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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAO PSICANALTICA DE PORTO ALEGRE


n. 35, jul./dez. 2008
DA INFNCIA ADOLESCNCIA:
os tempos do sujeito
ASSOCIAO PSICANALTICA DE PORTO ALEGRE
Porto Alegre
R454
Revista da Associao Psicanaltica de Porto Alegre / Associao
Psicanaltica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -
Absorveu: Boletim da Associao Psicanaltica de Porto Alegre.
Semestral
ISSN 1516-9162
1. Psicanlise - Peridicos. I. Associao Psicanaltica de Porto Alegre
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecria Responsvel Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI Indexador dos Peridicos Brasileiros na rea de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Verso eletrnica disponvel no site www.appoa.com.br
Impressa em junho 2009.
REVISTA DA ASSOCIAO
PSICANALTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicao Interna
n. 35, jul./dez. 2008
Ttulo deste nmero:
DA INFNCIA ADOLESCNCIA: OS TEMPOS DO SUJEITO
Editores:
Otvio Augusto W. Nunes e Beatriz Kauri dos Reis
Comisso Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Daniel Ritzel, Deborah Pinho, Inajara Erthal Amaral,
Maria ngela Bulhes, Otvio Augusto W. Nunes, Sandra Djambolakdjan Torossian,
Silo Rey e Valria Machado Rilho
Colaboradores deste nmero:
Marta Ped, Noeli Lisboa e Vernica Prez
Editorao:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria lingstica:
Dino del Pino
Capa:
Clvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associao Psicanaltica de Porto Alegre uma publicao semestral da APPOA
que tem por objetivo a insero, circulao e debate de produes na rea da psicanlise.
Contm estudos tericos, contribuies clnicas, revises crticas, crnicas e entrevistas reuni-
das em edies temticas e agrupadas em quatro sees distintas: textos, histria, entrevista e
variaes. Alm da venda avulsa, a Revista distribuda a assinantes e membros da APPOA e
em permuta e/ou doao a instituies cientficas de reas afins, assim como bibliotecas univer-
sitrias do Pas.
ASSOCIAO PSICANALTICADE PORTO ALEGRE
Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrpolis 90670-150 Porto Alegre / RS
Fone: (51) 3333.2140 Fax: (51) 3333.7922
E-mail: [email protected] - Home-page: www.appoa.com.br
ISSN 1516-9162
DA INFNCIA ADOLESCNCIA:
os tempos do sujeito
SUMRIO
EDITORIAL........................... 07
TEXTOS
Angstia na ps-modernidade ........ 09
Post-maternity anguish
Julieta Jerusalinsky
A angstia na clnica psicanaltica com
bebs e seus pais .............................. 21
Anxiety in psychoanalytic clinic with babies and
their parents
Leda Mariza Fischer Bernardino
Corpo e subjetividade na criana e no
adolescente ......................................... 30
Body and subjectivity in the child and the adolescent
Robert Levy
A construo do simblico
na criana ........................................... 37
The construction of the symbolic in the child
Gerson Smiech Pinho
Com Isso no se joga: alguns
aspectos do limite na funo do
analista ................................................ 49
Dont play with Id: limits of the role of the analyst
Norma Bruner
Das cifras na anlise com crianas. 64
On ciphers in child psychoanalysis
ngela Vorcaro
Psicossomtica na infncia:
sujeito em risco .................................. 74
Psychhosomatics in childhood: the subject at stake
Renata Maria Conte de Almeida
Para alm do refluxo... ...................... 82
Beyond reflux...
Inajara Erthal Amaral
O espelho quebrado: a imagem na
psicose infantil .................................... 97
The broken mirror: image in child psychosis
Nympha Amaral
RECORDAR, REPETIR,
ELABORAR
A psicanlise de crianas
em Porto Alegre ................................. 174
Ana Maria Gageiro
ENTREVISTA
Os tempos do sujeito ........................ 178
Alba Flesler
VARIAES
Pini, o menino que queria ser de
verdade, como Pinquio ................... 193
Aid Ferreira Deconte
A clnica psicanaltica com crianas
no cristalizada ............................... 104
Child psychoanalysis is not crystallized
Beatri Kauri dos Reis
Encontros ............................................ 110
Meetings
Ricardo Rudolfo
As estruturas clnicas na infncia ... 126
Clinical structures in childhood
Alfredo Jerusalinsky
Gravidez na adolescncia ............... 143
Pregnancy in adolescence
Daniel Paola
A angstia da dana adolescente . 149
The anguish of teenage dance
ngela Lngaro Becker
Rasura e angstia: a funo do
velamento do corpo .......................... 157
Rasure and anxiety: the function of covering the body
Ana Costa
Do signo ao significante: a busca de
um lugar de enunciao .................. 164
From sign to significant: in search of a place of enunciation
Tatiane Reis Vianna
7
EDITORIAL
A infncia, cada vez mais vem ganhando terreno no discurso social. E
isso no s no domnio da educao, campo tradicionalmente dedicado ao tema.
Tambm na literatura, no cinema e no entretenimento em geral, muitas so as
produes dirigidas exclusivamente aos pequenos. Mas sobretudo no campo
do saber tcnico-cientfico que notadamente as vozes tm tomado vulto. Basta
ligeiro levantamento e teremos uma lista de saberes especializados em cada
faixa etria. Teorias e prticas que apresentam os melhores caminhos para
conduzir a infncia a bom termo. Em tal contexto, os padres de desenvolvi-
mento e suas medidas tornam-se guias seguros de uma empreitada to decisi-
va.
Afinal, o que contabilizamos nas crianas? O que ainda lhes falta para se
livrarem da suposta submisso ao Outro, prpria da infncia? Quando a infncia
chega ao fim? E o que seria um bom final?
Wo es war, soll Ich werden, enunciava Freud. Como falantes, estamos
condenados a s surgir como sujeitos quando alienados de ns mesmos, no
discurso do Outro, no inconsciente. Esse o infantil, sempre prestes a retornar
sob a forma de fantasma da infncia-sem-fim, do qual ansiamos dar cabo, afe-
rindo regularmente nossas crianas.
Portanto, vale a pena sublinhar, na psicanlise, infantil no aquilo que
relativo ou prprio infncia. Ainda em constituio na criana, o infantil consis-
te no produto conclusivo da infncia sobre o qual se edificar a elaborao ado-
lescente, requisito para aceder ao outro sexo. O resultado disso emergir no
adulto sob a forma de neurose infantil, presentificada na transferncia analtica.
8
EDITORIAL
O fato que, de uma forma ou de outra, sabemos que crianas e adoles-
centes do corpo aos nossos sintomas, devolvendo em espelho o mais cons-
trangedor de ns mesmos, o infantil. A posio de alienao ao discurso do
Outro, tributria do desamparo inerente infncia, os torna particularmente ap-
tos a despertarem o infantil que guarda nossa neurose.
Para o analista, arriscar-se transferncia implicada no trabalho, seja
com crianas ou com adolescentes, pe em jogo a necessidade de suportar a
angstia dos pais, da escola...e, ao mesmo tempo, oferecer ao sujeito a possi-
bilidade de quebrar o espelho que o captura, deixando-lhe os fragmentos com
os quais ir criar seu prprio sintoma, montando as peas capazes de recalcar
o fantasma dos pais. Longe de propor o espelho que garantiria a apreenso da
imagem ideal, o analista relanar para um prximo tempo a possibilidade de
novos encontros e desencontros.
TEXTOS
9
Resumo: O presente artigo, a partir de vinhetas clnicas, considera como a
diversificao da realizao flica das mulheres, longe de consolidar a potncia
do matriarcado, produz o incremento da angstia experimentada por mulheres
na ps-maternidade.
Palavras-chave: angstia, maternidade, castrao, relao me-beb, com-
plexo de dipo.
POST-MATERNITY ANGUISH
Abstract: This paper draws on clinical vignettes to cosider how the present diversity
of womens phallic achievements, rather than consolidating a matriarchal potency,
actually causes an increase the anguish experienced by post-maternity women.
Keywords: anguish, maternity, castration, mother-baby relationship, the Edipus
complex.
ANGSTIA NA
PS-MATERNIDADE
1
Julieta Jerusalinsky
2
1
O presente trabalho foi apresentado no Congresso da Angstia da APPOA, em 2008. Integra
o projeto de doutorado em andamento pela PUC-SP, junto ao Laboratrio de Psicopatologia
Fundamental, sob orientao do Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck.
2
Psicanalista; Psicloga; Membro da APPOA, do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, e da
Clnica Interdisciplinar Dr. Mauro Spinelli em So Paulo; Professora de ps-graduao na COGEAE
PUC-SP, Mestre em psicologia clnica pela PUC-SP; Autora do livro: Enquanto o futuro no vem:
a psicanlise na clnica interdisciplinar com bebs. E-mail: [email protected]
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 35, p. 9-20, jun./dez. 2008
10
10
Julieta Jerusalinsky
G
ostaria de partilhar com vocs algumas reflexes acerca do compareci-
mento da angstia na maternidade, considerando certas atualizaes que
a modificao do lugar social das mulheres lhe imprime.
O ar dos tempos tem seus efeitos sobre o padecimento, na medida em
que tanto o sintoma quanto a angstia no so produes individuais nem isola-
das, mas dizem da posio do sujeito perante seu outro e, portanto, tambm
perante o vis que dele encarna o discurso social. O que outrora poderia parecer
parte inevitvel dos percalos de se viver pode passar a ser considerado uma
experincia intolervel, e a ansiedade implicada nos acontecimentos da vida
pode assumir para o sujeito a dimenso de um pnico insuportvel. O discurso
social modifica os nomes dados ao sofrimento e afeta a relao do sujeito com
ele. Assim, as estruturas clnicas se atualizam e configuram respostas singula-
res do sujeito ao seu tempo. Nesse sentido, encontramos como a diversificao
da realizao flica das mulheres outrora socialmente endereada realiza-
o de um bom casamento ou a ter bebs, agora elas passam a ser autoras de
trocas flicas ao trabalhar, ganhar seu dinheiro e ter direitos de cidads
3
tem
efeitos no exerccio da maternidade, que comparecem com tal insistncia na
clnica que no podemos fazer a isso ouvidos moucos.
Se o que prprio do sujeito na modernidade a possibilidade de esco-
lha, fundada em um individualismo romntico que postula a liberdade de cada
um, sabemos que isso acarreta o nus da responsabilidade por realizar esco-
lhas das quais no se tem garantias, correndo o risco de se enganar, de sair
perdendo, e at mesmo de se perder, ao desencontrar-se da referncia simbli-
ca que permitiria representar o vivido.
Na clnica, constatamos como a diversificao da realizao flica das
mulheres, longe de consolidar uma espcie de potncia do matriarcado
4
, pode
vir a produzir o incremento da angstia, que emerge no exerccio da maternida-
de.
Se Freud nos fala de uma equao simblica pnis = falo = beb,
estabelecida para a menina aps o complexo de dipo, encontramos hoje em
dia que a chegada do beb frequentemente antecedida por outras equivalnci-
as flicas. que a equao seja pnis = falo = trabalho = autonomia financeira =
3
KEHL, Maria Rita. A mnima diferena: masculino e feminino na cultura.
4
Recordamos aqui como essa questo da possibilidade de que o falo passe do homem
mulher poderia configurar um matriarcado trazida discusso por Jacques Lacan, O semi-
nrio, livro 4, aula de 27 de fevereiro de 1957. Transcrio em verso eletrnica estabelecida
para circulao interna pela Escuela Freudiana de Buenos Aires.
11
Angstia na ps-maternidade
beb no indiferente para os desdobramentos subjetivos que uma mulher
precisar operar para o exerccio da maternidade, que, em si mesma, passa a
ficar situada no mais como consequncia natural do exerccio sexual, mas
como escolha.
Este o caminho que propomos percorrer
Mas, de partida preciso deixar claro: que o fato de a angstia se apre-
sentar como um afeto implicado na maternidade no em si nenhuma novidade.
Justamente porque virar me, ou virar me de um novo filho, um advento des-
ses que se apresentam como cruciais na construo da subjetividade por ser
um desses momentos da vida que exigem o reposicionamento do sujeito diante
do outro e que, portanto, pode ser acompanhado pela emergncia da angstia.
Como a prpria expresso aponta, virar me um ponto de virada, e, no casu-
almente, como nos recorda Lacan ([1962-1963] 2005), um dos nomes da gravi-
dez, em espanhol, embarazo.
Dar contorno ao corpo, inscrever as bordas ergenas nos primrdio da
constituio subjetiva do beb, exige da me uma posio psquica bastante
peculiar, situada por Winnicott como preocupao materna primria (1956, p.
407-411). No incio da funo materna, podemos encontrar uma sensibilidade
exaltada, um estado de ansiedade expectante da me diante das demandas
urgentes que supe com seu saber e que articula a leitura realizada a partir
das manifestaes corporais do beb. Essa ansiedade expectante implica
uma posio psquica de prontido da me nos primeiros tempos de exerc-
cio de sua funo, fazendo com que me (no sentido de quem exerce essa
funo) seja a mais habilitada a dar conteno ao beb, apesar de sua pr-
pria incontinncia.
Se isso no , em si, angstia, no entanto est na soleira dela, pois dar
borda a um corpo (o do beb) exige da me o intenso exerccio de recapitular
inconscientemente, de repuxar, a cada operao de cuidado com o beb, as
inscries de sua prpria histria libidinal, seus prprios pontos de amarra ps-
quica, seus prprios pontos de capiton.
H uma interrogao que subjaz a todo o exerccio da maternidade nos
primeiros tempos do cuidado de um beb: o que queres? ou ainda: o que ser
que queres agora? Dado que, em momentos distintos, a demanda assume
diferentes significaes e ser, portanto, mediada por diversos objetos de satis-
fao. E, mais ainda, na medida em que a me se situa como destinatria de
tais demandas supostas ao beb, o que ser que agora queres de mim? (Lacan,
[1962-1963] 2005, p. 14).
12
12
Julieta Jerusalinsky
Que queres de mim?
Tal interrogante convoca o saber inconsciente da me a funcionar a todo
vapor. Mas, pela infindvel demanda que o beb faz comparecer, no raramente,
em algum momento, pode ser experimentado como uma interpelao na qual a
mulher se encontra na posio de ter de dar conta de ser me sem jamais estar
de antemo precavida acerca de todas as vicissitudes de s-lo para esse beb,
e, portanto, apercebendo-se de que preciso s-lo sem roteiro.
Como cuidar do beb? Como retomar a vida com e aps esse beb?
So interrogaes que, em sua vastido, revelam a angstia que frequentemen-
te testemunhamos na clnica com bebs e suas mes. Revelam que, na passa-
gem maternidade, pode se perder a referncia que permite separar a ansieda-
de necessria, implicada nos primrdios desse exerccio, de um afeto perturbador
que invade o corpo materno diante dos cuidados com o beb, e que passa a ser
experimentado como desamparo, estranhamento, perseguio, sentimento de
dissoluo, entre tantas outras formas da angstia.
Uma paciente me procura, pois, aps o nascimento do seu beb, passou
a ter, em suas palavras, obsesso por limpeza e pergunta se teria toc (trans-
torno obsessivo compulsivo), sobre o qual, , claro, j leu na internet, quase
fechando seu autodiagnstico em uma identidade nosogrfica que torna anni-
mo seu sofrimento. Digo quase, pois est disposta a falar e a se interrogar
acerca dele. ao se pr a falar, localiza que a obsesso por limpeza no foi
imediata ao nascimento, mas a uma mudana de casa decorrente do novo pro-
jeto habitacional e familiar pensado para o beb.
Conta, sem, a princpio, dar muita importncia a isso, uma cena ocorrida
no dia da mudana de casa. Diz: a casa estava encaixotada, tudo fora do lugar
e todos saram. Fiquei sozinha com o beb. Ele fez coc. Comecei a troc-lo e,
bem nessa hora, faltou luz. Me vi no escuro, sozinha e precisando trocar o beb
sem ver. Ele chorava e eu comecei a chorar junto com ele. Nisso chegou o meu
pai e me disse que agora eu era a me, que tinha que dar conta. Ao invs de me
acolher, ele me deu uma paulada. O nome do beb Paulo (nome fictcio mas
que guarda a transliterao produzida pela paciente entre o golpe e o nome do
beb, do qual ela se apercebe).
Aps a evocao de tal cena, percebe que o que a preocupa no qual-
quer sujeira, mas justamente procurar limpar a que no se v. Evoca ainda que
o momento mais perturbador o de procurar estabelecer a separao entre um
lugar extremamente contaminado, o trabalho (trabalho este que afirma ter lhe
valido o reconhecimento preferencial do pai em relao aos outros irmos), e o
espao dentro da casa, no qual, como me, precisa proteger o beb.
13
Angstia na ps-maternidade
Conta que primeiro ficou com muita raiva do pai, por sua atitude, mas
que, pouco tempo depois, ele comeou a fazer e dizer coisas que pareciam de
criana, e que ela veio a pensar se ele no estaria ficando gag. Foi outro
golpe, eu no sabia o que fazer, mas no tem mais como voltar atrs. Parece
que perdi o direito de ser filha. E ser me pra sempre. Sinto um aperto no
peito. s vezes parece que vou explodir... me pergunto por que fui colocar um
filho neste mundo afirma.
a partir dessa angstia, experimentada como desamparo, que se cons-
titui para ela, como sintoma, a obsesso por limpeza. Trata-se de uma mensa-
gem desesperada que se enderea a procurar a realocao de uma referncia,
um reconhecimento na filiao, aps ter ouvido palavras que a interpelam, no
s por faz-la vacilar de seu lugar no amor paterno, mas da prpria legitimidade
da palavra do pai. Sem ter desde onde sustentar-se para fazer frente demanda
pela qual se sente interpelada, sente-se ela mesma desvalida, perante o de-
samparo de seu prprio beb, sem ter como proteg-lo apesar de todo o esfor-
o. a que o sintoma produzido para procurar estancar a angstia, como
tantas vezes acontece, faz a angstia voltar a emergir. Por mais que lave as
mos, no consegue se livrar de todos os pensamentos mortferos que a assal-
tam em relao ao beb.
Apesar de vir exercendo a maternidade com bastante eficcia, como
possvel constatar pela constituio de seu beb trazido a tratamento, recrimi-
na-se por no conseguir dar conta de ser me altura de seus ideais, e, inclu-
sive, de precisar buscar tratamento. Compara o que considera a incapacidade
de cada um de seus atos capacidade de outras mes, erigindo o ideal da
maternidade em posio cruelmente persecutria.
Fala de sua me, da eficcia dela, sua dedicao exclusiva aos filhos,
mas, ao mesmo tempo, considera que ela no foi uma pessoa feliz, que, dife-
rentemente dela, teve um casamento sem amor, deixando-se levar pela vida
sem saber pra qu, sem pensar nas suas escolhas.
Uma possibilidade se abre ao situar que sua angstia, e at mesmo o
tratamento poderiam ser um modo de ela construir singularmente sua materni-
dade e no mais de demandar uma psicopatologia prt--porter.
Reorganizar a vida, reorganizar um sintoma, exige considervel trabalho
de retomada da histria, pela qual certas questes estruturais se reapresentam,
so revisitadas e, ao mesmo tempo, atualizadas.
Em tempos em que a durao dos laos conjugais, das configuraes
familiares, dos laos profissionais e at mesmo da cidadania revelam sua insta-
bilidade, mais a relao me-filho parece ser erigida como ideal, como um dos
ltimos basties intocados de um amor suposto incondicional e naturalizado.
14
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Julieta Jerusalinsky
Ao mesmo tempo em que socialmente se fomentam linchamentos mo-
rais, diante de atos de abandono de bebs, mais mes chegam horrorizadas
com a sua prpria ambivalncia e com o fato de o amor ou saber materno no
serem automticos nas palavras de uma paciente , e de como esse amor
atravessado, nem que seja fugazmente, por um profundo estranhamento.
Retomando um ponto especfico acerca do que poderamos chamar da
angstia de castrao e inveja do pnis ps-maternidade, lembremos que Freud
aponta a equao pnis = falo = beb (Freud, [1925] 1981, p. 223), como via
preponderante de realizao do gozo flico para mulheres. Um dia poders ter
um beb a promessa articulada para a menina aps o complexo de castra-
o e que lhe permitiria a entrada do complexo de dipo.
Mas o que viria aps a maternidade? O que podemos escutar hoje de
mulheres em anlise, aps o encontro com o to prometido e esperado falo =
beb?
O fato que, nos ltimos cem anos, houve uma diversificao na aposta
de realizao flica das mulheres. As meninas no brincam s de mames que
cuidam de bebs, cozinham, decoram a casa ou abastecem o lar. Elas brincam
de trabalhar, de ser aventureiras que ganham o mundo e de super-heronas po-
derosas e destemidas claro, ressalva seja feita, o fazem sem esquecer o
detalhe do penteado e a combinao do vesturio
5
caso algum prncipe
desavisado esteja passando por ali. Isso ocorre sem que aos pais e tampouco
aos psicanalistas da atualidade tais jogos resultem em demonstraes de quais-
quer dificuldades na resoluo de suas equaes simblicas. Pelo contrrio,
afinal elas formulam respostas, por meio do brincar, aos ideais-do-eu prprios
de seu tempo e cultura. Nada mais pertinente.
H pouco tempo, em uma festa fantasia de crianas, como o usual,
circulavam meninos vestidos dos mais variados super-heris e meninas vesti-
das das mais diversas princesas. Chegou ento a hora da apresentao de
capoeira, e a roda foi devidamente composta por meninos e meninas entre os
quais uma linda Rapunzel de cinco anos, vestida de branco e cintilante cetim,
com uma trana de cabelos negros que lhe chegava altura dos joelhos. Cha-
mada ao jogo, arregaou o longo vestido e ps-se a arremessar chutes, virar
5
Ou seja, se lanando em um vis de realizao flica na ordem do ter coragem, ousadia,
valentia, poderes que se recortam do corpo, que se destacam falicamente dele mas sem
deixar de articular outra dimenso do gozo, que retorna sobre o prprio corpo, por meio do
detalhe capaz de tornar esse corpo belo, mascarando-o de ser o falo capaz de despertar o
desejo de algum.
15
Angstia na ps-maternidade
estrelinhas e plantar bananeiras, enquanto procurava esgrimir-se elegantemen-
te de suas longas trana e saia. No era pequeno o esforo exigido nesse rduo
desdobramento. Todos aplaudiam regozijados: sem dvida estvamos diante de
uma verdadeira princesa de nossos tempos!
No pude deixar de me enternecer com o espetculo, talvez de modo
menos regozijado que a plateia, considerando no a particular posio de tal
menina, da qual afinal pouco sei, mas a de muitas outras meninas-mulheres
que escutamos na clnica e que continuam a desdobrar-se entre diferentes go-
zos implicados em ser mulher, ser me e ser profissional.
As pequenas princesas da atualidade assim seguem brincando. Na ado-
lescncia e juventude fazem seus jogos amorosos com lugar a mais ou me-
nos exerccio da feminilidade e suas escolhas profissionais, como uma apos-
ta flica, geralmente digna de ser considerada em posio de simetria com a de
qualquer outro colega ou irmo do sexo masculino. Nada mais comum, dado
que o ideal de realizao profissional e sustento econmico prprio ocupa, em
grande parte das famlias da atualidade, posio de aparente simetria na dvida
simblica e na realizao de ideais, tanto para os filhos homens quanto para as
filhas mulheres.
Na anlise de jovens pacientes, podemos escutar o quanto, para muitas
delas, ainda que ter um beb aparea como desejvel, no entanto frequente-
mente isso aparece como realizao lanada a um horizonte bem distante,
depois de tantas outras
6
. Isso no impede que gravidezes no planejadas ocor-
ram de modo irruptivo e que esse desejo negado assuma a significao de
ameaa a uma srie de outras realizaes esperadas (tais como formao aca-
dmica, independncia econmica, ou insero profissional).
tambm pouco frequente que cheguem a tratamento mulheres que
aps haverem postergado durante anos o projeto de terem um beb, por priorizarem
a realizao econmica ou profissional, ao se encontrarem na idade-limite da
fertilidade so invadidas pela irrupo da angstia diante do destempo, experi-
6
Se, como Freud nos aponta, longa a espera que a menina precisar fazer, aps a entrada
no complexo de dipo, at que chegue o tempo de ter um beb, tendo que, inevitavelmente
sofrer tal espera, interessante fazer notar que, quando chegado o tempo em que efetiva-
mente poderiam ter um beb, tantas mulheres escolham postergar tal realizao a um tempo
distante, que parece no se implicar no modo em que efetivamente conduzem suas escolhas.
Claramente, no estamos nos referindo aqui a mulheres que escolhem legitimante no ter
filhos, mas de algumas que parecem insistir em manter, perpetuar, em uma esfera onrica tal
realizao (almejada e postergada).
16
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Julieta Jerusalinsky
mentando entre o que seria um tempo subjetivo necessrio para percorrer as
equivalncias flicas antes de chegar ao beb, o tempo cronolgico implicado
em tais realizaes e o limite temporal imposto pelo real do corpo fertilidade.
Aps o advento da maternidade e da realizao de ter um beb, podemos
constatar em diversas mulheres, muitas das quais, inclusive, que exercem de
modo extremamente desejoso e amoroso a maternidade, mais do que uma
resoluo da angstia de castrao, novo comparecimento da mesma; mais do
que o apaziguamento da disputa flica, seu recrudescimento.
Nas palavras de um esposo: depois que ela virou me despertou uma
agressividade at ento para mim desconhecida. Nas palavras de uma mulher
se digladiando entre o impossvel clculo de investir de modo pleno em duas
realizaes flicas ao mesmo tempo a maternidade e a profisso e, compa-
rando-se ao marido: quisera eu ter um pau no meio das pernas para poder pr
o meu trabalho em primeiro lugar direito do qual um dia de fato sups ter
usufrudo, mas que, ao se tornar me, sente que perdeu. Por outro lado, revela
a iluso de que, ao t-lo (o pau no meio das pernas), poderia fazer a funo
flica valer de modo mais competente que esse homem.
Que uma mulher faa usufruto do gozo flico no impede que visite a
condio feminina. Ou seja, o fim passivo (de ser amada e desejada) que se
joga na posio ertica feminina no se estende necessariamente condio
social de uma mulher, assim como seu papel ativo na sociedade no tem por que
impedir que, para alm de tais realizaes flicas, usufrua de gozo feminino
7
.
Assim, maternidade e trabalho so vividos imaginariamente como con-
correntes e opostos na realizao flica, em vista do que, o investimento cres-
cente em um implicaria necessariamente o desinvestimento proporcional do
outro. a que a angstia de castrao vem bater novamente porta, ou melhor,
entra sem avisar.
Queixam-se as mulheres, na ps-maternidade, de que esto em posio
assimtrica para com os homens, em relao ao trabalho. Assim, a maternida-
de vem devolv-las a um lugar de assimetria, aps um tempo em que considera-
ram estar em p de igualdade ou taco a taco com os homens, nas palavras
de uma paciente no tempo, mais uma vez dado como perdido, em que teriam
7
Freud mesmo nos aponta essa questo, ao afirmar que talvez seja o caso de que numa
mulher, com base na sua participao sexual, a preferncia pelo comportamento passivo e
por fins passivos se estenda sua vida [...] devemos, contudo nos acautelar nesse ponto,
para no subestimar a influncia dos costumes sociais que, de forma semelhante, compelem
as mulheres a uma situao passiva (Freud, [1933] 1976 p.143).
17
Angstia na ps-maternidade
tido a mesma possibilidade de realizao flica que os meninos, mas que per-
deram. Reedita-se assim a angstia de castrao.
Ento, a experincia da maternidade costuma produzir na mulher intenso
sentimento de realizao, ao mesmo tempo em que a leva ao reencontro com a
prpria condio feminina, uma vez que a cena ou a paisagem da castrao
materna agora revisitada no mais desde a condio de criana, mas desde
um novo ponto de vista, que s se adquire ao ultrapassar a condio de filha,
indo mais longe nessa viagem e aps percorrer um caminho to longo
8
: o ponto
de vista do lado da me.
Se, para as primeiras geraes de mulheres trabalhadoras, a questo de
que o faziam por gosto e escolha as lanava na posio de terem de suportar
a sobrecarga de seus diferentes afazeres, as mulheres-mes-trabalhadoras da
atualidade parecem muito menos dispostas a arcar sozinhas com tal modo de
organizao social, convocando os homens-pais a tambm se ocuparem dos
bebs. Surgem assim novos termos, tal como o pe, para denominar o pai que
se ocupa tambm dos cuidados do beb.
No entanto, para alm das questes prticas do cotidiano, o lugar ocupa-
do pelo beb na economia psquica de algum que est em posio feminina ou
masculina no o mesmo. E muitas mulheres s se apercebem disso com
tremendo mal-estar, na medida em que se deflagra a diferena sexual.
O beb, para a mulher, ao mesmo tempo em que pode produzir uma
articulao da equao flica (trazendo assim uma realizao) tambm faz com-
parecer uma falta (a descompleta). Diante da realizao de ter um beb, surge
a ameaa da perda da colocao profissional e-ou do prprio corpo como objeto
do desejo.
fato que o cobertor flico sempre curto. Ao espich-lo aqui ele desco-
bre ali. O que prprio da angstia de castrao o esteio deixado pela retirada
do falo que se evanesce, pelo que aparece toda vez que o fluxo flico recua e se
mostra a areia, nos diz Lacan ([1962-1963] 2005, p. 293).
Escutamos mulheres evocarem os primeiros tempos dedicados aos cui-
dados do beb de modo extremamente ambivalente: por uma lado, desfrutando
do idlio do estar fora do mundo com esse beb, por outro, referindo o insupor-
tvel do estar fora da circulao social do trabalho, da produo cultural, do
desejo sexual. Por um lado almejando sair para trabalhar e, por outro, no
conseguindo tirar o beb da cabea.
8
Idem , p. 302.
18
18
Julieta Jerusalinsky
Em qualquer um dos polos a angstia comparece:
s vezes sinto que eu desapareci, diz a me de um beb, revelando a
afnise que se apresenta como um dos modos da angstia na maternidade pelo
temor de apagamento do sujeito diante de um objeto outrora to desejado e
agora supostamente presentificado.
Depois que nasce muito estranho. Ter um beb no aquilo tudo! E
a vida j no mais a mesma. Perdi minha liberdade, no posso mais ir e vir,
afirma outra me.
O sofrimento com o fora de circulao social costuma vir a apresentar-
se sobre o fundo de que o beb no cumpre plenamente com a promessa flica
e, apesar de todas as exigncias produzidas pelos cuidados que a me precisa
dirigir-lhe, ele nunca um falo que se mantm em potncia, ele esvaece. Essa
necessria desiluso com o pequeno confronta sem piedade, mais uma vez, a
mulher angstia de castrao na medida em que, mesmo depois de ter um
beb ela no detentora do falo.
Frequentemente, tal percepo conjuga-se com o temor de tampouco
poder voltar a reconstituir uma mascarada
9
que lhe permitisse ser suposta no
lugar de quem; mesmo no tendo o falo, poderia s-lo para algum. Nesse
sentido vo as insistentes queixas de ter perdido os atrativos fsicos ao ter
virado me. Temos a duas caras da angstia de castrao a de no ter e
tampouco ser o falo, no sentido de temer no poder retornar posio de encarnar
o falo a partir do desejo do outro
10
.
Aps a licena-maternidade, o retorno ao trabalho e circulao social
tampouco vm devolver compulsoriamente aos investimentos flicos sua estabi-
lidade, na medida em que o temor de expor o beb a uma falta excessiva que
supostamente caberia a ela, enquanto me, saber dosar com frequncia as-
salta angustiosamente essas mulheres-mes-trabalhadoras.
Meu filho me virou a cara quando voltei do trabalho, afirma uma me
que, quando esperava encontrar o olhar desejoso de seu beb, como num qua-
dro de Magritte
11
, se encontra com sua nuca. A angstia de estranhamento
passa, nesse momento, para o lado da me.
9
RIVIRE, Joan. La feminit em tant que mascarade [1929].
10
O fato de ela se exibir e se propor como objeto do desejo identifica-a, de maneira latente e
secreta, com o falo, e situa seu ser de sujeito como falo desejado, significante do desejo do
Outro. Esse ser a situa para alm do que podemos chamar de mascarada feminina, j que,
afinal, tudo o que ela mostra de sua feminilidade est ligado, precisamente, a essa identifica-
o profunda com o significante flico (Lacan, [1957-1958], p. 393).
11
MAGRITTE, Ren. La reproduction interdit, 1937.
19
Angstia na ps-maternidade
Tal o clculo do gozo flico diante da maternidade, ou perde-se o beb,
ou perde-se o trabalho, ou perde-se o prprio corpo como flico.
Se a oposio imaginria entre profisso e maternidade experimentada
por mulheres na atualidade no foi calculada na equao de Freud, ela, mais
uma vez, vem atualizar a velha questo dos efeitos produzidos pela angstia de
castrao para a mulher. Nesse sentido, a maternidade, mais do que resolv-la,
vem relan-la, ao deslocar metonimicamente a castrao ao longo dos termos
da equao flica que jamais efetuam entre eles uma plena substituio.
Escutar mulheres no puerprio e com pequenos bebs nos demonstra
que a maternidade, longe de ser uma tranquila resoluo da antiga questo que
habita cada mulher acerca de como lidar substitutivamente com o falo, relana
a angstia de castrao e a diviso da mulher diante de diferentes modos de
gozo atualiza assim para ela sua condio de no-toda no gozo flico.
Agora que voc me ver o que nunca mais estar inteira em lugar
algum a frase dita por uma amiga de uma paciente e por ela evocada acerca
do afeto nela despertado aps a maternidade.
E, por acaso, antes disso ela estaria inteira? Certamente no.
Em todo caso, a maternidade escancara no s a angstia da castrao
e a evanescncia do falo, mas a diviso da condio feminina, na medida em
que ser me no responde ao que ser mulher, e diante da qual a inveja do
pnis comparece como engodo.
Muito se diz: ser me padecer no paraso. este parece ser um modo de
fazer desembocar a maternidade em um gozo masoquista, o que bastante
usual, por sinal, mas no necessariamente intrnseco maternidade
12
. Ali, para
alm de experimentar prazer na dor, busca-se provocar a angstia do outro
(Lacan, [1962-1963] 2005).
Talvez isso nos indique o absurdo de procurar encerrar aquilo que diz
respeito ao beb em uma medida da equao flica, o que torna a questo um
crculo infernal
13
. Se de fato considerarmos que a maternidade faz a mulher
revisar os caminhos possveis perante a castrao, podemos considerar que,
para alm da equivalncia flica, haja a possibilidade de fazer na maternidade
atos de criao, de exceo, que, em lugar de buscar a complementaridade
com o beb, possibilitem inventar suplementarmente pela via de um gozo outro.
12
Diferentemente dos postulados de Helen Deusch (1929).
13
Como nos demonstram tantos casos clnicos nos quais a criana tomada diretamente como
medida flica da me. Casos em que a birra da criana, sua recusa em se alimentar, sua
reteno de fezes se produz como tentativa de estabelecer uma falta nesse curto-circuito
fechado em relao demanda da me, que costuma revelar-se pela queixa materna de: eu
renunciei a tudo para me dedicar a ela e ela faz eu me sentir incompetente.
20
20
Julieta Jerusalinsky
Por que no contemplar a possibilidade de fazer com a maternidade um
pouco de humor no inferno?
Acerca disso, evoco, para terminar, um pequeno chiste inicialmente
involuntrio, produzido por um casal exausto com os cuidados exigidos pelo
pequeno beb.
Resulta que, no meio da noite, um cutuca o outro para decidir qual deles
vai, dessa vez, atender o beb. Finalmente a me diz ao pai:
Vai, vai l! E no esquece que tem que trocar o beb.
O pai, quase em estado de sonambulismo, responde:
Trocar? Trocar pelo qu?
Com isso, os dois caem na gargalhada.
REFERNCIAS:
DEUSCH, Helen. O masoquismo feminino e sua relao com a frigidez [1929].
Boletim da Associao Psicanaltica de Porto Alegre, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p.10-
13, ago. 1990.
FREUD, Sigmund. A dissoluo do complexo de dipo [1924]. In: _____. Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 19.
_____. Algumas consequncias psquicas da diferena anatmica entre os sexos
[1925]. In: _____. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 19.
_____. Conferncia XXXIII: Feminilidade [1933]. In: _____. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1976. v. 22.
KEHL, Maria Rita. A mnima diferena: masculino e feminino na cultura. Rio de Janei-
ro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. El Seminrio de Jacques Lacan. Aula de 27 de fevereiro de 1957.
Transcrio em verso eletrnica estabelecida para circulao interna pela Escuela
freudiana de Buenos Aires, CD Rom.
_____. O Seminrio, livro 5: As formaes do inconsciente [1957-1958]. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 1999.
_____. O Seminrio, livro 10: A angstia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
ed., 2005.
_____. El Seminrio, libro 11: Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanlisis
[1964]. Buenos Aires: Paids, 1987.
_____. O seminrio, livro 20: Mais ainda, [1972- 1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
ed., 1985.
RIVIRE, Joan. La fminit em tant que mascarade [1929]. La Psychanalyse, Paris,
Puf, n. 7, 1964.
WINNICOTT, Donald. Preocupacin maternal primaria [1956]. In: _____. Escritos de
pediatria y psicoanlisis. Barcelona: Laia, 1979. p. 405-412.
Recebido em: 20/12/2008
Aceito em: 25/01/2008
Revisado por Inajara Erthal Amaral
TEXTOS
21
Resumo: O artigo discute o conceito de angstia na obra de Freud, Klein, Spitz,
Winnicott e Lacan, no que concerne clnica com bebs e seus pais. Aponta as
relaes entre angstia, desamparo e desejo. Analisa a angstia do beb, dos
pais e do analista, para propor um manejo clnico que se situaria numa interven-
o quanto ao ato, muito mais que interpretativa.
Palavras-chave: angstia, desamparo, desejo, infans, ato analtico.
ANXIETY IN PSYCHOANALYTIC
CLINIC WITH BABIES AND THEIR PARENTS
Abstract: This paper discusses the concept of anxiety in the studies of Freud,
Klein, Spitz, Winnicott and Lacan, about the psychoanalytic clinic with babies
and their parents. It points the relationship between anxiety, helplessness and
desire. It analyses the babys anxiety, the parents anxiety and the psychoanalyst
anxiety, to propose a clinical work of the intervention in acting, much more than
an interpretation work.
Keywords: Anxiety, helplessness, desire, infans, analytic acting.
A ANGSTIA NA CLNICA
PSICANALTICA COM
BEBS E SEUS PAIS
Leda Mariza Fischer Bernardino
1
1
Psicanalista; Analista-Membro da Associao Psicanaltica de Curitiba e da Association
Lacanienne Internationale; Ps-Doutora pela Universit de Paris VII; Professora titular da
PUCPR. E-mail: [email protected]
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 35, p. 21-29, jun./dez. 2008
22
22
Leda Mariza Fischer Bernardino
N
a clnica psicanaltica, o manejo da angstia fator crucial para o desenvol-
vimento do processo. Necessrio se faz entender esse conceito, muito
cedo identificado por Freud em sua clnica e cuja teorizao percorreu toda sua
obra. Lacan, por sua vez, dedicou ao tema todo um seminrio, no qual pde
sistematizar uma srie de propostas tericas, principalmente sobre sua contri-
buio maior, o objeto a.
Trata-se, portanto, de um conceito-chave tanto na clnica quanto na teo-
ria, no que se refere psicanlise, nas suas trs vertentes de teoria do psiquismo,
mtodo de investigao e tratamento.
Pretendemos neste artigo revisitar esse conceito luz da clnica psica-
naltica com bebs e seus pais, clnica que incide nos primrdios da constitui-
o do aparelho psquico e que, como tal, permite investigar de modo privilegia-
do esse processo de constituio, os fatores e personagens nele implicados e
as intervenes possveis nesse tempo.
Podemos iniciar nossa discusso considerando que a angstia nessa
clnica se manifesta em todos os personagens implicados, cada qual sua
maneira: temos a angstia do beb, a angstia dos pais e a angstia do analis-
ta. Sabemos, pela vasta literatura sobre a clnica precoce, que a angstia do
beb se manifesta preferencialmente no corpo e diz respeito a sua interao
com o outro cuidador. J a angstia dos pais, em outro nvel de desenvolvimen-
to, pode se manifestar na prpria enunciao da queixa uma preocupao
com seu beb ou, de modo mais disfarado, em sintomas portados por eles
mesmos, a partir do surgimento do beb ou de algo por ele desencadeado. A
angstia do analista refere-se aos aspectos arcaicos em jogo na transferncia e
tambm preocupao, prpria dessa clnica, com o tempo cronolgico, tempo
evolutivo que conta particularmente na primeira infncia, na medida em que a
maturao, o crescimento e o desenvolvimento so cruciais para que se opere a
interseco com o tempo lgico das operaes psquicas fundamentais.
Tomemos uma me que vem nos procurar no perodo puerperal porque se
percebe deprimida, sem nimo para cuidar de seu beb, chorando muito e s
pensando em dormir. Seu beb, que nasceu prematuro, ficou dois meses na UTI
neonatal e est h um ms em casa com ela, sofre com as clicas idiopticas
do primeiro trimestre e manifesta-se sempre choramingando e no conseguindo
dormir noite. Estamos a diante de alguma situao que provocou angstia
nessa me que, embora tenha enfrentado bravamente e com otimismo o perodo
em que seu beb sofreu uma pequena cirurgia e permaneceu hospitalizado lon-
ge dela e do marido, com a chegada do beb ao lar, viu-se s voltas com uma
situao desencadeadora de tristeza, desnimo, sonolncia e outros sintomas
de depresso. Temos um bebezinho que sofre de dores em seu incipiente corpinho
A angstia na clnica psicanaltica...
23
e no consegue entrar num ritmo de sono. E a analista, que recebe esta dade
ainda desencontrada, inquieta-se com a fragilidade do lao me-beb, que sabe
ser essencial para colocar em marcha a constituio do psiquismo desse novo
sujeito.
no setting teraputico que essas angstias se encontram e que, na
trama da escuta, vo poder se transformar em palavras em busca de significa-
es.
Como em toda clnica psicanaltica e o exemplo apresentado acima
nos ajuda a mostrar , na clnica com bebs tambm a angstia que move o
processo.
A angstia do beb
Freud analisou com cuidado as situaes de angstia, para chegar ao
fator desencadeante, que seria a separao. Entretanto, refuta a tese de Otto
Rank sobre a angstia de nascimento. Para Freud, no se pode considerar o
nascimento como uma experincia de separao, na medida em que o feto,
sendo uma criatura completamente narcsica, est totalmente alheio sua exis-
tncia como um objeto (Freud [1925] 1976, p. 154).
A ansiedade apresentada por Freud como um afeto de desprazer que
seria especfico, com sensaes fsicas em rgos especficos do corpo (ibid.,
p. 155), envolvendo atos de descarga e percepes desses atos (ibid., p. 156).
Ele aborda todos esses pontos em seu estudo, para chegar a nomear o nasci-
mento como uma experincia prototpica (ibid., p. 156) para a angstia, e a
define finalmente como reao a um estado de perigo (ibid., p. 157), cujo motor
ltimo seria a separao. Entretanto, mais adiante em seu trabalho, Freud con-
clui que a ansiedade um produto do desamparo mental da criana (ibid., p.
162), explicando que a situao biolgica da criana como feto substituda
para ela por uma relao de objeto psquica quanto a sua me (ibid., p. 162).
Assim, surge o lao indissolvel entre angstia e desamparo.
Lacan destaca o conceito de desamparo na obra de Freud e desenvolve
outra tese, a partir de sua concepo da primazia do simblico ao nascimento,
e da me como Outro primordial. Segundo sua teoria, a angstia seria o indicativo
da formidvel experincia de perceber-se sofrendo a incidncia do desejo do
Outro.
A ligao entre as ideias de Freud e de Lacan estaria no fato de que para
Freud a angstia vivida como sinal etolgico de que um perigo se aproxima;
mas, no caso do humano, tratar-se-ia de um perigo subjetivo, cujo prottipo
seria a situao de desamparo ps-nascimento, tendo em vista a extrema
24
24
Leda Mariza Fischer Bernardino
prematuridade do beb humano, mesmo nascido a termo, que cria as condi-
es para a dependncia em relao ao semelhante que dele vai cuidar para
que sobreviva. Para Lacan, essa dependncia se d primordialmente no plano
simblico e no no plano afetivo. Nesse registro, o perigo subjetivo seria antes
de mais nada o risco de lidar com o caos original de ser lanado no campo da
linguagem. Na sequncia pela indispensvel entrega aos cuidados do outro
essa angstia se transformaria no risco de perder a prpria subjetividade em prol
de um lugar de objeto, para satisfazer o desejo desse Outro, que se revela
faltante e, portanto, poderia devorar o pequeno sujeito. Como sintetiza Pereira,
a angstia constitui, assim, o sinal do perigo de uma despossesso subjetiva
radical (1999, p. 232).
Para Lacan, o desamparo, a hilflosigkeit, como mostra Pereira a con-
dio mais primitiva, na qual a criana descobre-se sem recursos (ibid., p.
234). Entretanto, essa falta de recursos no se referiria ao plano da necessida-
de, e sim do desejo da me. Nesse caso, como mostra Pereira, para Lacan a
angstia j uma organizao defensiva perante esse risco de aspirao do
Outro (ibid., p. 234).
Vemos que a distino da posio lacaniana situar desde os primrdios
o sujeito em um dilema no campo simblico. No se trata de um ser que sofre
pela dependncia absoluta em termos fsicos, orgnicos, mas de um sujeito em
potencial, que sofre pela falta de representao no campo dos significantes. Em
sua teoria, o objeto a tem a funo de representar o irredutvel da falta de
simbolizao, por isso causa do desejo.
Lacan ([1962-1963] 2005) prope trs etapas nesse processo: o encontro
com o Outro (significao que se faz no s depois), a angstia, e ento o dese-
jo. Ele a define a angstia como uma resposta queda essencial do sujeito em
sua misria suprema (ibid., p. 182), misria essa que se refere ao desamparo
original quanto ao campo simblico no qual chamado a habitar.
Pereira, referindo-se falta do significante no Outro, ou seja, impossibi-
lidade de tudo saber e tudo simbolizar, conclui: a organizao simblica do
mundo repousa, portanto, sobre uma base do desamparo (1999, p. 236).
Podemos ento afirmar que h um vazio de garantias no campo da lin-
guagem. Vazio esse que os bebs recebem de sada, ao nascerem, e vazio que
o sujeito deveria reencontrar ao se tornar adulto e se encontrar com a vacuida-
de do lugar do Outro, condio que prescindiria da anlise pessoal e do confron-
to com a falta-a-ser.
Vemos nos dois autores a considerao de dois tempos diferentes, pois
a primeira angstia se refere ao desamparo do infans, um ser totalmente depen-
dente do Outro para sobreviver, para Freud; e totalmente desamparado diante do
A angstia na clnica psicanaltica...
25
mundo simblico, para Lacan. A angstia propriamente dita, angstia de castra-
o, por sua vez, pressupe um pequeno sujeito j com o esboo de eu s
voltas com o desejo do Outro, percebido como faltante, no tempo edpico.
Assim, podemos afirmar que, na clnica com bebs, a angstia da qual
sofre o beb essa descrita por Freud como prototpica, arcaica, decorrente do
desamparo mental e descrita por Lacan como angstia diante do real.
Melanie Klein (1962), pioneira, aps Freud, de uma teoria sobre os
primrdios do psiquismo, descreve as angstias precoces desse tempo de de-
samparo e de entrega ao que ela chama de relao de objeto: a angstia
persecutria do incio da vida, em que todo o exterior vivido como ameaador,
e o prprio objeto materno, quando frustrante, entra nessa categoria; e a angs-
tia depressiva do incio da percepo do outro materno enquanto tal.
Spitz (1998), quando cunha o conceito de depresso anacltica, demons-
tra entender o desamparo da criana a partir da ruptura de continuidade, da
ausncia do outro, da perda de apoio no meio.
Winnicott, na esteira de Klein, postula que o beb, ao nascer, estaria em
uma no-integrao primria ([1945] 1978, p. 275), e caberia ao ambiente pro-
ver as condies para sua integrao, a qual abriria caminho para sua futura
auto-integrao. No caso de o ambiente no conseguir fornecer essa proviso, o
beb viveria a desintegrao, estado descrito pelo autor como apavorante, e
que traria o risco da dissociao (ibid., p. 277), ou seja, o estado no qual,
segundo ele, se encontra o esclarecimento na psicopatologia da psicose (ibid.,
p. 274). A desintegrao provoca o que Winnicott nomeia de angstia de aniqui-
lamento, que ele descreve como a sensao do desabamento, de se partir em
pedaos, de cair em um poo sem fundo que provocada pela ausncia de
um holding adequado (Winnicott, [1960] 1980, p. 29).
Assim, em torno da noo de desamparo os autores se encontram para
articular a angstia e a psicopatologia precoces. Vale ressaltar que, de Freud a
Winnicott, a nfase colocada na noo de apoio s funes vitais e falha no
ambiente na proviso dos cuidados necessrios ao bem-estar fsico e psquico
dos bebs. J para Lacan, a nfase est no Outro enquanto representante do
campo linguageiro, e a angstia se refere ausncia de garantias do ser no
mundo.
A angstia das mes
Na literatura especfica, encontramos descritas pelo menos duas situa-
es que implicam angstia para as mes: no primeiro caso, trata-se da angs-
tia provocada pela chegada do beb, cuja presena no ambiente familiar reativa
26
26
Leda Mariza Fischer Bernardino
na me traos mnmicos relacionados s experincias que ela prpria viveu
como beb ou como criana pequena, que teve de enfrentar a chegada de um
beb na famlia, ou circunstncias traumticas relacionadas a um beb na fam-
lia. Estamos diante da mesma angstia, prpria ao desamparo, de aniquilamen-
to, que retorna como repetio, em busca de ser nomeada e simbolizada.
Em outras situaes, trata-se da angstia neurtica, de castrao,
provocada pelos remanejamentos de identidade relacionados passagem do
lugar de filha para o lugar de me e, mais adiante, passagem do lugar de me
para o retorno ao lugar de mulher. a angstia que se apresenta como sinal de
dificuldade no processo de construo da maternidade; ou como sinalizador da
relutncia em voltar posio feminina.
Nesses dois casos, a emergncia da angstia se relaciona com o beb,
mas ele mesmo no est em questo, de sua presena como desencadeador
de lembranas de uma dor psquica que estamos falando. O sujeito que sofre
a me, mas o beb sensvel a ela e pode reagir ao seu mal-estar com sinto-
mas prprios.
No exemplo que apresentamos acima, quando a me relata os fatos rela-
cionados ao seu prprio nascimento, depara-se com o que deve ter sido uma
situao apavorante: sua prpria me, dois dias aps seu nascimento, aps
uma hemorragia violenta, teve de fazer uma cirurgia de urgncia. Na sesso
seguinte ao relato desse fato, essa me chega surpresa, contando que seu
beb finalmente parara com as clicas e j estava dormindo melhor. Sua de-
presso, da mesma forma, teve uma melhora espetacular, como frequente-
mente o caso, quando se consegue aliar as palavras esclarecedoras aos traos
de memria arcaicos.
Em um outro exemplo, tema trabalhado em uma anlise de me e beb
que acompanhamos
2
, a me sofre por no conseguir dormir bem noite e relata
que o bero da filha continua no quarto do casal. Sua filha nasceu prematura,
com muito baixo peso, e inspirou muitos cuidados. Quando foi para casa, aps
meses na UTI neonatal, essa me ficava sempre alerta e com as noites total-
mente disponveis para sua filhinha. Quando ela comea a falar da dificuldade de
colocar sua filha para dormir no quartinho dela, seus problemas com o marido
comeam a aparecer na anlise e fica evidente o pouco lugar que ela dedica
vida conjugal, comparece a a angstia dessa mulher em retomar sua feminilida-
2
Agradeo a Marie Christine Laznik, que gentilmente me acolheu nas consultas que realiza no
Centre Alfred Binet, em Paris, bem como CAPES, pelo apoio pesquisa de ps-doutorado
que nele pude realizar.
A angstia na clnica psicanaltica...
27
de. Entretanto, o que se falou em sesso parece ter tido um importante efeito,
pois na sesso seguinte ela comparece contando que a filha estava dormindo
no prprio quarto, e ainda trazendo-a de vestidinho, sapatinho e lao no cabelo,
a prpria representao do feminino!
A angstia do analista
A escuta, nesse tempo da primeira infncia, no pode desconhecer a
passagem cronolgica do tempo, pois o desenvolvimento que est em marcha
obedece ao ritmo biolgico, ao mesmo tempo em que organizado pelo desejo
do Outro. As aquisies nesse momento so muito rpidas, e as paralisaes
no desenvolvimento podem bloquear processos complexos que nem sempre
so resgatveis depois. O acesso a esse conhecimento pode incidir sobre a
necessria tranquilidade da escuta flutuante, preconizada por Freud. Portanto,
aventurar-se nessa clnica postula, como precondio, o bom manejo da angs-
tia pessoal e extenso trabalho sobre o desejo prprio, para tentar manter em
segundo plano a presso do tempo contida na prpria expresso interveno
precoce.
como se tivssemos que intervir at mesmo antes do tempo, o que no
verdadeiro, pois mesmo na clnica com bebs estamos j no s-depois. Como
afirma B. Golse (2007, p. 358): o beb est de sada no s-depois, via o feto que
o inscreve na histria de sua filiao. Esse autor prope uma teoria do trauma
em trs tempos, para os bebs: o primeiro tempo, de inscrio de traos
mnmicos sensitivo-sensoriais, durante a vida fetal; o segundo tempo, de en-
contro com o trabalho psquico do objeto materno que vai ajudar a inscrever
esses significantes arcaicos; e, finalmente, o terceiro tempo, que pode ou no
ocorrer, de encontro com acontecimentos relacionais que permitiro ser
metabolizados segundo a qualidade do trabalho psquico interiorizado.
O manejo da angstia nessa clnica
Se nos remetermos angstia de aniquilamento, presente nos momen-
tos mais arcaicos de nossa vida psquica, qual seria o manejo mais adequado
para favorecer o trabalho psquico de elaborao que uma anlise promove?
Se pensarmos nessa angstia como decorrente de uma falha no que
Winnicott chama de holding o acolhimento que uma me deve proporcionar ao
seu beb no sentido de continncia, tanto fsica quanto psquica , o manejo
preferencial nesse caso seria muito mais no plano do ato do que no plano da
interpretao.
28
28
Leda Mariza Fischer Bernardino
Nesse sentido, o analista estaria na posio daquele que vai cuidar da
me, fornecer-lhe a continncia que est presente na expresso popular segu-
rar a barra, to plena de sentidos metafricos. O analista ento instado a
fazer como se estivesse em uma posio de funo materna
3
, mas para a me
4
!
Ele asseguraria o que Claude Boukobza nomeou de holding do holding, situa-
o na qual o acolhimento, o apoio e a continncia da me no espao analtico
permitiria que ela fizesse o mesmo com seu beb. Boukobza, relatando sua
experincia de atendimento de mes em dificuldades, observou: tnhamos o
sentimento de que era preciso assistir, no real da sua vivncia cotidiana, o casal
me-beb, dar um continente para que a palavra pudesse ter seu efeito
(Boukobza, 1997, p. 91).
Alm disso, o analista faz ainda funo paterna
5
, pois, ao acompanhar a
me com seu beb, ou mesmo os pais com seu beb, atua como testemunha
da competncia desses pais em cuidarem de seu beb. Charles Melman, refe-
rindo-se quela que exerce a funo materna, nota: h uma estrutura que a
autoriza como me, que a faz me, que a torna possvel enquanto me (Melman,
1991, p. 64), sem a qual no ocorre o primeiro circuito com o Outro, no qual a
criana constituda pelo olhar desse Outro como bom objeto (ibid., p. 65). Essa
estrutura o que pode trazer o analista, a partir de seu lugar de representante do
Outro (como, por exemplo, especialista suposto saber sobre os bebs).
Trata-se aqui de uma ao indireta no trabalho com o beb, pois a me,
ou os pais, assim acolhidos, sustentados e avalizados em seu lugar, primeiro
de sujeitos, e em seguida de pai e me, podem ento cuidar de seu beb,
fornecendo-lhe essas funes necessrias.
Com o beb, por sua vez, trata-se de conter na voz, conter no olhar,
reconhecer como sujeito falante e desejante esse infans, com as palavras e
olhares dirigidos especialmente para ele o mamanhs e o olhar de encanta-
mento -, que atuam como shifters de bebs independente da significao das
palavras, o beb sabe que se dirigem a ele.
Assim, como se pde observar pelo apresentado, a clnica psicanaltica
com bebs e seus pais muito menos interpretativa e muito mais uma clnica
do ato, que vai do acolhimento do sofrimento em jogo sustentao das fun-
es que fraquejam e ao encontro das palavras que organizam os lugares e as
memrias.
3
Grifo do autor.
4
Grifo do autor.
5
Grifo do autor.
A angstia na clnica psicanaltica...
29
REFERNCIAS
BOUKOBZA, C. A clnica do holding. In: WANDERLEY, D. (org.). Palavras em torno do
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Recebido em: 20/10/2008.
Aceito em: 13/11/2008.
Revisado por Inajara Erthal Amaral
30
TEXTOS
30
Resumo: O presente artigo trabalha o estatuto do corpo, em psicanlise, mais
especificamente a sua constituio na infncia e o seu desdobramento na ado-
lescncia. O autor sustenta a hiptese de que h a necessidade da constituio
da fantasia para o surgimento do sujeito. Atribui, tambm, ao rompimento da
fantasia o fator desencadeante de mal-estar.
Palavras-chave: corpo, criana, adolescente, sujeito, psicanlise.
BODY AND SUBJECTIVITY IN THE CHILD AND THE ADOLESCENT
Abstract: The present article deals with the concept of body in psychoanalysis,
more specifically, with its constitution in childhood and unfolding in adolescence.
The author supports the hypothesis that the constitution of fantasy is needed for
the emergency of the subject. He points as well to a rupture in fantasy as the
disclosing factor for suffering.
Keywords: body, child, adolescent, subject, psychoanalysis.
CORPO E SUBJETIVIDADE NA
CRIANA E NO ADOLESCENTE
1
Robert Levy
2
1
Traduo de Patrcia Chittoni Ramos Reuillard (UFRGS).
2
Psicanalista; membro da Analyse Freudienne; autor de diversos artigos e livros, dentre eles
O desejo contrariado (Companhia de Freud, 2004) e O infantil na psicanlise(Editora Vozes,
2008). E-mail: [email protected]
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 35, p. 30-36, jun./dez. 2008
Corpo e subjetividade...
31
Esse ttulo quase um paradoxo para os psicanalistas; de fato, como
falar do corpo sem falar de subjetividade, ou seja, do sujeito do inconsciente? E,
reciprocamente, como falar de subjetividade sem falar do que escapa ao sujeito,
isto , o real de seu corpo? Com efeito, o corpo humano, real em sua vertente
orgnica, fundado pelo significante e apenas o invlucro carnal do sujeito, ao
qual escapa incessantemente, mesmo que encontre sua existncia graas
libidinizao que o Outro lhe confere; nesse caso, a me, que desde cedo o
acaricia, o olha com enlevo e lhe traz os significantes que logo lhe ofertar.
Esse paradoxo tambm poderia ser expresso de outra forma, pela per-
gunta: eu sou meu corpo? A subjetividade no se apalpa, mas encarnada pelo
corpo. Contudo, corpo e subjetividade ressoam de modo exacerbado nos hist-
ricos, por meio de seus sintomas, e nos psicticos, no modo como eles tm por
vezes a impresso de ver o prprio corpo se despedaar. O corpo perturba por-
que no responde nossa vontade consciente e de uma inquietante estranhe-
za, manifesta na adolescncia, pela ereo intempestiva, pelas primeiras re-
gras, pela primeira ejaculao ou orgasmo, pelas emoes amorosas intensas,
ou ainda pelo rubor que trai a lista longa...
Corpo e subjetividade se encontram ainda para se excluir na relao com
o desejo, j que o corpo, em sua relao com o desejo do Outro, se v despeda-
ado pelo olhar do Outro, o que provoca no sujeito perguntas como: ele me ama
somente pelo meu corpo? O que sou para ele? V-se mais uma vez a idia de
que efetivamente pela erotizao narcsica de seu organismo fisiolgico que o
sujeito acha, ou melhor, encontra um estatuto de corpo que no passa, na
verdade, de sua superfcie corporal.
Entretanto, deve-se distinguir esse sujeito do indivduo, pois o sujeito de
que falamos aqui o sujeito do InConSciente, isto , sujeito ao desejo, que deve
ser distinguido do indivduo; esse sujeito no , pois, o indivduo do corpo social,
ainda que seja por sua boca de carne do corpo social que ele fale. O sujeito
sempre descentrado de si mesmo, pois algo lhe escapa sem cessar e, onde ele
cr pensar, ele no est, e onde ele cr estar no ele quem pensa. O sujeito
est na dependncia do Outro. E no se encontra seno entre dois significantes,
os quais so registrados e guardados pela criana, que no deixa passar ne-
nhum. Esses significantes so armazenados e memorizados conforme as re-
gras que recobrem em boa parte o que se chama de leis da linguagem (sintaxe,
regra de substituio de um significante por outro) e, por outra parte, o que se
chama de registro pessoal (associao singular de um significante com outro
em razo de seu teor em afeto e associao com certas representaes).
Lacan nos forneceu, com a topologia, uma analogia estrutural para repre-
sentar o corpo e a subjetividade na figura da faixa de Mbius, que ilustra bem
32
32
Robert Levy
esse sujeito por natureza, pela prpria essncia, estrangeiro a si mesmo: fala
sem se ouvir nem saber o que diz, e se encontra simultaneamente no grupo e
fora dele, enquanto habita em seu corpo sem nele estar e sem nele se encon-
trar. Portanto, o sujeito se v obrigado constantemente a se procurar em outro
lugar. A faixa de Mbius esquematiza bem isso: no anverso, a fala do sujeito
consciente que fala, ao passo que, no reverso dessa faixa, essa mesma fala
tem outras significaes que lhe escapa. isso que instaura essa relao de
inquietante estranheza que todo falasser mantm com sua prpria fala e seu
corpo.
Onde h sujeito do inconsciente, h diviso. No se pode dizer eu se-
no estando dividido. O sujeito no nada de substancial nessa pulsao de
abertura-fechamento do inconsciente, esse momento de eclipse que se mani-
festa na Unbewusste
3
. Em outras palavras, poderamos transcrev-lo da seguin-
te forma: o sujeito $ apreende o objeto a, o seio materno, enquanto objeto de
desejo, $ <> a, ao mesmo tempo, <>, que dele est privado. a partir dessa
perda que a criana solicita o desejo do outro, o que vai, em um terceiro momen-
to, permitir a efetuao das pulses e o surgimento desse novo sujeito; $ <> a,
frmula da fantasia contempornea de sua constituio na criana. Constitui-
o da fantasia que est em jogo no perodo infantil.
A fantasia o que permite nos defendermos desse real, atravs dela
que percebemos o que se chama de realidade, que nada mais do que aquilo
que nossa fantasia nos permite ver, ouvir e sentir. Ou seja, o fato de que nossas
pulses s podem ser consideradas atravs de nossa fantasia e de que so
incessantemente reinterpretadas por ela: finalmente, isso que se chama de
subjetividade. Ento, para a criana, a questo crucial; com efeito, o que
acontece com a fantasia, como ela se constri?
Isso me leva no s a dizer que no h subjetividade antes da fantasia,
mas tambm que tampouco h sujeito, propriamente falando, pr-constitudo.
Essa noo capital, pois a questo do corpo, do que um corpo para uma
criana e, mais ainda, para um adolescente, passa necessariamente por essa
dimenso.
Por exemplo, o esquema corporal pode estar intacto em certas crianas,
mas a imagem do corpo, gravemente perturbada. O corpo pode no estar pertur-
3
N. E. Aqui o autor se vale da aproximao utilizada por Lacan entre os termos Unbewusste
(inconsciente, em alemo) e lune-bvue(lapso, equvoco, em francs) que foneticamente
so semelhantes.
Corpo e subjetividade...
33
bado, ao passo que sua representao psquica InConSciente pode estar altera-
da por distrbios psicopatolgicos e fixaes pulsionais InConScientes. Ou en-
to, a utilizao adequada do esquema corporal pode estar entravada por uma
libido ligada a uma imagem inapropriada do corpo sabemos que a moda atual
do piercing e de outras marcas corporais tentativa de reapoderar-se do corpo,
nele introduzindo, marcando, escrevendo a diferena do desejo dos pais.
O mal-estar aparece quando a fantasia no cumpre mais sua funo de
tela, exatamente como o que acontece com o trauma, isto , o rompimento da
fantasia. muito significativo o nmero de distrbios precoces e tambm da
adolescncia, quando a capacidade da fantasia est alterada.
No h sujeito antes da fantasia?
No h, portanto, sujeito antes de s barrado puno pequeno a, o que
levanta a questo do lugar da fantasia na criana. Questo que relana outra: se
considerarmos que a imaturidade do pequeno falasser o destina at certa poca
a uma estruturao antes metonmica, podemos ento falar de fantasia nessa
poca, na medida em que ela precisa recorrer simultaneamente, para se elabo-
rar, metonmia e metfora?
Para examinar essas questes, precisamos portanto rever a constituio
da primeira brincadeira o fort-da , considerada a primeira forma dos preldios
da metfora. No entanto, introduzo a seguinte distino: o carretel ocupa o lugar
da metonmia. Ou seja, de parte da me por seu todo, e a brincadeira em si
mesma, de matriz de uma metfora (substituir alguma coisa por outra). Mas
essa operao s se constitui verdadeiramente quando a ausncia fonetizada
e substituda por uma oposio entre duas palavras: saiu; voltou ou, mais
prosaicamente, pela oposio fonmica em alemo O! A!. Devemos ainda as-
sim esclarecer que na oposio do fonema ao gesto que se constituem as
primcias da metaforizao. De fato, por poder dizer saiu, quando o carretel
est prximo, ou voltou, quando est longe, que a criana vai poder controlar
essa ausncia de outra forma.
Consequentemente, passa-se do processo alucinatrio operao me-
tafrica que introduz simultaneamente a funo da fala e da linguagem, visto
que, a partir desse momento, a palavra tambm pode servir para designar algo
ausente e, sobretudo, pode servir para no precisar mais desse algo por certo
tempo. Mas, nesse estgio, ainda no se pode falar de fantasia, pois a criana
substitui, termo a termo, a ausncia do personagem que falta, nesse caso a
me, pela brincadeira com um objeto ao qual ela associa dois fonemas opostos
que repete; em outras palavras, dois fonemas que ela conflita. No se trata,
34
34
Robert Levy
ento, de um roteiro, mas da repetio da substituio de algo por outra coisa
associada a uma fonetizao idntica, que no produz nova interpretao. Em
compensao, a fantasia comea com o roteiro, resultado de uma transposi-
o, e sobretudo com a passagem da posio de espectador, que constata a
criana que apanha do pai, quela de uma primeira interpretao, que dar lugar
primeira transposio do roteiro resultante dessa interpretao: meu pai me
bate: ele me ama!.
A partir da, sero possveis todos os outros roteiros, em que o autor da
fantasia desaparece em proveito de diferentes substituies. No por nada
que Freud introduz a questo da fantasia a partir da agressividade ou ento da
violncia sobre o objeto na questo do amor, j que a relao da criana com
seus objetos comporta de sada essa dimenso amor-dio com a qual ela ainda
no pode jogar, menos ainda fantasiar. nessa mesma linha que Winnicott
imagina a encenao de um pequeno dueto entre o sujeito e o objeto:
o sujeito diz ao objeto hei, objeto, eu te destru, e o objeto pre-
sente recebe essa comunicao. A partir da, o sujeito diz: Hei,
objeto, eu te destru. Eu te amo. Tu contas para mim porque so-
brevives destruio que te fao sofrer. J que eu te amo, eu te
destruo todo tempo na minha fantasia inconsciente. Aqui se inau-
gura a fantasia no indivduo. O sujeito pode agora usar o objeto
que sobreviveu (Winnicott, 1975, p.125).
Claro est que no se trata ainda da fantasia freudiana: uma criana est
apanhando, pois ainda so apenas dois protagonistas, o sujeito e o objeto sem
espectador; mas no h sobretudo o nvel de interpretao, que far a seguir
toda a motivao do roteiro da fantasia, motivao no sentido de motivao do
crime. Essa a diferena entre desejar o objeto e desejar o desejo do objeto.
Ainda no h interveno de um terceiro entre o sujeito e o objeto, da qual a
criana poderia tirar uma concluso, como em uma criana est apanhando:
porque o terceiro bate no irmo que ele o ama; consequentemente, para ser
amado, preciso construir um roteiro no qual assumo o lugar da criana que
apanha.
Mas afirmo que, se essa etapa no est operante durante certo tempo,
por razes que dizem respeito falta de metaforizao, normal at certo pero-
do. Acerca disso, a distino feita por Winnicott muito esclarecedora; de fato,
na brincadeira, ele distingue o playing do game. E se pode considerar os jogos
(games), com sua organizao, uma tentativa de afastar o aspecto assustador
da brincadeira (playing) (ibidem, p. 71).
Corpo e subjetividade...
35
Portanto, durante bastante tempo, a criana s dispe do playing, ou
seja, ela no dispe da dimenso repetitiva da brincadeira, que a satisfaz mo-
mentaneamente, assim como o restabelecimento de certa homeostasia que,
por exemplo, torna sua me presente pelo domnio do objeto (carretel). Entre-
tanto, com o playing, ela j deixa o processo alucinatrio, transpondo a imagem
mental para um objeto, cuja presena repete sem, no entanto, poder introduzir
variao. o que se constata at bem tardiamente em certas psicoses infantis.
Porm, a criana no dispe ainda do game, ou seja, do que faz com que a
instalao de um roteiro requeira certo nmero de regras do jogo para poder se
estabelecer; regras do jogo que necessitam recorrer ao deslocamento e
condensao, atravs do sonho ou do chiste. Mas isso requer certa forma de
maturao ou, mais exatamente, de aquisio da metfora, que torna possvel o
game.
J se podem extrair algumas consequncias disso, ou algumas observa-
es que concernem prtica da anlise com crianas. Com efeito, o desenho
e o trabalho com os desenhos, ou a brincadeira na sesso so de natureza bem
diferente, caso se trate do playing ou do game. Conforme estiver adquirida ou
no a funo da fantasia, a prpria natureza do desenho e da brincadeira assu-
mir um valor diferente. Do mesmo modo, pode-se distinguir a masturbao
puramente suscetvel de provocar uma diminuio das tenses da masturbao
que recorre fantasia para se produzir; essa mesma diferena pode ser consta-
tada nas psicoses infantis. Isso supe, por conseguinte, que h, at determina-
do perodo, um imaginrio sem fantasia, em que o desenho a produo idnti-
ca da relao entre um significante e uma significao, sem que o game possa
ainda se instaurar de modo a permitir que esse desenho tenha mltiplas signifi-
caes.
o problema da constituio do sujeito que levanta a questo do modo
como se passa do imaginrio ao simblico, o que seria uma maneira de situar
novamente como se passa do playing ao game; mas prefiro dizer como o Real,
o Simblico e o Imaginrio se tornam estritamente equivalentes, tal como Lacan
([1972-1973] s/d) indica em R.S.I. Nas primeiras brincadeiras, aquelas que se
podem chamar de playing, a criana parece tentar se emancipar do objeto sem
consegui-lo, j que no dispe ainda da fantasia, como se acaba de ver. Ela se
encontra nesse momento em um mero esboo da fantasia, que pode ser grafado
como S barrado sem puno a.
Graas a Freud ([1920]1981), em Alm do princpio do prazer, percebe-se
que os surgimentos e os desaparecimentos do objeto tentam simbolizar esses
eclipses intermitentes da me, que a criana quer dominar, e se vinga, trans-
pondo-os para um plano diferente daquele em que ela os vivencia; mas nem por
36
36
Robert Levy
isso j se pode falar de roteiro e, portanto, de game. Nesse primeiro caso, a
criana tenta mais prosaicamente controlar uma realidade que lhe escapa. O
sujeito no tem anterioridade a esse mundo de formas que o constitui por elas,
nelas, e isso de modo originariamente dividido. A partir desse momento, estabe-
lece-se a idia da simultaneidade da constituio e da perda, e o sujeito cons-
titui a si prprio como eclipsado de um significante a outro. Por consequncia,
no h sujeito constitudo de antemo e no h sujeito seno vazado. O mesmo
se pode dizer da dimenso do corpo.
REFERNCIAS
FREUD, S. Alm do princpio do prazer [1920]. In: ______. Obras psicolgicas de
Sigmund Freud; escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago,
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LACAN, J. Sminaire R. S. I. [1972-1973]. Paris: Association Lacanienne
Internationalle. Publicao no comercial, s/d.
WINNICOTT, D. Jeu et ralit. Paris: Gallimard, 1975.
Recebido em 20/10/2008
Aceito em 05/12/2008
Revisado por Otvio Augusto Winck Nunes
TEXTOS
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Resumo: O presente artigo aborda o estabelecimento dos processos metafri-
cos e metonmicos na criana. Seu ponto de partida so as ideias de Freud
sobre os enunciados das crianas, em seu livro sobre os chistes. A seguir,
trabalha os conceitos de metfora e metonmia na obra de Lacan e seu gradual
surgimento na condio enunciativa da criana pequena.
Palavras-chave: psicanlise de crianas, metfora, metonmia, simblico,
chiste.
THE CONSTRUCTION OF THE SYMBOLIC IN THE CHILD
Abstract: The present article approaches the establishment of the metaphor and
metonymy processes in the child. Its starting point is the ideas of Freud on the
statements of the children in its book about jokes. To follow, it takes the concepts
of metaphor and metonymy in the workmanship of Lacan and its gradual sprouting
in the enunciative condition of the small child.
Keywords: psychoanalysis of children, metaphor, metonymy, symbolic, joke.
A CONSTRUO DO
SIMBLICO NA CRIANA
1
Gerson Smiech Pinho
2
1
Alm da prtica clnica com crianas, as interrogaes que serviram de ponto de partida para
este trabalho se baseiam em uma srie de discusses das quais participei nos encontros do
Ncleo de psicanlise de crianas da APPOA, no ano de 2008. Ali, muitas questes e ideias
sobre o tema que trabalho aqui foram debatidas, permitindo a abertura de novas perguntas e
o andamento de sua elaborao. Assim, agradeo a todos os colegas com os quais pude
compartilhar desse espao de interlocuo.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Membro da equipe do Centro Lydia Coriat; Mestre em Psico-
logia Social e Institucional (UFRGS). E-mail: [email protected]
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 35, p. 37-48, jun./dez. 2008
38
38
Gerson SmiechPinho
U
ma menina de trs anos folheava um livro, olhando detidamente as gravu-
ras. A seguir, voltou sua ateno para o texto escrito nas pginas e falou:
No consigo ler porque estou sem culos! Os adultos ao redor acharam graa
da observao feita por ela, que desconsiderava completamente o fato de ainda
no ser alfabetizada. Atriburam o que a garotinha disse a algo que teria escuta-
do da av, a qual realmente no conseguia ler sem a ajuda de culos.
Quando convivemos com crianas pequenas, muito comum observar-
mos cenas como essa que presenciei. Escutamos delas comentrios que
primeira vista podem parecer tolos ou ingnuos, mas que, na verdade, indicam
uma lgica diferente da habitual, resultante de singular forma de relao pala-
vra. Constatamos que os pequenos com frequncia tomam a palavra literalmen-
te, sem levar em conta seu duplo sentido; interpretam conceitos desde sua
experincia particular, no atribuindo a eles a extenso que costumam ter para
ns; ou, ainda, associam uma ideia a determinado contexto de forma unvoca,
como na situao relatada acima, em que a frase escutada da av fica atrelada
impossibilidade de ler. Como podemos entender essas peculiaridades encon-
tradas nas construes verbais das crianas pequenas?
Para melhor situar a questo que estou propondo, vou retomar brevemen-
te o esquema abaixo, que Lacan trabalha na lio de abertura do seminrio
sobre As formaes do inconsciente (Lacan, 1999).
Essa figura composta por duas linhas que se cruzam e que represen-
tam dois diferentes estados ou funes que podemos apreender em uma
sequncia significante. A primeira delas, que inicia em e termina em ,
corresponde ao discurso comum e corrente, composto por referncias fixas
A construo do simblico na criana
39
compartilhadas no cdigo comum a todos. Nesse nvel, a possibilidade de cria-
o mnima, uma vez que o sentido j est dado de antemo. A segunda linha,
que corta a anterior, indica a cadeia significante enquanto permevel aos efeitos
da metfora e da metonmia. Nesse mbito, so compostos os jogos de pala-
vras e a criao de novos sentidos, bem como a abertura necessria s forma-
es do inconsciente. Enquanto na primeira linha encontramos a fixidez do
cdigo, na segunda temos a possibilidade de produo de novos sentidos.
O desenvolvimento da linguagem na criana um processo complexo no
qual acompanhamos uma srie de aquisies. Inicialmente, vemos aparecerem
os primeiros indcios de compreenso sistemtica das palavras no beb, segui-
dos pela utilizao das primeiras produes voclicas para reconhecer e desig-
nar objetos. Pouco a pouco, observamos a palavra se destacar do contexto
imediato de sua produo e adquirir carter cada vez mais simblico e represen-
tativo. Em torno de um ano e meio, assistimos ao rpido crescimento do voca-
bulrio, combinao das palavras em frases e o consequente desenvolvimento
gramatical, o qual ir se prolongar at os trs ou quatro anos de idade, quando
a maior parte das estruturas morfolgicas e sintticas da lngua j foi adquirida
(Skliar, 1995).
Se nos reportarmos ao esquema de Lacan retratado acima, podemos
localizar essas aquisies principalmente na linha que corresponde ao discurso
corrente, j que todas elas se relacionam crescente inscrio do sujeito no
cdigo da lngua. Como poderamos situar, de modo anlogo, a construo dos
elementos representados no outro vetor? Esta a questo que proponho elabo-
rar neste escrito: situar o estabelecimento dos processos metafricos e
metonmicos na criana, os quais esto representados na outra linha deste
esquema.
verdade que esses processos j se encontram antecipados na estrutu-
ra da linguagem mesmo antes do nascimento. Porm, seu aparecimento na
produo do sujeito gradual, o que imprime caractersticas peculiares s
verbalizaes das crianas pequenas, como as que enumeramos no incio des-
te trabalho.
Se tomarmos a hiptese de Lacan, de que o inconsciente estruturado
como linguagem, a transformao dessas condies enunciativas da criana
podem ser consideradas como paralelas gradativa constituio do aparelho
psquico e do trabalho de recalcamento. Ao procedermos a seu exame, pode-
mos reunir elementos para traar hipteses sobre a estruturao do psiquismo.
Essas questes constituem o eixo central daquilo que procuro trabalhar
aqui. Para tanto, inicialmente percorro algumas ideias que surgiram a partir da
leitura de Freud, principalmente de seu livro sobre os chistes (Freud, [1905]
40
40
Gerson SmiechPinho
1980). A seguir, situo os conceitos de metfora e metonmia na obra de Lacan,
com o intuito de pensar como se d seu gradual surgimento na condio
enunciativa da criana pequena at a entrada no perodo de latncia. Finalmen-
te, partindo dessas consideraes, retomo brevemente a noo de metfora
paterna e seu papel na constituio do sujeito.
As crianas e os chistes
A cena com a menina de trs anos, relatada no incio deste trabalho,
um bom exemplo do que Freud chama de cmico ingnuo, em seu livro sobre
os chistes. O tipo de situao cmica denominada de ingnua acontece quan-
do a pessoa acredita estar utilizando os processos de pensamento comuns a
todos, mas, sem se dar conta, faz uso de outros que lhe so prprios. Segundo
Freud, a ocorrncia de comentrios e atitudes ingnuas bem mais frequente
nas crianas e em adultos que podemos considerar infantis em seu desenvolvi-
mento intelectual. Todos os exemplos de cmico ingnuo relatados por ele
so produzidos por crianas e comportam construes verbais por similaridade
fnica, situaes de nonsense ou absurdo e equvocos que produzem efeito de
duplo sentido em quem escuta.
Para Freud, o cmico ingnuo se aproxima dos chistes, j que ambos
tm seu efeito relacionado forma do enunciado. Diferem um do outro na medi-
da em que o comentrio ingnuo acontece sem o menor esforo da pessoa
que o profere, enquanto a produo de chiste implica todo um processo de
elaborao
3
.
Na abordagem que faz dos chistes, Freud coloca forte acento na tcnica
verbal empregada. O que nos faz rir ao escutar um chiste est mais ligado
forma com que o enunciado construdo do que a seu contedo propriamente
dito. Se o mesmo contedo verbalizado de outra forma, no provoca o riso.
Segundo Freud, a tcnica verbal dos chistes caracteriza-se por fazer uso dos
mesmos mecanismos que encontramos em outras formaes do inconsciente,
como a condensao, o deslocamento, o uso do absurdo e do nonsense, a
representao pelo oposto e assim por diante.
Aqui, interessa sublinhar o seguinte: Freud destaca uma estrutura tpica,
caracterstica dos enunciados das crianas. Com base nisso, afirma que o efei-
3
Freud traz outras diferenas entre os chistes e o cmico, as quais no vou abordar aqui por
ultrapassarem o interesse da discusso deste escrito.
A construo do simblico na criana
41
to produzido por alguns comentrios espontneos delas similar quele obser-
vado ao se escutar um chiste, ou seja, o riso. Essa semelhana fundada na
peculiar forma verbal utilizada em uma ou outra dessas situaes, e que reporta
aos mecanismos que caracterizam o funcionamento do inconsciente.
O dispositivo responsvel pelo riso tambm se assemelha em ambas as
situaes. Tanto naquele que escuta um chiste quanto no que testemunha um
comentrio ingnuo, o riso surge como forma de descarga da despesa psqui-
ca que teria sido empregada para manter a forma usual de pensamento e que se
torna excedente por ter sido repentinamente desviada para outros caminhos
associativos. Nas duas circunstncias, cadeias de associaes verbais que
foram inibidas pelo processo de recalcamento passam a ser novamente acess-
veis. A inibio momentaneamente suspensa e o investimento psquico que
teria sido gasto em sua manuteno escoado pelo riso. Assim, a produo
de prazer na forma do riso remete ao levantamento do recalque, tanto para quem
ouve o chiste quanto para aquele que escuta os enunciados peculiares de uma
criana.
Alm de possveis fontes de situaes cmicas, as construes verbais
da infncia tambm so consideradas por Freud como ponto de partida para a
tcnica verbal dos chistes na vida adulta. Ao examinar a psicognese dos chistes,
Freud reporta sua origem aos jogos de palavras das crianas. Essa uma tese
que Freud vai sublinhar em vrias passagens de seu livro.
O jogo guardemos esse nome aparece nas crianas que es-
to aprendendo a utilizar as palavras e a reuni-las. [...] Ao faz-lo,
deparam com efeitos gratificantes, que procedem de uma repeti-
o do que similar, de uma redescoberta do que familiar, da
similaridade do som, etc. e que podem ser explicados como
insuspeitadas economias na despesa psquica. No de se ad-
mirar que esses efeitos gratificantes encorajem a criana a pros-
seguir no jogo e a continu-lo sem atentar para o sentido das
palavras ou para a coerncia das sentenas. O jogo com palavras
e pensamentos, motivado por alguns gratificantes efeitos de eco-
nomia, seria pois o primeiro estgio dos chistes (Freud, [1905]1980,
p.151).
Aqui, Freud afirma claramente que os jogos verbais da infncia esto na
raiz da estrutura dos chistes. Em outras passagens, amplia essa ideia e aproxi-
ma a atividade de pensamento das crianas no s dos chistes, mas tambm
do pensamento inconsciente em geral.
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Gerson SmiechPinho
Pois o infantil a fonte do inconsciente e os processos de pensa-
mento inconscientes so exatamente aqueles produzidos na ten-
ra infncia. O pensamento que, com a inteno de construir um
chiste, mergulha no inconsciente est meramente procurando l
a antiga ptria de seu primitivo jogo com as palavras. O pensa-
mento retroage por um momento ao estgio da infncia de modo a
entrar na posse, uma vez mais da fonte infantil de prazer. Se j
sabemos disso atravs da nossa pesquisa da psicologia das neu-
roses, devemos ser conduzidos pelos chistes suspeita de que a
estranha reviso inconsciente nada mais que o tipo infantil de
atividade do pensamento. Simplesmente, no nos muito fcil
captar nas crianas um lampejo desse modo infantil de pensar,
cujas peculiaridades ficam retidas no inconsciente do adulto, por-
que em sua maior parte, este modo de pensar retificado como
que in statu nascendi. Mas conseguimos faz-lo em inmeros
casos e nos rimos ento dessa bobagem infantil. Qualquer des-
coberta do material inconsciente desta espcie parece-nos cmi-
ca (Freud, [1905]1980, p.194-5).
A espcie de jogos verbais mencionada por Freud caracteriza os primei-
ros anos e chega ao fim pelo fortalecimento da faculdade crtica ou racionalidade.
Na medida em que essa faculdade se consolida, esses jogos passam a ser
rejeitados como algo sem sentido ou absurdo. Essa racionalidade fruto do
trabalho do recalcamento, o qual opera inibindo formas anteriores de obteno
de prazer. Na medida em que o recalcamento se consolida, os jogos verbais
infantis so deixados de lado e as cadeias associativas que os caracterizam
tornam-se inconscientes. Assim, o recalcamento aparece como linha divisria
entre a produo verbal caracterstica de um tempo inicial e aquilo que posteri-
ormente ir emergir como retorno do recalcado nas diversas formaes do in-
consciente.
Retomemos brevemente as questes que esmiuamos at aqui, a partir
da leitura do livro sobre os chistes e que serviro de base para o que iremos
trabalhar na sequncia do texto. Em primeiro lugar, Freud aponta para a existn-
cia de jogos verbais tpicos da infncia cuja estrutura homloga encontrada
nos chistes. Em segundo, situa o estabelecimento do recalque como momento
em que estes jogos deixam de figurar. Guardemos estas ideias no bolso para
continuarmos nosso caminho, desta vez, por textos de Lacan. Com eles, abor-
daremos as noes de metfora e metonmia, bem como seu surgimento na
produo da criana.
A construo do simblico na criana
43
A metfora e a metonmia
Ao abordar os conceitos de metfora e metonmia, Lacan (1988) parte do
trabalho sobre a afasia, do linguista Roman Jakobson, que distingue dois dife-
rentes tipos deste dficit na fala.
O primeiro tipo diz respeito dificuldade em posicionar as palavras-chave
relacionadas quilo que se quer expressar. Trata-se de um distrbio que afeta a
condio de buscar, entre todos os vocbulos do cdigo, aqueles que poderiam
dar nome ideia a comunicar. Aqui, o eixo que situa a similaridade entre as
palavras e a possibilidade de substituio entre elas encontra-se alterado. J no
segundo tipo de afasia descrito por Jakobson, a impossibilidade est na capaci-
dade de encadear as palavras. Seu impedimento no est em nomear, mas em
estabelecer ligaes e conexes que permitam alinhar e constituir a trama do
discurso. Aqui, a degradao est no eixo da contiguidade na capacidade de
articular numa frase complexa aquilo que possvel nomear.
O fundamental a ser destacado nessa distino estabelecida por Jakobson
(1970) que os dois aspectos colocados em relevo por ele substituio e
contiguidade esto presentes na construo de qualquer fragmento de discur-
so e correspondem aos dois eixos fundamentais de funcionamento da lingua-
gem em qualquer circunstncia. De um lado, temos a seleo e substituio
das palavras a partir de suas semelhanas e diferenas. De outro, seu encade-
amento na sequncia da fala. Sempre que algum diz algo, seleciona as pala-
vras que utiliza ao mesmo tempo em que conecta umas com as outras, fazendo
uso simultneo dessas duas dimenses centrais. Duas figuras de estilo a
metfora e a metonmia tm sua estrutura fundada nesses dois eixos de fun-
cionamento da linguagem. essa articulao que ganha importante desdobra-
mento na obra de Lacan, central para o tema deste escrito.
Tomemos, em primeiro lugar, a metfora. Sua estrutura fundamental a
da substituio significante: uma palavra por outra. Quando algum utiliza uma
metfora, um significante substitui outro que permanece oculto, mas se man-
tm presente em sua conexo com o restante do discurso. O eixo em que
acontece a construo metafrica o da similaridade e substituio, respons-
vel por selecionar e posicionar cada significante na cadeia falada.
A metfora um recurso bastante usado nas construes poticas, como,
por exemplo, na frase seguinte, de Mrio Quintana:
As velhinhas bonitas so passas de uva (Quintana, 1983, p.142).
Aqui, a expresso passas de uva faz aluso a uma srie de representa-
es que, mesmo no sendo explicitadas na sentena, so evocadas pelo lei-
tor.
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Gerson SmiechPinho
Lacan (1988) sublinha o quanto a metfora permite que conexes de
sentido preestabelecidas sejam desatadas. Essa operao de substituio
significante fabrica novas significaes, desamarra significados fixos e abre ou-
tros novos. Com a metfora, o significante arrancado de suas conexes
lexicais, gerando toda a possibilidade de criao e riqueza semntica que en-
contramos, por exemplo, na poesia.
Na construo da metonmia, o processo que se estabelece outro. Aqui,
a associao entre os significantes se d pela via da contiguidade. No exemplo
clssico em que algum diz trinta velas ao invs de trinta barcos, a palavra
oculta barco tem relao direta com vela, j que uma parte (a vela) tomada pelo
todo (o barco). A conexo metonmica se sustenta de palavra em palavra.
, portanto, no eixo da contiguidade, responsvel pelo encadeamento
das palavras umas em relao s outras que se situa essa dimenso. Na
metonmia, temos a substituio de alguma coisa que se quer nomear por outra
que seu continente, ou uma parte, ou que est em conexo com ela.
Lacan ir retomar as noes de metfora e metonmia de Jakobson para
elev-las categoria de conceitos fundamentais da relao do sujeito lingua-
gem, relacionando-as aos mecanismos fundamentais do processo primrio,
descritos por Freud a condensao e o deslocamento. Assim, aquilo que
Freud chama de condensao tem a mesma estrutura de superposio de
significantes da metfora. J o deslocamento implica o transporte de significa-
o que encontramos na metonmia. Segundo Lacan, as diversas formaes do
inconsciente os sonhos, os lapsos, chistes e sintomas so estruturados por
jogos metafricos e metonmicos.
Nas primeiras lies do seminrio sobre As formaes do inconsciente,
Lacan (1999) vai dedicar especial ateno anlise dos chistes e demonstra
como sua tcnica verbal se estrutura a partir de processos metafricos e
metonmicos. Diversos exemplos so retomados de Freud, indicando como es-
ses processos esto em sua base.
J mencionamos anteriormente o quanto Freud encontra similaridade na
estrutura dos chistes e dos jogos verbais das crianas. Seguindo esse vis,
poderamos interrogar o quanto estes ltimos tambm podem ser esclarecidos a
partir das noes de metfora e metonmia. Mesmo que Lacan no se d por
satisfeito com a explicao freudiana da psicognese dos chistes a partir dos
jogos de linguagem da infncia, a identidade que Freud descobre entre eles
valiosa e pode nos colocar a trabalhar... certo que existem construes enunciativas
que so tpicas das crianas pequenas e cabe a ns investigarmos a estrutura que
as caracteriza. Ento, como surgem, na criana, essas duas possibilidades de
encadear significantes metonimicamente e substitu-los metaforicamente?
A construo do simblico na criana
45
As construes verbais da criana pequena
no seminrio sobre As psicoses que Lacan (1988) introduz as noes
de metfora e metonmia. Aps apresentar esses dois conceitos, ele prope a
existncia de relao de anterioridade da metonmia em face da metfora. Para
Lacan, a metonmia est no ponto de partida e ela que torna possvel o poste-
rior surgimento da metfora. Para exemplificar essa ideia, toma um exemplo de
Freud, em que este trabalha o tema dos sonhos de crianas.
O exemplo o seguinte:
Assim, tenho anotado o sonho de uma menina de dezenove me-
ses, que consistia em um cardpio ao qual se ligava seu prprio
nome: Anna F., morangos, morangos silvestres, omelete, pudim!
Isso era uma reao a um dia sem comida, devido a um distrbio
digestivo (Freud, [1916-17]1980, p. 160).
A menina em questo Anna Freud, filha mais jovem de Freud. O sonho
que ela tem em sua infncia revela a expresso direta e explcita da realizao
de um desejo, trao tpico dos sonhos de crianas. Neles, no encontramos a
deformao onrica caracterstica do sonho, produzida pela censura.
Segundo Lacan, esse exemplo retrata a forma mais esquemtica e fun-
damental da metonmia. Anna Freud deseja todos os objetos listados em seu
sonho, mas no evidente que eles estejam juntos. Esto ali, justapostos, por
terem sido colocados em posio de equivalncia. Como no h deformao
dos elementos do sonho, no h substituio significante propriamente dita. Os
objetos de desejo da menina aparecem associados de forma contgua,
metonimicamente, sem substituio metafrica.
Ainda neste seminrio, Lacan ir afirmar que o estilo concreto da lingua-
gem da criana est associado dimenso da contiguidade.
Falam do carter concreto da linguagem na criana. , contraria-
mente aparncia, algo que se relaciona contiguidade. Algum
me confiou recentemente a palavra de seu filho, um menino, que,
com dois anos e meio, segurou a me dele quando esta se incli-
nava para dizer-lhe boa-noite, chamando-a assim: Minha garotona,
cheia de bumbum e de msculos (Lacan, 1988, p. 260).
Assim, a tendncia realista dos enunciados da criana pequena, como
no exemplo citado acima, se baseia na contiguidade. Essa afirmao de gran-
46
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Gerson SmiechPinho
de interesse, pois esse carter concreto reporta a algumas das caractersticas
das verbalizaes infantis que mencionamos nos primeiros pargrafos deste texto.
Para Lacan, as crianas ainda no esto na dimenso da metfora, mas
somente na da metonmia. Assim, preciso, em primeiro lugar, que a coordena-
o combinatria entre os significantes seja possvel para que as transferncias
de significado que caracterizam a metfora possam se produzir posteriormente.
somente sobre o fundamento da articulao metonmica que a metfora pode
surgir. Alm de esclarecer o carter concreto dos enunciados, a ausncia de
metfora tambm explica a tendncia da criana pequena em tomar a palavra
em sua literalidade, ao p da letra.
A anterioridade da metonmia em relao metfora referida por Lacan
em diversos outros momentos de sua obra. Por exemplo, no escrito sobre A
instncia da letra no inconsciente, ele afirma que a metonmia a primeira
vertente do campo efetivo que o significante constitui para que nele tenha lugar
o sentido (Lacan, 1998, p.510).
Ou, ento, no seminrio sobre As formaes do inconsciente, ao dizer
que com efeito, a ideia de substituio de um significante por outro requer que
o lugar j esteja definido. Trata-se de uma substituio posicional, e a prpria
ideia de posio exige a cadeia significante, isto , a sucesso combinatria
(Lacan, 1999, p. 79).
Aqui, a sucesso combinatria aparece no s em posio de anteriori-
dade, mas como precondio para a operao de substituio metafrica. Sem
que uma mnima combinao de lugares esteja disposta, no possvel que um
significante seja substitudo por outro, j que esse processo depende da posi-
o da palavra na sucesso da cadeia.
Ainda, nesse seminrio, ressalta que
[...] a metonmia a estrutura fundamental em que se pode produ-
zir este algo novo que a metfora. Mesmo que alguma coisa de
origem metonmica seja colocada na posio de substituio,
como acontece com as trinta velas, isso diferente de uma met-
fora. Numa palavra, no haveria metfora se no houvesse
metonmia (Lacan, 1999, p. 80).
Cabe assinalar que, desde muito cedo, a criana faz uso dos dois eixos
da linguagem definidos por Jakobson, ou seja, seleciona fonemas e vocbulos e
combina-os entre si. Porm, o tipo de substituio significante que caracteriza a
metfora implica a possibilidade de desprendimento do lxico, de abertura de sen-
tido e de flexibilizao da palavra que ainda no so viveis nessa poca da vida.
A construo do simblico na criana
47
A partir disso, podemos retomar algumas das questes j propostas no
decorrer deste escrito. Freud era partidrio da ideia de que as construes ver-
bais da infncia so homlogas ao pensamento inconsciente. Porm, ao cons-
tatarmos a ausncia de construes metafricas na criana pequena e conside-
rando a metfora como mecanismo fundamental do funcionamento inconscien-
te, essa tese freudiana no mais se sustenta. A partir das proposies de Lacan,
podemos formular a hiptese de que a ausncia de metfora que caracteriza os
enunciados infantis indicativa do tempo de inscrio do sistema inconsciente,
e no da homogeneidade estrutural entre eles.
Porm, ao tomarem o significante ao p da letra, as crianas revelam
sentidos que permaneceriam ocultos em outras circunstncias, o que pode ex-
plicar a impresso cmica que seus comentrios muitas vezes causam nos
adultos. O riso aparece diante do sentido inusitado que se pe a descoberto.
Sob esse prisma, o efeito de surpresa e a abertura de sentido produzidos se
assemelham queles encontrados nas diversas formaes do inconsciente.
A outra ideia de Freud que destacamos na parte inicial deste trabalho era
de que a racionalidade crtica, fruto do recalcamento, colocava fim aos jogos de
palavras e comentrios tpicos das crianas de menor idade. Que relao pode
haver entre o trmino do estabelecimento do processo de recalcamento e o
surgimento da metfora?
A noo lacaniana de metfora paterna permite esclarecer esse ponto. Com
ela, podemos considerar que todo o desenrolar do processo edpico desemboca
em uma operao de substituio significante, em que a significao inicial que o
sujeito encontra junto ao Outro materno substituda por outra, sustentada pelo pai.
Assim:
A funo do pai no complexo de dipo ser um significante que
substitui o primeiro significante introduzido na simbolizao, o
significante materno. Segundo a frmula que um dia lhes expli-
quei ser a da metfora, o pai vem no lugar da me, S em lugar de
S, sendo S a me como j ligada a alguma coisa que era o x, ou
seja, o significado na relao com a me (Lacan, 1999, p. 180).
O descolamento do sujeito em relao significao inicial recebida da
me, operado pela metfora paterna, permite que a cadeia significante se
flexibilize e se amplie, abrindo a possibilidade de novas significaes com toda
riqueza que caracteriza a estrutura da metfora. Dessa forma, a metfora pa-
terna d ao sujeito seu pleno acesso ao simblico, rompe sua sujeio me
e lhe confere o estatuto de sujeito do desejo.
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Gerson SmiechPinho
Levy (2008) prope o termo infantil para designar o perodo no qual o
recalque ainda no se concluiu, permanecendo inacabado. Esse perodo se
caracteriza por ignorar a metfora e funcionar fundamentalmente na metonmia.
Segundo esse autor, para que a metfora exista, necessrio processo de
recalque avanado, o que somente se torna possvel a partir do estabelecimento
da metfora paterna.
Ainda de acordo com Levy (2008), a ausncia de recalque completo traz
algumas especificidades ao sintoma da criana e conduo do tratamento
com elas. Se, com Freud, aprendemos que o sintoma produto do mecanismo
de recalcamento, evidenciando o retorno do mesmo, no perodo infantil o sinto-
ma seria consequncia da falta de recalque. Os sintomas dessa poca eviden-
ciariam impasses no processo de constituio do recalcamento, um apelo para
que o mesmo possa ser novamente colocado em andamento.
Quando trabalhamos com crianas de idades diversas, percebemos que
alguns elementos no desenrolar do tratamento se situam de forma distinta quando
abordamos os mais jovens ou quando temos diante de ns aqueles que j se
encontram no perodo de latncia, prximos ao final da infncia. Tais diferenas
vo desde a forma como se d a produo do sujeito at a posio transferencial
que o analista convocado a ocupar, tanto pela criana quanto por seus pais.
REFERNCIAS
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relao com o inconsciente [1905]. In: ______.
Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
______. Conferncias introdutrias psicanlise [1916-17]. In: ______. Obras com-
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JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: ______.
Lingustica e comunicao. So Paulo: Ed. Cultrix, 1979.
LACAN, Jacques. O seminrio, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1988.
_____. O seminrio, livro 5: as formaes do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1999.
_____. A instncia da letra no inconsciente ou a razo desde Freud. In: ______.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LEVY, Robert. O infantil na psicanlise. So Paulo: Vozes, 2008.
QUINTANA, Mrio. Caderno H. Porto Alegre: Ed. Globo, 1983.
SKLIAR, Carlos. La adquisicin del lenguaje em nios com y sin diferencias y
dificultades lingsticas. Escritos de la infancia, Buenos Aires, n. 05, p. 113-134, ago.
1995.
Recebido em 22/01/09
Aceito em 30/01/09
Revisado por Deborah Nagel Pinho
TEXTOS
49
Resumo: Atravs da funo do jogo clnico na transferncia, o artigo aborda o
limite e as possibilidades da interveno do analista na clnica com crianas
que apresentam problemas de desenvolvimento.
Palavras-chave: jogo, descapacidade, autismo, psicose.
DONT PLAY WITH ID: LIMITS OF THE ROLE OF THE ANALYST
Abstract: The article approaches, through the role of the play in transference,
the limits and the possibilities of interventions of the child psychoanalyst in
treatments with patients presenting development disorders.
Keywords: play, autism, psychosis, disability.
COM ISSO NO SE JOGA
1
:
alguns aspectos do limite
na funo do analista
2
Norma Bruner
3
1
O vocbulo jugar significa, em portugus, brincar, jogar. Optou-se por traduzi-lo por
jogar, em virtude dos jogos de palavras que a autora prope com jugar/juego/jugador ao
longo do texto. (N.T.)
2
Extrato da Dissertao de Mestrado em Psicanlise na Faculdade de Psicologia da Universi-
dade de Buenos Aires, 2007.
3
Psicanalista (Argentina); Licenciada em psicologia; Mestre e Doutoranda em Psicanlise/
Universidade de Buenos Aires; Professora Titular da Graduao e Ps-graduao da Facul-
dade de Psicologia/UBA com a disciplina El juego en los limites: El psicoanalisis y la clinica en
problemas en el desarrollo infantil; Membro da Fundacin para el Estudio de los Problemas de
la Infancia e do Centro Dra. Lydia Coriat (Buenos Aires); Supervisora clnica de instituies e
equipes clnicas na Argentina e na Espanha. Autora, dentre outros, do livro: Duelos em juego.
Buenos Aires: Letra Viva, 2008. E-mail: [email protected] e [email protected].
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 35, p. 49-63, jun./dez. 2008
50
50
Norma Bruner
Introduo
Q
uando comecei a trabalhar sobre o tema das psicoses e-ou do autismo na
infncia e sua relao com a descapacidade
4
, pensei na necessidade de
encontrar um ngulo que recortasse a temtica, por si prpria vasta e extensa.
Foi assim que chegaram a mim vrias possibilidades: psicopatologia e
clnica na infncia, antecedentes histricos do conceito atual de psicose e do
de autismo infantil a partir do ponto de vista psicanaltico e psiquitrico, o diag-
nstico e sua funo clnica, e outros.
Enfim, comecei meu trajeto recorrendo aos textos de psiquiatria,
psicopatologia e psicanlise. Considerei tambm a necessidade de localizar
primeiro o campo da chamada descapacidade, assim como o campo de psico-
se e autismo, localizar os problemas que circundam esses conceitos e as rela-
es entre eles.
Situamos ento que o uso cotidiano (do termo) Descapacidade [...] se
refere a que algo falha na capacidade de funcionamento de uma pessoa, seja no
nvel mental, motor ou sensorial, conforme prope Elsa Coriat (1996, p. 188).
Em outro pargrafo, continua dizendo:
Mas h outro aspecto da questo que imprescindvel no deixar
de lado: enquanto a deficincia mental uma varivel passvel de
ser determinada a partir da dotao orgnico-biolgica com a qual
se nasce, a estruturao do aparelho psquico, por sua vez,
contingente, acontece a posteriori, no depende da biologia, mas
do lugar que o Outro oferece ao recm-chegado, especialmente
nos primeiros anos de vida (Coriat, 1996, p. 191).
Por sua parte, Jacques Lacan, no seminrio III, sobre As psicoses, diz:
Admitimos sem problemas que nas psicoses algo no funcionou, que essenci-
almente algo no se completou no dipo. A psicose consiste em uma falta no
nvel do significante (Lacan, 1985, p. 287).
Vemos ento que o que no funciona na descapacidade pode pertencer a
duas ordens distintas; no entanto, imprescindvel ter em conta aqui que Sigmund
4
Discapacidad, em espanhol, e disability, em ingls, poderiam ser traduzidos para o portugu-
s como deficncia. No entanto, como mais adiante no texto encontramos lado a lado os
termos deficientes e discapacitados (... nios deficientes y discapacitados...), optou-se
por traduzi-lo por descapacidade .
Com Isso no se joga...
51
Freud orienta a propsito da relao existente entre ambas as ordens quando,
apoiando-nos em um pargrafo escrito por ele acerca desta questo, lemos:
Recusamos estabelecer uma oposio fundamental entre ambas
as sries de fatores etiolgicos e supomos antes a existncia de
uma colaborao regular entre ambas para o efeito observado. O
destino de um homem determinado por dois poderes: Daimon e
Tique
5
, muito raramente, talvez nunca, por um deles (Freud,
[1912]1988, p. 97)
6
.
Se reconhecemos que a posio subjetiva estabelecida pela ordem
significante e suas leis de funcionamento, tambm necessrio que pensemos
que, na infncia tempo lgico e cronolgico decisivo na organizao da futura
posio subjetiva definitiva , encontramos que: O que ocorre na infncia se
reduplica na insuficincia aumentada por um problema do desenvolvimento.
Assim nos prope pensar Alfredo Jerusalinsky, e pela via desta dilao do
real que irrompe a cada instante, entrecortando a cadeia simblica, que se abre
a brecha para a entrada psicose (Jerusalinsky, 1988, p. 66).
Situei assim alguns aspectos da complexidade do assunto em questo e
continuei meu trnsito pelos textos, com a idia de poder demonstrar de que
maneira, na atualidade, as controvrsias e definies sobre o conceito de
descapacidade em suas relaes com a psicose e o autismo infantil levam a
marca ainda vigente do paradigma da psiquiatria; ou seja, que desde os come-
os de sua histria, a psiquiatria faz equivaler as perturbaes e-ou abolies
do funcionamento das chamadas funes mentais ou funes psquicas superi-
ores (e, por extenso, funes sensoriais, perceptivas, motrizes, etc.), determi-
nadas pela dotao orgnico-biolgica do sistema nervoso central, com a posi-
o subjetiva.
A partir desta perspectiva, psicose e autismo formam parte necessria da
descapacidade e de seu destino, contradizendo francamente nossa clnica, aquela
que nos mostra que no h relao necessria, mas contingente e arbitrria,
5
Talento e sorte, na Edio brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund
Freud. (N.T.)
6
Remeto o leitor ao trabalho realizado sobre este tema por Elsa Coriat em seu artigo Causas
e azares, publicado em Estilos da Clnica Revista sobre a Infncia com problemas, n. 3,
USP.
52
52
Norma Bruner
entre ambas, a ser precisada em cada um de nossos pacientes para a direo
de sua cura.
Envolta e mergulhada em tratados de psiquiatria, manuais de psicopato-
logia e livros de psicologia por um lado, e textos de psicanlise por outro, a cada
tanto me tomava algumas pausas. Nelas, a recordao de algumas cenas clni-
cas acudia em meu auxlio: cenas de jogo, fragmentos de tratamentos susten-
tados por mim ou por conhecidos, relatos de companheiros de trabalho, colegas
em superviso comigo ou em interconsultas.
Nessas cenas de crianas em tratamento, os protagonistas eram s ve-
zes crianas autistas ou psicticas (algumas deficientes e com descapacidade,
e outras no) e s vezes eram crianas deficientes e descapacitadas (algumas
autistas ou psicticas, e outras no).
O que concentrou minha ateno nessas cenas foi encontrar-me com
algo que se repetia em distintas circunstncias: havia momentos em que o
analista, no sem certa angstia de seu lado, se encontrava com um limite que
resistia sua interveno, momentos em que o jogo clnico se dificultava. Os
limites e as dificuldades para continuar sustentando o jogo eram diversos, mas
as palavras que davam expresso a esse limite, no relato do analista, eram
recorrentes: Tentei de tudo, mas..., Sempre o mesmo, no pude introduzir
nenhuma mudana, No encontro uma possibilidade.
Como situar, em cada caso, aquilo que obstaculiza o jogo clnico? Como
jogar com o obstculo, se a angstia se instala no analista, entrecortando sua
funo?
O analista tomado pela angstia fica descapacitado em seu funciona-
mento. A partir de que ordem podemos dar conta desse acontecimento clnico?
Convenhamos que decidir continuar o jogo, encontrar sua funo e que
funcione , pode resultar s vezes to ou mais dificultoso que seguir os rduos
caminhos do pensamento psiquitrico; por isso, decidi tomar esse trabalho e
converter essa pergunta em uma oportunidade de nos ajudar a seguir o jogo
clnico em transferncia.
O jogo nos limites: psicanlise e clnica em problemas do desenvolvi-
mento infantil
A dimenso do jogo, condio necessria para que haja infncia, no
espontnea nem natural; tampouco depende da dotao orgnico-biolgica com
que se nasce (apesar de que no seja sem ela, obviamente), no se herda, mas
seu surgimento e existncia requerem um trabalho de construo. Esse traba-
lho de construo depende da ordem simblica que, no Outro e a partir dele,
Com Isso no se joga...
53
oferecida ao recm-nascido, para que este encontre a possibilidade de se apro-
priar da cultura e suas leis, jogando a possibilidade de p-las realmente em uso,
em funcionamento, a seu devido tempo, no ato ldico. Assim, a sincronia e a
diacronia se pem em ato quando se trata de pr a jogar as leis da linguagem.
A construo do jogo na infncia no sem Outro em jogo e outros
jogando (companheiros de jogo, mltiplos objetos). As crianas que padecem
graves perturbaes em sua constituio subjetiva testemunham isso dramati-
camente ao analista no que lhes faz limite ao jogo. Assim, o analista se v
compelido a situar situando-se o limite ao jogo, suportando a impossibilida-
de ou dificuldade para com seu ato e transformando-no em jogo possvel de ser
jogado em transferncia.
A interveno foi eficaz quando pudemos encontrar a chave ou a combi-
nao justa que abria o cofre do tesouro o tesouro do jogo das leis da
linguagem. Abrir o cofre do tesouro pode ser o prmio de um caminho custoso
de jogar; melhor, sem dvida, jogar as prendas que as regras do jogo im-
pem, a que o custo seja pago pela criana realmente.
Nesse caminho, podemos nos encontrar com vrias alternativas; de como
as enfrentarmos depender ento a eficcia do tratamento. s vezes a tampa
do cofre est ali entreaberta, ou seja, o sintoma impede a criana de jogar e de
abri-la; talvez, ento, ns tentemos um jogo, mas se ele for em outra direo
que a do desejo da criana, ento favoreceremos a que o que estava entreaber-
to resista e fique mais do lado do fechado que do aberto. Ou bem, s vezes,
por no poder reconhecer a abertura, ficamos junto criana, encerrados,
aprisionados e pedindo auxlio de fora, para que nos ajudem a sair. Outras
vezes, podemos encontrar-nos abrindo e fechando portas, mas sem entrar
nem sair de lugar algum.
Situar o que faz limite interveno em cada tratamento com cada crian-
a falar do singular e nico, do um a um, de um limite particular. Quando o
analista diz que sua funo est falhando ou no funciona, isso supe que algo
da criana est em perigo, e isso gera angstia de seu lado propiciando, no
melhor dos casos, a interconsulta, o encontro com colegas, a demanda de ser
supervisionado.
A brecha entre a zona de risco simbolicamente imaginria, que o jogo
implica, e o risco imaginariamente real ou realmente imaginrio por fora do
jogo se estreitam ou se confundem. O limite entre ambas as zonas de risco
falha ou cai, e a angstia faz sua entrada; como consequncia, o jogo se v em
dificuldades, cai ou falha.
Quando o limite entre o que jogo e o que no periga, as produes
da criana no so reconhecidas como prprias de uma criana ou seja: de
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54
Norma Bruner
brincadeira
7
, e a bandeira, que flamulava erguida e orgulhosa, aquela que
dizia: Um analista que trabalha com uma criana com uma criana que
trabalha, cai ou desce a meio-pau, em sinal de que no lugar de uma criana
outros significantes se instalaram.
Como fazem as crianas para se defenderem do gozo do outro sem pa-
gar um alto custo? Os sintomas se reforam ou fazem sua entrada em direta
proporo com a gravidade, segundo a medida em relao qual uma criana
foi expulsa ou tirada do palco em que a obra do jogo se representava, e ao que
o analista deve ajud-la a voltar, ajud-la a demandar o jogo como prprio, apro-
priando-se em definitivo do que desde a significao flica representa uma
criana ou uma criana pode ser representada.
No resulta uma tarefa simples se jarges, ritmias, estereotipias,
balanceios, golpes, sons no articulados, etc. so os objetos a serem converti-
dos em jogos, nem se, alm disso, a marca da leso neurolgica, a translocao
gentica ou o transtorno metablico se apresentam com representao absolu-
ta. Mas a dificuldade, sem lugar a dvidas, se reduplica se o impossvel se
instala no lugar da funo do analista.
Ento, a possibilidade de construo da ponte significante realmente
soobra, o perigo que uma criana sucumba sob as guas; a ameaa do
perigo de perder uma criana escutada na angstia do analista.
Aqui pode ser pensado um dos aspectos da funo da superviso e-ou
interconsulta, tanto em minha experincia como parte de uma equipe clnica de
psicanalistas e outros profissionais, assim como analista supervisionada e
supervisora de analistas e de outros profissionais que trabalham na clnica com
crianas.
Para que a construo da ponte significante seja eficaz, teremos que
reconhecer que h diferenas entre a dificuldade ser parte do jogo inclusive,
sem ela, o jogo perderia sua graa e ser ela jogada em uma dimenso que
joga com o analista por consequncia, com a criana , sem que nem sequer
seja possvel reconhecer as marcas do jogo, nem as regras, nem os jogadores.
No o mesmo ser presos por obra de um dado e ver como samos no
interior do jogo, e converter-nos realmente em cativos sem regras que infor-
mem como fazer para tentar sair ou que deem conta de por que estamos ali.
7
No original: De jugando. Expresso utilizada na Argentina para indicar algo que de
mentirinha, fico.
Com Isso no se joga...
55
Ter que atravessar a cova dos lees para chegar sada no igual a
estar na boca de algum ou ser suas garras e que os que passam por perto
corram perigo de sua integridade corporal.
Tampouco o mesmo que o interesse se concentre na mecnica girat-
ria de alguma rodinha ou na opaco-luminosidade do movimento das peas, dei-
xando fora no s o perigoso das garras ou da boca dos lees, j que, ao deixar
fora qualquer significao possvel, no h perigo algum.
Reconhecemos ento diferenas entre ter que pr a funcionar regras
lgico-matemticas, ler ou escrever, ou dispor do grafismo para pagar a prenda
seguindo assim o jogo da construo do eu, em tempo e forma esperveis a
sua idade cronolgica no espao social que, por sorte ou desgraa, habita essa
criana , ou fazer uso das regras da linguagem ou fazer uso do manejo do
corpo e suas funes. Tudo isso distinto do caso em que o uso da linguagem,
do corpo ou da aprendizagem nem representa problema, por no existir nenhum
eu da criana que possa mant-los.
Pagar a prenda sempre custa sem esforo, no h recompensa
8
,
no? , mas h custos diferentes, sobretudo se aquilo de que se trata no de
algo que custa criana pr a funcionar, porque repete inconscientemente em
ato algo que se deve a um sintoma especfico que pode ser tratado especi-
ficamente por um profissional da disciplina da rea correspondente. Seno que
se trata de no haver algo que no funciona suficientemente porque esse
algo a prpria criana que no funciona como criana no h corpo, nem
linguagem, nem aprendizagens como instrumentos da criana, porque no h
criana. Ou seja, no h um quem que v jogando no mundo de armar-se
dos elementos do mundo dos adultos e, quando atuar como eles, deixar de ser
jogo, poder faz-lo.
Se os instrumentos (mentais, motores ou sensitivos) funcionam como
ecos, a msica a que provm diretamente, sem disfarce nem mscara, da
orquestra do Outro (a bateria dos significantes do Outro), sem corte que permi-
ta localizar diferenas entre os temas do adulto e os da criana (exemplo: a
ecolalia), ento poderamos dizer que ela est psictica (psicose que no est
decidida, nem definitiva).
Se os instrumentos no soam em eco, mas como complexos mecni-
cos a executar em um mesmo eterno movimento, correto, direito, hbil, mas
sem melodia, nem ritmo, nem tema algum, que a orquestra toca sua msica
8
No original: Al que quiere celeste que le cueste. (N.T.)
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56
Norma Bruner
realmente em outra parte, e a criana no forma parte alguma dela, resiste
ativamente a incluir-se nela (por exemplo, tapando os ouvidos ou elidindo o olhar
ativamente para que ela no ocorra); ento diremos que essa criana est em
uma posio de autismo (no decidido nem definitivo).
Jogar realmente de fora ou jogar realmente em eco supe um esforo,
supe localizar e reconhecer o jogador, supe construir na criana um supos-
to jogador possvel, ali onde irreconhecvel como tal.
Estamos propondo estabelecer que a noo de personagem no
coincide com a de jogador, mesmo que se impliquem, nem a no-
o de jogador coincide com a de personagem. Isto no se d
assim em termos gerais, de forma a poder-se dizer que quando
algum joga , por isso, outro em relao a que quem se ; se d
durante o jogo. durante o jogo que o jogador no coincide com
seu personagem. [...] A criana constri seu personagem median-
te o ato do jogo, o ato da representao ou a representao do ato
e, neste sentido, ao ser o jogo uma ao que se desenrola segun-
do uma regra mais ou menos manifesta, poder-se-ia dizer que a
criana atua seu personagem. No entanto, sua posio no se
poderia fazer equivaler do ator de teatro, nem do autor. [...] Em
uma concisa sntese poderamos dizer, no momento, que a crian-
a que joga representa um personagem que a representa. As in-
seres significantes necessrias ao personagem para que tenha
este poder de representao no esto disposio da criana,
so identificaes inconscientes (Beisim, 1994, p. 64).
Pois bem, dizamos que nas crianas que esto psicticas ou nas que
esto autistas nos necessrio supor um sujeito suposto jogador, para poder,
mediante nossa ponte significante, que o jogo implica, diferenciar jogador e
personagem, permitir criana qui construir um personagem com o qual po-
der representar e deixar de formar parte, descontar-se, deixar de estar presa
em sua totalidade como diz Jacques Lacan em uma cadeia significante
primitiva que probe a abertura dialtica ao jogo.
A verdadeira primitiva despossesso do significante ser o que o
sujeito ter que carregar e aquilo cuja compensao dever assu-
mir amplamente em sua vida, atravs de uma srie de identifica-
es puramente conformistas a personagens que lhe daro a im-
presso do que h de fazer para ser homem (Lacan, 1985, p. 287).
Com Isso no se joga...
57
Poderamos propor que, quando o analista que trabalha com crianas
especiais, excepcionais, diferentes que trabalha com uma criana
posto em dvida, jogador e personagem no se diferenciam; o imaginrio do
analista faz limite, resiste, qui identificando-se como analista especial, ex-
cepcional, diferente.
O singular deixa de estar do lado do jogo, e sua construo deixa de
formar parte do jogo clnico singular dessa criana, deixa de formar parte dos
traos nicos com que essa criana constri seu personagem durante o jogo,
ou seja, a maneira particular que encontrar para representar-se, e a criana,
sem representao possvel, passa a ser isso e com isso no se joga.
Isso ameaa o jogo, ameaa a criana, ameaa o analista e emerge a
angstia em seu lugar, sinal de alarme a ser respondido. Transformar o limite no
limite prprio do jogo. Deslocar o limite para o jogo ou jogar com o limite. Parece
ser, nem mais, nem menos, toda a questo. Operao que poderamos formali-
zar como:
Pr a funcionar a funo do significante, ou seja, elevar o Real
categoria de significvel para Outro. Transformao do Real em
elemento indispensvel do jogo. Pr a funcionar o significante e
suas leis (Bruner, 2003).
Uma vinheta clnica faz-se imprescindvel a esta altura
Chegam Pedro e sua me, brigando, forcejando aos gritos, entre agres-
ses vrias e golpes compartilhados.
Pedro entra no consultrio, no sem antes haver batido, empurrado, cus-
pido em quantos objetos se encontravam em seu caminho, vivos ou no, sem
distino de sexo, tamanho ou funo, no trajeto que vai da sala de espera,
passando pela escada e o corredor, at o consultrio, onde comea um trata-
mento a meu cargo, no Centro Dra. Lydia Coriat de Buenos Aires.
Encaminhado com um cartaz pendurado em seu pescoo: Impossvel,
contando entre seus pertences com sete anos e vrios tratamentos chegados a
seu fim por haver superado o limite do tolervel de seus terapeutas. Decido
dar peleja, no sem certa sensao de desafio.
No fui excetuada, certamente, de receber o turbilho de golpes, cuspidas,
empurres, imperativos e mandatos. Vendo-me forada a suportar o insuport-
vel. O momento inicial da sesso, inclusive o recebimento e o encontro na sala
de espera (quando no estava deambulando agitadamente pela instituio), era
desprazeroso, desagradvel, molesto, doloroso, angustioso e tenso. (Queria
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Norma Bruner
transmitir um trecho desse tratamento, o inicial, sua abertura, a fim de trabalhar
o tema proposto.)
Tentei localizar algum objeto mediador que, maneira do transicional,
no fosse uma parte de meu corpo nem do seu, mas que o representasse. A
busca concluiu-se com a apario de Maldito: esse Maldito era um crculo,
primeiro objeto que retomamos de uma sesso a outra.
Como no se tratava de seguir a luta corpo a corpo, nem que essa luta
nos posicionasse em bandos opostos, me coloquei em seu bando. Ambos,
Pedro e eu, chamvamos ou nos encontrvamos com Maldito ele assim lhe
disse um dia e eu o instalei como nome , no sem saudar-nos educadamente,
jogvamos que ele nos tornava a vida impossvel, ou de buscar torn-la para ele
(a essa altura dava no mesmo). No est morto quem luta!
Tratava-se de quem tornava a vida mais desgraada ao outro: vingar-nos,
tentar defender-nos com um bom ataque, enfim, pobre Maldito! Gritamos com
ele, batemos, no o alimentamos, demos-lhe de comer para ver se rebentava,
depois o privamos do que gostava: a tev, as guloseimas, os brinquedos;
enchemo-lo de marcas da nossa ira, tentamos faz-lo desaparecer, torn-lo
irreconhecvel, etc.
Cada iniciativa que Maldito tentava era anulada por ns; pode-se dizer
que realmente o enlouquecemos, e ele nos enlouquecia!
Eu emprestava minha voz e minhas mos a Maldito (por motivos bvios).
s vezes, a borda de Maldito no era to clara, e meu corpo, ou algum
vidro, dava recibo disso; mas cada vez mais o assunto se concentrava no
crculo, perdo, em Maldito. Comeava a ser-me reiterativo o jogo, que deixa-
va de ser jogo ao ser-me reiterativo; eu comeava a querer imprimir alguma
diferena.
Por obra de v saber o qu (a essa altura no podia situ-lo) voltou o
desparrame, o turbilho, sem aviso nem permisso, e Maldito caiu.
A surpresa no impediu que, refeita, lhe respondesse que no estava
disposta a retroceder; portanto, novamente ao ataque, e Maldito foi desenhado
outra vez.
Pedro um dia estava lhe dando a mamadeira e lhe ordenou que cuspisse,
o fez vomitar: leite mau! foi o termo que o prprio Pedro utilizou. Logo apare-
ceu uma srie de jogos: Comer! Pizza, torta, massa.... Comer e comer, em-
panturrada de comida j pensava em como passar a outra coisa quando... O
vmito, a cuspida, a catstrofe, o terremoto; outra vez voltava a se apresentar,
ou ao final de cada sesso ou durante o jogo, o que tornava impossvel para mim
seguir a sesso. Tudo parecia terminar terrivelmente mal.
A essa altura, minha angstia se fez escutar.
Com Isso no se joga...
59
Por que, por parte de Pedro, esse movimento de anular o movimento?
me perguntava.
Por que essa anulao da diferena, atuada com tanta crueldade ao uns-
sono, por Pedro e sua mame? pensava.
No estava disposta a baixar os braos! talvez por temor de que ele os
mordesse.
Encontrando que em meus colegas de equipe, tambm na interconsulta,
a angstia havia se generalizado, era hora de fazer a pergunta:
Receberia uma cuspida em plena cara como pagamento por meus servi-
os? E o reconhecimento por meu esforo?
Era ento o momento.
que assim era impossvel... Ou no ser que...? Sim...! Tratava-se
justamente disso! Dei-me conta de que era esse o jogo! Precisamente esse.
Esse era o jogo que vinha sendo jogado sem que fosse reconhecido como tal. O
ttulo do jogo, ou seu nome, poderia ser algo assim como: As festas se arru-
nam ou no h lugar para o prazer. Esse era o jogo que me tomou em trans-
ferncia, jogo jogado ou o jogo que me jogou, sem saber que era o jogo que eu
jogava.
Bom, ento era disso que se tratava? Ento joguemos o jogo que me
propes, mas com outras regras (as regras da significao compartilhada), as-
sim podemos desfrutar de jogar o jogo do prazer arruinado. Se era disso que
se tratava, ao jog-lo, iramos torn-lo significante para Pedro e ele se escreveria
como tal em sua histria.
Sim, esse era o jogo expulsado do simblico Oh, as expulsantes
cuspidas! Introduzi-lo simblica e imaginariamente foi a chave.
Introduzi Isso.
A princpio, a partir de meu lugar no jogo, brinquei de arruinar nossos
prazeres. Por exemplo: Vamos comer! Tudo em seu lugar! a mesa posta, os
apetitosos manjares no ponto e... ento, eu chegava e fazia que no jogo algo
acontecia que... choro, choro! armava-se a destruio a sofrer! ver-nos
privados de nossa desejada comida. Eu chorava de brincadeira enquanto Pedro
se matava de rir, se divertia, ao ver-me assim. Sim, Pedro comeava a se diver-
tir! E a rir... de mim?
A construo do sentido do jogo faz com que o que se apresenta-
va antes como disperso e fragmentrio possa ser significante e l
chegar logo a ser interpretvel. Quem decide sobre a eficcia da
interveno a criana, com e em seu jogo, j que a eficcia da
construo eleva o Real categoria de significante e, como
60
60
Norma Bruner
consequncia, produz o espao imaginrio onde o jogo tem lugar
(Bruner, 2008, p. 53).
A construo um trabalho de ligao no no-ligado que arma a
ponte necessria para que a ligao se produza e o desejo encon-
tre representantes (representaes-palavras) onde possa deslo-
car-se sem perigo real de queda. [...]
Se a construo foi eficaz, o jogo na anlise adquire sentido e
direo, ou muda e se produz uma diferena no sentido-direo
anterior [...]
A coordenao, a subordinao, a unificao do desparrame e o
disperso da Pulso e seus derivados foi o efeito de reconhecer o
no-reconhecido, o que por no s-lo no se havia inscrito. Ao
jog-lo comeava a inscrever-se (Ibid., p. 43).
A construo da ponte significante, como operao do analista, ficaria
definida assim, neste caso, como aquela que pde elevar o real categoria
significante e produzir o espao imaginrio em que o jogo clnico, jogo em trans-
ferncia, que supe e inclui o analista como parte dele e de suas condies, e
seu valor encontram lugar.
O valor do jogo clnico o de ser o que os outros no so, ou no ser o que
os outros so. Referimo-nos a outros jogos ou outras formaes do inconsciente,
por isso seu valor relativo e negativo, necessrio e primordial constituio do
sujeito. O jogo no tem sentido prprio nem figurado, s sentido negativo.
A operao do analista permite que se ponha em funcionamento o valor
do jogo, em outras palavras, a colocao em ato da lngua como discurso, que
na infncia um discurso de brinquedo (Bruner, 2008, p. 143).
Pedro era localizvel a partir do lugar de onde jogava, e cada vez se
parecia mais a uma criana jogando e menos a Pedro Picapiedra
9
. At fez
uma amiga na sala de espera, a qual convidou para sua festa de aniversrio sem
que voassem as tortas de creme na cara de ningum, o que, para sua histria,
no um dado, mas um acontecimento.
O que, sim, foi um dado para mim, j que o havia registrado como tal nas
entrevistas com os pais, era que as palavras com as que o obstetra havia batiza-
do o parto foram: No festejem tanto, Down. Palavras recordadas por sua
9
Nome do personagem Fred Flinstone em espanhol. (N.T.)
Com Isso no se joga...
61
me como se as estivesse escutando hoje, que tanto a ferem e ainda lhe
doem, como uma cuspida recebida em pleno rosto por algum que, hoje como
ontem, no momento de receber seu filho e no tempo da festa de casamento,
ainda chora a perda de seus pais.
Significantes no dialetizveis em sua histria. Dados que se tornaram
acontecimentos s ao serem jogados em transferncia, suportados em transfe-
rncia e reconhecidos como o jogo de Pedro, j no como a obra do vilo, que
destri a obra da pessoa do analista.
A mame de Pedro me diz: Faz o mesmo a ns duas, ns duas temos
carter forte. No d mais, te juro, no suporto mais, j sofri demais, no
posso mais... Pobrezinha, te tocou danar com a pior. O que ele te fez hoje?
A mim, no sabes...
Essa identificao e deslocamento de seu lugar no meu, por um lado, diz
de certa medida comum. De fato, ela tambm se instala na sala de espera e
intercambia com outras mes e pais, e no, como fazia ao chegar, escondendo-
se com Pedro em algum consultrio vazio ou perseguindo-o por toda a institui-
o. Por outro lado, tambm diz desse lugar de exceo a partir do qual se
apresenta.
J sofreu, como vtima inocente, o dano infringido pela natureza, pelo
destino, pelo Outro. Pagou caro e, por isso, acredita merecer seu ressarcimen-
to, ter direito a arrogar-se prerrogativas especiais, privilgios que aos comuns
esto proibidos.
O intercmbio com seu filho est regulado por uma ordem no comum ao
estabelecido pelas regras sociais compartilhadas. Por exemplo: horrios de
entrada e sada diferentes na escola, porque ela no pode, datas de pagamento
instituio inslitas; at os exemplos do ordenamento mais cotidiano na vida
de Pedro levam a marca do excepcional.
Ela se rebela a renunciar e submeter-se ao jogo compartilhado, resiste
s regras do mesmo.
Esse tipo de posio me lembra a descrio que Freud faz dos que acre-
ditam ser excepcionais e interessa justamente a propsito do que resiste: os
que creem ser excepcionais resistem com esse trao de carter ao jogo da
anlise e suas regras.
Remeto-me ao trabalho que sobre essa questo realiza Freud ([1916]
1988) no texto sobre Alguns tipos de carter encontrados no trabalho psicana-
ltico, no captulo intitulado As excees.
Se o corpo da criana fica situado pelo Outro em um lugar de exceo
ou de excepcionalidade, com respeito a entrar na srie dos significantes
pelos que a propsito da infncia circulam as crianas e seus corpos no mbi-
62
62
Norma Bruner
to social, a entrada na psicose ou no autismo ser o custo real a ser pago pela
criana.
No Monlogo Introdutrio de Ricardo III, de Shakespeare, diz
Gloucester, que depois ser coroado rei:
Mas eu, que no fui talhado para habilidades esportivas,
nem para cortejar um espelho amoroso;
que, grosseiramente feito e sem a majestade do amor
para pavonear-me diante de uma ninfa de lascivos meneios;
eu, privado dessa bela proporo,
desprovido de todo encanto pela prfida natureza;
disforme, inacabado, enviado por ela antes do tempo
para este mundo dos vivos; terminado pela metade
e isso to imperfeitamente e fora de moda
que os ces ladram para mim quando paro perto deles;
* * *
E assim, j que no posso mostrar-me como amante,
para entreter estes belos dias da galanteria,
resolvi portar-me como vilo
e odiar os frvolos prazeres deste tempo
10
(Freud, [1916] 1988, p. 321).
Estar disposto a atuar como um vilo e odiar os prazeres da poca,
confisso que, diferentemente do protagonista da obra de Shakespeare, e tam-
bm diferentemente de sua me, em Pedro tem que ser situada distintamente,
j que uma criana. Quando arruinava meu prazer pelo jogo, certo que eu
pensava: que vilo! mas... uma criana e, mesmo que no me fizesse graa,
esse era um jogo a ser tomado como tal e correspondia que a vileza fosse
elevada categoria de marca do jogo como jogo vil.
Se estivssemos posicionados como leitores ou espectadores, ante a
confisso de quem atua como vilo, no sentiramos nenhuma simpatia, ela
impediria de nos identificarmos com o heri, a menos que situssemos que isso
declarado por um motivo no reconhecido conscientemente. Se a natureza lhe
causou dano injustamente, deve-lhe um ressarcimento, est bem que ele faa
10
Traduo constante na Edio Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund
Freud. (N.T.)
Com Isso no se joga...
63
essa cobrana; j que distinto, especial, excepcional, face ao resto dos ho-
mens, por que no vai atuar ento como tal? Essa motivao inconsciente do
personagem reconhecida pelo espectador, permitindo a ele identificar-se com
o personagem. Assim, as afrontas iniciais ao narcisismo, ao amor-prprio, os
danos sofridos injustamente, portados por qualquer espectador, encontram iden-
tificao com o heri e, atravs dele, o justo ressarcimento. O espectador atua
assim, atravs do personagem, aquilo que na realidade no pode realizar, por-
que est proibido.
O personagem, nos diz Freud, realiza algo do desejo inconsciente do
espectador, mas ns propomos aqui que a posio do espectador no a do
analista. Quando o analista fica situado como espectador, seu narcisismo faz
resistncia ao jogo da anlise e a criana fica fora da srie significante, o
significante criana fica desenganchado, em posio de exceo, excetuado
de circular pelas leis do jogo significante.
O reconhecimento e a introduo na dimenso do jogo do atuamos como
viles e arruinamos os prazeres permitiram a Pedro ficar referido em relao ao
Outro, em posio de criana, e a vileza ficou referida ao trao do jogo.
Se durante o jogo o jogador no coincide com seu personagem e se a
criana constri seu personagem mediante o ato do jogo, ento Pedro pde
deixar de ser O Maldito-Vilo para passar a jogar com Maldito-Vilo, a malda-
de e a vileza.
REFERNCIAS
BEISIM, Marta. Juegos en personajes. Escritos de la infancia, n. 3, Buenos Aires,
FEPI, p. 64-70, 1994.
BRUNER, Norma. Duelos em juego. Buenos Aires: Letra Viva, 2008.
______. Con ESO no se juega: algunos aspectos del limite en la funcin del analista
que trabaja con un nio. Revista de psicoanlisis de nios fort-da, n. 6, Psiconet, jun.
2003. Disponvel em: <http:// www. fort-da.org>.
CORIAT, Elsa. Psicoanlisis de bebs y nios pequeos. Buenos Aires: La Campana,
1996.
FREUD, Sigmund. Sobre la dinmica de la transferencia [1912]. In: FREUD, S. Obras
completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. v. 12.
_____ . Algunos tipos de carcter dilucidados por el trabajo psicoanaltico [1916]. In:
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JERUSALINSKY, Alfredo. Psicoanlisis en los problemas del desarrollo infantil. Buenos
Aires: Nueva Visin, 1988.
LACAN, Jacques. Seminario III las psicosis. Buenos Aires: Paids, 1985.
Recebido em 20/09/2008
Aceito em 15/12/2008
Revisado por Valria Rilho
64
TEXTOS
64
Resumo: Discute-se a especificidade da funo do psicanalista de crianas,
circunscrevendo a questo dos honorrios como eixo central da reflexo. Toma
o pagamento como mensageiro da demanda parental de resgate da dvida rela-
tiva impotncia na transmisso da tradio, dos ideais e do saber.
Palavras-chaves: honorrios, sintoma na infncia, transitivismo, imaginrio.
ON CIPHERS IN CHILD PSYCHOANALYSIS
Abstract: The article debates the specificity of the role of the child psychoanalyst
taking the question of payment as a central point of reflection. Payment of fees
is considered the messenger of the parents demand in order to rescue their debt
regarding their impotence to transmit the knowledge, ideals and tradition.
Keywords: fees, symptom in childhood, transitivismo, imaginary.
DAS CIFRAS NA
ANLISE COM CRIANAS
1
ngela Vorcaro
2
1
Esse tema foi originalmente apresentado na revista da Escola de Psicanlise de Campinas,
Literal, n 3, 2000.
2
Psicanalista, membro da Association Lacanienne Internationale, Doutora em Psicologia Clni-
ca pela PUCSP, exerce atividades clnicas e didticas na clnica de distrbios da comunicao
(DERDIC) na PUCSP. autora dos livros: Interface educao-Ecologia (Fapesp-Cered, 1993),
Relaes multidisciplinares:das negociaes numa clinica de distrbios da comunicao
(Educ, 1993) e A cri ana na cl ni ca psi canal ti ca (Ci a. de Freud, 1997). E-mai l :
angelavorcaro@uol. com.br
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 35, p. 64-73, jun./dez. 2008
Das cifras na anlise com crianas
65
Mensageiro e mensagem
N
a anlise com crianas, o dinheiro pago ao analista figurao privilegiada
pela qual o rompimento da transmisso do lao de filiao se mostra. Isso
se consideramos, com Porge (1998), que uma das faces do que conduz uma
criana, pelas mos de seus pais, ao analista o rompimento do lao necess-
rio para que ela construa sua neurose de transferncia. A demanda dos pais
dirigida ao analista de um saber sobre o filho que revelaria a suspenso do elo
que une o filho aos pais, rompendo a continuidade do lao de filiao. Assim, os
pais no se reconhecem no sintoma que o filho apresenta e, portanto, no sa-
bem interpret-lo: o que o aparta de sua filiao.
A suposio de saber transpor o que fez esgaramento nesse lao, dirigida
ao analista , muitas vezes, colocada pelos pais em equivalncia ao que esses
pagam ao analista. Portanto, o dinheiro, enquanto valor de troca capaz de pro-
mover transmissibilidade ao mesmo tempo annima e imprescritvel, permitiria
pagar a dvida desses, em relao ao que no conseguem transmitir ou reco-
nhecer, no filho, da transmisso que efetuaram. O dinheiro, ao anular diferenas
e singularidades, dissolveria a dvida da filiao, na equao de equivalncia
com o valor de resgate do saber.
O dinheiro pago ao analista mensageiro do que se demanda ao analis-
ta: resgatar a dvida parental relativa impotncia na transmisso da tradio,
dos ideais, do saber.
Por esse motivo, o analista deve concernir os pais na anlise de seus
filhos a no ser que o analista se proponha a ser agente do gozo social e,
como tal, desresponsabilize os pais. Neste caso, operando como suplente, o
analista ressublinha o fracasso que a demanda dos pais denuncia, obstaculizando
a construo da neurose, pela criana.
Portanto, concernir os pais implica em operar um acrscimo ao numer-
rio: eles tem que pagar com as palavras
3
. Cabe entretanto lembrar, como diz
Martin (1997), que o dinheiro na anlise no tem um emprego definido ou um
sentido determinado. Esse lugar de uma encruzilhada mtica, marca, signo
real, da fantasia aprisionada na histria de cada criana, fantasia cuja mensa-
gem resta a decifrar. A mensagem, remetida dos pais para a criana, parte de
um objeto, mas no tem objeto. Ela s diz aquilo que, neles, separa para sem-
pre a criana do desejo e do gozo de seus pais.
3
Cf. Cludia Fernandes (1996), que trata a necessria implicao do pagamento em numerrio
e em palavras.
66
66
ngela Vorcaro
No gesto do pagamento, o dinheiro o mensageiro, isto , o que s por
no ser mais, forma imaginria instituda pela fantasia, onde a mensagem fixa o
significante que a mobilizou. Nessa perspectiva podemos supor correlao en-
tre a criana mensageira e o dinheiro.
Entregar a criana ao analista e entregar o dinheiro ao analista so ges-
tos efetuados pelos pais que encarnam um corte, pois esse gesto ao mesmo
tempo de ruptura e de lao. Os honorrios ocultam a relao de filiao, onde o
dinheiro o libi que sustenta a recusa de uma transmisso. libi de um equi-
valente geral que d aos pais a iluso de a criana ser por si mesma a causa do
corte e do encadeamento sintomtico do qual eles se queixam por eles ou por
ela.
Desta forma, o contrato analtico articula o objeto da fantasia na refern-
cia ao desejo. Mas como esse reencontro irrealizvel, ele s se esboa em
suas dissimulaes. Por isso o dinheiro no o objeto dessa mensagem, mas
o mensageiro da fantasia, que o trato analtico com os pais e o tratamento com
a criana reconstroem, na constelao imaginria em que ela nmero cifrado,
at que a prpria criana decifre sua incomensurabilidade em relao modali-
dade de contagem e de clculo do gozo dos pais.
No deciframento, a seqncia de signos, ou seja, as cifras, tomam sen-
tido. A, a criana no mais uma cifra, mas um nmero. No mais contada,
mas contadora.
Numerrio e cifragem do nmero
No necessrio que uma mensagem seja cifrada para que ela deva ser
decifrada. E, mesmo decifrada, ela pode manter-se enigmtica. Enfim, como
formula Lacan (1973) que seguiremos nesse item, h um saber que no calcula
nem pensa nem julga, mas que cifra, isso que o inconsciente.
A que serve essa cifragem? Ela no da ordem do til, mas da ordem do
gozo faz obstculo relao sexual, ou seja, ao gozo absoluto. A cifragem
abre um relance que pode dar conta da entrada do real no mundo do ser falante.
Ela testemunha um real como inacessvel. A contingncia, ou seja, o que cessa
de no se escrever a chance do discurso analtico: a precipitao de um tipo
de cristalizao que escreve uma cifra.
Toda linguagem cifra, sendo, portanto, algo que se decifra. Entretanto,
o real que vige no nmero de outra ordem que a cifra. Se, por um lado, nada do
real comunicvel fora do nmero, a cifra permite cristalizar a potncia do real
no interior da linguagem, pois ns nos remetemos inteiramente remetidos a
cifra, tornando nosso poder de contar ambguo, j que s contamos cifras. As-
Das cifras na anlise com crianas
67
sim, ciframos coisas imaginando que estamos tratando nmeros. Afinal, h uma
borda na linguagem que define o buraco que aspira o falante como num turbi-
lho. S a lgica permite-lhe agarrar-se borda do buraco.
Esta ambigidade da cifra, ou do numerrio, que funda a ordem do signo
ao mesmo tempo em que serve para escrever nmeros, torna-se valor de resga-
te da criana imaginria seqestrada pela criana concreta. Esse valor situa a
correlao entre a criana imaginria e a criana concreta. onde algo da
ordem da letra ou do nmero emerge na transliterao de cifragens distintas,
postas no jogo da anlise e na aposta que essa implica.
O dicionrio etimolgico francs de mile Littr define a cifra: chiffre:
escrita secreta (sc.XV); cifra: zero (latim medieval) vazio (rabe); cada um dos
caracteres que representam os nmeros; nmeros so representados por ci-
fras; caracteres numricos de conveno empregados numa escrita secreta
(criptografia), oposto a escrever claramente. Todo signo de conveno servindo
a corresponder secretamente. A cifra, o conjunto desses signos, marca,
monograma, combinao, senha, algarismo, cifra, total, montante, marca, sinal
convencional; cifra do nome: feita do entrelaamento das iniciais. Cifro: ao
transpor as colunas de Hrcules (Gibraltar) os rabes cunharam uma moeda
que trazia num dos versos o sinal $. As duas linhas verticais indicavam as
colunas, a linha sinuosa indicava o mar, o estreito que haviam transposto; Chiffrer:
calcular, fazer contas, contar, numerar, fazer clculos, escrever em cifras).
O discurso analtico pode permitir introduzir um pouco de clculo, no
inconsciente contando at 4.
Emprstimo de capital
Considerando o tratamento como investimento de capital da empresa
comum, Lacan (1966) localiza a dificuldade de o paciente entrar com sua quota
para distinguir como o analista tambm tem que pagar: pagar com palavras,
elevadas pela transmutao da operao analtica a seu efeito de interpretao;
pagar com sua pessoa, que ele empresta como suporte da transferncia; pagar
com o que h de essencial em seu juzo mais ntimo, para intervir numa ao
que vai ao cerne do ser.
O analista de crianas paga com algo mais do que Lacan prope a. Ele
faz um emprstimo de capital de Imaginrio necessrio para situar o valor das
manifestaes da criana. Assim, ao pagamento da quota do analista, a anlise
com crianas implica um acrscimo: emprstimo de seu imaginrio capital
necessrio para operar com as cifras em que ela para um Outro, at que um
deciframento seja possvel. A operao pela qual ela poder se distinguir desse
68
68
ngela Vorcaro
lugar implica em que ela possa responder: em equivalncia ela se encontra? De
que conta ela se faz/ feita cifra? Como contar-se ao invs de ser contada?
essa resposta aposta do analista na clnica com crianas, ou seja, a
responsidade
4
aos pais que um analista espera da clnica com uma criana.
Questes de debate
5
:
A especificidade da situao com a criana implica que o emprstimo de
capital em jogo seja de imaginrio, que funciona como aquilo que responde pelo
exerccio da funo parental. Nesse sentido, retornamos questo da
especificidade do lugar do analista na clnica com a criana e a dificuldade de,
ao operar esse emprstimo, escorregar para a posio de desresponsabilisar
os pais do exerccio dessas funes. Nesse caso, o analista assume o lugar de
agente gozo social. Este um dos mais srios problemas da anlise com crian-
as.
O fato de que esse emprstimo muitas vezes precisa ser feito quer dizer
que preciso criar uma rede significante, qualquer uma, mas desde a qual se
obtenha uma correlao com a produo da criana, porque a que ser produ-
zido um transitivismo, conforme Bergs e Balbo (2002), no qual a criana efeti-
vamente esteja concernida. claro, portanto, que no se pode responder a ela,
quando ela apela depois de se machucar: que delcia que est o dia de sol
hoje. necessrio haver uma correlao nessa imaginarizao com algo que
afeta o corpo, com algo que toca o corpo da criana produzindo essa possibili-
dade de enlaamento em seus limites, obviamente, entre linguagem e corpo.
Exemplo disso uma criana que no falava, mas diante do seu espirro eu
disse: Sade. Ento, ela repetiu: Sade, uma das primeiras palavras que
ela disse, numa correlao com algo que efetivamente afetou seu corpo. Ela j
deve ter ouvido muitas vezes a articulao entre espirrar e ouvir a palavra, mas
diante de seu espirro que ela pode retomar essa articulao por via da escuta
e da fala. No qualquer coisa que afeta a criana, essa entrada no de
qualquer ordem e em cada caso, descobrimos um vis diferenciado pelo qual o
afeto no corpo conduz fala.
O deslizamento imaginrio necessrio feito para fazer caber alguma
manifestao da criana, para fazer a manifestao da criana entrar numa rede
4
Condensa-se a os termos resposta e responsabilidade.
5
Agradeo a ocasio da discusso do tema com os colegas da Escola de psicanlise de
Campinas.
Das cifras na anlise com crianas
69
qualquer, quando sua manifestao no tem qualquer estatuto e no est
endereada. uma exploso de significantes que podem ser supostos
significantes porque afinal, qualquer coisa significante, mas que eles no es-
to encadeados, no tomam nenhuma direo, no esto endereados a algo
ou a algum. Nesse contexto, a operao analtica vai conduzir o deslocamento
da criana de uma posio de excluso ativa para uma incluso.
Mas resta ainda discutir se funo materna tem o mesmo estatuto da
posio do analista de crianas afetadas por graves psicopatologias. Quando
acompanhamos o trabalho de algumas fonoaudilogas com autistas e psicticos,
por vezes podemos verificar que algo funciona muito bem na clnica. Considero
a possibilidade de que, na medida em que as terapeutas de linguagem entram
com o fantasma delas, fazendo funo de agente materno, elas esto alienadas
posio de agentes da linguagem sem teorizar sobre os efeitos da incidncia
do prprio fantasma que situa essa criana em algum lugar a partir da criana
que foram. Ao supor que a criana um sujeito e, portanto, colocando qualquer
manifestao da criana numa rede, num tecido de significantes, numa possibi-
lidade de significncia, o qu elas significam a incluso de uma criana numa
posio a partir da qual ela pode falar. Muitas vezes, isso suficiente para tirar
uma criana de um retardo de linguagem e assim franquear a fala da criana.
Infelizmente, isso no acontece sempre. Nem com fonoaudilogos nem
com psicanalistas. As dificuldades teraputicas podem ser atribudas impos-
sibilidade de o profissional interrogar-se sobre o fato de estar gozando a repeti-
o de seu infantil s custas da criana, mas isso no tudo. A condio da
psicose e do autismo parecem por vezes contagiar a possibilidade de funciona-
mento da fala na lngua, mesmo para um clnico experiente.
muito grande o dano a uma criana de estar fora da funo da fala.
Entretanto, resgat-la nem sempre algo realizvel. O analista deve ter uma
posio ativa s assumida se ele entra com essa quota de emprstimo de
imaginrio. Talvez, a partir do que Lacan diz desse entrar com sua pessoa o
analista de crianas precise entrar com um pouco mais, porque essa pessoa
est animando a linguagem, ou seja, est numa posio diferente daquela com
a qual um analista opera o lao transferencial de um falante pleno. Muitas vezes
o nico lao possvel no autismo e na psicose a transferncia do analista e
essa transferncia, portanto, no pode ser annima, porque seno entra-se no
mesmo circuito do dinheiro enquanto anulando a significao. Afinal, trata-se de
um sujeito em constituio.
Quanto a esse aspecto do emprstimo, cabe lembrar que emprstimo
porque quando algo emprestado, precisa ser resgatado, ou seja, tem uma
funo de permitir situar essa cifragem, mas para ser ultrapassado por ela.
70
70
ngela Vorcaro
Um dia um paciente autista pegou um ovo na geladeira e eu atribu o
sentido de que ele queria uma gemada, que eu fiz. Por qual motivo o ovo estava
na mo do menino, ainda no sei, nem sei se saberei, mas com certeza, o fato
de ter desdobrado esse ovo numa gemada me permitiu, junto com vrios outros
elementos que vo entrando nas redes significantes, construir uma hiptese
sobre esse gesto da criana. No sei nem se o pegar o ovo, se o abrir a
geladeira, se o sair da sala, se o mostrar para me, ainda nem sei sobre
qual parte da coisa minha concluso incidiu, mas algo disso o meu ato, que
permitiu esticar essa rede significante na qual ele abre a geladeira e tira um
ovo, e faz disso alguma coisa. sobre uma srie desses elementos que
possvel trabalhar, encontrar ali a possibilidade de um deciframento, onde o
carter imaginrio est em jogo. E ele precisa ser provisrio para permitir um
ato analtico.
Essa a dificuldade, porque isso implica em repensar a tica da psican-
lise. O fato de se considerar que na clnica de criana temos uma estrutura no
resolvida exige, do analista, o trabalho sobre a possibilidade de uma re-soluo,
diferentemente da clnica de adultos em que as estruturas definidas reduzem a
chance de interveno do analista. Na clnica com crianas h uma possibilida-
de de reorientar um processo de estruturao.
A criana paga por estar em maior ou menor medida, desde que ela est
numa anlise, com o sintoma. No se trata, como diz Martine Lerude (1982), de
supor que o sintoma um parasita que veio se alojar numa natureza vitoriosa e
perfeita. Obviamente existe uma escolha da criana e, com isso, ela paga. Ela
paga pela posio de objeto para os pais ou para o analista, que tambm pode
gozar s custas da criana ou permitir que a criana goze s custas do analis-
ta.
Cludia Fernandes (1996) lembra que Franoise Dolto estabelecia um
contrato em que as crianas pagavam com selos ou com pedrinhas, mas que
era uma maneira, obviamente, numa outra perspectiva que no visava a questo
da troca regulada pelo estado, mas que visava que a criana assegurasse cada
vez, que ela queria vir, e isso se resolvia imaginariamente com pedrinhas e com
selos. Mas, o que as crianas mostram que essa conveno desnecess-
ria, a criana deixa isso bastante claro porque sabe que paga com sua pessoa.
Para o analista, estar concernido na anlise permitir que esse emprs-
timo de imaginrio no seja substitudo pela funo simblica dos pais, ou seja,
que os pais tm que estar concernidos na anlise e tm que pagar com as suas
palavras. Por isso, a experincia de Klein to importante. Ela nos permite
perceber que emprstimo de imaginrio difere completamente da suposio de
que a produo imaginria do analista seja a eqivalncia a uma verdade teori-
Das cifras na anlise com crianas
71
camente formulada, numa correlao que visa mant-la. A prpria Klein s o
fazia porque ela era, em muitos de seus casos, a me e a analista. Entende-se,
portanto, que nesses casos ela pudesse fazer as duas coisas. Ela podia manter
a funo simblica s custas das crianas. De toda maneira, pensar numa
outra perspectiva a lgica que Lacan ([1956-57] 1995 ) diz sobre a produo de
Klein: que ela fantasiosa, mas no sem funo.
Resta discernir se isso que est to claramente em jogo no tratamento
de crianas autistas e psicticas vale para a anlise de crianas de modo geral.
Se uma criana tem um funcionamento significante, especialmente se ela j
est na funo da fala, obviamente h muito pouco sentido a entrada do imagi-
nrio, mas, por vezes, ela necessria. Exemplo disso uma paciente dese-
nhava um homem, o homem do saco, aquele que carrega as crianas, ela faz
esse desenho sem conseguir estend-lo e desdobrar significaes. O modo de
dar continuidade essa produo foi fazer uma outra coisa, fazer um outro
desenho, no qual a criana conseguia furar o saco e escapar, repetindo, em
outra rede, a queixa parental de que a ameaa do homem do saco era feita com
vistas a impedir que a criana se soltasse das mos dos pais. J aconteceu
tambm de uma criana estar brincando de uma coisa da qual eu estava exclu-
da. Ao brincar de outra coisa, percebi que era uma maneira de cifrar o jogo que
ela estava fazendo, antes que eu pudesse apreend-lo.
A incidncia do imaginrio acontece no apenas nas patologias graves.
Em muitas situaes necessrio que ele incida, como em outras ele no deve
entrar de modo algum. Atendi uma criana de trs anos que havia sofrido ame-
aas de morte, tanto simblicas quanto bem reais antes de nascer, ou seja,
isso estava bastante marcado no discurso da me, e a criana chega falando
que era um tigre e estava me unhando, simulando que me unhava. Eu perguntei:
de quem ser que algum precisa se defender, por que precisa ser um tigre,
para se defender de qu? A, ela viu um barquinho de madeira e resolveu servir-
se dele para responder: tem um pirata a nesse barco que quer me matar.
Ento, eu disse: vamos tratar de fazer te proteger desse barco, para esse barco
no chegar at voc te pondo em perigo! Peguei um jacar e o coloquei impe-
dindo a passagem do barco. Disse-lhe que assim no era mais necessrio ficar
se fazendo de tigre.
Mas a incidncia do imaginrio menor do que supomos, se concebe-
mos que as palavras e suas articulaes j esto por a, no campo da lingua-
gem. Basta puxar uma ponta, como fez essa menina: o barco de pirata que ela
puxou para a sua rede significante com vistas a explicar o motivo de sua posi-
o de tigre. Dei uma outra extenso, numa entrada imaginria, ao equacionar,
com sua prpria construo fantasiosa, uma soluo para seu impasse. A partir
72
72
ngela Vorcaro
da, ela encontrou possibilidades de impedir a proximidade do barco: jogando-o
no lixo, suspendendo-o num gancho do p do div, etc. Nesse procedimento de
linguagem, o seu estado de tigre, na defesa, dissipou-se e, junto com influxos
feitos me para que lhe contasse de um pai que a criana desconhecia, em
vez de a criana ser o tigre, o pai ganhou o lugar: algum a defenderia do pirata.
Mesmo que, um dia, ele tivesse sido situado numa posio de equivalncia ao
pirata, agora ele era ressignificado porque sancionado pela palavra da me; em
vez de atac-la, podia dar-lhe proteo; fazendo funo de tigre liberava-a de ser
um tigre. Mesmo nesse caso, em que a criana foi capaz de expressar com
toda nitidez para qu servia aquele lugar em que ela se colocava, o imaginrio
do analista incidiu para fazer uma ligao, uma ponte verbal, para retomar um
termo freudiano.
No existem situaes de angstia, de fobia, enureses ou de qualquer
outro sintoma de criana sem que haja uma dificuldade de encobrir o real com o
imaginrio, pois esse o movimento giratrio da plataforma significante antes
de o simblico tomar corpo em toda sua extenso. A funo da fala na criana
bem mais que no adulto, falante pleno tem algo sempre infans. Por isso,
preciso, at que a criana constitua-se sujeito, que seja contada pelo outro
quando ela no est circulando plenamente na funo da fala. Se ela chega ao
analista, com certeza o imaginrio tambm a est, mesmo que seja at de
modo exacerbado, mas ele no est articulando suficientemente simblico e
real.
Na clnica das psicoses e dos autismos o emprstimo de imaginrio
acontecimento preponderante. Especialmente na clnica com bebs, o que est
em jogo uma impossibilidade de aposta em uma perspectiva de subjetivao.
H uma situao bem esclarecedora, relatada por Elza Coriat (1997). Uma cri-
ana com sndrome de Down, foi, por ela, interpretada diante dos pais como
tendo balbuciado algo que permitia um sentido, diante de uma manifestao da
criana. Ento os pais lhe falam que desconheciam que o beb pudesse balbu-
ciar, porque haviam dito a eles que criana com sndrome de Down no poderia
fazer isso. Ento, quando supunham que o beb balbuciava eles supunham
estar alucinando, j que no podiam supor que a manifestao da criana qui-
sesse dizer alguma coisa.
Essa funo de reconhecer, numa mnima produo da criana, que a
criana est concernida por aquele campo no qual esto circulando as ques-
tes dos pais, o que est em jogo na clnica com bebs. Mas esta uma rea
muito cheia de perigos de superimaginarizao, por isso essa clnica tem que
ser discutida caso a caso, para podermos avaliar se essa clnica se manteve no
escopo da psicanlise.
Das cifras na anlise com crianas
73
6
Numa conferncia realizada em So Paulo, 1998.
H alguns anos, Bernard Nomin
6
ressaltou algo que Lacan (1966) apon-
ta sobre os menus objetos dos analistas de criana: boneca-flor, para Dolto,
jogo do squiggle, para Winnicott. Cada analista de criana com seus objetos,
fazendo, compondo um menu para oferecer criana como um modo privilegia-
do de estabelecer relaes. O que interessa na questo das pedrinhas ou dos
selos da Dolto a perspectiva com a qual ela introduz uma moeda de pagamen-
to da criana, mesmo que imaginariamente, seja a pedrinha ou o selo. Qual
seria o valor assumido pelo estabelecimento dessa modalidade de troca?
Que a criana traga coisas ao analista e leve consigo coisas dadas pelo
analista demonstra a circulao do jogo significante operando escancarada-
mente. A questo que o pagamento no passvel de ser introduzido como
frmula geral. Afinal, o lao que a criana faz ao analista passa por lugares
diferentes daquele que os pais fazem com o analista. Mas a moeda vai apare-
cer. E a que est a questo: ser que valeria a pena que isso fosse institudo?
No seria melhor que o analista perguntasse criana: como que voc vai
me pagar? Esta pode ser uma pergunta muito pertinente.
REFERNCIAS:
BERGS J. E BALBO, G. Jogo de posies da me e da criana, ensaio sobre o
transitivismo. Porto Alegre: CMC Editora, 2002.
CORIAT, E., Psicanlise e clnica com bebs. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 1997.
FERNANDES, C. O pagamento na clnica com crianas ou sobre a noo de respon-
sabilidade em psicanlise. Trabalho apresentado no Espao Moebius, Salvador,
1996.
LACAN, J. O Seminrio, livro 4: a relao de objeto [1956-57]. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.
_____, La direction de la cure. In: LACAN. crits. Paris: Seuil, 1966, p.587-645.
_____, Congrs de lE.S.P. Montpellier, novembre 1973. Interventions de J. Lacan.
Extraites des Lettres dcole, Association Freudienne Internationale, s/d.
LERUDE, M. Au bonheur des enfants. La psychanalyse de lenfant. Paris, Association
Freudienne Internationale, 1982.
MARTIN, P. Dinheiro e Psicanlise. Rio de Janeiro: Revinter, 1997.
PORGE, E. A transferncia para os bastidores. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1998.
Recebido em 10/09/2008
Aceito em 10/10/2008
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
74
TEXTOS
74
Resumo: Este artigo pretende relacionar o fenmeno psicossomtico na infn-
cia como sinal de risco na estruturao psquica infantil por marcar uma falha na
instaurao da metfora paterna. E, ainda, que a direo de cura est na possi-
bilidade de o tratamento funcionar como suplncia a essa metfora.
Palavras-chave: fenmenos psicossomticos, infncia, metfora paterna.
PSYCHHOSOMATICS IN CHILDHOOD: THE SUBJECT AT STAKE
Abstract: This article intends to report the psychosomatic phenomenon in
childhood like a sing of risk in psychics structure. It marks a failure in the
instauration of fatherly metaphor. And still, the cures direction is in the possibility
of treatment operates like a supplement of this metaphor.
Keywords: psychosomatic phenomenon, childhood, fatherly metaphor.
1
Mdica homeopata e psicanalista; Participante da Associao Psicanaltica de Porto Alegre;
Membro associado do Centro de Estudos Psicanalticos de Porto Alegre; Professora convida-
da do Centro de Estudos Paulo Csar Dvila Brando. E-mail: [email protected]
PSICOSSOMTICA NA INFNCIA:
sujeito em risco
1
Renata Maria Conte de Almeida
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 35, p. 74-81, jun./dez. 2008
Psicossomtica na infncia...
75
Sono de ser, sem remdio,
Vestgio do que no foi,
Leve mgoa, breve tdio,
No sei se para, se flui;
No sei se existe ou se di.
Fernando Pessoa
No sei se existe...
Q
uando a medicina pesquisa as doenas psicossomticas, ela trata de des-
crever os rgos afetados, a fisiologia alterada. Busca causas para o pade-
cimento do organismo; enumera-as e cita, por vezes, os fatores emocionais
como desencadeantes destas enfermidades. Ela uma cincia que se preten-
de cartesiana, mesmo quando os sujeitos e suas dores modificam prognsticos
e diagnsticos ante o olhar incrdulo dos mdicos. A medicina no est procu-
ra do sujeito. No sabe de sua existncia: no compreende seu gozo e sofri-
mento. Para o saber mdico, basta compreender o organismo, suas enzimas,
seus trajetos metablicos e suas desordens. Seu campo de saber o organis-
mo biolgico vivo.
Mas quando estamos frente a uma criana com grave distrbio psicos-
somtico, o que muda? Os distrbios psicossomticos podem ser doenas de
desenrolar lento e progressivo, algumas delas com risco de vida, que acarretam
muitas dificuldades no desenvolvimento infantil. Hoje, algo do saber psicanalti-
co j faz parte do discurso moderno. Psicanalistas j trabalham em hospitais,
em postos de atendimento primrio sade. As dores somticas no esto
mais to apartadas do inconsciente como na poca de Charcot.
...Ou se di...
Porm volto a perguntar, o que muda quando estamos frente a uma crian-
a e a sua dor? Estamos frente a um sujeito no momento de sua constituio.
Estamos no tempo do advir, da aposta, do no estruturado, do em fundao. As
dores e sofrimentos psicossomticos infantis nos falam de que algo no cami-
nha bem. O real desse corpo biolgico no tem encontrado enlaces possveis
para construir os ns de sustentao ao desenvolvimento e estruturao do
sujeito. A trama simblica que precisa se fazer est esburacada. O real do
corpo est excessivamente exposto a nos fenmenos psicossomticos.
Lacan ([1964]1998) define que o fenmeno psicossomtico como um
hierglifo espera de deciframento. Ele no um sintoma para a psicanlise,
76
76
Renata Maria Conte de Almeida
pois ainda no estamos no tempo do sujeito do inconsciente, estamos no tem-
po da estruturao deste ltimo. Vemos um sofrimento que vai marcando o
corpo numa escrita sem letra. Escrita sem letra porque est l, marcado no
corpo lesionado. Porm, para quem o sofre e para o outro cuidador, ele vem
como real apenas; sem possibilidades de questionamentos, apenas demandas
de solues. comum escutar de pais de crianas com graves fenmenos
psicossomticos: Fulano asmtico, Beltrana alrgica, sua psorase come-
ou... Resqucios do discurso mdico vigente?
...Sono de ser, sem remdio...
Sem remdio esto as crianas quando o saber mdico no consegue
reconhecer seu prprio limite, pois a nomeao desses fenmenos em asma,
psorase, lpus, ou qualquer outro, no decifra o padecimento do sujeito em
questo. Muito menos ainda trata dele. O corpo biolgico, tratado sem a escuta
do sujeito, volta sempre a repetir sua dor, de tempos em tempos.
H consequncias, na infncia, quando o nome de uma doena vem fe-
char possveis questionamentos sobre o padecimento infantil. A obliterao des-
se espao de questionamento sobre o sofrimento da criana pode deix-la cola-
da a um significante que no diz, afinal, quem ela , apenas como sofre. Escu-
tar sobre as doenas, e no sobre a criana que delas padece, objetaliza um
sujeito que precisa ter seu lugar assegurado, antes de tudo, no discurso, para
que possa ento, aceder a esse lugar um dia. Para o infans, essencial que a
falta significante opere. Opere como? Que o real do seu corpo possa ser
imaginarizado e posteriormente simbolizado. Assim a trama complexa que
constituir o sujeito. Vorcaro (2004) nos diz que o ponto zero, aquele que inau-
gura a condio de subjetivao, se d no encontro real do organismo do neonato
com a realidade psquica do agente materno, dando a ele lugar no discurso do
seu desejo e produzindo sentidos e atributos imaginrios a esse corpo. essa
matriz simblica inicial que permitir que o corpo possa ser afetado pela pala-
vra, deixando de ser natural, que faa a passagem do corpo real a um corpo
simblico. Que possa ele mesmo entrar na linguagem e ser por ela atravessa-
do.
Foi a psicanlise que primeiramente decifrou o sofrimento das histricas.
Falou que o corpo que convulsionava estava repleto de outro sentido, sexualida-
de recalcada. Freud leu aquilo que durante anos esteve encoberto pelo vu da
histeria.
Nos fenmenos psicossomticos no h sentido inscrito. H pura inten-
sidade marcando o que o significante no instaurou a metfora paterna. Hierglifo
Psicossomtica na infncia...
77
S1 S2 obliterando a cadeia significante. A cadeia significante primeira que diz
do sujeito, que o nomeia para um Outro, est colada. No houve possibilidade
de uma substituio entre S2 e S1. O Nome-do-Pai est fora de questo, ou por
bem a questo. Podemos pensar que o fenmeno psicossomtico se trata do
enxame de significantes maternos a fazer o rudo no corpo real da criana?
Criana tomada por esse enxame de significantes maternos sem possibilidade
de metaforizao, pois o Nome-do-Pai no fez inscrio? Ou corpo real que
esburaca a matriz simblica e fica sem resposta frente fragilidade simblica
do agente materno?
...Vestgio do que no foi...
As crianas nascem marcadas por uma prematuridade que, para a raa
humana, essencial ao seu complexo desenvolvimento posterior. Prematuridade
e desamparo. Desse limbo, as crianas surgiro como sujeitos pela ao espe-
cfica do Outro materno. A criana receber de sua me, alm do leite que a
alimentar, todo o dom de amor que ela conseguir estabelecer com seu filho.
Isso ir instaurando na pequena criana significantes familiares. Ela ir adentrar
numa histria e encontrar a sentidos para si.
Do desamparo antecipao, realizada pelos pais, de quem ser esse
beb, sucede um salto qualitativo de organismo vivo a um corpo ergeno, um
corpo pulsional, cujas marcas falam de uma demanda do Outro, de pedidos e
respostas, de uma troca simblica.
Nos fenmenos psicossomticos h uma falha prematura entre o Outro
materno e o sujeito. A criana fica inundada de uma intensidade que no sofre
simbolizao. Como se o desejo do Outro tivesse falhado em metaforizar o
sujeito.
Conforme Vandermersch (1991) a presena do significante, ou seja, ape-
lo subjetivao do vivo, no pode passar sem deixar rastro.
Aqui, os rastros ficam como um trao de real no corpo. Como se o
significante no imperasse sobre a necessidade, causando descarga no real do
corpo. O vestgio apenas da descarga, sem a inscrio simblica. Freud, no
Projeto ([1895] 1980), nos fala que grandes quantidades de catexias, ou vindas
do mundo exterior ou do interior, podem romper com a frgil e incipiente
estruturao do ego e realizar descargas no sistema
2
, deixando facilitaes
permanentes no aparelho psquico. Ou seja, toda vez que esse aparelho for
2
Sistema de neurneos permeveis.
78
78
Renata Maria Conte de Almeida
inundado por excessos e no houver possibilidade de descarga via sistema
3
e

4
, essas facilitaes sero novamente usadas. O corpo real receber a des-
carga dessas intensidades no metaforizadas.
Lacan nos dir no Seminrio 11:
O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o significante.
Mas por este fato mesmo, isto que antes era nada seno sujeito
por vir se coagula em significante.
A relao ao Outro justamente o que, para ns, faz surgir o que
representa a lmina no a polaridade sexuada, a relao do
masculino com o feminino, mas a relao do sujeito vivo com
aquilo que ele perde por ter que passar, para sua reproduo, pelo
ciclo sexual. Explico assim a afinidade essencial de toda pulso
com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulso que, ao
mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e repre-
senta, em sua essncia, a morte (Lacan, [1964] 1998, p. 187).
Freud, em Instintos e suas vicissitudes ([1915] 1980), nos explica que,
na relao de objeto, o dio anterior ao amor. A ambivalncia em relao ao
objeto estar assim, para Freud, marcada por uma anterioridade capacidade
de amar. Em O ego e o id ( [1923] 1980), ele tratar da desfuso pulsional,
trabalhando como Lacan na citao acima, as duas faces da pulso, pulso de
vida e pulso de morte, como uma amlgama pulsional indissocivel e varivel
na sua composio.
Se, no fenmeno psicossomtico, o desejo do Outro falha em metaforizar
o sujeito, podemos supor que ele esteja constitudo em grande parte de pulso
de morte, de alta dose de ambivalncia, restando a esse sujeito a possibilidade
de colocar no real do corpo essa descarga. Gozo de dor, pulso de morte,
marcando uma tentativa frustrada de inscrio significante.
... Leve mgoa, breve tdio...
Se o Outro materno est impossibilitado de erogenizar seu beb, estamos
frente a uma ambivalncia de certa magnitude. Para Freud, eros responsvel
pela complexizao da vida e a pulso de morte est relacionada ao princpio do
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Sistema de neurneos impermeveis.
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Sistema de neurneos perceptuais.
Psicossomtica na infncia...
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nirvana. A transformao deste ltimo em princpio do prazer se deve influncia
do instinto de vida ou libido. Podemos ento deduzir que eros responde pela
inscrio significante, mas como o amlgama pulsional nos fenmenos
psicossomticos est inundado de gozo mortfero, produz um signo apenas,
hierglifo que apela por ser decifrado.
Dessa forma, o fenmeno psicossomtico pode ser compreendido como
um apelo ao Pai, metfora que possibilitar o deslizamento de significados e a
complexizao das cadeias significantes; assim como o corte desse gozo no
real do corpo.
Robert Levy (2008) em seu ltimo livro, O infantil na psicanlise, trabalha
que a metfora do Nome-do-Pai um processo que se inaugura na infncia e
persiste. isso que possibilita ao aparelho psquico seguir no que Freud cha-
maria de gradativa complexizao do aparelho, e Lacan, no estabelecimento de
estruturas psquicas, que, na infncia, so sempre no decididas.
Segundo Lajonquire (apud Levy, 2008), o tempo ou estgio infantil no
uma imaturidade: s espera no a posteriori.
Sendo espera no a posteriori, h possibilidade de alterao das estrutu-
ras. A qualquer momento o Nome-do-Pai pode vir a operar, seja porque os pais
podem modificar sua relao com esse objeto-filho, criando novos laos e ins-
cries. Seja porque o tratamento psicanaltico pode operar como suplncia a
essa metfora, sendo ele mesmo, o elemento terceiro. Ou, ainda, porque as
crianas encontram suplncias eficientes em outras figuras das suas novelas
familiares e, at mesmo, em seus amores escolares.
...No sei se para, se flui...
A psicanlise trata do desenvolvimento infantil de forma totalmente dife-
rente da medicina: o surgimento do sujeito e o desenvolvimento orgnico da
criana so indissociveis e intercambiantes. O organismo passa a ser corpo
ergeno, e seu desenvolvimento est para sempre marcado pela carga pulsional
que o constitui. Quando algo do psquico emperra, muitas vezes ocorrem sinto-
mas fsicos se instaurando e vice-versa.
O risco que o sujeito corre quando no h escuta do seu sofrimento
ficar obliterado num ttulo (asmtico, psorase, lpus...), que no produz qual-
quer questo a ele. E estar alienado a um desejo sem possibilidade de separa-
o morte. Alienao ao desejo materno, nos fenmenos psicossomticos,
estar num lugar sem valor, objetalizado. Gozo que, assim, recai no real do corpo
espera de deciframento, ou seja, que a metfora paterna venha constitu-lo em
outro lugar. essa primeira e essencial metfora, o Nome-do-Pai, enquanto
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Renata Maria Conte de Almeida
significante, que, ao entrar no lugar do desejo da me, possibilita que o sujeito
venha se instaurar como possibilidade futura. Essa operao marca o destino
psquico da criana.
Quando atendemos uma criana com fenmenos psicossomticos gra-
ves, seja em qualquer estruturao ainda no decidida pela qual ela esteja tran-
sitando, devemos tomar o cuidado de ler o apelo que ali aparece sob forma de
signo, hierglifo.
Lembro-me de uma criana atendida em consultrio com transtorno de
desenvolvimento e grave crise de psorase. Ao final da primeira consulta, toda a
sala estava tomada de profusa descamao de sua pele, como se houvesse
sido despejada farinha por todo o local. Havia muitos movimentos estereotipa-
dos, pouca comunicao verbal e visual, porm, quando chamado, fazia rpido
contato, que se perdia rapidamente nos movimentos ritmados com um brinque-
do qualquer. O risco psquico claro e contundente, mas aquele excesso de pele,
o que era?
Da operao de metaforizao resta, cai o objeto a, causa de desejo. Do
apelo a essa metfora, resta o real do corpo a cair, literalmente, sob a forma de
descamao epidrmica, nesse caso do qual fao um pequeno recorte. esse
signo que faz apelo ao Pai, a um terceiro, que venha interromper esse gozo
mortfero. Real do corpo a solicitar metaforizao.
...No sei se existe ou se di...
A existncia s possvel quando a dor do sujeito, a dor do existir pode
ser escutada. Esta uma das maiores contribuies que a psicanlise traz
queles que pretendem tratar de crianas portadoras de fenmenos
psicossomticos. Se o seu sofrimento no puder encontrar esse lugar terceiro,
seu corpo padecer da repetio do gozo mortfero do Outro e o sujeito poder
sucumbir nesse lugar nefasto de objeto.
E, diferentemente do adulto, estamos num tempo, o da infncia, em que
a palavra pode modificar um destino, em que o significante Nome-do-Pai lana a
criana em outro registro, permitindo que o n faa seus laos e voltas, e possi-
bilite novos desdobramentos e, talvez, o surgimento de um sujeito, para alm de
seu corpo.
REFERNCIAS
FREUD, Sigmund. O ego e o Id [1923]. In: _____. Obras completas. Edio Standard
Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980. v. 19 .
FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes [1915]. In: _____. Obras comple-
tas. Edio Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980. v. 14.
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FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia cientfica [1895]. In: _____. Obras
completas. Edio Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1980. v.1.
LACAN, Jaques. O seminrio, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psica-
nlise [1964]. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LEVY, Robert. O infantil na psicanlise: o que entendemos por sintoma na criana.
Petrpolis: Vozes, 2008.
VANDERMERSCH, Bernardo. Inscrito, mostrado, no articulado. In: TEIXEIRA, Angela
B. do Rio (Org.). O sujeito, o real do corpo e o casal parental. Salvador: galma, 1991,
v. 3. (Coleo Psicanlise da Criana).
VORCARO, ngela M. R. A criana na clnica psicanaltica. Rio de Janeiro: Compa-
nhia de Freud, 2004.
Recebido em 15/12/2008
Aceito em 15/01/2009
Revisado por Maria ngela Bulhes

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