Fichamento. Chartier. Literatura e História
Fichamento. Chartier. Literatura e História
Fichamento. Chartier. Literatura e História
produo, as modalidades das realizaes e as formas das apropriaes das obras do passado. E tambm preciso compreender em sua prpria historicidade e instabilidade. ali onde se fixam as categorias fundamentais que organizam a ordem do discurso literrio moderno [...]. (p, 198). Obra/Autor/Comentrio: o conceito de obra, com seus critrios de unidade, coerncia e persistncia; a categoria de autor, que faz com que a obra seja atribuda a um nome prprio; e, por ltimo, o comentrio, identificado com o trabalho de leitura e interpretao que traz luz a significao j presente de um texto. (p. 198). Reavaliao do conceito de autor: Um encontro inesperado entre Borges e Foucault permite reavaliar em primeiro lugar o prprio conceito de autor. (p. 198). Foucault: Em uma conferncia famosa, Que um autor?, proferida diante da Socit Franaise de Philosophie em 1969, Foucault distinguia dois problemas, frequentemente confundidos pelos historiadores: por um lado, a anlise scio-histrica do autor como indivduo social e as diversas questes que se vinculam a essa perspectiva (por exemplo a condio econmica dos autores, suas origens sociais, suas posies e trajetrias no mundo social ou no campo literrio etc.), e, por outro lado, a prpria construo do que chama a funo-autor, isto , o modo pelo qual um texto designa explicitamente esta figura [a do autor] que se situa fora dele e que o antecede. (p. 198). Funo-autor: Considerando o autor como uma funo do discurso, Foucault relembrou que longe de ser universal, pertinente para todos os textos em todas as pocas, a atribuio das obras a um nome prprio discriminadora. [...] Assim, situa a funo-autor distncia da evidncia emprica segundo a qual todo texto foi escrito por algum. Por exemplo, uma carta privada, um documento legal, um anncio publicitrio no tm autores. A funo-autor o resultado de operaes especficas e complexas que referem a unidade e a coerncia de uma obra, ou de uma srie de obras, identidade do sujeito construdo.[...] A funo-autor implica portanto uma distncia radical entre o indivduo que escreveu o texto e o sujeito ao qual o discurso est atribudo. [...] o autor como funo do discurso est fundamentalmente separado da realidade e experincia fenomenolgica do escritor como indivduo singular. Por um lado, a funo-autor que garante a unidade e a coerncia do discurso pode ser ocupada por diversos indivduos, colaboradores ou competidores. Ao contrrio, a pluralidade das posies do autor no mesmo texto pode ser referida a um s nome prprio. (p. 199).
Borges: O texto de Borges, Borges e eu, publicado em O fazedor em 1960, manifesta com uma agudeza particular esta distncia que isola o autor como identidade construda do indivduo como sujeito concreto, visto que descreve a captura, a absoro ou a vampirizao do ego subjetivo pelo nome do autor: Ao outro, a Borges, a quem acontecem as coisas. experincia ntima do eu se ope a construo do autor por parte das instituies. [...] Aos gostos secretos que definem o indivduo em sua irredutvel singularidade se ope o exagero teatral das preferncias exibidas pelo autor, figura pblica e ostentativa. (p. 199-200). Autor como ator: O autor como ator: ao mesmo tempo a comparao remete antiga etimologia latina, que deriva as duas palavras ator e autor do mesmo verbo agere, fazer, e modelagem, iniciada no sculo XVIII, do escritor como personagem pblico. [...] Seria exagerado afirmar que nossa relao hostil: eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura e essa literatura me justifica. [...] Paradoxalmente, ironicamente, a dissociao entre o sujeito e o autor, entre o eu e o nome prprio, torna-se um desejo de identificao como se o indivduo no pudesse, ou no quisesse escapar da forma de existncia e sobrevivncia procurada, prometida pela funo-autor. [...] Nesse sentido, no pensado por Foucault, a funo-autor no transforma, desloca ou distorce a personalidade singular do indivduo escritor, mas somente d existncia a uma ausncia, a um vazio. (p. 200). A ausncia do eu se torna a prpria razo, plenamente metafsica, da condio de ator/autor. Ator em primeiro lugar: Aos vinte e tantos anos foi a Londres. Instintivamente, j se tinha adestrado no hbito de simular que era algum, para que no se descobrisse sua condio de ningum; em Londres encontrou a profisso a que estava predestinado, a de ator, que num cenrio brinca de ser outro, perante uma aglomerao de pessoas que brincam de tom-lo por aquele outro. Autor depois: Ningum foi tantos homens quanto aquele homem, que semelhana do egpcio Proteu pde esgotar todas as aparncias do ser. [...] nesse esforo desesperado e fracassado para conquistar uma identidade singular e estvel que reside a grandeza quase divina do autor. (p. 201). A cultura escrita organizada por diversas oposies (norma esttica; modos de transmisso; identidade do destinrio e as relaes entre as palavras e as coisas): A contrapelo da inveno da literatura que supe a fixao escrita, a reproduo do texto, a citao e o comentrio, a fbula de Borges conduz do monumento ao evento, da inscrio performance, da repetio ao efmero. Indica com uma rara agudeza as diversas oposies
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que organizam a cultura escrita e que se referem norma esttica (imitao, inveno e inspirao), aos modos de transmisso dos textos (recitar, ler em voz alta, dizer para si mesmo), identidade do destinatrio (o pblico, os letrados, o prncipe, ou o prprio autor), e s relaes entre as palavras e as coisas (inscritas na ordem da representao, da iluso ou do mistrio). O conto do espelho e da mscara, do poeta e do rei, indica assim como devemos nos aproximar das diversas formas que regem a produo, a circulao e a apropriao dos textos, considerando como essenciais suas variaes segundo os tempos e os lugares. Uma leitura como esta, certamente, no esgota de modo algum a fora potica do texto de Borges, mas talvez seja fiel ao que escreveu num prlogo a Macbeth: Art happens (A arte acontece), declarou Whistler, mas a conscincia de que nunca acabaremos de decifrar o mistrio esttico no se ope ao exame dos fatos que o fizeram possvel (p. 204-205). A leitura: Quando a literatura a tematiza, ultrapassa sempre as questes clssicas dos historiadores, e leva-os a construir de outro modo o prprio objeto de sua indagao. (p. 205). O que est em jogo no discurso da literatura sobre a literatura?: O que est em jogo no discurso da literatura sobre a literatura no somente a historicizao das categorias que consideramos espontaneamente como universais, mas tambm a introduo de uma inquietao essencial no que se refere relao do leitor com o texto e, finalmente, prpria identidade deste leitor. [...] Um semelhante dispositivo de ficcionalizao ou mise en abme convida a refletir sobre as categorias que governam, em um dado tempo e lugar, as normas estticas, as formas de publicao e as expectativas dos pblicos. Mas ao mesmo tempo manifesta o poder irredutvel da obra literria, desconcertante e desestabilizador. Escreve Borges: Por qu nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote e Hamlet espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inverses sugerem que se os personagens de uma fico podem ser leitores ou espectadores, ns, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictcios. (p. 207). A anlise crtica existencial: Assim inspirada e penetrada pela literatura, a anlise crtica torna-se questo existencial. Que um leitor? Quem somos como leitores? (p. 207).
J. A. HANSEN
Sobre a prtica de Chartier: [...] toda a prtica dele se caracteriza por duas coisas importantes, que devem ser retomadas: fundamentalmente, uma posio de particularizao
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contnua das prticas e dos objetos a que ele se refere, o que significa tambm a particularizao da prpria prtica dele enquanto historiador, na medida em que decisivamente se ope a uma hiptese que foi corrente, at h pouco, a hiptese de que a histria se confunde com a fico e, ao mesmo tempo, tambm se ope a outra, a ideia positivista, muito tradicional, de que a histria uma cincia puramente positiva. [...] me parece que na atividade de Chartier a gente encontra continuamente, ou nos textos ou na fala dele, uma tenso. uma espcie de vibrao, como resultante de duas foras, vamos dizer assim, que atravessam o discurso dele numa diagonal muito forte que faz da sua prtica um espao de polmica, onde vrias posies historiogrficas so encenadas mas, principalmente, onde se encena de novo a particularidade da sua prtica de historiador que , decisivamente, uma prtica nominalista. (p. 208). A literatura documento do qu?: [...] quando um historiador se ocupa da literatura, a literatura especificamente documento do qu?. (p. 208). Os discursos que concebemos como literatura existem enquanto discursos como resultados de prticas que pressupem sistemas de representao: [...] me parece que seria importante recuperarmos alguns procedimentos que, como pudemos observar, operam na fala de Chartier. Permitem formular a hiptese de que os discursos que concebemos como literatura existem enquanto discursos como resultados de prticas que pressupem sistemas de representao. Esses sistemas, evidentemente, pressupem cdigos, quero dizer, pressupem uma codificao retrica, tpicas, temas, regras, meios de circulao, condicionamentos materiais e institucionais, pblicos etc. Ou seja, uma abordagem especificamente histrica da literatura, como Chartier prope, consistiria em no dar o discurso como natural, mas buscar, a partir de discursos particulares, a possibilidade de reconstruir os sistemas de representao que os subentendem, como relao de usos/estruturas. [...] Temos, por exemplo, textos que tm uma enunciao puramente ritual, annima, coletiva, como textos sagrados; textos que reatualizam a autoridade, a auctoritas, de um gnero, codificado e imitado retoricamente, e que no pressupem a autoria no sentido que damos ao termo hoje, como originalidade, esttica, plgio, direitos autorais etc. Tambm temos textos que supem justamente a possibilidade de uma elocuo subjetivada, individualizada todos os textos da tradio romntica do sculo XIX, de modo geral. E textos da nossa modernidade, que fazem justamente da crise da representao desse sujeito autor unitrio lembro aqui, por exemplo, toda a escola francesa do Tel Quel, Barthes e outros, que falaram da morte do autor como condio da literatura. (p. 209-210).
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Principais questes discutidas por Chartier: [...] me parece tambm que outro grande ncleo de discusso que o professor Chartier situa aqui, hoje, a questo da circulao das obras e dos condicionamentos de sua produo e consumo, tanto os condicionamentos materiais os processos materiais de produo, os meios materiais de inveno da forma e da circulao das formas quanto os seus condicionamentos institucionais. [...] O terceiro elemento para o qual o professor Chartier nos chama a ateno aqui , justamente, a questo de uma histria no s da escrita, mas de uma histria da leitura que implicaria, por exemplo, operar com comunidades de leitores, protocolos de leitura, regras, sempre visando particularizao desses protocolos, regras e comunidades num sentido decididamente histrico, de particularizao, mas sempre buscando regularidades. (p. 210). Aqui, ele props a literatura em duas articulaes: de um lado, ficou evidente que existe a possibilidade de tomarmos o texto literrio como modo ou modos histricos de organizar uma experincia simblica, levando em conta os sistemas de produo, as regras dessa produo, os pblicos, as audies ou as leituras desses produtos; por outro lado, o professor chamou a ateno para textos da modernidade, como os de Borges e Pirandello, que fazem justamente do prprio tema da produo do texto aquilo que a gente chama uma metalinguagem ou uma construo em abismo a possibilidade de existncia da literatura como literatura tematizando a literatura. Questionamentos de Hansen: H interesse, para o historiador, em ler a literatura que fala de si mesma? Pois a operao parece justamente evidenciar os limites dela mesma, literatura, enquanto prtica simblica. Neste sentido, pelo estabelecimento de limites do que seja o literrio da fico que o historiador tambm pode estabelecer melhor o que o historiogrfico da sua narrao, que tambm participa da fictio, da fico, como produo narrativa? (p. 211). [...] o texto literrio documenta, provavelmente, alteraes no estatuto do sujeito e das formas histricas da verossimilhana. Nesta linha, eu proporia ao professor Chartier especificar mais a prpria especificidade da histria hoje, porque me parece que o texto do historiador no corresponde quela hiptese positivista, mas tambm no a fico literria. Assim, eu gostaria, de que falasse da relao da histria com a literatura, ao mesmo tempo diferenciando histria e literatura, aquilo que menciona algumas vezes citando Ginzburg enfim, a pretenso da histria de ser um discurso de verdade. (p. 211-212).
R. CHARTIER
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Em cada um dos textos que algum escreve h sempre uma estabilidade e uma instabilidade. Pode-se compreender de uma maneira ou de outra e o que ele disse me parece fundamental, no apenas para mim mesmo, mas para outros historiadores tambm: inventar um caminho que afaste, ao mesmo tempo, a ideia de que a histria no seria mais que uma produo de fico dentre outras (e no porque a histria utiliza as figuras e formas narrativas da fico que no se define como um conhecimento, um saber, e da a vinculao possvel entre a histria como um saber crtico em uma dimenso cvica), e, por outro lado, pensar que esta dimenso crtica e de conhecimento no se pode estabelecer segundo os modelos tradicionais de uma cincia positiva, que se pensava como a adequao do discurso ao real. nesse espao difcil, complicado, instvel que, me parece, podemos refletir e, mais do que refletir, trabalhar, produzir anlises. (p. 212).
A. DAHER
[...] gostaria de tentar pensar exatamente esse algo que resiste, essa substncia que resiste ainda por detrs, por exemplo, da morte do autor. H algo que resiste. Isso que resiste, essa substncia, se que eu posso chamar assim, no estaria expresso, para ns historiadores, na noo de prtica social?. (p. 212).
R. CHARTIER
Prtica historiogrfica em relao s prticas dos outros: Parece que aqui se deve introduzir uma modstia, uma humildade, na prtica historiogrfica em relao s prticas dos outros, particularmente os mortos. Porque, nesse sentido, como voc disse, h algo que resiste, que resiste de diversas maneiras. Que resiste porque est absolutamente fora do alcance da anlise. A infinidade, a multiplicidade das prticas de cada um dos homens e mulheres do passado. H, aqui, um mundo de prticas que podemos unicamente ver de uma maneira particularmente parcial, limitada, obscura, e que este mundo de experincias, de crenas, de representaes, de emoes, para ns, qualquer que seja a maneira de nos aproximarmos dele, um mundo de opacidade, um mundo de distanciamento e, desta maneira, nos sugere uma prudncia. Ao mesmo tempo resiste por outra razo: que se um mundo de prticas, para ns esse mundo de prticas se transforma em um mundo de cartas, em um mundo de papel, em um mundo de escrita, e h uma antinomia insupervel. (p. 213). As prticas no se fazem para estarem escritas: [...] as prticas no se fazem para estarem escritas, no se engendram, no se desenrolam atravs de uma lgica, que a lgica da
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escrita. Da, um desafio, como compreender as prticas, mas compreend-las para fazer compreender e, dessa forma, escrev-las? E a sua reflexo recobre todo o campo da reflexo sobre as relaes que existem entre as prticas da escrita e as prticas mesmas. Pode-se pensar essas relaes atravs de mltiplos modelos da escrita governar as prticas. A escrita pretende represent-las, a escrita tenta imp-las, a escrita quer proib-las, todas essas relaes, a escrita supe ou pretende compreend-las e essa nossa escrita, como historiadores, uma relao que de nenhuma maneira esgota as prticas. (p. 213). A prtica nunca se encontra dentro da escrita: No uma ekphrasis, no a prtica, dentro da escrita. Perdemos a potncia do acontecimento: no era uma descrio da batalha, era a batalha. No podemos dizer que so as prticas, sempre uma descrio da prtica. Mas esse problema que traamos para ns um problema de cada sociedade, porque em cada sociedade h uma escrita das prticas. (p. 213). Devemos pensar como se estabelece a tenso da escrita das prticas: Devemos pensar como se estabelecia esse problema, essa tenso da escrita das prticas, atravs de que forma, com qual inteno e com quais recursos, e ver que essa dificuldade insupervel, o que define a resistncia opaca das prticas, ao mesmo tempo se converte em uma questo fundamental para ns, em nossa ligao com as escritas passadas e as prticas, e em relao com nossas escritas das prticas. (p. 213-214). Estratgias e tticas de De Certeau X prticas de Foucault: A distino que existe em De Certeau entre as estratgias que produzem textos e as tticas que so prticas de apropriao e , nesse caso, em Foucault como em De Certeau, uma viso ao revs, porque se as prticas em Foucault so prticas de coao, de controle, de disciplina, as tticas, em De Certeau, so tticas de apropriao, de inveno, de liberdade, e de distino. Essas distines nos obrigam a pensar a tenso que existe entre a irredutibilidade das prticas do passado ou do presente, a todos os discursos, inclusive os nossos, que pretendem dar conta dessas prticas, o que no significa que devemos abandonar a tarefa, mas significa que dentro de nosso problema devemos situar esta tenso e transformar em objeto de reflexo o que foi durante muito tempo espontaneamente esquecido. (p. 214).
J. A. HANSEN
Uma teoria do texto literrio como acontecimento que dissolve monumentos e que logo monumentalizado poderia ser discutida, aqui, como uma histria literria das dissolues
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pragmticas. [...] Subsidirio ao que Chartier estava dizendo, acredito que essa resistncia tambm deve ser a do nosso presente, quero dizer, talvez o morto, o texto do passado, que podemos reconstituir e fazer falar metaforicamente segundo os critrios de Chartier, possa interessar como um diferencial crtico que nos permite criticar o nosso presente onde, geralmente, a vida muito opaca. (p. 214-215).