Hist Artigo Márcia Naomi Ter Escravo em RG
Hist Artigo Márcia Naomi Ter Escravo em RG
Hist Artigo Márcia Naomi Ter Escravo em RG
Se a obra de Ktia Matoso de Queiroz contribuiu para retratar a praa de Salvador como o mais ativo centro urbano do Brasil colonial, guardada as devidas propores, a cidade do Rio Grande, localizado no extremo sul do pas, tambm, possui uma importncia estratgica no comrcio da fronteira meridional do Brasil. Tanto que, em minhas pesquisas sobre o comrcio do Rio de Janeiro, de meados do sculo XIX, o porto gacho ocupara a terceira posio em termos de movimentao de navios com a capital brasileira. Nesse sentido, um dos objetivos deste artigo comprovar a importncia de Rio Grande como um importante centro comercial, fazendo parte integrante das redes mercantis que cobriam o comrcio do Atlntico sul. Desde a sua fundao, em 1737, a cidade abrigava o ltimo porto brasileiro, antes da fronteira meridional do Brasil e da entrada do Rio da Prata. Em funo de sua posio geogrfica, o comrcio e a segurana militar esto na origem de seu povoamento. Desde o final do sculo XVIII, a disseminao da indstria do charque viria impulsionar a economia da regio, dando origem a unidades produtivas escravistas nos moldes daqueles que caracterizavam a sociedade colonial brasileira. A produo de couros e charque para exportao ganhou tal notoriedade, levando inclusive ao desmembramento do territrio para a criao da vila de Pelotas, cuja autonomia foi decretada em 1832. Se Pelotas ficou logo identificada com a produo do charque, a vila do Rio Grande, alm de manter as atividades mercantis, ainda centralizava um territrio de grandes propores, contendo muitas propriedades agrcolas, seja de criadores de animais e de salga
da carne. Esse perodo coincide com o segundo vilamento, quando a vila de Rio Grande de So Pedro foi reinstalada, por alvar de 1809.1 Nesse sentido, a elite riograndina tinha representantes de diferentes ramos, tanto rural como urbana, o que lhe conferia um carter diferenciado na provncia, cuja produo, tradicionalmente, estava associada pecuria. Ao contrrio das outras regies gachas, Rio Grande atraia uma elite interessada no porto, que integrava o circuito mercantil do Atlntico sul. Porm, tanto o agente mercantil como o produtor rural necessitava do brao escravo para desenvolver suas atividades, este, com necessidade de um maior contingente de cativos, principalmente na indstria do charque; e o outro, com um sistema de trabalho que requeria trabalhadores para servios ocasionais, seja no embarque e desembarque de mercadorias, seja no transporte dessas mercadorias. Se o porto conferia um estatuto particular ao mundo do trabalho, o escravo est presente em praticamente todas as atividades. Isso pode ser verificado nos livros da Cria do Rio Grande, que contm registros de batismo e bito de escravos. Essas informaes foram coletadas e tabuladas pela professora Maria Luiza Bertuline Queiroz e esto organizadas em fichas, identificadas pelo nome do proprietrio. As fichas esto disposio para consultas no Centro de Documentao Histrica da Fundao Universidade Federal do Rio Grande (FURG).2 Os registros envolvem cerca de 2.900 proprietrios, que comunicaram os nascimentos e falecimentos da populao escrava do Rio Grande. evidente que a posse de um ser humano para o trabalho produtivo e domstico requeria um certo cabedal, ainda mais que em uma sociedade de base escravista, cujas fortunas eram amealhadas em funo do nmero de escravos. Gorender afirma que, muitas vezes, o escravo cumpria a funo de meio de troca. (GORENDER, 1987, p.181) Em razo dessa valorao, a anlise desses registros pode dar uma dimenso da elite proprietria do Rio Grande. Mesmo que o nmero de batismos e bitos no represente a quantidade total de escravos de cada proprietrio, possvel ter uma dimenso do plantel de trabalhadores cativos, que pode dar uma dimenso proporcional ao nmero absoluto.
A identificao de nomes de habitantes, que participaram, no primeiro decnio, no progresso da Villa aparece no artigo de Antenor de O. Monteiro Os Homens do Segundo Vilamento do rio Grande. RIHGRS, 1947 (n 1054 a 108) 2 Parte dos resultados esto apresentados no livro: Maria Luiza Bertuline Queiroz A vila do Rio Grande de So Pedro. 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987
Alm dessa advertncia, a grande dificuldade foi a quantidade imensa de nomes, que dificultou adentrar nessa populao, tanto de proprietrio, como de escravos. Foi necessrio fazer um recorte temporal, cuja justificativa est relacionada s outras fontes disponveis: a movimentao porturia, de 1848 a 1854; e um livro registro de eleitores de 1853. Essas duas fontes trazem informaes de meados do sculo XIX e por isso, os registro de batismos e bitos selecionados devem estar em sintonia com essas datas, ou seja, vo ser analisados os proprietrios de escravos em atividade nesse perodo. Para adentrar nesse universo de proprietrios, inicialmente, foram filtrados nomes com maior nmero de registros de batismo e/ou bito, apresentados na tabela1: Tabela 1: Proprietrios de Escravos com maior nmero de registros3 Proprietrio Profisso Eleitores No. registro batismos 27 33 34 1853/26a 1876/45a 1876/ ? 14 38 (1829-45) de No. de de registro de bitos 77 (1806-62) 58 (1785-60) 44 (1808-50) 41 (1802-62) 20
Comerciante/ proprietrio Miguel da Cunha Proprietrio Pereira (2.vil) Antonio Jos Afonso Comerciante (RJ) Guimares Joaquim Martins de Proprietrio Freitas (2.vil) Jos Luiz Augusto da proprietrio Silva Faustino Correa Antonio Martins de Freitas Manoel Antonio Lopes Joo Francisco Vieira Braga Domingos Vieira de Castro Jos Luis da Silva proprietrio
1853/82a 1853/49a
1853/58a 1853/68a
35 (1782- 3 1824) 4 32 (1827-63) 19 24 9 6 20 19 (1789/1820) 16 31 (1818-56) 29(1795/1847) 26 (1818-55) 26 (1826-55) 25 (1824-63) 2 23 (1847-56)
proprietrio Comercio(RJ) G125; (2. Vil) Proprietrio (2.vil) Comerciante proprietrio Antonio Teixeira de Proprietrio Magalhes (comendador) Jos Faustino Corra (tenente) Francisco Soares Ferreira Negociante
1853/55a
3 A tabela foi montada a partir das fichas de histria demogrfica, CDH/FURG; Livro de eleitores-1853, Arquivo da Prefeitura de RG; e das informaes contidas nos trabalhos de Ester Gutierrez e Antenor de O. Monteiro
Jos Silveira de Azevedo Jos dos Santos Magano (comendador) Jos de Souza Gomes
Proprietrio
13
23 (1830-59) 21 (1825-50)
Eleutrio Carneiro Manoel da Costa Bezerra Manoel Pereira Bastos Antonio Correia de Mello Joaquim Gomes de Mello Antonio Soares Pinto Bernardino Jos Marques Canarim Domingos Faustino Correa
Proprietrio, comerciante, Negociante, comendador Teixeira proprietrio Comerciante Comendor Proprietrio(2vil) Proprietrio negociante
10 7 4 3 5 13 4
proprietrio 1853/76a Negociante, com- 1853/66a 48; G147 Capitalista, 1853/62a estancieiro
10
Na tabela, o filtro foi realizado a partir do registro de mais de 15 batismos e/ou bitos, por proprietrio, o que reduziu a lista para 24 nomes, que podem ser considerados os homens de maior cabedal para sua poca. O limite de registros foi definido a partir da mdia de escravos, calculada por Ester Gutierrez para as charqueadas de Pelotas que girava em torno de 54 cativos, por charqueador. (GUTIERREZ, 2001, p. 178) O primeiro deles, Joo Antonio Lopes, apresenta 77 bitos, que j supera a mdia dos plantis, que, segundo Gutierrez, chegava a atingir 200 cativos. Lopes identificado como comerciante e proprietrio, o que pode ser considerado caracterstico de Rio Grande, ou seja, investimentos tanto no comrcio como na produo rural. Cabe ainda ressaltar que existe o registro de Jos Antonio Lopes e Manoel Antonio Lopes, o primeiro aparece somente com o registro de sete bitos, e o segundo, ocupa a oitava colocao na tabela 1, com 19 batismos e 31 bitos. A atuao em rede familiar ou o prosseguimento dos negcio herdados da famlia tambm caracteriza o quadro das elites do Rio Grande. As fortunas familiares propiciavam a continuidade dos negcios como no caso do terceiro nome da lista, Antonio Jos Afonso Guimares, registrado duas vezes. O mais antigo tinha a patente de capito-mr, muito comum nos homens de destaque do segundo vilamento do Rio Grande, aps a expulso espanhola, com 19 e 18 registros, respectivamente de batismo e bito. Tudo leva a crer que o segundo Afonso Guimares deu continuidade aos negcios,
expandindo as atividades para o Rio de Janeiro, alm de ter registrado na parquia de Rio Grande 34 batismos e 44 bitos. Uma comparao entre os nmeros registrados confirma uma tendncia para os plantis mais recentes, o nmero de bitos superiores aos de batismo, tendo ainda maior incidncia de homens frente ao de mulheres. No caso do primeiro proprietrio, Joo Antonio Lopes, a proporo de bitos bem maior, 77, frente aos 27 batismos. O segundo nome da lista, Miguel da Cunha Pereira, obedece a mesma tendncia, com 58 bitos e 33 batismo; caso semelhante ao quarto nome da lista, Joaquim Martins de Freitas, que registra 41 bitoes e 14 batismos. Os dois ltimos tambm tm em comum o fato de estarem citados no artigo sobre o segundo vilamento, ou seja, aps a ocupao espanhola, o segundo povoamento (ou vilamento) deu origem vila do Rio Grande. Ainda ressaltando os vnculos familiares, o nome de Faustino Corra, com 35 batismos e 3 bitos, foi mantido na tabela acima, apesar de ser de um perodo anterior ao que est sendo aqui tratado, porm como patriarca de uma rede familiar deve servir de exemplo dos vnculos entre os maiores proprietrios de escravos na regio. Dois filhos aparecem na tabela: Jos Faustino Corra e Domingos Faustino Correa, cada um apresentado, respectivamente, 19 batismos e 2 bitos, e 10 batismos e 16 bitos. importante observar que Faustino e Jos Faustino possuem registros bem superiores de batismo, enquanto que Domingos apresenta cerca de 50% a naus de bitos, frente aos batismos. A famlia ficou conhecida, nos ltimos tempos, pela longa tramitao na justia brasileira do inventrio de Domingos Faustino Correa, cujas exigncias, deixadas em testamento, dificultou o seu cumprimento. Algumas delas foram cumpridas, cabendo frisar que foi cumprida a legao de dotes para ex-escravos, com as respectivas alforrias. (Cf. GULARTE, 2001) Tudo leva a crer que Domingos manteve uma prtica da famlia de cuidado e zelo para com seus escravos. Alm disso, vale ressaltar toda uma gama de compadrios formalizados por meio de apadrinhamentos, que tambm aparecem registrados nas certides de batismos. Um outro fator diferencial de Domingos Corra a qualificao de capitalista, o que pode justificar um tipo de atuao diferenciada em relao aos outros parentes, indicando uma diversidade de suas atividades, conforme pode ser comprovado pelos imveis deixados no inventrio, que esto localizados na rua Riachuelo, cuja disposio , justamente defronte ao cais do porto.
Dos nomes restantes na lista dos maiores plantis de registro de batismo e bito escravos figuram oito proprietrios identificados com comrcio ou negcios. Esse fato remete quilo que diferencia Rio Grande em relao a outras localidades da provncia: sediar o principal porto de entrada e sada de mercadorias. O grande nmero de escravos indica algum tipo de atividade produtiva, possivelmente, no meio rural. Alguns, inclusive, so identificados como proprietrios de terras e comerciantes. O caso de Domingos Faustino Corra j evidenciou essa tendncia. A lista fecha com mais seis nomes de proprietrios com registros de batismo e/ou bitos de no mnimo 15 escravos. Como foram adicionados na tabela 1 dois nomes que estariam fora do perodo estipulado, os da famlia de Faustino Corra, na contagem geral, o nmero de negociantes, comerciantes ou capitalista supera o de proprietrios, identificado isoladamente. Para focalizar com mais acuidade a elite riograndina, a tabela 2 mostra os comerciantes com o maior nmero de registro de escravos nos livros da Cria. Tomando como base um nmero mnimo de 10 batismos e/ou bitos, o resultado foi uma lista de dezoito negociantes, apresentados a seguir:
Tabela 2 Comerciantes Proprietrio profisso Eleitores No. registro batismos 27 34 24 1853/64a 1853/55a 1853/64a 1853/53a 1853/61a 1853/53a 1853/66a 10 4 13 6 16 de de No. de de registro bitos 77 (1806-62) 44 (1808-50) 29(1795/1847) 26 (1826-55) 23 (1847-56) 21 (1825-50) 21 (1834-57) 18 (1831-60) 17(1798/1845) 16 (1838-62)
Com-RG 1854 proprietrio Antonio Jos Afonso Comerciante (RJ) Guimares Joo Francisco Vieira Comercio(RJ) Braga G125; 2. Vil Jos Luis da Silva Comerciante proprietrio Francisco Ferreira Negociante Soares Jos dos Santos Proprietrio, Magano (comendador) comerciante Jos de Souza Gomes Negociante, (comendador) Manoel da Costa Comerciante Bezerra (Comendador) Joaquim Gomes de Negociante Mello Bernardino Jos Negociante, RG
1853/82a
Jos Antonio Guimares Jos Bento de Castro Guimaraens Porfrio Ferreira Nunes Joo Antonio de Carvalho Serzedelo Manoel Jos da Costa Tomaz Rodrigues Pereira
1848; G147 Capitalista, 1853/62a estancieiro Com-RG 1845 G75 Leite Com-RG 1847-54 Com-RG 1848/54 Negociante, Com-RG 1854 Negociante, Com-RG 1854 negociante Negociante, navio:Jaguaro 1853/48a 1853/51a 1853/34a 1853/69a
10 5 1 3 1 1
O primeiro no poderia deixar de ser Joo Antonio Lopes, seguindo de dois negociantes com atuao no Rio de Janeiro, Antonio Jos Afonso Guimares e Jos Luis da Silva, o que explica a ausncia de seus nomes no livro de eleitores de 1853, de Rio Grande. Segue o nome de Jos Luis da Silva, que, alm do comrcio est identificado como proprietrio de terras, o que justificaria o grande plantel de escravos. Outro caso semelhante o do Comendador Jos dos Santos Mangano, que, na segunda metade da dcada de 1840, era um dos mais ativos negociantes da cidade, tendo tido a honraria de ser o responsvel pela recepo do Imperador D. Pedro II, quando estive na cidade, em 1845. Porm, a partir de 1851, seu nome no est mais presente nas tabelas de comrcio e surpreende aparecer na lista de eleitores. (O Rio-grandense, 1851) A honraria da comenda tambm foi concedida a Jos de Souza Gomes e Manoel da Costa Bezerra. Mesmo que no estejam identificados como proprietrio de terra, o grande nmero de escravos indica a necessidade de um grande nmero de mo-de-obra, que se explica somente em razo de atividades produtivas. Do mesmo modo que outros negociantes que no esto identificados coma terra possuem uma mdia de idade bastante alta, registrada nos livros de eleitores, sendo tambm mais um fator que contribuiria para a acumulao de riqueza, seja sob a forma de escravos ou terras. O mais novo da lista acima, Manoel Jos da Costa, tinha 34 anos, seguido de Porfrio Ferreira Nunes, com 48 anos, sendo que, antes deste, trs deles no esto registrados como eleitores e, por isso, no temos a informao da idade. Porm, interessante frisar que Joo Simes Lopes era um charqueador de Pelotas, fato que explica sua ausncia como eleitor na cidade porturia. Os outros dois, sem as
respectivas idades, esto ligados ao comrcio ultramarino e devem ser melhor analisados a partir dos dados apresentado na tabela 3:
Tabela 3 - Negociantes do comrcio ultramarino Proprietrio profisso Eleitores No. registro batismos 1 de de No. de de registro bitos 13 (1842-54)
Leite Exportador charque Exportador couro Jos Bento de Castro Exportador couro Guimaraens Porfrio Ferreira Importador de sal Nunes Exportador charque Joaquim Gonalves Importador de sal Casco Exportador charque Jos Moreira da Costa Importador de sal Sol Exportador charque Exportador couro Francisco da Silva Exportador Flores charque Exportador couro Joaquim de Freitas Exportador Vasconcelos charque Exportador couro Boaventura da Silva Exportador Vinhas charque Marcos Pradel Importador de sal Exportador couro Eufrzio Lopes de Importador de sal Arajo (baro de S. Exportador charque Jos do Norte) Exportador couro Joo Agostinho da Importador de sal Silva Exportador couro Antonio da Silva Exportador Ferreira Tigre charque Pablo Goicochea Importador de sal Exportador couro Antonio de Siqueira Importador de sal
3 1853/48a 1
12 (1817-51) 12 (1833-58)
4 (1855-8)
3 (1845)
3 (1851-63)
Os nomes, citados na tabela acima, podem ser considerados os principais comerciantes do Rio Grande. No trabalho sobre o comrcio do sal, Josiane Alves da Silveira (2006)
identificou os principais importadores de sal e exportadores de charque e couros. Vale lembrar que a venda do para o mercando interno tambm era considerada exportao de produto despachado do porto gacho. Em contrapartida, os exportadores de couro tinham suas remessas direcionadas para a Europa e Estados Unidos, isso evidencia a atuao de redes internacionais em Rio Grande, conectadas com os principais portos do Atlntico norte. Somente os trs primeiros nomes tinham registros nmeros de batismo ou bito, sendo que a maior parte registrou nmeros bem inferiores, sendo que, em sua grande maioria, tratava-se de bitos. Como a maioria no est registrada como eleitor em Rio Grande, tudo leva a crer que, eventualmente, algum escravo poderia ter falecido enquanto sua embarcao estava atracada na cidade. Como j foi falado, no comrcio, era mais freqente a contratao de alugueis de escravos ao invs da compra definitiva desse trabalho. Alm disso, muitas vezes, era necessrio um servio especializado para o reparo de navios, por exemplo, cuja demanda de servio era ocasional. Nota-se que um dos nomes mais conhecidos na poca, dono de uma das maiores fortunas Eufrzio Lopes de Arajo, baro de S. Jos do Norte, registrou somente dois bitos e era cidado nascido na cidade. Em sua biografia, no entanto, aparece tambm como pecuarista e proprietrio estancieiro, cujas terras podem ter sido adquiridas em perodo posterior dcada de 1850. (NEVES, p. 48) Nas tabelas de comrcio, Eufrzio tinha ligaes, principalmente, com o Rio de Janeiro e o Rio da Prata, caracterizando as redes do comrcio de charque, que atuavam basicamente no mercado interno, buscando, eventualmente, o produto uruguaio ou argentino para abastecer as cidades brasileiras. Outro nome com o mesmo perfil e com muitos carregamentos registrados o de Porfrio Ferreira Nunes, que apresenta um nmero maior de registros nos livros da Cria, 12 bitos. Outros nomes fazem parte de firmas mercantis, como a de Leite Guimares & Cia, Bento & Irmos, Casco & Irmos e Tigre & Irmo. As duas ltimas, Casco & Irmos e Tigre & Irmo, tinham um perfil semelhante aos negociantes de charque, citados, trazendo sal do Rio de Janeiro e enviando charque, no retorno. Enquanto que Leite Guimares & Cia e Bento & Irmos estavam envolvidos nas redes internacionais, com exportao de couros para os Estados Unidos e Europa. J o comerciante Jos Moreira da Costa Sol estendia seus negcios para o Rio de Janeiro e portos da Bahia e Pernambuco. Muitas vezes, essa amplitude facilitava negcios fraudulentos, conforme escreveu Mau, do Rio de Janeiro, para seu gerente, em Rio Grande,
sobre uma ao judicial movida pelo ento baro, entre 1860 e 1862, por negcios realizados no Nordeste. (Correspondncia, 1860-1861) A lista de nomes da tabela 3 evidencia o fato de que, em Rio Grande, riqueza no poderia ser medida somente pela propriedade de escravos porque esses comerciantes envolvidos nas redes de comrcio internacionais tinham sua fortuna acumulada na intermediao da produo de derivados do gado e integravam a elite dos negociantes de grosso-trato, conforme demonstrou Fragoso. (1992) No entanto, o comrcio de grosso estava nas mos, em sua grande maioria de firmas estrangeiras, cujas redes tinham uma amplitude global e, por isso, tinha maiores facilidade para garantir o escoamento das mercadorias produzidas e suprir as demandas, como no caso sal, de produtos vindos do exterior. A lista de negociantes estrangeiros, que atuavam Rio Grande, apresentada na tabela 4, confirma a insero do porto gacho nas redes mercantis internacionais: Tabela 4 Negociantes estrangeiros do comrcio ultramarino Proprietrio profisso No. registro batismos de de No. de de registro bitos 4 (1852-61)
Christiam H.Claussem
Importador de sal Exportador couro Frederico Pradel Importador de sal Exportador couro Marcos Pradel Importador de sal Exportador couro Adolfo Hugentobler Importador de sal Exportador couro Jansen & Preisch Importador de sal Exportador couro Hughes Brothers & Importador de sal Cia Exportador couro Lind & Cia Importador de sal Exportador couro Wigg Importador de sal J.F. Metzler Exportador couro Holland Davis & Cia Exportador couro Daisson & Lirou Exportador charque
A tabela acima revela que pelo menos cinco estrangeiros registraram batismo e/ou btio na Cria do Rio Grande, enquanto que os seis restantes no esto citados nos livros.
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O primeiro da lista, Christiam H.Claussem, tem registrado como cnjuge, Joana Manuela Rodrigues, e os quatro falecimentos so de escravos com idades que variam de 35 a 60 anos, com datas entre 1852 e 1861. Essas informaes confirmam as indicaes de que esse negociante alemo fixou residncia na cidade durante um largo perodo. Na seqncia, os dois Pradel somam seis batismos, e os batismos dos escravos de Frederico Pradel foram feitos na mesma data, em 6 de janeiro de 1845, de cativos com idades variando entre 9 e 16 anos, sendo dois homens e duas mulheres. Esse plantel pode ser um bom exemplo de uma criadagem domstica para um morador da cidade. Alm do mais, a ligao da firma de Marcos Pradel, normalmente, se dava com Marselha, cujos hbitos com criadagem escrava poderia ser mais comum, alm de associ-los a hbitos catlicos. A maior parte dos estrangeiros no possuem registros nos livros da Cria, o que pode explicado pela permanncia breve na cidade, muito entre os representantes de casas estrangeiras, cujos servios domsticos poderiam estar sob a coordenao de gerentes locais, que seriam os proprietrios dos serviais, ou ento havia a vontade de contratar pessoas livres, de acordo com o costuma do pas de origem. A seguir, ser apresentada a tabela de proprietrio de terras para que as informaes possam ser comparadas com as dos agentes mercantis.
Tabela 4 Proprietrios de terra Proprietrio profisso Eleitores No. registro batismos 27 4 19 9 6 20 13 de de No. de de registro bitos 77 (1806-62) 32 (1827-63) 31 (1818-56) 26 (1818-55) 26 (1826-55) 25 (1824-63) 23 (1830-59) 21 (1825-50) 18 (1814-55) 18 (1821-62) 17 (1825-58) 16 (1826-56) 11
Com-RG 54 proprietrio Antonio Martins de Freitas proprietrio Manoel Antonio Lopes proprietrio Domingos Vieira de Castro Proprietrio (2.vil) Jos Luis da Silva Comerciante proprietrio Antonio Teixeira de Proprietrio Magalhes comendador Jos Silveira de Azevedo Proprietrio Jos dos Santos Magano Proprietrio, (comendador) comerciante, Eleutrio Teixeira Carneiro proprietrio Manoel Pereira Bastos Proprietrio 2vil Antonio Correia de Mello Proprietrio Antonio Soares Pinto Proprietrio
1853/82a 1853/58a 1853/68a 1853/64a 1853/64a 1853/55a 1853/66a 1853/64a 1853/74a 1853/42a 1853/58a 1853/76a
7 3 5 4
Capitalista, estancieiro Antonio Cristovo da Rocha Proprietrio Manoel Teixeira Porto proprietrio Jos Antonio da Sylva proprietrio Jacinto Roque Ferreira proprietrio Angelo Pinto proprietrio/ criao Manoel Silveira de Azevedo proprietrio Carlos Cosme dos Reis Proprietrio 2vil Francisco de Miranda Proprietrio Ribeiro Francisco Silveira de proprietrio Azevedo Moizes Rodrigues de Arajo proprietrio Castro
1853/62a 1853/61a 1853/84a 1853/64a 1853/70a 1853/64a 1853/59a 1853/81a 1853/69a 1853/64a 1876/69a
A tabela soma 23 nomes de proprietrio de terra que registraram no mnimo dez batismos e/ou bitos na Cria do Rio Grande. A primeira caracterstica a grande quantidade de bitos frente aos batismos. Isso aparece com freqncia nos planteis posteriores a dcada de 1830, confirmando o largo uso da mo de obra escrava aps a disseminao das charqueadas. A pequena quantidade de batismo d conta da parca reproduo e da ausncia da famlia escrava, uma vez que a reconstituio do trabalha era realizada por meio da compra de africanos, pelo menos, at 1850, enquanto o trafico se manteve ativo. Todos esto identificados no livro de eleitores, o que leva a cr que suas propriedades estariam localizadas no espao rural do Rio Grande. Nesse caso, essa lista estaria contemplando os principais charqueadores riograndinos. importante lembrar que a historiografia d conta de que as estncias tinham um nmero reduzidos de escravos, em comparao com os grandes plantis, requerido pela indstria do charque. Observa-se que apenas um est identificado como estancieiro e um outro como criador. Na tabela, outro dado a ressaltar a idade avanada dos proprietrios e os registros cobre um longo perodo temporal. Tudo indica que os planteis foram sendo formados, ao longo do tempo, e mantidos com a compra de cativos africanos, uma vez que boa parte possui identificao da nao da qual so oriundos. As informaes sobre os proprietrios ainda esto em fase de levantamento de fontes, do mesmo modo que a identificao das atividades urbanas, entradas nos livros de eleitores.
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Na tabela a seguir esto relacionados os proprietrios de escravos, cujas profisses podem dar uma idia da diversidade da populao de uma cidade porturia.4
Tabela 5 - Outras profisses Proprietrio profisso Eleitores No. registro batismos 1 1 1 2 de No. de de registro de bitos 12 (1838-50) 5 (1842-59) 4 (1841-62) 4 (1848-59) 4 (1850-2) 4 (1850-7) 3 (1856-60) 3 (1828-46) 3 (1845-58) 3 (1823-30) 1853/35a 1853/39a 1853/25a 1853/37a 1853/24a 1853/49a 1853/35a 1853/58a 2.vilamen 1853/32a 1853/47a 1853/25a 1 (1837) 1 (1820) 1 (1852) 1 (1833) 1 (1863) 2 (1841-59) 2 (1841) 3 (1850-62) 2 (1859-62) 2 (1843-52) 2 (1845-7) 1 (1845) 1 (1846) 1 (1856)
Jos Gabriel Ferreira Jos Maria Gomes(pardo) Candido Alves Pereira Clemente Jos da Costa Joo Jos Gomes da Costa e Silva Jos Joaquim Soares Coimbra Bernardino Ferreira de Lemma Bernardo Machado da Cunha (brigadeiro) Jos Antonio
Cirurgiomr Mestre de barco Manoel Antonio de Freitas pescador Francisco de Paula Couto farmacutico Jos Dias de Menezes serralheiro Manoel Jos de Barros carpinteiro Manoel Rodrigues MestreRaimundo escola Antonio Jos Ferreira sapateiro Caetano Gomes de Souza alfaiate Francsico Antonio marceneiro Rodrigues Francisco Fernandes tanoeiro Joo Luis Lamas Contador Loureno Corra calafetor Manoel do Nascimento pedreiro Porfrio Canceiro de Lima capataz
Na elaborao da tabela acima, o objetivo foi, somente, o de apresentar a diversidade de profisses, no foi feita um levantamento quantitativo, nem foi ainda dimensionado a associao entre a quantidade de cativos e o tipo de trabalho. Na lista esto apresentados
4 A pesquisa e o levantamento de fontes esto sendo desenvolvidos pelo grupo de pesquisa, vinculadaa s linhas que estudam o comrcio e o escravismo.
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aqueles com maior nmeros de registros de batismos e bitos, sendo que a grande maioria est na faixa de um a dois registro de nascimento ou bito. O primeiro da lista aparece identificado apenas como empregado, porm, a quantidade de bitos d uma dimenso de que tinha rendas para adquirir tal plantel. Na poca o trabalho de agente mercantil poderia ser a justificao dessa riqueza, inclusive para trabalhar na firma e para as demandas ocasionais, em que poderiam ser alugados. Na seqncia, a funo de ourives e de advogado por s explicam a presena de escravos e de riqueza acumulada herdada, que, junto com o professor de letra e o cirurgio, necessitam de aprimoramento cultural, e somente uma famlia de posses poderia ter bancado a formao. Sob a rubrica de martimo h uma quantidade muito grande eleitores inscritos no livro de 1853 e no foi possvel ainda averiguar exatamente a funo exercida, o mesmo comentrio vale para a atividade de solicitador. Outras profisses que podem estar vinculados ao porto como o mestre de barco, pescador, calafetor, marceneiro, contador, carpinteiro, serralheiro. Por fim, aparecem as profisses que so caractersticas da cidade: alfaiate, pedreiro, tanoeiro, sapateiro e farmacutico. Restando apenas o capataz como exemplo de que o campo est presente na cidade.
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Para concluir esta primeira incurso no mundo da elite riograndina, cuja pesquisa encontra-se em andamento, necessrio refletir sobre questes que podem ser levantadas a partir dos dados apresentadas. Nesse primeiro momento, foram identificados os nomes mais significativos da elite riograndina. O prximo passo, deve ser a busca de informaes mais detalhadas das atividade econmicas e prticas polticas e sociais desses proprietrios. O objetivo maior construir um estudo prosopogrfico, cujo mtodo consiste em analisar os grupos econmicos por meio da investigao de caractersticas bsicas comuns a um grupo de indivduos atravs do estudo coletivo de suas vidas. (STONE, 1987, p. 45) Peter Burke realizou este tipo de estudo sociolgico das elites a partir de trs critrios: status, poder e riqueza. Uma das vantagens desse recorte horizontal a possibilidade de se observar a interao de fatores econmicos, polticos e culturais na vida de um grupo. (BURKE, 1991)
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No caso desta pesquisa, o estudo da elite riograndina teve como referncia a propriedade de escravos, que, em uma sociedade escravista, pode ser considerada uma medida de valor, alm do que, em uma sociedade dessa natureza, ser senhor era sinnimo de status social. Soma-se a isso a riqueza acumulada no comrcio de importao e exportao, cuja riqueza tambm representava poder e prestgio social, haja visto, a outorga de comendas e ttulos nobilirquicos a comerciantes de grosso trato. Em funo dessa diversidade, torna-se prudente estender o estudo para um perodo que supere uma gerao e seja possvel averiguar as mudanas ocorridas na transferncia de riqueza. Ainda que sejam consideraes preliminares, possvel afirmar que, em meados do sculo XIX, duas formas de acumulao estavam em processo de expanso: a produo industrial das charqueadas, e o comrcio de exportao do charque e do couro, e de importao do sal. Em alguns casos, as duas atividades poderiam estar nas mos dos mesmos agentes econmicos, porm, a atividade mercantil pressupunha mudanas culturais que estivessem em sintonia com os agentes inscritos nas redes mercantis regionais e internacionais. A prpria constatao dessa diversidade poderia j ser um sinal de uma mentalidade capitalista, tanto que um proprietrio de terras de uma famlia tradicional, como Domingos Faustino Corra, est identificado tambm como capitalista, e seu inventrio confirma o investimento em imveis na orla porturia. O seu plantel difere do restante da famlia por ter um nmero mais equilibrado de bitos frente ao de batismos. A pesquisa ainda est no incio para que outras inferncias possam ser realizadas sem o risco de se adiantar concluses sem base de sustentao. Porm, as primeiras indicaes revelam que um estudo das elites de Rio Grande pode trazer um novo quadro desta cidade que nasceu da desativao da colnia de Sacramento, recebendo muitos de seus habitantes, conforme consta nas folhas dos livros batismais, que podem ter trazido no somente riquezas mveis, como tambm toda uma rede de contatos j estabelecidos h dezenas de anos, para o acesso ao Rio da Prata.
BIBLIOGRAFIA BURKE, Peter Veneza e Amsterd. Um estudo das elites do sculo XVII. So Paulo: Brasiliense, 1991
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Correspondncia ativa, comercial do Baro de Mau. Originais com cpias datilografadas. 1860-1861 - IHGB, Doc. 10, Lata 513 FRAGOSO, Jos Lus Ribeiro - Homens de grossa aventura: acumulao e hierarquia na praa mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992 GORENDER, Jacob O escravismo Colonial. So Paulo: tica, 1978 GULARTE, Virgilina E. O processo de inventrio do Comendador Faustino Correa. Justia & Histria. Vol 1 n 1 e 2, 2001 GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espao pelotense. Pelotas: Ed. Universitria/UFPel, 2001 Histria Demogrfica. CDH/FURG Livro de eleitores - 1853. Arquivo da Prefeitura do Rio Grande: Coleo da Cmara Municipal MONTEIRO, Antenor de O. Os Homens do Segundo Vilamento do Rio Grande. RIHGRS,. Porto Alegre: 1947 (n 1054 a 108) NEVES, Dcio Vignoli das Vultos do Rio Grande. Rio Grande: Academia Rio-Grandina de Letras, tomo 3 O Rio-grandense. 1845-1854 QUEIROZ, Maria Luiza Bertuline A vila do Rio Grande de So Pedro. 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987 SILVEIRA, Josiane Alves da - Rio Grande: portas abertas para as importaes de sal no sculo XIX. Monografia de concluso de curso, apresentada na o Departamento de Biblioteconomia Histria, FURG, 2006 STONE, Lawrence The past and the present revisited. London and New York: Reutledge & Kogan Paul, 1987
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