Coisas Espantosas, de Camilo Castelo Branco

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fJ JS AS
ESPANTOSAS

CAMILLO CASTELLO-BRANCO
LISBOA
LIVRARIA DE 1\IARIA PEREIRA
50 Rl:A 5:!

A guerra e a peste, flagellos c.ongenitos do homem,
ou gerados pelo homem na peonha do peccado,
como dizem bons theologos e doutos moralistas, de-
vastavam Lisboa em 1833.
Cruzavam-se s dezenas as macas, umas inter-
nando os feridos das baterias: estes, por entre os
cortinatlos de lona, deixavam ver o rosto arregoado
de sangue ou cortado de golpes. Outras macas le-
vavam os mortos de contagio aos valados dos ce-
miterios, onde \os cada veres a monte exhalavam va-
poraes pestilenciaes.
O troar da artilheria e o dobre a finados, estri-
dor medonho com que fallava o rancor humano, e
plangente pedir de oraes para as almas dos extin-
(j
COISAS ESPANTOSAS
ctos, cazavam-se em lugnbre toada; porm, o sentir
intimo d'aquellas duas manifestaes,- uma, odio
de guerra, outra, piedade de suffragio-repelliam-se,
eram o antagonismo da crena e da religio, da ci-
Yilisao e da barbaria, a antinomia do co e do in-
ferno.
Em leito de ouro e purpura, se reclinava o sol
por uma formosa, e saudosissima tarde de junho.
A face do co, retincta de puro anil, serena e lm-
era contraste doloroso com este canto do globo,
em que os filhos da mesma me se espedaayam
como bestas-feras (estas que nos perdoem o confron-
to f) e o sangue fraterno espadanava cara dos que
vociferavam com a mesma lngua as raivosas impre-
caes do odio civil.
N'essa tarde de junho de 1833, em uma casa da
rua da Oliveira, agonisava nas ancias do
colera um homem, que representava quarenta annos.
Ao lado do seu leito estava um menino de nove
annos, e uma mulher de vinte.
No rosto da creana, via-se o pavor, o spasmo, e
no sei que de suprema angustia, raro manifestada
em rosto de creana, que assiste ao formidavel trance
de seu pae. No semblante da mulher, revelava-se a
impassibilidade de mera enfermeira, e, por vezes,
a impaciencia de quem assiste por obrigao a pro-
longada agonia.
Era o menino filho do moribundo; mas a mulher
no era me d'aquelle menino, nem sequer madrasta.
COISAS ESPA!'\TOSAS i
Cinco annos antes, tinha morrido a me de Au-
gusto, que assim se chamava o filho de lgnacio Bo-
telho. Este era um morgado da provncia de Tras-
os-montes, desde muito residente na capital, para
onde fra com uma senhora fugida a seus paes.
Dez annos a tivera comsigo, primeiro com fervo-
res de amante, depois com aborrecimento do en-
cargo, e por fim com affecto de amigo. Vencra o
habito as impermanencias da idade e as repugnan-
cias da vitla domestica. Balbina, de p.aciente indole,
resignra-se conhecendo o esfriamento do amante,
que ella imaginra esposo, cetlo ou tarde ; embebe-
l'a-se toda no amor de uma fillla, que vora ao co,
antes de lhe dar o dce nome de me; succedera-
lhe amor um filho, que era Augusto.
Foi sua vida, pois, dar ao filho os cuidados e cari-
nhos de sua alma; e ao glido pae desta creana os
servios d'uma boa regente de casa.
Tinha quatro annos o menino, quando Balbina,
desde muito adoentada do peito, succumbiu, pe-
dindo, em ultimos paroxismos, a Ignacio Botelho
que perfilhasse Augusto, para que seu filho no ex-
piasse na pobresa a culpa materna.
Chorou-lhe o morgado a falta.
No era a saudade affiicta de amante que o mor-
tificava: era a ausencia irremediaYel de uma amiga
de dez annos, atreita ao seu genio, previdente nos
seus mais caprichosos desejos, zeladora de interes-
ses, que nem sequer a pobre senhora esperava que .
COISAS ESPANTOSAS
aproveitassem ao filho; era, em summa, o habito.
aquelle tenacissimo vinculo, que prende o corao,
j no pelo mais sensirel, mas de certo pelo mais
solido e durarei dos seus fios.
lgnacio Botelho, livre de encargos e de emLara-
os com :1 morte de Balbina, no sabia o que fazer
da sua liberdade.
outra affeio lhe disputara na alma o
logar d'aquella, que lanra fundas raizes em dez
annos, embora essas raizes no desabrolhassem em
flores embriagantes, das que enlouquecem o cora-
o. Das inclinaes passageiras, que hariam feito
desmerecer Balbina aos olhos do amante, j no
existia nem memoria. Dedicaes graves, que pre-
sumissem honesto intento de cazar-se, no tirera
lgnado Botelho alguma. de suppor que, a ter exis-
tido um grande amor ou grande conveniencia, a mu-
lher, que per,Ira o nome e a dignidade de senho-
ra, tiresse sido sacrificada.
ria o morgado de :\Iontezellos, com trinta
e seis annos, relaes na melhor sociedade, e fama
de abastado, poderia aspirar ao consorcio de uma
herdeira, que lhe dobrasse os recursos, com que a
vida se estraga em delicias de poucas horas, ou as-
sociar sua genealogia o nome de alguma filha se-
gunda dotada com appellidos illustres da monarchia.
quiz, ou as erentualidades no quizeram. Per-
maneceu indeciso, um anno, em recolher provn-
cia ou viajar. irresoluo. deparou-lhe o acaso
COISAS FSPA.\'TOSAS 9
uma mulher que o resolreu sua maneira de viver
antiga. Era a filha da sua engomadeira, esbelta ra-
pariga de dezeseis annos. com os modos agradareis
das mulheres menos educadas de Lisboa. Empregou
o morgado os recursos da sua muita astur.ia, e con-
seguiu. sob o honesto titulo de mestra de seu filho,
com.liberalissimo ordenado de Carlota, que a velha
e pobre me Jh'a cedesse. Entregou-lhe a educao
de Augusto, submetteu os antigos criados s ordens
d'ella, e consentiu-lhe que se fizesse chamar dona
Carlota.
~ l e z e s depois, a filha da engomadeira valia tanto
para Ignacio Botelho quanto valra Balbina, a filha ..
de proprietarios honrados, um anno depois que fu-
gira a seus paes; com a differena, porm, de que
esta cheg:ira a enganar-se com as exlerioridades af-
fectuosas, e algumas vezes apaixonadas do amante;
ao passo que a outra fura sempre forada a reco-
nhecer-se comprada. rendida, ou alugada, porque
a expresso amor, nem sequer mentida a podra
tirar dos labios de seu senhor. nas horas de mais
expansira intimidade.
Baibina chor:.ira muito em segredo; Carlota nem
ao menos por impostor pezar soltou um suspiro na
presena d ~ Ignacio. Depois de ter vanmente chorado
a sua quda, lembrou-se de procurar o amor n'outra
parte ; mas achava-se em mau terreno para conquis-
tai-o. Quiz excitai-o com o ciume no corao do des-
cuidado amo; receiara, porm, que elle, em vez de
to
r.oL;;AS ESPA:\TOSAS
irritar-se, a condIzisse pela mo porta da rua, com
carta de alforria, e excellentes informaes do seu
prestimo, se lh'as pedisse.
Assim predisposta, cedeu primeira impresso
do homem que a encarou significatiramente, e en-
tabolou relaes epistolares, o mais secretamente
que pde, valendo-se do criauo cuja boa f soubera
enganar, depois que conseguiu expulsar todos os
que no tinham a sua confiana. Este criado, que no
vem como pueril incidente na historia, ha de oppor-
tunamente exercer uma proridencial misso, se me
consentem que um gallego possa receiJer uo alto o
ponderoso encargo ue executar ordens divinas.
II
Era o amante clandestino de Carlota um cresses
centenares de homens, sem profisso conhecida, ou
conheddamente honesta, que vagamundeam nas ruas
de Lisboa, uma rezes ostentando uma prosperidade
mysteriosa, outras vezes mostrando nas coadas ca-
sacas e n:1 macerao das caras o outro IJico do di-
lemma, em que trazem bifurcada a existencia, to
irrisoria na grandeza como na miseria.
Chamava-se Manuel de Castro, e era filho de um
brigadeiro realista, que se estava batenuo nas linhas
de Lisboa, em quanto elle, destle os vinte annos
vadio, vivia das alternativas do jogo, e disbaratava
COISAS ESPANTOS \S
os poucos recursos de sua me, quando a sorte lhe
era adversa.
Carlota tJispunha de fartos meios, e senhoreara-se
a comprazimento do morgado de algumas joias da
llefuneta Balbina. O que ella pouia cercear da me-
sada recebida para as llespezas da casa, o que podia
furtar das algibeiras e gavetas de Ignacio Botelho,
as suas proprias soldadas, e at as joias de Balbina
tudo Manuel de Castro fundira no jogo.
Grandes deviam ser os me ri tos com que o mise-
ravel se impozera aos sacrifieios de Carlota ! Talvez
a promessa de casamento, talvez a paixo absurda
que no d razo do seu modo de ser, talvez a ameaa
de a denunciar a Ignacio Botelho : todas estas hy-
potheses sero porventura provaveis para explicar
a durao desta vergonhosa dependencia, desde 1830
at data d'aquella tarde de junho em que o fidalgo
arrancava da vida.
Eram oito horas da tarde, quando na camara do
moribundo entraram dois homens de veneravel as-
pecto e cabellos brancos. Eram dois amigos certos
do infermo, que vinham confortai-o e dissuadil-o da
suspeita da morte que o aterrava, se bem que no
comeo do ataque fra benigno o caracter do colera.
Os medicos, admirados do progresso da doena, des-
confiaram da infermeira, e communicaram, na ma-
nh d'este dia, suas suspeitas aos amigos do doente.
Estes, conhecidos de Carlota, e enganados pela boa
f de Ignacio, desvaneceram as duvidas dos medi-
12
t:OISAg ESPANTOSAS
cos, attribuindo-as um pouco ignorancia da c u r a ~
e outro pouco malevolencia. Receiosos, porm, de
que elle expirasse, sem deixar algumas instruces
concernentes ao filho, que elles conheciam desde o
bero, iam resolvidos a lembrar-lhe, se no o perfi-
lhamento por ser tarde, ao menos um testamento
em que o declarasse seu filho, para que os succes-
sores do vinculo lhe no podessem tirar os alimen-
tos, quando muito.
Um dos dois, palpando a testa ao doente, cha-
mou-o. Ignacio abriu os olhos, relanceou-os sobre
o menino, e tornou a fechai-os. Quiz ainda fallar ;
mas os monosyllabos intercortados perdiam-se na
rouquido estertorosa que lhe tomava a garganta.
Augusto, quando os dois amigos de seu pae o
acariciavam, disse-lhes que tinha na algibeira um
papel, que o pae lhe dera para entregar aos seus
amigos, quando elle expirasse. Disseram que no
seria necessario, pois esperavam em Deus que o seu
amigo Yivesse; recommendaram-lhe, porm, que
fosse procurar um d'elles a qualquer hora que o in-
fermo expirasse.
N'esta occasio, estava Carlota fra do quarto, es-
cutando. Os visitantes, ao sairem, encontraram-a,
soluando, com o rosto abatido sobre o regao.
Disseram-lhes palavras consoladoras, e notaram com
passivamente a sincera dr de Carlota.
As nove horas da noite, Augusto adormecra sobre
um canap na ante-camara do pae.
COISAS ESPANTOSA:;
cabeceira do leito estava um castial com vela
de cebo, derramando nas faces arroxeadas do ago-
nisante um claro sinistro.
Gregorio, o criado antigo de Botelho, resonava
recostado n'uma cadeira de espaldar ao p do canap
em que dormia Augusto; mas o seu resonar era
intervalado de sobresaltos, em que o gallego relan-
ceava os olhos em deredor, fitava o ouvido em di-
reco da alcva, e recaia no torpor, para outra vez
acordar estrenoitado, e espreitar a agonia do amo.
A cosinheira, por ordem da governante, fra dei-
tar-se.
Carlota estava na sala de visitas no primeiro andar,
e junto d'ella l\lanuel de Castro, confortavelmente
estendido sobre as almofadas de um soph, fumando,
e seguindo as ondulaes do fumo do charuto com
orientaes delicias. Carlota, sentada na cadeira pro-
xima dizia:
-:\las que papel ser o que elle entregou ao pe-
queno?
-Isso bom e facil de saber-se, tola- respondeu
Manuel de Castro, sacudindo com o dedo mnimo a
cinza do charuto.
- Facil! ... como?
-Se o pequeno dorme, vae-lhe algibeira, traz
o papel, e est sabido o que desejas.
-Dizes bem ; mas se elle acorda ?
--Se acorda, diz lhe que o estavas cobrindo, ou
despindo para o deitares. Ha nada mais facil? Vae
CrSAS ESP Al'\TOSAS
buscar o papel, Carlota, anda. Desconfio que te seja
muito util saber o que elle diz.
Subiu Carlota de mansinho ao segundo andar,
entrou na ante-camara, espreitou por entre as cortinas
da alcra, recuou assustada do aspecto descomposto
do moribundo, e aYisinhou-se do canap em que
dormia Augusto.
A este tempo, Gregorio estremrceu, e Carlota
parou. O gallego Yio-a, e cerrou as palpebras, sem
as fechar, resonando fingidamente. Car1ota levou a
mo subtil algibeira do pequeno, tirou o papel, e
saiu em tremuras, como se a respirao eavernosa
de Ignacio fosse aos ouridos d'ella uma pbrase de
condemnao. Gregorio abriu os olhos, scismou al-
guns segundos, descalou-se, e, p ante p, seguiu
Carlota, e foi ajustar a orelha porta da sala, em
que ella estara eonversando com 1\Ianuel de Castro.
Corte-se, por curto espao de tempo, a narrao
seguida, como os leitores a querem, para se dar
uma pagina ao bosquejo moral d'este criado, digno
d"ella, e de mais apurado pincel. Eu pinto, pela pri-
meira yez na minha vida, gallegos credores da im-
mortalidade.
Gregorio acceitra a proposta de levar e trazer
cartas, porque a ama lhe dissera primeiramente,
que )lanuel de Castro era o namorado de sua irm,
que estava fra da terra, e ella a confidente d'estes
amores. Com quanto parecessem innocentes taes re-
laes, Gregorio resolrra dizei-as ao patro, quando
t:OISAS 15
Carlota foi avisada do intento pela cosinheira, que
privava na honesta intimidade de Gregorio.
e disse-lhe que tencionava dar-lhe meios para poder
estabelecer uma taYerna, e casar-se com Joanna, a
cosinheira, com a clausula de que elle no diria ao
patro que leYava e trazia cartas.
Tinha Gregorio bom pedao de amor a Joanna ;
e o amor, como sabem, tem amolado no direi ca-
beas to rijas como a de Gregorio, mas de certo
consciencias mais robustas e meticulosas. Se a his-
toria verdadeira, Scipio, o afric.ano, o singular
heroe que saiu venceder dos sortilegios do amor,
sacrificando o corao ao puritanismo da honra. Bem
podra Gregorio entrar na historia logo depois de
Scipio, se, em menosprezo de Joanna e da aus-
piciosa taverna, delata ao patro as clzirirwlas, como
clle dizia, em que andava envolYido. Para estes e
outros holocaustos do bello e fementido deus, que
Cames escreveu o verso :
Tu s, tu, puro amor, que a tanto obrigas.
Houve, porm, um momento em que Gregorio
esteve a ser heroe por um triz ; e, se o ento,
ainda vinha a tempo de ensaiJoar-se da nodoa, que,
apesar do que logo se c.onta, ha-de marear-lhe a
fama perante a posteridade.
Foi o caso, que, entrando elle uma por
\olt.a das dez, cmi1 o barril de agua, topra com
llois vultos no pateo ; e, desconfiando que o ,ui to
t.:OI:'_\:;
mais corpulento fosse um official de barbeiro, que
aproava o nariz a Joanna, desc.eu o barril do hom-
bro, e, sem palavra unica de programma, disparou
incontinente um chuveiro de murros, e tamanho:;
que, ao segundo, de Castro perneava inde-
corosamente no pateo, emquanto Carlota applacava
as brutas iras do gallego, dizendo o nome da victima
esmurrada.
A este tempo, :\Ianuel de Castro, cobrando alento,.
e a consciencia da sna ignomnia, ergueu-se, bran-
diu um punhal duas vezes sobre o costado de Gre-
gorio, e sevou as furias homicidas em quatro arra-
teis ue chourio de sangue, que o gallego trazia no
sacco. O assassino, convencido de que matra Gre-
gorio, fugiu, no tendo j animo de arrancar o ferro
do terceiro furo.
Carlota, defendendo o criado com o corpo, sup-
plicava ainda ao amante, que lhe perdoasse ; e ao
mesmo tempo o gallego pedia desculpa do seu en-
gano, sem se queixar dos golpes recebidos ; e to
mando o barril ao hombro, foi para a cosinlla.
Joanna, vendo o cabo do punhal pendurado du
sacco, puxou-o com susto, no momento em que a
anciada Carlota entrava para estancar o sangue de
Gregorio, que ella julgava mortalmente ferido. O
gallego, como visse a lamina do punhal engordu-
rada, carregou o sobrlbo, e disse ama:
-O maldito estripou-me os chourios! Valha-L0
o diabo!
COISAS ESPANTOSAS 17
Riu-se muito Carlota; e Joanna, sabedora do caso.
cuidou de reLentar.
Desconfiou Gregorio das gargalhadas, e entendeu
que os tlois murros puxados d'alma no eram cabal
desforo. Disse que se iria embora no dia seguinte,
visto que o sujeito, a quem elle levava as cartas,
entrara tle noite em casa do seu patro. D'esta ,-ez
aintla a dignidade humana foi esmagada pelo a mm
na pessoa de Gregorio tle Redondella.
Joanna foi to garrida, casquilha, e reque-
brada como n' essa noite. Carinhos, que ella no in-
ventou, nunca os lograram Paulo nem Romeu.
verna suspirada desenhou-a ella com as mais cubi-
aveis cres. As delicias matrimoniaes, os encantos
da prole, a velhice socegada com abundancia, tudo
Joanna traou na tela de um futuro proximo, com
tanta graa e ternura, que o embellesado Grego rio.
canado de felicidade, adormeceu com a cabea en-
costada carvoeira.
l\"o dia seguinte, estavam os receios
de Carlota ; e de Castro recebia, pelo mesmo
Gregorio, a consoladora certeza de que o seu punhal
tinha perdido a virgindade n'uns inoffensivos chou-
rios de sangue.
catastrophe, porm, na vitla amorosa de Gre-
gorio, poz em novo e gravssimo perigo Carlota.
Joanna, muito apaixonada e rendida do
que motivara os murros por hypothese no amante
de sua ama, decidiu cazar-se. Grandes esforos fi-
2
18 COISAS ESPANTOSAS
zera Carlota para espaar o casamento; mas Joanlla
replicava que a sua virtude estava compromettida,
P no podia por mais tempo esconder o testemunho
authentico d'uma falta, ou nodoa, das que, dizia ella,
eiam em bom panno.
Felizmente para o barbeiro, Gregorio no sallia
nada d' estas nodoas. O que elle soube, quando me-
nos o esperava, foi que a cosinheira se despedira
para casar com um rapaz da sua egualha, official de
omcio.
Acudiu Carlota com boas razes quasi demencia
de Gregorio, contando os precedentes deshonestos
de Joanna, e encarecendo os merecimentos d"elle,
com fazer-lhe ver quanto era indigna d'elle simi-
lhante mulher. Duvidando, ainda assim, da efficacia
,restes argumentos, Carlota deu a Grego rio recursos
com que elle, emparceirado com seu primo Thiago,
podessem abrir taverna na rua da Condessa.
Esta terceira quda de Gregorio menos descul-
pavel que as outras; attendendo, porm, a que o
corao humano, despojado das galas do amor, se
veste de preto, repelle o doce alimento das sensa-
res generosas, e ama nutrir-se de vicios e indi-
gnidades, tem desculpa o corao de Gregorio como
o de tar1tos Manfredos, que o leitor festeja e imita.
porque no nasceram em S. Thiago de Compos-
tella.
Sempre injustos e inconsequentes, olhamos com
certa seriedade e acatamento para o homem hern
COISAS ESPA:\10SAS
19
nascitlo e educado, que soffreu revezes na lucta do
corao com a sociedade, ou tragou o fel da perfi-
. e protestou depois ,ingar-se da especie humana,
seja immolando no altar da sua vindicta innocentes
virgens de quem se faz adorar, seja affrontando pe-
rigos da guerra, e barateando a vida contra a morte
que lh'a respeita, e devolve cheia de inrejaveis trium-
phos.
Isto comprehencfemos e admiramos. ...
Que Gregorio, porm, desilludido, sceptico, my-
santropo, arado de fogo infernal na alma, estanque de
lagrimas, esteril de :1spiraes ao ideal em que de
vaneava, outr'ora, sentado no barril; que Gregorio,
emfim, descrido de chimeras, golpeado o corao
de affrontosas dores, se aturda no trafego delicioso
d'uma taverna, seu segundo, e j agora unico sonho
de ouro realisarel, d'isso, que to triste , rimos ns,
Balsacs pifios, que no sabemos trabalhar com o scal-
pel!o observador no corao do nosso irmo da Galliza,
mais- nosso irmo por sangue, que nenhum outro
d"esses que andamos sempre a pintar nos nossos
remendados como capa de pedinte.
Pois verdade. Gregorio Redondella abriu taverna
de sociedade com seu primo Tbiago; mas logo de
principio lhe correu mal o negocio. Disse-lhe um
dia o primo que elle Gregorio andava em peccado
mofento. O gallego recolheu-se sua consciencia,
viu-a suja, e protestou fazer-lhe barrela. Foi con-
a um frade carmelita, de notavel severidade.
20
COISAS ESPA:\ TOSAS
e descarregou o peccado que mais lhe pezava nos
lombos da alma : era inquestionavelmente o de al-
cayote entre Cal'lota e )lanuel de Castro. Impoz-lhe
o frade a pena de tudo relatar ao seu patro, posto
JUe, no intender do casuista, Ignacio Botelho estava
no inferno, em quanto no expulsasse a manceba de
que o demonio se servira para perdei-o. Acrescen-
tou o frade que esta denuncia seria meio de arre-
pendimento para o concubintfrio, visto que elle, a
ter vergonha e honra, devia despedir immediata-
mente a combora.
Ergueu-se Gregorio dos ps do confessor no firme
proposito de tudo descobrir ao amo; quando, porm
o buscava, encontrou-o na cama, anciado com os vo-
mitos do contagio, e achou mal azada occasio para o
aviso. Resolvido, assim mesmo, a desopprimir sua
consciencia de qualquer modo, e, ao mesmo tempo,
suspeitoso de que morte do amo se seguisse o roubo
no precioso da casa, aconselhado por Castro e exe-
cutado por Carlota, o gallego estava de sobre-aviso
para chamar os amigos de seu amo, logo que Ignacio
expirasse. Eis a razo por que o ,imos, primeiro,
sentado ao p de Augusto, e depois o vimos na
pingada de Carlota, quando descia ao primeiro an-
dar com o papel tirado da algibeira do menino.
COISAS ESPA.:.'iTOSAS 21
III
Carlota e ~ l a n u e l de Castro fallavam de modo que
Gregorio ouvira o essencial do seguinte dialogo:
-O homem estava doido! - dizia l\lanuel de
Castro- nem elle tem tamanha somma de dinheiro,
nem, se a tivesse, precisava de declarar aos amigos
a especie em que a tem ...
-Quem sabe ! -atalhou Carlota- Ora l outra
vez o papel.
Castro leu:
E-m peas de 1600 reis, n'um pequeno cofre de
pau preto, tenho trezentas. Este mesmo cofre est
forrado de notas no 'ralor de um conto de reis. Dois
saccos de prata em cruzados rwtos, contendo cada
sacco cem moedas. Cincoenta dobres de 2-i;)OOO rs.
tJ'um canudo de cobre com as minhas armas na
tampa. Esta ultima quantia quero que seja entre-
gue sucessora no 'L"iuculo, minha irm D. Leopor-
Botelho. N minha carteira grande de marroquim
escarlate est um titulo do governo para liquidm
com o valor nominal de quatro contos de ris. Na
mo do meu amigo conde de S. Tlwin do Castello
esto dez mil cruzados. N' essa mesma carteira est
o meu testamento.
- muito dinheiro, no , llanuel? disse Carlota
com alegria.
-Eu te digo, menina ... isto deve sommar pard
COISAS ESPA:\"TOSAS
mais de cinco contos, no fallando nos quatro da di-
vida do governo, e nos dez mil cruzados depositados
em a mo do conde ; estas duas quantias no ha re-
medio seno perdei-as.
cinco contos bastante para ns, no achas?
-Somos ricos, minha amiguinha ! Em menos de
um anno, havemos de ter quinze.
-Como? Ests a mangar!
-Eu ca sei. Vers que boladas eu tiro do jogo,
tendo as algibeiras bem forradas contra a sorte ...
-Pois tu queres jogar I ? Ento, d'aqui a pouco,
estamos misera,eis. :\"o achas que era mais acer-
tado abrir eu uma loja de capella, e tu rireres des-
canado com os rendimentos do negocio?
-Loja de cape lia ! -replicou de Castro
com severiJade e assombro- Pois consentiria eu que
fosse logista a mulher destinada para minha esposa!
Renuncia to vil ida, Carlota; faz-me esse favor.
Eu sou filho d'um official general, e neto de outro.
Tempo vir em que eu possa escolher um dos me-
lhores cargos publicos do meu paiz, e queira apre-
sentar na sociedade minha mulher. l\o tarda que
o poder do sr. D. 1\liguel seja restaurado, e d'aqui
at l preciso fazer-te senhora, jsto , cirilisar-te,
collocando-te ao p de minha me, que uma senhora
de crte, educada no Ramalho, em companhia da
senhora D. Carlota Joaquina, de quem minha me
foi particular amiga.
-Pois sim, o que tu quizeres - tornou Carlota
COISAS ESPANTOSAS
-mas eu sei c se tu me queres para tua mulher f
-Essa duvida offensiva minha honra. Que
te tenho eu dito ha tres annos, Carlota? De que
modo poderia cu recompensar-te os sacrificios, e os
sagrados emprestimos que me tens feito ?
- Calla-te, Manuel. Eu fiz o que devia e que podia,
custa de tudo, meu querido ... ~ l a s , olha, como
ha de ser isto ?
-0 que?
- Tirar o dinheiro.
-Pois ainda o perguntas? Est decidido... Este
papel j no sae de minha algibeira.
-)las o pequeno disse aos homens que o pae
lh'o entregara.
-Isso que tem? O que o pequeno disse coisa que
no monta nada. Logo que o homem morra, tira-se
da secretria o dinheiro em ouro e papel, e deixam-se
os saccos de prata para no desconfiar... Agora me
occorreu uma feliz ida f -exclamou i\lanuel de
Castro, indicando na testa o logar da ida.
-Que ?
-Parece-me que posso imitar esta lettra. Vae bus-
car lapis e papel, que eu aponto apenas o dinheiro
em prata, o titulo do governo, e os dez mil cruzados
que tem o conde de S. Thom do Castello.
- Boa ida ! mas imitars tu bem a lettra?... v
l no que te mettes ...
-Imito .. Vae depressa, que no h a tempo a perder.
Carlota correu escada, e, abrindo a porta, ainda
::H COISAS ESPAiSTOSAS
viu Gregorio que subia rapidamente os degraus a
quatro e quatro. ,
- D'onde vens tu ?-disse-lhe ella assustada.
-Ia chamai-a, senhora, porque o patro acho
que est a passar ... -disse Gregorio com mal fin-
gida naturalidade.
Desconfiou Carlota, e mais ainda quando ''iu que
Pra a mesma a respirao estertorosa de Ignacio Bo-
telho. Augusto dormia ainda. Gregorio, inquieto e
vigilante, seguia os menores movimentos de Carlota.
Isto mais a fez suspeitar de que tinha sido escutada.
Accendeu uma vela, e buscou na papeleira papel e
lapis. Achou o papel, mas o lapis estava cabeceira
do agonisante. Ainda foi porta da alcva, para en-
trar; mas retrocedeu tremendo. Fez novo esforo,
desviando a Yista do aspecto desfigurado do amo.
e venceu o pavor. Gregorio presenciava tudo. Quando
ella acceleradamente atravessava a saleta, o criado,
cruzando os braos, disse-lhe com visivel amargura :
-A minha ama que quer fazer?
-Porque me fazes tu essa pergunta, Gregorio?
-A minha ama quer roubar o filho do nosso pa-
tro'? Isso tentao do demonio, sr. a D. Carlota!
-Roubar, eu I ests doido ou bebado? Pois tu
julgas-me capaz de .roubar teu amo?
-Eu omi tudo o que l disseram na sala, sr.a
D. Carlota. O trampolineiro, que l est em baixo,
hade ir dar com os ossos n'uma enxovia, ou eu no
heide chamar-me Gregorio. D'aqui vou de um pulo
COISAS
a casa dos amigos do meu patro, e conto-lhe tudo,
se a sr. a no pe o tratante fra de casa, e se no
mette na algibeira do menino o papel, que tirou de l.
Carlota enfiou sem poder articular defeza, ou pa-
larra de vituperio ao inexoraYel criado.
-Se a sr. a deixa- continuou Gregorio- eu vou
l abaixo, e ponho o tal malandro na rua, pelas orelhas.
l\Iande-o ao diabo, que a sua perdio, aquelle pa-
tife t Ento que diz? quer que eu v sacudil-o l de--
baixo?
-No, accudiu Carlota, tirando energia de um
pensamento, que lhe occorreu- Eu You l dizer-lhe
que mudei de teno, mas tu no digas a ninguem
que o demonio me tentou, no? Devo-te a ti no
ceder tentao infernal t
-Palavra de honra, que no digo palavra, minha
ama. Ponha-o fra, e traga o papel, que o menino
tinha na algibeira ... Eu bem sei o que elle reza.
Carlota desceu attribulada, e fallou quasi ao ou-
vido de Manuel de Castro :
-Estamos perdidos ... Nada se pde fazer ... O
gallego ouviu o que a gente disse ; e, se tu no sai-
res d'aqui j j, elle vai contar tudo aos amigos de
Ignacio; e quer que eu leve j para c.ima o papel que
trouxe... Vs tu que malvado gallego aquelle ! ...
Isto agora no lhe vejo remedio ...
l\Ianuel de Castro desanimou tambem, e chegou a
erguer-se para sair com as perdidas esperanas dos
cinco contos. cujas parcellas elle estivera a sommar.
26
CGISAS ESP A ~ T O S A S
-Pois no ha remedio nenhum?! exclamou ella
com anciedade.
-1\"o o vejo. No te disse eu, ha dias, que man-
dasses embora este gallego ?
-Temi fazer outro criado sabedor da nossa vida -
disse ella soluando e vertendo sinceras lagrimas-
E agora tu vaes deixar-me porque eu fico pobre ?
-No deixo; mas melhorseriadeixar-le, Carlota ..
-Abandonar-me ! . . . porque?
-Diz-me tu que vida ha de ser a nossa ! Como
hei de eu sustentar-te, se ajudado pelos teus em-
preslimos mal tinha podido satisfazer as minhas pre-
cises?
- Eu trabalharei para sustentar-te, l\lanuel; inter-
rompeu ella lanando-lhe os braos ao pescoo. -
Tu has de arranjar uma occupao, e no me ds nada
que para mim eu arranjarei. Torno para o officio
de engomadeira ... E olha, quem sabe se este homem
me deixa alguma coisa no seu testamento ?
- Ora ! que te ha de elle deixar ! alguma duzia
de moedas para comprares um capote I Ainda s
de bom tempo !
-E abandonas-me, l\Ianuel!- tornou ella, ajoe-
lhando-lhe aos ps.
- Este infame gallego ! - murmurou Castro--
Se fosse possvel comprai-o... Promette-Ibe cem
moedas ...
-No posso... no sei como hei de fallar-lhe ...
Se tu quizesses dizer-lh'o ...
COISAS
-Digo- atalhou resolutamente Castro
-manda-o c falia r comigo.
-:lias acautella-te, .. Olha que elle mau.
tem duvida ... -disse Castro apertando a
mo no cabo do punhal, que outr' ora escorchra os
chourios de sangue.
Subiu Carlota onde estava Gregorio, a interro-
gai-o com os olhos.
-0 sr. Castro quer fallar-te, Gregorio -disse
ella com muita brandura.
-:\"o tenho pendencias com esse homem. O pa-
pelucho vem ou no Yem?
-Ha de vir; mas vae tu primeiro fallar com o
sr. Castro.
-J disse que no vou. dicidir; quando no,
d"aqui a casa do juiz de fra como um raio. Esta
pouca vergonha h a de saber-se ...
To alto fallava Gregorio, que de Castro
subiu ao segundo andar, e foi encostar-se ao batente
da porta mal fechada.
-Se no vae buscar o papel-insistiu o gallego
-eu acordo o menino, e digo-lhe que a senhora lh'o
tirou, e levo-o comigo ao juiz.
- Calla-te, malvado ! -bradou ella subitamente
enfurecida -que, se eu fosse um homem, tirava-te
a vida!.-
-Pois v chamar o seu amante, que eu c estou
espera- redarguiu o destemido Gregorio: bam-
beando a cabea.
COISAS ESPANTOSAS
Quantlo Carlota abriu a porta para sair, Gregorio
seguiu-a com o intento de ir participar o plano do
roubo aos amigos de Ignacio; mas, apenas traospo-
zera o limiar da porta, sentiu rossar-lhe a cara um
ferro: era o punhal de :\lanuel de Castro. Estendeu
os braos musculosos para arcar com o Yulto, que
se agitava diante d'elle, e recebeu segunda punhalada
no peito. Yacillou, ao faltar-lhe a vista, e caiu des-
amparado nas escadas, soltando apenas um rugido,
com um espirro de sangue, que borrifou a face de
Carlota.
-Que fizeste'! exclamou ella, caindo convulsa
n'um degrau.
-Ajuda-me a lanai-o rua- disse l\lanuel de
Castro, passado de medo. -1\"o me faas exclama-
es, seno deixo tudo, e You-me embora. Levanta-o
pelas pernas para no fazer estrondo.
Castro levantou um pouco a cabea de Gregorio,
que elle, com razes de boa aparencia, reputava ca-
da\er. CoHocado em posio inferior de Carlota,
foi-o descendo de degrau em degrau, em quanto ella,
erguendo-lhe as pernas pelas calas, evitava que os
sapatos ferrados batessem na escada. Chegados ao
pateo, Castro escutou a respirao de Gregorio, e
pareceu-lhe que ouvira algum signal de vida; escu-
tou de novo, e convenceu-se da sua illuso. Depois
abriu subtilmente a porta: era completa a solido e
escuridade na rua da Oliveira. Tomou o supposto
r ada' e r nos braos, encostou-o ao peito pelas cos-
COISAS E S P A ~ T O S A S 29
tas, arrastou-o a distancia tle dez passos, postou-o
na testeira d"uma taverna, e recolheu-se.
S duas testemunhas liram isto: Deus e a cons-
ciencia uene.
Se o leitor me perguntar de quem putle eu saber
o facto, se de inspira3o dirina, se da consciencia
fl'elle, mais I arde Yero que a gente pode saber muitas
coisas sem conYersar com o espirilo sancto, nem rom
a c.onsciencia dos criminosos, nem com a policia.
c1ue saLe muito menos que os romancistas. , ,
IV
Fugira para o seguntlo andar Carlota, logo que
Manuel de Castro sara. Fazia-lhe terror a escuri-
do do pateo e da5 escadas. Entrando no seu quarto,
passou diante d"um espelho, lanou-lhe os olhos, e
viu-se salpicada de sangue. Lavou-se, e presumiu que
as escadas deviam de estar ensanguentadas. Fitou o
ouvido para ouvir os passos de Castm, que ,mha
Subindo, e ouviu tambem os ultimos arrancos de
Ignacio Botelho. Manuel de Castro chamou-a, e ella,
hesitando sair do quarto atemorisada, disse-lhe que
entrasse.
- preciso limpar as escadas- disse elle- traz
agua e uma esponja. Em quanto lavas as nodoas do
sangue ...
-Eu! ... - balbuciou e lia.
-Sim, tu: preciso coragem! Que temes tu
COISAS
agora?--dizia elle simulando valor.-0 que de\es
temer alguma imprudencia que nos accuse. Vae,
vae lavar as escadas, em quanto eu vou escrever o
papel que ltas de metter na algibeira do pequeno.
Lavados os degraus, Carlota recebeu o papel que
imperceptivelmente introduziu no bolo c.lo mPnino.
Feito isto. parou a rouca respirao do agonisante.
Rangeu o leito denunciando a ultima convulso da
vida. lgnacio Botelho e:xpira,a, solitario, abandonado,
sem amor, sem familia, sem lagrirnas, sem mo amiga
que lhe enxugasse da fronte o derradeiro suor.
sua cabeceira estava a vela quasi extincta da luz que
vascolejava uns clares azulados.
-Est morto-disse Manuel de Castro, mal pu-
dendo dominar o terror, que lhe incutiu o repentino
silencio.
Carlota no respondeu, e caiu sobre uma cadeira,
se a mo de ferro do remorso lhe batesse no
peito.
-Chama o pequeno, diz-lhe que morreu o pae
- proseguiu Castro com infernal energia.- pre-
ciso que elle ,. entregar o papel aos homens.
-A esta hora?! quem ha de acompan hal-o? llkl-
nh ir ...
E erguendo-se ue golpe com desvairada gesticu-
lao, exclamou :
-Oh meu Deus! o que eu estou soffrendo maior
castigo que o meu crime! Da e-me a morte e o in-
ferno, que ha de ser um tormento menor!
COISAS ESPANTOSAS 3!
Era :\lanucl de Castro um infame fraco. Ha uns
infames fortes que vo onde querem ir com intre-
pido animo. O teiTor de Carlota augmentava o d"elle.
Flagellou-o o que no queria ceder re-
sistencia que lhe punha a rictima, pensando na posse
de alguns contos de r is, sem que o mundo podesse
niminal-o.
Lffi coraro piedoso no poderia ver estes dois
migeraveis, nm em face do outro, sem lastimai-os.
nos peam outra prova da Providencia. Se aquella
angustia durasse duas horas, os supplicios de uma
outra rida seriam demasia de justia divina. Para
accreditarmos que as eternas penas so mais que
careeemos de crer que algum d'esses dois
criminosos gozaram neste mundo dias de paz e con-
tentamento .
. Augusto acordou, e l\lanuel de Castro retirou-se
da ante-camara para o primeiro andar.
Carlota aprQximou-se do menino, e disse-=Ihe:
- )lorreu o paesinho.
E chorava, sem fingimento, porque era atroz-
mente verdica a sua tribulao.
Augusto corren ao leito, pediu luz, encostou a
face ao brao ainda tepiclo do cadaver, e rompeu
em alto chro. Carlota no podia ir tirai-o de l :
receiava desfallecer, quando visse a imagem do seu
remorso no rosto do defuncto.
Chamara Augusto o pae com grandes bei-
jando-lhe a mo onalhada de suor frio, e forcejando
32 COISAS
por chegar-lhe os labios ao rosto, que oscilla\a sa-
cudido pelos empuches que o menino dava ao brao
morto. Os olhos meio-cerrados pareciam entrever
com o tlerradeiro raio de luz as lagrimas do orpho.
O filho de Balbina, exhaurido tle ptanto e de fora.
beira dos colxes, apoiou a face sobre
o leuol humido da transpirao da agonia. e ahi
permaneceu n'um d"aquelles lethargos tle que des-
pertam os adultos, quando o despertar no
em uma outra vida de gloria para os martyres
d"esta.
1\"o entanto, )lanuel de Castro, ,-il ue mais para
sustentar a CJnica serenitlade dos grandes scelera-
dos, avocava todos os deleites que podia proporcio-
nar-lhe o punhado de ouro roubado a um orpho.
Confrontava o seu actual viver- trama de expe-
dientes arriscados e infames- prosperitlatle, que
se lhe antolhava, seno absolutamente encerrada no
roubo, pelo menos derivada desse dinheiro cem ve-
zes multiplicado na industria do jogo, em que elle
se julgava um genio, manietado pela pequenez dos
recursos.
A onerosa obrigao de associar Carlota aos seus
destinos, era coisa es1ranha aos calculos d'elle. Era
isso um fardo to facil de sacudir dos hombros,
que no valia a pena estudar pretextos. A crueza do
abandono, e os successos consecu1ivos do <lesem-
paro eram previses impossveis quelles olhos tol-
dados de sangue.
COISAS ESPA:\TOSAS 33
Assim mesmo, 'lanuel de Castro ouvia uns gritos
da consciencia, e no sabia como ha,ia de respon-
der voz que o appellidava ladro e homicida. Che-
gou a desejar a luz do dia para se furtar s incom-
modas imagens, que lhe avultavam nas trevas da
sala. Abriu a janella para respirar, e viu o claro da
lua, que descia por entre as duas margens de ca-
sas, a alumiar o vulto de Gregorio. Castro recuou.
como se o empurrassem de fra. e lerou as mos
phreneticas cabea. depois, soaram pas-
sadas na rua, e o amante de Carlota escutou. Era
uma patrulha, que parou beira do corpo de Gre-
gorio, e o sacudia a ponta-ps, cuidando que era
philantropico o ponta-p que poupa um bebado a
receber no duro as doentias orvalhadas da aurora.
Depois, ,ieram outros soldados. chamados por um
da patrulha, e o cadaver foi levantado e transferido
d"ali.
Rompia a manh, quando Carlota desceu sala em
que :\Januel de Castro a esperava com impaciencia.
--Que estiveste fazendo?- perguntou eU e com
azedume.
-Estire a chorar ... sei como hei de conso-
lar aquella creana, que me est a ma ta r com os seus
gritos ao p da cama do pae.
-Para que me metteste n"isto, se havias de te
arrepender?- replicou :\Ianuel de Castro com asso-
mos de raiva.
- Eu no te disse que mata'sses o criado ...
3
COISAS ESP A ~ T O S A S
-Vens ento dizer-me que matei o gallego con-
tra tua vontaue, no assim? Pois sabers quP por
tua causa o matei. Foi para realisar a tua felicidade
4ue eu me fiz assassino. Foi para sahr-te de mor-
reres desamparada n'uma cadeia, que eu tingi as
minhas mos de sangue, Carlota. Entendes isto?
-Perdoa-me!- clamou ella- desculpa o meu
remorso, que eu sou fraca, e receio que Deus mude
em inferno a felicidade que esperas, e eu no posso
j esperar.
-Pois bem,- disse Castro com verdadeira ex-
presso do seu aterrado esprito.- Estamos em
tempo de remediar uma parte do teu crime e do
meu. Serei homicida, porque no posso deixar de
o ser. Yae tu troear o papel: que est na algibeira do
pequeno, e deixa-me para sempre, qne eu no posso
nem quero consolar-me de ter matauo um homem,
com a posse do teu amor. Deixa-me para sempre,
Carlota, que eu regeito esse dinheiro, que te est*
flagellando a consciencia. Lembra- te, porm, que
eu era um homem sem infamias nem remorsos, an-
tes de te conhecer.
-1\lanuell,- bradou Carlota abraando-o com
,ehemeute impulso d"aquelle fatal amor___.:_l\o me
deixes, c1ue me matas, e a consciencia no se socega
com a n1orte. Liga-me ao teu destino; acceito-o, seja
elle qual fi'. Quando no poderes com a vida, ma-
l:t-me, que eu penlo-te. Eu j sei que de hoje em
t.liantt> sou entre as mulheres perdiuas a mais des-
COISAS ESP.\r\TOSAS
graa da de todas; no importa, serei tudo, mas am-
para-me tu em quanto poderes. Preciso de ti para
me defenderes deste remorso ... Ollla, se ns le,as-
semos o pequeno para a nossa companhia, a minha
conscienda ficava mais socegada ... H aviamos de es-
timai-o como se fosse nosso filho, sim: Manuel?
-0 que tu quizeres; mas se levares o pequeno
para a tua companhia ho de perguntar-te d'onde ti-
ras os meios para o sustentares.
-Digo que so teus.
-E se me perguntarem quem m' os d ?
-Pois no receias que r o perguntem, ainda que
o menino no esteja comnosco ?
-- que eu tenciono sair comtigo para Hespa-
nha, e voltaremos, passado algGm tempo.
Continuou o dialogo por espao de meia hora,
rematando por se unirem contra os phantasmas, e
decJarando-se ~ l a n u e l de Castro sufficiente philoso-
pho para asseverar a Carlota que os remorsos eram
inquiet-ao de animos fracos .. passageira como todas
as inquietaes fundadas n'um prejuiso.
Era dia claro. Carlota mandou Augusto, com um
indiriduo da visinhana, procurar os dois amigos de
Ignacio Botelho.
v
Logo que o menino saiu, l\Ianuel de Castro abriu
os armarias- da papeleira, e encontrou todas as quan-
tias indicadas no apontamento. Senhoreou-se de tudo.
36 COISAS ESP AXT05AS
excepto dos dois saccos de prata. Abriu a carteira de
marroquim, tirou o testamento, e deixou o titulo de
empresLimo ao governo.
-E" preciso guardar este dinheiro no teu bahu
-disse elle.
meu Lahu?!-accudiu Carlota-e se fazem
uma busca? Quem me diz a mim que o testamento
declara o dinheiro que estava na papeleira?!
-E' provaYel que declare; mas eu vejo o que
elle diz.
Castro rasgou os sllos do testamento, correu-o
com os olhos, e leu em voz alta as seguintes linhas:
Dei.ro minlta criada Carlota dos Reis a quan-
tia de dez mil cru:ados que ficam na mo do sr.
com/e de S. 1'/wm do Castello; a qual quantia lhe
deiJo pela boa companhia que me {e:; no espao de
seis que foi minha. e porque alm
d'isso lhe dero reparar d'olgwn modn os damnos
que causei sua honestidade; com a po-
'l'm, de que, se os meus dois amigos, j nomeados
meus entenderem ser t:nntajoso
de meu filho o consen,ar-se elle na com-
panhia da dita Carlota dos Reis, com alimentos ar-
bitrados pelo conselllo de ella continuar
a ser, como sempre foi, e espero que seja, uma se-
gunda mile de meu filho Augusto.
Era este o maximo castigo que a justia do co
podia comminar desgraada!
A liLeralidaue do testador, e a confiana que elle
COISAS ESPANTOSAS 37
depositava na segunda me de seu filho foram dois
cruelissimos espinhos, que entraram na consciencia,
onde j o remorso a estava mordendo. Carlota de-
bulhou-se em lagrimas, e desvairou em ancias de
desespero. Por momentos, a ida de matar-se lhe
serviu de allivio; mas o muito que penava f l-a crer
em Deus, e logo o temor do inferno, eondemnao
infallivel dos suicidas, lhe foi maior tormento que
o proprio crime.
-Vou confessar tudo! -bradou ella com sbita
vehemencia- Vou dizer o meu crime aos amigos
do sr. Ignacio. Quero morrer penitente e contricta.
No quero nada do roubo nem da herana. Hei de
pedir que me deixem ser a me de Augusto nos
poucos dias que me restam de vida I l\lorro cl'esta
affiico, sem remedi o I l\Iorro, se a graa e a mise-
ricordia de Deus me no acode !
de Castro, com serero semblante, inter-
rompeu-a:
-Queres dizer que vaes denunciar-me como as-
sassino e ladro? E' assim que me consolas da des-
honra a que me fizeste descer? Valeu bem a prna
ser malvado para te agradar, Carlota! que
eu fujo infamia que a tua confisso me traz? ests
enganada. Espero-a aqui de hraos cruzados, para
que tu vejas at ao fim a tua obra, mulher, que me
atiraste a um abysmo, e me apontas ao mundo com
o sangue de teu criado no rosto, do teu criado a
quem tu disseste que arrancarias a vida, se fosses
38
COISAS ESPA:\"TOSAS
um homem! Serei eu quem primeiro diga: -o as-
sassino c o ladro, cumplice d"esta mulher, sou eu.
Esta mulher, que aqui est arrependiua do crime
de que se no ]ara, resolreu arrepenuer-se depois
que viu n'este testamento que era senhora d'uma
quantia que a dispensaria de ser ladra, se o testa-
dor lhe dissesse em vida que a deixara rica. Pensas
que, depois da confisso, recebers a herana de
Ignacio Botelho, a quem te renderam'? Illudes-te.
Nem na cadeia c0nsentiro que comas os jums d'essa
quantia. D'aqui a pouco entraro nesta casa os ami-
gos do teu generoso amante. Sem que falles, falia-
rei eu. I-Ia pouco faltara-me a coragem para me ver
assassino c ladro; agora soLra-me animo para me
denunciar a todo o mundo ... Yeremos como te por-
tas na presena d'este horrirel espectaculo, Carlota!
Hei de ver com que corao arrastas a infamia d"este
noro delicto de que eu vou ser victima, depois de
ter sido algoz, submisso escrayo dos teus caprichos.
Se te julgas infame agora, que pensars tle ti logo'?
Se no pdes calar o remorso com a certeza do
amor e felicidatle, que eu te queria dar, como po-
ders suiTocal-o, tendo atirado ignomnia um ho-
mem perdido por te amar tanto? !
-Oh pae do co!- bradou a infeliz, que o de-
monio arrancava s mos do anjo da contrico-
Valei-me, Senhor, Yalei-me n'esta agonia!
-Ainda tempo-acudiu Castro, temeroso da
chegada dos amigos do morto-Carlota, tu amas-me?
COISAS ESP .A.\TOSASS 39
amas a ti propria? queres que nos salvemos? Es-
conde este dinheiro, e eu te assevero que de hoje
a quinze dias todos os teus instantes sero de ven-
tura e paz de consciencia. 1\"o tardam ahi os ho-
mens. Este testamento rasga-se. Os dez mil cruza-
dos que eram para ti so para Augusto, porque eu
assim o declarei no papel, que elle levou; e, quando
tal declarao fosse invalida, o pequeno est perfi-
lhauo. O que tu tiras pouco mais ou menos o que
deixas. Por este lado no ha de que tenhas remor-
sos. Eu que tenho motivos de mais para soffrel-os;
mas espero destruil-os com o teu amor. Que dizes.
Carlota? Se consentes em guardar este dinheiro, eu
vou sair, que mais que tempo.
-Leva-o tu- murmurou ella com profundo des-
alento - Leva-o, que eu irei ter comtigo onde tu
me mandares ir.
-Levarei, e logo que te derem livre para esco-
lher o destino que quizeres, procura-me em minha
casa.
- Sim, sim, vae que tarde- tornou e lia quasi
em voz desaperceuida.
Saiu ~ l a n u e l de Castro com as algibeiras repletas.
I\" o momento em que saa do pateo, passava defrontr
da porta uma maca conuuzindo o corpo de Grego-
rio. Seguia-o um bando de homens entre os quaes
havia alguns, que apontavam a casa d'onde elle fra
criado.
Manuel de Castro foi detido por um official de
COISAS ESPANTOSAS
deligencias que lhe perguntou se elle era d'aquella
casa. Respondeu Castro que era o medico do dono
d"ella, que acabara de espirar de cholera.
seguir seu caminho, e a aurtoricktde
chamada a larrar o aucto, entrou na casa do de-
functo Ignacio Botelho. Depois de bater repPtidas
vezes porta do primeiro e segundo andar, dispu-
nba-se a fazer arrombar as portas, quando Augusto
subia com um dos amigos de seu pae. Contou a
auctoridade que ninguem lhe respondia, e, d'accordo
eom o amigo de Ignacio Botelho, foi arrombada a
porta. ante-camara no riram alguem. Foram ao
quarto do defuncto, e ,iram uma mulher desmaiada
aos ps do leito.
-E' a pobre Carlota! ... dis5e amigo de Ignacio.
-Filha do defuncto?-perguntou o juiz.
-Filha no ... era uma verdadeira amiga.
-Intendo- tornou o juiz- poucas esposas sen-
fem tanto ... Queria eu que alguem da casa me in-
ormasse cerca d'um gallego que mandei agora
quasi morto para o hospital. Poder e11a informar-me?
-Certo que no. Imagine que noite ella passaria
ao lado do agonisante!
Carlota abriu os olhos, e tremeu uma convulso
de alguns segundos. Chamaram-na, e ella relanceava
a vista espavorida sobre cada pessoa que a rodeava.
Transportaram-na sua cama. Foi chamado o me ..
dico que disse no intender o que era; mas bem
podia ser uma congesto cerebral. quarta sangria,
COISAS 41
Carlota, subitamente reanimada, perguntou a Ma-
nuel de Castro, que lhe fallava em seus delirios, em
qual ciuade ue Hespanha estavam.
D'esta e d'outras perguntas, o medico e os ami-
gos de Ignacio, concluiram com grande pena, que
estava dou da a pobre mulher.
Chegava .o cada ver de Ignacio Botelho ao alto de
S. Joo, quando Carlota saia para o hospital de S.
Jos. e Augusto para casa de um dos amigos de
seu pae
VI
Na tarde do dia immediato, em volta de uma mesa
no :\Iarrare das sete portas estavam seis homens,
ainda moos, com Manuel de Castro.
A mesa estava pejaua de licores, e j pela ter-
ceira vez as garrafas tinham sido restauradas. Era
::\lanuel de Castro quem dava as ordens, e insultava
os criados pouco lestos no servio. Era lambem elle
quem emborcava maiores tragos, e forava os con-
,i,as a imitarem-no, provando-lhes sua superiori-
dade em invasar d"um flego o contendo de duas
garrafas, pelos dois gargalos simultaneamente. Os
assistentes, que occupavam as outras mesas, olha-
vam espantados para a capacidade absorvente de
Ca:;tro, o qual, incitado pelo espanto dos especta-
acrisolou o heroismo at formal embria-
guez.
A tumulencia do amante de Carlota era desabrida.
42 COIS.\S E5PA:\'TOS.-\S
Praguejando contra a covardia dos companheiros
menos Lebedores, batia com as garrafas no mar-
more, e estas saltaram em estilhaos cara dos cir-
cumstantes.
As mesas immediatas foram desamparadas; e os
criados, zelosos do decoro da casa, ou desconfiados
da insolvencia do brio, intimaram-lhe a sada.
Castro reagiu metralhando-os com calices e cas-
tiaes, abonando-se ao mesmo tempo com uma mo
cheia de peas que espalhou soLre a mesa.
A rogos d'alguns amigos da ordem, interveio a
fora armada. Declarou o fautor da desordem que
era filho do official general Severo de Castro. Os
soldados respeitariam o filho d"um
se algumas vozes no bradassem: E de mais a
mais filho d"um caipira f Fra burro!,>
A gritaria excitou as corardes iras de alguns li-
beraes que, em vez de as desafogarem nas
liam nos cafs o boletim, e corrigiam os erros es-
trategicos dos generaes.
Manuel de Castro e os seus amigos foram espan-.
cados e expulsos.
Dizia um dos frequentadores do :\Iarrare, mais
visinho da mesa de Castro, que, applicando o ou-
rido ao que elle fallara antes de embriagar-se, lhe
ourira dizer que precisara afogar no licor um de-
monio que lhe abrasara as entranhas, e que havia
de saturar-se de alcool_ a ponto de dar aos seus ami-
gos o luminoso espectaculo d"uma combusto es-
COISAS
pontanca. Acrescentara mais de Castro que.
entre todos os suicdios inventados pela dor ou pelo
capricho, o mais beroico e magnifico vista, de certo
era o da combusto; se bem que o immediato na
escala da perfectibilidade tinha siuo o do duque in-
glez que se afogou no tonel da :Malvasia, a no ser
o de Sardanapalo queimado ns braos das suas for-
mosas escraYas.
Isto se repetia em todas as mesas, e j haYia
quem ligasse embriaguez do filho do brigadeiro
miguelista uma ida, seno respeitosa, ao menos
compassiva.
Lm dos concorrentes, medico do hospital de S.
Jos, ouYindo proferir o nome J/anuel de Castro,
fez notar aos circumstantes uma coincidencia que
merecia ser ayeriguada. Dizia elle que, no dia an-
terior, entrra na infermaria das doudas uma bella
rapariga, que tinha sido criada ou amante de um
sujeito fallecido de cholera, horas antes de ella en-
douuecer. Segundo afiirrnavam as pessoas que a ti-
nham conduzido ao hospital, a rapariga enlouque-
cera de paixo por seu amo. Continuou o medico :
-{;ma mulher douda de saudade captira-me mais
que nenhuma outra a sympathia e compaixo. Pedi
que me deixassem ouYil-a. F<1llei-lhe no homem por
quem ella estaYa soiTrendo tanto, perguntei-lhe quan-
tos annos nYera em companhia d'elle, quantos da-
ria da sua vida por tornar a Yl-o: disse-lhe tudo o
que deYera compungil-a e desafogai-a em lagrimas.
COISAS ESPANTOSAS
Nem uma lagrima s! Apenas me disse:- Vae-se
demorando muito 1\lanuel de Castro, e n6s precisa-
mos de fugir hoje, se no mettem-me n'um enxovia
e elle enforcado. - Para onde quer fugir? -
atalhei eu. -Para Hespanha ... Vamos para Hes-
panha viver muito felizes, e levamos o filho do
sr. Botelho, que me ha de amar como amaria sua me,
porque eu hei de amai-o como se fosse meu filho.
-Perguntei-lhe quem era, e onde morava l\lanuel
de Castro. Voltou-me as costas com arremesso. Pa-
rece-lhes aos srs. -continuou o medico-que ha-
ver alguma coisa commum entre este 1\Ianuel de
Castro e o outro de que falta constantemente a douda'?
Opinaram alguns ouvintes que era justo indagar-se
a residencia de 1\lanuel de Castro. Saram logo al-
guns na colla dos que estavam com elle, e ainda al-
canaram dois no Rocio. No duvidaram estes de-
clarar que o seu amigo morava no largo de S. Ro-
que, e cerca da douda nenhuma suspeita souberam
esclarecer.
A curiosidade malevola, ou altamente providen-
cial, levou o facto ao conhecimento da policia. J l
era sabido que a douda Carlota se horrorisava d'um
phantasma, que ella chamava Gregorio, e que as in-
fermeiras, proferindo aquelle nome de proposito,
lhe arrancavam povorosos gritos.
Combinou a policia com estes pavores a existen-
cia d'um gallego moribundo no mesmo hospital,
e o facto de ter apparecido nas algibeiras do ferido
COISAS ESPA:STOSAS
um papel em que se liam estas palaHas: Do Castro
recebi por 'rarias re.;es setrnta e oito pintos e tres
tostes.
Foi passada ordem de captura do filho do briga-
deiro realista Serero de Castro.
ConLiuzido prefeitura, e perguntado se conhecia
Carlota, respondeu que no; perguntado mais sf'
conhecia um gallego chamado Gregorio Redondella
disse que r.o tinha decaido tanto da posio social
de seus paes que estivesse relacionado com gallegos.
Pareceu justia insuficiente prova de innocencia
a ironia, e qniz que elle fosse levado presena da
douda. Levado ao hospital de S. Jos, Carlota en-
carou n'elle longo tempo com olhos esgazeados, e
no proferiu um monosyllabo. Disseram ao preso que
lhe perguntasse a ella se o conhecia. Castro, sem
hesitao, interrogou:
-A sr.a D. Catharina ....
-Carlota, Carlota -atalhou um dos funccio-
narios.
-.-\. sr.a D. Carlota conhece-me?
-Vou para Hrspanha - respondeu ella coan-
do-se com ambas as mos phreneticamente. Estou
espera do meu ~ l a n u e l de Castro.
-E no este o )lanYel de Castro que a sr. a es-
pera?- dizia o medico.
- O meu Castro?
-Sim.
-O meu Castro ha de vir Jogo.
4 COISAS
A policia e a medicina desanimaram.
- admiravel e mesmo immoral-disse o preso
com severidade- que os srs., pessoas de tino, ao
que parecem ou querem parecer, me obriguem a
vir aqui figurar n'esta miseravel comedia! Qne ha
que ver entre mim e esta mulher douda? Que peso
tem na lei ou na medicina o proferir uma demente
o nome de um homem de bem, para que esse ho-
mem seja trazido entre esbirros a uma infermaria,
e acareado com a demente? Faz-se-me similhante af-
fronla porque eu sou filho d'um realista? Que tem a
minha honra com a politica boa ou m de meu pae?
-Est o sr. eng:mado -at:Jlhou o maioral da di-
ligencia-ninguem se importa com o senhor como
homem politico. Havia i"ndicios de culpa : procedeu-se
a esta averiguao. Est claro que o senhor no
o snspeiL l\lanuel de Castro. A policia cumpriu o
seu dever. bom ser, para que a sua honra no
safira desaire, que v. s. a no continue a embria-
gar-se como hontem no
- F.u costnmo pagar os li qui dos com que me
embriago ;-disse com sobranceria l\Ianuel de C:lstro
-e desejo aos censores officiosos que elles
gozem a felicidade com que eu me sento mesa
u'nm botequim, donde sio brio.
redarguiram. A inflexo am:Jrga, que dera
s ultimas palavras, moveu commiserao os ou-
vintes.
)l:mrel de Castm saiu lirre.
COIS_\S ESP_\:.\"TOS.AS
Yll
O puHhal de l\Ianuel de Castro o ddo
da proritlencia, que o fez tres vezes desriar do fito
mortal.
O golpe mais perigoso de Gregorio era na gar-
ganta; os ontros, apontados ao corao, nenhum fe-
rira orgo importante.
obstante, Gregorio no dera accordo ie si
tluis dias; e, qnandu recobrou os sentidos, no po-
dia morer a lingua nem articular palarra.
Disseram-lhe que escrevesse o nome de quem o
ferira, se o conhecia. O gallego promptamente es-
creveu, mas com grande custo, as palarras .:.lfauuel
de Castro. Tamanha foi a rio!encia que fez para
explicar por acenos a historia inintelligivel, que,
fura tle Lracejar e gesticular, desmanchou o appa-
relho tla garganta, e gritou com dores, at perder
os sentitlos.
I\"" este desacortlo se detere algumas horas; e en-
to o julgaram em extremo perigo.
Requereu a policia que a douda fosse levada
fJresena de Gregorio, lllgo que elle recuperou o
tino. Carlota, ao r l-o, barafustou para fugir aos bra-
os que a seguravam. O gallego, ao mesmo tempo,
tlru duas upas tamanhas sobre a cmna, e tanto se
cnntorcru que rlrsconcertou o apparelho do cura-
....
-i8 COISAS ESP
tivo, e lanou golfauas de sangue. Foi uma scena
muda horrorosa de ver-se.
Por ordem dos foram prohibidas as
averiguaes da policia, em quanto a vida do ferido
corresse perigo.
Desde este encontro, Carlota no teve instante
de repouso, nem j chama\a com meiguice o seu
l\Ianuel de Castro. Amarraram-na para lhe conterem
os mpetos com que se arremessava s janelJas para
precipitar-se, e s paredes para espedaar o craneo.
Entretanto, .1\Ianuel de Castro, por meio de in-
suspeitas informaes, trnctava de saber o estado d?
Carlota. Pue ser que o d o movesse a inuagar da-
demencia da infeliz; mas mais prova,-el que o
mdo de novas averiguaes o tivesse em sobre-
salto, e cuidadoso de saber se ella revelava alguma
coisa que a pulicia aproveitasse. Em quanto fazia es-
tas indagaes, mediante uma fiel criada de sua
me, irm d'um infermeiro do hospital de S. Jos,
ia-se elle preparando para fugir primeira palavra
duvidosa, que a informadora lhe trouxesse.
Por muito ms que fossem as suas previses, o
resultado excedeu-as grandemente. A criada veio
contar-lhe que seu irmo esta,a como tolo desde
que vira Carluta a espolinhar-se nos braos dos ho-
mens que a levaram presena de Gregorio.
-Gregorio I -exclamou :\lanuel de Castro.
-Sim, tornou a crcada, um gallego, que era moo
d'ella, e que veio procurai-o a v. s.a muitas vezes.
COISAS ESPA::\"TOSAS
-Esse gallego est morto.
- est, meu sr. O gallego est a curar-se
das facadas, no hospital. )leu irmo disse-me que
elle tem uma nas guelas, salvo tallogar, e que pde
morrer d' e lia; mas, h a meia hora, ainda estava vi v o,
e a policia anda sempre por l a ver quando elle
poder responder s perguntas.
l\Iannel de Castro enfiou, e no ouYiu o restantP
da informao. Entrou no seu quarto, embolou o
dinheiro do roubo, e saiu
Chegando s baterias constitucionaes do Campo-
pequeno, tomou um alvio para trabalhar nas trin-
cheiras, e fez-se reparavel pelo afan com que tra-
balhava entre os mercenarios. (m general, antigo
camaratla de seu pae, inquiriu do energico moo
quem fosse sua familia, e maraYilhou-se do amor
chico, que levava o filho a combater o pae, n'Essa
occasio commandante d'uma brigada, acampada no
Campo-grande. Durante a noite, facil foi a :\lanuel
de Castro passar as linhas, e apresentar-se no campo
realista.
O brigadeiro, quando viu seu filho entre os sol-
dados suspeitos0s que lh'o conduziam, chamou-o
de parte, e disse-lhe:
-Vens dar-me a triste nova da morte de tua me?
meu pae; minha me Yive, e tem sande.
Eu vim pegar em armas, e seguir a sorte tl'ellas
at ao fim.
-A sorte est vista. Vens desfeita desta desgra-
'
:;o
COISAS
ada lucta. Estamos perdidos, e tu o que vens dar
mais um infrliz para o numero. 1\lelhor te f6ra to-
mar armas pela outra causa, que eu nunca ro re-
prmaria, meu filho. Os liiJeraes j triumpharam.
oesta parte o que j agora pde haver de lucro e
gloria a honra da disciplina, e mais nada. De l.
ao menos, ainda poderias vir a merecer um emprego,
quando se repartirem os cargos; e com ellc sus-
tentarias tua pobre me, que ha de morrer de fomP
ao p de ns. :\Ianuel, eu nunca te chamei porque,
tlesdc o principio, vi este resultado; agora, que tudo
est acabado, Yae-te embora, alista-te no exercito dP
D. Pedro, assiste s ultimas batalhas, que tlP
facil victoria, e grangeia, sem deshonra, o amparo
de tua me.
:\Ianuel de Castro pensou alguns segundos, e
que cumpriria a vontade de seu pae, depois de estar
algumas horas em sua companhia.
dia seguinte saiu dos atraiaes, e tomou o
caminho do Porto. D'aqui seguiu pro,incia de
Tras-os-mon tes, declarando-se realista ou liberal con-
fnrme ia sondando o esprito das terras onde per-
noitava. Chegou a Bragana. onde n'esse tempo es-
tanciavam commerciantes hespanhoes e jogadores
de officio. .Acrescentou no jogo os quatro contos
de ris, que o animavam a grandes excurses nn
estrangeiro, e passou a Hespanha.
Ao mesmo tempo, os facultativos de S. Jos de-
ram Gregorio livre de perigo, e consentiram quP a
COISAS ESPAI\"TOSAS 51
policia continuasse nas suas pesquizas. O gallego
contou miudamente a historia do projectado roubo,
deu seguras indicaes de )lanuel de Castro, e con-
venceu a policia lia sua inepcia em deixar livre
o ladro, que tinha tido entre mos.
Foi Castro procurado em sua casa, e a me ex-
tremosa informada dos mo tiros por que o busca,am.
A rirtuosa senhora, comprehendendo ento a fuga
subitanea do filho, sentiu-se traspassada da dr e
da ignomnia que mata. Ao seu leito no chegava
consolao alguma. As amigas, que tinh3, raras e
j esmorecidas, porque a Yiam empobrecer P. deses-
perar da victoria dos princpios de seu marido, aban-
donaram-na de todo, quando a ,iram me d"um la-
dro e homicida. Queria a desgraada ter mo na
Yida para poder ainda dizer ao marido palarras de
couforto, quando elle voltasse coberto de feridas e
andrajos. 1\"'isto pensava, e isto pedia a Deus, quando
souiJe que o boletim do governo, numerando ju-
bilosamente os nomes dos officiaes realistas, mortos
em Campolide, nomea,a o do brigadeiro Severo de
Castro. A ,iura no chorou : sorriu a Deus, e orou,
pedimlo-lhe a resgatasse. So ouvidos os infelizes,
quando pedem a morte em transes de tal angustia.
Morreu a me de Manuel de Castro, reclinando a
cabea sobre o seio da sua antiga criada, que ren-
deu o capote para lhe comprar a mortalha.
COISAS
YIII
O filho ele Ignacio Botelho, como se disse, passou
para casa de um amigo de seu pae. Foi-lhe nomeado
conselho de familia, o deliberou que o mrnino
fosse enviado para a companhia de sua tia D. Leo-
nor, resideute em ::\fonfalegre, na provncia de Traz-
os-montes. As razes allegadas pelo tuior eram a
pequenez do espolio do defuncto lgnacio Botelho
para com os rendimentos supprir educaro de
Augusto ; que o perfilhameiJto estava nullo, em con-
sequencia de faltar no processo a citao da succes-
sora do \inculo; que, sem esta nullidade mesmo,
a herana era litigiosa, por virtude de uma lei que
priva os filhos naturaes da successo de paes no-
bres, mormente a de bens vinculados, existindo ir-
mos do ultimo representante do morgado. Accor-
daram, pois, que fosse o orpho captar a estima de
sua tia para que ella ao menos lhe deixasse a pe-
quena parte da herana em dinheiro.
Foi Augnsto para :\lonfalegre, consultada primeiro
a vontatle de sua tia.
D. Leonor era uma filha segunda, que dissipara
o seu dote em poucos annos de ostentosos festins
tlados illustre parentella que lhe pejava as salas
do seu solar. Cazra ainda formosa com um juiz de
fra de Chaves, o qual fugira carga da mulher,
quando que o patrimonio estava esban-
COISAS ESPA:'\TOSAS D3
jado em folias. Depois de casado, descobrira o ma-
gistrado que os creditos de sua mulher tinham sido
deteriorados a passo egual com o Yi-
l'iam, pois, separados sem se carpirem mutuamente.
Ignacio Botelho, condodo da m:i cabea de sua
irm, e solicitado por lastimas d'ella, concedra-lhe
o uso-fructo ua maior parte do Yinculo. posse
estal'a ella quando morreu o irmo.
A noticia d'um filho natural inquietou-a medio-
cremente. Repetidas Yezes lhe tinha dito o esposo
jurisconsulto, que, se o cunhado morresse solteiro,
embora perfilhasse os filhos naturaes, Leonor se-
ria indisputa-relmente a successora do Yinculo. l\'este
presuposto, a fidalga de recebeu satis-
fatoriamente a noticia do fallecimento de seu bom
irmo; e, como boa catholica, mandou, de seu
motu proprio, dizer dez missas de tosto por alma
d'elle, e Yestiu-se de preto, notando que o escuro
lhe fica,a bem aos seus trinta e oito annos, ainJa
,-iosos de flres outonias. Aproposito de pesarnes.
deu algumas reunies, para a despeza das quaes
contrahiu emprestimos sobre os fructos do Yinculo.
que ella afouta e juridicamente denomina\a
Por essa occasio, o magistrado reconciliou-se com
sua e poz em ordem a artilheria do direito
para uefender a legitimidade de Leonor na succes-
so aos ,inculos.
Aqui est<i, em poucas pala,Tas, a familia a quem
a curadoria e tutor mandra o orpho, com o rosto
COISAS
mal enxuto lias lagrimas saudosas de seu pae.
Foi o menino recebido sem carinho nem desa-
grado. Deram-lhe um quarto na casa e um talher
sua meza; compraram-lhe alguns livros, e man-
daram-no estudar grammatica latina.
O orpho estara como estranho no meio d'aquella
familia. o acal'iciara, nem louvava pela sua
regularillade nos estudos, e bom proceder dos nove
annos. Passavam-se dia:; sem que sua tia lhe diri-
gisse uma pala \Ta.
O marido d"ella, como recolhesse, exonerado do
cargo, em 1834., tractara-o com o mesmo desamor.
As pessoas de fra o!baram-no como ente que vivia
s sopas da fidalga, e, para a lisonjearem, maravi-
lhavam-se de tamanha generosidade.
D. Leonor no gostava de ouvir dizer que Au-
gusto se parecia com o pae : a opinio d' ella era
que o menino tinha a cara e os modos da me, que
todos tinham conhecido.
-A Balbina t -dizia Leonor com desdem- a
Balbina tal e qual. Reparem-lhe nas grandes mos
e nos ps, e digam-me se no a Balbina corno
quem a pintou !
-Cnmo quem a pintou, minha senhora! o nariz
mesmo o da Balbina-diziam os commensaes com
uma s bocca.
- Aquelle meu irmo era d'uns gostos muito es-
ragados ! ... Disse-me o meu procurador de Lisboa
que elle tinha, quando morreu, uma mulher em casa,
COISAS ESPANTOSAS
que o roubou, de mos dadas c.om um amante.
Quem perdeu, fui eu, Deus sabe quanto! Apenas
appareceram l uns doze mil cruzados, que os ami-
gos de meu irmo empregaram em inscripes aver-
badas em nome do rapaz, como se o filho da Bal-
bina podesse herdar de meu irmo I
.. -No te d isso cuidado, Leonor- atalhava o ex-
juiz de fra de Chaves-A demanda est principiada.
e o exito de lei, infallivel. Os universaes her-
deiros somos ns.
-Pois ahi est. A faltar a verdade, no sei com
que obrigao tenho aqui este pequeno! Que modo
de vida se h a de dar a isto, no me diro? Se os
irmos de Balbina quizessem tomar conta d'elle, bom
seria ... Podiam educal-o na lavoira, e faz l-o homem.
De que serve o latim a um rapaz que no tem onde
caia morto? Eu deixo-o ir aula para elle me no
andar por aqui a choramingar, e a dizer s criaas
que tem saudades de seu pae. Falia no seu pae, como
se para ser filho de meu irmo lhe bastasse assi-
gnar-se com os appellidos de meus avs. A me c.ha-
mava-se Balbina Fernandes: que se assigne elle taro-
bem Fernandes, se quizer que o conheam. boa I
Augusto Botelho do Amaral Tavares e Donnas Boto I
J ''iram um atrevimento assim? Pois saibam que
o tal Fernandes tem a audacia de pr este nome
em tados os seus livros! Eu j lhe disse que os
apellidos no usava d' elles quem queria, e que o
seu nome era maior"'que a propriedade; mas o pa-
COISAS ESP Al'iTOSAS
teta responde que os apellidos so os de seu pae.
Isto basta para amostra da amabilidade da sr.a
D. Leonor. Infiram d ' a q ~ i a tristeza em que de,ia
vher o menino, rodeado de pessoas que o moteja-
yam, ou reprehendiam por inventadas culpas com
:'eYero desdem.
Viviam em 1\lonl'alegre um irmo de Balbina e
uma irm. Conheciam o menino, que, todos os tlias,
lhes passava porta, no caminho da aula; mas ta-
manho ranror tinham herdado dos paes contra o
seductor de sua irm, que nunca fizeram o menor
signal de se quererem dar a conhecer creana.
Augusto conhecia-os por informaes dos criados
da casa, e pelos tlizeres de sua tia Leonor. FitaYa-os
como quem pede carinhos e amizade; mas os tios
maternos dominavam sempre o impulso do corao,
se algum sentiam. Alm de que, era j sabido que
o menino nada herdra de seu pae. o ~ Fernandes,
como D. Leonor os denominava, contente com po-
der mofar. de appellido to Yulgar, odiaYam tanto mais
a memoria de Ignacio Botelho, quanto ,-iam despre-
sado por elle mesmo e deixado em pobreza o filho
de sua irm. De mais a mais, temiam que o pequeno,
maltractado pela tia, os fosse procurar a elles, e
buscar o seu amparo. Ko podiam com a vergonha
de receberem a creana pobre. Tinham l os seus
princpios de honra, que uma s vez haviam sido
quebrantados pela perdida Balbina t
O litgio da herana corria em Lisboa. ProYou-se
COISAS ESP.-\:\"TOS.-\S 57
tudo que sobejou para desherdar inteiramente o filho
de Ignacio Botelho.
D. Leonor .levantou as inscripes como suas; o
titulo do governo, o producto do leilo da moblia
do fidalgo, absolutamente tudo. Ficou, por tanto,
Augusto vivendo da amargurada esmola de sua tia.
Tinha decorrido um anno, quando o doutor, me-
ditantlo no destino do pequeno, resolveu tirai-o da
carreira das lettras, e mettel-o n'uma casa de ne-
gocio. D. Leonor insistia na execuo prompta do
projecto; e, sentindo impaciente a demora em ar-
ranjai-o no Porto, foi de pareer que Augusto Fer-
nandes entrasse como marano n'uma tenda de es-
pecieiro em Chaves.
Assim se fez.
Augusto chorou amargamente, quando lhe disse-
ram o seu destino; mas no pediu compaixo, que
no tinha a quem a pedisse. Ajoelhou, de mos er-
guidas, rogando alma de seu pae que olhasse por
elle, se Deus o no queria tirar d'este mundo.
Enfardelaram-lhe a pouca roupa que tinha, e man-
daram-n' o para Cl1aves, a p, na companhia do
criado, que levava a trouxinha do fato.
O patro olhou para elle, viu-o de poucas carnes,
e di5se:
-Quem te mandou para este modo de vida, meu
ingarilho? Tu assim um anazado, com a pelle sobre
os ossos, de que diabo serves? Olha J, tu s capaz
de p o d ~ r com um cantaro de azeite? s capaz de
58 COISAS ESP A!'\TOSAS
levantar dois alqueires ue centeio ahi d'esse cho?
_\.ugusto no respomleu; chorou.
O especieiro proseguiu:
-Por que choras tu, rapaz? Quem te faz mal?
Anua l, Yae arrumar a trouxa, e vem, que s has dr
fazer o que poderes. Com efTeito, o senhor doutor
arranjou-me um homem como se quer! O que eu
te posso fazer deixar-te andar a guardar os me-
ninos e os cevados, em quanto tu no arranjas maig
algumas carnes. Tu s de )lonfalegre?
- :\o, sr.; sou de Lisboa-respondeu Augusto.
limpando as lagrimas.
-De Lisboa! ? essa agora ! Como diabo 'i este tu
parar aqui? Quem teu pae?
-)leu pae j morreu.
- Era soldallo?
-:Xo, sr. )leu pae era irmo da sr. a D. Leonor
Botelho, de )lont'alegre.
- E ento ella manda-te para este modo dr
Yida?!
-Sim, sr., penso que ella que me manda.
-Ento, pelos modos, tu no s filho de casa-
mento?
Augusto baixou os olhos, e o negociante res-
pondeu:
-L me parecia! ... Sers tu filho da Balbina
Fernandes, que foi ha muitos annos com o f i d a l ~ o
para Lisboa? s ou no?
-Sou, sim, sr.
COISAS
- Poi5, rapaz, quem vem para este modo de vida
tem tle puxar muito pelos braos, entendes? Aqui
come-se o po que o diabo amaou, antes de ter
algum ,intem. J te disse ; ficas para guardar os
meus meninos que no caiam no quintal, e os ceva-
dos, que no vo horta; e quando puderes
por ti, ento ,irs c p'ra loja, entendes?
-Sim, sr.
Entrou o filho de Ignacio Botelho ao senio dos
meninos do tio Joo Trto, assim chamado porque
era vesgo. Os meninos eram tres, todos vsgos como
seu pae, e mais ou menos rachiticos como sua me.
Logo pela manh almoavam os meninos o seu caf
com leite, e _\ugusto ia cosinha com o caixeiro
almoar caldo vrde migado com po centeio. I\os
primeiros dias, o menino vomitava as cres e o unto
do caldo, logo que o comia, e desistiu de almoar:
como, porm, a fome o obrigasse, e os jejuns lhe
custassem duras reprehenses, foi-se afazendo s co-
res, ao unto, e ao po centeio.
Depois de almoo, os tenros pimplhos de Joo
Trto eram confiados vigilancia de Augusto para
que no caissem pia dos porcos, com os quaes
os meninos folgavam muito de brincar.
Senta,a-se Augusto no mais escondido do quin-
tal, e ahi rompia em pranto e gemidos, que abafava
com as mos. Os vesgos vinham ter com elle, e pu-
xavam-lhe pela jaqueta para os ir entreter, e ber-
ravam se elle no ia. Assomava logo janella da
O COISAS ESPAl'\TSAS
cosinha a sr. a Apollinaria, me dos sujos rapazi-
tos, e ralhava com Augusto, ameaando-o de o fa-
zer andar com uma vergasta. O sobrinho de D. Leo-
nor Botelho do Amaral Tavares e Donnas Boto er-
guia-se, e Ia ia jogar os esconderlos com os me-
ninos, e ter mo nas orelhas dos cerados para que
os filhos da sr.a Apollinaria os cavalgassem impu-
nemente. Se o prco, porm, dava uma focinhada
em algum dos garotitos, e elle grunhia juntamente
com o aggressor, a esposa de Joo Trto descia ao
quintal e ameaava mais de perto .Augusto, chegan-
rlo-lhe ao p do rosto a vergasta justiceira.
Os dias do filho de Ignacio Botelho eram assim
todos, emquanto no peioraram.
Descobriu o sr. Joo Torto que o rapaz nem para
lhe guardar os filhos servia, e escreveu ao doutor
queixando-se de lhe ter mettido em casa um entu-
lho d'aquella casta, e pedindo-lhe que o alUviasse
da carga. O doutor, consultando a esposa, achou
que a melhor resposta era no responder; e Joo
Torto, offendido da desconsiderao, vingou-se, man-
dando-lhe Augusto a p, como fra, na companhia
d'um almocreve.
D. Leonor, ao ver o sobrinho escalarrado, roto,
magro, e negro do sol, teve momentos de compai-
xo, e fugiu de o contemplar para que o d lhe no
incommodasse os nervos. Ouvido o marido, manda-
ram-lhe fazer uma roupa nora de cotim, e recom-
mendaram a uma criada que lhe dsse de comer
COISAS 61
alimentos substanciosos. _-\ sua meza no o senta
taram, nem consentiram nas salas, quando estives-
sem visitas.
Insistiu o doutor no pensamento de o mandar
para o Porto, e conseguiu arrumai-o numa loja de
chapelleiro, na rua de Santo Antopio.
Foi Augusto para o Porto entre a carga d"um re
coveiro, e da estalagem onde pousou levaram-no
a casa do novo patro, que reparou n' elle, e disse :
- melhor levai-o ao hospital. O rapaz tem cara
de quem treme maleitas! 2\"o vaes longe, creatura!
IX
chapelleiro prescreveu a Augusto as suas obri-
gaes. As mais importantes eram erguer-se s cinco
horas de vero, o s sete de inverno. Yarrer a loja.
e a testada da rua. Espanejar as estantes dos cha-
pos. e limpar as frmas. Chamar, uma hora depois,
o caixeiro que dormia em casa. e ir buscar o almoo
dos officiaes. se estes no th-essem quem Jh'o con
duzisse loja.
Augusto cumpriu parte das suas obrigaes no
dia seguinte, e cumpriu-as todas, logo que apren-
deu as ruas e moradas dos officiaes. Posto que an-
dasse depressa, e se no detivesse nas ruas quando
tra-zia os almoos, os officiaes reprehendiam-no des-
abridamente, ou escl!rneciam-lhe os modos recolhi-
COISAS ESP A ~ TOSAS
dos, e o :tr de amargura com que elle recebia os
chascos ou as injurias.
Ao cabo do primeiro mez, adoeceu Augusto, e
esteve quinze dias desamparado de soccoros, sobre
uma enxerga onde s horas de comida lhe levavam
os ordinarios alill}entos que se cosinhavam para os
criados. O chapelleiro, zangado com a demora da
doena, chamou um cirurgio, que declarou o pe-
queno gra,emente infermo, e a preciso de ser cu-
rado com muito melint.lre. Para doenas de melindre
entendeu o patro que a melhor casa era o hospi-
tal. Facilmente conseguiu dar-lhe entrada, e para l
o mandou numa cadeirinha-rasgo generoso que
elle contaYa a toda a gente, dando-se como modelo
de patres caritatiros.
Foi inspira(o da proYidencia dos infelizes. Au-
gusto melhorou e restabeleceu-se. O seu modo dr
dizer, a singeleza e lagrimas com que elle contou
a sua lida a um dos mesarios da santa casa da mi-
sericordia, foi muito na sua prompta convalescena.
O chapelleiro, aYisado da cura do rapaz, mostrou a
m Yontade com que o recebia. O mesario, conscio
d'isto, tomou a seu c a r g ~ Augusto, e levou-o para
sua casa.
Passados dias, disse o mesario ao menino se elle
queria aprender a arte de typographo, ou entrar
como orpho no collegio da Graa. Augusto respon-
deu que acceitava a posio que o seu bemfeitor
lhe dsse. Pareceu a9 bemfeitor que um officio rlP-
COISAS ESPA:STOS.<\S
rente e lucratiro cominha vantajosamente ao setl
protegido. )!andou-o para a typographia de Joo :Xo-
gueira Gandra. que n'esse tempo redigia e publicara
nos seus prlos a retft:la da liberdade.
Aqui esLerc Augusto tres mezes, traLalhando gra-
tuitamente. _\limentara-o e vestia-o o e aos
domingos mandJra-o decentemente trajado.
com seus filhos.-
Pediu Augusto licena ao protector, nas ho-
feriadas da typographia, continuar os seus es-
Ludus de lngua latina. O cavai h e iro sabia que o
pequeno, sem mestre, nada potlia aproveitar com
tal esLudo. Condescendeu, consentindo que
elle, duas rezes cm cada semana, fosse noite dar
conta da sua applicao a um mestre de latinidade.
A conta era excellente: mararilha,a-se o mestre
tlo fructo que Augusto tirara, e o protector cada rez
se contentava mais de o ser.
:\Ias a estrella fatal do filho de Ignacio Botelho
estara inda longe de se apagar.
)lal sorteada saira aquclla creana para as luctas
precoces da desgraa!
O mesario da santa casa morreu em princpios
de 1836. A riuva. de quem vivia separado por des-
gostos muito particulares, senhoreou-se dos bens e
dos filho5, para ir rirer em companhia do segundo
marido, que tinha sido seu oitavo amante.
Augusto, que ella nem sequer conhecia, achou-se
t.le improriso gmhando no mister de
COISAS
typographo uns cobres insufficientes pma a sua sus-
tentao.
lXogucira Gandra, condodo do menino, augmen
tou-lhe o onlenado, e ligou-o a uma famlia pobre
que o alimentara e lhe cuidava da roupa, por um
pequeno esti pendio.
Deixou de leccionar-se em latim Augusto, por no
ter com que pagar ao mestre, nem poder furtar al-
gumas horas ao trabalho da noite.
Faz d e admira":lo ver este menino de tloze an-
nos incompletos, pautando a sua pela esquadria
que a mo tlo infortunio lhe apresenta! Como a des-
ventura lhe de5envolven a tempor virtude da pa-
ciencia, e aquelle apurado juizo da conformidade.
to rara em armos adiantados !
Deixemol-o a braos com o trabalbo, e depois
voltaremos a ver se a sua fatal estrella se apagou.
X
Yamos saber de Carlota dos Reis, e Gregorio He-
dondella.
Carlota, depois que viu Gregorio na infermaria.
onde os braos possantes dos esbirros a levaram.
peiorou das allucinaes, e passou classe das dou-
das furiosas.
A poliria tomou-lhe conta dos balms, e,
cando-os, achou as cartas de de .Castro, umas
extremosas, outras irritadas contra a sorte que o
COISA." E S P A ~ T O S A S 65
perseguia, e muitas agradecendo os fa\ores recebi-
dos de dinheiro, e joias, que elle promettia restituir,
na primeira mono de prosperidade. Sobeja\am,
pois, os documentos para mandar :i Africa o filho
do brigadeiro; mas, exhauridos todos os recursos
da pesquiza, a policia desesperou de capturar o fu-
giti\o, e de processar a cumplice, j de sobra jus-
tiada pela demencia .
. Gregorio curou-se -ragarosamente, e saiu do hos-
pital com reputao de gallego honrado, que, em
defeza do espolio de seu amo agonisante, se deixra
apnnha1ar. Os jornaes d'aquelle tempo contaram o
successo, encarecendo as virtudes do nosso iiTilo
da Galliza, as quaes, n'aquella epoca, eram proYer-
biaes, e raras -rezes desmentidas.
Pessoas, admiradoras do heroismo de Gregorio,
quizeram conhecei-o e ajudai-o a grangear uma Ye-
lhice repousada. OITereceram-lhe dinheiro para se
estabelecer em grande com um armazem de Yinhos
e comidas. Gregorio acceitou, associando-se a seu
primo Thiago, homem de muito boas contas e amigo
de trabalhar.
Abriu Gregorio o seu armazem na tra-ressa de S.
Domingos, com uma taboleta amarella e -rermelha,
onde se lia este mote em lettras -rerdes:
O LEO DAS HESP.-\:\"HAS, REI DOS PETISCOS
De feito, sob.re o dstico, via-se o leo empolgando
5
\
COISAS ESPA:\TOSAS
n3s garras um pato assado e um paio de Lamrgo.
Afra este estabelecimento, que l:n rou creditos
no vulgares, Gregorio abriu nas hortas de Cheias
um:1 casa, chamada
HETHI:lO
onde os p.::'tisros eram muito melhores que a ortho-
gr.aphi<l.
De Lisboa, em dias sanctificadcs, concorriam s
hortas de Cheias os paes destas famlias, que hoje se
pejariam, recordando-se de terem l comido uma sa-
lada rle camaro, ou uma pescadinha marmota de
rabinho na bocca, bem assaso:-tda da viosa alface,
qne deu aos lisboets um1 fresca e innorente no-
meada.
O grande caso que ambos os estabelecimentos
de Gregorio Redondella & c. a, prosperaram a olhos
a ponto de elle abrir terceira taverna na rua
das Gavias, fJUe medrou sob a estrella propicia das
outras.
Dois annos depois, Gregorio, mparceirado n'um
bilhete da loteria, em metade, tirou o premio &rande,
e comeou logo a edificar uma casa no largo da
Abegoaria, casa de cinco andares, com grandes ar-
m:lzens em que estabeleceu uma padaria.
N'este entrementes, namorou-se Gregorio d'uma
vinva ainda fresca. que vendin objectos de estanro
e capella ao fim fla Duque.
COISAS ESPA:'\TOSAS 67
Cuidou elle, at quella hora, que a ingratido
de Joanna, a cos'inheira com o bar-
beiro, lhe afogra par!\ toJo sempre os instinctos
amorosos no Resistira destlenhoso a mui-
t:ls tentativas dos paes que frequenta,am com lepi-
das moas o seu retiro de Chellas, e ao primo Thiago
diz:a elle que nem a filha mais velha do rei de Hes-
panha seria capaz de lhe bolir no corao.
A estanqueira era a predestinatla e milagrosa mo
que de,ia arranc3r do seu tumulo aquelle Lazaro,
chagado das perfidias de Joanna. Viu-a Gregorio
nas hortas, com suas irms e cunhados e compa-
dres, frequentadores dominicaes do rethiro admira-
bele. Vl-a e amai-a foi um caso fulminante.
Os petiscos, n'esse dia., postos na meza dos fre-
guezes, excederam o pedido; e, ao dar das contas,
Gregorio arqueou os braos na cintura, e disse:
Est pago, e que lhe prPste o que se quer.
D'aqui decorreram oito dias. A
sr.
3
Rosa estanque:ra, quando soube que seu cu-
nhado Bonifacio tinha sido procurado por Gregorio,
a fim de se tractar o casamento, achou que era mais
feliz do que merecia a e acreditou-se verda-
deiramente amada, quando sua porta parou meia
hora um tangedor de gaita de folies, o qual decla-
rou, com intencional sorriso, fir ali de recommen-
dao de Gregorio.
Casaram. Foi padrinho do casamento Thiago, e
madrinha a irm tle Rosa. que presenteou o noi,o
COISAS
com um par de botes de prata rendilhados para o
collarinho da camisa.
Celebraram-se as nupcias em S. Domingos, e d'ali
partiram todos, em numero de Yinte e sete, para
Chellas, escarranchados em burrinhos os rares, e
as damas muito Lem po5tas sobre as gualdrapas
escarlates dos seus portadores que espinoteavam
De soberbos de carga to formosa,
como diz o grande epico do trito de Venus.
Nuru2rosns gaitas de folles tinham precedido o
prestHo, e alguns flautistas cortaram agradavelmente
a monotonia das gaitas, com umas toadas pastoris
de muito sabor para coraes amantes.
O leitor dispensa as minudencias d"aquelle reju-
biloso dia. Excepto a sr. a Rosa, cujo juizo egualara
o pudor, todos se embebedaram mais ou menos;
mas de geito que o vinho apertava mais os laos
de parentesco e fraternal amor que os unindo.
Foi Gregorio virer com sua esposa no primeiro
andar da casa recentemente construda. Rosa tomou
a seu cargo a administrao da padaria, na qual se
bome com muito tino e zlo. O ditoso conjuge con-
tinuou a velar pelas trts tavernas, que de dia para
dia grangeavam freguezia, mais abundante que as
ambie3 dos proprietarios.
Em 1839, Thiago, desejoso de descanar e gosar,
liquidou a sua parte, e foi para o bispado de Tuy
COISAS ESPANTOSAS
6!)
comprar uns grandes bens. Gregorio, fatigado de
trabalho, e ric.o, passou os armazens c.om vantagens
inexcediveis, e comeou a negoci3r em trafic.o me-
nos laborioso e mais limpo. Abriu-na Ribeira velha
um armazem de carnes salgadas, e no Bairro Alto
duas carvoarias, em que empregou os criados an-
tigos, e d'onde auferia mais que o nec.essario para
a sua subsistencia. A pedido da carinhosa esposa,
conservou a padaria para passa-tempo d'eJla, ceden-
do-lhe os ganhos para comprar o seu ouro, e brin-
dar as irms e cunhados em dias de annos.
Como quer, porm, que no haja n'este mundo
gosto completo, o sr. Gregorio lastimava-se de no
ter um filho, e Rosa chorava, como Sra, a sua es-
terilidade.
A medicina mandou-a tomar banhos em Pedroi-
os, e as comadres aconselharam-na a f'ntender-se
com umas mulheres de virtude. que destramavam
a esterilidade, quando ella procedia de maus olha-
dos e ares ruins.
Inutil tudo, e Gregorio melanc.olico, perguntando
ao co de que lhe servia a riqueza f
Em extremos de descrena nos recursos huma-
nos, voltaram-se os esposos para o co, e resolve-
ram ir de r o m a ~ e m a S. Thiago de Compostella a
implorarem a interc.esso do sancto na obra mira-
culosa dJ sua propagao. Aiumiava-os um raio de
esperana.
Foram.
7 COIS.\S f.SPA\TOS.\S
XI
Desejosos tle verem terras, foram pelo Porto.
uma Yez a sr. a Rosa a.] mirando, pela ter-
ceira vez, a Torre dos Clerigos, quantlo Gregorio viu
diante de si um moo de quatorze annos, que lhe
dizia:
-- o sr. Gregorio, no ?
-Sou Gregorio, sou; e \'m.ce quem ?
-Sou o Augusto, filho do sr. Ignacio Botelho.
-0 sr. Augustinho!- exclamou Gregorio abra-
ando-o, e tomando-o ao alto- O filho de meu amo!
Como venho eu topai-o n'esta terra? t Isto parece-me
que sonho t Pois o menino no foi l para casa da
irm do seu paesinho?
Augusto principiou a contar a sua vida, e s pri-
meiras palavras saltaram-lhe as lagrfmas.
Gregorio s ento reparou nos pobres trajos do
moo, e fez um gesto de espanto, levantando os olhos
ao co, donde os desceu para a sr.: Roza, que es-
tava pasmada d'aquelle ene-ontro.
-Aqui o tens ; -disse Grego rio - este o me-
nino de quem te fallei, Rosa! Faz-me rebentar de
pena vel-o assim to magro e to mal enroupado.
-Coitadinho! tlisse Rosa. Deixa-o contar a sua
vida.
-Aqui na rua no proprio -redarguiu Gre-
f!Orin- Vamos para a o l
t:OISAS ESP A ~ T I I S . A S
71
Yenha d'abi, sr. Augusto, venLa lfahi, que foi por
Deus o nosso encontro.
Na estalagem, contou o tBho de Balbina os maus
tractos que recebera de sua tia. Esta parte da nar
rao foi muitas rezes cortada por exclamaes da
sr. a Rosa, e saccudidelas de braos do indignado
Gregorio. .
Seguiu-se o triste episodio do mercieiro de Cha-
ves. N'este ponto saiam como punhos as lagrimas
dos olhos de Gregorio, e muitas Yezes voltado para
a consorte, exclamava:
-Como este menino foi creado, c a 1ue elle
chegou!
Seguiu-se a ida para casa do chapelleiro portuense,
os trabalhos que lhe deram, o desamparo na doena,
e a entrada no hospital.
Ergueu-se de golpe Gregorio, clamando por en-
tre soluos que no queria ouYir mais nada; mas,
a pedido de Rosa, sentou-se para ouvir o resto.
Alegraram-se coraes e rostos de ambos, quando
Augusto contou o bem-fazer do mesario da sancta
casa da misericordia, e a caridade com que o de-
functo bemfeitor lhe d::t\'a alimentos, Yestidos. modo
de vida, e dinheiro para pagar ao mestre de latim.
Gregorio quiz saber o nome e morada do gene:-
roso homem; quando, porm, Augusto disse que
elle tinha morrido, o seu antigo criado exclamou :
-Assim havia de ser ! Aposto eu que a desaver-
gonhada dP sua tia, e mais o tendeito e Cl chapei-
-... )
1-
COISAS
leiro, ainda vivem! Nem o diabo quer os patifes f
Terminou .\ugusto a sua minudenciosa historia,
contando o quasi desvalimento em que ficou, por
morte do seu protector, e o trabalho que tinha na
typographia para ganhar a sua suLsistencia.
Concluitla a historia, Gregorio aproximou do seio
o filho de Ignacio Botelho, correu-lhe as mos cal-
tosas pelos cabellos, beijou-o na testa, como o beijava
creancinha desde. os dois annos, e disse-lhe:
-0 passatlo, passado, menino. Agora outra
coisa. Faa de conta que tinha de passar todos esses
e que vae mudar de vida. Rosa-continuou
elle, encarando a consternada mulher : -Deus no
quiz que tivesscmos filhos; agora que eu atino
com a razo. Temos aqui o filho de meu amo : faz
de conta que o nosso.
-J me lem!Jrouisso ... -disse Rosa-Parece que
me tocou o corao logo que tu o conheceste.
-Sr. Augusto, tornou o Gregorio, o menino vae
comnosco j d'aqui para Lisboa. :Xs iamos para a
Hespanha, mas j no temos que ir l fazer. Ests
por isto, Rosa?
-Pois ento! quevamosnsagorafazer a S. Thiago?
Vamos para nossa casa, e levemos comnosco o me-
nino. Elle quer ir?
- You de m:1ito boa vontade. O sr. Gregorio me
arranjar em Lisboa um modo de vida, que me no
custe tanto.
-0 seu modo de vida- atalhou Gregorio- ha de
COJS_\S ESP .A::\'TOSAS 73
ser o que o menino quizer. Eu lhe digo tudo em
poucas palavras, sr. Augusto. Sou rico, graas a Deus.
Tive amigos, que me deram a m::o. Trabalhei muito
alguns annos, fui feliz em todos os negocios, e agora
descano, e posso fazei-o homem. Ora aqui tem.
Casa, vae tel-a muito decente e aceiada, que eu fiz
uma que como se quer. ~ e o menino quizer ir
para um collegio, ir. Se no, est comnosco. A mi-
nha Rosa uma santa, e eu c sou sempre o mesmo
Grego rio. Olhe aqui para o meu pescoo. (E dizendo,
arregaava o collarinho) v aqui o signal d'uma fa-
cada? Apanhei-a para lhe salvar o dinheiro, que seu
pae tinha. Quem fez o que eu fiz, faz tudo o mais
em seu bem, sr. Augusto.
O orpho, quando entrra em casa do amigo de
seu pae, ouvira dizer que o criado fra moribundo
para o hospital, ao mesmo tempo que Car1ota en-
doudecera; mas ignora,-a os pmmenores da trage-
dia, que correra em quanto elle dorinia, na anteca-
mara de seu pae agonisante.
Gregorio contou-lhe por partes todos os successos,
demorando-se no roubo e fuga de Manuel de Caslro,
pessoa que Augusto nem de nome conhecia.
Os primeiros cuidados de Gregorio foram vestir
Augusto o mais aceiadamente que os alfaiates do
Porto podiam.
Brindou-o com um rko relogio e grilho. Sai-
ram todos de carroagem a ver as ruas do Porto.
Estiveram no tbeatro de S. Joo, onde a sr.a Ta-
COISAS ESP ANTOS.\S
lassi e o Grilo-coixo faziam o spasmo delicioso da
platea. Por lembrana ua sr.a Rosa, foram a Braga vi-
sitar o Bom Jesus, e agradecer-lhe a felicidade de en-
contrarem o menino. Voltaram ao Porto, cada hora
mais alegres, e partiram para Lisboa n'uma calea,
cujo dispendio revelava a bizarria de Gregorio.
Chegados a Lisboa, e decorrido um mez de des-
cano, Augusto mostrou desejos de frequentar as
aulas do collegio dos nobres. Promptamente Gre
gorio dispoz tudo, com a condio de que o seu
filho adoptivo iria pernoitar a casa.
Pm amor d"elle, houve grande mudana no vi,er
dos conjuges. Fechou-se a padaria, e acabaram os
traficas menos limpos de Gregorio. J iam ao thea-
tro, e frequentemente tomavm uma carroagem para
irem a Chellas, onde o. antigo proprietario do
tltiro admirabele se deleitava percorrendo as hortas,
onde ptimeiro vira Rosa, e o banco de pedra em
que se tinham sentado junctos no dia de noivado.
E no se escondiam de Augusto para estas
sas expanses. O caricioso mancebo, por ventura
poeta, e, mais que poeta, corao de anjo, folgaYa
de ouvil-os, e fazia perguntas que os obrigavam a
deliciosamente recontarem o seu amor, e a doce
harmonia em que tinham sempre vivic.lo.
Augusto era sofrego de saber. Prima,a entre os
seus condiscipulos, tanto pelo luxo do seu trajar,
como pelos dons da intelligencia. Aprendia linguas,
e Grcgorio ria muito, quando n estudant.e passra,a
COISAS ESP i5
ssinho decorando a conjugao dos YerLos inglezes.
-Cego seja eu, dizia o folgaso Gregorio, se
eu sei para que o sr. Augusto anda ahi a batalhar
com essas trapalhadas! O menino no precisa de
saber isso, que tem muito que comer e beber. Seu
pae era um fidalgo rico, e no sabia inglez nem fran-
cez. Faa como elle, sr. Augusto, dirirta-se, e coma-
lhe bem, que anda ahi magro, que parece chupado
pelas bruxas. O que ha de fazer dar seus passeios
a caYallo, que est ali o animal na cocheira arre-
negado por andar, e eu r no lhe salto para cima
que o mesmo que cair pelo outro lado para baixo.
de latinorios, sr. Augusto. Se o senhor
precisasse de levar a nda a aturar inglezes ou fran-
cezes, Y; mas, se Deus quizer, tudo o que ns te-
mos seu , e olhe que ainda tem que roer.
Augusto! com termos muito claros, tractaYa de
explicar a Gregorio o poder da paixo de saber, s
quaes razes o seu amigo encolhia os hombros, e
Rosa tambem, mas no teimaYam com receio de o
affiigirem.
XII
-Que ser feilo da desgraada Carlota?- disse
um dia Augusto a Gregorio.
- Eu sei c, meu filho!
-Estar ainda dou da'!
- Isso bom de saber. Se o sr. Augusto tem
empenho n'isso. Pu sahPrPi.
76 COIS.\S ESP . \ ~ T O S . \ S
-No tenha esse trabalho-disse o filho de Igna
cio Botelho- que eu irei indagar.
-Ento o menino quer vela'?- acudiu Rosa.
-V l-a, no; mas queria saber d'ella. Ainda que
o seu crime foi grande, o facto de enlouquecer de
remorso diminue o odio que inspira gente.
-Isso assim - atalhou Gregorio- mas, a fal
lar a verdade, eu ainda sinto aqui n::ts guelas a faca
do tal patife, que se atirou a mim de mandado d'ella.
l\I raio o parta, que era um bregeiro de marca!
N'um dos proximos dias, Augusto Botelho, com
uma carta do director do collegio, foi ao hospital
de S. Jos, e inquiriu dos empregados o destino
de Carlota dos Reis, que para ali entrra douda em
t83..
Tinham decorrido sete annos. Examinaram os li-
\TOS das entradas e sadas, e descobriram que a
douda tinha sado curada em 1838. Foram chama-
dos os infcrmeiros do tempo d'ella, para darem al-
gum esclarecimento do seu destino. Um s disse
que a Yira uma vez dando a mo a uma velha cega
muito mal trajada, a qual disse Carlota que era sua
me. Acrescentou o informador que as encontrra na
rua dos Cardaes de Jesus; inferindo d'ahi que no po-
diam morar muito longe d'aquelle sitio.
Augusto mal conhecra sua me. As mais remo-
tas reminiscencias da sua puercia encontravam-se
com Carlota, que o trazia sempre ao collo, e o aca
riciava muito. Se o pae lhr, negava os bonecos, que
COISAS ESPANTOSAS i1
elle pedia, mandava-os sua custa comprar Car-
lota. Por interveno d'ella conseguira o menino ficar
em casa. muitas vezes, quando o pae o violentava a
ir escola. Com Carlota que elle ia ao Passeio
Publieo, a Cacilhas, a Belem, e ribeira das nos.
Eram estas recordaes que podiam muito sobre o
corao do moo, incapaz de odio, n'aquella edade
impropria para odiar quem concorreu para a sua
pobreza. Ao mesmo tempo, occorria-lbe a ida de
que sua tia lhe havia de tirar o muito, assim como
lhe tirou o pouco. Pois, se nem descaroada tia
Augusto conservava rancor, como poderia elle odiar
a desgraada que to sua amiga fra at ao ultimo
momento em que, morto seu pae, ella se abraou
n'elle, la,ada em lagrimas?!
Isto, porm, no o dizia a Gregorio, para no
acordar a dor retrospectiva, que elJe soiTria nas
guelas. Cala,a-se com a sua saudade e ardente
desejo de ver ainda uma vez Carlota, sem se uar a
conhecer.
N'esta pertinaz anciellade, ia muitas vezes rua
dos Canlaes, e pur ali se demorava nas travessas
mais poLremente povoadas, esperando ver alguma
hora uma cega amparada mo da mulller que de-
via ser Carlota.
Tomou um dia a resoluo de perguntar em diffe-
rentes ruas d'aquellas proximidades . .Ninguem lhe
dava noticia. Retirava-se j descoroado, quando fez
a ultima pergunta a uma mulher que viu com a ca-
8
C015.\S ESP A:.'\TOSAS
hea fra da um postigo de casa terrea, fronteira ao
da actual academia real das sciencias.
-Quem procura o sr. ? - disse a mulher.
- Pncuro u:na mulher, que morou por estes si-
tios, e tinha sua me cega.
-Como se chamaYa essa mulher?
- Era Carlota dos Reis.
A pessoa interrogada fitou alguns segundos o man-
ceLo, murmurando, como quem se recorda, o
que lhe diziam.
- ::\1o sei - disse ella- por estes sitios, que
eu saiba, no mora tal creatura.
DouraYa Augusto a esquina .da rua Formosa,
quando sentiu perto de si os passos apressados de
uma mulher idosa que o chamava.
Parou, e esperou.
-O sr. -di5se elb arquejantlo de cansao-
n1o esteve ali a perguntar por um:l Carlota dos Reis.
que tinha a me cega ?
-Perguntei, sim. Vossa merc -sabe onde ella
mora?
-Ora. se sei ! E a pessoa que lhe respondeu
sabe-o melhor que ninguem.
- Sabe? ! onde ?
- Pergunte-lh"o a ella, que ella mesma.
-Como?!
- .\quclla creatura, com quem o sr. fallou, que
a Carlota, filha da cega. E quer saber porque ella
'' nega'? pnrtfllr dowla uns poucos annos
COISAS 7U
no hospital, e tinha endouJecido porque roubou um
amante por causa de outro que a deixou, e levou
o roubo. Ora agora, como ella tem medo que a
mettam em justia, por isso no diz o e as-
sim que v gente a olhar para ella, some-se logo
com medo que a conheam.
-Diga-me vossa merc- tornou Augusto -
Est bem certa do que me diz?
- Ora, se estou ! Eu conheo-a desde o tempo
em que a me era engommadeira de um fidalgo que
lhe tirou de casa a filha. E foi bonita, o diabo da
mora; mas agora tem mesmo cara de peccado ...
sume-te, demonio !
-E de que est ella agora vivendo ?
- Emquanfo a me foi riva, ia pedir esmola a
algumas casas, d'onde ella foi engommadeira; de-
pois que a me morreu, acho que a filha passa fomes
de palmo! Eu por l a vejo a costurar, mas aquiUo
no d nada que se veja. Se ella no saisse to
acabada do hospital, inda teria algum homem que
a tivesse pelo sustento. mas aquillo est uma lercas
que no vale uma sde d'agua. E o peior se a
justia pega a andar de carnaz com ella, que ento
bem na leva o berzabum pela barra fra, e mais
no leva coisa boa ! .
-Est bom : agradeo as suas informaes, e
tome l para o seu rap.
A velha prgou na morda de prata com sofreguido,
e disse:
HO COISAS ESP.\.:'\TOS.\S
-Ainda que eu seja confiada, v. s.a que queria
tal Carlota? pra mo r llo tal roubo que ella fez?
-1\"o, senhora. Eu no lhe queria nada.
.. !-tornou a velha- que ... ella ... para
ou lra coisa, como o outro que diz, no lhe vejo
geito. Se v. s.a quizer uma rapariga ageitadinha,
ha l uma ao p: que est na conta ...
Augusto olhou com nauzea para a mulher, e vol-
tou-lhe as costas.
As nove horas da d"esse mesmo dia, foi Au-
gusto, rente com o palacio fronteiro, e parou em
frente da casa de Carlota. Estavam todas as portas
fechadas na visinhana.
1\"o se coava por nenhuma raio de luz, excepto na
de Carlota, que tinha ainua meio cerrada a fresta do
postigo.
Pc ante p, Aug.usto caminhou rente com as casas
lateraes, e espreitou pelas junturas do postigo.
Viu uma mullwr sentada no cho costu-
r:mdo l luz de uma vela, mettida em suja placa de
f0lh:1. Carlota, a espaos, suspendia o trabalho, e
cruzava as mos sobre o regao, olhando mui Lo fixa
a chamma da vela. Depois, retomara o trabalho com
afan, e parava de novo scisrnando, ou deixando cair
a face sobre os joelhos.
Augusto chamou sua memoria a antiga Carlota,
e no via d'ella feio alguma n'aquella mulher, que
ali esta,a.
- impossvel que a outra me enganasse, com
COISAS 81
noticias to exactas- dizia entre si o filho de Igna-
cio Botell10 -- mas tambem impossvel que em sete
annos se disfigure assim uma pessoa !
perplexidade, \iu erguer-se Carlota, e
abrir uma caixa d'onde tirou umas cdeas de po.
Foi depois a um recanto d'onde trouxe um prato
sopeiro e uma Lilha. Partiu em bocados as codeas,
e amolleceu-as com agua. Emquanto o po amollecia,
Carlota, com a manga do vestido, limpava as lagri-
mas. Depois comeu o po; e, terminado o repasto,
disse a meia voz :
- Bemdito seja Deus !
N'este momento, Augusto, cedendo ao impeto da
sua commiserao, bateu porta.
-Quem ?- disse em sobresalto a mulher, es-
condendo o prato debaixo da cadeira de pau sobre
a qual tinha a placa.
-Tem a bondade de abrir?
Carlota espreitou ao postigo, e disse :
-Quem procura o sr?
-Procuro-a a si.
-A mim? ! Parece-me que vem enganado. Eu
no o conheo.
- :\o importa, sr. a Carlota dos Reis - eu lhe
direi quem sou.
-Queira perdoar ; mas eu no abro a minha
porta, nem tenho casa digna de receber ninguem.
Que pde querer-me v. s.a? Yem prender-me?
-r\o sou esbirro, sr. a Carlota. Pode abrir sem
6
8 ~
COISAS ESPANTOSAS
receio. No me importa saber como a sua casa.
Quem a viu comer o po secco amollecido com agua,
pde tambem ver o resto ua sua indigencia.
Susteve-se Carlota sem saber que respondesse.
No emtanto, Augusto deu um brando impulso
porta, que rnachinalmente Carlota abriu.
O filho de Ignacio Botelho, sem reparar na pobreza
d'aquelle antro, encostou-se a uma mesa de pinho,
e cruzou os braos.
-Para desaffrontal-a de medos, vou dizer-lhe quem
sou, mas desejava eu muito que se affirmasse em
mim, e me reconhecesse, a ver se adivinhara em
mim um amigo, e no um esbirro.
-No me lembra de o ter visto-disse Carlota
muito tranquilla.
-A creana que ha nove annos lhe brincava com
os cabellos deve estar bem mudada! ...
-A creana ! ... -balbuciou Carlota.
-0 filho de Ignacio Botelho- disse Augusto.
Carlota expediu um estridulo grito, e recuou com
as mos nas fontes.
- ~ o me fuja, Carlota- continuou Augusto-
venha ao p de mim, d-me a sua mo, diga-me
que me conhece, e que pode ainda chorar de saudade,
como, ha instantes, chorava <'le dor. Sou eu Au-
gusto, ou no? Conhece-me Carlota?
A desvairada mulher, sem se aproximar de Au-
gusto, ajoelhou e ergueu as mos a1tura do seio,
tartamudeando :
COISAS ESPANTOSAS 83
-0 sr. Augusto ... o filho do sr. Ignacio Botelho ...
eU c, , bem o conheo; no me engano ...
O ar, com que estas palarras eram proferidas in-
timidou Augusto, dando-lhe a pensar que a infeliz
poderia voltar demenca. Acereou-se d'ella, er-
gueu-a, abraou-a, e fl-a sentar na cadeirinha.
-Tem-se lembrado lle mim?- disse-llle elle com
os olhos rasos de lagrima:;- A creana dos cabellos
loiros appareceu-lhe alguma vez nas trevas da sua
desgraada vida ?
- Perde-me!- exclamou eU a lanando-se ou-
tra Yez de joelhos.-Perde-me, pelo muito que eu
tenho padecido!
-Est perdoada; mas prometta-me que ha de
estar tramiuilla, que ha de conversar comigo sem
alvoroo, que ha de crer rm mim o affecto que eu
lhe tinha em Ko se falia aqui no passado;
eu nada lhe pergunto, absolutamente nada, Cadota;
sente-se, steja socegada, sorria-se para mim, e
fembre-se bem do nosso passado de ha dez annos.
Carlota ouvira com assombro de idiota estas pa-
]a\Tas; apertra as mos que Augusto lhe offerec.ia;
depois, encarando n'e1le com muita penetrao, rom-
peu em pranto desfeito, e, tomando-o para si, aper-
tou-o ao seio vertiginosamente.
COISAS
XIII
l\lomentos depois, o sebo da placa estava con-
sumido, e a escuridade do recinto era cerrada.
Carlota, disse Augusto, venha dar comigo um
passeio, que est bclla a noite. Vamos conversar
na minha infancia; eu lhe contarei a minha vida.
A sua que eu no preciso que a sei, ou
conjecturo o que no sei. Acompanha-me?
- Xo tenho com que me cubra, sr. Augusto-
disse ella.
-Tem a minha capa.
E, dizendo, lanou-lh'a sobre as espaduas.
Saram.
Augusto contou-lhe a sua historia desde a morte
do pae, e a felicidade que estava gosando sob o
amparo de Gregorio.
Quando proferiu este nome, viu que Carlota lhe
fugia do brao; e, reparando n'ella ao reflexo d'um
candieiro, home medo da desordem das suas fei-
es. Quiz socegal-a, segurando-a com brandos mo-
dos ; mas a desgraada soffria um accesso de lou-
cura.
Uma patrulha presenciava a agitao dos dois, e
tomou conta do caso. Augusto explicou em termos
simulados o incommodo d'aquella sr. a, e pediu que
a ajudassem a transportai-a a uma hospedaria. Car-
lota foi seguindo, a passos convulsos, a direco que
lhe dava Augusto. A patrulha, no termo do seu dis-
COISAS ESPA;';TOSAS
tricto, entregou-os a outra, e assim foram inuo at
ao Roei o, onde entraram n'uma hospedaria.
Como hospedes, a tal hora, parecessem suspeitos
ao dono do hotel, Augusto apressou-se a depositar
nas mos do zelador da honra domestica algum di-
nheiro, dizendo :
-Eu no fico aqui ; o que desejo um quarto
para esta sr. a
- Senhora 1- murmurou o estalajadeiro.
-Sim; senhora.
-Pelos trajos no o parece ...
-Pois imagine que O , e no discuta Ym. ce a
qualidade da pessoa. O que eu peo que me d um
quarto para esta senhora ou mulher aqui se conser-
Yar algumas horas, e o favor de lhe chamar j j
um medico.
--Tenho c dois hospedados.
-Pois queira chama l-os, que eu pago pontual-
mente tudo. Entretanto, eu vou ~ a i r , e logo Yolto.
Carlota, vendo sair Augusto da sala onde a meia
YOZ dialogara com o estalajadeiro, quiz seguil-o.
-Espere-me aqui-disse-lhe elle-Eu volto logo:
obedea-me, sim? pede-lhe o seu Augusto.
Carlota caiu n'um canap com os olhos cravados
no moo.
O estalajadeiro, de si para si, mnindo as palaYras
seu Augusto, entendeu que andava ali coisa de paixo;
mas admirou-se que um rapaz, to galante e bizarro,
se no empregasse melhor.
86 COISAS ESP A:'tTOS.\S
Saiu o filho de Balbina, e foi a passo rapido a
casa. Estava Gregorio esperando-o com a meza posta
para a ceia, e muito sobresaltado da demora.
-Que foi iss0, _ meu filho?- exclamaram Gre-
go rio e Rosa ao mesmo tempo.
Foi muito, foi um successo que me obriga a fal-
lar j:i, a dizer tudo ... Abram-me os seus cora.es,
que eu preciso de todo o seu amor para este lance.
Acudiram ao p d'elle juntamente os dois, ex-
clamando: - Que ?- Falle! - Diga o que tem!
Augusto, voltando-se para Rosa, disse maviosa- -
mente:
-Minha me!
Rosa, que nunca ouvira estas palavras, ditas com
tamanha ternura, sentiu-se louca de alegria at s
lagrimas.
-Que quer, meu Augusto, diga o que quer de
mim?
-Quero o seu bom corao para receber n'elle
as lagrimas d'uma grande desgraada. Imploro-lhe
a sua sensibilidade, porque espero vencer com ella
a resistencia de se'J marido.
-Eu no intendo! -disse Gregorio afllicto.-
menino, falle claro ...
-Encontrei Carlota- disse Augusto - encon-
trei-a em extrema miseria, comendo cdeas de po
de rala molhadas em agua. Eu fui muito desgraado,
e por isso compadeci-me d'ella.Perdoei-lhetudo, por-
que s prrdoando que eu posso agradecer a Deus
COISAS 87
a felicidade que tenho, e que lhes devo, meus que-
ridos amigos. Perde lambem, sr. Gregorio, per-
de desgraada, que, ao fim de quatro annos de
demencia, tem experimentado o supplicio mil ve-
zes peior, o supplicio da razo e da miseria sem
egual n'este mundo. Se a visse, sr. Gregorio!... O
cho da casa de terra e molhado. A cama so
umas palhas envolvidas n'uns farrapos. Carlota est
vivendo para morrer a todas as horas. No tem uma
s feio do que era; nem uma s que a faa recor-
dar. Conhecia-a pela voz: mas parece que os gemi-
dos e a vergonha lh'a cortam na garganta. Sai com
ella da sua caverna, porque a desgraada no tinha
luz; cobri-a com a minha capa, porque a pobresinha
no tem com que se cubra. Parece que a sua fra-
queza no podia com o ar forte da noite. A cada passo
se amparava no meu brao, e vacillante me pedia
que l deixasse sentar. Contei-lhe os infortunios da
minha infancia. Eu lambem tinha sentido a fome e
a nudez. Devia saber as palavras com que se mitigam
as dores alheias descrevendo dores similhantes. luz
dos lampees, vi o rosto de Carlota inundado de la-
grimas, como vi o seu, minha me, quando no
Porto lhe contei as miserias com que Deus forta-
leceu a minha alma e desenvolveu em mim os sen-
timentos da caridade. Depois, quando lhe estava
dizendo esta felicidade, que tenho aqui, este bem
com que a bondade divina premiou as minhas an-
gustias immerecidas, fallei em si, sr. Gregorio. E,
88
COISAS E S P A ~ T O S A S
apenas eu proferi o seu nome, Carlota foi atacada
d'uma vertigem, e tere um novo accesso de lou-
cura. Pude levai-a a uma hospetlaria, e l a deixei
esperando que um medico a sahe de tornar para o
hospital. Seria horrivel para mim, se eu via aquella
infeliz outra vez douda por minha causa, quando eu
meditava em alivia l-a da sua pobreza !.. .
-Pobre mulher! -atalhou Rosa, com os olhos
marejados de lagrimas.- Tem sido bem castigada,
no tem, Grego rio?
-Isso tem! - disse o bom homem, que ouvira
a vehemente exposio de Augusto, com visivel
mostra de compadecimento; e continuou, passados
instantes:- Ento, o sr. Augusto que quer agora?
-Queria - respondeu o mo, abraando Gre-
gorio - que me deixassem repartir com ella metade
da abundancia em que vivo. Queria que o meu amigo,
o amigo de meu pae, lhe perdoasse ... Queria ...
-Pois est servido, sr. Augusto - interrompeu
Grego rio. -D-lhe de comer e de vestir. Palavra
de honra, que j nem me lembram as dores, que
tive na garganta. E quem sabe se ella queria que
o tal patife me matasse! O malvado foi que a per-
deu. Se ella fosse m, no endoudecia. Esta c
a minha ida, e ninguem j me tira d"isto ... Pois
ento arranje l isso como quizer. Alugue-lhe casa,
e d-lhe uma mezada sua vontade.
Augusto ergueu-se para abraar novamente Gre-
gorio.
COISAS ESPANTOSAS sn
- Deixe-me lambem abraai-a - uis5e Pile a
Hosa- devo esta alegria s suas lagrimas, minha
querida amiga. Agora vou hospedaria ,er como
est a pobre mulher.
-Espere um pouquinho que eu vou comsigo-
uisse Rosa.- Deixas-me ir, meu Gregorio?
- mulher, se ho de ir dois e ficar um, o me-
lhor irmos todos tres!... Andem l, que eu no
appareo a Carlota, em quanto ella me ti,er medo.
Augusto queria embaraar a resoluo de Grego-
rio, temendo que a sua presena intempestiva des-
ordenasse inteiramente a razo da desvairada mulher;
mas custou-lhe a rebater a expansiva generosidade
d'aquella nobre alma, e entregou a Deus o bom exilo
dos acontecimentos.
Quando chegaram hospedaria, Carlota dormia
tranquilla, em virtude d'uma poo fortemente opiada,
que os medicos lhe receitaram. Disseram estes, de-
pois de ouvirem de Augusto os precedentes d'ella,
no tocante loucura de alguns annos, que no re-
ceiavam a reincidencia s pelo facto d'uma alluci-
nao.
Rosa entrou ao quarto de Carlota, e contemplou-a.
Gregorio, chamado pela mulher, esteve a exami-
nai-a como espantado, e disse:
-No se parece nada com a outra! Eu ia jurar
que no a mesma! Com effeito!. ..
Saiu do quarto, deixando Rosa beira da cama da
inferma, que ainda dormia s duas horas da manh.
uo COISAS ESPA:\TOSAS
Chamou Gregorio o seu filho adoptho, e disse-
lhe:
-S1be que m1is? Tenho c pensado que o me-
lhor n1o alugar casa para Carlota.
Augusto estremeceu, cuidando que a vista da mu-
lher e as recordaes das facadas, tinham mudado
os compassivos sentimentos do bemfeitor.
Gregorio proseguiu:
-O melhor levarmos esta mulher para nossa
casa. L, sempre est melhor. e mais bem tractada.
Que lhe parece? .
-Parece-me que a sua alma, sr. Gregorio, est
debaixo da mo de Deus ... Pois sim, levernol-a para
sua casa, se sua senhora se no oppozer a isso.
-Ento o menino ainda no conhece a sancta
que minha mulher. ~ l o r t a por isso est ella!
Veio ento Rosa porta do quarto dizer que Car-
lota e:;ta,a chamando Augusto. Foi o moo, e levou
comsigo Rosa.
-Dormiu regaladamente, no assim? disse elle
a Carlota, que se haYia sentado na cama.
-Dormi muito, creio eu; mas lembra-me tudo.
Quem esta senhora? ajuntou el1a, indicando Rosa.
- uma senhora para casa de quem Carlota ha
de ir logo que possa. Ver que anjo consolador en-
contra em minha me.
-Sua me?!
-Sim, minha me; a me que Deus me man-
dou coni o corao da outra, que me tinha levado ...
COISAS ESPANTOSAS !H
Veja l, Carlota. sente-se com foras para nos segujr?
-l\lais logo ; tenho um atordoamento de cabea
horrivel... Queria chorar, que estou abafada pelas
lagrimas ... Eu sou uma grande criminosa l exclamou
ella subitamente, escondendo o rosto entre os joe-
lhos.
-Todos lhe perdoaram, Carlota, accudiu o moo
- Se alguem foi offendido por si, o perdo depois
de tantos soffrimentos, remiu a culpa.
- assim - disse Rosa- A senhora pde con-
tar com o d de toda a gente... Deus que sabe
quem so os peccadores. A paixo que cega a
gente muitas vezes.
Carlota fitou os olhos em Rosa, e murmurou:
-A senhora no sabe a minha vida ...
-Alguma coisa sei ; mas no faltemos agora
n'isso.
- Fanemos, fallemos ... - exclamou a amante de
Ignacio Botelho com arrebatamento.
-No l -atalhou o moo- Obedea-me, C ar-
lota. Faa um esforo por sair d'aqui. Olhe que
nos escutam na sala proxima.
Carlota fez meno de se aprestar para descer
da cama, e Augusto saiu sala.
-Sr. Grego rio- disse elle- parecia-me conve-
niente que ella o no visse por em quanto. Faz-me
o favor de ir indo para casa?
-Pois, sim; eu j tinha pensado n'isso; e ve-
nham depressa} que so horas de se deitar a gente.
92 COISAS ESP.\::'\TOSAS
XIV
Ficou attonita Carlota, quando entrou na primeira
sala da casa para onde a conduzia Augusto. O ex-
terior da mulher, que o moo lhe apresentra como
sua segunda me, no promettia tamanha magnifi-
cencia. Era muito no espanto da infeliz a passagem
do indigente casebre para uma sala, que denota,a
mais riqueza que bom gosto.
-Quem esta senhora?-perguntou Carlota a
Augusto, logo que Rosa se retirou da sala para or-
denar os aprestos do quarto da hospeda.
-Amanh fallaremos: j lhe disse que esta se-
nhora um anjo.
-Disse palavras que me fizeram bem. Parece-me
que ella sabe toda a minha vida.
-Sabe.
-E no me odeia !
-No: tem muita pena de si.
-Se o sr. Augusto me perdoou, porque no
ha de perdoar-me o mundo a quem eu no fiz mal
nenhum?
-:\"em a mim; foi a si mesma que fez o mal.
-l\Ias eu tenho soffrido tanto, meu Deus!
-Todos o sabem, e todos se compadecem, Car-
lota. Creia que ...
De subito, Carlota apertou as mos de Augusto,
expedindo um estridente grito.
-Que ? que teve, Carlota?
COISAS ESP Al'\TOSAS
93
-Recordo-me das suas pala nas, neste instante ...
O senhor que me disse?-tornou ella muito agi-
tada.
-Quando?
-Na rua, quando eu andava comsigo ... Em que
casa me disse que estava? No me disse que era
d"aquelle homem, que o outro feriu com o punhal 'l
Augusto perturbou-se na resposta, e os olhos de
Carlota expressavam o desvairamento do juiso. A
turvao dos olhos, seguiu-se um tremor e ancie-
uatle inuescriptiYeis. Depois, soltava uns gritos agu-
dissimos, e tirava a pedaos o corpte do vestido,
como se estivesse em agonias do corao entalado
em compressas de ferro.
Acudiu Rosa aos gritos, e venceu o terror, que
lhe faziam as contorses da demente. Gregorio im-
pensadamente seguiu a mulher, e entrou na sala.
Carlota fitou-o espavorida, e cessou de contorcer-se
nos braos dos dois. Parece que o terror a conge-
lra: no soltou uma palavra unica. As palpebras
desceram Yagarosamente, os braos cairam-lhe como
inanimados, e o corpo inteiriado deixou-se arrastar
a um canap.
Ao romper da manh entraram os recursos da
medicina, que se propoz curar uma febre cerebral.
Quarenta e oito horas esteve em exaltado delirio
a inferma. Ento reproduziu ella muitos dos dialo-
gos que tivera com l\Ianuel de Castro n'aquella noite
funesta. E dizia-os como se os estivesse contando
COISAS ESPANTOSAS
com quieta consciencia, salro quando em termos
desordenados reprouuzia a desciua do supposto ca-
daver ao pateo, e a lavagem que ella fizera do san-
gue na escada. Ento levaYa a mo ao rosto, e cla-
mava que o tinha borrifado do sangue de Grego rio ...
Eu no te disse que o matasses!- murmurava ella
com voz rouca- eu no te disse que o matasses! ...
Vou denunciar-me justia: quero ser castigada para
salvar a minha alma !
Estas declamaes repetiam-se com breves inter-
vallos de repouso.
Quando a medicina desanimou, Carlota inespe-
radamente passou uo delirio a um profundo que-
branto. Reconheceu as duas pessoas, que incessan-
temente a velavam, e sorria a ambas respondendo
s perguntas carinhosas. Recordava-se ella de ter
visto Gregorio; e parecia esperai-o no seu quarto,
sem assombro nem paYor. Pediu a Augusto que lhe
contasse o resto da sua historia, e j ouvia sem al-
voroo o nome do bemfeitor. Uma vez levou ella
aos labios a mo de Rosa, e disse-lhe:
-Eu queria ver seu marido, minha senhora.
\ Rosa saiu, e entrou com Gregorio, que vinha
enxugando as lagrimas. Era certo chorar elle, sem-
pre que as via nos olhos da esposa. Acercou-se do
leito, Carlota estremeceu ainda.
-Se me diz alguma coisa do que j l vae, no
somos amigos!- disse Gregorio- preciso arri-
jar, e sair d'essa cama para fra, sr.a D. Carlota.
COISAS ESPAl'iTOSAS
Vamos todos passar o calor na aldeia. Tenho uma
quintarola em Co11ares, que um regalo. A sr.a l
pe-se fina, e ha de engordar, se fr de medrana_
Nem um pio a respeito do passado, ouviu? E que
me diz do sr. Augusto? Olhe que rapaz este! Alma
como esta no ha outra debaixo do sol, palavra de
honra! Se amiga d'elle, faa por ter saude, ouviu?
Olhe que o moo, ha oito dias, tem desmedrado
uma arroba, assim Deus me sal-r e!
Era esta a linguagem quotidiana de Gregorio. Se
a inferma dizia palavra ligada ao seu crime, ata-
hava-a logo elle com alguma galhofa, coadjuvado
por Augusto ou Rosa.
A convalescena de Carlota foi prolongada, mas
segura. Os ares campestres restauraram-lhe s for-
c;as, e recompozeram-lhe as feies, ainda assim quasi
nada indicativas da antiga gra.a, se no formosura.
Findo o vero, quando Gregorio se preparava para
voltar a Lisboa, Carlota pediu a Augusto que so-
licitasse do seu bemfeitor uma esmola para ella se
recolher a um convento longe de LisLoa. Quiz o
mancebo convencl-a da desnecessidade de tal passo,
mas o proposito era inabalavel. 1\"o valeram nada
as supplicas nem as caricias de Rosa.
Augusto acompanhou-a a Evora, onde achou os
seus aposentos aceadamente adornados no convento.
Ahi vivia muito recolhida a mystrri osa creatura,
que as religiosas tratavam com o respeito que ins-
pira o mysterio. se o rodeiam os confortos e a
9G COISAS
abundancia. Entre a orao, a cella c o traLalho
passa,am as suas horas, no tristes nem contentes.
Tomara a seu cargo ser a costureira da roupa branca
de Augusto e Gregorio, e cada mez mandava um
pacotinho para Lisboa com a sua costura, em que
o filho de Ignacio Botelho queria ver, e certamente
'\'ia, signaes de lagrim3s. No primeiro anno, repe-
tidas Yezes Augusto foi a Evora, e, segundo elle di-
zia, Carlota cada dia recuperava mais, como por mi-
lagre, as antigas feies, de modo que j no seria
-lisonja chamar-lhe bella.
XV
Dom Aharo Barradas, fidalgo portuguez, oriundo
de uma das principaes stirpes godas, appareceu em
Paris, em comeos de ido de Hespanha onde
esti,era homisiado, desde que a archanjo das ba-
talhas descra sobre a fronte do imperador do Brazil
a cora da victoria.
Devemos acreditar o que este homem diz em
Paris da sua genealogia. Se dmidamos d'ella, por
ser elle que a diz, teremos de duYidar de muitas,
cujo grau do probabilidade o mesmo. A gente no
pde andat com os tratadistas genealogicos
do brao para averiguar os costados de todos os Bar-
radas, que por ahi nos srm. como rans de terra
alagadia, em tarde de trovoada.
COISAS ESPANTOSAS 9i
D. Alvaro tem cavallos e lacaios hespanhoes. Tem
rela.es da velha fidalguia de Carlos x, que o rece-
bem em suas casas. Tem mulheres que o amam, e
mulheres que o exploram. Tem- e bastava dizer
isto-- dinheiro, que lhe jorra das mos como a onda
do Pactolo. A fortuna de D. Alvaro uma escrava
docil, que parece espreitar-lhe os desejos capricho-
sos, para, antes de os elle procurar, lh'os converter
em rleleitosas realidades.
D. Alvaro joga nos sales da nobreza, e ganha;
joga nas casas de tavolagem, e ganha; joga na bolsa,
e levanta em poucas horas, e -com uma s palavra,
milhares de francos.
Accrescem aos eavallos as equipagens. Paris v
passar D. Alvaro. E quando Paris v passar, o ho-
mem, que passa, deve de ser um gigante!
A admirao redobra, quando, a par d'elle, se v
reelinaa ao espaldar do pbaetonte uma formosa
mulher, e manb outra formosa mulher.
Hoje a primeira cantora italiana.
Hontem era a primeira danarina.
manh ser uma Lais disputada a um principe.
D. Alvaro passa no bosque de Vincennes, salta
do seu tylburi, e os mancebos das raas carlovin-
gianas acercam-se d'elle para lhe apertar a mo.
- o gentil-homem hespanhol!- diz uma dama
illustre, e chama com maviosissima voz um duque
_para ferir com o timbre de sua palavra os ouvidos
distrahidos do fidalgo hespanhol.
7
98 COISAS ESPANTOSAS
- o amante da marqueza ue * .. , diz a condessa
de ...
- o rival do duque de***, acrescenta outra, e
confessa que medita em fazel-o tambem rival de seu
marido.
Esto em Paris fidalgos expatriados de Lisboa,
que no conhecem D. Alvaro Barradas. Os mais li-
dos em chronicas sabem que em tempo da rainha
regente D. Catharina, me de D. Sebastio, militou
na Asia, s ordens do gorernador D. Joo de Cas-
tro, um portuguez esforado que havia nome Alvaro
Barradas; mas duYidam que este Alvaro Barradas
8
eja vivo ainda. Na roda elegante correm boatos, que
desmentem a prosa pia do famoso personagem; a roda
elegante, porm, contina a reconhecer a legitimi-
dade heraldica do gentil-homem hespanhol.
Um alto personagem portuguez, encontrado com
elle n'uma sala d'um ex-ministro de Carlos x, per-
gunta-lhe onde o seu solar.
D. Alvaro torce o bigode, e responde:
-O meu solar anda usurpado: so os paos de
Barcellos e de Villa-Viosa. So as rui nas dos cas-
tellos que defenderam a independencia de Portugal.
So a Coradonga de Pelagio, e as ameias derroca-
das de Santarem e Alcacer.
Disse, e fez uma ligeira mesura ao portuguez, que
ficou pasmado de tantos solares, afra os usurpados,
n'um s solarengo.
Entretanto: as carroagens iam crescendo em nu-
COISAS ESPANTOSAS H9
mero e mais confortaveis que os solares. Os mesmos
fidalgos, que lhe tesouravam os pergaminhos,
se dedignavam de lhe acceitarem uma almofada na
c-arroagem, e os emprestirnos de dinheiro Lizarra-
mente oiTerecidos .. Afinal, os linguareiros, Yisto que
a Iingua pretule muito as funces de esto-
mago, immolaram a lingua quella vscera que con-
fessara as fidalgasliueralidauesde D. Alvaro Barradas.
A primeira danarina tinha um amante, que sa-
crificira a um e alguns milhares ue francos
mensaes. O amante sacrifkauo no tinha vislumbres .
de pundonor, e quiz defender sua honra em duello.
D. Alvaro acceitou a lura do aLlversario, e foi ao
campo. o amante abandonado, que, at quelle mo-
mento, ficra apenas sem a danarina, ficou depois
tambem sem um olho. Isto prova que o duello
e convence a gente da justia de cada qual
que se bate.
O facto estrondeou, e deu novo lustre celebri-
dade de D. Alvaro.
O amante da primeira cantora italiana tambem ti-
nha sua honra que defender, e pediu desaiTronla
espada. Ficou sem a cantora e sem um peuao
- do hombro direito.
Esta segunda bravura associou o medo admira-
o. D. Alvaro fez-se uma coisa, que eu chamaria
mytho, se soube3se o que era mytho. QuanLlo ap-
parecia, as mulheres adoravam-no, e os homens fica-
vam frios como soneteiras.
tOO COISAS ESPANTOSAS
Em dezembro de chegou a Paris uma fa-
milia portugueza, ida do Porto. Era um fidalgo rea-
lista que em 183i se refugira no seu solar do :\li-
nho ; e, como ahi mesmo a plebe o
deliberou emigrar.
Vivia pobremente o fid}.lgo e sua numerosa fa-
milia. Disseram-lhe que existia em Paris um riqus-
simo portuguez da maior nobreza. Deram-lhe conta
da generosidade com que elle tinha soccorrido pa-
trcios necessitados, e aconselharam-no a escrever-
lhe.
Forado pela extrema preciso, o emigrado es-
creveu a D. Alvaro Barradas; mas, emquanto es-
crevia, trez vezes depoz a penna, e exclamou: .
-Quem este Barradas na historia genealogica
da casa real? Villaslobos no falia de Barradas, que
me lembre. O nobiliario do conde D. Pedro tambem
no. Isto parece-me p ta!
l\las a necessidade apertava com o ledor de genea-
logias, e a penna ia lavrando o humilde peditorio.
Recebeu D. Alvaro a carta do seu patrcio, que
tinha quinze appellidos. l\laLdou ao seu mordomo que
procurasse o portuguez necessitado, e lhe dsse mil
francos.
Foi o fidalgo em pessoa agradecer, e viu um ho-
mem de extremada corlezania, rodeado de pompas
aziaticas, n'um dos melhores palaeios de Chausse
d'Antin. Dias depois, D. Alvaro visitou o fidalgo seu
favorecido, e viu que elle tinha entre muitas uma for-
COISAS 101
mosissima filha, na flor dos quinze annos, meiga
como um anjo, e triste como uma sancta.
Amou-a. Sentiu que a amava, porque pensou n'ella
trez dias e trez noites.
Voltou a visitar o homisiado, e multiplicou muitas
vezes o primeiro favor de dinheiro. O fidalgo Lei-
jou-lhe as mos; e a filha lacrimosa, ao apertar a
mo que lhe offerecia D. Alvaro, sentiu na sua um
papel. Sustve-o, mas tremia.
Saiu o magnanimo, e 1\Iathilde deu a carta a sen
pae.
-Que carta esta?!- disse elle.
-Recebi-a, n'este momento, da moueD. Alvaro.
Abriu e leu:
o: Quer a felicidade, l\lathilde? quer as pompas da
o:vida, todas quantas o capricho inventou, e, mais
c<que tudo, um corao que pela primeira vez se
ahumilha diante de uma mulher?
o:Por ventura, sonhou comigo o co? Adivinhou
. o:que eu a adoro? Cr que a vida, sem o seu amor,
e: me ha de ser d'hora em diante um supplicio, tendo
o:sido at ao momento em que a vi uma embriaguez
ude bem-aventurana, uma feliciuade douda que no
podia durar?
o:Porque a vi eu, 1\lathilde? Que mensagem me
traz do co ou do inferno?
"Eu penso em arrebatai-a. J me enoja Paris. Va-
o:mos Asia, vamos correr o mundo, e esconder nos
desertos a felicidade.
t::OISAS ESP_\:\TOSAS
c< IlaYer na sua ai ma exalta)es c arrojos capazes
de egualarem o meu arreLatamento?
a Responua-me . ...\manh hei de vl-a. Duas pala-
\Tas, e uepois ... os mundos deslumbrantes do goso
a infinito..!"
D. A/raro
Francisco Valdez, pae del\lathilde, dobrou a carta,
e disse filha:
-Yae, e rolta depois, para responder carta do
sr. D. AI raro Barradas.
)lathilue retirou-se; e o -velho ficou passeando com
as mos encruzadas soLre a testa. )leditou assim
alguns minutos, e saiu.
Foi procurar um duque portuguez, que residia,
lambem exilado, em Paris. 1\"arrou-lhe a preciso
o lerra a pedir um faror de dinheiro a D. Al-
Yaro ...
-Barradas?- interrompeu o duque.
-Sim, senhor. Conhece-o T.
fallei com esse Barradas.
-Que juizo faz r. ex.
3
d"elle?
-Bom, em quanto pessoa. Se quem diz, no
sei. De Portugal no o conheo nem pelo appellido.
Ptle ser que seja algum fidalgote de meia-tige11a,
d'alguma provncia. O que elle denota ter muito
dinheiro, certa esperteza do que por c chamam bom
tom, e muita felicidade nos duellos. :Xo sei mais
nada, seno que elle tem soccorrido alguns portu-
guezes pobres.

COISAS
Continuou Yaldez a sua historia, e mostrou ao
duque a carta que D. Alvaro escrevra a sua filha,
e entregra na occasio, em que espontaneamente
lhe emprestava seis mil francos.
O duque adiYinhou a dor do ultrage, que alan-
ceava a dignidade do velho. Deu-lhe mais dinheiro
do que julgou necessario para o desagravo, e offe-
receu-lhe a sua bola para as futuras precises.
Voltou Valdez com o peito desopprimido. Cha-
mou a filha, e disse-lhe:
-Escreve a resposta a D. Alvaro. Eu t'a dicto.
l\lathilde e"screveu:
ambiciono as pompas da vida. Na minha
([alma no ha exaltaes nem arrojos . .Adoro a Deus,
amo a minha familia, e respeito v. ex.a
c<Por ordem de meu pae: remetto a v. ex.a sete
([mil francos, que lhe devia, com a gratido que o
de v. ex. a merece.
Jlatlzilde Valdez
XVI
Lendo D. Alvaro a carta, releu-a, e pensou em
cada uma das palavras, como se ellas no fossem
singelissimas.
Seguiram-se-lhe horas de lucta, em que o homem
se esta,a de si mesmo espantando.
- o verdalieiro amor!-dizia elle comsigo.-
Chegou! a virtude que me vence, e eu pensava
COISAS ESPANTOSAS
que a virtude no tinha nenhumas armas. Desco-
nheo-me. Se isto mais que um momento ue fra-
queza, est determinado o meu destino. l\Ias que-
rer-me-ho elles? O fiualgo afJrontado acceitar o
meu pedido? No deixaria e lia em Portugal um ho-
mem que ama?
Em quanto elle assim pensava, dizia 1\lathilde
sua irm conHuente uos nadas da mocidade:
-Que me diria elle na carta ? De certo me no
fallava em casamento, seno o pae por fora consen-
tiria. Fiquei to perturbada quando senti a carta na
mo, que nem soube o que fazia. Se eu adivinhasse
que o pae se a f f l i g i a ~ no lh'a mostrava. Foi o cora-
o que me enganou. Imaginei que era a pedir-me,
porque me tinha dito algumas coisas com uns mo-
dos to affectuosos e serios, que fiquei persuadida
de que me queria muito. E olha que eu amava-o,
Cassilda; e agora no sei como hei de esquecl-o ...
E chorava.
Aqui tem os senhores como os demonios fasci-
nam os anjos. Isto muito velho assim, e para
lamentar que assim seja, deveras o digo! A mim
me quer parecer que :Mathilde, to pura e virtuosa,
se no abalaria com as visitas e afiectuosas palavras
do meu amigo leitor, se o leitor , como eu penso,
um rapaz mui bem composto de maneiras, com
grandes creditos de honestidade na sua rua, e pro-
vas dadas de no tentar contra a virtude da sua vi-
sinha. segredo isto, e ninguem se d a estudar
COISAS ESPA:'\TOSAS t O ~
d'onde vem este preuominio da maldade velhaca so-
bre a innocencia timorata. E olhem que se d o
mesmo magnetismo com as senhoras menos inno-
centes e timoratas. 1\"em candura, nem experiencia
so bastantes a .. esfriar a electricidade que o demo-
nio emprest aos olhos dos seus predilectos para
seduzirem as meninas! Aquella sabida historia de
Fausto e )largariua, que no verdadeira nem fa-
bulosa, mas que de certo a rerdade, explica, me-
diante a interveno de Satanaz, todas estas encru-
zilhadas em que a virtude se perde. J com o poeta
inglez se dava o mesmo fadario! Yejam que versos
elle fazia, que impudencias to desanimadoras para
coraes ajuizados, e a final de contas as mulheres
de H alia andaYam a traz d' elle, e afogaram-se s du-
zias, creio eu, quando o impudico ia satisfazer as
amorareis ancias d'outra duzia de creaturas fasci-
nadas pelos olhos, e cegas a tal ponto que no lhe
viam o p coixo! coisa uo diabo, no pde deixar
de ser, e por isso aqui me benzo, e fecho o capitulo.
XVII
O duque, solicito protector de Francisco Valdez,
quiz honrar o fidalgo pobre visitando-o. Contris-
tou-se de Yer as meninas occupadas nas obrigaes
de criadas, segundo inferiu, quando perguntou ao
velho se se servia com criados portuguezes.
-No tenho criados, sr. duque- disse o velho.
iOG COISAS
-.\minha casa estava desfalcada, a ponto de eu mal
poder tl-os em Portugal. os posso assolda-
d:tr em Frana. filha a providencia
da casa. Como foi educada no collegio inglez, apren-
deu a cozinhar, e tomou a si o cargo da magra pa-
nella; as outras meninas cuitlam do mais servio,
que pouco ; umas lavam em alguidares, e outras
engommam. Graas ao co, nenhuma se queixa.
-Eu que me queixo-atalhou o duque-se
Francisco Valtlez me prohiiJir que eu d ordens em
sua casa. Tenho criados de sobra, todos portuguezes.
Vou mandar-lhe um para recados, e uma boa criada
que tenho _ha dois annos para o interior.
Quiz deixar alguns, quando vim para Frana, mas,
a fallar-lhe a vertlade, eslou atieito a ver mmrer
cm casa os meus criados, e no despeo nenhum.
A cri3da que lhe manJo serviu vinte annos o meu
amigo Severo de Castro, que morreu commandando
uma brigada contra as linhas de Lisboa. Quando me
contaram que ella vendera o capote para comprar
a mortalha da vima do brigadeiro, mandei indagar
em Lisb)a ontle ella parava, e mandei-a ir ter co-
migo a B:trcellona, e penso que esta aco agradaria
alm1 do meu honrado e bravo amigo. Quantas
vezes eH e me fallou d'ella como se falla d'uma irm ...
e, ar1ui entre ns, eu sempre suppuz que ella fosse
irm1 natural do brigadeim ...
-Ora queira v. ex. a dizer-me, sr. duque -in-
terrompeu Francisco Valtlez - quando eu estava
COISAS HJ7
ainda em ouvi fa1lar d'um roubo e d'uma
morte, em que entrava o filho de Severo de Castro ...
- verdade : esse grande desgraado, que eu
conheci menina, e no tornei a ver desde que en-
tnm no collegio uos nobres, induziu a amasia uum
Ignacio Botelho, que eu muito conheci, a roubar o
amo, quando elle estava a agonisar. Depois, houve
ahi tamiJem umas facadas n'um criauo da casa, e
no sei que outras dPsgraas, que levaram a viuva
de repente sepultura.
- E o filho uo Castro foi preso-?
-1\o; fugiu, e natural que no torne patria.
A Felicia tem-me contauo muitas vezes estas coisas,
e o meu Valdez pergunte-lhe pela historia; que ella
lh'a contar pelo miudo. Amanh c a tem.
O duque no deu ao velho tempo de recusar ou
agradecer os favores. Saiu, e na despedida encon-
trou D. Alvaro Barradas, que o cortejou respeito-
samente. Respondeu ao cumprimento com frieza o
dnque, e D. Aharo, com o chapo na mo, disse
muito ceremonioso:
-Peo a v. ex.a, sr. dufJue, a graa de subir
comigo :i presena do sr. Francisco Valdez. Venho
reparar um aggravo, e desejo que v. ex. a honre com
o seu testemunho a prova de considerao, qne eu
vou dar a esta familia, e s venera\ eis cans do sr.
Valdez.
-Bem sei-atalhou o duque.-Faz o que deve.
No se escrevem assim cartas a meninas do nasci_
108 COISAS ESP
mento de Nenhuma duvida tenho em acom-
panhai-o. E reconheo que v. ex. a um cavalheiro,
seja qual for a natureza da reparao.
Subiram, e entraram sala, onde Francisco Vai-
dez estava contando s filhas a folga que lhes dava .
o duque.
-Torno c- disse o duque risonho- para ser
testemunha d'um desafio. Quero ver quem se bate
mais galhardamente em delicadeza e generosidade
de animo.
- Ha de ser o sr. Francisco Yaldez-disse D. Al-
Yaro- eu deponho j as armas na mo do meu pa-
drinho.
As meninas iam sair, e D. Alvaro disse:
-Peo sr.
3
D. o obsequio de esperar
um instante.
-Fica, menina- disse o pae.
-E todas podem ficar, sr. Yaldez-continuou
D. Alraro.- Eu uma carta sr.a D.
Tenho uma desculpa: a paixo; mas no peo des-
culpa; o perdo que venho pedir; mas haja a ge-
nerosidade <la me no arguirem.
-Est perdoado, sr. D. Alvaro-interrompeu
o velho.
-E ,-. ex.
3
tem o corao generoso de seu pae?
-disse Barradas a l\Jathilde.
-De certo ... que eu no sei o que hei de per-
doar ... -respondeu eU a purpureada.
COISAS JO!J
-Agora, sr. Francisco Valtlez, Yenho pedir-lhe
a mo de sua filha.
O ,-elho encarou em !\Iathilde, e murmurou:
- ... isto comtigo.
-Ento?- disse o duque, para ct>rtar o demo-
rado silencio.- Respondam amuos com o sim, e
seja o meu Yaldez que o pronuncie.
-Disse-o v. ex.a-accudiu o pae.
D. Alvaro apertou a mo de l\Iathilde, e depois a
de suas irms. O duque chamou-o aos seus braos,
e_ passou-o aos braos do -velho.
-O padrinho sou eu, no j do desafio, mas do
casamento -accrescentou o duque.- A duqueza
ser a madrinha, e as festas nupciaes ho de ser
celebradas em minha casa. Isto tem demora?
-O tempo necessario para eu haver de Portu-
gal as necessarias certides.
-A minha casa, entretanto, sr. D. Alvaro, est
sempre franca a v. ex.a-disse Francisco Valdez.
-E a minha- ajuntou o duque.- Ora agora
veja, se no intervallo, vae ter algum duello, que lhe
leve a mo, que j d'aquella angelica menina!...
-A minha \ida de duellos acabou, sr. duque, re-
darguiu Alvaro. Deixei de ser rapaz neste momento.
-Bom isso! Yaldez, depois de manh aqui
venho jantar com D. Alvaro- terminou o duque,
dando o brao, para sarem, ao noivo.
O aspecto de Alvaro transluzia muita amargura,
que s elle podia ver n'um espelho.
.JIO
COISAS ESPANTOSAS
XVIII
No decurso do jantar pactuado, o semblante de Al-
varo exprimia aintla a tlor inrJuieta, que eu estra-
nharia muito aqui, se estivesse no raso do leitor,
tJUe s sabe as coisas, e avalia as inquietaes dos
personagens dos romances, quando lh as dizem.
)hthilde punha os seus lindos olhos nos de Al-
varo, e interroga\a n'elles o corao. Nem os chistes
do tluque, nem a alegria das meninas divertiam a
alteno do noivo tio ponto escuro que lhe avultava
no horisonte tlo esprito.
-Tem um genio triste, D. Alvaro!- disse o du-
IJUe. -Parece um velho, que est meza. com dores
tlc gota! Converse, conte-nos coisas de Portugal,
faltemos da cara patria, que j no nossa.
-l\Iinha decerto nunca ser!- disse Alvaro me-
lancholici.lmente.
-Por que no? Esperemos, meu amigo. E se
eu, com os ps na co\a, ainda espero, que far
v. ex.a 11a verdura d1S annos! Quantos tem?
--:-Vinte e nove, sr. duque.
-Pois i.lhi tem! Quantas revolues se faro em
Portugal d"aqui :H aos seus quarenta? A guerra
ainda no acalJou. Deixe Yer o qne faz D. Carlos.
A conversa:o tornou-se politica, e de todo estra-
nha a D. Alvaro, que dirigiu algumas perguntas a
l\lathilde sobre coisas de LislJoa, cuja sociedade, an-
terior a 1833, elle mostrava conhecer.
COISAS ESPANTOSAS
O duque entrou na dizeudu:
-Onde estara nessa epoca, sr. D. Alvaro?
-Em Lisboa.
lll
O duque, extremamente delicado, pensaYa todas
as perguntas tocantes a factos que podessem sus-
citar o fallar-se na familia de Alvaro Barradas. Jul-
gava o fidalgo que o mancebo era um caralhero
da provncia, muito. rico, mas muito menos nobre
do que apparentara, e d'ahi vinha pautar elle re-
fledidamente as perguntas que fazia.
-Esteve em collegio de LbLoa? disse o duque.
-Sim senhor, no collegio dos nobres.
-Em que tempo?
-Desde 1821 at 18:::!6.
-E depois foi para a pro v inca?
- Yiajei, sr. duque.
- Se este r e nesse tempo no collegio dos nobres7
havia de conhecer um "alumno chamado )lanuel de
Castro.
-Conheci.
-Deu uma desgraada sada I Era filho dum meu
particular amigo. verdade, Yaldez, perguntou al-
guma coisa criada?
-Ainda no, sr. duque.
-Perguntei eu, disse 1Iat.l1ilde.
-E ento?
-Contou-me uma historia bem triste! ... Faz pena
aquella me! Quando .acabara de saL e r que o filho
tinha feito um roubo, e quasi matado um homem.
H2 COISAS ESPANTOSAS
chegou-lhe a noticia da morte do marido, e morreu
de paixo logo ao outro dia r
-Quem, minha senhora?-disse D. Aivaro.
-A me do tall\lanuel de Castro, que o senhor
conheceu no collegio.
-E quem lhe contou a morte d'essa senhora?
replicou o noivo.
-Uma criada, que foi d'ella.
-Da me de l\lanuel de Castro?
-Sim.
-E onde est essa criada?
-Em nossa casa.
-Aqui?!
A maneira espavorida como Alvaro fez esta per-
gunta devia impressionai-o, leitor, se v. ex.a esti
vesse meza; mas os convivas dos romances no
so sempre os mais espertos no descobrimento dos
mysterios.
l\lathilde continuou:
-O sr. D. Alvaro conheceu o tal infeliz?
-Infeliz ... o justo nome que elle tem. Conheci,
minha senhora.
-Tinha m indole?
-No tinha m indo! e. Pelo contrario, era afa-
vel, meigo, e muito amigo de seus paes.
-Parece impossvel isso r -atalhou o duque.
-1\las a verdade- replicou Alvaro.- Direi
tudo o que sei d'esse infeliz, nome bem apropriado
que a sr. a D. l\Iathilde lhe deu, e ninguem mais tal-
COISAS ESPANTOSAS 113
vez o tenha substitudo pelo de infame. Manuel de
Castro saiu do collegio, quando completou digna-
mente o seu curso. Quiz ser cadte e seguir a Yida
das armas; porm, o pae c.lesYiou-o d'isso: dizendo
que a profisso militar era a mais espinhosa e mal
compensada das carreiras.
-Isso lhe ouvi eu dizer repetidas vezes- inter-
rompeu o duque. -0 meu amigo Castro muitas Ye-
zes me disse que seu filho no seria militar. ~ ' e s s e
tempo espera,a elle Tencer o pleito d'uns vnculos
em Tras-os-montes. Sabe que resultado tere a de-
manda, sr. D. Alvaro?
-Perdeu-a.
-Severo de Castro-tornou o duque--era muito
fidalgo; mas o pae e av desbarataram grandes ca-
zas. Ora queira dizer o nosso amigo o que sabe do
Manuel de Castro.
-Sei que saiu do collegio, e entrou no mundo.
Quiz hombrear com os grandes, e pediu ao pae re-
cursos para se elevar. O pae no os tinha, e o filho
grangeou-os custa de todos os expedientes. Pri-
meiro, foi feliz no jogo, e teve a epbemera gloria
de espalhar ouro s mos cheias por entre alguns
miseraveis, que o andavam infamando. Depois, des..:
andou a roda c.lebaixo do p da fortuna, e )lanuel de
Castro sem amigos, nem honra, baixou-se at lama
par tirar de l o crime com que sustentara o Ticio.
Seguiram-se as desventuras que v. ex.as conhecem.
No sei mais nada do infeliz.
R
114 COISAS ESPANTOSAS
- Faz compaixo! - disse Mathilde com tris-
teza.
-Compaixo no direi eu-- atalhou o duque.-
N'esse caso, devemos ter compaixo de todos os sal-
teadores e assassinos que esto no Limoeiro!
-Diz bem, sr. duque- tornou Alvaro Barradas.
de Castro indigno de compaixo. Lembro-me
porm, que o mundo lhe no daria maiores louvo-
res, se elle se ti\ esse suicidado antes de praticar o
primeiro crime. Chamar-lhe-hia miseravel. ..
-E impio- acrescentou o duque-Impio, con-
demnado eternamente, porque o homem que se
mata imperdoavel aos olhos de Deus.
-Ento melhor foi- retorquiu D. Alvaro-que
1\lanuel de Castro se fizesse infame, por que a infa-
mia susceptvel de rehabilitao, e o arrependi-
mento do crime saha um homem para a sociedade
e uma alma para Deus. Pode ser que a esta hora
!\Ianuel de Castro seja um justo.
- Yerdade .. Quem sabe? J- atalhou :\Iathilde.
-Mesmo assim, ajuntou D. Alvaro, nenhum de
ns o acceitaria para amigo, creio eu. Todos repel-
liriamos o arrependido, se elle nos viesse pedir a
confiana e a benevolencia que Deus concede aos
contrictos, e os homens negam aos regenerados ...
quando os regenerados so pobres.
-Eu lhe digo respondeu o duque- Havia-me
de custar muito a apertar a mo d"um n1au
e, se esse mau filho roubou, e matou, com todas
COISAS ESPANTOSAS
as circunstancias atrozes que completam a perver-
sidade, tomra eu nem vel-o!
- tambem o meu parecer,-- disse Francisco
Valdez.
-E o de v. ex.a?-perguntou D. Alvaro a 1\Ia-
thilde.
-Eu ...
-Sim; v. ex. a lambem repellia o Manuel de Castro
arrependido de seus crimes, e Yergado ao peso da
sua ignominia '!
'lathilde no ousou responder. Coagiam-n'a os
olhos do pae, e o temor de dizer alguma indiscri-
o desagradavel a Alvaro.
Saram da casa de jantar, e passaram sala onde
era servido o caf.
No momento em que entravam, caminhava em di-
reitura meza, com o ta boleiro das cba v e nas, a criada
que fra do brigadeiro Severo de Castro.
D. Alvaro adianttm-se, parou diante d'ella e disse:
-Tambem tu me repelles, Felicia?
Felicia cravou os olhos pavidos no rosto do ho-
mem que lhe fallava, vacillou, e as chavenas escor-
regaram do taboleiro ao pavimento. Alvaro avisi-
nhou-se mais d'ella, e continuou:
-Tu, que me conheceste creana, e me chamavas
anjo, e no acreditavas que eu, to bom e meigo,
podesse ser d'este mundo, tambem tu me repelles '!
E FeJicia lanou-se aos braos d'elle, exclamando :
-O sr. Manuel de Castro !
116
COI::.AS ESPA:"iTOSAS
Quando os circumstantes se uns
aos outros, com as boccas abertas e as respiraes
suspensas, l\lanuel de Castro tomou o chapo, e
disse, indicando a criada :
-Tenho no mundo esta unica affeio. Tu sers
feliz, em recompensa da mortalha que dste a minha
me. Senhor Francisco Valdez, l\lanuel de Castro re-
conheceu que era indigno de sua filha, quando ba
pouco ouviu a justa conta em que o tinha o mundo.
Jurei ento de me despir d'um falso nome, para no
praticar a nova infamia de o illudir sob apparencias
de virtude e nascimento illustre. Se meu pae era o
grande fidalgo, que disse o sr. duque, no sei. De
mim sei eu que sou um miseravel sem nome, por-
que manh, fra de Frana, terei de inventar outro.
l"em nome, nem patria, nem esperana de rehabi-
litao!
E saiu, quando a criada, que o Yira menino, e lhe
amortalhra a me, correu a querer ainda abraai-o.
:\lathilde perdra os sentidos nos braos de suas
irms.
XIX
Antes que este admiravel caso acontecesse em
Paris, andra em Lisboa um bespanhol. indagando no-
ticias de um orpho, que ficra de Ignacio Botelho.
Com as indicaes, que o enYiado trazia, fac!l lhe
foi descobrir o nome e morada do tutor do orpho.
Disse o hespanhol ao tutor que Yinha restituir
COISAS ESPA::\TOSAS
li i
uma avultada quantia, que, em tempos, fra de:::-
viada da fortuna de Ignacio Botelho. Respondeu o
tutor que j no era elle coisa alguma nos interesses
de Augusto, filho do seu defuncto amigo, pois que
uma irm d'este vencra um litigio, em que ficra
desherdado o orpho.
Escreveu o bespanhol a de Castro per
guntando-lhe o que devia fazer ao dinheiro. Castro,
que demorava ento em :\Iadrid, respondeu que o
entregasse aos herdeiros de Ignacio Botelho, e sou-
besse o destino da creana.
Foi o cmmissionado a :\lont'alegre, e entregou
a D. Leonor o dinheiro. Cobrou o titulo de rece-
po, e pediu noticias do orpho. Leonor respon-
deu que o menino estava n'um collegio, estuuando
humanidades para depois se formar. Teve a mise-
ravel creatura vergonha de confessar que o filho de
seu irmo estava ao servio do mercieiro de Cha-
ves, a guardar os porcos e os meninos do mercieiro.
Voltou o portador da commisso a Hespanha, e
de Castro saiu para Paris.
A consciencia do cumplice de Castro socegou;
mas eu no sei bem se a palavra consciencia est
aqui escripta com acrto. Sair o homem com o
roubo de Portugal, e achar a consciencia em ::\ladrd,
parece-me isto coisa que nem os romancistas cabal-
explicam! Seja o que fr, esta restituio d
a pensar que ::\Ianuel de Castro no era ladro por
amor da arte, e que andava de melhores
t18 COISAS ESPANTOSAS
com a sua razo despojando-se de coisa que no
era sua. Verdade que o merecimento de restituir
dez, quando nos sobram cem, muito menor que o
de respeitar os dez dos outros quando se no tem
um. Isto, que eu digo, pt.le ser que seja um pa-
radoxo; pelo menos, bonita Yirtude com que s
se enfeitam os que no podem violal-a em secreto,
e apregoai-a em publico.
num ou d'outro modo, quer-me parecer que o
ladro deixa de o ser logo que restitue o roubo,
pelo menos em theologia moral corrente assim
a coisa : no codigo criminal no sei. Por este lado,
o leitor no duvidaria apertar a mo a Manuel de
Castro, ou, se no, tem de a retirar a muitos dos
seus amigos, que no ~ o m e a r a m ainda a regene-
rar-se. Este mundo um covil de ladres diz um
precioso livro que tenho vista. D'este livro um dos
captulos reza assim: Dos ladres, que furtando
muito, nada fica-'ln a dever na sua opinio. Estes
que so os ladres por excellencia, e com excellen-
cia. Veja-se o livro de Thom Pinheiro da Veiga, cha-
mado Arte de furtar.
XX
Ninguem obstou que Felicia indagasse a residen-
cia de l\lanuel de Castro.
-Vou procural-o, disse el1a, porque o pobre me-
nino me disse que no tinha outra affeio n'este
mundo.
COISAS
t 19
1\lathilde sabia onde morava Castro, e, n'um ins-
tante em que a deixaram ssinha com a criada, bal-
lmciou a residencia d'elle, acrescentando pa-
lavras:
-Diga-lhe que conte com uma segunda amiga
n'este mundo, e que da bondade divina.
l\Ianuel de Castro ouviu o recado de e
a fiel relao do accidente e febre consecutiva, que
tinha a pobre menina no leito da dor.
Castro levou a mo fronte, e disse mentalmente:
- completa a revoluo, que se opera em mim f
E, n'essa mesma hora, escreveu assim uma carta,
que Felicia prometteu entregar :
1\lathilde.
Eu era o infame que o mundo dizia.
Era o ladro, que no soube esmagar o orgu-
lho do seu nascimento, e encostar-se qonrado a
esquina, pedindo esmola, ou deixando-se morrer de
fome.
Era o homicida, que se lanou como sicario trai-
oeiro a um homem, que tinha o segredo da minha
infamia.
Vi endoudecer de remorsos uma desgraada ;
atirei-a ao meu abysmo, e fugi-lhe.
c Mathilde sabe que est n'um hospital essa mu-
lher, que eu no posso resgatar, porque
diavel a sua demencia.
Fugi-lhe para morrer mais longe. Queria vin-
gai-a e Yingar o mundo, matando-me, quando me
t2U COISAS
,isse forado a manter com um novo crime a minha
scelerada inercia para o trabalho decoroso.
Enriqueci, sem deshonra. Enriqueci nas salas,
onde o oiro se me oiTerecia aos montes. Enriqueci,
quando empobreciam outros, que tramavam espo-
liar-me a mim. Enriqueci no jogo.
Paguei o roubo; mas a nodoa infamante ficou;
paguei o roubo, mas o espinho do remorso multi-
plicou-se em mil espinhos. Eu via sempre diante
de mim uma mulher douda, e um homem ensan-
guentado. Tive pejo da minha credulidade, e inda-
guei o viver dos homens felizes, que me rodeavam.
Uns eram ladres nobilitados, outros eram homici-
das impunes, outros coroavam-se com as flres que
tinham arrancado da fronte de muitas ,-irgens, umas
j mortas de Yergonha, outras fazendo mercancia
do seu opprobrio.
Quiz-me consolar com estes confrontos, e no
pude.
Fugia para onde o tinir do ouro me aturdisse,
e ganhava sempre, como se ti\esse vendido a alma
ao inferno a trco da felicidade no azar.
eu no podia fugir de mim mesmo!
Traspassado de fogo e de agonias atrozes, che-
guei a entrar nos templos, a occultas dos homens,
para no ser escarnecido e vituperado.
E ahi ajoelhava no rec<Into mais escuro, e di-
zia : Deus! deixae-me regenerar!
Surdo o co, a natureza impassvel, tudo immerso
COISAS E S P A ~ T O S A S 121
no horror do silencio! O meu demonio que mn
respondia:- Ergue-te d'ahi, vil supersticioso! tu
no tens seno um goso dos que d:i o inferno: joga,
sacia-te de ouro, ceva-te nas lagrimas de cem fam-
lias, que reduzes fome, n'uma s das tuas noites
de febre. Joga, aponta com o teu dedo a carta, que
a um tempo o teu manancial de delicias, e o titulo
de venda da tua alma! Aponta, que os griphos d'um
demonio empolgaro para ti os montes de ouro.
Comprei quantos deleites me saiam ao encon-
tro: eram tragos de peonha que eu bebia. Affron-
tei os fortes, os caprichosos, os bravqs, que tinham
ganhado um nome custa dos nomes que riscaYam
dentre os vivos. A ida da morte era-me como a
gota de agua que o avarento pedia ao justo d'entre
as lavaredas da sua caverna. Via cair os fortes aos
meus ps. O mundo applaudia-me os triumphos, e
as almas aviltadas protervia feliz- tantas, meu
Deus!-rodeavam-me devoradas de inveja umas, e
outras devoradas d'amor. l\Iulheres e homens todos
de rastos na trilha do ouro que eu deixava aps de
mim!
e<Quando te vi, ::\Iathilde, era eu assim um sce-
lerado, a quem o co negava o refrigerio do bem
que fazia a mos largas, das lagrimas que remia onde
quer que o tmido anjo da caridade m'as mostrasse.
:Mostrava-m'as, e fugia, que Deus lhe negou para
mim o dom do conforto, e as consolaes intimas
que tanto espinho de remorso desencrava.
122 COISAS ESP A ~ T O S A S
o:Era eu assim quando te vi, 1\lathildc.
Depois, soube o que era chorar, chorar porque
te havia de perder.
o: Oh I eu j sabia que tu me havias de amar. Sa-
bia-o. Disse-m'o o meu demonio, que te escolhera
como o supremo instrumento do meu castigo. Sabia
que no poderias ser minha, porque eras um anjo,
e eu o infamissino dos homens, mais desgraado
dos infames. O mais desgraado aquelle que no
pode estrangular a sua consciencia.
:\!editei enganar-te. Ser teu marido. Fugir com-
ligo, embrenhar-me num serto onde ouvidos hu-
manos me no ouvissem, e ahi dizer-te: Lucta com
Satanaz, e arranca-lhe das garras a minha alma.
o:E tu perdoar-me-h ias, 1\lathilde. E as tuas lagri-
mas de pena, de arrependimento no, lavar-me-h iam,
e de teus ps eu me ergueria com a face sem o
ferrete, que j agora ha de aqui queimar-me eter-
namente.
Eu bem sabia que te havia de perder, e que tu
havias de chorar-me, infeliz anjo f
Chamaste-me a mim infeliz !
Oh I Deus te pague em alegrias da terra e do
co o bem que me fizeste! Eras a primeira crea-
tura que no dava uma bofetada na face do justi-
ado exposta s affrontas do mundo.
Levo-te na minha alma, pura viso d'um instante;
sei que me hei de resgatar pela dor da saudade.
Chorei. Foi muito, foi o primeiro favor de Deus.
COISAS ESP A:'\TOSAS 123
Conheci que ha uma providencia e uma justia su-
perior dos homens.
c Adeus, hilde. Quando na tua presena amal-
dioarem o meu nome, ergue o teu corao a Deus,
e pede-lhe que salve tlo meu abysmo os infelizes que
se aproximam d'elle, empurrados pela sociedade,
que os ha de crucificar depois.
c.Adeus !
leu a carta, rasgou d'ella uma tira de
papel sem lettras, e escreveu a lapis estas linhas :
Espera que eu me possa erguer d"este leito, e de-
pois irei comtigo onde Deus quizer: Juntarei as mi-
nhas oraes s tuas, e 'Venceremos o teu 1nau des-
tino. Sei que me esperas porque me amas.

XXI
Augusto Botelho desejou formar-se em Coimbra.
Teve apenas de vencer o obstaculo da saudade que
lhe oppunha Gregorio e sua mulher. Queria Rosa
que fossem habitar em Coimbra durante a forma-
tura de Augusto; mas Gregorio, a esse tempo, es-
tava muito enredado em negocios com o governo,
cujo credor elle era.
Gregorio credor do goYerno portuguez ! exclama
a Europa.
verdade, que no ousareis contestar-me, na-
es civilisadas f O governo portuguez devia ao sr.
Gregorio Redondella algumas duzias de contos, que
1 2 ~ COISAS ESPANTOSAS
poderam amparar um ministerio que esteve a ba-
quear-se por um cabellinho! Com o dinheiro de Gre-
go rio, ganhado na taverna do Leo das Hespanhas,
no rethiro admirabele, e na taverna da rua das Ga-
vias, e na carvoaria, com esse dinheiro pagou o mi
nistro da guerra guarnio do Porto, que queria
sublevar-se, e com isso consolidou a sua permanen-
cia no poder.
Se a guarnio se revoltasse, das duas uma : ou
o ministerio se demittia, e vinha outro peior que asso-
prava a revolta; ou o ministerio resistia, e, sob qual-
quer pretexto, a quadrupla alliana e os hespanhoes
vinham por esta patria dentro, e senhoreavam-se
d'ella em nome da ordem e do equilbrio social.
Vista a questo por esta raeionalissima face, a nossa
autonomia deve-se ao sr. Gregorio. Viva, pois, a
independencia nac.ional, e o sr. Gregorio, que sendo
gallego, tinha nas entranhas uma faisca dos bravos
de 1 6 ~ 0 , faisca que entra em corpos de gallegos por-
que no acha peitos portuguezes em que se metta.
Foi Augusto para a universidade, e distinguiu-se
na vida estudiosa e no porte honesto. A sua mesada
era sobeja, e das demasias repartia com academicos
pobres, que ali iam provar que a vida de sapateiros
lhes seria menos espinhosa e muito mais promette-
dora de lucros.
Foi egual ao primeiro em todos os annos. For-
mou-se, doutorou-se, e concebeu o plano de viajar,
se o no contrariasse a vontade de Gregorio.
COISAS ESPANTOSAS
O pobre homem chorou, quando tal soube ; mas
accedeu, dizendo que a felicidade ~ o seu filho era
a d'elle propria.
Foi Augusto Botelho despeuir-se a Evm;a de Car-
lota, e achou-a feliz. Pediu-lhe que fosse fazer com
panhia a D. Rosa. (Dona'! porque no! A esposa
do sr. Gregorio j tinha sido convidada para madri-
nha d'um filho de official maior de secretaria, e an-
dra a passear no passeio publico com uma baro-
neza, e fora ao tivoli com as irms d'um conselheiro,
e tinha j um cunhado commendador, o qual com-
mendador era latoeiro, quanclo Gregorio casou.) Car-
lota condescendeu com Augusto, e saiu para a com-
panhia de D. Rosa, que passava o inverno na cama
com ataques de reumathismo agudo.
Levou Augusto para o estrangeiro muitas cartas
de recommendao, collecionadas por Gregorio nos
gabinetes dos ministros e dos diplomatas.
Deteve-se em Paris o tempo necssario para se
aborrecer, fugiu de Londres que no tinha sol nem
lua, e foi para a Suissa, onde o convidaYa a fama
das alcantiladas serras e pittorescas collinas e pra-
teados lagos, que elle amava como poeta sedento de
coisas grandiosas.
Estanceou alguns dias na terra natal de J. J. Rous-
seau, e desceu s margens do lago de Genebra. Ahi
ficou embellesado nas surprehendentes maravilhas
que lhe absorveram o anceio de ver muito em ra-
pido lance de olhos. Tomou um pequenino chalet
t26 COISAS ESPANTOS o\S
pendurado na proxima c de l escreveu aos
seus amigos dizendo que descanaria tres mezes
naquelle ponto, o mais lindo do unirerso.
Andava, n'uma tarde, Augusto passeando borda
do lago, e viu um grupo de pessoas sentadas sobre
o prado matisado de boninas. Era um homem de
meia edade, uma senhora de trinta e tantos annos,
dois meninos de oito e cinco annos, e uma creana
no collo da ama. O chefe d'aquella familia estava
lendo em voz alta. O menino mais velho ouvia, com
o brao enroscado ao collo de sua me. O imme ..
diato brincava com um bello molosso; e a ama co-
lhia flores, que a creancinha desfolhava.
Augusto parou, a pequena distancia, contempla-
tivo, disfarando o seu reparo. Foi-se aproximando
como quem seguia seu caminho, e ouviu a pronun-
cia do leitor: era portugueza. J mais de perto co-
nheceu que eram Yersos dos Lusadas, no episodio
de Ignez de Castro.
No conteve Augusto o seu espanto, se no era
mais ainda saudades da patria, vendo portuguezes no
lago de Genebra, e ouvindo to longe os versos que-
ridos de Cames. Parou to visinho do grupo, que a
dama fitou n'elle os olhos com certo enleio tambem
de admirada da audacia.
-Peo perdo -disse Augusto. -Parei, porque
sou portuguez, e ouvi a musica da minha patria.
O cavalheiro, que depozera o livro para encarar
no adventicio, disse:
COISAS ESPANTOSAS 127
- portuguez!? bem Yindo seja o nosso patri-
cio. 1\'o tem de que pedir desculpa. Somos todos
portuguezes, excepto estes meninos, que ainda as-
sim folgam de ouvir o poema, que no deixa mor-
rer o nome da patria de seus avs. Ha quanto tempo
est na Suissa?
- Ha poucos dias, e aqui demorarei tres me-
zes, se a impresso deliciosa, que sinto, se no gas-
tar.
-Aqui, no se gastam as impresses, meu caro
patrcio. Renascem em cada repontar de manh e
esconder do sol. Sente-se comnosco, e ajude-nos a
admirar. Vive perto do lago?
-Alm, no morro d'aquella encosta.
-Perto vi\'emos. A nossa casa, ha sete annos,
a que o sr. encontra do outro lado d'este outeiro.
-Pois ha sete annos que saram de Portugal?
- H mais. Viajmos e parmos aqui, e aqui mor-
reremos, se Deus no contrariar os nossos votos.
Donde ?
-De Lisboa.
-Quando saiu de l?
-H a nove mezes.
-Deve estar muito mudada nas coisas e nos ho-
mens r
-Conheci-a sempre assim nas coisas: os homens
que esto mais civilisados. Ha mais cavallos e car-
roagens.
- ento o cavallo que prova a civilisao do
{28 COIS.\S
.
homem? Bom que assim seja, para que o homem
possa dar ca,allo por si.
Riram todos da graa, c a esposa accrescenton
ao riso:
-Quem me dera rer a Lisboa tla minha infancia.
-Porque no vae, e volta, ama tanto estes
logares, minha senhora?- disse Augusto.
- vamos porque o S de Miranda recom-
menda que ninguem se mude, se est bem. E o se-
nhor quando volta? perguntou o cavalheiro.
-Passados alguns meze5.
-Quer-nos d3r a honra da sua convirencia?
- Ac.ceito-a com muito reconhecimento.
-l\las o dever que eu o visite primeiro, seno
convidal-o-hiamos a ir tomar ch comnosco.
-Pois eu- replicou Augusto-prescindo da ce-
remonia para no perder o obsequio e o prazer de
os acompanhar.
Foram conversando sobre iversos relanos das
viagens que ambos tinham feito uos mesmos paizes.
Augusto maravilhou-se da belleza do chalet do
portoguez, e das fertilissimas searas, que o rodea-
Yam, e se debruavam no pendor da montanha para
irem continuar no valle em dilatadas varzeas.
-Arrendou estas propriedades, ou ellas no per-
tencem casa?- perguntou Augusto.
-Comprei .a casa e as propriedades. :\o tenho
mais do que isto que Y, e tl'aqui tiro a frugal sub-
sistencia ua minha familia. Ainda lhe no disse o
COISAS 129
meu nome, para me auctorisar a perguntar-lhe o
seu.
-O meu nome Augusto Botelho. A esposa do
cavalheiro soltou um ai que fez estremecer Augusto.
O marido imp:1l1ideceu com os olhos fitos no hos-
pede ; mas, caindo em si no mesmo repente, disse:
-l\Iinha mulher no pode ouvir pronunciar o
nome Augusto, sem que o corao lhe mande aos
labios um involuntario gemido. Augusto era um ir-
mo querido, cuja morte ella ainda chora.
-Fui, pois, eu a causa d'uma dor, que no po-
dia prever ... --disse Augusto, crendo, sem vacillar,
na explicao do grito.
Dizer ao leitor que os habitantes das margens tio
l:1go eram l\Ianuel de Castro, sua mulher e filhos,
seria duvidar de sua penetrao.
Agora, em quanto Augusto se est recreando, em
pueris dialogos, com os filhinhos de e ::\Ia-
nuel de Castro se recobra lentamente do alvoroo,
que lhe fez a quasi certesa de ter em sua casa o
tilho de Ignacio Botelho, saibamos os successos ul-
teriores quellas linhas da filha de Francisco V:1ldez.
Castro, litlo o bilhete, sentiu em sua alma um
novo raio de graa divina. J o raptar ao velho Vai-
dez a filha se lhe afigumu uma indignidade. A pai-
xo, que elle sentia, sinceramente era a primeira,
porque era muito n'ella o respeito e a adorao;
todavia, pensava elle que o roubar l\Iathilde ao pae
seria prolongar a serie de seus infortunios e enrra-
9
.J:w
COISAS ESP A:'<ITOSAS
rar novos espinhos na consciencia. Prometteu a Ma-
thiltle esperar que ella tiresse foras para seguil-o,
e logo rompeu por todos os estorvos do seu orgu-
lho para ir lanar-se aos ps do duque, e pedir-lhe
que o levantasse do seu abysmo, e ouvisse a voz de
Severo de Castro, que lhe estava supplirando pela
voz do filho.
O uuque chorou, e renceu a repugnancia de aper-
tar ao seio o infeliz filho de> seu amigo. Compre-
henueu logo o compassivo fidalgo que era
o anjo redemptor d'aquella alma; e que :\lanuel de
Castro, abandonado d'ella, voltaria vida da liber-
tinagem, ou desesperao do suicida.
Prometteu o duque faltar com Francisco Valde1,
sem assegurar o bom exito da tentativa.
Ao mesmo tempo, l\Iathilde pedia a seu pae que
lhe ouvisse uma c.onfisso sincera como ella a faria
a Deus. E confessava o seu desgraado amor a :\la-
nuel de Castro, e a preciso de morrer, para que seu
pae a no amaldioasse por alguma desobediencia.
O velho chorou com ella.
Sancto Deus! por que que ninguem odiara l\la-
nuel de Castro? D' otlde procedia o compadecerem-se
todos d'elle, e andarem como a esconder de si mes-
mos o affecto. que ihe tinham?
As irms de :\lathilde fallaram d'elle como a lei-
tora costuma fallar d'um mancebo muito virtuoso,
que conhece, e a quem todos os paes querem dar
as suas meninas. O velho Yaldez, para se deseul-
t.:OISAS l:SPAl'iTOSAS -131
par a si proprio, dizia no secreto da sua conscien-
cia, que todo homem tem rapaziadas e loucuras que
o le,am a crimes, se a mo sevPra d\un pae o no
retem, contra os impulsos que a sociedade lhe d.
Assim estava amolentado o animo de Valdez, mas
indeciso ainda o requerimento de l\Iathilde, quando
o duque, depois de engenhosos rodeios, chegou ao
ponto de dizer que se tivesse uma filha, e ella amasse
Manuel de no teria duvida em dar-lh'a. Isto
em quanto a mim era mentira; mas passe, que mal
se pde conseguir smente com argumentos Yerda-
tleiros coisa que preste, neste mundo, e neste seetllo
patarata.
Francisco Valdez nem levemente resistiu soli-
citao do duque, muito menos quando o respeita-
vel fidalgo lhe disse que l\lauuel de Castro restitura
o furto indirecto que fizera, logo que teYe recursos
para resti tuil-o. e a este proposito Yeio citando pas-
sagens d'aquelle capitulo, j mencionado a paginas,
da ATte de furtar, e dos ladres que em sua opi-
nio entendem no devm restituir.
Depois d'esta pratica, pediu o duque venia para
entrat ao quarto de annunciou-lhe o dia
aprazado para o casamento, se ella estivesse resta-
belecida. X em a homreopatia conseguiu ainda maior
triumpho! Ao outro dia, :\lathilde estaYa a passeat,
e a fazer-se rosada e linda, que seria mesmo pec-
cado no amai-a !
SaLedor do resultado das suas supplieas ao clu-
f3t COISAS ESP
que, Manuel de Castro, com grane espanto de seus
conhecidos, vendeu os trens, vendeu as alfaias do
seu palacte, espediu os criados, e tomou um sin-
gelo quarto em hotel obscuro. Os seus ha \'eres,
realisadas as vendas, cifraram-se em trinta ou qua-
renta contos de ris.
O duque mara,ilhou-se d' esta resoluo, e per-
guntou ao noivo o motivo de tal mudana. Respon-
deu de Castro que saia de Paris com sua
esposa, logo que se recebessem, e ia comprar ter-
ras na Suissa, onde tencionaYa residir, em ditosa
obscuridade e esquecimento do mundo.
O duque aprovou o ahitre, e curou de obter com
a sua influencia a necessaria licenra para o casamento,
sem dependencia de certides.
Celebraram-se os desposorios, sem mais testemu-
nhas que a duqueza e seu marido, Francisco Valdez
e suas filhas.
No dia seguinte, saram os noivos para a Suissa
e l se aposentaram n'aquella cazinba em que os
deixmos com Augusto Botelho.
Como temo de ou rir argumentar que a felicidarle
absoluta neste mundo uma paradoxal viso dos
poetas, por isso me reprimo de dizer que :\lathilde
e :Manuel de Castro tinham sido absolutamente fe-
lizes nos oito annos que haviam vivido margem do
lago de Genebra.
::\em homem mais amado, nem mulher mais es-
tremecida ajuntou Deus, depois que expulsou o pri-
COISAS ESPANTOSAS 133
meiro casal do Eden. Se a1guma vez, o espirito lhes
fugia para a patria, o corao ficava l, emquanto
o espirita vinha e ia nas azas da saudade sem dor,
e da esperana vaga sem anciedade. l\Iuitas vezes
se disseram:
-Voltaremos a Portuga1? I
~ I a s esta pergunta era logo reprehendida por outra
que a si mesmos se faziam os venturosos esposos:
-1\"o somos ns aqui to felizes?!
XXII
)fanue1 de Castro no tinha ainda dito o seu nome
ao moo viajante; mas j Augusto o chama,a pelo
seu appellido. Ouvira-o proferir aos criados, e nem
por uma d' essas instantaneas reminiscencias que va-
gamente preoccupam a memoria, se lembrou do )fa-
nuel de Castro, tantas vezes fallado na sua infancia.
Dizia )fathilde sobresaltada a seu marido, em-
quanto Augusto Botelho andava no terrao da caza
fo1gando com as creanas:
-Ests certo que este o filho de Ignacio Bo-
telho?
-Deve ser; mas no estou bem certo, filha. Hei
de ter logo a evidencia.
-Tencionas declarar-te?
-Por que no?
Quando Augusto vo1tou salta, em que era ser-
vido o ch, pediu desculpa de ter-se demorado a
13i COISAS ESPA:\IUS.\S
contemplar o lago, que, quella hora da noite lumi-
nosa, parecia encrustado de prata.
l\13nuel de Castro disse que, depois do ch, des-
ceriam ambos margem do lago, e naregariam al-
guma hora encostados costa.
Acceitou Augusto muito alegre o convite, e las-
timou-se de no ser poeta, como os poetas que ver-
sejam, para poder contar as suas commoes.
-Pois nunca fez versos'!- disse Castro.
-Versos, nunca. Escrevi umas linhas que en
nem j sei o comprimento que tinham. Era eu muito
menino, e muito desgraado quando quiz cantar as
minhas dores.-
-Pois foi muito desgraado quando era meni-
no?- atalhou Castro.
-1\Iuito, fui muito desgraado.
- Ha de contar-me os seus infortunios em proza.
j que perdeu a memoria das suas poezias, sim:
sr. Augusto?
-Contarei, sem pejo, e at sem desprazer.
-Pois logo ser, sobre as aguas do lago-disse
Castro.
-E eu no hei de oufir tambem?- acudiu l\la-
thilde.
-E queres tu ir ao ar da noite? No receias uma
constipao como tantas que tens trazido da beira
tragua?
-Hoje no receio; e, se me constipar, tu con-
tinuas a ser o meu infermeiro, filho.
COISAS
Desceram s dez horas a margem, e saltaram
num barquinho de rodas, que obedeciam ao des-
canado impulso de dois dedos.
primeiros quinze minutos ninguem
Parece que a tomada de respeito, emmu-
dccra na presena tl'aquelle co, ou o co estava
em correspondencia tle mysteriosas e inaudireis pa-
lauag com as :1guas lmpidas do lago, onde a lua
se espelhava em catla ondulao mmida pelo ze-
phiro. Depois, :\Ianuel de Castro, guiando o barqui-
nho a uma enseada em que as aguas eram mortas,
abriu mo da manivella, e deixou-o baloiar-se Lran-
damente ao sabor da Yirao.
-Conte-me agora a sua infancia, sr. Augusto-
disse clle.
Principiou o hospede recordando-se de sua me,
que escassamente lhe deixra trafls j quasi des-
,anecidos; mas esses poucos bastaram a commoYe-
rem-no a lagrimas, que no choraria, se o local, e
a hora, e as circumstancias fossem outras. As 'fezes
se d o ininte11igivel phenomeno de recebermos de
fora a exuberanci1 de sentir, que nos faz chorar por
coisas, que em outros logares, de todo seriam in-
differentes ao nosso esprito.
Fallou com muita saudade de seu pae, e repetiu
phrases delle, cujo valor dependia todo do amor fi-
lial que as rtcord3va. Contou em seguida a morte so-
litaria d'elle, e reflectiu no desamparo em que mor-
rem aquelles, que se esquecem nos annos ''igorosos
COISAS ESPAt'i'fOSAS
de crear uma familia a quem dam os gemidos da
agonia.
-Eu sei que dormia na ante-camJra do quarto
em que meu pae agonisava- disse Augusto com aba-
fadas vozes.- Dormia, porque era uma creana; e,
em quanto eu dormia, uma desgr::tada mulher, se-
duzida por outro desgraado como ella, tractavam
de espoliar parte do dinheiro que havia em caza.
Houve, nessa formidavel hora do passamento de
meu pae, horrorosas seenas de sangue. Um
que tinhamos, querendo obstar ao furto, foi apunha-
lado, e conduzido moribundo a um hospital, e a go-
vernante, que eu tinha em conta de me, endoutle-
ceu de remorso, quando a consciencia lhe abriu os
olhos para ver a sua infamia.
:Manuel de Castro sem desfilar os olhos dos re-
verberas da neve eterna muito ao longe; cobria
os eabeos do Monte-branco, escutava a narrao de
Augusto.
O sobrinho de D. Leonor proseguiu historiando
a sua ida para 1\lont' Alegre, o desamor com que o
receberam, o destino que lhe deram, a demanda
em que foi veneido, e espoliado das ultimas miga-
lhas do seu patrimonio.
N" esta passagem, foi, pela primeira rez, inter-
rompido por l\Ianuel de Castro, que lhe perguntou
se elle no estivera n'um collegio estudando pre-
paratorios para cursar a Universidade. a expensas
rle sua tia.
COISAS E S P A ~ T O S A S -137
)Jaravilhou-se Augusto da pergunta, e deteve-se
a pensar no sentido occulto d'ella, antes de respon-
der que s mais tarde estirera no collegio dos no-
bres, mas no a expensas de sua tia.
Castro remelliou a precipitao da pergunta, di-
zendo que o julgava educado custa d'essa parenta,
embora ella o desherdasse, por no imaginar que
pessoa estranha tomasse a si o encargo da sua for-
matura.
Achou Augusto natural o reparo, lembrando-se
que antes de comear a historia da sua infancia j
havia dito a Castro que era formado, e estudra os
preparatorios no collegio dos nobres.
Continuando, respondeu aos reparos contando o en-
contro, que tivera com o criado, ferido na defeza do
seu patrimonio, quando o antigo criado estava rico
Disse a grandeza d'alma de Gregorio, e o amor ue
filho que lhe consagrava, sem pejo de o confessar.
Fallou de Carlota, das deJigencias feitas para en-
contrat-a, e da miseria extrema em que a viu, de-
pois de andar mendigando por portas o alimento
da me cega. Narrou o acolhimento que lhe dera
Gregorio, a delicadeza da sua caridade, a ponto de
nunca recordar infeliz as scenas atrozes que a le-
varam demencia, como expiao do crime. Des-
creveu-a, depois, no eonvento de Evora, com appa-
rencias de felicidade, orando: trabalhando, e espe-
rando a morte com alegre semblante, sem comtudo
a pedir a Deus.
t:OISAS ESPA!\TUSA:i
)fathilt.le ch0r;ira na ultima parte da narrativa uo
hospede, que fra eloquente na pintura do infortu-
nio, como quem tinhJ ain<la no esprito as cores, as
imagens entalhadas pelo ferro das fomes, dos ul-
trajes, e d-s Jcsesperos abafados. Atravez de dez
annos, no collegio, na nas salas, e
nas viagens n:mea o filho de Ignacio Botelho encon-
tr:ira alma digna das snas exp1nses. Era at]uelle
acantoado na Snissa, o primeiro homem
qae lh'as ouvia, o primeiro cor3o que acordra
as sympathias dG moo. O rosto angelical e com-
padecido de parecia offerecer a Augusto
uma alm1 ue rn1e para lhe entender as filiaes sau-
tlades. Desde que o narrador viu lagrimas no rosto
d'ella, deu largas sua magoa, e mostrou fJUantas
joias de elevauos sentimentos enthesourava no seio,
acrizoladas no cadinho da desgraa, e relevadas no
quilate. ao fogJ brando da religiosidade e da con-
,.
fiana na justi:.t dirina.x
Terminada a historia, de Castro apertou
a mo de e disse-lhe commovido:
-Deve harer nas personagens do seu drama um
ente, de quem pouco me disse, e esse de todos
o unic.o infeliz, porque parece que no houve qui-
nho para elle, nem de remorsos nem das recom-
pensas com que, cedo ou tarde, a Providencia foi
recompensando todos os outros. Quero fallar do ho-
mem que acceitou o roubo de Carlota, e nunca mais
restituiu.
COISAS ESPANTOSAS
-Restituiu - atalhou Augusto.
-Sim?!- tornou com vehemente jubilo 1\lanuel
de Castro.
-Restituiu a quem, segundo a lei, devia restituir.
Soube-o eu sete annos depois da restituio ... J
lhe disse que minha tia era casada com um magis-
trado, despedido do servio corno miguelista, posto
que o pobre tolo acceitaria ser tudo, e servir com
o diabo, se este sujeito tivesse juizes de fra nas
suas judicaturas infernaes. O certo que minha tia,
ha dois annos, expulsou pela terceira vez o marido,
e fugiu para Hespanha com um filho segundo, que
se encarregou, mediante o sustento e o vestitlo no
estrangeiro, acariciar os annos j invernios da per-
dida crcatura.
O bacharel andava l por l\Iont'alegre C<lindo de
miseria, quando lhe occorreu o pensamento de ir
a Lisboa pedir ao goYerno algum baixo emprego
para subsistir. Andou o homem em Lisboa pelas
secretarias os dias de seis mezes; e de noite esmo-
lava, dizendo sem pejo o seu nome e a sua antiga
posio na magistratura. Uma das pessoas a quem
elle pediu esmola foi Gregorio. O bom homem, como
curioso por bondade de indole, quiz ouvir-lhe a his-
toria, e conheceu que fallara com o marido de mi-
nha tia Leonor. Disse-lhe que o acompanhasse, deu-
lhe em sua casa um quarto, mandou-me ir de
Coimbra s ferias de natal, e appresentou-m'o, per-
guntando-me se eu o conhecia. A custo me recor-
1 .:OISAS ESP ..\NTOSAS
dei da physionomia do doutor Silva, sulcada pela
velhice, e pela miseria. O desgraado, ao conhe-
cer-me, emparveceu, e quiz ajoelhar-me aos ps. To-
me.i-o nos braos com sincera e entre-
guei-o proteco de Gregorio, cujo valimento bem
podia levantar o homem muito acima das suas mais
ambiciosas esperanas. E levantou-o at o fazer au-
ditor. Ora. foi ento que o marido de D. Leonor,
contando as mal-feitorias d'ella, denunciou que a
quantia, rouuada do espolio de meu pae, lhe fra
restituda um anno depois que eu fui mandado guar-
dar os porcos e os meninos do especieiro de Cha-
ves. H v, portanto, v. s.a- acrescentou Augusto
-que no ha personagem alguma execravel na me-
lhor tragedia. O bom Gregorio, quando souhe da
restituio, disse com jo\"ial sombra: Est feito!
o homem, se me restitusse o sangue, que me tirou
das guelas, ficara sendo honrado na minha opinio!
l\lanuel de Castro, finda a miuda exposio que
levou horas. aproou terra o barquinho, e man-
dou t!m de seus criados acompanhar Augusto ao
seu chalct, pedindo-lhe que no dia seguinte ,oltasse
mais cedo para navegarem o lago duma a outra
margem.
Ausente Augusto, dizia )lanuel de Castro a sua
mulher:
- Como poderei eu dizer-lhe quem sou?!
me obriga a fazei-o, salvo o corao que me
pelle a abra.;al-o!
COISAS ESP .-\:\TOSAS l-ii
-Deixa-me a mim dizer-lh'o- respondeu ::\Ia-
thilde.
- - replicou de Castro. - De que
seniria o uizel-o? Augusto ter o direito de per-
guntar-me com o seu silencio se eu devo os bens
que possuo ao dinheiro, que roubei do espolio de
seu pae. Para que ha de elle conhecer-me? Este
meu desejo em que necessidaue se funda?
Deixemol-o viver na ignorancia de quem foi o
homem a quem elle confiou o segredo das suas
uesgraas. Eu no sei como o mundo me avaliaria
se eu contasse a restitui.o como merecimento.
Creio que mal, :li 1thilde. S tu me ergueste aos
meus proprios olhos, porque me dste o baptismo
das tuJs lagrimas. O munuo no tem corao. Au-
gusto, com quanto generoso, le\-ar, de mim uma
recordao negra.
XXlll
O sr. Gregorio Fernandes Redondella amanheceu
um dia com grandes saudades de Augusto.
Communicou esposa a sua inquietao; e, com
este prazer agri-doce, conheceu que tinha uma com-
panheira de sentimentos. vespera, recebra o
sr. Gregorio carta de Augusto, escripta de Gene-
bra, e a triste noticia da sua demora de tres me-
zes na linda Yivenda que tomra nas montanhas so-
branceiras ao lago Heman.
O capitalista no sabia nada de geographia; razo
I i ~ COISAS ESPA::"iTOSAS
de mais para se desgostar de que o seu Augusto
escolhesse montanhas para Yi\er; tendo-lhe elle re-
commendado que fosse estar em Roma, que era a
primeira cidade do mundo, e no ,iesse de l sem
ver o papa,- recommendao em que a sr.a D. Hosa
insistiu muitas vezes.
-Est-me c dando uma venta d'aqnella casta,
Rosa! -disse Gregorio, quando se estava lavando-
V l se adivinhas, mulher!
-Ora, se adivinho, meu tlo! Eu leio-te no co-
rao ...
-Pois se ls, diz p'r'ahi o que sabes.
-Tu ests a pensar em ir onde est o menino.
- D ~ s t e no Yinte! .Agora que te digo que tu
ls no meu corao, Rosinha! E que mais? No ls
mais nada?
-Leio, Gregorio, podra no lr ... Isso dos
livros ...
-Ento, diz l.
-E queres levar comtigo a tua Rosa.
-Cspile! Sem tirar nem pr. Vamos, rapariga.
- quando quizeres, homem!
-Assim que houYer vapor.
-:\las o peior que a gente no sabe como ha
de l por essas terras de Christo perguntar o ca-
minho para as montanhas. l\Ias diz l o dictado que
quem tem bocca vae a Roma.
-E quem tem dinheiro vae l mesmo sem bocca,
mulher. Eu vou entender-me com o mestre de fran-
COISAS ESPANTOSAS
cez de Augusto, e elle escreve-me as perguntas em
francez p'ra ns 1<1 por fra sabermos como have-
mos de pedir de comer l por essas estalagens da
Frana e da Inglaterra ... .Acho que o caminho para
a Suissa pela Ingl:lterra.
-Pois, homem, tracta de saber essas coisas.
-Olha que o menino, quando nos vir, fica pas-
mado!... E, depois, Gregorio, de l vamos para
Roma, sim?
-Isso l quando o pequeno quizer, menina.
Se elle gostar de morar nas montanhas, deixai-o,
que isso genio de temperamento, como uiz o me-
dico, e no h a remedio seno dizer com elle ... Pois,
emfim, eu vou tractar do que preciso, e pr em
ordem o negocio para o guarda -lirros saber quando
se vencem as lettras. Depois irei ao resto, e por
estes oito dias l vamos, Rosinha, ver mundo, e dar
um alegro ao nosso rapaz.
Graas aD mestre de francez, muniu-se de abun-
dantes perguntas e requisies o viajante, excepto
em inglez, porque, segundo o mestre, e com grande
admirao do sr. Gregorio, Inglaterra no ficava no
caminho da Suissa.
Durante o trajecto do mar at a
sr.a D. Rosa, quando no ia enjoada, dava lomores
a Deus pela magnificencia das snas obras, e
mava de ver o mar incomparavelmente maior do
que se lhe afigurava, visto do taes das
onde ella fra algumas Yezes admirai-o.
COISAS ESPANTOSAS
Gregorio, com o papelinho das perguntas e re-
na m1o, ia perguntando e pedindo; porm
o mestre oividara-se de adivinhar as respostas, e
escrrver ao lado a traduco.
obstante, bem dizia o capitalista que com
dinheiro, e mesmo sem bocca, se vae a Roma. Como
levava carta u'um ex-ministro da sua intimidade para
o nosso ministro em Frana, foi-lhe logo dado um
interprete, que, soLre lhe aplanar as difficuldades
de se fazer entendido, o forneceu de proriso de
termos francezes bastantes para dar uma volta
roda do glbo, lerando dinheiro, que indisputa-
velmente a lingua universal.
Com uma carta que lerou de Paris para Gene-
bra, conseguiu Gregorio saber de prompto onde
morara Augusto, e no se deteve na cidade de J.
Jacques Rousseau, mesmo porque o nosso riajante,
quando lhe indicaram em mau hespanhol a casa do
philosopho, roltou-se para a sr. a D. Rosa, e disse:
-Que nos importa a ns saber onde morou o
homem?
-Deus tenha a sua alma no co- disse D. Rosa
-se e1le fez por isso.
O cicerone, que no entendia a lingua, inferiu do
aspecto contemplativo de D. Rosa que a casa de
Rosseau impressionra rirarnente os portuguezes.
se aggravem os meus patrcios da carta de
naturalidade que eu dou ao sr. Grcgorio. Se tives-
semos rinte como aquelle, a nossa ci\iHsao ma-
COISAS ESP .\NTOSAS
terial estaria n'um pe muito m(tis adiantado. Saibam
que a elle se deve a estrada que liga Valongo ao
Porto, e a conserrao do ministerio, que mais via-
aco publica fomentou).
O guia dos nossos amigos, quando chegou ao car.s,
que, a pequena distancia de Genebra, corta o lago,
formando uma enseada p ~ r a os barcos, enthusias-
mou-se quanto o seu ollicio de indicauor lhe im-
punha, e chamou a atteno dos viajantes para o
magestoso espectaculo, que os rodea,a. 1\lostrou-
lhes as serras boleauas do 1\lonte-branco com o seu
diallema ue glo. A esquerda, apontou-lhes a cor-
dilheira do Jura, cuja cr pardacenta contrasta com
o alvor das serras alpinas. A beira do lago, indicou-
lhes os centenares de povoaes que as aguas espe-
lham, as aguas d'um formoso anil, escamadas de
scintilantes saphiras quando a lufada da brisa lhes
encrespa a superficie. Entre as povoaes arultavam
Villa-nova, e a cidaue ue Lauganna.
Quiz o conductor que os viajantes entrassem na
casa que habitava Stael, quanuo o desaffecto de Na-
poleo a levou a conspirar em terra estranha, mas
formosa terra escolhera aqueHa Yaronil alma para
luctar soberana do e:;pirito contra o souerano da
fora!
Estas e outras coisas dizia o francez aos nossos
viajantes; Gregorio, porem, umas no 1h'as enten-
dia ; outras achava-as extremamente secantes.
Emf)u:mto a D. Rosa, essa, de vez em quando,
10
COISAS .ESl A!\ TOSAS
cortava a vehemencia noticiosa do francez, para lhe
perguntar onde era a casinha de Augusto.
Respondia-lhe o ofTicioso guia que deviam Yer o
castello de Ferney, onde Yollaire habitava, e l ve-
riam o leito, as cadeiras, a mesa, tudo, no quarto
em que Voltaire dormia, e na mesma disposi'dO em
que o ueix:lra o emincute reformador do mundo.
1\o esqueceu ao entlmsiasta do philosopho de Fer-
ney agurar o apetite Lto dos viajantes, dizendo-lhes
que l veriam tambem um cinerario de marmore
eom seu epitaphio, U.estinado a enthesourar o co-
rao de Vollaire.
O sr. Gregorio, j impaciente: voltou-se para a
consorte, e disse a meia voz:
- J ,-iste uma coisa assim?
--O homem tem demonio a fallar n'elle, Deus
me perue 1-disse a sr.a D. Rosa. v
Com quatro horas ue jornada chegaram povoa-
o, d'onde se subia para a chan da serra, em que
alvejava a casinha de Augusto Botelho.
Vinha este descendo a lombada da montanha,
quantlo ovviu uns grandes brauos, e logo conheceu
Gregorio, e D. Rosa. Correu o moo offegante a
abraai-os_, e, antes de poderem trocar-se as primeiras
saudaes, desafogaram em lagrimas a sua alegria.
O francez deixou-os n'este enlevo, e veio dizendo
comsigo que nunca vira viajantes mais estupidos
borda do lago de Genebra.
COISAS ESP Al"TOSAS l-i7
XXIV
Depois que D. Rosa e Gregorio declararam estar
restabelecidos das foras extenuadas na vi::tgem, con-
,idou-os Augusto a irem com elle passar uma tarde
em casa de uns portuguezes que moravam, havia
sete annos, borda do lago, provando que a feli-
cillade neste mundo realisavel. Disse elle que na
companhia dos esposos passava o mais do seu tempo,
ora lendo, ora conversando, ou folgando com os fi-
lhinhos do seu amigo, que pareciam anjos creados
no paraiso terreal com toda a innocencia e meiguice
que o Creador lhes dera.
D. Rosa, anciosa de fallar com uma senhora por-
tugueza, acceitou alegremente o convite, e poz-se
logo a caminlw, encostada ao brao de Augusto.
Quando se avisinhavam ao clw let de Manuel de
Castro, estava 1\Iathiltle cuidando das suas flores, e
l\Ianuel de Castro, sombra de uma faia, dava lies
de francez aos dois meninos mais velhos.
A appario dos hospedes foi inesperada.
l\lanuel de Castro, se no fossem os precedentes,
encararia uma e muitas vezes o antigo criado de
Ignacio Botelho sem conhecei-o. Gregorio, porm,
apenas se defrontou com o portuguez, reteve o passo
e a respirao, abrindo a bocca, e espavorindo os
olhos.
-Aqui lhe apresento os meus paes adoptivos:
sr. Castro!- disse Augusto.
COISAS ESPAi\'TOSAS
l\Ianuel de Castro no responucu, e Mathilde es-
taYa a um lado, com a cor peruida, e os olhos es-
pantados no rosto pallido do esposo.
Augusto sentiu-se enleado no meio d'esta scena
muda.
Castro rompeu o silencio, e disse com um sorriso
que tem este nome, por ser realmente um sorriso:
-0 sr. Gregorio j me eonhece, e eu estendo
a minha mo ao pae adoptivo do sr. Augusto Bo-
telho. sr. Gregorio, e corte-a, se a v
ainda salpicaua do seu sangue.
A imagem era levantada de mais para Gregorio,
que de certo lhe estenderia a mo, sem tanto con-
summo de estylo: mas o que elle no teve foi pa-
lavras, que possamos repetir, em prova da sua per-
t.urbao.
O mais perturbado parecia 1ugusto. Foi a elle que
l\lanuel de Castro se dirigiu n'e:-tes trrmos:
-Era foroso que o sr. Augusto, autes de sair
da Suissa, me tirasse a affeio, que deu ao desco-
nhecido. Eu presava-o muito, por isso lhe occultei
os infortunios da minha mocidaue. Poderia chamar-
me ingrato confiana, que lhe ganhei : mas repare
que a sua infancia eram e a minha mo-
cidade eram infamias. sr. Augusto
Botelho?
O filho de Balbina apertou a mo de Manuel de
Castro, conduliu-o beira de D. Rosa, e disse-
lhe:
COISAS ESP A:XTOSAS
-Peo-lhe que apresente a seu marido o amigo
de seu filho. minha querida me.
-1\"o preciso tanta coisa ... - disse Gregorio
recobrando a sua razo alguns momentos ourada.-
D c um abrao, sr. )fanuel de Castro. O passado,
passado. Se o senhor no acerta de me segurar,
quem o matava era eu. E de mais a mai.;;, o senhor
fez uma aco, que de homem honrado. 1\"o fal-
lemos em mais nada. Com que ento, esta senhora
sua mulher, e aquelles meninos so seus filhos?
-Sim senhor.
- P ~ r muitos annos e bons. Ento que f a ~ v. s. a
por aqui? .:\"o lhe melhor ir para a patria?
-:Xo tenho patria. sr. Gregorio. O homem deixa
de ter patria, quando precisa esconder em terra es-
tranha um vilipendio que o tornou indigno de seus
concidados.
-Ora, deixe-se d"isso ! o senhor h a de tornar
para Portugal. ou eu no hei de ser Gregorio r
Riram os olhos de Mathilde palavra Portugal.
l\Ianuel tle Castro, fora de abafar a sensibilidade
que se enleva na magia das esperanas, nenhum
sentimento exprimiu no aspecto impassi,el.
A boa Rosa, com os seus dizeres singellos e can-
dura de benevolente corao, chamou de parte a },la-
thilde e pediu-lhe que resolvesse o marido a voltar
para Portugal.
-Tem l a nossa casa -disse ella-que um con
vento, e no emergonba em quanto a limpeza. Eu
tJU
COiSAS ESP A
hei <le ser muito amiga de v. ex. a, e Yer;i JUe o meu
Gregorio se afTeioa a seu marido. 1\s, graras a
Deus, somos muito ricos: muito algum
tempo ; agora tudo nos corre bem para ns e para
quem precisa do nosso amparo. O que eu queria era
que o nosso Augusto nos no deixasse. :.\leu marido
sem elle parece que anda a morrer de tristeza.
verdade que o pobre mo precisa de ter com quem
converse, e ns bem sabemos que somos gente sem
educao parJ o entretermos. Olhe, minha senhora
venha comnosco j ; Yenba. Yamos todos a Roma se
o meu Augusto quizer que vamos. .
E proseguiu n'esta intimidade subitamrnte con-
trada a carinhosa consorte de Gregorio.
Parece coisa desnatural isto assim como eu o vou
contando f fh de sair-me a critica do meu leitor, im-
pugnantlo que Rosa, primeira vista, se affeioasse
mulher do homem que lhe ti\era o marido s
portas da morte. Confesso-lhe eu que me no insurgi
contra a verosimilhana da historia, quando assim
m'a contaram. 1\"o obstante, contrapuz os meus re-
paros para, a todo o tempo, pJder satisfazer s du-
vidas do leitor, que eu venero muito.
Disse eu a Augusto:
-Se eu, alguma vez, contar a sua vida, como
l'Oss me pede, muita gente rasoarel duvidar que
o santo homem Gregorio-a eu j no posso
chamar gallego- acceitasse to depressa a mo de
l\lanuel de Castro. que lhe cortou a garganta. e fez
COISAS ESPA:'\TOSAS 1 ~ 1
I
outros estragos nas costcllas. Duvidar lambem que
a sr.a D. Rosa mettesse logo "to dentro na sua es-
tima a mulher de )lanuel de Castro, e ambos levas-
sem a sua sympathia ao excesso de os quererem
trazer para Portugal, e hospedai-os em sua casa,
como quem recebe velhos amigos. Ho de dizer,
acrescentei eu, que o sr. Gregorio, a final de con_
tas, estava revelando a procedencia galliciana com
as baixezas da sua indignidade, e que a sr. a Rosa
l tinha os seus principios tle pundonnr trazidos do
estanque u do primeiro marido, que fra ponto no
theatro do Salitre, posto que os princpios da di-
gnidade d"um ponto devem de estar saturados, por
assim dizer, dos altos brios dos personagens tragi-
cos, que elle deve saber de cr .
.Augusto Botelho achou desgraciosas estas minhas
reflexes, e disse-me com desgosto :
-Pois se acha que os factos, como elles se de-
ram, no so naturaes, invpnte-os voss para serem
mais acceitaveis. O que eu lhe assevero que Rosa
tinha o corao flor dos labios, e Gregorio, se no
tinha grandes brios, sobejava em honra, em cari-
dade, e desejos de bem-fazer a amigos e inimigos.
E, todavia, no diga que este homem rezava de bra-
os abertos nas egrejas, para que o publico lhe
acredite as virtudes de Gregorio como coisas sobre-
humanas e milagrosas.
152 COISAS ESP A :'i TOSAS
XXV
Tenha o leitor a condescendencia de ir comigo a
uma epoca, trinta annos anterior quella em que
deixamos os Yiajantes em Genebra. E oLservem, de
passagem, que este romance solll'excede todos os
meus romances na complk.ao das situaes, em
que os outros andam acoimados de pobreza. que
raras vezes se apanham de surpreza historias to
maravilhosas, e eu, quando mas no contam, es-
crupuliso sinceramente em invental-as. A verdade na
novena a minha religio: e aposto eu que muitas
religies so menos verdadeiras que as minhas no-
Yellas.
o caso que, em 1813, havia em Lisboa uma
menina de familia limpa. ChamaYa-se Carolina, tinha
vinte e cinco annos, rara formosura, e virtudes ad-
miraveis.
O pae (l'esta menina era empregado no erario, e
vivia decentemente do seu emprego. No tinha outra
filha, nem outros cuidados n'esta vida: na outra,
tinha a alma da esposa no co, e para l aspirava,
sem comtudo pedir a Deus que o ajuntasse alma
da consorte, em quanto a filha no tivesse amparo
certo e digno no mundo.
Carolina amava, desde os vinte e um annos, um
moo pobre, empregado no commissariado, e orpho,
com duas irms que sustentara. O pae de Carolina
ignorava esta affeio, e cuidara em lhe escolher ma-
COISAS ESPA::'\TOSAS 153
rido. Como a amara muito, e a queria ver feliz, es
colheu-lhe um sexagenario, chefe da sua repartio,
homem s, e abastado.
Quando eWe reio radioso de alegria dar a boa nora
filha: riu 'que o seu jubilo era correspondido com
lagnmas. Cerrou com e lia cm perguntas, j severas,
j carinhosas, e soube que Carolina amava o pobre
amanuense do commissariado.
Porque a amara muito, reprehendeu-a com quanto
azedume o seu muito amor lhe permittia, e fuou
o dia em que deYia realisar-se o casamento.
Carolina ouviu-o silenciosa; e, na r espera do dia
aprazado, fugiu de casa, e abrigou-se em companhia
das pobres irms do amanuense.
O pae, ignorando o destino da filha, e a morada
do moo, que lh"a roubara, andou louco, em quanto
a febre o no prostrou. Desta febre morreu, e mor-
reu amaldioando Carolin!), porque a amaYa muito.
Carolina s poude saber que seu pae agonisava,
quando ia para a egreja parocbial receber-se com o
amanuense. Quando elles entraram no templo, saia
o sagrado Yiatico para o infermo. Entraram nas tur-
bas, que acompanhavam o Senhor; mas, quando o
palio parou, desceu um criado, annunciando a morte
de seu amo.
~ o obstante, o casamento celebrou-se n'aquelle
dia; os esposos entraram na posse da casa do de-
functo empregado no era rio; mas, n'essa mesma hora,
aberto o testamento, souberam que a moblia esta,a
COISAS ESPANTOSAS
hypothecada a tlividas, e dinheiro no apparecia al-
gum em casa. O pae irritado alienara fraudulenta-
mente quanto possuia, porque amaYa muito sua filha
e queria provar-lhe o seu amor alem lia morte.
Voltou Eduardo Pinto para a companhia de suas
irms: era mais uma bocca a sustentar, mais uma
bocca aberta miseria.
O velho, que quizera casar com Carolina, pro
metteu continuar a vingana do seu defuncto amigo.
Facilitou-se-lhe influir na demiss3o do empregado,
e conseguiu. Eduartlo foi expulso sem argumento
nem satisfao.
Queria pedir recursos, e no tinha a quem ; que-
ria ganhai-os, e todas as repartioes se lhe fecha-
vam; queria vender os utenslios domesticas para
comprar po mulher e irms, mas tudo que tinha
no valia o sustento de tres dias.
Primeiro, chorou, e viu que as lagrimas no re-
mediavam nada. Depois, rompeu em desatinos de
louco, e n'um intervallo de reflexo Yiu que a fome
augmentava, e o terror que infundia nos seus tor-
nava mais deforme o aspecto da indigencia.
Um dia saiu para se precipitar do arco grantle das
aguas-livres, e encontrou um capito de navios com
quem fallra no escriptorio de seu trabalho algumas
vezes. Parou a contar-lhe o seu destino: e cedeu o
brao ao martimo, que o levou comsigo. Do facto,
que se deu oito dias depois, podemos inferir o que
COISAS ESPAI'\TOSAS 155
se passou entre elles: Eduardo foi no navio do ca-
pito, avisando sua mulher, de bordo.
Carolina recebeu a nova, quando estava aleitando
uma filha de anno e meio. 03 peitos da attribulada
me seccaram n'aquelle instante. A creana retirou
os labios, e chorou. A me, desmaiada e cada em
braos de suas cunhadas, j lhe no ouviu os gri-
tos.
Dias depois, cada uma de suas cunhadas, recebia
o seu amante, que as tinham mimosas e fartas. Ca-
rolina saiu com a filha, e alugou uma casa ao rez
da rua no becco das Gralhas, onde pagaYa tres mil
ris cada seis mezes.
D'ahi saiu; com a filha nos braos, por casa das
antigas relaes de seu pae, pedindo, no esmola,
mas trabalho. Algumas afastaram-na com brandos
modos e promessas de lhe arranjarem um recolhi-
mento e uma subscripo para se sustentar; outras.
menos generosas em promettimentos; deram-lhe
que fazer trabalhos de costura grossa, e obra de
engornmadeira.
Carolina aprimorou-se n'este trabalho, e conse-
guiu alcanar fama de excellente engommadeira.
Entretanto, Eduardo, que dizia a sua mulher se-
guir a rota do Brazil, foi para a Africa, iniciou-se na
tomadia de escravos, aventurou-se fortuna dos ser-
tes, e na pesquiza d'ella, que to prospera lhe ace-
naYa, foi-a seguindo e internando-se no interior do
paiz. De diversos pontos, onde o ensejo se lhe of-
156 COISAS ESP A ~ T O S A S
ferecia, mandou a sua mulher fartos meios de subsis-
tencia; mas estas remessas eram entregues s irms,
e, estas, j ento decaidas da ephemera gloria que
d a deshonra, no escrupulizaram em consumir os
seus recursos e os da cunhada. Alguns annos depois,
para se linarem de remorsos completaram a infa-
mia da aco: o meio rle no sentir remorsos estalar
a ultima fibra dos sentimentos bons. Fizeram sentir
a Eduardo que Carolina se separara d'ellas, para
naturalmente evitar testemunhas da sua vida desre-
grada.
Eduardo engolfou-se em aventuras arriscadas para
enriquecer-se: era a maneira de olvidar-se, trazendo
a lida em trances; mas a fortuna amoluaYa-se-lhe
s mais arremeadas ambies.
Trinta annos vagou nos sertes da Africa e da
America, sem experimentar os revezes que interval-
lam os arrojos da cubia insaciavel. A patria j lhe
tinha esquecido, quando, segunda vez na sua ,-ida,
encontrou no Amazonas o capito do navio, que o
levara Africa.
Tinha estado o velho marinheiro em Portugal um
anno antes, e a curiosidade o movera a indagar cerca
da familia do ricasso Eduardo Pinto. Ento soubera
que a mulher do seu protegido, vinte e nove annos
antes, nunca recebera uma migalha das sobras do
mau marido ; que a filha d' esta infeliz, depois de se
ter prostituido, estivera douda n'um hospital, e que
a pohre me cegra de chorar, e acabara os dias da
COISAS
pediu do por portas, tendo sempre tido 'ida de
trabalho, de honra. de exemplo, e de lagrimas.
J o leitor sabe que o rica:::so Pinto o pae da
Carlota, reclusa no mosteiro de Evora.
XXVI
O capito, quando encarou Eduardo, disse-lhe
com a rudeza de homem do mar, que aYas5ala as
furias do oceano como as soberbas dos poderosos
vermes da terra:
-Por minha honra lhe digo que me arrependi
de impedir que o senhor, ha rinte e nore annos,
se atirasse do arco grande das aguas-lirres! Eu quiz
conserrar urna rit1a, que deria amparo a outras, e
fiz um monstro, centt1o nas riquezlls que eu lhe
mostrei. Sempre cuidei, senhor, que sua mulher
e filha ri,iam na abund:mcia ; procurei noticias
d'ellas com o desejo vaidoso de lhe dizer que era
eu o salvador de seu marido e pae, e o homem a
quem ellas deriam tudo abaixo de Deus. Boa a fiz,
no tem durida f posso limpar as mo::; parede!
Sua mulhrr, depois d"uma rida honrada, morreu a
pedir esmola; sua filha, depois de ter-se dado a
quem lhe matasse a fome, esteve douda no hospi-
tal, e de l saiu para dar a mo me que tinha
perdido os olhos. Ao mesmo tempo soube que o
senhor fra liberal com duas irms, que andaram
por l dissipando em deyassides as suas liberali-
1:>8 COISAS ESP
dades. L ma morreu; a outra, j com cabellos bran-
cos, ainda sabe como o dinheiro attrahe amantes de
cabellos pretos. Ora isto que eu no esperava de
si, sr. Eduardo. Com que diabo de consciencia voss
tem vivido? Que mal lhe fez a poLre senhora, que,
segundo omi de sua propria Locca, se fez desgraada
por desobedecer ao pae?!
O capitalista mostrou ao capito as cartas de suas
irms, a\'isando-o da vida irregular de sua mulher.
O capito, firmado nas informaes que colhra, de-
fendeu Carolina, mas desculpou at certo ponto o
marido.
Desde esta hora o corao de Eduardo era preza
d'um aLutre que lh'o espicassara com duvidas atro-
zes e remorsos inconsolaveis.
Deu-se pressa em voltar a Portugal, abandonando
tudo, que pouco importara para a grande riqueza,
que possua realisada.
Chegando a Portugal em Janeiro de 18-i-i, foi
procurar a irm que ainda existia. Apresentou-se
com um nome supposto, e sondou a vida de sua
irm. discrepara um ponto das informaes,
que lhe dera o capito. Fallou na mulher de
Eduanlo Pinto, morta de miseria. A irm mostrou
ignorar que ella tivesse morrido; mas fugia de fal-
lar da ,ida de sua cunhada. Perguntou-lhe o sup-
posto amigo de seu irmo se era certo Carolina ter
deshonrado seu marido. A irm impallideceu, e no
ousou confirmar a calumnia. O hospede insistiu per-
COISAS -159
tinazmenle na dc\assido de e a mulher,
vcnciua tlo seu remorso, ou no ousando calumniar
a infeliz que tiuha morrido, disse que sua irm e
no ella, escrevra a Eduaruo deprimindo as vir-
tudes da cunhada.
Ento, o homem da escravatura, tirando d'uma
carteira um mao tle cart:1s, abtiu uma, e disse:
- leUra sua ou de sua irm?
- minha ... -disse ella tremendo e vergando,
debaixo da mo de Deus.
Eduanlo frz um p atraz, e assentou-lhe o
tro em cheio no peito.
-I-las ue morrer entre farrapos, iufame f
palaYras sniTocaram o grito da mulher. Co-
nheceu ento o irmo, e prostrou-se para beijar o
p que a impellira contra a parede. Eduardo saiu,
olhantlo tle relance para a opulencia de sua irm .
..-\cudiu-lhe um pensamento de atroz vingana.
ditou em pr uma mordaa na bocca daquella
lher, incendiar os trastes de estofo que rodeavam
as e forai-a, atada de ps e mos, a morrPr
nas lavaredas.
A natureza do homem d'este seculo repugna a
melodrmar de tal feitio! Venceu a natureza do
cuJo, que de luzes, mas no gosta de fogueiras.
Eduardo saiu, aprazando outro genero de ''in-
gana, como se no fosse bastante vender
os moveis para comer, e morrer de fome, quando
no ri\es:::;e mmeis.
160 COIS \.S ESP
Ento se leu nos jornaes de Lisboa o seguinte
annuncio:
\
Precisa-se snber se 'tire e onde 'L'ite lWU1 senhora
e/tomada fil/ia que ficou de Carolina Ame-
lia de Bflstos, que morou no beco das Gralhas
com profisso de e foi casada com
Eduardo Pinto dos Reis, ausente em parte incerta
hfJ. trinta annos. Se nlguem poder dar os pedidos es-
clnrecimentos, faa-o no Hotel de ltalia ao proprie-
tario do mesmo, 111 nn de S. Francisco, IJUe {ar
n'isso grande bem pesson procurada.
Chegou s m3os do capello do de Evma
o jl)l'nal. Sabia elle que a reclusa de Lisboa se
:lssignava Carlota dos Reis llastns. Chamou-a
grade, leu-lhe o annuncio, confirmou-se de que era
a mesma, e encarregou-se de escrever ao proprie-
tario do hotel lle Italia nos seguintes termos:
D. Carlota dos Reis Bastos, filha legitima de
Eduardo Pinto dos Reis, ausente de Portugal ha
trinta amws, e de D. Carolin7, Amelia de Bastos,
fallecida em Lisboa, em 18l, 1eside actwllmente
no mosteiro das franciscanas de Evora cidade. U
capello do mesmo convento, padre Lui:, de Sousa.
O millionario, acabando de ler a carta, sentiu
uma alegria que toca\a no extremo da dor, tama-
nhas comulses Jhe sacudiam os nervos e desorde-
navam o gyro do sangue. Dam ordens sobre ordens,
ora pedindo carroagens, ora caYallos para trans-
porte.
COISAS IGI
Aos hospedes mais estranhos contaYa a ventura
de sua filha; s filhas do dono do hotel
promettia grandes presentes no dia em que a sua
chegasse; aos criados daYa dinheiro por no poder
dar-lhe abraos: era a doidice da felicidade, a mais
ridcula de todas, quando as pessoas, que a presen-
ceiam, no tomam parte d'ella.
Foi Et.luardo a EYora, e fez-se annunciar como
pessoa que desejaYa Yer a SI'. a D. Carlota dos Reis.
Tele em resposta que a secular no costumava
rec(lber ,-isitas desconhecit.las.
-Queira dizer-lhe - replicou o velho por-
teira -que um antigo amigo de seus paes que a
procura.
Yeio Carlota grade.
J disse, n'outra parte d'este escripto, que a re-
clusa, mezes depois que entrra no convento, re-
cnperra os traos da perdida formosura. Agora,
acrescentarei que, por efieito d'uma nutrio me-
diana, as feies se haviam arredondado, as canda
des tinham desaparecido, a cr renovara-se sadia e
bella com o sangue, e Carlota aos quinze annos no
fra mais bella do que estala sendo com trinta e
dois incompletos.
Orgulho de pae! Eduardo, quando a viu to bella,
sentiu o que poderia sentir um noiYo que, pela pri-
meira vez, se aristasse com a esposa promettida!
A voz trahiu-o, o corao paternal queria subir aos
labios, e romper nos doces nomes que lhe da\a a
11
fG2 COISAS ESP Al'\'TOSAS
ternura que o enchia, c os raptos de felicidade que
desobedeciam a um proposito feito.
Reprimindo quanto podia o sobresalto, disse r
Eduardo:
- Conheci-a, minha senhora, quando v. ex. a ti
nha anno e meio. Fui amigo de seu pae, que v. ex. a.
no conheceu.
-Tinha eu essa edade, quando elle saiu de Por-
tugal.
-Seu pae vivo?
-lXunca mais tivemos noticias d'elle. !\linha me
esperou-as alguns annos; mas a final perdeu as es-
peranas.
-E suas tias, por parte de seu pae, nunca lhas
deram?
-1\Iinhas tias abandonaram-nos. V. S. a conhe-
ce-as?
- Conheci; mas disseram-me que ellas viviam
em abundancia.
- Penso que sim; mas custa de vergonhas.
- Ouvi dizer que seu pae as soccorria fartamente.
-No pde ser ... Se meu pae soccorresse as ir-
ms, natural que lambem soccorresse a mulher
e a filha.
-A sr.a D. Carlota tem duvida em me contar
a sua historia e a de sua me ?
-A historia de minha me reduz-se a poucas
palinTas: trabalhou emquanto teve vista; e pediu
esmola depois que cegou. A minha historia uma
COISAS ESPAi'\TOSAS H33
caJeia de desgraas que v. s.a por uelicadeza me
no perguntaria, se tivesse uma leve suspeita da
minha vida.
- Ko farei mais alguma pergunta. Era seu pae
que desejava noticias de v. ex.a
-l\leu pae ! - exclamou Carlota - pois meu pae
ainda vive!
- Sim, minha senhora.
-Onde vire meu pae'l! poderei eu ainda vel-o ...
-Queira esperar um instante - disse Eduardo
commovido.
E desceu p o r t a r i a ~ deixando Carlota perplexa
da saida.
O velho foi ao ralo, chamou. a porteira, e disse-
lhe:
- D licena que minha filha me venha abraar
portaria?
-Sua filha?! A sr.a O. Carlota?
-Sim. minha senhora.
A porteira sulJiu grade, e disse;
-:\linha senhora, v abraar seu pae, que est
espera na portaria.
-)leu pae?! -disse Carlota.
-Sim, menina; o sujeito que a chamou grade.
Carlota ergueu-se, quiz descer, mas tremia a
ponto de precisar amparar-se ao hombro da por-
teira. Abriu-.se a porta, e Eduartlo, contra os es-
tatutos da casa, deu dois passos dentro do mosteiro,
e apertou a filha nos braos com tanta ancia e so-

COISAS
luos, que a porteira andou a chamar gente para
Yerem o tocante espectaculo.
sublimes trances, raros na vida, ha mais
raras palavras ainda que os descrevam. O certo
que a filha de Carolina Amelia fui levada em bra-
os para o seu quarto, quebrantada pelo peso da
alegria, e Eduardo Pinto pediu por caridade prio-
reza que o deixasse passar o dia ali, emquanto sua fi-
lha recuperava as foras, portaria do convento
para saber muitas Yezes do seu estado.
O capello, que forosamente de,ia entrevir n es-
tes lances, consultou os seus em regras
monasticas, e auctorisou a prioreza a deixar entrar
aos aposentos da Carlota seu velho pae.
As doenas motivadas pela felicidade so synco-
pes passageiras. Carlota, no dia seguinte, estara
prompta para acompanhar seu pae. O capello, que
se fazia valer muito por ter sido o dilnso assignante
uo jornal que publicara o annuncio, acompanhou-os
para Lisboa. Duas seculares amigas de Carlota fo-
ram tambem. A alegria do velho era tamanha, que
daria a sua immensa riqueza para ver 1oda a gente
feliz.
Quinze dias depois, todos, salvo o capello, sairam
para Paris, onde Eduardo Pinto resolveu fhar a
sua residencia.
Carlota sabia que os seus proteclore? viajavam, e
teve o doce presentimento de encontrai-os em Frana.
COISAS ESPANTOSAS
16;)
XXVII
Nunca Eduardo Pinto perguntou a sua filha o me-
nor episodio de sua mociuaue. Sabia, por lh'o haYer
dito o capito, que ella, depois de uma grande queda,
sp, levautara deshonrada e douda. O amantiEsimo
pae compunha um romance d'esta dupla uesgraa
de sua filha - o romance Yulgar da seuuco, do
a b a n ( ~ - da loucura. A no ser sua propria filha,
quer :;.tfi ::. m Paris contar-lhe o repugnante crime,
cujo ni so a enlouquecera?
O que elle sabia que o filho d'um fidalgo, em
cuja casa ella estivera servindo, encontrando-a, pas-
sados annos, muito pobre e doente, a levra para
casa d'um gallego rico, antigo criado do mesmo fi-
dalgo, e este lhe dera meios para eiJa se recolher
a um convento.
l\liseravel orgulho do homem! Eduardo, se bem
que do corao agradeces3e ao bemfeitor que deu
asylo filha desamparaua, secretamente desejaYa no
se encontrar. c.om o bemfeitor para sua filha se no
ver humilhaua r assim formado este barro, que er-
gue a cabea para o co, e diz que o seu destino
l. Ser, ser: eu desisto de questionar o destino
de cada um; offerece-se-me, porm, cuidar que o co
tem outros objectos, incomparaYelmente mais gran-
diosos que o homem, com que se adornar; por
exemplo: o co, no s o co que 1amben as chagas
de S. Francisco, mas todo e qualquer co que vos
166 COISAS ESPANTOSAS
segue, e ama, e agradece o bocado de po, at morrer
por vs, se lamue morta a mo que lh'o dava. Se o
co estivesse a concurso, o oppositor, que eu mai::;
temia, era <le certo o co.
Tornando aos racionaes, Eduardo Pinto comprou
rasa em Paris, com magnifko frontispicio, e jardim
de muitas raridades da flora. :Mobilou-o asiaticamente,
e serviu-o de criados com suas librs, e pejou os
pateos de carroagens de differentes tamanhos e fei-
tios.
D. Carlota dos Reis foi pouco tempo Carlota dos
Reis.
Eduardo deixra em Portugal os seus agentes
encarregados de comprar um titulo para sua filha.
Quem isto ler, hade pensar que em Portugal se
compram ttulos. Isto um modo de escrever, apren-
dido no artigo de fundo. Os estadistas que dizem
uns aos outros que as graas esto venda, e que
os corretores do cofre so pessoas capitaes da re-
publica. Se elles mentem, sua alma sua palma.
O que sei de pessoas fidedignas que D. Carlota
dos Reis Pinto e Bastos, em galardo das avultadas
esmolas que deu aos estabelecimentos de caridade,
e valiosos donativos com que sobreveio s necessi-
dades do estado, recebeu o titulo de viscondessa dos
Reis em duas vidas, e pouco depois a faxa da ordem
de Santa I s a b e l ~ vinda de Hespanha, no sei por que
servios feitos s necessidades de Hespanha.
Eduardo Pinto manteve-se illeso de habitos, como
COISAS ESPANTOSAS IG7
se a4uelle espirito vulgar pudesse competir em izen-
-:o com os raros heroes, que rrpellem de si os
titulus e as honras que no so honra.
A viscondessa dos Reis captivou a atteno dos
parisienses; mas, como no estava relacionada, o
valor da sua pessoa era meramente extrinseco: maio-
res seriam os reparos e as idolatrias, se soubessem
que estava ali uma viscondessa, uma dama da or-
dem de Santa Isabel, e, sobretudo, o valor de alguns
milhes de francos.
Chegaram cartas de Portugal a Paris recommen-
dando a altos personagens o portuguez Eduardo
Pinto dos Correram espontaneos os hospedes
.. casa do milionario, e elle a todos apresentou a ele-
gante ,iscondessa, que, rm p.ouco tempo de pratica,
fallava a lingua franceza com passageira correco,
e um sutaque mui aos ouvidos parisien-
ses.
J o camarote de Eduardo Pinto era concorrido
de grandes lees, e de lees pequenos; uns, notaveis
senhores por seus avs, outros, por seu dinheiro,
outros por sua industria
Francisco Yaldez, o legitimista ainda emigrado,
porque jurra no consentir que a patria ingrata lhe
carcomesse os ossos, foi um dos portuguezes cha-
mados a honrarem-se nos sales da viscondessa dos
Reis. Levava elle suas filh;-Js, e a cada passo fallava
n'uma, que tinha casado com um portuguez na Suissa.
Abstinha-se, porm, de divulgar-lhe o nome, por-
IG8 COISAS
que a consciencia lhe dizia que o nome de seu genro
no era muito para se dizer a portuguezes.
Uma filha de Valdez, intima da viscondessa, cor-
reu um dia com grande satisfao a dar-lhe parte de
que sua irm estava na volta de Roma, caminho de
Paris.
-Que alegria eu tenho!- exclamava el!a, abra-
ando-se com a liscondessa- tu vers que linda e
que meiga minha irm! Tem quatro filhos, e eu
sou madrinha do mais novo. Se e lia ther outro, hasde
ser tu a madrinha, sim, viscondessa? ... 1\"o sabes?
a minha irm - baroneza, d-me hoje essa parte, e
o pae, como realista, no gostou que ella tenha
titulo. Forte catuirice de meu pae! tomra eu um r
Exclama agora o leitor: aPois o. 1\Ianuel de Castro
est
Tenho o consolador patriotismo de lhe dizer que
est, e no fui eu que o fiz, foi Gregorio Redon-
della, foi o ministro do reino, foram os seus mere-
cimentos, que l constam do decreto, posto que o
decreto, por motivos que passo a narrar, nunca ap-
pareceu no Dia rio do Gorerno mas quem quizer,
Y Torre do Tombo que l o encontra. Torre do
Tombo I bem dado, e prophetico o nome. l"m tombo
assim como aquillo tem le,auo ! onde pode chegar!
Pois ahi vae a historia deste baronnto; e, se v.
ex.a;;. quizerem. conto-lhes, assim mais trinta e duas,
afora outras trinta e duas, que o meu Yisinho me hade
contar.
COISAS
16!}
de Castro dissera uma vez expansiramente
a Augustg Botelho que no podia roltar a Portugal
com o nome com que sara, porque o seu nome
recordaria o facto do seu precipicio a um ahysmo
de infamia irreparavel. Os argumentos de Augusto
no o demoveram do proposito.
Contou Augusto o acontecido a GrPgrio, e este,
depois d'um curto recolhimento ao profundo recesso
dos seus expedientes. disse :
-Se no mais do que isso, diga ao sr. :\Ianurl
de Castro que ha de ir para Portugal com outro
nome.
Disse, e escreveu pelo primeiro correio, estando
em Roma.
Quinze dias depois que escreveu, era expedido
do governo de Portugal ao ministro em Roma o di-
ploma de baro da 1\"obrega para :\Ianuel de Castro
da Aboim, appe!litlos que eu apresento
ao leitor pela primeira vez, e que Augusto desco-
briu n'uma conversao intencional com o seu
amigo.
)lanuel de Castro, ao receber o officio, ficou muito
mais admirado que o leitor, quando eu lhe dei a no-
ticia; mas como a admirao coisa que se gasta,
o novo baro convenceu-se de que o era, e qne j
no tinha evasiva plausi\el para apparecer em Por-
tugal com uma cara muito di\ersa, da que levra,
e um nome_ completamente desfigurado.
E Gregorio 'iu que era optimo tudo o que fizera,
1i0 COIS.\S ESP
e disse entre si, com legitima ufania, que tinha fPito
um baro, e podia fazer quatro, se quizesse.
Ora aqui teem. ::\o h a nada mais correntio que isto.
Admiram-se que Gregorio no seja j de visconde
para cimJ? lambem eu. Ha de confessar-se que o
unico sujeito de perfeito juiso, neste romance, e
estara quasi a dizer n'este inundo, Gregorio, uo
desfazendo em ninguem.
XX.YIII
A ultima ,-ez que Augusto escrevrra a Carlota
fra de Genebra, incluindo a carta n'outra a Grego-
rio. Contava-lhe a intimidade em que ,-hia com uma
famlia portugueza, que habitava no logar mais for-
moso do mundo. Dizia-lhe que se deteria tres mezes
naquelles sitios, e depois iria ltalia, e, tornando
por Paris, recolheria a Portugal, onde o chamaram
saudades dos seus verdadeiros amigos.
Carlota, quando saiu do convento, escrereu a Au-
gusto, dirigindo a carta para Genebra. Pediu ao pae
que a fizesse chegar ao seu destino, e Eduardo
Pinto, conhecedor da inteno louravel c.la carta, fez
que ella fosse na mala da legao.
Quando a carta chegou Suissa, j Augusto e as
outras familias portuguezas tinham sado para alta-
lia . .\ pessoa, que de Paris fra encarregada de en-
tregar a carta a Augusto, achou mais seguro
P esperar que o viajante voltasse.
COISAS ESPAI'\TOSAS
171
Quando recolheram, com inteno de descana-
rem, e continuarem para Paris, .\ugusto recebeu a
carta, na qual Carlota extensamente lhe contara a
vinua ue seu pae, trinta annos ausente, a sua sada
do convento, os extremos de affecto co_m que era
tractada, a inutil riqueza de que se Yia rotleada, e
a sua proxima iua para Paris, onde o pae queria
resiuir. Terminava Carlota pedindo-lhe a elle, e aos
seus bem-feitores que, ao passarem por Paris, lhe
<lessem occasio de lhes pagar com reconhecidas
lagrimas o bem-fazer que lhes deria.
Augusto communicou a carta a Gregorio e
pedindo-lhes que no proferissem uma palavra a tal
respeito diante de l\Iauuel de Castro, que j a esse
tempo era Laro da Nobrega.
Andava Augusto scismando no modo tle desriar
o baro de Paris, propunha-se jornatlear por outras
mas a baronez:l, que desejma ver a sua
famlia, quando tal proposta ouriu, pela primeira
vez na sua vida sentiu odio a quem tal propunha.
Alm disso, j ella linha arisauo os seus, e com tanto
contentamento, que seria amargurai-a sem preciso
o desviarem-na do seu destino.
-Que razo ha, sr . .Augusto, tlizia o baro, para
que no ramos a Paris?
Augusto no sabia com que a resposta.
Na correnteza destes successos, recebeu
uma carta de sua irm mais nova com o seguinte
periouo:

17::! COISAS
Vem depressa, que eshi aqui a mais amavel crea-
lura do mundo, portngueza, muito linda, da tua
aedade, e Yiscondessa . .Amamol-a todas como ir-
m, e ella j te quer como a ns. Eu j a comi-
<(dei para madrinha do teu quinto filho. Estou morta
que o tenhas. Os elegantes andam todos a traz d. ella,
a que de mais a mais millionaria. Estou a Yer que
aesse rapaz portuguez, que anda comYosco, se apai-
xona por ella, e o p(!p j disse que talvez fosse
um optimo marido para alguma de ns. te de-
amores, comadrinh3. Estou anciosa por devorar com
beijos a minha afilhada.
A baroneza, com o riso nos labios, mostrou esta
carta a .Augusto, e disse-lhe:
-O:he l se vae pela viscondessa ...
- possivel, mi:1ha senhora- respondeu Au-
gusto. -Quando se vae de Italia, lera-se o corao
cheio de amor.
Partiram para Paris. D. Rosa adoeceu no cami-
nho. Pobre senhora! nunca tivera tanta saude como
quando se deitra na cann doente... Que absurdi-
dade f diz o leitor. Parece: mas outra coisa. Au-
gusto, receiando que Carlota, sabedra na legao
da morada de Gregorio, os fosse procurar, e neces-
sariamente ahi encontrasse de Castro, pen-
sou no modo de se adiantar a prevenikt, e s achou
expediente na simulada doena de D. Ros. Disse
elle ao IJaro que se no detivesse com sua mulher
espera da convalescena da inferma; o uaro, ,po-

COISAS E S P A ~ T O S A S !73
rm, contra vontade de sua mulher, sacrificou-se ao
dever de esperar. Isto queria .Augusto, e logo apro-
Yeitou o azo para se antecipar dois dias de jornada,
e ter em Paris tudo pmmpto chegada da famlia.
Pareceu ao baro pueril a pressa; mas no a con-
tradisse, intendendo que Augusto era moo, e queria
aproreitar alguns dias de desassombrada liberdade
em Paris.
-BPm o intendo, magano! .. -disse elle ao ouvido
do seu amigo.- Y, e viva dois annos em dois dias.
Desforre-se da vida anachoreta do clwlet do lago.
Partiu Augusto, e chegou a Paris. Foi legao,
e perguntou por D. Carlota dos Reis. Xinguem lhe
soube responder. Foi ao theatro da opera, sem leYes
esperanas de encontrai-a; correu inutilmente outros
theatros na mesma noite, e voltou ao outro dia a in-
dagar na legao, contentando-se com achar algum
appellido, que indiciasse o pae de Carlota.
De feito, encontrou um tduardo Pinto dos Reis.
-Deve ser este, disse elle.
-Esse o conhecido em Paris pelo negreiro, e
pae da Yiscondessa dos Reis, que naturalmente
a Carlota que o senhor procura -disse-lhe o secre-
tario da embaixaa.
Com o nome da rua, e numero da casa, foi Au-
gusto dar ao Yasto perystilo d'um palacio. Fez-se an-
nunciar, e esperou na sala um alentado homem de
bigodes brancos, que disse ser o pae da sr. li con-
dessa dos Reis, que ia j entrar.
I
COISAS ESP .\..i"iTOS.\S
Surgiu no limiar a deslumbrante senhora, que seis
annos antes Augusto vira sentada no cho terreo,
comendo codeas de po amollecidas em agua.
A viscondessa recebeu o filho de Ignacio Botelho
nos braos, e beijou-o na fronte, exclamando: meu
filho!
Eduardo Pinto enrugou o sobrlho, e pareceu-
lhe grande desenvoltura o acto.
-Fui eu que o ensinei a fallar, meu pae!-
acudiu ella, adivinhando o animo do velho.
-A amisade e a gratido- replicou o pae-
tem mil outras maneiras de se manifestar.
EJuardo era duas vezes sei vagem: uma pelos
sertes, onde vivera vinte e tantos annos, outra pelos
milhes que trouxera das selvas.
Augusto arrefeceu diante d'aquelle caracter de
ferro, e no atinou com o que devia dizer. Perdidas
as esperanas de poder fallar a ss com ella, o moo,
recordando-se da carta da irm de 1\Iathilde, disse
abruptamente : _
-A senhora viscondessa conhece em Paris, uma
familia portugueza, cujo chefe Francisco Valdez?
-Perfeitamente: sou amicissima das pequenas.
e meu pae muito amigo do velho. Agora esto el-
las esperando a Laroneza da 1\"ohrega, que vem de
viajar na Italia. O sr. Augusto conhece esta fami-
lia?
-Conheo a foi minha companheira
de viagem, e chega aqui depois de amanh.
COISAS E S P A ~ T O S A S
-Sim? oh! que alegria vae ter a familia !. .. Va-
mos todos esperai-a.
Augusto impallideceu visivelmente.
-Est incommodado, sr. Augusto?! que mu-
dana de semblante lhe notei!
- verdade!- ajuntou o velho.
-So padecimentos instantaneos, minha senhora.
Um instante de repouso me basta.
- Descance. Encoste-se a essas almofadas- llisse
Eduardo, fazendo passar Augusto da cadeira ceri-
moniosa para os fofos dum diwan.
-Peo o favor de uma gota d'agua.
Eduardo passou sala immediata para chamar
um criado. Apenas elle desappareceu, Augusto disse
precipitadamene viscondessa :
-Olhe que o baro da Nobrega Manuel de
Castro!
Carlota expediu um grito, ergueu-se convulsa, e
mal se ergueu, caiu no mesmo soph, sem sentidos.
Acudiu o velho ao grito, viu sua filha sem cr de
vida, e exclamou:
-Que foi isto?
Auguso tartamudeou :
-Um accidente subito da sr. a viscondessa ...
-No creio em accidentes subitos- replicou o
velho colPrico, com a face e olhos chammejantes-
Que disse o senhor a minha filha?
-O que no pode ser dito a v. ex. a- respon-
deu Augusto serenamente.
,
ii6 COISAS ESPANTOSAS
Appareceu ento o criado que elle fora chamar.
Euuardo, inuicanuo Augusto, disse ao criado:
- _\.comp:mhe aquelle senhor at ao pateo.
O filho do fidalgo transmontano sorriu, e mur-
murou:
-Podia v. ex.a obrigar-me a uma sada menos
pacifica. Agradeo-lhe esta.
- Que diz o senhor'!- replicou o velho.
-Que se enganou comigo, sr. Reis. B.om ser
que v. ex.a ignore sempre o que eu vim aqui fa-
zer; mas, se o souber, convena-se de que est per-
doauo.
E saiu, quando Carlota se agitava vertiginosa nos
braos do pae.
XXIX
Horas depois, entravam duas filhas de Francisco
Valuez, anuunciando que a Laroneza chegava no dia
seguinte.
J ento a viscondessa estava no leito, respon-
dendo com soluantes gemidos s instantes pergun-
tas do pae.
Felizmente, entraram as meninas. Carlota compoz
o rosto, enxugou as lagrimas, e recebeu-as sentada
no leito.
-:\o posso acompanhar-vos a esperar vossa ir-
m- disse a viscondessa -estou doente, prostrada,
no posso comigo.
--H as-de ii', filha- disse carinhosamente o pae
COISAS ESPA:\TOSAS Iii
-Por isso mesmo que um passeio de carroagem
te lla de ser util.
-Pois, sim, eu verei se posso ir- disse Carlota,
obedecendo a uma inspirao luminosa- Querem
vosss ir dar agora um curto passeio comigo?
- Yamos!- exclamaram as meninas.
pae, manda sair uma
- You j, e eu heide acompanhai-as. filha
est com feies de louca.
-De louca, meu Deus! -bradou com transporte
Carlota, lembrando-se dos quatro annos no hospital
-De louca! Estarei eu dou da outra vez!?
As irms de atterraram-se da exclamao,
e o ,elho, estreitando a fillla ao seio, disse muito
commovido:
no, meu anjo. Isto foi um dito impen-
sado. Tu soffres muito, seja pelo que for; mas no
tens sigaes de louca.
Estava a carroagem espera. Carlota lanou um
c baile sobre os hombros, ennastrou os cabellos desa-
linhados, saiu com um lanar d'olhos sinistro, des-
ceu as escadas osciHante, relanceava a ,ista penetrante
para coisas insignificantes em que nunca reparra, e
entrou na carroagem machinalmente.
E o pae ia limpando as lagrimas, emquanto as
filhas de Francisco Yaldez se encaravam assombra-
das.
A carroagem chegou aos campos Elysios, e rece-
hen ordem de rrtroceder para casa de Yaldez. Fra
12
t78
COISAS ESPA:STOSAS
Carlota que dera a ordem n'um IJrado, que arrepiou
os cabellos ao relho. J para elle era como certa a
reincidencia na loucura.
Apearam. Carlota pediu para ficar a ss com a
mais velha das meninas, e disse-lhe:
-Est em Paris um rapaz portuguez chama <lo
Augusto Botelho. Preciso fallar com elle em tua casa,
se no morro, ou mato-me. Sae na minha carroa-
gem a procurar, por meio da embaixada, onde elle
mora. Vae tu mesma procurai-o. V se o introduzes
n'um dos quartos da tua caza, sem que meu pae o
saiba. Se me queres salvar, no te demores um ins-
tante.
A perturLalla menina saiu immelliatamente.
Elluardo ouviu o rodar do seu trem, e perguntou
se alguem rnandra os criados embora. Carlota res-
pondeu:
- Emprestei a carroagem minha amiga para
ella ir fazer compras.
Eduardo, com quanto muitas vezes emprestasse
a sua carroagem a Valdez, enfiou com a resposta,
e sentiu que aquella partida tinha relao com Au-
gusto.
A irm de :Mathilde voltou uma hora depois. A
viscondessa correu anciosa ao encontro d'ella, como
se seu pae lhe no visse o arrebatamento.
Em todas aquellas aces nas palarras
desconnexas que dizia, no olhar errante e torvo com
que parecia querer penetrar a inteno de quem lhe
COISAS ESPANTOSAS 179
fallava para distrahil-a, era tudo ameaas terriveis
da demencia ; ella mesmo sentia j o peso das trevas
sobre a razo.
A senhora, que voltava com aspecto affiicto, disse:
- Fallei-lhe.
-E ento?
-.Ko vem.
-Como? no vem?
-Escreveu este bilhete. L.
Era uma carta lacrada.
Dizia assim :
Tranquillise-se. Eu vou fazer agora o que j
devia ter feito. You encontrar-me com*** Farei
que elle no entre n'essa casa. Como, no sei. Te-
nho confiana n'elle. Eu ia pedir-lhe a v. ex. a que
saisse de Paris, por que vae para Portugal.
c tarde. Era preciso que seu pae soubesse tudo.
Quem lh'o dir? Adeus. Creio que no a verei
mais. Reputo-a desgraada. A sua felicidade ficou
c no mosteiro de E v ora.
-E no vem ? - exclamou Carlota.
-Pois elle no t'o diz?-observou a amiga.
-E perdi o anjo da minha redempo? bradou
com mais fora.
A estes g r i t o s ~ acudiu o pae, perguntando que
papel era aquelle.
Carlota concentrou-se, esteve quda e silenciosa
alguns segundos, dobrou o papel, fechou-o na mll
direita, e murmurou:
.

COISAS
-A minha felicidade ficou no mosteiro de Evora ...
preciso que eu Y procurar a minha felicidade no
mosteiro de Erora ...
-1- Que dizes, minha filha?- balbuciou o pae com
intranhaYel paixo.
-Lere-me, por piedade, ao comento d' onde me
tirou!
-Jesus ! - exclamou o velho, abraado com
Francisco Yaldez- a minha filha est douda!
Isto foi dito ao ourido do fidalgo, que o chamou
ao seu quarto.
-Oua-me, disse elle, aqui ba amor contrariado
em sua filha.
-Amor?!
-Sim. V. ex. a deYe saber o que deu causa a isto.
- Pde p de ser... amar ella Augusto?
- Quem esse Augusto ?
- um portuguez, que boje a procurou, e disse-
lhe palavras, que a deixaram n'este estado.
-Ahi tem, sr. Reis. Adivinhei. Salre sua filha:
deixe-a casar, que eu tambem deixei casar a minha
com um homem de reputa1o perdida, para salYal-a.
E esse homem boje o baro da Xobrega, mais
que baro, titu!o que eu cordialmente detesto-
mais que fidalgo, porque honrado. Deixe-a casar,
meu amigo.
ena nunca me disse que amava ta] homem!
-O verdadeiro amor assim: retrahe-se, quando
o r mata .

COISAS ESPANTOSAS 181
D-me licena que eu chame aqui sua filha, sem
testemunhas ?
- Eu lh'a trago: salve-m' a custa seja do que for.
Foi Carlota, guiada pelo pae, ao gabinete de Fran-
cisco Valdez.
- Sr.a viscondessa, reanime-se. Adivinhei a sua
dor : tem um excellente pae. Quero ver o seu co-
rao a sorrir nos olhos. Tem licena para casar
com Augusto.
Carlota abriu uma ,ista estupida, e fez um gesto
de labios como quem attenta para ouvir palavras
que no intendeu.
- Que ?- disse ena.
-Seu pae consente que v. ex. a case com Augusto.
-Com Augusto?- tornou ella- Augusto Bo-
telho?
-'Sim, com Augusto Botelho.
-)leu pae disse isso? Eu casar com Augusto!
eu r a Carlota r a pobre Carlota r casar com a crean-
cinhar
Valdez no sabia j qual dos dois era mentecapto.
se o pae, se a filha! Pois se Augusto era uma crean-
cinha, como pde o velho suspeitar que a filha o
amasse at loucura'! Se era um homem feito, como
podia a 'iscondessa figural-o creana? Ao parecer
de Francisco Valdez, um dos dois era doudo Yarrido,
e no havia que fazer da razo perdida da viscondessa,
se ella tinha o dom de fazer creana o homem por
quem se apaixonra.
COISAS
A segunda parte do raciocnio era racional.
Carlota j no liga,a idas, nem palauas com
sentido. As senhoras da casa chora,am, vendo-a rir.
Eduardo escondia-se para que a filha o no ouvisse.
Os medicos entravam chamados a um tempo por
differentes criados. Encaravam a febril que
nem se quer dava por elles. diziam, nenhuma
esperana dafam. Ouviam-na fallar de sangue nas
escadas, das agonias do moribundo, do cofre rou-
bado; e de tudo concluram que se apagra a luz
d'aquella formosa lampada, que to funda tristeza
fazia nas trevas.
XXX
A cinco I eguas de Paris, encontrou Augusto as
duas familias. A baroneza, ao v-lo, cuidou que a
sua gente viria perto. Augusto ia triste, livido, e
com um pensamento atroz grafado na fronte.
Na primeira estao em que pararam as carroas,
o filho de Ignacio Botelho chamou de parte o baro
da Nobrega, e disse-lhe :
-0 meu amigo vae sacrificar-se salvao de
Carlota dos Reis.
-Carlota!- exclamou o baro-onde est essa
mulher?
-Carlota a viscondessa dos Reis, a amiga in-
tima de suas cunhadas. Esta mulher, se o vir, volve
demencia, e d ao mundo a historia esquecida das
suas desgraas.
COISAS ESJ ANTOSAS
1\lanuel de Castro ouvia-o com uma estranheza de
idiota.
-Possue-se bem do que eu lhe digo, sr. ~ M a n u e l
de Castro'! preciso que Carlota dos Reis no diga,
douda, sociedade de Paris que allianas v. ex. a
teve com ella. Perdida a razo, o mundo ha de per-
guntar o mysterio, e o mysterio fallar pelas mil
, .
boccas do escandalo. E preciso que v. ex. a engane
sua senhora. Que, a distancia de Paris, se afaste co-
migo para um pretexto que eu lhe indicarei. Sua
senhora vae para casa dos seus. V. ex. a vae para
Portugal, sem entrar em Paris. Ir s costas da Bre-
tanha esperar que saia um vapor. Eu, e Gregorio
e D. Rosa, lhe conduziremos a senhora para Lisboa.
-Pois foroso que eu deixe minha mulher e
meus filhos? I -replicou )lanuel de !:astro -1\o
posso eu existir em Paris sem me avistar com essa
senhora?
-No, sem que o seu mesmo desvio d margem
a que tudo se saiba. A familia de sua senhora vive
mais em casa da viscondessa dos Reis que na sua
propria. O senhor bade necessariamente explicar a
razo porque se esconde. Carlota tem pae, sr. baro;
e, pela amostra que eu tenho do seu caracter, penso
que lhe menos cara a vida que o prazer d'uma
affronta a quem lhe causou todas ou parte das des-
graas da filha. Para que estou eu a canar-me com
argumentos, quando o tempo nos foge? ! Definiti-
vamente, vae v. ex. a para Portugal?
18\ COISAS ESP
de Castro apertou a mo de Augusto, e
disse:
-O que quizerem de mim. 1\"o discuto: obe
cleo. Guio-me por uma cabea de creana; mas res-
peito a sua inteno, que nobre.
Voltaram ao grupo que os esperava com espanto
de to longa pratica em segredo. Em poucas pala-
Tras disse Augusto ao baro qual seria o pretexto
para se retirar, perto de Paris. O baro explicou a
sua mulher o motivo simulado da secreta conver-
sao com Augusto. Este, entrando na carroa de
Gregorio, contou exactamente as coisas como ellas
se passavam.
O bom do Gregorio espantando-se de tudo, no
se espantou nada de ver Carlota viscondessa.
Tinham andado um tero do caminho, quando
:Manuel de apertando estremrcidamente a
mulher ao peito, murmurou em palavras que mais
eram gemidos:
-Eu menti-te, :\lathilde. :\"o ha duello algum de
que eu deva ser testemunha. O que ha uma bor-
rasca eminente nossa felicidade de oito annos.
Parece que a fortuna se canou de nos bafejar. Aju-
da-me a conjurar a tempestade, filha. Vamos pro-
curar a bonana no doce remanso que imlirecta-
mente deixmos.
-Que , Castro, que tens tu?- Atalhou tres
vezes ::\lathilde no breve espao d'aquellas palavras
-Diz-me o que queres que eu faa ...

COISAS ESP.-\.1\TOS.\S
f8;j
-Que voltemos d'aqui mesmo para a Suissa.
-Pois ... -balbuciou aturdida a baroneza.
-A viscondessa, em que tuas manas te faliam,
Carlota, a Carlota que ...
- Ah! - )lathilde, e logo bradou ao
conductor: - Pra !
-Queres dizer que voltamos, filha?- accudiu
Castro.
-Sim, quero !... voltemos. Bem hajas,
que foges, e me poupas a grandes dores. Deus
que me inspira. :\las eu posso ver a nossa familia.
l\linhas irms devem de estar perto daqui. Espe-
remol-as, deixa-me abraai-as, quero Yer meu pae
ainda uma vez, e depois ... Oh! j no tenho sau-
dades seno da nossa casinha, e da quietao de
esprito que j no sinto!
Aproximara-se o carro de Gregorio.
O baro tinha apeado, e combinado com o cou-
ductor o retrocedimento.
-Que ba?-perguntou Augusto.
- Ha que vamos dar o abrao da meus
caros amigos. Os senhores seguem para Paris, eu
,-oito para o lago de Genebra com minha famlia.
-Ento como isso?- disse Gregorio atalhado,
-em quanto D. Rosa abria a bocca na sublime ex-
presso do seu espanto.
- a preciso de agarrar a felicidade que nos
quer fugir- disse o baro.
Augusto Castro, e disse-lhe :
186 t.;OISAS .ESP A:\TOSAS
-E' um grande passo, meu amigo. me
atrevi a propor-Ih'o, porque pensei que sua senhora
se indignasse contra um alvitre, que a privava da
famlia, de Paris, e da patria. Se sacrificio que fa-
zem, vero como a ventura os galarda.
Detiveram-se um quarto de hora quasi silencioso.
l\lathilde esperava, e no desfilava os olhos do
borisonte da estrada.
-So ellas! - exclamou- devem ser minhas
irms.
E eram. Vinha eom ellas o velho Valdez.
Apearam, e enlaaram-se todos n'ummesmoabrao
em redor de e do marido. A mais velha,
vendo Augusto, ficou atonita; e mais ainda notando
que elle fingia no conhecel-a.
-Vamos para Paris, que so horas -disse Vai-
dez. -Os meus filhos, que vem canados da m
locomotiva, entram na carroagem, e vero o que
regalar-se o corpo. 1\"o euidem vosss que eu
j tenho d'estas equipagens! A carroagem de
Eduardo Pinto ...
-Eduardo Pinto - acudiu a mais nova das me-
ninas - o pae da viscondessa.
-Da viscondessa? ... da Carlota? ... - atalhou
thilde.
- Sim- disse o pae- que por signal est douda.
- Douda? ! - exclamou Augusto, e Gregorio, e
D. Rosa simultanoomente.
A irm mais velha de Mathilde poz os olhos em
COISAS ESPAl'iTOSAS 187
Augusto, e d'um modo que parecia dizer-lhe : ~ ~ tu
foste a causa !
-Porque endoudeceu ella?- perguntou a ba_
roneza.
-Amores-respondeu o velho.
-A h I sim ? - tornou 1\lathilde - Amores a
quem?
-A um tal Augusto Botelho, que nenhum de ns
conhece.
E todos, salvo o velho, convergiram os olhos so-
bre Augusto, que entre-abriu nos labios ro'-os um
sorriso indiscriptivel.
-Ora essa de cabo de esquadra! -disse Gre-
gorio que ainda no tinha fallado.
Francisco Valdez, como achasse nimiamente ple-
bea a phrase, levou a enorme luneta de caixa de
tartaruga ao olho direito, e disse ao interruptor:
-Ainda me no apresentaram este cavalheiro,
que me promoveu a cabo de esquadra.
- um meu amigo- disse Castro -l.Jm homem
cujas pala\Tas so inoffensivas.
- Ah! so inoffensivas? ... mas parece que duvi-
dou com certos ares de zombaria que a viscondessa
amasse um tal Augusto Botelho ...
- ~ o s duvidou, mas nega, sr. Yaldez- tlisse
Augusto- Eu apresento-me a v. ex. a como Augusto
Botelho.
-O senhor?! pois o senhor a pessoa?! Oh!
queira perdoar ... Eu disse isto por me parecer que
t88
COISAS ESPA:"tTOS.\5
a opinio do meu amigo Pinto dos Reis devia valer
alguma coisa.
-0 sr. Pinto dos Reis enganou-se, retorquiu Au-
gusto.
-Pois peo perdo, se fui indiscreto ... )las a
gente no fica a discorrer agora na estrada. Vamos
a caminho.
-0 nosso caminho termina aqui-disse Castro.
-Como? ! -tornou confuso o velho.
- Retrocetlemos para nossa casa, sr. Valdez.
-Pois a minha filha que me tinha dito nas suas
cartas?!
- )ludmos de parecer, meu pae- respondeu
)lathilde.- X outra occasio, cumprirei a minha pro-
messa. E tenha. o pae a generosidade tle nos no
pedir explicaes.
-Fazem-me doudo!- interrompeu o velho-Se a
minha auctoridade alguma coisa na vossa vontade,
mando que Yenham para Paris, ou que se e:xp1iquem.
- ~ l i n h a mulher disse tudo o que podia dizer.
Espere Y. ex.a que o mysterio se esclarea mais
tarde-redarguiu )IJnuel de Castro.
Seguiram-se supplicas das irm":is; m:ts o espanto,
a tristeza, e as lagrimas eram o essencial do quadro.
Detiveram-se ainda minutos em despedidas; a final,
)lathilde arrancou-se aos braos das irms, e saltou
carroa ; o marido acommodou os filhos e a ve-
lha criada de sua me; apertou a mo de Augusto,
de Gregorio, de todos, e mandou voltar o carro.
COISAS ESP ANTOS.\S 189
XXXI
Horas depois que chegaram a Paris, foi Augusto
procurado no seu hotel por Eduardo Pinto.
Preparava-se o moo para algum desatino do ve-
lho; e Gregorio, adivinhando-lhe o sobresalto, quiz
assistir recepo do visitante, desejo que Augusto
delicadamente contrariou.
Eduardo entrou manso e urbano. Revelava dor
affiictiva, e mal seccas as lagrimas. Comeou fal-
l::mdo, e os soluos embargaram-lhe a voz. Contor-
cia-se em silencio, ora escondendo o rosto nas mos,
ora recurvando-as sobre as fontes em anciado phre-
nesi.
-Que immensa dor a sua, sr. Reis f - disse
Augusto-sei a causa. Sua filha sofire muito ...
-No soffre- balbuciou o velho- no soffre ;
eu que morro ... Minha filha endoudeceu : est ir-
remediavelmente perdida.
-Perdida, no. A sr. a viscondessa, j depois
que esteve alguns annos douda, teve um novo ata-
que; mas, graas ao repouso do esprito, e aos
cuidados da sancta gente, que nos amparou a am-
bos, sua filha rec.obrou o juizo, e em tres annos
no experimentou o menor desconcerto de razo.
Tenha algumas esperanas, senhor, que eu tenho-as
todas.
Hranimou-se o aspecto do velho.
i!) O
COISAS ESPA:'iTOSAS
-Tem esperanas, o sr. Augusto?- disse elle
com alegre ar.
- Tot.las. Sua filha em que estado ficou?
-Prostrada; mas os accessos so terrveis ... Ve-
nha vl-a, venha comigo, talvez que ella, ouvindo
a sua voz, se tranquillise... E perdoe-me a alluci-
nao com que o tractei em minha casa ... Este amor
de pae um castigo, um inferno que eu tenho em
vida! ... Se o sr. Augusto me dissesse logo os sen-
timentos de minha filha, os affectos que os pren-
diam ha tantos annos ... Porque m'o no disse? por-
que hesitou em confessar que amava minha filha? ...
- Eu, senhor! ... - interrompeu Augusto- con-
fessar-lhe que amava sua filha!... Quem poderia di-
zer a f. ex.a que eu amava a sr.a D. Carlota em
tempo algum?
- ~ i n g u e m m'o disse ... n i n g m ~ m ... foram as la-
grimas d'clla ... mas, meu Deus! que lhe diria o
sr. Augusto para que ella desde esse momento
nunca mais me parecesse a minha am::1da filha? ...
Foram ciumes? Desconfiou o senhor que ella amava
outro homem? )lentiram-lhe, mentiram-lhe, pela
minha honra lh'o juro. Coitadinha! ia ao theatro
porque eu lhe pedia que fosse; ia aos passeios por-
que eu ia soberbo com ella ao meu lado. Por amor
d'ella que eu amava a riqueza; pensava em fun-
dir montes de ouro para lhe levantar um throno,
onde todas as mulheres a invejassem... E agora,
douda. perdida. sem remedio r Como Deus castigou
COISAS E S P A ~ T O S A S 191
o meu orgulho, que eu julgava digno de que o
mundo m'o respeitasse ... sr. Augusto, se Y que
a podemos salvar, diga-me como, ajude-me a recu-
perar-lhe a razo, porque nossa, um corao
que ali temos ambos, e morrer para ambos, se a
razo lhe no Yolta!
Pareceram a Augusto intempesti,as as explica-
es, que azedariam accrbamente o corao do in-
feliz pae. Deixou-se suppor o amante e o amado de
Carlota, vendo que a supposio nenhum desaire
nenhum dissabor podia trazer a algum dos dois,
emquanto o velho ignorasse que sua filha tinha sido
a concubina de Ignacio Botelho.
E porl]ue no havia elle de ignorai-o sem-
pre!. ..
Acompanhou-o Augusto, consolando-o com espe-
ranas no mentidas, porque elle as tinha quasi como
realisadas, pelo muito que fiava do affecto que Car-
lota lhe tinha mostrado, durante a sua residencia no
mosteiro d'Evora.
Conduzido pela mo de Eduardo, entrou Au-
gusto no quarto da viscondessa.
Estam ella com dois medicos cabeceira, e a
sua criada grave, limpando-lhe o suor da face.
Os medicos tinham ordenado uma sangria; mas
a doente repuxava o brao, quando brandamente
o tomavam para o lancetarem. Esperava-se que o
pae Yiesse, para lhe pedirem licena de emprega-
rem a fora.
192 COISAS ESPAi'iTOSAS
Ouvindo Augusto a pergunta, e vendo a vacilla-
o tle Eduardo, disse :
-Parecia-me que se reservasse esse recurso para
outra hora. Por emquanto, no.
Accedeu promptamente e pae, e os medicos sa-
segredando-se na ante-camara: =
-O rapaz l sabe como a h ade curar, e pde
bem ser que ns sejamos mais doudos que ella, por
a termos C3pitulado douda ...
Augusto criada que se retirasse. E Eduardo
seguiu a criada, quando Augusto, enleatlo
sem atinar com o melhor modo de o convidar a
deixai-o s com ella, mostrou a tunao no rosto.
era sempre o pae cioso do amor da filha!
amor, que bem definitlo estava por elle- inferno
em vida. No se afastou para longe: deu uma curta
,olta, e foi collar o ouvido fechadura d'um gabi-
nete de banho, contguo ao quarto.
Augusto apertou a mo de Carlota, e disse-lhe:
-:\linha amiga, ouve-me?
Abriu ella os olhos paridos, reconheceu-o, e sen-
tou-s no leito com movimentos rapidos e descom-
postos.
- Conrersemos tranquillamente, sim?- tornou
Augnsto- Imagint:mo-nos na grade do convento de
E\ora. minha amiga est costurando um peito da
minha C3misa, emquanto eu lhe leio o o:Eurico.
A viscondessa sorriu, a acenou affirmativamente
com a cabea repetidas vezes.
COISAS F.SPA:"tTOS.\S
-Est mais socegada. Rl'Conhece no homem
grave que lhe d conselhos, a creana a quem en-
sinou a fallar. Se a minha amig3 no sente ao p
tle mim a serenidade de esprito que eu espero ver-
lhe, ento, lwide acreditar o meu pouco poder em
sua alma.
Carlota soltou uma estridente cas4uinada de riso
e recaiu subitamente n'uma atrophia de rosto cada-
Yerica.
Augusto compoz-lhe as almofadas, e recostou-a.
Tocou uma campainha, e logo accudiu o velho:
-Sua filha tem - disse Augusto.
ha duas noites.
-C ma simples bebida para obrigai-a a dormir
o 4ue primeiro precisamos. Lembra-me que, na
recada que teve ha quatro annos, a primeira appli-
cao foi uma opiala.
D"ahi a pouco foi Augusto ministrar-lhe a bebida
diante de seu pa. Chamou-3, chegou-lhe o copo aos
Leios, e ella, com os olhos fitos n 'elle, bebeu-a at
ultima gota.
Quebrantou-a o narcotico. Dormiu profundamente
algumJs horas, e, no emtauto, .Augusto saiu para
encurtar a anciedade de Gregorio e Rosa.
Passadas horas, estava porta do hotel uma car-
roagem de Eduardo, e um bilhete que o chamava.
-Assim me Deus salve- disse Gregorio- que
eu no sabia que o menino tinha estudado para me-
dico!
13
COISAS ESP.\:\'TOSAS
D. Rosa veio com uns bentinhos de Se-
nhora do Carmo, e tlisse-lhe:
-Olhe, meu filho, bote-lhe isto ao pescoo.
Augusto acceitou os bentinhos; a philosophia
tleixou-os ficar esquecidos na algibeira.
XXXII
Carlota, ao despertar, chamra Augusto. Acer-
cra-sc o pae do leito ; e a filha, beijando-lhe as
mos, repetiu, como interrogando: a
-Yem j, filha, vou mandai-o chamar.
E mandou sair o trem, em quanto escrevia a carta.
Quando voltou ao quarto, a viscontlessa estava em
p, e murmura,a dialogando comsigo propria : Elle
lia-te o Eurico, e tu bispontavas o peito tia camisa,
que elle honlem Yestia. Hontem! foi hontem? quando
foi que eu vi Augusto?
-Foi ha tres horas- respondeu o pae.
Carlota aconchegou do seio o corpete do seu ca-
saco de veludo e deu lao aos cordes,
com o afgo de quem surprehendida em trajos
deshonestos.
-Porque no te deitas, filha ? -continuou o pae.
-Deitar-me?!
-Sim, que ests a cair de fraqueza.
-Pois no vamos para E v ora ?
O ar, com que fez a era j socegado,
clara a luz dos olhos, e compostas as feies.
COISAS E S P A ~ T O S A S f9:J
-E queres ir para Evora, para o convento, Car-
lota?
- Xo me disse Augusto que eu tinha l deix:1do
a minha felicidade?
O velho, cuid:mdo que a sisudeza d'estas falias
era signal de restaurao de juizo, cedeu amora-
vel impaciencia de perguntar-lhe se amava Augusto.
-Se o amas, filha, durida tens que eu o amarei
tamuem?f
Carlota estiemeceu n'um calefrio, e clamou:
-Eu amai-o! .. O pae no sabe o que diz! . Isso
atroz, impossvel, horroroso r
-No , filha t-atalhou o pae enleado. Embora
tenha menos doze annos que tu, se tanto , que im-
possiuilidade ha para que seja teu marido?
-Oh! cale-se por pieuade!---'- exclamou muito
agitada, como a querer fugir da presena do pae,
que a retere.
Seguiu-se um anciado silencio de ambos, que du-
rou at ao momento em que entrou Augusto.
Saiu o velho ante-camara a recebei-o, e disse-lhe:
-J pensei que a tinha salva; mas foi illuso
passag('ira. Fez-me perguntas sensatas, e respondeu
serenamente s minhas. Depois, quando eu lhe dizia
que acceitasse o seu amor, que eu de modo nenhum
contrariava, desatinou, exclamando que o cazarem-se
era impossvel, horroroso, e atroz t E pediu-me que
por piedade me calasse ...
-E eu lambem por piedade lhe peo que se
196 COISAS
cale -interrompeu Augusto, entrando no quarto
da viscondessa.
Tomou-lhe as mos, e disse :
-Passou a nuvem ?
Carlota sorriu, e disse com rapida mudana para
rosto amargurado :
-Que feito dQ meu Eurico? Quando te verei,
meu liuo queritlo, no quarto to lindo do meu con-
vento! ... Aqui tudo oiro, sr. Augusto. L, era tudo
flores. Tantas jarras que o senhor me dava, e tantos
ramos que as freiras andavam colhendo sempre para
mim. Ai! que saudades!.. que saudades! ..
E rompia em pranto, que Augusto acintemente
lhe desafiava com as recordaes do convento.
O melhor medico <lo espirito ser aquelle que
maior poro de intimo fel diluir em lagrimas.
Por latgo o corao da inferma obedeceu
presso de .Augusto. Parece que a pelle do rosto
d'ella, ao contacto das lagrimas, se ia retingindo da
cr suave, que tivera tres dias antes. As pulsaes
regularisavam-se ; e a placidez do olhar era para
Augusto, que a vira n'outra egual crise, a evidencia
da cura.
-Est passada a borrasca! -exclamou elle, aper-
tando as mos do pae e da filha -Alegre-se, mi-
nha senhora, da alegria que d aos seus dois ami-
gos, um como pae, e outro como irmo. Quando
quer v. ex.a ver o bom Gregorio, e aquella santa
mulher, que nos quer tanto?
COISAS ESPA.."\TOS.AS
1!)7
-Onde esto? ! -disse Carlota.
-Em Paris.
-Em Paris ! ? esto, e no os vejo ! ? Oh meu
pae, pois no sabe que tudo devo a .Augusto e a
elles?
-Sabia; mas ignorava que essas pessoas esti-
vessem c.
- sr. Augusto, poderei eu ir vel-os?
-Pois no pode, minl1a senhora? Seria uma ex-
cellente coisa ir v. ex. a respirar agora, dar um largo
passeio de carroagem, e vir passar comnosco a noite.
-Yamos, meu pae?- disse ella com alvoroo.
-Sim, filha, vamos.
momento annunciou-se Francisco Valdez.
Augusto travou do brao de Eduardo, saiu com
elle do quarto, e disse-lhe:
- foroso que esse homem no fali e diante de
sua filha.
-Porque, diga-me porque, sr. Augusto? .. Eu ando
aqui perdido no labyrintho de tanto mysterio !. ..
-Se quer sua filha com razo, v v. ex. a rece-
bei-o, e afaste-o d'onde ella possa ouvil-o.
Entretanto, a viscomlessa entrara n'uma recamara
para vestir-se, e a vinda de Francisco Valdez nem
de leve a inquietra.
Ora, vejam se n1o era propheta, ouvindo
o dialogo de Eduardo Pinto e do pae de
- Como est a senhora viscondessa ?
- creio que a tenho salva.
H)S
COISAS ESPANTOSAS
- Tomou o meu conselho ?
-Qual, meu amigo? J me no recordo ... tem
sido tal o atordoamento das minhas idas ...
-Pois esqueceu-se que eu lhe disse que a ca-
zasse com Augusto?
-A h !. . no me esqueceu ...
- E foi isso, hein?
-No, senhor ; minha filha apenas uma irm
extremosa de Augusto.
-Ah! sim? Como el1a est boa, ou melhor do
que estava, isso que o importante, meu caro
Pinto. Sabe que estou consternadissimo ?
-Que tem, amigo?
-1\Ieu genro, baro ou que diabo o fizeram da
Nobrega, e minha filha eram esperados ha um mez,
como v. ex. a sabe, com delrio pelas pequenas, e
por mim que ha oito para nove annos no ''ia mi-
nha filha. Fomos esperai-os d'aqui duas leguas; eis
se no quando, depois dos c1.1mprimentos, voltam
para a Suissa, sem me darem nem palaua que ex-
plicasse o !
- celebre o seu genro e a sua filha! -notou
&Jtmrdo Pinto.
-Aqui ha um segredo impenetravel! minha
filha mais velha disse mais nova umas palavras,
que me chegaram aos ouvidos ... mas impossvel. ..
impossivel!...
Augusto, que estava escutando, entrou de golpe
na sala, e disse:
COISAS ESPANTOSAS
-Sr. Eduardo Pinto, a sr.a viscon<lcssa espera-o
j prompta.
-Vo passear?-<lisse Val<lcz.
-Vamos visitar uma famlia portugueza.
-Quem ?
-V. ex.a<lecerto no conhece-atalhou Augusto.
-So bnrguezes da gmma.
--1Iaia d'aquelle personagem que hontem disse
que v. s.a no podia casar com a sr.a Yiseondessa?
- esse justamente.
-Ah!-tornou Valdez muito galhofeiro.-Vae
Yer um typo dos bons tempos de Portugal... Que eu,
a dizer a verdade, fiquei entendendo que o homem
no era de todo portuguez.
-Pensou v. ex. a admiravelmente-disse Augus-
to. -0 que elle , sem mescla e estreme, sr. Vai-
dez, honrado, e um sancto, se v. ex. a cr em san-
elos.
-Creio em sane tos, pois no creio?
-E alm de sancto um homem de grande in-
flencia no governo portuguez.
-Isso creio- eu; porque os ministros d'agora,
excepo de meu primo, o conde de ***, so todos
d'aquella farinha grossa.
-E de tanta influencia - accrescentou Augusto
-que sua exm.a filha a elle deve ser baroneza da
Nobrega.- E voltando-se a Etluardo, disse :-Sua
filha espera-nos. Um pae pde fazei-a esperar; mas
eu que vim de sua ortlem chamai-o ...
200
COISAS ESPA:'iTOSAS
-Vamos- disse o velho, cada vez mais Pnre-
tlado no labyrintho de mysterios, como elle dizia.
Despediu-se Valtlez; e .\ugusto disse ao pae tle
Carlota:
-Rogo-lhe que nem uma palavra do que ouviu
a este homem na presena de sua filha!
-Mas, senhor, diga-me que intriga esta ...
-Escolha: saber a intriga, e ver sua filha incu-
ra,-elmente douda.
Novo enleio para o pae.
A viscontlessa lanou-se aos braos de Gregori()
e de D. Rosa. Os dois velhos choravam de alegria.
-Foram os bentinhos de ~ o s s a Senhora d()
Carmo! -exclamou Rosa.
Eduardo voltou-se para Augusto, e perguntou a
me-ia ,oz:
-Que aquillo dos bentinhos da Senhora d()
Carmo'?!
- a f ~ d'uma sane ta alma. Repare nesses dois
entes, que so os enviados da Providencia. Sem elles,
sua filha teria perecido de fome, e eu ter-me-h ia tal-
vez suicidado, antes. de encontra l-a na ultima pe-
nuria.
Etluardo, involuntariamente, sentiu ferido o seu
coraro de millionario. iXo obstante, aproximou-se
de Grego rio, e disse:
-Eu agradeo a v. s.a e a sua consorte os muitos.
beneficias que a minha filha lhe deve. ,
-No tem que nos agradecer v. ex. a nem ella-
COIS.\S 201
respondeu Gregorio.- Eu c estou bem pago com
outro abrao, e minha mulher lambem.
-O que eu e ella lhes pedimos- continuou
Eduardo- que acceitem a nossa casa, em quanto
nos derem o prazer de os termos em Paris.
acceitavamos da melhor Yonlade, se nos
tlemorassemos; mas isto est por poucos dias. O
sr. Augusto acho que do nosso parecer.
-De certo: ns vamos para Portugal bre,emente
-confirmou .Augusto.
-Vamos todos, meu pae?- disse a ,iscondessa.
-Tens vontade de deixar Paris, Carlota?!
-Oh! quem me dera ! . . . Yamos, meu querido
pae'l
E, dizendo, beijaYa-o na face, e apertava-o ao co-
rao.
-Faa-lhe a vontade, sr. Reis- disse D. Rosa.
-Venham d'ahi. Lisboa uma terra to bonita! Eu
digo a no vi nenhuma que me agradasse
tanto ... Nem Roma, Deus me perde, se pcco. Pois
ento Paris? Isto de a gente se aborrecer desde
que se levanta at que se deita. Parece-me que es-
tou aqui ha dois annos! ...
Eduardo chamou Augusto ao peitoril d'uma ja-
nella, e disse-lhe:
-Um velho pede conselhos a uma creana : Que
me diz? Vamos para Portugal? Ser isso favora,el
ao completo restaLelecimento de minha filha'!
- a sua completa salYao. Em Paris, juro-lhe
202 COISAS
que a ha de ver surcumLir afinal irremediavelmente.
Voltou-se Etluanlo ao grupo, e disse :
-Yamos para Lisboa.
Carlota lanou-se-lhe de novo ao pescoo, abraou
todos, e, na vebemencia tla sua alegria, Leijou Au-
gusto na face.
O pae viu este feito arrebatado; e, como se um
Leijo podesse ter a importancia de mysterio, o ve-
lho descobriu que o seu rintho ainda tinha
mais um zig-zag. E, logo, caindo em si, Carlota,
disse:
-Era assim que eu o beijara, quando o tinha no
meu collo, se o menino repelia com totlas as sylla-
bas as palarras que eu lhe ensinara ... Lemura-se,
sr. Gregorio?
- Se lembro ! ...
Sairam juntos para o palacio de Edaardo, con-
,-idatlos a jantar.
-A jantar?- observou Gregorio- so sete ho-
ras da tarde. Y. ex.a queria dizer ceiar, no as-
sim? Vamos l ceiar, e jantaremos em minha casa
em Lisboa, d'boje a duas semanas; mas l janta-se
ao meio dia; merenda-se s quatro; e ceia-se s
oito.
Sempre alegre, sempre feliz, o corao do uem-
fadado da Proridencia !
COISAS ESP.\:\TOSAS 203
XXXIII
E quinze dias depois, jantavam Eduardo Pinto dos
Reis e a Tiscondessa, em Lisboa, no largo da Ale-
goaria, em c3sa uo capitalista Gregorio Redondella.
E, depois de jantar, recolheram aos seus aposentos,
que eram no segumlo andar da casa.
E Augusto Botelho desceu ao escriptorio, onde
tinha os seas lh-ros, e fechou-se por dentro, lendo
uma a uma quantas cartas recebera de Carlota, es-
criptas do convento de Evora.
E, depois de as emmass3r, e arrecadar n'um es-
caninho privativo d'ellas na secretria, Augusto poz
o rosto sbre as ms, que assentava abertas sobre
a banca, e ouviu um grito do seu corat;o que dizia:
FATALIDADE!
Por que chora este moro de to venturosas ap-
parencias? Que mulher resistiu aos seus encantos,
s suas virtudes, e presumptiva herana de cen-
tenares de contos ?
E, aps largo espao de angustiosa reconcentra-
o, Augusto abriu um cofre de prata, e tirou de
dentro um retrato de mulher.
Via-se uma belleza peregrina a meio caminho da
existencia. Um porte de summa elegancia; um rosto
de extremada nobreza; uns olhos que deviam poder
muito, quer fulminando com imperio, quer commo-
vendo com lagrimas. E deteve-se a mirai-o muito
COISAS E S P A ~ T O S A S
tempo, horas se1iam, e lanou-o depois de si, ex-
clamando outra vez: FATALIDADE!
E a1}Uelle retrato era o de Carlota I
Sentira elle passos na escada, e conheceu-os. Sus-
pendru-se-lhe a respirao, e o sangue. Ouviu o
nnnso bater da mo delicada, abriu, e estendeu a
sua com tremor a Carlota, que vinha muito risonha.
- S:1be o que meu pae me disse?
-Que disse?
- Vae encontrar um amigo a Inglaterra, demo-
ra-se alguns mezes, e disse-me se eu qqeria, entre-
tanto, ficar no meu saudoso con,ento.
-E a viscondessa quer? ...
- meu filho! - disse com vehemencia Carlota
-quando estiver a ss comigo, ou diante da noss1
famlia, no me chame viscondessa, no? Lembra-se
como me tratara em menino? Era por tu. Sei que
me no pde dar agora esse tratamento; mas cha-
me-me como no convento: minha irm, ou minha
amiga. !\o quer?
-Pois, sim, minha irm.
- Di::mte de gente n1o : que poderiam rir-se, por-
que eu j posso ser sua m1e. Trinta e tres annos I
estou relha! ...
Carlota re1anceou os olhos sobre uma banqueta
de charo, e riu o seu retrato.
-Ai ! tem isto aqui?!
E, reparando, riu os restigios ainda humidos de
duas lagrimas.
COISAS 2u;;
E Augusto reparou lambem que as mos t'On-
vulsas da viscondessa pareciam no poder com o
retrato.
Carlota fez-se da cr do marmore, e lanou a
mo para se amparar columna dourada de um
espelho de vestir.
Augusto aproximou-se d'ella, e amparou-a pela
cintura; e, como quer que o corpo se dei'\asse pender
como a buscar um apoio, o moo ajoelhou para
sustei-o-, e com uma tias mos arrastava uma ca-
deira de spaldar para sentai-a.
irm! -exclamou elle.-
A viscomles5a ouviu-o, dt!Scerrou as palpebras,
tomou-lhe a face entre as mos, e murmurou :
-Diga-me que estou louca ... diga-m' o, sr. Au-
gusto ... Eu no ri lagrimas, no?
- :\"o ... -tartamudeou o infeliz-no eram la-
grimas ... Porque choraria eu, contemplando a mi-
nha irm no seu retrato? ... Poderia chorar, adi-
vinhando que ia separar-se de ns... mas eu no
vaticinava a m nova que me veio dar com tanta
alegria ...
- Augusto, bem haja ... O co lhe abene a
afTeio fraternal que me d .. .
-Eu no irei para o convento, se me quer aqui.
Ficarri, meu filho, e farei com que meu pae no
v ... Tenho remorsos de lhe ter mentido ...
-:Mentiu-me?!
- Sim... 1\Ieu pae no me disse que saia, nem
COI:;AS
me perguntou se cn queria entrar no convento. Qniz
experimentar o corao do meu amigo ... Quiz ver
o que era na sua Yilla...
- tUllo ! -exclamou Augusto n'um transporte
inflexirel.
E Carlota fitou os seus magicos olhos nos olhos
chammejantes do filho de Ignacio llotelho, e ento
viu qne elle cara tle joelhos com as mos suppli-
cantes.
Ergueu-se a riscondessa impetuosamentr, esteve
instantes com a fronte :1pertada entre as mos, e
fugiu do gabinete, para entrar no seu quarto.
E ahi lhe saltaram lagrimas ardentes tlo corao,
como nunca as sentira a queimar-lhe o rosto.
- Entlomlecer!- exclamou ella.
ConYersemos, leitor-
-Que lhr parece isto a v. ex. a!
-Parece-me um escandalo inaudito! Eu tenho
lido todos os romances de mais nomeatla pela ex-
travagancia, e nunca vi uma coisa assim! Teubo des-
culpado totlos os amores extravagantes; mas minLa
bondade repugna escusar que estas duas pessoas se
amem, e=nbora a razo acceite a possibilidat.le de se
amarem.
- Ah! v. ex. a confessa que a razo a ceei ta? Pois
se a razo se conforma, que far o corao? No v
COISAS ESPA:XTOSAS 20i
que aquella mulher beiJa, d'aquella expressiva. im
periosa, e fascinante belleza dos trinta e tres annos?
----;-Pois sim ; mas no esteja voss a puxar muito
pelo fiado, que eu, se me apoquenta, leml>ro-lhe que
Carlota ...
-Foi a amante do pae de Augusto? o que quer
dizer-me?
-Est claro.
-Ento v. ex. a ainda no sabe nada do corao
humano, nem da historia. Repare que no ha aqui
sequer um amor incestuoso. l\'o ha Xeros, nem Hy-
politos, nem Cyniras, nem as filhas do duque dor-
leans, que v. ex. a conhece do Seculo de Lui:; xv, e
dos romances que esmoeu sem amargos de bocca.
Tracta-se de uma mulher fnrmosa, e de um moo
de vinte e um annos que ama pela primeira fez, e
que j amava, -saiba-o agora, j que en tive pejo
de lho dizer em tempo mais opportuno-j amava,
quando foi Yiajar, e esconder o seu corao no chalet
da SYissa.
-Seja como quizer; mas n3o de bom gostJ o
episodio do seu romance.
-A natureza, meu bom amigo, no se amo) da
ao bom ou mau gosto dos romancistas. A natureza
faz destes amores,- monstruosos, se v. ex. a quer
-atira-os circulao, e diz: os nmelleiros que
\OS definam, se podem. E no est bem definida a
coisa? Que tem o corao de Augusto com o passado?
-A dignidade.
20R COISAS ESPANTOSAS
-Com que v. e x . ~ ~ . me vem!... A dignidade! ...
A dignidatJe, quando a paixo lhe se de rosto, agtJ-
cha-se, e deixa-se sovar aos ps, se que a paixo
pde ter ps, no tendo cabea.
E dou a polcmica por concluda.
XXXIV
Eduardo Pinto, decorridos dois dias em segui-
mento do dialogo de Carlota e Augusto, fallou as
sim a Gregorio:
-O generoso amigo de minha filha tem obriga-
o de olhar pela felicidade d' e lia em tudo e por
tudo. O sr. Gregorio v minha filha de cama, ha
dois dias, e cuida que o soffrimento d'ella um pas
sageiro incommodo. Eu vejoa com o corao de pae,
e receio que a morte seja o unico remedia ao seu
mal, se da nossa parte nos confiarmos cura do
tempo. _
-Sr. Reis -atalhou Gregorio- Yeja o que eu
posso fazer, que estou prompto, como se fosse eu
pae da sr. a viscondessa.
-Ora diga-me: o senhor no desconfiou que Au-
gusto e minha filha se amassem antes d'elle ir viajar?
-Xo, senhor, eu no desconfiei... como havia
eu de desconfiar de crime tamanho!?
Isto foi dito com uns tregeitos de assombro, que
iam causando riso ao interlocutor.
-Crime tamanho! -redarguiu Eduardo-Pois
COISAS ESP .AXTOSAS 20
entenue o sr. Gregorio que o amarem-se hones-
tamente cluas pessoas livres seja um grande crime?!
Gregorio caiu em si, compoz o gesto apavorado,
e acudiu logo
-Sim ... a faltar a verdade, o crime no grande:
emfim, como o outro que diz, a differena das eJa-
des ...
-E elas posies ... queria o senhor dizer ... Bem
sei ... filha. n'esse tempo, era uma rapariga
pobre, que recebia no ronrento a sua esmola ...
- Alto l- interrompeu Gregorio - que vem c
fazer esses c.ontos de esmola? Quem falia n'isso,
senhor?
-Perdo; ninguem fali ou em esmola, seno eu,
e ella que francamente o diz ; mas, como a depen-
deneia diminue o grau de merecimento de cada qual,
poderia ser que o sr. Gregorio achasse estranho que
o sr. Augusto, seu futuro herdeiro, casasse com uma
mulher, que tinha sido criada de sua casa.
-1\o isso ... -disse Gregorio muito enleado,
e morto por se desentalar de taes apertos.
-Pois que ? Que razo ha de nos espantarmos,
se o sr. Augusto amasse Carlota!?
- Ha de perdoar ... mas .eu no posso crer isso.
-Sr. Gregorio, de-me a sua duvida, e sou obri-
ga elo a reyelar-lhe um segredo que roubei a minha
filha. Por um descuido d'ella, achei aberta a sua
secretria em Paris, e li algumas cartas de Augusto,
script;1s de diversos pontos das suas viagens. Se
H
210 COISAS ESPANTOSAS
no eram bem expressivas as cartas, eram-no de
mais para fundamentarem uma razoavel uesconfiana.
Hoje mesmo, encontrei aLerta, caLeceira de sua
cama, uma carteira de Yiagem. Como ella dormia,
pude de relance ver algumas cartas, e esta, que tem
a data de hontem, diz mais que as escriptas ha um
anno.
- E de quem a carta? de Augusto'!
-Certamente.
-Pois e !I e est c de portas a dentro, e precisa
escre,er-lh e?! A gente em quanto vive aprende sem-
pre!. .. E que diz elle ento?
Eduardo leu:
Tranquillize-se, minha amiga. 1\"o succumba
para me dar coragem; seno, o rn:1is fraco serei
eu. Onde quer que eu v? Diga-o. Irei at omle
a distancia faa qtfe entre n6s seja impossvel a
comrnunicao de uma palavra. Que lhe deixo eu.
((minha irm? l'ma crena, que a deve fazer orgu-
lhosa do que . Viu que era amada, e por quem!. ..
c< J v que nenhuma culpa lhe pde diminuir o ,a-
c< lor aos meus olhos. Amo-a eu, amo-a perdida-
c< mente eu, que desde os quatro annos a conheo !
cr ~ a grau e de Erora u_o lhe falla'ia assim ; mas ui-
zia-lhe mais. Ento o seu recato impunha-me si-
cde[lcio. nesde ento, Yi o mundo, e Yi-a luz do
mundo, Carlota ...
-Estou pasmado ! - disse Gregorio- no leia
mais nada, que eu no sei onde tenho a cabea! ...
COISAS ESPA:\'TOSAS 21-1
-!\las eu no fico menos espantado com o seu .
espanto, sr. Gregorio ! Diga-me o senhor o que
que o faz perder a calJca.f
-0 que ? ... pelo amor lle Deus! ...
-Sim ... o senhor acha um disparate que Augusto
seja marido de minha filha 1 ... 1\"o ella formosa,
no sou eu rico, no elle um homem com cora-
o, como tantos que, em poucos dias que a tracta-
ram, ma pediram em Paris, e lodos pessoas dislin-
ctas, da velha nobreza, e com fortunas independentes
do dote de uma mulher?
- :\"o duvido, no dmido; mas o caso outro ...
-Sei o que me quer dizer- tornou com aze-
dume e tristeza o velho- Sei, desgraadamente,
sei ...
-Pois se sabe... admira-se, sr. Eduardo, que
eu perca a cabea f ?
-Admiro f Pois se minha infeliz filha, aos dez-
eseis annos, se deixou seduzir por um homem, que
soube mentir ao infortunio, e a ab:mdonou ... se mi-
nha filha foi obrigada a servir uma casa para ganhar
po com honra... se a drsgraada enlouqueceu,
quamlo, aos vinte annos, viu o abysmo de deshonra
em que tinha caido ... tudo isto bastante para que
minha filha perca o direito a ser amada, a ser es-
posa tlo seu Augusto, uo fllho do homem que foi
seu amo? f
-Quem lhe contou essas coisas, sr. Reis'?
-Quem mas contou?! A pessoa que me infor-
212
COISAS ESPA!'iTOSAS
mou, um antigo amigo que me impclliu a Portugal,
onue cu tiuha esta filha ... talvez pma me castigar
involuntariamente da crueza com que eu deixei mor-
rer sua me na miseria ...
Como EJ.uardo tivesse os olhos turvos de lagri-
mas, Gregorio no teve alma para protrahir o dia-
logo, nem aclarar uma verdade funesta para o pobre
pae.- Ao mesmo tempo, no sabia o bemfeitor de _
Augusto que dizer no tocante ao amor de que e!Je
tinha as prmas presentes n'aquella carta.
Foi para elle um grande allivio o llpparecimento
de Augusto, que impallideceu ao ver a sua carta
sobre uma meza.
O pae oe Carlota achou excellente a opportuni-
dade de fallar peremptoriamente a Augusto, n'estes
termos:
- St. Augusto, vejo que o incommod;;. encontrar
esta carta: fui eu que a subtrahi da carteira da mi-
nha filha: estando ella a dormir. Sejamos francos,
que preciso s l-o. Ama minha filha? caze com ella.
l'o careo de fazer a mesma pergunta a Carlota.
Vejo-a oesde hontem definhar-se, e pedir a Deus a
morte. Roga-me a chorar que a leve para o convento.
Que ha de fazer um pobre pae se no perguntar a
Deus que segredo ha aqui nesta aficio de annos?
Que estvno os priva d se unirem? Se ella teve
no seu passauo uma culpa, a})solvida pela innoren-
cia e pelo infortunio, seja o sr. Augusto egual a
Deus, perde-lhe, se intende que a passada e ex-
COISAS ESP 213
piada culp:1 ofiende o seu pundonor de marido.
-Por Deus lhe peo que no continue f - disse
o atrribulado moo.
Eduardo encarou em Gregorio, que tinha os olhos
postos no clto; voltou-os para Augusto, e riu-o a
soluar com o rosto entre as mos.
Durou segundos este lance, at que Augusto, er-
guendo-se de golpe, saiu da sala enxugando as la-
grimas.
Duas horas antes, tinha eUe recebido este bilhete
em respost:J carta, cujo perodo ouvimos ler a
Eduardo:".
Y, Y. me queira ver mais. Lembre-se da
minha indignidade. No ha ferida de coraro que
resista a esse balsamo. V, anjo de melhores tles-
tinos! Sabe os quadros da minha rida horrenda,
um por um. Lembre-se de todos. Em pouco tempo
ter pejo de si proprio, pejo do seu amor, e ad-
dolorosa da sua fraqueza. Tenha tudo; mas
conserve de mim uma piedosa lembrana. A com-
paixo o unico sentimento que eu deveria ins-
pirar-lhe, se o corao humano fosse menos ah-
surdo. Eu sou uma desgra.ada sem egual. At de
lhe abrir a minha alma dero ter rergonha. Sou mu-
lher condemnada a j mais poder dizer-lhe o fJUe
sinto. V-se que no expiei os meus crimes ainda:
agora que eu reconheo o castigo. V, fuja de
4 mim, meu querido filho. Veja-me no passado;
(I olhe que infamias l ficam sem rehabilitao pos-
21-i COISAS S
sivel... Deixe-me morrer, por misericordia lh'o
peo ; porque j no espero uma hora da vida em
paz. A vergonha mil veies mais pungente que
o remorso! ...
XXXV
Vinte e quatro horas depois, Gregorio recebia a
seguinte carta ue Augusto:
Quando o meu bemfeitor ler esta carta, j eu
tenho saitlo a barra. sei onde o destino me
leva. De Paris lhe direi as minhas intenes. Es-
cuso a razo da minha sada. D um
abrao na minha querida boa me, e pea-lhe que
rogue a Deus por mim I)
D. Rosa rompeu em chro, quando ouriu ler a
carta; e deixou ue soluar, para erguPr de joelhos
as mos ao Senhor.
Gregorio caiu n'uma taciturnidade, e inteiro des-
apgo da Yida e dos negocios. Respondeu em pou-
cas palavras a Augusto, e quiz que um seu guarda-
livros sasse logo por terra a levar ordens de di-
nheiro a Paris.
Eduardo, sabendo a saida de Augusto. pediu que
no a communicassem a Carlota, e, no fundo de sua
alma, amaltlioou o moo. Depois, avassalado pelo
orgulho, buscou pretexto para sair d casa de Gre-
gorio; mas, como era foroso explicar filha o motivo
da saida, e esperasse salvai-a tambem pela Yaidade
ultrajada, revelu-lhe a saida imprevista ue Augusto.
COISAS ESP .\!'\TOSAS
..
A viscondessa respondeu que j o sabia, e disse-o
com os olhos enxutos, e socegado semiJlante, do que
muito se admirou e folgou o pae.
Com quanta ternura o faria uma filha, se despe-
diu Carlota de Gregorio e D. Rosa, rememorando
todos os bens, que lhe t1zeram, deixando soltar
palavras de censura amarga aos erros da sua pas-
sada Yida, e terminando por dizer que s Deus lhe
dava uma cella onde ella podesse viver sem confu-
so e terror de si propria.
Suppunha a Yiscondessa que seu pae lhe consen-
tiria recolher-se ao mosteiro de Erora. O velho
porm, olhara j para a filha como instrumento ne-
cessario sua Yingana, e foi com ella inexoravel.
-Iremos viajar-disse elle.
Queria Carlota redarguir; mas o pae consentiu
apenas que ella chorasse.
Tomou navio por sua conta o millionario, e abor-
dou s costas de Frana.
Abriu os sales do seu palacio, ainda ornamen-
tado qual o fechra mezes antes, e dispendeu-se em
maiores pompas para chamar as attenes em dobro.
Yiu muitos portuguezes, sabia os nomes de quan-
t o ~ estanceavam em Paris, e no Yiu o nome de
Augusto Botelho.
Isto lhe deu muito que sotJrer.
Invidou quantos meios tinha ao seu alcance para
descobrir que Augusto sara de Paris com direcco
a Constantinopla.
216 COISAS
Descorooou da parte do seu plano, plano que
seria estupiuo, se a vingana no fosse, como dizem,
o nectar dos deuses. Era dar :i filha um marido ce-
lebrado na sociedade parisiense, c forar o moo a
contemplar a irradiao gloriosa de Carlota.
l\"o entanto, rOlleou-a de numerosos mancebos que
Yinham duas vezes attrahiuos pelo. do- ouro, e
pela pertinaz formosura da pormgueza.
Emquanto elle delirava neste phrenesi de bailes,
de jantares, de magnificencias, Carlota passava ua
sala para o leito; chorava durante as noites, e ves-
tia-se_ de setim e Lrilh:mtes para que seu pae no
avincasse a fronte de rugas que a atemorisavam.
Pediram-na um duque que era pobre, e um
conde que era opulentissimo.
Eduardo optou pelo duque. Recebeu Carlota com
um sorriso a nova. Vestiu-se com a maxima riqueza,
segundo a escolha de seu pae: Foi ao 8alo em que
era esperada, e viu o homem a quem seu pae a dera.
Deixou-os a ss Elluardo, porque outras visitas o
espera,am no salo immediato. Carlota faJlou assim:
- Y. ex. a tem direito a saber o que eu fui. Tive
uma mocidade tempestuosa. Tire amantes, e tenho
paixes de que sou escrava. Se assim lhe convenho,
v. ex.a subjeita-se a ver alguma vez nas salas de
Paris o homem que amei, e que pde apontar-me
aos seus amigos, e dizer : Aquella mulher foi mi-
nha. Pde ver o homem que amo, e este, se no
disser que fui sua, poder dizer que o sou, quando
COISAS 217
elle quizer. V. exc.a de ce11o no quer assim uma
mulher, porque ella rica.
-De certo no; mas seu pae ignora ...
. pae ignora a maior parte de minha vida,
e v. ex. a con!e-a a todo o mundo,.se lhe apraz; mas
a elle no. E a paga que Jhe implora a minha fran-
queza.
O duque saiu, e no mesmo dia foi para as suas
pequenas herdades na provncia, e de l saiu para
Londres addido embaixada.
Eduardo Pinto esperava o genro, e recebeu uma
carta em que o duque mui simplesmente pedia dois
annos de espera para realisar o casamento. in-
fringia assim a palaua, nem temia que, findo o
praso, o obrigassem por ella.
Nova punhalada no orgulho do millionario.
Pensava elle em negociar o casamento com o vis-
conde, quando a Providencia lhe deu um golpe mortal.
A viscondessa era plena senhora das suas aces.
Saa s nas suas carroagens, e sob cr de pagar vi-
sitas, saia muitas Y-ezes.
, Com as indicaes d'uma criada franceza, que
trouxera comsigo de Paris e outra vez levra, des-
cobriu um homem, que devia tirar passaporte para
si e duas irms, com destino a Portugal.
Feito isto, Carlota saiu uma tarde, apeou n'um
ponto designado, deu alguns passos a p, dobrou
uma esquina, e nunca mais voltou com a criada,
que a seguia.
218 COISAS ESPANTOSAS
Eduardo Pinto viu chegar de noite a carroagem
sem a filha. As primeiras horas gastou-as em pes-
quizas inuteis. Muitas outras em exclamaes e de-
sesperos. Foi a final embaixada, e voltou desani-
mado.
Tornou pela erceira vez ao quarto da fiiha, e j
tinha olhos claros para ver uma carta no toucador.
Eram seis linhas:
Procure-me no convento onde me foi buscar, se
p'refere anza'r sua filha feliz, a despedaai-a lenta-
mente neste mundo que no o d'ella. Perdoe
desgraa as suas fraquezas. Antes quero l morrer.
At l, meu querido pae. Fujo-lhe, quando o seu
amorjno era o amor que d felicidade a uma filha. '
COISAS 219
CONCLUSO
Deixemos correr dois annos.
Carlota est no mosteiro d"Evora. Recebe uma
grande troa, com que sustenta as seculares po-
bres, e convida outras a recolherem-se, pagando-
lhes casa no mosteiro, e alimentamlo-as.
Eduardo Pinto vaga de paiz m paiz, arrastando
uma velhice amarga como devia ser a de sua mu-
lher: ella suspirando pela luz dos o1hos, elle offe-
recendo os seus milhes por um raio de luz das
almas.
O baro da l est no lago Heman, edu-
cando os filhos, amando a esposa, e suspirando pela
patria, que nunca mais espera ver.
Gregorio passa os dias e as noites em dialogo
com a imagem da esposa, que Deus chamou para
si, seis mezes depois da saida de Augusto.
E Augusto, depois de viajar dois annos no Oriente,
forado pela doena de peito que o ia
recolheu ilha da l\Iadeira, e espera ahi a conva-
lescena para voltar a Portugal, onde o velho Gre-
gorio o chama com a anciedade d'um moribundo
que quer despedir-se.
Augusto sabe que Carlota est no mosteiro e es-
creve-lhe.
a carta d'um mero amigo. Conta-lhe o que viu
220 COISAS
na sua peregrinao, e pede-lhe a historia da sua
vida. Carlota omittindo tudo em que
podia resombrar a historia d'um corao revelada
a outro. 1\'arra a sua fuga de Paris, os pormenores
da viagem, a entrada no claustro, e o seu viver em
tuuo similhante ao o' outro tempo, menos na leitura
do Eurico, e na costura das camizas.
Diz, sem encarecimento, que padece, que est
de todo velha, que v sem tristeza a morte apro-
ximar-se.
YoJta Augusto patria, e encontra em Lisboa
Eduardo Pinto, que o recebe friamente, e no lhe
falia na filha.
Carlota recebe carta de Augusto em que lhe pede
lic.ena para ir Responde, protelando a ida,
at que ella possa convalescer d'um ataque mais
forte da sua doena do peito.
Gregorio, que presentira o seu fim, quando cha-
mava Augusto, morre na serenidade d'um sancto,
legando ao seu filho adoptiro quanto possua, ex-
cepto o tero, que manda repartir pelos parentes
de sua mulher.
Augusto no sabe que valor possa ter a riqueza
para elle. Olha-se espantado de sua desventura e
soledade aos vinte e quatro annos, e enche-se-lhe a
alma de tedio, e o futuro de Yises sinistras.
Carlota responde s novas instancias de Augusto
pedindo-lhe que espere. Pinto dos Reis encontra-o
nesta e diz-lhe com amargura:
COISAS
::!21
filha est a morrer.
- A morrer?!- exclamou Augusto.
-Sim.
-Aqui tem v. ex. a uma carta d"eila; est na con-
,alescenra.
- .-\ mim diz-me o mesmo; mas a prioreza avi-
sa-me que mone.
-Por que no vamos dar-lhe o adeus? - disse
Augusto debulhado em lagrim3s.
-Por que eu no quero vel-a morrer.
tenha coragem ... vamos!
-V o senhor, que no pae.
E Augusto foi.
Disse o seu nome a porteira do convrnto, que j
o no conhecia.
Carlota ergueu-se do leito, e foi amparada grade.
As amigas sentaram-na, e deixaram-na sosinha. Au-
gusto contemplou-a, e chorou: estava magra e pai-
lida; mas formosa como as Yirgens christs, como os
martyres de Chateaubriand. E Carlota tirou da al-
gibeira do arental de seda um peito de camisa, e
um livro. Passou o li no a Augusto, e disse:
-Leia, que o ErRtco.
E costurou no peito da camisa, emquanto Au-
gusto lia com olhos lagrimosos uma pagina do li-
'To, a ultima que elle dobrra, ali mesmo, n'aquella
grade, annos antes.
Depojs, Carlota ergueu-se, e disse: -at ma-
nh.
222 COISAS E S P A ~ T O S A S
Augusto estemleu os braos por entre as grades,.
e exclamou:
-)linha esposa!
-Do co ... - murmurou e lia, e chamou quem
a lmasse amparada para a sua cella.
1\o tlia seguinte, foi o moo grade, onde Car-
lota o esla,a esperando.
Deteve-se largas horas, e saiu com um semblante
luminoso de alegria. A alegria ueste mundo! A brin-
cadeira atroz uo zombeleiro demonio que tem ah-
soluto direito sobre predestinadas creaturas!
Saiu para Lisboa nesse mesmo dia, e procurou
Eduardo Pinto.
E, apoz breYes instantes, sairam ambos. Egual
alegria rebrilhava nos canados olhos do velho.
Partiram n'esse dia para Erora, e leraram certi-
des e licenas para o casamento se fazer no templo
do mosteiro.
Chegaram entrada da cidade: e ouviram um do-
bre funeral.
Parecem os sinos do convento! -disse Augusto_
Avisinhavam-se, empallideciam ambos a um tempo;
e olhando-se mutuamente no ousavam fallar.
Apearam-se na portaria, quando os sinos dobra-
vam segunda vez.
Correram ao raro, a chamar a prioreza, e esta man-
dou-os subir grade, sem lhes dizer outra palarra.
Desafogaram-se da oppresso n'um abrao fte-
mente de alegria o velho e o noivo.
COISAS ESPA .. YfOSAS 22 3
Chegados grade esperaram, e ouviram o ru-
gido de
AIJriu-se a porta interior : era a prioreza.
filha?!- disse Eduardo.
- Est no co. Pois no oure que todas choram!
E. de feito. OU\ ia-se um carpir afllicti ,.o que re-
boara nos dormitorios: eram as muitas desralidas.
que ,-hiam do bem-fazer da defuncla.
E a prioreza entregou a Augusto um liHo, e uma
carta entre as paginas.
E a Eduanlo Pinto dos Reis outra carta, e uma
argolinha de ouro, que elle ha,ia dado em solteiro
a sua me, e a filha tirra do dedo 'de Catharina
morta.
carta ao pae, dizia:
a :\linha quando te\e fome, nunca quiz ren-
der esse annel, que meu pae lhe dera. Deposito.
n'elle um beijo, e restituo-lh"o, meu pae. Lem-
o: bre-se d'clla e de mim. Espero encontrai-a uo co.
a Pediremos por meu paeao Senhor.
A carta de Augusto continha estas palartas que,
pflr quasi serem inintelligireis, deriam ter sido es-
rri ptas na derradeira hora :
a Eu s podia ser sua esposa no co, onde a alma
a pura das nodoas do corpo. L o espero, filho
a da minha alma. Emquanto river, creio que rer
a a minha imagem sem o stygma fatal. ..-\ terra do
sepulchro um rnzol de pufifica.;o.
Agora lhe digo que o amei at morrer, e morri
COISAS ESPANTOSAS
porque Deus no quiz que dos meus olhos se
afa5tasse o negro quadro do meu passado. As
maiores desgraadas so aquellas que a si proprias
no podem perdoar. Adeus, Augusto. Chore-me
a no pelo que sou, mas pelo que fui. Deus, tiran-
do-me muito, deu-me o mais que podem ter mu-
a lheres como eu: rodeou o meu leito de infelizes,
que dependiam de mim. Deixo-lh'as a si, Augusto.
Sei que esta herana lhe dar horas de felicidade,
a feli<;idade da esmola, que um instante do per-
a petuo contentamento do co. l\"o posso mais. O
a seu retrato vae na minha mortalha. Adeus.
Ha dez annos que Augusto Botelho me contou a
sua historia, em Lisboa.
Procurei-o, no anno seguinte, para illucidar du-
vidas em que ainda estou. Achei-o em posio de
todo o ponto incompatvel com os meus desejos.
Estava no cemiterio dos Prazeres, com uma pedra
lisa sobre o peito, e este epitaphio sem data:
YEL UT U ~ I B R A
que quer dizer:
SHIILHAXTE A SOliBRA
FUI
'

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