algumas vezes cmplice nas escapadelas que faziam ao regime de sequestro. Estas amantes eram em geral muito bonitas e chegavam a casar com os seus protectores caso eles enviuvassem. Pelo que os filhos no se atreviam a condenar o pai, com medo das consequncias que eram o nascimento de irmos bastardos, legitimados e com direito a herana. De qualquer maneira, a amante era um valor comum e inalienvel. No se diga que havia enganadas entre mulheres to prevenidas. A seriedade era uma divisa, no um sentimento. A poltica era uma frmula negocial; o poder uma fonte de informaes cuja dinmica ntima respeitava s grandes fortunas. Os bons cidados conhecem-se no pensamento de Danton: "O legislador deve conciliar o que convm aos princpios com o que convm s circunstncias". Mas, falava eu de Aguas Santas e da Casa do Co. Muito antes de Filipe Nabasco ter comprado a propriedade (de recreio, note-se bem, o que sempre funesto para um homem de negcios) j pesava sobre ela a lenda duma fatalidade. Houve um suicdio, depois um criado perdeu a vida a descer a uma fossa para a limpar; houve incndio numa mansarda deixando a casa em muito mau estado, at que o dono dela se cansou de tantos acidentes e a vendeu a um amigo. Em pouco tempo, por fraude e ms companhias, este ficou arruinado. extraordinrio o nmero de pessoas que no levam at ao fim uma vida slida e bem ordenada. Pode dizer-se que se cansam de ser perfeitos e optam pela alterao da vontade que os leva a cometer loucuras: como perder tudo o que tinham, guardando apenas o suficiente para alimentar um vcio qualquer, sem demasiada extravagncia. Morrem como vtimas de qualquer sina funesta, mas na verdade entregues a uma preguia profunda de que no conseguem ou no querem libertar-se. Com o peso dessa m fama, Maria Rosa Nabasco no descansou enquanto no mudou de casa. Mudou para outra maior, na vizinhana, mas nem por isso se desfez no seu esprito a aura da fatalidade. Filipe Nabasco, antes de morrer, fez um pedido estranho. Quis que A Ronda da Noite voltasse a ser posta na parede da sala de jantar, caso o Torreo Vermelho viesse a ser comprado por Maria Rosa. Se havia nisso a inteno de desfazer um malefcio, no se sabe. Confessou que, quando era criana, tinha pintado pequenos sinais com tinta da China, nas caras da Companhia do capito Cocq, e que no pareciam mais do que a picada duma pulga. O sentimento de ter ofendido a obra de Rembrandt
apareceu hora da morte com atroz clamor da sua alma e mandou que se limpasse em A Ronda da Noite todo o vestgio de vandalismo. Mas no se sabia como comear, pois no havia traos visveis de qualquer dano. O prprio Martinho se lembrava de ter visto um dos seus amigos marcar o quadro com pequenas cruzes e sinais ortogrficos. Mas onde estavam eles? Com o tempo tinham-se incorporado na pintura e no era possvel detect-los. Os Nabasco, ou o que deles restava, estavam entrincheirados na sua nova casa e era a quarta vez que mudavam, penduravam cortinas e adaptavam os mveis a diferentes espaos. Quem mais censurava aquelas alteraes era Ana, a cozinheira. Estava habituada ao seu fogo de quatro bocas e cavidade com carvo onde fazia as torradas e no se cansava de queixas e indirectas. Cada vez se vivia pior com tantas mquinas que ela se recusava a manobrar e at danificando-as por vingana herica, em honra do tempo passado. Estava cada vez mais parecida com a Calib de A Tempestade, e sofria de diabetes, pelo que lhe cortaram dois dedos dos ps. A voz dela, pedindo aos gritos que Maria Rosa a fosse ver, ouvia-se desde o fundo da escada. No a escada em caracol da Casa do Co mas outra, em leque, com corrimo de ferro forjado. Maria Rosa, viva, bem parecida, com fortuna indetectvel e que se dizia estar a bom recato na Sua, teve ainda pretendentes, o que causou em Martinho profundo espanto. Aos sessenta anos Maria Rosa sentia-se como que confortada com os santos sacramentos: nada lhe faltava, o Senhor era o seu pastor nos verdes prados, mas um homem era a sua ideia mais consoladora. Mas uma viva tem sempre um escrpulo em casar, a no ser com algum a que o primeiro marido no pusesse objeces. No encontrou paralelo com o Nabasco de dezoito anos, que tinha sido "a cidade" da sua vida. Aquela que tem portas terrestres e portas celestes; a que tem torres que travam as tempestades. Mas muita coisa ia acontecer. Tinha retratos dele que enchiam uma grande gaveta duma cmoda; Filipe aos sete anos com um chapu de rfia e de calo; Filipe aos doze quando era o prncipe Sandokan de todas as meninas em frias. Nadava bem e lanava-se de bicicleta como um corredor da volta a Portugal, ou melhor, da Itlia, em competio com os maiores. Com Copi, cuja fama de campeo estava estampada nas pedras das estradas. "Forza Copi!" Aquilo, anos mais tarde, ainda arrepiava a pele do Nabasco, em viagem com Maria Rosa, um pouco mais de recm-casados. Tinham-se amado mas com reservas, porque ela no correspondia flor das noivas, a quem as soquetes ficavam bem. No tinha as pernas to altas e finas como ele desejaria. E era demasiado inteligente para o gosto dele. O pai Nabasco fazia troa. - Quiseste uma doutora, agora aguenta-te. Maria Rosa no era doutora, no tinha nenhum curso, mas a memria dela era surpreendente. Retinha tudo o que lia, que ouvia, que lhe passava diante dos olhos. No se parecia com uma dona de casa ligeiramente decepcionada mas assente nos seus deveres. Criara Paula com bons exemplos e
mandara-a educar por freiras que a ensinaram a falar com rapazes e a sentar-se com decncia e orgulho, o que muito difcil de aprender. Um orgulho de maneiras e de nome de famlia, que nunca se esquece, nem que se atravesse o deserto em fuga aos soldados do fara. Paula dera-lhe Martinho, um rapazinho dcil que pensou educar na Inglaterra em colgios nobres. - Para qu? - disse o Nabasco. - Sai de l um parvo chapado com manias excntricas. - Que manias? - A de ir Grcia no Inverno e a de comer roast-beef frio. Por exemplo. - Sempre se comeu roast-beef c em casa. - Ela lembrou-se das travessas de cristal com massa alourada no forno e dos grandes pedaos de carne em sangue, cheirando a queimado; a mostarda, os pickles, o vinagre de vinho, a soja escura. Comia-se bem nos Nabasco. Era por isso que Filipe no arredava p. Gostava do seu banho quente, do sabonete ingls, de quem lhe cortasse as unhas dos ps. Tinha uns ps bonitos, rosados no calcanhar, palmas um pouco curvas. Usara meias de seda quando era novo, e ligas pretas. Mas no queria admitir que as usara, porque era coisa de gigol ou no sei qu. Martinho tomara conta da casa quando Paula se foi embora com o novo marido. Um marinheiro, imagine-se! No havia marinheiros na famlia dum e doutro lado. Ganhavam pouco, no se riam, tinham ideias fechadas a qualquer fantasia, eram justos, no davam gorjetas. Maria Rosa e toda a gente l de casa andavam de txi de c para l, davam esmolas como se fossem afogar-se a seguir, no reparavam nas contas e pagavam s cegas sem perguntar o preo. Tempos felizes, sem clculo, sem deve-e-haver. Paula ia s lojas e mandava ir as compras a casa sem saber o custo de nada. Era um vcio quase contemplativo o de deixar um rasto de abundncia por onde passava. Alm de que era bonita como o sol e se vestia como se vestem as elegantes sem moda ou moda do ano passado. Tinha cabelos lisos que lhe faziam sombra nos olhos. Martinho tomou o lugar dela, o lugar de tudo. O Nabasco esfumou-se como o mgico da lmpada, e adeus aos banhos de espuma e s tesouras das unhas douradas. Martinho era o senhor da casa. Se chorava, era um levante, corriam todos, havia sempre no fogo um lote de biberes fervidos e as retretes entupiam com as fraldas descartveis. Mas ao v-lo rir tudo se compunha; Maria Rosa deitavase no cho para o ensinar a gatinhar e fazia de leo, de urso, de coelho franzindo o focinho. Martinho no gostava de brinquedos, to deliciado ficava com a av e com as invenes dela, os teatros que ela armava, as histrias que interpretava, as mgicas que lhe saam das mos. Estava apaixonado por ela como nunca mais esteve por ningum. Se no a via, encolerizava-se, atirava com tudo, batia em toda a gente. Quando ela voltava da rua mostrava-se ofendido e aquilo durava o dia todo. - Fazes mal a essa criana - dizia Nabasco. Estava resignado quela felicidade, na Ronda da Noite ocupava um lugar de fundo, escurecido entre figurantes e o fulgor da festa em preparao. Martinho
tinha quinze anos quando ele morreu e Paula veio para o enterro a fazer-se uma carpideira. Martinho no apareceu e da por diante no se encontravam muito. Maria Rosa no abriu a boca, tinha-se fechado uma porta que ela no queria seno fechada. - Agora estamos ss, tu e eu. - Estamos bem assim - disse Martinho. Estava um rapaz crescido, meio loiro, com uma barba que despontava como um vu sobre a pele lisa. No se parecia com ningum, fora buscar uns genes ingleses no se sabe de que natureza porque no havia bifes na famlia, como dizia o Nabasco, que no tempo da guerra foragermanfilo. Bento Webster Soares, que era empregado numa casa de vinhos, punha-se muito formal; respirava por todos os poros Sua Majestade Britnica e entristecia-se at s lgrimas com os amores contrariados da princesa Margarida. "O terrvel sangue dos Tudor" era uma maldio que ele sentia como se fosse sua. Webster foi um dos preceptores de Martinho. Podemos v-lo na Ronda da Noite em terceiro plano empunhando uma bandeira meio desfraldada, e notrio que ele est em cima dum degrau, um quinto ou sexto degrau duma escada. Se repararmos, A Ronda da Noite ou a Companhia do capito Cocq, est disposta, seno amontoada em cima dumas escadas; e, nesse aspecto, o problema da atribuio de valores fica resolvido. Cada um ascende at onde lhe possvel, quer seja por mrito prprio ou condio social. H os que no podem ultrapassar o seu grau de obscuridade; ou os que aspiram a valorizar-se mediante uma filiao de partido; ou ainda os que ostentam uma insgnia castrense, o casco, o fusil, o basto e a faixa. O rumo no estava ainda definido, muito menos o percurso. Mas arvoravam todos j os ttulos e as misses, ensaiando as posies e posando para a Histria que possivelmente ficaria muda a seu respeito. A casa do Torreo Vermelho foi a ltima residncia dos Nabasco. Se bem que o lugar se tivesse tornado ruidoso demais, a propriedade resistia mesmo depois de se ter declarado um incndio que arruinou uma parte, o lado oeste, se que no estou em erro. Para alm dos muros parecia que pouca coisa tinha sido alterada. Excepto uma certa grandeza ociosa, propcia para os dias de Vero em que se jantava no jardim e se comia lagosta fria ou espargos frescos. Isso tinha acabado, no por falta de dinheiro, mas porque a riqueza j no estava a ser levada com frivolidade e merecia maior discrio. Agora eram os suburbanos que iam para a neve ou para os parasos tropicais. Maria Rosa mal se atrevia a sair de casa, e o nico luxo que no escondia era o do seu cabeleireiro. Comeava a preocupar-se com o casamento de Martinho que fizera vinte e cinco anos. No era um rapaz como outro qualquer. Nunca ocupara um lugar de chefia ou outro, e h duzentos anos que se vivia de heranas sem contudo se ignorar o mundo e as suas oportunidades. Um dos antigos tinha tido um castelo em Aosta, outro morrera em Espanha combatendo os vermelhos. Nesse tempo, um rapaz
com uma data de privilgios ia para a guerra de Espanha como se fosse para a Legio Estrangeira. Caa-se nesse buraco na areia por ladro ou fugitivo, tambm por amores mal parados. s vezes eles eram cumpridores da disciplina de quartel e evitavam a promiscuidade, o que fazia com que se tornassem invisveis. Os Nabasco eram catlicos como se esperassem ser sagrados reis pelo prprio Padre Eterno. Isto at uma certa data. Quando se deu a revoluo de Abril, Maria Rosa fez as malas, enrolou a Ronda da Noite e meteu-a no forro da cavalaria, na Ronda. Foi para o Brasil passar umas frias que se anunciaram maiores do que o costume. No se deu com o calor, as comidas, a praia e uma certa melancolia arrebatada que se consumava no carnaval. O carnaval nunca lhe pareceu uma coisa alegre mas uma fantasia de colonos saudosos. Alm do mais, Martinho deixou-a no Rio e foi-se embora. - Este rapaz merecia umas chicotadas - disse o doutor Horcio, que o achou bem de sade e sem explicao para aquela atitude. - No atitude. que eu l no fazia nada. - E aqui o que fazes? - Vivo, como disse Barras. No dou na vista e passo por parvo. Quem era exactamente Martinho nunca foi averiguado. Se fazia parte dalguma elite de espionagem, isso parecia ridculo num rapaz que no teve preparao de nenhuma espcie, nem escolar, nem comunitria, nem mesmo profissional. Era um rfo da opinio pblica, podia dizer-se que era um incolor com ideias. No desejaria por nada no mundo ser includo naquela massa de gente cujo descontentamento se cura com uma liberdade moderada. Ou, pelo menos, o melhor meio de conservar uma chaga sem perigo de infeco. As vezes podia-se avaliar do seu comportamento uma alma nobre e singular. Outras vezes parecia perto de estar a pairar sobre todas as cabeas sem lhes dar importncia; mas a verdade que Martinho sabia que chega um tempo em que o crime mais terrvel pode ser cometido sem que cause muita reprovao; porque ele germinou desde h muito no corao das pessoas e s preciso que ele se conjugue com o competente discurso. Aconselhou av que no se mexesse at que o uso da fortuna tornasse o seu regresso mais confortvel. O que causou estranheza foi o facto de o Torreo Vermelho no ter sido ocupado pela gente necessitada dos bairros pobres. Todas as revolues tm o seu vandalismo, e esse evitou o saque e coisa pior. Ele era algum protegido ou apenas escapava pelas malhas do acaso que pode parecer justia do poder? Era um desconhecido, poucos o reconheceriam se fosse acusado ou suspeito, de tal modo no tinha identidade pblica e no tinha hbitos nem registo de faco, no alimentava querelas, no escrevia nos jornais, no frequentava clubes e no se demorava com as mulheres. Tambm no as
evitava. Saa com companhia e durante uma semana parecia interessado. Depois tornava-se negligente ou puritano, conforme lhe convinha. Chegou-se a pensar que ele era homossexual, isto constou nas famlias que tinham filhas para casar e de quem Martinho ignorou as intenes. Ele era um bom partido e, embora estivesse murado numa cripta que era o Torreo Vermelho, haviam de descobri-lo e chamar por ele. Bento Webster no compreendia. - Com perto de trinta anos ou te casas ou vo achar-te um ingrato. No te so concedidos tantos prazeres frvolos, tanta ociosidade incorrigvel, sem pagares o teu tributo que dar aos ricos o que dos ricos, o teu dinheiro, o teu sangue e a tua vontade. Aprende com as coisas simples. Maria Rosa espaava as notcias, ou as cartas dela no chegavam ao destino. As pequenas causas no geravam grandes efeitos como antigamente se dizia, e Martinho mudou de repente os seus hbitos e tornou-se instvel, mentindo de maneira compulsiva sem que isso fosse reparado. A sua vida parecia ser a dum invlido e ele movia-se vontade porque no constava seno como algum efmero e de pouca resistncia. Justamente o que ele tinha era uma resistncia mental extraordinria. No se opunha a nada mas fabricava constantemente uma espiral de movimentos, de paixes, de violncia sem significado aparente, que servia para se defender, desqualificando qualquer ataque antes de este se produzir. O mundo estava preparado para a carnificina e esta era introduzida no sistema de todas as maneiras. Maria Rosa apareceu um dia e, sem o beijar, sem pousar as malas, disse: - Se no te casas, caso-me eu. preciso que algum faa alguma coisa. Que tal cultivar a nossa horta?
CAPTULO III O MUTANTE O estado de Martinho foi considerado crtico. Em reunio de famlia, a que faltava Paula e todos os da casa dela, deliberou-se uma coisa: que Martinho estava a caminho duma hipocondria. No uma depresso, que essa era uma tendncia do povo portugus, mas qualquer coisa relacionada com um choque emocional. O que no parecia plausvel, porque Martinho no chegara a recear nada na vida e quando a av adoecia ele ia para a ilha de S. Giulio, no saindo seno para voltar para casa. Distribua gratificaes por tudo e por nada e tinha um paquete s ordens para ir farmcia comprar-lhe plulas e xaropes. Quanto a mulheres, no se interessava, ainda que, ao sbado, ficasse na borda do passeio a ver os recm-casados que eram fotografados e chegava a ir beijar a noiva como se fosse da famlia. Como tinha tido uma febre tifide em pequeno, atribuam-lhe o que parecia um estado de confuso a uma infeco antiga. Mas Horcio Assis, o mdico que defendia Martinho de qualquer calnia incipiente, sobretudo no que tocasse a uma possvel impotncia, mostrava-se contrrio a esse diagnstico. Na sua opinio, tudo era resultado duma educao de isolamento e falta de competividade. Nada o afectava e a Revoluo parecia-lhe uma transio para outra via de intolerncia nervosa dum povo inteiro. Porque Martinho era inteligente a ponto de perturbar algum se travasse relaes com ele. Webster considerava-o um mutante, uma espcie que no se produzia em grande nmero e que no tinha antecedentes na escala biolgica. No entanto era, ou parecia ser, uma espcie indefesa, o que nunca sucedera em qualquer dos reinos da natureza. O facto que deixava as pessoas atnitas quando o conheciam e quando o seu sndroma de adaptao se revelava. Por exemplo, no tempo em que esteve longe da av e que os seus hbitos se alteraram, tentou ter amigos e conviver mais. O que deu um resultado funesto, porque eles, arrebatados pela sua inteligncia e pela expanso desmesurada da sua malcia, que era uma forma de criatividade, sofreram as consequncias. Entraram num delrio que, nalguns casos, no foi possvel debelar e que acabou por os perder. A inflao sexual acentuou-se neles e declarou-se uma reaco que os levou morte prematura. No em todos, mas alguns. Maria Rosa achava que o casamento podia trazer a Martinho uma cura qualquer, posto que reconhecia nele um caso de hipertrofia cerebral. No fora moldado por estudos acadmicos nem se sujeitara a uma educao convencional. Como Mozart, desde tenra idade, esteve livre para usar das suas tendncias, o que revelou o seu gnio em plenitude e sempre dentro dum magma maldoso. Como que o casamento podia ser benfico para Martinho no muito fcil de entender ou de todo impreciso. O papel da espcie e o factor social influam seguramente na personalidade de
Martinho; e decerto havia combinaes genticas que actuavam nele mais do que a educao. Mas Maria Rosa era peremptria: Martinho devia casar-se. O seu estado revelava uma falta de disciplina mental que podia ser pelo menos atenuado com a influncia duma mulher. No uma mulher pervertida pela cultura, mas algum muito simples com estrutura mental e facilmente aceite. Durante um par de anos Maria Rosa no viu quem servisse s suas intenes; tanto mais que o doutor Horcio a perseguia com o seu parecer que classificava Martinho como um hipomanaco bem caracterizado pela euforia das ideias. To depressa era espirituoso e meigo, como se mostrava agressivo e sarcstico. Enfim, um tipo humano em que caberia uma multido de personagens de fico. Com os seus olhinhos vivos por detrs dos culos riscados pelo uso, o doutor aplicava a sua teoria, no sem o prazer de magoar Maria Rosa. Sempre a desejara e, por timidez e falta de deciso, nunca se declarara; sendo ela j viva e ainda apetecvel na sua beleza, o doutor tanto pesou as suas intenes que deixou passar a ocasio de as formular por palavras. Maria Rosa guardou azedume daquele desencontro, tanto mais, como dizia, ter um mdico em casa era uma aspirao antiga do seu bero provinciano. Gostava dele e dos seus tiques meio tolos como o de se apresentar dizendo: - Horcio Assis. Horcio, como Nelson. Ela ria-se sempre, o que o fazia feliz. Fazer feliz um homem era um princpio que destronava o conflito. Dava-lhe razo, o que outro princpio de absolvio. S que ao despromover o conflito preparava-se o ajuste de contas que afinal a relao mais usada entre o homem e a mulher. O conflito til como guarda da crise conjugal e mediador entre os dois sexos. - Quero para o meu neto uma rapariga dcil e que cumpra com as vontades dele - disse Maria Rosa, fazendo saltar nos dedos as prolas do seu famoso colar. Quando se sentia deprimida punha o colar e sentia-se mais animada. Uma rapariga dcil e obediente no ia fazer feliz Martinho. Era um mutante, e por isso no correspondia a nenhuma espcie de terapia, tanto mais que se instalara o erro quanto s capacidades humanas para a felicidade. Os homens tm uma preparao inata para a agresso como exerccio de autodefesa. Se esta lhes limitada, aparece a violncia como frustrao. As agresses sob todas as formas: violao, espancamento, abuso sexual invadem o campo social quando se exerce autoridade sobre a forma como ser feliz. As pessoas no pretendem ser felizes mas ser criadoras, o que mais se refere ao homem do que mulher. Em dada altura, quando j estava em crise o ajustamento domstico e as raparigas faziam uma vida de vadiagem com atenuantes, pois eram mais cultas e mais capazes de gerir a sua solido, apareceu o que Maria Rosa tanto ambicionava, uma noiva para Martinho. A verdade que no tinha antecedentes muito recomendveis; ela, e uma irm, eram filhas dum casal desavindo e sempre em vias de reconciliao que logo resultava em pior agravamento das relaes. As crianas presenciavam as cenas
mais degradantes, e isso, longe de as assustar, dava-lhes uma noo de calor humano que o amor mais terno no poderia igualar. Era frequente os filhos de casais que se maltratam, ou at que se excitam com as sevcias em crianas, preferirem esse abrigo doloroso segurana das instituies para onde eram levadas. No a desventura de Oliver Twist que faz dele um pequeno heri, mas sim a sua resistncia ao mal e ao treino das suas paixes perante a ordem inevitvel do mundo real. Ao voltar do Brasil, Maria Rosa deu de cara com a casa saqueada, o papel da parede arrancado, sem que houvesse explicao para isso, e todos os electrodomsticos avariados. Os quadros e as peas de valor tinham sido de antemo negociados com antiqurios. Dez anos ou mais depois, ainda Maria Rosa encontrava um objecto que fora dela, entre o recheio duma loja de bric--brac. Primeiro por preo irrisrio, depois j mais conforme o valor do mercado. Os seus casacos de leopardo e de vison tiveram compradores imediatos. Mas o de chinchila andou muito tempo ao desbarato porque no era conhecida a sua cotao. Uma sociedade de novos-ricos emergia dos escombros das tentativas para chegar liberdade. O que restava, no melhor dos casos, eram os Robinsons da liberdade. A ideia de que era preciso vencer ou abandonar a partida, exigia foras sobre-humanas a um povo habituado sensibilidade caseira ou ao discurso intelectual. Os intelectuais julgavam ir ao leme dos acontecimentos quando eram remadores unicamente. Em poltica, na melhor das hipteses, estava-se na leitura de Gramsci. A linguagem de Gramsci, to shakespeariana algumas vezes, seduz os polticos cultos ou diremos "cultssimos". O que faz com que uma revoluo seja um projecto e no uma vingana, a apreciao dos actos polticos como se fossem actos histricos. amos naquilo que dissemos da noiva de Martinho: Maria Rosa, porque soube da tragdia que lhe manchou a vida (o pai matou a mulher num bacanal de fria) recolheu em casa a criana. No tinha mais de doze anos e era duma beleza casta e com qualquer coisa de falsa ertica. Quando falso o erotismo? Quando se distrai com a festa da felicidade. Uma figura completamente falsa na Ronda da Noite a da pequena Saskia no meio da gente do capito Cocq. No tem mais de cinco anos, era assim que Rembrandt a via com o seu sentimento enternecido mas que disfara, se no anula, uma face tenebrosa da sua humanidade. Quanto mais ele reduz a estatura de Saskia e a faz comer o cogumelo da Alice do Pas das Maravilhas, mais se liberta nela o impulso da infelicidade. O sucesso e a glria tinham o sentido de o tornar insatisfeito? A rapariguinha que Maria Rosa trouxe para casa e no tinha nessa altura mais de doze anos, era filha duma mulher a quem chamavam a Sopa-de-Massa, mas de nome prprio era Estrela. A filha era Judite, como uma tia que tinha, aleijada de nascena, com uma corcunda grande que parecia uma trouxa que troussesse s costas. A menina envergonhava-se de ser Judite porque se lembrava do enorme aleijo da
tia. Quando foi para casa de Maria Rosa disse que se chamava Patrcia, que estava muito na moda. Elisa, a criada de confiana, que pertencia dinastia dos Cunhas, logo que a viu augurou mal dela. - Tem olhos de vaca, grandes demais - disse. Para ela os grandes olhos pintados, eram olhos de vaca. Mas Judite era uma criana bastante vulgar que no se parecia em nada com o que depois foi. Elisa costumava dizer que mulher feia em criana pode ficar bonita e depois recupera a fealdade quando for velha. "O que o bero d, a tumba o leva." No caso de Judite isso dava para arrepiar. A me fora esfaqueada, metida num cesto com as pernas partidas e atirada na linha do comboio, para parecer que fora trucidada. O pai, o assassino, estava a cumprir pena mxima e era, como detido, exemplar. Era um homem alto e de modos graves. Falava pouco e comia de cabea baixa, sem mostrar emoo alguma. Amava as filhas e no as esquecia. Judite, aos poucos, foi perdendo a imagem do pai e dedicou-se a Maria Rosa sem perder a sua posio de afilhada ou acompanhante que lhe dava credibilidade, seno merecimento. Maria Rosa estava preparada para surpresas como a de ver o detido, uma vez cumprida a pena ou meio perdoada, chegar para pedir a custdia da filha. Quanto mais ela estivesse valorizada pela educao e elevada pelos hbitos e redimida pelos gostos, mais ele havia de fazer presso para a levar ou lhe pr um preo. Assim, Maria Rosa no tirou Judite da servido nem lhe deu esperanas de coisa melhor. Todavia, o pai com o tempo deixou de ser um estorvo ou uma ameaa. Maria Rosa passou a dar mais ateno criana que, de resto, estava adaptada sua posio subalterna. Era feliz com a rotina da casa, aprendera tudo o que preciso para manter em ordem a barca da famlia e para fazer feliz um marido que gostasse de comer bem e a horas. A certa altura, vendo Judite a costurar luz duma lmpada que lhe iluminava os cabelos, Maria Rosa apercebeu-se de como ela era bonita, distrada como estava no seu trabalho. Tinha uns olhos dum azul raiado de preto, muito estranhos, e parecia uma candidata a um harm pela raridade do seu tipo. Maria Rosa disse a Webster: - Nunca tinha reparado nela como mulher. uma boa figura. - . Daqui a pouco tem-na a a namorar com o filho dum empreiteiro que tenha um carro vermelho. - Judite no sabe dessas coisas. E muito recatada e simples. Veja como se penteia que parece uma virgem de Murillo. - Vejo, vejo. Mas isso no impede. - No impede o qu? - Que lhe d alguma surpresa. Com as raparigas novas nunca se sabe. Mudam como o vento. - O principal saber de que lado est o vento - Maria Rosa ps-se a contemplar o p, que estendeu para diante como se procurasse o calor do lume. Era um gesto que lhe ficara do tempo em que o fogo de sala era ainda refgio de Inverno e reflectia um conforto perdido, com as badaladas do relgio e o
ligeiro tinir da loia quando a mesa era posta para jantar. Nabasco levantava a cabea quando entre portas via passar a branca nesga dum avental. Era ainda o sedutor caseiro, com olho aceso para as criadas novas, que o desfrutavam, tendo, no entanto, uns sonhos parecidos com um amor tranquilo com os filhos bem tratados, almoando fibras e iogurtes. "Bem tratados" era como se dizia dum animal domstico. Ela estava a moldar aquela rapariga - para qu? No tinha direitos sobre ela, Judite podia abalar com as suas coisas, um colar de prolas de gua doce, um relgio de pulso com correia de crocodilo, alguma roupa de pouco preo. As gavetas com o melhor da sua lingerie, as suas caxemiras, Maria Rosa tinha-as fechadas chave. "Para que, no vendo, no cobice" - dizia, at para serenar Elisa que tinha dentro dela uma inveja dos diabos. Era como um tumor a crescer, a palpitar, a segregar lquidos babosos, sujos, fatais. A sua velhice, a de Elisa, era incmoda. Queixava-se muito, suspirava alto, tinha sempre ao lume um pcaro com chs, com caf requentado, com tudo o que lhe parecesse alimentar-lhe o despeito. Porque cada vez mais estava despeitada por no ter nada seno uma reforma que no lhe dava seno para remdios e para ir terra no Natal. O ouro que possua fora todo prenda dos patres. Pagavam-lhe a dentadura, recebiam-lhe em casa a famlia, em frias ou para fazer anlises ou ir at s festas populares. Depois acabou tudo. J no havia jantares, a casa grande com dez janelas de frontaria e a varanda ao meio, foi abandonada h que anos! As Carlotas, as Beatrizes, as Carolinas, tinham desaparecido, e com elas os bailes de mscaras com as "Marias Antonietas" com chapus de plumas e cachos inglesa. As reunies danantes, os casinos de Vero, as "praias de bolso", como se dizia, porque eram ntimas, em famlia, tudo isso desapareceu. Emlia estava l, conhecia toda a gente, recebia gratificaes e um corte para uma blusa. Do cimo da escada que dava para o Torreo Vermelho, estando j acamada, chamava Maria Rosa. Fazia-a subir dez vezes a escada - e para qu? Para lhe perguntar: - Aquela Vitorinha que cantava to bem que parecia um rouxinol? J morreu? J morreu? - Sei l quem era a Vitorinha! Dorme... dorme... - Aquela que vivia no sei onde e dizia versos. - No do meu tempo. Bem sabia que no era do tempo de Maria Rosa, nem dela Elisa. Mas gostava de humilhar as mulheres todas, ricas e pobres, que lhe traziam saudades da vida de paixes e de pecados, dos amantes e dos amigos, dos patres, dos homens de balco, de todos os que amara de maneira libidinosa ou maternal. Os conhecimentos que ela tinha de sexo enchiam uma enciclopdia. Era uma doutora, iniciava nessa disciplina as meninas da casa que a ouviam, meio por brincadeira mas de orelha afitada como os ces de caa. Como Elisa era mais velha e as suas recordaes se tornavam charadas para Maria Rosa, esta teve para com ela alguma pacincia. Era difcil falar com os velhos, no se entendia
parte do que eles diziam. Os lugares tinham mudado, as casas tinham sido demolidas. Quem falava agora das "praias de bolso"? A da Granja, a do Piolho, a do Molhe? Todos os anos havia um balde novo e uma p para recolher a areia molhada e fazer bolos tambm moldados em forma de peixe ou de estrela. E o fato de banho novo, como a gabardina nova na entrada das aulas, despertavam uma calorosa expectativa! Sempre havia algum que causava maior surpresa, mais entendido na moda. E Maria Rosa voltava da praia amuada, ficava calada mesa. - Que tens, Rosi? - No gosto que me chamem Rosi. Todos j sabem. - Est bem, Rosi. No te zangues, Rosi. Era o irmo, todo bronzeado, com uma boca de rapariga e dentes largos e devoradores. Ele tinha sorte, todos o amavam e queriam fazer parte do seu bando. No era tmido com as raparigas e sabia-se que tinha encontros com mulheres mais velhas com as quais o amor era divertido. Usava sobretudo americana e era o excntrico da famlia. Depois, foi o primeiro a mostrar-se zelador dos costumes e quando lhe lembravam as passadas inconvenincias fingia-se esquecido. Era carinhoso com Maria Rosa e ela teve muita pena quando ele morreu. Morreu de qu? Estava vivo e bem disposto e, de repente desapareceu; no foi cremado e lanado no jardim, como ele queria. Havia ainda pirilampos no jardim. Maria Rosa gostava de pensar que um deles era o irmo, coitadinho. No fim de contas, o que era o amor das pessoas seno aquela cena do trapzio voador, dando as mos, a fazer saltos mortais com a rede, sem a rede, e no fim, se que havia fim, a fazer vnias de ginastas e a sumir por detrs dos reposteiros? E os palhaos rematavam, a fingir que eram ridculos, mas tristes, zangados, com vontade de deitar o fogo barraca. - Rosi, porque ests to calada, Rosi? - E tu que tens com isso? Pensando bem o irmo era quem dava as ideias, quem inventava as conversas. Mas, assim como veio a este mundo, assim partiu. Maria Rosa pensou que se Judite crescesse mais um palmo se tornava numa mulher muito interessante. At podia passar por algum que pertencesse realeza e calhasse de usar uma tiara na cabea. - Por esta que eu no esperava - disse Maria Rosa. Primeiro disse isto ao seu co, que desenvolvera uma inteligncia humana e percebia muito do que se lhe dizia. Mas depois teve de se aconselhar com o doutor Horcio. - No pensava que a pequena se pusesse assim.
Assim, era como um jardim de Maio. Tudo nela brilhava e os seus quinze anos pareciam as pedras dum rio onde a gua passa como prata azulada. O tom de pele de Judite era azul quando lhe dava a luz do poente. O doutor Horcio disse que era um tom de prola. - Qualquer dia o meu neto vai reparar na criatura. - Se no reparasse que era para estranhar. Porque lhe chama criatura? - como se dizia em casa dos meus pais. Algum que est pronta para levantar vo, entre a rola brava e a pega. Os rapazes olham para ela quando sobe a escada, que a melhor maneira de apreciar uma mulher. Porqu? Sei l porqu?! O talhe, a perna, a anca que balana como um barco. Digo-lhe que h muitas que mostram o que so, o que querem e o que vo conseguir, s com subir uma escada. O doutor Horcio pensou que Maria Rosa, velha e com artrite, ainda comovia, ainda era suculenta como sopas de chocolate. - J no se sobem assim tantas escadas. H elevadores. - J no se podem conhecer as mulheres pelo andar. Elas correm, atropelam toda a gente com as mochilas, saltam dos passeios com os braos abertos como se fizessem patinagem. - Fez uma pausa. No sei quem na famlia foi corredor de patins no Brasil. Eu encontrei no Brasil uma data de parentes mas no se pareciam nada para o nosso lado. Tinham raa aimor ou ento japonesa, parecida. A criatura vem trazer o ch. Repare bem nela. Quando entrou Judite, depois de bater duas vezes com a ponta do dedo, o que era talvez a maneira de se distinguir duma criada, o doutor ps-se a olhar para ela, esquecido dele prprio. No via Judite desde o Vero, estava-se perto do Natal. Era extraordinrio como ela se modificara. No era ela, era outra pessoa, segura de si, e isto criava uma indiferena sedutora sua volta. Ser que essa respirao profunda, vinda das arcadas do peito como um jorro de lava, a conduzia a uma passagem at a ignorada, a passagem para a liberdade? Teve pena dela junto com uma espcie de inveja. Como homem, aquele caminho era-lhe interdito. H muito que depusera o seu preo aos ps de neve da liberdade. Seguiu-a com os olhos; mas a estatura dela ondulava na linha do fumo que o cachimbo do doutor, belo homem no seu tempo, agora desfigurado pelo abuso do lcool ou (quem sabe?) por alguma droga cada vez mais ineficaz, levantava no ar onde se tinha queimado acar. Aquele cheiro da sua infncia perturbou-o como se algum espiasse os seus segredos nocturnos. - A minha me queimava acar no quarto quando estvamos doentes - disse, por dizer, como se recuperasse a conversa da distncia onde a deixara. - Como se fez tarde! No vi o tempo passar. Maria Rosa estava a despedi-lo. O doutor reviu todo o percurso feito com ela, tudo em pormenor, os vestidos que ela usava e que ela escolhia minuciosamente antes de se deitar; para no outro dia no ter
desculpa para a demora no quarto - que acabava sempre por acontecer. No saa do quarto sem desmanchar a cama como a cama dum animal morto e que no voltaria mais a servir-se dela. Sacudia as almofadas cujas penas escapavam sempre e ela segurava com o dedo molhado em saliva. E, sobretudo, no aparecia despenteada nem ao gato que a esperava atrs da porta para ir comer o seu prato de biscoito. Era um gato com uma genealogia suspeita, que bufava a desconhecidos e tinha uma ideia muito segura do que era uma poltrona ou uma cadeira. Havia muito tempo que Maria Rosa sujeitava Judite a um exame severo. Disse, mexendo a sua xcara de caf, no demasiado para que o acar no derretesse todo e no fundo ficasse uma pequena crosta como um rebuado que ela comia com delcia: - O que temos aqui? Uma rapariga pouco inteligente, mas Deus sabe o trabalho que nos pode dar uma rapariga pouco inteligente. Ela sabe muito bem o que quer da cinta para baixo, todas as mulheres o sabem. Mas na rea do clon comeam as coisas mais srias. Bento Webster estava nesse dia particularmente feliz. Tinha bebido o seu Porto deixando-o demorar na boca at sentir um ligeiro rano nos dentes. Era um apreciador de Porto, nascera rodeado desse aroma quente e sua mesa, corria, depois de jantar, o frasco de cristal que o dono da casa passava pela esquerda at que o ltimo conviva se servia. A me de Webster, uma senhora alta, com um alfinete de corais preso na blusa, levantava-se e ia guardar o vinho chave. No voltava a sentar-se; os homens ficavam ss. Iam fumar para a sala ao lado e caam numa modorra entrecortada de idas ao water-closet. Juntos, os comensais no eram agradveis, mas cada um por si no deixava de ter qualquer graa e particularidade. Bento ouvia-os contar anedotas e falar de negcios, isto quando j tinha dezoito anos. Saa para a varanda e encostava-se nela. Via os vultos que se moviam a passear na sala. Andavam quilmetros sem deixar a rea da alcatifa cinzenta com algumas ndoas. Nas paredes, quadros com paisagens e mares em fria. Quando estava descontente e se zangava com um amigo ou com a namorada, ia ao paredo de Lea de carro, at que as ondas lhe lavavam os vidros. Era uma sensao forte, de perigo ntimo, que ele no desejava partilhar com ningum. No amava a noiva, casou-se para cumprir com uma obrigao social. Era bonita, mas casaria na mesma se fosse aleijada, at a respeitaria mais porque a infelicidade o comovia profundamente. E escrevia versos. Aos quarenta anos, ou pouco menos, apaixonou-se por Maria Rosa. As outras mulheres punham-na de parte tanto quanto podiam. Era mais culta, lia as pginas literrias e no usava chapu, o que era um pouco subversivo. Uma fitinha de veludo castanho coroava o seu cabelo penteado Diana Durbin. E os rapazes, com medo de desagradar a quem enumeravam como casveis, no a abordavam francamente. Maria Rosa teve sempre uma fama que no era imaculada. Diziam que ia com mulheres para a neve ou
que se deitava com homens ricos que gostavam de privar com parceiras duma tarde da alta sociedade. Nada disto era verdade, mas um pequeno indcio conduz a uma prova sonhada. J tinha mais de sessenta anos e Bento Webster amava-a com o consentimento da mulher dele que era fleumtica como todas as mulheres fiis. Permitira-lhe sempre amores mais ou menos platnicos com mulheres casadas. Elas tm a segurana dum preservativo e no havia o perigo de bastardias. Era ela quem o mandava sair para os seres de Maria Rosa Nabasco. As vezes um aluno do Conservatrio ia l tocar piano. O Porto gosta do fora de moda como se gosta duma msaliance, ou seja, duma inconvenincia com humor. Depois de viva, Maria Rosa continuou a receber os amigos, a quem dispensava cuidados que a inteligncia lhe ditava e que eram quase sempre relacionados com a sade. - No me diga que a sua tosse voltou. No faz nada contra isso? Ele sentia-se querido, amimado, mais do que se a mulher lhe fizesse uma cena de cimes. As grandes prostitutas so procuradas pela sua perfeita cpia do maternal. Mas as grandes amantes conhecem que a alma do homem est no medo da morte. O pulso tem mais poder do que o corao. A Elisa no escapava nada. Chamava fingida a Maria Rosa, fazia trejeitos nas suas costas. Conhecerse como inferior, um reino. Era ela quem odiava a Ronda da Noite, pelas dimenses, as personagens, a cena de que no percebia nada, a mistura de mosqueteiros, arcabuzeiros, brilho de sedas e um esgueirar de pessoas que no era possvel saber o que fazem, o que querem, que utilidade tm. s vezes passava-lhes o aspirador com um pouco de maldade, como se quisesse levar-lhes os bigodes, as faixas, os ttulos e os bastes de comando ou os piquetes de guerra. - Cuidado, nem sabes o que fazes. Isso vale uma fortuna - prevenia Maria Rosa. - No se aflija! - e para as suas entranhas Elisa dizia: "Um dia de chuva em Maio na minha terra vale mais do que isto". Ela era doutros tempos, outras memrias. Havia sempre algo para contar vizinha, grandes queixas, lamrias, como se exibisse valores. O povo portugus lastima-se para ser lastimado, que sempre prenncio de lucro. As pessoas unem-se pela clandestinidade que h em ter sucesso. -se feliz em enganar, porque no engano h sempre um fio de expectativa que nos favorece. Quando Martinho se tornou homem, os amigos da casa viram- se lesados na intimidade que gozavam junto de Maria Rosa. Ele passou a ocupar a casa por inteiro. J no era s nos jantares com os Brandes e os Pestanas e algum ingls de pronncia tortuosa, mas tambm quando o incluam nas conversas propositadamente srias e instrutivas. Martinho desconfiava que entre eles as conversas no eram to solenes. Riam-se como doidos e por pouco se atiravam das janelas de tanto rir e inventar piadas. No fim de contas, Martinho aprendera a ser sisudo, mas o que encontrava eram homens que no
perdiam uma ocasio de se divertir. Parecia ser melhor gozar a companhia uns dos outros e rir com estrondo, do que estar na companhia de mulheres e dar uma boa imagem de cavalheiros. - Av, eles no so recomendveis, ao que parece. - No te fies no que parece - disse ela. - So muito benquistos. Benquisto era uma coisa inseparvel de qualquer deformidade. Ter os ps chatos ou orelhas grandes demais. Martinho via-se ao espelho do quarto de banho que dava sobre os quintais vizinhos, o quarto de banho da av com uma banheira onde cabia um caiaque, e desanimava. Tinha a cara cheia de sabo mas a barba mal despontava. "Serei benquisto" - pensava. Tinha-se feito um rapaz que felizmente no era bonito por a alm e que sabia entreter as senhoras velhas, dando-lhes a mo para descerem um degrau. J no se acendia o cigarro a uma mulher, mas ele fazia-o, com surpresa de toda a gente. "Donde vem este? No deve saber nada de mulheres, s de matemtica." Mas ele era um mutante; se fazia coisas antiquadas era porque guardava nos labirintos do crebro coisas que executava quase de forma automtica. No primeiro momento (ofcio dum mutante) Martinho exercia uma impresso de ser um inimigo. Era um inimigo mas oculto por mais de cem artifcios e simpatias. Descreviam-no como algum amvel e quase distrado ao ponto de se poder falar de tudo diante dele, como se ele no estivesse presente. Nunca tinha pensado em casar mas, sem hesitao, aceitou a proposta da av a esse respeito que era casar com Judite, e ponto final. - Ponto final, agrada-me. -Judite no te agrada? - Ah, no! No isso. uma perfeio, mas que que eu fao com uma perfeio? As raparigas perfeitas so tremendamente banais. - Sabes porque que te falo de Judite? Porque prpria para um rapaz puro como tu. - Eu no sou puro, av. Um rapaz puro um cnico e eu no sou cnico. Judite est bem, j disse. - Ests a evitar-me? Conheo-te; ests a evitar-me. - No estou nada. - Ele tirou do bolso uma pequena lima e ps-se a corrigir o oval duma unha. Desculpe, av. Parti-a no sei como. Diz que me conhece. bom ter algum que nos conhea. O feitio discreto e amvel que ele tinha era um facto, estava em parte relacionado com a vida solitria que levara. No lhe proporcionaram contactos com outros rapazes da sua idade nos estudos, onde tudo comea: brigas e afectos, aspiraes e desistncias. Martinho aprendeu a no lutar com pequenas opes, reservando-se para as grandes quando fosse o caso. Muitas das suas foras eram poupadas e no seu esprito acumulava razes para vencer. Mas, vencer o qu? Onde estavam os inimigos se no os provocava? Onde estavam os caminhos se no os abria? O mundo era grande e ele
tinha de comear por algum lado. Obedecer parecia-lhe uma forma de proteger-se da imaginao, que era uma das fraquezas da alma. - Esta criana no tem imaginao. Por isso to bom aluno - diziam os professores. Era verdade. Tudo o que fazia era automtico e lgico e assim atingia uma nota sempre alta em matemtica. A terrvel mat. em que os portugueses se quebravam como contra um rochedo. Mas no lhes proporcionavam tantos encantos da imaginao? No estavam eles, como o criado que serve mesa, de que Kant fala, tendo na cabea algo de grave e que o persegue, como um eco duma msica de baile? Martinho no se distraa, ainda que usasse de ocupaes afins, como a leitura, que lhe proporcionava o equilbrio necessrio para conservar as foras da mente. O casamento com Judite parecia-lhe adequado porque fazia parte do jogo com coisas levianas sem contudo alterarem o seu estado de ateno profunda. As mulheres reagem contra essa preocupao do homem, que no sabem em que consiste mas que as erradica do colquio com ele prprio. O colquio prejudica a relao. Todos os desequilbrios entre o homem e a mulher esto acentuados ou provm inteiramente dessa presuno do dilogo que no protege as afinidades, s as cultiva erradamente. Judite tomou como uma felicidade o casamento com Martinho. Sabia que a intimidade com ele no seria possvel, nem ela a desejava. No fundo estava preparada para o que viesse, inclusivamente ser abandonada por ele. Todas as mulheres so, de antemo, abandonadas. Quando no o reconhecem entram numa delirante funo de pensar contra si prprias. Maria Rosa teve a inteligncia de a criar para a companhia dum mutante. Judite nunca entraria na rea proibida que era a do homem em mudana de pele, como a serpente. "A serpente que no muda de pele, morre." Isto sabido, s que a mudana vista como o desesperado objectivo contrrio: ficar no estado em que se encontra, de prazer e de felicidade. Para isso, a melhor proposta mudar de mulher, o que, nalguns casos e se a fortuna o proporciona, equivale a uma repetio de situaes foradamente delituosas. No delito o homem simula a intensidade da paixo. Os primeiros tempos para o casal foram de entendimento quase absoluto. Mantinham-se os hbitos de celibatrios com o acrscimo duma regra nova: o direito do mais dbil que correspondia a uma ordem dos Cavaleiros de Malta ou algo parecido. - O poder est no homem - disse o doutor Horcio. Nunca perdia de vista este princpio da inteligncia entre todas as coisas, e s vezes at abusava dela no tempo em que tinha consultrio e operava nos hospitais. Era para ele profundamente agradvel (se h outra palavra, no me ocorre) um doente deitado numa cama e sua merc. Era um ritual o segredo quanto ao verdadeiro estado do enfermo, e no chegava a ter conscincia disso. Em mente, simulava quase a violao com a disponibilidade dum corpo e as suas diferentes e contrrias formas do prazer. No lhe eram
desconhecidos os territrios que o rei da Prsia procurava, onde um novo prazer fosse descoberto. Evidentemente no se dava conta da situao, mas muitas curas obtivera com a cooperao sensual dos seus pacientes; como se atingissem ambos o cerne do milagre. Maria Rosa sempre teve para com o doutor Horcio Assis uma atitude maliciosa. Punha o seu colar de prolas e esperava-o deitada na cama, no como doente mas como amante. No trocavam nenhuma palavra licenciosa, mas subentendiam todas as indecncias da alma que sempre acompanham as do corpo. Quando Maria Rosa fez a sua menopausa (perodo de humilhao e penitncia que o homem no deixa escapar) criou-se um ambiente de perfeita no-beligerncia entre ela e o doutor Horcio. - Voc no fala nisso e eu no deixo de me rir - disse ela. O doutor Horcio percebeu os danos que resultariam para ele se Maria Rosa lhe recusasse esse alimento vital do riso. Evitou toda a aluso a um luto da espcie, fechada a mandbula uterina, e tudo passou sem carnificina de maior. Dir-se-ia at que Maria Rosa descobriu aquilo que o rei persa procurava, instituindo um prmio para quem lhe trouxesse a novidade dum prazer desconhecido: o do riso mais deleitoso e informativo quanto alegria. Talvez a verdadeira mutante fosse ela e no Martinho. Mas era fora de dvida que Martinho era uma criao de Maria Rosa, ou ela activara nele um dom que talvez todas as pessoas tivessem. Um dom de euforia miudinha que no se fazia entender primeira vista; nem segunda, porque passava despercebida a todos que tm por virtude prpria tudo o que lhes acontece. Desde criana que Martinho se apercebeu duma fora maliciosa mas sublime que tinha sobre as criaturas, pessoas ou animais e at plantas. Quando se tratava do jardim da Casa do Co, prodigioso jardim onde cresciam como rvores as gardnias, no era visvel qualquer poder agindo sobre ele. Mas desde que Maria Rosa transplantou o jardim para a sala de estar e at as varandas adaptadas a estufas, as coisas comearam a acontecer. Judite ficou grvida logo no primeiro ms de casada, mas abortou espontaneamente. Martinho disse-lhe que no era saudvel passar muito tempo junto das plantas; o ar era absorvido por elas at ao ponto de se tornar malso. Mas Judite no tomou aquilo a srio. Todavia, s vezes, tinha a impresso de que as plantas a espiavam. Mudavam de posio, no todas, mas algumas, e pareciam ter expresses e at trocar palavras inaudveis. No falou disso ao marido seno quando teve o segundo aborto. - Tens razo. melhor acabar com aquilo - disse. Estava muito cansada, perdera muito sangue e o doutor Horcio pediu para ser vista por uma junta de especialistas. O que apuraram no era muito animador.
- No tem nenhuma malformao mas tem, no entanto, qualquer coisa que no nos agrada. H casos na famlia de que nos possam pr ao corrente? Maria Rosa no sabia nada sobre o quadro clnico da famlia de Judite; excepto do crime do pai, de resto um homem sem antecedentes e que ia morrer de pneumonia, como se disse. A me era uma mulher robusta, alta, com a natureza da loira geniosa, com tendncia para a bebida. De resto a fria ciumenta dela tinha muito dum apetite que no era sexual. Maria Rosa no sabia mais nada. - Nada de que eu me lembre. Foi criada c em casa e foi sempre regular em coisas de mulher. - Que coisas? - disse um dos mdicos, com uma ponta de cinismo. E Maria Rosa tomou a peito aquele tom, no disse mais nada. Passaram os primeiros alarmes e Judite recobrou a sade. Tornou-se de repente muito garrida, saa mais e passava o tempo em compras e nos cinemas. Tinha o pressentimento de que estava ameaada e que tudo tinha a ver com o seu casamento. Gostava de Martinho, mas no se sentia bem ao lado dele. Recusava-se a acompanh-lo e achava sempre pretextos para se afastar dele. Talvez acontecesse o mesmo com todos e os filhos serviam para estabelecer as distncias entre os casados. O exemplo estava bem perto pois Maria Rosa dizia que Paula lhe servia de escudo contra uma intimidade nupcial. - Nupcial, digo bem. Mantinha-me dentro do contrato mas fora da satisfao. No casamento no devemos estar satisfeitas para no ficar saciadas - dizia Maria Rosa. Ela lembrava-se de se recusar a viajar com o marido, no encontrava prazer em ir para hotis luxuosos onde tudo lhe era estranho, a comear pelos espelhos. Precisava de dois dias, pelo menos, para ser adoptada pelos espelhos e para fazer funcionar as torneiras, ou para decorar os nmeros de servio nos telefones. No gostava de pequenas surpresas, de escolher roupa de viagem, de emalar conjuntos a dizer, que se revelavam sempre desirmanados. - Agora no posso sair. Paula precisa de mim. - Paula tem quem trate dela. Com doze anos sabe muito bem ficar s - dizia o Nabasco, meio enfadado. Habituou-se a no ter a companhia de Maria Rosa fora de casa que at se esquecia dela quando a levava. Mas nada disso era importante nas suas vidas. Ela no teria amantes porque prezava muito o segredo do corpo e ele, se deparava com alguma tentao, no lhe dava o valor duma substituio. Dizia que no deixava bastardos atrs dele mas, no enterro, apareceu um rapaz que ningum sabia quem era e que se manteve parte com um ar nem afligido nem nada. Maria Rosa disse: - talvez um filho dele. Deve ter sentimentos preguiosos. E no pensou mais nisso. s vezes, todavia, pensava que algum dinheiro tinha sido desviado e at um colar de mbar que lhe faltou podia muito bem ter ido parar a outras mos. Um homem no
distingue entre o que possvel e o que impossvel. Enquanto que para Deus, segundo Kant, no h distino entre o que possvel e o que real. Quando Filipe Nabasco morreu, Maria Rosa decorou de novo a casa. Pendurou A Ronda da Noite na entrada, que ampliou por esse motivo. Quem chegava tinha imediatamente aquela recepo do capito Cocq e o seu ajudante, resplandecentes de felicidade e de cerimonial. Era como se fosse acolhido em plena festa e convidado a entrar nela. - Caramba, Maria Rosa, no se espera este acolhimento. S falta ouvir o tambor do tamborileiro. - Falta mais do que isso - disse ela. - Alguma coisa como a santidade do real. A santidade do real o que faz o artista. Ela tinha ido, com os anos, ganhando uma patina de velha prata, com os cabelos francamente brancos segundo a sua frmula de que o branco intimida. s vezes, para se levantar de manh, tinha que passar de relance os olhos pelo seu guarda-roupa, para se convencer a sair da cama. Seria outra com outro vestido e outra cor nos lbios. Agora via-se mais ao espelho, o que era sinal de que envelhecia. As mulheres novas guardam a imagem da sua juventude desde pela manh; as mais velhas tm que corrigir a impresso que lhes deixou o primeiro olhar do dia. Agora preocupava-se com Judite. Seria que ela no queria filhos de Martinho e achava incestuoso o casamento com ele? Grande parte das mulheres no querem filhos de homens que admiram. Preocupava-se com Judite mas no lhe fazia perguntas. "O que for, soar" era o dito favorito de Elisa que comeava a perder-lhe o respeito. Era qualquer coisa de imperceptvel, como num sonho interrompido e que no se podia reatar. Tratava-a por voc e depois desculpava-se. - Agora toda a gente se trata por voc... Isto pega-se. No se pegava, mas com esse desleixo de linguagem acudia-se a um despeito profundo. Afinal a revoluo no emancipara os pobres, os infelizes, s os tornara menos annimos. Lamentavam-se como crucificados, mas faltavam os meios para os descer da cruz. Tinham a absolvio, mas no o blsamo, que j no era o reino do cu. A impacincia excitava a inveja; a solido era um novo gueto, evitavamse as coisas tristes, dava-se preferncia ao riso, barafunda, ao circo, histria projectada com um efeito clnico da sexualidade. As mulheres no perdiam de vista o amor empregando a habilidade para chegar aos fins pretendidos. Faltava porm a exactido, por falta de meios para obter um resultado fivel. Faltava a confiana que nos dada como ideia duma perfeio suprema. Martinho, que ocupava o tempo a gerir as inmeras heranas de Maria Rosa, terras exaustas e votadas ao abandono, valores praticamente reduzidos a runas, passava muito tempo fora. Durante semanas a fio no era visto e no mandava mensagens. Os dias eram para ele iguais, como se fosse um colono numa estncia penal e preferia contratar estrangeiros de Leste porque esses no tinham lugar
para novas amizades. Queriam ganhar dinheiro para comprar uma casa na aldeia deles e um belo dia desapareciam como se empreendessem uma fuga. No se despediam e deixavam para trs tudo o que lhes estorvasse na viagem: roupas, electrodomsticos e um saco cheio de meias velhas por lavar. Martinho sentia um pouco de tristeza, mas era o seu preconceito de posse que falava; como se escravos se evadissem da sua herdade e contassem mais com uma liberdade sem condies melhores para sobreviver. Quanto mais eram bem pagos e cheios de benefcios, mais se acentuava neles o desejo de perder, de retomar as dificuldades que os tinham trazido em busca de trabalho. Voltavam para o seu clima inspito e para as suas comidas e a sensualidade do que conhecido e amado. Numa das suas estadias fora de casa, Martinho foi saber o que se passava com um casal de checos que desaparecera. No foi difcil encontr-los, tinham-se separado e estava cada um para o seu lado. - Pareciam to unidos! - disse Martinho. A mulher, muito bonita e com os cabelos loiros desatados, encolheu os ombros. - Ns estvamos unidos pelo perigo. Quando voltmos no precisvamos mais um do outro. Os vizinhos, os parentes, at os nossos garfos e facas no louceiro, nos davam confiana. "A est o problema da confiana", pensou Martinho. Tinha um casaco forrado de cordeiro da Rssia e durante muito tempo ia tir-lo do armrio para o acariciar. "A confiana melhor do que o amor. Estamos todos a morrer sede por falta de confiana." Nesse tempo esteve observado pela polcia, que fez o que pde para lhe encontrar qualquer culpa: de contrabando, de negcio ilegal, qualquer coisa que fosse. No admitiam, segundo a sua regra profissional, que Martinho andasse pelos aeroportos numa simples viagem que no se podia dizer de recreio. Perdia s vezes os avies e, no meio duma turba desorientada, ia parar a um hotel de luxo onde o albergavam como se fosse um turista com grandes meios. Admirava-se do tratamento que lhes davam, dos almoos pantagrulicos e da simpatia das hospedeiras. Mesmo assim, tinham que ouvir recriminaes e protestos dos que no passavam de vadios de frias pagas. Era uma gente ingrata e mal comportada. "Como posso gostar deles?" - pensava. E reprimia a ideia de os ver esmagados por uma derrocada qualquer, sequestrados, reduzidos a cinzas. Eram uns desagradecidos; e quando se riam era com afectao e maldade. Mas havia surpresas. Um dia, numa dessas demoras de gare deparou com um casal e a filha de quinze anos. Eram professores e tinham como destino Lisboa, onde participavam num congresso sobre o ambiente. As coisas foram dum efeito nuclear, no havia outro nome. A mulher tinha uma graa particular, era uma judia de Nazar. Diz-se que as mulheres de Nazar tm uma beleza especial e todas se parecem, a ponto de ser possvel atribuir-lhes um parentesco com Nossa Senhora. Elas parecem reinvindicar um trao fisionmico que define uma individualidade partindo do seu interior. a
compaixo. A mulher descobriu Martinho como se ele estivesse no meio duma multido e em volta dele houvesse uma luz radiosa e que, no entanto, era parte da diversidade de tudo que o rodeava. Desde esse momento ela no abandonou mais Martinho. Podia dizer-se que queria servi-lo em todos os passos que ele dava; trouxe-lhe caf, deitou-lhe acar, viu como ele o bebia com uma espcie de devoo. Incutiu no marido e na filha a sua extasiada presena e, no hotel para onde foram mandados, na noite lgubre e como que insensata, com uma chuva mida a escorrer nos vidros da camioneta, ela bateu-lhe porta do quarto para lhe levar creme de barbear e um pouco de cicatrizante para o caso de se ferir. Falava um alemo em que se no perdia uma palavra do que dizia. Nenhum gesto ambguo, nenhuma fantasia da imaginao. Ela olhou para Martinho com tal transporte de felicidade que o corao dele bateu, advertido pela unidade interior que era o fundamento das suas vidas. Depois, no se passou mais nada. No dia seguinte partiram todos para Lisboa e l se despediram duma maneira vulgar, como pessoas que esperassem a bagagem ao mesmo tempo. Nunca mais se encontraram. Mas Martinho ficou persuadido de que, como na Ronda da Noite, havia os traos fisionmicos diferentes de todas as pessoas e uma ddiva interior que tinha a consistncia divina que as unia. Tinham cargos diferentes, tentavam acertar no desfile conforme um programa de festa (dizia-se mesmo que a Companhia do capito Cocq devia escoltar a comitiva da rainha Maria de Mdicis) mas, desde o ntimo de cada um, tudo estava alinhado e no havia qualquer desordem neles. E se Martinho fosse um mutante? Desde criana que ele agia nas pessoas com alguma projeco que lhe era estranha. No diz George Simmel no ensaio sobre Rembrandt, que a juvenil histria de Jesus concebida dum modo completo, profano e pequeno? Sem exaltao e sem o que se chama mstica com tanta ostentao, aludindo ao uno at no sentido poltico e militar? Lembrava-se de como as outras crianas (algumas pobres, filhos de lavadeiras e de operrios que Maria Rosa chamava como para dar exemplo de beatitude social) o rodeavam automaticamente, como se todos os contedos interiores fossem um s fenmeno desde o fundamento da vida. Um sentimento ardente que perdurava at nos sonhos e nas mais humildes tarefas ou cargos superiores que viessem a desempenhar, como se no houvesse nada entre o homem e a sua profundidade. Ele sabia que o que dizia Maria Rosa s suas criadas no passava de presuno ou de simples recomendao escolar: - Quando limpam o p ou do lustro aos meus sapatos esto a servir a Deus e no a mim. - A senhora que nos paga, h alguma diferena. Passando em revista as criadas dos Nabasco, Martinho encontrava maravilhosas condies de xtase para ele prprio. Elas trabalhavam como
Rembrandt, como se isso no fosse um fim, mas um meio para alcanar a suprema cultura, a paz do sentimento e da vontade, que sempre nos atraioa. As criadas eram: Elisa, sobrinha de Ana Cunha, mulher muito feia e com uma anca mais alta do que outra. No lhe tendo sido possvel simular que era simtrica e bem talhada com a moda das anquinhas, feita expressamente para a rainha Maria Leczinska, Ana Cunha nem sequer chegava sala em dia de visitas. Outra, era Armanda, inteligente, crtica, sem nada de rstico e to convertida s cerimnias que ia abrir a cama dela antes de jantar para ter a sensao de que era mais do que uma cozinheira do trivial. E havia Marina, dum gnio to desabrido que as portas tremiam com os seus passos. Os homens tinham-na magoado, mas fez por esquecer pondo uma energia assustadora a limpar as pratas e a brunir at os panos do p. Tantas figuras da mocidade velhice! Tantos humores diferentes e estruturas que deixavam Martinho assombrado. Evitava-lhes dar trabalho. Muitas vezes ia passar a ferro as calas, noite, estando todos deitados e depois dizia que no chegara a us-las. Deixava sempre na travessa um bife dos melhores, que no parecesse sobra. Dava-lhes chocolates dizendo que no os podia comer. Elas percebiam e entrelaavam aquela religio fora de toda a mstica com a paixo obscura de serem iguais no discurso da vida. Agora j no era assim. As raparigas do servio domstico, o mais bem pago do mercado, punham mscara de beleza e jogavam no bingo. Mas no tinham o sentido profundo dum amante, como Armanda, que toda a vida amou um cantor ligeiro e tinha como efeito da sua paixo o ser feliz nas nuvens. E se Martinho fosse um mutante? Nada de transcendente e de superior, mas uma centelha de animao que a tudo d movimento e sentido. Maria Rosa mostrava o seu descontentamento porque ele no se desenvolvera como era previsto. Tornara-se insignificante e perdera muito cabelo. As vezes, ela no resistia a demostrar-lhe que ele ficara muito abaixo das suas expectativas. O amor precisa ento de reforos para se orgulhar daquilo em que se aplica? O incessante apelo beleza, os recursos para a corrigir e despertar nos mnimos pormenores era uma forma de cativar o amor que andava perdido num deserto de planos que no chegavam a ter execuo. A possibilidade de errar, que est em toda a obra que se realiza ou no chegou a ser, o sentido do amor. Martinho via, todas as vezes que chegava a casa, antes de pousar a mochila e o saco de viagem, que A Ronda da Noite estava l para lhe transmitir o que nunca tinha sido dito; que o trabalho da mo no estava acabado e que a objectividade das cenas eram apenas vestgios do impulso que levava o artista a pintar. As suas imperfeies, exploradas nos auto-retratos at exausto, estavam em relao com os fundamentos da vida, como se o homem no fosse um modelo mas o indicativo para outra coisa inabordvel que pertencia ao no criado.
Praticamente Martinho tratava das suas vinhas, replantava-as, protegia os bacelos das grandes geadas, confiava a peritos a sua poda, via brotar os primeiros gomos donde a folha ia crescer e que traziam como que a candura dum recm-nascido no boto algodoado. Os solares, com dez janelas na frontaria, estavam quase reduzidos a escombros, at porque os incndios, no seu abandono, os tinham assaltado, levando, como ladres, os retratos, as prendas de anos, as coisas que tinham o brilho do uso, cabos de facas, de cutelos, de navalhas cujo contacto causava um arrepio na espinha. Os tectos tinham cado com um estrondo abafado pela calia. Martinho sentia um prazer perante tanta runa, como se o sentido relativo da vida lhe fosse mostrado com toda a sua possibilidade de fracasso. Estava ali a obra que lhe era confiada, e que lhe concedia a excurso para o infinito e que 114 ele s teria tempo para a ver nascer como a criana que se retira do ventre da me. No pensava habitar nenhuma daquelas casas que lentamente ia trazendo forma inicial. Mas tudo o que lhes dava forma, o mais pequeno gonzo duma porta, a cor com que a cobria, verde-musgo, de preferncia, ou zarco, ou ainda um castanho de beterraba misturado com terra, davam-lhe prazer, como se fossem obra das suas mos. Maria Rosa assustava-se com as despesas e a grandiosa maneira de gerir uma fortuna j de si desfalcada. Chegaria um dia em que no restaria nada do patrimnio dos Nabasco e a Ronda da Noite seria enrolada mais uma vez, no para ser posta noutra parede (parede cada vez mais estreita e inadequada s suas propores), talvez num museu ou no trio duma empresa. Quanto sua autenticidade, no estava apurada a verdade. Os conhecedores no quiseram pronunciar-se, com receio de a carreira do quadro ser afectada pela sua opinio. Ficava a iluso de se tratar do Rembrandt original. As viagens de Martinho tinham relao com a reconstruo das casas que, na regio mais rebelde do pas, a transmontana, eram volta de seis. Palcios com escadarias bifurcadas, guarnecidos de pedras de armas que tinham sido retiradas e em cujas fontes a gua no corria mais. E tambm passais, as antigas moradas de abades, confiscadas no tempo da Repblica e que continham retratos de reis e rainhas, subitamente transferidos para outros lugares mais concorridos e convenientes. Assim, numa biblioteca pblica, ficou o retrato de D. Teresa, a suposta me de D. Afonso Henriques, pintado com a ingnua e inbil arte que preservava a personalidade. Mulher formosa, de cores campestres e algo boais. Estando uma vez em Aosta, hospedado no hotel do casino que tinha a particularidade de soalhos rangentes como os dentes rangentes do Purgatrio, Martinho teve outra experincia que lhe fez compreender quanto no tempo h apenas fugacidade e no outra medida seno esta. Tinha visitado o museu do mobilirio que fora doao dum portugus e, ao sair de l viu um homem to alto que, ao
inclinar-se parecia uma cana dobrada pelo vento. "O homem uma cana, mas pensa", ocorreu-lhe, com um pouco de ironia mistura. Quando se assustava era quando se detinha bruscamente como para reunir foras para resistir. A que resistia seno ao tempo? Percebeu que aquele homem, em quem reconheceu uma pessoa morta h muito, lhe era trazida por um efeito do tempo que ele alcanara graas a uma imobilidade absoluta. Nessa noite, ao percorrer o longo corredor subterrneo onde as montras cheias de jias despediam raios de luz, viu um casal que se aproximava. Ela trazia um vestido branco e um colar de prolas servia-lhe de cinto. Olhou para Martinho sem parecer v-lo, mas, no outro dia, estava porta do quarto dele completamente embriagada de amor e pronta a entrar e cair-lhe aos ps. Foi preciso que o marido a arrancasse do cho com violncia e fora a levasse com ele. No os viu mais. Teve medo, nunca tinha sentido tal medo em toda a sua vida. A partir da acumularam-se os sintomas e, voltando para Portugal, refugiou-se ora numa, ora noutra das suas casas que correspondia a uma herana sem valor; a me, vendo que ele fazia obras e compunha o que o tempo foi arruinando, pediu-lhe contas. Foram vendidas as propriedades uma a uma e s ficou um dos solares, o da Ronda, que ainda estava em bom estado e onde Martinho decidiu fundar a sua prpria famlia. No entanto, a submissa Judite recusou-se a ir com ele. No lhe dava filhos e gozava duma vida de criada grave de que nunca se desprendera e os prazeres da cama no pareciam atra-la. Faltava encontrar comprador para a Ronda da Noite, e Martinho dedicou-se a procurar as pessoas interessadas no negcio; foi ento que a sua vida mudou radicalmente. Entrou em contacto com avaliadores de obras de arte e ficou informado de quantas cpias e fraudes estavam nos museus e passavam por autnticas. Sendo os originais fechados nas coleces particulares ou estando simplesmente em lugar incerto. Era um estranho mundo de pesquisa, de jogadas, de viagens e operaes em que nunca se conhecia a pessoa que vendia ou que comprava. Para l da febre do ganho, havia uma atmosfera acumulada de factores fecundos em que a paixo do jogo estava presente. Gradualmente Martinho marcou o seu lugar partindo da Ronda da Noite que foi avaliada em milhes e declarada falsa, e ainda mantida na expectativa doutra peritagem que nunca era conclusiva. Se Martinho queria sair daquele terreno de especulao, era de novo arrastado com novas perspectivas de fortuna to grandiosa que o impediam de recusar outro lance. O mundo parecia um imenso campo de negcios em que circulavam todas as paixes. E havia uma rede de espionagem em volta da mercadoria a ser trocada e cujo merecimento era ponderado por lobis para que o seu preo fosse includo na iluso, na mstica da descoberta. Havia quem nunca chegasse a ver o objecto em causa; e havia aqueles para quem ele circulava no seu sangue como por efeito dum comando cerebral. O desejo palpitava nos espaos em que as ambies pareciam
ter a voz. O mundo estava construdo sobre aparncias que no correspondiam sua estrutura natural. Os sinais identificavam as pessoas, fossem sinais de classe, de servido, ou honorficos, ou infamantes; mas o que tinha uma expresso profunda era a mistura quase se diria sangrenta, de todos os sinais. A linguagem acadmica e barroca fora substituda pelo calo, o obsceno e a embriaguez do insensato. Os sinais infamantes, como o uniforme, sinal de servido, fora deposto; e o sinal de classe, o ttulo nobilirquico, sofrera um rebaixamento e s sobrevivia admitindo o sinal plebeu como seu parceiro. E tambm os sinais grficos eram abolidos pelo computador e pela escrita dos autores. A melancolia era batida pelo estridor; e os sinais naturais da relao com os outros, com o crculo familiar ou profissional, sofreram grandes danos. Assim como a afinidade das ideias j no resultava com a mente distrada na confuso de mil coisas em que se perdia a unidade do colquio. Que fazia um mutante num mundo sem estratgia moral, que nunca teve? Teve apenas sinais de obstinao lgica e um desejo sanguinrio de poder; o que era demonstrado at saturao pelo espectculo em que a memria se debilitava para dar lugar excitao. O esprito da lotaria, do grande prmio que ia resolver todas as dificuldades, instalara-se. No se dava um passo seno para imitar o prazer que era imaginar-se rico e belo e sedutor. No se trabalhava por pouco, vivia-se de arranjos com as oportunidades. O prprio Martinho teve a tentao de fazer da sua natural faceta de mutante, ou do que nele provocava uma espcie de ambio do mrito sem que houvesse o dom que o justifica, de fazer disso um lucro qualquer. Quando voltou para a mulher, durante uns tempos, viu que ela estava a escrever um livro: ao mesmo tempo, pintava um retrato e tambm se entregava msica. No se atreveu a levar aquilo levianamente e felicitou-a. O embuste era uma forma de evitar atritos e as pessoas coabitavam sem repugnncia na regra da habituao. Julgavam comunicar e o que faziam era habituar-se. - No est mal - disse Martinho, sem hesitar. Judite estava empenhada no seu trabalho e a ele parecia-lhe cruel dissuadi-la e dizer-lhe que no passava duma macaca a descascar amendoins. Era o que lhe apetecia dizer. Mas armava-se tal alvoroo, a av vinha repreend-lo, Judite chorava gastando uma enorme quantidade de lenos de papel; e ele acabava por desdizer-se e ach-la parecida com Berta Morisot ou qualquer outro de meia-tigela. O exemplo que davam era o da amante de Rodin que acabou louca fora de no ser reconhecida como comparvel a ele. Quanto tinha aguentado Rodin com aquela pequena megera na cama, no atelier, em toda a parte! Foi desde a que comeou a pardia da criao nas mulheres que se puseram a ser artistas e a ter ideias sobre tudo. - "Valha-me Deus, no que me meti", pensou Martinho. A mulher tinha engordado mas continuava com aqueles olhos azuis raiados de negro que lhe agradavam. Mas da a estar enamorado, no estava. Disse a Maria Rosa:
- Gosto dela, mas no para toda a vida. No sei que vai acontecer quando me apaixonar por outra. - Um homem como tu no se apaixona por ningum. Imita o amor que se torna melhor do que o verdadeiro. - Ento no sei nada do amor? triste. - Os homens tm uma incapacidade natural para o amor. E as mulheres para fazer negcios e ir para a guerra. - Mas fazem negcios e vo para a guerra. - Como D. Joo amava. Para iludir a prpria impotncia. Ele riu-se, roendo um osso de galinha, que era o que gostava mais: galinhas do campo, assadas e bem loiras. Seria por isso que os homens preferiam as loiras? Sorriu mais ainda, imaginando uma quantidade de alarves em redor da fogueira, a devorar galinhas gordas e apetitosas. Era uma cena resplandecente de cordialidade, que inclua o desejo profundo, como um desejo alimentar antigo de milhes de anos. Mas, acima de todos, estava o seu desejo de liberdade. Podia dizer-se que os homens criavam as suas muralhas para sentirem a emoo maior da liberdade. Os sedentrios, habitantes de cidades, condicionados ao calor das casas e ao conforto da vida domstica, no conheciam mais a elevao do esprito que fruto desse impulso de liberdade. A palavra usada como excitante de comcios, mas no tem j o mesmo sentido. E na mudana de mulher, na infidelidade quase ritual, encontravam um resqucio do entusiasmo que arrasta o prazer da liberdade. Martinho inclinou-se para beijar Judite e, ao mesmo tempo, achou que estava a desprez-la. Analisava-a demasiado e ela tornava-se em qualquer coisa de repugnante. Tolstoi no analisava a sua cossaca e ela entrou na sua alma como um dardo de cupido. Ele voltava amide para a sua casa da Ronda, que no chegou a restaurar e cujo telhado deixava entrar a gua. Assim, em runas, ningum ia pedir-lhe contas, como a me fazia cada vez que via alguma coisa de que tirar proveito. Talvez Portugal fosse mais feliz, pobre e desmantelado e sem despertar ideias de invaso, ou facilmente capaz de ser tido por um povo de pastores. Nada para acrescentar ao rol das grandes conquistas, nem em espao, nem em cultura. Tinha uma histria nobre, mas desconhecida. Heris, amantes, pensamentos intraduzveis pelo amor e pela arte. No se quisera revelar, apresentar um valor de saque. Ele concluiu: - Ser que a Ronda da Noite autntica? Escapou ao esbulho, cobia dos conquistadores e Goering no chegou c para o levar num camio Tir? Logo Rembrandt, que sorte! - Que ests para a a dizer? - falou Maria Rosa. Estava a perder o ouvido, era fatal.
Elisa tirava a mesa, sempre com aqueles olhares de suspeio que faziam dela uma combatente na sua trincheira. Qualquer dia morria e ficava um vazio, um buraco no cho como quando se arranca um nabo branco e suculento. Martinho nunca gostara de nabos, no tinham sabor, era alimento de animais. Mas agora achava-os diferentes porque os incorporara memria. Memria de criana desfilada na avenida, na bicicleta de senhora. - Porqu de senhora? - disse Maria Rosa. E o Nabasco replicou que podia ainda nascer uma menina e a bicicleta servia para os dois. Tinha uma ideia da economia que no condizia com o seu prazer em gastar. E para ligar tudo, comprava coisas velhas e sem prstimo. Candeeiros, cadeiras de leilo, rimas de pratos com monograma dum restaurante desaparecido. Maria Rosa achava-o doido, achava todos os homens doidos. - o que temos - rematava, com uma lentido no pensamento que queria dizer acordo consigo mesma. Ningum achou bem que Estrelinha, Sopa-de-Massa, como lhe chamavam quando andava a fazer recados, fosse morta machadada (parece um exagero, so lendas que se formam) e depois deitada linha do comboio. Mas tambm ningum guardou disso uma recordao; nem Judite, nem a irm dela. Mas as coisas mais aterradoras ficam metidas nas frinchas do crebro, enredadas nos fios dos nervos, e um dia aparecem. Como a morte da Estrelinha, Sopa-de-Massa, aconteceu no dia da morte de Ana, a cozinheira parecida fada Carabosse. Ela gritava e chorava e dizia uma coisa inacreditvel: que fora, no o marido mas a filha que a matara, espetando-lhe uma tesoura no corao. Ana no era pessoa para mentir, era uma qualidade que ela tinha. - Ser verdade? - disse Emlia. Os plos dos sinais na cara estavam mais encaracolados, como quando chovia. - Sei l! - E Maria Rosa no quis conversas para no incomodar Judite, que sempre era a filha da morta. Judite estava a pintar um retrato de famlia, com flores, e estava a sair-se bem. Pena era que Martinho no a apreciasse. - Podias dizer-lhe alguma coisa; alguma coisa, dizer que gostas - disse a av. - Deu-me muito trabalho gostar de nabos. Anos a fio no gostei e depois mudei. Ou eles mudaram, com os qumicos e as guas poludas, sei l! Pode ser que eu venha a gostar do retrato de meninas com flores. - No te custava nada. Mas Martinho j se tinha evaporado; ouviu-se o carro a derrapar na areia do jardim, e ele foi-se embora. Nesse momento dificilmente se gostava dele e Maria Rosa comprava a Judite qualquer coisa bonita para acalmar a dor que ela sentia. As mulheres passavam a vida a sofrer aqueles sobressaltos,
piores que maus tratos. Era uma impresso de serem teis e mais nada. Em vo elas se esforavam por serem queridas e se desfaziam em bondade at ignomnia, ou at ao pecado, como se costuma dizer, que no chegavam ao corao deles. Estava ela ali, Judite, a pintar aguarelas, a sujar a bata de tinta que nunca mais saa com todos os perfumes da Arbia ou detergentes lquidos e em p, e no recebia seno um pensamento ofensivo. Via-a como uma mulher e ela no era apenas uma mulher; mas o duplo dele prprio. E ela amava-o realmente? Ela tinha que o revestir de qualidades para o amar, como a fortuna, a casta, o parentesco dele com outros da mesma espcie. Precisava de tudo o que pudesse apagar a noite com que ela se debatia. Uma noite pacfica do fim do Vero. Judite tinha onze anos e dormia com a irm, num quarto que dava para as traseiras da casa. J tinham comeado as vindimas e um cheiro de lagar onde o vinho fermentava andava no ar. Ela ouviu a me que se levantava. A porta do quintal chiou e Judite percebeu que a me saa de casa. Uma dor, como um cime, atravessou-lhe o estmago. Com o pai no se importava, mas com a me era um contnuo fardo de suspeitas; seguia-a s escondidas, sabia todos os passos dela, as horas de chegada, o tempo que levava a arranjar-se e a roupa que vestia. Para o trabalho era uma, para ir s compras, outra. Quando prendia os cabelos loiros e cacheados era porque pensava fazer limpezas. Outras vezes deixava-os cados nos ombros e eles eram como uma torrente crespa de fios de ouro. Amava-a com desespero, inveja, tristeza, tudo o que faz do amor danao e culpa. Viu como ela se afastava, depois a noite tragou-a, no a viu mais. Judite foi atrs dela e ouvia-lhe os chinelos a raspar na terra ou a deslocar as pedras do caminho. Estavam j longe de casa e percebeu algumas vozes: a do pai, pachorrento, depois mais viva, e a doutra mulher que no conhecia. - Que vieste aqui fazer? - era o pai que falava. Parecia envergonhado e decerto quis convencer Estrela a ir-se embora porque ela respondeu duma maneira insidiosa, com malvadez. Disse coisas horrveis porque tinha mau feitio e no sabia conter-se. A outra mulher avanou para ela e Judite viu a me cair com um pequeno grito afogado. A outra tinha-a ferido com a tesoura das vindimas que tirou do bolso. Mas Judite s percebeu que o pai estava afastado e talvez se preparasse para voltar para casa. "Tenho que ir deitar-me, seno ele mata-me", pensou. No queria dizer que ele a maltratasse, era uma maneira de conceber um aviso. A me prevenia-as, s duas, ela e a irm, para que estudassem as lies, para que no sujassem a roupa nova, para que no se demorassem ao fazer um recado. "Vai depressa, seno mato-te... Se te sujas, eu mato-te." Ela habituara-se a ouvir aquilo e no prestava muita ateno. Agora pensava que tinha de correr pela vinha acima e deitar-se na cama, ofegante mas segura de que ningum descobria que a me entrava e fechava a porta com duas voltas da chave. Dormiu at de manh.
Acordou, no viu a me na cozinha, em camisa, descala como ela gostava de andar em casa. O fogareiro do petrleo no estava aceso e a gata esfregou-se nas pernas de Judite, a pedir comida. O pai estava sentado a fumar e levantou a cabea quando a viu. - Vai para o teu quarto, depois chamo-te. - A me? - Vai para o teu quarto. Alguma coisa havia na voz dele que a convenceu de repente. Veio-lhe ideia a noite e a me a sair com um casaco que lhe ficava curto e deixava ver as pernas muito brancas. No parecia ter-se deitado nem se tinha despido para isso. A irm, que tinha cinco anos, apareceu a coar-se; Judite empurrou-a para o corredor e levou-a consigo quase de rastos. - Vou contar me - queixou-se ela. Mas Judite sabia que nunca mais ela havia de fazer queixa, nem pedir que lhe tirasse a nata do leite, nem nada. O pai acusou-se do crime e no foi possvel fazer com que ele denunciasse mais algum como cmplice. Sabia-se que ele tinha uma amiga mas no falou nela, nem sequer a viu. Bateram-lhe e ele gritou no escuro duma adega de terra batida, com covas onde o vinho empoava. Eram gritos que se ouviam da estrada; as mulheres paravam para os ouvir, arrebatadas de paixo pelo homem, mas com algum conforto de serem as contadoras da histria da em diante. Judite e a irm foram separadas e viam-se de vez em quando, no escondendo o embarao. No se podia dizer que Judite no amava a me. Amava-a, e muito. Mas tudo aquilo suspendeu no seu corao o fogo que l ardia e, de certa maneira, foi como se, como naquela noite, se deitasse na cama, com o cobertor pela cabea, e ficasse calada at ao fim do mundo. Maria Rosa no ignorava no que se metia ao levar para casa Judite, filha da Estrelinha Sopa-deMassa. Era um risco. No que soubesse como as coisas se tinham passado, s Judite sabia. Mas era um risco porque Judite andava metida na noite, com a mesma fora de se cruzar com a morte, fosse ela qual fosse, para libertar a sua alma de tanto sofrimento e de que ela no conseguia libertar-se.
CAPTULO IV O QUE AS TELHAS ESCONDEM Para comear, as coisas passam-se normalmente. As casas so seguras, quando uma torneira pinga no se demora a consert-la; se a gata deu luz seis crias, afogam-se quatro; se um pobre bate porta, como dantes fazia, d-se uma esmola, pequena, para no se ficar sem trocos. Pede-se sempre um abatimento nas lojas, e isso funciona em todas as longitudes, tanto no Cairo como numa aldeia perto do Lago Maggiore. uma cortesia, no equivale a outra coisa seno a uma cortesia. Os saldos so o cerimonial do comrcio que dantes ocorria de maneira muito imaginativa. - No muito caro? - Fao um abatimento por ser para si. Um silncio em que se trocava a linguagem do afecto; gratido e parentesco de bairro. Depois o embrulho feito com sentimento e precauo, o fio atado em cruz e rematado com um pequeno toro de madeira, para no magoar os dedos. Maria Rosa lembrava-se disso, mas no se lembrava dos preos. No perguntava, apenas dizia: - Mande a casa, senhor Alves. Posso vir trocar? O senhor Alves olhava para ela com ternura. Merecia um beijo aquela graa de menina, com cinta firme e pernas bem feitas. O que ele no sabia que no Vero ela no trazia calcinhas e o vento da tarde lhe beijava as partes ntimas. Bem melhor do que se o senhor Alves, neto duma aristocrata, lhe aflorasse o rosto nem que fosse para retirar uma formiga. Uma formiga nos cabelos? Porque no? Tudo so bons pretextos para conviver com aquela beldade de frente e de costas, uma beldade circular. Os rapazes que estavam a trabalhar numa obra diziam uma obscenidade quando ela passava. Maria Rosa gostava e ofendia-se, as duas coisas. Era o tempo mais bonito da sua vida, cheio de doces encontros prometidos felicidade. Gostava de rapazes de bom parecer, no s os que jogavam hquei e que passavam ao domingo no passeio fronteiro; mas tambm de operrios, de cabelos soltos e mal cortados, com a caixa das ferramentas e talvez um po com queijo de bola, ou um pouco de fiambrino. Melhor do que a cama era aquele olhar trocado em que ia o desejo honesto de corromper a usura da confisso. Amavam-se em poucos segundos, deixavam-se com a satisfao de se merecerem em cinco segundos. E, contudo, ela desviava os olhos, sem dissimular a atraco. Era incontvel a felicidade desses encontros. Chegava a casa, a me achava-a estranha. - Que fizeste? No respondia. E Marg, a que se casou com o irmo de Maria Rosa, j tinha invadido a casa, s quatro horas, quando vinha do Instituto Ingls e descia a escada aos saltos para lhe dar as boas-vindas. Era grande, sabia lnguas e o pai dela era um mdico de grande nome na capital.
- Onde andaste? Compraste alguma coisa? Iam merendar po com manteiga e tinham por prmio, no sempre, uma noz de chocolate, que acabaram; j ningum as v nas confeitarias. S clairs gigantes para pobres gulosos. O sol descia, levantavam-se os estores tardinha. E at ao jantar Maria Rosa parecia meio sonmbula, toda metida no gozo dos encontros compadecidos, com amantes que nunca se voltavam a ver, e no respondia eterna pergunta: - Que fizeste? Teve um perodo de anorexia, ficou to definhada que lhe desapareceu o perodo. Chorava sem razo, chegaram a temer pela sade dela, e o pai disse que era preciso distra-la. Atravessava uma crise de dinheiro e na mesa isso era bem visvel. Os belos rodovalhos grelhados com gros de pimenta a eriar-lhes a pele, j no apareciam. Nem as peas de caa, faiso ou perdiz que se vendiam gravemente com um pouco da solenidade do que raro; como uma jia em veludo negro. E, todavia, o pai ps de parte a avareza que lhe raiava os olhos de sangue, quando lhe pediam para ir de frias ou dar um presente a uma amiga; punha de parte essa raiva de homem de no cumprir com o seu dever de fazer a casa farta e a mulher contente entre lenis. Vendeu, pediu a usurrios, empenhou o seu Patek-Phillipe e Maria Rosa teve rosas e anis, o que quer dizer que tudo se preparou para a alegrar como a idade dela pedia. Dezoito anos, olhos de azeite flor da gua. Comeava a comer melhor, perdoou ser to impertinente e sofrer por coisas que no aconteciam. Perdoou alguns sonhos maliciosos, como quando uma noite acordou e viu o irmo no quarto, a olhar para ela, sem se mover. s vezes, mesmo estando de costas, percebia aquele olhar. E o pai tambm, tinha dias. Ela indignava-se mas, antes disso, sabia que estava culpada, que era ela quem comeava com o despudor duma inocncia que o pior pecado. Inocncia que espreita como um drago, e se esconde como o sal na neve fria. E o pai esteve prestes a arruinar-se completamente por ela, a fingir que tudo estava na maior prosperidade, mandou-a estudar para Inglaterra e conhecer pessoas, tudo. E at o irmo se queixou porque no teve um carro de corrida que tanto queria e no teve. - Para outra vez - disse o pai. O caso ficou arrumado. Se nesse tempo a Ronda da Noite j estivesse por perto, tinha-a negociado ao desbarato para cobrir as dvidas s quais dava nomes, como a "dentua" ou a "movedia": uma porque a trazia ferrada na perna, outra porque o atolava cada vez mais. Quando a Ronda da Noite foi atribuda a Filipe Nabasco, numa dessas heranas que constavam no seu cadastro de parente presente apenas na rvore geneolgica, ele nem sequer a quis ver. Nem tinha muitas luzes sobre arte e dava mais ateno a um negcio de volfrmio (onde, de resto, perdeu muito dinheiro por multas e vrios danos) do que a um Museu do Louvre todo inteiro. S o que podia
comprar e vender num prazo curto que envolvesse uma conversa de caf, era o que lhe interessava. A Ronda ficou enrolada como um tapete velho na parte de cima das antigas cavalarias, muito maiores do que a Casa do Co. Filipe Nabasco, no tendo onde estender a Ronda em todo o seu tamanho (como no houve largura suficiente na cmara de Amesterdo e por isso foi mutilada), deixou-a na cavalaria onde dormia o feitor. Nessa altura Maria Rosa desviou os seus problemas ntimos para a maldio da Casa do Co e falou na mudana. Quando a Ronda foi mostrada em toda a sua extenso (3,63111 por 4,37m), fez-se um silncio. Na cavalaria, banhada pela luz fraca da porta meio encostada, o Capito Frans Banning Cocq, senhor de Purmerland e de Ilpendam, parecia um tanto recomposto da surpresa por ter visto o seu tenente Van Ruytenburch, vestido com tanto luxo. Para no se confundir com ele, deu um passo (de modo quase imperceptvel) para diante, o que faz com que se notem os ps calados com sapatos de laos, tendo altura dos joelhos tambm laos abundantes. Podia estar tranquilo o capito Cocq porque o fato de veludo preto, a faixa traada no peito, de seda cor-de-cravo, alm da luva de camura que segura o basto, serem prova evidente da sua categoria. Contudo, ele no deixa de ter um olhar de preocupao e procura no reparar na figura do seu tenente. Mas difcil no reparar. Todo ele luminoso, a nota mais luminosa da tela, se exceptuarmos a pequena, e doce, e divertida menina que est a tentar atravessar a companhia do capito ainda desprendida da ordem de marcha, ainda entregue a uma despiciente desordem. O tenente sobressai pelas galochas de cano largo sobre as botas com joelheiras bordadas. Devem-lhe ter custado um ms de soldo, ou mais, assim como o chapu emplumado. O nosso tenente quis fazer boa figura e no se poupou a despesas. No todos os dias que se posa para o mestre Rembrandt que est afogado em lutos e provavelmente em dvidas. Ele acaba a Ronda da Noite quando Saskia morre. No ser a alma de Saskia que se converte num duende para romper caminho pelo meio da companhia do capito? Uma criatura tenebrosa, coroada de folhas de carvalho, parece estorvar-lhe o passo. O carvalho, pela sua dureza e resistncia, estava relacionado com a ideia de imortalidade. possvel que Rembrandt quisesse simbolizar na figura macabra a morte, um condutor da alma feliz e infantil de Saskia, ou da pequena Cordlia morta de pouca idade. O sentimento pago e delirante vai impregnar a Ronda da Noite que terminada em 1642, ano em que morre Saskia, depois da filha Cordlia; a segunda Cordlia, a primeira morre em 1638. O estado moral e mental do pintor seria precrio, e isso que d profundidade Ronda da Noite. Pinta como se falasse com ele prprio, indiferente em desatinar, levado por um escrpulo apenas quanto ao destino que continuamente lhe marca encontro.
Interroga-se, enquanto pinta. Os contnuos auto-retratos dizem que se preocupa consigo mesmo. um luntico, um homem que persegue honras e uma vida de luxo e estabilidade, como qualquer judeu de Amesterdo? No , com certeza, um judeu. Os judeus so maus pintores, mas pode-se dizer que Rembrandt um bom pintor? Dos seus oito discpulos, ou colaboradores, h quem pinte melhor do que ele. Mas no h quem recolha, dum s trao, aquele olhar, sempre o mesmo, que se alimenta dum vazio que h na vida, vazio da cultura e do amor, em tudo. Era este olhar que Martinho achava ser-lhe dirigido. Aos poucos sentiu-se visado pelo autor da Ronda. A ltima colocao do quadro, no cimo da escadaria principal e numa sala que era suposto ser o trio, no foi o mais favorvel. A Ronda ficou na penumbra e a nica coisa que sobressaiu nela foi a rapariguinha e o tenente com as suas galochas novas e o ar de primeira figura, o gal da cena. Tudo o mais ficava mergulhado na sombra, como que velado por um reposteiro espesso. Pintar para ele um ganha-po, mas significa tambm um pedido de explicaes. Pede obscuridade que se abra e tome a palavra; os momentos culminantes, como a ressurreio de Lzaro, so momentos profusamente iluminados, correspondem a um desejo que sai do mais profundo da alma. A rapariguinha da Ronda que avana entre a multido, distrada e sem orientao, parece dizer: "Segue-me e sabers porqu". O quadro chegou a ter, para Martinho, o sentido dum livro de adivinhas. Tinha que o ler e interpretar. Escondia, em grande parte, a sua fascinao pela Ronda, a ponto de falar em vend-la para cobrir as dvidas da casa. Mas fazia isso, como aqueles que esto perdidamente apaixonados e fingem desprendimento para no serem alvo de ateno particular 131 e que, com ela, lhes seja arrancado o segredo. O melhor do amor o segredo. A sua aparente rendio a ponto de se tornar difano e vulgar, serve apenas para preservar o segredo. No uma coisa a que se renuncie abertamente; apenas se pode misturar com outros sentimentos para no ter que o beber em estado puro, o que causaria a morte, como s vezes acontece. "Felizes os que no amam seno a sombra das coisas", disse Martinho. Tinha subido a alta escadaria, cujos muros estavam cobertos de azulejos verdes, e respirava com dificuldade. Judite estava a falar com algum na sala nobre, quase despojada de mveis e com um piano de cauda a marcar a importncia desse lugar; embora ningum tocasse piano, ele impunha-se, parecia pedir o seu concertista, algum que o amasse e no apenas decifrasse os seus sons. Martinho estava perto de fazer dez anos de casado, data considerada de crise para o casal. Isso talvez explicasse os pequenos e quase teatrais empenhos que Judite mostrava em agradar-lhe: - Amo-te tanto! - dizia ela. Como Cordlia dizia ao pai, o rei Lear. Mas isso no significava que o amasse deveras. Era mais astuta do que as irms, apenas isso. Porque o amor, como as cenas obscuras de Rembrandt, assim obscuro, toldado como a gua escura dum lago ou dum poo muito profundo.
Martinho, que ia refazendo as casas arruinadas da famlia, tendo, para isso, conferncias com os arquitectos e mestres-de-obras, pensava que as pessoas no ocupavam na sua vida nada de comparvel. "Porque que hei-de amar as pessoas? Basta ser-lhes grato, se for caso disso, ou gratific-las se tambm for caso disso. Mas am-las fora de questo. O amor como se diz de Deus: "No devemos jurar o seu santo nome em vo", pensava ele. E pensava muitas coisas que as telhas duma casa escondem. Todo o mal do mundo vem de que se do ao amor nomes que no lhe correspondem, como o desejo, a paz, os inocentes prazeres da vida em comum, a admirao pela beleza e pela juventude. Esta noo prtica e transbordante do amor fazia com que o achassem intrigante e que alimentassem contra ele uma vontade de o destruir. Se era um mutante, isso pressentia-se pela capacidade que ele tinha de alertar as pessoas. Ficavam inquietas e faziam coisas inesperadas, contra a lgica dos seus costumes. Bento Webster, que toda a gente julgava ser um antigo suspirante de Maria Rosa, casou-se de repente com uma rapariga muito nova, que lhe deu um filho. No se tratava de luxria de velho, longe disso. Era uma deciso tomada para preencher o vazio do amor de que ele teve uma vaga informao. Martinho dedicou-se a averiguar o que h de vingativo na prtica das grandes criaes do homem. Um massacre pode ser encarado como uma grande criao cuja perversidade induz ao castigo e ao arrependimento. A finalidade essa: elevar-se ao nvel da grande expiao e, com ela, atingir o exemplo. Mas o homem no sabe qual o percurso da sua verdadeira inteno. A violncia um excitante com vista criao e por isso que muito difcil de ser erradicada. At nas naturezas mais dceis a violncia est incubada e no momento oportuno se manifesta. No mbito familiar coexiste com a doura de carcter e a graa dos rituais. Por exemplo, no casamento de Martinho, diante duma assembleia de pessoas educadas e cerimoniosas, Martinho sentiu de repente o desejo de acorrentar sua vontade um acto to simples como dizer sim. Fez-se um silncio incmodo quando ele demorou a declarar-se disposto a ser marido de Judite. Ela olhou-o com espanto e preocupao. - Diga quero, meu amor, diga quero... - murmurou. E Martinho gozava o pnico da noiva e a interrogao dos convidados. Um pouco mais e tudo entrava em colapso. Chegaram-se a ouvir, muito baixo, as notas do Hino Alegria que substitua a estafada Marcha Nupcial. Depois o silncio tornou-se insuportvel. " o massacre" - pensou Martinho. "Estou a arranhar-lhes a pele at fazer sangue; estou a remexer-lhes com os nervos e a esfol-los". Uma senhora saiu a correr e tomou o caminho da toilette que no sabia onde ficava. "Vai urinar-se pelas pernas abaixo." Ele disse nitidamente sim, sem olhar para Judite, que baixou a cabea. E houve um som na assistncia como se libertassem pssaros no ar. Tinham-se escandalizado ou tinham gostado desse momento grosseiro e de puro massacre?
- O melhor de tudo que nos ammos, nesse instante - disse Martinho enquanto se barbeava noite, antes de se deitar. Foi uma bela noite de npcias e Judite, com a sua camisa que brilhava como a gua, tornou-se sua mulher. Com decepo e com esperana de que tudo corresse melhor no futuro. No entanto, no teve filhos. - No foi bonito o que voc fez - disse a av, passado tempo. Tinha um ventre abaulado e as clebres prolas caam-lhe como cordeiros numa encosta. Judite perguntara uma vez o que queria dizer abaulado e Maria Rosa explicou: - Em forma de ba, minha tola. Martinho disse: - Eu no fiz nada. Que foi que eu fiz? - No se fala mais nisso. - Maria Rosa calou-se um momento. Tinha a certeza de se ter enganado com Martinho. Mas quem no se enganava com toda a gente? Estrelinha Sopa-de-Massa no deixava as pessoas boquiabertas ao ser morta como uma vitela no matadouro? E tudo isso, com o gnio que ela tinha e foras nas mos como uma carrejona. Maria Rosa, por meias palavras que Judite lhe dizia, apurava coisas extraordinrias: que no fosse o pai o assassino mas ela, Judite, exactamente. E at Martinho fez perguntas, porque era investigador e gostava de aclarar as coisas. No por nada, porque sim ou porque queria ter motivos para no respeitar ningum. - Foste tu, Judite? - s vezes tratava-a por tu, outras vezes por voc. Era conforme lhe dava. Mataste a tua me? - Eu? No brinque comigo, no me fale nisso que j l vai. - Se tu o dizes... Mas olha que tenho c uma desconfiana. - Desconfiana de qu? No se ponha a desconfiar de mim, Marto. - No nesse sentido. Esteve para dizer que a achava fiel como um pastor alemo, mas no disse. Tratava-a com uma agressividade graciosa, que a maneira de os homens se imporem s mulheres inbeis no amor. Julgava ele que Judite desconhecia todos os talentos de que dispunha, cultura, sensibilidade musical e gosto para se vestir. Mas ela s desconhecia o que lhe parecia suprfluo para o entendimento entre os dois. Entendimento de cama e de dinheiro. A Judite pouco lhe importava fazerem frias juntos e receber presentes do marido. Em geral eram coisas de que ela no gostava, elegantes sim, mas acima da sua preparao. Maria Rosa fizera um bom servio ao dar-lhe noes de etiqueta ou a fazer-lhe ver o valor dos objectos: a distinguir o cristal do vidro, ou o linho puro do paninho de lenol barato. Mas, alm disso, no se importava com aquele entendimento que o bero d e nada mais que o bero.
s vezes Judite cometia gafes estrondosas; outras vezes, menos. Mas dava para entender que ela no pertencia ao mundo dos Nabasco onde se dava muita importncia a no beijar uma mo enluvada ou comer espargos frescos mo. Era um dialecto especial que Judite no abrangia e escapava-lhe um palavro quando ficava enervada, "porra" ou "merda", por exemplo. Mas sacana, isso nunca dizia, pois sabia ter uma conotao vadia, de presdio, ou parecido. Mesmo ao pai dela, um feitor pobre, nunca ouvira palavras dessas. Porque que Maria Rosa pusera em Judite muitas esperanas quanto felicidade do neto? Estar casado com ela era o mesmo que ter um emprego a meio tempo, pois Judite no se metia na vida dele, como faz uma boa criada com o patro. Saa de casa e era como se partisse para regies inacessveis e at pudesse perder-se por l e no voltar mais. Casos assim tinham acontecido e tinham feito histria. Como o primo que era pianista de carreira e se embrenhara no Amazonas para sempre, cafreando-se, alegremente ou no, no se sabia. Vista de perto, a vida das pessoas s era seguida linha de gua; as profundezas no se enxergavam, l onde passam os peixes cegos e as raias gigantes. - Peixe um smbolo flico. Cuidado com isso - disse Martinho. Estava a engraxar os sapatos, ele prprio tratava do seu calado e deitava-lhe um bocadinho de cuspo para o conservar, ou no sei o qu. Judite no sabia o que era um smbolo flico, nem se importava. Quando foi ao Alentejo um dia, aprendeu alguma coisa nesse sentido. Falos eram menires de pedra, no podiam ser outra coisa, com meato urinrio e tudo. - Isto um smbolo flico? No se parece nada com um peixe - disse ela. Aprendeu que o mundo est cheio de smbolos flicos, ela que no tinha reparado. Fumando o seu cachimbo, muito inglesa, Martinho ouvia-a no escondendo a si prprio quanto lhe agradava ter aquela mulher por perto. Ela tinha-se tornado adulta duma maneira que inclua uma degradao da sua moralidade. No o bastante para ser desaprovada, mas simplesmente ganhara em falta de gravidade, o que numa mulher sempre atractivo. Cada vez mais se tornava difcil para Martinho admitir a ideia de separar-se dela. Contudo, s graas s suas sadas de casa, para dirigir as obras nas suas desmanteladas casas de campo, ou no regime de vida activa sem actividades, que Martinho a suportava. Em parte, fingia estar desprendido de Judite o bastante para no despertar o cime da av. Mesmo velha como era, Maria Rosa constitua um perigo, pois s dela dependia a ideia que ele tinha de liberdade. E se com as mulheres em geral se passasse o mesmo? Delas dependia a imortalidade absoluta que se atribui a Deus; quer dizer, a impossibilidade de desaparecer completamente. Isto causou um calafrio a Martinho e esteve perto de cair doente. As vezes os seus pensamentos eram to alucinantes que no queria ningum presente, pelo receio de os deixar perceber. A vida social do casal era quase inexistente. Ainda que isso fosse
improvvel, o deslize que havia de Martinho ter casado com uma rapariga com histria criminal, no era perdovel. Podiam passar cem anos que isso no era esquecido. O doutor Horcio prevenira Maria Rosa, que no lhe deu ouvidos. - No me d nenhuma novidade. Nada permanente e, se dermos a Martinho a vantagem que h em partir do que no oferece motivos de permanncia, estamos a dar-lhe a felicidade numa salva de prata disse Maria Rosa. - Tire l a salva de prata que no precisa. Quer dizer que o defeito um condutor da felicidade? - Exactamente. A perfeio no ertica. o erro que ertico e no a beleza. O doutor Horcio punha-se a pensar se Maria Rosa durante toda a vida de casada no estivera sempre informada das escapadelas do Nabasco que, afinal, no tinha necessidade de ter amantes. Os mandamentos no se destinam a promover a perfeio do homem, mas a medir as suas imperfeies, mais necessrias do que mpias. "Ser que ela viu isto?" - pensou o doutor, fazendo como de costume o gesto de acertar os culos no nariz como para ter a certeza de que eles l estavam. Judite no reclamava por no acompanhar o marido e estabeleceu-se um acordo entre eles que agradou a todos: estavam casados, mas fora de certos compromissos que s convinham a uma linhagem, a um nome de famlia em permanncia. No faziam nem aceitavam convites juntos, no eram vistos ao mesmo tempo em lugares de recreio ou de cerimnia. Isto criava uma falta de cumplicidade que afinal lhes deixava a independncia da vontade com respeito sua prpria diferena. Contudo, no ficava esclarecido se o casal se amava ou se experimentavam um conceito novo de matrimnio. Judite no entrava nestas cogitaes e limitava-se a ser uma boa criada, aproveitando as suas folgas da maneira que lhe dava mais prazer e que era a de ser til e descomprometida. Quando fazia um cruzeiro achava sempre maneira de se ocupar das crianas nos infantrios ou dos ces nas suas jaulas de bordo. Nunca se queixava de nada e comia a sopa fria sem repugnncia e esperava pacientemente que lhe mudassem a roupa do seu beliche. Ao terceiro dia de viagem j a tinham reconhecido como a hspede encantadora e guardavam-lhe um lugar abrigado ao lado da piscina, como se ela fosse uma parenta incgnita. Era tudo natural, sem troca de benefcios; ao fim da viagem, ela partia deixando uma saudade atrs dela. Tanto a empregada da faxina, como o rapaz do bar, e at o capito que, para a experimentar, lhe apertara o brao de maneira convidativa, guardavam um pequeno despeito de amor vendo-a sair com as suas malas de mo que, de repente, a denunciavam como uma pessoa rica. Que andara ela a fazer seno a engan-los a todos? Ela voltava para Martinho sem ter nada que contar, s um pouco mais queimada do sol, e retomava a lida da casa como se no estivesse fora seno o tempo duma matin.
- Foi divertido? Encontraste gente interessante? Parecia que Martinho lhe falava chins. Deitava-lhe os braos ao pescoo com tal alegria que ele no perguntava mais nada. Afastava-a um pouco para a olhar de frente, e aquela sensao de desconforto, como se estivesse a violar uma criana, enchia-o dum medo estranho e de estranho prazer. O que uma mulher? No era, bem vistas as coisas, um predicado real. No caso de Judite, a sua alegria no dependia da satisfao dos seus desejos; podia-se dizer at que ela no tinha desejos seno os que eram manifestados pelos outros. Mas o que sustentava a inquietao sobre a sua pessoa era a falta dum elo estvel com o mundo. De repente, tudo podia mudar e Martinho estava preparado para aceitar a morte dela; mas no estava preparado para outro tipo de abandono. Alguns homens (ela sabia isso) apressavam-se em deixar o lar e a constituir outra famlia, para no terem que se ver abandonados. Pressentiam que h um ponto de ruptura (e os mdicos, entre os quais Horcio Assis, chamavam-lhe climatrio) em que as mulheres deixam a sua dimenso terrestre e todas as ligaes com a terra lhes so indiferentes. No sem sofrimento, no sem desordem profunda. A transformao dos fenmenos do corpo so a mudana que se opera na sua mente. O doutor Horcio achava que Judite, ainda que fosse muito nova ainda, estava a desfolhar o seu climatrio, como se desfolha um malmequer. Se chegasse ltima ptala e isso coincidisse com a palavra bem-me-quer, ela entrava em casa e nunca mais saa de l seno num bonito caixo de mogno. Mas se a palavra fosse mal-me-quer, no teria descanso. Eram coisas que ele pensava. O facto de ela no engendrar qualquer coisa viva, um filho, no queria dizer que ela no fosse frtil, ou antes, que renunciasse fertilidade. Martinho tinha ainda muito que aprender com aquela mulher. Conceder que Judite lhe podia dar lies, ela que nunca aprendera que no se empunha uma faca mesa como se fosse uma lana, era totalmente bizarro, seno impossvel. O doutor Horcio avisava-o: - O climatrio dela j comeou. No se sabe no que pode dar. - No que pode dar? Nada de bom, concordo. A mulher est no tero, j diziam os romanos. Tenho uma quantidade de dores de cabea minha espera. J ningum dizia "dores de cabea", mas chatices ou fases quando se tratava de mudanas. Martinho estava nesse momento ocupado em revestir de azulejos o jardim e andava em busca de painis, ficando cada vez mais conhecedor sobre a matria. Mas de Judite no sabia quase nada, excepto que a maternidade lhe fazia falta. V-la a tratar com crianas, era notrio que as amava do fundo da sua alma tbia e infantil. A menos que aquilo no fosse seno uma recordao reprimida dos tempos em que um menino de dois anos era um prato suculento. A civilizao estava a retroceder os seus milhes de anos depois do ser primordial que a tinha formado. E da as fantasias com dinossauros como se fossem contemporneos; e outras coisas. Era tudo to isolado como Deus no infinito. Quando Judite entrara na
Casa do Co, no tinha mais de doze anos. A instruo que tivera, alm do curso de costura num Patronato e o primeiro ciclo da preparatria, era sobretudo domstica. Aprendera com a me os trabalhos da vinha destinados s mulheres, vindimar, sachar, levar a comida aos homens em grandes vasilhas de lato. Aprendera que, mantendo a colher do caldo dentro da panela, o calor se concentrava nela e durava muito mais tempo. Tambm sabia matar frangos e coelhos, sem se impressionar, tendo at uma pequena ira que fazia as coisas mais fceis. Era preciosa na vida de casa mas quando Maria Rosa a mandou estudar maneiras e sobretudo querendo tirar-lhe o sotaque local, viu-se em dificuldades. Bonita era, com os olhos azuis raiados de preto e os cabelos aos anis. Alta, com um rosto Clouet, um pouco surpreendido e claro, causava nos homens uma impresso cautelosa que o princpio duma paixo. Por cime talvez, Maria Rosa no a quis deixar partir com nenhum deles e discutiu em famlia as vantagens de casar Martinho com ela. - No sei se boa ideia. Ele que diz? - O doutor Horcio estava to incomodado que lhe faltavam as palavras. Nunca se vira uma coisa dessas. - Ela como um animal em cativeiro, um dia vai querer voltar selva. - J no h selva, doutor - disse Maria Rosa, meio agastada. - Martinho gosta mesmo dela; bem vejo o olhar dele, quase suplicante, quando ela o serve mesa. um intelectual e os intelectuais casam com as cozinheiras. - Eu casei com uma professora. - Quem lhe diz que teria feito melhor se casasse com uma cozinheira? - Voc diz. Mas a Maria Rosa uma matriarca, s gosta de mulheres ignorantes e que sejam as traves da casa. Tem que falar com o seu neto muito a srio. Est em causa a felicidade dele. Maria Rosa tinha motivos para ficar pensativa, mas no ficou. Uma vez que estavam ss, ela e Martinho, depois de jantar e Judite lhe ter preparado o cachimbo e sado da sala, ela abordou o assunto. Tratou-o por voc, como nas ocasies de maior solenidade. - No novidade para si, mas queria perguntar-lhe uma coisa: que pensa de Judite? - Que Judite? - Bem, no a de Holofernes. A nossa Judite. - No sei. Diga-me a av. - No lhe agrada? - Sim, agrada-me. como uma irm para mim. - A parte o incesto, que no deixa de ter atractivos, que acha casar-se com ela? - Casar-me? - Ele fechou os olhos como se o fumo o incomodasse e uma onda de prazer f-lo corar. Desejava Judite quando a via, com os braos nus, a lavar roupa mida e a p-la em sabo ao lado,
como se fazia dantes e ela tinha aprendido desde pequena. Aos quatro anos, a me punha-lhe um banquinho diante do lava-loia na cozinha e ela esfregava panelas do tamanho dela, raspando com a unha o feijo-frade pegado no fundo. Aos quatro anos ia para a colheita do morango nas estufas, e no se queixava. O trabalho assentava-lhe como uma luva; crescera a mexer-se, a ser mandada, a ouvir os gritos da me que a repreendia, a sacudia, no a deixava parar. Mas fez-lhe um vestido para a comunho, tal como o duma noiva; com grinalda e vu, e at luvas de algodo branco que ela se esforou por no sujar. - Se as sujas, mato-te! - disse Estrelinha Sopa-de-Massa. Parecia uma lady, grande e com sardas douradas. Judite ficava a olhar para ela com admirao, agradecida por ter uma me to bonita, ainda que geniosa. Quando o sol lhe dava, na varanda das traseiras, era uma autntica estampa. Ao pai amava-o doutra maneira. Era um amor severo, no deixava que ele lhe desse um beijo desde os seis anos. Fechava o quarto chave para ele no entrar. Mas estava sempre pronta a fazer-lhe recados, a ir comprar-lhe cigarros, a pedir emprestada uma tesoura da poda. No o desgostava em nada. Punha-se a olhar para a imagem de Cristo morto na cruz, com uma ferida azul de sangue pisado no lado e que parecia verdadeira. As lgrimas caam-lhe pela cara abaixo. "No o vou desgostar em nada", pensava. - Onde estiveste tanto tempo? - Fui ao catecismo. - Rai's partam tanto catecismo! Escolhe-me essa hortalia. - J vou. A bata era curta e descobria-lhe as pernas altas com um plo loiro, que a me no deixava que as rapasse. "Depois nascem mais fortes." Mas, com isso, resistia a ach-la mulher feita e a entrar na roda das casadoiras. Como que Judite se tinha adaptado no se percebia muito bem. Seis anos foram o suficiente para ela se transformar e Maria Rosa orgulhava-se da sua obra. Aos dezoito anos Judite era uma senhora, direita como um fuso (ou torneada como um fuso, tanto faz) e s pecava por uma coisa: gostava de telenovelas e era capaz de memorizar seis ao mesmo tempo, sem se enganar. Ainda que fosse para ela um sacrifcio assistir a jantares, quando se recebia na casa, comportava-se lindamente. Ento, vestida de veludo preto, causava sensao. Ningum se admirou quando Maria Rosa comunicou o casamento do neto com Judite. "Se o Nabasco fosse vivo, as coisas no se davam", disseram. Mas como Martinho no a levava ao clube, nem aparecia com ela seno muito raramente, deixaram de falar no caso. No fundo, os homens eram muito fleumticos quanto aos deslizes uns dos outros e costumavam dizer que est tudo bem logo que no haja engarrafamentos de trnsito.
O Porto no tem tradies fidalgas, toda a gente sabia. Negociantes, empresrios, capitalistas, com as artes no Porto, a exemplo da Revoluo Francesa, chamam artistas aos trabalhadores de certas profisses, como pintores, canalizadores e electricistas. Pessoas como Martinho Nabasco mereciam algum respeito porque eram ricos e s por isso. A seguir vinham os mdicos e os professores e por fim os padres e os jornalistas. Era frequente os rapazes de boas famlias no terem grande instruo mas apenas mestres de caligrafia e contas. Maria Rosa seguiu essa cartilha quando j no era usada. - Como as coisas mudaram! - disse Maria Rosa. J deixara de fumar h muito tempo, mas tinha aquele gesto de quem procura um cinzeiro ou uma caixa de fsforos, deitando em volta um olhar pesquisador. - No digo s pela periferia e as pracetas novas, e as linhas de trnsito que vo dar a qualquer parte (Deus me livre de querer saber aonde vo dar, nunca mais l chegava), mas pelas pessoas. No conheo ningum. Ou esto mortas, ou em casa, com Alzheimer. Eu recebia para o ch s quintas-feiras e s vezes aparecia um desconhecido e entrava. Podia roubar as gabardinas no bengaleiro e ningum impedia. Agora fechamo-nos a sete chaves e para recebermos algum tem que trazer um crach da polcia. Tenho trs ces soltos noite e cmaras por toda a parte. Ningum entra que no seja filmado. - Que ingnua! - disse o doutor Assis. - Eu apresento-me aqui com a minha camisola de gola alta puxada at ao nariz e ningum me reconhece. E os seus ces so de exposio. Com duas pedradas esto arrumados. Espero que no tenha em casa o seu colar de prolas. - Onde o havia de ter? Preciso dele de repente e quero-o mo. - De repente, como? - Posso ficar de cama e gosto de o pr na cama. Sabe disso. - Parece uma herona da Agatha Christie. - Tanto melhor! A Agatha Christie do meu tempo. Fazia uns romances como arranjos florais; com uma aranha dentro. A Highsmith era melhor. Li bastantes livros policiais, so muito repousantes. Ela falava muito ultimamente, "como uma matraca", dizia o doutor Assis que, entretanto, se modificava tambm. Tornara-se guloso e comia seis scones com manteiga duma assentada. No tempo em que os scones no eram congelados e se faziam todos os dias para o lanche, sabiam muito melhor. O grande canap de veludo alemo parecia uma canoa no rio Amazonas. Tudo era mais bonito, at a luz do pr-do-sol era mais bonita. - J falou com Martinho? Vamos a coisas srias - disse o doutor Assis. - Que mania interromper as coisas agradveis com coisas srias! A Patrcia Highsmith tinha, quando eu a vi em Toronto, um casaco de caxemira cinzenta e um olhar de raposa caa de coelhinhos bravos, desses a lavar a cara beira duma poa de gua. No me esqueci mais.
- Que estava voc a fazer em Toronto? - Qualquer coisa sria. Comprar umas peles, no sei. As peles de foca estavam muito baratas, eu fiz algum negcio com isso. - No me diga que era foca beb. - No. Era a foca av. - Ela riu-se e deitou-se para trs, no seu jeito de rapariga que, no entanto, roava pela melancolia. No por nada. Mas as mulheres guardam no fundo do corao um cumprimento para a juventude que nelas passa sem aviso e sem saudade, e a qualquer momento da vida. No era fcil abordar o assunto do casamento com Martinho. Dizer-lhe o qu? Que ningum se casa com a filha dum assassino, por mais bonita e bem educada que ela seja? Ele estava no seu direito para lhe responder asperamente e at de cortar relaes ou pedir av que no o recebesse mais. E Assis no queria encarar essa hiptese; gostava de jantar nos Nabasco, de comer bem e jogar a sua partida de bridge quando havia com quem. Maria Rosa no era viciada, mas as cartas davam um toque feliz ao fim do seu dia. Baixava as luzes e s a mesa de jogo ficava iluminada. Como nos filmes dos grandes marginais, com sobretudos forrados de cetim vermelho. Havia nela uma obscura inclinao para a clandestinidade e fora decerto isso que a levara a adoptar Judite. Qualquer que fosse o seu comportamento, no a decepcionava. Como acontece com pessoas no fundo arrebatadas por um sentimento congnito de desordem e at de malvadez, ela tinha sbitos desejos de redeno. Gostava de ter ao p dela gente nova e ingnua, que de certo modo corrigia na sua alma as aces que praticara ou estivera prestes a praticar: desvios de testamentos, roubos em famlia de jias e peas de loia avaliadas em alto preo. Donde viera a Ronda da Noite? Suspeitava-se que era uma cpia, dessas que quase chegam ao valor dum original; o prazer do negcio, em Maria Rosa, superava o do jogo. Viver na casa do Torreo Vermelho, donde se via a cidade inteira mas que era de certo modo inabitvel (porque no tinha aquecimento, s uma quantidade de lareiras, que era impossvel ter acesas ao mesmo tempo por falta dum oficiante apropriado), significava que ela tinha ideias sobre a Ronda. Maria Rosa no era pessoa para se afeioar a um valor; tinha-o como refm dum contrato aparentado com o jogo. Tinha uma autntica paixo pelos leiles e, nesse sentido, corria as casas a serem arrematadas como um atleta percorre a rea da prova e avalia as suas condies. As jias raras tambm a tentavam, se bem que, com excepo do colar, no as usasse. Os longos lbulos das orelhas (ndice de felicidade para os chineses) tinham crescido sem terem nunca suportado arrecadas ou brincos de qualquer preo. Quando Judite lhe fazia ver que a casa se tornara grande demais, com as suas trs salas de tectos altos e os frescos nas paredes com as nove musas, e outros espalhafatos semelhantes, Maria Rosa ficava perto de a odiar.
- Que queres? Uma sala comum e a marquise? Se no te agrada, muda-te. Era estranho como Estrelinha Sopa-de-Massa dizia a mesma coisa, mas exactamente a mesma coisa, quando Judite se queixava: "Se no te agrada, muda-te..." Era um estribilho que continha uma lio; abria-lhe a porta para uma vida de surpresas como ela prpria tivera, algumas boas, outras para esquecer. A vida! Se Judite tinha recordaes desse tempo, do pai que bebia, da me iracunda, guardava-as para ela prpria. Olhava para o Cristo na cruz, na igreja, em tamanho natural e com membros de atleta, e sentiase insegura. Como era que Ele se deixara prender e maltratar daquela maneira? Judite tinha um antepassado almocreve que fazia recovagens para o cerco do Porto e outras; trazia de Espanha gales e rendas, com que fez fortuna. Chamava-se Jesus, o que confundia muito as crianas. Quando era muito pequena, Judite tinha vaidade em descender do Jesus das encomendas e sentia-se algum com aquele parentesco, to distante que nem uma lebre a correr o apanhava, como lhe dizia a me. Como viu Judite o casamento com Martinho? Ningum lhe perguntou nada antes de ele aceitar receb-la como esposa. Depois parece que ficou desiludida porque se tratava quase duma unio de facto e no duma cerimnia a valer, com hino na igreja e vestido de noiva. - Posso ir de branco? - De branco ou de cor, contigo - disse Maria Rosa, compadecida. - Levas um ramo de gardnias c do jardim que so um espanto. Para ela uma unio de facto no passava dum ajuntamento, mas prevenia decepes. Tinha nos ouvidos as catilinrias do doutor Assis que no se fartava de condenar aquilo, dizendo que a cabra puxa sempre ao monte e coisas assim. - Ora, pode-se fazer o que se quiser, j no h censura para nada e no perco as minhas partidas de brdge por causa disto. E tu, Judite, no te ponhas triste. s to honrada como as outras e no tens nada a perder. - Jura? - disse Judite, num tom de voz distrado, mas que no era to distrado assim. Maria Rosa deu-lhe um enxoval digno duma princesa. Pena era que as antigas bordadeiras do Porto j no existissem, mas em Bucareste sim, que havia autnticas fadas da agulha que faziam ponto de sombra e a cheio. Mandou vir de l camisas que mais pareciam vestidos de Madame Rcamier no sof. O casamento no mudou nada, se exceptuarmos a vida conjugal, que no foi por a alm, nada parecido com as cenas de amor explcito apresentadas na televiso ou no cinema. Qualquer criana de quatro anos sabia beijar com a lngua e que o sexo era uma distribuio de encontres. Isto tornava-as desprevenidas quanto ao assdio de pedfilos que se insinuavam pela arte da rendio a comear pela curiosidade.
Como Judite no tinha filhos, pensou-se que levava uma vida de vestal, para no dizer de freira, que levanta objeces de toda a espcie. Mas no. O casal era feliz desde que a sua intimidade no fosse sujeita opinio de todos. Dantes s a lavadeira tinha acesso aos lenis dos casados; e da s suas relaes em que passava o conceito do ser humano, qualquer que seja a sua idade, cultura e tamanho; o conceito de que no so as suas perfeies que os recomendam, porque em toda a perfeio h elementos negativos. No amor h um impudor brutal, a par duma castidade postia. Judite preferia preservativos cor-de-rosa, desacreditando-os como objecto sexual. No confiava totalmente em Martinho e pensava que ele lhe podia transmitir a sida de que tanto ouvia falar. - homem e os homens fazem coisas que nem se acredita - disse Elisa, que ficou indignada. - Ele no desses. Fica-te mal teres ideias dessas. - No so ideias, so pressentimentos. - Os teus pressentimentos so muito malcriados. - E Elisa virou-lhe as costas. Judite pensava se estaria ou no apaixonada. Na dvida, dava-lhe para se dedicar s artes, comeando pela poesia. Algum disse que os maridos no consentiriam na vida real s suas mulheres aquilo que elas punham em verso. No contente com esses trabalhos, Judite enveredou pela prosa e valeu-se das meias verdades que so desejos estropiados. Pretendia uma liberdade sem saber, como ningum sabe, quais as leis que regem a liberdade. No fundo, queria incomodar Martinho arrogando-se uma moralidade que precisava duma cultura e de Deus como cultura, para se afirmar. Ele estava muito longe de se interessar pelo mal-estar que ia crescendo e ameaava tornar-se crnico. No a contrariava nem se ria dela, mas tambm no lhe anunciava nenhuma compreenso, apenas um respeito que era devido a ele prprio como marido. Talvez esperasse que Judite desaparecesse da vida dele, como por encanto, sem que ele se sentissse culpado de nada. "No se pode viver muito tempo com uma mulher sem se efeminar", pensava Martinho. "Vamos acabar por termos tendas parte para no sermos um s sexo." Ele tinha lido um dilogo atribudo ajesus e Maria Madalena, dilogo em que se reconhece o fim do desentendimento entre homem e mulher "quando ela deixar de dar luz e houver um nico sexo". Era alucinante, no se podia falar disso, pelo menos por enquanto. Martinho suspirou e dormiu um pouco, estendido no sof vermelho que tinha mudado para um rosa esbatido. - No vem jantar? - disse a av, do fundo da escada. - O que o jantar? Ele sentiu que estava na Casa do Co muitos anos antes e se punha a mesa no jardim, ao fim da tarde de Julho. Havia lagosta e vinho espumante em copos altos. "Vai lavar as mos" - disse o av. - Jesus no lavava as mos.
Isso valeu-lhe uma bofetada com os dedos, Martinho fugiu com a cara e desequilibrou-se mas no chegou a cair. O av andava a dormir com a criada de sala, uma morena baixinha que no prestava para nada. Mais duma vez foram encontrados no andar por cima da garagem e que, porque no havia chauffeur, se destinara a quarto de costura. Era quente e sombrio e dava ideias de segredo e decomposio da carne. Um dia, descia ele pela avenida onde havia amoreiras de frutos brancos e sem sabor, e apercebeu-se de ver outra pessoa que, como ele, conhecia esse mesmo lugar. J tinha estado ali, no corpo de outro. Guardou para si essa estranheza, no tinha mais de sete anos. - O que o jantar? Foi Elisa quem lhe respondeu para lhe dizer que ele ia gostar. Era dada a mistrios sobre as mais pequenas coisas. "Quem te disse isso, Elisa?" Calava-se. At se calava quanto ao horrio dos comboios e o boletim meteorolgico. De tudo fazia reticncias e ares sabedores. Se no fosse isso, tambm no tinha graa. O cabelo ia-lhe caindo e ela guardava-o numa caixinha de papelo. Tosquiava-se o co e ela guardava o plo cortado. - Para que isso? - Para nada. - Ento para que o guardas? - uma recordao. - No um feitio? Calava-se. H uma quantidade de pessoas que no fazem nada em pases amuados na sua Histria e que entendem que outra coisa no vale a pena. Quando possuem um talento natural, para o qual no preciso instruo, desenvolvem o engenho para produzir obras que no se podem explicar segundo o mecanismo do ensino. Para essas intil qualquer mtodo de preparao; saem-se melhor ou pior com a sua afabilidade, que uma aceitao do mundo em contraste com o rigor do juzo. Por isso, um grande artista sempre insensvel ao justo e ao injusto e o que primeiro advertimos nele a faculdade de conhecer as regras, mas no aquelas pelas quais a natureza oferece ao homem ordem, segurana e prmio desta obedincia. Ficaramos surpreendidos ao saber quantos em Portugal no seguem as regras e se regulam por outras que limitam a dificuldade ao astuto. A astcia a soberana qualidade do portugus. "Quem brilha na segunda fila, eclipsa-se na primeira", disse Voltaire. uma espcie de provrbio, que no chega a todo o entendimento. Martinho era desses que brilham na segunda fila. Na primeira no era sequer convidado a brilhar e havia uma poro de indivduos menores que se destacavam em todas as reas. Isso dava-lhe a possibilidade de poupar-se mediocridade que precisa para vencer as filas dianteiras, duras de vencer, se no impossveis de pressionar. O motivo por que o portugus, quando tem talento, prefere a
segunda fila porque sabe que na ordem do colectivo tudo insolvel. Poupa-se tempo em segunda fila, mais do que imaginvel. Mas tambm se vive com atraso, com respeito civilizao; e a sensibilidade profunda que se exercita em segunda fila inimiga da rapidez para agir. Em certo sentido Martinho era um parasita, mas um parasita pensante. A nica coisa que no se atrevia a descobrir era o carcter da sua mulher. Partia do princpio de que, para o casamento ser bem sucedido, tinha que jogar com foras desiguais. Um tinha que estar submetido ao outro e haver sempre uma iminncia de guerra entre os dois. No era soluo, quando surgiam dificuldades, separarem-se; imediatamente iam buscar situaes contraditrias em que se pratica o sentimento mais soberano, que a compaixo. Esta era a nica variante das relaes do casal e a nica que mantinha em equilbrio as suas paixes prprias e singulares. Estrelinha Sopa-de-Massa, assassinada numa noite do fim do Vero, sabia quando o marido a enganava: deixava de lhe bater e tratava-a com respeito devido a uma desconhecida. Foi nesse estado que ia alm da suspeita que ela o seguiu, sendo vista pela filha que a acompanhou de longe e assistiu ao crime. Martinho tinha sempre alguma coisa a averiguar quanto quele caso e at se podia supor que casou com Judite como um inspector da judiciria se casa com um processo difcil. Seria ela completamente inocente? Ficava acordado de noite a rever a situao que as testemunhas tinham mostrado, mas era evidente que no dominavam a verdade e estavam excitadas pelo deleite pblico de se encontrarem na primeira linha. Com Judite no se passava nada; nem ele a interrogava, nem ela parecia ter na memria seno um vazio. S um dia, quando Martinho voltou muito tarde para jantar, ela disse sombriamente: - A minha me deitava no balde a comida e mandava-nos dormir. Maria Rosa no estava presente porque jantava no quarto s sete horas da tarde. Tinha dificuldade em descer escadas, e recebia os amigos no andar de cima, numa sala a que chamava o jardim de Inverno. Desde os doze anos que Judite no se referia me. Era como se tivesse nascido duma "pedra parideira", como as que h em lugares lendrios do pas. Mas dessa vez falou da me como se estivesse viva e ficou com os cotovelos fincados na mesa, muito absorta, parecendo interromper uma clera de cujo perigo se apercebeu de repente. - Ests bem? - disse Martinho. Esperava que ela chorasse ou fizesse alguma coisa para o punir; mas Judite serviu-o como de costume e levantou-se para ir buscar outro guardanapo, reparando que o dele tinha cado. Parecia assustada e comprometida. Ps diante dele a manteiga e os gressinos e tudo o que ele podia apetecer. Pepinos de conserva tambm. Estava arrependida ou, mais do que isso: estava verdadeiramente desorientada e corrigia, com actos judiciosos e simples, a sua confuso. Martinho sossegou-a com a sua fleuma, pediu-lhe desculpa por ter chegado tarde.
- No fiz nada de mais. O tempo passou. - No gostava de mentir, isso humilhava-o. Ela tinha os olhos febris, os lindos olhos que pareciam negros quando havia pouca luz. "A beleza tem qualquer coisa que nos tranquiliza. Como uma enfermidade que nos acompanha e da qual deixamos de ter medo." Ele serviu-se um pouco mais abundantemente do que o costume, querendo dar-lhe prazer com isso. H mulheres que se sentem retribudas, mais do que com o sexo, quando os maridos apreciam as suas ofertas de comida. E aqueles homens, efmeros como amantes, que nunca voltavam duma viagem sem um presente de bolinhos ou de pralins, como se viessem dum pas remoto! Eram inestimveis. No seu caso, nada tinha mudado. Era ainda o senhor da casa e a av a deusa Lar, ainda que quase invisvel nos seus aposentos do primeiro andar. Mas para Judite no havia um lugar certo; andava por toda a parte como num comboio demasiado ocupado e esperando que ficasse livre um assento para tomar posse dele e pendurar no cabide o seu impermevel e na bagageira os seus sacos de plstico. No se podia dizer o que tinham dentro porque no correspondia ao nome da loja. Judite aproveitava tudo at ltima e um saco de plstico era para ela precioso, tanto mais se sugeria qualquer coisa luxuosa. Gostava de saldos e de pedir descontos. Mesmo no estrangeiro pedia abatimentos; Martinho ia para a porta, a fingir que no a conhecia. - Que mania de falar ingls! No sabe ingls bastante e fica ridcula a abanar as mos e a repetir yes, yes. - Eles no se importam. Esto ali para vender e no para me fazerem exame. s vezes ela tinha resposta pronta, era mais inteligente do que parecia. Isto punha-o nervoso. Acreditava que um dia Judite havia de lhe dar uma surpresa, apaixonando-se por quem no devia ou coisa assim. Aconteceu tal como previa. Um homem, novo no crculo das suas relaes, apareceu em jantares de Maria Rosa. J no era ela quem convidava; e fazia uma curta apario com as suas prolas e dispensando um sorriso familiar, porque todos os convivas eram herdeiros doutros que tinham morrido ou mudado de rumo. Agora havia uma gente mais ambiciosa em que se cruzavam os afluentes da meritocracia. Todos tinham cursos superiores e at mais do que um. Preparavam-se para a competio, quando antes estavam seguros do terreno, pisado quase exclusivamente pelas elites, nem sempre ricas mas afianadas por uma vida sem escndalo, fosse de finanas, fosse de libido. Pessoas como Martinho j no havia mais nenhuma. Os seus companheiros de "aventuras de cordel", como dizia o doutor Assis, tinham casado e empobrecido com dignidade, retirando-se para as suas propriedades para "lamber as feridas" e fazer render, sem sucesso, o nome e as telhas dos seus velhos solares. J quase s havia rapazes bem colocados e que no sabiam nada de maneiras, nem de alfaiates. A uma sociedade que se reunia sucedia uma multido que se juntava. No havia cultura, havia opinies e a imitao delas.
Mas, de tempos a tempos, aparecia, como uma cabea duma r num lago, uma pessoa discreta, de olhos parados, e era apresentada com um excesso de adjectivos para esconder que no era ningum do grupo. Foi o caso dum rapaz novo ainda, mas amadurecido pelo trabalho, e um trabalho de cariz exclusivo, como era o foro empresarial. Ao que parecia, nada o dissuadira de ganhar dinheiro, mas isto fazia-o com uma competncia (dizia-se eficcia) to brilhante que no deixava rasto de ser algum destitudo de virtudes. A marca da sua convico em ser um ganhador estava em que ele gostava de ser elogiado pelos seus dons de pequeno burgus: o amor dos filhos e a fidelidade conjugal. Desprezava os polticos porque lhe pareciam ingratos, desonestos e sem palavra. Desconhecia que um poltico , por natureza, pouco ou nada agradecido aos seus apoiantes; que deixam sempre uma clusula nos seus acordos por onde possam escapar; e, sobretudo, um poltico estima, como se fosse ouro, um processo sobre costumes porque ele levanta o bastante alarido para criar um clima de indignao onde devia haver discrio. E a indignao um surto epidmico que o legislador no pode controlar. Nesse entretanto, elevam-se os polticos, criando factos que, na realidade, so sobretudo efeito dos seus jogos. Este homem de que estou a falar chamava-se Manuel Andrade. Era mais alto do que o normal e tinha uma cabea redonda, Pricles, que dizem ter tido uma cabea de cebola. No era bonito nem particularmente amvel. Os homens muito empenhados no seu trabalho no so amveis nem sabem mostrar simpatia. No se interessam por mulheres e para eles como se fossem todas iguais. Algum que goste do poder, no digo que detesta as mulheres, mas no lhes presta ateno. Napoleo dizia que amava o poder como artista, mas no verdade. O poder no se ama, pratica-se, assim como as mulheres no se amam, distribuem-se pela vida dum homem como se fossem uma pacincia com cartas. Manuel Andrade, antes dos quarenta anos estava to rico que, antes de abrir a boca, era j uma fora de persuaso. O dinheiro fazia-o poderoso, o desejo fazia-o desgostoso de si prprio, porque adquirir era muito menos do que desejar. Os homens ricos todos se parecem neste particular: o amor de acrescentar a fortuna trado pelo receio de a achar vulnervel s crises que a arruinam. Quando ele se apresentou pela primeira vez no Torreo Vermelho causou uma impresso desconfortvel em Martinho. "Aqui temos um homem disposto a mostrar o seu poder porque sabe que nada o pode parar", pensou. Judite estendeu-lhe a pequena mo de unhas cortadas rentes, o que era sinal de que no as queria ver quebradas nas suas simples tarefas de casa. Manuel Andrade sentiu uma espcie de culpa por no poder gozar da sua companhia falando-lhe como os homens fazem com as mulheres, como se quisessem ignorar o seu subdesenvolvimento. Tudo o que podiam conceder-lhes era uma salvao do que seria a sua vida na China ou na ndia h duzentos anos.
Mas tudo isto no ocorria a Manuel Andrade. Subitamente ficou feliz e bebeu com delcia o seu champanhe rosado. As pessoas pareciam-lhe sinceras e boas e sentiu um estranho bem-estar em no ver nenhum indcio de falsidade sua volta. No era daqueles de quem se dizia que "tinham subido a pulso" para esconderem que o invejavam. Na verdade, era filho dum lavrador remediado que o mandara estudar, a ele e aos irmos, sem esperar que fossem muito alm da mediocridade. Nunca se atrevera a pensar que eles ocupariam lugares de responsabilidade. Mas Manuel Andrade surpreendeu toda a gente. Fez exames brilhantes e perseguia conhecimentos cada vez mais ambiciosos. No namorava, no ia ao cinema, lia apenas livros de gesto financeira e esperava a sua ocasio. Um rico reconhece outro rico com s apertar-lhe a mo e a v-lo atravessar uma sala. - Tenho boa impresso deste rapaz - disse um rico. - No pisa os tapetes, anda s em volta deles. Convidou-o para jantar s quartas-feiras, depois trocou os dias e ficou bem disposto porque ele no protestou. Manuel Andrade no tinha uma tctica, tinha uma ideia, estar acima das suas ambies. Sentado ao lado de Judite, sua esquerda, quase no falaram; mas no se sentiam como estranhos, o que os fazia rir com tal satisfao que todos comearam a reparar neles. O doutor Assis foi dizer a Maria Rosa. - Passa-se qualquer coisa, l em baixo. No sei o que , mas as pessoas falam todas ao mesmo tempo e no se ouvem umas s outras. Maria Rosa estava na cama e mudava os canais da televiso com um vigor irritado. - No h nada que preste. - Ouviu o que eu disse? - No. - Acredita no diabo? - Quem no acredita? Os ateus no acreditam em Deus mas no Diabo acreditam. - Ela estendeu as pernas na cama, e aquilo devia faz-la sofrer porque se queixou. - No me serve de nada, no me tira as dores. Vem aqui perguntar-me coisas que no me servem de nada. Era melhor calar-se. - Era um quarto largo, com cortinas que davam para fazer velas para uma nau; mas leves, como se a espuma do mar as tecesse. Ela parecia no ter tomado ateno seno aos estalidos dos seus joelhos, mas disse apressadamente: - Julgo ter percebido. - Percebido, o qu? J disse que alguma coisa se passa. Tive uma ideia terrvel. - O dinheiro e o amor uma ideia terrvel. - Como adivinhou?
- No adivinhei. J sabia. Quando se encontram como o canto dum pescador num barco que se perde no nevoeiro. No se pode voltar dum amor assim. Ele esperou que Maria Rosa dissesse mais alguma coisa, mas ela no disse mais nada. No estava perdida em pensamentos, tudo nela era concreto e sem sombra de pena. O doutor Assis desceu para o andar de baixo e foi tomar o seu caf que, entretanto, tinha esfriado. Quase toda a gente tinha ido embora, restavam dois homens que discutiam assuntos conflituosos em que se percebiam coisas sobre vidas privadas. O vinho fazia-os destemidos e sinceros. Judite no estava presente. Ainda se praticava o velho costume ingls de deixar os homens ss para beber e falar mais livremente. No era o salo principal, com o piano aberto e uma srie de frescos que representavam as nove musas um pouco parecidas com o modelo favorito de Boticelli. Era a pequena biblioteca com mezanino e retratos de escritores do sculo dezanove. Vitor Hugo e Lamartine, em pose para a posteridade. Martinho, parte num sof de molas gastas, estava a admirar um cocker dourado que tinha entrado em busca de guloseimas. - Que bonitas orelhas tem este co - disse, quando viu o doutor Assis. "Com que se droga ele?" pensou o doutor enquanto sorria, com doura. Estaria na fase da metadona ou alguma coisa mais estimulante? Verificava os dentes escurecidos de Martinho e aquilo entristecia-o. Ao menos os desgostos no o atingiam quando viessem; a morte da av, a queda da casa, o despedimento dos criados que se tinham feito arrogantes. O chuffeur, a exigir os subsdios atrasados, uma pequena fortuna. E Judite? No se sabia no que ia dar, o doutor nem sequer lhe concedia o benefcio da dvida. Gostava dela, os homens gostam de todas as mulheres em que captam alguma coisa de disponvel. Sentou-se ao lado de Martinho e o sof rangeu com o seu peso. - Estes dois no se vo embora - disse. Mas viu que Martinho no estava em estado de manter uma conversa. No era desagradvel a companhia dum drogado; indefeso e pacifista, leve como uma pluma. Talvez a dose certa desse a receita do cidado comum e as guerras acabassem. Mas o mundo caa numa fico monstruosa que nem o filsofo Kant teria imaginado. Ele disse que um artista da poltica podia dirigir o mundo por meio duma fico capaz de suplantar a realidade. A fico da liberdade j fora experimentada no Parlamento ingls; a da igualdade tambm, na Conveno francesa. A do sexo fora iniciada para desacreditar a revoluo bolchevista. A fico da droga estava em pleno concerto com o poder; e o terrorismo de espectculo estava a ser aplicado como o meio de criar o cidado ideal, o incapaz de si mesmo. O doutor seguia com o olhar o co que atravessava a sala desiludido. "Coitado! Era to fcil dar-lhe uma bolacha..." Martinho parecia ter-lhe captado o pensamento e chamou o co repetidas vezes. Mas ele no veio; j tinha sido enganado e fizera disso um reflexo condicionado. A partir da as coisas
tomaram um cariz funesto. Judite tornou-se o centro dum motim familiar que ensombrou uma dcada inteira; tudo o que podia ter registo na histria poltica ou social deixou de ser sequer notado. Tanto as paixes esvaziam a mente de qualquer factor exterior a elas. A nica pessoa que parecia indiferente era Martinho. Nada o afectava e aos poucos deixava de sair de casa. Mostrava ter por Judite um sentimento arrepiante, como se esperasse v-la morta a qualquer momento. No entrava mais no quarto da av para lhe dar o primeiro beijo do dia; e no respondia s queixas dela seno com um sorriso falso. - Abandonas-me, j no vejo ningum dos meus conhecidos. A porta bate com o vento e vou adoecer com as correntes de ar. - No h vento. Estamos no Vero e com um sol muito bonito. - Elisa prendeu no colcho os lenis; habituara-se a ver Maria Rosa meio demente e que, aos poucos, no sabia onde estava nem quem lhe falava. Tinha momentos lcidos e irritava-se porque no a serviam rapidamente e davam preferncia a outros, pessoas estranhas que ela nunca tinha visto. Paula veio visit-la mas no trouxe os cadetes, os dois filhos. - Para qu? Iam encher-se de medo, alm disso no foram criados aqui. Esta casa est horrvel. Todas as torneiras pingam e a escada principal parece que se mexe quando olho para ela de cima. - So tonturas, deve consultar sobre isso - disse Elisa. Enfurecia-se sempre que Paula vinha com o seu enorme casaco de vison diamante preto. Mas, como era no pino do Vero, no conseguia identificla vestida de rosa e com sapatos como bichos de focinho aguado. - Onde est Judite? - Vamos l saber! Se est em casa esconde-se por a. - bem uma casa para a gente se esconder. E a mam? Pensas que vai morrer? - Mais depressa morro eu. Est com um corao de ferro. - Sempre teve um corao de ferro. Percebes o que eu digo... Que ch to bom tu sabes preparar! Pouca gente tem mo para o ch. Diz-me, Elisa - ficou calada, como a inventar o tom com que devia prosseguir. - O colar est em lugar seguro? Sabes onde est o colar? - O senhor Nabasco sabe dessas coisas, eu no. - Vejo que faltam coisas... Aquela figura duma dama a ler. Um ovo de Faberg... Desapareceram, foram roubados? - Aqui no entra ningum sem que se saiba. H alarmes na casa toda. - Isso no vale de nada. Os ladres de casa so os mais difceis de evitar. Elisa levantou o tabuleiro do ch; tinha cortado o cabelo muito curto e estava ridcula. "As mulheres querem enganar at ao fim", pensava o doutor Assis. "Que espera esta carcaa?"
Elisa no s cortara o cabelo como o pintara de vermelho que pretendia ser veneziano. "O mundo sempre foi uma pardia pegada." Mas com Elisa que acabo este captulo: ela viu que Paula no subia para se despedir da me. "Depois de velhos no temos filhos, temos herdeiros", pensou Elisa. Parodiava Maria Rosa, mas no dava conta.
CAPTULO V O ESPRITO DO DRAGO No h poetas como os chineses. No sei como tive esta ideia, mas foi com certeza por causa do que um poeta do sculo V chamou "a sabedoria do desprendimento". Para o esprito desprendido, todos os lugares so distantes, diz o poeta, cujo nome no me atrevo a escrever por receio de consumir letras sem escola. No se sabe se por efeito dalguma droga leve (como o doutor Assis tinha por certo), se pela natureza de mutante, Martinho tinha um esprito desprendido. Fazia parte da sua condio de portugus essa falsa indolncia que era uma senilidade sem molstias. Nunca amara de verdade Judite e foi com surpresa que se apercebeu que ela era amada com paixo. Para ele, Judite tinha sido resgatada a um destino triste, passando da orfandade para o servio de burgueses sem fortuna e acabando por casar com um reformado que desse desconto ao sangue que ela tinha nas veias. - Maria Rosa ocupou-se de Judite como dum objecto sem prstimo achado no fundo dum ba e fez dela uma camareira. No | uma criada, e com isso Elisa debatia-se com todas as foras, mas como agente duma vingana. Contra Paula, evidentemente. Se a prejudicasse o bastante para ser lembrada por [ela, atingia o seu objectivo. Os grandes dios entre pais e filhos, que dormitam atravs de muitos anos de ressentimento (porque h sempre uma dvida a saldar de liberdades furtivas), raramente se resolvem no arrependimento. Tudo matria de acusao e canseira de argumentos para o alimentar. Esse estado de furor mais ou menos latente, e muitas vezes engrandecido at ao drama partilhado por toda a comunidade, o que se chama o esprito do drago. Vive numa cova profunda esperando a ocasio de se manifestar com rugidos e labaredas. Esse o contributo das relaes humanas para que a sociedade mantenha a pulsao criadora. Na continuidade da revoluo, passados os tempos de retaliao ou de aproveitamento pelos mais aptos para resistir e vencer, estabeleceu-se aquilo que precede a runa e que uma ordem fingida, tanto econmica como social. No eram tomadas grandes medidas porque elas difamam sempre o legislador. Quem tinha ocasio de servir-se dos apoios comunitrios deixou-se envolver na corrupo e acabou mais pobre, s que com mais gozo de gastos. Martinho citava Danton dizendo que os meios revolucionrios tinham sido funestos a muita boa gente, pois a revoluo no se opera geometricamente; como uma enxurrada que desmorona muita coisa til e arranca muitas razes de bons pomares de fruta s. O que se passou com Martinho era difcil de adaptar s circunstncias. Teve dinheiro suficiente para aplicar nas terras que, na realidade e na sua maioria, eram improdutivas. Gastou a maior parte em melhoramentos suprfluos, dando ordens pelo telefone e indo instalar-se nos seus solares como se fosse um senhor feudal. Como a maioria dos portugueses, tinha a noo de que, de qualquer modo, seria
enganado. Ningum conhecia os verdadeiros princpios da governao, e os melhores cidados eram frequentemente apontados como facciosos desde que reagissem contra a desconsiderao do bem pblico, incutindo a ideia de que o grande inimigo do povo era o seu governo. Partindo da ideia de que o silncio deve reinar volta do poder, fundou-se a instituio inatacvel dos media destinada a fabricar as opinies. A maior parte das pessoas novas aprenderam a ser tmidas para estarem de acordo com o moralista poltico. Os velhos falavam de doenas como de viagens volta do mundo. A palavra de ordem era preparao para qualquer tipo de funcionrio a ser escolhido e empregado. Martinho atingiu o ideal do portugus maduro: ver o mundo atravs da sua luneta assestada no passado, sem mexer um dedo a no ser para deitar acar suficiente no seu caf. De repente, porm, quando havia j um cheiro de bolor nos armrios e pouco que comer, a no ser farinha para bolos, a casa dos Nabasco prosperou estranhamente. Houve maneira de se fazer canis de rede de ao para os ces de guarda; e instalaram-se alarmes por toda a parte. Podia-se ser fotografado desde todos os cantos das salas, o que contribuiu para que Elisa cuidasse melhor a sua aparncia e mudasse mais vezes de avental. No faltou a piscina e uma coleco de carpas gigantes no lago h muito desactivado. Deixou at de ser um lago para ser um ribeiro em volta do jardim. Carpas como aquelas, Martinho tinha-as visto no castelo de Elsinor, e ficou muito impressionado. Seriam de facto centenrias ou era uma lenda originada pela sua corpulncia e vigor? A casa readquiriu a sua opulncia. S que no havia seno carros utilitrios na garagem, embora se voltassem a ver as grandes marcas com os motoristas, ainda que sem farda e polainas. Recebia-se pouco, o tipo de convivas tinha mudado. Eram economistas, alguns industriais ricos que tinham desprezo pelo poder. Tinha-se passado da Repblica a novos imprios: o do petrleo, o das armas nucleares, e o dinheiro no produzia ideias seno de mais dinheiro. O rico abandonou a sua hipocrisia, e os bancos que arruinavam os governos e as pessoas tiveram a sua vindima e passaram a registar os seus lucros publicamente como se estivessem mesa de jogo. No se sabia donde vinha o dinheiro nem para onde ia, e Martinho estava nalguma encruzilhada por onde ele passava. Havia quem dissesse que a casa da Ronda servia para o trfico de droga e que, de mistura com o fornecimento de lenha para as lareiras, que eram sete, entravam os pacotes de cocana. Eram fantasias de merceeiros, que acreditavam que os contentores do lixo eram valas comuns de gente assassinada. Mas que era um facto haver muitos crimes, domsticos e outros, saltava aos olhos. Dava-se talvez demasiada popularidade ao que no passava do caso do dia mais trivial. E que, outras vezes, se dava publicidade a transgresses fictcias s para manter viva a curiosidade dum pblico ignorante e sem projectos de aco. Bastava-lhes a reforma e uma viagem a uma praia de palmeiras e de sexo diurno.
At Elisa se tirou de cuidados e comprou umas frias donde veio picada dos mosquitos e com ideias feitas sobre massagens tailandesas. - uma indecncia, so como os macacos do Palcio de Cristal. Ela ainda conhecera os macacos na antiga verso do Palcio, sempre a copularem e as fmeas com as mos metidas na vagina, enfim um espectculo que fazia rir os rapazes e corar as meninas. Elisa passou a achar o mundo uma reserva sem seleco nenhuma ou ento que o esprito de seleco tinha mudado muito. Agora era o dinheiro e a cultura como poder financeiro, mal sucedido, verdade. E o que mal sucedido comporta uma lio moral. Judite estava apaixonada. Toda a gente sabia, menos ela. Tudo o que afecta o sistema extraordinariamente severo, perscrutador e bem afinado. Uma paixo violenta mais depressa notada do que um tremor de terra num sismgrafo. Judite raramente via Manuel Andrade e estava sempre acompanhada quando o via. Mas todas as suas emoes eram observadas, e a probidade do sistema (que fazia com que as velhas notas de vinte escudos fossem realmente queimadas em vez de serem usadas antes de sarem da circulao) funcionava. Alguma coisa incorruptvel no reino da Dinamarca. Ao lado da cidade que parecia abandonada, s com fachadas mortas e janelas barradas com tijolos, havia a cidade de feira, com vivendas, como carroceis, telhados sobrepostos a que faltava a neve oblqua do Japo antigo. Faltavam-lhe as lanternas vermelhas de Quioto e, s portas, gueixas pintadas de alvaiade. Os jardins desapareciam e, em vez deles, cresciam as estufas dos supermercados, verdadeiros palcios de pobres, iluminados e quentes, tpicos da imaginao consoladora. Tudo era imitao: o algodo e a seda eram fibras; a carne era fibra tambm; fibras os sapatos que fingiam peles variadas, com fivelas, laos, flores. As bijuterias pingavam das prateleiras, os pastis eram grandes, para bocas devoradoras. A multido engordava e crescia, apaixonadamente. - No sei porque te pes assim - disse a av. Ests a escrever um livro? - o que faltava. Os livros no so escritos por escritores, verdade, mas por pesquisadores de ouro. Pretende-se descobrir uma mina e no os grandes objectivos da humanidade. Que eu prefiro os artistas pouco informados e que no saibam nada fora do seu bairro. Que coisas fantsticas se podem escrever sem sair da nossa rua! - Ou do teu quarto. - Ou do meu quarto - repetiu ele. Estava intrigado com tudo o que se passava com Judite, na verdade pouca coisa no seu dia-a-dia. Mas a atitude suspensa que ela tinha, pressagiava um acontecimento que no era bom. Parecia estar muito calada beira dum precipcio, ou duma linha frrea onde passassem comboios de alta velocidade. Ningum podia deitar-lhe a mo e segur-la e, at, nesse sentimento de iminente fatalidade havia o desejo insidioso de ver a sua queda. "No fim de contas, com ela." Era um
pensamento to rpido que quase no se articulava na sua cabea. Uma vingana que era o pormenor duma vida mal partilhada. E se a av lhe fazia alguma pergunta sobre Judite e o acordo que havia entre os dois, no a levava a srio e dizia que tudo era normal. - Ento esto em risco de no se entenderem, menino. No h nada de normal na normalidade. Preocupava-se, deu-lhe para esconder as pratas e os quadrinhos que tinha de impressionistas, como Boudin. Quando a revoluo estalara, vendeu precipitadamente a coleco de pintura que tinha em casa. Algumas telas foram enroladas para fora do pas; outras no forro das malas onde ningum as procurava porque a guarda aos tesouros nas fronteiras era feita por gente acanhada e pouco vontade nesse ofcio. Viviam ainda na Casa do Co, onde no havia lugar para nada. A maior parte dos valores vinham dos solares desabitados do Nordeste onde a populao era fiel aos antigos princpios e no aderira mudana. A Ronda da Noite veio dum desses solares ventosos e onde chovia como na rua. Houve problemas com a Ronda, quiseram arrol-la como um original, e os peritos, receosos de serem apontados como cmplices, no se atreviam a fazer uma avaliao rigorosa. Ficavam-se por ambiguidades, em risco de parecer mal intencionados espera dum lucro qualquer de toda aquela farsa. Porque era uma farsa deixar correr a ideia de que a Ronda era autntica e de que valia milhes. Como era possvel tudo ter passado como uma pedrada na gua? Ou como a queda duma castanha da ndia. - Notou alguma coisa na Judite? Falou com precipitao, como se pudesse retirar o que tinha dito. Maria Rosa olhou para outro lado, disse que lhe corresse as cortinas, bonitas cortinas de chintz, o mais ingls que era possvel. Assim como o canap aos ps da cama e o cesto para o co, que j tinha morrido. Talvez houvesse larvas brancas a roer o seu tapete vermelho. Bem que o merecia, o tapete vermelho! As orelhas do co caamlhe fora do cesto como roupa a secar numa varanda. - Alguma coisa? Desde os doze anos que noto coisas na Judite. A mudana para mulher e aquela mania que ela tinha de beber gua pelo fundo dos copos, quando os copos tinham em baixo uma taa cavada. Acho que j no se fazem copos desses. Judite era uma aberrao; todas as raparigas passam por isso, a aberrao. Comia pssegos com leite, estava sempre a misturar coisas que no se misturam. - Algumas misturam-se, no quer dizer nada. - Sim, algumas. Caf com leite. Mas chocolate com caf no se misturam. como as palavras: algumas juntam-se, correm umas para as outras para se abraarem. - No presto muita ateno a isso. - Deves prestar, seno s manhoso. Sabes o que ser manhoso? o que tu s. - Que foi que eu fiz?
- Nada... nada... Judite, aos quinze anos, ficou de rastos. Queria ser amada e at o teu av lhe servia. Ela cantava, ouvia-se cantar com uns trinados como uma sereia. Queria enfeiti-lo, deitar-se com ele, dar-lhe um filho. As meninas de quinze anos so um forno aquecido; s querem cozer o po. - Est a exagerar, av. No gosta das mulheres, e acabou-se. - No gosto das mulheres, no. Pode-se fazer com elas o que se quiser. Um barrete de papel, at. Podem ter prazer umas com as outras e depois vo ao cinema e choram com uma fita estpida. No tm remorsos de nada. - Se me lembro, casou-me com Judite. - uma poldra amansada. Amansei-a para ti. Eduquei-a para ti. Levanta o cotovelo quando bebe pelo copo; no muito, s um bocadinho. Ele sorriu, tristemente talvez. Quando um homem fica triste desesperante, no h nada que o console. Maria Rosa virou a cara para no ter que lhe perguntar nada a que ele ia responder com evasivas, se no com mentiras banais. Quando o Nabasco vinha de fora, com o seu colete de caador, ela sabia que tinha mudado de roupa em casa da amante. Cabelos nunca os via no ombro dele. Nem os procurava, tinha vergonha dos cimes que sentia. Pensava que a outra estava em "piores lenis", como dizia para ela prpria. "Se consigo rir, consigo perdoar..." - Judite est a est-se a apaixonar. Isso acontece duas ou trs vezes numa vida. Tens muita sorte, ela ganha com isso e tu tambm. Entrou Elisa com o tabuleiro do ch e ps-se a virar as xcaras e a destapar o bule, com olhos de mordoma, enquanto se esforava para ouvir. Como no percebeu nada do que se passava, bateu com a porta quando saiu. Andava continuamente de roda das pessoas para atar os ns das suas intrigas. Das coisas mais surpreendentes que Martinho ouviu a Maria Rosa foi o seguinte: "Para duas pessoas se amarem so precisas trs". Isto constava duma educao que ultrapassava em muito o nvel da primria. No evitava que Martinho conhecesse o bafo do drago que era a pegada no corao das trevas. Quando Conrad escreveu O corao das trevas estava muito longe de produzir um livro de aventuras e muito mais longe de registar uma lio sobre o poder. Fez muito mais do que isso, em parte com a intuio que faz o grande escritor. Que ele foi um grande escritor, no h dvida nenhuma; mas o que no foi abordado foi a sua passagem pelo corao das trevas, que de ndole sexual e no podia ser outra coisa: um bocejo do grande surio, imvel na lama do rio cuja nascente se desconhece. O sexo tem um percurso cujo mapa ainda no foi desenhado. Isto porque se ignoram as suas linhas mestras. S se sabem os seus sinais, to abundantes como as religies na terra e como as areias no mar. Primeiro h uma identificao sexual em tudo o que vive e morre; na natureza das coisas, mesmo que
paream inanimadas. Uma pedra dotada de carcter sexual, reage e move-se, influi no ciclo dos climas na terra. muito raro que o corao das trevas seja descoberto na sua caverna. Quando isso acontece produz uma alterao na natureza que, como sabem, no depende do conceito de Deus. Judite estava na linha da verdade que tudo, menos demonstrvel. O desejo era nela uma ordem to exclusiva que se tornava paralelo sabedoria. "A sabedoria pressupe uma faculdade de desejo". Martinho ficou interessado no processo de Judite que, no seu entender, estava no limiar do corao das trevas com o nico amuleto que a podia salvar - a sabedoria. Como era que uma mulher sem grande cultura e para quem o prazer de viver estava em cumprir com os trabalhos domsticos, como por efeito duma teologia moral, chegava ao limite daquele mistrio? Estava visto que ela se debatia terrivelmente. Primeiro foram as erupes da pele que se destinavam a tornar o sexo impossvel pela repugnncia ao cheiro e ao tacto. Isto durou alguns meses e os mdicos no a curaram. Depois vieram os sentimentos exasperados, o amor pelo marido em quem acumulou perfeies nunca imaginadas. Ele recusava-se, sabendo que no era a pessoa que o desejo chamava. Chegou a bater-lhe cruelmente, a ponto de Maria Rosa intervir e proibir-lhe que tratasse Judite como uma escrava. Ser uma escrava era a melhor maneira de a defender do desejo e continha uma forma de sabedoria. Maria Rosa no usava de grande empenho em defender Judite. A violncia agradava-lhe, comunicava-lhe uma fora que tinha qualquer coisa de corrupto e puro ao mesmo tempo. Judite debatia-se no meio de grande sofrimento; pensava em Manuel Andrade com uma espcie de demncia e imaginava ter com ele relaes felizes e fora de qualquer oposio. Tendo conhecimento de que ele mudara de casa com a famlia, que era numerosa, descreveu para si todo um quadro de encontros nas salas abandonadas e onde s ficara a alcatifa com ndoas de caf ou da baba do co. Deitava-se com ele no cho e o prazer arrastava-os para alm da realidade e como se todas as perfeies se consumassem neles. Mas, a par desses sonhos, de que acordava desfeita de tristeza, porque os sabia breves imitaes de felicidade, ela descobria um caminho novo, o da fatalidade da sua prpria perfeio. Vestia-se pobremente e Elisa chegava a emprestar-lhe roupas que agradavam a Judite, ela no dizia ou no sabia porqu. Dava-lhe segurana andar na rua misturada na multido, sem nada que a distinguisse, sem poder ser notada pelo nome nem pela indumentria. Tudo isto, com a agravante de que tinha demoras fora de casa, como se fossem fugas cada vez mais conseguidas, criava um ambiente de dissoluo que nada ia poder salvar. Era muito raro, Manuel Andrade e ela no se encontravam, ou no sentiam qualquer desejo em encontrar-se. De tal modo a vontade criava neles o desconforto do amor. E chegavam a ser felizes quanto mais a frustrao dos seus amores funcionava como um prazer.
Tudo se passava s claras e toda a gente afecta casa podia conhecer a descontrolada situao, tanto fsica como moral, da famlia e dos prximos. Paula esteve duas vezes no Torreo Vermelho a fim de marcar as peas mais valiosas com um selo que parecia de leilo. Disse a Martinho: - Desconfia de toda a gente. Os tempos no esto para amar. As coisas que desaparecem nesta casa! Os ladres de dentro so os piores. - No diga isso. Elisa como um co de guarda e no deixa que se perca nem um alfinete. - Um alfinete, acredito. Mas ouro e prata, no sei. E roupa de cama. Se desaparece, nem em dez anos se pode dar conta. A insidiosa pesquisa da me aborrecia-o. No lhe bastava Judite transtornada e em risco de ser internada numa clnica, ainda para mais a querer entrar naquele teatro de sombras. - No volte c, seno eu vou-me embora. - Sou a tua me - disse Paula; mas tinha o cuidado de no se mostrar ofendida, para no provocar um corte de relaes. Desesperava-a no representar ali nenhum papel. Mesmo se morresse ningum dava conta. Tinha a impresso que o passado deixara de ter valor, que interpretar o presente era completamente intil. Era ainda uma bela mulher, alta e com olhos muito separados. Mas os olhos tinham diminudo com a idade e as pestanas tinham cado e foram substitudas por plos quase invisveis. Martinho pensou se o amor dele no se referia pessoa que ela tinha sido e no quela senhora desbotada e empenhada em criar problemas de tudo; at da poltica internacional e do terrorismo urbano. Ningum ia fazer dela refm, mas agia como se isso fosse possvel. A primeira fuga de Judite deu-se em Dezembro e passou-se o Natal sem ela. Telefonou a dizer que estava bem. Martinho no tinha dvida de que ela estava bem. Sabia, sem detalhar as razes, que no era um marido enganado. A vida, a partir dela prpria, tinha um sentido que no podia partilhar com ningum. Judite voltou, e, primeira vista, parecia animada e cheia de vontade de retomar os seus hbitos no Torreo Vermelho. Mudou as flores na casa toda, trocou de carro porque o dela lhe pareceu inferior sua posio e fortuna. - No fim de contas sou rica. No h nenhum mal em parecer o que sou - disse. - um risco que ter que correr. Os impostos vo cair-lhe em cima e no diga que no a preveni. Martinho voltava a trat-la por voc, o que era sinal de reconciliao e de que tudo voltava ao normal. Mas o drago estava apenas adormecido. "O mais terrvel num estado de desejo puro que se tem a noo de que tudo est resolvido e que o mundo est nossa espera de braos abertos para nos receber de volta. Mas nada disso acontece. De repente voltamos ao mesmo e ainda com maior violncia. No sabemos do que seremos capazes, temos que tomar cuidado a todo o momento" -
pensava Martinho. Mas o certo era que isso no passava de especulaes sobre o caso de Judite, de quem no sabia nada nem nunca saberia. O que ficara depois daquela noite em que seguiu a me at ao lugar do crime? Martinho tinha a certeza de que ela no tinha sido mera espectadora; que tinha agido de qualquer maneira. Como? Correu para defender Estrelinha Sopa-de-Massa ou, do lugar em que estava, assistiu a tudo, paralisada de medo ou talvez embriagada pela cena do crime? Ela esteve dois dias sem falar, ningum suspeitou da sua presena na noite, que era clara, os dias mal tinham comeado a diminuir. O brinco de ouro que se achou no era da morta, mas de Judite. Escondeu o outro para que no se soubesse. Ouvia os gritos do pai quando o torturavam no armazm que dava para a estrada. Confessou, mas nada disse da amante, nem se ela estava na sua companhia. O desejo vivia nas suas veias. Despediu-se das filhas quando ia para a priso e escrevia-lhes. Mas quando Judite foi recebida em casa pela Maria Rosa e o Nabasco a olhou da cabea aos ps e disse que parecia boa rapariga, nunca mais recebeu cartas da penitenciria. Houve ordens expressas para que a correspondncia fosse interrompida e, aos poucos, Judite esqueceu-se de tudo o que a ligava ao passado. O conforto e a promessa de fortuna maior contriburam para o vazio nas suas recordaes. Todavia, ela significava um factor de risco. - S pessoas doidas como ns que adoptavam essa rapariga. O melhor da vida est em provocar um facto, tirando a Deus a prioridade. Ele no pde deixar de admirar Maria Rosa, to fina de ancas que at podia usar jeans elsticos como qualquer rapariga de quinze anos. Ficava muita coisa por esclarecer e que Maria Rosa sabia. Por exemplo, o que se passava na cama das duas irms durante a noite, uma iniciao que nunca mais haviam de esquecer mas que no processo de a ignorar estava a sntese da vida inteira. J no passava pela Ronda da Noite sem parar, como se algum lhe travasse o passo. Aquele tumulto em que cada um preparava a sua situao, fascinava-o. O homem que dispara o seu fusil, o co que comea a correr, ganindo de medo, a criana resplandecente no meio da companhia do capito Cocq, a ufana atitude do seu tenente das galochas bordadas! Ningum sabe o seu lugar, o momento de pardia, pertence a cada um. "Se houvesse um lugar para mim, eu deixava tudo e ia ocup-lo", pensou Martinho. Mas era uma das suas muitas fantasias que lhe ocorriam quando percebia que a sua razo estava abaixo da vontade sem desejo algum, que era o que fazia dele o mutante. Pode-se ser feliz sem ter quaisquer sentimentos? A av ia ver uma ou outra freira do colgio onde fora educada. As antigas mestras tinham morrido e recebiam-na no refeitrio dizendo "uma das nossas meninas", o que lhe dava
prazer. Mas agora havia outras religiosas que condescendiam com o que eram pecados noutros tempos. E se diziam enamoradas de Jesus com um despudor vulgar. - Imagina que ns suvamos de medo de irmos para o inferno ao reparar que tnhamos pernas bonitas. E agora incutem nas raparigas o gosto de se acharem bonitas, pernas, cabelos, orelhas, tudo. - Esto mais filsofas - disse Martinho; e riu-se sem ironia. Quando dizia alguma coisa difcil de interpretar atribuam-lhe qualquer malcia. - A perfeio fsica do mundo to importante como o direito da criatura felicidade. Pensou que a av no perdera nada com as ms lies recebidas; ela soubera participar na perfeio fsica do mundo com os seus penteados " pajem" e os sapatos vermelhos, sandlias, a bem dizer. O estado de Judite agravou-se e de dia para dia ela estava mais intratvel. Tinha todos os sintomas da gravidez: a falta de menstruao, os vmitos matinais, os "desejos", um pasmo dos sentidos que s vezes precedia um desmaio. Elisa aplicava-lhe nas fontes compressas de vinagre e abanava a cabea com ares doutorais. No entender dela, tudo o que acontecia com as mulheres era relacionado com a gravidez. Mas Judite no estava "prenhe", como ela dizia. No alcanava; e o que para muitos era talvez uma bno, para ela parecia ser qualquer coisa de errado, como a criao duma nova substncia. Ora se mostrava apaixonada por Martinho, ora lhe fechava a porta do quarto, no respondia quando ele lhe falava. Tinha prazer em contrari-lo nas mnimas coisas, no lhe poupava os pequenos ridculos: os primeiros indcios de calvcie, a preguia, a maneira de mexer o caf para a esquerda e que era sinal de avareza. Perseguia-o com motejos, achava-o cmico no vestir, na maneira de comer a sopa, soprando-a um pouco na colher. No havia gesto que ela no perscrutasse, falta que no denunciasse. Tinha aluses torpes como certas inclinaes que eram herdadas duma gente sem mrito, s presunosa, violadora de criadas, surdas piedade, falsos beatos, incapazes de perdo sob um preconceito de justia. Os Nabasco eram denunciantes, polticos de tertlia, homens sem ofcio, caadores de mritos. Ela mordia o beio para no falar, e se Martinho insistia ela achava-o entorpecido pela droga e que no valia a pena falar mais. Mas nunca dizia palavres, continha-se, tomava ares de senhora, ela que nascera entre injrias e loua partida. O cime da me que parecia doida, infectada de pensamentos que uma m mulher no teria, aparecia no seu olhar esgaseado, nas mos que destruam e agarravam, e se transformavam em presas. Porque levava a menina da Ronda uma franga morta cinta? Martinho disse que era uma forma de confessar um crime. Judite calou-se; subitamente calou-se. Ele fechava a porta, escapulia-se como um ladro, vermelho de vergonha. Estava muito lcido, muito prudente; achava que Judite amava outro homem. - Gosta de outro homem. Se pudesse, matava-me.
- Se pudssemos, todos nos matvamos uns aos outros - disse Maria Rosa. Contou as suas gotas, uma a uma, com recolhimento, como se rezasse. Disse que era tempo de ter outro co. - Um co pequeno, que goste de dormir. Mas no, no uma boa ideia. - Porque no uma boa ideia? - disse Martinho. A av divertia-o e amava-a por isso. Tambm no h outra maneira de amar os outros. "E os Macabeus, gente trgica e voluntariosa?" - Ele sorriu. "Tambm... tambm..." - Nada mais triste do que morrer e deixar um animal rfo dos hbitos que ns criamos para eles. Nem quero pensar nisso. - Nem eu quero pensar nisso. - Ele encostou a cabea no colcho da cama e ela riu-se muito. Porque se ri? - Pareces o co do Goya. - Agora pareo o co do Goya. Est bem. - Nos ltimos tempos, quando Goya estava j acamado, o co vinha para o p dele e pousava a cabea no colcho em sinal de venerao. E ele pintava-o como podia, no muito bem. Comearam a dizer que era a fase mais genial do Goya, coitado. Porque se via s aquela cabea que parecia dum fantasma? Porque a cama era alta, espanhola. "Que mulher to esperta, como uma doninha!" - pensou Martinho. Uma fazia-o sofrer, castigava-o, quebrava-lhe as pernas cem vezes por dia; dava-lhe po duro e carne de cabra. Outra alegrava-lhe a alma, escolhendo-o para partilhar o reino dos cus. Uma e outra eram preciosas, justas e condimentadas com pimenta e girofl. Sem elas s havia cavalarias no mundo. Maria Rosa tinha uma pequena lcera secreta. Gostaria que Martinho enveredasse pela poltica, j que na famlia no havia politocratas, nem mdicos, nem padres, tudo considerado carreira de pobres. Mas o poder, com os seus tiques, a sua elite de fraternidades paradoxais, de alternativas parlamentares e de frias em camaradagem, parecia-lhe bastante aceitvel. Dava benefcios que dantes se chamariam boas gorgetas. J no havia o poltico vontade na sua soberania, que se veste de cala s riscas e que no tem automvel particular, nem sobretudo de Inverno, nem admirao por livros. Mas diz a palavra certa no tempo certo e que no fala de assuntos escabrosos, de filhos ilegtimos e esposas dos outros. Esse pertencia ao cl dos fiis, comia no Crculo uma sopinha caseira e no se dava seno com acadmicos, no que se refere a intelectuais. Era austero em pblico, tinha humor em privado, dizia "o senhor ministro" falando de Salazar e achava-o um provinciano ressentido e um patro com caprichos que se parecem com medidas teis. Em Portugal confundem-se os novos feudais com os fascistas. No se pode dizer que Maria Rosa pertencesse linha dos novos feudais, ainda que o defunto marido fosse classificado como tal. Os seis
solares brasonados que estavam no nordeste transmontano pertenciam monarquia de provncia que julga ter uma hora precisa para levantar a sua bandeira, mas que no passa de escorregar nas suas runas. Sem ideias pr-concebidas Martinho ia compondo os telhados e substituindo as canalizaes. Seria preciso o dom dum Midas e transformar em oiro tudo em que tocasse para dar aos solares um mnimo de aparncia. Martinho tomou aquilo como uma obrigao, sedutora at ao ponto em que julgou pertencer a uma dinastia em que a grande fortuna parecia ser mais imortal do que os seus gestores. Enquanto o patrimnio se bastava a si prprio e as tribos de dez filhos convergiam para o capital comum, e alguns se colocavam nos ministrios para proteger o que j era um precipcio de dvidas, enquanto isso, as coisas pareciam compostas. Mas tudo tem um fim, as famlias diminuam, como no caso de Filipe Nabasco, advogado nas horas vagas e caador de narcejas. A filha nica, Paula, enviuvou cedo dum parente pobre, conhecedor em louas da ndia. Casou depois com um homem de nvel castrense mas incapaz de ver o mundo como uma deusa de muitas mamas. Martinho deixou-se ficar na rea dos antiquados que no fazem golfe ao domingo de manh e so reconhecidos pelas gravatas atrevidas, cor-de-rosa, inclusivamente. Quando vo a Lisboa so detectados pelo sotaque que, em tempos, era mais apagado pelo estudo do latim, ou pela exclusiva conversao entre elites. Martinho era um anorxico da sua prpria fila de aristocratas aburguesados. Comeava por no querer televiso na sala, e depois no perdiam as telenovelas com gente conhecida que, at aos vinte e cinco anos, brincava aos teatros. A av era a nica que tinha um trao original de matriarca, embora se vestisse de calas e antigos cardigans de l de camelo. Martinho estava preparado para a ver estatelar-se na escada e a dizer, como Santa Teresa, que o diabo a empurrara. "Talvez escape ao colo do fmur para morrer a dormir de paragem cardaca" - pensava. Elisa, que era mais nova quatro anos, tomava ares doutra gerao e gostava de se mostrar capaz de servios pesados. Ainda se matriculou num ginsio para ir nadar, mas no chegou a frequent-lo. Fez dietas de legumes crus e de peixe grelhado, e Maria Rosa disse-lhe que, excepto a fome, as dietas so para ricos. - Custas-me mais em bifes de lombo do que em salrio. Vai-te matar! Elisa punha mscara de beleza antes de se deitar e pregara mais do que um susto a quem batia porta noite e ela descia para abrir. Coisas que j no aconteciam porque a casa tinha alarmes e at um gato os fazia retinir. A maior parte das vezes nem estavam ligados, e Elisa continuava a levantar a ponta da cortina para ver se andava algum l fora. Os ladres traziam animao ao Torreo, no caso de se interessarem. Sabiam, no entanto, que a nica coisa de valor no cabia numa carrinha e que, alm do mais, no se podia negociar.
- Se no fosse a Ronda, h muito que j tinha mudado de casa e ia viver para um andar com vista para o mar. Adeus escadas e escadinhas, mveis onde cabe uma corporao de bombeiros com capacetes e tudo - disse Maria Rosa. Elisa, que se pusera muito melindrosa, pensou que ela lhe lanava uma indirecta. Quando era nova tinha uma queda para bombeiros e fardas em geral. - Um homem um homem, mas fardado outra coisa - dizia. Tambm ela estava farta de casas como mastabas onde se criavam quatro geraes de crianas vestidas marinheira e que tomavam leo de fgado de bacalhau aos garrafes. Tinham partido, ficavam os retratos num velho lbum com letras de marfim. J nem se sabia o nome delas, nem como tinham vivido e morrido. - Quero ser cremada e que no fiquem sinais de mim - disse Maria Rosa. Mas no se separava do colar de prolas nem dizia onde o tinha. - s tantas nem ela sabe. Est muito esquecida. - Elisa falava baixo "para as paredes no ouvirem". As mesmas emoes que se viveram nos gabinetes de Catarina de Mdicis podiam ser registadas ali, com os sulfurosos pensamentos e planos esboados na cabea de gente que toda a vida andara em pontas de ps, segredando coisas triviais. Enchiam o corao com intrigas de amores, de heranas, de poderes que se cruzavam entre a alcova e a cozinha. Quem era mais poderoso? Leonor Teles ou o alfaiate de Lea do Bailio? E os pequenos duendes da Ronda, ela com o pombo morto cinta, ele com uma coroa de folhas de carvalho, smbolo de imortalidade, num quadro em que tudo est ao acaso e para acontecer. Martinho tinha grandes conversas sobre a Ronda; cada vez mais se capacitava de que, a ser uma cpia, fora feita no atelier do artista. Assim, a ser verdade, valia uma fortuna, porque h coleccionadores de cpias como os h para originais. Era uma ideia cada vez mais acariciada e que iluminava os maus pressentimentos dos Nabasco quanto ao seu futuro, que no podia ser seno desconfortvel e mesquinho. Um dia arrendava-se um armazm para guardar a Ronda e ele ia viver para trs assoalhadas com marquise. Era uma ideia arrepiante. Maria Rosa lembrava-se da vivenda onde nascera, frente ao mar, abundante de espao, com terraos que ofereciam a ruidosa companhia do mar cuja espuma, nos dias de Inverno, salpicava as janelas do rs-do-cho. Tudo era feito para uma vida sem cuidados, havia sempre dinheiro vivo em casa, muitos criados e ces, visitas vestidas para sair e jias postas. Paula j no conheceu nada disso, no tempo dela j se previa um emprego e o condomnio, nascer na clnica, ter baby-sitter nas noites em que se comia fora. - No teu tempo como era? - perguntava ela me, meio encantada. - Nada de especial. Faziam-se quatro refeies em casa, servidas francesa. Arroz ao almoo e ao jantar, e duas sobremesas. Vinho do Porto ou aguardente velha. O whisky no era bem visto. Nem os
queijos de fora. Uma vez por outra, com o calor, jantava-se no jardim, ainda de dia. Os pirilampos brilhavam nas sebes de buxo. E a flor do tabaco cheirava melhor que as rosas. - Onde est a flor do tabaco? - Perdeu-se, no a vi mais em nenhum lugar. Isto era na Casa do Co, j Paula estava casada e Martinho tinha dez anos. Lia muitos policiais e tinha uma capacidade de deduo acima do normal. No se deu bem com o internato, apareceu-lhe uma gaguez que se prolongou at tarde. O av mandou que o trouxessem para casa e a ficou depois que a me casou outra vez. Era feliz no seu quarto, que mais parecia um estreito quarto de vestir com uma cama que tinha desde criana e que foi preciso aumentar para que lhe servisse quando adulto. Era uma cama envernizada e que tinha, como remate na cabeceira, um lao de madeira que se foi partindo com as mudanas. O av morreu na Casa do Co, o esquife no cabia na escada de caracol e foi preciso desc-lo pela varanda do quarto. J no era pequena humilhao aquilo, quanto mais os bombeiros a gritar ordens, como se evacuassem um prdio em chamas. Toda a gente estava farta daquela cena e Maria Rosa, na sala de visitas, em baixo, fechou-se chave e no apareceu a ningum. Os que vieram ao enterro andavam pelo jardim e at noite passearam por l como se estivessem num lugar pblico. Maria Rosa disse que nunca mais ningum morria na Casa do Co. - indecente sair pela janela como um ladro - disse. As lgrimas secaram, de to irritada que estava. Foi assim que mudaram para o Torreo, que era dum ferrageiro, entretanto falido. Os ferrageiros eram gente de dinheiro e fora dos seus balces lustrosos pelo uso e da penumbra dos seus armazns, faziam muita vista. Sabiam muito de pregos e parafusos e tinham uma conversa profunda a respeito da folha de Flandres e verguinha, e coisas assim. Evidentemente que os Nabasco no ligavam com gente dessa, o que era desculpvel, mas no era bonito. J nesse tempo Maria Rosa se revestia de democrata (chamavam-lhe democratide) e foi ela quem fez o negcio da compra do Torreo Vermelho, sem nem por um minuto dar a perceber que sabia da runa do ferrageiro e sobretudo que sabia que ele deitava sopas no caf do pequeno almoo. J era bastante ter perdido a fortuna, com amantes, dizia-se; no era preciso achincalh-lo com aquilo de ele ser to pouco elegante que at usava um lpis na orelha quando estava no balco. A cidade era muito exigente quanto ao estrato social de cada um. Uma mulher que vendia fruta entrada duma ilha podia ter entrada franca no Torreo Vermelho, porque tinha bom carcter e no invejava os ricos; enquanto que algum com grande fortuna e dois Ferrars, nunca seria recebido na casa dos Nabasco. E porqu?
- Ah, porqu! O carro e a mulher, duma marca qualquer - disse Maria Rosa. No era distinto contar dinheiro em pblico, quanto mais mostrar grandeza e superioridade fosse no que fosse. E Elisa era da mesma opinio; ainda que ela achasse ter direito comida dos patres e no apenas dos criados, uma merda com azeite de segunda. Tambm se lhe dessem alargas, levava a casa falncia, em pouco tempo. Fosse como fosse, depois da morte de Filipe Manuel Nabasco, ela, Maria Rosa, entendeu mudar tudo. A Casa do Co tinha uma fama deplorvel porque se construra a garagem no lugar onde havia uma capela. Era melhor no arriscar e, como o Torreo Vermelho ficou venda, ela aproveitou para dar um pontap no passado e optar por uma decorao mais conforme o seu gnero. O seu gnero era influenciado pelos filmes dos anos cinquenta, com mulheres vestidas de lam e raposas brancas, e escadas como as de Jac, to largas que cabiam nelas anjos aos pares. Era um luxo nova-iorquino que nunca deixou de admirar. Ningum, na cidade, por rica e opulenta que fosse, usava desabilles debruados de plumas de cisne, que afinal at so baratas, como dizia Marg, a cunhada preferida de Maria Rosa, uma snobe aristocrata, coisa que tambm no era bem aceite porque, na cidade, a aristocracia era smbolo de presuno e inutilidade, ou de coisa pior. Se que h coisa pior do que a inutilidade. H, ser um intelectual. O Torreo Vermelho fez Maria Rosa desabrochar. Andava pelos sessenta anos e j no se esperavam dela surpresas; ainda que fosse por essa altura que as mulheres de sessenta anos comearam a dar na vista, a apaixonar-se pelos maridos das amigas e a no se limitarem a ter amantes - a casarem com eles. Todos sabem que casar com a amante confundir a virtude pblica com o prazer secreto. Mas casar com o parente prximo que o marido da sua grande amiga mais do que escndalo, uma falta de imaginao. Maria Rosa nunca chegaria a isso. Decidiu ser uma inovadora. Numa terra em que a imaginao j tem que ter a idade suficiente para ser uma tradio, o caso de Maria Rosa foi censurado. Apenas isso. Segundo os princpios celtas, uma mulher rica pode fazer o que muito bem quiser. Uma mulher uma mulher, mas uma mulher rica outra coisa. E uma viva rica carne limpa. O Torreo Vermelho encheu-se de preceptores e gente de leis (no havia um dia em que no aparecessem partilhas, reclamaes de caseiros e de inquilinos, obras a resolver) e a educao de Martinho foi profundamente debatida. Dos oito aos nove anos ele tinha estado num colgio interno, e quase morrera de saudades e de doenas variadas, como uma primo-infeco, uma tuberculose ssea, alm duma coqueluche de que o quiseram curar fazendo-o subir em avio durante meia hora. O que o aterrou deveras e desde a apareceu-lhe a gaguez. O que uma criana de oito anos pode contar da sua experincia num colgio da mais fina proporo pedaggica no coisa que sirva para a histria de Oliver Twist. As sedues, as
sevcias, as iniciaes ao terror e realidade no dispem ainda de vocabulrio para serem denunciadas. Se que h vontade de denncia; porque no indizvel h a mais profunda forma ertica que vai servir para que a vida inteira seja bem sucedida ou falhada. Uma criana de oito anos pode entender mais de seduo do que Clepatra e Casanova. A natureza mune-se de recursos inimaginveis para produzir a sua rea de domesticao. necessrio que, para alm da sua pele de cultura, de imitao e de aprendizagem, perdure um campo de sobrevivncia que confina com o horror. verdade que, ao longo duma carreira fcil de adaptao, a criana esquea voluntariamente o perodo de iniciao a que foi sujeita e todos os conselhos nele recebidos. Mas, um belo dia, tudo pode sair das trevas, do corao das trevas, e produzir um acontecimento que ter que se chamar condenvel. O que sucedia com Martinho era que, desde os seus oito anos, no esqueceu o que aprendera: que era indefeso e ao mesmo tempo carregado de requisitos para alimentar a sorte. Sabia que a verdade com asas de pomba no existe; mas que com garras de drago est sempre perto de se mostrar. Os amigos mais prximos de Martinho, no muitos, casaram tarde com mulheres que no iam pedirlhes contas da sua virilidade, que no era a de "crescei e multiplicai-vos". No tiveram filhos, como ele prprio no teve filhos. Tinham uma vida amistosa com as mulheres deles e dos outros, gostavam de ter em casa um canto s deles, onde tudo estivesse desarrumado e de poder atirar com a roupa sem ter que a dobrar. Tambm punham muito em causa dizer quanto ganhavam e em que passavam o tempo durante o dia. Dia em que, na maior parte dele, no faziam nada; enquanto que as mulheres faziam mil coisas e chamavam a isso uma vida agitada quando era apenas uma vida de tagarelices, ainda que se tratasse de coisas srias, como a sade e o preo das coisas. A medida que ficavam satisfeitas nas necessidades bsicas, a casa, a alimentao e os seguros contra incndios, aumentava a preocupao com a sade. No se pensava em morrer mas em durar muito tempo. Todavia, a inteno suicida estava mais em causa na sociedade urbana. Doenas fatais, epidemias imparveis, eram recebidas com uma certa fleuma, muito diferente da resignao. Porque na fleuma h vontade prpria e consentimento, e na resignao h abandono da razo. As doenas suicidas cresciam em nmero e em perigosidade; porm, entravam na saga da famlia e eram acarinhadas como ttulos de nobreza. Na casa dos Cunhas, se uma mulher era operada a um fibroma, as outras todas da famlia ou da vizinhana queriam ter o mesmo tratamento, equivalente a uma condecorao por mrito. A doena e o acesso s urgncias regulavam a vida dos mais velhos; fazia o seu recreio e os seus plos de convivncia. J no eram s "as viagens dos pobres", como se chamaram, eram a sua tese filosfica e o seu parlamento, a sua igreja. A viagem dos pobres tinha alternativa na cobertura que se dava ao emprstimo para compras sumpturias, como o
carro, a piscina e as frias nos parasos sexuais. At Elisa quis viajar de avio e chegou a ter o bilhete na mo, mas ganhou medo tal que no podia chegar a uma janela que no sentisse ouras. Geraes de indgenas com os ps na terra reagiam a sentirem-se suspensas no ar, parecendo tudo aquilo engenho do diabo. Ficava amarela e vomitava. Marg entrava na Casa do Co a despedir-se porque ia para NewYork. - Para onde vais, Marg? - dizia Maria Rosa, que voltava a vestir a roupa de pastora, s flores. Era Primavera. - Para o corao do mundo, minha filha. - O corao do mundo Paris. E Patras, o olho do cu. - Disparate! Queres alguma coisa? - Alguma coisa... Um cachorro quente com muita mostarda. No estou a brincar. So os melhores que h. Mas Marg no voltou l a casa porque morreu dum aborto mal parado. O enterro dela no foi nada concorrido. Marg estava no caixo com as mos em cima do externo e um tero nas mos. Tinha escolhido um vestido com mangas " religiosa" e parecia to bonita como era nos seus melhores tempos. Via-se logo que tinha classe e que sempre a tivera: nenhum detalhe a traa, eram os sapatos, eram as pregas, era o cabelo arranjado com um pouco de laca frisado dos lados como ela gostava. O salo, donde retiraram os mveis do centro, era grandioso e o cho brilhava sem ser demais. Serviamse petits-fours e ch verde e preto; ou de camomila para quem quisesse. Maria Rosa sentou-se um bocado, como se estivesse a fazer malha, e fez de propsito, no reconheceu ningum. Mas, de facto, no conhecia. O mundo mudara, os velhos ficavam em casa ou tinham morrido. "Eu no os tinha reconhecido se os visse", pensou, distrada. As mulheres perguntavam-lhe vivamente: - No me conhece? - Oh, sim, estou lembrada... - Estive consigo h quarenta anos, no aeroporto. - Sim, possvel. H quarenta anos! O tempo passa. A outra contou-lhe dos filhos, que tinha trs, engenheiros e um mdico. "Um mdico em casa faz muito jeito." Maria Rosa sorriu e encolheu os ps para deixar passar. Servia-se caf com chocolate preto na borda do pires. "Digamos que de luto", pensou. Nos momentos solenes dava-lhe para rir. E Martinho puxava-lhe pela manga, a avis-la. "Onde teriam ido buscar estes candelabros?" Eram peas de Murano, originais, com velas e um cordo para as fazer baixar e acender. Ningum tinha outros iguais; e vislumbrou no rosto da morta um fio de orgulho, porque tinha classe.
Ainda no tinham mudado de casa, mas foi logo a seguir. O Torreo Vermelho foi posto venda com parte do recheio e Maria Rosa foi ver como aquilo era por dentro. Uma casa vazia faz sempre a impresso de que h gente a espreitar pela frincha duma porta. Depois abre-se, e no est l nada; trapos secos e torcidos no lavadouro da cozinha e fuligem cada, com o vento, flores secas numa jarra. Na porta do frigorfico uma mola com recados. "Volto s seis, panados para o jantar". Maria Rosa teve um arrepio, como se aquilo lhe fosse dirigido. O doutor Assis no deu por nada. - Estas casas velhas esto um caco. Nada funciona e preciso remover tudo - disse, meio irado. No compreendia porque ela queria mudar-se to depressa, deixando para trs uma poro de tarecos e bacias onde duas geraes tinham escarrado e banhado os ps. Porqu tanta pressa? - No sei - disse Maria Rosa. A alta estatura dela recortava-se contra a parede nua. Havia marcas de quadros nas paredes e buracos de pregos arrancados. - A Ronda vai ficar bem aqui. Finalmente. - Ela deitou um olhar circular pela sala vazia e silenciosa. Uma vareja grande estava pousada e no tardava que comeasse a zumbir e a chocar contra as vidraas. Nada para dar uma sensao de abandono como uma vareja numa casa vazia. - Vou afinal ver esse decantado quadro - disse o doutor. - to grande assim? - Tem seis metros e sessenta e trs por quatro e trinta e sete. - No coisa que se meta na gaveta. - Media quase quatro por cinco. O tamanho dum quarto de dormir. - Um pequeno quarto. Tudo relativo. Percorreram a casa, que parecia inspita e fria. Ainda havia cinza nas lareiras e uma porta batia nalgum lugar. E o que dava mais tristeza era a casota do co com um pouco de palha a sair de dentro e a tigela da gua com poeira seca no fundo. Maria Rosa imaginouse dona de tudo aquilo e a alma arrefeceu-lhe de to receosa. Teria ainda idade para comear com outro brio coisa to tenra como a casa prpria? Abrir espaos, escolher cores, medir, calcular, imaginar efeitos e propores. Martinho tinha-se formado sem ter nunca visto um esquadro e uma rgua. Mas as obras dos solares, que implicavam problemas de arquitectura, fizeram dele um leigo com escrpulos, o que quer dizer que se tornara mestre. Ao ver o Torreo Vermelho na sua nudez, se no no princpio da sua runa, achou que ele valia algumas insnias. Alm do que, a Ronda teria um lugar decente que abraar, logo entrada, com a luz do poente a fazer brilhar o fato do garboso tenente das galochas. Quando o Torreo ficou pronto para ser habitado, a Ronda da Noite fez a sua entrada solene e durante dois ou trs meses foi admirada, discutida e avaliada. No Porto no h nada que no se avalie, um princpio conspiratrio. Houve quem a achasse mais escura do que o original e sobretudo que lhe tinham suprimido figurantes, alm dos que constavam na sua histria. Despertou a inveja dos coleccionadores e no lhe pouparam crticas arrasadoras. Maria Rosa ficou impassvel, tanto mais que a
Ronda era para ela um patrimnio que nunca entrara em partilhas e a que no lhe interessava pr um preo. Sempre esteve convencida que era uma cpia do atelier do pintor e que, por isso, tinha um valor incalculvel. Alguma coisa lhe dizia que a Ronda no estivera guardada mas escondida propositadamente desde que a duquesa de Mntua, regente de Filipe IV, sara de Portugal com um esplio que carregava mais de cem burros. Ou porque a Ronda fosse demasiado grande para ser transportada, sobretudo transportada sem dar na vista, ou porque o saque no a inclua por estar num palcio das cortes de aldeia, o facto que no saiu do pas. E o seu rasto foi-se perdendo, escapando a outras desordens, como a do consulado de Junot que chegou a intitular-se rei de Portugal. Estava j com o crebro avariado e Napoleo no lhe deu ouvidos. O que Martinho conseguiu apurar foi que a Ronda andou na coleco do pintor Joaquim Marques que morreu em Lisboa em 1822, e que era amigo de Pillement que teve contratos importantes no Porto, sendo o maior o do Palcio dos Carrancas. possvel que Pillement trouxesse a Ronda para o Porto, ou para Coimbra, onde se venderam por alto preo, em 1794, cenas campesinas e outros. Havia muitas falsificaes, umas bem elaboradas, outras francamente avaliadas como falsas. Os marfins, que se chamavam "tartaruga do Alentejo" para no dizer que eram corno de boi, enchiam os bric-a-brac e eram, mesmo fingidos, muito procurados. As peas de lotes destinadas a leiles estavam inventariadas; excepto as que eram encomendas para oferecer. Da Ronda no havia vestgios, o que alimentava a hiptese de ser um quadro de embaixador, presente particular e que teria tido um percurso mais ou menos clandestino. Havia no Porto pessoas que se entendiam com a arte sem ter estudos dela; e que pegavam num prato ou numa jarra de faiana e logo lhes descobriam a origem. Uma dessas gentes, que tinham o dom da adivinhao para afianar a autenticidade duma obra, parece que viu a Ronda e disse: - de Rembrandt, dele prprio. Causou estupefaco tanta segurana; e tanta, que duvidaram dele. O Norte no gosta de se enfrentar com certezas e por isso condenaram a Ronda sem mais anlises e provas. Foi da que a Ronda da Noite foi desterrada para os solares de montanha, a bem dizer, e onde vivia uma horda de caadores estimados pelo esprito esbanjador e o culto do padrinho. Apareciam algumas vezes nos jantares dos Nabasco com as mulheres, que eram peludas e silenciosas. Quando se deu a revoluo de 74, mostraram-se na sua forma de eruditas e com as filhas formadas em Inglaterra. Mas eles continuavam estranhos, como naturais dum principado de que no se esgotou o modelo em certos aduares de provncia, tanto no Alentejo como no Fundo, ou no Nordeste transmontano. Gente que de snobe nada tem, mas sim uma nobreza que desdenha de emblemas e pergaminhos. possvel que entre
eles algum estudasse no Colgio dos Nobres, de Turim, mas isso no constava das conversas de salo. Martinho pertencia a essa casta que directamente se filiava na identidade portuguesa. A identidade de um povo faz saltos, como a natureza tambm os faz. To depressa parece esmorecida, se no apagada pela influncia de naes mais poderosas, como da sua prpria pena de morte indultada e volta a dar sinais da sua fonte, onde corre o sangue de muitos povos e de cada um tem o melhor da sua sobrevivncia. - A Ronda, que veio embarcada para Portugal, no h dvida. Embrulhada em esteiras das quais se podia ver ainda a trama. - S o avesso que autntico - disse o doutor Assis, meio irritado. Tinha cimes de tudo o que podia destron-lo do amor por Maria Rosa. E aquele quadro, grande e famoso, ocupava na vida dela um lugar que o doutor no tinha. - Identifiquem-se as caganitas de rato de poro e pode saber-se ao certo donde veio a Ronda. Estavam entrada do Torreo Vermelho, digna morada dum ferrageiro que no teria desdenhado de financiar Rembrandt porque o Porto grande pensador em coisas de lucro e mais-valia. Maria Rosa, desde criana que ouvia aquele canto de sereia que era coleccionar para vender por melhor preo. Havia vrios tipos de coleccionador na famlia de Maria Rosa: o jogador, que se paga pelas prprias mos e recebe ouro e prata, gravuras inglesas e at canetas Parker antigas - e esses so os prestamistas com um toque de parente no mesmo ofcio. Outros eram os que coleccionavam por amor arte, que se entregam ao amor fatal, que iriam roubar para conseguir uma alfaia no leilo dos Gonzaga arruinados; ou uma relquia trazida da Itlia por diplomatas; ou um lote de azulejos andaluzes. Senhoras como Isabel Egdia ou Petronila Doroteia, herdavam bas de prendas de casamento por usar, como tesouras de costura Pompadour ou caixas com o Triunfo de Anfitrite pintado. Do Torreo Vermelho, que uma noite ardeu da parte norte, sabia-se que tinha sido construdo pelo ferrageiro Sebastio Clemente, tendo Clemente passado a apelido. Ele intitulava-se proprietrio de cutelaria, o que era quase um ttulo de nobreza, posto que a cutelaria do Minho foi uma indstria famosa conhecedora da tmpera do ao. Alm disso fabricavam instrumentos cirrgicos e toda a espcie de facas. Facas de toilette, facas de cabeleireiro, facas curvas, assim como navalhas da barba, de mola, de enxertar, umas com cabo de ouro e madreprola, de chifre e de barba de baleia. O Norte tinha uma grande indstria de vrios ramos. As rvores de Trpano eram instrumentos de cirurgia que causavam arrepios e espanto. Com tudo isto, Sebastio Clemente tinha o privilgio dum lugar direita do sacrrio, na missa da uma, e a passear de cabea alta na Avenida Brasil ou em Carreiros, melhor dito. Era um homem baixo que usava um guarda-p de riscado azul e ia para o estrangeiro (jantar no Ritz, de preferncia) quando
queria caprichar de estrina. Depois dos cinquenta anos, reconciliava-se consigo prprio e pode-se dizer que estava preparado para a falncia. Todas as pessoas que moraram mais de cinco anos numa casa (outros diro sete porque o tempo que as clulas precisam para se renovar) deixam um pouco de si em tudo o que tocaram. Direi mais: em tudo em que participaram no acontecer do dia-a-dia. As vezes, pequenos episdios so difceis de levar connosco porque se fixam a tudo o que os envolveu. Maria Rosa estava persuadida de que at uma cortina arranhada por um gato mantinha qualquer coisa como um sentido de defesa e no caa to bem como as outras. De tal modo que tudo o que criao do homem ou do esprito que o move, comunicase obra criada. No lago maior (no confundir com Lago Maggiore) que estava no centro do parque da Casa do Co, ficou um barco que no tinha a proporo dum brinquedo. Era um barco pesqueiro, feito pela mo dum poveiro e que Filipe Nabasco tinha comprado. Nas noites de chuva e vento ele balouava-se na gua e ouviam-se gritos aflitivos no seu cavername. Era to ntido que no era possvel atribuir ao facto qualquer efeito da imaginao. Possivelmente o barco era a cpia doutro barco que naufragara e o pescador que o construra transmitira-lhe o desespero dos homens abandonados ao mar alterado. De qualquer forma, o barco ficou no lago e foi-se despedaando lentamente. Muitos anos depois, quando Martinho quis ver a Casa do Co, j ela estava reduzida a uma creche ou coisa que o valha, ainda viu uma tbua vermelha a flutuar no que tinha sido um fabuloso lago de jardim, com uma ilha ao centro onde se derrubavam os ramos dum pinheiro que era como uma selva inteira em miniatura. A mudana para o Torreo Vermelho obedeceu em parte necessidade de resgatar a Ronda do seu cativeiro na provncia. O Torreo Vermelho, alm de possuir condies para abrigar o quadro (3,631x1 por 4,37111) deixava respirar livremente a Companhia do Capito Frans Banning Cocq preparada para avanar, mas ainda surda a uma ordem que estava a ser dada. No lhe obedeciam, era tudo. O lugar mais adequado era, primeira vista, o salo de baile. No tempo em que o Torreo Vermelho foi construdo, o salo de baile era ainda representao dum luxo que correspondia a um direito conquistado. As jovens da casa no tinham tempo para convidar os seus pretendentes, porque casavam cedo. O salo de baile no se abria duas vezes durante o ano e s pelo Natal se armava um prespio com figuras quase em tamanho natural em que sobressaam travessos mamelucos de turbante de seda. A ltima ocasio em que o salo foi usado foi de facto para a festa de casamento da filha do cutileiro, uma pequena gorda que se parecia a uma fada m. A me de Maria Rosa conhecia-a dos tempos das termas, onde se faziam retratos de grupo. Mais tarde, ao v-los, ningum mais reconhecia ningum. Depois disso, o Torreo Vermelho perdeu o seu vio e deixou de ser assunto de curiosidade.
Quem assinou o contrato de venda foi um homenzinho que tinha a gola da gabardina oleosa, o que causou repugnncia a Maria Rosa. Na cozinha ficou uma panplia de facas velhas e um cepo cheio de golpes onde se partiam as peas de carne maiores. Um sangue negro estava entranhado na madeira e parecia o desenho dum mapa de rios serpenteantes. Foi difcil a colocao do quadro. Decidiu-se pendur-lo no salo de baile, mas brigava com as nove musas pintadas a claro-escuro na parede. A soluo (foi Elisa quem teve a ideia) foi, de resto, muito simples: a Ronda foi colocada numa antecmara ao cimo da escada, o que deu relevo s figuras gozosas da festa: a pequena Saskia e o tenente Van Vlaardingen. Tomaram um aspecto entendido e parecendo haver alguma coisa entre eles. Era uma combinao de sorrisos que no enganava. O tenente conhecia a menina, provavelmente a filha do portador do estandarte, o prprio Rembrandt. A entrada no Torreo Vermelho teve um efeito extraordinrio em Judite. Escolheu para quarto de dormir um pequeno aposento que mais parecia um armrio dos que se destinavam s mudas de roupa de mesa e de cama. Nessa altura j o casal tinha quartos separados, embora no estivesse desavindo. Mas as constantes indisposies de Judite, as suas crises de lgrimas, as insnias e doenas de pele, levavam quela soluo. Ela parecia mais conformada com os seus padecimentos porque no os tinha que partilhar com o marido. Como o quarto por ela escolhido ficava num patamar duma escada de servio, usada pelas criadas, Judite sentia-se segura. Mas depois que s ficou Elisa, que tinha pouco ouvido, Judite no quis ficar mais ali e mudou-se para o Torreo onde havia uma estreita sala que se destinava a ver a cidade. No era raro haver desses mirantes nas casas da burguesia rica; eram uma espcie de prenda s mulheres da famlia que, saindo pouco, tinham disponvel toda a cidade e conheciam assim as suas torres, igrejas e bairros at ao mar. No se sabe que efeito teria nelas essa liberdade do olhar; fazia-as mais saudosas do que no conheciam e amavam por lhes ser proibido. Judite encontrou repouso nessa priso de fantasia. O marido respeitava o seu estado que sabia no ser de louca mas de amante que se recusa. No pensava em ter cimes (porque isto de cimes tem muito que ver com o pensamento) e sentia pena de a ver to abandonada aos sentimentos que, no fundo, ela desconhecia. A virtude no est no arrependimento, mas em ser estranho s paixes sofridas. Nesse tempo j os conflitos do corpo, os segredos que at a eram disciplina da cincia e dos confessionrios, estavam na rua. A linguagem abria-se, perdendo o simbolismo ertico para ser apenas uma evaso dos impulsos violentos, comandos pr-histricos que iam tomar ascendente sobre a reflexo. Mas a reflexo trazia um acrescido sofrimento porque ela descobria novas formas de descontentamento. S pela compaixo era possvel amar. E Martinho, como
se nos braos tivesse um corpo cruxificado, amava Judite a ponto de lhe dedicar muitas lgrimas pela libertao que ningum lhe podia dar. O doutor Assis disse: - Uma viagem fazia bem a Judite. As viagens inventaram-se para quem est triste. Se no houvesse pessoas tristes no havia agncias de viagens. Que julgam que o infante D. Henrique fez ao criar a Escola de Sagres? Um ponto de partida para se poupar melancolia. O mundo no andava se no fosse a culpa dos homens. E vejam como ele provava a culpa, como precisava dela at se desgarrar por dentro. Por fora era um elegante, bem vestido e bem calado. Mas tinha o irmo em cativeiro para atear a culpa todas as noites, como quem acende uma lamparina a um santo. - possvel - disse Martinho. Encantava-o ouvir falar assim. Aquele velho mdico que nunca se impressionava com os casos dramticos entregues nas suas mos, tinha momentos de emoo muito particulares. Ele disse: - Quando Judite romper aquela pele da tristeza e comear a falar muito e a rir por tudo e por nada, acautela-te com ela. - Eu conheo o ditado: "Previne-te quando o homem calado se faz tagarela". um provrbio ladino. A alegria esconde coisas que no se imaginam. Mas de que vale pensar nisso? Acho que estamos melhor com o que no sabemos. A qualidade de mutante fazia a sua garantia ou pelo menos no era atingido pelas maliciosas teias da vida. Quando a av foi para o Brasil porque era vaiada na rua pelo facto de se vestir fscio, como se dizia, Martinho no partilhou os receios dela, deixou-se ficar, sabendo porm que a casa podia ser ocupada, como foi mais tarde, para um infantrio. Em pouco tempo o formoso parque foi arrasado e as tlias da avenida tambm derrubadas para servir de lenha barata ou para grosseira marcenaria. A medida da ocupao das casas, habitadas algumas, outras s em poca sazonal, foi inteligente. Anunciavam-se os motins com consequncias imprevisveis e era preciso dar satisfao clera do povo. Os perigos da igualdade anunciada eram a anarquia e tambm a via secreta de nova servido. Havia quem, amando a revoluo, lhe fazia frente moderando as paixes da oposio. Eram homens cultos mas que no tinham o gnio suficiente para salvar uma situao j de si precria; porque uma longa opresso torna-se insuportvel desde que nasce a ideia de a poder vencer. Vencer rapidamente, porque tanto quanto um estado de guerra longo, a revoluo no se faz demoradamente. Era preciso distrair o povo dessa situao premente que ver nas reformas o primeiro sinal de fraqueza. Quando um despotismo se acaba deve deixar-se morrer, no o substituindo por reformas, que o que em geral se faz. A ocupao anrquica de casas, que o que em geral se faz, serviu de barreira desordem e ao ajuste de contas, que tem um papel selado com sangue em todas as revolues. Martinho Nabasco vivia
ainda na Casa do Co quando a emoo revolucionria se apoderou dos espritos. Duns, porque o fulgor duma inovao qualquer age nas pessoas como um rastilho de alegria feroz; doutros porque, como espectadores, sentiam o perigo que nem sequer poupa os que esto na berma a ver passar o cortejo. E, por precauo ou medo, subiam ao palco das operaes com a convico de estarem a seguir um argumento da sua autoria. A liquidao da Histria foi um dos principais conflitos que na revoluo se levantaram da parte dos conservadores interessados em manter o povo longe da realidade. A realidade era a de ser o pas uma potncia sem recursos, com um contingente de emigrao capaz de afundar todas as suas aspiraes que no fossem as de se aburguesar pela calada. Isto : plantar a sua horta discretamente e em famlia. Com esta matria social uma revoluo s podia ser urbana. A fora militar que a apoiou, viu-se a braos com a sua prpria fraqueza que a de no saber controlar o tumulto dos civis. Os mais inteligentes hesitaram e recorreram a uma disciplina mitigada; deram ao povo a liberdade para agir segundo as suas necessidades e no segundo as suas aspiraes. Foi assim que se permitiu a ocupao de casas que depois se tornou num cancro nas reformas e que contribuiu para a degradao dos costumes e da vida administrativa. Maria Rosa voltou do Brasil, indisposta com o clima e o acolhimento que recebeu l. O burgus revolucionrio ia tomar ascendente em Portugal, posto que aglomerava negociantes, financeiros, advogados, funcionrios, mdicos, todos os que viviam de rendas colhidas no proletariado e que se intitulavam de esquerda; e democratas, que lutam por receitas e no por salrios. Martinho j no era o rapaz um pouco fariseu de feitio, retrado e singular por cultura e por escolha. Estava agora distanciado dos seus amigos decadentes que, entretanto, tinham casado com mulheres mais velhas; tinham filhos doutro casamento e eram menos exigentes do que uma "donzela peregrina", como Elisa chamava s jovens bonitas de boa gente. Felizmente Judite no era "uma donzela peregrina", nem nada disso. Se bem que no fosse destituda de beleza e os seus olhos azuis e raiados de preto fossem surpreendentes, anunciava-se como uma nova raa de aventureira; a que apanha o perodo hippy e o dos comandos publicitrios. Contudo, havia de suceder-lhe um contratempo, apaixonou-se perdidamente. Perdidamente no quer dizer que arrancasse os cabelos e fosse para a varanda de madrugada, ouvir a cotovia. Os grandes amores so como as grandes dores, silenciosos. S que trazem com eles a virtude de em nada serem calculados, nem sequer pressentidos. Decorrem com sintomas que mais parecem de doena extraordinria, se no que o amor no uma doena das clulas que se renovam. E aqueles que no amam contam mais clulas mortas do que as outras pessoas, os amantes que amam.
H amantes que amam como h seda pura, seda selvagem, seda de Xangai e de Beijing. De Beijing no sei se h mas, sendo a capital, natural que os mandarins guardassem nos seus pavilhes escarlates as sedas para presentear os seus aliados. Por agora ficamos em que h amores dos que amam e os outros, que so, de resto, mais duradouros e de trazer por casa. Com estes faz-se tudo o que se quer. Fazem-se famlias inteiras, sexo e at m poesia. So coisas de que iremos falar.
CAPTULO VI O TORREO VERMELHO Maria Rosa teve uma vez uma conversa muito proveitosa com o neto. Ela gostava, como todas as mulheres que no perderam o tique da ociosidade, de falar de coisas que no se praticam e apenas se imaginam. Ela dizia, por exemplo, que, se fosse nova, ia viver para uma dessas cidades do Oriente com tradies severas, que so as que sabem melhor transgredir. Teria um motorista pago alm das suas posses, porque era proibido s mulheres conduzir; e, outra coisa, ocupava todo o seu tempo livre a fazer compras e assim a evitar os maus pensamentos, condutores da depresso. - As mulheres nesses pases tm uma vida invejvel. Comem a toda a hora coisas que engordam e usam uma roupa folgada que lhes esconde as banhas. Passam o tempo que querem com os filhos, que no so to numerosos como dantes. Os rapazinhos ficam to dependentes delas que so dominados para sempre pela me, a tia, a av. A sociedade feminina, as leis so feitas para os princpios e no para as circunstncias. - No tanto assim. No me interessa - disse Martinho, lanando uma baforada do cachimbo. Maria Rosa desconfiava de que no era s tabaco o que ele fumava. Fechava os olhos a muita coisa, aquela era mais uma. Tambm a ela no importava tudo o que fazia as conversas acaloradas. Elas ocupavam o vazio que h entre as pessoas, mesmo as mais chegadas, e mantinha as relaes no ponto certo que era o da solido compartilhada. As coisas mais belas que havia nos sentimentos um pelo outro s foram mostradas sua alma depois de um morrer. H uma segurana definitiva na morte dos que se amam. Ele disse: - Aquela medida de no permitirem s mulheres o curso de Direito tem algum sentido. As mulheres julgam com emoes e quando as querem corrigir so cruis e no justas. - Achas que eu sou cruel? - No personalizes tudo. Tambm isso prova da tenso sazonal em que vivem as mulheres. - A tenso sazonal. Parece um insulto. - A est. Tudo lhes parece um insulto, uma forma de inflao. Acontece com as mulheres o que acontece com o dinheiro. Com o dinheiro, os preos podem subir tanto que j nada se compra. As consequncias j se sabe como so: a riqueza sbita dos pobres, parecer influente o que o no , as dvidas grandes serem pagas com pouco. - E as mulheres cabem a? - No. Mas entram em qualquer discurso. A inflao isso. - No s feliz com Judite? No respondas. Ns vamos levar a inflao a esse ponto.
- Eu sou feliz, pelo menos o que me parece. Ela est apaixonada por outro homem e tenho muita pena dela. Sofre muito e eu no a posso ajudar. - Dorme com ela, que sempre ajuda. A av estava magnfica, deitada na cama com baldaquino e toda reluzente de sedas, a cama e ela prpria. Sempre gostara de roupa interior luxuosa e o marido oferecia-lhe coisas lindas, escorregadias e que criavam um sentimento de doura, na verdade nada sensual. Isto de se julgar que as mulheres de cama tm um estilo prprio de provocar com roupas ntimas, um engano. Com roupas ntimas no se provoca nada, elas so o contrrio da excitao. O canc sim, era excitante; libertava o cheiro a sexo com aqueles folhos e saias agitadas no ar. Estes pensamentos no eram abordados no quarto da av; se o fossem, era duma maneira espirituosa, como se viessem directamente dum monlogo de Oscar Wilde. Ele tinha o prazer do monlogo, os outros todos vinham da. Martinho disse que Judite no o preocupava seno em que o sofrimento dela no era sua culpa. Com a culpa as pessoas sabem como trat-la e venc-la tambm. Mas a inocncia terrivelmente dolorosa e no se lhe pode pegar de nenhuma maneira. Ele, Martinho, estava espera que, uma vez livre do amor que a arrastava, cada vez mais fundo, para o corao das trevas, ela subisse superfcie, como Lzaro do seu sepulcro. Nunca mais se falou de Lzaro e no coisa pouca ser um ressuscitado. Tambm no se falaria mais de Judite, quando ela sasse ilesa do corao das trevas. - Achas que ela te deixa? - disse a av. E espalhou na cama os anis dos dedos e voltou a enfi-los. - Penso que sim. O amor triunfa de tudo, menos da felicidade. - pena, pena. Eu gosto dessa rapariga. - E depois, av, que se pode fazer duma pessoa feliz? Nada. Tambm preciso ver uma coisa: o pobre volta pobreza, no se pode afastar dela para sempre. um vnculo; o amor do amor. Um pas que governado por pobres, pelos que amam a primeira cama onde se deitaram, ser sempre pobre. H qualquer coisa na primeira noo de vida difcil e dolorosa que pode passar por moeda forte. Mas estou a cans-la. Deite-se para baixo um pouco. - o que vou fazer. Mas diz-me uma coisa: o sofrimento, que dizes do sofrimento? - o que nos vale. Sem ele no havia valores nem criao do mundo. No tem frio? - Frio, sim, tenho. Es tu que me fazes frio. Gostas de ser infeliz. - Receio bem que sim. Ele saiu, pisando de leve o velho tapete de Aubusson manchado por sete vidas de ces e de gatos. E s se ouvia o travar dos autocarros como mamutes que se repousam duma corrida para a sua extino. O Torreo Vermelho, banhado pelo ltimo claro do sol, parecia um engano de arquitectura, como se fosse feito para resistir s areias do deserto. Em todos os cantos da casa Martinho levantava os mortos
ao som das suas objeces: o cutileiro, com a bata azul de trabalho, ia lavar as mos a uma pia que havia na cozinha, to pequena que servia s para os pssaros beberem. Todas as casas tm uma forma de calo, de blasfmias, de boalidades, como se, por cima do seu traado, as vozes dos operrios ficassem impressas. Era um cruzar de palavras brutais ou escarninhas que o trabalho trazia consigo. No h trabalho amvel e sensato. O que Deus fez no se chamou trabalho mas um sonho com efeitos colaterais, que so a realidade. Cada recanto no Torreo Vermelho parecia ter uma histria que no era adequada s histrias que so envolvidas pela teia da experincia comum. Uma poca tem a sua linguagem, um modo de vestir, de comer e de amar. Sade, por exemplo, est na raiz do prazer que se reveste de algo cmico para no cair no corao das trevas. O corao das trevas est intacto na sua profunda rea de segredos e rodeado por numerosa matilha encarregada de desviar os intrusos: a matilha poltica, a doutoral e a anarquista. O poltico que tem uns mnimos de confiana na sua carreira e no seu partido nunca deixa a casa no campo nem o fio de inteligncia com os nativos do seu tempo. Embora nunca deitasse o pio com as crianas da sua idade, dir que as conhece a todas pelo nome e que est informado do caminho que levaram. Est visto que as esqueceu a todas essas crianas; mas o que no esqueceu foi a sensao de bem estar quando estava na sua cama de palha. Nenhum colcho ortopdico lhe dar tamanho conforto e nunca h-de compreender outros desejos e outras relaes que no sejam smbolos do que foi a sua investidura na vida: a injustia, a dor e o que as tutela e suprime. A poltica, em suma. Percorrendo o Torreo Vermelho tinha-se a impresso de que Kafka procedia assim para fazer os seus romances. No se tratava de pessoas vivas, mas outras, que saam da parede e vinham juntar-se a ideias de pessoas e vestir as suas roupas e funcionar como elas. Eram muitssimo mais atraentes do que aquelas que obedecem a praxes impostas do exterior. S que, como nos sonhos, estavam sempre em risco de serem apagadas e a sua explicao no tinha nexo. O cutileiro era como um homem qualquer quando vestia a sua fatiota de cerimnia feita por um alfaiate que talhara um palet ao prncipe de Gales, uma vez que o prncipe de Gales perdera a bagagem ou a deitara pela janela. Mas o cutileiro na sua loja de cutelaria era completamente um grande da sua rua. Entendia de aos de Thiers e de osso embutido e marchetado. Percebia de tudo da sua arte; avanou at aos ferros hospitalares, pinas, bisturis e lancetas. Um dia que levou para casa um estojo com material de parto, a filha, julgando que o frceps era uma tenaz da salada, mandou-o para a mesa dentro da saladeira com alface de Inverno. E o frceps, brilhante e sensual no seu novo destino, causou sensao.
Desse passado vivido no Torreo Vermelho, Martinho retirava ensinamentos e passeios pelo mundo desconhecido. O que era um cutileiro? Isso oferecia um estudo sobre o ofcio, a competncia, o esprito da matria. Ele entretinha-se, s vezes, com estas coisas, um jogo, uma jardinagem de palavras. Todavia, o cutileiro no se revelava seno em mnimas propores. Por exemplo, no Torreo da casa, feito para alargar a vista sobre a cidade. Era como debruar-se sobre um corpo aberto, ter disposio as vsceras, o corao a bater no saco musculoso, muito diferente do corao que se grava numa rvore, num namoro de Vero. E a cor da casa, dum vermelho pardo, um sujo gren semelhante ao sangue a que se misturou vinagre para no coalhar. A chuva j o desbotara, era mais rosa do que daquele pegajoso tom que tivera e que merecera um conclio de arquitectos e mestres-de-obras; e de pessoas de famlia, jovens e velhos, cada um com a sua mania, gosto, presuno e desejo de se impor. Quanto mais tinham conhecimento da sua insignificncia na engrenagem do projecto, mais se desbocavam a atalhar as coisas, a levantar dificuldades. O cutileiro tinha que cortar pela raiz, soprar das entranhas a sua tirania e acabar com a discusso. Por pouco no brandia os seus tesouros de ofcio, um punhal malaio ou uma faca argentina com bainha de couro e que tinha na ponta uma mulher nua em prata lavrada. Por fim venceu o vermelho sangue mas atenuado, como o sangue que corre nas calhas dos matadouros, com laivos de gordura, a boa gordura que far sabo de toilette com perfume de alfazema ou rosas. O cutileiro no era uma pessoa qualquer. Quem construra o Torreo Vermelho no era uma pessoa qualquer. Martinho certificou-se onde ele dormia; era um quarto que dava para a escada nobre, um quarto de rapaz. Queria dizer que no tinha filhos, s meninas. Nas casas antigas do Porto mas que no eram de grande padro burgus, havia o quarto com porta para a escada. Permitia a vida nocturna, a visita de amores clandestinos, a discrio combinada com o sabor vadio do celibato. No caso do Torreo Vermelho no havia rapazes. O cutileiro, que tinha uma fila de antepassados banhados nos aos finos franceses, viu-se sem herdeiros, alm das jovens desengraadas, uma delas Umbelina e outra Carlota, as meninas do Torreo Vermelho. Duma se sabia que era feia sem atenuantes. Mas a outra tinha sal e outros condimentos de Goa e de Malaca, no sei se digo bem. Os lugares do Torreo Vermelho pertenciam quase periferia no tempo em que a Casa do Co fora comprada pelo Nabasco. Em 1930, aproximadamente. Havia uma flora singular de palmeiras e diversas rvores do Brasil; s que no atingiam o porte imperial das airosas espcies do Recife, com as desgrenhadas cabeas brisa costeira. A palmeira foi um emblema que o portugus pregou na lapela de capitalista. Filipe Nabasco tinha ainda no bilhete de identidade a designao de capitalista; do que achou estar beira de ser suspeito, como fora o ttulo de fabricante no sculo XVIII. Substituiu-o pelo
de proprietrio; o que tambm no lhe agradava. Se tivesse que ser sincero, diria que era caador e jogador de bilhar. Quanto fortuna que se lhe escorria pelos dedos, havia de durar o que lhe duravam os fatos de l da Covilh, uma eternidade, sem exageros. A morte de Elisa ocorreu numa segunda-feira, dia de mudar as roupas de cama; ou antes, de as lavar nos grandes tanques de pedra com lavadouros speros e outros mais macios. Havia ainda luxos desses, Maria Rosa trouxera de solteira hbitos de grande estado, com criadas, moas de recados, e hortelos e jardineiros. Alm dos faz-tudo, que eram empregados de meia-idade que compunham goteiras, fechaduras e cadeiras partidas. Eram os sbios do borralho, que estavam noite a um canto da cozinha a pregar tachas no calado avariado. A Paula, ainda pequenina, faziam muito medo as solas despregadas, com filas de dentes que lhe pareciam animados de maus instintos. Paula, at aos cinco anos, era inteligente e cheia de graa. Depois ficou igual a qualquer outra pessoa. A morte de Elisa foi muito sentida, embora ela se tivesse tornado exigente demais e chamasse as pessoas para a sua beira a toda a hora. Queria que lhe acendessem a luz, que a virassem na cama, que lhe mudassem as fraldas e que lhe trouxessem novidades. Olhava como se no percebesse nada e dizia: - Isso no pode ser assim... - Tanto pode, como - dizia-lhe a costureira, uma tal Genoveva que s sabia subir e descer bainhas. Tambm pregava botes e cortava a linha com um golpe do dente canino, que era um espanto. Chamavam-lhe a Gnia dos botes, e ela no se importava. Era extraordinrio como havia pessoas que no se importavam: nem com alcunhas, nem que lhes ralhassem, nem que demorassem a serem pagas, e tinham pacincia com tudo. Martinho conheceu um rapaz no Iraque (no me faam perguntas) que se chamava Abdul e a quem tinham queimado a casa e feito muitas e horrveis atrocidades de guerra; e ria-se com enorme, grandiosa satisfao como se 209 ao perder tudo no houvesse mais para suportar, e isto fosse bom. A realidade do horror fazia-o conhecer a pequena proporo de paz que nos destinada, mas to insuficiente que nem estimvel, apenas nos faz rir. Martinho teve a sua parte de informao num perodo de ternura colectiva provocado pelo "mal de ouvido", como disse Byron. Parecia que o mundo era um inferno e os lamentos chegavam como imundcies e colavam-se pele. A mulher de Abdul teve tempo para comprar uns sapatos e discutir com a sua cunhada a cor e o feitio; vida, entre o prazer e a dor, permitia-lhe que alguma coisa de habitual a fizesse dispor de um estado de consolao. - O mal de ouvido, que quer isso dizer? - A av estava recostada na cama e no pensava levantar-se. O modo como evitava virar-se dizia do agravamento do seu estado, mais doloroso do que perigoso. - O mal de ouvido o que nos contado, diferente do que sofremos. Todo o mundo anda intoxicado com o mal de ouvido, mas a realidade diferente. Mais instantnea, produzida pela morte vivida. No
h lgrimas, no h qualquer precauo da natureza para aliviar a dor. A dor est presente e absorve tudo volta. - Eu sei o que a dor. As mulheres sabem como nenhum de vocs, que a abraam como se fosse uma amiga. Estive dois dias e duas noites com dor de rins e digo-te que o parto de rins o pior. Pior do que arrancar os dentes a sangue frio. Qualquer humilhao que nos aliviasse a dor era bem vinda. Inclusive ser violada vista de toda a gente na rua. A dor dos homens pode ter a obstinao ou a heroicidade para a recordar. Mas a nossa dor no assim. s vergonha, no est fundada no entendimento, no h o inimigo a quem apelar ou odiar. a dor a que chamam natural. No tem nada de natural. - Percebo. H umas palavras da Medeia, de Eurpedes, em que ela diz que preferia ir para a frente da batalha a dar luz. Penso que isto explica a irreconciliao entre as mulheres e ns. "S teremos paz quando as mulheres deixarem de parir". - Isso assustador, mas no se pode ir mais longe. Onde leste isso? - No sei, nem quero saber. - Est feito, est feito! - disse ela como se conclusse de repente alguma coisa que lhe repugnasse. Bateu fortemente no colcho para espantar a gata que queria meter-se dentro dos lenis. Martinho pensou: "Tudo o que se faz por elas pouco, so mal-agradecidas e gostavam de nos banir do mundo, tanto nos acham imperdoveis, tanto nus como vestidos". - Amou o seu marido? - Tinha dias, horas. No podamos chegar muito perto um do outro, nem perguntar nada. O amor uma tradio local. Eu amo as criancinhas pequenas como as feras amam as crias. Porque preciso proteg-las dos machos e dos predadores. Estive noites acordada para vigiar a Paula no bero. Sabia que ela corria perigo. - Perigo, que perigo? - Perigo - disse a av. Um lampejo de fria iluminou-lhe todo o rosto e depois acariciou a gata que deixou ouvir um ralo de satisfao. - No somos nada de bonito. pena. Mas isto h-de melhorar. - Quer o seu ch? - Pode ser, sempre uma consolao. - Imagina quantas mortes de escorbuto, de afogamento, de enforcamentos no mastro maior foram precisos para a av ter essa consolao. - Imagino. Parte do sabor est nisso. - No gosta de ns - disse Martinho, a rir-se. Adorava a av e tudo o que vinha dela, esprito, redundncia, paixo e at calnia. Era uma mulher devastadora e cheia de recursos para sobreviver e
ajudar as suas crias. Ela olhou para um quadro da parede que no tinha a ver com nada e disse, pausadamente: - Acho que a Judite matou a me e o desgraado agarrou-se culpa para a salvar. Os homens gostam dessas coisas. - Que coisas? Est a inventar. - A culpa. Gostam de ser culpados. Inventar uma forma de perceber. Ele desceu as escadas, passo a passo, muito metido consigo e a avaliar o que tinha ouvido. "Mal de ouvido", nada mais do que isso! Estava perturbado e assim esteve durante dias a fio. No conseguia falar com Judite e interpretava tudo mal do que ela lhe dizia. No era o facto de admitir que ela fosse uma criminosa, mas o de ser ludibriado. Agora como era que as coisas se iam passar? Aceitava-a na cama dele quando ela quisesse voltar? Falava-lhe abertamente de tudo aquilo? Decididamente era um arranjo para durar. E comeu com apetite a sua perdiz congelada desde o Natal e que tinha caado na Terra Quente. Quando pensava na caa, muitos pensamentos nobres se esvaam na sua cabea e um prazer franco animava-o. O cantil, as polainas, a arma dobrada com os canos como a farejar o cho, passavam na memria dele como um claro de felicidade. Apeteceu-lhe sair da cidade e ir para a montanha, ou para o solar da Ronda, meio arruinado e que o vento varava de lado a lado. A verdade estava com ele quando se deitava no colcho de palha e ouvia os ces disputar os ossos que, sendo cozidos, se lhes pegavam aos dentes e era preciso tir-los com a mo enluvada. Eram cmicos, de boca aberta, sentados nos quartos traseiros. Martinho ria-se e as lgrimas caam-lhe pela cara, de tanto rir. - No me venham dizer o que preciso para divertir um homem! Dormia como um justo, se que o justo tem bom dormir. O caseiro, ou o que fosse, estava na cozinha a pesar a plvora para os cartuchos que comprava vazios e depois carregava como sabia. Tudo era ordem e zelo. Martinho chegou a receber na cama uma das moas da casa e uma criana nasceu dessa paz de alma em que se encontraram; sem medos e ponderaes e no sei que mais. "As consequncias tiram a vontade de tudo", pensou. Compreendeu que a barafunda da poltica, de todos os actos humanos tinha incio no conflito entre pessoas e as suas divergncias necessrias estima de si mesmas. Um bom governo impossvel de definir porque todos os governos, sem excepo, partem da m f quanto tranquilidade pblica e a previso das consequncias. As consequncias so inseparveis desde que as posies absolutas dos povos so desencadeadas. "Um pouco de agitao d energia s almas, e o que verdadeiramente faz prosperar a espcie menos a paz do que a liberdade", escrevia o senhor de Voltaire, que sabia do que falava. S que a liberdade se funde com a bestialidade que no se pode erradicar da fora que comanda os nossos actos. Essa fora no mede as consequncias e por fim vemos as fases mais opulentas e
afirmativas dum pas serem marcadas por uma espcie de alienao colectiva que faz tbua rasa das leis mais sagradas e protectoras da espcie humana. Quando no se espera ver mais a panplia dos baixos instintos autorizarem a tortura e os massacres mais impiedosos (impiedosos mas populares), estamos de novo em circunstncia delituosa da Histria, em que a energia adquire a sua parte de milcia nacional pronta a sacrificar a liberdade que criam as leis justas. No fundo, o homem escravo da prosperidade cujos abusos esto ao alcance dos inaptos e dos corruptos. Pouca coisa o satisfaz e lhe d a felicidade. Mas preciso muita coisa para o convencer de merecer a felicidade. No tempo de Inverno em que Martinho deixava o Torreo Vermelho para ir aproveitar o que restava dos solares em runas, podia dizer que era um tempo de felicidade. Aprendia coisas, at como se fazia uma sopa e a maneira de a temperar e torn-la saborosa. Tambm se tornou muito conhecedor das crianas, das suas doenas sazonais; e de como eram ensinadas sem demasiado carinho porque elas, se so saudveis, no gostam de ser protegidas, isto ridicularizava-as. No lia nada nem levava livros com ele. O que encontrou numa gaveta do quarto de rapazes doutros tempos, foi uma edio meio desmantelada dos contos de Conan Doyle, com gravuras admirveis dum autor de quem, decerto, ningum ouvira falar. A celebridade tinha-se inventado depois, provavelmente quando Lindberg atravessou o Atlntico. O poder era muito mais tentador. Quando voltava, caam-lhe em cima todas as preocupaes em forma de contas a pagar, cartas a responder e solues a dar aos problemas de famlia. A me, Paula, queria divorciar-se, a cozinheira ir embora, Elisa morria com a doena de corao que tinha h muitos anos, para mais a ala oeste do Torreo Vermelho tinha aberto uma fenda onde cabia um brao. Era preciso repar-la quanto antes. - no que do casas velhas - disse o doutor Assis, que, entretanto, se via sozinho, vivo e com a fortuna muito comprometida. A mulher morreu discretamente como tinha vivido e pode-se dizer que nunca tinha conhecido Maria Rosa nem ningum l de casa. Suportava sem aprovar nem desaprovar a ligao platnica que o marido tinha com a senhora Nabasco. No podia venc-la, nem queria. Era uma loira deslavada, elegante maneira inglesa, das que falam de flores e do tempo. Todas as noites o doutor Horcio Assis saa para passar uma hora na sala de Maria Rosa, se que no jantava l e lhe levava chocolates com recheio de licor. - No tanto o bombom que me agrada mas a maneira como o fazem. um mistrio! H gente muito esperta neste mundo e no faz mais nada seno bombons de licor. - Fazem amndoas tambm - disse Martinho. - Parece-me ainda mais difcil. Nesse tempo ainda Maria Rosa vinha para baixo, depois deixou de vir. Dava-lhe prazer descer a escadaria do Torreo Vermelho, de maneira lenta e sensual, como nos filmes a preto e branco. Mulheres
impressionantes, com um ar parvalho de estarem a ser filmadas e tendo na cabea um papel completamente falso. As ladies, as ingnuas, as rameiras vestidas de vermelho, e isso bastava para as denunciar. Em Nova Iorque, nos anos cinquenta, uma mulher digna no se vestia de vermelho mas de lam, fino como uma meia. Maria Rosa gostava de vermelho; todas as vezes que olhara para o Torreo, como vizinha (porque o cutileiro ainda no estava falido nem vendia a casa), era para se interrogar. Que vermelho tinha sido no princpio? Um vermelho Chirico que se via tanto na paisagem italiana? Ia bem com os ciprestes altos e quase negros. No seu tempo (gostava de dizer "no meu tempo", como quem conta os passos demoradamente) ela ia com o marido para as termas italianas, desfrutava do tratamento de guas como se fosse algo de sacerdotal. Os hotis tinham p-direito imenso, custava olhar para o tecto. E, nos balnerios, encontravam-se pessoas clebres, a filha de Mussolini com as crianas, a senhora Ciano. Sem querer, Maria Rosa copiava-lhe os vestidos dum bom-gosto perfeito, s para eleitos. - Burgueses ricos - disse Filipe Nabasco, com aquele desdm portugus, em que paira uma ideia de perfeio como a de Deus ao criar o mundo. A aristocracia acabara; havia moleiros, que tinham mais ar de prncipes, do que gente de sangue azul. Martinho j no os apanhara a chegar, lado a lado, mulher e homem, para pagar a renda do seu moinho. Eram belos como no sei qu, honestos como Tancredo em Bizncio. - Burgueses ricos... - disse o Nabasco. O fascismo era uma vontade limitada s coisas, o fim da noo do divino. - pena eu no ser nova. Agora todas as mulheres se vestem de vermelho. Perdi a minha cor, e para nada. - Mas eu via-a de vermelho muitas vezes - disse Martinho. - No me desdigas. Nem tudo o que se diz para ser provado. Era isto que a tornava inimitvel. A mulher do doutor Assis no podia igualar-se a ela e talvez sentisse prazer em mandar o marido ador-la todas as noites. Assim ele aprendia quanto era insignificante e voltava resignado e muito mais capaz de ser um bom marido. O pas estava a funcionar sob a fresca maneira dos polito-cratas. J no era uma arte confidencial, era um desempenho de palco, com maquilhagem, provas no alfaiate recomendado, cores conforme o conselho da televiso. O corte de cabelo tinha que ser apropriado, o colarinho italiano, o padro imposto pelo costureiro. Se bem que em Portugal as coisas fossem tmidas e pouco favorecidas pela instruo popular que no percebia de modas, nem dos chapus de S. Magestade Isabel II. Para o povo, o politocrata era um mando, espcie de polcia-mor, que punha escutas nos telefones e podia ouvir os suspiros de amor dos amantes.
Tratava-se de substituir Elisa, a fiel mordoma, e tinham medo de contratar algum que viesse para informar e ler as cartas antes de as entregar, no numa salva de prata, como era a antiga praxe, mas de mo para mo. Molhada, esfregava-a no avental. - Ponho o correio na mesa? Voc que acha? - Era o vous francs que se pegara lngua de imigrao e que grassava em todos os sentidos, quase como uma continncia feita democracia. Judite saiu da sua paixo em grande classe, completamente soberba, como se carregasse manto e coroa. Queria ser servida pela esquerda e que a tratassem por madame. - Se no for assim, no compreendem, nem aprendem outra coisa, nem nada. - Olha que porra! Eu tenho o nono ano e a carta de conduo. A nova empregada sentou-se bruscamente e acrescentou que no queria servir burgueses. No se praguejava, falava-se mal. E j ningum se ria com a ingenuidade do boal, nem com o erro da gramtica do iletrado, nem com a cincia licenciosa do aprendiz da cultura. Mas as baterias do sarcasmo incidiam sobre os maiores, a pobreza visava mais alto, o permetro da sua consolao alargava-se at ao ministro, ao Papa e at ao reino dos cus. Tudo era tolerado desde que se pagassem os impostos e no se provocassem engarrafamentos nas estradas. Sobre tudo isto, uma moral de efeitos caricatos compunha o quadro duma sociedade em que prevalecia o princpio filosfico: "O homem s faz asneiras quando quer ter razo". O Torreo Vermelho datava dos anos trinta, quando a filha mais velha do cutileiro foi pedida em casamento por um grande importador de farinhas. Era um negcio prspero comeado na guerra de 1418 que aproveitou nesse sentido a pessoas pouco escrupulosas que ficaram de repente ricas. Subiram na vida que era um disparate, como diziam os Cunhas, serventes por tradio. Ado, Miguel e Salvador nunca se afastaram da rea dos grandes proprietrios, como os Nabasco que evitavam chamar-se capitalistas. De resto, capitalista era um adjectivo desconhecido quando a moeda era ainda relacionada com a moralidade. A fortuna era avaliada em bens ao luar, terras e a produo delas. Ado, Miguel e Salvador tinham a confiana dos Nabasco, o que era melhor do que ter o nome deles e as preocupaes da sua fazenda. Foram felizes, com famlias numerosas e subiram na vida, chegando a polcias, carteiros e enfermeiros, sem nunca aspirar a ter carro e dinheiro no banco, nem amantes, a no ser qualquer amiga de ocasio a quem ficavam gratos toda a vida. Quem queria obter um favor dos Cunhas era favorecer essas amantes sem histria; no h como a lembrana de amores ocultos para acentuar uma gratido. O trigo tinha subido depois da guerra e faziam-se transaces muito rendosas com as misturas de aveia e dizia-se que de ossos humanos. A filha do cutileiro foi bem servida dum noivo que se
apresentava como um grave homem de negcios. Era baixinho, falava muito da educao que dava aos filhos e estes, no se sabe porqu, detestavam-no. Quando o cutileiro faliu passou a dar mulher um tratamento indecoroso e s a deixava vestir-se bem quando saa na companhia dele. - um biltre - disse Maria Rosa. - Sabes o que um biltre? - Eu sei, um sem-vergonha, um safado ou por a. Caiu em desuso essa palavra. Martinho Dias Nabasco estava na cabeceira da mesa a fazer bolinhos de po e a olhar para Judite de fugida. Ela parecia muito vontade e mandou abrir as portas de vidro para o jardim. A sala ao lado era destinada conversa depois do almoo e oferecia a vista das flores e das grandes rvores de sombra. Martinho pensou se ela estaria curada da paixo que tinha pelo carismtico Andrade a quem Bento Webster Soares prestava homenagem sempre que podia. No entender de Martinho, o excelente Andrade era um homem cruel, s que no o mostrava. Uma vez que um gato se meteu no motor do carro dele para se abrigar do frio e saiu de l espavorido depois duma viagem infernal, ele contava isto a rir-se com prazer. Martinho ficou com a impresso de que ele era uma pessoa a evitar. Admirou-se de nunca ter sentido cimes com a paixo de Judite por ele. Sem deixar de o amar, o que no estava na possibilidade do seu controlo, ela sentia-se ameaada. A histria do gato tambm fizera efeito nela e ocorria-lhe nos momentos mais dolorosos da sua vida. Quando julgava que estava no limite das suas foras e a ideia de se matar lhe parecia fcil, como adormecer beira da gua, o gato saltava seguido do riso do homem que ela tinha preso no corao com ganchos de ferro. Um dia tudo desapareceu. O sinal foi assim: estava sentada diante da porta aberta para o jardim; o dia estava quente mas chovia como se um vu ondulasse no ar. Teve a noo de que ele entrara e ficou um momento parado atrs dela, sem se anunciar. Foi um momento frgil, tudo podia acontecer como correrem para os braos um do outro, gemendo de paixo e de prazer. Ela levantou-se, virou-se e viu pela porta que dava para o trio, uma grande porta de ferro-forjado, a figura do ajudante do capito Cocq. Parecia estar a presenciar a cena. A porta estava fechada, fechara-se com o toque mole do trinco, mas ela viu-o pelos espaos entre os flores de ferro. Viu como se as plumas do chapu dele se agitassem devagarinho. - Que surpresa! Toma um caf comigo? Eu ia agora tomar um caf. - No, minha senhora. Ela pensou que na grande mo que ele tinha a xcara devia parecer minscula. "Porque fazem as xcaras to pequenas quando so mais para os homens do que para ns?" Sentiu-se de repente muito vontade, cheia de foras e alegria. Estranha alegria. Ele podia cair morto ali e Judite no deixava de sentir-se confortvel, com a chuva a entrar pela porta aberta do jardim. Quase no se viam as sebes da "lgrimas de princesa" com flores derrubadas, rosa e brancas. Talvez no estivessem l e, sem que ela
soubesse, acabassem de ser cortadas. Era uma iluso de ptica, ou qu? Cingiu-se charpe de l e avanou para receber a visita. Ele no estava l. E do lugar em que ela se encontrava no podia ver o tenente mas s a massa de personagens menores que se preparavam para ouvir a ordem de marcha. Preparar-se uma maneira de dizer: cada um fazia o que queria, falava, tocava tambor, cruzava as suas lanas sem nenhuma disciplina militar. E isso do capito Cocq estar a apontar o caminho a seguir, no era verdade. Estava a mostrar a sua estatura, a sua faixa vermelha e os sapatos de laos. Judite, a primeira coisa que fez foi ir olhar para a Ronda da Noite. "Nunca o tinha visto assim" - pensou ela. A menina, no meio daquela turba preparada para se bater ou simplesmente desfilar, no estava assustada mas meio divertida. Estava vestida como para um baile, mas a galinha morta cinta, no se podia dizer que fosse um enfeite, um smbolo; talvez uma nota de humor, como o pintor usa nos seus prprios retratos, apanhados de surpresa. Como se ele dissesse: uma galinha cintura duma rapariguinha pode no querer dizer nada. um motivo para um espao vazio. J pintou os dois paves mortos (eu diria antes perus) para um dia de festa. E uma menina olha para eles, com o mesmo ar de divertimento, como se esperasse v-los voar. E h aquela outra ave suspensa pelas patas num prego, espera de ser depenada para o jantar. Ele pinta tudo, sem imaginao ou escolha. Pinta o que tem mo, pessoa, animal, flor; qualquer coisa que mexe ou que se oferece ao olhar. Pinta por vocao, por mania, por encomenda, por riso, por prazer. As suas cenas bblicas no so dramticas? A companhia do capito Cocq uma patuscada de bebedores de cerveja? Ele no est ali para filosofar, mas para se embebedar de tinta e de glria. Porque, ele, Rembrandt, admirado, procurado, chamado a pintar a sua cidade, os seus bur-gomestres, as suas riqussimas senhoras de extraordinrias golas brancas. Cristo parece um pedinte espantado de se ver subir aos cus? Andrmeda no se parece nada a uma virgem entregue ao apetite do drago? Teve j quatro ou cinco filhos e os seios seriam flcidos se no fossem elevados pela traco dos braos? No importa. No um esteta, um homem fascinado pela realidade e no um servial da arte. Pinta carcaas de bois no matadouro como se estivesse a ouvir uma histria de enforcados. E a degolao de S. Joo Baptista com a cabea do profeta no cho faz-nos estremecer e querer ving-lo. O festim de Ester tem uma melancolia de quem sabe que o desejo se consuma na perda da liberdade. O ceptro perdeu a sua dignidade, parece mais uma faca de trinchar. Ester, perfumada por dentro e por fora, cede splica do seu povo e , como Bethsab, uma vtima vingadora. Maria Rosa, no dia em que recebeu a Ronda no Torreo Vermelho, disse que esse foi o dia mais feliz da sua vida. J tinha dito isso antes e disse o mesmo muitas vezes depois. Martinho lembrou-lhe isso. - O dia mais feliz da minha vida foi quando a minha me casou e foi viver para longe com o marido da Marinha. Eu tinha medo de que ela me levasse e eu entrasse no regime da tropa, a levantar-me s seis da manh e coisas no gnero. Depois nasceram os cadetes, os meus irmos, e fiquei mais
sossegado. No os vejo muito mas acho que so bons rapazes. Levam com o cinto de vez em quando mas isso s lhes faz bem. um hbito saudvel e no h assim tantos hbitos saudveis. - Cala-te, menino, no verdade nada do que ests a dizer - disse Maria Rosa. Ria-se das coisas que Martinho inventava. "Se no fosse o que se inventa, a vida era muito aborrecida" - pensava. Quanto aos cadetes, bonitos rapazes loiros, quase iguais, e cabelo escovinha, pertenciam a um gang de malfeitores de elite, vestiam-se de preto e usavam botas com atacadores que eram como uma arma. Um pontap daquelas botas matava uma pessoa. Mas isso foi quando tinham quinze anos ou pouco mais. Estavam prontos a assentar e a tornarem-se em politocratas de grande envergadura, conhecidos pelas opinies radicais mas com sadas de fuga. Desprezavam o aparelho partidrio, sempre beira do stress e que usa as sondagens como quem usa calmantes. Martinho no fazia nada para se encontrar com os jovens irmos que eram mais altos do que ele meio palmo seguramente, e que transmitiam a Paula, a me, a ideia de que Martinho pertencia s estrebarias do pas, e que tinha o complexo de Augias. O rei Augias fora quem mandara a Ulisses limpar as estrebarias que h cem anos no eram limpas. As estrebarias eram as contas do Estado e a formidvel e fumegante bosta da corrupo. O que eles no sabiam que, para o provinciano, ser mal julgado na capital, como um primrio cuja educao se fez na base dos dez mandamentos, um ponto de honra. O pas real era feito de provincianos com olhos na nuca, que conhecem tudo e se servem do que adequado para no terem problemas com o prprio Deus. Enquanto que o politocrata se limita a no ter problemas com a polcia. Quem era Deus para um feudal como Martinho Nabasco? Ele costumava dizer: - Se uma coisa no existe, no merece contradio. De facto, um absurdo o que se passa com os leigos deste pas: dizem que Deus no existe e querem prov-lo. Mas tm tantos argumentos como os crentes para provar o contrrio. Recomendava como leitura as Lies sobre a Teoria Filosfica da Religio, de Kant, mas ningum lhe ia seguir o conselho havendo tantas coisas para fazer; e tambm Martinho folheara apenas o tal livro, retendo algumas frases para as ocasies, como, por exemplo: "Onde h um grande entendimento h uma grande indeciso", o que no se podia assegurar que fosse do prprio Kant. Como novo feudal, Martinho comeava por ter a mania das grandezas. Lanara-se na reconstruo dos solares como se dum compromisso se tratasse, e havia quem o chamasse de monrquico republicano. No andava longe da verdade quem assim falava, num desses repentes de esprito to prprio dos portugueses recalcados. Martinho tinha, no seu "delrio discreto do majesttico", uma cada vez maior condescendncia para o espectculo de corte, o cerimonial com polcia a cavalo e render-da-guarda e coisas assim, sabendo
bem que tudo isso mais provocador do que dissuasor. Mas h perodos da Histria, se no sempre, em que a provocao um direito bem ou mal exercido. Ela quebra com regras que esto prestes a carem no seu oposto, a libertinagem, e do azo inovao. A libertinagem era uma regra tambm e favorecla precipita o regime favorvel aos negcios. A Ronda da Noite personificava o novo feudal. No imenso quadro nada estava concludo; nem o desfile, nem os lugares de cada um, nem at os retratos, de resto pagos de antemo. Havia na Ronda um esprito grandioso mas pouco convencido. Sem heroicidade, apenas eloquente quanto sua definio do desejvel. O capito Cocq, futuro burgomestre de Amesterdo, imita a gravidade do comando; enquanto que o seu lugar-tenente o prottipo dum genro ideal: brilhante, bem moda, elegantemente vestido no seu fato amarelo-palha, e com a petulncia da obedincia, que uma petulncia como outra qualquer. A petulncia da obedincia o que faz o cl perfeito. Os jovens cadetes que se moveram no sentido da poltica, tinham esse esprito. No condiziam com o Torreo Vermelho tendo nascido numa maternidade e vivido sempre em condomnios fechados com um espelho de gua usado apenas pelas crianas. Os cadetes no tinham tempo seno para jogar um pouco de golfe aos domingos de manh, enquanto o campo no era invadido pelos ricos de segunda escolha que punham o bon ao contrrio para se mostrarem dinmicos e com menos cinco anos. O condomnio de luxo era um labirinto de corredores como arroios que iam desaguar cave onde estavam as boxes com carros que pressagiavam uma loira alta e vestida correctamente, porque os homens no gostam de moda que d na vista seno o essencial, os cabelos e as unhas. J no estava em uso a "moda de ontem", o que d o cunho da elegncia que a falta de novidade com atitude. Agora tudo era brilhante, sem sotaque, ligeiramente indecente mas com um toque conservador que vinha do bero. O Torreo Vermelho no era nada disso. O fantasma do cutileiro e dos seus amigos importadores de farinhas, andavam por l com os seus colarinhos antiquados e as unhas em mau estado. Sabiam dar ordens e no se importavam de ajudar a carregar um fardo. A sua seriedade era proverbial, tratavam os empregados como famlia e dispunham deles para uma pequena troa de superiores, imprevisveis no prmio e no castigo. Martinho disse que os cadetes eram ovos de dinossauro, que nunca chegariam a chocar. - O mundo anda mais depressa do que se julga e eles ainda no saram do ninho e tudo mudou. - O que mudou? - disse Maria Rosa. - Os novos feudais, como tu dizes, no vo mexer em nada. Todos se aproveitam mas ningum quer mudanas. Ningum manda, as alianas so perversas, ningum se atreve a subir sem para-quedas, a anarquia tem a prioridade porque corrompe sem parecer controlar.
- um bom discurso, av. - Tu foste um professor, meu querido patife. - O segredo de controlar as investiduras. A pacincia e a modstia so o principal. No acusar, no vencer demasiado, deixar que se crie a indeciso que modela a verdade necessria. Diga-me uma coisa: ainda gosta de Catarina da Rssia? - Ah, sim. Todo o portugus tem um russo no clon transverso. No se digere nada sem isso. - Sabes o que dizes, ou s um improviso feliz? - H muito de sabedoria instantnea no que dizemos. - Mudou de tom e perguntou: - Tenho fome. Que h hoje para o almoo? - Eu que sei? S como arroz seco e fruta. Mais nada. Gostas de mim? - No para comer. - Porque se gosta das avs? Proust gostava da av dele. A histria do lobo mau anda por a. A sexualidade difusa anda por a. Se vires um rapaz desejvel gostar das avs, j sabes que elas lhes servem de garantia sexual. A convivncia com as avs inspira ideias de castidade. - Isto est a tornar-se difcil - disse Martinho. Tinha posto o seu cachecol vermelho, e isso tinha qualquer coisa de litrgico. Gostava imensamente da av, ela tinha um esprito racional. As pessoas ligam-se entre elas graas a um entendimento racional e no por sentimentos que so sempre mesquinhos, como o amor. No h nenhum amor que no seja mesquinho, pensava ele. Pensava no seu caso com Judite e na maneira como ele a tratava: com um cime infame, que no era capaz de dominar. Ela estava sua direita, mesa, e Martinho continha-se para no a espancar, de repente, fazendo tombar a cadeira atrs dele e apertando-lhe a garganta com toda a fora. Aquilo era arrasador, depois passava. Judite tinha a noo do perigo, mantinha-se calada, mexendo nos talheres de maneira imperceptvel. Se dormissem no mesmo quarto alguma tragdia j teria acontecido. O espao era necessrio ao trato conjugal. Para extremar as diferenas - conclua Martinho. Grande parte dos crimes domsticos ocorriam na estreita convivncia de pessoas em crise, por motivos sexuais ou econmicos, mas sempre desencadeados na provocao da vida em comum. Os tectos baixos favorecem as paixes, disse Corbusier e desde que se cortou um piso altura dum prdio de rendimento, as pessoas acharam-se enjauladas em espaos muito limitados. E se os anacoretas viviam em espaos exguos, viviam ss. Era difcil para um homem, neste caso Martinho Nabasco, perdoar a Judite a paixo dela por outro. Tinha momentos de clera to arrebatadora que olh-la nos olhos implicava um perigo de morte. Casara com ela mais para agradar a Maria Rosa do que movido pelo amor. E, agora, comportava-se como um marido trado, vendo em tudo sussurros maldizentes e chegando a decifrar palavras de troa
que na realidade no eram proferidas. Nunca entrava no quarto de Judite e, aos poucos, estabeleceu-se um pacto de renncia aos deveres conjugais, criando-se um abismo que no seria mais ajustado aos desejos. Era, de resto, impossvel que o desejo obedecesse emoo das antigas praxes da intimidade. Judite aparecia-lhe vestida para sair e nunca mais no abandono da toilette da manh, os cabelos ainda soltos, os olhos sonolentos. Ia-se encontrar com um outro - quem era? Embora muita gente soubesse daquela ligao sem qualquer entendimento fsico, Martinho recusava qualquer informao nesse sentido. Sobretudo dispensava ao excelente Andrade o melhor da sua simpatia. Elogiava-o, carregava-o com o peso da sua lealdade. Dava jantares em que exigia que Judite estivesse presente, dando-lhe o lugar junto do amante e alegrando-se de os ver juntos. O rosto crispado de Judite parecia diverti-lo. E quando todos se retiravam e as brasas se apagavam sob um manto de cinza branca, no fogo, Martinho pedia-lhe que ficasse na sala. Sabia que ela sofria e isto despertava nele uma fria mesquinha, no perdia a ocasio de a rebaixar, de apontar-lhe a ignorncia, o mau gosto e o envelhecimento. Judite tinha trinta anos, ele dizia-lhe: - Os teus melhores dias passaram. No vale a pena gastares dinheiro em vestidos. At no tens to boa figura que o justifique. Ela ouvia-o calada, quase indiferente. A indiferena ao amor que a arrastava estava a consumi-la. Chegava a sentir prazer na ideia de se matar, sem testemunhas, como se acontecesse; uma queda, um mergulho no mar, pouca coisa. Era uma dor que no acabava mais; sempre a rasgar-lhe o peito, sempre a encher o lar duma exclusiva verdade, o desejo. No era amor mas alguma coisa ainda agarrada terra dos primeiros animais de sangue quente. Um desejo de violao e de prazer, sem consequncias seno ainda o desejo. Ele tomou a deciso de a matar, e mais duma vez, ao entrar na garagem e tendo Judite descido primeiro, avaliou a maneira to simples de a esmagar contra a parede. Judite percebeu e fez disso um motivo de o deixar. Porm, no se deixa algum que nos segura quando no ar andvamos em cabriolas. Tudo havia de passar e o esquecimento era como fartura de po depois de fome que nos toldasse o juzo. O amor uma palavra para muitas emoes cujas razes esto encobertas e entrelaadas. Foi um tempo doloroso para ambos, em que a presena e a ausncia eram motivo de condenao. O desprazer em que andavam alimentava a guerra dos sentidos. Judite tomou precaues para no terem que recordar que eram marido e mulher e que o seu compromisso equivalia a direitos. Judite comeou a pr em termos prticos a separao e da em diante teve uma linguagem jurdica. Munida da lio legal, o caso adquiriu uma realidade que at a no passava dum passo a desmentir. Mas todos os pequenos avanos no litgio, por efeito duma coerncia interna, tornavam-se razes definitivas e inflexveis. J no compreendiam uma reconciliao, ainda que deixassem para depois o ttulo de "bons amigos".
Na ordem do desfile, na Ronda da Noite, no h ainda uma ideia de felicidade. Cada um prepara a sua actuao mas, ao mesmo tempo, isso no passa dum progresso para o contentamento. No se percebeu ainda qual a aco a executar. Ser um desfile? Ser uma marcha nupcial ou simplesmente de tipo ritual? A criana que desliza pelo meio da turba mantm o gracioso ar de farsa, de brincadeira; quando ela chegar ao outro lado do quadro, talvez tudo j tivesse mudado. A ordem do capito Cocq no foi ouvida e todos recolheram a suas casas. A bandeira foi arreada, o lugar-tenente mais uma vez sacudiu o rebordo das suas galochas e o seu contentamento foi substitudo pela desiluso. A sensao de estarem a preparar-se para qualquer coisa de magnfico na sua finalidade, submeteu-se ao desejo de comer e de dormir. O impulso para a aco esmorece j quando a pequena fada saiu do quadro e se precipita para fora. Ela a musa que serve todos os artistas e deixa a cena quando todas as dificuldades esto resolvidas: quem tinha em vista um casamento, casou; quem se lanava num desfile de festa ou de combate, j o fez. Mas, no momento em que tudo est por decidir, a felicidade ainda est l como se dependesse da ordem do capito Cocq para dar incio parada. Quem no sabe que o homem h-de morrer? S a menina, vestida para um baile ou para o seu prprio enterro, no sabe. O resto do grupo est ali em equilbrio entre os seus sofrimentos e as suas alegrias, e a sua vida tem um significado, a Ronda da Noite tem um significado - o de tornar inofensivo tudo o que fere e tudo o que salva. No momento em que Judite punha o p na beira do quadro, j a caminho dum final da sua paixo, j a entrar na obscuridade, o ponto em que a felicidade se encontra com a felicidade, como dois rios que se juntam no arrepio duma nica onda, ela entra na eternidade. Perde a sua humanidade mas recebe qualquer coisa de merecido, o direito de ser parte do que no existe e, portanto, lavada de toda a contradio. Todavia, ela no tinha atingido ainda a extremidade da Ronda. Fechava-se chave de noite porque era assaltada por terrores que a deixavam acordada. Pensava que ia morrer s mos de algum a quem ela magoara muito, ainda que no se lembrasse quem era. Talvez Martinho tivesse um plano para se livrar dela e no lhe dar a liberdade. Seguia com ateno tudo o que ele fazia; a mais pequena mudana de hbito nele, a enchia de apreenses. No Torreo Vermelho havia um cofre grande que no fora retirado devido s dimenses que tinha e Judite no passava diante dele sem estremecer. Era de ferro, com desenhos dourados sobre a pintura verde e cabia l dentro uma pessoa. Ela comeou a imaginar-se l fechada, a sufocar e a entrar em agonia. Ningum dava por isso e um dia s encontrariam um pouco de p seco e os ossos que nunca se desfazem at na cremao dum cadver. - Quais so os ossos que no se desfazem quando um corpo arde? - perguntou, subitamente, mesa. Tinham convidados e algum deixou cair no prato o garfo. - Ningum sabe?
- No est aqui nenhum mdico legista - disse Martinho. Olhou para ela com comiserao, mas indignado. Quando era que aquilo ia acabar? Porque que Judite no se embebedava? Era mais fcil para todos. Era verdade que preferia que ela morresse ou que fosse internada por transtorno mental. Mas tudo obedecia a um ritual demorado, uma pessoa no desparecia assim sem deixar testemunhas e uma poro de papis. Usava agora para com ela dum cinismo que pretendia poupar a si prprio o sofrimento. Um dia em que ela apareceu para sair com penas de pavo no vestido, Martinho disse que as penas de pavo do m sorte. Ela arrancou-as uma a uma e o decote deixava ver os seios nus. Ele disse simplesmente que se despisse mais ainda porque no gostava de ver as coisas pela metade. Outra vez, como o penteado lhe pareceu escandaloso, com mechas verdes, ela rapou o cabelo completa-mente e durante um ano dizia a todos que fazia quimioterapia. Pensava-se que ela ia morrer e evitavam falar nisso a Martinho. Algumas mulheres disponveis faziam-lhe a corte, convidavam-no para sair. Ele batia-lhe. Pensava que Nero e Calgula ficaram na Histria como monstros, mas no se sabia que mulheres eles tinham. Calgula amara muito a dele, isso era sabido, e era decerto dominado por ela. Razo de sobra para a depresso dum Csar. Ameaava p-la a tormentos para saber o que fazia ele am-la tanto. - No sei como eu reagiria se fosse Csar - disse. Maria Rosa no se apercebia de todas as horrveis desordens do casamento que, no entender dela, era como qualquer outro. - Um bom casamento no existe. O melhor aquele onde as crianas gritam em voz baixa - rematou ela. - Felizmente o casamento no para toda a gente, seno dispensavam-se as guerras e os filmes de terror. Passavam algumas horas de trguas juntos e Martinho conseguia esquecer-se que tinha um ogre em casa e que ultimamente Judite tinha vises. Via Martinho passar diante dela com uma mulher desconhecida. Outras vezes acusava-o de lhe roubar roupas e jias para dar a uma amante. Mandava a ela prpria flores e fingia receber telefonemas de algum muito ntimo. Pensava que ele tinha filhos ilegtimos que educava passando com eles muitas horas do dia. A intriga crescia entre eles e j no era possvel recuar duma mentira cada vez mais tecida com a verdade. Havia, no entanto, um ponto que no abordavam: a morte violenta de Estrelinha e a condenao do pai que cumpria pena h quinze anos. No falavam disso. Porm, a ameaa rondava e Martinho punha-se de repente a fazer contas. - Quantos anos tinhas quando vieste para c? Dez, ou doze? - Tinha feito a comunho no dia da Assuno. Vim em Outubro, com doze anos. - Ela falava, calma, ocupada a percorrer o seu calendrio, mas contendo-se para no varrer tudo com uma clera cega. "Bandido! - pensava. - Quer apanhar-me como a filha dum criminoso. No sou a filha dum criminoso. O meu pai era um homem srio. L por ter uma amante no deixava de ser um bom homem." Amante,
no era palavra do seu vocabulrio. Estava carregada de reprovao e foi modificada para concentrar nela o acto da lapidao que no sara dos hbitos tribais assim h tanto tempo. Dizia-se amantilhona ou fmea para exprimir desprezo e pelourinho. As coisas foram mudando e agora eram mais consentidas, se no aprovadas no seu sentido libidinal. Num dos jantares no Torreo Vermelho, estando presente uma aristocrata italiana acompanhada por um rapaz bonito como um sol, ela disse: - No o meu marido mas o meu amante. - Fez uma pausa, a que ela deu o encanto dum olhar saudoso. - Marido no tem o mesmo sabor de amante. Diz-se "mio amante" e as pombas voam como a neve em Maio. Ela estendeu os braos para compor o xaile nos ombros e parecia que lhe nasciam asas. Judite riu-se para esconder a confuso. Vinha duma famlia pobre mas sem misria, desse meio onde comea a burguesia que l as dietas alimentares e compara as filhas com as rainhas de beleza. Mas havia uma classe estvel, como a de Maria Rosa Nabasco, com dvidas mas crdito tambm; e para quem a provncia era um tipo de herldica, com ces e cavalos soltos num prado. Orgulhavam-se de no ser snobes, de vestir o trajo das lavradeiras, garrido, com muito ouro ao pescoo e nas orelhas. Danavam lindamente airosas danas populares e conheciam toda a gente dos arredores, quem nascia e quem morria, quem se casava e com quem. Como tudo mudava, desertavam das velhas praxes que se foram tornando romnticas, dispendiosas e sem pblico que as respeitasse e aplaudisse. A provncia no acompanhava a euforia do conforto e a iluso da fortuna. Para Maria Rosa, que sempre detestara a aldeia, os caminhos de lama e os dias de chuva interminveis, no houve mudana. S Martinho se interessou em conservar os solares e possivelmente na inteno de fazer negcio com eles. Os Nabasco tinham a veia especulativa, e o primeiro olhar era avaliador. Isso vinha de longe. No emprestavam a juros mas invejavam quem o fazia. E, sobretudo, cuidavam a aparncia e nunca aceitavam estar vencidos pelo destino e pelas mulheres. Preferiam sofrer calados a ser falados em pblico, nem que fosse por coisas vantajosas. H na timidez da personalidade um dilogo com qualquer coisa que no pertence razo. Em suma, os Nabasco eram gente em que as naes confiam e que j existia nos tempos em que as guerras eram assunto de conselho e no de vontade viciosa e brutal. Os Cunhas, pessoal domstico de gerao para gerao, davam brilho casa dos Nabasco, at que por fim acabaram com empregos de polcias e carteiros, muito diferentes das suas origens sedentrias a que deviam o esprito curioso e confa-bulador. Martinho costumava dizer que era o ltimo descendente de alfaiates de Vale de Mouros, que cosiam bem e contavam histrias como cosiam. Mas no era verdade. O lado rabe estava mais presente nos Cunhas, sobretudo no Miguel, que mentia como uma cesta rota, sendo a mentira a sua arte de fico. Todos os irmos Cunhas tinham cantado para adormecer Martinho e tangido a viola para ele.
Tambm lhe ensinaram a andar de bicicleta e a encher cartuchos com chumbo e plvora. Tudo isto conversado com novidades e histrias pcaras que dava gosto ouvir. Gente que de ignorante no tinha nada e de gasco alguma coisa tinha. Pensando nisso, Martinho considerava que a sua infncia fora parecida dum conde no seu condado, de mistura com galgos e irmos colaos. Esse corao feudal voltava ao de cima, quando acalentava a ideia de se contrapor ao poder central, fazendo-se eleger contra a mar partidria e segurando pelas rdeas o favor do povo. Martinho podia ser um homem da actualidade protegido por guarda-costas, benquisto pelas mulheres e, o melhor de tudo, sempre ao abrigo de suspeitas que no passam alm das paredes do seu gabinete. O novo feudal um abenoado como o rei. Nada lhe pode tocar, tem dois juristas na sua corte e um negro que lhe faz os discursos. Mas, para Martinho, ser um feudal portugus parecia-lhe caricato. Sabia que, uma vez escolhido, teria que servir ambies e pagar exorbitncias pelo seu mandato; mandato de que era merecedor mas que sobre o qual pesa a m sombra duma coligao com idiotas e de notveis que preciso satisfazer. Antes queria o anonimato em que se aborrecia, do que a celebridade em que se humilhasse. A democracia, que na mocidade lhe parecia fcil e soalheira, acabava por despertar nele irritabilidade de casta que julgava no existir nele. Usava jeans com jaqueto com botes metlicos porque isto o situava na ambiguidade majesttica, necessrio num tempo de ambiguidades. Maria Rosa achava-o ridculo mas, se o ridculo mata, mata muito lentamente. O feudal punha toda a sua renncia numa gravata que no usaria num casamento de provncia. A sua maior ambio a de ir para a capital quando o citadino j lhe tinha marcado o bilhete de regresso. Seria sempre um estranho na Assembleia e um desgraado no restaurante onde todos se conhecem e o criado sabe os gostos de cada um. S ele no est informado dos dias em que se come cozido ou h carapaus fritos com arroz de grelos. Pensava ir comer empada e vol-au-vent, e sai-lhe bacalhau com gro, que ele detesta. Mas sentar-se mesa com um ministro vale bem um amargo de boca. No, Martinho nunca seria capaz de fazer trezentos quilmetros de avio em primeira classe para estar a horas com um inimigo que no corredor lhe dizia: "Isto de esquerda e direita no tem mais sentido" - e depois, desde a sua bancada, estilhaava a condescendncia de que dera provas. Como podia Martinho dizer, com um acento poltico inimitvel, que "a finalidade nos efeitos pressupe um entendimento na causa"? E bem podia diz-lo, porque ningum ia tomar a frase como um descarado plgio. Pelo contrrio. Iam cobri-la de ridculo, como um gato cobre as suas necessidades. No sendo cientista, nem escritor, nem empresrio, a sua vida estava entregue ao desmazelo mental. No tinha um dossier, nem um projecto, nem uma intriga a gerir. Depois de se apiedar de Judite, que
amava outro homem e se debatia com a virtude como se se tratasse da sua compatibilidade com Deus, Martinho achou-se numa mar de tdio. Dormia muito e ia ao cinema. Ningum supe que ir ao cinema na idade adulta significa um estado de humilhao. como falar francs na sociedade russa no sculo XIX, demonstra um desejo de seleco. O mesmo acontece quando toda a gente veste de igual e no quer distinguir-se seno pelo luxo da misria. Quando estava sentado na sala escura e via no ecr as figuras estereotipadas do bom e do mau, Martinho sentia-se defendido. Os seus preceptores tinham morrido, no tinha caderneta escolar nos estabelecimentos de ensino, ningum ia pedir-lhe contas da sua cultura, da sua f, da sua poltica. Qualquer zulu se exprimia melhor do que ele quando dizia, j livre de missionrios e de negreiros: "No quero ser europeu". Mas Martinho nem seria completamente sincero se dissesse que no queria ser portugus. O mais natural que no quisesse ser humano. No havia maior vergonha do que isso; era um sentimento para alm de toda a frustrao. Como ia preocupar-se com Judite e abrir-lhe a porta e a cama quando ela lhe pedisse? Preferia ser cornudo a dar-lhe esperana de felicidade que ele no suportava, sendo um homem no mundo onde parecia no haver progresso. Elisa morreu na sua mansarda, que estava numa confuso de santos e retratos, alm de remdios de que se encharcava como se fossem coisas de feitiaria. Para ela, os mdicos eram chamas que tivessem o poder sobre matrias diversas. J s respirava com a ajuda do oxignio, e o seu estado, como no se alterava, incomodava toda a gente. At Maria Rosa, que lhe queria como famlia, sentia uma pequena decepo quando lhe diziam que Elisa estava na mesma. Embora sofresse muito e cada dia fosse um suplcio, despertava sempre para qualquer mudana, ainda que fosse imperceptvel. Maria Rosa, que quando era nova servira no hospital como auxiliar benvola (ela dizia benvole, francesa), nunca vira tal tenacidade em se prender vida. Tambm verdade que, com os seus trinta anos e com uma farda engomada e de tecido especial, ela no se debruava sobre as suas pacientes levada por profundas cogitaes. Era-lhe poupada a parte mais repugnante, que era mudar as fraldas e lavar o doente, em geral reduzido a um saco de vsceras avariadas. Aproveitava, no entanto, da atmosfera excitante em que a morte era um acidente da natureza que tivesse a cumplicidade de todos. Para isso, um erotismo como um vnculo de sobrevivncia, corria como um rio nos longos e espelhantes campos de dor e de humilhao. Com o pretexto de que ela prpria estava doente, e fora no hospital que se infectara dum vrus que no era comum, Maria Rosa abandonou a sua misso caritativa. Fez por esquecer depressa os fenmenos que nunca quis averiguar. Bastava olhar para a rua, agitada pela travessia dos pees nas passadeiras, para sentir-se parte dum mundo absurdo, o mundo da morte.
Muitos anos depois, o estado de Elisa nas suas ltimas horas em que se debatia e chamava toda a gente para participar na sua preparao para o desenlace, levava-a outra vez para o hospital. As jovens enfermeiras esperavam dela algumas prendas, como de facto ela lhes oferecia, em artigos de toilette e vestidos caros que no usava mais. Roupa interior que no se via nas montras e que, quase em sigilo, se tirava das gavetas, coberta de papel de seda. S em desembrulh-la, um arrepio de prazer subia at nuca. Nesse tempo, os ricos eram ainda tomados como uma tribo privilegiada que, por qualquer capricho da natureza, era destinada a uma vida gozosa e simples. Viajavam e, ao primeiro olhar, via-se que no se vestiam numa costureira de ptio que tem a saia juncada de linhas. Quando se obtinha um sorriso dessas raparigas ricas, um sorriso educado e quase tmido, isso representava uma festa que s vezes abria uma parada de ambies no corao das modestas aprendizas, estudantes, empregadas de balco com namorados alm da sua condio. As mais bonitas jovens da cidade eram empregadas de balco na luvarias de luxo onde aprendiam a conhecer os artigos caros e uma clientela que os comprava sem perguntar o preo. E, no entanto, regatear um pouco era um hbito at dos mais abastados. Com essa ligeira escaramua entre o custo e o valor real, no havia acerto de classes. Fingia-se, ao introduzir na operao da compra uma hesitao que honrava o pobre. Mas, Marg, a cunhada de Maria Rosa, no cumpria com essa praxe. - Mande a casa, se faz favor. - E dava ainda uma volta nos taces para levar com ela o esplendor das vitrinas, com as prateleiras de cristal onde se expunha o melhor da casa. Era uma jovem instruda e que lia muito. Isso servia-lhe para tomar um lugar na famlia de excepo, que a conduzia a uma casta superior e impossvel de atingir pela escola do dinheiro. Ela nunca se havia de submeter disciplina do dinheiro e, praticamente, podia dizer-se que desconhecia o seu valor. Fumava muito e o tabaco era a nica coisa que ela pagava em metal sonante, como se dizia. Morreu ainda nova e deixou uma enormidade de tailleurs Chanel que causou espanto. Para muita gente, s nessa ocasio se soube que ela tinha dvidas de muitos anos e que se chamava Margarida. Todos a tratavam por Marg, at os criados, os filhos, a arara branca no seu poleiro dourado. Elisa disse que Marg seria lembrada por no gostar de torradas s barradas dum lado. Marg no teve um lugar na Ronda, o que era muito extraordinrio dado que ela e Maria Rosa tinham vivido a mesma juventude e disputado os mesmos homens, que no paravam de pr defeitos a cada uma delas. - Marg linda que se farta. No colgio deram-lhe um quarto s para ela, para segurana de todas ns. Vestia-se de homem no Carnaval e ia para a rua namorar as raparigas. Tinha muito sucesso dizia Maria Rosa. E o Nabasco retrucou que ela no lhe agradava. A beleza no ertica.
Ento o que ? teolgica. Maria Rosa admirava aquele jeito que tinha o marido para virar o bico ao prego. Para sair sempre bem das dificuldades. Como podia ignorar a vontade de apertar Marg nos braos e beij-la como se isso fosse um modo de vida? Ela tinha mais confiana em Marg. Em nome da antiga amizade e dos pequenos segredos em que se envolviam como se fossem caadores de borboletas. Uns eram raros, outros eram vulgares e no mereciam entrar para a coleco. Marg era mais adiantada no sexo, em teoria sabia bastante; contudo no estaria disponvel para conversas desabusadas. Era at severa na linguagem e no permitia insinuaes mais atrevidas. O motivo por que as pessoas se tornavam descaradas era porque no lidavam com o sexo seno num regime de ignorncia. L estava a pequena Saskia na Ronda da Noite, a deslizar por entre a companhia do capito Cocq, com o seu vestido de anjinho de procisso, e aquilo no tinha nada de provocador. Ningum reparava nela, mas toda a gente recebia a viabilidade de pecado que ela continha, absurda e real, com a ave morta cinta como um despojo de caa. s vezes, enquanto descia as escadas, Maria Rosa ia olhar para a Ronda e, apoiada sua bengala, olhava para Saskia vendo nela parecenas com Marg. "Era destas mulheres em que no se apaga o pecado original", pensava. No fundo, so precisas cem vidas para ajuizar duma pessoa. A voz de Elisa ouvia-se a chamar por ela, e Maria Rosa deitava-se de bruos na cama e cobria a cabea com a almofada.
CAPTULO VII TEORIA DO CU QUANDO NUBLADO Ele herdou uma pitada de sal no sangue. E as unhas tambm tinham, de certeza, sal bastante, isso explica porque as roa desde pequeno. Embora perdesse um pouco dessa mania, ainda era visto tarde, diante duma janela, a roer as unhas. Quem? Martinho, evidentemente. J no apresentava sinais de mutilao, com o branco do sabugo como a parte gorda dos chourios feitos com a fvera do cachao do porco, os melhores. Mas ainda se via bem que ele gostava do paladar salgado da carne humana. Tudo o que fizeram para o impedir de roer as unhas, foi em vo. Deitaram pimenta nos dedos; at caca de gato, que era nauseabunda, ou um pouco de leo de ricnio, o mais eficaz. Ele parava, entre soluos to profundos que pareciam vir directamente do corao. Depois, continuava. Elisa dizia que ele sentia a falta da me. No me explicas porqu disse Maria Rosa, sada do banho como Afrodite, s que perfumada de sabonete que devia cheirar a rosas mas no era verdade. Elisa sabia como a incomodar. No digo nada, pronto. Mas eu penso que ele se agarra aos dedos como a dez tetas apojadas. Martinho parava para se interrogar sobre a apojadura, que era o afluir do leite na fmea quente e sadia. Havia crianas pobrssimas que mamavam nas cadelas, e isso no era de estranhar. Cresciam com um entendimento retardado e dizia-se, como Elisa dizia: - Mamou numa cadela quando era pequeno. No era habitual mas acontecia. A me s chegava para a ceia, tinha a blusa molhada do leite que se soltava e punha a criana ao peito. Deitava-lhe por cima da cabea um leno de assoar e, na sombra, protegida, atenta aos rudos da casa, a criana mamava. Ela, a me, sentada na soleira, ou numa cadeira baixa, a falar alto, a contar vidas. Se a voz era zangada, a criana chorava. Ela embalava-a, ajeitando na mama a cabea do menino. Os morcegos comeavam a voar baixo, pressentindo o gado que saa para beber. Martinho nunca tinha fome. Movia a cabea a dizer que no, se lhe chegavam boca a colher da papa. Era preciso soltar a gua e a cria para que ele as visse aos pinotes e se esquecesse que comia. A Armanda, que tinha um gnio destrambelhado e no sabia tratar de crianas, dizia que Martinho parecia doido, com aqueles olhos esbugalhados para melhor perceber se o estavam a enganar. Estavam a engan-lo para o fazer comer, para lhe dar banho, para o fazer sair e apanhar ar. - um traste. Quando for grande h-de bater na mulher dele - dizia Armanda. Alta e delgada, parecia uma freira sem vocao. Criticava tudo e todos.
- Criticas tudo e todos. Assim no arranjas marido - disse Elisa, a bater os bolinhos de bacalhau e a prov-los com o dedo. - Os homens no ligam ao que dizemos, mas ao que cheiramos. - s uma porca. - Sou assim. Por fim encontrou marido e foi feliz com ele. Martinho lembrava-se que ela se ria do seu pequeno sexo com divertido riso e contava que via as mes beijar os filhos naquele lugar, doidas de ternura. - Eu no era capaz. - Sabes l tu do que s capaz! Um filho todo limpo como um diamante. Como Jesus nas palhinhas. "Jesus nas palhinhas" era como se dizia, compassivamente. A pobreza romntica ajudara muito a divulgar a f no redentor do mundo; a sua infncia, ainda que doutoral e sbia, encontrava-se com aquela mulher fcil de contentar com a criana no bero, no seio, no colo. Armanda no era uma sentimental, era uma me irada, e cheia de amor. Decerto estava na Ronda, s que sara a correr para virar no forno a carne assada e aparecer depois com os beios hmidos de a ter provado. As cozinheiras nunca tm fome, ela dizia, a censurar Martinho. - Parece um aprendiz de pasteleiro. Enjoou o doce para toda a vida. Era inteligente, muito inteligente, o que fazia que a casa respirasse esprito e opinio, s carradas. At ser j grande e ter dormido com raparigas, Martinho julgava que toda a gente era inteligente e que se podia falar de tudo, que todos entendiam. Quando percebeu que tambm havia pessoas estpidas, foi como se lhe tirassem um pouco de cor vida. Como se o cu no fosse s de um azul puro mas nublado e carrancudo. Armanda ainda viveu na Casa do Co e assistiu morte de Filipe Nabasco. Ela mostrou o que valia nessa ocasio e no se deitou durante trs dias. Mudava-o como uma criana e soprava-lhe o caldo antes de lho dar. Maria Rosa mandou que lhe dessem um pouco de terra para ela construir uma casa, o que foi feito e significou muito para que o casamento no tardasse. Martinho teve uma erupo de pele quando ela se foi embora e esteve a arroz cozido sem sal durante um ano inteiro. S quando se esqueceu de Armanda que melhorou. E, no entanto, Armanda nunca lhe dera mimos nem lhe chamava "coitadinho", que era o estribilho de Elisa. Elisa morreu no Torreo Vermelho e pediu os Sacramentos antes de morrer. Tinha ouvido dizer que, depois da extrema-uno, os doentes chegavam a recobrar a sade, e por isso exigiu ser ungida. Tinha uma ideia muito prtica sobretudo e percebia que o querer como a antecmara da aco. Mas no teve resultado a sua estratgia, e Elisa morreu, deixando a Paula a sua gargantilha de ouro e dois anis entranados. Paula ficou muito sentida quando a me lhe disse que Elisa j no fazia nada neste mundo
e que o quarto dela estava uma lstima. Ela tinha caixas com farrapos debaixo da cama que destinava a tecer mantas e tapetes. J no h tecedeiras, ela vivia na Lua. - A me muito crua - disse Paula. - No respondo a isso. Traz-me antes um refresco de limo. Todos eram um pouco seus criados ou uma espcie de papel higinico: servia-se e deitava-o fora. O mundo era complacente, cheio de regras auxiliares do sofrimento e das carncias humanas. Mas tudo isso era fingimento e egosmo pintado de cal branca. Sepulcros caiados com cal. Quando se percebia isso, a alma endurecia como uma bexiga ao fumo da lareira. - E no tempo em que vinha a casa uma mulher fazer a marmelada? Chamava-se Marquinhas e tinha as mos duras de tanto serem escaldadas com os marmelos cozidos. - Que diz, minha me? - Era uma coisa que no entendes. Um dos cadetes entrou no quarto e Maria Rosa no o reconheceu. Mas evitou que isso se percebesse. Quando se restabeleceu o bom viver entre Martinho e a mulher dele, j no tinham condies de intimidade e de confiana. Era como o tal caldo verde aquecido, perdia a frescura e o sabor natural. Tiveram uma conversa juntos e saram dela como pessoas que tinham cometido um crime que haviam de lembrar toda a vida e que esfriava as suas relaes. Mesmo entre os criminosos h uma aliana que se quebra se escapam justia. Separam-se para o resto dos seus dias, porque a impunidade no recompensa. O lao que se faz num acto culpado desata-se quando o perigo desaparece. H uma espcie de vergonha no xito da culpa. Martinho sabia que Judite resistira culpa com todas as suas foras. Mas no era inocente porque percorrera o caminho do desejo e perdera a inocncia do corao, ou da alma, se quiserem. Isto era o suficiente para funcionar como infidelidade. Mais ainda: a culpa pode unir, mas aquele que incorruptvel cria um obstculo ao amor. O amor precisa de perdo, e, perante Judite, o marido dela no tinha nada a perdoar. A perfeio no ertica, assim como a beleza. Ele talvez tivesse preferido que Judite corresse para os braos dum amante e voltasse, arrependida ou no, mas pronta a ser humilhada por ele porque a perdoava. Entre eles havia de estar sempre a decepo de no a poder desprezar. O desprezo uma brasa sob a paixo ferida. Maria Rosa tinha um afilhado que era "da Guarda", como ele dizia. Um belo homem, educado no cumprimento dos seus deveres e que casou por amor. Um dia a mulher enganou-o e ele mandou-a embora. Passado tempo, Maria Rosa soube que ele tinha recebido a mulher outra vez, e aquilo desgostou-a.
Mandou chamar o afilhado e perguntou-lhe porque a tinha perdoado. - Assim como assim, eu tenho que ter uma mulher e ela est arrependida - disse o homem, que ela achou bem tratado e at feliz. - Uma mulher arrependida no te envergonha? - Nem por isso. Maria Madalena tambm se arrependeu e Cristo perdoou-lhe os pecados. - Tu no s Cristo nem para l caminhas. Que dizem os teus camaradas? - No dizem nada. - Isso mau sinal. Era melhor que se rissem de ti. - No querem sarilhos. J no se vive como dantes a beber na taberna e a puxar o canivete do bolso das calas. Pensa-se na reforma e no na honra, se a madrinha quer saber. - Quero saber e no quero. Gostas assim tanto da tua mulher? - a me dos meus filhos e eles precisam dela. Eu tambm preciso dela. Uma cama vazia como a barriga vazia, resmunga sempre. Peo desculpa madrinha. - Est bem, mas no voltes c. Se precisares de alguma coisa, escreve. Elisa foi acompanhar o afilhado porta e disse, quando voltou, que ele era um desgraado, um bodas, mas que a mulher o trazia limpo e bem arranjado. Sempre era uma atenuante. Mas no impedia que fosse uma vergonha tudo aquilo. - Eu sou antiga e no entendo estas modernices - disse. Mas interessava-se muito mais pelo assado que estava no forno do que pela honra do afilhado que, no fim de contas tinha amigas por toda a parte e at filhos incgnitos ou l como se chamam. Por acaso, Elisa era uma grande forneira e nos trinta anos que tinha de casa raramente deixara queimar a carne. Mesmo quando se zangava, tinha o brio do ofcio e esquecia tudo para cumprir com as suas funes. - E a Elisa? - perguntavam a Maria Rosa. - Ah! J vai fazendo uma caminha assada. Ela caminhava para as bodas de prata ao servio. Conversas dessas tinham perdido o sentido, e o adultrio igualmente. E at nas aulas de Histria se prestava pouca ateno aos amores de Leonor Teles. Seria mais interessante provar que ela usava calcinhas e contraceptivos. Um dia em que se soube que as damas romanas utilizavam como preservativos bexigas de peixe, ningum pestanejou na sala, nem ningum se riu. Eram formidveis, os romanos, foi a ideia que ficou, pondo-se de parte o imprio e o assassinato de Csar, o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens. Os grandes acontecimentos pareciam distantes e irreais quando comparados com o joelho esmurrado do nosso filho. Que alarido se fez quando Martinho era pequeno e partiu um brao, sendo, por isso,
mobilizada uma ambulncia munida de sirene e enfermeiro e equipamento de emergncia! Martinho olhava para tudo entre surpreendido e maravilhado; o facto de ser o centro de tudo aquilo, enchia-o de orgulho. Podia sofrer mais ainda para que se repetisse aquele momento em que ele dominava toda a gente com a simples queda de um muro. Fora ele que resvalara ou caiu de propsito, percebendo de repente o efeito do desastre? Depois disso, nunca ficou completamente curado dessa tendncia para a catstrofe. No chorava, mostrava-se dcil a qualquer tratamento, grato a uma dor que o tornava soberano. Foi assim que compreendeu uma coisa: que, muitas vezes, as crianas que so continuamente disputadas pela famlia em crise, comeam a desafiar um tratamento que as pe em risco. So maltratadas, ameaadas, at que se estabelece entre elas e o carrasco (que pode ser um pai apanhado no torvelinho das ms paixes, sendo uma delas a do poder contestado) um elo de exultao que corresponde a um vcio. Perceber isto punha em causa o horror da relaes entre pessoas que se amam mas no resistem a uma violncia partilhada. A Ronda da Noite mais uma vez mudou de lugar. Martinho estava cansado de a ver de to perto ao entrar em casa, sendo recebido pela companhia do capito Cocq como se fosse esperado. Esperado para ser integrado na Ronda em que lhe seria dado um lugar. Que lugar lhe seria dado? Era uma arma, um tambor, um estandarte, que lhe seriam destinados? Martinho comeou a desviar os olhos e a no querer receber em cheio a ordem do capito Cocq; depois, ostensivamente, desobedecia-lhe e ladeava o caminho sem levantar os olhos. E disse: - No me parece que ali seja o lugar para um quadro daqueles. J esteve num celeiro, j esteve deitado no cho, coberto com palha e os ratos entraram para dentro da tela por detrs dele. Havia caganitas de ratos misturados com a linhagem e eu penso que ela protegeu uma segunda ou primeira tela. Pode dar-se o caso de A Ronda da Noite esconder outra pintura. - Toda a gente gosta de ter um mistrio a seu cargo - disse o doutor Assis, que tratava Martinho como se tratam as pessoas que se conhecem h muito: como um doido que no oferece perigo. - Porque no mandas desmantelar o quadro? Porque sabes que ele no vale nada e acabava tudo sem glria. Assim, ainda o vais interrogando, no ? Ns no queremos respostas, pelo menos, respostas de surpresa. O cadete Bernardo no percebia do que se falava no Torreo Vermelho e achava os Nabasco pretensiosos com o seu conceito do infinito e da existncia de Deus. Raramente ia ver a av, que lhe parecia uma inimiga. Levava-lhe amndoas torradas pela Pscoa, porque ouvia dizer que ela as apreciava muito quando era nova. Maria Rosa quase as atirava cabea dele, mas dominava-se porque
a sinceridade para a famlia uma coisa que no cai bem. Pode parecer uma coisa maquinal, o que pior do que tudo: como quem anda de bicicleta ou se atira para dentro duma piscina. O elogio da famlia estava outra vez a ser adoptado pelo novo feudalismo. Um povo baseado no sangue pelo sangue que se define e se continua no tempo. Assim era que Martinho se estava a defender do seu apocalipse, pondo em risco tudo o que foi a sua fonte de comunicao, o desejo de permanncia. Permanncia e no eternidade. Agora tratava-se de eternidade; os laos da famlia desatavam-se porque o amor universal estava acima desse vnculo carnal. Abrira-se um abismo debaixo dos ps de pais e filhos, que foi denunciado por Freud e a sua escola. Fechar esse abismo correspondia a criar um novo homem na terra. As visitas de Bernardo eram primeiro difceis; depois passaram a ser incmodas. Ele estava empenhado no poder, todas as batalhas lhe serviam para se afirmar, ganhar terreno, acumular foras. Nos momentos em que via Martinho cado num estranho alheamento, parecia-lhe que de alguma maneira o tinha vencido. Havia um quarto no Torreo Vermelho que Maria Rosa destinou para os hspedes. Era um quarto de dimenses regulares e que tinha vista sobre a cidade. Uma cidade de Inverno, s faltava ver cair a neve sobre os telhados e o silncio estender-se at ao mar que, de resto, s se podia localizar pelo pr-do-sol. Um claro duma chama, que durava, ao que parecia, muito tempo e que, de repente, se extinguia. Bernardo escondia-se atrs da cortina da janela, quando o sol desaparecia. - Nunca vemos isto como um sinal - disse Martinho. O irmo olhou para ele sem entender. Como era novo e parecido com a me! Via-se que em breve ia mudar muito e s ficava o nariz como um bico de ave que fazia lembrar um aristocrata escapado guilhotina. E se ele fosse algum desse gnero? O problema da reencarnao ainda no fora esgotado. Martinho gostava de o pr prova e perguntava-lhe queima-roupa, como se disparasse um tiro: - No me disseste, h pouco tempo, que a poltica a arte de dominar os acontecimentos? - Eu no disse isso nunca. - E "o interesse a finalidade da poltica, e a intriga a sua arma"? - No fui eu, palavra. s um homem que me d calafrios. Eu no sou um poltico. Sou um manifestante, como agora se diz. Martinho riu-se. No era Beaumarchais, ento, o seu querido irmo. Mas porque usava um colarinho to alto seno para esconder a cicatriz do cutelo? Isto era um jogo que o divertia muito. Talvez simplesmente se tratava de liquidar os seus cimes dos novos amores de Paula e da sua nova famlia. Nunca se habituara ao casamento da me com uma pessoa to marcial e qual no lhe apetecia dizer nada. De que podia falar? A guerra das Glias, a batalha de Aljubarrota?
Olhou pela janela a cidade e pensou que s quando a deixava a amava. Como certas pessoas que s quando morrem so compatveis connosco. Reparava, mesmo sem olhar para ele, que Bernardo (o apelido dele fugia-lhe) tinha qualquer coisa de instantneo. Passados os anos da juventude, ele desaparecia, como o sol na linha do horizonte. A av dizia que desejaria ter na famlia algum comprometido com o destino do pas. No seria Martinho, que se limitava a reconstruir os solares da casa, como ele dizia. E muito menos Bernardo, que fazia da poltica uma profisso com direito reforma e tudo o mais. Quando recebiam, e ainda Filipe Nabasco era vivo, este divertia-se a perguntar aos convivas mais idosos: - Ento est na retrete, meu amigo? Jogava com a palavra retraite, e isso parecia o cmulo do esprito, no reparando que todos estavam fartos dessa anedota. Mas Bernardo era o eixo dessa anedota. Vestido de azul, com gravata da mais pura actualidade, em geral uma gravata grandiosa que lhe chegava at ao umbigo. Jogava golfe aos domingos de manh (acho que j o disse), mas depois ficou embaraado com o tipo de parceiros que teve que suportar, matarroanos que, para bem de todos, a capital no assimilava. Felizmente Paula casou na cidade e teve direito considerao da porteira. Maria Rosa dizia que Paula era dessas mulheres com mau gnio que julgam, por isso, ter carcter. A ltima grande senhora da famlia era ela; e no podia falar em famlia porque eram burgueses com dinheiro, o que diferente de serem aristocratas com memria demais. S em raros momentos percebia que amava a filha mais do que a Martinho. Era uma voz que vinha do mais profundo do ser, uma voz com lgrimas que se estrangulavam na garganta. E tambm Paula se voltava para a parede, para que a me no visse como estava emocionada. E tudo isto, sem motivo aparente. Acontecia com as mulheres com passado. Iam ao cinema e choravam. No choravam se morria algum, se vestiam um defunto, se recordavam uma peripcia solene. Mas, no cinema, desfaziam-se em lgrimas. Martinho achava aquilo um bocado indecente, uma falta de sentido das prioridades. Primeiro estavam as crianas de frica, desnutridas e sem assistncia alguma. Mas talvez tivesse que ver com um ltimo rasto do que humano e que no desapareceu com os sistemas de informao e de economia. "Valha-a Deus, a senhora chora, e eu com que cara fico?" Ele tinha quinze anos, era muito difcil compadecer-se enquanto os outros estavam a olhar. Bento Webster Soares, fantico da colnia britnica a ponto de modelar o nome com um ttulo ingls, esteve sempre presente, tanto quanto Martinho se lembrava. Tinha um rosto bem barbeado, e uma certa corpulncia, que disfarava com os coletes um pouco frouxos, dava-lhe a elegncia da maturidade. Gostava de mulheres, no desprezando os avanos de alcova bem mais experientes do que os seus lricos alexandrinos. Maria Rosa no o levava a srio, mas ele tornara-se um desses
acompanhantes cuja sensualidade encoberta tem direitos para alm dos juzos de convenincia. Era o homem que se chamava quando havia treze mesa ou quando era preciso conduzir a casa uma senhora velha e evitar que ela casse no passeio. Bento Webster era impecvel em abrir um guarda-chuva, mantendo-se um pouco atrs da mulher que protegia e parecendo completamente indiferente quanto ao dilvio que o encharcava. Era um conviva insuportvel quando recitava a sua poesia, mas um prodigioso cavalheiro mesa que no falava enquanto comia a sopa, atento ao servio tanto quanto aos vizinhos do lado. Repartia a conversa com habilidade e graa. Maria Rosa chamava-lhe o diplomata do guardanapo. Martinho, que no tinha as qualidades de Bento Webster e pensava que os homens inglesa no gostam de crianas, foi crescendo tendo aquele espelho de virtudes de salo diante dos olhos. Devia-lhe o "saber estar", que copiava sem dar por isso. Todavia, as pessoas como Bento Webster caram em desuso e j no tinham cotao na democracia que se instalou como novo evangelho laico. Webster morreu j quando a Ronda encontrara lugar certo no Torreo Vermelho, cujo nome ele nunca aprovaria. Morreu com mais idade do que a que confessava e dizia-se que no saa do pas para no ter que mostrar o passaporte. Martinho, com as poucas lembranas que tinha dele, achava-o parecido com o doutor Watson, o indefectvel amigo de Sherlock Holmes. Era, no entanto, muito diferente, porque no tinha esprito dedutivo. Maria Rosa disse que o maior agradecimento que lhe devia era o de o ter esquecido facilmente. Era um cinismo de circunstncia, porque as mulheres nunca esquecem os homens que as amaram, ajudando-as a superar a m opinio que tm delas prprias. Porque o que mais prejudica as mulheres no o serem maltratadas, mas facilitarem todas as injrias desde que no sejam ignoradas pelo desejo dos homens. Martinho achava que Bento Webster no tinha lugar na Ronda da Noite porque no esperava a ordem do capito Cocq nem admitia qualquer preparativo evidente demais. Para ele as regras estavam estabelecidas e os lugares previstos. Um portabandeira no se podia dar ares de chefe de claque, nem o tenente se podia vestir melhor do que o seu superior hierrquico. No parecia bem, e o parecer bem estava acima dos dez mandamentos. Os dez mandamentos ele infringia-os a todos. Primeiro amava o pai e a me e as filhas mais do que a Deus. A sua profisso, numa casa de vinhos, os seus punhos de rubis, a sua pequena propriedade nos limites da cidade e a que ele chamava O Conventinho, tambm estavam acima das suas cogitaes metafsicas. Algumas das suas mais excitantes conquistas comeavam com um olhar hora da missa, ao fim da manh. Cobiar a mulher do prximo era um dos seus melhores passatempos, alm do seu whisky de malte. No seu estilo, era muito completo e sem deslizes de procedimento.
A famlia real inglesa merecia-lhe uma venerao sem qualquer conflito filosfico. No se falava dela seno com respeitosa sinceridade, como quando os amores da princesa Margarida foram publicamente devassados. Webster atribuiu-os ao "terrvel sangue dos Tudor" e ficou por a. Achava Churchill um grosseiro, um alcolico como constava dos arquivos diplomticos e no queria ter de cumpriment-lo alguma vez. - No acho bem - disse Maria Rosa. Eu s no quero cumprimentar quem sua das mos ou parece que nos oferece um trapo para limpar o pra-brisas. Martinho ficava encantado quando ela falava assim. Era uma vida calma e espirituosa, entre camlias, que as havia de todos os feitios no jardim da Casa do Co e que tiveram de abandonar. Ainda quando passava l e via a grande palmeira acima do porto, Martinho tinha pena. Os jantares em Agosto, fora de casa, e o av a abrir o champanhe como quem espera ser ferido de morte; Elisa entrada, com ar de divertida censura porque para ela o jardim no servia seno para comer fruta de caroo e livrar-se dos gatos e das crianas; e, mais ainda, o parque que tinha ao fundo um campo de tnis que nunca serviu a no ser para plantaes de hortalias nobres, como couves de Bruxelas e alfaces-manteiga. Martinho viveu l vinte anos e o Torreo Vermelho, ao princpio, no lhe agradou nada. Achava-o uma criao da cabea dum cutileiro, com cinco casas de banho, uma delas forrada com alcatifa de cima a baixo. Provavelmente ia para l deitar-se com a mulher ou assim. - Lamentvel! - disse Martinho - H coisas que no se fazem na retrete, ao contrrio doutras, como a m poesia. Quem dizia isso era um poeta de quem Martinho gostava muito e que era afogado em horrveis versos, que lhe mandavam muitos admiradores. "Essas coisas fazem-se na retrete", era o estribilho dele. Era um homem seco e cheio de malvadez, mas grande na criao. Martinho teve o cuidado de nunca o receber quando Webster l estava, no Torreo Vermelho. A sua maneira, o seu amigo, de nome Benjamim, era um snobe, o que Webster no era de todo. Este seria um convencido, mas pertencia ao seu meio, sem pretender nenhum outro, nem mesmo o da famlia real inglesa, em terceiro grau que fosse. - Conheo o meu lugar... - dizia Webster, com gravidade modesta. Para Benjamim ele no passaria dum lacaio, mas no era verdade. O lacaio presume de servir e o gentle-man de servir bem. Divagaes a que Bento Webster se entregava at que morreu, j com muita idade mas ainda com gosto no vestir e com olho aceso para as raparigas bonitas. Esse tipo urbano desapareceu. Andava a p na cidade, que tinha pouco trnsito, tanto no Porto como em Lisboa. Algum como Webster, em Lisboa no usava sobretudo nem chapu-de-chuva e no tinha automvel prprio. Andava de txi ou no carro da "Companhia" ou do Ministrio, e jantava nos
cocktails e depois ia pera. Costumes que se tentam repor mas que nunca mais voltaram. O homem elegante, que as revistas de moda tentam reanimar, perdeu o sentido do bom gosto, no leva o sacrifcio ao ponto de comer os palitos no avio quando janta ao lado dum grande da finana que j mastigou um ou dois. No genuno, um imitador. Cheira o vinho antes de o beber, elogia um vestido decotado demais ou uma jia que pode ser falsa, anda a cavalo para se mostrar bem equipado, diz mal das mulheres sem ser um entendido em Sodoma e Gomorra; e, sobretudo, o falso esteta, o falso homem do mundo, julga que a poltica lhe convm, quando a poltica, se tem cabimento para Freud, no tem interesse para um homem verdadeiramente moral, que o que no faz da moralidade uma regra de prudncia. A moral uma virtude, no uma conduta. O poeta Benjamim sobreviveu a Webster sem nunca o ter encontrado. Mas conhecia os seus versos que chegaram a ser adaptados ao fado. Tinha o ressentimento quanto intimidade de Webster na casa dos Nabasco, do Torreo Vermelho que achava ser um lugar parte na cidade, um lugar onde se podia ser aristocrata e democrata ao mesmo tempo. Com a passagem dos anos, dipersaram-se os amigos, a boa companhia tornou-se em sexo explcito e, no sendo este, uma distraco permanente sobre o amor e o proveito dele. Sobre a cultura e o seu carcter como poder. Judite no aparecia nesses colquios. No que o marido no lhe desse importncia, mas era ela que os achava perversos por no serem concisos, defeito que era agora mais do homem do que da mulher. Recm-sada da sua paixo, ela estava entregue a uma felicidade de que no percebia as regras ou que no as tinha. Tudo era para ela motivo de festa e despreocupao. Como algum que escapa dum azar violento, como o de ser esmagada pelo telhado que desaba, ela ficou reduzida a uma espcie de orao sem desejos: um estado de calma absoluta e de gratido. Martinho amava-a agora mais, mas a distncia que se criara impedia que a sua ligao se mantivesse. Porque se criara essa distncia? Porque Judite sofrera e amara algum sem ter dele necessidade, sem lhe dever nada, e muito menos cime, auxlio e confiana nas suas emoes. Martinho disse uma vez a Maria Rosa: - O que a fez casar-me com ela? - Ela era uma cadastrada. - Isso bom? - Fez uma pausa e disse, com uma sombra de indignao: - Cadastrada?! - Onde houver um crime toda a famlia cadastrada. Eu sempre imaginei Judite a carregar a culpa do pai, e isso tornava-a numa pessoa especial, mais homem do que mulher. O homem procura uma culpa para se elevar acima dela. Eu pensei que boa esposa ela seria se arrastasse a culpa com ela. Mais fiel, mais amante. Para dizer tudo, eu acho que ela foi quem matou a Estrelinha. - A me! Que delrio esse? Uma criana de doze anos!
- Funcionou como um rito de passagem. Outra coisa: ela gosta perdidamente do pai. O crime foi como sacrifcio de adorao. O que mais se ama para quem se adora. No era assim com os povos antigos? E ainda . No estamos to longe da pr-histria. - Coisas pesadas como chumbo. Pode ser que tenhas razo. As mulheres tm mais razo do que ns. - Somos mais antigas. Vocs nasceram muito depois de ns. - possvel. Ele levantou-se e deu uns passos no quarto. As tbuas do soalho gemiam e ele lembrou-se do hotel de Aosta que tinha o mesmo rangido, o que os divertia a ele e a Judite, porque eram novos e se amavam. Andavam sempre perdidos um do outro, perdidos entre os corredores e os ascensores que subiam e desciam desencontrados. Na sala de jogo era impossvel reconhecerem-se, uma nuvem de fumo pairava como um denso nevoeiro. Coisa to estranha, parecia inventada para criar uma atmosfera de paixo e obscuridade! No se viam as caras dos jogadores, afogados numa luz parda, com os focos de luz sobre as mesas. Assim, ningum se distraa com o parceiro; e as mulheres de seios murchos com as jias faiscantes, no tinham rostos mas s a mancha da pele. Como o vampiro de Murnau. Ele disse isso a Judite, de noite, j estavam deitados, e um arrepio que simulava o medo fez com que ela se abandonasse como para pedir-lhe proteco. O medo era ento um bom condutor ertico. Ele repeliu-a, mas vendo a incredulidade nos olhos dela, os olhos extraordinrios que ela tinha, voltou a receb-la nos braos. Nem sempre as coisas corriam to bem. Aos cinco anos de casados separaram os quartos e o dele ficou um pouco ao abandono, com livros e roupas por cima dos mveis e chaves e botes de punho, alfinetes das camisas novas, velhas contas, bilhetes de cinema, tudo acumulado; sem falar nos remdios para a tosse, variadas pastilhas e coisas mais srias, como os antibiticos fora de prazo, e as vitaminas, os estimulantes, os antipirticos, encastelados como numa farmcia, de mistura com caixas de sabonetes vazias e cremes para as mos j secos. Quando Judite ia aos solares do Nordeste encontrava vestgios da mesma desordem preocupada, ultimamente anti-depressivos que ele no levava para casa. Nunca se despia inteiramente diante dela e tambm no gostava de a ver nua com medo de encontrarlhe defeitos que lhe repugnassem. Era um tique da poca: a beleza perfeita impunha-se para auxiliar o desejo, quando uma certa irregularidade era mais conflituosa e mais condutora de prazer. Martinho interrogava-se: ser que o sexo no normal e que h milhes de anos o praticamos como um ofcio? Estava a divagar, era disso que ele gostava; ir contra todas as leis, descobrir caminhos, derrubar muros e vedaes. E Judite? No se preocupava com ela, no h nenhuma mulher com que um homem se preocupe. - No sei o que querem de ns. Francamente, no sei - disse.
- Provavelmente nada de especial. Somos assim. - A av comps os cobertores sobre os joelhos, no parecia afectada pelo que ele dizia. Era uma causa perdida aquilo de andarem sempre a cismar nas dvidas que tinham uns com os outros, nas queixas, nas invejas. E se tudo fosse um tremendo logro e o amor no existisse? Nem fizesse falta? - Imagina tu, meu menino, que o amor um falso aditivo. Inventou-se para nos prevenir e afinal d-nos cabo da vida. Eu acho tudo ridculo. - A av velha. - Achamos tudo ridculo, tanto velhas como novas. Manda-me c acima o meu ch, que j passa da hora. - Eu trago-lhe o ch. - No temos ningum para isso? - s seis horas j no temos ningum. assim. Quem faz o jantar sou eu. Ontem foi Judite, hoje sou eu. - J percebi, mas vivi em melhores tempos. Tinha trs criadas de dentro e uma lavadeira. E costureira em casa para remendar e fazer os aventais, trocar os punhos e os colarinhos. Poupava-se mais, um carro durava uma vida, o acar era luxo, bananas no havia. Judite metia-se na conversa para dizer que estava melhor assim, com mquinas por todos os lados e lenos de papel. Tinha mais tempo livre, ia ao cinema quando queria, a oferta era muito variada: ballet, concertos, conferncias. Ela no se sentia s nem envergonhada por saber pouco. Lia os mesmos livros que os homens e falava das mesmas questes. O seu vocabulrio tambm se ampliara e as palavras proibidas podiam ser ditas em voz alta, em qualquer lugar. Ainda que ela as ouvisse da boca de Estrelinha Sopa-de-Massa a toda a hora. Quando estava verdadeiramente zangada ou se ela sofria, apenas dizia "Jesus, Jesus" e torcia os braos como se fossem uma rodilha. - Que mania essa de torcer os braos? - disse Martinho. O doutor Assis pensava que era simblico, como o beijo, como muitos outros gestos. Talvez existisse antes da voz humana. Bento Webster no se metia no assunto. Bastava-lhe a poesia como armadilha para mulheres, e o resto no era com ele. O Torreo Vermelho estava mais silencioso e parecia servir sobretudo para guardar a Ronda da Noite em boas condies. Todas as vezes em que se pensava vender o Torreo l estava o eterno obstculo: onde iam meter a Ronda? Oferec-la ao governo ainda parecia a melhor hiptese, mas Maria Rosa, ainda dependente da velha economia, "guardar at que o preo suba", recusava essa ideia. Tambm se ventilou o caso que fazer chegar a Ronda da Noite a leilo, inventando-lhe uma histria como a que se fez para Perseu e o Drago. No sei se sabem que Perseu e o Drago, de Metsys, ele prprio, estava numa gaveta, h muito tempo, num palcio rural. Tinha sido oferecido por Catarina da Rssia a um
embaixador de Portugal que o trouxe, dentro duma almofada de crina e o deixou num malo; at que algum o descobriu e o mandou avaliar. Para ser includo num leilo, o quadro teve que ser acompanhado por um currculo que lhe garantisse autenticidade. Mas a Ronda, no possua qualquer prova de origem. Tudo quanto tinha era uma tela esfiapada que se podia dizer ser o forro da tela pintada. Esse sim, pde ser datado e coincidia com a poca de Rembrandt. De repente, tudo ficou suspenso e no se falou mais da Ronda, nem dos seus predicados estticos ou monetrios. Era um aforro que podia ficar esquecido durante uma ou mais geraes e que havia de acordar como a Bela Adormecida para fazer feliz o seu prncipe, aquele a quem "o beijo do dinheiro" dizia alguma coisa. Os Nabasco no viviam na penria porque tinham uma experincia da economia bastante vasta. Por exemplo: Filipe Nabasco foi criado no respeito da pequena poupana. Se deixava cair ao cho o seu po com manteiga, beijava-o e continuava a dar-lhe vigorosas dentadas. Tambm sabia que as suas calas, ao ficarem demasiado curtas (demasiado e no um pouco curtas), iam servir para o irmo "chegante" que era, como diziam, o mais novo. segunda-feira comia-se bacalhau cozido e uma sobremesa pobre, de fritos de farinha com acar e canela. A sopa era obrigatria, ainda que sempre mal encarada. Na mesa havia um certo estilo de asilo; no se usava toalha quando as crianas eram pequenas demais para serem servidas mesa dos adultos. Andavam frequentemente descalas quer fizesse frio ou fizesse calor. O luxo dos Nabasco estava na educao e ficou como referncia um mestre que tinha a regra do doutor Johnson como referncia principal: "Toda a frase que se achar bela deve ser suprimida". Isto tanto quanto ao escritor, como conversa e o gosto da indumentria. As flanelas cinzentas eram preferidas, a linguagem sbria e sem muitos adjectivos era aconselhada. O doutor Johnson estava em toda a parte. Na famlia, no paladar, no sexo e at na religio. Comungava-se pouco, uma vez por ms, s primeiras sextas-feiras. No se jejuava, fazia-se dieta. Gastava-se mais com os necessitados do que com diverses. Essa educao destinada a fazer perda de apetite ao diabo, conservou-se at que D. Pedro subiu ao poder e a regio duriense recebeu novo vigor, dado que algumas casas de lavoura tinham feito emprstimos para pagar o pr dos soldados. As coisas mudaram, com os lucros e com uma imitao que era subservincia, os costumes tornaram-se mais boais deixando aos padres as letras, e muitas vezes a poltica. Os tutores e mestres de msica deram lugar ao fidalgo absentista que dormia com a escopeta cabeceira em vez das obras de Tucdides. Nesse tempo, os Nabasco com fortes laos brasileiros e alguma gota de sangue mulato, foram para Lisboa, deixando as terras aos parentes pobres, como se de colnia se tratasse.
Maria Rosa, sem grandes ocupaes a no ser a de me de famlia e entrada na idade do desemprego conjugal, fez questo de recuperar os antigos hbitos dos Nabasco. No eram hbitos, eram preceitos de afirmao. A cultura era uma ideia moral objectiva que s por breves eclipses desaparecia nas famlias. Quando Paula se casou de novo, Maria Rosa, a troco duma doao quantiosa, guardou consigo o pequeno Martinho. Com ele veio a Ronda da Noite e o capito Cocq prestes a dar a sua ordem de marcha. Ainda que os primeiros ensinamentos os recebesse em casa com mestres que excediam as matrias de estudo, depois a educao de Martinho fez-se em Inglaterra e em Viena, com os jesutas. O que seria de esperar seria que fizesse um casamento que lhe acrescentasse as vantagens adquiridas; uma mulher bela e de nome ilustre fazia-o mais presente na sociedade do que se ele fosse s e carregado de atributos. A mulher d vida dum homem a flexibilidade que ele precisa para vencer nos negcios e na carreira. No era de esperar que Maria Rosa lhe destinasse Judite, quase uma criada e de esprito vazio. Ningum pensava que ela fosse inteligente. Mas no havia provas em contrrio tambm. At, algumas vezes, Judite calhava ter opinies muito determinadas que surpreendiam o marido e que, por mais que ele quisesse rebater, no encontrava nada de melhor. Desconfiava de que Judite o andava a enganar, no com outro homem, mas com as suas prprias capacidades. Ela passara ao lado da cultura sem mostrar interesse por aumentar os seus conhecimentos. Tinha uma vida confortvel mas sem ambies e no se afeioava seriamente a ningum. Algum gato sem raa, a quem ela falava com voz amistosa mas sem ser demasiado calorosa, consistia na sua companhia mais privada. Mas se ele morria, no se mostrava sentida demais, s lhe reservava um canto do jardim para sepultura e passava por l, como por acaso, para dizer algumas palavras meigas. Sabia que Martinho prezava muito a sua rea de valores que no queria frequentada pela mulher. Se ela mostrava estar ao par das suas leituras, Martinho deixava de lhe falar durante dois dias. No suportava que houvesse igualdade de saber e de meios entre ele e Judite. Ela fazia-se insignificante e dbil mental, como ela dizia para si prpria. Nada disto escapava a Maria Rosa. - Tenho confiana nela. Mas a Elisa dizia que uma mulher como Judite sabe que h prazeres sem esperana. - Ela dizia isso? - O doutor Assis ficava varado de surpresa quando ouvia coisas assim. Como homem, o que sentia era descontentamento, a conversa com mulheres tinha limites e as mais ignorantes podem surpreender. - No disse felicidade sem esperana? - No. Disse prazeres sem esperana. - Bom. J tarde para lhe perguntar a ela. No era pessoa da minha simpatia.
Ficou a cismar um bocado, no em Elisa mas noutra coisa. Fazia-se velho e, instantaneamente, esquecia-se do que estava a falar. J no sabia receitar coisas novas e tambm no acreditava na medicina. Era muito impopular entre os empregados da casa dele e do Torreo, que se resumiam a um jardineiro e uma mulher da cozinha e outra para o ferro, todos externos. O vulto magro e curvado do doutor Assis, que nunca dava gratificaes nem os cumprimentava, incomodava-os. Achavam que teria sido amante de Maria Rosa, e isto servia para os autorizar a desprez-lo. Quanto a Bento Webster, era diferente. Engraado, com o porte direito e uma cinta debaixo do colete, divertia-os. Serviam-no de bom grado e iam acompanh-lo paragem do autocarro, com o guarda-chuva aberto, se chovia. Ele dava-lhes dinheiro, que tirava do bolso do casaco. Dinheiro em notas e no simples moedas. - Assim vo roub-lo. O dinheiro traz-se na carteira ou no porta-moedas. - A que mo roubavam. Bento Webster deixou uma memria de homem galante e fcil de conviver. Desculpavam-lhe os ridculos e parecia-lhes que era bom que pessoas como ele no tivessem desaparecido de todo. Quando tudo, doutra poca, desaparece, as paixes que deram vida a toda uma gerao esfumam-se deixando um rasto dbil de melancolia. O doutor Assis tinha uns ditos inesperados: - Que ganhamos com o monotesmo? Eu tinha um deus para o corao e outro para o fgado; e ainda muitos mais para as infeces, os vrus e as febres desconhecidas. Um s Deus no pode dar conta de tudo. - Voc um "mgico" - disse Maria Rosa. Mgico queria significar um original; ter uma pancada e assim por a fora. O "mgico" tornara-se quase suspeito, correspondia teoria do cu quando nublado. No deixava ver as estrelas, confundia a linha do horizonte, provocava um fenmeno de desenraizamento que , como dizem, o mal do sculo. No sei se se lembram do capito Hatteras, de Jlio Verne; um explorador do rtico que enlouqueceu durante a sua viagem ao Plo Norte. No meio da sua desordem mental caminhava sempre num sentido, dando que pensar aos seus mdicos e enfermeiros. Por fim, descobriram que ele caminhava na direco do Norte. Fora esse o plano da sua vida; mesmo quando integrou a teoria do cu quando nublado e o desastre mental se verificou, ele manteve-se fiel ao ideal profundo. Nunca se reconheceu o malogrado capito Hatteras, como um desenraizado. Pensando Martinho no que fora para ele o prazer no perodo de educao, muito duro enquanto o av Nabasco viveu, encontrou o seguinte: enquanto esteve na Sua foi assaltado por uma febre tifide que o prostou na cama, chegando a recear-se pela sua vida. Os padres ocultaram de princpio o seu estado e demoraram-se demais em revel-lo famlia; depois j era tarde para o fazer e mantiveram-se firmes na sua deciso, esperando que a forte natureza da criana levasse a melhor sobre a doena.
Houve um dia em que um desmaio pareceu abrir as portas da morte. Martinho sentiu-se arrebatado numa vertigem de que no lograva sair; depois, como uma onda que o arrojasse para fora, encontrou-se como que a boiar num grande lago. Estava a nevar, o seu corpo ardente recebia com prazer os leves flocos de neve. Mas a sensao de deleite apareceu quando da sua convalescena. Pode-se dizer que no havia alterao no seu estado, mas agia nele uma beatitude magnfica, como um consentimento divino a que recobrasse a sade e vivesse para sempre. Era uma alegria terna e prometedora; Martinho aprendia a bno da vida nessa passagem imperceptvel entre a doena e a cura. Um dos padres velhos chegou a pronunciar a palavra milagre, mas repreenderam-no com doce autoridade. Pouco tempo depois morreu e, como era velho, no deram muita importncia ao seu desaparecimento. Maria Rosa, que foi passar uns dias a Saint-Moritz, estranhou o neto. - Queres ir para casa? - disse-lhe. - No. Estou bem e tenho de estudar at Junho. Mas o que ele no dizia era o grande amor que sentira ao ser arrebatado para a vida, e a saudade desse momento lento como se durasse anos e no pudesse medir com os sentidos ainda perdidos das emoes em que ele vagueava, sem sofrimento mas tambm sem satisfao. A Primavera tinha avanado enquanto ele estivera doente e havia crocos roxos ao longo dos caminhos. As vacas malhadas, com os grossos sinos ao pescoo, pareciam olhar para ele como se o reconhecessem. - Este rapaz cresceu bastante - disse a branca com pestanas como alfinetes. - Nunca o tinha visto - disse a outra, ruminando a sua erva. - Eu sim. Mas sou mais nova, tenho boa memria. Martinho riu-se, contente de as entender. E o seu corao encheu-se de alegria e logo, sem perceber o que lhe acontecia, o pranto correu-lhe pelas faces emagrecidas. A convalescena ainda no estava completa e ele comovia-se facilmente. Como a av quando ia ver os filmes antigos que ela achava vulgares e xaroposos. Desse tempo de colgio no guardou grandes recordaes; nem mesmo da neve escura e que ao desfazer-se criava pequenos charcos com placas de gelo por cima. Mas da Inglaterra, sim. Fez amizades como revelaes do corpo e do esprito; e o perfume do talco da manh, depois do duche, tornou-se para ele uma companhia. O av Nabasco achava aquilo efeminado e levava-o para a caa, obrigando-o a ver os ces que se banqueteavam com as vsceras quentes dos coelhos. - No gostas de ver sangue? - perguntava, com insdia. - Nem por isso. O cheiro enjoa-me. - Os homens no tm nariz e as mulheres no tm ouvidos.
Referia-se a que as senhoras podiam ouvir obscenidades sem sequer darem por isso, porque a virtude no as distraa para as coisas grosseiras. No entanto, a av, s vezes, como se brandisse uma acha de guerra, soltava o seu palavro. Nada mais do que "merda" ou "filho da polcia", o que fazia rir o irmo e todos os Cunhas quando por l andavam a servir. Quando o av morreu, ela deu tamanho grito que se ouviu na rua. Paula correu a fechar os reposteiros e a acender as luzes. A dor tinha que ter alguma conteno e no podia manifestar-se como nas peixeiras, a gente mais dramtica do mundo, no se sabe porqu. As peixeiras (antes pescadeiras) tinham a arte do mortrio. Era a nica gente trgica de Portugal e ao p delas os coros gregos serviam s para enviar mensagens como pelo cdigo Morse. Elas invocavam os deuses do mar e das tempestades, submetidas s suas iras cruis. As pescadeiras, carregadas de preto, levantando at cabea o xaile preto, gritam com mais dio do que devoo. Apedrejam a porta da igreja quando os seus mortos do praia semi-nus e vencidos. Era assim que Maria Rosa sentia a dor. Um uivo de espanto que sobressaltou toda a famlia reconciliada por um momento, pronta a debandar e disposta a levar algumas flores que se esqueceram no quarto onde guardaram os casacos. O coro disse: "Julgas que s pelas lgrimas, sem adorar os deuses, podes triunfar dos teus inimigos?" As pescadeiras iam directas, de rosto descoberto, os punhos enterrados na areia, enfrentar os inimigos: o vento alterado, a mar crescida como torre que alcana os cus. Elas esto altura dos seus inimigos, elas sim, esto a vociferar aos ouvidos dos seus inimigos. Algumas vezes Maria Rosa era censurada porque lhe ficava mal aquele dizer as coisas como se jurasse no tribunal. "A verdade, s a verdade, nada mais do que a verdade..." Sentia-se como na amurada dum navio, a voz coberta pelo marulhar das ondas. Ela falava cada vez mais alto, mas no lograva ouvir-se a ela prpria. - Ouves o que eu digo? - No, no ouvi. Era na travessia que faziam para Patras, no Peloponeso, viam-se, debaixo de gua, as grandes alforrecas. Custava a crer que fossem animais, davam origem a lendas, pena ela no ter vivido nesses tempos. Ela ia deitar-se na coberta e passavam os homens de bordo, como sombras, mas um desejo lrico e profundo acentuava a sua passagem. Eros, o mais verstil dos deuses, combinava-se com todas as coisas, dado, como ele , a travessuras. Um pouco inesperadamente apareceu um comprador para a Ronda da Noite. Era um decorador que pretendia cort-la em pedaos suficientes para fazer um puzzle que, por meio de efeitos fotoelctricos, efectuasse diferentes compromissos com a realidade. A menina Saskia, o tamborileiro e o co podiam pertencer ao mesmo nvel e ter uma interpretao mais verosmil. Todos os personagens mudavam de
lugar, o capito ficava em segundo plano e o tenente ganhava importncia. Outros, que at a mal se distinguiam, ofereciam outra qualidade e at uma soma de intenes que no discurso do pintor no se percebiam. Martinho ficou muito mortificado. No ia vender o quadro para retalho, como uma pea de aougue no seu gancho, mas a ideia parecia-lhe extraordinria. - , no ? - disse o decorador. Tinha pouqussimo cabelo e o que tinha deixava ver o crnio brilhante e cor-de-rosa. Talvez fosse uma ndega e no um crnio. A Ronda no merecia aquela obscura explorao, no sentido de a tornar uma diverso, mas tambm, se no se tratava dum original, no havia crime em retalh-la e fazer com ela um trabalho de patchwork. Apesar de tudo, Martinho recusou. No tinha prova nenhuma de que se tratava dum falso e podia estar a cometer um erro colossal. - Daqui a duzentos anos a Ronda pode estar identificada e valer uma fortuna - disse. - Uma fortuna em qu? Em bilhas de gua? Nessa altura a gua ser moeda mais fivel. Adeus mito do ouro! - O doutor Assis olhava para a Ronda com um desrespeito singular. Sempre achara o quadro feio e desproporcionado e que no merecia tantas atenes. - Qualquer dia lanam impostos sobre as obras de arte e vais ter que vend-la, tu vers. - No com estes olhos que a terra h-de comer. Sabe, doutor? "Toda a mudana traz bem-estar", como dizia Electra. - Electra? - A irm de Orestes. - Sentia-se erudito e aquilo sabia-lhe bem. Divertia-se a ver o doutor Assis to perplexo; mas isto durava-lhe menos do que duram as rosas, e ia discutir com Maria Rosa coisa mais vulgares, que era o que verdadeiramente lhe interessava: a mudana da hora de Vero para a de Inverno, os horrios dos comboios e as notcias do Iraque. - Morre menos gente do que nas nossas estradas - disse - E nas estradas, sabes o que se pensa, quando se novo e se gosta do perigo? "Uns morrem, outros nascem." Ouvi isto e no me escandalizei. No estou viciado no Iraque, nem em nada. As guerras so um excitante sexual, e quando isto se souber acabam as guerras porque a nudez no fica bem aos homens e eles vo sentir-se nus como um verme da terra. - Um verme da terra! Onde que eu j ouvi isso? - s um estupor. Vou subir e falar com a tua av. Os velhos entendem-se. - Acredito. O que tm tanto para dizer? Riem-se como doidos, no sei o que h para se rirem tanto. - Quando eu era pequeno e chorava, diziam-me: "Quem mais chora, menos mija". No verdade; eu mijo a toda a hora.
- No gosta de mim, nem da Ronda, nem do Torreo Vermelho - disse Martinho, como se fizesse uma confisso que lhe competia a ele fazer. O doutor Assis subiu pela escada acima, mas j sem a vivacidade doutros tempos, de quando transpunha os degraus da escada de caracol, na Casa do Co. Agora pensava muito antes de pr o p num degrau e media-o conscienciosamente. J no se faziam as escadas de abade dos mosteiros, feitas para no obrigar o corpo a saltos e contorses. Parou a meio caminho e voltou-se, apoiado no corrimo. - O corrimo uma inveno espantosa - disse ele. - O qu? - Se a escada do cu no tiver corrimo, no quero ir para l. Martinho ouviu-o rir-se com Maria Rosa. Decerto estava a contar-lhe aquilo e outras coisas. Ficou feliz por ouvi-los rir. Comeava a sentir-se um pouco entropecido e a ideia dum A.V.C, insinuava-se, constantemente alimentada pelas pginas de sade e de alimentao e pelas alarmantes novidades tribais. Uns tinham morrido em paz, durante a noite, outros ficavam hemiplgicos, gastando ao Estado somas considerveis. Se ao menos houvesse uma epidemia como no tempo da peste em Npoles! Descobriu porque gostava tanto desses relatos macabros e porque saboreava o terrvel desfile dos hospitais, dos mortos transportados em carretas e a Bette Davis sacrificando-se para os ir acompanhar no lazareto. Os bancos estavam falidos, ningum investia, ningum solicitava emprstimos. Martinho estudava a Grande Depresso, mas adormecia a meio duma pgina. Retinha alguma coisa que o fazia mais indolente e cptico. A economia era cada vez mais servida por homens perspicazes e cometiam-se erros cada vez maiores; mas eram sempre respeitados e as suas faltas motivo de avaliao. O erro tornava-se interessante porque crescia o desprezo por aquilo que se aprende e em que se acredita. O cadete Bernardo, irmo mais novo de Martinho, que no era tolo, dizia-lhe que no valia a pena forjar um dossier sobre educao porque tudo se resumia a uma adaptao s circunstncias e as ideias nobres estavam h muito em crise, se no reduzidas a p. Convinha animar a produo, gastando mais e rompendo com a tradio dos oramentos equilibrados e do aforro pessoal. Mas o que aconteceu foi que o dio aos impostos, uma tradio milenria, desencadeava uma resistncia em que se desenvolviam vcios da paz: a corrupo e a corrida aos prazeres. Ningum se atrevia a promulgar leis radicais, como impostos grandes e salrios pequenos. Os pases estavam a ser governados por polticos cujas ideias tinham secado h muito e tinham sido bebidas em sebentas fora de moda. As geraes viajavam mais depressa no tempo do que a economia nos mercados. Bernardo era inteligente mas isso no lhe servia de nada, nem ele queria. S queria que no chegasse a nenhum apocalipse antes de ele gastar os seus sapatos feitos mo no seu boothmaker de Londres.
Era um rapaz elegante, amaneirado sem ser efeminado e que tratava as mulheres novas como se fossem velhas e as velhas como se fossem novas. Tinha a suspeita de que elas, todas juntas, se preparavam para tomar o poder. - Talvez no seja to mau assim. Ficamos mais disponveis para ler bons livros e no fazer nada. Elas acabam por reproduzir-se por cissiparidade. Esto cheias de razo, se bem que a razo no tudo. Vocs aqui, que fazem? - Olhava para a outra margem do rio e o seu estreito fato de algodo azultempestade desenhava-lhe as pernas finas como as dum rapazinho. O polo era em l ardsia, muito chique. Estava beira de ser um homem pblico e de casar bem. - Abandonas a poltica? - disse Martinho. - Nunca. como uma rvore que no d fruto mas que d sombra. - Repetiu: - E tu que fazes? Este Porto tem uma luz estupenda. Dizias que era escuro e que no se via nada. No como a floresta do Amazonas, mas ainda se percebe alguma coisa ao meio-dia. Para que lado o mar? - Do Torreo podes v-lo. Iam ambos para o Torreo Vermelho alcanar o mar com as mos, como eles diziam. Apesar de terem idade diferente, lembravam-se de coisas em comum, como quando os cadetes iam para o Nordeste, caar e comer horrveis ceias de po bolorento e batatas fritas em gua. A pobreza no os surpreendia e, vendo fumegar a roupa ao lume, porque estava molhada pela chuva, sentiam-se confortveis e felizes. A tempestade andava pelos montes, com um estrondo de cavalos disparados. Eles sentiam-se bem na escura cozinha de lavradores, com cho de terra batida. - Como podes dizer que isto e que aquilo? Sempre a dizer mal, sempre a fazer queixa de tudo. - Eu? - Bernardo foi colhido de surpresa. Sentia-se agredido com aquela simples declarao de Martinho que, para ele, era uma pessoa estranha; quase no falavam a mesma lngua, vestiam-se de maneira diferente. Ir a Nova Iorque era mais fcil do que ir ao Porto, parecia como ir Lua. Mas ao entrar no Torreo Vermelho, um luxo pesado, austero, caa-lhe em cima. E a Ronda caa-lhe em cima com aquele peralvilho do lugar-tenente pronto a declamar um hino cidade, sem esquecer as suas galochas bordadas. A verdade que Martinho se ria dele e era o que o irmo mais temia. Tinha sido educado como um prncipe da Renascena, e quando estava sentado no cadeiro de couro, cabeceira da mesa, parecia um prncipe da Renascena ou coisa que o valha. Para nada lhe servia tanta sabedoria e o dinheiro que tinha. Porque Paula dizia constantemente, a ponto de aborrecer toda a gente l em casa, como eram opulentos os Nabasco e como tinham seis solares vazios no Nordeste e Maria Rosa dormia com um colar que valia milhes. Era uma lenda e era uma chatice. No era possvel atribuir-lhe anedotas como aos alentejanos, que esses mesmos estavam mudados e constituam um feudo parte. A primeira vez em que Bernardo teve a conscincia de que as coisas tinham mudado e que a frustrao
marcara encontro com a poltica, foi quando, estava ele no Chiado, comeou a chover. No meio daquele trnsito de repente catico, um carro cinzento-claro (no prateado mas s dum cinza frio) parou bem no meio da rua e um homem alto, indiferente, confiante, saiu; abriu a mala do carro, com vagar mas sem mostras de provocao, e, depois de encontrar o que queria, voltou a fech-la. O motorista no se tinha mexido do lugar. A um sinal que Bernardo no pde ver, o carro arrancou como se fosse entrar num cortejo e em poucos segundos desapareceu. Parecia uma imagem recortada num espao que no lhe era atribudo; um cenrio corrido sobre outro que continuou a funcionar na tarde chuvosa, bonita tarde de luzes que se acendiam demasiado cedo como por comando dum funcionrio mal disposto. Foi uma cena muito breve, desses instantes que parecem roubados a outro circuito de acontecimentos sem data e sem histria. Mas Bernardo teve tempo para o localizar: "So os novos feudais". Vinham, sem se demorarem, da provncia. O seu temperamento resoluto, sem mesquinhez, feito duma memria de reinado local, no consente que lhes faam resistncia, o que na poltica uma dificuldade maior. Os feudais no chegam ao poder pela falta de pacincia com os parceiros da capital, para com as suas manhas, palavras desditas e retomadas, alianas, semi-alianas e camaradagem de Assembleia e de pose para a fotografia. O riso com que se alivia a tenso das preocupaes partilhado com os novos feudais. Eles no frequentam cartomantes, no se fazem manejar, depilar e arredondar a barba, ou pintar o cabelo. So homens inteiros, aliados das suas mulheres que os gratificam com filhos belos e que na moldura duma porta parecem retratos de si mesmos. Odeiam a poltica, odeiam a globalizao, os fins-de-semana, a imitao da riqueza, as unhas tratadas e os banhos de imerso. Bernardo gostaria de os frequentar e de ser recebido nas suas herdades vigiadas por guarda-costas e cmaras fotogrficas. E de pretender as suas jovens que ele no saberia como tratar, porque so fogosas sem ser levianas e se destinam a criar uma famlia igual sua. Tradicional na intimidade e cnica com os estranhos. Joo, o irmo mais novo, saiu-lhe melhor com os novos feudais. Comeou por cultivar os mais velhos, falando pouco e sorrindo sobriamente com as suas piadas, a sua informao, a sua ideia de eficcia. Tornou-se um desses hspedes bem recebidos a quem no se fazem perguntas porque no esto ali seno para ilustrar os belos dias em que se acentua o valor dal-guma coisa como um convidado especial; este pode ser um s do futebol, um ex-presidente americano, um msico de renome mas ligeiramente ultrapassado. preciso cuidado com as novidades, os infiltrados que depois resultam serem caadores de escndalos ou sedutores das raparigas da casa.
Joo comportou-se, como os feudais gostavam de dizer: como um senhor. Usava jeans com palet preto, sabia comer marisco com as mos e bebia sem se embriagar. At que teve a sua recompensa, a de casar com uma prima dos novos feudais. O que Bernardo achou um sucesso. A verdade que os novos feudais estavam a apoderar-se de regies at a proibitivas, mas que se mostravam preparadas para os receber. Os media, as revistas de lazer e laudatrias do grande empresrio; e toda uma fileira da direita liberal, enfim verdadeiramente segura de que a hora tinha chegado. Acabara o tempo em que tentavam convencer que tinham na manga um projecto poltico. O poder estava finalmente ao seu alcance, e foi isso que Bernardo percebeu naquela tarde chuvosa no Chiado, quando, como que vaporizado no cinzento da tarde, o carro cinzento parou e dele saiu um feudal, firme, eficiente, fazendo parar o trnsito como se trouxesse uma ordem policial para o fazer. O trnsito parou realmente e Bernardo, estupefacto, disse: - So os novos feudais. Joo tinha razo: o honesto centro reclamado pela democracia. Joo j estava em Londres a provar o fato de casamento e, no quarto de hotel que dava para Kesington Park, pensou que finalmente se livrava do pai marinheiro, dos medocres amigos que tinham uma coluna nos jornais e da comida dos restaurantes. Havia um segredo que os feudais no conseguiram atingir: Joo detestava coentros. Era o seu ponto fraco e pedia a Deus que nunca fosse percebido pela gente perfeita e salutar com quem se ia aliar.
CAPTULO VIII JUDITE Ele no podia cruzar o vestbulo ou, digamos antes, a antecmara do salo destinado s festas e concertos privados, sem sentir uma picada no corao. A Ronda esperava-o, e, com ela, Saskia esperava-o, deitando-lhe um vivo olhar de esperteza e de convite. Enquanto todo o mundo se voltava na direco que seria a da formao do cortejo; e cada um estava ocupado com o seu ensaio e o seu papel no desfile, ela no. Era completamente solta na multido, atravessava-a com o intuito deliberado de atingir o outro lado do quadro. "Como Judite" - pensou resolutamente Martinho. Judite era a Saskia da Ronda da Noite. No pertencia ali, no era uma figura adequada e via-se logo que vinha doutra paisagem, doutra sociedade. Era uma variante da realidade, um pseudnimo. "Quanta volpia h em saborear a burla sem se ser burlado, coisa que s o erotista entende." Kierkegaard disse isto to bem que s admira ter um esprito o bastante feminino para o dizer. Saskia uma erotista que discorre ao burlar-se de tudo. Ela quer ser seduzida, mas antes disso seduz; a estratgia est na burla de que se reveste, sendo a burla um feitio, como a pequena Saskia demonstra, com os seus efeitos de magia e a infantil maneira de passar sem mancha entre a multido. Martinho pensava: que tem a ver a pequena Saskia com uma mulher como Judite? Primeiro, quando ela chegou Casa do Co, alguns anos atrs, trazia vestido um casaquinho ver-melho-cereja, com botes pretos, o que causava uma impresso de penria. Sobretudo, no trazendo luto pela me, aquilo parecia uma inconvenincia. No era assim to pobre mas, provocando a comiserao, acharam (as freiras do Patronato) que ela teria mais facilidade em ser recebida por Maria Rosa. Era em Maio, o jardim estava coberto de rosas, as violetas e os narcisos tinham desaparecido. A pequena Judite parou porta da cozinha onde Elisa estava a fritar ovos, operao delicada que ela no confiava a ningum. - Entra e come alguma coisa - disse Elisa. Na terra dela no se recebia ningum sem aquela espcie de saudao. Sempre havia alguma coisa que pr na mesa, pelo menos broa de milho e lascas de bacalhau cru. A pequena Judite no pareceu entusiasmada com a oferta. Bebeu um copo de gua com sofreguido. Santo Deus, como era bonita! Elisa retirou do lume a sert e um ovo abriu-se para derramar a gema no leo a ferver. "Quem me dera os dentes dela!" - pensou. Eram dentes grandes e slidos que tinham parte na seduo da mulher. Doze anos e ela era uma mulher feita, mais alta do que mediana, uns olhos que pareciam negros mas eram azuis. "Onde vai ela com uns olhos assim?" - pensou outra vez Elisa. Tirou o avental da cozinha para, instintivamente se mostrar mais apresentvel. Judite e uma tia dela que estava grvida e era sardenta, entraram para a sala de jantar. Um espelho ocupava toda a parede do fundo e Judite no despregou os olhos dele. Nunca se tinha visto de corpo inteiro.
Maria Rosa admirou-se de a ver to mal vestida. - No tinham mais nada que lhe pr? A tia desculpou-se, mas via-se bem que tinham tirado da tragdia o melhor proveito e repartido anis e brincos, um deles apanhado no cho onde se dera o crime. Tambm levaram a roupa melhor e a loia dos dias de festa. Tudo com muitos suspiros e lgrimas estancadas com um leno sujo e enrodilhado. Aparecia sempre um leno muito amassado quando aquelas mulhers choravam. Maria Rosa despediu a tia. No gostava de mulheres grvidas ao p dela, parecia-lhe alguma coisa de obsceno e que as guas se iam romper ali e molhar tudo. E os ces vinham lamber at serem enxotados. Judite comeu por fim um almoo completo. - de muito alimento - disse Elisa. - Na idade dela assim. Entendiam-se por meias palavras ou por meios silncios. Estavam de acordo quanto contrariedade daquela misso. Educar a filha dum criminoso era j por si uma tarefa ingrata, tanto mais que, com doze anos, no se propriamente uma criana. Elisa teve um impulso de a tomar como sua protegida, mas Maria Rosa antecipou-se: - Leva-a l para cima e deixa-a descansar. - L para cima, para onde? A casa era como a dum caracol, escada inclusa, e o andar principal consistia no grande quarto de casal, outro pequeno, que era o de Martinho, e o chamado toucador, todo branco, ao lado do quarto de banho. Um quarto de banho de mulher mantida, sempre cheiroso de talco fino, de sabes ingleses e com uma banheira onde cabia um cavalo; prpria para festas aquticas a dois, via-se logo. No andar de cima ficavam as camas das criadas e portas que fechavam mal. Era quente e mal acabado. Naturalmente a casa no fora feita para pessoal interno e Elisa, tanto ela como a criada de quartos, queixavam-se constantemente. Viam das janelas amansardadas o Torreo Vermelho. - Aquilo sim, que uma casa! Tem retretes em todo os andares e dispensas com fumeiro pendurado disse Elisa. - Como sabes essas coisas? -J l entrei. - s uma bisbilhoteira. E, sim, era, e com muita honra. O seu rosto liso e maduro inchou de orgulho, porque tudo o que ela fazia lhe dava importncia. Tinha o direito de conhecer a vida de toda a gente, de a comentar e at alterar segundo o que ela chamava "o seu ponto de vista". -Tens um ponto de vista muito torto - disse Maria Rosa. Mas como toda a gente tambm tinha, aquilo no oferecia motivo para discusso. Cada uma ia para seu lado, uma dando ordens contraditrias, outra cumprindo-as sem vontade, mas entendidas nos gostos e nos pormenores duma coisa em que uma mestra e a outra apenas espelho. A
moda est para a amizade entre mulheres como o perigo para a lealdade entre os homens. Sem Elisa, Maria Rosa no teria to bons resultados como mulher de sociedade, isto porque mulher elegante e bem nascida e assim por diante, falta sempre a sua imagem real de que ela no pode desfazer-se; sem o que o prazer sofreria muito com isso. Ao belo est pegado o feio; inteligncia, a obtusa viso das coisas que faz parte do belo enquanto o consentimos como auxiliar das trevas. O corao das trevas, sempre espera e pronto a devorar, consumir e babar-se de desejo pelo mundo. Judite, por mais laos e fitas da cabea aos ps, no ia desaparecer como foi vista pela primeira vez na casa beira da estrada. Uma casa de feitor, nua por dentro e por fora, com duas camas de ferro onde os percevejos se recolhiam, nas juntas, para sair noite, vidos, vampiros do sangue morno que os ia inchar at ser difcil voltarem aos esconderijos. - preciso queimar estes insurrectos - disse a Estrelinha. E o pai trazia o maarico e acendia-o como se fosse assaltar a cova dum drago, ele prprio armado como S.Jorge com o fogo e um casco para se prevenir. Isto fazia muita impresso a Judite, que tinha trs anos. Era preciso tanto para matar? E as pequenas bestas fugiam, logo abrasadas; Judite ia mexer-lhes com uma palha de sorver o seu leite achocolatado. Sentia orgulho por ser o pai vencedor daquela batalha; e Estrelinha Sopa-de-Massa interrompia o seu prazer, esfregando a cama com aguarrs. A casa nunca cheirava bem. Era a sardinha assada, a couves que iam ganhando um sabor choco, do almoo para o jantar. No eram muito pobres, o pai chegou mesmo a comprar uma carrinha para servio e trazia nelas as compras do supermercado. s vezes havia uma surpresa entre as compras: um docinho, um cromo. Judite trepava-lhe pelas pernas e no o largava. - Esta rapariga como uma videira, agarra-se e no larga. - doida - disse Estrelinha, arrumando as compras. Tinha uma figura soberba, alta e bem quebrada na cintura. s vezes, uma ndoa de sangue estampava-se na saia; ela ria-se, indiferente, se o notavam. No era limpa, no se importava em parecer bem; sabia talvez que aquilo a fazia desejada. Tudo mudou quando Judite tinha oito anos e comearam as grandes brigas em casa. Era como as grandes caadas. O pai saa de noite, voltava tarde, Estrelinha esperava-o acordada. Ou fingia dormir, imvel, com o corao trespassado por setas e punhais, qual deles o mais afiado. Uma mulher com cimes, que finge dormir na cama desfeita, os travesseiros escurecidos pelo p e o suor do trabalho, era uma coisa assustadora; e doce, porque, nos olhos muito abertos e secos de febre, ela carregava um amor extraordinrio. O pai voltava, no se ouvia seno ele a descalar-se e depois nada. Ia fumar para a varanda das traseiras, que tinha ninhos velhos de andorinhas pegados no muro, em cima. Porque no se ia logo
deitar? Judite sustinha a respirao e, como a irm dormia, de boca aberta e ressonando brandamente, ela abanava-a para que ela mudasse de posio e se calasse. No queria perder nada das grandes caadas. Primeiro era o rosnar da me, tentando parecer calma, oferecendo-se para fazer caf. Mas depressa o tom dela subia, punha-se a gritar, a vociferar, como uma fera descoberta no seu covil. Chorava e depois punha-se a rasgar, a quebrar, amotinada contra os objectos que eram recordaes. Uma vez que reduziu a pedaos a fotografia do casamento, o homem bateu-lhe. Com as costas da mo, bateu-lhe. Talvez fosse um insulto mais provocador, porque Estrelinha ganhou foras para maior alarido. Dizia pragas horrveis, queria para ele as doenas mais fatais; queria-o desfigurado, trpego, impotente e velho a arrastar-se como um co atropelado. Judite, sentada na cama, ouvia com ateno. Acontecia que o pai voltava a sair e ia dormir para a casa dos lagares, morto de fadiga, de desespero, no querendo mais do que fechar os olhos e cair num bom sono como se estivesse num colcho de penas. Estava saciado e feliz com a amiga, que recordava com gratido. A gratido havia de o levar para ela, um orgulho macho seria para sempre a sua virtude, mais do que a fidelidade e o amor do casamento. Talvez Judite percebesse qualquer coisa. Um dia, quando o pai saiu, a tropear, ela foi levar-lhe um casaco velho; mas como o visse encolhido, a dar voltas sobre ele mesmo, duma maneira automtica, como a expulsar um sofrimento imenso, retirou-se. Nunca mais pde esquecer a figura do pai, luz da lmpada do armazm, que iluminava pouco at porque estava coberta de sujidade. Era como uma dana primitiva, destinada a achar alvio numa grande aflio. O corao de Judite como que parou. Pareceulhe que o cabelo do pai estava branco, mesmo branco. Passou esse tempo de desespero, de paixes cruzadas, com uma loucura qualquer que as crianas partilhavam. Se a me as punha fora de casa, voltavam, sem fazer barulho, descalando-se na varanda e fingindo entreter-se com jogos, se eram surpreendidas. Fugiam da escola para ir a casa, cuja chave estava na porta e a me desaparecida. Esperavam. Estrelinha nem as via, metida com os seus delrios, as suspeitas, a morte no corao. Bebia; o marido encontrava-a suja, estendida na cama, sem dar acordo. - Que fiz eu para este castigo? - No me queres. Queres a todas, todas te servem, grande co. - Est bem, tu que sabes. - Vejo-te com elas, com as mos nas pernas delas. - Olha as pequenas, que so inocentes.
- So mulheres e as mulheres no so inocentes. Sabem mais do que tu e eu. - Ela ria-se, fazendo ninho na cama, chamando-o, os olhos marejados de desejo, sem ver nada seno o homem que lhe fugia. Ela achava que ele a culpava de alguma coisa, de no lhe ter dado um filho macho. Quando ia para o hospital, com a grande barriga que abria as costuras da bata, ele dizia-lhe: - V l se me trazes mais loia rachada. Queria um rapaz, mas gostava das filhas, encantado de as ver bonitas e a crescer bem. Estrelinha Sopa-de-Massa sentia no peito um amor que lhe fazia a voz estrangulada. Teria amado outro homem como aquele? Achava-o bonito, desde o primeiro olhar que o achara bonito, destinado a ser dela. Um dia que encontrou um vestido largo meio desmanchado, disse: - de quando eu estava de barriga... J se dizia "estar de beb", mas ela no fazia caso dessas merdices, como ela dizia. Para ela um filho era a barriga crescida, a roupinha que ia minguando, o primeiro riso, o primeiro dente. Os sustos, os gritos de aviso, as sapatadas de clera breve e o ensino no carregar do sobrolho e no fingir desamor. "Parir dor, criar amor." Todos entendiam e, pondo a roupa ao sol, as vizinhas contavam coisas em que eram parceiras, coisas de mes que se receiam sem que o saibam. A primeira comunho: era aos sete anos, para reforar os laos da comunidade catlica. Era apenas um dia extra, melhorado, em que as comungantes se pareciam todas umas com as outras. Depois que era v-las crescer, ganhar formas, tomar ares de segredos, olhar com desprezo para os rapazes, fazer recados misteriosos me. - Que levas a? - Eu? Nada. No passava duma receita para a farmcia ou dinheiro mido para comprar uma fatia de bola de carne. Mas Judite fazia-se muda, no dava a entender seno que tinha muito que contar, se quisesse. Se soubesses o que eu sei! - Que que tu sabes? - No posso contar. -Judite continuou a andar, orgulhosa do seu segredo. Doa-lhe a barriga, s vezes pensava que ia cair, apeteciam-lhe coisas estranhas: beber pelo fundo dum copo, misturar leite com fruta, ir atrs para dar outra volta a uma chave, de modo a que ela fique horizontal ao soalho do quarto. Tudo isso eram sinais, exigncias, sem as quais 283 no sossegava, no dormia, ficava com a sensao de ter cometido uma falta e de que seria punida por isso. Comunho era a solene. Com um envolvimento sensual do ritual, com o primeiro vestido sacerdotal em que se desposa a noo da virtude e da honra investida. Tudo claro, simples, inteligente, a comear pelos atavios, desde os ps s orelhas, onde algumas recebem as prolas da apresentao laica,
num baile. Os homens gemiam perante as despesas; e Maria Rosa mandou chamar Estrelinha para lhe oferecer por um dia o vestido que Paula usara. Estrelinha mostrou-se agradecida, mas no aceitou. - Espera mais um ano. O pai j disse: um ano e as coisas vo-se compor. - Um ano e Judite cresce mais e fica acima da cabea das outras todas. At aos vinte e cinco no pra de crescer; dessas, que eu sei. Queres levar o vestido, ou no? No sabes o que perdes, est novinho em folha. Conservei-o em papel de seda, nem uma mancha. - O vestido e a touca, se fizer favor. Maria Rosa pensou que ela nem sequer avaliava o preo daquele bonito modelo, mais de noiva do que de comungante. A nica coisa que fazia a diferena era a touca de organdi com fitas que recolhia os cabelos, como a duma religiosa. Mas Judite no quis a touca, e sim um vu como o das companheiras, e luvas de algodo. O pai olhou para ela, de lado, sem querer dar-lhe ateno. - A ver se se calam com isso. - No est bem arranjada? O tero de prata. - A ver se te calas. Um ano depois, Judite tinha crescido mais, e o vestido j no lhe poderia servir. Quando se casou com Martinho encontrou-o numa caixa e teve a mesma impresso de pertencer pobreza cujo desprezo no podia ser compensado, por mais mritos que ela tivesse. Martinho acariciou-lhe o rosto como se faz a uma criana amada. Mas uma criana tem esse atributo da pobreza que a faz alvo de alguma coisa de grosseiro, como se jamais pudesse ser seno vinculada a ele. Era por isso que as mulheres pobres eram facilmente escolhidas e at mais queridas no casamento: porque o desprezo as punha ao alcance do desejo, melhor do que se fossem respeitveis pela fortuna. Logo depois do drama, que comoveu toda a provncia, as crianas foram entregues a uma espcie de orfanato para serem educadas at idade de maior discernimento. A mais nova foi encaminhada para Branca, para casa de famlia chegada. Judite, no. Era uma rapariga alta e com aqueles olhos violeta que faziam prever coisas pueris, to do desejo em que elas adormecem. Maria Rosa mandou-a trazer a casa e ela ficou oito dias; depois mais oito e assim se adaptou sem parecer interessar-se verdadeiramente com o que pudesse acontecer-lhe. Maria Rosa tratava-a como uma boneca, vestia-a a seu gosto e, por fim, tinha Judite vinte anos, disse a Martinho que casasse com ela. A, deu-se o dilogo que j relatei noutro lugar. Se o entusiasmo o recurso da melancolia, Judite at se prestou a uma lua-de-mel que foi o que devia ser: uma iniciao compatibilidade da razo. Assim, tinham que criar uma famlia e ensin-la a ficarem juntos e juntos morrerem. Mas no vieram crianas desse encontro, talvez porque no h um decreto especial para a fecundidade.
preciso dizer que Maria Rosa teve um mau relacionamento com a maternidade. Sozinha em campo, Paula deu em ser uma inimiga de todas as horas. Ridicularizava-a pela fora do cime que se desenvolveu nela como uma infeco. Mesmo depois de j no ter idade para aquelas pequenas perfdias em que se pratica o mal para estar a par dos golpes a retribuir durante a vida, Paula ainda no perdia a ocasio de humilhar a me, de a ofender, se possvel, e, sobretudo, de a deixar insegura e "esvada". Esvada em sangue era o que seria adequado dizer; porque o duelo de duas pessoas que se amam como um talhe duma espada destinado a fazer jorrar o sangue. O primeiro casamento de Paula (o marido era coxo e arrastava-se dificilmente, preferindo estar sentado a mexer-se, pela fraca figura que fazia) destinou-se a magoar Maria Rosa. Sobretudo, a hiptese de o fazer partilhar a alegria da beleza, estava excluda. Ele morreu prematuramente, sendo o nico filho Martinho. No havia em casa muitos retratos do pai, excepto do tempo em que ele fora estudante em Coimbra; mostrava-o plido, embrulhado na capa como se fosse uma mortalha, e o sorriso no bastava para transmitir confiana. Ao lado de Paula, bonita e cheia de fora, com o gosto pela ginstica desportiva, aquilo parecia o que era realmente: uma partida indecente. Como ele se formou s trs anos depois do casamento, viveram todos na mesma casa, quando era poca de frias, o bastante para se odiarem cordialmente, como se diz. Quando o pai morreu, dum A.V.C., Paula desapareceu por uma temporada e foi viajar. Maria Rosa desconfiou de que ela estivesse grvida outra vez e que quisesse abortar em paz; era uma rapariga muito decidida e com pouco juzo, razo por que lhe fez bem o segundo casamento com um marinheiro que foi seu instrutor e seu conselheiro em coisas de heranas, que foram tumultuosas quando o pai Nabasco morreu. O herdeiro mais favorecido era Martinho. Herdava os solares em runas, e Maria Rosa todo o dinheiro que pde encontrar debaixo dos colches. Porque o Nabasco escondia as notas nos lugares mais incrveis, dentro dos livros que ningum lia, como as Biografias de Plutarco, ou como se chamam. Era um homem que fazia da imprudncia uma forma de justia. "Quem c ficar que se arranje", costumava dizer. Era um vicioso ponderado que conseguia parecer de bem com Deus e com o Diabo. Para ele no havia mulher honesta, bastava o homem querer. Ainda chegou a conhecer Judite, mas no lhe prestou ateno porque estava diabtico e s pensava em comer. provvel que com mais oportunidades ele a descobrisse para um prazer que concede algum limite morte. Mas a casa era um quartel de Inverno, toda a gente se cruzava l dentro e havia vigias em todas as portas. Como encontrar Judite sozinha, disponvel, com os joelhos descobertos, sentada na beira da cama? Enfiava contas de cores para fazer anis e no parecia afectada pela morte da me, que lhe deixara uma espcie de vazio que ela no sabia preencher. Talvez fosse o momento ideal para a deitar para trs na cama e a cobrir de beijos, levantando-lhe as saias com um desejo que ela no podia reprimir, e que ela recebia como uma consolao sem conflito algum. Mas
era impossvel. A cara, com um sinal carnudo no nariz, aparecia porta do quarto. Era a da velha cozinheira, j h muito retirada das suas obrigaes e que se arvorava em carrasco de toda a gente, encontrando nisso a sua forma de utilidade e at de promoo. Com ela no havia armrio trancado, sto despejado de crianas que iam para l brincar aos doentes e doutores, maneiras de descobrir o sexo e os seus elementos prximos, o prazer e a angstia do grande segredo. Ela, a cozinheira velha, ainda que enferma do corao, aparecia por todo o lado, tornando tudo uma interrompida manobra, abortando o desejo e caindo de surpresa sobre as brincadeiras de Paula e fazendo-as parecer o que realmente eram, insdias do corpo que exigia o seu preo. - No sejas to desconfiada - disse Maria Rosa, olhando distncia o polido das unhas. - So crianas. - Ningum sabe de que coisas imundas so capazes as crianas. No sei como se demora tanto a crescer e a ter juzo. Maria Rosa chamava velha cozinheira a Czarina. Quando se casou com o Nabasco e entrou naquela casa que parecia um bivaque abandonado, com a Ronda a ocupar uma parede e a tapar as manchas de humidade, l estava a Czarina, com o ventre duro como pedra e os olhos como pevides de melancia. Tinha assistido aos casamentos e aos partos das mulheres, vira morrer muita gente. - Nada de mais. Parecem escapar de qualquer coisa e aproveitam a ocasio de estarmos mais distrados: ou a almoar, ou a mandar as vacas para a cobrio - dizia. O Nabasco morreu antes dela, o que pareceu causar-lhe confuso e desalinho nas ideias. Mas com a morte do Nabasco acabaram-se as viglias, as entradas de surpresa nos momentos em que at Paula estava em perigo. Maria Rosa sabia que o seu leito era habitado por Paula aos quinze anos, to bela que a luz que ela emitia iluminava a casa toda. O pai coava-lhe as costas, estando Paula debruada sobre a mesa da braseira onde se jogava, depois de jantar. Os dedos dele eram hbeis para procurar pequenas salincias na pele, e Paula sentia gozo naquele catar, arranhar, desprender de crostas mortas. - Anda, Paula. So horas de deitar. - A Czarina aparecia com o grosso avental de cozinha que tinha um remendo quadrado como um braso duma bandeira. - To cedo! O Nabasco calava-se, suspenso, alerta, sem mostras de ser apanhado na sua pesquisa que lhe trazia garganta um soluo de prazer. Esperava qualquer coisa, a morte da Czarina talvez, tanto mais que ela sofria do corao e era preciso aplicar-lhe ventosas para que respirasse nas suas horas de crise. Ventosas, estricnina, receitas que soavam a mistrios de alquimistas. Mas Paula casou antes de fazer dezoito anos e saiu de casa no Inverno, coberta de peles, e at os sapatinhos suos eram forrados de pele de rato ou coisa parecida.
O Nabasco ficou desapontado; passou a ir cidade mais demoradamente, e Maria Rosa sofreu o abandono da sua carne, que era ainda exigente e que se julgava apetecvel. No se podia saber se avinda de Judite no correspondia a uma forma de criar elos entre os parceiros do amor. A Czarina recebeu-a com indiferena aparente, mas dedicou ao caso uma ateno cautelosa. Sabia que o seu cansado corao j no podia acompanhar a grande ronda que era necessria naquelas situaes. Talvez fosse ela a nica pessoa capaz de descobrir quem era a criana metida na Ronda como por acaso, munida de poderes mortais e to feliz no meio dos homens que se preparavam para obedecer a uma ordem. Era o desejo na sua forma irresistvel e compulsiva, capaz de provocar as desordens mais alucinantes, como sero capazes os bons rapazes da Ronda da Noite. Um dispara o seu arcabuz, outro faz rufar o seu tambor. Tudo est preparado para uma ligeira carga enfeitiada de sentidos fceis, mas, de facto, cheia de enigmas, de horrores, de maldosas faces, como a do pequeno feiticeiro que acompanha a alegre Saskia, nessa altura j arrastada para o seu coval. A Czarina bem merecia figurar na Ronda, com a sua cara sardnica e o olho espreitador. Com a entrada de Judite na casa, que j era outra e depois foi o Torreo Vermelho, as coisas mudaram de rumo. A Czarina era praticamente uma moribunda, no podia percorrer os corredores com as suas chinelas de pano, sem dar sinal da sua presena nem ao co de Maria Rosa que dormia no seu cesto, ressonando ou, nos sonhos, perseguindo os gatos. Como aconteceu o Nabasco morrer to inesperadamente, com o copo na mo, na sua cadeira de bunho, no foi sequer muito comentado. Ningum se lembrou de tirar-lhe o copo da mo seno a prpria Czarina. E quando Horcio Assis, o mdico, chegou, j o Nabasco estava estendido na cama do casal para ser observado. Os ramos da palmeira, no jardim, defronte da varanda, moviam-se e a chuva comeava a cair. A presena dum morto no impedia que a casa fosse achada confortvel, um verdadeiro ninho de amores margem do sistema conjugal. A pele de leo com a bocarra aberta, parecia acolhedora. Mas Maria Rosa recusou-se a continuar na Casa do Co por mais tempo, motivo por que voltou ao solar da Ronda, onde Martinho passava muito tempo. - tempo de encontrarmos lugar para ele - disse Martinho. Falava do quadro, que parecia ter crescido na parede da sala de jantar. De facto, era uma tela enorme, coberta por uma camada de sujidade que lhe dava a cor nocturna e pattica. De facto, fora pintado para a luz do dia, e nisso consistia a sua fora orientada para um acto diurno e aliciante. Depois de muitos anos e da mudana para o Torreo Vermelho, a Ronda encontrara por fim o seu lugar, se no certo, pelo menos adequado s suas dimenses. O salo nobre do Torreo Vermelho, com todas as incongruncias de estilo que o cutileiro tinha adoptado, arte-nova e restos duma pesada carga poltico-literria do sculo XIX (o famoso retrato de Vitor Hugo estava nos corredores e invadia at os quartos de dormir), abrigou a
Ronda. Depois ela ainda mudou para a antecmara, ao cimo das escadas, onde podia ser vista por todos os visitantes sem que significasse uma desconsiderao de qualquer gnero da famlia Nabasco. certo que muitas pessoas, at as mais ntimas da casa, nunca tinham visto a Ronda da Noite. Por exemplo, Patrcia Xavier nunca lhe tinha posto a vista em cima, e morreu sem ter conhecido a tela que, de resto, era tida por falsa. Porm, Patrcia sempre se mostrou solidria com a opinio de que a Ronda merecia ser investigada. Um antigo Nabasco fora embaixador na Rssia e recebia presentes valiosos de que ningum fez caso quando ele se retirou e se tornou uma espcie de boiardo da regio, falando apenas francs com o seu barbeiro que era tambm o seu sangrador. A tigela das sangrias ainda estava no lavatrio de mrmore rosa e, durante muito tempo, ningum sabia para o que servia. A Ronda excedia muito um presente entre parceiros da diplomacia. No era possvel datar a sua chegada a Portugal, mas tinha-se adiantado a hiptese de que teria feito parte da espcie de saque que a duquesa de Mntua, vice-rainha deposta, levara consigo na altura da Restaurao. Havia muito de compl naquela histria da emancipao de Castela, e a duquesa no foi impedida de carregar os tesouros que lhe apeteceu levar e ganhar as suas terras em perfeita segurana. A Ronda seria parte desse tesouro, no como prprio, mas sendo ela a guardi de muitos valores que pretendia repartir com a princesa de Carignan, sua cunhada, to altaneira e insuportvel como ela. Atriburam ao feitio da duquesa, inepta e sem diplomacia, os incidentes de Lisboa. Cinco anos antes da sublevao de Portugal, j a duquesa de Mntua era julgada pelos fidalgos portugueses como criatura desrespeitosa e impossvel de aturar. A ser verdade que a Ronda viajava na bagagem da duquesa, sempre lamurienta e queixosa do pouco dinheiro que recebia da corte, seria ou no a Ronda, original? Em 1642 foi quando Rembrandt pintou o seu quadro. Teria pintado outro antes dessa data? Em 1643, a Mntua estava em Madrid, a pedido da rainha, e a intriga das damas ia selar a queda de Olivares. Um dos erros de Filipe III teria sido o rompimento da trgua com os Holandeses. E se, antes disso, perante os auspiciosos tratados de matrimnio entre a infanta Maria e o prncipe de Gales, o quadro fosse encomendado? Ele transpira uma graciosa aura de preparativos para algo festivo que se vai dar. No uma ronda, uma festa. Chegado a este ponto, Martinho perdeu completamente contacto com o mundo real e particularmente o mundo de Judite que se anunciava tempestuoso. A ideia de a Ronda poder ser outra coisa muito diferente da companhia do capito Cocq, transtornou-o a ponto de lhe provocar um estado febril e dores musculares. O doutor Horcio receitou-lhe conforme os seus conhecimentos, inclinandose para uma febre reumtica, o que o comprometeu com medicamentos que se revelaram ineficazes. Dum lado, Maria Rosa com o seu esquadro de mdicos em franco galope; doutro lado, a Ronda
tornada uma obsesso cada vez mais ansiosa, parecendo ter um destino que subitamente pode interromper a respirao do seu estudioso. Martinho emagreceu at se lhe conhecerem os malares; tinha uma veia na fonte que se tornara saliente e que lhe doa. No dia em que fez uma descoberta que o tornou de repente mais febril, Judite veio pedir para lhe falar. Achou-o doente, mas no quis acentuar isso. Conservara-se direita diante da mesa de trabalho do marido e os cabelos loiros caam em massa pelos ombros. - Tenho que lhe dizer uma coisa importante - comeou ela. Martinho arredou alguns papis como se lhe fizesse lugar, e esperou. - que o meu pai sai da priso daqui a pouco e eu vou viver com ele. - No tinha apanhado a pena mxima? Desculpe... Ento est em liberdade no tarda... - Calou-se, calmo, sem perder de vista os livros abertos e as notas que tinha tomado. - Acha uma deciso certa? - No sei. - No sabe e faz as malas como se fosse para as termas? No volta mais? Ele teve a noo absolutamente segura de que Judite matara a Estrelinha Sopa-de-Massa. Tudo era duma simplicidade assustadora, mas ele no podia desviar-se da pequena vivandeira da Ronda da Noite e da descoberta extraordinria que tinha feito: que no retrato da mulher do conde-duque de Olivares se via uma pistola pendurada cinta por uma fita de seda. Era um sinal de poder, um poder domstico e absoluto que Quevedo louvara em termos encomisticos? Ins de Zuniga, sobre o seu vasto guardainfante, ou seja, as anquinhas, mostra claramente a pistola ao alcance da mo. De qualquer maneira, Martinho teve a ideia, a que no pde furtar-se nunca mais, de que a Ronda tivera duas orientaes: primeiro, era uma parada festiva, duma anedota em que tudo mexe e se destaca; depois, desaparecido o sentido da Ronda, talvez o fim das trguas com a Flandres, erro reconhecido na histria militar e diplomtica espanhola, a tela ficou abandonada. Quando o riqussimo capito Frans Banning Cocq lhe pede que pinte a sua companhia, Rembrandt no hesita: tira da sombra do atelier a grande parada, que no condiz de facto com o teor do tema que lhe foi apresentado. Por isso foi mal recebido, suscitou risos e escndalo. A sua glria ser pstuma. O que fez o pintor no foi inventar uma parada alegre e quase carnavalesca, mas fazer o retrato do senhor de Purmerland que est prestes a dar ao jovem Vlaardingen ordem de marcha. Atrs deles todos os outros mantm o humor inicial, inclusive a pequena Saskia mascarada e os energmenos envolvidos na festa, entre os quais haveria outras personagens de fbula que dariam sentido ao enigma da Ronda da Noite. O senhor de Purmerland, e o seu lugar-tenente encobrem o que poderia explicar aquele tumulto cheio de improviso e alegria. So dois quadros: um folio e desordenado, outro destinado a retratar homens que no tm nada de improvisado nem de estranho sua classe. Martinho olhou para Judite com uma espcie de reconhecimento.
- Sente-se, no fique de p. O seu pai assim to importante? - Devo-lhe muito - disse Judite, com voz fraca. Era uma deciso tomada h muito, desde talvez em que o ouvira uivar de dor, estando a ser interrogado no armazm onde empoava o vinho escuro, como sangue. Ela julgou que era sangue, quando o levaram. - No sangue, no vs que no ? Mas para ela aquilo estava assente e significava um lugar de suplcio, imerecido, injusto. Nessa noite rebentou-lhe o primeiro vulo no ventre e ela ficou menstruada. Por muito que se lavasse o sangue, em postas escuras, no parava. E Judite achou que ia morrer, o que lhe deu uma certa esperana, no sabia de qu, no sabia na verdade. Martinho, ao acordar da surpresa que a mulher lhe dera, sem parecer fazer mais do que dar a notcia duma pequena alterao na rotina caseira, perguntou a ele prprio o seguinte: seria que a revelao repentina que tivera correspondia realidade? "Esta rapariga ficou doida na noite em que mataram a me e est aqui como tal. Tenho que ficar quieto e deixar que as coisas levem o seu rumo." Maria Rosa chamou-o e disse-lhe: - Judite sempre me saiu uma vadia! No esperava isto. Etu? - Eu espero tudo de toda a gente. como na Ronda, se me fao entender. Todos preparam a entrada num papel que pode nunca acontecer. So ligeiros e felizes na expectativa, mas depois da ordem dada pelo capito, no se sabe como agiriam. - Tu e a tua Ronda que est a tirar-te o juzo todo! Olha, meu menino, segura Judite e no a deixes tomar atitudes. As pessoas no foram feitas para tomar atitudes, mas para resistirem a elas. - Eu penso que Judite matou a me, a tal Estrelinha Sopa-de-Massa e o pai foi condenado mas estava inocente. - E se fosse? Ela no tem nada que tomar uma atitude e ir servi-lo como o escravo Jau ao Cames. tua mulher. - Antes disso, j tinha doze anos de duradouras lembranas. O cheiro do pai quando entrava e despia o colete donde tirava os cigarros e a navalha, no era para esquecer mais na vida. So coisas imensas como o mar. - No a amas, o que . - Amo-a mas no como coisa minha. Estou a v-la como a pequena feiticeira da Ronda, a escapulirse daquela barafunda. Nada a pode impedir. Eu no a posso impedir. Rembrandt no a pde impedir e deixou ver como era bonito ela passar por detrs do capito Banning Cocq. Podia t-lo pintado mais para a esquerda e apagar a pequena criatura da pistola e do frango cinta. Mas no quis.
- S dizes disparates. A Ronda deu-te a volta cabea e no h remdio. - Mexeu-se to sacudidamente na cama, alisando a dobra do lenol e fazendo voar as almofadas por cima dela, que o co no seu cesto levantou a cabea e gemeu como se receasse um castigo. - Est a assustar o co - disse Martinho. No perdia nunca o sentido das prioridades. De todas as coisas que mais admirava no mundo, no eram os gregos nem os egpcios, mas Emily Bront, to apagada, to desconhecida na manh fria da sua charneca. Ela, com a escudela dos ces na mo e os animais a babujar com as beias no caldo de farinha e ossos. Depois ela sentou-se lareira, e morreu. Isto sim, que ter o sentido das prioridades. O que nos pedido segredado ao ouvido, selado na fronte anglica dos homens. Martinho disse: - No ouvi bem o que Judite estava para ali a falar. Estava preso a outras coisas. A pistola no cinto da duquesa de Olivares. Maria Rosa desistiu de continuar a conversa. Aquele neto, educado para ser primeiro entre pares, revelava-se uma pessoa muito perto de ser doida. Tinha ideias que mais condiziam com adivinhaes do que com qualquer outra coisa. - Diz Elisa que me traga o ch. Elisa j tinha morrido e a Czarina tambm. Quem andava pelo Torreo Vermelho, com um pequeno transmissor no bolso, ou ento um telemvel sempre cheio de mensagens eram meninas novas que cuidavam da pele como a imperatriz Popeia. Temiam mais a celulite do que a febre das aves. Judite no partiu logo. Como as amantes de longa durao, tinha acumulado roupas e objectos de todos os feitios e de improvvel utilidade. Como tinham aparecido aqueles males de cabina forrados de cretone s flores, no se podia conjecturar. Ocupavam os corredores e dia aps dia enchiam-se at s bordas de roupas e adereos, caixas grandes e pequenas, todas elas com estojos de luvas e jias de pechisbeque com que Judite gastava fortunas. Parecia a partida de Eva Braun de Berghof, e no uma simples mudana de vida duma burguesa sem importncia, como Judite se qualificava. Pela primeira vez Martinho compreendia que ela o invejava, deixando na sombra qualquer afecto que tivesse nascido nos anos de casados. As mulheres no se do bem com a felicidade. Se Martinho a tivesse tratado mal, ela no se tornaria to vingativa e sedenta de qualquer espcie de reparao. Judite no perdia a ocasio de louvar o bom entendimento conjugal, fazendo sobressair as virtudes do marido. Mas seria ela sincera? No preferia que ele a desprezasse e a agredisse de qualquer maneira? Um bom marido sabe que s vezes propcio a relaes saudveis, de sexo e de tudo o mais, aplicar umas pequenas punhaladas nas costas da paciente esposa. Lus XIV ridicularizava as pretenses de nobreza da sua
"rainha" Maintenon; e decerto isso ajudava a que se entendessem bem na cama, fazendo do amor um cruzeiro de longa distncia. Mas Martinho, to correcto, incapaz de humilhar Judite em privado ou em pblico, no podia, por isso mesmo, esperar gratido dela. Ela punha um certo gosto de espectculo ao fazer carregar os males escadas abaixo (porque no cabiam no pequeno ascensor de servio) e olhava, desde o varandim do patamar, como se estivesse na amurada dum barco, e partisse para as ndias Orientais, as operaes do carregamento das malas, fardos e uma infinidade de caixas onde chocalhavam coisas metlicas, pratas decerto de boudoir ou at argolas de guardanapos e molduras de retratos. Judite revelava-se uma mulher de negcios naquilo de se apoderar de bens que praticamente no lhe pertenciam. - Meu Deus - disse Maria Rosa, estupefacta -, ela levou o meu binculo de teatro que estava num saquinho de veludo lils. Para que quer ela um binculo de teatro? Tu fizeste infeliz essa mulher para que ela ficasse to avarenta. - Eu? - Martinho estava pouco concentrado na partida de Judite. Tudo aquilo lhe passava por cima da cabea e j se habituara aos males abertos e quele despejar de gavetas como se fosse o esventrar dum corpo. Ficava para trs um velho peignoir, o que provocava uma sensao de desprazer quando mais tarde o descobria. Entretanto estava todo envolvido com a Ronda, tendo feito um dossier que, a avaliar pelo nmero de pginas, era um verdadeiro roteiro de navegao do famoso quadro. No pde ir alm dum tal Salmanazar Figueiroa, que esteve na Flandres em data aproximada celebridade de Rembrandt, e que poderia ter trazido a Ronda para Portugal, de maneira a ela cair no tesouro da duquesa de Mntua. Sfrega como ela era de honras e de dinheiro, talvez aceitasse a Ronda como penhor dum apreo que ela no assegurava devido ao feitio orgulhoso e inapto. Nesse tempo, talvez a companhia do capito Banning Cocq no tivesse tanto valor e fosse fcil negoci-la, sobretudo depois do mau recebimento que teve ao ser exposta ao pblico. Tudo isto deixava Martinho Nabasco cada vez mais perplexo e envolvido com o que considerava uma tese de doutoramento, a possvel duplicao da Ronda ou o significado primitivo do desfile de rua, sem a participao das personagens de primeiro plano. Entretanto Judite ia arrumando a sua bagagem, que se tornava cada vez mais volumosa; era vista, sentada no cho, de pernas cruzadas, como quando jogava o jogo das cinco pedrinhas com as companheiras de escola, e assim ia destribuindo retratos e cartas que queria ou no levar com ela. Podia dizer-se que preparava uma mudana como quando h uma morte em casa, e s o co de Maria Rosa se apercebia de quanto aquilo era suspeito. Com esforo, saa do seu cesto para ir fazer sentinela porta do quarto e depois voltava a amodorrar, uma orelha pendente da cama dele e definitivamente desinteressado do mundo. Sofria duma grave doena do
corao e estava proibido de correr atrs dos gatos e de engordar, ambas as coisas pesavam mais no seu estado tido por desesperado. Maria Rosa tinha dito que s se mantinha a viver no Torreo Vermelho enquanto o seu co mexesse a cauda e a olhasse com os seus grandes olhos castanhos. Era um spaniel cor de canela, que tinha o nome aristocrtico de Lemy de La Valle. Ocupava no corao da sua dona um lugar insubstituvel. Todos sabiam que uma vez morto Lemy de Ia Valle, Maria Rosa se mudava para um apartamento em frente ao mar, e nessa altura Martinho tinha de decidir levar a Ronda para onde ela coubesse, decerto outra vez para o solar transmontano donde ela viera. Era mais do que certo que Martinho no abandonava o quadro nem a sua decifrao. - Cheguei at aqui, hei-de ir at ao fim - dizia. O doutor Horcio Assis achava que ele estava doente do juzo, ainda que admirasse as brilhantes dedues de que Martinho era capaz. O caso da pistola cinta da pequena Saskia era explorado com suma perspiccia e inteligncia. Fora descobrir que Ins de Zuniga, esposa do primeiro ministro Olivares, fora pintada por Juan Carreno de Miranda, bem no estilo de Velasquez e tinha cinta, pendente duma fita de seda, uma "surpreendente" pistola dourada. Era um smbolo de poder ou de pura afectao em contraste com a juventude da retratada, no esmerado traje de corte com delicados laos rosados. Rosa que tambm se v nas mangas e por entre as plumas do penteado. Embora Ins de Zuniga, condessa de Monterrey, no tivesse grandes encantos fsicos, aos vinte anos, com alguma deferncia do pintor, podia ser retratada como uma beldade, dando no entanto ao seu olhar uma expresso de inteligncia furtiva. Martinho apurara que Ins de Zuniga e Velasco participava com o seu marido e parente, o conde-duque de Olivares, de 2664 linhas de estirpes reais e 169 de santos. A razo da pistola cinta resta insolvel, o que maravilhava Martinho, pondo-o na perseguio de porfiadas e contnuas pistas. Porqu a pequena Saskia, feita vivandeira ou o que fosse, leva presa cinta uma pistola e uma galinha morta? possvel que a entrada de Maria de Mdicis em Amesterdo (rainha-me em Frana) motivasse os artistas para glorificarem esse acontecimento. Mas Martinho pensava que o quadro de Rembrandt no entrava no nmero dessas obras de circunstncia. Como outras, na sua vasta galeria de retratos e de factos de celebrao urbana, a Ronda da Noite fica por relacionar com qualquer encomenda. Rembrandt no pintava s profissionalmente. Uma parte dos seus quadros so indecifrveis. Obedecem a um temperamento agitado que se manifesta sobretudo na dcada de 1630-1640. Esta contnua busca em que, sem dar-se conta, Martinho mergulhava cada vez mais, fazia com que tudo o que se passava sua volta tivesse pouco relevo e merecesse pouco da sua ateno. Debateu com Maria Rosa a partida de Judite e manteve-se sempre numa linha que tocava a irresponsabilidade.
- Achas que ela acaba por pedir o divrcio? - disse Maria Rosa, nesse dia enroupada e sria, o que lhe dava um ar de doente. - Divrcio? No acredito. um plano burgus que no me assenta bem. Dou-lhe o que ela quiser para viver com conforto, ela e o pai que, ao que parece, bem o merece. - Achas que Judite matou a me? Imagino como foi. Com a tesoura de vindimar que a prpria Estrelinha trazia no bolso. Caiu e a Judite apanhou-a. Talvez no soube o que fez. - Talvez - disse Martinho, distraidamente. Media com o olhar as dimenses do quarto da av, uma verdadeira cripta com janelas que pareciam vitrais e que ela velara de musselina rosa-claro. Como nos anos cinquenta do cinema americano, revelador da vida dos ricos e das suas extravagncias. Ele estava a pensar que Rembrandt no podia pintar ali a Ronda, como no a pintou na sua luxuosa casa; ter utilizado um alpendre ou um ptio interior. "Ele tinha o seu lado de doido, no tenho dvida", pensou Martinho. Ouviu entrada da casa o carro de Judite, barulhento e rouco. Era um pequeno carro de sport, amarelo, que ela conduzia com precaues; mas nesse dia parecia querer demonstrar qualquer coisa de mais desafiador. Martinho desceu para a despedida. Os famosos males de cabina tinham desaparecido e o corredor do primeiro andar apresentava o ar ministerial, com um sof e dois cadeires, separados entre si, como se fossem destinados a visitantes estranhos, de etnias diferentes, por exemplo: um negro muulmano e um sikh de Benares. Quase no reconheceu Judite. Nem um dos seus caracis loiros era visvel, escondidos debaixo do chapu de abas de couro preto. Tinha um rosto mais fino e os olhos azuis escuros no se distinguiam por detrs dos grandes culos de sol. Martinho teve o pressentimento de que estava a despedir-se duma desconhecida. Ela beijou-o repetidamente na cara e fez notar que ele no se barbeara naquela manh. - No me parece com boa sade - disse ela. Talvez tivesse lgrimas na voz. Ele retribuiu-lhe os beijos e ao abra-la, o chapu dela caiu para trs e os cabelos cortados rentes apareceram. - Onde esto os seus caracis? Parece que vai tomar o vu nas carmelitas ou coisa parecida. - No vou tomar o vu, mas trata-se de professar, um pouco isso. Martinho comoveu-se, de repente; apanhou o chapu do cho e entregou-lho, no sem antes sacudir um pouco a aba. E disse, duma maneira absurda: - E se fosse uma stira? - Estava a pensar na Ronda e nas infinitas avaliaes feitas no sentido de a explicar como alegoria ou como padro de festa. Como no quadro da autpsia dum criminoso, havia um sentido oculto na composio da cena. Era macabra no seu academismo mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de hilariante. O corpo inchado podia de repente explodir e banhar os doutores de fezes e lquidos infecciosos. Eles no pareciam preocupados inteiramente com a lio do professor
Tulp, excepto para obedecer a uma admirao pelo mestre que se pode dizer estar a retalhar uma luva. frequente na pintura de Rembrandt uma nota satrica, possivelmente prpria do arteso que se v preterido na hierarquia social porque "trabalha com as prprias mos". Abrir e dissecar o cadver dum criminoso servio mais limpo do que o seu. Quando se casar escolhe uma mulher que no tenha de corar pelo ofcio do marido. De resto, uma mulher rica. No esqueamos que Rembrandt gosta do dinheiro e se faz pagar regiamente. um pintor cru, se no sanguinrio, e tem aquele dom que lhe atribuem de pintar o Cristo como homem vulgar, descalo, quase sempre tmido e que parece incorrupto pela sua prpria inocncia quanto a uma misso. O que caracteriza Rembrandt a sua vontade de poder que o faz to prodigioso trabalhador, to insistente nos retratos dele prprio. Ele no quer pintar um Deus; o Cristo de Emas no passa dum pobre que se senta mesa com desconhecidos e que gostaria de no ter que se revelar. Martinho achava-o maior do que a prpria obra e no podia seno fazer dela, da obra, uma carta de identificao. A partida de Judite no deixou um grande vazio. Parecia que a esperavam a qualquer momento e durante uma semana uma camisa de dormir dela esteve sempre desdobrada na cama e os seus chinelos prontos a serem calados mal ela se levantasse. Nem sempre os chinelos estavam de biqueira virada para fora, como exigia o protocolo da criada de dentro. No tempo de Maria Rosa, ela era capaz de acordar uma criada s quatro da manh para lhe colocar os chinelos correctamente, a biqueira virada para fora. Tempos esses que ela no queria que voltassem. Tudo era mais difcil de gerir e de ter em ordem. Agora ela s queria meter-se num andar frente ao mar e no sair de l para nada. Lemy de la Valle era um impedimento a esse projecto; embora estivesse cada vez mais obeso e efegante, no morria. Tornara-se irascvel, como quase todos os velhos, e mordia as pessoas por pura antipatia. At mordia Maria Rosa de vez em quando, afastando-se em seguida para retomar o seu lugar no cesto. Foi preciso pr uma cancela no cimo das escadas para que ele, ouvindo no jardim o regougar dos gatos, no se precipitasse com todo o seu peso, louco de clera. Lemy de la Valle tinha recuperado a memria dos seus antepassados, caadores carniceiros. A ociosidade fizera-lhe crescer o plo ao torn-lo co de companhia e todo ele era um sedoso manto dourado que ia perdendo o brilho. Urinava em qualquer parte e, enquanto o fazia, punha um olhar de travs que parecia desfrutar da sua impunidade. - Devia abater-se esse co - dizia Martinho. No sabia que era o mesmo se lhe dissessem a ele mutilar a Ronda para que coubesse no seu quarto. A sua investigao sobre a Ronda assumira foros de paixo, ora idlica, ora atormentada. Estava convencido de que se tratava duma espcie de stira dedicada visita de Maria de Mdicis a Amesterdo. "A banqueira", como lhe chamava a sua rival na cama real, no podia deixar de render homenagem cidade provavelmente mais rica do mundo. S ali Rembrandt podia auferir um
pagamento to exorbitante pelos seus retratos. Nunca se achava respeitado e admirado como lhe era devido. E o facto de Maria de Mdicis o incluir na sua lista de pintores que devia honrar, no fosse ela uma florentina protectora das artes, no o satisfazia. Sabe que a rainha lhe prefere Rubens e que este a pinta em estilo de alegoria, cobrindo as paredes de Versailles a ponto de a igualar s Junos e s Ceres, duma maneira escandalosamente ftil em toda a sua ridcula grandeza. O alegrico no o estilo de Rembrandt. Os seus retratos so ntimos, surpreendem um gesto familiar, a entrega dum bilhete, a explicao dum versculo a uma mulher-criana, quando o que ela queria era ir janela ver passar os arcabuzeiros. Tudo nele vingativamente conforme a realidade. As carnes das suas Susanas no banho no so apetecveis. So moles, de ventre muito parido, quase repelentes sem os seus atavios. Mas outro dos enigmas que se deparou a Martinho foi o rosto da pequena Saskia. Estava pintado de maneira pouco anatmica, como a cara da Maja desnuda, de Goya; o que fazia supor que havia ali uma sobreposio (como de resto j foi afirmado antes) e que Rembrandt no quis que o modelo fosse reconhecido. Ainda que os seus conhecimentos de anatomia fossem precrios, como se v pela lio do doutor Tulp, s um olhar muito penetrante podia encontrar qualquer anomalia na cabea da estranha figura de mulher-criana. Deixou-lhe porm os smbolos que se querem relacionar com os arcabuzeiros, como as garras duma ave. E a pistola, perfeitamente indecifrvel se no a formos encontrar no retrato de dona Ins de Zuiga, mulher do conde-duque de Olivares. Nesse caso, com a tendncia pelos smbolos exteriores dos espanhis da poca, a pistola dourada significava um poder absoluto na corte e propriamente na casa senhorial de origem. Era este um caminho que Martinho percorreu durante meses a fio, uma vez que o seu estudo da Ronda o ocupava como se fosse um tema de laboratrio. O estudo de Georg Simmel sobre Rembrandt rompeu algumas brumas que at a impediam Martinho de obter resultados na sua busca. Diz Simmel: "Na fisionomia do retrato de Rembrandt sentimos muito claramente que um curso vital, unindo o destino ao destino, engendra esta imagem presente". A mobilidade da vida est maravilhosamente captada na presena do instante. No so s os desenhos de Rembrandt que tm algo de inacabado. Toda a sua obra tem essa respirao que se prolonga noutro quadro, o que torna o simples bosquejo em algo mais do que um movimento genial da mo sempre em experincia e gozo da sua arte. A av perguntou-lhe, a Martinho, se a ateno dedicada ao impenetrvel contedo de um quadro no o desviava da rea humana e no o tornava rido para o relacionamento com as pessoas. Como com Judite, que parecia ter-se escapado duma ratoeira onde, mais tarde ou mais cedo, deixaria a vida. As notcias que ela prometera mandar tardaram a chegar. certo que ela nunca ia traduzir as suas impresses quanto ao encontro com o pai que achava uma pessoa do seu meio, com um sabor que fica para sempre no paladar.
- Nunca tive iluses a esse respeito - disse Maria Rosa, que estava a banhar as suas prolas em gua do mar para lhes conservar o brilho, ao que julgava. - Ela nunca disse nada sobre o pai, e acho que at tinha esquecido o nome dele. - Grande prova de amor esquecer o nome de quem se ama - disse Martnho. Judite passara por ele em diferentes maneiras; luxuosamente vestida ou nua como Susana no banho. As mulheres de Rembrandt nunca tinham um ar provocador. Talvez ele atingisse o mago do feminino. A mulher talvez ame to inteiramente a vida, que isto algo de irracional para quem estiver na periferia do amor. Martinho tinha breves sobressaltos quando pensava em Judite como um corpo e uma alma. Tinha-os separado quando (outra vez Simmel) "o objecto e o sujeito do amor actuam sempre como uma completa unidade". Disse isto a Maria Rosa, que no lhe respondeu. Ps-se a evocar a morte do marido, pregado na sua cama de hospital, alugada para que ele beneficiasse do mecanismo de que ela estava munida. Amara-o em corpo e alma? Recusava-se a velar por ele toda a noite e queixava-se. - No sou capaz. Os mercenrios fazem isso melhor do que eu. Lavam e alimentam o corpo at isso nos parecer indecncia. Eu no seria capaz de separar o corpo da alma. Foram tempos duros, tanto mais que, com a morte, Filipe Nabasco deixava a descoberto uma srie de dvidas e negcios mal parados. A venda de terras, a reviso de alguns pleitos que acabaram em acordos ruinosos, mas acabaram (Paula quis a sua parte sem perdoar um tosto), deram casa algum desafogo. Os Nabasco viviam de heranas desde h sculos; quando estavam mais apertados de finanas, l vinha o legado duma tia que nunca mexera no dote nem no enxoval. E tudo se equilibrava, como um pio outra vez atirado, a dormir pela fora do lano. Depois eram outra vez as hipotecas, os emprstimos a juros de particulares. Paula no se calava com a sua parte do pai nunca bem definida e muito menos entregue. Dava-se uma dessas meadas de famlia em que todos ralham e todos tm razo. Terras ao abandono, solares arruinados, jias, loias, objectos de decorao, tudo era avaliado de forma exagerada, sobretudo se os avaliadores eram comprados, entrando na conspirao de foras. A inteligncia amesquinhava-se, ganhava autoridade o que menos contava na pessoa, a cobia e a fraude. Sobretudo os filhos de Paula, funcionrios pblicos de alta aliana com os sucessivos governos, reclamavam o melhor da herana impondo os direitos da sua posio. Maria Rosa, que teve o desgosto de encontrar Lemy de la Valle morto no seu cesto, uma bela manh, desentendia-se de tudo. - Essa gente no me nada excepto meus herdeiros - dizia. Lemy de la Valle fazia-lhe falta, era "algo que mexe" numa vida cada vez mais solitria. Tambm Horcio Assis, mdico da casa h muitos anos, deixava de a visitar porque a sade dele se ia deteriorando. Dizia sempre coisas acertadas e Maria Rosa apropriava-se dos seus aforismos como se dela fossem. "Entre dois que bem se querem um que
pensa basta", dizia ele. Era ainda bela, loira, de pele lisa e pernas redondas como as duma rapariga. Paula no gostava que falassem na fresca aparncia da me e atribua aquilo a nunca ter feito nada, nem sequer mudado as fraldas dos filhos. Os cadetes, Joo e Bernardo, achavam a av "gira". - pena ser to rica, seno era melhor pessoa e ns tambm - diziam. Aquilo que o doutor Assis sempre punha em relevo era que, depois de certa idade, no h filhos, h herdeiros. Maria Rosa, ao ouvi-lo, tinha um assomo de garridice e mandava fazer vestidos por atacado, carssimos, ainda para mais. - Aonde vai com esses luxos todos? - perguntava Paula, a quem ela desfrutava abrindo os seus armrios cheios de coisas esplndidas. - sempre bom estar preparada. Referia-se a qu? A morte? A um casamento? No fim de contas Judite era mais doce e atenciosa. Por isso dera-lhe muita roupa, depois de escolher entre a que no usava. Roupa Chanel, que no era cpia mas autntica, com franjinhas e botes originais. Mas depois que morreu Lemy de la Valle que ela passou a chamar pelo nome de pedigree, De La Valle du Devens, Maria Rosa mudou muito. Mandara tirar a cancela do cimo da escada e caiu at ao patamar em baixo, ficando muito amachucada. No que se ferisse a ponto de ter que ser hospitalizada, mas ganhou o que se pode chamar "a vergonha da velhice". Vergonha de perder as foras que tinha por certas e intocveis. - Gostava de ter ficado nos meus setenta anos - dizia. - uma idade madura, com alguma graa para os homens, com quem nos reconciliamos. A idade do corpo e da alma. Nada visto em separado: o corao e o ventre descansam no mesmo sentimento, gratido e ternura. Mas quem a compreendia? Esperava que Judite ainda voltasse atrs e entrasse em casa com os seus bas cheios de setas e toucados de penas para distribuir pelos amigos. No fim de contas no acreditava que ela fosse uma Electra perniciosa, capaz de matar a me por amor pelo pai. Nada disso. Conhecia-a desde que nascera, era caladinha, olhava para a gente grande com assombro, escondia-se atrs da Estrelinha se lhe falavam. Ela ria-se, pedia desculpa. Era dessas mulheres que fazem do matrimnio uma estao de cio ou, melhor, um ofcio sagrado. Remendar, mexer o caldo, esperar o seu homem, so estdios dum mesmo preceito. Deixam a saia sempre um pouco a escorregar-lhe pela barriga, s vezes um fio de sangue desce-lhe pelas pernas e elas sorriam, sem pressa em mudar o penso de menstruada. Era Santo Antnio quem dizia do plpito: "Isso vale tanto como o pano duma menstruada", depreciando as honras deste mundo. Mas o pano duma menstruada vale mais do que sei l o qu. Estrelinha Sopa-de-Massa sabia isso. E, assim, deixou que um fio de sangue escorresse vista de quem lhe parecia: o taberneiro, gordo e manhoso em coisas de cama, e que foi o primeiro a acusar o Farinha de ter matado a mulher e quase jurava a ps juntos que o tinha visto, no perdia esse pequeno choque
de prazer ao descobrir os sinais de calor numa criatura como Estrelinha. Embora fiel, ela gozava sempre dessa impunidade sexual que oferecer sem sucumbir. Com a camisola interior manchada de vinho, suado e peludo, o taberneiro lanava do seu portal, no cimo da calada, um olhar entendido e vido, de que a mulher dele lhe pedia contas. E ele, santarro e fechado nos seus desejos: - Ts tola! - Bem te conheo, anda l com a tua vida, meu melro. Quem no te conhea que te compre. - Ts a brincar comigo; se no, sabes o que te fazia... Mas as brigas domsticas no passavam da. Havia o fregus para atender, o vinho para servir ao copo, negro e, ao esbordar, vermelho como o fio de sangue nas pernas de Estrelinha. Ela voltava para casa. Tendo ido comprar fsforos, ou trs ovos para a merenda, voltava com um sorriso esquecido na cara e perdoava s filhas as travessuras da ocasio. Gostava da vida de casada, do cheiro de homem em casa; de ver o cinto dele pendurado no cabide e de tudo que um homem deixa como conversa sem palavras. Raramente se beijavam, e nunca em pblico. Nem se tocavam sequer. Se Estrelinha queria que algum lhe arranjasse a gola do vestido, ou apertasse o fio de ouro, recorria a uma vizinha, sendo as filhas pequenas. Nunca pedia ao marido, sabia que ele no lhe prestava esse favor. Carregar um balde com gua, pregar um prego na parede, acender a mquina de petrleo, sim. Mas nada de aflorar-lhe a nuca, apertar-lhe a saia com um alfinete de ama quando ela estava grvida. O amor no se quer mexido, era talvez o seu lema de homem. Um dia mudou, fez-se mais evasivo, levantava-se de noite para ir fumar para a varanda das traseiras. No a olhava nos olhos, mostrava uma ternura pouco habitual para com Judite, que tinha onze anos. - Gostas de mim, Dita? Atava-lhe os cordes do calado, ela desatava-os s escondidas para o ver repetir aquilo. Achava a me garrida demais quando se compunha ou ento suja, distrada, com ar de velha, achando gosto em desprezar-se. O Farinha desbocava-se quando ela lhe perguntava se tinha outras mulheres. At desconfiou da artista de circo que fazia o nmero dos cavalinhos, quando o circo esteve na cidade. Em pequena, ela lembrava-se que era preciso expulsar o circo que esgotava as economias dos pobres e os deixava sem uma cdea, to famintos eram da luxria do espectculo. - Espectculo luxria? - disse Maria Rosa. - Se ! Mas as ideias dele j tinham levado outro rumo e corriam na feio da Ronda da Noite que cada vez mais o prendia terra. A desordem da arte atacava o princpio da autoridade, que estava a declinar no ensino oficial, nos laos conjugais, no dogma religioso. No entanto, Martinho tinha s vezes alucinaes como a de ouvir tocar a campainha da porta e ir abrir. Deparava-se-lhe Judite, com o seu
chapu de couro preto molhado pela chuva. Abraava-a to apertadamente que sentia o ar fugir do peito dela. Era um amor sem razo, um amor por uma criminosa, sem instruo, sem fortuna alguma. Mas o correr dos dias que passara com ela era inesquecvel, fazia que um elo de corpo e alma se tivesse soldado com eles. O homem infeliz enquanto no troca as leis que orientam a vida pblica e particular pela virtude criadora da destruio. As suas paixes estavam a ser fixadas nas coisas passadas, coisas que no tinham algum poder sobre ele, que ele pode viciar, se quiser inventar, reconstruir como um puzzle desfeito e voltado a reunir em todas as suas peas que ocupariam outro lugar e no o que lhes fora destinado. Por isso que a ordem de Banning Cocq no era obedecida. Atrs dele estava uma turba de pessoas felizes por lhe desobedecerem e que no preparavam qualquer cortejo; simplesmente, estavam a negar-se a cumprir fosse com o que fosse. Um entusiasmo fresco e cheio de actividade saudava a destruio da ordem. Assim, as figuras convencionais dos retratados ficavam to destitudas de poder que fora isso que provocara o riso dos admiradores de Rembrandt; de repente, acharam-no fora da sua ordem, da sua marcha dos arcabuzeiros, das suas insgnias e bandeiras. Era a epopeia duma total destruio. A destruio necessria e vital em que o homem alimenta a criao que tem a seu cargo. Porm, destruir como no caso das guerras, das torturas, das sevcias brutais sobre os mais fracos, o que ganha um peso primordial o prazer sexual. Entendendo isso, preciso que outro consumo da destruio seja efectuado. Martinho no ignorava que a sua porfiada busca em volta da Ronda, as suas imperativas razes, criaes suas, se equiparavam a um prazer intenso que o comovia at s lgrimas; Judite nunca tivera aquele efeito sobre ele. Enquanto corpo, ela dera-lhe momentos de entendimento e de felicidade. Mas desde a hora em que o casamento se foi recortando dentro duma obrigao devoradora da sensualidade e do improviso, deu-se a separao. De vez em quando havia aqueles bruscos apelos, como realidades que pertencessem liberdade mesma, to exigida e to aparentada com a destruio. E parecia-lhe ouvir chegar Judite e o bater da porta do seu carrinho amarelo. Sentia um frio na espinha. - Quem tocou? No vai abrir? Respondia-lhe uma empregada nova, que trazia o tele-mvel no cinto, e para quem servir burgueses era uma coisa quase desonrosa. Descia, arrastando os ps como uma pessoa velha e deformada pelo reumatismo. - No ouvi nada, e tenho bom ouvido. No era ningum; s um gato ou dois, o que sobrava da quadrilha que Lemy de la Valle punha em debandada. O Torreo Vermelho ia-se esvaziando, na perspectiva da grande mudana que Maria Rosa preparava pode dizer-se que desde a cama onde vivia a maior parte do tempo. Por fim, uma queda at
ao primeiro patamar da escada, donde retirou a cancela destinada ao co, sem lhe causar danos de maior, inferiorizou-a mais. Nunca usava o elevador; tinha medo de ficar presa dentro dele. Conhecia tudo o que acontecia em casa pelos cheiros e pelos sons. O peixe a fritar, as sopas a ferver; mas nunca mais o doce perfume das compotas, com um lao amargo nas grandes caldeiras de cobre, como se usava em casa dos pais dela. Advertia momentos de felicidade pousados como uma borboleta no fio das recordaes. E apeteciam-lhe os antigos manjares h muito esquecidos, o redenho encrespado pela alta fritura, coisa que s se comia em Dezembro quando da matana dos porcos; sempre dois: um para gasto de casa, outro para o arranjo da caseira e os "precisos" dos trabalhadores. Vestia-se mal, um vestido durava anos e no o espao duma moda. As tias casadas, vinte anos depois das bodas, ainda aproveitavam os vestidos do enxoval para andar por casa. - Quando hei-de ter roupa bonita e tudo o que eu quero? A me respondia-lhe que havia de ser conforme o casamento que fizesse: camisas de rendas e cambraia, se o noivo fosse entendido em luxos e mulheres de importncia. "Que o luxo no se fez para os pequeninos", rematava. O que ela levou nos seus males de casada no se acreditava. Ainda tinha guardadas peas de linho que nunca foram talhadas. Era preciso arejar e lavar tudo de vez em quando, um trabalho louco, pouco compensador porque o enxoval, o acumular, no era mais um investimento, era uma gesto duma personalidade em desaparecimento. Como a casa ficava vazia, os ecos, as vozes, o bater de portas, os toques de campainhas tornavam-se mais acentuados. Era lgubre o chiar dos armrios, que pareciam gemer o seu abandono. Maria Rosa queimou papis, cartas, recibos que davam, como ela dizia, para encher seis ou mais colches. Um dia, deu por finda a sua tarefa e preparou-se para deixar o Torreo Vermelho. No fim de contas no levava saudades; tinha poucas recordaes do tempo que l vivera e fazia-lhe impresso o ltimo lano da escada que levava aos quartos das criadas. De Elisa, particularmente, cujo grito de apelo, quando estava mais sufocada, lhe era dirigido. Embora Maria Rosa tirasse os sapatos para no ser pressentida. A morte prolongada de Elisa incomodava-a como uma ofensa pessoal. Levava com ela uma rapariga chamada Josefa, de cabelo cortado escovinha e um ar de guarda prisional. As vezes aparecia com o cabelo pintado de vermelho e as unhas pretas pareciam carapaas de insectos. Era, no entanto, boa funcionria, como ela queria ser chamada. - Sou a funcionria - respondia, ao telefone. Correspondia-se pela internet com a famlia que estava no Canad. Todavia, pouco caso fazia da gente mais prxima, a quem chamava "os de c". Tinha necessidade duma fantasia universal que dava vigor aos fenmenos da sua vida. Maria Rosa gostava dela. "Parece-se comigo" - dizia. Era difcil de acreditar que Josefa, feia e com
aquela cabea que parecia ter rolado do cesto dum patbulo, tivesse alguma coisa a ver com a fina e elegantssima senhora do Torreo Vermelho. - Isso explica-se - disse Martinho, num dos seus momentos de distraco que a Ronda lhe permitia. Cada um de ns tem um mnimo que coincide com o mnimo do outro. O que feio pode tocar-se com a nossa aspirao ao feio. No h frmulas fixas para quaisquer fenmenos, eles entretecem-se uns nos outros. De repente Maria Rosa no pareceu prestar-lhe ateno. Um golpe de velhice abateu-se sobre ela e, sem que houvesse antecedentes que o pudessem prever, instalou-se a morte sua cabeceira. A febre no a deixou mais e, no seu quarto meio vazio, ela esperou o fim com uma espcie de indiferena amvel. Nada a fazia reagir: nem o sol nos olhos (porque as cortinas tinham sido retiradas), nem a comida que dantes teria recusado por no estar ao seu paladar. Josefa estava comovida, fazia o seu melhor por a servir bem, mas no obtinha bons resultados. Era uma rapariga saudvel, que gostava de cantar, o que lhe era permitido fazer quando estivesse fora de casa. Os irmos tinham morrido em tenra idade e os avs davam-se por felizes com a sua reforma e os medicamentos pagos pela Assistncia. Como se sentiam livres nas suas poucas necessidades, os laos profundos de famlia tinham-se diludo numa espcie de recordao tribal. Passavam a maior parte do tempo sentados porta de casa, com as mos abertas nos joelhos e mostrando-se descontentes mas no infelizes. Josefa tinha feito o dcimo segundo ano, mas depressa esqueceu o que aprendera e soletrava mais do que lia. Foi um espanto, quando Maria Rosa morreu, que ela a mencionasse no testamento, pois era uma empregada nova e sem vnculos casa. - Nem sequer a tratou na doena - disse Paula, escandalizada ou ciumenta. Maria Rosa no sofrera de nenhuma doena, excepto de sintomas que no se puderam enquadrar num diagnstico mais ou menos slido. "Acordou morta", numa manh de domingo, como disse Josefa que foi dar a notcia a Martinho. Este levantou-se, meio aturdido, mas sem pressas. Barbeou-se e vestiu um fato escuro. O quarto da av pareceu-lhe estranhamente arrumado; mas isso era efeito da retirada dos mveis e dos reposteiros que varriam o cho e nunca tinham sido mudados. Um jarro de flores secas estava a um canto e Martinho mandou que as levassem, com medo que as velas lhes pegassem fogo. Antes disso tratava-se de lavar e vestir Maria Rosa. Ele sabia que a av temia os mercenrios, os seus gestos precisos, a sua habilidade quase marcial. Disse a Josefa: - Vai buscar uma bacia, a de prata, que est no hall da entrada. Ele prprio escolheu o vestido e os sapatos. Ele quis retirar a aliana, pareceu-lhe que Maria Rosa resistia. Fez uma pausa e depois puxou-a, sem olhar, e meteu-a no bolso do peito do casaco. Quando Josefa voltou com a bacia de prata, viu-a, na cama, estendida como uma imagem jacente, duma beleza
austera. No se podia dizer que era uma mulher mas um ser hbrido, de feies slidas e conventuais. O efeito era tal que Martinho recuou para analisar melhor o bonito vestido preto com transparncias dum cinzento martimo. "No lhe fica bem, vou mud-lo." Entretanto lavou-lhe os ps com uma toalha, evitando esfreg-los, como se ela estivesse viva e se pudesse queixar. Eram ps grandes, secos; s um pequeno indcio de artrose se percebia no dedo mdio, muito chegado ao dedo grande, como na estaturia grega. Calou-lhe meias finas, cinzentas; depois, como se romperam ao cal-las, foi buscar outras, duma cor indecisa, de prola. E, para dizer com elas, um vestido de grandes pregas que (ele sabia) tinha como complemento um manto com a gola de chinchila. "Paula vai-me matar"-pensou ele. Gostou de ver e acariciar a orelha de Maria Rosa, o plo doce ao toque como nenhum outro. "Vai, querida alma, sem lgrimas, com sorrisos." Voltou-se para afogar o pranto na garganta e Josefa ps-lhe a mo no brao, familiarmente, o que Martinho achou irritante. A famlia veio to depressa que parcia combinada para ocupar postos estratgicos numa operao blica. Paula trouxe um esquadro de espias que se meteu por todos os cantos a fazer o inventrio do que restava. Admirou-se de ver to poucos mveis. Alguns eram do tempo do cutileiro, grandes mesas, sideboards, louceiros que, vazios das suas loias, eram como jazigos esventrados. S alguns restaurantes e hotis de luxo se atreveram a licitar no leilo que Paula organizou. - E o colar? Espero que no o tenha debaixo da almofada -gemeu, prevendo a perda daquele emblema da famlia, j um pouco desbotado mas que Maria Rosa continuava a banhar com gua do mar. Martinho tranquilizou-a. - Ficou para si, minha me. - Onde? Onde est? Era uma sofreguido de velha, como a Leonora Galigai, a favorita de Maria de Mdicis; e que, em perigo de ser massacrada, se apegava s suas jias como parte da sua prpria carne. Esta ideia ocorreu a Martinho e ele caiu em si. Seria que a Ronda entrava no esplio da morta? Nessa noite faltou ao jantar de famlia e quando "os cadetes" o foram chamar correu a grande cortina que escondia o quadro e fechou-o chave. Mas ningum se mostrou interessado na Ronda da Noite. Estava classificada como uma cpia e as suas dimenses afastavam qualquer pretendente. - Se eu pudesse recortar a rapariga do frango, levava-a para minha casa. Tem um ar pcaro e endiabrado que diz bem na sala dum homem solteiro - disse Bernardo que, todos sabiam, vivera em unio de facto com um rapaz de boa gente, pintor de algum sucesso. Em trs dias o Torreo Vermelho foi saqueado e at o cesto de Lemy de la Valle levou caminho. O quarto de Martinho foi poupado, mas ele preferiu no dormir mais l. A av tinha-se volatilizado. Segundo os seus desejos, fora cremada e, de repente, a sua imagem perdeu-se no ar, na espiral do fogo
e no estrondo dos gases, como nas antigas cerimnias da Inquisio. Martinho fez por no entender o terrvel processo que reduzia a cinzas uma pessoa to querida e com tantas graas. O que sobrava da fortuna dos Nabasco, que fora grandiosa e tivera perodos de ascenso conjugados com a escravatura e alianas, subornos, cumplicidades? Os negreiros contavam-se em surdina, mas eles l estavam acenando das varandas pelos triunfos da liberdade. Os solares dos Nabasco, que eram cinco ou seis, couberam a Martinho. Um ou outro, destinados a turismo de habitao, estavam em parte defendidos de agresses maiores. Nem todos tinham as propores ideais para abrigar a Ronda, que tinha estado muitos anos nas cavalarias onde cresceram rvores de grande porte. Uma palmeira, a rvore de Adnis, subira acima dos telhados. Martinho achou aquilo um bom pressgio. Mudou-se na Primavera, levando, com todas as precaues, a Ronda da Noite, que lhe oferecia todos os dias novos enigmas. Os enigmas eram propostas festivas no tempo de Alexandre o Grande. Martinho tinha levado com ele A Vida de Alexandre e, embora no a lesse continuadamente, folheava-a para tirar dela ideias encantadoras. E passava o tempo sentado num velho cadeiro de veludo pelado, a olhar para os seus prprios dedos entrelaados. Parecia-se com um judeu sedentrio, daqueles que contam histrias.
CAPTULO IX CORPO E ALMA Dava-se por feliz por no ter, como Drio, rei dos persas, duzentas pessoas de famlia sua volta. No entanto, a presena de Maria Rosa tornou-se, durante um perodo que achou ser o do verdadeiro luto, muito insistente. Recordava o que lhe tinham dito, que os ossos no ficam todos calcinados com a cremao, e isso dava-lhe um sentimento de compensao, pensando que a ressurreio podia fazer-se a partir desses despojos. Por algum tempo, repugnava-lhe entrar nas cavalarias onde velhas mantas e selas estavam abandonadas e a Ronda esperava por ele. Mas depois voltou o hbito de entrar na enigmtica maneira de Rembrandt, naquilo que nele era inabordvel e motivo de assombro sempre renovado. No era s um assombro que parte do conhecimento da arte de pintar; era uma emoo convertida em carne e predicado dela que era talvez uma qualidade de partilhar com o mundo inteiro o valor da vida. Deitava-se cedo, vendo ainda pelas frinchas das portadas o dia claro. No lia na cama, mas variados textos dos livros que tinha lido lhe acudiam memria. E saboreava-os, como se travasse com eles uma conversa desconexa e, no entanto, profunda em que a personalidade inteira dele prprio se desenhava. Uma caseira vinha fazer-lhe a comida e os filhos dela depressa invadiram a casa, a ponto de Martinho pensar mudar-se mais uma vez. Mas a casa dos Nabasco, se no era a do crescimento da famlia, tinha qualquer coisa que existe nos quadros de Rembrandt: era a beleza, sem que isso envolva uma configurao clssica, mas tudo o que se pode adicionar como suas combinaes, tanto o excitante como a paixo obscura do demonaco. Abria uma porta e hesitava em transpor o umbral, de tal modo o acometia um sentimento de descoberta, de ir revelar o que ali estava guardado para ele. As coisas compuseram-se no dia em que Josefa apareceu. Como a casa ficava no cimo duma colina e no havia estrada at l, ela estava corada da subida e parecia quase agradvel: vermelha como um pimento, como disse a caseira que lhe abriu a porta a contragosto, pressentindo que acabava de ser despejada. Josefa trazia na cabea um bon, desses que se usam para assistir s partidas de futebol, e o seu aspecto era caricato. "Como pintaria Rembrandt esta rapariga?" - pensou Martinho quando a viu. Pintava-a como ela era, descrevendo uma liberdade assegurada pelo auto-domnio, o que a fazia realmente parte dum acontecer csmico. Olhou para Josefa com simpatia, como se encontrasse algum da sua mais ntima relao. Notou que ela tinha a mo meio aberta estendida para ele. Adiantou-se e cumprimentou-a. - No a esperava, no senhor.
- No venho incomodar? - Ela pousou o saco de viagem e olhou em volta, entregue sua natureza domstica que a levava a dar a cada objecto o seu lugar peculiar. - No. Gosto muito de a ver. - E pensou se ela se chamaria Josefa ou qualquer outra coisa. Ficou com a mos entre os joelhos, sentado numa cadeira, a olhar para ela, como se esperasse uma explicao. Josefa desatou a chorar. Limpou o rosto com um leno de papel amarrotado e no disse nada. Mas era evidente que ela queria ficar e que viera com essa ideia assente na cabea. Era o nico elo que Martinho tinha com Maria Rosa, uma coisa que lhe fazia chegar a vida desaparecida da av. Mas o que de facto assegurou o lugar de Josefa foi o caso de ele a ter surpreendido na cama, ao abrir por engano a porta do quarto dela. A impresso que recebeu foi acompanhada pelo sobressalto de ter cometido uma indiscrio. Ela, com o brao direito inteiramente nu e o seio descoberto, tinha uma expresso de surpresa mas de obedincia ao mesmo tempo. Parecia esperar que Martinho a mandasse fazer qualquer coisa, como recolher as gamelas dos ces cuja comida salgada os punha furiosos. Deixava-lhes gua em abundncia, o que os fazia cair numa sonolncia pacfica. Ele recuou um passo sem, no entanto, deixar que a porta se fechasse. Josefa era assombrosamente parecida com Hendrickje, a segunda mulher de Rembrandt, a sua beleza inculta arrastava uma sensao de conforto e de saciedade. Desde a, a sorte de Josefa estava traada. Ela ia ser a dona da casa, ia conhecer todas as chaves, todos os lugares de provises, at aqueles que eram mais escondidos, quase subterrneos. Onde as salgadeiras respiravam um suor salino; onde as caixas do azeite forradas de zinco mostravam, ao abrirem-nas, uma limpidez macia como se contivessem mbar. Josefa entrou na posse de todo o movimento da casa; das horas, repartidas como os espaos num quadrante solar. Agradava-lhe ser a serva, mais do que a patroa. E nunca, na sua cabea, se poria a ideia de casar com Martinho ou fazer com ele vida conjugal. certo que ele a procurava s vezes na cama; mas antes de a manh clarear j Martinho estava no seu prprio leito, onde recebia o almoo abundante, o caf a fumegar numa tigela vidrada e os pezinhos frescos em que a manteiga derretia. S ela sabia entender os seus gostos, sabia aliment-lo e dar valor sua solido. Porque Martinho, pela primeira vez, conhecia o calor duma vida que tem a consistncia duma devoo. Para isso, era preciso que ningum o acompanhasse e tentasse compreend-lo. Ou esperasse qualquer coisa dele, como a partilha dos mesmos lugares e gostos. O que Josefa tinha de bom era que nada a rebaixava ou a punha numa situao elevada. Fazia o seu trabalho e no se preocupava seno com isso e apenas isso. Perguntar a Josefa se ela o amava, seria criar uma textura absurda numa unidade sociolgica cujo sentido se estropiava. E ele sentia como era confortvel viver assim, sem dar explicaes dos seus sentimentos e sem se deter com qualquer choque de situaes.
Lembrava-se de vez em quando de Judite, mas sem saudade ou remorso. Quando um deles morresse, tardariam a saber isso; e at a comover-se, sendo preciso recorrer a imagens antigas, convencionais, como a do dia do casamento, do qual, o que melhor retinha, era o chapu de Maria Rosa, preto com uma grande flor cor-de-cravo a balanar sobre a aba. A casa foi ganhando a traa monumental para que fora criada. No tempo dos bares Nabasco ela no passara dum solar tradicional, com os trs sales de entrada e as alcovas escuras que defendiam do frio. A escadaria exterior, talhada num granito to grosseiramente como a pedra dum lavadouro, sofreu alguns retoques. Fora feita para ser usada por gente que morria cedo, sem artrites e dificuldades de movimento. Embora Martinho se lembrasse de ver descer os degraus, um a um, e de lado, um tio que nunca se casara e bebia a sua aguardente branca como gua da fonte. Uma das salas foi ampliada para receber a Ronda da Noite. Uma moldura de veludo carmesim fez desperceber as suas mutilaes, e o co encontrou-se tapado pelas pregas sumptuosas dum reposteiro. Podia dizer-se que Martinho criara um altar para o seu Rembrandt. Pouco iluminado, com um fulgor interior que estava em acordo com a cena espontnea e improvisada, o quadro parecia, mais do que nunca, uma brincadeira maliciosa que tocava as raias do abuso. Este livro est prestes a terminar da maneira como devia ter comeado. Pela paisagem. No havia paisagem naquele retalho do cemitrio visitado no dia de finados por Maria Rosa e Martinho. Havia apenas datas, sem nada que desse uma ideia da organizao interna duma vida. Nascimento e morte era tudo o que ficava disponvel; a paisagem, como a arte, concerta um sentimento de gratido. Uma criana no a percebe; uma pessoa grosseira e inculta quanto sua personalidade, no a distingue. O lugar que Martinho escolheu para se fixar com a Ronda da Noite, pertencia a uma paisagem. Dizia-se (ainda que essa recordao no existisse mais e fosse apenas a prestao conferida a uma lenda) que a casa e os quintais, pomares e tanques, lavadouros e minas de gua, tinham sido levantados sobre um cemitrio romano. Dois ciprestes altssimos faziam ainda sentinela a essa memria incerta. Pelo lado da fachada, com as suas dez janelas de guilhotina, a paisagem era em descida que nada mais oferecia como acesso seno uma espcie de barranco bordejado dum lado por oliveiras, e do outro por uma sebe de amoreiras bravas. Foi por a que Josefa subiu, como fazia toda a gente que encurtava caminho para aldeias mais altas e desconcertadas na paisagem. Mas, pelo lado Norte, a entrada principal fora h muito inutilizada pelos sucessivos Invernos que cavaram barrancos intransitveis. Diversos planos, no sentido de restituir ao estrado antigo uma parte da sua viabilidade, foram abandonados pelos servios pblicos. O caminho servia apenas a casa dos Nabasco que, desde longa data, tinham abandonado a regio, deixando a monte o que tinha sido uma espcie de castro inexpugnvel.
Martinho pensou refazer a traa da estrada, mas no se apressou com o projecto. Gostava desse abrigo sinistro que o lado Norte tornava mais arcaico. O porto de ferro foi tudo o que ele ajustou nos velhos gonzos, tendo que substituir as lanas da cimeira. Pintou-o de verde, e o reluzir da tinta nova percebia-se entre a folhagem como um tremor de luzes fugazes e tristes. A entrada, imediatamente orientada para o ptio que era a antecmara de casa nesse estilo, tinha um encanto peculiar. Martinho achava-a parecida a um obscuro fundo Rembrandt. Hendrickje podia mergulhar as pernas at ao joelho nas enxurradas que, desde o Outono, faziam do ptio um lago em que boiavam ervas e folhas. E logo, atrs dela, os pesados reposteiros da primeira sala de receber, s vezes encharcados de gua da chuva porque entre o ptio e a sala s havia alguns curtos degraus em leque, duma beleza surpreendente. Percebia-se como a jovem Hendrickje se mostrasse curiosa do seu prazer, ao arregaar a camisa para banhar vontade as pernas. A carne mole e macilenta ganhava uma luz fresca debaixo da sombra do ptio. Martinho, depois da companhia da Ronda, preferia a do ptio e toda a discreta alma dessa entrada principal. A capela, o bastante espaosa para um par de noivos e o oficiante, era pintada de azul com estrelas, no que se entendia como abbada celeste. Josefa dedicavalhe, como a todo o resto da casa sua guarda, umas horas por semana. Removia as flores secas, mudava o pano do altar e deitava um pouco de veneno nas cavernas do bicho da madeira. Tudo isto com um solidrio esprito de limpeza que excedia a sua capacidade de devoo. Martinho nunca a vira rezar. "Tanto melhor, no se distrai com as coisas da alma, o que, nas mulheres, uma variante da seduo", pensava. Mas Josefa tambm no era do tipo sedutor nem sabia para que servia levantar os braos para mostrar a delgada cintura; como via fazer s jornaleiras que iam levar o almoo aos trabalhadores, descendo a rampa do caminho, com um balanar das ancas deveras tentador. Martinho nunca teve a ideia de selar com Josefa qualquer compromisso; mas um dia, no abrir da madrugada e porque no dormia, falou-lhe nisso. - Isto pode no ser duradouro. Tu s tu e eu sou eu. As coisas podem mudar. - Que mudem. No estou c para lhe pedir favores. Deixe-me dormir. Ele levantou-se e foi para o quarto, meio desconcertado. Tentou ler um bocado, mas as letras danavam-lhe diante dos olhos. "Diabo de rapariga!" - pensou. "A liberdade difcil de consentir nos outros." Mais uma vez a Ronda se tornou clara para ele: no era convencional em nada, mas antes retratava um tumulto feliz de gente entregue vontade de agir sem que ouvissem a voz de comando do capito Banning Cocq. A lei ficava margem, abrangia um ritmo de progresso que a multido no podia ou no queria acompanhar. Bastava que a criana luminosa atravessasse a cena para tudo ficar explicado: ela era a forma universal, prestes a desaparecer na individualidade de todos, no que eles tinham de singular.
J no estava to atento obra cujo significado o deslumbrara. Ainda que desse Ronda da Noite um lugar privilegiado na moldura de veludo carmesim, no passava tanto tempo na sua companhia. Fingia muitas vezes estar mergulhado em profunda meditao quando Josefa batia porta com uma refeio que ele gostava de tomar sozinho. Mas at ela se retirar no perdia nenhum dos seus movimentos que registavam apenas a ocupao dum dia de trabalho. Humilhava-o que Josefa no o inclusse nas suas preocupaes. Uma galinha doente ou o vento que se levantava e ia enrolar a roupa nas cordas, a secar, eram para ela motivo de maior concentrao. Corria a recolher a roupa ou a medicar a galinha; e Martinho sentia-se relegado para um plano que no era honroso para ele. "Ser que compreendemos as mulheres?", pensava. "Temos um lugar na vida delas e isso tudo." Tentou explorar o cime dela e excit-la para depois no a satisfazer. Josefa ficou apenas desconfiada. Mas no deixou de cumprir com as suas obrigaes e de o servir pontualmente. Havia nos arredores algumas casas com raparigas na idade de casar. Martinho, ainda que no estivesse livre do vnculo do casamento, era um alvo a considerar. Foi convidado para jantares, recebeu o melhor tratamento, quase como se fosse um vivo com rendimentos e saudades a gerir. Mas quando voltava para o solar caa-lhe em cima uma sensao de desperdcio e quase de medo. Seria que tinha uma alma e essa era um objecto investigvel? Quando se dedicava a detalhar a Ronda em todos os sentidos, no estaria a averiguar a natureza da alma? Um dia, descendo pelo ptio em direco ao pomar, viu Josefa inclinada no lavadouro. O facto de ela no se voltar ao sentir-lhe os passos, incomodou-o. Mas, ao mesmo tempo, que ela estivesse, arregaada, com a gua a escorrer-lhe dos cotovelos, deixava-o a ss com a sua nudez. Era a alma dela que estava a ser consumida, e no o corpo, pelos olhos que a averiguavam. Ela sabia. Voltou-se devagar, limpou um salpico de espuma no rosto e dispensou-lhe um grande sorriso. Seria amor? Era, em todo o caso, um acto de salvao. Lembrou-se de que, quando era pequeno, as pessoas no se cumprimentavam - davam-se a "salvao". Entre as primeiras horas da manh e as Trindades, que anunciavam o crepsculo, trocavam "a salvao". Antes ou depois disso, no se dirigiam a palavra. Era como se os perigos da alma apertassem o cerco e ela estivesse mais indefesa. No estar fora de casa depois das Trindades era recomendvel. O sorriso de Josefa encheu-o de alegria. Porm, no dia seguinte, anunciou-lhe que Judite no se opunha ao divrcio e que era provvel ele casar-se outra vez. Josefa estava diante dele, com o avental recolhido em ponta sobre a barriga, como todas as vezes que ele a chamava e ela no se achava apresentvel. No disse nada. - No dizes nada? - disse Martinho, depois do silncio que se tornara difcil. - Eu? - Ela pareceu tomada de surpresa.
- Estou a falar contigo. - Comigo? - Com quem h-de ser? Em parte no era verdade nada do que Martinho lhe dizia sobre Judite. Ela continuava a viver com o pai e nada fazia supor que ia pedir o divrcio. Estava satisfeita com a mesada que recebia e, como mulher casada, tinha mais respeito com que valorizar a sua triste histria propcia a mal-entendidos. As coisas extraordinrias que acontecem s pessoas vulgares ficam, em geral, no mais profundo desconhecimento. preciso que a relao dum esprito com outro as faa claras luz da pequena histria. Se no fosse a Ronda e todas as viagens morais feitas em volta dessa obra enigmtica, Josefa no teria praticamente existido na vida de Martinho Nabasco. Foi no momento em que entreabriu a porta do quarto dela, para lhe perguntar qualquer coisa acerca da rotina domstica, que ele a inseriu no tempo de Rembrandt. Desde a, ao ver o ombro que a camisa ao escorregar deixava a descoberto, ao ver a sua expresso de surpresa meio inquieta, Martinho recebeu-a no seu corao como se fosse a prpria Hendrickje. Desde a ela entrava na sua vida. Doutro modo, no passava de algum que lhe comunicava impresses externas; o seu cheiro a fritos nos cabelos quando ela fazia ceboladas de peixe, no era decerto a melhor dessas impresses. Mas por detrs da imagem sensvel de Josefa, do seu rosto que no tinha nada de bonito, estava uma alma que era o material para o conhecimento do outro. Nunca tinha encontrado uma criatura to livre e to exposta ao mesmo tempo. Era como uma lagartixa que, ao ser pisada, deixava a cauda e escapava-se, como se nada tivesse acontecido, para a fenda do muro. Se havia algum digno de figurar na Ronda da Noite era Josefa. Podia ser includa, com as mangas arregaadas e uma galinha morta que no era o smbolo de nada, mas muito simplesmente o anncio dum jantar suculento. Martinho no podia impedir-se de a provocar. - contigo que estou a falar. - Estou a ouvir. Mas a ateno dela estava posta em muitas outras coisas do seu dia-a-dia. A roupa que tinha que tirar dos arames antes que chovesse; a calda para o arroz, que era sempre o acepipe preferido desde que se descobriu a ndia. Arroz de forno, com loureiro seco; arroz de grelos, de feijo, de hortos, de manteiga, de peixe, de carne, de simples estrugido de cebola. - Como quer o arroz? - disse Josefa. Mandou-a sair. Era uma mulher estpida ou s capaz de reagir a coisas solidrias com a sua natureza? Natureza prtica, sem a qual ela flutuaria no vazio. Uma coisa o maravilhava: a sintonia ertica em que ela estava com o mundo. Criava um objecto de amor nas circunstncias adequadas. E era por isso que Martinho duvidava de ser o homem da vida dela, mas o objecto do amor dela, que era uma natureza ertica e a repartia por todas as realidades concretas da sua vida.
No havia maneira de fazer-lhe compreender nada fora dos contedos vitais que eram quatro, como os dos surios de h quinhentos milhes de anos. Eram comandos cerebrais em que a sensibilidade no tinha entrada seno por imitao. O seu mundo reagia admiravelmente quele regime oposto a conceitos rgidos fechados, a uma lei, em suma. Quase tudo o que Martinho lhe dizia soava como palavras e ele sentia-se completamente deriva supondo em Josefa uma completa falta de necessidade de crescimento interior. E, todavia, a compreenso de um contedo particular, o nascimento, a morte, era para ela de fcil acesso: a vida, na sua unidade, enfim. As vezes, tinha medo dela; do que ele se recompunha, achando que a falta de cultura de Josefa, a sua completa falta de aproveitamento escolar que tivera na infncia, era uma prova de inferioridade pronta a ser declarada pelo Parlamento Europeu como uma espcie de fatalidade de grupo que uma forma econmica de sculos no conseguira seno viciar cada vez mais. Quando afinal era o contrrio. Em princpio, teria de admitir que Josefa no tinha carcter. Isso implica consideraes pejorativas, se no trgicas. Era dotado dos atributos de sobrevivncia, mas a supervivncia como sinal duma estrutura em evoluo permanente, no se percebia nela. Como no quadro de Rembrandt, o que Simmel notara conforme um pensamento de Goethe (que h certos fenmenos da humanidade que so errados por fora e verdadeiros por dentro), a estrutura da Ronda desproporcionada vista por fora mas, desde dentro, est conforme. Porque a prpria vida assim: segundo as entregas dos contedos da existncia que o indivduo faa movido pelos acontecimentos, por insignificantes que sejam, tudo parece casual e desproporcionado. o que na mulher se chama histeria e injustificado procedimento. Mas, visto do interior, este procedimento obedece a uma evoluo contnua, necessria e conforme a sua unidade. Pelo que Josefa, com a sua obtusa moral e dados restritos de compreenso das coisas, estava mais pronta a evoluir correctamente do que um filsofo aparentemente capaz de perseguir uma forma universal. Como no tinha uma educao acadmica e no estava impressionado por teorias sobre a lei universal, Martinho era mais capaz de entender Rembrandt e o seu modelo, a segunda mulher Hendrickje. possvel que esta, mais do que Saskia, tivesse o comportamento interior dum modelo: uma qualidade individual que vivia e morreria com ela. No causa de reflexo uma coisa dessas; assim, a Ronda no igualmente causa de reflexo. Todos os detalhes esto ali, a posio social, a riqueza, o lado vulgar e sensual; tudo isso o impessoal do homem, e seria um erro conhec-lo atravs dessas diferenas. O capito Banning Cocq e o seu ajudante de campo no so apenas os soberbos dignitrios com ambies polticas. Como o porta-bandeira e a criana que atravessa a multido, no so apenas figuras simblicas e muito menos satricas. H em todas elas um desapego das suas funes
e da sua natureza, que no se entende seno como felicidade. A lei no as obriga, no as oprime: so pessoas felizes, indivduos presentes no universal que o comum das suas vidas. A dada altura Josefa teve um comportamento estranho. Parecia estar preocupada por alguma coisa que no se atrevia a confessar, e Martinho, muito cautelosamente, fez-lhe algumas perguntas. No afastou a ideia de ela estar grvida. - Tens comido o suficiente? E o trabalho que tem sido demais? - No, no. Para o trabalho chego eu. Mas, se quer saber, eu vou-lhe dizer. - Embora ele introduzisse no servio as inovaes h muito rotineiras na casa de Maria Rosa, mquinas de lavar e limpeza, Josefa preferia ainda lavar o cho da cozinha de joelhos, pela fora do brao. Era assim que ela estava, de rastos, com a saia recolhida entre as pernas e tendo ao lado o balde onde mergulhava a escova. Levantou-se e teve o mesmo gesto de sempre, de quem enxuga o suor ou um salpico de espuma com o brao. Era um gesto que pressupunha a entrada noutro episdio. Martinho, no sem alguma inquietao, preparou-se para a ouvir. E se fosse de facto uma criana que ela ia anunciar-lhe? Quase comeou a conversa nesse sentido. Mas Josefa antecipou-se: - Pelo que me consta, a sua mulher, a dona Judite, no volta mais. Estou enganada? - No sei dizer, Zefa. Trata das coisas que entendes e deixa o resto que no te diz respeito. O que dizia respeito a Josefa era a casa com a sua grande cozinha lajeada e que mantinha ainda a lareira tradicional com duas colunas de pedra que delimitavam a zona do fogo. Alm disso, havia o forno do po, com a boca enegrecida pelas labaredas de muito tempo de aquecimento; e havia tambm duas grandes masseiras que serviam agora para arrumo de trastes sem uso, tampas desirmanadas, utenslios de ferro que no tinham mais prstimo e que eram mais ou menos objectos de museu. De resto, a cozinha, toda ela era um museu. Na obscuridade estavam as peneiras, os aquecedores das camas, os ferros de brunir que eram meros pedaos de ferro fundido e que, mesmo sendo diminutos, pesavam sobre as pregas, os colarinhos e tudo o que fosse preciso fazer brilhar como laca. O mundo do trabalho estava ali bem presente, sem desfalecimento nas tarefas que se sucediam: lavar e descascar legumes, cortar a carne com um deleite fundo e sensual, depenar as aves, abrir-lhes os ventres com um golpe que lhes expunha os intestinos e o fgado cuja ptala de fel esverdeada era preciso extirpar. Josefa era gulosa dos intestinos de galinha, que, depois de lavados, esvaziados, se enrolavam num pau fino de salgueiro e eram guisados como um acepipe. E tam- > bm gostava de refogar ps de cabrito, que desapareceram do mercado pela dificuldade que traziam aos matadouros, sendo considerados subprodutos a moer para o gado e a juntar s raes de farinhas.
A cozinha era um reino. No se entrava nela sem fazer trs vnias, como no protocolo dos antigos papas. A primeira, desde a porta que dava para o exterior e pela qual tinham acesso todos os estranhos: pedintes, compradores de vinho e azeite, algum que trazia um recado ou pretendia um favor. A segunda vnia era para ser feita pelos que entravam pela porta de servio, sobre um lano de escadas donde se descobriam as capoeiras e os quartos dos hortelos ou moos de estrebaria, que no estavam mais a uso. Em tempos, a casa tivera baias para seis cavalos, onde agora havia um longo alpendre e uma arrecadao de tonis destinados a serem vendidos. A terceira vnia era a da porta que dava para o interior, um corredor estreito em cujas paredes se podiam adivinhar quadros de Santa Luzia, com o prato e os olhos no prato; assim como ramos de oliveira benzida entalados na moldura dos quadros. Quem chegava a essa porta eram os patres, as criadas de dentro e um sem nmero de aderentes casa, como as mulheres sem ofcio certo que contavam novidades e comentavam em detalhe a vida dos lugares, vizinhos ou no. Havia tambm os barbeiros dos vivos e dos mortos, os padres, os doutores, as costureiras cuja mquina se ouvia a espaos no seu cubculo onde se amontoavam retalhos, linhas e botes. Josefa era a prima dona desses stios, vividos como nenhuns outros na casa. Enquanto as visitas de Martinho sua cama foram regulares, ela teve ao seu dispor um quarto que no era principal e dava para uma sala de passagem. Era o quarto do capelo, com janelinha meio devorada pelos ps de vinha que cresciam em baixo. Cerca desse quarto ficava o oratrio, uma pea soberba do sculo XVIII, que foi vendida revelia dos herdeiros ausentes e que Paula qualificava como um roubo. Em vez do oratrio, verde e ouro, havia agora um armrio onde se guardavam lenis e cobertas de cama. Mas persistia o cheiro da cera e das grinaldas dos "anjinhos", as crianas que tinham morrido na famlia. Quando as noites e as sestas de amor se espaaram at se tornarem raras, entre Josefa e Martinho, ela mudou para um cubculo junto da cozinha que se destinara a despensa e donde ela podia ouvir tudo o que se passava na rea de trabalho. Quem subia e descia as escadas, quem vinha buscar o leite ou trazia o po, e coisas assim. Martinho no gostava de l entrar, pelo cheiro que recebia nas narinas, de velhos untos e conservas caseiras apodrecidas em vinagre, nas talhas de barro: pimentos, pepinos, ou azeitonas pretas que reluziam como olhos de gente. Todo o objecto de culto no funcionava mais. Na capela, a pedra de ara tinha sido retirada e o sacrrio no tinha porta; via-se o interior constelado de estrelas douradas. Apenas a Ronda merecia uma espcie de liturgia, com a sua moldura de veludo carmesim e os jarres da China a fazer-lhe sentinela. A falta doutra devoo, Josefa dedicava-lhe uma venerao que era cpia da orao diria que Martinho dedicava ao quadro. Endireitava o cadeiro posto em frente do capito Banning Cocq, no melhor ngulo, para captar as suas palavras, caso as fosse ouvir. E o olhar da
pequena Saskia, acreditava que se cruzava voluntariamente com o dele. Travava com ela um dilogo de grande cortesia e afabilidade e Josefa vrias vezes o vira mexer os lbios e sorrir como se estivesse a gozar uma conversao. Percebia at algumas palavras: - Falou comigo? - Eu? No... Vai tua vida e deixa-me em paz. Recebeu uma carta de Judite, em vez dos lacnicos telefonemas, e ela era muito clara: queria finalmente divorciar-se. Entendeu que ela talvez estivesse grvida e quisesse regularizar uma situao menos airosa. Mandou-lhe os papis que Judite pedia e no quis entrar em detalhes fastidiosos. Ficava pois livre para ele prprio casar e ter filhos, o que lhe parecia uma coisa como outra qualquer. Havia nas cercanias raparigas educadas ainda moda antiga que podiam agradar a Maria Rosa, se ela estivesse viva. "Mulheres que gostem de lavar a loia", como ela dizia. Era, no seu entender, prova dum esprito franco e de sensualidade. As sadas de casa tornaram-se mais frequentes para Martinho e s vezes colhia uma flor nos caixotes que Josefa tinha plantado beira do tanque. Primeiro, fazia disso um certo segredo, depois no escondia mais esse gesto de galanteria para uma mulher que ele "tinha em vista". Com a idade, as jovens comoviam-no a ponto de as lgrimas lhe subirem aos olhos. Josefa punha nos seus programas de limpeza um maior ardor. Lavava as janelas de cima a baixo e grandes ondas de espuma escorriam das vidraas como nuvens descidas do cu. Martinho disse-lhe, uma noite, depois de jantar: - Talvez me case. - Quando? - Desde que encontre a pessoa certa. - No h pessoa certa para isso. H a pessoa certa quando se quer um electricista, mas para casar no h. Convm que no seja de todo pobre nem demasiado rica. - C temos a Zefa a filosofar! Que tem uma pobre de mal? E uma rica? - A pobre para sempre um poo de inveja; a rica deita-lhe cara tudo o que comer e diz: "Sai do meu bolso..." O que incomodava Martinho que ela no demonstrava cime nem tristeza. "Qualquer outra deixava de comer, o que as mulheres fazem quando querem parecer desgostosas". Mas Josefa no parecia sentir o mnimo desgosto. Martinho atribua isso a o sentimento de rivalidade no fazer parte dos quatro comandos cerebrais. Uma vez saiu de casa pela manh e telefonou a dizer que no vinha almoar. Josefa achou que o dia era todo dela e que podia iniciar as limpezas da Primavera.
"Agora que vo ser elas" - pensou. E ps-se a cantar com todas as foras, coisa que Martinho no permitia dentro de casa. Ela gostava de cantar no trabalho no lavadouro, sobre qual os ramos da nespereira desenhavam sombras movedias; janela, sacudindo tapetes como se estivesse a defenestrar inimigos. Gostava de cantar, e cantava. No era uma prova de alegria; mas de fora poderosa e imparvel. Naquele dia a fora manifestava-se e ela enchia consecutivamente baldes que despejava no ptio fazendo correr a gua pelo plano inclinado. Voltando para dentro, o olhar dela pousou na Ronda que estava no ltimo salo; e mesmo este tivera que ser provido dum p direito mais elevado, sacrificandose para isso as mansardas. O fato do lugar-tenente, com as suas galochas de luxo, causava uma boa impresso. Era um belo homem, com o bigode loiro e as plumas brancas no chapu. "O resto est muito sujo, no se v nada" - pensou Josefa. E, num repente, decidiu-se. Ia lavar a Ronda com os seus detergentes e esponjas duras. At o co no se sabia de que raa era, tendo escondido a cauda entre as pernas, assustado pelo rufar do tambor. Ela preparou-se. Todo o seu material de campanha foi trazido e Josefa comeou a sua limpeza. At onde chegava a sua estatura, que no era alta, ela esfregou, inundou, raspou, at que fios de tinta comearam a correr. Voltou-se para trs, julgava ter ouvido passos. Mas era o vento que carregava nos ramos da nespereira. J no se intimidava; cada vez que atacava um figurante da Ronda fazia-o com mais empenho e atrevimento. O desastre estava consumado e ela recuou um pouco; s o porta-bandeira e o jovem do capacete de bombeiro, como ela dizia, tinham ficado intactos. Saskia tinha simplesmente desaparecido com a sua galinha cinta. Josefa deu uma ltima demo de gua limpa ao rosto diludo numa mancha mais clara. Sentia uma espcie de contentamento que lhe fazia bater o corao com fora. Onde estava o cone de Martinho, aquilo por que ele se enternecia at s lgrimas e o fazia estudar at altas horas os livros que pudessem trazer-lhe informaes sobre o pintor? O seu enigma no podia mais ser auscultado. O seu efeito tinha desaparecido. A sua linguagem intuitiva no se ouvia mais. Josefa admirou-se de ter, em to pouco tempo, destrudo a unidade dessa extraordinria obra. Estava encharcada, o frio fazia tiritar. Mas teve discernimento para arrumar os baldes e as esponjas e voltar a pr no lugar a cadeira de Martinho. Agia distraidamente, como se, pondo ordem nas coisas, tudo voltasse ao que era. E o capito Banning Cocq l estava a dar as suas ordens, ainda que s fosse a sombra dele. Quando, j no avanado da noite, Martinho entrou em casa, viu luz no quarto do capelo. Depois a luz extinguiu-se e ele pensou que Josefa a tinha apagado. "Porque mudou ela de quarto?" - pensou. Mas no estranhou nada, sabendo como ela resolvia limpar tudo e desalojar as coisas dos seus lugares, deixando no ar um cheiro de lavanda, de pinheiro, to forte que causava nuseas.
Antes de se deitar, como de costume, foi ver a Ronda. Primeiro achou que as luzes no se tinham acendido e precisou duns instantes para se adaptar ao que julgava ser o segundo salo com os retratos austeros dos Nabasco. No via a Ronda, mas s uma figura com uma alta cartola. Era o que restava da Ronda da Noite. Franziu os olhos e voltou a abri-los. Um grande grito travou-se-lhe na garganta e ele caiu quase de bruos, quase sem acordo, o sangue a latejar-lhe nas fontes. Se tivesse sido atingido por um disparo, no ficava mais atordoado. Depois levantou-se e, com toda a fora da sua alma, verificou os estragos. Eram totais, a Ronda tinha desaparecido; e s o porta-bandeira, talvez o prprio Rembrandt com uma faixa brilhante e o chapu de plumas cinzentas, parecia apresentvel e intacto. - Josefa! - disse Martinho, entre dentes. Lembrou-se da luz acesa e a seguir apagada no quarto do capelo. Precipitou-se para l, a porta estava apenas encostada, ele abriu-a, metendo o ombro nela porque a julgou trancada. Josefa estava sentada na cama, os ps com as chinelas apenas seguras pelo dedo grande; parecia bria e cantarolava baixinho. Em vez de gritar com ela, de lhe bater at, Martinho foi tomado duma estranha comiserao - Ests a? Que andaste a fazer, sua tola? Parece que saste do tanque, como uma bruxa, meia noite. - E, como ela no dava mostras de entender nada, aproximou-se e, com uma ponta da coberta da cama, ps-se a enxugar-lhe o cabelo - Vamos, no tenhas medo, mulher! No te fao mal. O que passou, passou... Como no podia remediar o estado em que ela estava sem a despir, ps-se a desapertar-lhe a roupa, o que, porque estava molhada, era difcil. Josefa ficou nua e a sua pele pardacenta ganhava aos poucos calor. Rembrandt no teria ignorado as pregas do ventre balofo e o punho fechado contra o sexo. Impassvel, Martinho executava como um enfermeiro a sua tarefa de samaritano. E, subitamente, veiolhe ideia a soma de desgastes e de violncia que tinha sofrido a Ronda da Noite; mais do que qualquer outro quadro ou obra de arte, a Ronda da Noite sofrera variadas agresses tanto fsicas como as devidas ao desgaste do tempo e dos restauros. Cortes devidos s suas dimenses e destinados a fazer caber o quadro em espaos mais estreitos, deram Ronda uma perda que no pode ser mais recuperada. O facto de Martinho assegurar que a pretensa cpia em seu poder era de facto um original, fundava-se na integridade da pintura e nas suas dimenses conforme o original. Em 1976 um homem investiu contra o quadro com uma faca de cozinha e desferiu golpes que tiveram que ser reparados; assim como houve muitos outros danos, devidos frico de todo o gnero, da luz, do calor e da humidade. Borrifada com gua e cido, a Ronda continuou a ser alvo de ataques que se atriburam a doentes mentais. Mas haveria no suposto doente mental uma lucidez para alm da razo comum? Martinho pensava que sim, depois do deplorvel acto de
Josefa cujas consequncias julgou no puder suportar. Mas o estado daquela mulher, os seus soluos que pareciam um estertor, sobreps-se ao desgosto que ele acabava de sofrer. No acreditava que um af de limpeza levasse Josefa quela violncia exercida sobre o quadro. Um momento de loucura no parecia prprio dela, sempre to cabal e sria no seu trabalho. Era alguma coisa que ele pde desvelar quando a apertou nos braos para a acalmar. Era a solido que ela sentia perante a divinizao da obra de arte. Martinho fez com que ela falasse, ainda que s lhe arrancasse palavras entrecortadas, mal decifradas por ele que apurava o ouvido para no perder nenhuma delas. - O que te deu, mulher? Conta-me, que eu no digo a ningum... Conta-me s a mim. Depois de a ver agasalhada e limpa na cama do capelo, voltou a interrog-la. Mas Josefa s disse que no se lembrava. Quando Martinho voltava costas, ela chamou-o. - Eu pensava que gostava mais do quadro do que de mim. De mim e de tudo que tem de ser amado pelas pessoas para que possam viver. A vida faz-se com o amor dos outros. - Mas que tolice! O que te deu... que ideia a tua... Estava embaraado, descontente. Quando se retirou no passou pelo terceiro salo onde estavam os restos da Ronda da Noite. Era cedo para avaliar os estragos que sabia serem irreparveis. Fechou, com cuidado, a porta atrs dele e no quis pensar mais no que tinha sucedido. Um elo de paixo sem argumentos ligava-o agora substituda no servio da mesa por uma rapariga de fora. Depois as coisas foram-se ajustando a uma realidade que no exclua o desejo de se entenderem. O quadro foi desapeado e convertido em retalhos, depois queimados. S o porta-bandeira resistiu e foi emoldurado para ser pendurado sobre o fogo da primeira sala, a que dava para o ptio e que era a entrada principal. Depois, como aquilo o incomodava, relegou o "porta-bandeira", que tinha sido identificado como sendo o retrato de Jan Cornelis Visscher, amador de obras de arte, de msica e de livros, foi colocado numa salinha escura onde havia duas estantes e dois sofs de veludo verde. O co, tambm poupado esfrega de Josefa, ainda que indistinto na pintura, mereceu as atenes de Martinho que o fez, como ele dizia, "embalsamar" e pr na parede do corredor, entre dois cadeires Lus XIII. Ainda que todo o desastre se mantivesse em silncio, acabou por chegar aos ouvidos de Paula e dos cadetes, que pediram contas do sucedido. A ideia que lhes acudiu foi que a Ronda tinha sido vendida com bom proveito para Martinho e que ele ensaiara a sua destruio para no a ter que repartir como herana. A Ronda ficara indivisa, sendo considerada mais uma mania de Martinho do que um objecto de valor. E se fosse verdade e ela valesse alguma coisa? Isto no chegou a cavar um fosso nas relaes de famlia porque a preguia se imps a todos os outros sentimentos. Martinho estava to longe que Bernardo, um dos cadetes, no lhe chamava parente prximo.
O mais estranho foi que Josefa resolveu ir-se embora; apresentou-se diante de Martinho depois de jantar e pediu-lhe que lhe fizesse as contas. - Que contas? No te pago todos os meses e at ficas com alguns trocos das compras, quando calha? Isto ofendeu muito Josefa, nem ela sabia porqu, porque era verdade. Mas dava aos pobres esmola do seu bolso, com o que se sentia equilibrada no deve-e-haver. Exigiu esmiuar a dvida de Martinho, que nunca lhe pagara somas muito atrasadas do terceiro ms; e do subsdio de frias tambm no recebera por inteiro o que lhe era devido. Tudo isso perfazia uma conta calada e Martinho ficou estupefacto. - Sabes o que tu s? Uma vigarista de primeira apanha. E as consultas na clnica privada quando foi preciso? - No lhe pedi nada. Olhou para ela com vontade de lhe saltar ao pescoo, mas, de repente, achou-se to farto daquele dilogo que a dispensou com um gesto. Teve a noo de que ela no perdoava a ela prpria t-lo ofendido com a limpeza do quadro; e agora queria criar um ponto de ataque para sair honrosamente das suas perplexidades. Nunca mais tinham abordado aquela terrvel noite; mas ela estava presente como qualquer coisa de injusto, uma leso nas suas relaes. Ela disse: - Quando precisar de mim estou ao dispor. Se casar e tiver filhos eu venho ajudar a cri-los. Posso ainda ser-lhe til, nunca se sabe. Era isso que lhe devia; ser til era uma ferida aberta no seu peito. No pedia mais, mas tambm no se satisfazia com as carcias dele que no eram seno parte dum sentimento de plenitude de que ela ficava impedida. "H paixes muito diferentes que no derivam da sexualidade", pensou Martinho; porque tinha lido isto nalgum livro, no sabia onde. E se Rembrandt pintasse como se fosse conhecedor duma libido que ainda no se diferenciasse o suficiente e que, por isso, tinha que manifestar-se pela forma sexual? O que havia entre ele e Josefa pertencia a essa rea desconhecida, o que fazia que ela no se sentisse bem com ele; e que ele a amasse, apesar de tudo. - Que vais fazer para casa? - perguntou. Mas era como se outra pessoa tivesse perguntado. - a minha me que est velhota e precisa de mim. - Julguei que a tua me tinha morrido. - No lhe deu tempo para replicar, e acrescentou: - Fazes bem. Se eu te chamar, tu voltas? - Volto, esteja descansado. Mas percebia-se que ela estava desejosa por desaparecer, como um rato que encontra uma sada num labirinto. As pessoas eram assim. Quando Josefa virou as costas, ele teve um momento de sofrimento como nunca tivera outro assim. As lgrimas corriam-lhe pela cara sem que as pudesse parar. Antes pelo contrrio: agradava-lhe que fossem to abundantes e sinceras. Como sempre, as pessoas que mudam o curso da sua vida, ou morrem, deixam para trs uma srie de indcios que fazem com que a sua
presena no se desvanea durante algum tempo. De vez em quando Martinho ia encontrar qualquer coisa que tinha pertencido exclusivamente a Josefa: um par de chinelos perdidos debaixo duma cama ou uma pea de roupa no to usada que ele no pensasse em devolv-la. Mas, retendo-a em casa, criava na sua mente a ideia de que Josefa ia voltar. Depois, isso foi-se desvanecendo e j no pensava nela seno com pequenos desejos de macular a sua recordao pondo em relevo os seus defeitos. Agora que a Ronda da Noite deixara de ser o seu altar de meditao, no via como justificar a sua permanncia ali. Todavia, estava enredado com as famlias vizinhas, as que tinham filhas casadoiras e que viam nele um partido muito de considerar. A fora desses interesses munidos de sentimentos apaixonados em que participavam mes e filhas, paralisava-o a ponto de querer ceder e acabar assim a sua vida de visionrio: extinguindo-se o poder da sua neurose, ele no tinha outro caminho seno submeter-se via domstica que lhe era indicada. No simples gesto da parte duma das suas provveis noivas, de lhe passar a saladeira mesa, havia uma representao sexual. Era como se ela dissesse: "O meu ventre est ao teu alcance, basta que aceites esta taa de alface." Ela no via o instinto sexual como sendo parcial no feixe dos instintos que contm foras impossveis de clarificar. Mas um homem era diferente. O seu trajecto na vida, a soma dos seus interesses profundos, derivam de fontes erticas no determinadas apenas pela sexualidade. Ainda que esta desse um impulso ao instinto de sobrevivncia que se mede com todos os outros como limite do sentido da prpria vida. Quando se d uma inflao da sexualidade, a energia do intelecto sofre um golpe que pode ir at alterao da realidade. Parecia-lhe agora a Martinho que a Ronda da Noite se apoderava dele (o termo possesso) como um smbolo cujo significado fosse o seu prprio pensamento. A pessoa era iluminada para se transformar na prpria obra de arte. A carga afectiva contida em Rembrandt e nos seus modelos resultavam na imagem do mundo com o qual, assim, Martinho criou uma aproximao. Essa tonalidade afectiva ia ter importncia na relao com as outras pessoas. Os seus projectos de casamento no deram resultado, e Martinho acabou por no ser benvindo no seio das famlias que o tinham recebido com uma espcie de histeria da procriao. Quase de repente, perderam todo o escrpulo e lanaram sobre Martinho as calnias que podiam significar mais para a sua perda. Em primeiro lugar, avanando alm da suspeita, declararam-no homossexual. Ele prprio se interrogou sobre isso e procurou na sua infncia indcios duma natureza que se teria tornado "oculta". Descobriu que, aos quatro anos, costumava esconder-se debaixo das fraldas da camilha, ainda em uso em casa dos Nabasco. Gostava de sentir o cheiro do sexo das mulheres sentadas mesa. Era preciso tir-lo fora do seu esconderijo e, sem alcanarem outro significado que no fosse o duma brincadeira teimosa, distrarem-no com guloseimas e jogos.
Martinho, j com dez anos, desenvolveu um horror sua prpria nudez. Vestia-se voltado para a parede e fechava-se no quarto chave enquanto se olhava com desgosto. Invejava as raparigas porque o sexo delas no era exposto e no podia assim despertar qualquer repugnncia. Achava mesmo que o culto pela beleza se destinava a ofuscar um sentimento de desagrado pelo sexo e o programa doloroso do nascimento. Quando Martinho contava quatro anos, teve a primeira fase que se podia dizer nutritiva, em que a casa da av lhe foi revelada. E, com ela, a Ronda da Noite. A primeira noo que teve da cena, foi que era real. O tamborileiro estava a tocar no seu tambor; a menina brincava com algum que no se via no quadro. E as personagens principais, o capito Banning Cocq e o seu lugar-tenente estavam numa situao precria; porque, tendo a obra, pelas suas dimenses, sido apeada at ao cho, para caber na parede da sala de jantar, como medida de precauo, foi-lhe posto diante um sof de palhinha, desses que eram peas de resistncia nos casares brasileiros. O belo sof de jacarand ocultava at cintura as figuras do primeiro plano, que ficavam trucidadas. Elisa, que no recebeu de boa vontade o pequeno Martinho, porque ia alterar-lhe a rotina do seu trabalho, explicava em termos apocalpticos o que era a Ronda: um agrupamento de aleijados e pessoas disformes, agrupados na noite com intenes que no podiam ser recomendveis. Para Elisa tratava-se duma revoluo, dum assalto, ou qualquer coisa desse teor onde Banning Cocq e o seu ajudante de campo tinham perdido as pernas. E como Martinho rompia a chorar, aos gritos e em riscos de perder a respirao, ela dizia-lhe que as pernas deles voltavam a crescer; para ilustrar o que dizia, afastava o sof e l apareciam os belos cavalheiros no esplendor da sua pose. Martinho, ao crescer, fez da Ronda a sua leitura preferida. Quando outras crianas se distraam com legos e carrinhos de corda; ou at a banda desenhada com aventuras dos seus super-heris, Martinho s comia diante da Ronda e adormecia com o dedo espetado na sua direco, a tentar decifrar, entender e, por conta prpria, criar uma verso satisfatria. Quando Paula o levava com ela e o vinha buscar no meio de muitas e aliciantes promessas, Martinho enfurecia-se e atirava-lhe com o que tivesse mo. Paula culpava a me desse desaforo, mas a verdade que Maria Rosa no retinha a criana nem mesmo a cativava, ocupada que andava sempre com os seus chapus, luxo de aps-guerra e volumosos como um canteiro de flores. Nesse tempo, Maria Rosa era ainda o bastante nova para inspirar paixes, facto de que se admirava porque no estava interessada em jogos erticos. Mas at Martinho, aos dez anos, sabia avaliar o encanto da av, como se fosse uma feiticeira, de tal modo excitava a sua fantasia, abrindo caminhos por onde circulava uma libido nem sempre luminosa. Aprendia que o amor nasce dessa torrente maliciosa de que o corpo tem o mapa espiritual.
Com o segundo casamento de Paula e porque nasceram Joo e Bernardo quase s duma vez, a situao de Martinho esclareceu-se: nunca mais haveria aquela batalha campal entre ele e a me, observada por Elisa que, com as mos cruzadas na barriga, s podia dizer: "isso no se faz", meio divertida com a ira do pequeno Martinho. Era a casa da av que ele temia deixar, ou era a Ronda que ele no dispensava na sua vida? A verdade simblica emanava da Ronda e no da presena de Paula, inadequada como sua me. A Ronda era, no fim de contas, o seu oratrio e a sua religio; tanto mais que qualquer invocao de f no passava, na famlia Nabasco, seno duma intil e vaga petio de princpio. Em tempos muito antigos, quando Maria Rosa no era ainda nascida, a f era ainda referida na igreja como qualquer coisa que junta comodidade ao dia-a-dia das pessoas. As cadeirinhas, os genuflexrios da famlia, estavam na sombra dos pilares do transepto. Havia tambm coxins de veludo vermelho onde os joelhos doentes podiam arrimar-se. Mas depois tudo isso foi desaparecendo e s Elisa, por hbito e efeito da sonolncia, noite, rezava o tero e tinha cabeceira uma pequena pia de gua-benta que foi ficando seca e sem uso. Este livro parece que acaba onde devia ter comeado: a infncia de Martinho Nabasco. Mas o fim justifica o princpio. Sem o pequeno Martinho de quatro anos, assediado pelo tropel da Ronda a todas as horas do dia, tendo por imaginria companheira de surpresas e brincadeiras pensadas a fada luminosa do quadro. Entre a av snobe que no lhe prestava muita ateno porque ela prpria enchia o espao de todos os processos emocionais; entre ela e Elisa que nunca soube ser inimiga ou amiga, ele era feliz. Porque muita coisa escapava s duas mulheres, como por exemplo o abuso das criadas mais novas, pobres raparigas da provncia cuja maior aspirao era ganhar para uma gargantilha de oiro e depois para um volumoso relgio de pulso. Na realidade, o verdadeiro problema que conduzia a uma neurose profunda, no era a sexualidade. O sexo muitas vezes o desvio de causas que procedem de muito longe e cujo perigo se tenta saldar com as contravenes do prazer proibido. Os governos sabem-no. Por isso estimulam festivamente o acto sexual, as fantasias que ele reclama, para ocultar dos cidados as suas autnticas preocupaes. O que consegue uma neurose colateral que vai at ao abandono da personalidade e da vontade criadora. Quando Elisa se apercebeu que Martinho era alvo de atenes pecaminosas das jovens, exps em pblico as suas suspeitas (s vezes nada mais do que suspeitas), obtendo com isso uma satisfao extra na sua vida de espia e de delatora. Martinho ganhou uma imunidade a respeito das mulheres. Como adolescente no se impressionava com a nudez delas; e isto dava-lhe uma sensao de poder sobre as
dificuldades e contribuiu para uma concentrao maior nos problemas, charadas, enigmas que se lhe apresentavam ao correr dos seus dias. A sua educao no teve nada de formal. Maria Rosa quis educ-lo como um prncipe. Ou quis torn-lo disponvel para a realidade interior, o mundo dos espritos e dos sonhos; dos feiticeiros e dos demnios. Dos deuses tambm, ainda que ela os ignorasse, ficando a sua relao com eles convertida na espuma das lendas e da fico melhor ou pior elaborada. Ela no sabia nada dos deuses, que sempre tinham guiado os homens atravs da sua existncia irracional. Fez, sem inteno, de Martinho um primitivo; da a atraco dele por Rembrandt, um mago da selva que nunca se desbrava completamente no mundo interior. Num tempo em que a superstio parece completamente desbancada pelo civilizado, Martinho tinha que precaver-se para no o tomarem por doido. Ao contrrio dos cadetes, seus irmos germanos, ele no tomava as ideologias poltico-sociais seno como novas apropriaes da mgica que se arroga como medida de salvao. A prova disso era que muitos governantes tinham as suas bruxas particulares, que os visitavam regularmente para incutirem-lhes segurana, sobretudo quando as epidemias psquicas se declaravam. Fosse porque debaixo da frivolidade que temperava a sua tendncia aos excessos Maria Rosa atingia uma realidade profunda; fosse por snobismo, que ela tinha em mente ser o seu prprio culto da personalidade, ela no deu a Martinho uma educao que lhe favorecesse uma carreira. A carreira tornou-se a alma da emancipao. A emancipao em relao me, em suma, que simbolizava a autoridade e a obrigao de fazer alguma coisa para corresponder s suas prprias necessidades. H povos dotados para a inatividade, assim como h outros que se satisfazem na obedincia e so adequados aprendizagem. Os primeiros so povos condenados pobreza, uma pobreza mtica porque pressupe a carncia das necessidades. Qualquer plano para os enriquecer tem de falhar porque a inatividade pressupe um estado mais invejvel do que todo o sucesso material. A carreira pode significar competitividade, mas no se assume como objectivo. A educao de Martinho teve como resultado um estado interior cada vez mais vasto. Adiantou-se para dentro de si prprio. O tempo primitivo era reconhecido em cada uma das suas caminhadas interiores; o mesmo acontecia com a provncia rural em vias de desaparecimento. Por exemplo, o hbito de quando se encontrava uma ferradura no caminho, ela devia ser considerada como um bom pressgio. Assim como pendurar a ferradura porta de casa, posto que a ferradura uma proteco contra os feitios. Sobre o portal das antigas cavalarias (onde a Ronda encontrou abrigo durante algum tempo), l estava a ferradura, que Martinho achava indispensvel no seu foro ntimo. Se descesse um pouco no escalo social, verificava que havia imediatamente uma linguagem que aparentava as pessoas muito para alm dos laos de famlia. Algumas lendas que perduravam no meio urbano, apenas como efeito romntico
na imaginao, no se extinguiam, ainda que sofressem deturpaes. Como aquela de se dizer que as guas lusitanas eram fecundadas pelo vento. o cavalo que simboliza o vento e, na lenda alem, ao vento atribuda uma lascvia com efeito sobre as mulheres jovens. Vestgios do culto do cavalo encontram-se sobretudo no Ribatejo, cujas danas sapateadas simbolizam o tropear dos cascos no solo; e muito possvel que esse exerccio de homens fosse outrora uma invocao de fertilidade de que as mulheres eram excludas. Comer carne de cavalo ainda visto como uma emergncia miservel e o seu uso no esteve nunca generalizado, posto que o cavalo uma figura mtica. Depois da destruio da Ronda da Noite e passado o perodo de luto, todos os projectos de Martinho se desvaneceram. O seu casamento com uma jovem da regio perdeu toda a viabilidade e ele espaou as suas visitas at que ela compreendeu que no estava mais no caminho de Martinho e que ele no pensava casar-se. De resto, os papis do seu divrcio no chegavam, e ele no tinha qualquer empenho em apressar o caso. Tanto quanto sabia, Judite tambm no tinha em vista mudar de estado. Limitava-se a cuidar do pai, e as coisas funcionavam como se ele fosse eterno e no admitissem qualquer mudana. Entretanto, o rosto de Judite tinha-se esfumado na sua memria e s olhando para os retratos que tinha dela podia aproximar-se da realidade que tivera na sua vida. O retrato do casamento, a que Maria Rosa quisera dar alguma nfase, no lhe dizia grande coisa. Talvez o que humano no esteja to ligado a ns como se pensa, e por isso prescindimos do que amamos, to depressa. Como nas pessoas que se concentram no sentimento da melancolia, a ideia do seu amor extinto por Judite recriava-se ainda com o seu desaparecimento. Podia-se dizer que lhe era mais grata a memria embelezada pela necessidade de a honrar, do que tudo o que vivera como casado. Os mestres, ainda que mais medocres do que sublimes, tinham-lhe ensinado a arte de sentir, a mais fcil de degenerar e de redundar na extravagncia. Sem o notar, viu-se preso de inspiraes sbitas e tentaes semelhantes a gostos grotescos. Rembrandt devia ser como ele, um homem srio, por exemplo, obediente s leis da cidade; mas que, com o sucesso e a riqueza, se transformasse num melanclico que se acha atrado pelo desejo de vingana iluminado por ofensas e injustias mais ou menos reais. Ele prprio, Martinho, quis dedicar-se pintura e fazer versos. O facto de se dizer que Portugal um pas de poetas vem dessa sombra de melancolia e insucesso que a todos afecta. Tendo passado uma gerao que ele reconhecia pelas modas que lhe eram comuns, viu-se incapaz de ver as mudanas seno com uma ponta de desprezo. Sem a capitosa presena de Maria Rosa, para quem os outros faziam parte do encantamento por si prpria, Martinho no era seno um adulto por convico e, de facto, um homem tmido a quem a liberdade assustava.
Amputado da Ronda da Noite, Martinho esteve muito tempo imvel e encontrou nisso uma satisfao que qualquer trabalho ou dedicao por alguma coisa no mundo no lhe podiam dar. Pensou se as ideias mais nobres do homem no passavam duma encenao dum efeito teatral que partia da sua m conscincia. O que estava bem explcito no Jardim do den, era esse compromisso do homem para com Deus: o de construir um palco gigantesco onde se ia imitar a criao. O valor cultural duma obra em liberdade torna-se discutvel e at condenvel; como ficou provado com a apresentao da Ronda da Noite aos poderes de Amesterdo, incluindo os das mulheres que se apressaram a rir-se de Rembrandt e a humilh-lo, tomando a plenitude catica da obra em questo como uma silenciosa averso aos ditos poderes. O que de facto era. A arte, na obra de Rembrandt, no pertence herana que todos esperavam do seu gnio. uma captura do acontecimento e no a histria dele. tanto mais extraordinrio esse acontecimento quanto joga com o que lhe simultneo: a nudez de Susana no banho no ignora o olhar concupiscente dos velhos embora ela no se aperceba da presena deles. Tudo o que concorre para um efeito simultneo; e antes de um facto se produzir ele j concorria para a unidade atravs de pequenos acontecimentos auxiliares. No caso da casta Susana, um arrepio que podia ser atribudo gua da piscina, denuncia o desejo em que ela participa porque motivo dele. O erro o acompanhante duma verdade e o que a faz percorrer o seu caminho em segurana. Porque erramos? Naturalmente porque a verdade se adianta a ns e ameaa assim a nossa liberdade. preciso atras-la com o erro, que no efeito da estupidez humana, mas uma delinquncia propositada que nos faz ganhar tempo sobre a verdade. Muita coisa se escreveu sobre o crime, mas deixou-se de dizer muita coisa sobre ele. Martinho, ao dobrar a casa dos sessenta anos, teve a revelao de que tinha uma personalidade policial. O extraordinrio interesse que o crime desperta, tanto no aspecto ritual (sacrifcio sangrento) como no carcter de transgresso absoluta, tem um significado que escapa ao racionalismo habitual. Martinho perguntava a ele prprio o que tinha movido Maria Rosa a adoptar a rf de Estrelinha Sopa-de-Massa. Seria s indulgncia e uma forma de extravagncia, o desejo de desafiar a sua auto-estima, ou outra coisa mais inconfessvel, como o prazer de aplaudir a singularidade do crime? Desde a ira de Caim que, de resto, criou a seita dos caimitas, os que contestavam a preferncia de Deus pelo pacfico Abel, que a psicologia histrica do erro esteve em causa. A violncia foi consagrada como um processo til de provar a aptido do homem para a relevncia dos seus direitos. Tudo isto seria muito impopular se Martinho Dias Nabasco se dedicasse a uma carreira pedaggica, ou simplesmente a uma convivncia normal com as pessoas do seu tempo. Mas, parte a tentativa de no se manter margem da sociedade, como quando pensou casar outra vez e gerar filhos (no esquecia a promessa de Josefa de os criar), ele no via sada para a sua situao.
Feitas as contas com Paula e os irmos, os seus meios no eram abundantes. Paula levara tudo o que pudera, inclusive a pequena nfora com as cinzas de Maria Rosa, do que se arrependeu; porque no sabia onde pr o que considerava uma relquia, mas no tanto que lhe dedicasse um oratrio como os japoneses aos antepassados. Os cadetes olhavam para aquilo com indiferena, tanto mais que estorvava em qualquer parte. - E se as lanssemos ao mar? - disse Joo, puxando as meias brancas at ao joelho, como sempre fazia quando se sentava. Era um genuno cidado urbano e tudo o que se passava alm da Rotunda do Relgio era a provncia, ou seja, territrio brbaro. Lisboa acabava no fim da Avenida das Descobertas. E todas aquelas casas dum carcter palaciano (dizia-se palacete no antigamente) estavam adaptadas a fins sociais; a vida de famlia tinha sido extinta, um tanto porque a raiz capitalista no era mais exposta nos indcios de riqueza francos e pomposos. Paula reagiu com a ideia de atirar ao mar as cinzas de Maria Rosa. Martinho viveu a lembrana das frias em Vila do Conde, coutada da gente da capital, onde o mar era alteroso e onde s vezes apareciam afogados com camares presos nos cabelos. Nunca viu nenhum, mas essas histrias causavam-lhe arrepios. Lanar ao mar as cinzas de Maria Rosa parecia-lhe uma profanao. Optou por fazer-lhe um nicho numa salinha que tinha sido de costura e agora no tinha mais utilidade. - Assim est bem - disse Joo. A av era uma imagem descontnua em volta do tronco da famlia que ia sofrendo golpes, apagando as inscries amorosas. Lendas, ditos de esprito ou pacvios, que sedimentavam a memria de grupo, tinham sido arrumados num canto onde ningum passava, como na salinha de costura de Paula. Um dia, quando Joo se casasse e tivesse filhas, elas haviam de lanar gritinhos de jbilo ao descobrir os vestidos de Maria Rosa, obras de arte com molas forradas e remates artesanais. "Meu Deus, no que se perdia o tempo..." - diriam. Desde o dia em que Martinho, aos quatro anos, encontrou o seu caminho na Ronda da Noite, como se fosse a floresta do Pequeno Polegar, a av passou a ser a rainha m da histria. Aos sete anos internou-o num colgio de padres onde no sabia o que fazer seno interrogar-se sobre to terrvel castigo. Por fim, um dos contnuos, que tinha o ar dum guarda prisional, aconselhou Maria Rosa a levar a criana. - No se sabe defender e vai apanhar uma doena - disse. Martinho passou a ter um grande respeito por todo o tipo de guardas, fossem enfermeiros, porteiros ou at jardineiros municipais. Achava que eles tinham enormes poderes e eram capazes de libertar da sua condenao pessoas como ele. Martinho passou todo o ano seguinte com pequenas febres que no era possvel detectar. Comia batatas fritas e lia revistas de banda desenhada. Maria Rosa mostrou-se compreensiva, tanto mais que o doutor
Horcio Assis e Bento Webster, o poeta, lhe diziam para ser paciente. Martinho ia abrir as asas e mostrar o que valia, em qualquer altura. Aos dez anos sabia muito pouco da matria do liceu. Era indolente, no brincava, excepto quando construa cidades de cartolina s cores. Isto prometia que ele fosse arquitecto. Quando se encontra o destino para uma criana parece que todas as coisas se ajustam e que os bens culturais positivos foram cumpridos. Mas Martinho era incapaz do mesmo ritmo de progresso que faz feliz uma gerao sem a fazer cultivada. A poltica cultural da sua poca fazia parte dum contedo objectivo sem limites; enquanto que a cultura subjectiva s muito lentamente se aprofundava. Fosse pelo desinteresse de Maria Rosa, que no via os efeitos da idade da razo manifestados to depressa como ela desejava, a verdade que Martinho ficou entregue a si prprio. Tiveram fracos resultados as lies dos professores particulares, que acabavam sempre por insinuar a incapacidade do aluno para aprender. S quando apareceu na sua vida um jovem mestre, por quem Martinho se pode dizer que se apaixonou que ele despertou para o estudo e venceu todos os exames com extrema facilidade. O jovem professor, quando no teve mais que ensinar, foi dispensado. Martinho mergulhou num desespero que tratou de ocultar de toda a gente. A av era uma eterna coquete, sem mais alma do que a que lhe davam os vestidos e o seu desejo de eternidade. De vez em quando falava dele com orgulho, porque tudo era matria para o seu snobismo. Dizia-se oriunda dos Diez de Espanha e foi ela que inventou a Ronda da Noite como fazendo parte do tesouro da duquesa de Mntua; que o deixou ficar para trs nos caminhos da Estremadura por causa das suas dimenses exorbitantes. Quando os Nabasco estavam o que chamavam "bem de finanas", mudavam-se para a cidade, a pretexto de irem a banhos para as praias do Molhe ou de frequentarem gente importante. A beleza de Maria Rosa abria-lhe as portas e, tendo j a filha casada segunda vez, ainda despertava paixes. No que ela lhes desse motivo, porque a sua melhor tctica era a duma amizade amorosa, muito em voga com o flirt. Os costumes, depois da primeira Guerra Mundial, tinham-se tornado "infanticidas", como dizia Marg, a cunhada de Maria Rosa. Os contraceptivos, a higiene ntima, tornavam o acto amoroso estril. As famlias numerosas desapareciam e o filho nico melhorava as condies da vida domstica. Quando a segunda Guerra estalou, com o ideal germnico da prole bem nascida e educada para um conceito de vitria compreendido como realidade construtiva, encheu o espao europeu como uma grande bolha de ar. Apareceram as refugiadas, que no usavam meias e tomavam banhos de sol completamente nuas na praia. Paula tratava de as imitar, mas as restries tradicionais da famlia impunham-lhe um decoro que era o garante do casamento conveniente. No solar dos Nabasco no havia vestgios quase de Maria Rosa. Ela negociava com o marido o pulo para a cidade e conseguia passar os invernos fora, algumas vezes at em Paris, que era a sua metrpole
muito querida. Passava por parisiense, com o seu ar desinibido e elegante. Mas depois de Paula se casar pela segunda vez e o Nabasco comprar na Maia a Casa do Co, as coisas mudaram radicalmente. Foi quando a Ronda ficou abandonada, com o sof de palhinha a tolher as pernas do capito Banning Cocq. Passaram alguns anos antes que Martinho desse pela sua falta. Foi por acaso que se encontrou com a Ronda. O av tinha morrido e foi sepultado, no lugar da sua origem e no no territrio dos Dias. A grande pedra do sepulcro abriu-se para ele e foi a ltima vez que se abriu. Maria Rosa impressionou-se com aquela pesada laje sobre uma grelha de ferro destinada a deixar cair o corpo, conforme se ia desfazendo, na cova funda. Varrida e limpa, a cova no apresentava vestgios doutros enterros. O que faziam aos restos, coveiros ou quem fosse, no se sabia. Decerto procuravam os dentes de ouro e mexiam nos ossos como em desperdcios sem valor. Talvez fossem parar ao lixo, e da aparecerem caveiras intactas entre os resduos fumegantes que pareciam arder eternamente beira da estrada. Quando o av morreu (ainda no se falava no casamento com Judite), Martinho fez uma visita casa da Ronda. Tratava-se, mais propriamente, de proceder s obras no jazigo, muito danificado por infiltraes e o andar do tempo em geral. O dia apresentava-se tempestuoso e Martinho teve a ideia de abrigar-se na Ronda, que era perto, na colina com ares de castro romano. Mas o caminho estava intransitvel. Martinho meteu o carro por um estrado que acabava alguns metros adiante. Lembrava-se das trovoadas que se formavam nos quatro cantos do vale, e preocupou-se. Mas o porto da Ronda estava vista, ainda que fechado e coberto de ferrugem. S havia maneira de passar adiante, era saltar por cima da sebe que murava a entrada; o que Martinho fez, ficando pouco apresentvel e coberto de ramos enegrecidos pela chuva. A porta da casa estava encostada, provavelmente tinha-se perdido a chave. Se havia ces, ele no deu por isso. "Era o que me faltava", pensou. A gua corria, cobrindo-lhe os sapatos e ele percebeu que estava num lugar seu conhecido. Martinho sabia que havia um ptio diante da entrada principal, um ptio musgoso e empedrado. Um alto cipreste montava guarda entrada. Ele entrou. Percorreu os trs sales, as luzes da cidade prxima cintilavam por entre os fios de chuva. E luz espaada dos relmpagos ele viu a Ronda. Parecia ter uma iluminao prpria, com a menina vestida de seda, a correr por entre a companhia do capito Banning Cocq e do seu lugar-tenente. Um sentimento margem da sua cultura, margem daquela noite em que a chuva se despenhava do telhado, apoderou-se dele. Pelas suas dimenses, o quadro estava arrimado parede como se tivesse escorregado; a sua base estendia-se pelo soalho e parava porque uma trave pregada no cho o impedia de se estender completamente na sala. Martinho tinha o capito junto dos seus ps, mas no o podia ver graas escurido. A nica parte visvel era a jovem vivandeira ou fada que parecia esgueirar-se
alegremente para o outro lado do salo. Parecia ter vida e despedir um olhar travesso em direco a Martinho. A chuva abrandara, mas ele no tinha vontade de voltar a fazer o caminho de volta. Quem lhe dizia que no podia haver uma derrocada e o passo estar impedido? Ou at ele ser apanhado nela, de mistura com pedras e razes? Procurou velas e achou, no lar da cozinha, um prato que servia de castial. Tinha em cima um bocado de estearina a que ele ateou lume; brilhou uma luz fumosa e, lentamente, para prevenir os golpes de vento que apagassem a vela, Martinho voltou para a sala. Era nessa noite que ele pensava, muitos anos depois, j quando a Ronda da Noite no existia, e ele estava sentado diante da porta principal aberta de par em par. Decorria a cancula em Julho, e um bafo quente, filtrado pela ramada do ptio, chegava-lhe ao rosto. Tinha na mo um enxota-moscas feito de papel de jornal, como se usava em tempos; de vez em quando Martinho agitava o ar com ele e o seu pequeno rugido lembrava-lhe que no estava s. Tinha vestido um fato de linho que lhe ficava largo; no se lhe viam os ps debaixo das pernas das calas que arrastavam. Pensou com uma ternura sbita no quadro que o acompanhara desde a sua tenra idade, e no sentiu pena de o ver destrudo. Deixara-lhe uma ideia proftica, como se o mundo comeasse, desde a sua obscura pincelada, a conhecer-se melhor. A companhia do capito Banning, mau grado a sua ordem de marcha, divertia-se desobedecendo, porque "toda a lei uma injustia". O desafio estava lanado pela intuio do artista. J quando a segunda Guerra Mundial quis impor uma disciplina universal, moral, tnica, artstica, as coisas estavam no fim. No se tinha combatido por paixo guerreira, por fixao num lugar mental que se queria eterno; combatia-se cegamente porque todas as razes estavam em causa e entravam em agonia. "Se assim for, melhor " - disse Martinho. A lei era a conscincia de cada um; e ainda que nem em dez mil anos isso fosse um pressentimento que se troca na interaco dos homens, mesmo os mais insignificantes e transitrios, valia a pena esperar. O vento clido, que arrastava a flor do sabugueiro, entrou pela sala. Era como se a Ronda chegasse, com o seu porta-bandeira e homens armados de escopetas; e a pequena fada, vibrante de entusiasmo, se juntasse a eles, para rir, para provocar, para dizer quanto a terra jovem. Martinho teve uma pneumonia na entrada do Inverno e no pde vencer a doena. A enfermeira que vinha recolher sangue para anlises perguntava-lhe sempre a mesma coisa: - Ento no consegue? No consegue? Ele estava convencido que conseguia. Como toda a gente, alis.