Entre Campos Paul Gilroy
Entre Campos Paul Gilroy
Entre Campos Paul Gilroy
Wagner Vinhas1 A nossa interferncia sobre o trabalho de Paul Gilroy, no sentido de examinar no captulo I do seu livro Entre Campos: nao, culturas e o fascnio da raa, a discusso sobre o modo como os processos de identificao servem para falar de pertencimento, etnicidade e de nacionalidade. As identidades, segundo Gilroy, tanto servem para pensar as filiaes no modelo nacionalista como para organizar um mercado de consumo de bens especficos. Neste sentido, o uso do conceito de identidade abrange as conotaes de diferena e de similitude nos nveis mais fundamentais: nacional, racial, tnico, regional e local. A crtica de Gilroy se volta para o pensamento que elege a diferena e a similitude como formas totalizantes de identificao inscritas nos corpos e na subjetividade de seus portadores. Em sua reflexo sobre os processos de identificao, chama a ateno para a similaridade no interior da diferena e para a diferena no interior da similaridade, apostando na idia de dispora para explicitar o processo de disperso em oposio uniformidade. Sua proposta consiste em pensar as identidades a partir da ecologia social de identificao e que pressupe uma conotao contingencial tambm encontrada na noo de interao. Os usos e abusos do conceito de identidade tm sido correntes no governo e no espao de mercado. A sua aplicao explora questes bvias e simplistas entre as potencialidades que o termo pode suscitar para a reflexo crtica do que somos e o que queremos ser. A identidade vista como delimitada e particular, envolvida por uma compresso genealgica e geogrfica, o que liga grupos e pessoas a formas compartilhadas de origem comum e de pertencimento a um territrio.2 Na comunidade acadmica, o termo vem sendo empregado pela teoria social e da poltica moderna para enunciar certos usos recorrentes nos padres de incluso e excluso e na identificao de coletividades polticas, em particular nas suas conexes obrigatrias, assim como nas relaes de parentesco, mesmo que isso implique uma conexo imaginria. A distino
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Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, UFBA. E-mail: [email protected] 2 Durkheim em as Formas Elementares da Vida Religiosa concebe o mundo social a partir das diferenas, entre o profano e o sagrado, um mundo perpassado pela classificao e pela diferenciao. Pierre Bourdieu em O Poder Simblico discute como a identidade e o regionalismo esto imbricados, sendo uma forma de delimitar as fronteiras entre o Eu e o Outro.
tambm surge pela busca de estilos mais ativos de solidariedade, o que implica a delimitao de fronteiras em torno do grupo caso seja necessrio.3 As Naes como coletividades polticas, assim como Estados, movimentos de classe, esto entrelaadas por uma unidade coerente, no que Rousseau identificou como elementos criativos e audaciosos de grupos desorganizados e internamente divididos, e onde a identidade, como aspecto comum e unificador, parte importante da cultura poltica. Enfatiza, Rousseau, que os tipos de conexes das coletividades polticas so fenmenos histricos, sociais e culturais, e no naturais, especialmente ligadas a noo de lugar, localidade, linguagem e mutualidade. Gilroy salienta que o reconhecimento da similaridade e da diferenciao no interior das comunidades nacionais suscita questes polticas, culturais, psicolgicas e psicoanalticas, com destaque para os laos emocionais e afetivos da similitude raciolgica e tnica.4 A relao de pertena ainda nos conduz ao que leva a dissoluo ou abandono das individualidades em nome de um todo mais amplo relacionado com a idia de nao, raa ou etnia. Neste sentido, os espetculos da identidade, recorrentes no sculo XX, foram usados como estratgias de uniformidade humana ideal e no natural.5 Paul Gilroy exemplifica as tcnicas teatrais com os movimentos ultranacionalistas, e fascistas, e as estrias bblicas de construo da nao. Estas so encontradas onde esto operando as foras do nacionalismo, tribalismo e divises tnicas, e que foram inauguradas pelo fascismo e o nazismo na dcada de 1930.6 A identidade, na maneira como est sendo operacionalizada, deixa de ser um processo contnuo de construo do eu e de interao social para ser uma coisa a ser possuda e ostentada.7 Para Gilroy, a fixidez e a rigidez com que a identidade se faz
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importante pensar, por exemplo, a discusso que Barth faz em relao s fronteiras tnicas. Barth aceita a idia de que existem marcas de diferena que persistem no interior dos grupos tnicos, mas tambm aponta para possveis interaes entre esses grupos. Na interao as diferenas tendem a ser menor, o que implica no apenas critrios e sinais de identificao, mas tambm estruturas de interao. Em sua crtica ao conceito de etnicidade de Barth, Diego Villar questiona o modelo ecolgico e demogrfico da interao tnica, recorrendo s idias de institucionalizao e relaes de poder recorrentes nas fronteiras tnicas. VILLAR, Diego. Uma abordagem crtica do conceito de "etnicidade" na obra de Fredrik Barth. Mana, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, abr. 2004.Disponvel em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010493132004000100006&lng=pt&nrm=iso>. 4 Max Weber se refere a um tipo de organizao comunitria denominada por comunidades emocionais. Ver Economia e Sociedade: fundamentos da Sociologia Compressiva. Volume I. Braslia: Editora UNB, 1994. 5 Nestor Canclini em Culturas Hibridas, concebe os espetculos da identidade como uma forma de teatralizao poltica. As identidades so encenadas nos espaos pblicos, organizadas especialmente pelo Estado para celebrar a identificao da populao com os elementos de reconhecimento e pertencimento. Ver CANCLINI, Nestor. Culturas Hbridas. So Paulo: EDUSP, 1998. 6 Em seu livro A Inveno das Tradies, Eric Hobsbawn argumenta que no sculo XX, entre os anos de 1914 e 1930, foram criadas uma parcela significativa das tradies celebradas nos dias atuais. 7 interessante pensar, por exemplo, a oposio com a idia de identificao em Durkheim, construda, principalmente, por elementos comuns aos membros da comunidade. A solidariedade mecnica, marcada
presente, como particularidade de um campo nacional frente aos demais, coloca a alteridade como uma ameaa aos portadores do cdigo da diferenciao, apartando um grupo dos demais e diminuindo a ao individual ao ponto de torn-la (in)visvel. Segundo Gilroy, a diferena, como marcador de uma dessemelhana primordial, corrompe e compromete a identidade. A idia de uma cultura pura faz com que a diferena seja vista como fonte de diluio e comprometedora de suas purezas sobrevalorizadas. Diante da exaltao da similitude nas identidades nacionais e tnicas, a mistura um trao desconcertante, o hibrido passa a ser considerado partidrio de uma grande traio, sendo alvo de sentimentos odiosos e temerosos, por estarem entre a diferena e a familiaridade. A identidade, como aspecto da personalidade, tambm sente a presso dos sentimentos primordiais e variedades mticas de parentesco. A identidade individual cada vez mais moldada pelo mercado, modificada pelas indstrias culturais e instituies locais.8 A globalizao, como ruptura das fronteiras nacionais, evidenciou as caractersticas contingenciais dos padres difundidos em larga escala, exacerbando o nacionalismo e outras identidades tnicas e religiosas absolutistas. A identidade um porto seguro para falar de quem se e de onde se encaixe entre as demandas da comunidade e dos limites da obrigao social. A naturalidade das identidades confrontada por problemas sobrepostos e interconectados no uso mais rotineiro do termo. A primeira colocar a identidade como subjetividade. A desestabilidade provocada pela politizao do gnero e sexualidade recai sobre a formao e a reproduo social da masculinidade e da feminilidade. As transformaes provenientes de tais questes revelam como movimentos polticos e atividades governamentais so reconstitudas por mudanas de status e capacidade do Estado-Nao. Os bens materiais esto repletos de marcas representadas como verdades ntimas da existncia individual ou de fronteiras comunais da interao pblica e cvica. Os meios tecnolgicos adicionam a experincia individual algo que no est mais restrito ao corpo, e que tem nos novos recursos, como a Internet, outros modelos de uniformidade e unanimidade, como ocorre com a identidade poltica fascista onde a supremacia branca constituda
pela pouca diferena dos signos de identificao, praticamente apaga as individualidades do convvio social, dando lugar s formas de identificao institucionalizada e mais facilmente relacionada com o comportamento em grupo. 8 Para Homi Bhabha, as identidades so formadas entre o performtico e o pedaggico. O primeiro como fonte de novos significados, so formas no institucionalizadas e mais abertas s individualidades, sendo que o segundo orquestrado pelas instituies locais, escolas, museus, mdia, entre outros. Trata-se daqueles discursos totalizantes e primordiais de reconhecimento e pertencimento mtuo. Ver BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
de modo remoto e transnacional.9 A intensificao das trocas por meios computacionais coloca tal qual uma questo para a identidade, a influncia da intersubjetividade na construo do eu, expressos por meios externos, conflituosos e excludentes, tema recorrente da sociologia, psicologia e mesmo da psicanlise, coloca aquela perturbadora escolha do que deve ser considerado o mesmo e tambm o diferente. Pela influncia da intersubjetividade o outro no aparece mais como entidade unitria e ameaadora, mas como parte do eu desestabilizado por entrelaamentos mutveis com as histrias, as experincias, auto-representaes de outros sujeitos; com seus textos, condutas, gestos, objetificaes.10 Paul Gilroy formula uma questo para problematizar os limites desta entidade chamada o eu, diante do que torna possvel a solidariedade, os laos entre o eu deslocado pela experincia com o mundo, e o chamado processo de identificao. Seus questionamentos abrangem o modo como o conceito de identidade pode falar sobre solidariedade social e poltica, e tambm dos agentes individuais em grupos que se tornam atores sociais. Para Gilroy so as noes modernas, como as idias especficas de identidade tnica, racializada e nacional, e seus equivalentes cvicos, em conjunto com discursos de cidadania, que mobilizam movimentos de massa e eleitorais. As tecnologias de comunicao e informao contribuem para a constituio da solidariedade e da conscincia nacional.11 No discurso de posse do presidente Nelson Mandela, Gilroy v uma relao entre natureza e ecologia da humanidade. Em suas palavras, o presidente elege o territrio como um lugar comum entre brancos e negros, reala a dinmica scioecolgica de pertencimento e da responsabilidade com um mesmo solo. O que se espera pensar a identidade em movimento, sem um lugar definido, com novas bases de solidariedade e ao sincronizada. Seriam ento essas as bases usadas para pensar a histria desterritorializada da dispora africana. Seriam a liberdade poltica e a autonomia individuais partes do destino preconizado por um povo escolhido para encontrar a redeno moral. Em discurso Martin Luther King recorreu mitologia bblica para falar como o negro norte-americano se v obrigado a romper seus laos
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Stuart Hall em seu livro A identidade cultural na ps-modernidade, descreve um processo de identificao, denominado de identidades partilhadas, atravs do fluxo de bens e servios, mensagens e imagens, entre pessoas que esto espacialmente e temporalmente distantes. Ver HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Traduo: Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, DP&A, 2005. 10 Citando Freud, Stuart Hall fala de uma falta de inteireza do sujeito, o que torna a experincia individual uma busca por quem e o que quer ser. Ver. Op.cit (Hall, 2005) 11 Para a sociologia, o termo solidariedade tem uma expresso bem definida, falar dos laos entre os membros de uma sociedade, o que os faz colaborarem entre si, seguir regras estabelecidas e o sentimento de pertencimento com a comunidade.
com o Estado que no lhe garante direitos sociais. A identidade constituda pelas histrias de vitimao recorrente em vrios lugares, na Amrica, com o negro em busca de reparaes histricas, ou nas manobras dbias que aparecem da Palestina Bsnia. As narrativas trgicas estiveram presentes na construo e reproduo da crena fatdica de identidades religiosas, nacionais e tnicas. Para Gilroy, as histrias de sofrimento no deveriam ser alocadas apenas entre as vtimas, mas tambm entre aqueles que se beneficiaram diretamente ou indiretamente da aplicao racional da irracionalidade e da barbrie.12 Para Gilroy, a experincia diasprica pode ajudar a entender a identidade africana no mundo ocidental. Textos produzidos por Equiano, Sancho e Wheatley, so apreenses sofisticadas do sincretismo, da adaptao e da intermistura culturais. Isso porque nas publicaes dos escritores diaspricos aparecem os efeitos da relocao, deslocamento e transio dos cdigos e hbitos culturais, lingsticos e religiosos, compartilhados por uma gerao que sofreu o trauma da travessia forada do Atlntico.13 Na produo literria de Equiano, por exemplo, se observa a negociao entre esses mundos, do horror em relao violncia, aos abusos, as injustias e as exploraes, mas tambm demonstra a experincia significativa de afeio e intimidade para com os seus senhores. Junto com outros escritores da dispora negra, utilizou a f crist para denunciar o trfico imoral de seres humanos, construindo a sua crtica atravs de elementos discursivas da prpria cultura hegemnica. Suas construes discursivas buscam romper com os limites das caractersticas especficas, como ocorre no caso do fentipo, em prol de algo maior e que estaria reunido na f em Cristo. A experincia de Equiano, atravs de uma releitura da escravido pelos ditames da f crist, elege a escravido como uma prova til do alcance da sabedoria atravs do sofrimento. As reflexes dos escritores diaspricos, como Equiano e Wheatley, servem para confrontar a idia de naes constitudas como campos, enraizadas em seu solo, mas tambm imperiais em suas prticas, com a experincia itinerante das aventuras transnacionais. Uma alternativa para o parentesco primordial e de pertencimento enraizado pode ser encontrada na idia de dispora.14 A dispora um conceito que problematiza
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Em conferncia em 2007, Gilroy fala que a discusso do racismo deve ser usada para que seus praticantes sintam vergonha da sua irracionalidade e da sua barbrie. Conferncia realizada pelo CEAO em outubro de 2007. 13 Homi Bhabha fala de um processo denominado por Traduo. A experincia diasprica est envolvida pela interao entre cdigos e hbitos da terra de origem e de pertencimento. Ver BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. 14 Para Stuart Hall, a dispora um conceito histrico, inicialmente utilizado para falar da disperso do povo judeu e que vendo utilizado na anlise da disperso dos povos durante e ps o perodo colonial. Ver
a mecnica cultural e histrica do pertencimento. O conceito confronta a idia fundamental entre identidade, lugar, localizao e conscincia, como invocao da memria comum, ressaltando os aspectos dinmicos da contingncia da comemorao. Sua aplicao serve para abordar os processos e as formas interculturais e transnacionais, atravs de uma rede relacional regida pelos fatores de impulso e que influenciam a reproduo da conscincia identitria. A identificao da dispora existe muitas vezes por fora e em oposio com as formas e os cdigos da cidadania moderna. Oferece, por outro lado, meios de avaliar a importncia da disperso em oposio uniformidade, votando-se para a contingncia, a indeterminao e o conflito. Pode favorecer para que na teia ou na rede surjam novos entendimentos do eu, similaridade e solidariedade, no sendo, no entanto, estgios sucessivos de um relato genealgico. Sugerem um modo diferente de atuao micropoltica praticada em culturas e em movimentos de resistncia e transformao,15 criando novas possibilidades e prazeres quando se reconhece os efeitos do deslocamento espacial na transformao da questo de origem. A chave para a compreenso da identidade na dispora a interao. O mesmo mutante de Leroi Jones o mesmo no reificado e permanentemente reprocessado. Trata-se de formas culturais criolizadas, sincretizadas, hibridizadas e cronicamente impuras, sendo ele o mesmo presente, sem, no entanto, imagin-lo como outra coisa que seja uma essncia. So formas que nos desafiam empreender a cultura atravs da reconciliao com o movimento e variao complexa e dinmica. Gilrou v nos msicos, danarinos e artistas negros, os agentes de reflexes, estilos e prazeres veiculados pela indstria cultural. O que se entende por simples mercadorias so formas de transmisso tica e poltica dos direitos, justia e democracia, assim como transcende a tipologia racial moderna e as ideologias de supremacia branca. Bob Marley emblemtico para situar a importncia dos recursos tecnolgicos durante e aps a vida do artista, favorecendo ao estudo dos circuitos culturais complexos de uma rede de teias constitudas por mltiplos pontos de interseo.16 Suas msicas encontram novos pblicos ansiosos por reflexes, grupos jovens em vrias partes do mundo ligam as idias de liberdade e direitos em toda frica, Pacfico e America Latina, sendo que a
HALL, Stuart. Da Dispora: Identidades e Mediaes Culturais. Org.Liv Sovik. Trad. Adelaine La Guardia Resente, Ana Carolina Escosteguy e at. all. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. 15 Michael Foucault sugere que o estudo das relaes de poder deve partir dos movimentos de resistncia, sendo eles formas contra-hegemnicas de um poder institudo, pode revelar o poder atravs dos meios que lhe fazem resistncia. 16 Martn Barbero considera a emergncia da comunicao de massa como fator para o surgimento da visibilidade de grupos marginalizados e minoritrios. Ver MARTN-BARBERO, Jess. Dos meios s mediaes: comunicao, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
sua produo pode favorecer as reflexes sobre status da identidade, similaridade, subjetividade e solidariedade.