O Conceito de Compreensão Na Histórica de Droysen PDF
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O Conceito de Compreensão Na Histórica de Droysen PDF
Dissertao de Mestrado
O CONCEITO DE COMPREENSO NA HISTRICA
DE JOHANN GUSTAV DROYSEN
Andr Roberto Cremonezi
PPGF
SANTA MARIA, RS, BRASIL
2005
UFSM
DISSERTAO DE MESTRADO
O CONCEITO DE COMPREENSO NA HISTRICA
DE JOHANN GUSTAV DROYSEN
ANDR ROBERTO CREMONEZI
PPGF
SANTA MARIA, RS, BRASIL
2005
ii
O CONCEITO DE COMPREENSO NA HISTRICA
DE JOHANN GUSTAV DROYSEN
por
ANDR ROBERTO CREMONEZI
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do
Programa de Ps-Graduao em Filosofia, rea de Concentrao em
Filosofia Transcendental e Hermenutica, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS),
como requisito parcial para obteno do grau de
Mestre em Filosofia.
PPGF
Santa Maria, RS, BRASIL
2005
iii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
Centro de Cincias Sociais e Humanas
Programa de Ps-Graduao em Filosofia
A Comisso Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertao de Mestrado
O CONCEITO DE COMPREENSO NA HISTRICA
DE JOHANN GUSTAV DROYSEN
elaborada por
Andr Roberto Cremonezi
como requisito parcial para obteno do grau de
Mestre em Filosofia
COMISSO EXAMINADORA:
___________________________________
Prof. Dr. Rbson Ramos dos Reis
(Presidente / Orientador)
__________________________________
Prof. Dr . Maria das Graas de Souza
__________________________________
Prof. Dr. Noeli Dutra Rossatto
Santa Maria, 05 de agosto de 2005
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeo ao Prof. Dr. Rbson Ramos dos Reis, orientador desta
dissertao, pelos ensinamentos, pela confiana, amizade e pelas
lies de profissionalismo.
Ao Departamento de Filosofia e ao Programa de Ps-Graduao
em Filosofia da UFSM, ao seu Coordenador, Prof. Dr. Abel Lassalle
Casanave, assim como a todos os professores e funcionrios que
integram o respectivo Programa, a quem devo a minha formao. Um
agradecimento especial aos professores e amigos Albertinho L.
Gallina e Christian V. Hamm, pela presena constante ao longo de
minha formao acadmica.
A todos os meus familiares, especialmente aos meus pais, pela
vida, confiana, incentivo e apoio, em todos os momentos de minha
vida.
Aos amigos J air e famlia, Vera e famlia, Aida e famlia,
Alexandre e Andria, Leocir Bressan, J orge, lsio e Letcia, assim
como a todos os amigos e amigas, a quem no pude dedicar a ateno
que desejaria, nestes ltimos dois anos.
J ulia Specker, pela amizade e por toda ajuda recebida ao
longo do processo de pesquisa e redao desta dissertao.
Silvia Cainaiello, do Centro di Studi Vicchiani Npoles ,
pelo apoio e pelo auxlio na busca de materiais para pesquisa.
Um agradecimento especial Mnica, pelo companheirismo,
pela compreenso, pela pacincia e injeo de nimo.
Ao CNPq Brasil, pelo financiamento, e UFSM, por
oportunizar condies de formao no Ensino Superior.
v
SUMRIO
Agradecimentos......................................................................................................iv
Sumrio....................................................................................................................v
Resumo..................................................................................................................vii
Abstract.................................................................................................................viii
INTRODUO.......................................................................................................1
CAPTULO 1 Gnese, composio e estruturao da Histrica..........................9
1.1 Gnese da Histrica...................................................................................10
1.2 Histrica (Historik): de gnero literrio categoria hermenutica............17
1.3 Histrico das compilaes..........................................................................20
1.4 - A estruturao da Histrica e de suas diferente verses............................23
1.5 - A terminologia da Histrica.......................................................................28
1.5.1 - A empiria como predicado da cientificidade da Histria............30
1.5.2 - Os mltiplos sentidos do termo histria......................................33
1.5.3 - Os Poderes ticos........................................................................37
CAPTULO 2 - A hermenutica ao centro da teoria da Histria de Droysen.......40
2.1 - O que a Histria no pode ser.....................................................................41
2.2 - O conceito de Compreenso no interior da Histrica.................................47
2.2.1 - As notas preliminares Histrica...................................................49
2.2.2 - mbito, mtodo e tarefa da Histria na Histrica..........................52
2.3 A fundamentao do mtodo histrico mediante o entrelaamento de
filosofia transcendental e ontologia da histria.........................................56
2.4 A busca da cientificidade...........................................................................65
CAPTULO 3 A Compreenso Investigativa como mtodo da Histria............70
3.1 A Metdica: descrio da lgica da compreenso e de suas normas.........71
vi
3.1.1 A Heurstica ..................................................................................77
3.1.2 A Crtica ........................................................................................78
3.1.3 A Interpretao..............................................................................80
3.2 A Sistemtica: a aplicabilidade da Compreenso Investigativa..................82
3.2.1 Poderes ticos e Comunidades ticas............................................85
3.3 Implicaes resultantes do conceito de Compreenso Investigativa..........88
CONCLUSO.......................................................................................................94
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................98
vii
RESUMO
Dissertao de Mestrado
Programa de Ps-Graduao em Filosofia
Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil
O CONCEITO DE COMPREENSO NA HISTRICA
DE JOHANN GUSTAV DROYSEN
AUTOR: ANDR ROBERTO CREMONEZI
ORIENTADOR: PROF. DR. RBSON RAMOS DOS REIS
Local e data da defesa: Santa Maria, 05 de agosto de 2005.
Esta dissertao tem por objetivo analisar e reconstruir o
conceito de Compreenso Investigativa forschendes Verstehen no
interior da obra Histrica, de J ohann Gustav Droysen. Atravs dos
elementos tericos oferecidos pelo referido historiador alemo do
sculo XIX, pretende-se examinar os fundamentos apresentados como
base da compreenso hermenutica enquanto centro de um
empreendimento que visa conferir autonomia normativa e
metodolgica cincia histrica. A referida anlise passa por uma
breve reconstruo do contexto historicista alemo da segunda metade
do sculo XIX, assim como pela apresentao dos diferentes
momentos constituintes do mtodo histrico formulado por Droysen,
explicitando as peculiaridades inerentes compilao da Histrica.
Entre os resultados obtidos est a constatao de um complexo
entrelaamento entre uma filosofia transcendental e uma ontologia da
histria, que se encontra base da Compreenso Investigativa, assim
como a universalizao que a referida noo confere ao problema
hermenutico da compreenso, em precedncia ao projeto de uma
Crtica da Razo Histrica.
viii
ABSTRACT
Masters Dissertation
Philosophy Post Graduation Programme
Federal University of Santa Maria, RS, Brazil
THE CONCEPT OF COMPREHENSION IN THE
HISTORIK OF
JOHANN GUSTAV DROYSEN
AUTHOR: ANDR ROBERTO CREMONEZI
ADVISER: PROF. DR. RBSON RAMOS DOS REIS
Santa Maria, August 2005.
This dissertation has the aim to analyse and reconstruct the
concept of Investigative Comprehension forschendes Verstehen
inside the J ohann Gustav Droysen's Historik. Through the theoretical
elements offered by the mentioned German historian of the 19th
Century, he tries to examine the grounds presented as basis for the
hermeneutic comprehension, as the centre of an undertaking that
aspires to grant normative and methodological autonomy to the
historical science. The mentioned analysis is fulfilled by a brief
reconstruction of the German historicist context in the second half of
the 19th Century, as well as by the presentation of the different
constituent moments of the historical method formulated by Droysen,
making explicit the inherent peculiarities in the compilation of the
Historik. Among the obtained results lies the verification of a
complex interlacement between a transcendental philosophy and an
ontology of the history just in the basis of the Investigative
Comprehension, as well as the universalisation that the above-
mentioned notion attributes to the hermeneutic problem of the
comprehension, prior to the project of a Critique of the Historical
Reason.
INTRODUO
Na Histrica: Lies sobre a Enciclopdia e Metodologia da
Histria de J ohann Gustav Droysen (1808 1884), encontra-se
registrado o empenho terico de um historiador da segunda metade do
sculo XIX em refletir sobre os procedimentos da escola qual
integrava, assim como sobre os fundamentos de seu prprio trabalho,
manifesto na preocupao pela ausncia de respostas aos
questionamentos e ataques efetuados pelo meio cientfico da poca
quanto aos conceitos de Histria, de historiografia e quanto prpria
relevncia e cientificidade do estudo da histria.
Este aspecto converge com a constatao de que a Histria
apenas havia se libertado dos grilhes da filosofia da histria
hegeliana e j se via sob uma nova ameaa de subordinao, agora s
cincias naturais e pretenso positivista de constituir modelo
paradigmtico de cientificidade. A refutao do Idealismo Absoluto
de Hegel, sobretudo no que concerne logicizao sistemtica da
histria efetuada pelo mesmo, constitua o objetivo principal da Escola
Histrica Alem na primeira metade do sculo XIX. Semelhante
preocupao confluiu com o interesse dos historiadores do perodo em
legitimar a Histria como sendo uma atividade autnoma em relao
Filosofia. Trata-se do historicismo alemo, cujas palavras de ordem,
conforme Herbert Schndelbach em Filosofia na Alemanha, 1831
1933, eram cincia em lugar de sistema e cincia histrica em lugar
de filosofia da histria.
2
A nfase observao e compreenso do individual histrico
em sua particularidade, como substituto da especulao filosfica e
rechao da teleologia hegeliana, passam a ser os critrios almejados
pelos historiadores enquanto diretrizes da pesquisa historiogrfica.
Nesta matria encontra-se, na primeira metade do sculo XIX,
produes crticas permeadas de ataques formulados filosofia da
histria de Hegel. J acob Burckhardt em Reflexes sobre a Histria,
por exemplo, acusa a doutrina da histria de Hegel de apriorismo,
uma vez que, segundo o mesmo, esta subordinava os fatos histricos e
sua compreenso a uma concepo de histria universal prvia. Do
mesmo modo, afirmava que a expresso filosofia da histria
constitua uma contradictio in adjecto, uma vez que a filosofia seria
sinnima de subordinao, ao passo que a Histria deveria ser
sinnima de coordenao dos fatos, mediante a observao. Leopold
von Ranke, por sua vez, afirmava que na Histria no deveria haver
espao para o progresso, para a providncia e para o teleologismo -
conforme indicaes presentes em Linhas de uma histria do
historicismo de Humboldt a Dilthey de Fulvio Tessitore. Em suma, tal
como encontra-se registrado por Herbert Schndelbach, no segundo
captulo de Filosofia na Alemanha, 1831 1933, e mesmo por Carlos
Alberto Ribeiro de Moura, no primeiro ensaio de Racionalidade e
Crise, o que os assim chamados historicistas da primeira fase
propunham era o rechao do absolutismo hegeliano. Disto resultara a
regra historicista, segundo a qual a observao e a descrio deveriam
ocupar o posto da valorao, regra esta justificada pela tese de que
toda tentativa de conhecimento absoluto, quer no plano terico,
3
prtico ou esttico, deveria ser rechaada, uma vez convictos da
historicidade do saber.
J ohann Gustav Droysen alterou significativamente a perspectiva
sob a qual encontravam-se formuladas as tentativas de distanciamento
da filosofia da histria de Hegel e, neste sentido, sua obra representa
um marco divisor para com a primeira gerao de historicistas. Tendo
sido aluno de Hegel, assim como de Boeckh - autor de Enciclopdia e
Metodologia das Cincias Filolgicas, obra preocupada com a
elaborao dos princpios gerais e orientativos da Filologia exemplo
do que Schleiermacher j havia efetuado no campo da hermenutica -,
Droysen representa o nico integrante da Escola Histrica Alem que
no assumiu uma atitude radicalmente polmica para com Hegel. Os
ensaios e lies metodolgicas droysenianas constituram, outrossim,
a primeira tentativa de refletir criticamente tanto sobre o procedimento
de seus predecessores, quanto sobre o procedimento da Escola
Histrica como um todo. Droysen, por exemplo, teceu srias objees
Escola Crtica de Ranke, no que concerne pretenso da mesma em
alcanar a objetividade dos fatos passados tendo por base to somente
um rgido procedimento de anlise crtica das fontes. No mesmo
sentido, reprovou o demasiado empenho dos historicistas da primeira
metade do sculo XIX em afirmarem-se to somente mediante
avaliaes negativas da filosofia especulativa da histria, sem a
preocupao em fundamentar um procedimento metodolgico
justificado, correspondente e coerente com os seus intentos e
pretenses. O Princpio de Historicidade, anttese adotada contra o
Absolutismo do Sistema hegeliano e que firmava a historicidade do
4
saber historicizao da Razo , resultara em uma consistente
aporia, que passou a constituir a matriz de uma srie de acusaes aos
historiadores de perspectivismo e relativismo, assim como
questionamentos quanto ao status cientfico da Histria.
Semelhantes acusaes e questionamentos careciam
urgentemente de uma resposta, tarefa da qual se ocuparam tanto
Droysen, em sua teoria da Histria, quanto Dilthey, em sua tentativa
filosfica de fundamentar as Cincias do Esprito
1
.
No que concerne particularmente a Droysen, pode-se afirmar de
antemo que este admite as crticas e exigncias externas de
cientificidade impostas Histria. No obstante, para o mesmo,
estabelecer a Histria como cincia implicaria tanto na recusa da
deduo do conhecimento dos fatos passados, especulativamente,
segundo o modelo da filosofia da histria de Hegel, quanto o rechao
da explicao dos mesmos atravs de uma cadeia de causas e efeitos,
segundo o modelo das cincias naturais. Droysen adverte, nos
primeiros pargrafos do Compndio de suas lies sobre teoria da
Histria Grundriss der Historik - que no seria adequado Histria,
se acaso esta tem a pretenso de ser cincia, tomar seu mtodo
emprestado de outra rea de conhecimento, pois deste modo no
conquistaria qualquer autonomia frente s mesmas, mas constituiria
somente mais um exemplo de cincia natural ou de exemplificao de
um Sistema Filosfico. Logo, se a Histria aspira autonomia e
cientificidade, esta deveria empenhar-se na busca e elaborao de um
1
Fato este registrado nas indicaes oferecidas por Hans-Georg Gadamer, na segunda parte da
conhecida obra Verdade e Mtodo I. (Cf.: GADAMER, 1997, pp. 273 - 368)
5
mtodo prprio, coerente com as pretenses e peculiaridades da
mesma.
A soluo apontada por Droysen, sintetizvel na noo
metodolgica de Compreenso Investigativa (forschendes Verstehen),
visa estabelecer a Histria como uma cincia metodologicamente
autnoma. O conferimento de um mtodo especfico para o mbito da
Histria constitui, neste sentido, o preldio do dualismo Explicao x
Compreenso, caracterstica latente no surgimento das assim
chamadas cincias humanas no interior do sculo XIX.
A presente dissertao tem por objetivo analisar
reconstrutivamente o conceito metodolgico de Compreenso
Investigativa no interior da obra Histrica. Semelhante anlise tem a
pretenso de identificar em que medida a compreenso hermenutica,
enquanto adotada como mtodo especfico da Histria por Droysen,
constitui uma noo passvel de ser caracterizada to somente
epistemologicamente. Neste sentido, procurar-se- identificar no
apenas o significado e relevncia do referido conceito, mas perguntar
pelos seus fundamentos e pressupostos, tanto implcitos quanto
explcitos e, sobretudo, reconstruir sua articulao e exposio no
interior da referida obra.
Para tal, empregar-se- basicamente a verso espanhola da
Histrica (1983), correspondente compilao das lies
droysenianas efetuada por Hbner em 1937; a verso italiana (1994),
correspondente ao primeiro manuscrito da Histrica datado de 1857;
bem como o Compndio da Histrica - Grundriss der Historik
1857/1858 - disponvel em lngua italiana (1989). A priorizao dos
6
textos especificamente droysenianos justifica-se pela pretenso de
abordar a noo de Compreenso Investigativa enquanto conceito
resultante do interior da Histrica, apresentando a estrutura
argumentativa, buscando a relevncia filosfica e reconstruindo a
exposio do conceito metodolgico droyseniano.
Nesse sentido, optou-se por dividir o trabalho em trs captulos
que, subseqentemente, visam contemplar quatro momentos
especficos, a saber: um primeiro momento descritivo-informativo
sobre a obra Histrica; um segundo momento, no qual se pretende
analisar reconstrutivamente a noo de Compreenso Investigativa;
um terceiro momento, onde procurar-se- apresentar de modo sucinto
as diferentes etapas constituintes do mtodo formulado por Droysen,
assim como o ponto de vista de sua aplicabilidade; e por ltimo,
elencar as implicaes resultantes da referida noo de compreenso.
Sendo assim, no primeiro captulo, pretende-se oferecer uma
caracterizao geral da Histrica, perpassando a gnese primria das
lies droysenianas sobre teoria da Histria at as compilaes
pstumas s mesmas. Procurar-se- apresentar um histrico da
constituio da referida obra; a estruturao da mesma, enquanto um
todo; as diferenas estruturais, oriundas tanto das alteraes efetuadas
por Droysen entre os perodos de 1857 a 1882, quanto das alteraes
resultantes das diferentes compilaes; e, finalmente, uma elucidao
geral dos conceitos centrais adotados por Droysen, muitos
inaugurados pelo mesmo e outros advindos da tradio filosfica.
No segundo captulo, em um primeiro momento, remonta-se
para o interior da Histrica, assinalando a discordncia metodolgica
7
de Droysen para com o historiador ingls Buckle, sinnima de uma
avaliao crtica da Escola Histrica que conduz formulao da
noo de Compreenso Investigativa. Ademais, quanto ao que
concerne fundamentao da referida noo metodolgica, o presente
captulo pretende expor a teoria material prvia da histria que
precede o estabelecimento do mtodo , determinante no apenas para
a normatizao e pretendida autonomizao cientfica da Histria, mas
tambm reveladora de uma ontologia da histria. Isto permitir
explicitar um vnculo intrnseco e recproco existente entre a
compreenso histrica e a autocompreenso. Este ltimo fato pretende
ser suficientemente capaz de conferir sustentao afirmao de que
j em Droysen - salvo a qualificao da hermenutica droyseniana
como metodolgica - o conceito de compreenso constitui, muito alm
de um mtodo, um conceito ontolgico.
No terceiro captulo, por sua vez, adotar-se- como pano de
fundo a universalizao do problema hermenutico da compreenso,
efetuada por Droysen. Neste sentido, o captulo tem a pretenso de
expor a apresentao da aplicabilidade do mtodo, conforme descrito
por Droysen nos captulos Metdica e Sistemtica da Histrica. Como
temticas centrais das sees constituintes do referido captulo,
procurar-se- abordar: a preocupao de Droysen para com o
problema da perda da unidade da histria, aps Hegel - fato este que
determina uma total reformulao de seu plano inicial da Sistemtica
de 1857 para estruturao de 1882; como tambm, em um ltimo
momento, apresentar as implicaes resultantes da noo de
Compreenso Investigativa, avaliando em que medida a mesma
8
satisfaz as exigncias decorrentes da pretenso de constituir um
mtodo cientfico, assim como em que medida a referida noo pode
ser interpretada somente epistemologicamente.
Por fim, e de modo conclusivo, objetiva-se reconstruir os
resultados principais derivveis da anlise-investigativa procedida,
ressaltando primeiramente a relevncia de um estudo filosfico da
obra metodolgica de Droysen, seguido de apontes s conquistas e aos
problemas resultantes do trabalho metodolgico droyseniano. Este
ltimo tpico pretende servir de embasamento para o destaque das
possveis perspectivas a partir das quais a questo apresentada na
presente dissertao possa vir a ser aprofundada futuramente.
Resta ainda ressaltar, em justificao, que muitos ttulos que se
encontram elencados na Bibliografia no foram mencionados no corpo
do texto da dissertao. No obstante, os mesmos foram relevantes
para elaborao do presente trabalho, na medida em que ofereceram
fios condutores para leitura investigativa da Histrica.
9
CAPTULO 1
Gnese, composio e estruturao da Histrica
O propsito desta exposio consiste em oferecer, em linhas
gerais, uma apresentao da obra Histrica de J ohann Gustav
Droysen. Particularmente, voltar-se- a ateno para as lies
ministradas por Droysen na Universidade de Iena, assim como para o
histrico das compilaes pstumas das mesmas que, segundo
diferentes estruturaes, daro origem obra intitulada Histrica.
Tendo em vista semelhante pretenso, optou-se pela subdiviso do
captulo em cinco sees. Na primeira seo, tem-se por objetivo
apresentar a origem e composio do projeto da Histrica. Assim, em
um primeiro momento, pretende-se assinalar a gnese da Histrica,
tomando-se por ponto de partida uma caracterizao geral da obra.
Posteriormente, elucida-se o carter inovador que as referidas lies
droysenianas sobrepem tradio do gnero de estudos
historiogrficos propeduticos denominado Historik. Em um terceiro
momento, expe-se um breve histrico dos trabalhos compilativos, a
partir dos quais resultam diferentes verses da Histrica, seguida por
uma exposio das diferenas estruturais das compilaes adotadas na
elaborao da presente dissertao. Na ltima seo, assume-se como
tarefa a exposio elucidativa dos conceitos chaves adotados por
Droysen em sua teoria da Histria.
As consideraes presentes neste captulo serviro de
pressupostos elucidativos, notas propeduticas, para a anlise do
conceito de Compreenso Investigativa no interior da Histrica.
10
Assim sendo, justifica-se a necessidade do presente captulo,
cuja caracterstica predominante a estruturao descritivo-
informativa, em face de duas razes principais: primeiro, o parcial
anonimato, sobretudo no mbito da investigao filosfica, de autor e
obra aqui enfocados; segundo, oferecer subsdios que permitam a
contextualizao e viso estrutural da Histrica como um todo, de
modo a superar o carter fragmentrio tanto de suas diferentes
compilaes quanto de seu Compndio.
1.1 Gnese da Histrica
No semestre de vero do ano letivo de 1857, Droysen inicia na
Universidade de Iena uma srie de prelees, que repetiria e
reformularia ao longo dos vinte e cinco anos subseqentes, em dezoito
ocasies, intituladas Lies sobre Enciclopdia e Metodologia da
Histria.
A genealogia das referidas lies remete-se aos trabalhos de
juventude de Droysen, sobretudo composio de Histria do
Helenismo, cujo primeiro dos trs volumes Droysen publicaria ainda
em 1933, quando acabara de completar vinte e cinco anos, sob o ttulo
de Alexandre Magno.
No trabalho de reunio e interpretao das fontes para
elaborao de Alexandre Magno, Droysen depara-se com
questionamentos de ordem metodolgica, reflexes paralelas que
futuramente determinaram as diretrizes de seu posicionamento
metodolgico. Semelhante reflexo caracterizava-se por um peculiar
11
interesse em descobrir o estatuto cientfico que conferia sustentao ao
discurso histrico
2
. Ser propriamente este trabalho marginal
composio de Alexandre Magno a gnese da Histrica, uma vez que
resulta nos cursos sobre teoria da Histria, assim como na redao e
edio, para uso exclusivo dos acadmicos, de um pequeno
Compndio sobre metodologia, ao qual acompanhariam uma srie de
cadernos e notas que permaneceriam inditos at a morte de Droysen.
Tal o fato que, no prefcio primeira edio de Histria do
Helenismo II, em 1843, Droysen assinalaria problemas tericos
resultantes da composio da referida obra, no assim denominado
Prefcio Privado
3
. Este, por sua vez, composto pelo registro de
questionamentos metodolgicos que perturbavam o autor em seu
ofcio e que, por sua vez, marcam a passagem dos estudos
droysenianos sobre o Helenismo para a teoria da cincia histrica, do
qual resulta a designao do mesmo como esboo primitivo da
Histrica
4
.
No Prefcio Privado, quatorze anos antes do incio das
prelees sobre teoria da histria, Droysen expe as preocupaes
metodolgicas que j o atormentavam, questionando se acaso a
filosofia da histria hegeliana deveria permanecer como modelo
metodolgico a ser adotado pelos historiadores, assim como apresenta
indcios passveis de serem interpretados como a exigncia de uma
Crtica da Razo Histrica, projeto que seria assumido por Dilthey
2
Cf.: LLED, 1995, p.416.
3
Tambm denominada Prefazione Privatta, publicada sob o ttulo de Teologia della Storia na
traduo para o italiano da Histrica, efetuada por L. Emery no ano de 1966, pp. 378 394.
4
Cf.: MUHLACK, 1990, p.371.
12
somente em fins do sculo XIX.
5
. De acordo com Droysen, no
referido prefcio,
ns temos a necessidade de um Kant, que
examinasse criticamente no a matria histrica, mas
o movimento terico e prtico diante e no interior da
histria, e que demonstrasse, a exemplo de qualquer
coisa anloga lei moral, em um imperativo
categrico da histria, a fonte viva da qual jorra a
vida histrica da humanidade. Por acaso a filosofia
da histria j no o teria fornecido? Eu creio que
no, uma vez que essa, pelo contrrio, toma aquilo
que foi e apenas como uma exemplificao da
lgica, considerando a histria apenas para a
autonomia de um Sistema grandioso, a saber, do
movimento dialtico. (DROYSEN, 1966, p. 386.)
Nesta passagem possvel constatar que Droysen, nos
primrdios de sua teoria da Histria, compartilha da tese dos
historicistas alemes da primeira metade do sculo XIX, cuja
preocupao elementar constitua o afastamento da filosofia da
histria de carter especulativo, em prol da autonomizao da
Histria
6
frente filosofia.
No obstante, como teria Droysen chegado a semelhantes
questionamentos? Quais dificuldades, derivveis de seu trabalho com
as fontes de Alexandre Magno, conduziram-no a refletir acerca de uma
metodologia para a Histria?
5
Na presente dissertao, no procurar-se- desenvolver a temtica da Crtica da Razo Histrica,
nem mesmo a relao Droysen Dilthey, de modo que, a passagem acima apresentada deve ser
considerada apenas como indicao elucidativa.
6
No corpo do texto da presente dissertao, dado o fato de no existir em lngua portuguesa duas
palavras designativas para as duas significaes do termo histria como ocorre no alemo com
Geschichte e Historie , adotar-se- Histria quando houver referncia cincia histrica, ao
13
Em certa medida, as respostas para estas questes so
encontradas na prpria Histrica, onde Droysen procura assinalar
aquilo que considera a tarefa de todo e qualquer historiador
comprometido para com o seu ofcio. Embora o modo como redija
esta exigncia seja um tanto quanto eufmico, Droysen estende a
todos os historiadores a necessidade de efetuar os questionamentos
que procura esboar em suas prelees, afirmando:
Parece-me ser do interesse de todos aqueles que
se dedicam a estes estudos, esclarecer e
perguntar-se pela justificao dos mesmos, pelas
suas relaes para com as outras formas de
conhecimento humano, pela peculiaridade de sua
tarefa, pela fundamentao de seu procedimento.
(DROYSEN, 1983, p. 6. ).
Droysen reivindica, sobretudo, uma teoria da Histria em face
da ausncia de uma delimitao do mbito especfico da Histria, de
procedimentos que orientassem o historiador em seu ofcio, deste o
trabalho de busca de fontes at a crtica e interpretao das mesmas.
Em suma, exigia um mtodo nico e especfico para a Histria
7
.
No obstante, o mais significativo na presente passagem acima
transcrita da Histrica, constitui o registro de que a identificao de
semelhante carncia , antes de tudo, uma preocupao oriunda das
prprias dificuldades enfrentadas por Droysen no exerccio concreto
de sua atividade.
passo que empregar-se- histria como sinnimo do conjunto de fatos passados, objeto de
investigao da Histria.
7
Cf.: DROYSEN, 1983, p. 6: A pergunta por um procedimento nico e especfico para a Histria
constitua uma preocupao esboada muito mais sob a forma de exigncia, advinda dos demais
mbitos de conhecimento, que uma preocupao presente nos crculos de historiadores.
14
Diante disto, uma pergunta se faz presente no itinerrio deste
trabalho de anlise da teoria da Histria droyseniana, a saber: enfim, o
que de fato a Histrica?
Em palavras de Droysen, A Histrica no uma enciclopdia
das cincias histricas, no uma filosofia (ou teologia) da histria,
nem mesmo uma Potica para a historiografia. Esta deve ser o
Organon da Histria. (DROYSEN, 1989, p.327.). A Histrica no
pretende ser, mesmo enquanto prelees, uma propedutica para
futuros historiadores, muito menos uma potica, dado que a Histria
no constitui para Droysen meramente um gnero literrio, mas
almeja ser um Organon. Em outros termos, Droysen est preocupado
em refletir sobre a possibilidade de autonomia cientfica da Histria,
tanto em relao filosofia, quanto em relao s cincias naturais.
Esta pretenso de autonomia metodolgica expressa radicalmente no
dcimo segundo pargrafo do Compndio, quando Droysen identifica
a Histrica como sendo o cnon que deve conter as regras
metodolgicas segundo as quais o ofcio do historiador deve orientar-
se
8
.
Isto denota uma preocupao para com a pretenso positivista
em constituir modelo paradigmtico de cientificidade, assim como
com as tentativas de elevar a Histria ao patamar de cincia mediante
a adoo do mtodo das cincias naturais. Droysen discorda
inteiramente desta alternativa, entendendo-a como um retrocesso, uma
re-subordinao da Histria, no mais filosofia, mas agora s
cincias naturais
9
.
8
Cf.: DROYSEN, 1989, p. 327.
9
Cf.: DROYSEN, 1983, p. 7.
15
Droysen identifica a subordinao da Histria a outras reas do
conhecimento como um fato presente em todos os tempos, no que
poder-se-ia chamar de uma Histria da historiografia. Segundo o
mesmo:
em todos os tempos, a especulao tanto teolgica
quanto filosfica tentou elevar a voz cantante nos
campos que pertencem Histria e no menos ao da
natureza, at que o retorno dos estudos clssicos no
sculo XV e o esprito mais livre da Reforma abriram
outros caminhos. Mas a nossa cincia apenas havia
libertado-se do domnio filosfico e teolgico o
grande mrito do sculo XVIII quando apareceram
as cincias naturais pretendendo apropriarem-se desta
e dirigir-la. Como h cinqenta anos a filosofia
afirmava que somente ela era cientfica e que a
Histria s o era na medida em que era filosfica,
assim tambm, agora, surgem as cincias naturais,
sustentando que somente cientfico aquilo que se
move segundo o mtodo das cincias naturais, sendo
que a filosofia de Comte e de Littr aderem a elas e
Thomas Buckle escreve trs tomos para elevar por
este caminho a Histria, como ele o diz, ao posto de
cincia. (DROYSEN, 1983, p. 24.).
Droysen procura descrever, nesta passagem, a condio em que
a Histria encontrava-se at o sculo XIX. A interpretao dos fatos
histricos sempre estiveram, segundo o mesmo, subordinados ou a
concepes teolgicas de histria, ou a sistemas filosficos, onde os
referidos fatos constituam to somente exemplificaes de leis.
Droysen acusa a filosofia de invadir o que denomina campos
pertencentes Histria, embora no contexto inicial da Histrica ainda
no assinale qual seria o mbito pertencente pretendida cincia
16
histrica. A referncia indireta a Hegel quando afirma que h
cinqenta anos soma-se meno da tentativa de Buckle de
empregar o mtodo positivista na Histria e ambas iniciativas so
rechaadas por Droysen. Deste modo, o autor procura definir no
apenas suas pretenses, mas, sobretudo, assinalar os interlocutores
com quem est debatendo, a saber: Hegel, Comte e, sobretudo,
Buckle.
Em uma afirmao extrada do Prefcio Privado possvel
identificar que as reivindicaes de Droysen, implicitamente expressas
na passagem anteriormente transcrita, o preocupam no sentido de
obter respostas satisfatrias e, no obstante, at ento inexistentes,
para os questionamentos metodolgicos que o perturbam. Segundo
Droysen:
encontro-me no embarao de adentrar-me em
consideraes que poderiam conduzir a um resultado
satisfatrio e adquirir plena fora comprobatria, to
somente se pudesse conferir ao reivindicado um
posto em uma Histrica, isto , uma doutrina da
cincia Histria. (DROYSEN, 1966, p. 385 386).
O reivindicado constitui a pretenso de autonomia normativa e
metodolgica da Histria, o que desperta no referido historiador a
perspectiva de formular uma teoria da Histria na esperana de obter
resultados satisfatrios para seus questionamentos. Este
empreendimento somente seria possvel se acaso assumisse o posto de
17
uma Histrica
10
Historik que, em um primeiro momento,
Droysen identifica como sendo uma doutrina da Histria,
diferentemente da conotao em que o referido termo era empregado
at ento.
1.2 Histrica (Historik): de gnero literrio categoria
hermenutica
Em termos gerais, a palavra Histrica designava as lies
propeduticas ao estudo da historiografia na formao de historiadores
em nvel acadmico. Desde os humanistas do sculo XVIII produziu-
se, para o ensino universitrio, tratados de teoria da Histria
intimamente ligados concepo de Histria como arte gnero
literrio e/ou disciplina auxiliar
11
. Neste sentido, uma Histrica
continha as regras para redigir obras historiogrficas, como tambm
orientaes quanto ao gnero de redao a ser adotado, regras para
leitura de obras e/ou exposies de investigaes historiogrficas.
Enfim, um catlogo organizado por mestres, cujos objetivos principais
eram: oferecer um plano de leitura das mais importantes obras
historiogrficas, desde a Antiguidade; reunir instrues acerca da
didtica a ser empregada no ensino da Histria; assim como oferecer
orientaes para leitura e utilizao de obras clssicas de historiadores
como Herdoto e Tucdides. Semelhantes lies eram freqentemente
10
Ao longo da presente dissertao, empregar-se- Histrica como termo designativo da
disciplina e prelees tradicionalmente existentes em precedncia a Droysen e Histrica como
designativo da compilao das prelees de Histrica ministradas por Droysen.
11
Cf.: MUHLACK, 1990, pp. 366 371.
18
publicadas sob a forma de manuscritos, os quais disponibilizavam aos
estudantes, resumos e esquemas das lies proferidas.
Droysen no apenas conhecia toda esta tradio de lies, como
tambm era ciente da publicao de compndios das mesmas, o que
fica explcito quando afirma no Compndio que a sua Histrica no
pretendia ser uma enciclopdia dos estudos histricos.
Ao oferecer o curso de Histrica em 1857, Droysen
surpreende aos seus estudantes, sobretudo pelo carter inovador de sua
proposta: suas lies no pretendiam oferecer uma introduo ao
estudo da Histria, mas discutir o estabelecimento da Histria como
cincia autnoma. Semelhante proposta caracterizava-se pelos
propsitos de
12
:
a- substituir a noo, at ento predominante, de saber histrico
como o conjunto de conhecimentos fixos e perpetuamente
transmissveis posteridade, pela idia de pesquisa histrica,
correspondente ao intento de uma produo constante de
conhecimentos histricos orientada por prticas totalmente
novas;
b- liberar a Histria da condio de disciplina auxiliar e
metodologicamente dependente, conferindo-lhe o status de
cincia independente, metodologicamente autnoma e com
finalidades prprias; e
c- estipular para a Histria uma pretenso especfica, a exemplo
das demais cincias do perodo.
12
Cf.: MUHLACK, 1990, p.363.
19
Em uma palavra, Droysen resignifica a disciplina de Histrica,
o que em nota preliminar s lies de 1857 Droysen define aos seus
alunos como sendo uma tentativa de falar-vos de uma disciplina que
at hoje ainda no existia (DROYSEN, 1994, p. 80).
No obstante, se todo o intento inovador constitui, ao mesmo
tempo, a finalizao de uma tradio pretrita e a inaugurao de uma
nova tradio, pode-se afirmar, neste sentido, que o carter inovador
da Histrica droyseniana, embora a separe das Histricas
precedentes, encontra-se merc de toda sorte de analogias para com
quelas
13
. Isto significa que Droysen tambm ir publicar compndios
de suas lies, disponibilizando aos estudantes um esboo sistemtico,
contudo demasiadamente conciso de seus cursos. Ademais, embora
reconhea como tarefa primordial de suas lies o estabelecimento do
novo fundamento paradigmtico da Histria, a mesma no deixa de
ser uma proposta de introduo aos estudos histricos, embora
estruturada sob um novo enfoque.
Esta proposta inovadora tornou-se acessvel queles que no
assistiram s prelees droysenianas somente a partir das compilaes
efetuadas destas ltimas, que resultaram na obra intitulada Histrica:
lies sobre Enciclopdia e Metodologia da Histria.
13
Cf.: MUHLACK, 1990, p. 360.
20
1.3 - Histrico das compilaes
Com a ajuda de seus alunos, Droysen ofereceu em 1857/1858
uma sntese de suas lies sob a forma de um Compndio que, em
1868, j merecia as honras de uma verdadeira publicao. O assim
designado Compndio, ao longo da vida de Droysen, restringiu-se a
duas verses, editadas em 1857/1858 e em 1882. Erich Rothacker
tornaria a public-los em 1925, afirmando ao prlogo que se tratava da
mais valiosa introduo s Cincias do Esprito de que tinha
conhecimento
14
. Em suma, trata-se de uma sinopse, organizada sobre
os ttulos de Introduo, Metdica, Sistemtica (1857/1858) e
Tpica (acrescida em 1882), que sintetiza em dezenas de curtos
pargrafos os distintos aspectos de uma possvel cincia da histria.
Este manual de metodologia, apesar da formulao precisa
inerente aos seus pargrafos, era excessivamente conciso, de tal modo
que o leitor que desconhecesse as elucidaes proferidas nas lies de
Droysen no captaria o seu sentido com clareza, sendo praticamente
ininteligvel sem alguma ajuda interpretativa.
15
.
Alm dos Compndios, Droysen publicou trs artigos em torno
da mesma temtica, cujo objetivo principal era o de esclarecer tpicos
obscuros de suas lies
16
, a saber:
a- A elevao da Histria ao posto de cincia que constitui
uma resenha crtica do livro de Thomas Buckle Histria da
14
As informaes empregadas na elaborao da presente seo tm como base as informaes
contidas na obra de LLED, 1995. pp. 411 - 421.
15
Cf.: SCHNDELBACH, 1991, p. 69.
16
Cf.: LLED, 1995, p. 417.
21
Civilizao Inglesa, na qual Droysen critica a pretenso do
historiador ingls de adotar o mtodo das cincias naturais nos
estudos histricos;
b- Natureza e Histria - onde expe sua concepo material de
histria, sob a qual funda uma distino entre a temporalidade
inerente natureza e a temporalidade histrica;
c- Arte e Mtodo - uma reunio de comentrios quanto ao
entendimento da Histria, pela tradio que lhe precede, como
um gnero literrio, assim como sobre a relevncia do
estabelecimento de regras exposio dos resultados
alcanados pela pesquisa histrica atravs de uma Tpica.
Estes trs artigos foram posteriormente incorporados ao texto da
Histrica, na compilao efetuado por Hbner em 1937.
A todos aqueles que se dedicaram compilao das lies de
Droysen, restava apenas a esperana de, uma vez que o mesmo havia
desenvolvido suas lies de metodologia ao longo de mais de duas
dcadas, houvessem dentre seus arquivos e notas pessoais,
manuscritos referentes a tais cursos. O primeiro a analisar este
material foi Christian Pflaum, em 1907, que inclui em seus resultados
uma srie de materiais inditos. No obstante, mesmo este material
mostrar-se-ia insuficiente para uma completa compreenso do
pensamento de Droysen, at o aparecimento da compilao de Hbner
22
em 1937
17
. Ao prlogo desta primeira edio, encontram-se
registradas a busca de materiais inditos efetuada por outros
investigadores, como o caso de J oachim Wach em Das Verstehen.
Grundzge einer Geschichte der hermeneutischen Theorie im 19.
Jahrhundert (1933). Conforme assinala Lled, nesta monografia
erudita, Wach procura apresentar a histria das teorias
hermenuticas, desde os escritos precursores de Schleiermacher,
Friedrich Ast e Friedrich Wolf, passando por Bckh, Droysen at
Ludwig Preller
18
. No terceiro volume da referida obra, Wach dedica a
Droysen um longo e complexo captulo, considerado uma das
exposies mais documentadas da hermenutica droyseniana, o que
pde ser constatado com a leitura do mesmo efetuada no processo de
pesquisa e composio desta dissertao.
Retornando a Hbner, faz-se necessrio informar que, de todo
material que dispunha, o mesmo utilizar principalmente a cpia
manuscrita que o prprio Droysen havia feito para o curso
correspondente ao semestre de vero de 1882. Esta verso matriz ser
a primeira utilizada na propagao do projeto metodolgico de
Droysen sob a forma de um livro. No obstante, o fato da publicao
de Hbner ocorrer somente mais de meio sculo aps a morte de
Droysen pode ser interpretado como uma das razes pela qual o
projeto do referido historiador mostra-se to desconhecido, uma vez
que a problemtica de fundamentao das cincias histricas j havia
17
Cf. LLED, 1995. p. 417.
18
Idem, p. 418.
23
sido incorporada, no incio do sculo XX, com as publicaes de
Dilthey, em seu projeto de uma Crtica da Razo Histrica
19
.
1.4- A estruturao da Histrica e de suas diferente verses
Por tratar-se de uma compilao pstuma, a Histrica possui
pelo menos duas verses distintas. A primeira corresponde edio
publicada por Hbner em 1937. Posteriormente houve a preocupao,
sobretudo por parte dos estudiosos e comentadores italianos de
Droysen
20
, em compilar, a partir dos cadernos de Droysen, uma verso
da referida obra correspondente aos planos de aula do ano de 1857.
Ao efetuar-se a leitura de ambas as verses, fica saliente a
alterao estrutural conferida por Droysen ao seu projeto inicial, como
pode ser conferido nos organogramas correspondente Figura 1, onde
encontra-se retratada a organizao da Histrica correspondente a
1857, e Figura 2, que retrata a estruturao da verso compilada por
Hbner em 1937.
A incorporao das mesmas no corpo de texto da presente
dissertao, sucedidas de devidos esclarecimentos, faz-se no intuito de
explicitar, em termos estruturais, as diferenas inerentes a cada
compilao respectiva, fato este no trivial, uma vez que do mesmo
decorrem dificuldades para o entendimento da proposta do referido
historiador como um todo organizado.
19
Esta afirmao constitui meramente uma hiptese, advinda da pesquisa, leitura e interpretao,
que permearam a elaborao da presente dissertao.
20
Emery; Fulvio Tessitore; Giuseppe Cacciatore; Giuseppe Cantillo; Silvia Caianiello.
24
Estrutura da Histrica - 1857
A histria e
o mtodo histrico
A nossa tarefa
Introduo
Heurstica
Crtica
Interpretao
Exposio
Metdica
A
Os Poderes ticos
B
O Homeme a humanidade
Sistemtica
"Histrica"
(Figura 1)
Na Figura 1, correspondente Histrica 1857, possvel
identificar trs divises especficas, a saber: a Introduo,
correspondente s consideraes preliminares quanto Histria, onde
Droysen procura expor a tarefa cabvel a todo historiador -
propriamente, a de superar as tentativas precedentes e contemporneas
ao referido autor de elevar a Histria ao patamar de cincia
21
- e a
fundamentao e formulao do mtodo histrico. Uma vez
formulado, na noo de Compreenso Investigativa, Droysen procura
apresentar os diferente momentos constituintes do mesmo, no
primeiro captulo, denominado Metdica. Este constitudo por
quatro sees, a saber, a Heurstica, que trata dos critrios que devem
orientar a busca e identificao do material que ir constituir fontes
21
Cf.: DROYSEN, 1994, p. 129 - 140.
25
para o trabalho investigativo, a Crtica, que submeter o material ao
exame de sua exatido e autenticidade, enquanto fonte, a
Interpretao, que contm as quatro possveis interpretaes s quais
o material deve ser subseqentemente submetido e a Exposio, que
contm as normas e possibilidades de apresentao textual dos
resultados obtidos. No segundo captulo, denominado Sistemtica,
identifica-se duas divises, A e B: uma primeira, cuja temtica so os
Poderes ticos e uma segunda seo, intitulada O Homem e a
humanidade. Dito de modo sucinto, em A Droysen procura elencar as
hipteses de trabalho passveis de admisso na interpretao dos fatos
histricos, em face da no admisso da Unidade histrica,
anteriormente conferida histria pelo Sistema hegeliano; estes so
para Droysen os Poderes ticos, ideais que movem os indivduos ao
longo do tempo e que se encontram expressos nas Instituies
22
. Em
B, Droysen procura apresentar a finitude do indivduo histrico, ao
mesmo tempo relacionando-a com a sua contribuio para com a
humanidade como um todo, ao longo do tempo.
Droysen define, na verso de 1857, Metdica e Sistemtica,
respectivamente, nos seguintes termos:
A nossa histrica dever, portanto, dividir-se
nestas duas partes: uma parte formal, na qual se
trata da metdica ou tcnica da nossa cincia,
sucedida de uma parte material, na qual vem
exposto o resultado da nossa cincia, a viso
ordenada de si e de seu mbito. (DROYSEN,
1994, p. 144).
22
Cf.: BURGER, 1977, pp. 168 173.
26
No prefcio da mesma verso, encontra-se uma elucidao da
Histrica, enquanto constituda de Metdica e Sistemtica, como
sendo uma obra que traduz uma tradio classificatria em uma
exigncia de sistema, aparentemente articulada no organon da
Metdica constituinte da primeira parte e em uma ontologia, inerente
Sistemtica, segunda parte
23
.
Na Figura 2, por sua vez, correspondente Histrica 1937,
possvel identificar quatro captulos principais, a saber: a Introduo,
Metdica, Sistemtica e Tpica.
Estruturada Histrica - 1937
A histria
O mtodo
Histrico
Introduo
Heurstica
Crtica
Interpretao
Metdica
O trabalho histrico
segundo sua matria
O trabalho histrico
segundo suas formas
O trabalho histrico
segundo seus trabalhadores
O trabalho histrico
segundo seus fins
Sistemtica Tpica
"Histrica"
(Figura 2)
23
Cf.: notas do prefcio escrito pela tradutora Silvia Caianiello, em DROYSEN, 1994, p.17.
27
A Introduo composta por duas sees, A Histria e O
Mtodo Histrico, nas quais Hbner mescla os artigos que Droysen
publicou com intuito elucidativo, ao longo dos anos em que ministrou
suas prelees. Posteriormente, a Metdica, agora composta por trs
partes, a saber: Heurstica, Crtica e Interpretao. Como segundo
captulo, tem-se a Sistemtica, onde possvel observar a maior
mudana estrutural em relao 1857. Esta passa a ser constituda por
quatro sees principais, correspondentes s Idias segundo as quais
os fatos histricos devem ser interpretados subseqentemente: O
trabalho histrico segundo seus materiais, O trabalho histrico
segundo suas formas, O trabalho histrico segundo seus
trabalhadores e O trabalho histrico segundo seus fins. Por ltimo,
tem-se a Tpica, que constitua a quarta seo da Histrica 1857,
Exposio, e que ganha nesta ltima compilao o status de captulo.
Nesta respectiva verso, encontra-se uma elucidativa definio,
em termos de Droysen, acerca do que , respectivamente, Metdica e
Sistemtica:
O que tratamos em nossa primeira parte, o mtodo
de investigao histrica, se movia totalmente nas
atividades formais de nossa cincia. Ali, tratava-se
de descrever o mtodo e os mtodos dos quais tm
que se servir nossa investigao, independentemente
das tarefas que a ela se estabeleam. E se nesta
considervamos diversas coisas materiais, isto
somente acontecia para a exemplificao [...], agora
uma diviso tal do formal e do material de fato
uma diviso de natureza doutrinria, uma
delimitao terica... (DROYSEN, 1983, pp. 230 -
231).
28
Isto significa que, enquanto na Metdica Droysen est
comprometido com a apresentao do mecanismo lgico da
compreenso, com os diferentes momentos constituintes do mtodo
que formula, na Sistemtica, por sua vez, Droysen procurar refletir
mais profundamente acerca do carter material daquilo que se
encontra sob o pretendido mbito da Histria. Por este motivo,
Sistemtica est associada uma ontologia do histrico e por esta razo,
Droysen enfatiza que na Sistemtica no se procura uma apresentao
formal do mtodo, mas sim a obteno de uma viso panormica da
cincia histrica
24
. Trata-se propriamente do estabelecimento dos
momentos segundo os quais os fatos histricos devem ser
considerados em sua particularidade, contudo, em observncia sua
matria, forma, trabalhadores e finalidades.
1.5- A terminologia da Histrica
Ao carter fragmentrio da Histrica, que se tenta parcialmente
superar pela apresentao da gnese e estruturao da referida obra
enquanto compilao, soma-se, como dificuldade para compreenso
da mesma, a terminologia empregada por Droysen em sua teoria da
Histria.
importante salientar aqui que no se deve perder de vista o
fato de que Droysen no esteve, em momento algum, especificamente,
24
Cf.: DROYSEN, 1983, p. 229.
29
comprometido com a redao de um livro, mas sim ministrando
prelees para um pblico especfico. Salvo a inteno de debater,
atravs de suas lies, com a tradio precedente de tericos da
historiografia e filsofos da histria, o referido autor dirige seu
discurso para acadmicos de historiografia. Isto implica no emprego
droyseniano de uma srie de citaes de fatos histricos e situaes
especficas do ofcio historiogrfico praticamente incognoscveis ao
pblico leigo. Outrossim, se o emprego de termos e exemplificaes
correntes na cincia da poca apontam para a confirmao da erudio
de Droysen, o mesmo fato comporta a ambigidade de que Droysen
dispensa elucidaes de termos e/ou a identificao precisa de fontes,
quando apela para citaes de trechos ou passagens de clssicos
literrios, de mximas de historiadores greco-latinos, Ilustrados ou
Romnticos.
Conforme observa Caianiello
25
, Droysen emprega em sua teoria
da Histria conceitos Modernos, contudo muitas vezes acrescidos de
nova significao e, portanto, necessariamente carentes de
especificao.
Alm do emprego dos referidos conceitos herdados da
modernidade, muitos deles da prpria filosofia da histria hegeliana,
Droysen inaugura algumas categorias centrais para o entendimento de
sua proposta, cuja significao paulatinamente apresentada e
acrescida de sentido ao longo do desenvolvimento de suas lies.
O objetivo principal desta quinta e ltima seo o de
apresentar o significado dos conceitos centrais presentes na Histrica,
25
Cf.: no prefcio escrito pela referida tradutora na edio de DROYSEN, 1994, p. 17.
30
de modo a superar a fragmentariedade que caracteriza as compilaes
da empresa droyseniana, assim como amenizar a possvel incidncia
de prejuzos investigao que se pretende proceder da Compreenso
Investigativa no interior da Histrica.
1.5.1- A empiria como predicado da cientificidade da
Histria
Dentre as primeiras frases da Histrica, assim como nos
primeiros pargrafos do Compndio, encontra-se registrada a
preocupao de Droysen de que a Histria no conquiste apenas o
patamar de cincia, mas de que seja uma cincia emprica. Isto
expresso nos seguintes termos,
A Histria o resultado do experimentar e do
investigar empricos. O carter de cada experincia e
de toda investigao emprica determinado
segundo a dadidade qual est dirigida. E essa pode
ser somente dirigida dadidade que se mostra
presente no horizonte sensvel da sua percepo.
(DROYSEN, 1989, p. 325).
A empiria, enquanto predicada cientificidade da Histria,
constitui para Droysen uma pretenso, relevante no apenas para a
especificao do ponto de partida da investigao qual o mesmo se
prope realizar, a saber, a busca de um mtodo para a Histria, mas
inclusive determinadora do carter peculiar da experincia fenomnica
humana, a percepo sensvel. Fulvio Tessitore acrescenta neste
sentido, que o ponto de partida da Histrica e do seu Compndio a
31
afirmao da Histria como cincia emprica, e que por esse motivo, a
pergunta que se deve colocar, antes de tudo, o que entendia Droysen
por empiria
26
.
Infelizmente no h na Histrica uma definio clara e precisa
acerca do que Droysen entendia por empiria. Certamente, uma vez que
pretendia afugentar a possibilidade de adoo do mtodo das cincias
naturais na Histria, o mesmo no entendia empiria como sinnimo de
empirismo. Uma pista para o entendimento do referido termo pode ser
encontrada em Tessitore quando o mesmo elucida que, por empiria
histrica, Droysen no pretendia fazer entender a coisalizao e
muito menos a interpretao materialstica dos fatos histricos.
Muito antes, significava a refutao da deduo dos fatos
especulativamente, segundo o modelo da filosofia da histria
hegeliana, assim como a refutao da explicao dos mesmos segundo
uma necessidade matemtica, em uma cadeia de causas e efeitos
27
.
Deste modo, pode-se concluir que o que Droysen pretende
firmar ao incio de suas lies com o termo empiria, nada mais
que a pretenso de afastamento da discusso epistemolgica da
Histria das vias filosficas leia-se, hegelianismo e do
positivismo, enquanto alternativas para a cientificidade da Histria.
Ao considerar a Histrica como um projeto a realizar-se,
Droysen fundamenta a possibilidade e pretenso da Histria em
constituir-se cincia emprica com base na seguinte argumentao:
26
Cf.: TESSITORE, 1971, p.329.
27
Idem, p.329
32
As cincias naturais reconhecem que elas no esto
de modo algum em condies de esclarecer, com sua
mecnica dos tomos, tudo o que se encontra no
mbito da investigao emprica. Se tal o caso,
ento h de se encontrar para este resto, por grande
ou pequeno que possa ser, outras formas de
conhecimento, formas tais que correspondam
peculiaridade dos fenmenos que caibam nestes, que
resultam desta peculiaridade, para as quais tm que
ser adequados. Empiricamente, tal como pretende
ser nossa cincia, no podemos fazer outra coisa que
encontrar e tomar nosso ponto de partida de forma
emprica. (DROYSEN, 1983, p. 7).
Nem todo o mbito emprico suficientemente explicvel pelo
mtodo das cincias naturais. Esta a constatao de Droysen e, com
base na mesma, defende que o mbito pertencente Histria no
passvel de explicao matemtica, pois os fatos histricos no se
sucedem segundo uma causalidade. Se assim o fosse, a previso
histrica do futuro seria mais do que possvel. Os fatos histricos no
so, portanto, suficientemente abarcados e elucidados, caso adote-se o
mtodo positivista. Quanto a Comte e a afirmao do mesmo de que a
transposio dos fenmenos vitais na classe dos fenmenos fsicos
constitui uma conquista cientfica
28
, Droysen ataca-o sublinhando que
Quem assim fala esquece que em nenhum caso todos os fenmenos
empricos so passveis de uma nica modalidade de considerao...
(DROYSEN, 1994, p. 101). A busca pelo mtodo, adequado esta
peculiaridade histrica, no ter por base uma definio especulativa
de histria, mas sim um entrelaamento entre uma teoria material da
28
Cf.: DROYSEN, 1937, p. 453.
33
histria e uma filosofia transcendental, que procura considerar as
peculiaridades do aparato cognoscitivo humano, da percepo
sensvel, emprica, do sujeito, considerao esta, segundo Droysen,
extremamente significativa, uma vez que a Histria pretende ser
emprica.
1.5.2 Os mltiplos sentidos do termo histria
Pode-se afirmar que o termo histria constitui, por si s, um
exemplo de palavra que comporta em si uma dupla significao, a
saber: a de designadora do conjunto de eventos passados e/ou da
realidade, colocada sob a perspectiva de passado-presente-futuro,
assim como a forma de conhecimento ou cincia que tem quela por
objeto
29
. Contudo, esta afirmao nada acrescenta em termos de
novidades, investigao aqui desenvolvida, dada a trivialidade com
que se adota, convencionalmente, histria para o primeiro sentido
apresentado e Histria para o segundo.
No obstante, semelhante trivialidade tende a desaparecer
paulatinamente quando se empregam expresses como Filosofia da
Histria e mesmo Teoria da Histria. A elucidao do sentido no
qual o termo histria est sendo empregado, em ambas
circunstncias, torna-se, mais do que nunca, necessrio a toda e
qualquer tentativa de compreenso do pensamento de um autor
30
.
No caso de Droysen, saber identificar quando o mesmo
emprega o referido termo em um sentido e quando o emprega em
29
Cf.: BORGES, 2003, p. 11.
30
Cf.: INWOOD, 1997, p. 160 161.
34
outro, constitui uma tarefa importantssima. Ademais, possvel
identificar na Histrica pelo menos cinco significaes diferentes
atribuveis ao referido termo: histria, enquanto curso dos eventos
passados, Histria como cincia, histria como categoria em
sentido kantiano, histria como o fenmeno subsumido a esta
categoria e, por ltimo, histria como o conhecimento resultante
desta subsuno.
sabido que, antes de tudo, o tema central da referida obra
constitui a busca pela fundamentao, formulao e exposio do
mtodo especfico da Histria. No obstante, definir mtodos e
tcnicas mais adequados para se atingir o conhecimento histrico
constitui, mesmo hoje, um dos assuntos mais polmicos em matria de
epistemologia, um tpico problema que permanece em aberto e que, na
Histrica, mais do que nunca, soma-se multiplicidade de sentidos
que o termo histria assume no interior da mesma.
Um pequeno exemplo desta complexidade pode ser encontrado
em Verdade e Mtodo I, quando Gadamer refere-se concepo de
histria droyseniana como no constituindo somente um objeto do
saber, mas como o objeto que est determinado em seu ser pelo saber-
se
31
.
Mas se o saber a histria o objeto da Histria, a afirmao
de Gadamer pode ser entendida como: a histria em Droysen est, j
em seu ser, determinada pelo saber-se. Assim, antecipadamente,
afirma-se que esta a concepo material de Droysen acerca da
histria, passvel de ser designada como historicizao da histria.A
31
GADAMER, 1997, p. 323.
35
Histria nada mais que o prprio saber-se inerente histria, que
constituda por aes humanas. Droysen
32
ainda faz questo de
estabelecer que o Homem no responde, como ocorre com os animais
e as plantas, ao conceito de gnero, mas sim ao conceito de histria.
Cada indivduo, em particular, no pode ser definido segundo um
gnero, mas deve recorrer realidade histrica em busca de sua
identidade presente. Para os seres humanos, segundo Droysen, A
autoproduo de sua essncia sua destinao e seu trabalho.
(DROYSEN, 1994, p. 104), e isso ele tm que faz-lo ao longo da sua
existncia finita, mediante a assimilao tomada de conscincia de
que constitui um resultado histrico e deve contribuir, enquanto tal,
para a continuao daquilo para o qual est destinado.
No Compndio 1857 1858, por sua vez, Droysen afirma que:
a Histria no a soma dos acontecimentos, no
cada decurso de todas as coisas, mas um saber que
concerne aquilo que chegou a ser o que . Sem este
saber, o acabado, o que chegou a ser o que , seria
como no acabado; seria passado. [...] A Histria o
resultado do experimentar e do indagar empricos,
Historie. (DROYSEN, 1989, p. 325).
para esta Histria, entendida como saber, que Droysen busca
a autonomia cientfica e metodolgica, assim como a considera
sinnima da acepo primitiva do termo grego historie,
especificamente, investigao
33
.
32
Cf.: DROYSEN, 1983, pp. 12 - 14.
33
Cf.: INWOOD, 1997, p.160 162.
36
Quanto ao termo histria em sua terceira significao,
encontra-se em Schndelbach, referente teoria da cincia histrica de
Droysen, a afirmao de que a histria no pertence ao terreno do ser,
mas constitui uma categoria no sentido kantiano da palavra.
34
. Este
terceiro sentido do termo pode ser encontrado na Histrica quando
Droysen afirma que Natureza e Histria so os dois conceitos mais
amplos sob os quais o esprito humano concebe o mundo dos
fenmenos (DROYSEN, 1983, p. 14.).
Em outra obra, intitulada Geschichtesphilosophie nach Hegel,
Schndelbach discrimina pelo menos outros trs desdobramentos,
atribuveis ao termo histria, enquanto entendido como categoria
transcendental, no interior da Histrica
35
:
a) Histria 1: a histria modo de concepo ou um modo de
conceitualizao de fenmenos dados, o que se aproxima
daquilo que Kant denominou categoria.;
b) Histria 2: histria o saber acerca de um objeto;
c) Histria 3: histria o objeto de um saber.
Dado Histria 1, decorrem Histria 2 e Histria 3, isto , aquilo
que subsumido na categoria de Histria corresponde ao terceiro
sentido elencado por Schndelbach, como o saber resultante desta
subsuno corresponde ao segundo sentido apresentado por
Schndelbach.
Nestes termos, torna-se significativa a afirmao droyseniana de
que sem este saber, que constitui a Histria, o acontecido, a histria,
seria como se no tivesse acontecido, pois seria desconhecida.
34
Cf.: SCHNDELBACH, 1991, pp. 70 71.
35
Cf. SCHNDELBACH, 1974. p. 92.
37
Apenas recordando, tomando o seu passado como objeto e
subsumindo-o na categoria de Histria, cuja peculiaridade reunir
todos os fenmenos que no se apresentam sensibilidade humana
como mera repetio cclica, mas como uma constante mudana
cumulativa
36
que o ser humano chega conscincia de si, chega ao
saber histrico.
1.5.3 Os Poderes ticos
Quanto ao conceito de Poderes ticos, pode-se afirmar que
este empregado por Droysen, mais especificamente, na Sistemtica,
onde assume uma significao singular.
No obstante, primeiramente faz-se necessrio uma breve
elucidao que concerne traduo do referido conceito do alemo
sittliche Mchte, uma vez que h uma discordncia quanto traduo
deste por Poderes ticos ou por Poderes Morais. Em peridicos de
lngua inglesa
37
, por exemplo, encontra-se geralmente a expresso
morals powers, traduzida como Poderes Morais. Mesmo em
Verdade e Mtodo I possvel encontrar a expresso Poderes
Morais, em afirmaes substanciais, como Este conceito dos
poderes morais ocupa em Droysen uma posio central.
(GADAMER, 1997, p. 329) e mesmo a prpria Histrica em verso
espanhola adota a formulao Poderes Morais em lugar de Poderes
ticos.
36
DROYSEN, 1983, p. 16.
37
BURGER, 1977; ERMARTH, 1981; WHITE, 1980 e 1987.
38
Contudo, aqui, optou-se por adotar a expresso Poderes
ticos, com base nas indicaes oferecidas por Caianiello na
introduo de sua traduo para o italiano da Histrica. Segundo a
especialista em Droysen, o autor emprega o termo sittliche, ticos,
com base na distino entre eticidade e moralidade, ao passo que
opta por Mchte, Poderes, para diferenciar-se do conceito, na
ocasio em forte vigncia na Fsica, de Fora.
38
.
Finalmente quanto significao de Poderes ticos no
interior da Histrica, encontra-se em Ermarth
39
, a indicao da
expresso Poderes ticos como sendo passvel de ser entendida
como sinnima de instituies, que refletiriam as concepes, ideais
e convices de um povo em uma determinada poca. Neste sentido,
Droysen, define como exemplos de Poderes ticosa lei, o Direito e
a Constituio, tambm a esto as grandes necessidades e normas da
economia, da igreja, da poltica, da guerra, da responsabilidade oficial
e burocrtica, da produo artstica, etc. (DROYSEN, 1983, p. 37).
Pode-se afirmar que Droysen apela para a formulao de
semelhante expresso em face da necessidade de - uma vez perdida a
Unidade que o Sistema hegeliano conferia histria, somada
carncia de um todo hipottico
40
- adotar-se Unidades hipotticas,
capazes de operarem como o todo da circularidade hermenutica
41
,
na qual os fatos histricos constituiriam partes.
38
Cf.: DROYSEN, 1994, p. 73.
39
ERMARTH, 1981. pp. 175 194.
40
Hipottico, pois a histria ainda no chegou ao seu fim para que se possa efetuar a circularidade
todo-parte de modo decisivo na busca do sentido hermenutico.
41
Trata-se do Crculo Hermenutico da Compreenso, cuja formulao tradicional prescreve que
o significado do todo definido a partir das suas partes constituintes, e as partes, por sua vez, s
tm sentido quando consideradas em relao ao todo, do qual fazem parte.
39
Gadamer, alm de destacar a centralidade deste conceito em
Droysen, reitera que Ele fundamenta tanto o modo de ser da histria
como a possibilidade de seu conhecimento... (GADAMER, 1997, p.
329), isto porque so como Idias, em sentido transcendental, segundo
as quais possvel interpretar uma ao ou fato histrico como
motivado por um Ideal: Isto basta para mostrar segundo quais pontos
de vista se deve investigar a histria do povo, pretendo dizer: desta
idia nas suas mltiplas formas fenomnicas. (DROYSEN, 1994, p.
436), complementaria Droysen.
No obstante, este ainda reiterar, ao longo da Histrica, que a
compreenso histrica, enquanto matriz geradora da conscincia do
presente, mobiliza os indivduos a assumirem seu papel na formulao
de novos Poderes ticos, isto , de novos Ideais.
40
CAPTULO 2
A hermenutica ao centro da teoria da Histria de Droysen
O presente captulo tem a pretenso de remontar-se para o
interior da Histrica, com o objetivo principal de identificar em que
medida a noo de Compreenso Investigativa constitui uma noo
passvel apenas de uma caracterizao no meramente
epistemolgica. A hiptese da qual se parte a de que, antes de
constituir uma noo de relevncia epistemolgica, o conceito de
compreenso constitui em Droysen um conceito ontolgico, na
medida em que este apresentado como caracterstica especfica e
inerente ao ser humano.
Para tal, efetuar-se-, em um primeiro momento, uma
caracterizao negativa do mtodo proposto por Droysen, com base na
reconstruo analtica das teses principais presentes no artigo A
elevao da Histria ao nvel de uma cincia. Posteriormente,
apresentar-se- as diferentes formulaes nas quais a noo de
Compreenso Investigativa apresentada no interior da Histrica. Em
um terceiro momento, procurar-se- submeter o referido conceito a
uma anlise de seus fundamentos e pressuposies, no intuito de
explicitar o entrelaamento de uma filosofia transcendental com uma
teoria material acerca da histria, prvia formulao metodolgica
do Compreender Investigativo. Este entrelaamento pretende ser
revelador de uma reciprocidade entre compreenso histrica e
autocompreenso, fato este suficientemente capaz de conferir-nos
41
sustentao para afirmao de que j em Droysen, no interior do
sculo XIX, o conceito de compreenso constitui, muito alm de um
mtodo, um conceito ontolgico.
2.1 - O que a Histria no pode ser
No ano de 1859, o historiador ingls Thomas Buckle publica o
primeiro volume da obra Histria da Civilizao Inglesa. Semelhante
fato representava a difuso das doutrinas fundamentais da filosofia
positivista de Comte na rbita da historiografia inglesa. Estas, por sua
vez, no tardariam a encontrar repercusso na Alemanha, cuja
historiografia, no referido perodo, estava estritamente marcada pela
ideologia romntica
42
. Embora entre os ideais romnticos e a filosofia
positivista no existisse uma hostilidade declarada, esta ltima no
encontrou um terreno to favorvel admisso no mbito
historiogrfico alemo, conforme ocorrera na Frana de Comte e na
Inglaterra de Buckle. Isto se deve ao fato de que em meados do sculo
XIX, a historiografia alem tenha iniciado seus primeiros passos em
direo a uma segunda fase, onde comeou a abordar a necessidade de
fundamentao da Histria como cincia livre de todo e qualquer
pressuposto metafsico problemtica na qual se envolveu a gerao
de historiadores a partir de Ranke
43
.
No que concerne a Droysen, particularmente, a recepo da
traduo de Histria da Civilizao Inglesa para o alemo, efetuada
por Arnold Ruge, implicou em uma minuciosa anlise da referida
42
Cf.: BRAVO, 1968, pp. 5 27.
43
Cf.: CASSIRER, 1964, p. 309.
42
obra, da qual resulta a publicao de um artigo intitulado A elevao
da Histria ao nvel de uma cincia. Neste, Droysen procura
explicitar, sobretudo, o que considera as falhas metodolgicas do livro
de Buckle, rechaando a pretenso implcita no mesmo de que o
positivismo conferiria Histria uma base cientfica segura
44
.
No referido artigo, e com demasiada ironia, Droysen refere-se a
Buckle nos termos:
O nosso fundador da cincia histrica lana-se com
uma liberdade digna de reverncia em sua tarefa. Ele
no considera necessrio elucidar os conceitos com os
quais pretende trabalhar, no considera necessrio
circunscrever o mbito no qual as suas leis encontram
aplicao. O que cincia e o que Histria, pensa
ele, todos j o sabem. Mas, pelo contrrio, no
ocasionalmente, ele faz com que fique destacado o
que ela no . (DROYSEN, 1937, p. 457).
Ao reprovar a iniciativa de Buckle, Droysen oferece uma
caracterizao acerca daquilo que a Histria no deve ser em sua
pretenso de autonomia metodolgica. No obstante, toda crtica
dirigida a Buckle possui um duplo significado: ao mesmo tempo em
que estabelece reprovaes iniciativa do historiador ingls, Droysen
prescreve quais so as exigncias a serem admitidas pela Histria no
itinerrio de busca da autonomizao metodolgica. Na passagem
acima transcrita, fica latente o senso de Droysen sobre a
situacionalidade na qual a Histria se encontrava, assim como a
44
Cf.: CASSIRER, 1964, p. 310.
43
identificao da necessidade de uma tarefa a ser efetuada. Esta, por
sua vez, consistia na elaborao de uma teoria que estipulasse as
condies de toda Histria possvel; que contivesse elementos
teoricamente fundamentados que pudessem estipular como e por quais
meios deveria orientar-se a investigao histrica. Em uma palavra, a
urgncia de uma Histrica, de uma teoria que estipulasse as
condies de possibilidade de todo conhecimento histrico
45
. A
Histria, segundo Droysen, encontrava-se atrasada em relao s
cincias naturais, fato reconhecido quando comenta o intento de
Buckle, nos termos:
Nosso tempo se orgulha pelo fato de que trabalha de
modo cientificamente mais livre, mais elegante,
com maiores resultados, inclusive prticos, do que
qualquer perodo anterior. Com maior inclinao,
este prmio dado s cincias naturais, em relao
quilo que elas produzem. A fora destas disciplinas
repousa no fato de que elas so, de modo
completamente claro, conscientes das suas tarefas,
dos seus meios e do seu mtodo, assim como no
fato de colocarem sob aqueles pontos de vista sobre
os quais o seu mtodo est fundado, e somente sob
estes, as coisas que colocam sob o mbito de suas
investigaes. (DROYSEN, 1937, p. 452).
Droysen reconhece nas cincias naturais aquilo que ainda
mostra-se carente de execuo na Histria: o mtodo, a conscincia da
tarefa, a clareza do ponto de vista a ser adotado. O autor da Histrica
no se limita simplesmente a criticar as cincias naturais, mas procura
45
Cf.: KOSELLECK & GADAMER, 1990, p.17.
44
extrair, a partir dos avanos atribuveis a estas, aquilo que a Histria
ainda no possui. No obstante, reprova a tentativa de Buckle de
conferir um mtodo capaz de elevar a Histria ao patamar de cincia
mediante a adoo do positivismo de Comte:
Teria sido feita, de fato, uma nova conquista na
cincia, quando os fenmenos vitais foram
introduzidos na classe dos fsicos e de fato o mbito
e essncia da cincia estariam, assim, corretamente
definidos? Deveriam os outros mbitos do
conhecimento humano reconhecerem-se como
cientficos apenas na medida em que estejam em
condies de introduzir fenmenos vitais na classe
dos fsicos? No seriam simplesmente os resultados e
sucessos admirveis das cincias naturais que
disseminaram a convico de que o seu mtodo seria
o cientfico por excelncia, seria o nico mtodo
cientfico? (DROYSEN, 1937, p. 453).
Segundo Droysen, Buckle no foi o primeiro que tentou
empreender a adoo de uma metodologia externa Histria como
forma de conferir orientao ao ofcio do historiador, afinal de contas
a Histria recm havia rechaado a filosofia especulativa da histria
de carter hegeliano, e mesmo Ranke, mediante a defesa de um
rigoroso procedimento de crtica das fontes, pretendera conferir
objetividade ao saber histrico
46
. Mas aquilo que Droysen
condena no empreendimento de Buckle propriamente o fato deste
pretender elevar a Histria a uma cincia atravs da demonstrao de
fatos histricos a partir de leis gerais. (Idem, pp. 453 - 454).
46
DROYSEN, 1994, pp. 129 140.
45
No h leis gerais segundo as quais os fatos histricos
transcorrem, segundo Droysen. Admitir isto, na concepo de
Droysen, equivaleria ou supresso da liberdade humana ou a
admisso da possibilidade de prever o futuro. Cada sujeito humano,
logo o prprio historiador, um sujeito finito, incapaz de, em sua
finitude histrica, conhecer o incio ou o fim da histria, para ento
determinar quais so as leis segundo as quais os fatos histricos
transcorrem. Droysen est convicto de que cada fato histrico que
venha a ser conhecido, deve ser considerado em sua particularidade;
no h leis histricas gerais mediante as quais estas particularidades
devam ser subsumidas e assim explicadas.
Atravs da minuciosa anlise da obra de Buckle, Droysen.
reconhece que o surgimento de um empreendimento como Histria da
Civilizao Inglesa s fora passvel de acontecimento pelo fato dos
historiadores no terem se mobilizado seriamente, em busca de uma
autofundamentao cientfica da Histria. Este lapso interno Escola
Histrica era o nico fato que, segundo Droysen, poderia explicar o
surgimento de novos intentos de delimitao, a partir de fora, de
mbito e mtodo Histria. Sendo assim, submeter a prpria Escola
Histrica a uma reflexo crtica quanto aos seus procedimentos, torna-
se um dos objetivos aspirados por Droysen, o que fica latente na
afirmao de que,
quando nos perguntamos pela justificao cientfica
da Histria e pela sua relao para com outros
crculos do conhecimento humano, quando pergunta-
se pela justificao de seu mtodo, pela conexo de
seus meios e de suas tarefas, ento, at agora, no
46
estamos em condies de oferecer uma resposta
satisfatria. Por mais srio que tenham pensado os
nossos historiadores acerca destas perguntas, a nossa
cincia ainda no estabeleceu a sua teoria.
(DROYSEN, 1937, p. 454).
Ser neste sentido que Droysen advertir que Uma obra como
esta de Buckle muito apropriada para recordarmos em que medida
no so claros e o quo so controversos os fundamentos de nossa
cincia, difundidos em muitas e quaisquer opinies. (Idem, p. 454).
Buckle, assim, no constitui simplesmente uma ameaa a ser
rechaada, segundo Droysen, mas uma prova das deficincias da
Escola Histrica Alem. As cincias naturais, admite Droysen, no que
concerne estipulao de seus fundamentos, desde Bacon encontram-
se frente da Histria. Sendo assim, em que medida a simples
refutao do referido empreendimento de Buckle seria satisfatria
para a Histria?
47
Nestes moldes, Droysen converte a crtica ao autor de Histria
da Civilizao Inglesa em uma auto-anlise avaliativa, em uma fonte
que, indiretamente, indica as tarefas a serem executadas na Histria.
Sob tal convencimento, Droysen finaliza seu ensaio afirmando que:
Para que se possa existir uma cincia da Histria
necessrio que esta tenha um objeto prprio,
especfico e peculiar, ou seja, que exista uma classe
de fenmenos aos quais no se possa aplicar nem o
critrio teolgico, nem o filosfico; que estes
fenmenos no possam vir a ser enfocados desde o
ponto de vista das matemticas ou da fsica. Trata-
47
Cf.: DROYSEN, 1937, p. 455.
47
se de problemas que no podem ser resolvidos pela
especulao teolgica, nem pela filosfica, nem
tampouco por este empirismo que s busca no
mundo dos fenmenos o comportamento
quantitativo; aqueles problemas no so passveis de
derivao lgica segundo princpios gerais, nem
mesmo possvel explic-los de um modo fsico-
matemtico, mas tampouco se limitar a mostr-los
de uma maneira emprica; em uma palavra, trata-se
de fenmenos aos quais deve-se compreender e
cuja compreenso requer a elaborao de recursos
conceituais prprios. (DROYSEN, 1937, p. 458).
Resta saber que mbito de fenmenos este que corresponde
especificamente Histria, o que lhes confere essa peculiaridade,
assim como de que modo, partindo destes, a Histria pode
fundamentar-se enquanto cincia autnoma, mediante a formulao de
um mtodo que no explique, apelando a leis gerais, os fatos
histricos, mas que conforme assinala Droysen -, compreenda-os.
No obstante, a obscuridade que paira sobre este compreender,
aqui, ainda constitui uma barreira a ser superada.
2.2 O conceito de Compreenso no interior da Histrica
Na Histrica o conceito de compreenso, que permanece
indefinido em A elevao da Histria ao nvel de uma cincia,
aparece sob trs designaes distintas e, ao mesmo tempo, inter-
relacionveis.
Na verso da Histrica correspondente a 1857, assim como no
sexto pargrafo do Compndio de 1857-1858, encontra-se: podemos
48
agora dizer que a essncia do mtodo histrico compreender
investigando, a interpretao. (DROYSEN, 1994, p. 02), e, de
modo sucinto, A essncia do mtodo histrico compreender
investigando. (DROYSEN, 1989, p. 326).
Na Histrica compilada por Hbner, por sua vez, encontra-se:
Nosso mtodo consiste em compreender investigando. Este o
segundo princpio fundamental. (DROYSEN, 1983, p. 30), e
subseqentemente, A tarefa do historiador a de compreender
investigando. (Idem, p. 35).
Antes de tudo, portanto, a Compreenso Investigativa , em
uma palavra, o conceito designativo do mtodo especfico da Histria,
ocupando um posto central no interior da teoria da Histria de
Droysen, sob trs designaes oferecidas pelo autor: essncia do
mtodo histrico; princpio fundamental da Histria enquanto cincia
e tarefa do historiador.
No obstante, o prprio Droysen reitera que, antes mesmo de
constituir um mtodo, a compreenso deve ser reconhecida como um
ato de conhecimento especificamente humano frente s coisas
humanas. O compreender o conhecer mais perfeito que nos
humanamente possvel. Por isso, realiza-se de imediato, subitamente,
sem que tenhamos conscincia do mecanismo lgico que a atua.
(DROYSEN, 1983, p. 34).
Ora, aqui reside a urgncia de uma pergunta: em que medida as
designaes oferecidas por Droysen ao conceito de compreenso so
suficientemente capazes de esclarecer o referido conceito no interior
da Histrica?
49
A tarefa que compete cumprir, neste instante, retroceder ao
incio da Histrica e tentar reconstruir a linha argumentativa
desenvolvida por Droysen, que culmina nas referidas descries.
Somente assim, o conceito assinalado ganhar sentido e poder ser
entendido segundo a terminologia designativa adotada pelo referido
autor.
Com base na tese de que integrao dos mtodos
hermenuticos na historiografia Droysen no apenas confere uma
formulao metodolgica Compreenso Investigativa , mas
inclusive uma fundamentao terica Histria
48
, pretende-se
retroceder ao incio da Histrica, visando ali encontrar, mediante uma
reconstruo dos fundamentos do referido mtodo, um esclarecimento
acerca do que significa, propriamente, Compreender Investigando.
2.2.1 - As notas preliminares Histrica
Nas Consideraes Preliminares, elaborada por Droysen em
antecedncia Introduo da primeira verso da Histrica, o autor
repete a afirmao implicitamente contida no artigo A elevao da
Histria ao nvel de uma cincia, segundo a qual qualquer pessoa tem
uma imagem aproximativa do que seja a Histria, a historiografia e
mesmo o que estuda a Histria; no obstante,
se acaso interrogar-se nossa cincia sobre a sua
legitimao, sua relao com outras formas e
direes do conhecimento humano, se acaso existe
48
Cf.: SCHANDELBACH, 1991, p.149 e GADAMER, 1997, p. 327.
50
uma investigao acerca da fundamentao de seu
procedimento ou da essncia de sua tarefa, aquela
no est em grau de oferecer respostas
satisfatrias.(DROYSEN, 1994, p. 79).
Ora, sabido que a finalidade das lies proferidas por Droysen
visa a autonomizao e a fundamentao da Histria como cincia.
Dado o contexto cientfico em que Droysen se encontra, isso
pressupunha um confronto direto com outros saberes, a saber, a
filosofia, por um lado, e as cincias naturais, por outro. Semelhante
confronto ser tecido, particularmente, no mbito metodolgico, onde
Droysen encontra-se encurralado entre duas alternativas: de um lado o
mtodo especulativo-filosfico; de outro, o mtodo cientfico-natural.
A Histria, que se afastara da filosofia da histria hegeliana,
prosseguia seus estudos sem perguntar-se pela peculiaridade de sua
tarefa, pela sua fundamentao e pelas regras de seu procedimento.
Que significa, pois: estudar histria? (DROYSEN, 1983,
p. 5), Em que consiste, portanto, o carter cientfico da Histria? Em
que relao se encontra este aspecto com o seu mtodo? (Idem, p.6).
Estas constituam, parafraseando Droysen, perguntas que at aquele
momento haviam sido consideradas superficialmente nos crculos de
historiadores. Disto provinha o fenmeno pouco agradvel de que as
demais cincias no sabiam em que situao se encontravam em
relao Histria, assim como a prpria Histria no sabia o que se
encontrava sob sua competncia.
49
.
Uma vez identificada semelhante lacuna, Droysen admite para
si o desafio de oferecer uma resposta a estes questionamentos,
51
convertendo esta carncia emdesafio, no mpeto de responder com
coerncia a estas perguntas, ilustrando sistematicamente o campo e o
mtodo da nossa cincia. (DROYSEN, 1994, p. 79).
Esta , sem dvida, a essncia da Histrica: oferecer uma
justificao para a Histria, definir sua relao para com as outras
reas do conhecimento humano, definir a sua tarefa, a fundamentao
de seu procedimento, explicitar o que a legitima enquanto cincia.
Tudo isto, porm, frente ausncia de um consenso entre os
historiadores quanto: natureza do trabalho histrico se este seria
artstico, cientfico ou ambos -, e quanto ao direcionamento dado
pesquisa histrica se esta visa o estabelecimento de leis que regem o
curso dos eventos ou busca a descrio de fatos passados
50
.
Esta a razo pela qual Droysen reitera que:
Parece verdadeiramente, portanto, chegado o
momento dos nossos estudos assumirem, em
primeira pessoa, o estabelecimento da sua prpria
essncia, da tarefa, da competncia que lhe cabe.
Tudo isto ainda no existe. Vou falar-lhes de uma
disciplina que at hoje no existia, que ainda no
tem nome nem posto no mbito das cincias.
(Idem, p. 80).
Trata-se de uma tarefa rdua, mas que desde muito tempo se faz
necessria no mbito histrico, assinala Droysen. A definio do
mbito, do mtodo e da tarefa; trs noes sobre as quais Droysen
debrua-se, contudo em observncia a duas advertncias: primeira, de
que J az na natureza da coisa [a investigao qual ele se prope],
49
Cf.: DROYSEN, 1983, p. 6.
52
que no se tome emprestado de outras cincias a definio de nossa
cincia e as regras de seu procedimento. (DROYSEN, 1983, p. 7).;
segunda, que empiricamente, tal como pretende ser nossa cincia,
no podemos fazer outra coisa que encontrar e tomar nosso ponto de
partida de forma emprica. (Idem, p.7).
Apenas recordando o que outrora j fora indicado no primeiro
captulo desta dissertao -, Droysen entende por empiria histrica a
no deduo dos fatos histricos especulativamente e a no explicao
dos mesmos mediante leis gerais. No obstante, ao mesmo tempo,
preciso partir de fatos empiricamente acessveis ao sujeito
investigador, caso a Histria pretenda ser uma cincia emprica.
2.2.2 mbito, mtodo e tarefa da Histria na Histrica
Na primeira verso da Histrica, o historiador-metodlogo
coloca-se de imediato a estabelecer, primeiramente, o campo da
Histria, quando descreve:
A nossa disciplina abarca, na realidade, seja na
prtica, seja no mtodo, um mbito de problemas
totalmente diferente daquele que costuma atribuir-
lhe as opinies correntes sobre a Histria. Esta, de
fato, no se restringe quilo que abarca o campo da
historiografia, mas sim todo vir-a-ser e ser das
coisas humanas tem em si um momento que de
natureza histrica, e este , portanto, do ponto de
vista cientfico, de competncia da Histria. Este
momento histrico , nas coisas humanas, o mais
50
Cf.: DROYSEN, 1983, p. 7.
53
importante; este o humano por essncia.
(DROYSEN, 1994, p. 80).
E logo em seguida, o modo como o mtodo desta cincia deve
ser estabelecido:
o mtodo cientfico se determina segundo o objeto
que deve tratar, assim como a estrada segundo a
meta a que deve conduzir. A medida e a modalidade
prpria destas coisas histricas so investigadas em
si mesmas; deve existir um mtodo histrico, e
apenas um, que seja aplicvel a estes mbitos.
(Idem, pp. 80 81).
Frente ao que considera as falsas alternativas para a Histria, a
saber, as concepes especulativa e materialstica do mundo, Droysen
estabelece o mbito das coisas humanas, consideradas em seu devir e
em seu ser, como sendo o campo de objetos da Histria. Quanto
concepo de mtodo a ser adotada, a metodologia da investigao
histrica deve adequar-se, definir-se e estruturar-se de tal modo que
contemple este vir-a-ser e ser prprio das coisas humanas.
Neste sentido, o mtodo histrico buscado por Droysen
encontra-se entre a especulao e o empirismo, sem implicar, ao
mesmo tempo, em um sincretismo de ambos. Sob tal situao, uma
ltima considerao preliminar firmada:
A tarefa que nos resulta com os estudos histricos a
de pensar historicamente (...) pensar historicamente
no , de fato, uma prerrogativa do investigador
histrico ou do historigrafo, mas todo aquele que
tem a ver, seja na teoria ou na prtica, para com as
54
configuraes das coisas humanas, deve possuir e
exercitar esta faculdade de conceber e colher os
poderes ticos em suas mltiplas manifestaes,
assim como em sua continuidade. (DROYSEN,
1994, p.81)
Pensar historicamente, aqui, torna-se pressuposto bsico para o
estabelecimento de um mtodo Histria, pois, segundo Droysen, esta
tarefa resultante sinnima de ter senso da realidade,
compreender que os ideais humanos somente so conhecveis na
medida em que so expressos e no modo em que se encontram
expressos e acessveis empiricamente, assim como em suas mltiplas
mutaes temporais.
Aquele que no pensa historicamente, no sabe o
que a desafeio filosfica pelo individual e pelo
particular, assim como ignora aquela outra
desafeio, ainda maior, que conduz a ver to
somente nmeros e matria, somente foras fsicas.
Contudo, aqueles que se voltam para os fenmenos
mutveis na certeza de que atrs dos mesmos
encontra-se a verdade dos poderes ticos e que
junto destes poderes ticos se realiza o esprito,
tm a certeza de que nestes se encontra e se define
a prpria realizao do esprito. (Idem, pp. 81
82).
A pretenso da Histria em ser cientfica repousa sob o
pressuposto droyseniano de que as investigaes histricas se faam
em face exigncia de pensar historicamente. Somente sob a
admisso deste ltimo possvel, para Droysen, encontrar a verdade
histrica, que define como:
55
verdadeiro para ns um ser para o qual se dirige o
nosso pensamento, quando aquele concorda com o
nosso prprio pensamento, e verdadeiro para ns o
pensamento que concebe e apresenta um ser tal como
esse o .... A verdade do ser se encontra no
pensamento e a verdade do pensamento verificvel
no ser. (DROYSEN, 1994, p. 82).
Todavia, h ainda uma questo pendente, e esta, por sua vez,
assinala a transio para uma segunda etapa da presente reconstruo:
De que tipo , portanto, o ser que corresponde ao pensamento e aos
pensamentos da nossa cincia? De que tipo so os pensamentos que
representam o ser tal como ele o ? (Idem, p. 82).
Dado o critrio de mtodo adotado por Droysen - segundo o
qual o mtodo definido a partir do objeto -, esta pergunta mostra-se
como uma interrogao pela natureza do ser e do pensamento, no
mbito histrico. Isto constitui, entre parnteses, a comprovao
primeira, extravel da Histrica, que avaliza a tese segundo a qual o
mtodo histrico droyseniano estabelecido sob um entrelaamento
entre uma filosofia transcendental e uma ontologia da histria, ou, em
outros termos, que teoria epistemolgica da Histria, precede uma
concepo material prvia, acerca da natureza do histrico
51
.
A busca de uma resposta para a referida questo constituir, no
interior da Histrica, o passo subseqente dado por Droysen.
51
Cf. SCHNDELBACH, 1991, pp. 152 - 153.
56
2.3 A fundamentao do mtodo histrico mediante o
entrelaamento de filosofia transcendental e ontologia da histria
Droysen procede a busca pela natureza do ser e do pensamento
histrico na certeza de que, uma vez encontrados, seja possvel a partir
destes elaborar um mtodo coerente s peculiaridades dos mesmos.
No obstante, as prescries orientativas desta busca recebem
diferentes formulaes nas verses de 1857 e 1937 da Histrica.
Quanto primeira, o autor estabelece que:
toda cincia que reflita sobre seu prprio sentido e
queira fundament-lo, deve buscar o seu prprio
incio. prprio desta busca, que no busquemos o
nosso comeo desde o contexto de uma doutrina da
cincia filosfica ou de um sistema teolgico, mas
sim iniciemos, por assim dizer, somente a partir
daquele ponto no qual se chega a uma definio de
histria. (DROYSEN, 1994, p. 82)
Na segunda edio, por sua vez, encontra-se de forma mais
resumida e sob a forma de uma interrogao: Antes de tudo, como
podemos vir a falar de histria e de cincia da Histria? (DROYSEN,
1983, p. 6).
Em comum, ambas as passagens assinalam para o incio da
busca e fundamentao do mtodo especfico da Histria mediante o
estabelecimento de uma definio primeira de histria, para que
ento seja possvel falar em cincia histrica.
Tomando seu ponto de partida de modo emprico, Droysen
observa que a histria, que os fatos passados sob os quais deve
57
debruar-se a Histria, so acessveis aos sujeitos somente de forma
indireta.
O que assim temos j no existe externamente e
de acordo com a realidade; se encontra, posto que
em seu ser externo passado, somente como
recordaes e representaes presentes em nosso
esprito e somente a tm vida e desde a operam
e cooperam constantemente. Com a palavra
histria, damos a entender a soma daquilo que
aconteceu no decurso do tempo, na medida e at
onde pode chegar nosso conhecimento do
mesmo. (DROYSEN, 1983, p. 8.).
O passado, ao qual se deve dirigir a investigao histrica, no
existe mais externamente. Como ento possvel Histria proceder
uma investigao emprica do mesmo?
A soluo droyseniana, no interior da Histrica, encontra-se na
afirmao de que o sujeito da investigao histrica no constitui
apenas um sujeito, mas ele mesmo objeto de sua prpria
investigao. Isto porque Droysen considera que ... todo o rico
contedo do nosso povo, da nossa poca so, como qualquer um pode
perceber, um resultado histrico e apenas neste resultado o passado
como que no passado... (DROYSEN, 1994, p. 85). De acordo com o
autor, ... todo ponto no presente, toda coisa e toda pessoa um
resultado histrico, contm em si uma infinidade de relaes que lhes
foram legadas e interiorizadas.(Idem, p. 88).
Portanto, cabe ao historiador voltar-se aos ... documentos,
monumentos, leis, situaes, restos de todo gnero (...) que em virtude
de sua permanncia, no presente, ainda podem ser utilizados como
materiais para pesquisa histrica. (Idem, p. 88).
58
Contudo como isto possvel? E mesmo, qual o carter destes
materiais assim chamados histricos?
Droysen esclarece que ...a propriedade de ser material para a
nossa cincia a encontramos onde as coisas conservaram a marca da
mo e do esprito humano, onde este foi como que atravessado pela
personalidade humana... (DROYSEN, 1994, p. 92). No obstante,
ainda permanecem as perguntas: como esta investigao se d, e
mesmo, por que somente as coisas humanas, o mundo humano,
constituem materiais para a Histria?
No h melhor momento que este, no interior da presente
anlise, para fazer uso da verso da Histrica correspondente a 1937,
onde graas incorporao efetuada por Hbner dos artigos
droysenianos de carter elucidativo acerca de suas lies proferidas,
possvel encontrar respostas s questes acima elencadas.
Para definir a natureza humana como sendo estritamente
histrica, Droysen apela para a distino Aristotlica entre animais,
plantas e seres humanos, presente no De Anima,
52
. Isto permite-lhe
distinguir:
o animal produz sempre um animal, a planta produz
sempre uma planta, para que deste modo participem
do eterno e do divino. Isto significa propriamente que
a participao destes no eterno e no divino se d
mediante a continuidade de seus respectivos gneros;
o gnero o elemento duradouro, a idia que se
fenomenaliza em cada novo animal e planta
individuais, e de tal maneira que, em todas estas
fenomenalizaes, o gnero que se repete
52
Contudo, isso no implica em um retorno a Aristteles. Droysen recorre verso alem
comentada de Trendelenburg, 1833 do livro II do De Anima de Aristteles apenas para da extrair
uma expresso que seja correspondente ou mais adequada, em termos de designao, sua
concepo de ser humano. (Cf.: CAIANIELLO, 2000, p. 77).
59
periodicamente. Aristteles agrega: o animal e a
planta, individualmente considerados, no
constituem um si mesmo, mas uma repetio do
gnero. O gnero humano se caracteriza de maneira
oposta. Nele domina a epdosis eis auto, o
crescimento cumulativo sobre si mesmo, isto , em
cada novo indivduo cria-se algo novo, um plus. (...)
por isso cada indivduo humano algum dotado de
um valor prprio...(DROYSEN, 1983, p. 12 13).
Diferentemente do animal e da planta, cada indivduo humano
no constitui uma repetio de um gnero, mas um ser que rene em si
algo herdado de seus precedentes e que contribui com algo novo para
com seus predecessores. Esta a epdosis eis auto
53
, a continuidade
que caracteriza ontologicamente o ser humano e que permite a
Droysen afirmar que, para cada indivduo humano, ... em lugar do
conceito de gnero, lhe prprio a histria. (Idem, 1983, p. 13).
Somente mediante esta elucidao, extrada da Histrica
correspondente a 1937, as afirmaes contidas na Histrica de 1857
ganham sentido. Droysen refere-se ao humano, no interior desta
ltima, afirmando que A autoproduo de sua essncia a sua
destinao e o seu trabalho. (DROYSEN, 1994, p. 104), e repete que
...o conceito de Homem um conceito tal que se forma to somente
ao longo da histria, que devm continuamente nesta, e devm em
todo eu emprico... (Idem, 1994, p. 505).
No obstante, mesmo definindo e justificando o que constitui
propriamente o histrico, Droysen, retomando sua busca pelo
53
A definio de epdosis eis auto extremamente tardia na terminologia de Droysen,
propriamente, posterior verso da Histrica de 1857. (Cf.: CAIANIELLO, 2000, p. 76).
60
estabelecimento do mtodo histrico a partir das peculiaridades do
objeto, insiste em perguntar:
o que que nos d a norma e, por assim dizer, nos
justifica resumir do caos das percepes sensveis,
umas como histria e outras como natureza?
Sabemos que tudo que se encontra no espao se
encontra simultaneamente no tempo, e vice versa;
que as coisas no se dividem objetivamente fora de
ns em natureza e histria, que tempo e espao
constituem somente as categorias mais gerais
segundo as quais decompomos e podemos ordenar a
soma dos fenmenos. (DROYSEN, 1983, p.14)
Aqui, Droysen refere-se natureza e histria no apenas
como mbitos distintos de objetos do conhecimento humano, mas
sobretudo, como categorias, em sentido kantiano. Contudo, estas
categorias no pertencem a uma Razo atemporal, mas sim a uma
conscincia que interpreta a si mesma como sendo histrica. Isto
porque, na medida em que o ser humano deve construir sua essncia
ao longo do tempo, os indivduos, subseqentemente, devem
assimilar, enquanto resultados histricos, todo contedo herdado que
os constituem. A cada indivduo cabe o papel de tomar conscincia do
contedo que constitui o seu eu, objetivando-o e, ao mesmo tempo,
contribuindo para a continuidade da construo da essncia humana.
Este processo a histria para Droysen e antes de apresentar
qual norma que permite ao ser humano chegar a obter conhecimento
histrico - dentro dos limites e possibilidades espao-temporais de seu
conhecimento, Droysen preocupar-se- em apresentar como se
61
desenvolve este processo temporal-humano de contnua construo da
prpria essncia, que designa por epdosis eis auto.
Segundo Droysen, dado o fato de todo indivduo humano ser
um resultado histrico este precisa assimilar o seu passado. Isto
somente possvel na medida em que o indivduo procura tomar
conscincia de si mesmo, do que o constitui e de tudo o que o rodeia.
Todo o presente humano, o aqui e agora, admitido por Droysen
como uma expresso qual cabe compreender, isto , reconhecer no
expresso a inteno daquele que se expressou mediante tal objeto,
palavra, ato, fragmento, concepo, ideologia.
Compreender, portanto, refazer o percurso da expresso,
contudo retroativamente, partindo do expresso. No stimo pargrafo
do Compndio, Droysen elucida que:
A possibilidade do compreender est condicionada
ao fato de que a natureza espiritual do homem
exterioriza todos os seus processos interiores em algo
perceptvel sensivelmente, e toda exteriorizao
remete-se a um processo interior. Esta, quando
percebida, suscita idealmente naquele que a percebe
empiricamente, o mesmo processo interior daquele
que se expressou. Ns somente temos afinidade com
o homem e com as coisas humanas, e somente estas
podemos verdadeiramente conhecer. (DROYSEN,
1989, p. 326)
A compreenso, antes mesmo de constituir um mtodo,
apresentada por Droysen como sendo a caracterstica peculiar do ser
humano enquanto ser histrico no processo de tomada de conscincia
de sua historicidade. A histria mostra-se, portanto, como um
62
contnuo processo, no qual os indivduos tomam conscincia do
passado que os precedeu e os constitui mediante a compreenso e,
feito isto, concordam ou reagem frente ao contedo herdado,
contribuindo para a mesma continuidade mediante a impresso de
novas configuraes, geradas em seu esprito, ao material que se
encontra ao seu redor.
Recordando a aluso a Aristteles, a histria mostra-se para
Droysen como um contnuo devir cumulativo de expresses humanas,
que contm na forma que lhes foi impressa, a inteno daquele que se
expressou.
Isso permite a Droysen retornar sua teoria do conhecimento
histrico, afirmando que os fenmenos percebidos pelo sujeito como
uma constante repetio so enquadrados na categoria de Natureza, ao
passo que aqueles fenmenos nos quais perceptvel ... um
permanente devir de novas formaes individuais, onde cada
formao nova no meramente diferente da anterior, seno que parte
da anterior e est condicionada por ela, de modo que pressupe as
anteriores e as tm idealmente em si, continuando-as e antecipando
subseqentes configuraes. (DROYSEN, 1983, p. 15 16), so
enquadradas na categoria de Histria.
De acordo com Caianiello, o que caracteriza a reflexo
metodolgica de Droysen, antes do estabelecimento do mtodo, a
apresentao de um paradigma de temporalidade histrica distinto do
que considera tempo natural.
54
54
Cf.: CAIANIELLO, 1989, p. 312.
63
Deste modo, Na medida em que nos humanamente
possvel ver e observar, somente o mundo humano tem esta marca do
desenvolvimento progressivo, da continuidade que cresce em si.
(DROYSEN, 1983, p. 16). Portanto, apenas o mundo humano, fruto
das aes e expresses dos indivduos ao longo do tempo, so
percebidos pelo sujeito humano como sendo histricos, graas
temporalidade especfica dos mesmos e, neste sentido, apenas os fatos
humanos constituem objeto para a cincia Histrica. justamente este
duplo sentido atribudo ao termo histria categoria em sentido
kantiano e condio necessria para a tomada de autoconscincia de si
que revela o entrelaamento entre uma filosofia transcendental e
uma ontologia da histria, no interior do estabelecimento da
fundamentao do mtodo histrico.
Ora, se o critrio de mtodo adotado por Droysen prescreve
que este deve ser definido a partir do objeto, resta a Droysen afirmar,
conforme o faz no sexto pargrafo de seu Compndio, que A
modalidade do conhecimento histrico, isto , Histria, determinada
a partir do carter morfolgico do seu material. (DROYSEN, 1989,
p. 326), pois estes materiais so expresses humanas que contm em
sua forma, conferida pelas mos humanas, a inteno do expresso,
passvel de compreenso. Logo, o nico mtodo suficientemente
capaz de adequar-se esta peculiaridade do material histrico a
prpria compreenso. Aquela forma de conhecer, peculiar ao ser
humano frente s expresses humanas, no processo de tomada de
conscincia do sujeito como sendo histrico, eleva-se agora ao posto
de mtodo especfico da Histria.
64
Somente assim, Droysen pode afirmar categoricamente: A
essncia do mtodo histrico compreender investigando
(DROYSEN, 1989, p.326).
A investigao mostra-se associada compreenso,
enquanto designao do mtodo histrico, na medida em que a
compreenso do sentido das expresses humanas, dos materiais
histricos, constitui uma tarefa infinita. Isto porque o prprio sujeito
que efetua a investigao histrica encontra-se na continuidade
epidotica da histria. Este conceito de investigao assinala,
portanto, para a finitude do investigador, que avana rumo ao
desconhecido
55
, tomando conscincia de si.
Isto permite concluir que a compreenso histrica equivale,
reciprocamente, prpria autocompreenso do sujeito. Esta
reciprocidade um trao quase imperceptvel no interior da teoria da
histria droyseniana. Contudo, vale frisar que, antes mesmo de
constituir o mtodo da Histria, a compreenso uma caracterstica
inerente natureza humana que, destinada a construir sua essncia
temporalmente e sem ter um gnero que a defina, obriga a cada
sujeito, em sua finitude, a remontar o passado, partindo das expresses
humanas acessveis empiricamente no presente, em busca da
identidade e conscincia de si.
Sendo assim, a compreenso passa a constituir o centro da
Histrica, passvel de uma caracterizao epistemolgica, enquanto
Compreenso Investigativa, mas antes de tudo um conceito
ontolgico.
55
Cf. GADAMER, 1997, p. 332.
65
2.4 A busca da cientificidade
Na verso da Histrica correspondente a 1937, encontram-se na
seo intitulada O mtodo histrico, tpicos de orientao para busca
e estipulao do mtodo histrico. Estes surgem em um contexto
interno obra, no qual Droysen acabara de expor sua concepo
material prvia acerca do histrico, assim como caracterizara a
continuidade epdosis eis auto como sendo a caracterstica que
predomina no curso dos eventos histricos. Em defesa de um mtodo
prprio s cincias histricas, Droysen afirma que:
O que dever ter importncia no mtodo histrico
que buscamos so os trs pontos seguintes:
1. O material que existe para a empiria histrica.
2. O procedimento, mediante o qual, obteremos
resultados a partir deste material histrico.
3. Os resultados obtidos por este meio e sua relao
com os fatos para os quais buscamos esclarecimento.
(DROYSEN, 1983, p. 24 25).
Na seo anterior j procurou-se mostrar que, quanto ao
material que Droysen distingue como pertencente investigao
histrica, estes so os restos de expresses humanas do passado, que
chegam at o historiador situado no presente.
Quanto ao mtodo, tambm sabido que Droysen estipula a
Compreenso Investigativa como sendo a essncia de todo
procedimento metodolgico da Histria.
Contudo, quanto aos resultados obtidos por este mtodo, assim
como em que medida estes resultados podem ser considerados
66
cientficos, Droysen somente estipula aps o estabelecimento da
Compreenso Investigativa.
Ainda na fundamentao do mtodo mediante o entrelaamento
de uma filosofia transcendental e uma ontologia da histria, Droysen
fala implicitamente de um duplo acesso ao mundo dos fenmenos, em
duas classes distintas de experincias possveis, sintetizveis nas
categorias de Histria e Natureza.
Agora a novidade proposta por Droysen a de que esta
subsuno nas categorias de Histria ou de Natureza encontra sua
expresso como cincias naturais e cincias histricas. Este fato
fundamentado por Droysen ao afirmar que Esta duplicidade, to
presente no ser humano, fundamenta os dois grandes mbitos dos
conhecimentos cientficos que elabora o esprito humano.
(DROYSEN, 1983, p. 13), subentendendo-se, cincias naturais e
cincias histricas.
Ora, aqui, mais do que nunca, fica latente o desejo droyseniano
de romper com o monismo metodolgico positivista. Se a Histria
pretende ser uma cincia emprica, conforme afirma desde o incio de
suas lies, portanto esta experincia emprica deve conter algo de
especial, que a distinga do procedimento indutivo das cincias
naturais. Por esta razo, antes de expor as diferentes partes
constituintes da Compreenso Investigativa, Droysen procurar
responder a uma ltima pergunta, a saber, De que gnero so os
conhecimentos obtidos e em que medida tm carter cientfico?
(Idem, p.13).
67
Antes de tudo, a prpria pergunta constitui uma afirmao:
possvel obter conhecimento mediante o mtodo da Compreenso
Investigativa. No obstante, seguem-se as questes quanto ao gnero
destes conhecimentos, assim como se os mesmo so cientficos e o
que lhes confere cientificidade. Aqui reside um ponto fundamental de
discusso, pois Droysen como que explicita que, do fato de ser
possvel obter conhecimentos mediante um mtodo autnomo, ainda
no significa que os mesmos conhecimentos sejam cientficos.
Para que este conhecimento histrico tenha carter cientfico,
Droysen pergunta por um elemento geral e necessrio
56
.
Segundo Droysen, os conhecimentos histricos obtidos
caracterizam-se, sobretudo, por no constiturem a reconstruo
objetiva do passado, o que seria pretender encontrar a quadratura do
crculo segundo Droysen, mas sim por constiturem parte do passado
herdado por todos os seres humanos e que constituem os seres
humanos enquanto seres histricos. Do conhecimento histrico,
decorre a tarefa de ... enriquecer e alimentar nosso mundo intelectual
com o conhecimento fundado na continuidade... (DROYSEN, 1983,
p. 36). Trata-se da autocompreenso de si mediante a compreenso
histrica, da auto-identificao do sujeito como ser finito, contudo,
participante da continuidade epidotica, da construo da essncia
humana ao longo do tempo. Com semelhante explanao acerca do
gnero dos conhecimentos obtidos, Droysen acredita ter respondido
56
GADAMER, 1997, p. 223: Afirma que a perda da Unidade da histria, enquanto conseqncia
do rechao da filosofia da histria hegeliana, conduz os historiadores da segunda metade do sculo
XIX busca de um a priori para o conhecimento histrico.
GUTIREZZ, 2002, pp. 33 e 34: interpreta semelhante preocupao como se tratando de um
retorno de Droysen questo da totalidade, que nos recorda Kant, ao qual, para que haja cincia
preciso que se agregue algo universal e necessrio.
68
questo quanto ao elemento geral e necessrio que confere
cientificidade aos conhecimentos histricos, afirmando que com isto
fica respondida a pergunta, quanto se o nosso conhecimento e nossa
investigao histrica so e podem ser cientficos. (DROYSEN,
1983, p.36). Esta afirmao decorre do fato de Droysen identificar na
prpria continuidade histrica, que pressupe autocompreenso de si e
expresso, o elemento comum e permanente ao longo do tempo, o
elemento geral e necessrio capaz de garantir a cientificidade ao saber
obtido pela investigao histrica. Na epdosis eis auto,
... nesta continuidade e aumento o mundo histrico
tem a sua verdade e o seu pensamento, e nossa
empiria trabalha para explorar os detalhes do
passado, na medida em que so empiricamente
apreensveis, para constatar nos mesmo, cada vez
mais e de maneira emprica, esta continuidade e para
apresentar os sujeitos individuais na corrente deste
progredir, e por certo, em todas as direes do ser
espiritual-sensitivo da natureza humana, tanto na
alimentao, como nos conhecimentos, na
linguagem e nos costumes, na indstria, nas artes, no
comrcio [...] Cada resto de material que se oferece
nossa empiria histrica deve ser explorado para ver
se e como intervm nesta continuidade do trabalho
histrico, cuja verdade algo seguro para ns, pois
ns mesmos, nosso povo, nossa cultura, nossos
Estados so sua soma, seu resultado acumulado.
(Idem, p.39).
Assim, Droysen inaugura o dualismo metodolgico entre
Explicao e Compreenso, fundado no fato de que, o geral e
necessrio para a empiria histrica totalmente distinto do elemento
69
geral do mtodo indutivo das cincias naturais. O que Droysen postula
no so leis gerais para a histria, como ocorre na Explicao, mas
sim o elemento comum que atravessa toda investigao histrica.
Esta, enquanto Compreenso Investigativa, mostra-se, portanto, como
tarefa infinita e sua prpria infinitude, quando considerada sinnima
de continuidade epidotica, constitui a pedra de toque que sustenta
toda pretendida cientificidade do saber obtido no mbito da Histria.
70
CAPTULO 3
A Compreenso Investigativa como mtodo da Histria
Este ltimo captulo tem por objetivo apresentar a exposio e o
ponto de vista segundo o qual a noo metodolgica de Compreenso
Investigativa deve ser aplicada enquanto mtodo, conforme encontra-
se respectivamente descrito por Droysen nos captulos Metdica e
Sistemtica da Histrica.
Optou-se pela subdiviso do presente captulo em trs sees.
Em um primeiro momento, pretende-se apresentar a exposio dos
diferentes momentos constituintes do mtodo formulado por Droysen,
presentes na Metdica. Esta pretende ser a descrio lgica do mtodo
de compreenso e de suas normas, a serem observadas pelos
historiadores. Posteriormente, efetuar-se- uma transio para a
Sistemtica, propriamente o captulo no qual Droysen discute a
aplicabilidade da Compreenso Investigativa no interior de uma
problemtica especfica, a saber, a preocupao enquanto historiador
para com a perda da unidade da histria aps a refutao da filosofia
da histria de Hegel. Nesta, a busca de unidades de sentido, que
funcionassem como hipteses de trabalho em busca de um sentido
aproximativo para a histria, mostra-se como a preocupao central.
Em um terceiro momento, procurar-se- elencar as implicaes
resultantes da formulao do conceito de Compreenso Investigativa,
primeiramente enquanto mtodo e posteriormente no que diz respeito
ontologicidade inerente ao referido conceito.
71
3.1 A Metdica: descrio da lgica da compreenso e de suas
normas
Uma vez estabelecida a Compreenso Investigativa como
essncia do mtodo da cincia histrica, Droysen transita para a
apresentao dos diferentes momentos constituintes do referido
mtodo. No obstante, no que concerne ao conceito de compreenso,
o mesmo considera importante distinguir a compreenso enquanto ato
propriamente humano e a compreenso enquanto mtodo formulado
na Histrica. Ser sob esta perspectiva que Droysen afirmar:
O compreender o conhecer mais perfeito que nos
humanamente possvel. Realiza-se subitamente, sem
que tenhamos conscincia do mecanismo lgico do
mesmo. Por isso o ato da compreenso como uma
intuio imediata, como um ato criador, como uma
fasca de luz entre dois corpos eletrforos, como um
ato de concepo. No compreender, a natureza
sensitiva-espiritual do Homem participa totalmente,
dando e tomando, procriando e concebendo, ao
mesmo tempo. O compreender o ato mais humano
do ser humano e todo fazer verdadeiramente humano
se baseia na compreenso, busca compreenso,
encontra compreenso. (DROYSEN, 1983, p. 34).
Enquanto ato de conhecimento caracterstico dos seres
humanos, Droysen faz questo de ressaltar que a compreenso
perpassa toda e qualquer ao humana. Tudo aquilo que o Homem
faz, toda criao, toda impresso de forma matria previamente
dada, todas as expresses construes, inventos, mquinas, ideais,
72
concepes, ideologias, saberes, prticas, organizaes scio-poltico-
econmicas e jurdicas , tm por base a compreenso. Esta se mostra
tanto no fazer-se busca compreenso , quanto na percepo do
humanamente criado encontra compreenso. Trata-se,
propriamente, de uma reciprocidade existente entre os seres humanos
e entre o humano e as criaes humanas. neste sentido que Droysen
afirma que todo ato de compreenso tem por fundamento a
congenialidade
57
, entendendo por esta ltima, tanto o trao comum da
natureza humana, a saber, a exteriorizao de todo e qualquer
processo interior, como tambm a reciprocidade existente entre
indivduos humanos e as criaes humanas, ambos marcados pela
peculiaridade expresso-compreenso. Ser propriamente esta a razo
pela qual Droysen afirmar em seu Compndio, que:
A possibilidade da compreenso est condicionada
ao fato de que a natureza espiritual do Homem
exterioriza cada processo interior em algo
perceptvel sensivelmente, e toda exteriorizao
reflete um processo interior. Uma vez percebida, a
exteriorizao suscita idealmente, naquele que a
percebe, o mesmo processo interior que gerou a
exteriorizao. Temos afinidade somente com o
humano e com as coisas humanas, e somente estas
podemos conhecer. (DROYSEN, 1989, p. 326).
No obstante, faz-se necessrio relembrar que Droysen reitera
que o mecanismo lgico da compreenso mtodo difere do ato da
compreenso. Mas em que medida o difere?
57
Cf.: DROYSEN, 1983, p. 19.
73
Ora, a compreenso entendida como mtodo tem por
fundamento a compreenso enquanto modo de conhecer
especificamente humano frente s coisas humanas. Droysen funda a
Compreenso Investigativa dado o critrio de mtodo adotado ao
princpio de sua teoria da Histria, segundo o qual o mtodo deve ser
estabelecido a partir do objeto , naquilo que constitui a caracterstica
mais peculiar do humano, enquanto objeto de investigao da
Histria, a saber, a compreenso. Os seres humanos tm a
peculiaridade de, frente ao humano, refazer o processo de
exteriorizao do expresso, quer seja este um texto ou toda e qualquer
criao configurada pelas mo humanas. Trata-se de uma busca por
aquilo que gerou a expresso, uma busca pelo sentido,
hermeneuticamente falando. Deste modo, quando afirma na
transcrio precedente que a possibilidade da compreenso est
condicionada, Droysen est se referindo Compreenso
Investigativa, ao passo que, subseqentemente, descreve a
compreenso como ato. No ato de compreenso, que ocorre
subitamente, o grito de terror desperta no ouvinte o mesmo estado de
pnico daquele que gritou
58
.
O historiador, frente ao seu objeto de estudo, deve, portanto,
pretender identificar na forma que se encontra humanamente impressa
no material histrico, aquilo que pretendeu-se expressar atravs da
mesma. Deve buscar, em analogia metfora droyseniana, o que
provocou este grito, esta expresso. Para tal, preciso percorrer
minuciosamente cada passo constituinte do mtodo formulado, pois na
58
Cf.: DROYSEN, 1983, p. 30.
74
investigao histrica, a compreenso no sbita como no caso do
grito de terror.
A Metdica, neste sentido, constitui a exposio dos diferentes
momentos constituintes do mtodo da Compreenso Investigativa, a
saber, a Heurstica, a Crtica, a Interpretao e a Exposio,
conforme ilustra subseqentemente a Figura 3:
Metdica da Histrica - 1857
Os restos
Os monumentos
As fontes
A descoberta
do material
Heurstica
Crtica da
Autenticidade
Crtica da
Exatido
Crtica das
Fontes
Crtica do
Estado das Coisas
Crtica
Interpretao
Pragmtica
Interpretao
das Condies
Interpretao
Psicolgica
Interpretao
das Idias
Interpretao
Exposio
Investigativa
Exposio
Narrativa
Exposio
Didtica
Exposio
Discursiva
Exposio
Metdica
(Figura 3)
Como passvel de observao, cada seo constituinte da
Metdica rene em si os diferentes passos a serem percorridos pelo
historiador, desde o incio da investigao marcado pela busca de
materiais para pesquisa Heurstica -, at as diferentes formas de
exposio textual dos resultados obtidos.
75
Da verso da Histrica correspondente a 1857 para a
compilao de 1937, a Metdica sofre algumas diferenas estruturais,
que concernem especificamente Exposio. Esta, conforme pode ser
observado na Figura 4, ganha o status de terceiro captulo da
Histrica, intitulado Tpica.
Tpica da "Histrica" - 1937
A exposio
Investigativa
A exposio
Narrativa
A exposio
Didtica
A exposio
Discursiva
Tpica
(Figura 4)
Droysen justifica semelhante alterao em face de estar
convicto de que constitui um mero costume entender a exposio
histrica to somente como narrao, ao passo que muitos
acontecimentos da investigao histrica no merecem esta forma to
popular de apresentao. (DROYSEN, 1983, p. 337). O termo
popular, aqui, pretende advertir que a exposio dos resultados
advindos da investigao histrica no devem ser simplesmente
narrados, tal qual como se faz ao contar uma estria, mas sim
merecem o status de registro cientfico. Segundo Droysen, tudo
aquilo que se obteve no decurso da investigao, necessita de uma
correspondente exposio. (DROYSEN, 1989, p. 333). Assim, o
76
autor define quatro tipos especficos de exposio, a saber, a
investigativa, que procura narrar os fatos em consonncia ao processo
efetuado na investigao, sem apontar um fim definitivo, mas
ressaltando a continuidade do processo investigativo; a narrativa, que
procura reconstruir um quadro genrico do acontecido, uma mmesis
do transcorrido, sob a forma de uma biografia; a didtica, cujo
objetivo elencar os resultados da investigao de modo a serem
didaticamente transmitidos; e, por ltimo, a discursiva, que procura
organizar os resultados da investigao sob um ponto de vista
determinado, no mpeto de apresentar uma soluo ou alternativa para
o esclarecimento de um problema que se pretende resolver no
presente.
A Heurstica, a Crtica e a Interpretao constituem os trs
momentos a serem percorridos, subseqentemente, na aplicao da
Compreenso Investigativa no ofcio do historiador.
Uma vez que j foram oferecidas as devidas consideraes
acerca da Tpica, cabe agora ressaltar as demais sees constituintes
da Metdica. Para tal, cabe a advertncia de Droysen, segundo a qual
Em nosso domnio, devemos recordar que nenhuma das atividades de
nosso mtodo pode, em nenhum momento, ser sem a outra; mas cada
etapa constituinte pressupe as demais... (DROYSEN, 1994, p.157).
neste sentido, e no mpeto de esclarecer o mecanismo lgico
de funcionamento do mtodo droyseniano, que procurar-se-, nas trs
sub-sees que se seguem, apresentar cada etapa constituinte do
mtodo droyseniano.
77
3.1.1 A Heurstica:
Trata-se do incio de toda investigao histrica. Aqui, a
pergunta do historiador mostra-se determinante, uma vez que ser
segundo a mesma que o referido historiador proceder a sua
investigao.
Segundo Droysen, o incio de nossa investigao a pergunta
e o investigar a partir desta pergunta (DROYSEN, 1994, p. 158).
Esta precedncia da pergunta em relao crtica, constitui uma
reprovao escola de Ranke
59
, que mediante o estabelecimento de
um rgido procedimento de crtica da veracidade do material histrico,
acreditava poder oferecer uma reconstruo objetiva dos fatos
passados.
Para Droysen, a pergunta denota um interesse, um
conhecimento prvio acerca do investigvel. Assim, a investigao
histrica constitui a busca de uma confirmao, uma tentativa de
confirmar a veracidade de algo do qual se tem informaes esparsas.
Aqui Droysen abre espao para a liberdade do historiador, para
o livre indagar-se sobre o passado. Se este historiador no pode julgar
o passado com os olhos do presente, tambm est impossibilitado de
assumir uma neutralidade artificial frente aos fatos, uma vez que o
prprio sujeito da investigao encontra-se no mesmo fluxo histrico
dos acontecimentos que o precederam.
59
Cf.: TESSITORE, 1971, pp. 311 350. e TESSITORE, 1984, pp. 1325 1410..
78
A heurstica procura o material para o trabalho histrico, de
acordo com a pergunta formulada pelo historiador. Em termos de
Droysen,
O material histrico constitudo em parte de tudo
que ainda resta de imediato daquele presente que
buscamos, investigado e compreendido (restos), em
parte de tudo aquilo que constituiu representaes
humanas e que nesta forma nos foi transmitida
(fontes), em parte de uma composio de ambas as
formas (monumentos). (DROYSEN, 1989, p. 328).
Ser nesta abundncia de restos, fontes e monumentos que o
historiador dever buscar da autenticidade dos mesmos, mediante um
procedimento de crtica.
3.1.2 A Crtica:
Segundo Droysen, A tarefa da crtica determinar em que
relao encontra-se o material histrico do qual se dispe para com os
atos de vontade, dos quais do testemunho. (Idem, p. 330). Ser
mediante o procedimento crtico que a autenticidade do material
recolhido ser confirmada ou refutada: se estes dizem respeito ao fato
investigado ou no, se estes constituem falsificaes ou fontes
tendenciosamente escritas.
Na Crtica, coloca-se em questo se o material, no estado em
que se encontra no presente, conserva as peculiaridades segundo as
quais foi criado e, desta forma, se ainda expressa o que se pretendia
expressar atravs do mesmo. Investiga-se se acaso na configurao do
79
material, no instante de sua criao, este conseguiu expressar o
pretendido, ou foi manipulado, em prol de uma concepo
predominante na poca de sua criao. Droysen ressalta que:
Nem a Interpretao, nem a Crtica investigam as
origens. Origens e fins no so tarefas da investigao
histrica, mas problemas da f, da esperana e da
especulao. A investigao histrica no quer explicar
(Erklren), deduzir sob a forma de inferncias, mas
compreender. (DROYSEN, 1989, p. 331.).
Se a Crtica no visa a busca das origens e fins da histria, por
um lado, por outro a mesma procura questionar em que medida o
material que o historiador dispe est relacionado ou no ao fato que
pretende investigar. Assim, a crtica da autenticidade coloca em
questo se o material apreendido de fato o que se pressupe ser, ou
se o mesmo uma falsificao. A crtica da exatido procura
identificar se o material disposto conservou as peculiaridades de sua
criao, se ainda expressa o que pretendia expressar quando o mesmo
foi criado. Esta crtica da exatido, quando aplicada s fontes escritas,
constitui a crtica das fontes. Por ltimo, a crtica do estado das coisas
procura estabelecer uma ordem cronolgica, determinando uma
periodizao ao material obtido. Somente ento, possvel passar para
a terceira e ltima etapa do mtodo, que diz respeito Interpretao
dos materiais submetidos aos procedimentos crticos.
80
3.1.3 A Interpretao:
Droysen procura esclarecer, consciente da historicidade do
historiador, que nem a Crtica, nem a Interpretao tm a pretenso
de descobrirem o incio ou o fim da histria. De acordo com a
metfora droyseniana do rio, atravs da Compreenso Investigativa
possvel conhecer to somente em que direo o rio da histria escoa,
enquanto sua nascente e sua foz permanecem inacessveis ao
conhecimento, dada a finitude do historiador.
A Interpretao oferece respostas pergunta formulada pelo
sujeito histrico ainda na Heurstica, isto , ela confirma se acaso o
historiador perseguiu uma pista correta ou se os materiais que reuniu
dizem respeito a um fato totalmente distinto daquele que despertou a
investigao, ainda na Heurstica.
Para que isto seja possvel, a Interpretao subdivide-se em
quatro etapas: a interpretao pragmtica, a interpretao das
condies, a interpretao psicolgica e a interpretao das idias.
Droysen estabelece uma analogia entre os quatro modos de
interpretao e o ato de caminhar, onde os modos de interpretao,
conforme respectivamente elencadas acima, correspondem:
a) ao mecanismo do membro em movimento; b)
tenso dos msculos condicionados ao tipo de
terreno e ao grau de dificuldade; c) vontade que
move o corpo; d) a finalidade daquele que exercita a
81
vontade, isto , a virtude em prol da qual se
caminha. (DROYSEN, 1989, p.331).
Sendo assim, Interpretao pragmtica corresponde a
interrogao pelos nexos causais inerentes s fontes obtidas e aos fatos
investigados; a segunda, a Interpretao das Condies, procurar
reunir informaes acerca das condies geogrficas, fsicas,
materiais, econmicas, polticas, sociais em que o material foi gerado;
a Interpretao Psicolgica procurar identificar as motivaes, os
atos de vontade que produziram o acontecimento histrico. Esta,
aponta para a tese hermenutica, segundo a qual o intrprete conhece
mais o autor do que este prprio conhecia-se. Finalmente, a
Interpretao das Idias, que procurar identificar os ideais e
aspiraes presentes no perodo em que o material histrico
investigado foi construdo, preenchendo lacunas e procurando
identificar os fins aspirados por aqueles que agiram e deixaram o
testemunho desta ao nos materiais interpretados.
Com isto Droysen pretende ter exposto todos os momentos
constituintes do mtodo que formula na Histrica. No obstante,
propriamente na Sistemtica, o mesmo ainda buscar identificar sob
quais pontos de vista o referido mtodo deve ser aplicado, assim como
quais so as unidades de sentido segundo as quais o montante de fatos
interpretados podem vir a ter um sentido unitrio.
82
3.2 A Sistemtica: a aplicabilidade da Compreenso
Investigativa
De acordo com Droysen, a Sistemtica tem por pretenso
apresentar o ponto de vista sob o qual o mtodo deve ser aplicado,
para que a investigao da histria resulte em uma Histria com
sentido. Este sentido pretendido no deve ser arbitrrio ou
previamente estipulado, mas sim uma tentativa que oferea uma idia
aproximada da direo para a qual o fluxo do rio da histria escoa. Em
termos de Droysen, a Sistemtica constitui um resultado da
identificao do mundo histrico, mundo humano, como sendo um
mundo tico, isto , resultante de aes humanas. Ainda na Introduo
da Histrica
60
, Droysen afirma que, se possvel identificar uma
causa eficiente no mbito humano, na histria, esta a vontade.
A vontade que emerge do indivduo, enquanto resultado
histrico e enquanto situado em uma determinada poca, equivale
mecnica dos tomos, em analogia s cincias naturais. a vontade,
fonte propulsora da ao, que faz com que o mundo humano, mbito
da Histria, seja um mundo tico, um conjunto de aes e resultados
de aes que, na condio de sujeito histrico, herda-se e ao mesmo
tempo contribui-se para a continuidade do mesmo. Em face disto
que Droysen afirma:
A nossa sistemtica resultou da noo de que o
mundo histrico o mundo tico, mas enquanto
concebido sob um determinado ponto de vista;
60
Cf.: DROYSEN, 1983, p. 16 18.
83
porque o mundo tico pode ser considerado sob
outros pontos de vista (...). No obstante, considerar
o mundo tico segundo o seu devir e crescer, no seu
movimento prprio, significa consider-lo
historicamente. Consider-lo historicamente, por sua
vez, significa pressupor o reconhecimento de que
tudo aquilo que est no mbito do mundo tico um
resultado histrico, algo que chegou a ser o que , e
que ao mesmo tempo, no cessa o seu movimento de
devir e crescer. (DROYSEN, 1994, p. 413).
Droysen tem a pretenso de frisar o mbito e, muito alm disso,
o modo de considerao do campo de objetos que destina Histria.
O mundo tico, enquanto entendido como o conjunto das aes
humanas consideradas em seu devir contnuo, permite a conferncia
de um sentido aproximativo ao presente histrico. Uma vez admitida
esta pressuposio, segue-se que:
Se a nossa cincia deveria ter a faculdade de considerar
o mundo tico no seu devir, compreendendo-o como
algo que veio a ser, um resultado; agora a sua
sistemtica corresponde descrio da articulao do
mundo tico (...) Para ns, o mundo tico deveria
assumir o valor de um resultado histrico e poderamos
assumi-lo enquanto tal, e somente enquanto tal. Isto
significa considerar todo o contedo do presente sua
plenitude, conhecida e reunida historicamente. Esta
realizao viva dos ideais ticos, que constitui o
presente e na medida em que se encontram realizadas
neste, deveria fornecer-nos o esquema segundo o qual
erguer-se- nossa sistemtica. (Idem, pp. 413 414)
O presente, enquanto composto pelas expresses da realizao
dos ideais ticos que moveram a humanidade no passado, o campo
84
da Histria segundo Droysen. Neste sentido, se acaso fosse possvel
captar o modo como este mundo humano, mundo tico, chegou a ser,
ter-se-ia o esquema que permitiria interpretar os fragmentos do
passado de acordo com o modo pelo qual os mesmo fragmentos
chegaram a ser o que so. Em termos metodolgicos, Droysen
pretende estabelecer a continuidade como o elemento permanente na
histria e assim estend-la prpria Histria, em face da ausncia e
inadmisso de leis gerais, de princpios estabelecidos a priori que
confiram significao ao desenrolar dos fatos histricos.
O problema que Droysen tm pela frente o de conferir
sustentao aplicabilidade da Compreenso Investigativa. O autor
v-se pressionado por uma exigncia muito similar a uma mescla de
fragmentos de Herclito com Arquimedes: se tudo flui, d-me um
ponto fixo. Se a continuidade, a epdosis eis auto, o crescimento
constante e cumulativo sobre si mesmo constitui a temporalidade da
histria, como estabelecer parmetros segundo os quais os fatos
constituintes da histria tenham sentido?
Atento a isto, Droysen considera a prpria continuidade como
sendo o elemento sempre presente em todos os instantes da histria e
estipula que o mundo tico apresenta-se, essencialmente, nas
comunidades ticas (DROYSEN, 1994, p.414). Isto significa que,
embora se encontre em permanente mudana, o mundo tico est
manifestado nas comunidades ticas, em determinados agrupamentos
humanos que, no obstante a continuidade cumulativa da epdosis eis
auto, podem ser tomados como mbitos gerais, constituintes do
mundo histrico. Em outros termos, as organizaes naturais, as idias
85
e as aes prticas so as trs faces nas quais a histria ergue-se,
cumulativamente, ao longo do tempo.
Quanto Histria, por sua vez, esta passa a ter, pelo menos, trs
parmetros orientativos, trs pontos de vista segundo os quais dever
percorrer subseqentemente, aplicando a Compreenso Investigativa.
3.2.1- Poderes ticos e Comunidades ticas.
Para Droysen, os poderes ticos constituem as aspiraes que
movem os homens ao ao longo do tempo e cuja reunio dos
resultados destas aes constituem a histria e fazem da histria um
mundo passvel de ser designado como tico. Droysen tambm define
os poderes ticos como sendo os ideais que moveram um povo, uma
comunidade, em um determinado perodo. Neste sentido, Droysen
afirma que:
A compreenso no outra coisa seno a soma dos
ideais ticos, em face dos quais tudo vem a ser o que
e a desenvolver-se no mundo tico, em um
incessante progredir. (DROYSEN, 1994, p. 387).
Este poderes ticos
61
so propriamente aquilo que moveu e
move um povo, uma comunidade ou um indivduo a expressarem-se
mediante aes, a constituir a idia de famlia, de povo, de Estado, de
61
Cf.: DROYSEN, 1994, p. 319. e DROYSEN, 1983, p. 35.
86
Direito, de religio. Todas estas expresses, que Droysen denomina
poderes ticos, o mesmo procura reunir e organizar em trs grupos
especficos, aos quais intitula comunidades ticas.
Droysen afirma que, se o indivduo humano em sua finitude
um resultado histrico, ento o Homem to somente um resultado
da comunidade, por meio da qual veio a ser Homem. (DROYSEN,
1994, p. 418).
Somente nas comunidades das quais faz parte, somente no
compartilhamento das aspiraes, da assimilao ou rejeio dos
ideais da vida comunitria, o indivduo humano chega a ser um
Homem.
Ser nas comunidades ticas, com seus iguais, que o indivduo
poder contribuir para a continuidade da histria, poder contribuir
para a construo da essncia humana, poder remeter-se ao passado
no processo de tomada de conscincia de si.
De acordo com a Figura 5, possvel observar que Droysen
considera, na primeira parte (A) da Sistemtica, trs comunidades
ticas, a saber, As Comunidades Naturais, As comunidades Ideais
e As comunidades Prticas.
Cada qual rene em si as formas especficas nas quais os
poderes ticos manifestam-se ao longo do tempo.
87
Sistemtica da "Histrica" - 1857
As comunidades
Naturais
As comunidades
Ideais
As comunidades
Prticas
A
Os Poderes ticos
B
O Homeme a Humanidade
Sistemtica
(Figura 5)
A primeira das comunidades, chamada naturais, inclue a
famlia, o povo, a estirpe, as tribos. Nestas, o elemento natural deve
ser feito tico, mediante um primeiro querer, um primeiro desejar.
(DROYSEN, 1989, p 336). Estas devem ser elevadas, por um primeiro
querer, conscincia de si, enquanto povo, enquanto famlia,
enquanto nao, a fim de que se realiza a idia de humanidade
(Idem, p.336).
Nas comunidades ideais, o elemento espiritual deve entrar na
realidade e tornar-se assim, perceptivelmente, o vnculo entre os
espritos (Idem, p. 337), ou seja, no falar e nas linguagens, no belo e
nas artes, na noo de verdade e nas cincias, na noo de sagrado e
nas religies, deve comear a manifestar-se a dimenso espiritual
88
humana, em sobreposio mera naturalidade. Embora estas noes
sofram alteraes a cada poca, no obstante, ao identificar a noo
predominante em um povo do qual resulta um fragmento, obtm-se
um sentido para o mesmo e com ele a descoberta e compreenso de
um povo ou de uma poca em sua particularidade.
Nas comunidades prticas, por sua vez, movem-se os
interesses que esto em conflito. (DROYSEN, 1989, p.337), ou seja,
o mbito das decises, onde se faz presente a dialtica, entendida
como o encontro do diverso, das discusses, dos diferentes
posicionamentos que, uma vez defrontados, levam ao conflito,
mudana histrica. Por este motivo, so constituintes das comunidades
ticas a esfera do bem-estar, a sociedade, o trabalho, a economia, a
esfera do Direito, os tribunais, a esfera do poder, a noo de Estado, as
decises do poder pblico e as relaes entre estados, guerras,
acordos, direito dos povos. Todos estes elementos, caractersticos de
um povo considerado em sua poca, formam a dimenso prtica da
organizao humana.
3.3 Implicaes resultantes do conceito de Compreenso
Investigativa
Em termos gerais, pode-se afirmar que o conceito de
compreenso, conforme apresentado no interior da Histrica,
passvel de duas caracterizaes especficas, que concernem s
implicaes resultantes da considerao do mesmo. Primeiro, como o
conhecer mais perfeito que nos humanamente possvel.
89
(DROYSEN, 1983, p.34) e, segundo, como o mtodo especfico da
cincia histrica.
Enquanto modo de conhecer propriamente humano,
exclusivamente frente quilo que leva em si a marca do humano,
Droysen afirma que a compreenso se realiza subitamente, sem que
tenhamos conscincia do mecanismo lgico que neste ocorre.
(Ibidem, p.34). Ao tecer semelhante afirmao, Droysen pretende
estipular que o modo de conhecer humano, frente s coisas humanas,
no inconsciente, mas to somente realiza-se de modo sbito, como
uma fasca de luz entre dois corpos eletrforos, conforme a metfora
empregada pelo mesmo. Neste sentido, a compreenso constitui uma
caracterstica pertencente exclusivamente ao modo de conhecer
humano frente s coisas humanas. Em seu Compndio Droysen afirma
que:
A possibilidade da compreenso est condicionada
ao fato de que a natureza espiritual do Homem
exterioriza cada processo interior em algo
perceptvel sensivelmente e toda exteriorizao
remete-se a algo interior.(DROYSEN, 1989, p. 326).
Droysen pretende esclarecer que somente possvel ao seres
humanos conhecer, em estrito senso, aquilo que lhe congenial, isto ,
aquilo com o qual o mesmo identifica-se por afinidade, por possuir
a mesma natureza sua, humana, cujos traos e caractersticas
marcantes so a duplicidade sensitiva-espiritual, assim como o fato de
estar desprovido de gnero, o que sinnimo de ter que construir, ao
longo do tempo, sua essncia por meio de suas aes.
90
Quanto ao no-humano, ao natural, quilo que no
congenial ao ser humano, este passvel apenas de descrio, como as
cincias naturais procedem frente a natureza.
Sendo o Homem um resultado histrico, o que significa que
no nasceu no ponto zero da histria, mas herdou todo um contedo
que o constitui, tudo o que lhe resta fazer tomar conscincia daquilo
que o precedeu. No obstante, dada as limitaes espao-temporais da
sensibilidade humana, impossvel ao sujeito acessar ao passado
direta e objetivamente. Nosso contedo espiritual uma imensa
quantidade de restos do passado que se encontram recolhidos em ns.
(DROYSEN, 1983, p.26). Este contedo espiritual nada mais que
todo o trabalho de construo da essncia humana ao longo do tempo,
ao qual todos os seres humanos esto destinados. Caso o sujeito
busque por sua identidade, queira tomar conscincia de si,
autocompreender-se como resultado histrico, como algo que veio a
ser, deve remontar a este contedo contido em si. Contudo, como o
fazer?
Ora, Droysen define que o trao que define o perfil da
natureza humana a duplicidade sensitiva-espiritual e esta, por sua
vez, define os mbitos do conhecimento humano. Se considerado
apenas espiritualmente, tudo o que o sujeito tem a fazer refletir sobre
os conhecimentos que adquiriu. Se considerado apenas quanto sua
sensibilidade, tudo o que o sujeito possui so representaes
empricas. Droysen tem a clara pretenso de no aderir a nenhum
destes extremos, mas sim de considerar o ser humano como um todo,
contemplando estes dois traos de sua natureza.
91
Agora, se o passado em-si mesmo inacessvel, Droysen
reitera: Toda nossa cincia se baseia no fato de que ns no
construmos os passados a partir dos materiais existentes, seno que
fundamentamos nossas heranas do passado, as corrigimos e as
ampliamos (DROYSEN, 1983, p. 27).
O passado herdado constitui os contedos que compem o
sujeito enquanto resultado histrico e a ampliao, correo -
sinnimas de autocompreenso - destas heranas, nada mais que a
tomada de conscincia de si, tarefa que deve ser efetuada
continuamente, em respeito ao primeiro princpio fundamental do
conhecimento histrico, a saber, que o passado j no existe mais, mas
encontra-se to somente presente nos materiais que ainda so
acessveis empiricamente.
Mas que passado interessa ao humano? O passado histrico,
os atos e aes propriamente humanas, as criaes humanas, que
ganharam expresso, que de algum modo encontram-se acessveis no
presente. Ali, nestas expresses, encontra-se o toque da mo humana,
o contedo que se exteriorizou e que, para permanecer enquanto
expresso, moldou a matria natural previamente dada, conferindo-lhe
uma forma. Deste modo, a escrita, a esttua, a pedra polida, todo e
qualquer fragmento material, terico, moral, que chega at o presente
e foi configurado por um precedente compreendido pelo sujeito
presente, tal como se estivesse diante daquele que se expressou.
Neste sentido, a Figura 6 representa de modo substancial o
que at agora vem sendo dito.
62
62
Esquema baseado em LYOTARD, 1992, p. 94.
92
A B
Passado ? ? Futuro
A B C
A B C
(Figura 6)
Se acaso um indivduo humano, neste exato momento (B)
procure tomar conscincia de si, o que tem a fazer reportar-se ao
passado, reportar-se a B, contudo a partir dos fragmentos acessveis
empiricamente no presente, quer sejam estes textos ou toda e qualquer
expresso cuja forma tenha sido impressa pelo Homem. Assim, estar
tomando conscincia daquilo que o constitui enquanto B, enquanto
resultado histrico, que nada mais que todo o contedo acumulado
desde A at B. Quanto ao incio ou fim da histria, este mostra-se
inacessvel, dada a finitude em que se encontra B. No obstante, isto
permite-lhe autocompreender-se, compreender-se historicamente, fato
que lhe permite tomar conscincia de que a histria uma
continuidade epidotica, da qual todos os humanos participam. Isto
93
lhe desperta o senso de que tambm h de contribuir para esta
continuidade, estabelecendo novos ideais, novos costumes,
propriamente B, para quele que o suceder, C, que em sua finitude,
repetir o mesmo processo.
A compreenso histrica, portanto, deve ser investigativa,
pois a da tarefa da compreenso mostra-se infinita, sendo preciso
refaz-la sempre sob novos pontos de vista, uma vez que, como afirma
Droysen ao final do Compndio de 1882, a Histria no possui, como
as cincias naturais, instrumentos que permitam a experimentao e
repetio dos fenmenos que se pretende explicar. Logo, tudo que
resta ao historiador investigar e continuar investigando,
repetidamente
63
.
63
Infelizmente no dispomos deste exemplar. Por este motivo, optamos por parafrasear a citao
feita por GADAMER, 1997, p. 332.
94
CONCLUSO
Ao deparar-se com a Histrica de Droysen no restam dvidas
quanto destacvel conscincia do autor acerca de sua prpria poca.
O senso do presente, do contexto cientfico-cultural e poltico na
Alemanha da segunda metade do sculo XIX, conjugado com a
precocidade de seus estudos acerca do Helenismo - termo cunhado
pelo prprio historiador e com sua experincia enquanto fillogo e
tradutor de squilo e Aristfanes, permite referir-se a Droysen como
um exemplo de erudio.
Mesmo diante das acusaes de relativismo epistemolgico e
perspectivismo, conseqentes das prprias aporias em que resultara o
historicismo ao final do sculo XIX, Droysen estabelece, um dualismo
metodolgico, estendido e expresso na separao entre cincias
naturais e cincias histricas.
As reflexes materiais e formais presentes na Histrica,
reflexes de lgica da cincia e de Filosofia da Histria, interligadas
com a recepo da hermenutica Romntica, conferem a Droysen o
mrito de tanto preparar quanto antecipar a virada epistemolgica
efetuada pelos neokantianos, assim como a tradio hermenutica na
filosofia da histria, que se inicia propriamente com Dilthey.
Nestes termos possvel referir-se Compreenso Investigativa
como o centro da teoria da histria droyseniana e como a aproximao
entre historiografia e filologia romntica. Semelhante fato,
considerado no interior de uma histria do desenvolvimento do
problema hermenutico da compreenso, permite situar Droysen entre
95
Schleiermacher e Dilthey. Se ao primeiro atribui-se a
transcendentalizao do problema hermenutico da compreenso - na
medida em que procura estabelecer as condies de possibilidades de
toda e qualquer compreenso textual -, e ao segundo a tentativa de
estabelecimento da compreenso como mtodo especfico das cincias
humanas, a Droysen resta afirmar que o mesmo promove uma
universalizao da compreenso, na medida em que a formula como
mtodo e a estende a toda e qualquer expresso humana, no apenas
textual.
Enquanto mtodo, Droysen procura descrever na Metdica
todos os passos da compreenso a serem percorridos pelo historiador.
No obstante, a Compreenso Investigativa somente firmada
enquanto elevao, ao patamar de mtodo, daquilo que Droysen
considera a caracterstica propriamente humana. A compreenso, antes
mesmo de constituir um mtodo, identificada como inerente
natureza humana. O ser humano, cuja natureza peculiar est marcada
pela duplicidade sensitiva-espiritual, assim como pela destinao
construo de sua prpria essncia ao longo do tempo, constitui para
Droysen um ser marcado pela compreenso. Isto porque somente a
compreenso de si enquanto resultado histrico, somente a
objetivao dos contedos herdados, que dominam e determinam o
indivduo muito alm do que este os domina, permitem, segundo
Droysen, ao indivduo ser autoconsciente, a ter conscincia histrica.
Somente o remontar-se ao passado, partindo do questionamento
de toda obra humana acessvel no presente e considerada em sua
particularidade temporal prpria, permite ao historiador chegar a uma
96
compreenso histrica, que equivale prpria compreenso de si. A
histria, neste sentido, torna-se o referencial para o qual o ser humano
tem de apelar, em busca de identidade. O indivduo compreende-se
como imerso em uma continuidade cumulativa epdosis eis auto -,
para a qual deve contribuir, em prol da humanidade como um todo.
Disto deriva o compromisso tico que, segundo Droysen, compete a
cada ser humano, a saber, o de contribuir para a prpria construo da
essncia humana ao longo do tempo.
Considerando que a Histria a disciplina responsvel pela
investigao dos fatos passados, pode-se afirmar, portanto, que esta
equivale disciplina central da concepo droyseniana de formao.
Isto porque a compreenso histrica, resultante da incessante
investigao procedida pela Histria, equivale reciprocamente
autocompreenso do sujeito enquanto resultado histrico, enquanto
algo que chegou a ser o que .
Por este motivo Droysen no hesita em afirmar que o que
confere maior significao Histria enquanto disciplina o fato da
mesma estar comprometida com uma tarefa pertencente
especificamente natureza humana, a saber, a tarefa de compreender-
se historicamente. Somente neste sentido pode-se afirmar que, antes
mesmo da radicalizao hermenutica procedida por Heidegger e
Gadamer, a compreenso j constitui, no interior da Histrica de
Droysen, um conceito ontolgico. Isto porque, se a histria
propriamente o mundo humano considerado em seu devir e crescer, o
Homem histrico no primeiramente porque h histria, mas sim s
existe histria dado o fato de cada sujeito, em sua individualidade, no
97
constituir um mero exemplar repetitivo de um gnero, como ocorre
com os animais e plantas.
Uma outra possibilidade de interpretar a teoria da histria de
Droysen diz respeito a entend-la somente como um projeto
epistemolgico. Contudo, neste ltimo caso, Droysen pareceria
defender a infinitude do procedimento compreensivo como forma de
compensar a admisso de um ideal parcial de verdade, conforme
critica Schndelbach em Geschichtsphilosophie nach Hegel. Isto
porque uma verdade objetiva, universal e necessria, independente do
tempo, completamente inadmissvel para Droysen, em face da
historicidade da razo.
Como legado droyseniano, fica em aberto a necessidade de que
se efetue algo assim como uma Crtica da Razo Histrica, projeto que
ser assumido por Dilthey. Quanto a Droysen, permanece o clamor
por um Kant, requerido quatorze anos antes do incio das lies sobre
Enciclopdia e Metodologia da Histria no prefcio da edio do
segundo volume de Histria do Helenismo, em 1843 , que mostre, a
exemplo do imperativo categrico, a fonte do agir histrico humano.
Por fim, resta deixar indicado duas novas hipteses de
continuidade do presente trabalho. Essas dizem respeito investigao
da recepo droyseniana da filosofia kantiana, que se d atravs de
Humboldt, assim como a identificao de quais so e em que medida
so determinantes as convices polticas e o nacionalismo prussiano
de Droysen em sua teoria da histria.
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