CALDEIRA Teresa A Cidade de Muros Completo
CALDEIRA Teresa A Cidade de Muros Completo
CALDEIRA Teresa A Cidade de Muros Completo
Cidade de muros
Crime, segregao e cidadania em So Paulo
Editora 34 Ltda.
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Cidade dl' muros O Tertsa Pires do Rio Caldeira, 2000
Imagem da capa Sambaphoto/Crisriano Mascaro
Cidade de muros foi publicado originalmente em ingls, pela Universiry of California
l'rcss, com o ttulo Cit y o( walls: crime, segregation atul citiunship itt So POJtlo (2000)
A FOTOCPIA 1)1;. QUALQUER FOLHA t>F.sTI: tJVRO I lEGAL, E CONFIGIJR.> liMA
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229b. 238n. 246a. 246b. 295a, 29.'ib, 1.98n. 298b. 298c, 299a. 299b. 299c, 3 / Ba.
3 / Sb}: Teresa Pires do Rio Caldeira e }ames Holston (pp. 221c. 238b. 296a. 296/J.
296c. 196d. 300a. JOOb. JOOc. 3 / 8c)
I Edio 2000; 2' Edio 2003
Catalogao na Fume do D<.-panarnenro Nacional do l.ino
(Fundao Biblioteca l':acicmal, RJ, Brasil)
ldtiu. Ttrn..a l)ire-s drt Rio
C146c Cld;.de de mu11>"1: c ...
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fr.mL:: de Oliv('lf'.l e I fcnnquc S.io f
1
.1ulo:
Ed. 34 f l'.dusp. 1000.
400 p.
ISBN 85-- 316-1889 (l. H l f (luspl
I. Criffl<'s e criminosos
Slo Paulo (SPJ. 1. Violcnci l'>ulo !SP).
3. Cod>dono> So P>ulc> ISP). I. Titulo.
CDD 307.-609816 1
CIDADE DE MUROS
Crime, Segregao e Cidadania em So Paulo
lnt rodU<;o .............................. ..... .. ... ........ ..... ........................... . 9
Pn tc 1 A t '' ' -' Del C lli\! F
I r alando do Crime c OrdcnandD l) Mundo ............ , ........ .... 27
2. A Crise, os Criminosos e o Mal ...................... ................ ..... 57
Parte fi. 0 CRIME VIOLENTO E A FALENC!A DO ESTADO DE DIREITO
3. O Aumento do Crime Violento...... ...................................... 101
4. A Polcia: uma Longa Histri a de Abusos ..................... ....... L35
5 Violncia PoliciJ I e Democracia
Parte Ill. SFC.RF.C,\ JiO URBr\"'' E:-<CLAVES FORTIFI C:\IlO:> E
ESPAO PBI.ICO
I 'i ?
6. So Paulo: Trs Padres de Segregao Espacial . ................. 2 1 J
7. Enclaves Fortificados: Erguendo Muros e
Criando uma Nova Ordem Pri vada .................................. 257
8. A Imploso da Vida Pblica Moderna ...................... ........... 301
Parte IV. V!Ol t i'CJ:\, D IREITOS CIVIS E O CORJ)O
9. Violncia, o Corpo lncin::unsniro c o Desrcspciw aos
Direitos na Democracia Brasileira, ., .... , ... , .... ...... ,.., ....... 343
Apndice ........................................................... ......................... 379
Agradecimentos...................................... .... ............................... 381
Bibliografia ........ .............. .......................................................... 385
Para Jim,
explorador de cidades, reais e imaginrias.
INTRODUO
A violncia e o medo combinam-se a processos de mudana social nascida-
des contemporneas, gerando novas formas de segregao espacial e discriminao
social. Nas duas lt imas dcadas, em cidades to diversas como So Paulo, Los
Angeles, j ohannesburgo, Buenos Aires, Budapeste, Cidade do Mxico e Miami,
diferentes grupos sociais, cspecialmcme das classes mais altas, rm usado o medo
d:1 violncia e do crime para justificar t anto novas tecnologias de excluso socia l
quanto sua retirada dos bairros t radicionais dessas cidades. Em geral, grupos q ue
se senrem ameaados com a ordem social que toma corpo nessas cidades constroem
enclaves fortificados para sua residncia, trabalho, lazer e consumo. Os discursos
sobre o medo que simultaneamente legitimam essa retirada e ajudam a reproduzir
o medo encontram diferentes referncias. Com freqncia, dizem respeito ao cri-
me c especialmente ao crime vio lento. Mas eles tambm incorpora m preocupaes
raciais e tnicas, preconceitos de classe e referncias negativas ao pobres e margi-
nalizados. Invariavelmente, a circulao desses discursos do medo e a proliferao
de prticas de segregao se entrelaam com outros processos de transformao
social: transies democrticas na Amrica Latina; ps-apartheid na frica do Sul;
ps-socialismo no leste europeu; t ransformaes tnicas decorrentes de intensa
imigrao nos Estados Unidos. 1 o entanto, as fo rmas de excluso c encerramento
sob as quais as atuais transformaes espaciais ocorrem so r o generalizadas que
se pode trat-las como parte de uma frmula que eli tes em todo o mundo vm ado-
rando para reconfigurar a segregao espacial de suas cidades.
Este liv.ro focal iza o caso de So Paulo e apresenta uma anlise da forma pela
qual o crime, o medo da violncia e o desrespeito aos direitos da cidadania tm se
combinado a transformaes urbanas para produzir um novo padro de segrega-
o espacial nas duas ltimas dcadas. Esse o perodo da consolidao dcmocr-
dca. O crescimento do crime violento em So Paulo desde meados dos anos 80 gerou
medo e uma srie de novas estratgias de proteo e reao, dent re as quais a c::ons-
t ruo dos muros a mais emblemtica. Tanto simblica quanto materialmente,
essas estratgias operam de forma semelhante: elas estabelecem diferenas, impem
divises e distncias, constroem separaes, multipl icam regras de evitao e ex-
cluso e restringem os movimentos. Muitas dessas operaes so just ificadas em
conversas do dia-a-dia cujo tema o que chamo de fala do crime. As narrativas
cotidianas, comentrios, conversas e at mesmo brincadeiras e piadas que tm o crime
como tema contrapem-se ao medo e experincia de ser uma vtima do crime c,
ao mesmo tempo, fazem o medo proliferar. A fala do crime promove uma reorga-
nizao simblica de um universo que foi perturbado tanto pelo crcscimenro do crime
quanto po r uma srie de processos que vm afetando profundamente a sociedade
Cidade di.' Muros 9
brasileira nas ltimas dcadas. Esses processos incluem, por um lado, a democrati-
zao poltica e, por outro, a inAao, a recesso econmica e a exausto de um
modelo de desenvolvimento baseado em nacionalismo. subsriruio de importaes,
protecionismo e na acentuada interveno do Estado na economia. O universo do
crime oferece imagens que permitem ramo expressar os sentimentos de perda c
decadncia social gerados por esses outros processos. quanto legitimar o tipo de
reao que se vem adorando: segurana privada para garantir o isolamento, encer-
ramenro e distanciamento daqueles que so considerados perigosos.
A fala do crime constri sua reordenao simblica do mundo elaborando
preconcei ros c naturalizando a percepo de certos grupos como perigosos. Ela, de
modo simplista, divide o mundo enrre o bem e o mal e criminal.iza cerras catego-
rias sociais. Essa criminalizao simblica um processo social dominante e to di-
fundido que at as prprias vtimas dos esteretipos (os pobres, por exemplo) aca-
bam por reproduzi -lo, ainda que ambiguamente. Na verdade, o universo do crime
(ou da transgresso ou das acusaes de mau comportamento) oferece um contex
to frtil no qual os esteretipos circulam e a discriminao social moldada - no
apenas em So Paulo, mas em qualquer lugar. Obviamenre, esse universo do crime
no o nico a gerar discriminao nas sociedades conremporneas . . o entanro,
sua investigao i: especialmente importante porque ele fomenta o descnvolvimen
to de dois novos modos de discriminao: a privarizao da segurana e a recluso
de alguns grupos sociais em enclaves fortificados. Esses dois processos esto mu-
dando as noes de pblico e de espao pblico que at bem recentemente predo-
minavam em sociedades ocidentais.
A privarizao da segurana desafia o monoplio do uso legtimo da fora pelo
Estado, que rem sido considerado uma caracterstica definidora do Estado-nao
moderno (cf. Weber 1968: 54-6, e tambm Ti lly 197 5 e Elias 1994 [ 1939]). 1 as
ltimas dcadas, a segurana tornou-se um servio que pode ser comprado e ven-
dido no mercado, alimentando uma indstria altamente lucrativ:l. Em meados dos
anos 90, o nl' 1mero de vigilann:s empregados em segurana privada ultrapassou o
de policiais em quase trs vezes nos Esrados Unidos e em cerca de duas vezes na
Grii-Bretanha e no Canad (Unitcd Srares Housc 1993: 97, 135; Bayley e Sheriog
1996: 587). Cidados des cs c de muitos outros pases dependem cada vez mais da
segurana privada no s para a proteo em face do crime mas rambm para iden-
tificao, triagem, controle e isolamento de pessoas indesejadas, exatamente aque-
las que se encaixam nos esteretipos criados pela fala do crime.
Em So Paulo, a privati?.ao da segurana est crescendo, mas at agora o
contingente de vigilantes oficialmente no ultrapassou o de policiais. No entanto,
ela assume uma caracterstica mais perversa e preocupante no contexto de amplo
descrdiro das instituies da ordem -as foras policiais e o sisrema judicirio.
Porque estes so vi ros como ineficientes e sobretudo porque, mesmo sob um regi-
me democrtico, a polcia freqentemente age fora dos limites da lei, cometendo
abusos e executando suspeitos, um nmero crescente de morado res de So Paulo
rem optado por servios de segurana privada (freqentemente irregulares ou at
explicitamente ilegais) e chegam a optar por just ia privada (seja por meio de jus-
ticeiros, seja por aes policiais exrralegais). u m s vezes, esses servios privarizados
lO Teresa l'1res do Rio C:!ldcira
contrariam, ou at violam, os direitos dos cidados. No entanto, essas violaes so
toleradas pela populao, que em vrias ocasies considera alguns direitos de ci-
dadania no importantes e at mesmo censurveis, como fica evidente na questo
do ataque aos direitos humanos que analiso nos captulos subseqentes.
Essa ampla violao dos direitos de cidadania indica os limi tes da consolida-
o democrtica e do estado de direito no Brasil. O universo do crime no s reve-
la um desrespeito generalizado por direiros c ,idas, mas tambm diretamente des-
legirima a cidadani:1. Esse desrespeito pelos direitos individuais e pela justia represen-
ta o principal desafio expanso da democracia brasileira para alm do sistema
poltico, onde ela foi consolidada nas ltimas dcadas. Mas a privatizao da segu-
rana tambm apresenta um desafio para democracias tradicionais e consolidadas,
como a dos Estados Unidos, na medida em que seus cidados cada vez usam
segurana privada e enclaves privados e estruturam suas vidas cotidianas de for-
mas que excluem a presena de servios e autoridades pblicas, deslegitimando-os.
O novo padro de segregao urbana baseado na de enclaves forti fi-
cados representa o lado complementar da privatizao da segurana e transforma-
o das concepes do pblico. Embora a segregao tenha sido sempre uma ca-
racterstica d:1s cidades, os inst rumentos e regras que a produzem mudar:1m consi-
deravelmente ao longo do tempo. Obviamente, eles tambm mudam de cidade para
cidade, conferindo a cada uma sua identidade particular. No entanto, possvel
identificar padres de e segregao espacial e seus instrumentos. Esses
padres constituem repertrios dos quais as mais diversas cidades tomam elemen-
tos para moldar seus espaos. H muitos exemplos desses modelos :1m piamente di-
fundidos e que servem como a estrutura bsica sobre a qual diferentes cidades de-
pois desenvolvem seus espaos: a Lei das ndias, as ruas-<:orredores, os bulevares
de Ha ussmann, as cidades-jardins e a cidade modernista dos CIAM.
1
Os enclaves
forti ficados que esto transformando cidades contemporneas como So Paulo
exemplificam a emergncia de um novo padro de organizao das diferenas so-
ciais no espao urbano. t um modelo que vem sendo empregado pelas classes m-
dias c altas nos mais di,ersos pases, gerando wn outro tipo de espao pblico e de
interaes dos cidados em pblico. Esse novo modelo usa instrumentos total-
mente novos nem em termos de projeto nem de localizao. Diversas caractersti-
cas de projeto so modernistas, e os enclaves normalmente localizam-se nos subr-
bios, onde as classes mdias j vm se isolando h um bom tempo em vrias panes
do mundo. Porm, o novo modelo de segregao separa grupos sociais de uma for-
ma to explcita que transforma a qualidade do espao pblico.
Os enclaves fortificados so espaos privarizados, fechados c monitorados,
destinados a residncia, lazer, trabalho e consumo. Podem ser shopping ccntcrs,
1
A Lei das !ndias foi proclamada em 1573 por Filipe 11 da Espanha por.o esr.l bclccer r<'gr3S
uniformes para o de cidades a serem criadas nas colnias esponholas. Ver capitulo
8 sobre o moddo das cidades-jardins. CIAM refere-se aos Congrs lnrernauonaux d r\rchirecturc
que criaram a referncia p.ctro o planejamento de cidad<'s modernistas. Brosilio foi ins-
pirodo nesse modelo (\ er Holston 1989).
Cidade de Muros 11
conjuntos comerciais e rmpresariais. ou condomnios residenciais. Ek-s atraem aque-
les que temem a heterogeneidade social dos bairros urbanos mais antigos e prefe-
rem abandon-los para os pobres, os os sem-reto. Por serem espao
fechados cujo acesso controlado privadameme, ainda que tenham um uso coleti-
,.o e semipblico, eles transformam profundamente o carter do espao pblico.
Na verdade, criam um espao que conrradiz diretamente os ideais de heteroge-
neidade. acessibilidade e igualdade que ajudaram a organizar tanto o espao p-
blico moderno quanto as modernas democracias. Privarizao, cercamentos, poli-
ciamento de fronteiras e tcnic:1s de distanciamento criam um outro ripo de espao
pblico: fragmentado, articulado em termos de separaes rgidas e segurana so-
fisticada, e no qual a desigualdade um valor estruturante. No novo tipo de espa-
o pblico. :1s diferenas no devem ser postas de lado, tomadas como irrelevantes,
negligenciadas. em devem rambm ser disfaradas para sustentar ideologias de
igualdade universal ou de pluralismo cult ural. O novo meio urbano refora e valo-
riza c e , ponanro. um espao pblico no-democrtico
e no-moderno. O fato de esse tipo de organizao do espao pblico se espalhar
pelo mundo inteiro no momento em que muitas sociedades que o adotam passam
por transformaes como dcmocratiz.1o poltica, fim de regimes racistas e crescente
resultante de nuxos migratrios, indica a complexidade das liga-
es entre form:1s urbanas e formas polticas. Alm disso, indica que o espao ur-
bano pode ser a arena na qual a democrarizao, a equalizao social e a expanso
dos direitos da cidadania vm sendo contestados nas sociedades contemporneas.
Dessa forma, este livro analisa o modo pelo qual a desi!;,oualdade social reproduzida
em cidades contemporneas c como essa reproduo contradiz processos que, em
teoria, deveriam eliminar discriminao e autoritarismo. O fato de que cnclaves for-
tificados e privados so uma caracterstica tanto de Los Angeles como de So Pau-
lo e Johannesburgo nos impede de classificar o novo modelo como uma caracters-
tica apenas de sociedades ps-coloniais. O novo modelo que eles representam pa-
rece ter se disseminado amplamente. Os desafios que ele apresenta para a demo-
cracia e a cidadania no se restringem s sociedades democratizadas recememcnre.
Este livro e divide em quatro p:1nes. A Pane I trata da fala do crime. o
captulo I , analiso :lS estruturas de narrativas de crimes e a maneira pela qual elas
simbolicamente reorganizam o mundo desesrruturado por experincias de crime.
Fao mmbm um breve resumo d:1s transformaes polricas, sociais c econmicas
no Brasil dos anos 80 c 90. O caprulo 2 trata de alguns dos temas especficos arti-
culados pela fal:1 do cri me: a crise econmica dos anos 80 e 90, o fim da er:1 de
progresso c mobilidade social , as imagens do criminoso e dos espaos do crime, e
as concepes sobre :1 dissemin::to do mal e de seu controle por instituies e
autoridades fortes.
A 11 trata do crime c das instituies da ordem. No 3.
estatsticas de crime para demonstrar o crescimento do crime violemo aps mea-
dos dos anos 80. O capitulo 4 traa a histria das foras policiais brasileiras e mosrra
seu rotineiro abuso do poder. em relao s camadas dominadas. O
captulo -continua a an:lise dos abusos policiais, demonstrando como eles aumen-
12 Tert-sa Pires do Rio Caldeira
taram durante a transio para o regime democrtico e sua consolidao iniciada
nos anos 80. Esses abusos esto associados generalizada descrena na justia c
adoo de medidas violentas e privadas de segurana {que a judam a expandir a
indstria da segurana privada) pela populao. Alm disso, essa associao con-
tribuiu para a persistncia da violncia e a eroso do estado de direito. Os abusos
por parte da polcia, as dificuldades da reforma da polcia, a deslcgitimao do sis-
tema judicirio e a privatizao da segurana geram o que chamo de "'ciclo da vio-
lncia". Esse ciclo constitui o desafio principal consolidao da democracia na
sociedade brasileira.
A Parte 111 analisa o n0\'0 padro de segregao urbana. Ela indica como dis
cursos e est ratgias de proteo se entrelaam com transformaes urbanas para
criar um novo modelo de segregao baseado em encerramentos e um novo ripo
de espao pblico. O captulo 6 apresenta a histria da urbanizao de So Paulo
durante o sculo XX e seus trs padres de segregao com especial aten-
o para as transformaes recentes. O captulo 7 cnfoca os enclaves fortificados
que consriwem o ncleo do novo modo de segregao. Exploro especialmente s ua
verso residencial, os condomnios fechados. Tambm discuto as dificuldades em
se organizar a vida social dentro de muros e como uma esttica da segurana tor-
nou-se domin:mtc na cidade nos ltimos vinte anos. Finalmcntt, o capmlo 8 ana-
lisa as mudanas no espao pbl ico e na qualidadt da vida pt'1blica que ocorrem
numa cidade de muros. O novo padro de segregao espacial mina os valores de
acessibilidade, liberdade de circulao e igualdade que inspiraram o tipo moderno
de: espao pblico urbano e o substitui por um no,o tipo de pblico que rem a de-
sigualdade, a separao c o controle de fronteiras como valores estruturantes. Los
Angeles serve como comparao para demonstrar que o padro de segregao ins-
pirado por esses valores j est de faro disseminado.
A Parte IV tem um captulo no qual analiso um aspecto crucial da disjuno
da democracia brasileira: a associao de ,iolncia, desrespeito pelos direitos civis
e uma concepo do corpo que chamo de corpo incircunscriro. Baseio meus argu-
mentos na anlise de dois temas que emergiram depois do incio do regime demo-
crtico no incio dos anos 80: a oposio generalizada aos defensores dos direitos
humanos c uma campanha para a incluso da pena de morte na Constituio bra
sileira. Nesses debates, um tema principal o limite (ou a falta de limite) para a
interveno violenta no corpo do criminoso. Sugiro que noes de direi tos indivi-
duais esto associadas a concepes do corpo c indico que no Brasil h uma gran
de tolerncia em rel:lo o manipulaes do corpo, mesmo que violentas. Com base
nessa associao, argumento que essa tolerncia, a proliferao da violncia e a
dcslegitimao da justia e dos direitos civis esto intrinsecamente ligados.
A pesquisa na qual se baseia este estudo foi feita emre 1988 e 1998 e apia-se
numa combinao de merodo logias e tipos de informae . A obser vao partici-
pante, normal mente considerada o mtodo por excelncia de um esrudo ernogrfico.
nem sempre foi vivel para este estudo, por wna srie de razes. Primeiro, difcil,
quando no impossvel, c<;tudar a ,iolncia e o crime por meio da obsenao par-
t icipante. Segundo, a unidade de anlise para o estudo de segregao espacial ti
Cidade de .\lluros l3
nha de ser a regio metropoli tana de So Paulo. Urna rea urbana com 16 milhes
de habitante no pode ser estudada com um mtodo concebido para o estudo de
aldeias. Poderia estudar bairros, como os antroplogos freqentemente tm feito
em cidades e como fiz em pesquisas anteriores na periferia. No entanto, no estava
especialmente interessada na crnografia de diferentes reas da cidade, mas sim na
anlise ctnogrfica de e'l:perincias de violncia e segregao, e estas no podiam
ser estudadas do mesmo modo em bairros diferentes. Enquanto os bairros da peri-
feria ainda tm uma vida pblica e so relati,ameme abertos observao e p.lrti-
cipao, nos bairros residenciais das classes mdia e alta a vida social inreriorizada
e privatizada e h muito pouca vid:1 pblica. Como nesses bairros os observadores
so vistos com suspeita e t ornam-se alvo dos servios de segurana privada, a ob-
servao participante no vi,el. Usar observao participante em reas pobres e
outros mtodos em reas ricas significaria "'primirivizar" as classes trabalhadoras
c negligenciar as relaes entre classe e espao pblico. Por fim, porque estava in-
teressada num processo de mudana social que s podia ser marginalmente captu
rado no momento da observao, tive necessariamente que usar outros t ipos de
informao.
Fo i necessrio, enro, mo de uma combinao de mtodos e tipos de
informao. Para entender o crime violento, analisei est atsticas do crime e investi
guei a histria das foras policiais de modo a revelar como sua prtica est interli-
gada reproduo da violncin. Para analisar as mudanas em padres de segrega-
o espacial, recuperei a histria da urbanizao de So Paulo usando indicadores
demogrficos c sociocconmicos produzidos por diferenre rgos estatais ou ins-
tituies acadmicas. Para caracterizar o novo estilo dos condomnios fechados,
analisei anncios imobili:rios publicados em jornais. Apesar de esses e outros m-
todos e fontes de dados terem proporcionado informaes sobre macroprocessos
de mudana, eles no podiam dizer muito a respeim de como os paulistanos esta
,am vivendo esses processos. Para este entendimento, utiliz.ei entrevistas abertas com
moradores. Tambm usei os jornais como fonte para os debates sobre direitos hu-
manos c pena de mone. Finalmente, enrre,istei polticos e administradores, ativistas
de direitos humanos, jornalistas e represenranres do setor de servio de seguran-
a, seja em empresas privadas, seja em enclaves fortificados. Recorri tambm minha
prpria exper incia e a minhas lembranas como moradora de So Paulo para dis-
cutir algumas de suas transformaes. A maior parte das entrevistas foi feira entre
1989 c 1991.
A pesquisa que deu origem a este livro investigou experincias de medo e cri-
me em vrias classes sociais e suas relaes com processos de mudana social. A
incorporao da perspectiva de vrias classes fundamental na concepo dessa
pesquisa, por trs razes inter-rei:Jcionadas: por tratar-se de um esmdo de segrega-
o social e espacial: porque as desigualdades sociais so agudas em So Paulo; e
porque a violncia um fenmeno amplamente difundido, que tanto atravessa as
linhas de classe quanto torna as diferenas de classe mais agudas. Concenrrar a
pesquisa num nico grupo social ou numa nica rea da cidade significaria limitar
a compreenso de fcnmenos que afetam fundamentalmente as relaes entre gru-
pos e as maneiras pelas quais tanto os e paos quanto as possibilidades de interao
14 Pires do Rio Caldcirn
entre pessoas de diferemes classes sociais esto estruturadas na cidade. Alm disso,
para apreender a diversidade de experincias de violncia e crime e entender como
as medidas de proteo ajudam a reproduzir a desigualdade social e a segregao
espacial, tive que investig-las em contextos sociais diversos.
Embora pudesse ter reali1ado entrevistas por toda a regio met ropolit::tn:l,
decidi concemr-las em trs reas da cidade ocupadas por de diferentes
classes sociais. Para realizar entrevistas que pudessem re\clar informaes em pro-
fundidade sobre experincias de medo e violncia, e sobretudo para ser capaz de
interpret-l:ls, precisava de :tlguma observao sobre o dia-a-dia d::ts pessoas c o
espao em que viviam. Isso seria mais fcil se as entrevistas em algu-
mas 5rcas da cidade, que poderia conhecer melhor. No ema mo, este esrudo no
uma etnografia dessas reas. . sim, uma anl ise ernogrfica de experincias de
violncia, da reproduo de desigualdade social e de segregao espacial do modo
como so expressas em algumas reas c pelos moradores de Siio Paulo que vivem
nelas.
A primeira ;i rea onde fiz pesquisa foi a periferia criada por t rabalhadores pobrt-s
com base na amoconstruo. A maior parte da minha pesquisa na periferia foi fei-
ra no Judim da Camlias, no distrito de So Miguel Paulista, na regio leste da
cidade. Venho fazendo pesquisas e acompanhando a organizao dos movimentos
sociais nessa rea desde 1978 (Caldeira 19!!4 ). Devido a minha longa familiarida-
de com a :rea, utilizo observ:tcs e entrevistas de estudos anteriores, embora para
esra pesquisa tenha reali1.ado novas emre\isras sobre o rema da violncia. Alm disso,
utilizo entrevistas e observaes fei tas com moradores de outros bairros da perife-
ria de So Paulo durante os anos de 1981-83, quando a preocupao com o cri me
comeou a crescer entre a populao. Essas entre\istas foram parte de um projeto
de pesquisa sobre a expanso da periferia e a mobilizao poltka de seus habitan-
tes que enfocava no s o processo de democratizao, mas tambm os problemas
que moldam o dia-a-dia na periferia.
2
A segunda :re:1 na qual realizei trabalho de campo foi a Moca, um bairro
de elas e mdia baixa prximo ao centro da cidade. A Moca tornou-se uma parre
importante de S.io Paulo na virada do sculo, quando se transformou num dos cen-
tros da primeira de industrializao da cidade. Embora sua paisagem ainda
seja marcada pela presena de instalaes industriais, o bairro foi desindustrializado
a partir dos anos 50, quando novas indstrias comear:un a ser instaladas em ou-
tros municpios da regio metropolitana ou na pcrifl'ria. Os trabalhadores indus-
l As entrevistas em ourros bJirros da periferia de PJulo fur.un feira por uma equipe de
peS<Juis.l do Cehrap- Cencro Br:lsileiro de Anlise e Planejamento-, inmtui:io qn.1l estive
fihada encu 1980 r 1995. As rnrrevistas foram realizadas no mbito do projeto de pesquisa A
Periferia de Sjo Paulo e o Contexto d.1 Ao Poltica-. coordenada pela Ruth
e iniciada a pedido da Cunltss3o dr e Paz da Arquidtocese de P:urlo. E.sa pesquisa foi
lena em Cidade JiiJ, Jaguar, Jardim iriam, Jardim l'eri-l'er. Jardim MMeta (este lllrimo em
0..-.sco. Regro MerropolirJn3 de Paulo) e jardim das CJmliJs. onde lu o respons.i,el pelas
Ou1ras resultantes pesquisa onduem Caldeira 1987, 1988 e 1990.
Cidade de Muros 15
rriais que se instalaram na Moca na virada do sculo eram imigrantes europeu5, a
maioria italianos. mas tambm espanhis, portugueses e europeus do leste. A maioria
de cus fil hos nunca fomm trabalhadores industriais. A desindusrrializaiio da rea
coincidiu tambm com um deslocamento de moradores que ascenderam socialmente
e se mudaram para outras panes da cidade. H quatro dcadas a Moca perde
popubo. Atualmente, embora o bairro ainda conserve vrios dos seus armazns
e fbricas e muitas casas operria , e embora boa pane de sua populao ainda cultive
um sotaque italiano e uma idenridade mica, dois processos novos e contraditrios
esto remodelando o bairro. De um lado, muitas casas grandes c antigas foram trans-
formadas em cortios. De outro lado, algumas reas foram reurbanizadas por cau-
sa da construo da linha do metr e esto passando .por um processo de enobre-
cimento lgelltriflcatiOttl. Este expresso na construo de apartamentos luxuosos
e na instalao de um comrcio mais sofisticado dirigido poro mais rica da
populao que prefere no se mudar, ou a novos residentes tambm se mudando
de outros bairros para l.i. Todos esses processos esto gerando uma heterogenei-
dade social e uma tenso social desconhrcidas ameriormenre no bairro. Essa ten-
so est claramente expressa na fala do crime.
3
Finalmente, fi:(. pesquisas no Morumbi e em Alto de Pinheiros, bairros de classe
mdia alta c alta. At os anos 70, essas eram reas de pouca populao, muita rea
verde, grandes terrenos c casas imensas. A partir de meados dos anos 70, elas fo-
ram profundamente transformadas pel:l intensa construo de prdios de aparta-
mentos. muiros seguindo o modelo de condomnio fechado. O represen-
ta de forma mais clara o no\o padro de expanso urbana que analiso nos captu-
los 6 e 7. Hoje muitas pessoas da classe alta que cosrumavam morar nos bairros
centrais mudam-se para o Morumbi para viver em enclaves fortificados. O bairro
tambm socialmente mais heterogneo que essas outras reas tradicionais centrai ,
porque os encla\'CS rico s.io siwados ao lado de algumas das maiores fa\elas da
cidade. Em conseqnci a, o Morumbi expressa da maneira mais clara o novo pa-
dro de segregao espacial da cidade. O Alto de Pinheiros foi o pioneiro oa cons-
truo de condomnios fechado no anos 70, mas o rirmo das construes foi mais
lemo e hoje ele tem menos f,l\clas do que o Morumbi.
Realizei rodas as em revistas com moradores da cidade sob a condio de ano-
nim:tto. Em claro contraste com outros projews de pesquisa que realizei, em que
os moradores estavam ansiosos para conversar comigo e para ver suas idias e pa-
lavras imprcss.1s, neste projeto encomrei resistncia e relutncia na discusso so-
bre o crime e a violncia. Muiws vezes, as pessoas inicialmente me pediam que no
gravasse as entrevistas, embora sempre me dessem permisso para tomar notas. Na
maioria dos casos, elas :tcabaram me autorizando a gravar tambm. Quando as
pessoas remem as in tiruics da ordem, sobretudo a polcia, c quando sentem que
1 1
a mc um assostmtr dr pt'>quisa. jo.io Vaig;IS. Seu trabalho em um
dossertajo (Varg.u 1993), na qual d ampha as discusses sobre como as r.cnues transforma
e-s lU'bJ JUSa fera rolm os mura dum do ha1rro moldaram medos e v1sesem ao
16 Teresa Pores do Rro Caldeua
seus direitos no esto garantidos pela just ia, essa reao compreensvel. De..:idi
no usar nomes fictcios para identificar os entrevistados: j que no posso citar
seus nomes verdadeiros. preferi omirir nomes como um sinal da condio de medo
em que vivem as pessoas com quem falei. Essa regra de anonimato no se aplica
aos administradores pblicos, polticos, membros de grupos de direitos humanos,
jornalistas e executivos da indstria da segurana privada que falaram comigo como
figuras pblicas e com pleno conhecimento de que poderia tornar pblicas suas
afi rmaes.
ANTROPOLOGIA COM SOTAQUE
Este um livro sobre So Paulo, a cidade onde cresci, onde pnssei a maior parte
da minha vida, onde venho fazendo pesquisas antropolgicas desde o final dos anos
70 c onde trabalhei como pesquisadora e professora durante quinze anos. Sua pri
meira verso foi escrita na Califrnia, onde fiz meus estudos de doutorado em an
tropologia e onde arunlmentc trabalho como pro fessora. O livro foi escrito em Los
Angeles c em La Jolla, e comecei a revis-lo durante minha rotina de idas e vindas
entre La j oll a e Jrvine, no corao do sul da Califrni a. Terminei as revises em
Nova York e em So Paulo, onde passo agora cerca de trs meses por a no. O que
penso sobre violncia, espao pblico urbano e segregno espacial marcado por
minhas experincias como moradora dessas cidades e, especialmente, pelos confli
tos e tenses provocados pela confluncia dessas diversas experincias e os conhe
cimentos que elas geram. Deslocamento algo central neste livro. tanto como ex
perincia vivida quanto como instrumento de crtica e de conhecimento.
O conflito em relao lngua provavelmente uma das pnrtes mais frustrantes
desse deslocamento. Minha lngua materna o portugus. a lngua na qual estudei
at o mestrado, escrevi meu primeiro livro e fiz a pesquisa para este livro. No en
ramo, escrevi este livro em ingls. Ao faz-lo, deparei-me diariamente com a per
cepiio de que, mais do que as minhas palavras, meu penS:Imenro estava moldado
num certo estilo e numa cerra lngua. Enquanto escrevia em ingls, podia ouvir a
repetitiva e por fim exasperada queixa de um dos meus editores: "Qual o sujciro?
No escreva na voz passiva! Voc no aprende?". Inti l explicar que o estilo aca
dmico em portugus com freqncia estruturado na voz passiva e quase sempre
com um sujeito ambguo; suprfluo produzir uma interpretao do sentido das es
colhas gramaricnis de cada estilo acadmico. No estava mais escrevendo na lin
gua que dominava e no podia mais contar com a liberdade e a segurnna das cons
trues inconscientes. E agora, ao revisar a traduo pam o portugus feit n por outra
pessoa, encontro-me freqememente em dvida sobre a escol hn de palnvras c so
brc :1 estrut urn das frases e fico me perguntando onde foi parar a minha voz em
tudo isso. Mas, obviamente, a questo no apenas com a gramtica e as palavrns:
cpistcmolgicn e metodolgica. A antropologia e :1 teoria social tm nqui lo que
se pode chamar de um '"esti lo internacional", ou seja, um corpus de teoria, mto
do e literatura pnrrilhado por profissionais do mundo inteiro. Embora esse corpus
tenha me oferecido um ponto de referncia durante meus deslocamentos entre o
Cidade de .\11 uros 17
Bras1l e os Estados Unidos. rorneim<- agudamente consciente de que quesre aca
dmicas tm fortes vieses locais e nacionais e que a disciplina :, de fato. plural-
h antropologias, no antropologia. O que as di cusses acadmicas americanas
enfatizam como rc.>lev::mte e l'!.timulante nem sempre est enrre os centrais
dos colega brasilc1ros, c \'Ice-versa. Num cerro momento. essa percepo do car
ter local da formulao de quesuic ficou to forre que cheguei a pensar em escre
ver dois livros, ou pelo menos duas introdues. um para cada pblico. cada um
numa lngua d1feremc. c:1da um estruturado por diferentes queste . Conclu, no
entanto, que isso tambm era impo svel, uma vez que meu pensamento c minha
percepo j tinham sido tr:msformados e moldados por minha imerso imult
nea nos dois e poderiam ser comprimidos num ou noutro molde apenas
arrificialmentc c com alguma perda. Minhas lnguas, minha escrita, meu pensamento.
minhas crticas, tudo tinha adquirido uma identidade particular. Acabei concl uin
do que assim como meu ingls rem sotaque, o mesmo acontece com a minha an
tropologia -o m:1quc no import:l a partir de qual perspectiva a veja ou
em que lngu:1 escrevn.
-E d''"" l'olu: 1 odas as \"CUS que d=rcvo uma cidade digo algn
a respeno Vene1a. ( ... distinguir a< qualidades das outras
coda<k>. de' o parnr <k uma primeir:t que pem1anttt omplma. No
mc:u V('neza'.-
ltalo C3h mo, As mttSII <'15
Se rive se escnro este livro originalmente em portugus, como meu pnmciro
livro (Caldeira 1984 ), ele cnrrnri:1 pnra a lista dos feitos por antroplogos
sobre sua prpria sociedade, que a norma no Brasil e em multas das chamadas
'"antropologias (em contraste com as wimperiais").
4
.\las escrevi este livro
em ingls, e escava pensando em meus colegas americanos, aJm dos brasiJeiros. Isso
no faz dele automaticamente um trnbalho no "'estilo curo-americano. j: que con
tinuo a ser uma nativa- investigando sua prpria sociedade e no vhenciei nenhum
dos estranh.unenros envolv1dos em viajar para o exterior para fazer trabalho de
campo e sobre os quais a disciplina no se cansa de elaborar. Definirivamenre, a
alteridade no foi um:1 questo que esrrururou minha pesquisa metodologicamente,
A entre amropulogias -consrruo de nao- (llatiOIIbmldmgl e amropolo
goas de "construo omprio- k mpmlnuldmg) < por Stocking ( 1982}. Ele lambem
ope uma imcma.:oonal-. consrirui a 1radio -anrrupolo-
l::l da ". Essa d1)rino 10rna "'i dentes .1s rclae> de as desigualdades que moi
dama da)sific:an de d.lerenu:s tradte> anrropulg>cas. Uso ess:l rcrmmolog aqu entre aspJs
par:t referir-me < rr:td>es nos quo o< fu1 formada, no para co01fenr s Jntropulog>JS <"ur<rame
ncanas umJ poSIo rp>St(mulg>ca pnvolegiado. Para uma discusso de dno.
nacionaiS- . Ethnos ( 1982). discus<cs partir da d 3ntropologia bra>ile!r:l.
,e r Olowra I I 988 I 995) e Peorono ( I 980).
18 T en:s..t Prcs do R1o Caldeor:t
embora tenha sido com cerreza um dos seus temas centrais.
5
Falar sobre meu tra-
bal ho de campo entre concidados no Brasil como um "encontro com o outro",
ou inverter as coisas c conceber minha experincia no doutOrado nos EUA e o que
aprendi ali como "outro", exigiria algumas acrobacias retricas e simblicas que,
acredito, no vale a pena tentar. Neste estudo, no h alteridade, no sentido de que
no h um outro fixo; no h posio de exterioridade, assim como tambm no
h identidades estveis nem localizaes fixas. H apenas deslocamentos.
Num cerro ponto do livro As cidades invistJeis, de !talo Calvino, Marco Polo
declara que contou ao Grande Khan sobre todas as cidades que conhecera. Ento,
o Grande Khan lhe pergunra sobre Veneza, a nica cidade da qual ele no falara.
Polo sorri: "E do que mais acredi ta que estive falando?" . Diante do argu-
mento do Grande Khan de que ele devia ter tornado seu modelo explcit o nas des-
cries, Polo responde: "As imagens da mem ria, uma vez fixadas em palavras,
apagam-se( ... ) Pode ser que tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar
sobre ela . Ou pode ser que, falando de outras cidades, j a tenha perdido pouco a
po uco" (Calvino 1974: 86).
Os antroplogos do "'est ilo euro-americano normalmente procedem como
Marco Polo: descrevem as cidades estrangeiras que visitaram para pessoas que nunca
estiveram l sem falar sobre suas prprias sociedades e culturas. Como Marco Polo,
eles freqentemente fazem comparaes invisveis com suas prprias culturas: as
constantes referncias ocultas em relao s quais a cult ura desconhecida pode ser
descrita como diferente. Em ambos os casos (anrroplogos clssicos e Marco Polo),
esse procedimento garante que suas culturas e cidades permaneam intocadas -
preservadas, t:llvez- por suas anlises. Como Marco Polo, os antroplogos cls-
sicos transformaram em mtodo o silncio sobre sua prpria sociedade e a eleio
de todas as outras culturas do mundo como objeto de suas detalhadas descries e
anlises.
6
A posio de Marco Polo, no entamo, no possvel para todos. Ela exige
um imprio de cidades a serem descritas, um imperador ansioso por saber a respei-
to delas e um nostlgico narrador interessado em manter a imagem de sua cidade
intacta. Para os etngrafos coloniais, ps-coloniais e " nacionais", o si lncio sobre
a cidade natal quase nunca uma possibilidade ou uma escolha. Normalmente, eles
no vo para o exrerior, porque no tm recursos ou no tm interesse em faz-lo.
Em vez disso, esto interessados em sua prpri a sociedade e, o q ue mais impor
5
A fala do crime e as prticas de scgreg3.ocvnsriruem "outros- serem riminalizados
e mantidos a distncia. V(r especialmente captulos I e 2.
6 A crtica antropologia que pndominou na ltima dcoda nos Estados Unidos provocou
uma reavaliao do trabalho dos etngrafos da experincia do trabalho de campo. Como
conseqncia, a etnogrfica 1ornou-se um cmpreendmtento altamente problemarizado, c
os relacionamentos com ao outro" tm sido submet idos a uma detalhada desc<>nsrruo e crtica.
No obstante, a t agora essa te11dncia no mudou a preferncia dominante pelo trabalho de campo
no exterior e pelo esmdo do .. outro". P:lr.:a uma reviso crtica recenre desse assunto, ver Gupra e
Ferguson (1997). Ver tambm Caldeira ( 1988b).
Cidade de Muros 19
tante, em sua prpria nao. Em contraste com as antropologias marcadas pela
constituio de imprios, as antropologias perifricas so freqentemente associa-
da a processos de formao c dessa forma esro relacionadas aos dile-
mas internos de suas prprias sociedades.
Os processos de construo nacional engajam antroplogos de maneira pa-
radoxais. Uma dimenso desse engajamento a concepo do papel do intelectual.
No Brasil, assim como em ourros pases ps-coloniais, os intelectuais tendem a trr
um papel predominante na vida pblica. Costumam pensar em si mesmos primei-
ro como intelectuais comprometidos em influenciar debates pblicos c s depois
como acadmicos? Assim, muitos antroplogos brasileiros estudam o que politi-
c:tmente relevante para eles. Alm d isso, muitos intelectuais (inclusive antroplo-
gos) concebem seu trabalho como uma questo de responsabil idade cvica e isso
molda suas relaes com seus concidados e com as pessoas que estudam. Quando
intelectuais estudam sua prpria cidade, como cidados que tendem a escrever
sobre ela, no como o bsenadores distantes. Isso significa que falam no apenas para
seus colegas intelect uais, mas para o pblico mais abrangente que possam alcan-
ar. Isso significa tambm que mesmo quando escrevem num tom cientfico e car-
regado de autoridade, e apesar de todos os poderes sociais inerentes sua condi-
o de membros da elite, sua viso da sociedade est mais exposta contestao
tanro por parte de outros analistas sociais quanto de seus concidados. Essa viso
apenas uma perspectiva num debate pblico, ainda que normalmeme ela seja uma
viso poderosa. De qualquer modo, sua perspecti,ra diferente daquela dos especia-
listas em culturas estrangeiras fabndo para uma platia acadmica restrita num
debate entre especialistas ern locais distantes, como geralmente acontece aos inte-
lectuais americanos.
Quando escrevo sobre So Paulo, em portugus, para brasileiros, escrevo como
intelectual e como cidad, c, portamo, abordo a cidade de uma certa maneira. Ci-
dades das quais somos cidados so cidades nas quais queremos intervir, que que-
remos construir, reformar, criticar e transformar.s Elas no podem ser deixada
intocadas, implcitas, ignoradas. Manter intocado o imaginrio de sua prpria ci-
dade incompatvel com um estudo (ou um projeto) de transformao ocial. Ci-
dades que permanecem cristalizadas em imagens passadas que temos medo de tO-
car no so cidades que habitamos como cidados, mas cidades de nostalgia, cida-
des com que sonhamos. As cidades (sociedades, culturas) em que ' ivemos esro,
como ns mesmos, mudando cominuamente. Elas so cidades para serem refleti-
das. questionadas, mudadas. So cidades com as quais nos envolvemos. en-
7
Para umo histria da insero pblica de inrelecnLis brasileiros, ver :\brtins ( 1987) e l\l icel
( 1979). :\lo C>tOu considerando aqUI todas as vonacs histricas em seu papel pblico e na>
preocupae< especificas que o<
8
Ko rsrou concdxndo a ciddania em termos formais. 1\ssumo que os moradores de uma
cdadr. qualquer que se1a seu srarus de cidadanb nacional. tendem a se en\oher com anda dia ria
na cidade como <:idados. como pes oos engajadas com suas condies antais c fun>ras.
20 Teresa Pires do Rio
na periferia. De outro lado, o faro de que os "antroplogos tenham por
um longo tempo investigado com sucesso sua prpria sociedade e cultura revela que
a alreridade menos uma exigncia imutvel de mtodo do que um efeito de poder.
Os intelectuais brasileiros. inclusive antroplogos, tm estudado preferencial-
mente grupos sociais subalternos: o pobre, o negro, o ndio, o membro de mino-
rias tnicas ou selCuais, e os trabalhadores organizadores de movimentos sociais.
tm sido os a serem conhecidos (e trazidos para :t modernidade).
Enquanto os subalternos so escrutinados, mantm-se silncio a elite. da qual
os intelectuais fazem parte.
10
A alteridade torna-se, assim, uma questo de relaes
de poder, mas neste caso as rela<ks so intrnsecas sociedade dos antroplogos.
a prtica do trabalho de campo nem sempre fcil desconsrruir as relaes
sociais e de poder que moldam a produo de conhecimento e a relao entre mem-
bros de grupos sociais. No entanto, necessrio considerar sempre, como tentei fazer
na pesquisa que deu origem a este livro, que dados e conhecimento so produzidos
intl'rarivamencc em relaes est ruturadas pelas posies sociais das pessoas envol
vidas. Cada resposta o resultado de uma interao social especfica e as posies
que gerar:1m os dados desta pesquisa so vrias. Minha posio social e minha
filiao universidade marcamm, assim, minhas relaes com pessoas de rodos os
grupos sociais que estudei. Foram essas posies que provavelmente susci taram de-
ralhadas respostas de pessoas das camadas trabalhadoras, que se sentiram obriga
das a atender aos meus pedido de entrevistas e que falaram sobre o crime em seus
bairros mesmo quando seu medo e insegurana justificariam a recusa c o silncio.
As recusas aumentaram medida que fui subindo na hierarquia social e as pessoas
se sentiram com coragem de dizer no a uma pesquisadora uni\'ersitria. Foi mais
difcil conseguir entrevistas com pessoas da classe alta, as quais exigiram vrias
Dessa forma, minha posio igualmente determinou o silncio das
pessoas da classe alta e sua freqente recusa em responder a algumas perguntas que
todas as pessoas da classe trabalhadora responderam: as elites assumiram que cu
parrilha\'a de seus pomos de vista e conhecimentos, c quando lhes pedia mais ex-
plicaes, respondiam com um kvoc sabe do que estou Finalmente,
minha posio social moldou minhas interaes com polticos e homens de neg-
cios que me trataram com a areno que uma professora uni\' ersir:ria ainda pare-
lC merecer, mesmo quando discordavam profundamente de mim em questes como
a dos direitos humanos.
10
Essa posiju de liderana c intocabilidade tem sido freqentemente fonnlccida pelos !I
pos de &<curso que legitimam o trabalho dos intelectuais. Alm de serem membros da> elites so
ciaos, os imdcctuais freqliemcmeme tm concebido posies privilegiadas para so mtosrnos. tais como
as de membros das vanguardas, educadores das massas, elaboradores de planos-mestres,
rios de metas para o futuro. vozes dos oprimidos e assim por dia me. Eles legitimaram esses papis
com metanarrauvas como modernaa:io, marxismo, desenvolvimenrismo e modrnusmo. Embo-
ra freqentemente ;e coloquem esquerda e do lado dos oprimodo;, eles nem >cmprr se onrrrro
gam sohre sua po<io ambgua de falar por aqueles que suposramcntc no teriam voz.
11
P:.r:. uma diu.sso como as di ferenas de mnucnciaram meu trabalho de
campo com p<'S<OaS da classe rrabalhadora, ver Caldeira 11981 ).
22 Teresa Pires do Roo C1ldc1ra
Uma outra questo de posicionamenro ainda enquadra a pesquisa e a anlise
deste livro: exaramenre a dos meus constantes deslocamenros, que sempre me for-
aram a pensar sobre o Brasil em relao aos Estados Unidos, ou mais especifica
mente, sobre So Paulo em comparao a l os Angeles. De um modo geral, como
os antroplogos brasi leiros, como muitos dos '"anrroplogos pesquisam
apenas sua sociedade, tendem a enfatizar na anlise a sua singularidade. Isso tam-
bm tende a impedir que estabeleam um dilogo crmco com a literatura e a pro
duo do conhecimento do "'estilo internacional" que consomem. Assim, este lti
mo continua a no ser influenciado pelas ant ropologias nacionais. Com efeito. a
crtica epistemolgica gerada pela recente ant ropologia americana no mudou a
relao entre "'antropologias nacionais'' e as internacionais, mesmo que ela possa
ter mudado as relaes individuais de alguns "antroplogos com
as pessoas que eles estudam. Ao contrrio, as "antropologias internacionais" ain
da rendem a tratar as nacionais" como informao nativa, como
dados, e no lhes concedem um srarus equivalente ao do conhecimento produzido
no "est ilo c publicado nas "linguas internacionais".
Embora So Paulo constitua o foco deste livro e a anlise que apresemo a seu
respeito seja a mais detalhada possvel, minha i meno no salientar sua singula
ridade. Ao contrrio, meu objetivo enrender e criticar processos mais amplos de
transformao social e segregao que S:io Paulo cxemplifica. Esrc livro sobre So
Paulo. Mas tamtxm sobre Los Angeles, e muitas outras regies merropo
li ta nas que esro adorando muros, separaes c o policiamento de fronteiras como
instrumentos para organizar diferenas no espao urbano. Essas regies so obvia
mente diferentes, mas a diferena no impede o uso de instrumentos semelhantes e
repenrios comuns. Em outras palavras, embora este livro se concentre detalha-
damente na anlise da reproduo da desigualdade social e da segregao espacial
em uma cidade- So Paulo-, ele identifica processos e instrumentos comuns a
muitas delas. A combinao de medo da violncia, reproduo de preconceitos,
contestao de direitos. discriminao social e criao de novas frmulas para manrer
grupos sociais separados certamente tem caractersticas especficas e perversas em
So Paulo, mas ela tambm reflete processos sociais de mudana que esto ocor
rendo em muitas cidades. Assim, a comparao com Los Angeles rem interesse terico
ao permitir ampliar o entendimento de processos de segregao espacial muito di-
fundidos. Essa comparao tem ainda a funo de relativizar a singularidade de So
Paulo, obrigando-me a enquadrar sua anlise em termos que faam sentido para
pessoas estudando outras cidades.
Cidade de Muros 23
Parte I
A FALA DO CRIME
1.
FALANDO DO CRIME E ORDENANDO O MUNDO
O crime violento aumentou em So Paulo nos ltimos quinze anos. O mesmo
ocorreu com o medo do crime. A vida cotidiana e a cidade mudaram por causa do
crime e do medo, e isso se reflete nas conversas dirias, em que o crime tornou-se
um tema central. Na verdade, medo e violncia, coisas difceis de entender, fazem
o discurso proliferar e circular. A fala do crime- ou seja, todos os tipos de con-
versas, comentrios, narrativas, piadas, debates e brincadeiras que tm o crime e o
medo como tema- contagiante. Quando se conta um caso, muito provavelmen-
te vrios outros se seguem; e raro um comentrio ficar sem resposta. A fala do
crime tambm fragmentada e repetitiva. Ela surge no meio das mais variadas
interaes, pontuando-as, repetindo a mesma histria ou variaes da mesma his-
tria, comumente usando apenas alguns recursos narrativos. Apesar das repeties,
as pessoas nunca se cansam. Ao contrrio, parecem compelidas a continuar falan-
do sobre o crime, como se as infindveis anlises de casos pudessem ajud-las a
encontrar um meio de lidar com suas experincias desconcertantes ou com a natu-
reza arbitrria e inusitada da violncia. A repetio das histrias, no entanto, s
serve para reforar as sensaes de perigo, insegurana e perturbao das pessoas.
Assim, a fala do crime alimenta um crculo em que o medo trabalhado e reprodu-
zido, e no qual a violncia a um s tempo combatida e ampliada.
nesses intercmbios verbais do dia-a-dia que as opinies so formadas e as
percepes moldadas, isto , a fala do crime no s expressiva como tambm
produtiva. As narrativas, diz Michel de Certeau, antecedem as "prticas sociais no
sentido de abrir um campo para elas" (1984: 125). Esse especialmente o caso das
histrias de crimes. O medo e a fala do crime no apenas produzem certos tipos de
interpretaes e explicaes, habitualmente simplistas e estereotipadas, como tam-
bm organizam a paisagem urbana e o espao pblico, moldando o cenrio para
as interaes sociais que adquirem novo sentido numa cidade que progressivamen-
te vai se cercando de muros. A fala e o medo organizam as estratgias cotidianas
de proteo e reao que tolhem os movimentos das pessoas e restringem seu uni-
verso de interaes. Alm disso, a fala do crime tambm ajuda a violncia a proli-
ferar ao legitimar reaes privadas ou ilegais- como contratar guardas particula-
res ou apoiar esquadres da morte ou justiceiros-, num contexto em que as ins-
tituies da ordem parecem falhar.
Neste captulo, analiso uma narrativa de crime que me foi transmitida numa
entrevista. Tal como ocorre nas interaes dirias das pessoas, as entrevistas, con-
cedidas em momentos de intensa preocupao com o crime, foram freqentemente
permeadas pela repetio de histrias de crimes. Embora tivesse interesse nessas
histrias, quase nunca precisei solicit-las: elas surgiam espontaneamente no meio
Cidade de Muros 27
de conversas sobre os mais variados assuntos, mas especialmente sobre a cidade e
suas transformaes e sobre a crise econmica. Na anlise que se segue, mostro como
as narrativas de crimes recontam experincias de violncia e, ao fazer isso, reorga-
nizam e do novo significado no apenas s experincias individuais mas tambm
ao contexto social no qual ocorrem. A narrao, diz De Certeau, uma arte do falar
que "ela prpria uma arte do agir e uma arte do pensar" (1984: 77). As narrati-
vas de crime so um tipo especfico de narrativa que engendram um tipo especfico
de conhecimento. Elas tentam estabelecer ordem num universo que parece ter per-
dido o sentido. Em meio aos sentimentos caticos associados difuso da violn-
cia no espao da cidade, essas narrativas representam esforos de restabelecer or-
dem e significado. Ao contrrio da experincia do crime, que rompe o significado
e desorganiza o mundo, a fala do crime simbolicamente o reorganiza ao tentar res-
tabelecer um quadro esttico do mundo. Essa reorganizao simblica expressa
em termos muito simplistas, que se apiam na elaborao de pares de oposio
bvios oferecidos pelo universo do crime, o mais comum deles sendo o do bem contra
o mal. A exemplo de outras prticas cotidianas para lidar com a violncia (que analiso
em outros captulos), as histrias de crime tentam recriar um mapa estvel para um
mundo que foi abalado. Essas narrativas e prticas impem separaes, constroem
muros, delineiam e encerram espaos, estabelecem distncias, segregam, diferenciam,
proibies, multiplicam regras de excluso e de evitao, e restringem
movimentos. Em resumo, elas simplificam e encerram o mundo. As narrativas de
crimes elaboram preconceitos e tentam eliminar ambigidades.
As narrativas de crime perpassam e interligam os mais diversos temas. Ao longo
deste estudo, lido com os mais importantes deles - crise econmica, inflao, po-
breza, a falncia das instituies da ordem, transformaes da cidade, cidadania e
direitos humanos. Neste captulo, concentro-me na maneira pela qual as narrati-
vas de crime so estruturadas e operam, e discuto a relao entre violncia e narra-
o. Tambm proponho um viso geral das transformaes polticas, sociais e eco-
nmicas no Brasil ao longo das dcadas de 1980 e 1990. No captulo 2, analiso os
diversos temas que a fala do crime articula e que esta narrativa introduz.
CRIME COMO EXPERINCIA DESORDENADORA E COMO SMBOLO RDENADOR
A narrativa que se segue me foi transmitida em 1989 por uma mulher cujos
pais migraram da Itlia para o Brasil em 1924. Eles se estabeleceram na Moca,
po.ca um bairro industrial habitado basicamente por imigrantes europeus, onde
abnram uma alfaiataria. A nasceu na Moca e passou toda sua vida l,
presenciando suas diversas transformaes, enquanto alguns de seus irmos se mu-
daram para "lugares melhores", segundo suas palavras. Ela uma dona de casa e
foi professora primria antes de se casar. Quando a entrevistei, tinha quase 60 anos.l
Seu marido corretor imobilirio e seu filho, dentista. Escolhi sua narrativa para
1
Todas as informaes sobre as pessoas que entrevistei referem-se poca da entrevista.
28
Teresa Pires do Rio Caldeira
esta anlise inicial por duas razes. Em primeiro lugar, ela sintetiza vrios temas
que aparecem nas outras entrevistas de forma mais dispersa e s vezes mais desar-
ticulada. Em segundo lugar, uma das narrativas mais dramticas da experincia
de crime que coletei, justificando mudanas em sua famlia e na vida diria. A dis-
cusso sobre os crimes dos quais ela foi vtima ocupou dois teros da entrevista.
No perguntei sobre os crimes: os comentrios surgiram medida que ela descre-
via as mudanas pelas quais a Moca passou ao longo de sua vida. Reproduzo longos
trechos dessa entrevista porque quero mostrar a forma como a narrativa se organi-
za e a maneira pela qual a fala do crime entrelaa em sua lgica os mais diversos
temas. Cito a seguir algumas partes da narrativa, na ordem em que ocorreram, com
alguns cortes, seja em razo de repeties, seja porque houve uma mudana de as-
sunto (ela falou, por exemplo, sobre mudanas na Igreja Catlica, a histria de sua
famlia na regio e sua migrao, suas viagens Itlia, a ligao de sua famlia com
a msica, as conquistas de seu filho, seu apoio a um governo autoritrio, sua opi-
nio sobre programas de rdio e TV, e assim por diante). As frases entre colchetes
so minhas e resumem partes da narrativa ou adicionam explicaes. Todas as
entrevistas foram realizadas por mim, exceto quando indicado em nota. Cada en-
trevista tem um nmero: o primeiro algarismo identifica o captulo e o segundo,
sua ordem dentro deste.
1.1
-A Moca teve muito progresso. A melhor coisa que tem no bairro o progresso. Teve
progresso de escolas, progresso de casas. As casas mais bonitas eram na Paes de Barros, cha-
mava-se de palacete. [Paes de Barros a rua em que ela morava.] A rua era residencial; hoje
comercial. A mudana comeou h uns 15 anos. S gente chique morava na Paes de Barros. A
elite da Moca hoje mora no bairro novo, o Juventus. O bairro teve muito progresso. Tem no-
vos hospitais, o Joo XXIII, o S. Cristvo. Tem a universidade tambm. A Universidade So Judas
comeou na Rua Clark; era um barraco ...
T radicada aqui, nasci aqui, tenho amizades aqui no bairro. O que estragou muito a Moca
foram as favelas. Aquela da Vila Prudente uma cidade. Tem cinqenta e tantas mil pessoas!...
Tem tambm muito cortio. Tem muito cortio na Moca desde que vieram a gente do Norte.
Tem 300 cortios, cada um tem 50 famlias, s com trs privadas- como que se pode viver
assim?! O que t prejudicando isso a, a pobreza. Aqui tem classe mdia, classe rica e uma
diferena muito grande, a pobreza dos nordestinos. O bairro piorou desde que comearam a
chegar a turma do Norte .... Faz uns 15 anos. Agora tem demais. Casas lindas, bonitas da Moca
foram subalugadas e hoje no se pode entrar, arrebentaram as casas. De uns 15 anos pra c,
a Moca regrediu nessa parte. A Moca teve muito progresso, mas regride pela populao pobre.
-Mas antes no tinha pobre na Moca?
-Antes no existia. A gente saa de chapu, os professores andavam de chapu. Eu usava
luva e chapu. Dos 15 aos 18 anos eu saa na rua de chapu. A Praa da S, a Rua Direita, era
uma finura. Hoje, a gente no vai l, no possvel, voc sabe como .
[Comeamos a conversar sobre o que poderia ser feito em relao pobreza e aos po-
bres que viviam ali.]
Eles deveriam receber mais apoio do governo. Eles empestearam tudo, deveria voltar tudo
pra l. O governo deveria dar casas pra eles l no Nordeste pra eles no precisarem vir pra c ...
Cidade de Muros 29
Hoje aqui na Moca no se pode nem sair de casa. Faz seis anos que eu fui assaltada, e seis
anos que parece que tudo perdeu o gosto. Aqui na Moca no tem pessoa que no foi assaltada.
[Ela contou ento o caso de um segurana de um supermercado da regio que havia sido
morto poucos dias antes durante um assalto mo armada. Ele tinha cinco filhos e trabalha-
va ali havia apenas trs meses}.
A coisa pior que existe na Moca que o povo fica com medo. muito crime, muito
assalto. De uns oito anos pra c est mais perigoso. Demasiadamente perigoso. Ningum sai
de noite, ningum sai com corrente no pescoo, com nada.
- Quem so os criminosos?
- Pessoal que assalta tudo nortista. Tudo gente favelada. Gente do bairro e gente de
fora. Mas no adianta nada querer fazer alguma coisa. Voc faz ocorrncia, depois no resol-
ve nada. Quando eu fui assaltada, eu fiz ocorrncia, tinha advogado amigo, no adiantou nada,
no encontraram nada ...
Hoje ningum quer saber de morar em casa devido falta de segurana. Eu morava na
Rua Cam, com porto eletrnico, interfone, dobermann dentro de casa. Um dia, s 7 horas
da manh, meu marido saiu para entrar na garagem, um cara veio, pulou em cima dele, tam-
pou a cara dele e deu uma punhalada no corao dele. Depois desse dia, meu marido nunca
mais teve sade, cardaco.
[Ela conta, ento, que depois de ferirem o marido, os ladres entraram na casa e lhe pe-
diram dinheiro e jias. Ela entregou prontamente uma grande caixa de jias: liDemos tudo,: Os
ladres comearam a encaminh-/ajunto com seu filho para os fundos da casa, para o quarto
de empregada. No caminho, ela abriu o canil e o dobermann pulou sobre os ladres, que deram
uns tiros mas no acertaram ningum e acabaram fugindo. Pedi que ela me descrevesse os
ladres}
Eles tinham cara boa. Um era baixinho, moreninho, se v que era do Norte. O outro ti-
nha cara branca, mas sempre nortista, devia ser do Cear.
[Do seu caso especfico, ela passa novamente a discutir as mudanas no bairro.]
L no Juventus tem casas lindssimas, mas tudo de grade. Nas ruas, tem guardas com
guaritas. Na Moca, aqui fica todo mundo trancado: o ladro fica pra fora, e a gente, tudo
trancado. E nem isso adianta. A minha casa que foi assaltada tinha porto eletrnico, interfone.
Os ladres entraram no vizinho uma casa que tambm era minha, estava alugada- e pula-
ram pra dentro da minha casa e foram se esconder na garagem. No Juventus, todas as casas
so fechadas, mas se voc for falar com eles, eles vo contar muito assalto. Os moradores da
Moca esto tristes por causa da falta de segurana. No s a Moca, So Paulo toda. As
escolas parecem presdio. Antes era maravilhoso, as crianas ficavam nas ruas, o povo ficava
nas portas conversando, existia mais amizade, as pessoas se visitavam. Hoje vive-se de medo
na Moca. Hoje, perguntando na rua, cada um tem uma histria pra contar: se no foi assal-
tado, tiraram a corrente, o anel, a carteira.
[Ela relembra um roubo de que sua irm foi vtima: estava voltando a p do mercado com
as compras quando algum pegou sua carteira. Muitas vezes as pessoas levam os carrinhos de
compro com as mercadorias. E ela conclui.]
A Moca est empesteada.
[E quanto ao que deveria ser feito .. .]
Teria soluo. Teria de partir do governo. O governo deveria dar assistncia pra pobreza.
O bairro tornou-se feio com os cortios. E pobre pobre, quando no pode comprar as coisas
30
Teresa Pires do Rio Caldeira
que precisa, assalta. falta' de cultura tambm ... A Moca fez muito progresso, engrandeceu
muito, fez progresso de casas, prdios, mas tem uma extenso de cortio que no acaba mais ...
O governo devia fechar a exportao, terminar com essa vinda de pessoal do Norte. Se voc
soubesse o que o meu marido fala quando ele passa em frente a uma favela! Ele to revol-
tado! Eu tambm. Eu no tive mais sade desde que fui assaltada. Sa de casa no mesmo dia,
vendi tudo aquilo l, joguei fora ... O meu marido, voc no sabe o que ele fala. Ele v um cor-
tio, uma favela, fala que uma garrafa de querosene e um fsforo resolvia aquilo num minuto ...
A Moca teve muito progresso, mas teve regresso tambm. Os cortios tiram a beleza
da Moca. O povo hoje vende as casas e vai para apartamento.
[Ela explicou, ento, que a sua casa que foi assaltada era uma casa reformada, na qual a
famlia tinha investido durante anos. Era uma casa com piscina e churrasqueira.]
No pra esnobar, mas pra dar conforto pra famlia. "O problema hoje em dia que no
d pra ter o privilgio de possuir o sacrifcio que voc fez."
[Ela gostou da frase, pediu que eu a anotasse e a repetiu. Continuou a falar de sua casa.]
Como eu vendi tudo, perdi tudo. Vendi de um dia pro outro, vendi por nada, e ainda teve
o Plano Cruzado no dia seguinte. Quando a gente foi ver, o dinheiro j no era mais nada. A
Moca regride pelos cortios. Devia acabar com essa vinda de gente pra c, devia dar condi-
es pra eles l. Mas a turma indolente tambm, no quer saber de trabalhar. Pior favela,
bandido t dentro de favela. Eles recebem pouco, mas se voc entrar dentro de uma favela, v
um monte de vde?,_S()I11,.daon9e ? Tudn
Vou logo dizendo pra vocs: eu sou a favor da pena de morte a quem merea. Aqui na
Moca ns somos a favor da pena de morte. Eu sei que a Igreja condena a pena de morte, mas,
a meu ver, castigo, tem que ter um castigo pra uma pessoa que comete erro. Por exemplo, uma
pessoa que est com 200, 300 anos de pena, ela vai ter tantos anos de vida? Caso tivesse pena
de morte, outra pessoa no faria o mesmo. conversa essa histria que vai ser o injusto que
vai ser castigado. Seria um exemplo ... Deveria se ver o certo, com conscincia. Pessoa que tem
que cumprir pena por tantos e tantos anos, como que ns vamos sustentar vagabundo na
cadeia a 400 cruzados por dia? Na Moca todo mundo a favor da pena de morte.
[Nesse momento, sua empregada entro na sala para servir caf com biscoito e a patroa
pergunta se ela a favor da pena de morte. Diante da resposta afirmativa, ela comenta.]
Ela crente e tambm defende a pena de morte; eu sou irm de padre e tambm defen-
do. No teria tanta criana na rua, que me coloca filho na rua sem pensar, por pobreza, ou
por sem-vergonhice.
2
[A essa altura, ela fala de forma empolgada e comenta.]
Quando eu fico enfezada, fico com o vocabulrio bem bonito ... Quando eu estou enfe-
zada posso falar to bem quanto um advogado. Antigamente, eu falava ainda melhor, mas perdi
o hbito ... No tenho mais prtica de falar tanto. Estou enfezada! Me mudei tanto com esse
assalto, perdi a vontade de fazer as coisas. Antes eu era feliz a gente era feliz e nem sabia. A
casa limpinha, bonitinha, tudo em ordem.
2
A narradora sugere que filhos de mes que "no pensam" e tm filhos de que no podem
cuidar, ou porque so pobres demais ou porque os tm fora de um casamento, certamente iro se
tornar criminosos. Ela no elabora a idia, porque esta bem comum. Analiso a associao de
mes solteiras, pobreza e crime no captulo 2.
Cidade de Muros 31
[E comea a recontar suas experincias de assalto.}
Dois meses antes do assalto, a minha empregada tinha ido pra Minas. Um dia, s 4 ho-
ras da tarde, a casa tava em ordem, e eu tava em casa toda vaidosa, toda bem arrumadinha,
com brinco de brilhante [o mesmo que estava usando durante a entrevista], anel igual, que
naquela poca ainda tinha. Sentei para descansar ... s vezes eu pegava no piano ... Tocou a
campainha. bom vocs saberem: era um moo branco, com um guarda-p. Se eu fico ner-
vosa, no agento falar. Se ouo um caso, sou capaz de subir no palanque, pr fogo em So
Paulo. Era um moo da minha altura, estatura mdia, uns 22 anos, magro, avental azul e com
o emblema da perfumaria Abaet no bolso, com um bloquinho e um lpis. Ele me interfonou,
falou que tinha uma entrega. Perguntei: "No t enganado?". Ele falou: "No, aqui". Tinha
um pacote assim [mostra o tamanho de uma caixa de sapatos], bem arrumado, com fita, car-
to. Perguntou: "A no mora o Jos?".
3
"Mora, meu filho, mas aqui ningum comprou nada."
Ele se enfezou: "A gente trabalha, empregado, e no querem receber a mercadoria". Pensei:
"Meu filho moo, vai ver que foi f, namoradinha que mandou. Minha sorte, ao invs de abrir
a porta pelo interfone, eu desci a escada de mrmore, peguei a caixa, era pesada, peguei o
talozinho pra assinar, da me aparece com um revlver, desse tamanho [uns 20 a 30 em, ela
mostra], da ele disse: "Sobe!". Apareceu mais um, um moreninho, com um estilete. Comecei a
gritar, me sentaram, me arrastaram de joelho, me jogaram na garagem. Fiquei ruim do joelho
at hoje, do rim ... "Dou tudo pra vocs, no me faam nada!" Mas, com o grito, a minha vizi-
nha achou que a Maria Jos- que era a minha empregada, que era assim um tipo espalhafa-
toso, que gritava muito-, achou que ela tinha chegado de Minas e abriu a porta dela. Foi a
minha salvao, eles se mandaram, eu ainda tive que abrir a porta para eles. Mas dois meses
depois exato eles voltaram ... Fiquei dois meses de cama, urinei sangue, tirei radiografia do joelho,
tive que fazer infiltrao ... No saio noite, no fao nem uma visita. Hoje eu moro em apar-
tamento ... Aquele trauma voc nunca perde. Meu filho tem 28 anos, o medo que meu filho
tem! Eu era to feliz. Era feliz e no sabia. Era uma pessoa ativa, tava me mexendo o tempo
todo, fazia trabalhinho pra pobre ...
Na Moca todo mundo tem medo, por isso que todo mundo vai embora. A populao
fina vai embora e os nordestinos vo chegando, ns vamos dando espao pra eles ...
Quando fui assaltada pela segunda vez, estava com meu cunhado, irmo do meu mari-
do, em casa, fazia 17 dias que ele estava no Brasil, ele teve enfarto e morreu. Fazia oito dias
que ele estava aqui quando foi o assalto. Ele tava dormindo. Tinha vindo pra passear e pra se
tratar. Falo pro meu marido que no foi por causa do assalto, mas meu marido acha que no,
que ele ficou assustado ... Um dos assaltantes tinha um punhal e ficou com ele encostado nos
olhos do meu filho. O consultrio dele todo cheio de grade, janela fechada, porta fechada -
pode-se viver assim? ...
Agora as pessoas s se encontram em enterro. Crculo de amizades, de conterrneo, de
patrcio, t se desfazendo. Vai se distanciando a amizade devido ao medo de sair noite. Olha
que sentena bonitinha!...
A Moca que eu conheci era to diferente! Podia-se viver, sair sem esse pavor. Quando
a populao era menor, existia mais tranqilidade. Empestearam a Moca, deixaram a Moca
feia.
3
Quando foram usados nomes na narrao, eu os substitu por outros fictcios.
32
Teresa Pires do Rio Caldeira
A maioria das narrativas de crime que ouvi introduz o episdio do crime
mencionando a hora exata em que ele aconteceu. Tambm sempre fornecem detalhes
sobre o lugar, as circunstncias e o carter corriqueiro do que estava acontecendo
imediatamente antes, criando uma marca precisa de ruptura atravs da elaborao
de pequenos detalhes. Elas representam um acontecimento que teve o poder de in-
terromper o fluxo montono do dia-a-dia, mudando sua essncia para sempre; um
acontecimento que se sobressai por causa de seu absurdo e de sua gratuidade.
Em narrativas de crime, esse acontecimento traumtico divide a histria em
"antes" e "depois". Essa diviso ordenada faz com que o crime assuma na narra-
o o efeito contrrio do que teve na experincia: ser vtima de um crime violento
uma experincia extremamente desorientadora. Um crime violento cria uma de-
sordem na experincia vivida e provoca uma desestruturao do mundo, um rom-
pimento. A vida no caminha do mesmo jeito que antes. Como muitos me disse-
ram repetidamente: "Esse medo voc nunca mais perde". uma crena comum que
aqueles que foram vtimas de um crime e aqueles que no foram tm opinies dife-
rentes sobre crime e violncia, e mesmo sobre a sociedade e a cidade. Ainda que as
entrevistas no sejam totalmente conclusivas a respeito de como as opinies mu-
__ m ____ a__ partir de e ela ____ s ___ mo-str_ aram de forma muito clara que a
fiXPt::rincia de _mudanas. Geralmente, a experincia de
crime violento seguida de reaes a casa, mudar de endereo,
controlar as atividades das crianas, contratar seguranas, no sair noite, evitar
J certas reas da cidade e assim por adiante, aes essas que reforam um sentimen-
1
J to de perda e restrio assim como uma sensao de uma existncia catica num
lugar perigoso. Experincias de crime tambm so seguidas pela fala do crime, na
qual o acontecimento recontado e discutido inmeras vezes.
Contudo, medida que a histria contada e recontada, em vez de criar uma
ruptura, o crime exatamente o que organiza toda a narrao, estabelecendo mar-
cas temporais estticas e emprestando suas categorias a outros processos. medi-
da que as narrativas so repetidas, o bairro, a cidade, a casa, os vizinhos, todos
adquirem um significado diferente por causa do crime, e sua existncia pode ser
realinhada de acordo com as marcas fornecidas pelo crime. No caso acima, ache-
gada dos nordestinos ao bairro ocupa uma posio equivalente do crime, divi-
a histria local entre antes e depois. O que o crime faz para a biografia da
narradora, achegada de nordestinos/criminosos faz para o bairro.
Nas narrativas, o crime organiza a estrutura de significado e, ao fazer isso,
combate a desorganizao da vida produzida pela experincia de ser vtima da vio-
lncia. No entanto, esse uso do crime como divisor entre um tempo bom e outro
ruim simplifica o mundo e a experincia. Recurso retrico que d dramaticidade
narrativa, a diviso entre antes e depois acaba reduzindo o mundo oposio
entre o bem e o mal, que a oposio central que estrutura as reflexes sobre o
crime. Ao fazer essa reduo, as pessoas normalmente apresentam relatos sim-
plistas e tendem a criar caricaturas: o antes acaba virando muito bom; o depois,
muito ruim. No caso acima, antes do assalto, ela "era feliz e nem sabia". Descri-
es da felicidade pr-crime so a casa com uma escada de mr-
more, piscina e churrasqueira; os brilhantes usados numa tarde qualquer; um
Cidade de Muros 33
momento de calma para sentar-se ao piano; numa palavra, conforto, ordem e
status interrompidos pela fatdica campainha. Depois do assalto, a vida tornou-
se um inferno: tudo perdeu o gosto, ela e o marido perderam a sade, o filho en-
cheu-se de medo, eles perderam dinheiro e status. Venderam sua linda casa da
noite para o dia e se mudaram para um prdio de apartamentos. No consideram
que isso seja um jeito confortvel de viver, j que no podem demonstrar seu
status e desfrutar dos resultados dos muitos anos de sacrifcio que passaram para
construir uma residncia respeitvel e uma boa posio social. Tambm interes-
sante notar que dois episdios de crime, dois meses distantes um do outro, so
recontados na narrativa acima, mas eles simbolicamente fundem-se em vrios mo-
mentos para justificar as mudanas na vida cotidiana. Embora as circunstncias e
os atos de cada um sejam diferentes, eles no s so apresentados da mesma for-
ma, mostrados como capazes de provocar efeitos similares (problemas de sade e
perda de dinheiro e status), como tambm por vezes se fundem para se transfor-
mar numa experincia unificada.
As redues feitas no mbito da narrao chegam ao ponto de distorcer fa-
tos de modo a fazer com que se encaixem na histria. A narradora acha que com
a mudana para o apartamento no s perdeu conforto e status, como tambm
dinheiro, e culpa o Plano Cruzado pela perda. Nesse ponto a narrativa fica con-
fusa. Ela alega que eles perderam dinheiro porque venderam a casa um dia antes
do Plano Cruzado. No entanto, ela disse muitas vezes que o assalto ocorrera seis
anos antes e que estava morando no apartamento havia seis anos- o que daria
1983, j que a entrevista foi feita em setembro de 1989. O marido e a irm, com
quem tambm conversei, confirmaram depois que tinham se mudado seis anos
antes, o que significa que provavelmente ela acrescentou o Plano Cruzado sua
narrativa com o objetivo de indicar que sua perda individual fora causada pela
crise econmica do pas, no por seu fracasso pessoal. Alm disso, ela associa a
experincia de viver o tempo todo sob uma inflao alta- uma situao em que
o valor do dinheiro voltil e as pessoas no sabem quanto seus bens vo valer
no dia seguinte - com a ruptura de bens e valores que o roubo acarreta. Por ter
trocado propriedade por dinheiro, ela perdeu. Ao associar em sua narrativa o
momento do crime com a ocorrncia do plano econmico e o colapso de seu mun-
do, a narradora revela o quanto crime, crise econmica e queda social esto in-
terligados na percepo dos moradores de So Paulo, isto , como a biografia e
as condies sociais se entrelaam. importante notar, no entanto, que o crime
que fornece a linguagem para expressar outras experincias como inflao e que-
da social, no o contrrio.
A biografia e as condies sociais coincidem de uma outra forma nessa nar-
rativa por meio da interveno do universo do crime: s mudanas no bairro e no
espao da cidade atribuda a mesma estrutura de significado da experincia do
crime, pois ambas tm um antes e um depois cujo ponto de ruptura est relaciona-
do ao crime. Antes, havia progresso; depois, retrocesso. Antes, havia ruas sofisti-
cadas em que homens e mulheres passeavam de luvas e chapu; depois, apenas lu-
) gares onde ningum pensaria em ir. Antes, o bairro era pequeno, elegante, cheio de
) conhecidos antigos e cordiais, com crianas brincando nas ruas, conversas na cal-
!
34 Teresa Pires do Rio Caldeira
ada, belas casas, conforto e nenhuma pobreza visvel; depois, havia um bairro maior
e cheio de medo, moradores pobres e cortios, cercas e crime, prdios de aparta-
mentos e pessoas aprisionadas em suas moradias. Antes, havia uma intensa socia-
bilidade local; depois, a reduo dos encontros com os amigos aos funerais. Nesse
caso, o trauma foi a "invaso" (como o roubo em uma casa) do bairro e da cidade
por moradores pobres, os nortistas que vivem nos cortios e favelas. Muitos mora-
dores da Moca repetem a mesma histria sobre o bairro: entre a metade dos anos
70 e o incio da dcada de 80, velhas casas comearam a ser transformadas em
cortios e uma- imensa populao nova chegou. Os novos moradores, tidos como
mais pobres, so identificados como criminosos pela maioria das pessoas que en-
trevistei ali. Sua chegada comparada a uma infestao.
H duas redues principais embutidas nessa verso da histria do bairro.
Primeiro, ela atribui todas as mudanas chegada dos novos moradores, acusa-
dos de serem criminosos (da mesma forma que a narradora reduz a um episdio
de crime os fatores que mudaram sua vida). Mais uma vez, o crime oferece um
cdigo simplificado para se lidar com outras mudanas sociais. Nas ltimas d-
cadas, a Moca com certeza passou por uma srie de transformaes. As velhas
fbricas da primeira fase da inustrializao de So Paulo comearam a fechar
medida que o plo industrial foi mudando para outras partes da regio metropo-
litana e o tipo de atividade industrial foi se modificando. O dinamismo econmi-
co da Moca diminuiu e com essa mudana o bairro perdeu parte do seu carter
tipicamente industrial. Isso se acentuou com a transformao do meio urbano as-
sociada abertura de novas avenidas e construo do metr, que causou a de-
molio de inmeros edifcios antigos, tanto residenciais como comerciais. A
Moca tambm vem perdendo populao h quatro dcadas, isto , desde 1950,
quando o centro da produo industrial mudou para outras reas da regio me-
tropolitana, e desde que a cidade recebeu o maior contingente de migrantes do
Norte e Nordeste durante este sculo. medida que a dinmica econmica e so-
cial da cidade mudou, especialmente durante os prsperos anos 70, aqueles mo-
radores da Moca que tinham recursos preferiram mudar-se para regies da ci-
dade mais identificadas com as classes mdias, em vez de permanecer num lugar
ainda visto como industrial, tnico (principalmente italiano), e enfrentando uma
decadncia econmica. Velhas residncias de fato foram abandonadas, mas isso
tem a ver com as transformaes socioeconmicas, que incluem uma mobilidade
ascendente de velhos moradores, assim como com a decadncia econmica, mas
no necessariamente com o crime. medida que moradores em melhores condi-
es mudaram-se da regio e a indstria local decaiu, muitas construes realmen-
te foram transformadas em cortios, por meio de um processo que no apenas
tpico da Moca mas de todos os velhos distritos industriais.
4
4
De acordo com a Fipe (1994: 7-9), em 1993 a Moca tinha 9,0'1<> dos quase 24 mil corti-
os da cidade, alm de 16,12% das famlias que viviam nesse tipo de moradia. O nmero mdio
de famlias por cortio na Moca era de 12,1, quase o dobro da mdia da cidade. Para mais infor-
maes sobre cortios, ver o captulo 6.
Cidade de Muros 35
No entanto, o bairro tambm mudou devido a um processo que se conven-
cionou chamar de enobrecimento [gentrification]. A medida que antigas reas re-
sidenciais se tornaram reas de comrcio, uma nova rea decada foi transformada
por investimentos para as classes mdia e alta. Esta rea enobrecida (Juventus) come-
ou a ser construda nos anos 80, com muitos prdios de apartamentos. Integrantes
das classes mdias que tinham ficado na parte mais antiga do bairro, como a se-
nhora da narrativa com que estamos trabalhando, sentiram profundamente as trans-
formaes, j que elas afetaram radicalmente sua vida cotidiana local e seu padro
de sociabilidade. O aspecto que quero enfatizar, no entanto, como o crime ofere-
ce uma linguagem para expressar, de maneira sinttica, os sentimentos relacionados
s mudanas no bairro, na cidade e na sociedade brasileira de modo geral. Essas
mudanas so vistas como um retrocesso pelos velhos moradores e sua associao
com a invaso do bairro por "criminosos" expressa seus pontos de vista de uma
forma convincente. O crime ruim, no h dvidas a respeito disso; associar as mu-
danas no bairro a criminosos atribuir um valor claramente negativo a elas.
A segunda reduo aquela embutida na categoria dos nordestinos, caracte-
rizados nos mais depreciativos dos termos: ignorantes, preguiosos, sujos, imorais.
Numa palavra, eles so criminosos. Esses termos depreciativos muitas vezes so os
mesmos que tm sido usados no Brasil desde a poca da conquista para descrever
o ndio, o escravo africano, o trabalhador, o pobre, e os analiso com mais detalhe
no prximo captulo. Na Moca, considera-se que todos esses vizinhos indesejados
vieram do Nordeste: migrantes, como os pais de muitos moradores, mas do empo-
brecido Nordeste, e no da Europa. Est claro, no entanto, que o nordestino da
narrativa uma categoria essencializada, destinada a simbolizar o mal e explicar o
crime. simplista e caricatura! (o que no significa que no afete as relaes so-
ciais). produto de um pensamento classificatrio relacionado com a produo de
categorias essencializadas e a naturalizao e legitimao de desigualdades (ver
captulo 2 e Malkki 1995: 256-7). revelador, no entanto, que migrantes do Nor-
deste tenham sido selecionados pelos moradores da Moca para serem alvo de suas
acusaes e representarem a categoria do criminoso. Embora a fala do crime cons-
tantemente elabore categorias essencializadas e preconceitos, seu contedo muda
em contextos sociais diferentes, isto , o alvo do pensamento categorizante varia.
O preconceito contra os nordestinos existe em todo lugar, mas a questo por que
eles so to apontados como criminosos na Moca, enquanto em outros bairros a
caracterizao principal dos criminosos varia. Provavelmente isso est relacionado
ao fato de que a maioria das famlias da Moca descendente de imigrantes e que
os moradores da cidade normalmente vem o bairro como um local de imigrantes.
Pelo fato de o rtulo imigrante tambm se aplicar aos moradores que entrevistei
(como a narradora acima, uma filha de imigrantes italianos) e de eles sentirem que
h diferenciaes sociais no bairro que precisam ser mantidas, sentem-se impelidos
a distanciar a si prprios daqueles outros migrantes mais recentes. Em outras pala-
vras, o princpio classificatrio que est funcionando aqui que a categoria que est
mais prxima do narrador mas que diferente deve ser a mais enfaticamente distan-
ciada e condenada. A mistura de categorias produz ansiedade cognitiva e conduz
abominao, como nos lembra Mary Douglas em seu estudo sobre classificao:
36
Teresa Pires do Rio Caldeira
"Imundcie ou sujeira o que no deve ser includo se um padro precisa ser man-
tido" (1966: 40). Para distinguir a si mesmos dos novos migrantes, os mais antigos
os tratam simbolicamente como poluidores e os associam ao crime e ao perigo.
Hoje, muitos moradores da Moca so da segunda ou terceira gerao, mas
sentem como se o lugar fosse definitivamente seu. Eles exibem uma forte identidade
local e um de territrio que geralmente desconhecido em outras reas em
que pesquisei. sentem que ascenderam socialmente em relao a
seus pais- um processo que a crise econmica colocou em risco. Escolhem, ento,
os recm-chegados, migrantes como eles, mas que vieram depois e so mais pobres,
para expressar os limites de sua comunidade e acentuar
social. Os recm-chegados so tachados de estrangeiros- como os pais
dentes mais antigos mas tambm de invasores que esto destruindo o lugar que
os moradores da Moca e seus pais conquistaram e construram para si. Os proce-
dimentos para conservar simbolicamente os nordestinos a distncia so bem conhe-
cidos: eles so descritos como sendo menos do que humanos, perigosos, sujos e
contaminantes; so habitantes de lugares imprprios, como cortios e favelas. As-
sim, diz-se que sua presena no bairro estraga todos os arredores: eles "empestearam"
o bairro, repete a narradora para pontuar sua histria. Sua pobreza ameaa o status
social de todos os moradores. Os nordestinos representam o processo de decadn-
cia social que muitos no bairro esto atravessando ou temem. Ao mesmo tempo,
essa associao mantm esse processo longe deles- os antigos migrantes sugerem
que no so to pobres quanto os nordestinos; eles so mais afortunados, tm suas
prprias casas (embora as percam para o crime e o medo ou ento para a inflao).
Em SUf!la, o nordestino , para o morador da Moca, a imagem sintetizada
de tuqo o que ruim e reprovvel, e conseqentemente criminoso. O nordestino
representa perigo, no apenas o perigo do crime, mas tambm da decadncia so-
cial. Como uma sntese do mal, a categoria do nordestino no corresponde reali-
dade, embora seja um poderoso instrumento para expressar avaliaes dessa mes-
ma realidade. No entanto, em razo da distncia que essa imagem guarda em rela-
o realidade, h sempre uma tenso entre seu uso na fala do crime e os relatos
de detalhes de acontecimentos.
A fala do crime e a elaborao das categorias do criminoso so simultanea-
mente um tipo de conhecimento e um desreconhecimento (misrecognition). Esta no
uma caracterstica exclusiva da fala do crime, mas algo que ela partilha com ou-
tros tipos de pensamentos classificatrios, como o racismo. Analisando o racismo
como uma espcie de conhecimento, tienne Balibar argumenta que "o complexo
racista combina inextricavelmente uma funo crucial de desreconhecimento (sem
a qual a violncia no seria tolervel para as prprias pessoas envolvidas com ele)
e uma "vontade de conhecer", um desejo violento por conhecimento imediato de
relaes sociais" (1991: 19, grifos do original). Essa combinao gera uma grande
ambigidade quando as pessoas tentam simultaneamente organizar o pensamento
e a narrativa usando essas categorias e dar conta de detalhes de experincias espe-
cficas. Embora possa-se evitar a ambigidade quando a t<irefa mo simplesmente
estabelecer as categorias e elaborar um discurso geral sobre o crime, ela torna-se
inevitvel quando as pessoas lidam com detalhes especficos.
Cidade de Muros 37
Esse tipo de ambigidade claro no caso que estou analisando. A narrado-
ra conclui que o homem que a roubou, embora fosse branco e tivesse um "rosto
bom", s podia ser do Norte, provavelmente do Cear. Nos dois roubos, os cri-
minosos no se coadunavam exatamente com a imagem que ela faz de um nor-
destino/criminoso. Num dos casos, ela chegou mesmo a confundir o ladro com
um trabalhador e insistiu comigo: "Era um moo branco!". Mas em seus comen-
trios sobre o crime, ela insiste em usar a <f o j que
inconcebvel para ela que pudesse ser de outra forma. Ela tem de prender-se aos
estert:tipos disponveis e aplic-los rigorosamente para entender o absurdo dos
em sua vida e no bairro. As categorias so rgidas: no
so feitas para descrever o mundo de forma acurada, mas para organiz-lo e
classific-lo simbolicamente. Elas so feitas para combater a ruptura no nvel da
experincia, no para descrev-la. Isso no quer dizer que a descrio seja impos-
svel: est l, os ladres eram brancos e de boa aparncia, ela confundiu um deles
com um trabalhador. Mas isso parte da desorganizao do mundo, da experin-
cia de violncia e decadncia social que reintroduzi vrias vezes na narrao ao
solicitar detalhes. Na narrativa organizada, os criminosos precisam ser no-bran-
cos do Nordeste, dos cortios e das favelas, o lugar prprio aos criminosos. O
desreconhecimento inerente reorganizao simblica do mundo. parte do
esforo para dar novo significado a uma realidade que no mais faz sentido, que
sofreu uma ruptura e/ou que est mudando.
Algumas vezes a narradora reconheceu o carter simplista ou mesmo absurdo
de suas categorias e opinies. Por exemplo, num determinado ponto ela distancia
a si mesma da verso mais extrema dos preconceitos contra os favelados dizendo
que a idia de queim-los todos de seu marido, no dela. Mais adiante, ela modera
sua defesa da pena de morte e sua difamao dos nordestinos ao refletir sobre sua
ira e o carter veemente de seu discurso: "quando estou enfezada posso falar to
bem quanto um advogado", observou ela. Um advogado tambm um persona-
gem estereotipado, associado com corrupo, com a manipulao da lei possvel
para aqueles que tm o poder e com a maestria no uso das palavras para ludibriar.
Em suma, a fala do crime lida no com descries detalhadas dos crimino-
sos, mas com um conjunto de categorias simplistas, algumas imagens essenciali-
zadas que eliminam as ambigidades e misturas de categorias da vida cotidiana, e
que circulam especialmente em momentos de mudana social. A fala do crime no
feita de vises equilibradas, mas da repetio de esteretipos, ainda que se reco-
nhea seu carter simplista. A fala do crime elabora preconceitos. No entanto, pelo
fato de o desreconhecimento poder ser reconhecido, a fala do crime tambm
ambgua, com deslizes que revelam possveis dvidas do narrador em relao s
suas essencializaes. Essas ambigidades persistem em narrativas de crimes na
forma de alternncias de categorias bem definidas e pequenos comentrios dando
conta desses aspectos da realidade que no se enquadram na descrio estereoti-
pada. Elas ficam especialmente aparentes nos inmeros comentrios sobre os po-
bres. Em geral, as pessoas mais pobres de uma rea so associadas a criminosos e
sempre referidas nos termos mais depreciativos, inclusive pelos prprios pobres.
No entanto, todos reconhecem que a pobreza no s excessiva, mas tem cresci-
38 Teresa Pires do Rio Caldeira
do muito nos ltimos tempos, medida que a sociedade brasileira vem se tornan-
do mais desigual do que nunca. Isso reconhecido por todos com que falei, mes-
mo pela entrevistada que venho citando, que acha que as condies de vida dos
pobres esto se deteriorando, que as polticas governamentais em relao po-
breza so ineficazes, e que considera seu trabalho filantrpico como parte do "an-
tes", ou seja, o perodo no qual ela era feliz e sua vida estava em ordem. Sua pie-
dade e seu entendimento das condies sociais, no entanto, tm de ser praticamen-
te silenciados para que sua histria faa sentido e para que seja apresentada a mim
como um caso convincente. Eles so silenciados para que os esteretipos possam
tomar o primeiro plano.
O crime fornece um simbolismo com que discutir sobre outras coisas que so
percebidas como erradas ou ruins, mas sobre as quais pode no existir consenso de
interpretao ou vocabulrio. Tambm oferece o simbolismo com que discutir so-
bre outros processos de perda, como os processos de mobilidade descendente. Alm
disso, o crime fornece uma dramatizao para a narrativa de eventos aos quais fal-
ta esse carter dramtico -por exemplo, um processo de quatro dcadas de mu-
danas num bairro-, mas cujas conseqncias podem ser perturbadoras para os
indivduos que as experienciam. Na fala do crime, o medo do crime se mistura com
a ansiedade sobre inflao e posio social; a condio individual se entrelaa com
a situao social e com as transformaes na cidade, no espao pblico e no bair-
ro; as experincias biogrficas refletem as condies sociais. Na verdade, a trans-
lao recorrente e a reflexo contnua desses diferentes nveis por meio do vocabu-
lrio do crime e suas categorias que trazem dramaticidade para a avaliao dos atuais
dilemas da sociedade.
VIOLNCIA E SIGNIFICAO
A violncia sempre apresenta problemas de significao. A experincia de vio-
lncia rompe o significado, uma ruptura que a narrao tenta contrabalanar. Mas
as narrativas tambm podem fazer a violncia proliferar. Discusses tericas sobre
violncia freqentemente trazem embutidas em si teorias de linguagem e simbolis-
mo assim como discusses sobre a construo ou destruio da ordem cultural. A
seguir, considero algumas dessas discusses, que podem ser divididas em duas pers-
pectivas. Em primeiro lugar, h aqueles 'autores que analisam a violncia da pers-
pectiva da ordem cultural e que consideram que a violncia coloca em risco a lin-
guagem e, inversamente, que a clareza simblica ajuda a controlar a violncia. Em
segundo, esto aqueles que argumentam que a narrao faz a mediao da violn-
cia e a ajuda a proliferar. Minha inteno no desenvolver uma teoria geral da
relao mas chamar a ateno para as particularida-
des das crime e indicar como esto relacionadas reproduo da vio-
lncia e a outros processos sociais, especialmente a democratizao. As narrativas
de crime, ao lidar com a desordem da experincia causada pelo crime (ou por um
dos processos de ruptura que o crime simbolicamente expressa), produzem um certo
tipo de significao. Essas narrativas so simplistas, intolerantes e marcadas por
Cidade de Muros 39
preconceitos e esteretipos. Elas contradizem o discurso e as iniciativas democrti-
cas, exatamente os tipos de prtica que a sociedade brasileira estava tentando con-
solidar quando o crime tornou-se a fala da cidade. Alm disso, embora as distin-
es aguadas da fala do crime reordenem de fato as experincias perturbadas pela
violncia, no so eficazes para controlar a violncia. Ao contrrio, elas reprodu-
zem o medo e a violncia.
Em seu ambicioso estudo A violncia e o sagrado (1977), Ren Girard ofere-
ce o que chama de uma teoria cientfica da transformao da violncia em cultura,
mais exatamente, do mecanismo generativo capaz de controlar a violncia e sim-
bolizar a passagem do no-humano para o humano (1977: 309, 311). Girard des-
creve os processos sociais de violncia recproca generalizada (como uma srie de
vinganas privadas) como crise sacrificial, que ele define como
uma crise de distines- ou seja, uma crise que afeta a ordem cultural.
A ordem cultural nada mais que um sistema regulado de distines em
que as diferenas entre indivduos so usadas para estabelecer sua "iden-
tidade" e suas relaes mtuas ... Ordem, paz e fecundidade dependem
de distines culturais: no so essas distines mas a perda delas que
d origem a rivalidades ferozes e lana membros da mesma famlia ou
grupo social uns contra os outros ... Essa perda fora os homens a um
confronto perptuo, que os despoja de suas caractersticas distintivas -
em resumo, de sua "identidade". A prpria linguagem posta em risco.
(Girard 1977: 49, 51)
Assim, uma crise sacrificial uma espcie de guerra de todos contra todos na
qual os homens (esta a linguagem de Girard) perdem suas distines na medida
em que so nivelados pela violncia. A soluo que ele prope para essa crise uma
substituio sacrificial, na qual a sociedade unanimemente concorda com um ato
de violncia contra uma vtima solitria, a vtima expiatria, que simbolicamente
representa todas as vtimas potenciais (Girard, 1977: 81-2). Analisada por Girard
por meio da tragdia e do mito de dipo, a vtima expiatria transforma a violn-
cia generalizada e o caos em ordem social. Seu sacrifcio combina violncia boa e
ruim, a violncia que mata e a violncia que restaura a ordem. A violncia unni-
me exercida contra a vtima expiatria inicia um ciclo construtivo, aquele dos ritos
sacrificiais e da religio. Nesse ciclo, a violncia generativa (a unnime) constan-
temente evocada por meio de rituais repetitivos, mantendo a violncia recproca sob
controle e permitindo que a cultura floresa. Para Girard, "o ato original de vio-
lncia a matriz de todas as significaes mitolgicas e rituais" (1977: 113, grifo
do autor). O propsito dos rituais consolidar a diferena entre o bem e o mal,
selecionar uma certa forma de violncia e marc-la como boa e necessria em opo-
sio a outras formas, que so consideradas ruins.
A teoria de Girard apia-se na suposio no comprovada de que a violn-
cia inerente aos seres humanos, que tanto a agressividade quanto a vingana so
prprias da natureza humana e que a violncia contaminadora, comunicvel e
"se alastra como fogo" (1977: 31 ). Alm disso, seu argumento pressupe que a
40 Teresa Pires do Rio Caldeira
violncia paradoxal em sua natureza: como sangue, uma substncia que pode
"macular ou limpar, contaminar ou purificar, levar os homens fria e ao assas-
sinato ou apaziguar sua raiva e restaurar sua vida" (1977: 37). A violncia s pode
ser controlada por meio de violncia, isto , a boa e legtima violncia que dire-
ciona a violncia ruim para os "canais adequados" (1977: 31). Assim, o tema prin-
cipal no controle da violncia a capacidade da sociedade de manter a distino
e a separao entre violncia boa e m. "Enquanto pureza e impureza permane-
cem distintas, at mesmo a pior poluio pode ser lavada; mas uma vez que se
permite sua mistura, a purificao no mais possvel" (1977: 38). De acordo com
Girard, essa distino s pode ser mantida por uma autoridade de ampla legiti-
midade, que, sendo capaz de sancionar a violncia numa forma culturalmente
enclausurada, mantenha as distines entre bem e mal, violncia legtima e ileg-
tima, o sistema judicirio e a vingana. Essa autoridade seria, ento, capaz de de-
sempenhar repetidamente os rituais controlados (violncia boa) necessrios para
reproduzir a ordem e o simbolismo.
A teoria de Girard sobre a crise sacrificial e seu controle certamente no est
em conflito com a anlise da matria fora de lugar de Mary Douglas. Em ambos os
casos, a clareza das categorias que permite o controle do perigo e a manuteno
da ordem social. Douglas iguala a desordem sujeira e considera os esforos para
evit-la como criativos e teis para ajudar a unificar a experincia. "Acredito que
as idias de separao, purificao, demarcao e punio das transgresses tm
como principal funo impor sistematizao numa experincia inerentemente desor-
denada. S exagerando a diferena entre dentro e fora, acima e abaixo, macho e
fmea, a favor e contra, que uma aparncia de ordem criada. Nesse sentido, no
tenho medo da acusao de ter feito a estrutura social parecer excessivamente rgi-
da" (1966: 4). Para ela, rejeitar a poluio equivale a rejeitar a ambigidade, a
anomalia e a desordem. "A reflexo sobre a sujeira envolve a reflexo sobre a rela-
o de ordem e desordem, ser e no ser, forma e ausncia de forma, vida e morte"
(1966: 5). Dessa forma, para Douglas, os esforos para criar ordem e distino (que
combatem o perigo, a poluio e, poderamos acrescentar, a violncia) so empre-
endimentos culturais fundamentais.
A anlise de Elaine Scarry, embora tambm oponha violncia e linguagem como
Girard, apresenta um argumento diferente, uma vez que ela no se preocupa com
a questo da ordem social. Sua anlise da tortura comea com o pressuposto de que
"o sofrimento fsico no s se contrape linguagem como a destri ativamente,
causando uma reverso imediata a um estado anterior linguagem, aos sons e gri-
tos que um ser humano produz antes de aprender a linguagem" (1985: 4).
5
Ator-
tura tambm "imita (objetiva no ambiente externo) essa capacidade de destruio
da linguagem em sua interrogao, cujo propsito no extrair informao neces-
5 Ver Daniel (1996: cap. 5) para uma anlise etnogrfica da tortura e do terror que corro-
bora a hiptese de Scarry. Discusses sobre tortura sempre se referem produo de significado
uma vez que a tortura comumente associada s questes da verdade e da lei. Discuto esses temas
no captulo 9.
Cidade de Muros
41
sria mas visivelmente desconstruir a voz do prisioneiro" (1985: 20). A estrutura
da tortura a estrutura do desfazer. Para Scarry, o ponto principal da tortura no
a verdade, mas o poder. Essa estrutura se ope quela do fazer, criar, significar,
em resumo, estrutura da linguagem.
Enquanto autores como Girard e Scarry opem violncia e linguagem, h
outros que sustentam o argumento contrrio, isto , que a narrativa ajuda a vio-
lncia a circular e a proliferar. Em seu estudo sobre terror e violncia durante o boom
da borracha na regio de Putumayo, na Colmbia, Michael T aussig argumenta que
o terror mediado pela narrao (1987: 127). Para ele, o embate colonial foi um
embate moldado num espao de desentendimento e criou uma cultura de terror
baseada no imaginar e na reproduo do medo. Por meio do trabalho colonial de
fabulao, a realidade tornou-se incerta e foi a violncia que estruturou as interaes
sociais. Reconhecer a imbricao de violncia com narrao tem, segundo T aussig,
implicaes para o trabalho do antroplogo: como o terror alimentado pela nar-
rao, difcil escrever contra ele (ver tambm Taussig 1992). Todavia, ele escreve
contra a violncia e tenta encontrar um meio de produzir estranhamento em rela-
o a ela. Alm disso, ele sugere que o terror pode ter efeitos inesperados, uma vez
que seu simbolismo ajuda a dar aos xams contemporneos seu poder de curar. As
imbricaes de violncia, ordem e significao tornam-se, ento, substancialmente
mais complexas.
A anlise da violncia poltica na Irlanda do Norte feita por Allen Feldman
(1991) tambm contribui para expor a complexidade dessas imbricaes. Como
T aussig, que considera que a cultura do colonialismo inscrita no corpo e que o
significado produzido no corpo dos dominados, Feldman argumenta que a cultu-
ra poltica da Irlanda do Norte baseada na "comodificao do corpo" (1991: 8).
Para ele, o instrumento poltico por excelncia na Irlanda o corpo, o qual si-
multaneamente vtima e perpetrador da violncia e por meio do qual no apenas
as transformaes sociais acontecem, como a histria visualizada (1991: 9). "A
formao mltipla do corpo pela violncia, pelas tecnologias polticas e pelo ritual
jurdico convertem-no num texto inscrito e num agente de inscrio, num instru-
mento contaminado e contaminador, um 'fazendo' e um sendo 'feito'. Essa cons-
truo ambivalente do corpo e seu estabelecimento como uma forma poltica so
contemporneos da institucionalizao da violncia como um mecanismo que se
perpetua por meio de trocas e de mimese" (1991: 144-5). Feldman argumenta que
as narrativas orais remontam o corpo que foi fragmentado pela violncia. Ao fazer
isto, no entanto, as narrativas tm o mesmo efeito da violncia poltica: testemu-
nham a emergncia da agency poltica (1991: 10-6). "Muitos dos textos transcri-
tos neste livro podem ser entendidos como um projeto poltico-cultural da parte dos
autores e de minha parte, de localizar a narrativa na violncia ao localizar a vio-
lncia por meio da narrativa" (1991: 14).
Analisando a reproduo da violncia sectria na Irlanda do Norte Feldman
mostra no s como cada espao e personagem poltico tornam-se impcados na
violncia e so ento recriados na narrao, mas tambm - em contradio direta
com Girard- como as aes que supostamente combatem a violncia, como o
sacrifcio (greve de fome, por exemplo), podem acabar tendo o efeito exatamente
42
Teresa Pires do Rio Caldeira
oposto, reproduzindo-a. Isso acontece porque na Irlanda do Norte a significao
poltica sempre obtida por meio da violncia e do corpo. Nesse contexto, um ato
sacrificial no pode quebrar o ciclo da violncia recproca ao ressimboliz-lo, como
teoriza Girard, mas acaba reforando o mesmo simbolismo e perpetuando avio-
lncia. Pelo fato de a "produo recproca e a troca dos objetos sacrificiais" (1991:
264) no serem estranhos cultura poltica, um ato de sacrifcio incapaz de esta-
belecer a diferena entre a violncia ilegtima que mata e a violncia legtima que
cura. Ele apenas repete o mesmo significado e dessa forma se acrescenta "circula-
ridade da mimese violenta" (1991: 264). Ao salientar como a violncia assimila
aquilo que supostamente deveria estanc-la (sacrifcio e narrao), Feldman nos
apresenta uma formao cultural destinada a repetir a si prpria e sua violncia
poltica indefinidamente. Nesse cenrio, no h possibilidade de mudana e ressig-
nificao, j que tudo permanece dentro do ciclo de violncia mimtica.
As anlises de Taussig e Feldman sobre o papel do simbolismo na reprodu-
o da violncia, assim como minha anlise sobre os efeitos da fala do crime na
reproduo do medo e da violncia em So Paulo, indicam que os problemas de
significao apresentados pela violncia no so simplesmente uma questo de es-
tabilizar distines e tentar estabelecer a ordem. A fala do crime e o crescimento
da violncia na So Paulo atual indicam a existncia de intricadas relaes entre
violncia, significao e ordem, nas quais a narrao tanto combate quanto re-
produz a violncia. De fato, a fala do crime faz a violncia proliferar ao combater
e simbolicamente reorganizar o mundo. A ordem simblica engendrada na fala
do crime no apenas discrimina alguns grupos, promove sua criminalizao e os
transforma em vtimas da violncia, mas tambm faz o medo circular atravs da
repetio de histrias e, sobretudo, ajuda a deslegitimar as instituies da ordem
e a legitimar a privatizao da justia e o uso de meios de vingana violentos e
ilegais. Se a fala do crime promove uma ressimbolizao da violncia, no o faz
legitimando a violnciaJegal para combater a violncia ilegal, mas fazendo exa-
tamente o contrrio. Ao operar com oposies bem definidas e categorias es-
sencializadas derivadas da polaridade bem versus mal, as narrativas sobre o cri-
me ressignificam e organizam o mundo de uma maneira complexa e particular.
Alm disso, essa reorganizao especfica do mundo tanto tenta contrabalanar
as rupturas causadas pela violncia quanto medeia a violncia, fazendo com que
ela prolifere. Mais do que manter um sistema de distines, as narrativas sobre o
crime criam esteretipos e preconceitos, separam e reforam desigualdades. Alm
disso, na medida em que a ordem categoria! articulada na fala do crime a or-
dem dominante de uma sociedade extremamente desigual, ela tampouco incorpo-
ra experincias dos grupos dominados (os pobres, os nordestinos, as mulheres
etc.); ao contrrio, ela normalmente os discrimina e criminaliza. Dessa forma, as
experincias dq;;ses grupos precisam encontrar maneiras alternativas de expresso,
as quais so .freqentemente muito ambguas, j que simultaneamente reafirmam
e negam a ordem categoria!. Finalmente, a fala do crime tambm est em desa-
cordo com os valores de igualdade social, tolerncia e respeito pelos direitvs
alheios. A fala do crime produtiva, mas o que ela ajuda a produzir segregao
(social e espacial), abusos por parte das instituies da ordem, contestao dos di-
Cidade de Muros 43
reitos da cidadania e, especialmente, a prpria violncia. Se a fala do crime gera
ordem, esta no uma ordem democrtica, igualitria e tolerante, mas exatamente
o seu oposto. A democracia tem a ver com a abertura e indefinio de fronteiras
(como argumento no captulo 8), no com enclausuramentos, fronteiras rgidas e
distines dicotomizadas.
No universo do crime, as barreiras esto enraizadas no apenas nos discur-
Aos mas tambm materialmente nos muros da cidade, nas residncias das pessoas
de todas as classes sociais e nas tecnologias de segurana. Preconceitos e derrogaes
no mas se reproduzem em rituais de suspeita e investigao
nas entradas de edifcios pblicos e privados. medida que os pensamentos e atos
das pessoas so moldados pelo raciocnio categorizante da fala do crime, sua in-
fluncia se espalha, afetando no apenas as interaes sociais mas tambm as pol-
e o comportamento poltico. Assim, a ordem simblica da fala do crime
visvel e materialmente faz a mediao da violncia. Na So Paulo de hoje, o apoio
a solues privadas e violentas para o crime no apenas gera discursos, mas tam-
bm alimenta o crescimento fenomenal da indstria de segurana privada (tanto
legal como ilegal). Alm disso, esse apoio gera indiferena em relao s aes ile-
gais de uma fora policial que em 1992 matou 1.470 suspeitos de crimes em So
Paulo. A nova Constituio, aprovada aps o fim do regime militar, descrita por
muitos depreciativamente como "protetora de bandidos" porque estabelece regras
para a deteno de suspeitos e limites para a busca e apreenso por parte da pol-
cia. Muitos residentes da cidade consideram que as pessoas que defendem os direi-
tos humanos dos presos advogam "privilgios de bandidos". Se o medo do crime e
a expanso da violncia so reais em So Paulo, e se o crime est fornecendo uma
linguagem com a qual se pode falar e pensar sobre muitos outros processos de
desestabilizao, tambm verdade que, com a ajuda da fala do crime, o que est
sendo forjado uma cidade muito mais segregada e uma sociedade muito mais
desigual, na qual as noes de justia e os direitos de cidadania so diretamente
contestados, apesar do sistema poltico democrtico.
Neste livro, analiso as complexas e multifacetadas equaes que conectaram
o crime, a violncia e o medo com outros processos que tm transformado a socie-
dade brasileira nas duas ltimas dcadas. Na So Paulo dos anos 80 e 90, e especial-
mente na poca em que fiz a maioria das entrevistas (1989-1990), o crime no era
o nico processo desestabilizador. Esse perodo da histria brasileira foi marcado
por uma srie de processos de transformao e por uma considervel instabilida-
de. Esses vrios processos, embora obviamente interligados e dialogando entre si,
no tiveram significados coincidentes. Alguns foram restritivos e resultaram em perda
e deteriorao (inflao alta, crise econmica, desemprego e violncia). Outros, no
entanto, especialmente a democratizao poltica, foram expansivos e geraram liber-
dade e respeito a direitos. Nesse contexto, o crime ofereceu no s uma linguagem
para dar sentido a outros processos desestabilizantes, mas tambm, atravs de suas
ordenaes simblicas peculiares, um campo no qual muitos cidados resistiram
democratizao. Embora essa resistncia tenha sido significativa em alguns momen-
tos, e apesar da cidade de muros criada pelas estratgias de segurana ser basicamente
antidemocrtica, a resistncia no impediu que a democracia criasse razes ou que
44 Teresa Pires do Rio Caldeira
a cidadania se expandisse. No entanto, ela as desafiou e exps alguns de seus limi-
tes e disjunes.
Em suma, neste livro concentro-me nos processos que fazem o medo circular
e a violncia proliferar, assim como naqueles que contrapem-se ao medo e vio-
lncia. No entanto, como meu foco principal o crime, o medo que ele provoca, o
simbolismo que ele gera e as reaes de proteo que ele promove, vou lidar prin-
cipalmente com o que se poderia chamar de "o lado escuro da realidade social".
Este lado no apenas se refere violncia, mas tambm refora o autoritarismo e a
segregao, estimula o preconceito e o racismo, e torna naturais as desigualdades
sociais. Concentrar-se nesse universo e expor seu poder no significa desprezar a
capacidade dos cidados de So Paulo de resistir dominao ou desdenhar seus
esforos para consolidar a democracia. Ao contrrio, significa expor em toda a sua
complexidade os processos que criam obstculos democratizao e apresentam
severos desafios para sua consolidao para alm do sistema poltico. Para que possa
criar razes na sociedade brasileira, a democracia ter de enfrentar e neutralizar os
processos de violncia, discriminao e segregao que o universo do crime arti-
cula. A violncia e o crime no existem isoladamente na sociedade brasileira, mas
sim num tenso dilogo com a consolidao democrtica.
Do PROGRESSO CRISE ECONMICA; DO AUTORITARISMO DEMOCRAClA
Mais de uma gerao de paulistanos cresceu acreditando que o destino de sua
regio metropolitana era ser "a locomotiva do pas". Uma das mais fortes imagens
da modernidade moldou suas mentes e sua cidade. A partir dos anos 50, o lema
que acompanhou o intenso processo de industrializao e urbanizao era: "So
Paulo no pode parar!". At muito recentemente, o progresso realmente pareceu
ser o destino de So Paulo e do Brasil. No entanto, os anos 80 acabaram sendo "a
dcada perdida": em vez de crescimento, houve uma recesso profunda. A infla-
o alta, associada a um fraco desempenho econmico e ao empobrecimento da
populao, reverteram o quadro. No incio dos anos 90, a crena no progresso deu
lugar ao pessimismo e frustrao, sentimentos expressos em discusses sobre o
crime. Resumo brevemente aqui os principais processos de mudana que transfor-
maram a sociedade brasileira e So Paulo ao longo dos ltimos vinte anos. Minha
inteno no oferecer uma histria completa, mas apenas destacar alguns dos
principais eventos de modo a contextualizar a anlise que apresentarei a seguir.
A noo de desenvolvimentismo serviu como pano de fundo s polticas p-
blicas brasileiras desde os anos 50. Em poucas palavras, a idia era promover, num
perodo concentrado de tempo, uma industrializao baseada na substituio de
importaes e voltada para o mercado interno. Isso deveria ser alcanado a partir
de uma poltica de atrao do capital estrangeiro, incentivos estatais, e que atribua
ao Estado um papel econmico central. Embora alguns aspectos da poltica de-
senvolvimentista tenham sido postos em prtica durante os governos de Getlio
Vargas (1930-45 e 1950-54), tornou-se emblemtica sob a presidncia de Jusceli-
no Kubitschek, com seu "Plano de Metas" e o slogan dos "50 anos em 5". A eria-
Cidade de Muros
45
o de Braslia deveria simbolizar e ajudar a promover o salto que se esperava que
o pas desse do atraso modernidade.
6
A indstria metalrgica baseada em So Paulo foi o centro da nova industria-
lizao. Em 1907, a produo industrial do estado de So Paulo representava 16%
da produo nacional; essa porcentagem cresceu para 31% em 1919, 3 8% em 1929,
49% em 1950 e 55% em 1960 (Brant 1989: 19). Em 1970, o estado de So Paulo
contribuiu com 58,2% do valor nacional da indstria de transformao (Rolnik s.d.:
27). Embora muitas outras regies tenham aumentado consideravelmente sua pro-
duo, e ainda que a crise econmica e o recente processo de desindustrializao
tenham afetado consideravelmente sua posio, So Paulo ainda o principal plo
industrial do pas.
Como era de se esperar, o crescimento industrial esteve associado a uma in-
tensa urbanizao. A populao da regio metropolitana de So Paulo cresceu a
taxas em torno de 5,5% ao ano entre 1940 e 1970. Durante esse perodo, a migra-
o interna foi responsvel por 50% do crescimento demogrfico: ela trouxe mais
de 1 milho de novos habitantes para a regio nos anos 50 e 2 milhes nos anos 60
(Periiio 1993: 2). A construo civil e a transformao eram intensas e o governo
local repetia o lema "So Paulo no pode parar!" .7
Os militares, que fecharam fora todas as organizaes polticas e de oposi-
o, no interromperam o desenvolvimentismo: tambm eles queriam transformar
o Brasil num pas moderno. Sob o regime militar, o PIB alcanou taxas de 12% de
crescimento anual no incio dos anos 70. O progresso econmico era baseado no
endividamento externo e na interveno direta do Estado na economia. Essa inter-
veno foi responsvel, entre outras coisas, pela criao de uma nova infra-estru-
tura de estradas e telecomunicaes, e pela expanso de instalaes e servios de
consumo coletivos como um sistema nacional de sade e seguridade social. No
entanto, tudo foi feito sem a participao poltica das massas e sem distribuio da
riqueza. Durante os "anos do milagre", os militares anunciaram que era preciso
primeiro crescer para depois "dividir o bolo". Apesar da desigualdade persistente,
o Brasil mudou rapidamente nos ltimos sessenta anos e, no obstante a represso
poltica, a populao passou a se orgulhar do seu pas "miraculosamente" moderno.
Embora So Paulo apresente o exemplo mais expressivo de industrializao e
urbanizao, esta foi intensa em todo o pas. A populao urbana do Brasil, que
em 1950 constitua 36o/o da populao total, em 1980 representava mais de 50%
(cerca de 80 milhes de pessoas). Metade dessa populao urbana vivia em 30 cen-
tros urbanos de mais de 250 mil habitantes. Por volta de 1980, o Brasil possua nove
6
Sobre teorias econmicas nacional-desenvolvimentstas na Amrica Latina, ver F. H. Car-
doso (1980). Sobre a histria da indnstrialzao, ver Dean (1969) e Singer (1984). Para uma an-
lise da criao de Braslia e seu simbolismo, ver Holston (1989); para anlises do governo de
Kubitschek e do desenvolvimentismo, ver Benevides (1976) eM. L. Cardoso (1978).
No captulo 6, apresento uma anlise detalhada da urbanizao e das recentes transfor-
maes de So Paulo.
46 Teresa Pires do Rio Caldeira
regies metropolitanas com mais de 1 milho de habitantes, cuja populo tinha
crescido a uma taxa de 4,5% ao ano entre 1940 e 1970. Nessas regiesmetropoli-
tanas esto concentrados cerca de 30% da populao brasileira, que, em 1996,
alcanava 157 milhes, 78% na regio urbana.
8
A expanso econmica dos anos 70 e a consolidao de um "sistema decida-
des"- isto , um complexo padro de diviso territorial do trabalho entre o cam-
po e a cidade e entre as cidades (Faria 1991: 103)- esto associadas a mudanas
complexas na estrutura produtiva.
9
Seu setor mais dinmico tem sido a indstria
de bens de consumo durveis para o mercado interno, associada ao crescimento de
bens de capital e intermedirios. Apesar das crises cclicas, esse setor mais dinmi-
co foi capaz, at o incio dos anos 80, de criar um nmero considervel de novos
empregos. Como resultado, um nmero crescente de trabalhadores foi incorpora-
do ao mundo dos salrios e contratos formais de trabalho. Ao mesmo tempo, cons-
tituiu-se um mercado nacional de trabalho e bens (Faria 1991: 104). O mesmo di-
namismo econmico, no entanto, fomentou a expanso de um mercado de traba-
lho informal e mal pago (servios domsticos e pessoais, indstria de construo
marginal etc.) baseado no trabalho intensivo e na baixa produtividade, e na proli-
ferao do subemprego. Finalmente, a expanso econmica dos anos 70 agravou
uma distribuio da riqueza j desigual, pela qual, no fim dos anos 70, os 50% mais
pobres da populao recebiam apenas 14% da renda total. Resumindo o tipo de
estrutura social urbana criado durante os anos 70, Faria (1991: 105) sustenta que
ele era constitudo por trs grandes segmentos. O primeiro, formado por grupos
ocupacionais de renda alta ou muito alta, numericamente reduzido mas com gran-
de poder de compra e influncia social e poltica numa sociedade que se tornou mais
autoritria e elitista durante esse perodo. O segundo, contingentes significativos
- colarinhos brancos e azuis - de pessoas incorporadas aos setores produtivos
mais dinmicos e modernos. Finalmente, uma massa de pobres subempregados.
O mercado nacional de consumo consolidado nesse tipo de sociedade nos anos
70 exibia importantes peculiaridades. O crescimento da indstria nacional estava
baseado na expanso do mercado interno. Massas considerveis da populao fo-
ram integradas ao mercado de consumo a partir de uma vigorosa poltica de crdi-
to que, como mostrou Wells (1976), permitiu s camadas baixas o acesso a alguns
bens de consumo durveis (como um televisor, por exemplo) e a roupas. Essa pol-
tica permite entender a presena de televisores nas favelas e basicamente explica como
foi possvel expandir o mercado interno e ao mesmo tempo manter uma distribui-
o desigual da renda e salrios muito baixos.
8 To dos os dados demogrficos so dos censos. Essas reas metropolitanas so Belm, For-
taleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, So Paulo, Curitiba e Porto Alegre. So
todas capitais. H tambm algumas cidades que no so capitais e tm mais de 1 milho de habi-
tantes, tais como Santos e Campinas, no estado de So Paulo.
9 Ver Faria (1983 e 1991) para anlises do padro de urbanizao nos ltimos cinqenta
anos, da consolidao de um "sistema de cidades" nacional e de mudanas na estrutura de emprego.
Cidade de Muros
47
Na verdade, a combinao de crescimento e desigualdade marcou os mais
variados aspectos do desenvolvimento dos anos 70. Esse o caso dos equipamentos
e servios de consumo coletivo. De acordo com Faria (1991: 107-8), os servios de
sade, previdncia social e educao bsica se expandiram, mas ao custo de uma
queda da qualidade dos servios e de salrios extremamente baixos pagos aos pro-
fissionais que os forneciam. Alm disso, pelo fato de o controle exercido pela socie-
dade civil sobre esses servios ser frgil, eles tm sido oferecidos de uma maneira
distorcida (por exemplo, h falta de servios mdicos bsicos ao lado de um alto
investimento em sofisticadas tecnologias, corrupo na administrao de fundos de
previdncia social etc.). Em reas que exigem altos investimentos pblicos, como
habitao, transporte pblico e saneamento bsico, os resultados foram ainda piores.
Em suma, dos anos 40 ao final dos anos 70, tanto o Brasil como a regio
metropolitana de So Paulo mudaram de forma dramtica mas paradoxal: urba-
nizao significativa, industrializao, sofisticao e expanso do mercado de con-
sumo e complexificao da estrutura social foram acompanhados por autori-
tarismo, supresso da participao poltica da maioria da populao, uma distri-
buio extremamente desigual da renda e uma constante tentativa de manter a
hierarquia social e a dominao pessoal. Em outras palavras, o Brasil tornou-se
um pas moderno com base numa combinao paradoxal de rpido desenvolvi-
mento capitalista, desigualdade crescente e falta de liberdade poltica e de respei-
to aos direitos dos cidados. So Paulo a regio que melhor representa a mo-
dernidade brasileira com todos os seus paradoxos. Com seus mais de 16 milhes
de habitantes, indstrias e arranha-cus, escritrios high-tech e favelas, metrs
sofisticados e altas taxas de mortalidade infantil, comunicaes via satlite e bai-
xos nveis de alfabetizao, a metrpole de So Paulo tornou-se um dos melhores
smbolos de uma sociedade de consumo industrial pobre mas moderna, heterog-
nea e profundamente desigual.
Apesar dos seus desequilbrios, o processo de industrializao e crescimento
ajudou a sustentar muitas promessas: de progresso, mobilidade social e incorpora-
o do Brasil ao mercado de consumo internacional e modernidade. Quando o
PIB estava crescendo a uma taxa de 10% ao ano, quando a renda per capita cres-
cia a 6,1% ao ano, quando a maioria dos migrantes tornavam-se proprietrios e
construam casas para suas famlias nas maiores cidades do pas, quando essas ca-
sas eram decoradas com todo tipo de bens industrializados produzidos (sobretudo
a televiso) e quando as crianas dessas famlias recebiam educao e servios m-
dicos (ainda que esses servios fossem ruins), era possvel acreditar que o Brasil
realmente estava se tornando moderno, que o futuro seria melhor, que a nova ge-
rao seria mais afortunada e que a participao poltica e a diminuio da desi-
gualdade viriam com o tempo.l
0
Embora a elite continuasse a sentir-se pouco
10
Durante os anos 70, segundo Rocha, "a renda per capita expandiu-se 6,1% por ano, a
taxa de analfabetismo caiu de 40% para 33%, e a populao urbana aumentou de 55% para 68%.
Embora as desigualdades de renda e regionais tenham claramente se intensificado nos anos 70,
isso foi compensado pelo fato de que a maioria das pessoas, contudo, estava em melhor situao.
48 Teresa Pires do Rio Caldeira
vontade com a incorporao das classes trabalhadoras ao mundo moderno, isso era
aceitvel enquanto seu prprio enriquecimento estivesse garantido.
A f nas promessas de progresso e o padro de crescimento mantiveram-se at
a crise econmica de 1980, quando mudanas demogrficas, polticas, econmicas
e sociais comearam a transformar a sociedade brasileira. Elas combinaram para
trazer um fim ao padro de desenvolvimento, urbanizao e crescimento que tinha
sido consolidado nos anos anteriores. As mudanas demogrficas que se tornaram
claras nos anos 80 foram to espetaculares que se costuma dizer que marcaram uma
"transio demogrfica" e mudaram o padro demogrfico brasileiro. Dos anos 40
aos anos 60, o Brasil experimentou um declnio nas taxas de mortalidade e taxas
de fecundidade total constantemente altas (cerca de 6,0). Como resultado, a taxa
mdia de crescimento da populao tambm foi alta (cerca de 3,0% ao ano) e a
distribuio etria da populao era jovem. Nos anos 70, as taxas de fecundidade
total comearam a declinar. Inicialmente, o processo limitou-se s reas mais ricas
e urbanizadas, mas nos anos 80 j se manifestava por todo o pas. Como resulta-
do, a taxa de fecundidade total caiu de 5,8, em 1970, para 4,3 em 1975 e 3,6 em
1984, isto , um declnio acentuado de 37% em 15 anos. Estimativas para 1990
indicavam uma taxa de no mximo 2,9 filhos por mulher em idade frtil.l
1
Vilmar
Faria (1989) sugeriu uma hiptese instigante para explicar esse declnio acentuado
num curto perodo de tempo e na ausncia de qualquer poltica pblica de contro-
le populacional. Segundo ele, a mudana no comportamento reprodutivo foi um
efeito inesperado de quatro polticas sociais governamentais que seguiram a urba-
nizao e que criaram o sistema nacional de sade, o sistema de previdncia social,
o sistema de telecomunicaes que permitiu a difuso dos meios de comunicao
de massa e o programa de crdito direto ao consumidor. A mudana foi possvel,
pelo menos em parte, por causa da crescente disponibilidade dos servios mdicos,
que afetou especialmente as mulheres e sua percepo de seu corpo. O acesso a esses
servios legitimou e naturalizou intervenes nos corpos das mulheres e abriu ca-
minho para a adoo generalizada de mtodos anticoncepcionais. A essa transfor-
mao associaram-se outras mudanas significativas nas percepes e atitudes das
mulheres, por exemplo sobre trabalho e educao, e uma completa reavaliao da
importncia de se ter famlias grandes. O caminho dessas mudanas de valores passa
pela urbanizao mas especialmente pela integrao da maioria da populao aos
meios de comunicao de massa, que sempre divulgaram um modelo de famlia
moderna que o da famlia de classe mdia com poucos filhos e freqentemente
com uma mulher que trabalha.
12
Do ngulo da renda, a pobreza absoluta diminuiu drasticamente: estima-se que a proporo de
pobres caiu de 53% em 1970 para 27% em 1980" (1996: 2).
11
Os dados sobre taxas de fecundidade so da PNUD-IPEA (1996: 65-7). Para uma discusso
dos tipos radicais de controle de natalidade adotados por mulheres brasileiras, ver o captulo 9.
12 Ver Hamburger (1998) para uma anlise da televiso no Brasil ps-64 e especialmente
sobre o papel das telenovelas. ,
Cidade de Muros
49
Um dos resultados da queda nas taxas de fecundidade total o declnio da
taxa mdia anual de crescimento da populao, que na primeira metade de 1990
foi de apenas 1,9%. Um segundo resultado a mudana na pirmide etria da
populao, que se tornou mais velha. Finalmente, um terceiro resultado a mudana
no padro de urbanizao. Durante os anos 80 e especialmente durante os anos 90,
houve um importante declnio nas taxas de crescimento da populao urbana. Isso
fica especialmente claro nas nove maiores regies metropolitanas, onde as taxas
caram de 4,5% ao ano no perodo 1940-1970, para 3,8% durante os anos 70 e
2% durante os anos 80. Depois de ter crescido apenas 1,16% durante os anos 80 e
ter registrado uma significativa emigrao pela primeira vez na histria, So Pau-
lo, a cidade que no podia parar, o paraso dos migrantes, teve uma taxa de cresci-
mento da populao de apenas 0,4% entre 1991 e 1996.
Como bastante sabido, os anos 80 tambm foram "a dcada perdida" para
a crise econmica. O PIB caiu 5,5% e o salrio mnimo real diminuiu 46% duran-
te o perodo de 1980-1990 (Serra 1991). Entre 1940 e 1980, o PIB crescera 6,9%
anualmente (4% no caso do PIB per capita). Entre 1980 e 1992, cresceu apenas
1,25% ao ano e a renda per capita caiu 7,6% (PNUD-IPEA 1996: 73). Um dos
principais componentes da crise econmica foram as persistentes taxas elevadas de
inflao (ver Tabela 1).
Tabela 1
1980-1998
Ano Ano
1980 99,7 1990 1.585,2
1981 93,5 1991 475,1
1982 100,3 1992 1.149,1
1983 178,0 1993 2.489,1
1984 209,1 1994 929,3
1985 239,1 1995 21,9
1986 58,6 1996 9,1
1987 396,0 1997 4,3
1988 994,3 1998 2,5
1989
Fonte: IBGE: INPC Nacional de Preos ao Consumidor).
Obs: Valores relativos variao anual dos preos ao consumidor medidos em dezembro.
Os sucessivos planos para combater a inflao falharam at meados dos anos
90 inclusive o famoso Plano Cruzado em 1986 e o Plano Collor em 1990. Alm
disso, eles tiveram fortes efeitos na vida dos cidados, que, como as pessoas que
entrevistei e cujos depoimentos analiso no captulo 2, sentiram que sua qualidade
de vida se deteriorou continuamente durante o perodo. Alm disso, a recesso eco-
nmica gerou desemprego e poucas oportunidades de recuperao. Durante a vi-
gncia de altas taxas de inflao, fica mais difcil prever o futuro e aumenta a sen-
sao de insegurana das pessoas em relao sua posio social. A decadncia social
passa a ser uma perspectiva mais realista do que as possibilidades de ascenso, ao
contrrio do que ocorrera desde os anos 50 at os 80.
50 Teresa Pires do Rio Caldeira
De acordo com alguns analistas (por exemplo PNUD-IPEA 1996: 73-6),
0
fracasso das polticas econmicas nos anos 80 e 90 deve-se pelo menos em parte
sua incapacidade de promover as mudanas estruturais necessrias para dar in-
cio a um outro padro de desenvolvimento. Eles reconhecem que o padro ante-
rior - baseado na substituio das importaes, forte interveno estatal na eco-
nomia e endividamento externo- alcanou seu limite nos anos 80. A inflao s
foi controlada depois de 1994, com o Plano Real, elaborado pelo ento ministro
da Fazenda Fernando Henrique Cardoso. Eleito presidente com base no sucesso
do plano, Cardoso vem adotando uma srie de polticas que esto transformando
o padro anterior de crescimento e o papel do estado. Elas incluem o agressivo
programa de privatizao de empresas pblicas (incluindo telecomunicaes, ener-
gia e petrleo), a tentativa de reforma do sistema de previdncia social e a de con-
trolar o dficit pblico. Cardoso foi reeleito em 1998, mas seu segundo mandato
comeou em meio a uma crise econmica associada ao endividamento pblico e
desvalorizao da moeda que trouxe de volta ao Brasil o FMI, e afetou substan-
cialmente seu apoio junto populao. Uma anlise definitiva sobre o rumo das
mudanas na estrutura da produo ainda est por ser feita, mas os dados dispo-
nveis para o estado de So Paulo indicam algumas importantes transformaes.
13
Desde os anos 80, decresceu a participao de So Paulo no valor da transforma-
o industrial. Ela era de 58,2% em 1970, caiu para 49,6% em 1984 e para 41%
em 1991 (Rolnik s.d.: 27; e Leme e Biderman 1997). Os efeitos da crise econmi-
ca foram especialmente fortes na cidade de So Paulo e na maioria das reas in-
dustrializadas da regio metropolitana, exatamente aquelas que tinham passado
por um boom durante o padro de desenvolvimento anterior. O centro industrial
do pas fechou indstrias e comeou a reestruturar sua economia durante os anos
80 e 90.
As conseqncias sociais da crise econmica foram devastadoras. Depois de
uma dcada de inflao, desemprego e recesso, a pobreza adquiriu propores
alarmantes no comeo dos anos 90.
14
Pesquisas recentes demonstram que os efei-
tos da crise foram especialmente duros para os pobres e agravaram a j desigual
distribuio da renda.
15
Rocha ( 1991: 3 7) mostra que a proporo de pessoas po-
bres nas nove regies metropolitanas acompanhou as oscilaes da crise econ-
mica: ela alcanou um pico durante a recesso de 1983 (38,2%) e atingiu sua taxa
mais baixa durante o ano de recuperao de 1986 (22,8% ). Para todo o pas, em
13
O ltimo censo industrial no Brasil foi em 1985.
14
De acordo com o Dieese-Seade, as taxas de desemprego estavam por volta dos 6% no
final dos anos 80 e ao redor de 8,5% na primeira metade dos anos 90.
15
Entre os estudos recentes sobre a pobreza e a distribuio de renda incluem-se: Barros e
Mendona (1992), Barros, Camargo e Mendona (1996), Barros, Machado e Mendona (1997),
Barros, Mendona e Duarte (1997), Leme e Biderman (1997), Lopes (1993), Lopes e Gottschalk
(1990) e Rocha (1991, 1995 e 1996). .
Cidade de Muros
51
1990, a proporo de pobres era de 30% (Rocha 1996: 1).
16
Embora esse nvel
seja mais baixo que o de 1980 (34%), em comparao com o longo perodo de
mobilidade social e diminuio da pobreza dos anos 70, ele esconde uma forte
reverso de expectativas. Num contexto de crise e de inflao no qual esperanas
de mobilidade foram se frustrando, a insatisfao se tornou generalizada, especial-
mente nas reas metropolitanas, onde a proporo de pobres maior do que nas
pequenas cidades (ver Leme e Biderman 1997 para uma anlise do estado de So
Paulo). As entrevistas que analiso no captulo 2 demonstram claramente essa re-
verso de expectativas.
Em 1995, o Brasil tinha um PIB deUS$ 536 bilhes e uma renda per capita
deUS$ 3.370. Atualmente seu PIB est entre os dez maiores do mundo. Todavia,
sua distribuio de renda uma das piores. A proporo da renda apropriada pe-
los 20% mais ricos da populao cresceu de 54% em 1960 para 62% em 1970,
63% em 1980 e 65% em 1990, enquanto a proporo correspondente aos 50%
mais pobres caiu de 18% em 1960 para 15% em 1970, 14% em 1980 e 12% em
1990 (Barros, Mendona e Duarte 1997). Estudos recentes mostraram que a maior
concentrao de renda ocorre no topo da distribuio, especialmente nos 1% mais
ricos, enquanto a diferena entre os decis mais baixos no acentuada e compa-
rvel de outros pases latino-americanos. Na ltima dcada, de acordo com os
resultados das PNADs,
17
a proporo da renda nas mos dos 1% mais ricos da
populao cresceu de 13,0% em 1981 para 17,3% em 1989 e para 15,5% em 1993.
Um estudo recente do PNUD (Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento)
comparando 55 pases mostrou que, medida pela razo entre a renda mdia per
capita dos 10% mais ricos e dos 40% mais pobres da populao, o Brasil tinha a
pior situao de desigualdade. Enquanto na maioria desses pases (incluindo todos
os pases desenvolvidos e todos os outros principais pases da Amrica Latina) a
renda dos 10% mais ricos em mdia dez vezes mais alta do que aquela dos 40%
mais pobres, no Brasil ela quase trinta vezes mais alta (PNUD-IPEA 1996: 17). A
regio metropolitana de So Paulo uma das menos pobres e tem uma das melho-
res distribuies de renda do pas. Em 1990, os pobres constituam 17% da popu-
lao do estado (a segunda proporo mais baixa do pas; PNUD-IPEA 1996: 182).
Todavia, o coeficiente de GINI cresceu de 0,516 em 1981 para 0,566 em 1989 e
16
As linhas de pobreza variam de acordo com as cidades e regies do pas. Rocha apresen-
ta sua metodologia para calcul-las em Rocha (1996). Ela calculou a linha de pobreza da regio
metropolitana de So Paulo em 1990 como sendo o equivalente a uma renda mensal per capita de
US$ 43,29. Esse era o nvel mais alto do pas. Na regio metropolitana de So Paulo, a proporo
dos pobres era de 22,0% em 1981, 34,4% em 1983, 16,9% em 1986 e 20,9% em 1989 (Rocha
1991: 37). Esses dados indicam que os piores anos da recesso foram os de 1981 e 1983, o que
confirmado por Lopes e Gottschalk (1990: 104).
17
PNAD refere-se Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios, realizada pelo IBGE (Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatstica). Todos os dados acima sobre distribuio de renda vm
das PNADs.
52 Teresa Pires do Rio Caldeira
para 0,5748 em 1991 (Rocha 1991: 38; e Censo de 1991).
18
No estado de So Paulo,
os 1% mais ricos detm 13,8% da renda (Leme e Biderman 1997: 192).19
Alguns grupos, como mulheres e pessoas de cor, so mais adversamente afe-
tados pela pobreza. Em 1996, as mulheres representavam 41,6% da populao
economicamente ativa, de acordo com o PNAD. Elas trabalhavam principalmente
no setor de servios (cerca de 70%) e sua renda mdia era somente 55,3% da dos
homens. Embora as mulheres sejam ligeiramente mais instrudas que os homens,
sua renda sistematicamente mais baixa que a dos homens em todas as categorias
ocupacionais e em todos os nveis educacionais (PNAD 96). Lopes (1993) mostra
que os efeitos da crise econmica foram piores em domiclios chefiados por mulhe-
res. Esse tipo de domiclio cresceu consideravelmente nos ltimos anos: em 1960,
10,7% do nmero total de domiclios eram chefiados por mulheres; em 1989 esse
nmero era de 20% (Goldani 1994: 309-10). Em 1989,33% dos domiclios chefia-
dos por mulheres estavam abaixo da linha de pobreza, em comparao com 23%
do nmero total de domiclios (Goldani 1994: 320). A situao especialmente grave
no caso das mulheres negras. Domiclios chefiados por mulheres so mais comuns
entre famlias negras do que entre famlias brancas (21% comparados com 14%
em 1989). Alm disso, no mesmo ano quase metade (49%) dos domiclios chefia-
dos por mulheres negras estavam abaixo da linha de pobreza (Goldani 1994: 309,
320). Embora muitos ainda gostem de pensar no Brasil como uma "democracia
racial", qualquer leitura de indicadores socioeconmicosmostra a situao desfa-
vorvel da populao negra e indica o grau de discriminao de que vtima. Em
mdia, a renda das pessoas de cor est em torno de apenas 65% daquela da popu-
lao branca (PNUD-IPEA 1996: 22).
20
Alm disso, Lopes (1993) mostra que 68%
dos domiclios urbanos abaixo da linha de indigncia tem um negro ou um pardo
sua frente, enquanto domiclios negros ou pardos representam apenas 41% do
nmero total de lares urbanos.
O outro processo importante de mudana dos anos 80 foi a democratizao
poltica. O final dos anos 70 e o incio dos anos 80 foram marcados por uma ex-
panso significativa dos direitos e da cidadania poltica. importante relembrar
18
O coeficiente de GINI uma medida de distribuio de renda. Ele varia de O a 1. Seria
zero se todas as pessoas tivessem a mesma renda e 1 se uma pessoa concentrasse toda a renda
nacional. Em outras palavras, quanto maior o valor, maior o nvel de desigualdade. Para o Brasil,
o coeficiente de GINI era de 0,580 em 1985, 0,627 em 1989 e 0,6366 em 1991 (Rocha 1991: 38,
e Censo de 1991).
19
Como no resto do Brasil, no estado de So Paulo e na regio metropolitana a renda
altamente concentrada no decil mais rico. Enquanto a diferena entre o primeiro e o segundo decis
est por volta de 75%, e entre o segundo e terceiro de cerca de 38%, a diferena entre o nono e
o dcimo decis de 180% (Leme e Biderman 1997: 198).
20
O Censo Brasileiro usa as seguintes categorias raciais: branca, preta, parda e amarela.
Normalmente as anlises de relaes raciais consideram preto e pardo de forma agrupada, pois
foi demonstrado que eles compartilham de condies sociais semelhantes. Em 1991, os brancos
eram 55,3% da populao, os pardos 39,3%, os negros 4,9% e os amarelos 0,5%.
Cidade de Muros 53
alguns grandes marcos desse processo. Um deles foi a recriao do movimento sin-
dical a partir do ABCD paulista, que gerou um novo tipo de liderana sindical e
poltica que desempenhou um papel central no novo regime democrtico. Outro
marco foi a ecloso dos movimentos sociais de bairro nas periferias pobres urba-
nas, freqentemente apoiados pela Igreja Catlica, e que garantiram legitimidade
noo de que os moradores desses bairros tinham o "direito de ter direitos". Os
participantes desses movimentos eram os proprietrios de casas autoconstrudas e
que perceberam que a organizao poltica era o nico meio de forar as autorida-
des da cidade a ampliar a infra-estrutura urbana e os servios para seus bairros. No
comeo dos anos oitenta, quando foi possvel a reorganizao de partidos polti-
cos, representantes de movimentos sindicais e de movimentos sociais, junto com re-
presentantes dos movimentos de minorias (mulheres, negros, homossexuais etc.),
que tambm se expandiram nesse perodo, fundaram o PT- Partido dos Traba-
lhadores-, provavelmente o primeiro partido poltico na histria brasileira que
no foi gerado ou comandado pela elite.
Em suma, enquanto a crise econmica se acentuava, havia esperana na trans-
formao poltica. De fato, os movimentos sociais e a abertura poltica ampliaram
de forma significativa os direitos polticos dos cidados. Por um tempo, o entusias-
mo que essa expanso gerou foi partilhado por todas as classes sociais e sintetiza-
do no desejo de que a ditadura militar terminasse. O movimento "Diretas J!" cap-
turou esse anseio. Todos conhecemos a histria que se seguiu, marcada pela frus-
trao de expectativas dada a deciso de se manter o voto indireto em 1984, pela
dramtica morte de Tancredo Neves, pelo Plano Cruzado de 1986, pelos trabalhos
da Assemblia Nacional Constituinte, que envolveram grande participao dos ci-
dados, e, finalmente, pela aprovao da nova constituio em 1988. Em 1989,
quando os brasileiros finalmente puderam votar para presidente, o Brasil tinha 82
milhes de eleitores registrados. A sociedade e a comunidade poltica que eles re-
presentavam eram radicalmente diferentes daquelas representadas pelos 15 milhes
de eleitores que em 1961 tinham participado da ltima eleio para presidente. Em
1989, a campanha eleitoral aconteceu principalmente na televiso- presente em
quase 60% dos domiclios-, os dois candidatos que foram para o segundo turno
eram ambos jovens (na casa dos 40 anos) e representavam o que poderia ser cha-
mado de novo jeito de fazer poltica. Fernando Collor de Mello, eleito no segundo
turno, era um neoconservador oriundo das oligarquias do Nordeste e versado na
vida de Braslia. Seu adversrio era o lder do PT, Lus Incio Lula da Silva, um
migrante do Nordeste que tinha sido metalrgico na regio do ABCD e se tornara
seu mais importante lder sindical nos anos 70. O fato de ele ter vencido uma srie
de famosos polticos nacionais e ter participado do segundo turno atesta o quanto
o pas tinha mudado. Mas no mudara o suficiente.
Os brasileiros preferiram eleger o produto dos meios de comunicao das
oligarquias conservadoras, acreditando que ele poderia trazer modernizao e le-
var uma imagem "apropriada" do Brasil para as "naes adiantadas do mundo",
como afirmou uma pessoa que entrevistei. No entanto, no contexto de crise que
acabei de descrever, as esperanas de uma modernizao fcil logo foram frustra-
das. Em maro de 1990, era visvel que a inflao estava fora de controle (ver Ta-
54
Teresa Pires do Rio Caldeira
bela 1). No dia seguinte posse, Collor adotou o Plano Collor para tentar "matar
a inflao com um nico tiro". Como se sabe, esse plano congelou todas as contas
bancrias com saldo acima de Cz$ 50 mil (cerca deUS$ 1.250) por um ano e meio,
literalmente deixando a economia sem nenhuma liquidez. Ao invs de derrotar a
inflao, o Plano afetou imensamente o cotidiano e a vida das pessoas, como indi-
cam todas as entrevistas que fiz aps ele ter sido adotado. Junto com os efeitos da
prpria inflao, que desvalorizou totalmente as contas bancrias congeladas e foi
acompanhada por uma queda nos salrios reais, o Plano Collor serviu basicamen-
te para acentuar e simbolizar um sentimento de deteriorao da posio social mesmo
entre as classes mdias altas. As entrevistas mostram com muita clareza que o Pla-
no Collor tornou-se um divisor simblico crucial entre "antes e depois", "melhor
e pior". As desiluses com o governo Collor culminaram em 1992 com as denn-
cias de corrupo que levaram ao seu impeachmemt.
Um outro processo que vem marcando profundamente a sociedade brasileira
e cri-
DJ.C_.lliGletrto. Esse aumento obviamente acrescenta insegurana s j intensas
dades relacionadas inflao, ao desemprego, e a uma transformao poltica que
vinha afetando as configuraes tradicionais de poder e expandindo os direitos de
cidadania. Discusses sobre o medo do crime revelam a angstia que se gera quan-
do as relaes sociais no mais podem ser decodificadas e controladas de acordo
com antigos critrios. Embora haja certamente muitos aspectos positivos na desin-
tegrao de velhas relaes de autoridade e poder no Brasil, fica claro que muitos
grupos sociais reagiram negativamente ampliao da arena poltica e expanso
dos direitos. Esses grupos encontraram no problema do crime uma forma de arti-
cular sua oposio. O universo do crime- incluindo a fala do crime e o medo, mas
tambm o crescimento da violncia, o fracasso das instituies da ordem, especial-
mente a polcia e o sistema judicirio, a privatizao da segurana e da justia e o
contnuo cercamento e segregao das cidades- revela de uma forma sinttica e
marcante o carter disjuntivo da democracia brasileira. James Holston e eu (1998)
desenvolvemos o conceito de democracia disjuntiva para dar conta dos processos
contraditrios que marcam a sociedade brasileira e indicar a esfera na qual a ex-
panso dos direitos mais problemtica.
21
<l qut: polti-
ca e e um-
cidadania poltica, expressa nas livres e regulares, livre organizao de
partidos, nova liderana poltica e funcioriapl.ento regular do legislativo em todos
os nveis, associados liberdade de fim da censura aos meios de comu-
nicao. De outro, no entanto, h o universo a\? crime e um dos mais intrigantes
fatos da consolidao democrtica brasileira: o tanto civil quanto
21
O conceito de democracia disjuntiva no se aplica apenas sociedade brasileira, mas aponta
para processos contraditrios de desenvolvimento que podem ocorrer em qualquer democracia (ver
Holston e Caldeira, 1998 ). No entanto, disjunes muito claras parecem caracterizar especialmente
pases que passaram recentemente por transies democrticas (Holston, no prelo).
Cidade de Muros 55
de aparatos do Estado, aumentou consideravelmente desde o fim do regime mili-
tar. Esse aumento no crime e na violncia est associado falncia do sistema judi-
cirio, privatizao da justia, aos abusos da polcia, fortificao das cidades e
destruio dos espaos pblicos. Em outras palavras, no Brasil, a democracia
poltica no trouxe consigo o respeito pelos direitos, pela justia e pela vida huma-
na, mas, sim, exatamente os seus opostos. Nesse contexto, o crime no s expressa
e articula outros processos negativos de mudana, mas tambm representa os limi-
tes e desafios da democratizao brasileira. Na verdade, o universo do crime indi-
ca o carter disjuntivo da democracia brasileira de duas maneiras: em primeiro lugar,
porque o crescimento da violncia em si deteriora os direitos dos cidados; e em
segundo, porque ele oferece um campo no qual as reaes violncia tornam-se
no apenas violentas e desrespeitadoras dos direitos, mas ajudam a deteriorar o
espao pblico, a segregar grupos sociais e a desestabilizar o estado de direito.
Neste livro, analiso especialmente aqueles aspectos da sociedade brasileira em
que a democracia deitou razes de forma apenas relutante, ou nas quais simples-
mente no se enraizou. Analiso a violncia e as vrias dimenses da deslegitimao
da justia e dos direitos civis. Essa a esfera na qual a democratizao desafiada
e na qual a resistncia s transformaes que poderiam levar a uma sociedade mais
igualitria esto articuladas de forma explcita. Pelo fato de estar insistindo no ca-
rter disjuntivo da sociedade brasileira, nunca pressuponho que os sombrios pro-
cessos sociais que analiso constituem a marca principal ou a nica marca da socie-
,,?ade brasileira, ou mesmo a tentativa de criao de ordem. No entanto, ar-
j;umento que o universo do crime, incluindo a falncia do sistema
<judicirio, o desrespeito aos direitos individuais, os abusos por
es da ordem, preconceitos e intolerncia contrapem-se s tendncia;
/ ticas e ajudam a sustentar uma das sociedades mais desiguais do mundo ..
56 Teresa Pires do Rio Caldeira
2.
A CRISE, OS CRIMINOSOS E O MAL
A fala do crime estende sua lgica particular a inmeros temas. Discusses
crime quase sempre levam a reflexes sobre a situao do pas. Crise econ-
mica, inflao e desemprego foram repetidamente associados violncia por pes-
soas que estavam perdendo a esperana de mobilidade social. Elas falaram sobre
seus problemas e experincias de decadncia e violncia, mas tambm discutiram a
situao do pas e expressaram seu diagnstico de que o projeto de modernidade
que tinha prevalecido at ento estava simplesmente chegando ao fim. Antes de
discusses sobre a exausto do modelo nacional-desenvolvimentista, o fim da fase
fordista do capitalismo, a reestruturao industrial, polticas neoliberais e a nova
ordem internacional tornarem-se temas de debate pblico no Brasil para alm de
um crculo acadmico muito restrito, era ntida a percepo do fim de uma era entre
as pessoas que entrevistei entre 1989 e 1991.
Vises sobre a natureza do contexto socioeconmico no qual a violncia cresce
e sobre o futuro do pas foram expressas de maneiras semelhantes por entrevista-
dos de diferentes grupos sociais. Entretanto, as experincias de violncia tendem a
ser especficas em cada classe. os crime,
elas so tipos dedeli:tos, sendo as cClsses
bvio que essas diferentes experincias mar-
cam a percepo que cada classe tem do crime. No entanto, paulistanos de diferen-
. tes grupos sociais- pelo menos aqueles que entrevistei- compartilham algumas
o crime e o maL .. ..
e. que ..t;Il1
1 potencial, so pessoas que esto no limite da sociedade, da humanidade e da co-
/ munidade poltica. Eles ainda vem o crime como algo associado ao mal, que se
j espalha e contamina facilmente, e que requer instituies fortes e autoridades para
I control-lo. Este controle visto como uma tarefa da cultura contra as foras da
natureza.
A seguir, analiso as explicaes para o crime, que na verdade so diagnsti-
cos sobre as transformaes do pas, e as opinies sobre o crime e sobre os crimi-
nosos que obtive nas entrevistas com moradores de diferentes grupos sociais de So
Paulo. Esta anlise aborda apenas uma parte dos temas das entrevistas: aqueles
relevantes p'p..e.ntnderas.interligaes.en1re. .. Y.4hana.e-
So . .hoie. Minha ateno volta-se sobretudo s tenses, ambi-
que emergem no discurso das pessoas como um resultado
de duas situaes distintas. Primeiro, quando declaraes genricas inspiradas pe-
las categorizaes derivadas da oposio entre o bem e o mal devem coexistir com
explicaes mais detalhadas que lidam com experincias do dia-a-dia que so nuan-
Cidade de Muros 57
adas e ambguas. Segundo, quando as pessoas tm de lidar com esteretipos que
discriminam a si mesmas e ao invs de questionarem os esteretipos, tentam afast-
los de si mesmas e associ-los a outras pessoas prximas, geralmente vizinhos. Ao
interpretar as entrevistas, tentei entender o que cada pessoa me disse. Entretanto,
o que apresento aqui no so opinies individuais, mas sim um resumo que obtive
ao justapor todas as entrevistas.
1
Na minha narrativa, uso citaes das entrevistas
de duas maneiras. Primeiro, como exemplos, quando uma citao representa v-
rias outras parecidas, sintetizando comentrios e imagens encontrados de manei-
ras mais fragmentadas em todo o material. Segundo, particularmente, quando analiso
casos especficos que considero ser especialmente ou at excepcionalmente revelado-
res a respeito de uma certa articulao. No preciso dizer que o essencial ao se
empreender uma anlise qualitativa capturar parte da riqueza de significados
embutida nas prticas sociais e que desafiam grandes categorizaes e descries.
Utilizo outras metodologias a fim de entender outras dimenses do universo do crime.
LIMITES MODERNIZAO
Em 1989-1991, quando fiz as entrevistas, os moradores de So Paulo ainda
pensavam em sua cidade e em seu pas nos termos da ideologia de progresso que
havia sido forjada nas dcadas anteriores. Entretanto, no auge da inflao e recesso
econmica, o sonho de progresso ininterrupto era apenas uma lembrana das pos-
sibilidades perdidas: o "pas do futuro" parecia estar perdendo o trem da histria.
1
As entrevistas transcritas geraram milhares de pginas, difceis de manejar e de tornar in-
teligveis. Desenvolvi a seguinte tcnica para analisar o material: primeiro, no dia de cada entre-
vista, descrevia detalhadamente a situao em que ela se dera. Tratava-se de uma interpretao
preliminar, lidando tanto com os elementos no-verbais da interao quanto com algumas das
minhas reaes aos temas discutidos. Esses exerccios eram importantes no apenas para enten-
der a entrevista como tambm para gerar questes para entrevistas futuras. Segundo, cada entre-
vista era transcrita de maneira literal. Terceiro, depois que terminei todas as entrevistas e tinha
uma idia do material como um todo, revi cada entrevista e escrevi uma anlise da estrutura da
narrativa e das opinies dos entrevistados sobre temas diferentes. Esse tipo de anlise semelhan-
te quela apresentada no captulo 1. A inteno era gravar em minha mente a individualidade de
cada narrativa e suas articulaes antes de comear a pensar em termos de comparaes, justapo-
sies e talvez generalizaes. De fato, lidar com material qualitativo concentrar-se na riqueza
dos detalhes. Quarto, gerei uma lista de temas que pareciam centrais e recorrentes. Esses temas
expressavam associaes de questes (por exemplo: mal versus autoridade, em vez de mal e auto-
ridade em separado). Quinto, voltei ao arquivo eletrnico de cada entrevista e introduzi marcas
de ndice correspondentes aos temas que tinha identificado. Sexto, produzi um ndice para cada
entrevista. Stimo, produzi um ndice geral de ndices. Esses dois tipos de ndices guiaram-me atravs
do processo de escrita e me permitiram navegar com certa confiana pelas entrevistas. A primeira
verso da anlise continha todas as citaes pertinentes a cada tema analisado. Era praticamente
ilegvel, por causa do tamanho, da quantidade de repeties e da ateno aos detalhes. Esta a
terceira verso, na qual tento estabelecer um compromisso entre as exigncias de legibilidade e
referncia ao material.
58 Teresa Pires do Rio Caldeira
Se antes houvera progresso, agora era o retrocesso que marcava a realidade. As
entrevistas revelam uma inverso de expectativas e as frustraes e a ansiedade que
a acompanham. Elas indicam como as pessoas tentavam lidar com as mudanas
negativas que afetavam sua vida e que lhes pareciam permanentes. Essas discusses
sobre a crise econmica, o declnio social que ela produziu e a inverso de expecta-
tivas contextualizam o crescimento do crime sentido por todos.
Do trabalhador desempregado da periferia ao homem de negcios do Mo-
rumbi, a maioria das pessoas entrevistadas viveu o fim dos anos 80 e o comeo dos
90 com pessimismo, incerteza e desiluso. Muitos no conseguiam lembrar um outro
momento da histria recente em que as coisas tenham estado to ruins, nem mes-
mo nos anos da ditadura, que as pessoas viam como tempos de represso poltica
mas com prosperidade econmica. Uns poucos, geralmente de classes mais altas,
conseguiram manter sua crena no progresso e seu otimismo ao ver as possibilida-
desde uma nova ordem internacional. A maioria, entretanto, s achava fundamento
para descrena. Acima de tudo, estava a realidade palpvel da inflao alta e do
desemprego, provocando fortes sentimentos de incerteza, perplexidade e desorien-
tao em pessoas de todos os grupos sociais.
2.1
-Inflao isso: voc compra hoje e amanh no sabe se d para comprar. Voc come
hoje e amanh no sabe se come. Quem perde? Sempre o povo, o pobre. Infelizmente a par-
te que ps os homens l. Quem perde mais geralmente o povo, a massa. Eles perdem.
Vendedor desempregado, 32 anos, solteiro; mora com uma irm casada no Moco.
2.2
-A inflao e essa desorganizao que houve no sistema fez com que se perdessem as
referncias, ento ns no temos mais referncia; o que melhor, pagar bem um funcionrio
ou dar uma cesta bsica, ou dar uma segurana, ou dar um servio hospitalar pro funcion-
rio? Ento, ns perdemos a referncia ... Eu acho que um dos motivos que provocam essa crimi-
nalidade crescente essa inflao que desumana, que atinge muito a classe de renda me-
nor ... O Plano tirou o poder de compra do comprador. O Plano Collor- eu votei no Collor-, o
Plano Collor veio pra diminuir o empobrecimento, pra tirar do rico e pr ... eu acho que acon-
teceu o contrrio, at agora tem sido o contrrio, o pobre t mais pobre e o rico t mais rico ...
A hiperinflao corri completamente os conceitos de moralidade, de tudo que voc possa ter,
mudam seus conceitos ... Ento, eu acho que na hiperinflao todos perdem tudo, ningum ganha
nada ... A inflao faz com que voc perca os teus conceitos.(. .. ) Ento, sem querer, sem querer,
no, a inflao faz com que voc pague muito pouco pro teu empregado, e a inflao, ela traz
o dinheiro pro rico, ela concentra renda, ento eu acho imoral, como roubo; roubo pra mim
imoral.
Empresrio do ramo imobilirio, cerca de 40 anos, mora com a mulher e trs filhos no
Morumbi.
Era comum a opinio de que os remdios para lidar com a inflao alta ha-
viam sido consistentemente ineficazes, culminando com o Plano Collor. Esse pla-
no afetou todo mundo, e os entrevistados concordaram que, apesar de suas inten-
Cidade de Muros
59
es, o plano acentuou a desigualdade social e tornou a distribuio da ain-
da mais injusta.
2.3
-Olha, por incrvel que parea, na poca, pode ter sido at uma iluso, o milagre brasi-
leiro no tempo do Delfim Neto, mas naquela poca a inflao no subia com esta acelerao.
Eu acho que era uma inflao mais estvel. Eu acho que aquela poca era uma poca melhor.
(. .. ) Eu acho que a gerao de 50 anos de idade, que pegou o Plano Collor, uma gerao que
economicamente acabou. No tem mais chance. Porque o pessoal que tinha dinheiro pra via-
jar, ou que poupou pra comprar um apartamento para os filhos, ou que poupou at para a
casa prpria, ficou com o dinheiro preso. E muito dificilmente vai se recuperar, foi um golpe
muito grande mesmo(. ..) Hoje a expanso da riqueza no pas aumentou, embora a distribui-
o seja pssima. Agora, o que eu acho que aumentou muito mais o nmero de pobres. Por-
que rico tem poucos filhos, quem tem filho a que nem cobaia pobre. Ento, eu acho que a
pobreza aumentou muito mais que a riqueza. Porque ganhar dinheiro no fcil. Principal-
mente honestamente, no nada fcil. Mas aumentou porque o pas cresceu economicamen-
te, dizem gue a oitava economia do mundo. S que a distribuio de renda pior que nos
pases da Africa. Do que o Senegal. .. que eu andei lendo por a. Dizem que uma vergonha.
incrvel!
Corretora imobiliria, 56 anos, divorciada; comeou a trabalhar em 7 990; mora com uma
filha no Alto de Pinheiros.
para as classes
mdias, cujas poupanas foram totalmente desvalorizadas ao ficarem congeladas
em contas bancrias por 18 meses enquanto a inflao subia. Entretanto, at pes-
soas da classe trabalhadora que achavam que o plano teve virtudes, j que afetara
os ricos pela primeira vez, reconheceram que seu poder aquisitivo diminuiu depois
da implantao do plano. Alm disso, as entrevistas de pessoas da classe trabalha-
dora estavam cheias de comentrios sobre o crescimento do desemprego e a situa-
o desesperada das famlias cujos membros perderam seus empregos. O maior
motivo de frustrao relacionava-se ao governo e aos polticos. A maioria dos en-
trevistados achava que o governo tinha trado as expectativas do povo, enganan-
do-o com promessas no cumpridas, adotando polticas que contrariavam o que
tinha sido dito em campanhas eleitorais, e resguardando os interesses de uma mi-
noria de ricos e poderosos. Eles achavam que os polticos tinham sido ineficazes ao
tratar dos problemas do pas. Algumas pessoas achavam que no havia mais uma
liderana de fato e que o governo era to instvel e voltil como a inflao. Nesse
contexto, alguns voltavam suas esperanas, ainda que confusamente, para a idia
de um governo forte, "constante, durvel", como um deles disse (2.5).
2.4
-O Brasil est um caos. Porque ns estamos vivendo de vrias mentiras, e uma das maio-
res a inflao. (. .. )O Brasil precisaria, por exemplo, de um presidente que pudesse ter brao
de ferro, democraticamente, e poder ser reeleito, e poder ser reeleito, at endireitar.
Contador, 63 anos, mora com a mulher e o filho na Moca.
60
Teresa Pires do Rio Caldeira
velha no Brasil a idia de que um bom presidente, principalmente um que
trabalhe pelos pobres, tem de ser forte. Essa imagem tem sido associada a Getlio
Vargas, especialmente por membros da classe operria. Muitos trabalhadores des-
culpam o autoritarismo de Vargas com base no argumento de que ele tinha de ser
forte para controlar os poderosos - os tubares - e que ele foi o primeiro a go-
vernar de fato em favor dos trabalhadores ao criar a legislao trabalhista.
2
Algu-
mas vezes, os governantes do regime militar e seus ministros foram mencio'nados
em associao a um perodo em que as coisas eram melhores- como no caso de
Delfim Neto, que defendido por uma simpatizante do PT na citao 2.3. Dada a
grave situao econmica do comeo dos anos 90, associada ao primeiro presiden-
te eleito diretamente, para muitos o regime militar no parecia to ruim.
A atrao por uma autoridade forte e perptua personifica uma ameaa
ordem democrtica- uma ordem que at mesmo as pessoas que buscam um "brao
de ferro" pareciam estar ambiguamente tentando preservar. O que essa ambigi-
dade revela mais uma preocupao em resolver um problema imediato (s vezes
adotando a soluo mais comum - neste sculo, o autoritarismo tem sido mais a
norma do que uma exceo no Brasil) do que em analisar as conseqncias da so-
luo a longo prazo. Mas tambm revela a relao ambgua que se mantm com o
regime democrtico. O desencanto com os lderes e suas promessas no cumpridas
combina-se a frustraes relacionadas ao progresso do pas e sua modernizao
ameaada. Apesar de a crena no progresso" ter sido basicamente incontestada at
h pouco tempo, vrios entrevistados expressaram a idia de que o progresso uma
iluso e no uma promessa, e consideraram que o pas nunca foi capaz de viver de
acordo com suas expectativas e nunca seria. Um jovem morador da Moca expressou
seu ceticismo de maneira especialmente convincente.
2.5
-Eu no consigo ver como o nosso pas vai conseguir se unir ao resto do mundo. Voc
no saca. Est superindefinido. Eu acho que a situao otimista em certo ponto, porque eu
reconheo que ns somos uma histria nova (. .. )A nossa tristeza, vamos dizer assim, que a
gente est vendo ali na tela do cinema os pases prosperando e a gente quer se igualar a eles.
A gente encurta a ponte. T achando que a gente est no mesmo patamar, mas no, uma
iluso. Aquilo uma tela, aquilo est num tempo muito na frente e a gente tem que trabalhar
muito para fazer isto aqui um pas.
3
(. .. ) preciso haver um segunda ... uma verdadeira inde-
pendncia do Brasil.(. .. ) Eu acho que o Brasil nunca esteve numa poca adequada, porque jus-
tamente o Brasil nunca foi independente. Ele nunca se assumiu, nunca pde se assumir como
um pas independente, e isso j d uma certa insegurana. ( ... ) O Brasil nunca teve uma poca
2
Para uma discusso sobre o que os membros das camadas trabalhadoras pensam de Vargas
e de seu governo, e especialmente do Estado corporativista, ver Caldeira (1984: cap. 4).
3
Esse tema teve muitas outras expresses na poca. Por exemplo, numa famosa cano do
final dos anos 80, Caetano Veloso pergunta: "Quando que em vez de rico ou polcia ou mendi-
go ou pivete serei cidado, e quem vai equacionar as presses do PT, da UDR e fazer dessa vergo-
nha uma nao?" (Vamo Comer, de Caetano Veloso e Tony Costa).
Cidade de Muros 61
boa, se teve foi uma iluso, mas passou. Talvez a era Vargas criou uma iluso assim ( ... ) Hoje
eu escuto muito senhores falando da era Vargas e tal. Mas isso foi um perodo de cheia, por-
que o poder deles limitado, por mais grande que seja, por um momento. O que a gente
precisa de um poder constante, durvel. No adianta chegar um poderoso e fazer uma coisa
maravilhosa no pas e de repente( ... ) a mesma coisa que construir um castelo na areia. Construir
um maravilhoso castelo em cima de areia movedia, mole, de gua. Isto simplesmente iluso.
Se algum me dizer que houve perodos melhores eu vou dizer que realmente houve, mas foi
s o tempo de fotografar aquele castelo, porque logo veio a gua e "tchuf'. E se para ter um
castelo por um segundo, eu acho melhor nem ter. Tem muitas pessoas que falam desta poca,
eu concordo, mas compreendo a iluso que o cara viveu, eu no vivi, eu s vi esta fotografia.
Desempregado formado em comunicaes com especializao em rdio/ 23 anos; mora
com os pas na Moca.
Certamente muito comum em situaes ps-coloniais e em pases em desen-
volvimento pensar em progresso em termos de um modelo exterior de modernidade
em relao ao qual a realidade local uma verso imperfeita, incompleta, subde-
senvolvida ou, no mnimo, especial. Nesse sentido, ansiedades a respeito de cpia,
identidade, independncia e modernidade so inerentes ao projeto da nao e seu
desenvolvimento. Conseqentemente, elas esto difundidas, no apenas entre os
cidados, mas nas teorias de cincias sociais e polticas pblicas.
4
Mesmo no auge
da crena no progresso e em mobilidade social, no perodo de 1950-1980, a dis-
tncia entre o ideal de desenvolvimento e a realidade brasileira oferecia um pano
de fundo para discusses sobre o futuro. Uma das frmulas para se lidar com essa
distncia tem sido a famosa frase "o Brasil o pas do futuro". Entretanto, os bra-
sileiros sempre trataram essa observao com uma dose de ironia. Isso expresso,
por exemplo, por uma piada que muitos entrevistados me lembraram e que tem sido
contada no Brasil h vrias geraes. De acordo com a piada, houve um tempo em
que o pas estava beira de um abismo, mas finalmente fez algum progresso e deu
um passo frente ... H vrias outras imagens estereotipadas sobre as potencialidades
do pas repetidas com uma ponta de cinismo.
5
Apesar da ambigidade produzida
pelo fato de simultaneamente se afirmar e negar a possibilidade de progresso ser
4
Essa tenso entre um ideal moderno e a realidade retrgrada da nao vem tona nos mais
diferentes modelos inventados pelas cincias sociais brasileiras para conceber a realidade brasilei-
ra. Ela est presente nas discusses raciais do final do sculo XIX sobre "branqueamento da po-
pulao" (cf. Skidmore 1974) e nos debates sobre o relacionamento entre liberalismo e escravi-
do (cf. a famosa discusso sobre as "idias fora do lugar" de Schwarz (1977). Ela tambm est
obviamente presente nas discusses sobre o desenvolvimentismo nacional e a necessidade de pu-
lar etapas de desenvolvimento e acelerar a industrializao (cf. Furtado 1969 e a discusso sobre
a "originalidade da cpia", de F. H. Cardoso 1980), e sobre a teoria da dependncia (Cardoso, F.
H. e Faletto 1967). O modelo antropolgico mais famoso articulando a tenso entre as espe-
cificidades locais e a modernidade completa o de DaMatta (ver especialmente 1991).
5
Algumas dessas imagens so to velhas como o prprio pas. Elas ecoam a famosa frase
"uma terra onde, em se plantando, tudo d", usada em 1500 pelo escrivo Pero Vaz de Caminha
para descrever a nova terra para o rei de Portugal.
62 Teresa Pires do Rio Caldeira
comum, ela parece ter ficado mais profunda recentemente, medida que as pes-
soas se deram conta de que o desenvolvimento de fato nunca coincidiu com suas
promessas. Por um lado, h a idia de iluso, belamente comentada na citao 2.5:6
os modelos de desenvolvimento na tela de cinema e os alegados perodos de cresci-
mento brasileiro capturados em velhas fotografias imaginrias so como castelos
de areia, ilusrios e impermanentes. Por outro lado, as piadas esto dando lugar a
um claro pessimismo e s vezes at mesmo ao desespero.
2.6
- O Brasil est cada vez ... cada vez assim ... no digo menos vivel, mas um pas que
no est dando muita projeo de um bom futuro para o povo brasileiro. A gente est preo-
cupado. Eu como jovem fico preocupado porque eu no sou jovem alienado. Eu estou achando
que esse novo governo que vai entrar vai enfrentar srias dificuldades, porque ns somos um
pas do Terceiro Mundo, ns somos um pas que ... culturalmente um pas do Terceiro Mun-
do, ns temos uma dvida externa muito grande, ns temos uma qualidade de vida, de sade,
ruim, de alimentao ruim. Ns temos problema a nvel de ... at de ... problemas gerais, sabe,
de posicionamento perante o mundo desenvolvido. um pas que, tudo bem, rico, um pas
que tem muita terra, tem muito futuro, dizem que vai ser o celeiro do mundo. Mas meu pai j
falava isso, meu av j falava isso, e eu estou vendo que o tempo vai passando e as coisas vo
ficando iguais e cada vez piores. Nunca se teve tanta misria no Brasil, acho, como agora.
Funcionrio pblico do mdio escalo/ 32 anos/ solteiro/ nvel universttiol mora com os
pais na Moca.
As ansiedades originadas na condio colonial ainda balizam algumas refle-
xes sobre o futuro do pas, levando repetio da questo: "Qual ser o lugar do
Brasil na ordem internacional?". Na medida em que o desenvolvimentismo mostrava
sinais de exausto, algumas pessoas expressaram seu pessimismo. Mas tambm havia
alguns otimistas, pessoas entusiasmadas com os primeiros movimentos do gover-
no Collor redefinindo a relao do Brasil com a ordem internacional e adotando
polticas neoliberais que contradiziam o antigo modelo baseado em substituio de
importaes, protecionismo, subsdio estatal e fechamento do mercado nacional.
2.7
- Eu acho que a coisa est caminhando para uma internacionalizao. Eu acho que o
Estado nacional est sendo ultrapassado, est tudo muito interligado, uma nao no vive so-
zinha. Quer dizer, aquele esprito: "vamos fechar as fronteiras e fomentar o mercado interno",
esse negcio no existe mais. A velocidade do conhecimento est muito grande e uma velo-
cidade que se d por uma sinergia que existe, uma relao sinrgica entre as naes; se fe-
char, vai ficar para trs ...
6
Iluso tambm uma boa metfora para o que acontece sob a inflao e para a ciranda
financeira que a acompanha: as pessoas pensam que ganharam dinheiro com a especulao finan-
ceira, mas apenas uma iluso, pois o poder de compra desaparece; as pessoas pensam que o sa-
lrio aumentou, quando ele apenas acompanhou a inflao.
Cidade de Muros 63
Eu no acho que o Brasil perdeu o bonde da histria. Eu acho, sim, que ns perdemos
dez anos, infelizmente, esse troo todo, mas eu acho que d para recuperar. Eu sou um cara
otimista. Eu no compartilho de pessimismo, sou um cara otimista, eu vibro muito com tudo
isso que est acontecendo, a nvel poltico, essas mudanas todas( ... ) Acho que ns ta mos num
processo correto. Nesse ponto at, o Collor, no votei nele, votei no Lula. no segundo
quase me mataram no meu meio empresarial, esse troo todo, quase me Jogaram Janela,
mas eu votei nele mais porque eu achava que o Lula trazia uma ameaa menor ao s1stema de-
mocrtico do que o Collor. . .
Diretor geral e co-proprietrio de uma indstria qumica, Morumbi, 37 anos, do1s filhos;
a mulher dona de casa.
2.8
-Olha, eu acho que no fcil, mas acho que um primeiro passo para a gente partir
para uma coisa nova. Ns no podamos mais continuar no mundo atual sendo uma coisa que
no tinha mais nada a ver, precisava realmente uma sacudida(. ..) Eu acho que toda essa men-
talidade nova tem que ser introduzida no pas. Ns no podemos mais ficar to fora do mun-
do. E no sei como, mas quem sabe a gente vai conseguir. Me d a sensao s vezes que ns
estamos comeando a melhorar(. ..) Eu acho que j se conversa num nvel um pouco mais in-
ternacional, uma coisa assim um pouco mais ampla. Acho que j se vislumbra que no pode
ser como era(. ..) No fcil. A nossa mentalidade muito ... , eu no sei, eu acho que um pouco
primitiva at, n? Essa falta de noo que ns temos de economia, essa coisa de no
consumir adequadamente. Enquanto a gente no entender- a gente que eu estou falando e
ns todos, o povo -, no entendermos que a gente tem que poupar, que a gente tem qu.e
consumir adequadamente, tudo vai ser difcil. Eu acho que pior o consumo do pessoal
mido, pessoal que no tem noo nenhuma de nada ... Enquanto no mudar essa mentalida-
de, eu acho muito difcil.
[Mais tarde ela argumentou que So Paulo um lugar especial. Explicou que se uma pes-
soa viaja no interior do estado de So Paulo, realmente fica surpresa com seu desenvolvimen-
to. Durante os primeiros dias que se seguiram ao Plano, "quando era aquela misria nacional",
ela teve de voar para Minas. Olhando para baixo do avio, pensando que ningum tinha dinheiro
naquela poca, mas vendo toda a terra cultivada, "essa coisa fantstica", ela pensou.]
Puxa!
0
Brasil um fenmeno, no pode afundar. Eu acho que uma diferena grande
para
0
resto do Brasil. ( ... ) O pessoal aqui em So Paulo, o pessoal trabalha, o pessoal no se
deixa ... o pessoal est trabalhando e est tocando a sua vida. Isso a no tem como parar, eu
acho. Essa parte do pas eu acho que no tem o que faa parar. O pessoal quer trabalhar. En-
quanto ns no nos desligarmos dessa mentalidade de governo protetor, isso a no tem jei-
to. Tudo o governo, o governo que tem que dar, o governo que tem que fazer, o governo ... Isso
a ... isso a um desastre. O que a gente precisa livre iniciativa, trabalhar, tocar a vida pra
frente.
Dona de casa, 52 anos, Morumbi, dois filhos; o marido executivo de uma multi nacional.
As poucas pessoas que estavam otimistas a respeito do pas em 1990-1991 eram
das classes mais altas. Elas viam uma nova frmula de progresso, de incorporao
ao sistema mundial e modernidade (que Collor representava), e que talvez pudesse
deixar para trs o lado atrasado do pas (os pobres, o Nordeste), fortalecendo as
64
Teresa Pires do Rio Caldeira
relaes diretas da moderna e trabalhadora So Paulo com o exterior. Mas esse
discurso elitista sobre a modernidade era freqentemente marcado por um profun-
do preconceito social. A culpa do atraso do pas geralmente associada no s ao
governo mas tambm ao povo, sobretudo os mais pobres, o "pessoal mais mido".
O reconhecimento da imensa injustia social e do efeito devastador da inflao nos
mais pobres no impede que algumas pessoas das classes mdia e alta afirmem que
os pobres so pelos menos parcialmente culpados por sua situao e pelos proble-
mas do pas. A citao 2.8, qual retorno abaixo, expressa essa posio elitista:
ela destaca o potencial do pas e a excepcionalidade de So Paulo, atribuindo aos
pobres atitudes que impedem essas potencialidades de se concretizarem.
O otimismo das classes mais altas, entretanto, no era compartilhado por
outros grupos sociais. O que as classes mais altas viam como sinais de melhora
parecia mais uma iluso queles para quem a crise no tinha nenhuma conotao
de progresso.
DECAINDO SOCIALMENTE E MENOSPREZANDO OS POBRES
"O salrio s d pra comer mesmo, no d nem pra ir no
parque levar a Maria pra brincar de roda-gigante."
Mecnico de automveis, 22 anos, casado; mora no
Jardim das Camlias com a mulher Maria e dois irmos.
Os mesmos sentimentos de e incerteza expressos em comentrios
sobre o pas marcam as discusses individuais. Se o progresso
do pas estava se tornando mais uma iluso do que uma promessa, para os indiv-
duos a experincia de decadncia social era cada vez mais a realidade. Isso aconte-
cia em todos os grupos sociais, mas obviamente era expresso de maneiras diversas
e associado a dificuldades extremamente diferentes de acordo com a classe social.
Pouco antes do Natal de 1990, entrevistei trs irmos no Jardim da Cam-
lias, os quais conhecia desde 1978, quando eram garotos. Em dezembro de 1990
o mais velho (A) estava com 22 anos, tinha acabado de casar e trabalhava
mecnico de automveis, ganhando Cr$ 35 mil (quase trs salrios mnimos) por
ms; seu irmo (B) tinha 16 anos e era trabalhador no qualificado numa fbrica
txtil, ganhando Cr$ 18 mil (um salrio mnimo e meio); e seu irmo (C), com 19
anos, estava procurando um emprego: acabara de voltar da Bahia, para onde a
famlia tinha se mudado alguns anos antes. A entrevista revelou no apenas o nvel
de pobreza e as restries que moldam seu dia-a-dia, mas tambm sua falta de es-
perana num futuro melhor. Esse pessimismo fica especialmente claro quando con-
a uma outra srie de entrevistas que fiz dez anos antes com um grupos de
JOvens rapazes no Jardim das Camlias: todos acreditavam no progresso e achavam
que em alguns anos estariam em melhor situao social, apesar de acreditarem que
para isso precisariam se esforar muito, trabalhando pesado e estudando (Caldeira
168-72). Entretanto, em 1990, os jovens do Jardim das Camlias sentiam que
havia pouco que pudessem fazer para melhorar sua qualidade de vida. Mesmo se
Cidade de Muros 65
trabalhassem e estudassem duro - como faziam-, ainda no conseguiriam mui-
to. Para eles, a idia totalmente consensual dez anos antes de que So Paulo era um
bom lugar porque oferecia emprego e mobilidade social no era mais vlida. Ain-
da podia at ser um bom lugar para se achar um emprego, mas os salrios no
permitiam sua incorporao sociedade de consumo- como acontecia uma d-
cada antes- ou mobilidade social. Os salrios eram gastos em alimentao e trans-
porte, e os jovens que entrevistei falaram com tristeza e ironia sobre as possibilida-
des que lhes eram oferecidas: como disse um deles, ele no podia nem mesmo levar
sua mulher ao parque de diverses de vez em quando. Construir a casa prpria estava
fora de cogitao. No fim dos anos 70, quando comecei a fazer trabalho de campo
no Jardim das Camlias, todos no bairro acreditavam no progresso. As pessoas es-
tavam construindo suas casas e organizando todos os tipos de associaes e movi-
mentos sociais para obter melhores servios e infra-estrutura para o bairro (Cal-
deira 1984, 1987 e 1990). Elas apoiavam a democracia e queriam eleies diretas,
algumas estavam entusiasticamente organizando um ncleo local do PT, e muitas
outras participavam de campanhas eleitorais por candidatos de diferentes partidos
(Caldeira, 1987). Elas obtiveram a maior parte da infra-estrutura (asfalto, ilumi-
nao pblica, esgoto) e dos servios pblicos (creche, posto de sade) para o bair-
ro nos anos 80 e dessa forma ajudaram a urbanizar a periferia. Muitas pessoas
conseguiram aumentar e terminar suas casas autoconstrudas. Seus filhos, todavia,
que no incio dos anos 90 estavam na casa dos 20 anos, se casando, e que j tinham
estado no mercado de trabalho por um perodo, sentiam que no tinham as opor-
tunidades que seus pais tinham tido. Como me disseram muitas vezes, no conse-
guiam ver os resultados de seus esforos. Tudo o que puderam ver aCLlango do __
ltimos anos era, como um deles disse, que "os ricos ficaram mais ricos e os po-
bres no tm mais chance de subir na vida". Para completar esse sentimento de
desesperana, percebiam que em seu bairro, o lugar calmo e pacato onde cresce-
ram jogando bola nas ruas, estava ficando perigoso. Alguns de seus colegas tinham
sido mortos nas mesmas ruas onde costumavam brincar juntos. Os pais dos trs
rapazes que entrevistei em 1990 estavam entre os lderes mais ativos das associa-
es locais no fim dos anos 70 e comeo dos anos 80 e entre os fundadores do co-
mit local do PT. Em meados dos anos 80, porm, ao sentir que as coisas estavam
ficando muito difceis e violentas, voltaram para sua terra natal, a Bahia. Desde ento,
cada um de seus sete filhos tem retornado a So Paulo em algum momento em busca
de melhores oportunidades.
A descrio dos irmos sobre a situao econmica do pas era desanimadora:
"ningum tem dinheiro, os empregadores esto todos indo falncia, despedindo
funcionrios; o Plano Collor ferrou com muita gente", disse o mais velho. Apesar
de dois deles ainda estarem empregados, eles no esperavam manter o emprego por
muito tempo. Um tinha certeza de que seria demitido depois das festas de fim de
ano. Especialmente convincentes e desalentadores foram seus relatos sobre tentati-
vas de encontrar trabalho- apesar da pouca idade, todos j tinham tentado mui-
tos empregos-, as longas horas gastas em trabalho e conduo, as tentativas de
baixar as expectativas e as contnuas frustraes de suas esperanas. Eles sabiam
das oportunidades de consumo que a cidade oferecia e queriam participar desse
66 Teresa Pires do Rio Caldeira
mercado pelo menos num nvel modesto, compatvel com uma vida digna de tra-
balhador; mas sabiam que eram excludos. Sentiam que eram vtimas de injustia,
um sentimento que expressavam usando imagens emprestadas do universo da cul-
tura de massa e se referindo a Rambo, o personagem de Sylvester Stallone, como
um advogado dos direitos dos trabalhadores. Seu conhecimento da cultura urbana
contrastado s marcas de sua excluso expressa a injustia que sofrem. Suas entre-
vistas so to persuasivas que tornam suprflua qualquer interpretao.
2.9
A- O salrio s d pra comer mesmo, no d nem pra ir no parque levar a Maria pra
brincar de roda-gigante. Se eu gastar com conduo, vai faltar pra eu ir trabalhar o outro dia.
Ento eu vou ficar em casa mesmo, porque melhor, ento eu fico em casa.(. .. ) O cinema eu
acho que tambm no compensa, no. A pessoa, algum que tem um videocassete, vai numa
locadora, aluga uma fita por 150, e passa o dia s vendo o filme que quiser. Eu gosto mesmo
de ver filme de Rambo, a fico o dia todo vendo filme de Rambo.
Por que voc gosta de Rombo?
A Porque um cabra violento. Voc j viu o Rambo l nos Estados Unidos?
-Eu j vi filme dele.
A- Quando voc for l pros Estados Unidos, voc ver ele, voc fala que tem um cara
aqui que quer um autgrafo dele.
-Vou falar pro ele, mas acho que vai ser difcil encontrar com ele, s na televiso ...
A- Eu vejo Rambo mesmo por que ele faz um papel defendendo, querendo ter os direi-
tos, defendendo o bem, defendendo os pobres e o bem, acabando com a ambio, voc v que
ele vai atrs de gente ambicioso e tudo acaba bem. Era bom se o pessoal pegasse desse jeito,
pegasse esses caras ricos assim, muito ambicioso, e metesse fogo. (. .. ) Se isso acontecesse o
Slvio Santos tava morto, Roberto Marinho tava morto, que tudo ambicioso, tudo rico, esse
pessoal rico tudo ambicioso, s pra ter alguma coisinha tem que ser ambicioso.
-Voc acha que hoje em dia a pessoa que trabalha a vida inteira tem chance de subir na
vida?
A Eu acho que quem trabalha a vida inteira ... acho que no tem chance de subir na
vida, no.
C- Antigamente tinha, hoje no pode, no.
-Antigamente quando?
C- Dez, vinte anos atrs, e agora voc ganha um dinheiro, mostrou, o ladro vem e leva,
voc no pode nem gastar.
B No vale a pena comprar coisa boa mais no. Voc ganha vinte mil, voc vai com-
prar uma cala: quase quinze mil.
A- Trabalha um ms pra comprar uma cala!
B- Sapato, se voc for andar na moda, voc tem que ganhar na faixa de uns cem mil
pra andar na marca, como dizem.
C- Tem que ganhar na loto ou na sena.
A O cara ganha uns dinheirinho mais ou menos, vai querer comprar uns mveis bom
pra por dentro de casa, vai querer passear um dia, quando chega os ladro j rapou tudo. Tem
que sair e pedir pro vizinho dar uma vigiada.
-E como que as pessoas fazem pro andar na moda?
Cidade de Muros 67
B - Ah, muitas pessoa compra roubada, como l na firma mesmo, os caras compra
roubada - os cara vai, assalta l a loja e a vende mais barato - a cala t por quinze, eles
vendem por cinco, o tanto que o cara der eles aceitam, e muitos l andam na marca por causa
disso a, que trabalhando em firma mesmo no d pra andar de marca.
C- Se sasse essa moda de andar nu por a tudo ...
A- Se o governo liberasse, eu andava nu s pra no ficar sujando roupa.
C- A eu botava uma marca: importada.
-Mas voc tinha vontade de comprar umas roupas de marca?
B- Eu, eu no tenho esse negcio, no, de andar de marca, mas andar mais bonito, umas
roupas mais bonitas, umas roupas bem-acabadas.
C- Voc, nem reza braba deixa voc mais bonito.
B - Eu tinha que ganhar na faixa de cem mil. Pra andar do jeito que eu quero tem que
ganhar na faixa de uns cem mil. Ganhando dezoito s d mesmo pra conduo do ms. S de
passagem vai na faixa de uns sete mil, depois a vem comida pra levar todo dia, tem despesa,
e a no d pra andar nos trinques.
-Que direito que voc acha que gente pobre tem hoje em dia?
A - Que direito? Nenhum, s o direito de ir trabalhar, de vir pra casa e dormir, pra no
outro dia ir trabalhar. Leva quatro horas no trnsito pra chegar no trabalho, duas horas pra ir,
duas horas pra voltar.
-Voc acha que se o Lula fosse eleito ele ia poder te defender mais?
A- Ah, ele ia, podia dar uma vida digna pra todos ns, n ... todos ns queremos no s
comer, mas ter uma boa casa, um bom mvel, um carro, uma casa boa, uma boa roupa, ter um
bom tudo, ter dinheiro suficiente para ajudar a nossa famlia. A gente no t tendo dinheiro
pra comer, vai ter dinheiro pra ajudar a famlia! Essa poca de Collor est sendo a pior de to-
das(. .. ) Eu acho que se Lula ganhasse ele ia fazer alguma coisa por ns, que ele j passou por
isso que a gente passa, e Collor nunca passou, nem Collor nem esses outros que entrou, tudo
j nasceu de bero de ouro.
C- Tudo a mesma coisa quando chega l em cima ...
As pessoas de outros grupos sociais que entrevistei, na Moca e especialmen-
te no Alto de Pinheiros e Morumbi, vivem em condies muito diferentes da po-
breza do Jardim das Camlias. Entretanto, elas tambm sentiam que estavam mais
pobres do que antes, que estavam decaindo socialmente, que a desigualdade social
havia aumentado e que as perspectivas para o futuro no eram encorajadoras.
Embora em variados graus, as descries de deteriorao das condies sociais eram
basicamente as mesmas. As pessoas expressaram um sentimento de restrio e de
serem incapazes de aproveitar o que a cidade tem a oferecer; todos tinham cons-
cincia de que os salrios evaporaram e que o consumo diminuiu. Restrio no
apenas ao consumo, mas tambm sociabilidade e ao uso do espao pblico. O
crime soma-se a essas percepes e as amplia: at o pouco que as pessoas conse-
guem ter pode ser roubado.
Os moradores da Moca, que em geral consideravam-se de classe mdia e que
sentiram que suas possibilidades de mobilidade social estavam diminuindo, mos-
travam-se preocupados em manter sua posio social e freqentemente concluam
que eram o grupo social mais afetado pela recesso econmica.
68
Teresa Pires do Rio Caldeira
2.10
Ns estamos tudo caindo de classe e ningum est fazendo nada. E claro que os
pobres e a classe mdia que esto piores; os ricos continuam ricos, numa boa.
Professora numa creche e decoradora de igrejas para casamentos, Moca, cerca de 40
anos, solteira, mora com a me viva.
2.11
-A classe mdia desapareceu. Hoje classe pobre e milionria s. Eu me considerava
classe mdia, hoje eu me considero classe pobre. Hoje no me considero mais classe mdia
porque ... se eu no tivesse essa casa, hoje eu no teria condies de comprar uma outra de
jeito nenhum. No teria mesmo.
-E a classe pobre? O pessoal que mora mais na periferia?
- Pra eles eu acho que no est to ruim, porque ns, classe mdia, a gente tem que ter
uma apresentao, voc no pode andar de qualquer jeito e tal. E pra eles no. Ento, geralmente
na famlia so quatro, cinco pessoas que trabalham, eles conseguem sobreviver. No esto
vivendo, sobrevivem. Eu acho que quem est sofrendo mais a classe mdia mesmo, que tem
que ter uma certa aparncia, voc tem que ter uma casa razovel, voc no vai morar num
cortio, n? uma dificuldade mesmo. Pra classe rica t bom. Haja visto os apartamentos que
esto construindo agora, todos de 4, 5 sutes, 5 garagens, tudo nessa base, sala pra tudo?
Viva, cerca de 50 anos, Moca. Ela divide a casa com a irm, tambm viva, de modo
que a famlia do sobrinho possa morar na casa da irm sem pagar aluguel.
Apesar de alguns elementos que ainda garantem uma certa qualidade de vida,
como a casa prpria, as pessoas que entrevistei estavam convencidas de que esta-
vam decaindo socialmente. Numa situao como essa, a preocupao com a posi-
o social se torna aguda. Para ressaltar a deteriorao de sua posio social, as
pessoas que se consideram de classe mdia podem retoricamente associar-se aos
pobres. Mas esse exerccio no dura muito, e as marcas de distino em relao
queles que esto abaixo so apresentadas sem demora. A citao 2.11 exemplifica
uma das maneiras mais comuns usadas para diferenciar os pobres: considera-se que
eles esto mais perto da necessidade, preocupados apenas com a sobrevivncia, e
sem preocupao com boa aparncia ou estilo.
Essas suposies em relao aos pobres obviamente no so exclusivas s clas-
ses alta e mdia brasileiras. H, por exemplo, uma longa tradio em estudos de
esttica que afirma que o gosto das pessoas pobres uma funo da necessidade;
de fato, as pessoas pobres no teriam uma percepo esttica j que no se distan-
ciam da necessidade. Uma verso recente e sofisticada dessa perspectiva apresen-
tada por Bourdieu (1984, especialmente o captulo 7),
lhadoras esto confinadas . O dilogo dos irmos do Jar-
7
Ver o captulo 7 para uma anlise dos empreendimentos imobilirios. Essa opinio sobre
empreendimentos imobilirios de luxo era muito comum na poca na imprensa e entre os corre-
tores de imveis.
Cidade de Muros 69
dim das Camlias (citao 2.9) e muitas outras entrevistas com pessoas da classe
trabalhadora sobre a decorao de suas casas e estilos de roupas demonstra que eles
entendem de moda e estilo, e que articulam julgamentos estticos nas suas escolhas
de consumo.
8
Se no expressam seu gosto e conhecimento com mais freqncia,
porque so superexplorados e no tm recursos para isso, e no por no terem senso
esttico ou desejo de consumir. Descrever os pobres como limitados necessidade
apenas mais um preconceito contra eles, um preconceito recorrente entre aqueles
. que se pensam superiores socialmente. Alm disso, localizar os pobres perto do
necessrio, identific-los com necessidade, natureza e falta de racionalidade ou de
uma cultura sofisticada pode ser uma maneira de associ-los ao espao do crime,
que freqentemente descrito com os mesmos traos.
Mas a questo da aparncia introduzida na citao 2.11 tem ainda um outro
aspecto. Uma das razes pelas quais as classes mdias estavam particularmente
sensveis s transformaes recentes era porque estavam tendo dificuldades em
manter as aparncias e distncias que julgavam adequadas. Antes, isso era fcil,
basicamente uma questo de usar a roupa certa e manter uma casa confortvel num
bairro calmo. Mas com as mudanas rpidas no bairro, a ampliao do mercado
de consumo a outros grupos sociais, a crise econmica reduzindo o poder de com-
pra, as novas prticas democrticas transformando a vida poltica e as velhas cren-
as no futuro sendo minadas, as pessoas sentiam-se inseguras a respeito de sua
posio social. Uma das maneiras de lidar com a incerteza elaborar diferenas
sociais. Assim, discusses sobre declnio social viram discusses sobre diferenas
sociais e a manuteno do lugar de cada um na hierarquia social.
A distncia social marcada de vrias maneiras. Ela pode ser criada mate-
rialmente atravs do uso de grades, que ajudam a marcar uma casa prpria como
algo claramente distinto de cortios e favelas. O uso de cercamentos ainda oferece
o sentimento de proteo, crucial em tempos de medo do crime. Mas concepes
depreciativas dos pobres tambm cumprem a funo de criar distanciamento so-
cial: elas formam uma espcie de cerca simblica que tanto marca fronteiras quan-
to encerra uma categoria e, portanto, previne as perigosas misturas de categorias.
Na citao 2.11, a narradora, que considerava que a classe mdia estava desapare-
cendo, descreve os pobres como pessoas acostumadas indignidade e que aceitam
sua posio quase que fora da sociedade e de seu mercado de consumo. Quando
essa imagem contradita pelos pobres e eles exibem sinais de participao na so-
ciedade e no mercado de consumo, aqueles que querem mant-los fora podem rea-
gir fortemente. Essa irritao em relao ao consumo dos pobres muitas vezes foi
expressa nas entrevistas, especialmente em comentrios laterais feitos por pessoas
8
James Holston e eu estamos desenvolvendo o projeto de pesquisa "Interiores da Classe
Trabalhadora: A Esttica das Casas Autoconstrudas em So Paulo", na qual analisamos a estti-
ca arquitetnica e do consumo das camadas trabalhadoras -a esttica que lhes fornece um idio-
ma pblico para avaliar suas experincias de construir a cidade e tornar-se cidados modernos.
Ver Caldeira (1986) e Holston (1991a) para uma anlise do gosto da classe trabalhadora e uma
crtica da viso de Bourdieu baseada em material brasileiro.
70 Teresa Pires do Rio Caldeira
da classe alta. Na citao 2.8, a narradora critica "o pessoal mais mido" que im-
pede o progresso do pas. Ela continua:
2.12
-Eu acho que pior o consumo do pessoal mais mido, pessoal que no tem noo ne-
nhuma de nada. So criaturas que largam uma torneira aberta e vo l para dentro fazer no
sei o qu e aquela torneira est aberta ali. Eu vejo isso dentro da minha casa. Estou falando pa-
ra voc de uma coisa do dia-a-dia. Voc pode entrar na cozinha, est l a torneira aberta. Agora,
por exemplo, se eu chego, a torneira est aberta, eu sinto que a criatura volta para fechar ator-
neira porque eu j disse: Olha, a gua no cai do cu, a gua uma coisa cara, uma coisa que
custou um tratamento de gua, foi captada, foi juntada, foi tratada, at chegar na tua torneira.
-Quer dizer, voc acha que tem uma coisa que meio esbanjadora?
- Muito. Mais no pessoal mido ainda do que os outros.
Mas esse no seria o pessoal que teria menos o que esbanjar?
-, mas voc no imagina o que esbanjam, uma coisa, assim, fenomenal. uma coisa
que voc no ... Voc diz assim: mas como esbanja se no tem? Mas se tiver, esbanja. O que
tem, esbanja. No sabe preservar, no sabe guardar, no sabe ... no h a menor ... Agora, no
Sul do pas completamente diferente. No Sul do pas voc vai ver um pessoal que poupador,
que vai e compra a sua casa, sai do neca e vai juntando e vai poupando e compra sua casa.
A idia de que os pobres no sabem consumir adequadamente, que desperdi-
recursos e que tm uma "mentalidade esbanjadora" muito difundida entre
as classes mdia e alta. Isso obviamente negado pela realidade de qualquer peri-
feria urbana no Brasil, onde os pobres construram e decoraram suas
casas por conta prpria, e urbanizaram seus bairros sem nenhum tipo de financia-
/ '
mento. Entretnto, aqueles que se considerm em melhor situao freqentemente
negam os pobres as caractersticas e comportamentos associados a capitalismo e
modernidade, como racionalidade, conhecimento, capacidade de poupar, de pla-
nejar e de aproveitar ao mximo os recursos. Esse tipo de argumento aplicado
no s aos indivduos pobres, mas tambm s regies pobres. Os paulistanos di-
zem que So Paulo o melhor, o Sul quase to bom quanto, mas o Norte e Nor-
deste no tm jeito, como as pessoas de l, que no sabem como economizar ou
trabalhar eficientemente. Esses temas tambm aparecem na citao 2.3 acima. A
entrevistada, para a qual o Plano Collor foi imensamente prejudicial, ainda possui
uma casa com cinco quartos e piscina num bairro de classe alta onde mora com
uma filha, mas perdeu todas as suas economias e teve de comear a trabalhar aos
55 anos. Ela era extremamente crtica em relao desigualdade social no Brasil,
mas tambm considerava que os pobres tinham sua culpa, j que "tm filhos que
nem cobaia". Ela acha que a desigualdade social est associada ao crescimento da
violncia. Entretanto, comentando sobre o consumo dos pobres, ela continua:
2.13
Isto uma coisa revoltante .. Voc vai em qualquer maloca, e no Rio de Janeiro tam-
bm, e aqui em So Paulo, que tem perto das marginais, que tem nessas favelas, voc v em
todas essas casinhas antenas de televiso. No tem geladeira, mas tem televiso. Geladeira seria
Cidade de Muros 71
at mais til, mas eles no tm geladeira e tm televiso. Eles esto acompanhando isto, o jeito
que os ricos vivem e que a televiso mostra.
A imagem da televiso nos barracos da favela serve como smbolo da irra-
cionalidade e extravagncia dos pobres. uma imagem usada at mesmo por aqueles
que so crticos em relao desigualdade social no Brasil e arrogncia dos ricos
brasileiros, como no caso da entrevistada que acabei de citar. Ela invocada repe-
tidamente para indicar a suposta incapacidade dos pobres de administrar seu par-
co dinheiro inteligentemente. Se eles gastassem dinheiro em uma geladeira, racio-
cina a entrevistada, isso seria aceitvel, j que estaria mais prximo do necessrio;
e de tudo o que existe para se comprar, comida o mais necessrio. Dessa perspec-
tiva, os pobres no deveriam ousar entrar no universo dos bens de consumo ou
imitar o estilo de vida das classes mais altas que eles vem na TV. A televiso o
melhor smbolo dessa transgresso no por seu preo j que mais barata que
uma geladeira-, mas por causa do acesso informao que ela permite. Pela tele-
viso, os favelados tm acesso ao mesmo universo simblico que os ricos e podem
se tornar mais conscientes da imensa desigualdade social de uma sociedade onde
qualquer um pode comprar uma televiso a crdito, mas na qual o estilo de vida
que ela exibe territrio exclusivo da elite. Na televiso, provavelmente a nica
forma de lazer ainda disponvel diariamente para os pobres, eles gostam de assistir
ao Rambo e imaginam que um dia ele ir declarar guerra aos "homens ambicio-
sos" do Brasil. E talvez no seja por acaso que os exemplos citados pelos irmos
do Jardim das Camlias sejam Roberto Marinho e Slvio Santos, os donos das duas
mais poderosas redes de televiso do pas.
A irritao com a participao das pessoas pobres nos mercados de consumo
de classe mdia tambm foi expressa em discusses com membros da classe alta sobre
a deteriorao das condies de vida na cidade. Este o caso da conversa seguinte
entre trs mulheres (M, O e P) que vivem em casas no Morumbi. Elas tambm acham
que foram afetadas pela crise econmica, mas os termos em que apresentam sua
deteriorao social constituem uma mostra da imensa desigualdade entre as classe
sociais em So Paulo.
2.14
M- Antigamente, a gente tinha mais dinheiro tambm! Eu comia camaro todo sba-
do camaro, lagosta ... Agora, pra comprar camaro ... Pra mim t mais duro. Eu trabalho a
mesma coisa, meu marido tambm, mas hoje em dia, no ... Eu cobro em dlar pra no ficar
todo ms reajustando, mas eu sinto, a gente antigamente fazia muito mais comidinha, o meu
marido tambm, a gente vivia com o salrio dele, hoje em dia no d nem 15 dias o salrio
dele. Srio. O fator dinheiro, voc tambm fica mais apreensivo, fica mais irritado.
O Eu senti [diferena] a partir do Plano Collor.
M -Acho que as diferenas sociais antigamente no eram to grandes, no se sentia
tanto, hoje em dia t maior. A classe alta de antigamente, de uns dez anos atrs, a alta no t
mais to alta assim, ficou mais pra mdia, e ns mdios, obviamente que despencamos em
relao do que a gente era. Ento, esses que eram altos, ainda querem se firmar, e ento nisso
existe muita agressividade, so poucas as pessoas que ...
72 Teresa Pires do Rio Caldeira
O- Pra voc ter uma idia tambm, voc pode ver por a, vai procurar um bairro mais
simples, as casinhas, casicas assim pequenininhas, da voc v aqueles porto assim, assim,
assim, que pra caber o Del Rey, uma Caravan. A famlia passa o ano inteiro ali, assim, econo-
mizando tudo, mas o carro t ali na frente da casa pra mostrar que tem o carro do ano. No
viaja, no vai de frias, no faz nada, todo mundo histrico dentro da casa, quer dizer, o que
que isso? pra se mostrar! Eu fico boba de ver.
C- auto-afirmao. Isso foi sempre. Aquela pessoa que no pode ter, ento ela tem
que viver pela aparncia ...
O- Ai, que horror, que horror! Acho ridculo.
C- Tem um rapaz na fbrica, um encarregado da produo da fbrica ... ento era mui-
to engraado, porque ele tava ganhando bem, tava ganhando comisso de lucro, ento, se a
empresa fatura mais, ento divide, e ele ganhou um bom dinheiro. Ele mora -ele cearense
-ele mora com a mulher e quatro filhos num quarto-sala-cozinha-banheiro prprio, dele, e
tem um bom terreno, que meu marido j foi l. Quando recebeu aquele dinheiro, em vez dele
pegar e aumentar mais um quarto na casa, ou melhorar a casa, o que ele fez? Trocou o fusquinha
dele na poca por um Voyage zero. Ento voc v a mentalidade ainda de aparentar, eles tro-
cam a aparncia por um nvel de vida melhor, mas isso acho que foi sempre assim. Isso traz
uma agressividade, porque t vivendo num mundo ... Eles querem uma coisa e no conseguem,
ento acho que isso, indiretamente, quando eles pegam aquele carro pra dirigir no trnsito,
eles se sentem os maiores, pem tudo aquilo pra fora, que no fundo o recalque que eles tm.
M, O e P so vizinhas no Morumbi, todas com mais de 30 anos, cada uma com dois filhos.
O e P so donas de casa e casadas com homens de negcios; M trabalha como instrutora de
esporte num clube de elite e casada com um funcionrio pblico de alto escalo que tambm
tem uma pequena empresa.
Pessoas da classe alta podem ter problemas para consumir itens de luxo como
faziam outrora, mas acreditam que deveriam poder faz-lo. Mas o consumo dos
pobres repreensvel se parece transgredir as linhas imaginrias que separam os
grupos sociais e mantm cada um no lugar que lhe "prprio". Como pode um
empregado ousar comprar o mesmo tipo de carro que seu patro? Como pode ele
ousar parecer-se com eles e deixar-se tomar por algum de outra classe? O mal-estar
que as pessoas da classe alta sentem com a incorporao de trabalhadores socie-
dade de consumo, mesmo que modestamente, evidente. Se eles gastam dinheiro
em algo considerado de classe alta, so "ridculos", "um horror"- mesmo quando
os pobres esto demonstrando sua incorporao s relaes capitalistas.
9
Policiar
as fronteiras das posies sociais uma operao crucial da fala do crime, e isso
realizado no apenas pela elite, mas por todos os grupos sociais- os pobres tam-
bm o fazem, depreciando os moradores de favelas e cortios.
9
Esses tipos de preconceito so bem difundidos. Em anos recentes eles ressurgiram no con-
texto da oposio ao programa de "Renda Mnima". Esse um programa adotado por alguns
municpios no Brasil para lidar com o crescente empobrecimento da populao. Ele fornece a fa-
mlias abaixo da linha de pobreza um valor mnimo em dinheiro com a condio de que essas fa-
mlias mantenham seus filhos na escola. Esse programa tem sofrido oposio de vrios setores da
Cidade de Muros 73
Os preconceitos em relao aos pobres no impedem as pessoas das classes
altas de reconhecer que as condies de vida da classe trabalhadora aproximam-se
do intolervel. Entretanto, elas sempre acham um meio de culpar os pobres por sua
prpria pobreza e de descartar argumentos contrrios. As trs mulheres que acabei
de citar concordam que a desigualdade na distribuio de renda no Brasil absur-
da e a contrastam com a de alguns pases europeus. No entanto, compartilham do
preconceito de que os trabalhadores so preguiosos e tm m vontade na hora de
trabalhar duro, e por isso que pessoas como seus maridos no se dispem a pag-
los melhor. Alm disso, elas compartilham do preconceito de que os pobres no esto
mais bem de vida porque tm filhos como "cobaias". Elas no conseguiram acre-
ditar nos meus relatos sobre o declnio das taxas de fecundidade entre os pobres e
sobre os resultados da minha pesquisa no Jardim das Camlias indicando que as
mulheres pobres no estavam tendo mais que dois ou trs filhos. Elas continuaram
a insistir em que a reduo da fecundidade era "basicamente das classes mdia para
cima" e que a populao continuava a "crescer nas classes pobres" (P). Desse modo,
a m distribuio de renda explicada pelo mito do alto crescimento populacional
entre os pobres.
O preconceito de que as mulheres pobres "tm filhos como coelhos" muito
difundido e at mesmo quando a diminuio nas taxas de fecundidade admitida,
como nos meios de comunicao de massa, por exemplo, freqentemente se refor-
a a opinio de que os pobres so dominados por irracionalidade e necessidade. Uma
explicao comum aponta supostas "organizaes internacionais" como respon-
sveis pela esterilizao de mulheres pobres, que no estariam conscientes do que
teria sido feito a elas. Outra aponta a crescente pobreza como causa da diminuio
da fecundidade. Nos ltimos vinte anos, conversei com inmeras mulheres no Jar-
dim das Camlias que no querem mais ter uma famlia numerosa. E no porra-
zes econmicas, e sim porque, como qualquer mulher de classe mdia, elas que-
rem ter tempo para poder fazer outras coisas, inclusive conseguir empregos melho-
res que o de empregadas domsticas (Caldeira 1990).
10
Elas no querem ser pri-
sioneiras da necessidade e muitas delas escolheram ser esterilizadas depois do nas-
populao- inclusive vrias instituies filantrpicas e organizaes de esquerda- com o argu-
mento de que no se deve dar dinheiro para os pobres porque eles no sabero como gast-lo da
melhor maneira. Em vez disso, prope-se que eles recebam comida em lugar de dinheiro. A des-
peito da oposio, o programa foi adotado com sucesso em vrias cidades, tais como Braslia e
Campinas, onde pesquisei seu impacto, junto com os membros do NEPP (Ncleo de Estudos de
Polticas Pblicas) e estudantes da Unicamp, em 1995.
10
Quando cheguei pela primeira vez ao Jardim das Camlias, em 1978, pediram-me para
organizar um grupo de discusso de mulheres. Entre 1978 e 1980, Cynthia Sarti, que tambm estava
fazendo pesquisas no bairro, e eu mantivemos essas reunies. Seu tema central era a sexualidade
feminina, e um dos principais pedidos que Cynthia e eu recebemos foi o de explicar mtodos de controle
de natalidade e indicar onde se poderia obt-los. Um dos movimentos sociais mais importantes na
periferia exigia a construo de creches para que as mulheres pudessem ter empregos regulares no
apenas como trabalhadoras domsticas, caso em que h uma certa flexibilidade de horrio e algu-
mas vezes a possibilidade de levar os filhos, mas cuja remunerao baixa e a explorao, alta.
74 Teresa Pires do Rio Caldeira
cimento de um segundo ou terceiro filho. Consideram isso uma libertao real. Elas
aprenderam- e a televiso, mostrando o comportamento das mulheres da classe
alta e de seus padres familiares, ensinou-lhes bastante sobre esse assunto- que
controlar sua sexualidade e fertilidade pode proporcionar uma imensa liberao no
s dos fardos da natureza, mas da dominao dos homens. Contudo, pessoas de
outros grupos sociais - inclusive intelectuais que acreditam estar escrevendo em
favor das mulheres quando atacam, em jornais, as poucas clnicas que oferecem
controle de natalidade aos pobres- se recusam a aceitar tal transformao. O
planejamento familiar considerado um comportamento moderno e de classe m-
dia; o lugar das mulheres pobres ainda considerado o da natureza e da necessida-
de. O outro argumento, de que as taxas de fertilidade diminuram porque a inten-
sa pobreza causou infertilidade, faz a mesma coisa: mantm os pobres prisioneiros
tanto de sua situao social como de suas conseqncias "naturais".
difcil para qualquer um, em qualquer grupo social, aceitar mudanas nas
condies sociais que representam uma deteriorao do seu padro de vida. Entre-
tanto, para as classes altas e mdias tambm difcil aceitar algumas das mudan-
as das ltimas dcadas que, apesar da recesso, significaram a incorporao das
classes trabalhadoras sociedade de consumo e cidadania poltica e ao que pode
ser considerado como padres modernos de comportamento. Pessoas das classes
mais altas duvidam da capacidade dos pobres de fazer escolhas de consumo e con-
trolar sua fecundidade, mas tambm de sua capacidade de votar racionalmente.
Assim como ficam irritadas com as televises dos pobres, ficam irritadas com a in-
corporao dos pobres cidadania poltica atravs dos movimentos sociais e do voto.
A idia de que os pobres no sabem como votar tradicional no Brasil e serviu para
justificar mais de um golpe autoritrio. Essa idia invocada toda vez que um re-
sultado eleitoral desfavorvel tem de ser explicado. Ela reapareceu, por exemplo,
no fim dos anos 80, quando Lula estava concorrendo presidncia contra Collor,
e quando Luiza Erundina- a prefeita do PT na poca das entrevistas- foi eleita.
Ao pr em risco posies atravs de todo espectro social, a crise econmica
alimenta um sentimento de incerteza e desordem. Um contexto de incerteza no qual
as pessoas se sentem socialmente ameaadas e vem transformaes ocorrerem parece
estimular o policiamento de fronteiras sociais. Uma das maneiras de fazer isso
elaborar preconceitos e marcas de distino. As depreciaes mais explcitas e vee-
mentes aparecem quando a proximidade e a ameaa da mistura aumentam. Isso
acontece quando um funcionrio compra um carro similar ao do seu patro; quando
novos migrantes vm viver perto de antigos migrantes que se consideram mais bem
de vida; quando algum que mora na periferia tem de provar que est numa condi-
o melhor do que um vizinho que mora na favela, e assim por diante. Em outras
palavras, a proximidade leva ao refinamento das separaes para que a percepo
de diferena seja mantida. O contexto do aumento da violncia e o medo do crime
intensifica incertezas mas ao mesmo tempo fornece um contexto em que as depre-
ciaes e separaes podem proliferar praticamente sem censura.
Cidade de Muros
75
As ExPERINCIAS DE VIOLNCIA
Apesar de pessoas de todas as camadas sociais estarem preocupadas com o
crime, as experincias de violncia so claramente distintas em cada classe social.
A maioria das pessoas que entrevistei j havia sofrido algum tipo de violncia, di-
reta ou indiretamente (um amigo, um parente ou algum prximo a elas j tinha
sido vtima). Entretanto, suas experincias- e medos variam bastante. Na Moca
e no Morumbi, contra a propriedade, sobretudo arrombamento e furto
de residncias os mais .. A preocupao com.
tambm grande entre a ehte. Na penfena, os cnmes contra pessoas, mclus1ve as-
sassinato, so maioria das pessoas que entrevistei no tinha sido vti-
ma direta do crime mas tinha testemunhado uma grande violncia em seus
bairros ou entre pessoas que conheciam. As estatsticas do crime analisadas no ca-
ptulo 3 confirmam essa distribuio social do crime.
No Jardim das Camlias, o crescimento da violncia algo novo, mas afeta a
todos. Uma das mulheres, que eu conhecia desde 1978 e que muito ativa nos
movimentos sociais e associaes locais, contou-me que acha que o bairro melho-
rou nos ltimos dez anos se considerarmos sua infra-estrutura de comrcio e servi-
os. Todavia, tambm se tornou mais violento. Apesar de suas avaliaes paralelas
quelas analisadas no captulo 1 - houve progresso mas tambm regresso a
qualidade da sua experincia diferente.
2.15
-Esses que mataram era molequinho, s que era bandido da pesada e tudo, andava a
na favela. Ento, uns a polcia que matou. Eu sei que aqui at que acalmou mais, mas teve uma
poca, no sei se foi esse ano ... no posso te dizer certo se foi esse ano ou o ano passado, que
teve um bandido, ele morava na rua da igreja, ele matou dois irmo aqui. Matou os dois ir-
mo ... Nossa! Foi uma coisa que aqui na vila todo mundo se revoltou, mas passado alguns dias,
mataram ele tambm. Mataram, depois, um colega dele tambm que tava junto, mataram;
depois mataram acho que mais quatro tambm. A, depois parou.
Dona de casa do Jardim das Camlias, 33 anos, quatro filhos; seu marido trabalhador
especializado de uma pequena indstria txtil.
) Pessoas da classe trabalhadora vivenciam a violncia no dia-a-dia no apenas
)em seu bairro, mas especialmente nele. As estatsticas que analiso no captulo 3
j mostram que as taxas de homicdio so incomparavelmente mais altas na periferia
/ do que nos bairros centrais das classes mdia e alta. Entretanto, a violncia tam-
1 bm ocorre em outros espaos onde as classes trabalhadoras passam seu dia, como
no local de trabalho e no transporte pblico. As pessoas na periferia tambm tm
medo da polcia, e por uma boa razo, j que ela responsvel por um nmero
incrivelmente alto de assassinatos, a maior parte deles na periferia, como discuto
5. A maioria das pessoas que entrevistei na periferia mencionaram .ho-
aconteceram ao seu redor, e duas vezes cheguei ao
Jardim das Camlias e ouvi relatos de assassinatos da noite anterior. Os morado-
res esto assustados com o que vem acontecer em seu bairro, que era calmo e se-
guro. A, um dos irmos que entrevistei, comentou:
76 Teresa Pires do Rio Caldeira
2.16
A- que nesses dez anos pra c o que j morreu de colega da gente, acho at que gente
que tem nesse livro [meu livro sobre o Jardim das Camlias} a que j morreu, que t naquelas
fotos que voc tirou, que minha me tem um monte l, j deve ter morri do muita gente. Tem
uns que morre pela polcia, tem outros que pelos bandidos, tem outros que porque rixa.
briga na rua, depois o outro cisma de matar dentro de casa que nem matou os dois irmos
aqui.
-Como foi a histria? Foi na rua de baixo, no foi?
A- Foi, passou at no Gil Gomes ...
11
Chamou um pra matar, a o outro saiu, mataram
os dois. Depois, desse tempo pra c, da mataram outros colegas da gente aqui embaixo. E da
mataram o Roberto aqui em baixo. Antes de matar os dois, mataram o que gostava de brigar
comigo na escola, a se ele tivesse vivo acho que ele ia querer me matar. A gente brigava dire-
to na escola. E da pra c ...
O contato dirio com a violncia pode ser recente no Jardim das Camlias,
mas no uma novidade na periferia de So Paulo. A pesquisa da equipe do Cebrap
em 1981-1982 em outros bairros da periferia j havia indicado que o contato di-
rio com a morte e o crime apenas um fato a mais na vida da classe trabalhadora.
Em vrias entrevistas para aquela pesquisa, assim como nas que fiz em 1989-1991,
ouvimos muitas histrias de crimes violentos que aconteceram nas redondezas. Em
muitos relatos, como nas citaes 2.15 e 2.16 acima, mencionaram-se vrios assas-
sinatos em seqncia, enfatizando sua ocorrncia rotineira no bairro. As narrativas
tambm estavam pontuadas por detalhes, especialmente em relao ao tempo em
que ocorreram, como quebraram o fluxo do dia-a-dia e como vitimaram pessoas
a maioria trabalhadores no caminho de ida ou de volta do trabalho.
A narrativa no captulo 1 um exemplo dos sentimentos dos moradores da
e mostra algumas diferenas em relao queles da mora-
dores Moca mencionaram que suas casas tinham sid6 rubadas, qtue os vizi-
nhos haviam sido roubados, que suas bolsas e carteiras em
nibus ou em reas do centro. Cada um desses acontecimentos foi sempre seguido
por novas medidas de segurana e, freqentemente, mais preocupao com os cor-
tios. Mas esses moradores no mencionaram assassinatos.
No quase todas as pessoas com quem conversei haviam sido vti-
mas de furto ou roubo. Os crimes que relataram tinham ocorrido em diferentes
lugares: em restaurantes, nas ruas, em cruzamentos com semforos, ou em suas
11 Gil Gomes apresentava um conhecido programa de rdio no qual narrava crimes. Nar-
rar crimes um gnero popular de programas de rdio. Nos anos 80 e no comeo da dcada de
90, havia dois programas imensamente populares desse gnero e que eram sempre mencionados
nas entrevistas na periferia. Um era o de Gil Gomes, que em meados da dcada de 90 introduziu
o gnero na televiso (programa "Aqui, Agora", no SBT). O outro era o de Afanasiojazadji, um
opositor aos direitos humanos cujas opinies discuto no captulo 9. Esses programas tinham o efeito
de reproduzir o medo e promover uma polcia violenta e o desrespeito aos direitos civis (ver os
captulos 5 e 9). Eram tambm usados freqentemente como uma forma de prova: se Gil Gomes
falou a respeito, ento se tratava de um crime srio e real.
Cidade de Muros 77
prprias casas. Foi comum no Morumbi ouvir relatos de vrios episdios de assal-
to residncia. Uma entrevistada me disse que tinha sido vtima em quatro epis-
dios, outra em cinco e muitas tinham sido pelo menos em um. Cada um desses
episdios originou novas medidas de segurana, novos sistemas de alarmes e vigi-
lncia eletrnica, muitos fins de semana sem sair de casa, menos viagens e assim
por diante. O maior medo que se tinha no Morumbi, contudo, era da possibilida-
de de seqestro.
2.17
-A gente achava que aquela falta de liberdade, a censura, era ruim- hoje eu acho que
tinha que vir de novo um regime militar. Por exemplo, o caso do seqestro. um absurdo a
falta de segurana que voc sente. Eu no sou ningum, eu no tenho grandes posses nem
nada, mas eu tenho medo que de repente qualquer camarada pegue o meu filho pra pedir um
resgate, de repente, de 5 milhes, eu morro de medo(. .. ) Porque qualquer um pode ser seqes-
trado. Eu tenho medo do meu marido chegar do trabalho e na hora de entrar em casa ... por-
que agora virou moda o seqestro, por qu? pela impunidade. Ns estvamos falando do re-
gime militar ... Quando apareceu o Al-5, lembra?, acabou o assalto a bancos, acabou, porque
todo mundo sabe que aquele dinheiro de assalto a bancos era pra financiar movimentos po-
lticos e pra mandar dinheiro pro exterior. Acabou. Ento, a impunidade faz com que a gente
se sinta insegura.
Dona de casa casada com um homem de negcios; quase 40 anos, dois filhos, mora no
Morumbi.
DILEMAS DE CLASSIFICAO E DISCRIMINAO
Apesar de as experincias da violncia e o medo das pessoas variar segundo a
classe social a que pertencem, todos esto igualmente preocupados com medidas
de proteo e com aquilo que se poderia chamar de trabalho simblico para dar
sentido a suas vrias experincias de violncia. U1lla das tiyidades_.principais_ges-
setrabal]lo simblico, que ocorre na fala do.crime, a elaborao da imagm do
algum que est o mais distantepossvel. Quando me refiro ca-
tegoria do criminoso, obviamente no estou me referindo a uma anlise sociolgi-
ca, mas a uma categoria classificatria que atua na vida cotidiana e cuja funo prin-
cipal dar sentido experincia. Assim, uma categoria de pensamento embutida
na prtica cotidiana e que simbolicamente organiza e d forma a essa prtica. Do
mesmo modo que as outras categorias da fala do crime, a categoria do criminoso
generaliza e simplifica. Ela produzida por distines ntidas e rgidas entre o que
faz parte dela e o que no faz. A base para essas distines a oposio entre o bem
e o mal; claramente, crime e criminoso esto do lado do mal.
As categorias da fala do crime simultaneamente carregam um desejo de co-
nhecimento e um desreconhecimento (misrecognition, Balibar 1991: 19). A cate-
goria do criminoso uma simplificao radical que o reduz encarnao do mal, e
sua construo coincide exatamente com a descrio de Mary Douglas (1966) so-
bre o tratamento de coisas fora do lugar. Elemento perigoso e que quebra as regras
78 Teresa Pires do Ri0 Call!:ieira
da sociedade, o criminoso visto como algum que vem dos espaos marginais e
polui e contamina. Apesar de esse tipo de categorizao ser uma maneira poderosa
de pensar o mundo, organizar as narrativas e ressignificar a experincia, quando
se precisa de descries mais especficas e detalhadas, a funo do desreconhecimento
se torna bvia e necessariamente surgem ambigidades.
No captulo 1, apontei essas ambigidades em relao aos nordestinos na
narrativa de uma moradora da Moca, e assinalei que elas esto especialmente
presentes na associao de criminalidade a pobreza. As discusses sobre o crime
que se referem pobreza e aos pobres so cheias de ambigidades e oscilam entre
dois registros: o nvel categorizante marcado por esteretipos e afirmaes genri-
cas, e os relatos detalhados e especficos que freqentemente contradizem as cate-
gorias e geram discursos ambguos. Ambos os nveis produzem conhecimento e no
h sentido em achar que um falsifica a realidade que o outro descreve. A categoria
do criminoso pode ser uma representao enviesada dos acontecimentos, mas, como
uma representao do mal, crucial para ordenar o mundo e dar sentido expe-
rincia. Alm disso, o discurso categorizante importante porque a linguagem da
maioria dos conflitos polticos sobre a questo do crime e assim d forma a polti-
cas pblicas. Ele tambm serve de referncia a atos individuais de proteo e
interao social. Entretanto, o nvel categorizante insuficiente para dar conta das
experincias, e quando as categorias vo contra as experincias, os discursos se tor-
nam contraditrios e ambguos.
As tenses e ambigidades entre esses dois nveis de discurso nunca podem
ser resolvidas porque a fala do crime nunca abandona suas categorias preconcei-
tuosas; de fato, essas categorias a constituem. O raciocnio categorizante sempre
a referncia em relao qual as pessoas do sentido s suas experincias, at mes-
mo as pessoas que so discriminadas pelas categorias. No de surpreender que a
tenso aumente medida que a inadequao das categorias se torna mais evidente,
e que as relativizaes sejam maiores onde existe mais proximidade com aqueles
que so estereotipados. Portanto, entre os pobres que os discursos se tornam mais
contraditrios e elaborados.
\ .. e _
J do origem, isto , e os cortios, vistos como os principais espaos do
)crime. Ambos so liminareS: s. habitaes, mas no o que as pessoas
/consideram residncias apropriadas. Os cortios so casas subdivididas sem os es-
/ paos, instalaes e separaes que se espera de uma casa considerada apropriada.
1
As favelas so residncias erguidas em terra invadida. Embora os barracos possam
se parecer com algumas residncias na periferia, a principal diferena que na pe-
riferia a maioria das pessoas compram o terreno onde constroem suas casas (mes-
mo que sejam barracos) ou pagam aluguel. Numa favela, apesar de os moradores
tambm construrem suas habitaes e s vezes as alugarem, as residncias so
construdas em terra obtida ilegalmente, e considera-se que seus residentes no se
coadunam classificao de cidados: eles vivem num terreno usurpado, no pa-
gam impostos municipais, no tm um endereo oficial e no so proprietrios. Alm
disso, nas favelas, as casas so precrias, geralmente feitas de material descartvel
e bem pequenas (novamente, sem as separaes e alocaes de espao que se con-
Cidade de Mums 79
sidera apropriadas para uma casa). Como residncias um tanto anmalas, ou seja,
que no se encaixam totalmente na classificao de casas apropriadas, favelas e
cortios acabam classificados como sujos e poluidores. Eles coincidem, ento, com
a frmula de Douglas de que "sujeira e imundcie aquilo que no pode ser inclu-
do se se quer manter um padro" (1966: 40). Excludos do universo do que ade-
quado, eles so simbolicamente constitudos como espaos do crime, espaos de
caractersticas imprprias, poluidoras e perigosas.
Como seria de esperar, os habitantes desses espaos so tidos como margi-
nais. A lista de preconceitos contra eles infinita. So considerados intrusos: nor-
destinos, recm-chegados, estrangeiros, pessoas de fora e que no so na verdade
da cidade. So tambm considerados socialmente marginais: diz-se que tm fam-
lias divididas, que so filhos de mes solteiras, crianas que no foram criadas de-
vidamente. Condena-se seu comportamento: diz-se que usam palavres, so sem-
vergonha, consomem drogas e assim por diante. De certo modo, tudo o que que-
bra os padres do que se considera boa conduta pode ser associado a criminosos,
ao crime e a seus espaos. O que pertenc:e ao crime tudo o que a sociedade consi-
dera imprprio. --..,.,
Essas categorias genricas do crime e/dos criminosos da clara oposi-
o entre o que ruim e o que bom. Falar de favelas, cortios, nordestinos em
particular, mais complexo. Os discursos mais ambguos e elaborados ocorrem
quando h uma proximidade dos narradores com os espaos do crime, ou seja,
quando eles moram perto ou nas prprias favelas e cortios
Nas entrevistas na periferia, apesar de muitas pessoas falarem com cuidado
sobre os moradores de favelas prximas e de quererem consider-los como iguais,
havia tambm uma certa suspeita, expressa de maneiras ambguas. Mas quando a
conversa era sobre crime, maior era a probabilidade de que se usassem os precon-
ceitos. Segue uma entrevista de 1981, na Cidade Jlia, com a dona de um pequeno
bazar que havia sido roubada algumas vezes.
12
2.18
-Mas de onde a senhora acha que esse pessoal que tanto assalta por aqui?
Ah, s pode ser da favela! No vou dizer que da favela, porque na favela tem tanta
gente boa tambm. Ento, eu acho que vem de outros lugares; inclusive, esses dois que me
assaltou, assaltou duas vezes essa mesma moa, assaltou o irmo dela, assaltou os dois inqui-
linos que moram no quintal e assaltou esse vizinho que mora do meu lado. Num perodo de
cinco a sete dias foi assaltado todo esse pessoal. Passando uns dias, a me de um dos rapazes
que foi assaltado me contou que os policiais apagaram uns trs fulaninhos l embaixo. De-
pois disso, ningum viu e ningum foi assaltado( ... ) Ento, eu acredito que esses dois que fi-
zeram comigo, com a turma, a gente no deseja o mal, mas se foi, graas a Deus, no apare-
ceu ningum mais aqui no.
-O pessoal que mora nessa favela, eles vm comprar aqui tambm?
12
As entrevistas na Cidade Jlia em 1981 e 1982 foram feitas por Antonio Manuel Texeira
Mendes, integrante da equipe do Cebrap.
80 Teresa Pires do Rio Caldeira
-Claro que vm. Vem tanta gente aqui que eu nem sei de onde eles vm.
-Mas a senhora conhece o pessoal de l?
-Pelo cheiro deve ser de l, pelo cheiro eu acredito que seja!(. .. ) Talvez seja at gente
muito bacana que passa por aqui e mora num barraco daquele. No sei se so do barraco ou
no. Tem gente que mora numa "big" duma casa e no quer se mostrar. Tem gente que as-
sim, que tem do bom e do melhor e acha que tem que viver igual aos outros. s vezes tem
gente que mora num barraco, que gostaria de ser madame e se veste como madame, e da?
(. .. ) Ento essas coisas a: voc no sabe quem fulano.
Proprietria de um bazar em frente sua casa, na Cidade Jlio, 37 anos, casada, dois fi-
lhos; o marido est desempregado.
difcil saber qual a verdadeira natureza de uma pessoa, sugerem os entre-
vistados. A aparncia no tudo, mas s vezes tudo em que algum pode se ba-
sear. Geralmente as pessoas se baseiam nas aparncias e em categorias genricas
para fazer julgamentos, mas o fazem de maneira muito relutante e cheia de dvi-
das. Por um lado, as pessoas associam o crime s favelas e denigrem os favelados,
os ...
as relativizaes no excluem difamaes; que aparecem sempre em pequenos co-
mentrios; por exemplo, a observao de que se pode identificar um favelado pelo
mau cheiro. Os esteretipos que explicam o crime e os criminosos so depreciati-
vos e at pessoas que vivem perto dos favelados e dos mais pobres e pensam neles
como trabalhadores honestos no encontram outras maneiras de explicao. Na
verdade, como argumentei, eles precisam de tais esteretipos mais do que os ou-
tros porque sua proximidade social com os favelados exige que reafirmem suas
diferenas; conseqentemente, eles enfatizam sua dignidade, limpeza, sua condio
de serem bons cidados, proprietrios e membros de boas famlias.
As ambigidades da narrativa e o conflito com os esteretipos foram expres-
sos de maneira especialmente convincente numa srie de entrevistas de 1981 com uma
senhora que era lder de bairro no Jaguar, na zona oeste. Como moradora em lote
legalmente adquirido do outro lado da rua de uma famosa favela, ela tinha que di-
ferenciar a si prpria e a sua famlia dos favelados. Entretanto, enquanto lder do
bairro, reivindicando melhoras na regio e em sua rua, ela tambm se sentia obriga-
da a incluir os favelados em suas peties e discursos. Ela intua que sua legitimida-
de como representante do bairro derivava do apoio amplo de moradores, no de apenas
um lado do bairro. Suas descries de suas atividades no bairro e de suas interaes
com o prefeito e representantes da administrao municipal revelam o quanto ela
oscilava entre excluir e incluir a favela em seus argumentos e em seu ativismo.
Quando essa lder de bairro foi entrevistada em 1981, ela j morava no Jaguar
havia treze anos.
13
Usando as estratgias tpicas da fala do crime, ela dividiu a his-
tria do bairro entre os bons tempos antes da chegada da favela e o tempo ruim
13
As entrevistas no Jaguar foram feitas por Maria Cristina Guarnieri, integrante da equi-
pe do Cebrap. Nessa entrevista, "M" refere-se ao marido da entrevistada.
Cidade de Muros
81
que a isso se seguiu. No caso do Jaguar, adequado falar sobre a "chegada" da
favela, j que ela foi transferida pela administrao municipal de outro bairro (Ver-
gueiro), que estava passando por uma intensa remodelao para a construo da
linha do metr. Como ela disse: "Depois que trouxeram a favela, virou um infer-
no!". Ela decidiu ir prefeitura e reclamar da situao.
2.19a
- Ento fui direto ao gabinete [do prefeito]. Quando eu cheguei l, expus a situao,
que eu falei que fui em nome do bairro, n? Ele perguntou se era problema de buraco na rua,
se era problema de lixo, n?
-A senhora falou diretamente com o prefeito?
Com ele, ento eu falei pra ele: no senhor! No problema de buraco, porque se fosse
buraco ns no viramos amolar, porque tem muita terra em todos os terrenos aqui- a gente
taparia, certo? E lixo, a gente tacaria fogo, exterminaria o pior, n? Eu falei: pior do que lixo!
Porque da a gente vai tacar fogo e vai preso e uma calamidade. Nem se pense nisso! E ele
ento: "O que ?". Eu falei: "A favela que o senhor t apoiando" ... A ele quis me dar uma lio
de moral, n?, virou pra mim e falou: "Minha senhora, so gente!". Falei: "No senhor! So in-
digente!... Gente o meu marido, que trabalha de dia pra gente comer de noite. Esses so gente!
Agora, l, o senhor t apoiando uma escola de latrocnio, banditismo ... e ns, como pobre, quero
dar uma moralidade pros meus filhos, e no tem condies. No tem condies! Se 9 horas da
noite bang-bang, assassinato em frente nossa casa! Certo? No precisa televiso em casa.
ao vivo! Dez horas da manh num domingo, que a gente levanta, sai na frente da casa ge-
ralmente pra ver, no se pode: palavres de alto calibre ali, umas nega a que fazia strip-
tease direto! Quer dizer: no h condies de ns, como pobre, querer instruir os filhos pra
uma vida melhor! (. .. ) No questo de desfazer, entende, que a gente sabe: voc trabalha,
voc honesta, voc trabalhadora, mas se voc uma vagabunda, uma salafrria que fica a
esfolando os outros, ningum vai te dar apoio! E no tem lgica em te dar ... Certo?". Da ele
mandou a "operao pente-fino". , ele mandou um quartel.
Dona de casa e lder de bairro, Jaguarl 35 anos/ 4 filhos; o marido trabalhador especia-
lizado de uma fbrica txtil.
Como cidad, proprietria e lder de bairro, a entrevistada no hesitou em ir
diretamente ao prefeito para pedir uma represso armada s pessoas que viviam
na favela e que ela sentiu que estavam atrapalhando sua vida e impedindo-a de ter
o padro de vida que merecia. O fato de ter sido recebida pelo prefeito no era to
estranho em So Paulo no contexto de democratizao e de organizao de movi-
mentos sociais. As organizaes de bairro sabiam que tinham uma chance de ser
recebidas pelos polticos, que estavam comeando a pensar na mudana do siste-
ma de nomeao pelos militares para o de eleies diretas. Na verdade, muitas as-
sociaes e lderes tiraram vantagem dessa situao e foram de fato recebidos.
14
O
que especialmente revelador em relao narrativa acima a srie de contradi-
14
Eu mesma fui uma testemunha dessas diversas visitas de surpresa Prefeitura. impor-
tante mencionar que os prefeitos indicados pelo regime militar preferiam receber lderes individuais
82 Teresa Pires do Rio Caldeira
es que ela apresenta. O prefeito nomeado pelo regime militar recebe democrati-
camente a representante, que afirma representar o bairro e inicialmente tenta de-
fender os moradores da favela que depois atacar. Entretanto, da maneira autori-
tria mais tradicional, ele aparentemente acaba por mandar a polcia militar fazer
uma "operao pente-fino" -e ganha o apoio da entrevistada, que disse que as
coisas melhoraram depois disso.
Apesar de sua ao contra os seus vizinhos do outro lado da rua, essa lder
local logo percebeu que seu relacionamento com a favela no podia permanecer
hostil. Sua visita ao prefeito ocorreu em meados dos anos 70, ou seja, no comeo
do processo de abertura. medida que esse processo se desenvolvia, entretanto, e
que mais e mais movimentos sociais alcanaram o gabinete do prefeito, as aes
individuais foram perdendo eficcia. Os movimentos sociais criaram um padro de
interao com a prefeitura em que a legitimidade das reivindicaes tinha de ser
demonstrada.
15
Essa lder mudou suas aes para se adaptar a esse novo padro.
Poucos anos depois da "operao pente-fino", ela percebeu que no tinha outra
opo a no ser tentar se aliar aos moradores da favela a fim de exigir algumas
melhoras para o bairro, inclusive asfalto e iluminao para a rua que ela dividia
com os favelados, e melhores condies para a escola pblica que servia tanto a seus
filhos como s crianas da favela. Para legitimar suas reivindicaes, ela precisava
de suas assinaturas nos abaixo-assinados e ser reconhecida como sua representante.
A descrio de seus esforos uma tentativa de equilibrar suas opinies ne-
gativas sobre a favela e seus moradores com seu reconhecimento de que eles eram
pessoas que enfrentavam problemas semelhantes aos seus na cidade. Trata-se de um
exerccio complexo de simultaneamente alegar coisas em comum e manter diferen-
as. Ela nos disse, por exemplo, como iria redigir um abaixo-assinado reivindican-
do asfalto ao prefeito:
2.19b
- Eu ia pr, inclusive, no abaixo-assinado me dirigindo ao prefeito Reynaldo de Barros,
eu ia pr: Ns, contribuintes do senhor porque eu me atrasei no impostinho e j me man-
daram uma carta do judicirio -, ns, os contribuintes do senhor, moradores da rua tal, e os
no-contribuintes, que do senhor dependem -que da favela -, porque tanto ns que pa-
gamos imposto quanto eles necessitamos desse asfalto, dessas melhorias aqui(. .. )
Mas a escolha das palavras no era seu nico problema. Ela tinha dificulda-
des em se aproximar das pessoas da favela contra as quais fizera campanha e em
do que grandes grupos de pessoas. Em geral, as pessoas que iam sozinhas eram identificadas com
partidos polticos de centro e da direita, enquanto pessoas afiliadas ao PT faziam questo de ir em
grande nmero. A primeira eleio para prefeito em So Paulo ocorreu apenas em 1985, embora
a primeira eleio para governador no estado tenha ocorrido em 1982.
15
Para uma anlise de diferentes tipos de liderana de bairro, especialmente mulheres, e suas
diferentes tticas para mobilizar os moradores e abordar a administrao da cidade, ver Caldeira
(1990).
Cidade de Muros 83
convenc-las a apoi-la. Ela nos disse que era difcil porque as pessoas estavam
assustadas, perguntando se sua assinatura significaria que teriam de pagar por al-
guma coisa, ou pior, desconfiando que ela estaria interessada em caar "os bandi-
dos". Ela lhes garantiu que no estava l para pegar bandidos, porque sabia que
esse no era um problema s deles, mas algo comum a toda a cidade. Ela lhes dis-
se: "eu s quero melhoria pra ns, pra mim e pros meus filhos, e pra vocs e seus
filhos". E ao continuar a descrever suas interaes com eles, as diferenciaes co-
mearam a surgir:
2.19c
Eles sempre tiveram medo, mas dessa vez eu meti a cara e entrei l dentro, acho que
pensaram que eu era da assistncia social. E como eu tava te falando, tem uns barraquinhos
ali que to caindo, um mau cheiro horroroso, cinco crianas dormindo no cho- ali o barra-
cot cai-no-cai.
Um de seus empreendimentos era melhorar a escola pblica local, que, de
acordo com ela, fora afetada pelo crime. Ela decidiu que o objetivo mais impor-
tante era ter polcia na frente da escola, especialmente no perodo da manh, fre-
qentado pelas crianas menores, que talvez no soubessem atravessar a rua.
2.19d
Eu ensino meus filhos a cruzar a rua; eu saio, levo eles, mostro como que , mas
enfim, eu vou espionar. Mas so crianas, geralmente essa gente [da favela], eles no vo com
os filhos numa Lapa, numa cidade, no vo falar pro filho: , filho, assim que atravessa a
rua. No tm tempo! Ento, so crianas que anda avuaada ... e os carros anda adoidado, eles
no tm ... A maioria dos motoristas, homens, porque as mulheres so responsveis, so mes.
Mesmo quando politicamente necessrio que os moradores de uma mesma
rua trabalhem juntos, suas diferenas tm de ser mantidas. Ela sentiu que era ne-
cessrio deixar distinguir no seu abaixo-assinado os cidados de verdade dos "no-
contribuintes", apesar de que ambos seriam beneficiados pelo asfalto e pelas me-
lhorias na escola. Essa diferenciao no era apenas uma questo da condio de
cidadania, mas tambm uma questo de pertencer ou ao espao social adequado
ou ao espao imprprio do crime, um lugar de criminosos, lares desfeitos, mau
cheiro, crianas dormindo no cho, mes que no ensinam seus filhos a atravessar
a rua, mulheres negras fazendo strip-tease na janela, palavres, cenas contra os
padres morais, pobreza extrema ... uma lista infinita. No fim da entrevista, talvez
sentindo que havia expressado preconceitos demais, ela sentiu que era necessrio
neg-los:
2.19e
Ento eu me entrosei com eles [os favelados] ... eles so gente! No comeo eles tive-
ram medo, porque eles acharam que eu queria mexer com banditismo. Mas jamais eu vou mexer
com banditismo, porque nenhum bandido, se houver bandido nessa favela, nenhum deles vi-
eram perturbar ns, entende?. .. que favelado nome marginalizado. Infelizmente, pra so-
84 Teresa Pires do Rio Caldeira
ciedade favelado marginalizado. E eles se traumatizam com isso. Agora, aqui da nossa fave-
la, no. A maioria, eu garanto, provo, reno pra quem quiser, pra ver que eles so gente tanto
quanto a gente.
O reconhecimento da humanidade dos favelados, que os iguala entrevista-
da, e do fato de que so estereotipados- "o nome deles significa marginalidade"
-no a impede de usar esses mesmos esteretipos para manter os no-contribuin-
tes longe de si mesma, de suas demonstraes de ser uma boa cidad, e dos padres
que ela quer garantir para sua famlia. As ambigidades e contradies do seu dis-
curso derivam do fato de que as marcas de distino usadas pelos pobres geralmente
se valem de esteretipos como aquele dos favelados, que tm que ser simultanea-
mente impostos e relativizados. Como esse tipo de esteretipo feito de preconcei-
tos que afetam sobretudo os pobres, e como so eles que moldam as explicaes e
tentativas de exprimir distino dos prprios pobres, seu uso sempre implica num
esforo de deslocamento: os esteretipos tm que ser direcionados a um outro lu-
gar pior, mesmo se esse lugar o outro lado da rua. A dimenso dramtica desse
esforo, que acaba criminalizando e discriminando pessoas do mesmo grupo social,
que os dominados no tm um repertrio alternativo para pensar a si mesmos e
so obrigados a dar sentido ao mundo e sua experincia usando a linguagem que
os discrimina.
16
O mesmo tipo de ambigidades e contradies marca a fala dos moradores
da Moca em relao aos cortios e seus moradores, os nordestinos (ver, por exem-
plo, a citao 1.1). Tanto na fala dos moradores da periferia sobre as favelas como
nas discusses dos mooquenses sobre os cortios, encontramos depreciaes pare-
cidas contra os habitantes de espaos inadequados, assim como relativizaes, am-
bigidades e contradies similares.
2.20
- Eu s acho o seguinte: que de alguns anos pra c tem havido muita entrada de es-
trangeiros- entre aspas, que so de outros estados( ... ) Ento, diferente daquela Moca de
antigamente, que eram todas pessoas tradicionais, eu digo descendentes de italianos, de es-
panhis, principalmente, e tambm de portugueses. E hoje, no, hoje ns temos muita infil-
trao de brasileiros, nossos, mas que vieram do Nordeste. Ento o ndice de capacidade, de
estudo, muito menor. Pessoas que vieram, vamos dizer, da roa l do Nordeste, que se fixa-
ram aqui. Ento mudou muito nesse aspecto a vida da Moca. A Moca antigamente, eu me
lembro, eram todas pessoas que se conheciam h vinte, trinta, quarenta anos. E devido tam-
bm ao progresso ter avanado, aquelas avenidas que passaram, e tambm o metr, que tam-
bm chega a afetar a Moca; l embaixo tambm Moca, ento muitas famlias tradicionais
tiveram que se mudar pra ir pra uma regio bem distante(. .. ) No local onde eu moro, ali um
local que ainda no houve infiltrao praticamente de "estrangeiros" (. .. ) Eu digo "estrangei-
ros" com todo o carinho porque eles tambm merecem todo o respeito(. .. ) No quero colocar
16
Para uma anlise dos esforos dos pobres para controlar as narrativas dominantes e dis-
tanciar-se de seus esteretipos, ver Caldeira (1984: cap. 4, e 1987). Ver tambm De Certeau (1984).
Cidade de Muros
85
nunca em xeque o fato de voc ter vindo do Norte, do Nordeste, ser especificamente crimino-
so. No isso. A gente conhece muitos deles, sabe que so honestos e tal. Mas a diferenciao
que eu quero fazer a seguinte: de que a gente conhecia ... a Moca, por exemplo, de vinte
anos atrs, pessoas que a gente conhecia h vinte anos, e hoje vem uma pessoa morar perto
da gente que a gente mal conhece. Ento, at que a gente sinta segurana ao lado dessas fa-
mlias que vieram, diferente. Essa a colocao que eu queria fazer. Nunca em termos de
dizer que a pessoa que veio criminoso. No isso. Mas que mudou muito pra pior, mudou.
Atacadista, Moca, 45 anos, casado; mora com a mulher e dois filhos.
Apesar de ser impossvel dizer que todos os nordestinos- os "estrangeiros"
que se infiltraram no bairro e ocuparam os cortios- so criminosos, para esse
entrevistado sua presena certamente simboliza as transformaes negativas no
bairro. Algumas das mudanas se referem menos ao crime do que reorganizao
do espao urbano e dos padres de sociabilidade local. As pessoas se sentem perdi-
das e inseguras com as transformaes no bairro, e culpam o crescimento da cri-
minalidade e os "invasores", cuja imagem estereotipada vem do repertrio de maus
caracteres sociais disponvel. Cham-los de estrangeiros obviamente um modo de
distingui-los da comunidade local. O fato de que essa distino feita por filhos de
imigrantes em relao a brasileiros de outros estados indica mais uma vez a he-
gemonia do repertrio de depreciaes: usa-se contra os outros o mesmo repert-
rio usado contra si mesmo. O poder da categoria que iguala nordestinos e crimino-
sos se manifesta mesmo na fala de pessoas que querem questionar a associao. Um
morador da Moca j tinha sido roubado cinco vezes e, de acordo com ele, por
pessoas muito diferentes: um loiro bonito, trs pessoas brancas e dois que pare-
ciam nordestinos. Ele insistiu que impossvel generalizar, que dentro de cada ca-
tegoria de pessoa h bons e maus. Mas sua categoria de nordestino constituda
basicamente de qualidades negativas.
2.21
-Dentro de So Paulo tem gente que presta e gente que no presta, a gente no pode
generalizar a coisa. Agora, o que estraga geralmente o nordestino que eles so sangue quente,
s vezes eles no so nem assaltantes nem bandidos, mas se eles esquentam a cabea, eles
puxam a faca e matam (. ..) Mas esse negcio no tem nada a ver, no; se eu fosse assaltado
toda vez por nordestino eu ia falar que tem tudo a ver, mas no verdade. Na verdade, quem
contra nordestino so os descendentes de europeus, de italianos. O meu cunhado fala as-
sim: os nordestinos chegam aqui e j compram "raiban", compram peixeira, arrancam os den-
tes e colocam dentadura ou ficam banguela. Eu acho que no so todos, voc no pode gene-
ralizar uma coisa assim. No porque uma meia dzia faz isso, todos tm que pagar. Pelo
contrrio, se So Paulo cresceu tanto, foi tambm graas a eles. Se eles no viessem para c,
ns que amos ter que pegar na massa. S que a nossa mo de obra j ia ser mais cara, no
? Para construir o metr, eles pagam quanto eles querem; ns no amos querer, a gente ia
exigir, no ia querer isso. O meu sonho, ainda, para no dizer que no tenho vontade de sair
de So Paulo, um dia ir para o Norte para ajudar a melhorar o Norte. Por exemplo: criar um
sistema de irrigao para que eles no sofram mais o que eles sofrem, educar esse pessoal,
comear por baixo, instruindo eles, mostrar o que a vida para eles, dar cultura (. .. ) No que
86 Teresa Pires do Rio Caldeira
eu seja contra eles virem para c. Eu acho que eles vm para c, so tachados de burro, igno-
rante, matador, de tudo isso, no ? O que eles vm fazer aqui em So Paulo, para melhorar
So Paulo, eles deveriam fazer na terra deles, para melhorar l.
Vendedor desempregado, 32 anos, solteiro; mora com uma irm casada na Moca.
Os nordestinos podem no ser todos criminosos, mas a lista de derrogaes
contra eles . eles tm "sangue quente", so mo-de-obra barata que
nao sabe como reivindiCar um pagamento justo, so mal-educados, sem cultura
ignorantes. Alm disso, o paternalismo implcito na idia de trabalhar para
los (assim eles no teriam que vir a So Paulo) evidente, assim como o preconcei-
to de classe mdia contra seus padres de consumo: eles chegam a So Paulo com-
pram culos de sol ray-ban, vo ao dentista e, talvez por no serem racionais' subs-
tituem os dentes por dentadura. '
bvio que os preconceitos contra os nordestinos, que freqentemente coin-
cidem com aqueles contra os favelados, no so exclusivos dos moradores da Moca:
eles so parte de um repertrio comum aos habitantes de toda a cidade. Nas entre-
por exemplo, eles foram usados por um executivo, descendente de imigran-
tes libaneses, que mora no Morumbi. Ele acha que o empobrecimento brasileiro
comeou com a crise do petrleo de 1972-1973, mas que o problema no apenas
econmico ou social, mas uma questo de educao.
2.22
- Eu me lembro muito bem quando So Paulo era um lugar onde se encontrava muito
europeu. Quando comeou vir o pessoal do Norte, os costumes foram modificados, eles trou-
xeram costumes ... Ns ramos mais educados; no sou contra o nortista, mas o que aconte-
ce. Mudou o costume, mudou o respeito que se tinha pelo que era do outro, pelo aquilo que
seu e que a gente v to bem, to bonito nos Estados Unidos. Fecha o sinal, voc pra, todo
mundo pra, voc pode andar com sossego na rua, exatamente o contrrio do que acontece
aqui.
Empreendedor imobilirio, quarenta e poucos anos, proprietrio de uma empresa de de-
senvolvimento imobilirio; mora com a mulher e trs filhos no Morumbi.
Tenho interpretado as repetidas e simultneas afirmaes e negaes dos pre-
conceitos em relao a algumas categorias sociais como uma oscilao entre dois
tipos de registros da fala do crime. H, entretanto, outra interpretao complementar.
As citaes indicam como as pessoas tentam se dissociar do que sabem que so
preconceitos e depreciaes apesar de obviamente compartilharem deles. Essa cons-
cincia e ambigidade marca outras dimenses da sociedade brasileira, como o caso
do preconceito contra os negros. Considerando o que foi dito contra os favelados
e nordestinos, especialmente significativo que em nenhuma ocasio durante as
entrevistas algum tenha feito uma declarao direta contra os negros ou afirmado
que eles fossem criminosos. Quando muito, ouvi frases como uma da citao 2.19,
na qual as mulheres que faziam "strip-tease" na favela foram identificadas como
negras, mas sem mais elaborao. Apesar dessa ausncia na fala do crime, sabe-se
que a discriminao contra os negros atravessa a sociedade brasileira. Estudos re-
Cidade de Muros
87
centes usando dados de Censo de 1980 e 1991 mostram que, seja qual for o indi-
cador utilizado, os negros esto em pior situao social (Goldani 1994, Hasenbalg
1996, Lopes 1993, Silvia e Hasenbalg 1992, e Telles 1992, 1993 e 1995). Esses
estudos, junto com o Movimento Negro, desafiam o mito da democracia racial. Uma
das principais tticas que tm ajudado a manter esse mito um sofisticado cdigo
de polidez que considera de mau gosto nomear pessoas negras diretamente "negras"
e colocar em palavras qualquer ofensa a elas, como se fosse possvel eliminar o
racismo ao no se pronunciar certas palavras. Essa uma das razes pelas quais
vrios recenseamentos brasileiros omitem questes sobre raa e pela qual as pes-
soas usam todo tipo de eufemismos (moreno, escurinho, por exemplo) para se re-
ferir a uma pessoa negra.
17
por isso tambm que o Movimento Negro encontra
dificuldade em recrutar ativistas que optem por identificar-se publicamente como
negros (abandonando categorias "mais brancas" como mulato) e que os julgamentos,
desde que a Constituio de 1988 definiu o racismo como um crime, tm sido ra-
ros e frustrantes (ver Guimares 1997). A constante necessidade de censurar as
palavras aprendidas no contexto das relaes raciais pode muito bem ter influen-
ciado a expresso de depreciaes em relao a outras categorias sociais. Apesar
\de as pessoas expressarem julgamentos em relao aos nordestinos e
)favelados (tambm possveis eufemismos para aos pobres em geral, elas
\procuram corrigir-se, atribuir a opinio a outros, relativiz-la. A arte de discrimi-
/ nar e ao mesmo tempo negar que se faz isso s pode ser cheia de ambigidades.
f Mas uma arte em que os brasileiros so mestres (Caldeira 1988).
Em formas s vezes mais elaboradas, s vezes menos, os moradores que en-
trevistei em todos os bairros usaram alguns desses modos de expresso parado-
xais em relao aos pobres, aos favelados, s pessoas que vivem nos cortios e aos
nordestinos. Entretanto, alguns moradores do Morumbi ofereceram uma descri-
o diferente dos criminosos. Eles associam o aumento do crime ao trfico de dro-
gas e a operaes criminais cada vez mais sofisticadas. Uma dona de casa me dis-
se que nenhuma das pessoas que ela conhecia que haviam sido assaltadas tinha
sido roubada por um "mendigo". "Grandes assaltos"- argumentou ela- "so
feitos por gente muito bem-vestida, muito bem-arrumada, e se um tipo com ja-
queta se aproximar de voc, voc deve tomar cuidado, porque a jaqueta sempre
esconde uma arma". Outro casal, que foi roubado num restaurante e que decidiu
'aceitar o medo do crime como um preo que tem de pagar para viver em So Pau-
i lo, cidade de que eles gostam, falou sobre a discrepncia entre a imagem comum
do criminoso como pobre e a realidade mais provvel de ser roubado por algum
que no parece pobre.
17
A negao de categorias raciais compartilhada por outros pases latino-americanos que
tambm tiveram escravido e na virada do sculo XIX adotaram verses da "teoria do branquea-
mento". Esses so pases que habitualmente no registram raa nos seus censos (Hasenbalg 1996).
Para a Venezuela, ver Wright (1990); para a Colmbia, ver Wade (1993); e para Cuba, ver Helg
(1990).
88 Teresa Pires do Rio Caldeira
2.23
O (esposa)- Hoje em dia, acho que qualquer pessoa atravessando a rua a gente j fica
assim.
P (marido) - , mas normalmente ligado figura de um cara mais pobre. T certo?
Hoje se ouve muito falar de negcio de assalto de carro de uma dupla que vem de moto. Vm
dois caras numa moto, param do lado dum carro, te tiram, apontam uma arma e falam
11
Sai
desce o da garupa e pega o carro e vai, e os dois fogem. Voc v, numa moto! Esse troo
deve ser ... eu nunca vi, mas no deve ser'cara mal vestido.
Diretor geral e co-proprietrio de uma indstria qumica, 3 7 anos, e sua esposa, que dona
de casa, 36 anos. Eles moram com os dois filhos no Morumbi.
Nos bairros ricos, a imagem do criminoso pobre no muito detalhada, pro-
vavelmente pela simples razo de que os moradores no temem ser confundidos com
criminosos. Seus discursos sobre criminosos raramente deixam o campo do genri-
co e essa distncia social segura lhes permite at mesmo uma certa proximidade
simblica: algum que um criminoso pode no coincidir com o esteretipo do
criminoso; pode at estar bem-vestido. Foi apenas no Morumbi que residentes se
referiram imagem do moderno profissional do crime, com jaquetas de couro,
motocicletas e armas, interessado em dlares e com recursos para crimes sofistica-
dos como seqestro, o crime que a elite mais teme.
A proximidade real com o esteretipo do criminoso, entretanto, requer um
discurso elaborado de distanciamento e separao. Quando entrevistei as pessoas
na periferia ou na Moca, perguntei-me vrias vezes se a minha insistncia no assunto
do crime no iria automaticamente gerar ansiedade, dvidas sobre se eu suspeita-
va que eles fossem criminosos, e a conseqente necessidade de enfatizar as diferen-
as. As pessoas pobres que entrevistei sempre se esforaram para distanciar a si
mesmos e a outras "pessoas honestas, trabalhadoras" da imagem do criminoso. Essa
ansiedade em relao separao no tem origem exclusiva num esforo para exi-
. bir um status social melhor ou num exerccio simblico. Na verdade, a "confuso"
,f'\ j entre pobres e criminosos pode ter srias conseqncias, considerando-se
')que a os mesmos esteretipos, freqentemente confun-
/ dindo os e s vezes at matando-os. O aspecto paradoxal
da tentativa ch1s pobres trabalhadores de separarem-se do esteretipo do criminoso
que isso feito usando-se contra o vizinho as mesmas estratgias que so usadas
contra a prpria pessoa. Como conseqncia, a categoria do criminoso e seu reper-
trio de preconceitos e depreciaes raramente so contestados. Ao contrrio, a
categoria continuamente legitimada e os preconceitos e esteretipos contra os
pobres (favelados, nordestinos, moradores de cortios) so reencenados diariamente.
O universo simblico do crime no est limitado a referncias de carter so-
cioeconmico e no est restrito aos tipos de preconceitos e difamaes que acabei
de analisar. O crime tambm uma questo do mal, e suas explicaes tambm tm
a ver autoridade e construes culturais destinadas a domesticar as foras do
mal. E importante investigar essas concepes sobre o controle da difuso do mal
porque os paulistanos as usam para atacar os direitos humanos, para apoiar abu-
sos da polcia, justiceiros e esquadres de morte, e para justificar a pena de morte.
Cidade de Muros
89
MAL E AUTORIDADE
O crime uma questo de autoridade. As pessoas que entrevistei em So Paulo
acham que o crescimento do crime um sinal de autoridade fraca, seja ela da esco-
la, famlia, me, igreja, governo, polcia ou sistema judicirio. Essas autoridades so
responsabilizadas por controlar a difuso do mal. Na fala do crime, o mal tido
como algo poderoso e que se espalha facilmente. Uma vez que atinge algum numa
posio fraca por exemplo, algum nos espaos imprprios ou sem os atributos
apropriados a um membro da sociedade- provvel que domine essa pessoa, e
difcil livrar-se dele. As pessoas que entrevistei sentiam que as autoridades e insti-
tuies estavam claramente fracassando em sua tarefa de controlar lugares e com-
portamentos, ou seja, estavam deixando espaos abertos para o mal se espraiar.
Os verbos usados para descrever o crescimento do crime e o contexto em que
ele ocorre foram infiltrar, infestar e contaminar. Uma conseqncia importante dessa
teoria de contgio e do fracasso das autoridades em controlar o mal que as pes-
soas intensificam suas prprias medidas de encerramento e controle, de separao
e construo de barreiras, tanto simblicas (como preconceito e estigmatizao de
alguns grupos) como materiais (muros, cercas e toda parafernlia eletrnica de se-
gurana). Alm disso, elas tendem a apoiar medidas privadas de proteo que so
violentas e ilegais, tais como a ao de justiceiros e abusos da polcia.
As entrevistas sugerem que as pessoas de todas as classes pensam no mal como
uma fora natural e que pode ser controlada apenas pelos trabalhos da cultura e
da razo. O modelo que muitos moradores de So Paulo parecem ter assemelha-se
concepo de Hobbes do estado natural que fundamenta a necessidade do con-
trato social. Na falta de um contrato atando as pessoas a regras restritivas, e na falta
de autoridades que possam impor esse contrato, existe uma "guerra de todos con-
tra todos". Quando o contrato social falha, as pessoas retrocedem violncia do
estado natural, ou seja, a um universo de hostilidade, retaliao e vingana. Enquanto
o mal se espalha facilmente, a ordem e a paz so difceis de manter. Essas concep-
es so tambm similares s de Girard (1977; ver tambm captulo 1).
O mal tambm concebido em oposio razo. aquilo que no faz senti-
do e que se aproveita de pessoas cuja racionalidade vista como precria. Crian-
as, mulheres, adolescentes, os pobres e pessoas cuja conscincia pode estar per-
turbada, como os usurios de drogas, so tidos como os mais vulnerveis e que mais
necessitam ser controlados. Como se considera que as crianas pequenas e as mulhe-
res so mais fceis de controlar, o grupo que corre maior risco de ser afetado pelo
mal o dos rapazes. Eles so considerados muito jovens para se protegerem do mal
por si mesmos, e por no serem totalmente racionais, ainda precisam ser controla-
dos. Por serem homens, entretanto, resistem ao controle e so atrados pelos ambien-
tes em que o mal abunda, principalmente a rua. Ali encontram as drogas, que per-
turbam sua conscincia e os transformam em alvos fceis para as foras do mal.
O mal algo associado natureza humana, algo a que qualquer um vulne-
rvel. No entanto, como os pobres so vistos como mais prximos da natureza e
da necessidade e mais distantes da razo e do comportamento racional que as ou-
tras pessoas, e como esto fisicamente mais prximos dos espaos do crime, conse-
90 Teresa Pires do Rio Caldeira
qentemente, so tidos tambm como outro grupo que corre o risco de ser infectado
pelo mal.
No que constitui uma concepo bastante difundida da ordem social, autori-
dade, instituies, trabalho, razo e controle so vistos como as armas contra o mal.
Quando as pessoas vem o crime aumentando, elas freqentemente culpam as ins-
tituies pblicas e diagnosticam a necessidade de uma autoridade forte (citaes
2.4, 2.17). Quando as instituies pblicas falham, as pessoas sentem que tm que
/J:solver os problemas por seus prprios meios. Quando se considera que o ambiente
>:/ ficou muito perigoso, a melhor resposta construir barreiras por toda parte e in-
;tensificar todos os tipos de controle privado. As pessoas intensificam seus precon-
, ceitos, e para isso a fala do crime instrumental, mas elas tambm contratam guardas
particulares, constroem muros, adotam medidas eletrnicas de vigilncia, apiam
grupos de justiceiros e os atos ilegais e particulares de vingana da polcia.
Perguntei a moradores de So Paulo tanto em 1981-1982 como em 1989-1991
o que transformaria uma pessoa num criminoso. As respostas foram surpreenden-
temente parecidas. Algumas reuniam vrios elementos associados ao mal e ao que
considerado imprprio, enquanto outras mencionavam apenas poucos elemen-
tos. Um exemplo de resposta abrangente aquela dada por uma moradora do Jar-
dim Peri-Peri, na periferia oeste da cidade, comentando um assassinato perto de sua
casa que foi aparentemente motivado por uma disputa por um suterJ8
2.24
- Eu acho que a prpria cidade que contribui pra isso. Sabe, eu acho que, por exem-
plo: decerto ele viu o outro com um monte de blusa, casaco, tudo, e ele sem blusa, passando
um frio desgraado, vendo o outro vestido, ele foi l, deu no sei quantas facadas e arrancou
a blusa dele e foi embora(. ..) Agora, eu acho que a prpria cidade que contribui pra isso. Porque
voc v: a maioria que t aqui, vieram de onde?Vieram l do Nordeste, vieram l do Sul apesar
que o pessoal do Sul eu acho mais, assim, civilizado, n? Eu acho que o pessoal do Nordeste,
eles vivem numa condio, do Norte e do Nordeste ... ah, numa condio, assim, horrvel de
vida, horrvel (. .. )J essa maldita propaganda que eles fazem na televiso e levam pra l, essa
imagem vai pra eles: 'Olha, pessoal que vai pra So Paulo consegue ficar rico'. Ento, que que
eles fazem? Eles pegam toda a famlia, vendem o pouco que eles tm l, e vm pra c. Quando
eles chegam aqui, eles no tm lugar pra ficar. s vezes tem um conhecido, vo l na casa do
conhecido, a fica aquela montoeira, n?, numa casinha, sei l, de um par de sala, quarto e sala
ou quarto e banheiro, cozinha, ou numa favela mesmo. Ento fica assim: dez, vinte, trinta pessoas
dentro duma casa ... voc imagina o que no acontece. Ento, os filhos, vendo os pais saindo,
sei l, pra irem pro trabalho, ficam l o dia inteiro. A junta esses filhos mais os filhos do outro,
mais os filhos do outro ... E mais os filhos de no sei mais quem l ... E sem comer, sabe? Os pais
ganham pouco, n?, no tm condies. Ento, o que acontece? J uma violncia, porque
da ele v um que tem tudo, sabe?: 'p, aquele cara tem tudo e eu no tenho nada! Eu vou
tirar um pouco do que ele tem, quem sabe vai me beneficiar'. Voc v: a maioria dos ladres,
18
Entrevistas no Jardim Peri-Peri foram feitas em 1981 por Clia Sakurai, integrante da equipe
de pesquisa do Cebrap.
Cidade de Muros
91
o que eles pensam? Que eles vo poder tirar aquilo que os caras tm, sabe, que a polcia nunca
vai descobrir o que eles roubaram, entende? Ento eu acho que a prpria condio de vida
do pessoal (. .. ) A fome a pior coisa que tem. Ento, esse pessoal que vem de l pra c, eles
passam fome. Ento, eles no tm com que lutar. No tm! No tm com que lutar. Ento, sabe,
eles vo assaltar, vo matar, entende?, pra ter uma coisa.
Digitadora de computador numa grande fbrica, 33 anos, Jardim Peri-Peri; mora com a
me, que faxineira, e com uma tia.
Essa verso estereotipada das causas do crime acumula uma longa lista de
elementos. H sempre a questo dos lugares imprprios. Mesmo se todos os nor-
destinos no vivem em favelas, diz-se que moram em casas promscuas com exces-
so de pessoas e sem as devidas separaes, onde crianas se misturam com inme-
ras outras crianas desconhecidas, todas sem o devido acompanhamento dos pais.
Como pano de fundo, as condies sociais de sempre: fome, pobreza, e a pertur-
badora desigualdade na distribuio da renda. Finalmente, h a impunidade, o fra-
casso da polcia e do sistema judicirio em punir os crimes. A combinao de to-
dos esses elementos cria uma condio de vida que enfraquece as pessoas, deixan-
do-as sem a capacidade para lutar. Lutar um verbo comumente associado idia
de persistncia e trabalho duro; o que leva as pessoas a ascender socialmente (ver
Caldeira 1984: cap. 4). O verbo lutar e o substantivo luta so tambm usados na
periferia para se referir aos movimentos sociais. Acredita-se que pessoas em uma
posio enfraquecida, que no podem lutar adequadamente, correm um alto risco
de serem infectadas pelo mal.
Os mesmos elementos foram repetidos em muitas entrevistas. Quando per-
guntamos a um rapaz na Moca se ele concordava que o crime estava relacionado
aos nordestinos, ele respondeu que poderia ser, j que as migraes e os roubos eram
ambos motivados por razes econmicas. Entretanto, quando lhe foi pedido que
descrevesse que tipo de pessoa ele imaginava que tinha tomado seu relgio, a res-
posta foi bem diferente.
2.25
-Olha, essa pessoa, eu imagino que ela pode at ser desempregada, possa ser uma pessoa
que ... olha, para cair nessas condies muito fcil. Basta voc ter, por exemplo, um mau re-
lacionamento familiar, basta voc ter uma esposa que ... sei l, um mau relacionamento em geral.
Um insucesso no trabalho. Basta pequenas coisas. E tambm tem um detalhe: basta voc ter
uma moral fraca, uma educao insignificante, basta voc ter uma cultura medocre. O que
que isso? Isso infelizmente a maioria. Ento dessa maioria que surge essas coisas. O as-
saltante pode at ter vindo de uma famlia classe mdia. Outro pode ter vindo realmente da
favela. Ento, eu acho que favorece, essas coisas gerais, sociais, que da cultura, que atinge
todo mundo, pode favorecer todo mundo que atingido maciamente por isso.
Desempregado formado em comunicaes com especializao em rdio, 23 anos, Moca,
mora com os pais.
preciso mais do que condies econmicas e polticas para se produzir um
criminoso, mas esse mais muito pouco: qualquer pequeno empurro em direo
92 Teresa Pires do Rio Caldeira
ao imprprio desemprego, uma m esposa, uma frustrao no emprego ou na
famlia - pode fazer pender a balana. Resistir ao perigo requer uma mente forte,
algo que se acredita que os pobres no tm.
2.26
-Tudo aumentou 100% e o salrio da pessoa no aumentou nem um tosto. Quer di-
zer, pra quem ganha pouco, o salrio ou um pouquinho mais, quer dizer, uma pessoa dessas
eu acho que se apincha no abismo. Voc pensa bem: um pai de famlia, tem trs, quatro filhos,
ele vai trabalhar, trabalha, trabalha, trabalha, o servio j aborrecido, depois chega em casa
tambm e no v condies, no v sada, ento isso a eu acho que joga muitas pessoas que
no pensa bem no abismo. E a comea a querer assaltar, a querer roubar, a querer matar, querer
fazer vingana com a famlia, fazer vingana com o colega de trabalho, com o patro.
Trabalhador semi-especializado, 39 anos, Jardim das Camlias.
Perguntei militante dos movimentos de bairro citada em 2.19 o que ela achava
que transformava os meninos do Jardim das Camlias em bandidos.
2.27
Eu no sei ... s vezes eu penso assim, s vezes pode ser a convivncia do pai e da me,
uma separao, o filho que s vezes j nasce revoltado com a vida, at mesmo com o pai e a
me. Eu acho que para a pessoa levar isso, ser que s um vcio? Muitos bebem e diz que
bebem porque um vcio, fuma porque ... sei l, tudo confuso. Acho que para a pessoa levar
a isso, sei l, eu acho que as ms companhias tambm. s vezes os colegas mesmo ... s vezes
os prprios colegas que leva, s vezes no quer ir e tudo, mas vamos ali e tal e tal. Quer dizer,
que tudo isso, n? J vem de casa, s vezes da rua, sei l, perde a cabea. Depois que perde
a cabea, pronto.
Muitos dos entrevistados acham que as pessoas que tm de enfrentar condi-
de vida muito difceis ou que crescem em ambientes adversos precisam de uma
forte para evitar o desespero e resistir s ms influncias. Mas, se perdem a
(isto , sua razo e capacidade de julgamento), elas esto perdidas. E no
h melhor maneira de perder a cabea do que se envolver com drogas. Na verdade,
a correlao de drogas e crime foi uma das mais comuns nas entrevistas, e foi per-
sistentemente descrita como um ciclo: as pessoas vm de um meio inadequado, ficam
sujeitas s ms influncias nas ruas, conseguem drogas de graa, ficam perdidas e
se tornam viciadas, e finalmente viram criminosos para poder sustentar seu vcio.
Pessoas de todos os grupos sociais acreditam que uma mente forte se origina
dentro de uma famlia forte, que discipline adequadamente seus filhos e os mante-
nha distncia das ms companhias.
2.28
E (me)- Eu acho. Eu acho que, olha a, esses moleques criados a, voc v moleque de
15, 16, 17 anos, fica o dia na rua. Eles no ficam pensando em outra coisa, se eles no fazem
nada. Voc pelo menos estuda, diferente. Eles no estuda, no trabalha, quer dinheiro, eles
no tm de onde tirar, que que eles vo fazer?
Cidade de Muros 93
D (filha) - E onde entra o desemprego?
E - Ah, existe o desemprego, mas se procurasse, encontrava - e por que que aqueles
que procuram, encontram?
D- Quanta gente tem a desempregada, procurando emprego e no acha!
E- Eu acho que se procurasse, encontrava, sim. Agora, fica a na malandragem, numa
boa ... tem moleque a com 13 anos que j anda com revlver na mo!
D- Agora, por qu? Por que que eles esto com o revlver na mo? Porque a maior parte
desses garotos foram criados sem as mes tarem em casa! Por qu? Porque as mes precisa-
vam trabalhar pra pr alimento pra dentro de casa. Ento, quer dizer, o que que esse garoto
vai aprender na rua? Roubar! Vai faltar as coisas em casa porque a me ganha um salrio
pequeno, no d pra ter tudo em casa, ento ele comea a roubar. Ento, quer dizer, o culpa-
do no so eles: uma culpa da sociedade!
E- Eu acho que a culpa t em todo mundo, no t s na sociedade, no.
D Ento, a sociedade todo mundo.
[A discusso continua e E argumenta que as mes no deviam ir trabalhar e deixar seus
filhos de 7 5, 7 6 anos em casa sem trabalhar. Ela acha que se as mes tivessem mais autorida-
de isso no aconteceria. No entanto, ela diz que autoridade no significa autoritarismo, por-
0 relacionamento entre pais e filhos deveria ser baseado na amizade e confiana, no na
imposio do ponto de vista de uma das partes. Ela argumenta que se a criana no sente que
pode confiar nos pais e conversar com eles, ela pode acabar preferindo confiar em outra pes-
soa na rua. Ela acha que tudo seria mais fcil se houvesse mais dilogo entre pais e filhos, e se
os pais pudessem ver menos televiso e conversar mais com os filhos. Nesse ponto, o entre-
vistador perguntou se o seu filho de 70 anos costumava brincar na rua.]
-Esse menino, filho da senhora, ele brinca na rua?
E Ele no, ele tava trabalhando at essa semana.
-Esse garotinho?
E- Tava trabalhando na farmcia at essa semana. Saiu essa semana, que t no fim do
ano e ele t com problema da escola.
D - Ele s foi na farmcia porque a gente trancava ele dentro de casa ...
E - Pra no ter contato com os outros.
D Ento, acontece que ele escapava, sabe. Ele pegava a chave, e quando voc descui-
dava, tava ele na rua. Ento, quer dizer, o contato que ele tem com o pessoal no ia ser legal
pra ele. Ento a gente ps ele na farmcia. Ele no recebia praticamente nada, era assim um
dinheirinho pra ele mesmo, mas que j empatava dele ficar na rua.
E- Eu acho que o ambiente, a amizade influi bastante. As amizades influem bastante. E
tem amizade que a gente obrigada a evitar um pouco. Tem certas amizades que a gente
obrigado a evitar, ento isso foi uma maneira de manter ele afastado do ... das ms companhias.
Dona de casa, Cidade Jlio, cerca de 40 anos, e sua filha de 20 anos. A me tem outro fi-
lho biolgico e dois adotados.
A opinio de que preciso controlar os filhos e mant-los afastados de desco-
nhecidos bem difundida entre todas as classes sociais. Ela constitui um forte ar-
gumento contra viver em prdios: dada a proximidade, as pessoas em apartamen-
tos e condomnios tm mais dificuldade em controlar os filhos e mant-los afasta-
dos de qualquer um que possa ser considerado "inadequado". Quando se trata de
94 Teresa Pires do Rio Caldeira
proximidade e "amizades", pessoas de todas as classes usam exatamente as mes-
mas frases. Aqui esto as opinies de M, O e P, trs moradoras do Morumbi cita-
das em 2.14.
2.29
-E por que vocs preferem morar em casa e no num desses condomnios?
O- Liberdade. Pra mim, liberdade em primeiro lugar, e contato de muitas crianas que
eu no ia poder separar, controlar a amizade dos meus filhos.
P- Certo.
O- Famosa: o medo da droga. Minha cunhada mora num condomnio. o dia inteiro
crianas daqui, dali, daqui; voc no sabe de quem so os filhos ...
M - Porque l as casas no so cercadas, a casa no tem cerca, no tem nada ...
O- O muro bem grande em volta.
M - S o muro do condomnio, mas a casa, s a graminha, dali a pouco j a outra
casa. Tipo americano.
O- Tudo aberto, e voc no sabe o contato que o seu filho tem ... Se voc quer que seja
com esse, tudo bem, mas como que voc vai separar? Voc no tem um muro, como que
voc vai dizer: no, meu filho, voc recebe os amigos que eu acho melhor, vou selecionares-
ses amigos. Que hoje em dia voc deve selecionar, eu acho, n?, voc deve pelo menos sele-
cionar a amizade. E no d, ento eu no vou de jeito nenhum. (. .. ) Sabe, idias de crianas
que passam pra outras crianas, porque a criana pode ser muito calma, tranqila, mas com
influncia de um bando mais pesado ... Porque teve ca,so de criana roubar casa de outra criana
pra roubar dlar pra comprar maconha, no vou dizer nome, mas foi casos que aconteceram ...
Eu no ia agentar, eu no moro mesmo, de jeito nenhum. Pode acontecer pros meus filhos
tambm, mas a, pacincia, mas eu tentei fazer o possvel, e no momento s quando eu sentir
que eles realmente tm a cabecinha boa pra enfrentar o mundo sozinhos, abro as portas tran-
qila, que faam o que quiser- mas at ento quero ter o controle.
Qualquer que seja a classe social, as pessoas parecem compartilhar da idia
de que ms influncias se propagam facilmente e que a principal forma de evitar
sua propagao controlar os filhos com cuidado. Duas das mulheres da classe alta
que acabei de citar e a mulher da classe trabalhadora que citei anteriormente so
donas de casa que decidiram no trabalhar para controlar adequadamente seus fi-
lhos. Elas se sentem desconfortveis com isso. A mulher da classe trabalhadora sente
que a carga para seu marido realmente pesada; e as mulheres da classe alta (uma
das quais tem educao universitria) sentem a presso de seu ambiente social, em
que um nmero crescente de mulheres trabalha. Todas acham, entretanto, que seu
sacrifcio para o bem-estar dos filhos. Elas e vrios outros entrevista-
dos sugeriram que mulheres que trabalham fora so responsveis pelos eventuais
desvios dos filhos. Assim, as mulheres que trabalham tm que lidar com um forte
sentimento de culpa. Apesar de os homens correrem um risco maior de se torna-
rem criminosos, as mes so mais responsabilizadas do que os pais pelo comporta-
mento criminoso de seus filhos. De acordo com o esteretipo compartilhado por
muitas pessoas que entrevistei, as mulheres que trabalham abandonam seus filhos
s ruas e no conseguem mant-los no "caminho certo" (por exemplo, nas citaes
Cidade de Muros
95
2.19, 2.24, 2.28). bvio que esse ponto de vista desconsiderao fato de que a
maioria das crianas cujas mes trabalham no fica em casa sozinha e abandona-
da, mas com as avs, tias, vizinhos, irmos e irms, professoras, empregadas e as-
sim por diante. Muitas pessoas insistem, entretanto, que a me deve ficar por per-
to, como se apenas sua presena pudesse manter as coisas como se deve.
Pode-se argumentar que o mal um dos elementos mais democrticos no
universo do crime. Ele vem de todo lugar, pode afetar qualquer um (embora os fracos
sejam mais vulnerveis), e conseqentemente requer que todos sejam controlados.
Entretanto, as conseqncias dessa preocupao com a vigilncia constante transcen-
dem o universo do crime. Pessoas acostumadas a exercitar um alto nvel de controle
tm grande dificuldade para aceitar qualquer limite sua vigilncia ou reconhecer
os direitos individuais de outros. Elas no acham que seus filhos tm direito priva-
cidade ou escolha, como, por exemplo, selecionando com quem brincar. Crianas
devem fazer o que seus pais querem que faam e brincar com as crianas que eles
selecionarem as lies sobre separao e preconceito comeam cedo. S resta
indagar quando o direito de escolha das pessoas comea, especialmente o direito
daqueles "que precisam" de um controle mais rgido, como os jovens e as mulheres.
Pode-se tambm especular que a falncia da escola pblica no Brasil no apenas
uma questo de falha institucional: ser que os pais da classe alta considerariam as
crianas da classe trabalhadora como possveis companheiros para as brincadeiras
de seus filhos? Os pais da Moca deixariam seus filhos brincar com nordestinos?
Um outro elemento revelado nas discusses sobre controle das ms influncias
a necessidade de ocupar a mente e o tempo das pessoas. Um senhor do Jardim
das Camlias me disse uma vez que "uma mente vazia oficina do diabo".
19
Na
cultura popular, considera-se que a melhor proteo contra a influncia do diabo
o trabalho, como tambm demonstrou Alba Zaluar em muitos de seus estudos so-
bre o universo do crime no Rio de Janeiro e sobre as relaes entre trabalhadores e
bandidos nos bairros pobres.
20
Entretanto, se as pessoas no esto trabalhando,
elas devem pelo menos estar ocupadas com algo. O menino mencionado na cita-
o 2.28 foi mandado trabalhar na farmcia para que se mantivesse ocupado e fora
das ruas. Tempo ocioso um risco para todos. Os homens podem perder a cabea
quando desempregados, e diz-se que as mulheres que no tm nada para fazer dei-
xam a mente aberta s ms influncias.
As pessoas tambm acham que difcil ressocializar os presos tanto porque
no fcil erradicar o mal depois que ele j infectou uma pessoa, como porque nos
presdios eles ficam sem fazer nada. Assim, muitos pensam que o nico caminho
para ressocializar prisioneiros for-los a adquirir alguma especializao profis-
sional durante o tempo de priso. Esta , por exemplo, a opinio de um entrevista-
do da Moca. Ele acha que um dos problemas das prises que as pessoas que esto
19
Outra verso disso o ditado popular "o cio o pai de todos os males".
20
Ver Zaluar (1983, 1985, 1987, 1990, 1994). Sobre as concepes do trabalho no Jardim
das Camlias, ver Caldeira (1984: cap. 4).
96 Teresa Pires do Rio Caldeira
l por coisas pequenas, por exemplo rapazes pobres que roubaram algo por neces-
sidade, so colocadas junto com criminosos perigosos e "absorvem por osmose todo
o conhecimento ruim". Ao invs disso, eles deveriam ser forados a escolher um
tipo de trabalho e aprender a exerc-lo.
2.30
- no deixar que ele fique ocioso, como aquela histria, como ... vai agora o meu
lado machista: como mulher que fica em casa sozinha, n?, sem trabalhar, fica o dia inteiro
e a fica pensando em bobagem ... "Onde ser que ele t que no chegou ainda?" Ento, pe
pra trabalhar que vai estar mais ocupado!2
1
Dono de bar/ Moca, tem diploma de advogado mas no exerce a profisso; solteiro, mora
com trs companheiros de quarto.
As pessoas acham que reabilitar algum que "entra no caminho errado" quase
sempre impossvel. Muitos que defendem a pena de morte apontam o perigo repre-
sentado por aqueles dominados pelo mal. Eles dizem que a morte a nica manei-
ra eficaz de extinguir o mal. Controlar o mal sempre uma tarefa intensa, difcil.
O mal se espalha facilmente por "osmose", atravs do contato; basta um momen-
to de distrao, uma mente temporariamente ociosa, uma situao de instabilida-
de, com seus limites indefinidos e o medo de misturas. Como conseqncia, as pes-
soas querem barreiras para evitar a difuso do mal e para reorganizar um mundo
muito facilmente tomado pelo caos.
Os elementos que analisei at agora no esgotam as explicaes do crime dadas
pelos moradores de So Paulo. Uma outra srie aborda os problemas do indivduo,
tanto morais como psicolgicos. Essas explicaes so freqentemente evocadas
quando .as referncias ao ambiente e ao que considerado apropriado so insufi-
cientes para explicar um crime. Quando as pessoas vm dos lugares certos e tive-
ram um supervisionamento adequado, quando as aparncias contradizem o com-
portamento, uma compreenso da violncia pode ainda ser encontrada na "natu-
reza"- ou mais exatamente na "natureza pervertida"- e, em alguns casos, na
conscincia pervertida. Moradores de So Paulo dizem que as pessoas ricas podem
roubar por "malvadeza". A violncia pode tambm ser justificada por um "drama
psicolgico" ou loucura, um caso extremo de "perder a cabea". s vezes as pes-
soas se tornam criminosas simplesmente porque esse o seu "destino".
Esses tipos de argumentos so usados especialmente para explicar o uso ex-
cessivo da violncia. O estupro, por exemplo, em geral requer uma explicao ba-
seada na perversidade. Alm disso, referncias a um desvio da natureza humana e
da razo surgem para justificar crimes em que o uso excessivo da violncia consi-
~ e r d o gratuito, como no caso de um ladro que, depois de pegar tudo o que que-
na, mata a pessoa que foi roubada. Como um estudante universitrio que mora na
Moca com os pais disse: "Algo assim no tem explicao; s pode ser que ele es-
21
A equivalncia entre rimlher e prisioneira nessa citao de um "macho" no deve passar
despercebida.
Cidade de Muros
97
tava fora de si, drogado". Apenas os crimes contra a propriedade podem ser expli-
cados puramente por razes socioeconmicas.
As explicaes que se referem a perverso, destino, azar e emoo so tam-
bm usadas para explicar crimes cometidos por aqueles que no se encaixam em
nenhum dos esteretipos. Crimes cometidos por pessoas das classes mais altas, que,
como se diz, "tm tudo do bom e do melhor", s podem ser explicados por algum
tipo de perversidade. Dois estudantes universitrios entrevistados na Moca sepa-
raram claramente crimes motivados por razes econmicas (cometidos por algum
que est, por exemplo, desempregado e desesperado) e crimes cometidos por pes-
soas "que tm aquela natureza". Eles acham que o uso das drogas muito dissemi-
nado, no apenas entre as pessoas das classes baixas, mas tambm nas classes m-
dia e alta, com as quais eles tm contato em bairros como os Jardins. Na verdade,
eles acham que o uso mais comum nos grupos mais ricos, porque eles tm mais
dinheiro para viciar-se e roubam por razes estpidas, como para pegar pequenas
coisas, como um par de tnis.
Os jovens da classe trabalhadora do Jardim das Camlias tambm acham que
os crimes cometidos pelas pessoas da classe alta esto associados a drogas- como
esto os crimes em geral, na sua opinio. Entretanto, no caso das classes altas, as
drogas apenas no oferecem uma explicao.
2.31
A- E tem gente at que rouba e nem precisa, rouba por que descarado. Que nem uma
poca a que tinha os filho de baro jogando bomba dentro de restaurante. Por que faz aqui-
lo? Acho que uma diverso pra eles, no tm o que fazer, vai ver quer tirar a pacincia da
gente mesmo.
C- Se fosse pobre, a polcia pegava, batia ...
A- Se fosse pobre, a polcia pegava, batia, fazia tudo; mas como rico, podia at ser
filho de general, de major, se a polcia pegar, tem que soltar.
Para os moradores do Jardim das Camlias e da Moca, as pessoas ricas des-
frutam do privilgio de estar acima da lei e da sociedade porque sua posio social
garante que elas no sero punidas. A percepo dessa desigualdade adicional, que
perverte as classificaes e os contratos sociais, est no centro do total pessimismo
que muitos moradores de So Paulo sentem a respeito das possibilidades de cria-
o de uma sociedade mais justa no Brasil. Como difcil impor a ordem por meio
das instituies existentes, que so incapazes de controlar o mal e portanto de cons-
truir uma sociedade melhor, as pessoas sentem que esto constantemente expostas
s foras naturais do mal e ao abuso daqueles que se colocam acima da lei. Para se
proteger, elas tm de confiar em seus prprios meios de isolamento, controle, se-
parao e distanciamento. Ou seja, para se sentirem seguras, elas tm de construir
muros.
98 Teresa Pires do Rio Caldeira
Parte II
O CRIME VIOLENTO E A
FALNCIA DO ESTADO DE DIREITO
3.
O AUMENTO DO CRIME VIOLENTO
A violncia aumentou em So Paulo nos ltimos quinze anos. No apenas o
crime violento aumentou, mas tambm os abusos e a violncia das instituies res-
ponsveis pela preveno do crime e pela proteo dos cidados. Neste captulo,
discuto algumas das dificuldades em medir e explicar esses aumentos. As estatsti-
cas de crimes produzidas pela polcia sofrem vrias distores. As explicaes dis-
ponveis sobre o crime, baseadas em modelos que o associam a variveis socioeco-
nmicas e de urbanizao, assim como a variveis de gastos com segurana pbli-
ca (incluindo o nmero de policiais e equipamentos), no conseguem elucidar o que
mais interessa populao entender: o aumento da violncia, e no apenas do cri-
me. Para compreender o crescimento da violncia, necessrio considerar tanto o
colapso das instituies da ordem (polcia e judicirio) e de tentativas de consoli-
dar um estado de direito, quanto a crescente adoo, tanto por agentes do Estado
quanto por civis, de medidas extralegais e privadas para enfrentar o crime. ne-
cessrio tambm examinar as experincias dos moradores da cidade com a polcia
e suas percepes sobre ela, assim como suas concepes de direitos individuais,
punio e do corpo. O aumento da violncia resultado de um ciclo complexo que
envolve fatores como o padro violento de ao da polcia; descrena no sistema
judicirio como mediador pblico e legtimo de conflitos e provedor de justa repa-
rao; respostas violentas e privadas ao crime; resistncia democratizao; e a dbil
percepo de direitos individuais e o apoio a formas violentas de punio por par-
te da populao.
MOLDANDO AS ESTATSTICAS
A preocupao com a produo de estatsticas populacionais tem sido cen-
tral nas sociedades ocidentais > 10dernas desde pelo menos o incio do sculo XIX.
O desenvolvimento de estatsticas associa-se consolidao da percepo moder-
na da sociedade como um "objeto sui generis, com suas prprias leis, sua prpria
cincia e finalmente sua prpria arte de governar, ( ... ) como um objeto para ser
entendido e reformado" (Rabinow 1989: 67). Foucault (1977) nos ensinou a en-
tender as estatsticas como parte do poder disciplinar e como elemento central da
tecnologia de poder dos Estados modernos. Informaes criminais - sempre re-
gistros oficiais - tm estado entre as estatsticas mais antigas e mais cuidadosa-
mente produzidas. Elas fornecem dados no s sobre o crime, ou comportamento
anormal, mas tambm sobre como uma sociedade funciona normalmente. Como
diz Chevalier, o crime registrado como "um fato normal da vida urbana" e com
Cidade de Muros 101
o objetivo de se promover "um conhecimento mais ntimo" das formas dessa vida
urbana (1973 [1958]:8).
1
Supostamente, as estatsticas seriam um instrumento neutro
para o conhecimento da realidade social, uma ferramenta cientfica para demons.:.
trar com confiana os traos mais gerais da sociedade. Ao invs disso, elas produ-
zem vises peculiares e especficas da realidade social.
Estatsticas criminais no so exceo. Elas so construes que geram vises
particulares de alguns segmentos da realidade social. Elas constroem imagens de
padres de crime e comportamento criminoso. Hoje, difcil sustentar a idia de
que sejam uma representao do crime "real"- se que ainda se pode falar nes-
ses termos. No mximo, pode-se afirmar que as estatsticas indicam algumas ten-
dncias da criminalidade. Mas se as informaes que elas do sobre o crime so
restritas, elas podem no entanto revelar outros fatos sobre a sociedade que as pro-
duz. As estatsticas criminais de So Paulo podem no representar o crime "real",
mas uma anlise de suas peculiaridades contribui para um entendimento das insti-
tuies da ordem e da falta de respeito pelo estado de direito.
A maioria das estatsticas analisadas neste captulo provm de registros poli-
ciais de crimes (chamados BOs, Boletins de Ocorrncia), produzidos pela polcia
civil. Em outras palavras, lido principalmente com crimes registrados oficialmen-
te. Eles so apenas uma indicao da criminalidade: referem-se ao primeiro regis-
tro feito pelas delegacias de polcia quando acontece um delito e precedem qual-
quer investigao. Dessa forma, muitos desses registros podem ser inconclusivos
quanto existncia ou no de um crime. Alm disso, eles so produzidos por uma
instituio especfica, a Polcia Civil do Estado de So Paulo, cujas prticas e per-
cepes particulares da criminalidade moldam a elaborao dos registros. impos-
svel medir todas as distores nas estatsticas causadas pelo modo como so pro-
duzidas, mas alguns dos problemas mais importantes precisam ser discutidos antes
que possamos ler as estatsticas, j que eles limitam bastante o que podemos con-
cluir a partir dos nmeros.
Em geral, estudos sobre crime partem do pressuposto de que as estatsticas
registram apenas uma frao do crime total. De um lado, pessoas que praticam atos
ilegais muitas vezes conseguem escond-los. De outro, muitas pessoas que so vti-
mas de crimes tambm no apresentam queixa polcia, como tm mostrado v-
rias pesquisas de vitimizao. No caso do Brasil, a nica pesquisa de vitimizao
de 1988 e foi realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica).
2
1
O papel fundamental do crime no entendimento da vida urbana moderna revelado no
apenas no desenvolvimento de estatsticas sociais, mas tambm da sociologia urbana, como o tra-
balho da Escola de Chicago exemplifica. Para uma anlise de como, na segunda metade do sculo
XIX, os crimes e os criminosos comearam a ser vistos como fatos normais da vida social, ver Leps
(1992).
2
O questionrio da PNAD de 1998 incluiu uma srie de questes sobre vitimizao pelo
crime e uso do sistema judicirio. Agradeo a Mrcia Bandeira de Mello Leite, do IBGE, por tornar
os dados da regio metropolitana de So Paulo (ainda no publicados) disponveis para mim. Os
resultados das PNADs esto disponveis apenas para regies metropolitanas, no para municpios.
102 Teresa Pires do Rio Caldeira
Essa pesquisa identificou pessoas que tinham sido vtimas de furto, roubo ou agresso
fsica entre outubro de 1987 e setembro de 1988.
3
Na regio metropolitana de So Paulo, 5,67% da populao disse ter sido
vtima de algum desses crimes, enquanto outros 1,85% declararam-se vtimas de
tentativa de roubo ou furto. Do nmero total de pessoas que foram vtimas ou de
roubo ou furto, 61,72% no relatou o incidente polcia, o que significa que a
maioria desses crimes no foram representados nas estatsticas oficiais. Entre as
razes que as pessoas deram para no relatar os crimes estavam: primeiro, o fato
de que "no acreditavam na polcia" (34,33%); e segundo, a alegao de que "no
era importante" (22,33% ). Alm disso, 14,4% disseram "no ter provas" e 9,1%
declararam que "no queriam envolver a polcia". Em resumo, as imagens negati-
vas da polcia foram associadas maioria dos casos de no-relatamento.
Entre as pessoas que disseram ter sido vtimas de agresso fsica na regio
metropolitana de So Paulo (1,08% da populao), 55,67% no deram parte
polcia.
4
A porcentagem de mulheres (62,2%) que no denunciaram o crime maior
que a porcentagem de homens (56,46%). As razes para no terem feito isso tam-
bm variam de acordo com o gnero. Entre os homens, os principais motivos fo-
ram desconfiana em relao polcia (22,64% ); a afirmao de que no era im-
portante (20,75%); que resolveram os conflitos por si mesmos (15,09%); que no
queriam envolver a polcia (13,2%); e o medo de vingana (tambm 13,2%). En-
tre as mulheres, a razo principal foi o medo de vingana (25,99%). Logo aps vem
a desconfiana em relao polcia (24% ); o fato de que no queriam envolver a
polcia (18%); que tinham resolvido o conflito por si mesmas (16%); e, finalmen-
te, que no era importante (9,99% ). Embora a maioria tanto de homens quanto de
mulheres que no foram polcia tenha afirmado que a pessoa que os agrediu era
desconhecida, 17,99% das mulheres foram agredidas por um parente, enquanto
apenas O, 76% dos homens o foram. Esses dados constituem, conseqentemente,
uma indicao da violncia domstica sofrida pelas mulheres.s
Em suma, a maioria das ocorrncias de furto, roubo e agresso fsica no
relatada polcia. Entre as principais razes para isso esto as opinies que as pes-
soas tm da polcia: ou no acreditam que ela seja capaz de lidar com conflitos e
3
O IBGE no usa a denominao legal dos crimes: em vez de leso corporal dolosa ele usa
a categoria agresso fsica, que pode incluir vrios tipos de crime, como o estupro, por exemplo.
4
O nmero de pessoas que so vtimas de violncia fsica provavelmente maior, mas essa
agresso tanto pode no ser considerada como algo errado que valha a pena ser denunciado, quanto
pode no ser declarada porque as pessoas se sentem envergonhadas. Embora bater em crianas
seja uma prtica comum em todas as classes sociais, a porcentagem de pessoas menores de 9 anos
de idade apontadas como vtimas de agresso fsica na PNAD foi de apenas 3,78% do nmero
total de vtimas de agresso. Ver o captulo 9 para uma discusso sobre este tema.
5
Enquanto no Brasil os homens so vitimados principalmente em espaos pblicos (54, 73%
dos casos nas ruas), as mulheres so vitimadas principalmente dentro de suas casas (48,2%). Essa
informao no est disponvel para a regio metropolitana de So Paulo isoladamente.
Cidade de Muros 103
crimes, ou a temem por seu conhecido padro de brutalidade (analisado nos cap-
tulos 4 e 5). De modo semelhante, o sistema judicirio visto como ineficiente pela
maioria da populao. De acordo com a mesma pesquisa, do total de pessoas en-
volvidas em ao menos um tipo de conflito durante os anos de 1983-1988 na regio
Sudeste do Brasil, 50,71% no recorreram ao sistema judicirio.
6
As principais ra-
zes dadas foram as seguintes: as pessoas resolveram os problemas por si mesmas
(41,70% ); o incidente no era importante (11,09% ); no queriam envolver o siste-
ma judicirio (10,87%); no tinham provas (10,46%); e achavam que o sistema
judicirio no iria resolver o conflito ( 6,31%). A desconfiana tanto em relao
polcia quanto ao sistema judicirio, isto , em relao s instituies pblicas en-
carregadas da ordem, provavelmente est associada ao fato de que as pessoas pre-
ferem resolver seus problemas por si mesmas, mesmo quando o problema crime.
Na verdade, de todas as pessoas envolvidas em disputas criminais no Sudeste do
Brasil, 72,56% no entraram no sistema judicirio. O tipo de conflito que mais
freqentemente leva as pessoas a esse sistema so disputas trabalhistas (70,83%
dessas disputas detectadas pela PNAD foram parar na justia).
A distoro das estatsticas de crime no s uma questo quantitativa, mas
tambm qualitativa. Tendo em vista que a polcia que produz as estatsticas, sua
viso do que seja a populao potencialmente criminosa, sua avaliao sobre os
diversos crimes e sua maneira de agir em relao aos diferentes tipos de eventos
so todos elementos que influenciam os resultados - ou seja, as estatsticas. Pai-
xo (1982, 1983) estudou os mtodos de classificao da polcia brasileira seguin-
do parcialmente a abordagem da etnometodologia. Ele mostra que as prticas de
classificao no so moldadas por classificaes legais e formais, mas se baseiam
num cdigo prtico que chama de "lgica-em-uso" (Paixo 1983), o qual trans-
forma eventos e indivduos em categorias e artigos do Cdigo Penal. Em con-
seqncia,
Estatsticas oficiais de criminalidade devem ser vistas no como
indicadores do comportamento criminoso e de sua distribuio social,
mas como produtos organizacionais, refletindo condies operacionais,
ideolgicas e polticas da organizao policial. Assim, por um lado, des-
continuidade e mudanas nas rotinas organizacionais de coleta e classi-
ficao, sensibilidades variveis das autoridades policiais em relao a
certos tipos de crimes ou respostas policiais a "cruzadas morais" e a
presses polticas geram distores na contabilidade criminal que de
forma alguma so negligenciveis. (Paixo 1983: 19)
A lgica em uso da polcia que molda a translao entre os eventos do dia-a-
dia e as classificaes do Cligo Penal - e conseqentemente as categorias das
6
Dados sobre o uso do sistema judicirio esto disponveis apenas para regies brasileiras.
O Sudeste inclui os estados de Minas Gerais, Esprito Santo, Rio de Janeiro e So Paulo.
104 Teresa Pires do Rio Caldeira
\
'
estatsticas- foi claramente identificada por Paixo (1982, 1983), Lima (1986) e
Mingardi (1992). Embora Paixo desenvolva uma importante discusso terica sobre
as diferenas entre as classificaes formais e informais ausentes no trabalho de
Mingardi, daqui em diante vou me referir basicamente a este ltimo. A pesquisa de
Mingardi especfica sobre So Paulo, enquanto a de Lima foi realizada no Rio de
Janeiro e a de Paixo em Belo Horizonte, lugares onde a polcia e as estatsticas so
organizadas de forma diferente.
Antes de discutir o estudo de Mingardi, necessrio acrescentar algumas in-
formaes sobre a organizao da polcia no estado de So Paulo e no Brasil em
geral. As polcias so organizadas em mbito estadual e divididas em duas corpo-
raes: a Polcia Civil e a Polcia Militar, PM, ambas sob a autoridade da Secreta-
ria de Segurana Pblica do Estado. A polcia civil est encarregada da polcia ad-
ministrativa (emisso de cdulas de identidade, registros de armas etc.) e da polcia
judiciria. Os deveres desta ltima incluem registrar queixas e eventos criminais,
investigar crimes, produzir provas e a instalao (ou no) de inquritos. Este o
trabalho principal da polcia civil, que, em conseqncia, produz os relatrios nos
quais as estatsticas so baseadas, assim como registros e evidncias com base nos
quais o sistema judicirio vai trabalhar. A polcia militar atual foi criada pelo regi-
me militar em 1969 e est encarregada do policiamento uniformizado de rua. Ela
tem organizao militar e sistema de recrutamento e instruo separados. A rivali-
dade e o conflito entre as duas corporaes tradicional e marca sua performance
cotidiana. Em cada estado tambm h um ramo da Polcia Federal, basicamente
encarregada das questes de fronteira e segurana nacional, mas que tambm con-
trola o trfico de drogas e o contrabando. Finalmente, algumas cidades, tais como
So Paulo, tm uma Guarda Metropolitana local com pouco poder, cujo trabalho
mais manter a ordem em alguns espaos pblicos (parques, prdios da adminis-
trao pblica, teatros etc.) do que lidar com o crime.
Depois de completar um curso na Academia de Polcia (Acadepol), Guaracy
Mingardi trabalhou como investigador da polcia civil numa delegacia de bairro na
periferia de So Paulo durante 1985 e 1986. Seu livro apresenta uma detalhada
etnografia da vida cotidiana numa delegacia e revela sua lgica-em-uso e os tipos
de distores introduzidas na produo de estatsticas e no tratamento das denn-
cias. De acordo com Mingardi (1992: Parte I), prticas ilegais como a corrupo e
a tortura no s so uma norma na polcia civil como so interdependentes, isto ,
costumam ocorrer juntas. Elas constituem o que ele chama de mtodo de trabalho
dos policiais civis.
Pretendemos aqui mostrar que o mau tratamento infligido ao pre-
so faz parte de um processo, que inicia-se com a seleo do suspeito e
termina na entrega dele justia, ou ento no acerto que o liberta. (Min-
gardi 1992: 52)
Esse mtodo usado principalmente em relao a criminosos profissionais.
Mingardi argumenta que to logo os policiais civis prendem algum com ficha cri-
minal, eles pe em ao um conhecido esquema de trs etapas. Primeiro, o suspei-
Cidade de Muros 105
to torturado (comumente no pau-de-arara
7
) a fim de que confesse um ou mais
crimes. Segundo, a polcia chama o advogado do suspeito, que negocia um "acer-
to". Esse advogado, normalmente conhecido como um "advogado de porta de ca-
deia", trabalha apenas com certas delegacias e responsvel por todas as negocia-
es e pelo pagamento do suborno. O terceiro passo o pagamento do "acerto".
"Acerto", na gria policial, significa a quantia combinada entre a polcia e o sus-
peito, com a mediao de um advogado, para ser dividida entre todos
envolvidos. De acordo com Mingardi, existem muitas
mas a forma mais comum aquela em que algum paga para polcia
rar inqurito. Uma vez que o "acerto" tenha sido pago, o suspeito solt-d e o regis-
tro "limpo" para mostrar crimes de menor importncia (furto em vez de roubo,
por exemplo), ou mesmo para fazer alguns deles desaparecerem.
Mingardi argumenta que as regras sobre quem torturado so claras. Ele
afirma que a lgica instrumental dos policiais civis revela uma racionalidade que
ele no encontra entre os policiais militares, os quais, afirma ele, "em linhas gerais ...
batem por motivos emocionais" (1992: 58). Comentrios como esse revelam at
que ponto as rivalidades entre as duas corporaes policiais marcam seu relacio-
namento cotidiano, resistindo at a importantes esforos de descrio e crtica das
suas prticas. Mingardi, um ex-policial civil, capaz de encontrar racionalidade na
tortura praticada por sua corporao, mas no na violncia praticada pela PM!
A anlise etnogrfica de Roberto Kant de Lima (1986) sobre o cotidiano de
operaes da polcia civil no Rio de Janeiro confirma os dados de Mingardi. Lima
observa que a prtica da tortura est "profundamente enraizada na rotina policial"
(1986: 156). Todavia, sua explicao para essa prtica bem diferente. Para Min-
gardi, a lgica da tortura inseparvel da lgica da corrupo: o dinheiro o obje-
tivo. Lima, no entanto, no relaciona a rotina da tortura com a da corrupo, um
tema marginal na sua anlise da polcia. Para ele, a lgica da tortura deve ser en-
contrada no fato de que os procedimentos de investigao policial baseiam-se for-
temente na confisso. "A necessidade de descobrir a verdade por meio da confis-
so torna-se responsvel pelo uso socialmente legitimado da tortura como uma
tcnica de investigao." (1986: 154). Lima tambm afirma que a prtica da tortu-
ra est to entranhada nas prticas investigativas da polcia civil que "quando eles
so impedidos de usar a tortura, diz-se que com certeza de se esperar um fracasso
da investigao" (1986: 156). A prtica da tortura e sua aceitao tcita pela po-
pulao uma questo complexa que no pode ser atribuda a uma nica lgica,
seja ela a da corrupo ou a do papel da confisso nos procedimentos investigativos.
Ela relaciona-se a ambas as lgicas, assim como a outros padres de brutalidade
policial e a vrias concepes de punio e castigo fsico que prevalecem na socie-
dade brasileira (ver captulo 9).
7
O pau-de-arara parece ser a forma mais comum de tortura usada pela polcia em So Pau-
lo. Tambm foi a forma mais comum utilizada contra presos polticos durante o regime militar. O
preso suspenso por uma barra pela parte de trs dos joelhos, com as mos amarradas frente
das pernas. Descries desse e de outros mtodos comuns de tortura so encontradas em Arqui-
diocese de So Paulo (1986: cap. 2), Americas Watch (1987: cap. 5), Anistia Internacional (1990).
106 Teresa Pires do Rio Caldeira
O fato que a tortura introduz desvios na maneira pela qu3'leventos que so
classificados como crimes so moldados e, conseqentemente, aparecem nas esta-
tsticas. De acordo com Mingardi, as principais regras sobre tortura entre os poli-
ciais civis de So Paulo so as seguintes: 1) a maneira correta de torturar o pau-
de-arara, porque outras formas podem deixar marcas. Mingardi declarou que apren-
deu essa lio na Academia de Polcia (1992: 55-6); 2) pessoas das classes altas e
aquelas que no tm antecedentes criminais no devem ser torturadas (1992: 56);
e 3) uma pessoa com antecedentes criminais e dinheiro no torturada, se pagar
por sua libertao j de sada (1992: 56-7). Pessoas com dinheiro podem sempre
evitar acusaes legais. Como resultado: "Quem apanha pobre; colarinho bran-
co no apanha, faz acerto", como diz um dos seus informantes (1992: 57). Alm
disso, aqueles que no podem pagar correm o risco de acabar com acusaes le-
gais. "Em um crime que envolva pessoas de classes diferentes, o peso da justia po-
licial cair geralmente sobre a parte mais pobre", conclui Mingardi (1992: 178, grifo
do original).
Em suma, o mtodo peculiar de trabalho da polcia civil no apenas se baseia
no comportamento ilegal, mas tambm impe um claro desvio de classe. Conse-
qentemente, membros das classes trabalhadoras tm boas razes para desconfiar
da polcia e evitar envolver-se com ela. "O crime do colarinho branco", principal-
mente relacionado s vrias formas de corrupo e fraude, com freqncia not-
cia nos jornais, mas raramente leva cadeia. O noticirio da imprensa sobre esses
crimes em muitos casos mais expressivo que os registros policiais. Isso tambm
uma indicao do nvel de impunidade que existe na sociedade brasileira e da falta
de accountability
8
das instituies judicirias: em vrias ocasies, o pblico pode
saber sobre crimes que so ignorados pelo sistema judicirio, mas esse conhecimento
gera pouca reao seja ela oficial ou da opinio pblica.
Com todos os acertos e limpeza de registros fica claro que as estatsticas so
inevitavelmente distorcidas. Mingardi tenta ser especfico sobre o tipo de distoro
relacionado a diferentes crimes. De acordo com ele, roubo e furto no so levados
a srio pela polcia: especialmente quando o valor da propriedade pequeno, eles
tendem a no ser registrados.
9
Quando a vtima insiste, o policial pode lhe dar um
documento sem valor legal que na gria da polcia chamado de papel de bala,
"porque no serve pra nada, s pra embrulhar" (1992: 42). De acordo com dois
ex-secretrios da Segurana Pblica que entrevistei, esse mtodo foi tambm usa-
do no perodo anterior a 1983 para baixar o nvel oficial de alguns crimes quando
a populao estava reclamando da alta criminalidade.
Furtos a residncias so bem investigados quando afetam pessoas das classes
altas. Pessoas das classes altas podem pagar para ter de volta seus bens que foram
roubados ou furtados; elas podem tambm pedir polcia que "seja dura" (ou seja,
8
Responsabilidade, dever de uma instituio de prestar contas diante da sociedade.
9
As anlises de Lima sobre a polcia do Rio de Janeiro tambm indicam que as estatsticas
policiais so distorcidas, especialmente em casos de furtos, roubos, vadiagem e jogo do bicho (1986:
124).
Cidade de Muros 107
torture) para conseguir informao. Arrombamentos de residncias tendem a ser
ignorados quando se trata de casas de pessoas pobres. Roubos e assaltos recebem
o mesmo tipo de tratamento: os casos das classes altas merecem ateno e os das
classes trabalhadoras, no (1992: 43, 45).
De acordo com Mingardi, "com muita m vontade" que casos de violncia
contra mulheres so registrados, porque os policiais acreditam que as mulheres iro
mudar de idia no dia seguinte e retornar para retirar a queixa (1992: 46). Ele acres-
centa tambm que os eventos que no so transformados em boletins de ocorrn-
cia usualmente acontecem em delegacias localizadas em bairros da periferia (1992:
4 7). As investigaes sobre homicdios so conduzidas por uma diviso especial da
polcia (o DHPP, Departamento de Homicdio e Proteo Pessoa, antes chamado
de DEIC, Departamento Estadual de Investigaes Criminais).
Assim, a etnografia de Mingardi indica que a lgica da populao para no
relatar crimes e sua descrena na polcia tm base slida. Suas informaes tambm
indicam que a distribuio social do crime distorcida nos registros policiais e nas
estatsticas. As pesquisas de Lima tambm sugerem que os registros policiais so
arbitrrios (Lima 1986: cap. 4). De acordo com ele, o "registro de ocorrncia depende
do discernimento das autoridades policiais, quase sempre exercido em desobedin-
cia lei" (Lima 1986: 103). A prtica policial mostra um claro vis no sentido de
criminalizar os pobres e descriminalizar as classes altas ( 19 8 6: 114-21). As anlises
de Lima e Mingardi- cujas concluses tambm coincidem com as de Paixo (1982
e 1983) e Coelho (1978)- nos levam a concluir que as estatsticas super-represen-
tam crimes nos quais a vtima da classe alta e sub-representam aqueles nos quais
a vtima das classes trabalhadoras. Alm disso, elas tendem a sub-representar os
crimes cometidos pelas classes mais altas e super-representar aqueles cometidos pelos
pobres, especialmente por criminosos no profissionais que no podem ou no sabem
como pagar pelo acerto. Tambm provvel que crimes qualificados sejam sub-
representados, j que podem ser classificados como crimes mais leves. difcil es-
timar a extenso dessas distores. O que se sabe com certeza , por um lado, que
existem vrias possibilidades de manipulao das informaes criminais e que, por
outro, a So Paulo de hoje exemplifica de uma maneira clara e perversa como a classe
trabalhadora no apenas estigmatizada como uma classe perigosa, mas de fato
forjada como tal na prtica da polcia e nas estatsticas que ela produz.
Outros pesquisadores indicam a existncia de outros tipos comuns de distor-
es. A anlise de Brant (1986) da populao carcerria do estado de So Paulo
mostra claras distores em relao populao negra. Enquanto as pessoas clas-
sificadas como brancas correspondiam a 75% da populao do estado de So Pau-
lo em 1980 (Censo), a populao branca nas prises era de apenas 47,6%. Para a
populao negra e mulata as porcentagens eram de 22,5% da populao e 52%
nas prises. Como argumenta Brant, isso no significa necessariamente que os ne-
gros esto mais envolvidos com o crime, mas sim que eles so mais freqentemente
tidos como criminosos. Como disseram alguns dos policiais entrevistados por Brant,
(1986: 43). Isso provavelmente est associado
aePirliretat"(1991: 110) de que os negros esto super-representa-
dos no nmero total de pessoas mortas em confrontos com a polcia. Finalmente,
108 Teresa Pires do Rio Caldeira
um estudo recente de Adorno (1995) sobre a justia criminal de So Paulo mostra
que, embora brancos e negros cometam crimes violentos em proporo idntica,
os negros tendem a ser mais molestados pela polcia, a enfrentar grandes obstculos
em seu acesso ao sistema judicirio e a ter mais dificuldades para garantir seus di-
reitos a uma defesa adequada. Como resultado, os negros so mais propensos a ser
considerados culpados do que os rus brancos.
As distores tambm acontecem no registro de crimes em que a vtima uma
mulher, como estupro e assalto. A PNAD de 1988 mostrou que mais mulheres do
que homens deixam de relatar agresses fsicas polcia, e Mingardi confirmou que
os policiais recebem seus casos sem simpatia. O estupro comumente considerado
um tipo de crime sobre o qual os registros so geralmente ruins. Sabe-se que no Brasil
as mulheres que apresentam queixa de estupro so tratadas como se fossem respon-
sveis pela agresso e passam por exames fsicos humilhantes. Se o caso acaba sen-
do julgado, tm poucas chances de ver os homens que as agrediram serem conside-
rados culpados.
1
Ciente desses problemas, durante a administrao de Andr Franco
Montoro, o governo de So Paulo estabeleceu a primeira Delegacia de Defesa da
Mulher, em 1985. (Esta mesma administrao j tinha criado o primeiro Conselho
Estadual da Condio Feminina.)- Como se sabe, todas as pessoas que trabalham
nessas delegacias so mulheres e uma campanha nos meios de comunicao enco-
rajou as mulheres a reportarem crimes de que fossem vtimas a essas delegacias
especiais. Em 1996 existiam 9 delegacias da mulher na cidade de So Paulo, 11 nos
outros municpios da regio metropolitana e mais 104 no interior do estado.
11
No
ano que se seguiu instalao da primeira delas, o nmero de estupros registrados
na regio metropolitana de So Paulo cresceu 25%. Esse aumento provavelmen-
te uma boa indicao de como os registros refletem condies outras que no ape-
nas a incidncia dos crimes.
Em casos de furto ou roubo de veculos, as companhias de seguro de auto-
mvel exigem uma cpia do boletim de ocorrncia para processar os pedidos de
pagamento do seguro. Isso provavelmente torna as estatsticas para furto de vecu-
los mais acuradas do que as de outros tipos de furto.
Por fim, normalmente aceito em estudos sobre crime que as estatsticas de
homicdios so as mais precisas e as melhores para comparao, porque so relati-
vamente imunes a problemas de definio ou a variaes devido a prticas policiais
escusas. Provavelmente isso tambm vale para o Brasil, onde os homicdios so
registrados de vrias maneiras. Eles so reportados no s pela famlia das vtimas,
mas tambm por outras instituies, como os hospitais, que tm de preencher ates-
tados de bito para a Secretaria da Sade e para a polcia, e pelo IML- Instituto
10
Para uma anlise dos esteretipos que distorcem julgamentos de crimes violentos nos quais
a vtima uma mulher, ver Ardaillon e Debert (1988), Americas Watch Committee (1991a) e Correa
(1981, 1983). Sobre violncia contra mulheres, ver Gregori (1993).
11
Para uma anlise das delegacias da mulher, ver Ardaillon (1989) e Nelson (1995). Dados
sobre o nmero de delegacias foram fornecidos pela assessoria de imprensa da Secretaria de Segu-
rana Pblica.
Cidade de Muros 109
Mdico Legal-, que est encarregado de verificar as mortes. Mesmo assim, nem
todos os homicdios so registrados. Quem quer que leia os jornais sabe sobre vrios
corpos no identificados, encontrados em terrenos baldios com ferimentos bala.
O fato de que as estatsticas de mortalidade podem ser menos distorcidas no
significa que estejam livres de problemas. As circunstncias da morte determinam
quem a reporta e a qual instituio, conseqentemente afetando a elaborao de
estatsticas diferentes. Alm disso, nem todas as mortes provocadas so classificadas
como homicdio. O grande nmero de mortes provocadas pela polcia militar so
registradas pela polcia civil no como homicdios, mas sim como um tipo especial
de ocorrncia chamado "resistncia seguida de morte", depois classificada como "ou-
tras ocorrncias" nas tabulaes finais do crime.
12
Em conseqncia, essas mortes
(1.470 em 1992, comparadas a um total de 2.838 homicdios registrados) no so
representadas nas estatsticas que analiso aqui. Elas so discutidas separadamente
no captulo 5.
H tambm diferentes registros para mortes violentas. Na maioria dos pases
h pelo menos dois registros: um criminal ou judicirio e um das autoridades de
sade. No Brasil, as coisas se complicam ainda mais pela existncia de dois ramos
da polcia. Por exemplo, as mortes em acidente de automvel tm pelo menos trs
registros oficiais em So Paulo: um pela polcia civil, que registra casos levados
delegacia de polcia, muitas vezes por parentes desejando abrir um processo; um
pela polcia militar, que chamada para a cena do acidente, conta as vtimas e re-
cebe relatrios do IML; e um pelo Registro Civil, que registra nascimentos e mor-
tes, e elabora as estatsticas vitais.l
3
De 1981 a 1986, a polcia civil registrou me-
nos da metade dos casos registrados pela polcia militar para o municpio de So
Paulo (3.017 comparado a 1.141 em 1983, por exemplo). Alm disso, os dados do
Registro Civil no coincidem com nenhuma das fontes policiais e, desde 1987, so
significativamente mais altos que as duas. Por exemplo, em 1996 a polcia militar
registrou 1.113 mortes em acidentes de automveis no municpio de So Paulo, a
polcia civil registrou 1.436 e o Registro Civil, 2.368. Em alguns anos os nmeros
do Registro Civil so menores do que os dados da polcia militar, talvez porque ele
classifique as vtimas de acordo com seu local de residncia (que pode ser fora do
municpio de So Paulo), enquanto os dados da polcia militar so classificados em
funo do local do acidente. Alm disso, em 1986 a polcia militar mudou sua
metodologia: em vez de se basear nos relatrios do IML, comeou a contar as vti-
mas no local do acidente. Isso provavelmente est relacionado queda brusca no
nmero de vtimas nos anos posteriores, pois todas as vtimas de acidentes que
morreram em hospitais no foram contadas. Alm disso, nenhuma das duas fontes
de polcia leva em conta as mortes em estradas federais, que so registradas pela
12
A informao de que as mortes causadas por policiais militares no aparecem no total de
homicdios foi oficialmente confirmada pela Secretaria de Segurana Pblica (assessoria de imprensa).
13
As mortes registradas pelo Registro Civil so classificadas de acordo com as categorias
da CID (Classificao Internacional de Doenas, Verso 9, at 1996), da Organizao Mundial
de Sade.
110 Teresa Pires do Rio Caldeira
Polcia Rodoviria Federal. Este s um exemplo da natureza problemtica dos
nmeros disponveis. Dadas as distores descritas acima, pode-se perguntar se ainda
A resposta afirmativa baseia-se em dois
fatos. Primeiro, os registros policiais so a nica fonte de dados quantitativos dis-
ponvel. Segundo, pode-se pressupor que as distores so relativamente constan-
tes ao longo do tempo, o que permite identificar tendncias temporais. No entan-
to, mesmo essa possibilidade limitada, porque mudanas na metodologia do re-
gistro dos dados no permitem a construo de longas sries histricas. Em 1980,
a Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo mudou a forma pela qual
os crimes eram agrupados, introduzindo problemas de comparao. Depois dessa
data, no entanto, as estatsticas comearam a ser publicadas em categorias mais de-
talhadas, permitindo uma anlise mais sofisticada para o perodo de 1981-1996.
Por essa razo, minha anlise se concentra nesses anos. S duas categorias pude-
ram ser comparadas nos anos anteriores. Elas so as categorias abrangentes dos
"crimes contra a pessoa" e "crimes contra a propriedade", para as quais consegui
construir uma srie para o perodo de 1973-1996 para a regio metropolitana de
So Paulo - mais exatamente, a Regio Policial da Grande So Paulo, que no
coincide exatamente com a diviso administrativa da regio metropolitana.14
TENDNCIAS DO CRIME, 1973-1996
O Quadro 1, a seguir, apresenta as mais importantes categorias de crime usa-
das pela polcia civil para produzir estatsticas. Elas se baseiam em definies esta-
belecidas pelo Cdigo Penal. Essas classificaes tm algumas peculiaridades. Uma
delas considerar a morte que ocorre durante um assalto (latrocnio) como crime
contra a propriedade e no contra a pessoa, junto com homicdio doloso. Outra
considerar o estupro como um crime contra os costumes e no contra a pessoa. Na
mesma categoria esto crimes como "atos sexuais no usuais", seduo, prostitui-
o, sexo oral etc. (Cdigo Penal, Ttulo IV). Alm disso, o cdigo mantm uma
diferena entre mulher "honesta" e "desonesta". De acordo com o Cdigo Penal
-que de 1940 e contm artigos que contrariam a Constituio de 1988 -, no
14
Embora os limites do que oficialmente chamado de Regio Metropolitana da Grande
So Paulo tenham permanecido constantes, os limites da Regio de Polcia da Grande So Paulo
mudaram vrias vezes durante o perodo considerado. Todas as estatsticas criminais referem-se
Regio de Polcia e, conseqentemente, tm uma base geogrfica ligeiramente diferente, depen-
dendo do ano. As mudanas no afetam o municpio de So Paulo. As mudanas foram as seguin-
tes: de 1973 a 1985, a Regio de Polcia excluiu os municpios de Cajamar e Salespolis (parte da
RMSP) e incluiu o municpio de Igarat (que no faz parte da RMSP); em 1986, Salespolis foi
includa; em 1987, ela incluiu Cajamar e excluiu Igarat, coincidindo com a RMSP; em 1988,
Guararema, Salespolis e Santa Isabel foram excludas e essa configurao continua at o momento.
Para todos os tipos de crime, forneci no texto as informaes mais recentes disponveis. Na maio-
ria dos casos, isso refere-se a 1996. Quando menciono datas anteriores, porque informaes mais
recentes no estavam disponveis.
Cidade de Muros
111
caso de estupro o objeto judicial a ser protegido so os costumes, no o corpo da
mulher. Como o estupro no aparece como uma classificao isolada nas estatsti-
cas que estou considerando antes de 1981, impossvel analisar sua evoluo an-
terior, e sua incidncia no se reflete na anlise a seguir, baseada apenas nas cate-
gorias "crimes contra a pessoa" e "crimes contra a propriedade". Essas classifica-
es de crime so uma boa indicao da concepo de direitos individuais que pre-
valece na sociedade brasileira e do desdm pelo indivduo e seus direitos nela em-
butida, e que pode ser extremo no caso de mulheres e crianas. Elas so tambm
reveladoras das concepes de papis sexuais e sexualidade feminina. Embora as
feministas tenham atuado ativamente para tentar modificar essas concepes bem
como as legislaes que dizem respeito a elas, e ainda que elas tenham sido capazes
de introduzir clusulas importantes visando a igualdade entre os gneros na Cons-
tituio de 1988 e tenham mudado consideravelmente as leis relativas famlia (por
exemplo, eliminando a noo de que o marido o chefe da famlia e que a mulher
lhe deve obedincia), a legislao existente e as estatsticas criminais so ainda
moldadas por concepes tradicionais e machistas.
15
Quadro 1
de Crimes usada nas Estatsticas Oficiais
Crimes contra a pessoa
Homicdio
Homicdio doloso
Homicdio culposo
Leso corporal dolosa
Acidentes de trnsito
Homicdio culposo
Leso corporal
Outros (infanticdio, aborto, omisso de socorro)
Crimes contra o patrimnio
Furto
Furto qualificado
Roubo
Latrocnio
Estelionato
Outros
Crimes contra os costumes
Estupro
Seduo
Prostituio
Outros
Crimes contra a incolumidade pblica
Trfico de entorpecentes
Uso de entorpecentes
Outros
Outros crimes
15
Um Frum de Presidentes de Conselhos da Condio Feminina elaborou uma proposta
feminista de reforma dos Cdigos Civil e Penal e apresentou-a ao Congresso Nacional em maro
112 Teresa Pires do Rio Caldeira
O nmero de mortes e ferimentos fsicos causados por acidentes de autom-
vel em So Paulo alto. De acordo com os dados da polcia civil, 16 durante
0
pe-
rodo de 1981-1996, eles representaram uma mdia de 12% de todos os registros
policiais na regio metropolitana e 40% dos registros de crimes contra a pessoa.
Apesar de sua importncia, no inclu as mortes e ferimentos provocados por aci-
dentes de trnsito no clculo geral dos crimes contra a pessoa do perodo de 1973-
1996, levando em conta que, sendo acidentes, eles so crimes muito diferentes de
homicdio doloso e leso corporal dolosa.
A evoluo dos crimes contra a pessoa e contra a propriedade na regio me-
tropolitana de So Paulo (RMSP) entre 1973 e 1996 mostrada no Grfico 1.17
Os crimes contra a propriedade tm sido responsveis por mais de 50% dos regis-
tros desde o incio dos anos 80.
18
Em mdia, eles cresceram 6,09% ao ano durante
de 1991. Essa proposta sugere a eliminao da categoria "crimes contra os costumes" e a inclu-
so de estupro na categoria "crimes contra a pessoa". Uma proposta semelhante que circula entre
os grupos feministas defende a criminalizao do assdio sexual e da violncia domstica, e pro-
pe a legalizao do aborto. Uma verso dessa proposta aparece como "Manifesto das Mulheres
Contra a Violncia- Proposta para Mudanas no Cdigo Penal Brasileiro", em Estudos Femi-
nistas (1[1]: 190-1, 1993). Para uma proposta feminista de transformao da legislao que trata
da violncia dentro da famlia, ver Pimentel e Pierro (1993: 169-75). At maro de 2000, a reforma
do Cdigo Penal ainda estava sob discusso. Parece haver um consenso entre os membros da comis-
so encarregada de propor um novo cdigo quanto a eliminar a categoria "crimes contra os cos-
tumes". No entanto, a maioria dos membros da comisso, dos quais s um mulher, contra a
legalizao do aborto. Em 8 de maro de 1996, o presidente brasileiro e o Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher anunciaram uma srie de medidas para celebrar o Dia da Mulher. Essas medi-
das incluam enviar um projeto ao Congresso Nacional para mudar a classificao de estupro para
"crime contra a pessoa". A proposta ainda no havia sido votada em dezembro de 1999. Para uma
anlise do lobby feminista durante os trabalhos da Assemblia Constituinte, ver Ardaillon (1989).
16
Os dados da polcia civil indicam um nmero menor de mortes em acidentes de trnsito
do que as outras fontes. Uso-as aqui por uma questo de consistncia, j que para todos os outros
tipos de crime os dados da polcia civil so os nicos disponveis.
17
Dados separados para o municpio de So Paulo esto disponveis apenas de 1976 em
diante. Salvo meno em contrrio, todos os dados criminais citados aqui so da Secretaria de
Segurana Pblica do Estado de So Paulo, Delegacia Geral de Polcia, Departamento de Planeja-
mento e Controle da Polcia Civil, Centro de Anlise de Dados, organizados pelo Seade- Funda-
o Sistema Estadual de Anlise de Dados. O Seade tambm est encarregado da publicao ofi-
cial de dados na sua srie anual de estatsticas para o estado de So Paulo, o Anurio estatstico
do estado de So Paulo, de onde cito. Gostaria de agradecer a Dora Feiguin e Renato Srgio de
Lima, do Seade, por facilitarem meu acesso aos dados e por me ajudarem a navegar atravs das
estatsticas. Salvo meno em contrrio, em todos os clculos estou considerando taxas de crime
por 100 mil habitantes. As estimativas de populao so tambm do Seade e foram corrigidas de
acordo com os resultados do Censo de 1991 e da Contagem da Populao de 1996.
18
difcil saber quanto esse padro mudou em relao a perodos anteriores, dada a falta
de estudos e a dificuldade em comparar dados de estudos diferentes e seus resultados contradit-
rios. De acordo com Fausto (1984: 445), do nmero total de prises por crimes (no incluindo
contravenes) em So Paulo no perodo de 1892-1916,39,5% foram crimes contra a pessoa (ele
os chama de "crimes de sangue") e 54,6% foram crimes contra a propriedade. No entanto, para
Cidade de Muros
113
o perodo considerado, enquanto os crimes contra a pessoa cresceram em mdia
2,18% ao ano. Como resultado, a proporo de crimes contra a propriedade pu-
lou de cerca de 30% do total de crimes em meados dos anos 70 para mais de 60%
de meados dos anos 80 at os dias atuais, alcanando 69,36% em 1996. Ao mes-
mo tempo, a proporo dos crimes contra a pessoa no total de crimes permaneceu
relativamente estvel, oscilando entre 15% e 23%. Como o nmero de crimes contra
a pessoa em 1980 foi subestimado em razo da mudana na metodologia de agre-
gao dos crimes, no considero na anlise que se segue a diminuio de 1980 e o
aumento de 1981. O total de crimes mais do que a soma dos crimes contra a pes-
soa e dos crimes contra a propriedade.
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3600
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1800
1500
1200
900
600
300
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1973 1975
Grfico 1
Taxas de crimes
Regio metropolitana de So Paulo, 1973-1996
1977 1979 1981 1983 1985 1987 1989 1991 1993 1995
Ano
-- Crimes contra a pessoa -- Crimes contra a propriedade -- To tal de crimes
o Rio de Janeiro durante o perodo de 1908-1929, Bretas (1995: 108) argumenta que "crimes vio-
lentos representam a maior parte dos crimes no Rio, principalmente por meio de casos de agres-
so, que constituram mais de um tero dos crimes anuais". Para o Rio de Janeiro da poca do
imprio, Holloway (1993: 213, 256) indica que a proporo de prises para crimes contra a pro-
priedade era maior do aquela para crimes contra a pessoa em 1862, 1865, e 1875.
114 Teresa Pires do Rio Caldeira
No perodo considerado, o crime contra a propriedade alcanou seu nvel mais
alto em 1994 (2.339 crimes por 100 mil habitantes). No entanto, os anos que mar-
caram uma mudana no nvel de crimes contra a propriedade foram 1983 e 1984,
quando as taxas cresceram 26,78% e 33,34% respectivamente e estabilizaram-se
num novo patamar. Os crimes contra a propriedade j tinham crescido considera-
velmente durante 1978 (22,14%) e 1979 (16,99%), mas nessa poca a taxa por 100
mil habitantes (1.187) era metade do que seria a partir de meados dos anos 80 (cerca
de 2 mil de 1984 em diante).
As taxas de crescimento dos crimes contra a pessoa no so to altas se con-
siderarmos todos os tipos de ocorrncias nessa categoria em conjunto. Os piores
anos foram os mais recentes, especialmente 1993 e 1994 (com 817 e 819 crimes
por 100 mil habitantes). Embora no final da dcada de 70 as taxas de crimes con-
tra a pessoa tenham sido elevadas (656 crimes por 100 mil habitantes em 1978, por
exemplo), est claro que, desde meados dos anos 80, esses crimes cresceram consi-
deravelmente e sua taxa em 1994 foi quase o dobro do que tinha sido vinte anos
antes (412 por 100 mil).
O criminalidade no municpio de So Paulo (que daqui em diante
chamarei di MSP) mostra algumas diferenas importantes em relao a outros
municpios da regio metropolitana (agrupados numa categoria que a partir daqui
designarei como OM). 2 mostra que as taxas de crime total por 100 mil
habitantes so consideravelmente mais altas na cidade de So Paulo do que nos
outros municpios. Alm disso, em alguns anos a criminalidade na capital e nos
outros municpios apresentou padres opostos, sendo 1986 o exemplo mais claro.
Os dados tambm indicam que enquanto os crimes contra a pessoa cresceram a uma
mdia de 0,39% ao ano na cidade de So Paulo entre 1976 e 1996, nos outros
municpios eles aumentaram em mdia 4,89% anualmente. Como resultado, os OM
mais que dobraram sua participao no nmero total de crimes contra a pessoa na
regio metropolitana durante o perodo considerado (de 20,92% para 46,35% ). A
taxa mdia de crescimento dos crimes contra a propriedade tambm foi maior nos
OM (7,66% ao ano) do que no MSP (6,36%) no perodo de 1976-1996. Em suma,
como tambm indicam as entrevistas no captulo 2, o crescimento da violncia tem
sido menor no centro, onde vive a populao mais rica, do que nas reas perifri-
cas, onde a maioria da populao pobre. Um estudo recente feito pelo Ncleo de
Estudos de Seguridade e Assistncia Social indica que no municpio de So Paulo
as maiores taxas de crimes contra a propriedade esto nos bairros de classe mdia
e alta, enquanto as maiores taxas de homicdio esto nos distritos mais pobres da
cidade (1995: Tabelas 42A E 42B do anexo).
Estatsticas so construes, e, dependendo de como elas so desenhadas e os
nmeros agregados ou separados, podem originar diferentes imagens da "realida-
de social". Essas diferenas ficam claras quando, ao invs de focalizar categorias
amplas, podemos examinar tipos especficos de crime. Este tipo de anlise poss-
vel para o perodo de 1981 a 1996. importante ter em mente que embora em 1981
o nvel do crime j tivesse cado depois do pico de 1978/1979, ele cresceu conside-
ravelmente no final dos anos 70.
Cidade de Muros 115
4500
4000
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1500
1000
Grfico 2
Taxas de crime total
RMSP, MSP e OM, 1973-1996
1973 1975 1977 1979 1981 1983 1985 1987 1989 1991 1993 1995
Ano
-- RMSP -MSP -OM
CRIMES VIOLENTOS
', //
0 fato de que as formas mais\violentas de crime crescerall}/mais)do que as
menos violentas pode ser visto ao se juntarem os totais de tentativas
homicdio, leso corporal dolosa, estupro, tentativa de estupro, roubo e latrocnio
numa nica categoria de "crimes violentos". No incio dos anos 80, esses crimes
representavam cerca de 20% do total de crimes registrados; depois de 1984, eles
passaram a representar cerca de 30% do total, chegando a 36,28o/o em 1996. Essa
mudana considervel indica que no comeo dos anos 80 no s a quantidade de
crimes cresceu, mas tambm, e o que talvez mais importante, sua qualidade mudou.
Alm de indicar um crescimento da violncia, os dados tambm mostram que
os crimes violentos cresceram mais nos OM (mdia de 5% ao ano) do que no MSP
( 4,22% ). No entanto, as taxas per capita ainda so mais altas na cidade de So Paulo.
O Grfico 3 tambm mostra que o pico dos crimes violentos tanto no MSP quanto
nos OM no perodo considerado ocorreu em 1996, depois de aumentos significati-
vos em 1983 e 1984 (1986 nos OM). As taxas de crimes violentos tm crescido de
forma constante desde 1988, especialmente no MSP. Desde 1990, os crimes vio-
lentos representam mais de mil ocorrncias por 100 mil habitantes no MSP e mais
de 850 nos OM.
116
Teresa Pires do Rio Caldeira
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1400
1300
1200
1100
1000
900
800
700
600
500
Grfico 3
Taxas de crime violento
MSP e OM, 1981-1996
400
1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Ano
-MSP -OM
CRIMES CONTRA A PESSOA
Considero separadamente trs tipos principais de crimes contra a pessoa:
homicdio (homicdio doloso mais homicdio culposo), leso corporal dolosa e es-
tupro. Eles no correspondem categoria de crimes contra a pessoa que considerei
antes, por causa da incluso do estupro e da excluso da categoria "outros", e no
correspondem categoria de crimes violentos, porque excluem crimes violentos
contra a propriedade. Freqentemente, nas estatsticas oficiais, o nmero de regis-
tros para uma categoria de crime inclui "tentativas" de crime, por exemplo, homi-
cdio e tentativa de homicdio. Na anlise a seguir, especifico quando tambm es-
tou considerando as tentativas. Na maioria dos casos, no levo em considerao
os nmeros de tentativas de homicdio, mas apenas os homicdios, como comum
nas anlises de crimes. No entanto, considero as tentativas de estupro, porque no
Brasil os registros de estupro so precrios e provavelmente muitos estupros so
classificados apenas como "tentativas de estupro". O Grfico 4 compara as taxas
de homicdio e tentativas de homicdio, leso corporal dolosa, estupro e tentativas
de estupro e vtimas de acidentes de automvel (tanto mortos quanto feridos) em
toda a regio metropolitana. Como seria de esperar, as taxas de leso corporal dolosa
so significativamente mais altas que as outras. De fato, a leso corporal dolosa
representa uma mdia de 10% do total de crimes registrados, enquanto os homic-
dios representam menos de 1% e o estupro cerca de 0,5%. Conseqentemente, le-
Cidade de Muros 117
!C-
so corporal dolosa influencia o formato da curva de crimes contra a mais
do que outros tipos de crime. Pelo fato de leso corporal dolosa ter decresCido (no
MSP) ou crescido pouco (nos OM), o aumento nas taxas de crime a pessoa
foi relativamente moderado no perodo analisado. No entanto, se analisarmos cada
categoria separadamente, o quadro bem diferente.
Grfico 4
Taxas de crimes contra a pessoa
Regio metropolitana de So Paulo, 1981-1996
450
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1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Homicdios e
tentativas
Ano
Leso corporal
dolosa
Acidentes de __ Estupros e
trnsito tentativas
Como mencionei anteriormente, as diferenas entre o MSP e os OM so im-
portantes, com os crimes contra a pessoa aumentando mais nos OM. No caso de
leso corporal dolosa, houve uma diminuio no MSP (taxa anual de -2,50%) e
um crescimento nos OM (taxa anual de 1,96%), que ultrapassou as taxas por 100
mil habitantes do MSP em 1985. Em 1996, as taxas de leso corporal dolosa por
100 mil habitantes foram de 371,70 nos OM e de 243,15 no MSP, o nvel mais baixo
desde 1981. No caso do estupro, as variaes foram semelhantes at os anos
quando as taxas da cidade comearam a declinar. As taxas nos OM
altas do que as do MSP durante todo o perodo (cerca de 19 por 100 mil habitan-
tes, comparada a 14 no MSP). Porm, tanto leses corporais quanto es-
to provavelmente bastante subestimados, dado que as pessoas tendem a nao. re-
port-los. O maior nmero de registros de estupro ocorreu em 1986, ano segumte
abertura da primeira delegacia da mulher.
118
Teresa Pires do Rio Caldeira
O homicdio doloso foi o crime com as mais altas taxas de crescimento m-
dio entre 1981 e 1996. As variaes anuais mdias foram semelhantes na cidade
de So Paulo (9,28%) e nos OM (10,05%). Como mostra o Grfico 5, tanto no
centro como na periferia da regio metropolitana, a taxa de homicdios dolosos
cresceu constantemente nos anos 80, alcanando 47,29 por 100 mil habitantes em
1996, um valor significativamente mais alto do que os 14,62 de 1981. Essas taxas
foram produzidas de acordo com os registros policiais e diferem daquelas produzi-
das com base no registro compulsrio de morte e classificadas de acordo as cate-
gorias CID.
19
Como mostra a Tabela 2, os diferenciais so altos durante todo o
perodo considerado. No entanto, a discrepncia parece representar um problema
de volume mas no de tendncia de crescimento, como o Grfico 6 torna evidente:
as taxas anuais de crescimento de homicdios dolosos registrados pela polcia civil
e pelo Registro Civil foram muito similares, especialmente no municpio de So
Paulo. Em outras palavras, embora os dados do registro de bitos indiquem cons-
tantemente um nmero maior de homicdios do que os dados da polcia civil, am-
bos mostram um padro similar de crescimento entre 1981 e 1996 .
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15
10
Grfico 5
Taxas de homicdio doloso
MSP e OM, 1981-1996
1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Ano
-MSP -OM
19
Dados do registro de bitos compilados de acordo com a Classificao Internacional de
Doenas (Verso 9, usada at 1996) tambm so elaborados pelo Seade e publicados no Anurio
estatstico do estado de So Paulo. Desde 1991, eles tambm tm sido elaborados pelo Pro-Aim
(Programa de Aprimoramento de Informaes de Mortalidade no Municpio de So Paulo), que
Cidade de Muros 119
Tabela 2
Homicdios dolosos segundo a fonte
MSP, RMSP, e OM
1981-1996
Ano RMGSP RMGSP % MSP MSP % OM OM %
Polcia Registro Diferena Polcia Registro Diferena Polcia Registro Diferena
Civil Civil Civil Civil Civil Civil
1981 1.875 2.758 47,09 1.251 1.754 40,21 624 1.004 60,90
1982 1.820 2.645 45,33 1.275 1.737 36,24 545 908 66,61
1983 2.837 3.964 39,73 2.009 2.613 30,06 828 1.351 63,16
1984 3.559 4.907 37,88 2.369 3.248 37,10 1.190 1.659 39,41
1985 3.766 4.914 30,48 2.436 3.186 30,79 1.330 1.728 29,92
1986 4.110 5.117 24,50 2.576 3.209 24,57 1.534 1.908 24,38
1987 4.462 5.734 28,51 2.868 3.573 24,58 1.594 2.161 35,57
1988 4.402 5.419 23,10 2.772 3.258 17,53 1.630 2.161 32,58
1989 5.546 6.492 17,06 3.370 3.819 13,32 2.176 2.673 22,84
1990 5.639 6.911 22,56 3.345 4.025 20,33 2.294 2.886 25,81
1991 5.634 6.973 23,77 3.342 4.305 28,82 2.292 2.668 16,40
1992 4.749 6.307 32,81 2.838 3.895 37,24 1.911 2.412 26,22
1993 5.434 6.459 18,86 3.324 3.894 17,15 2.110 2.565 21,56
1994 6.652 7.419 11,53 3.959 4.432 11,95 2.693 2.987 10,92
1995 7.410 8.802 18,79 4.485 5.379 19,93 2.925 3.423 17,03
1996 7.842 n.d. n.d. 4.710 5.465 3.132 n.d. n.d.
Fonte: Seade -Anurio Estatstico do Estado de So Paulo, diversos anos.
Obs: Os dados do Registro Civil correspondem s categorias ICD E960 e E969, normalmente denominadas
homicdio. Uma vez que esta classificao no inclui as mortes cuja intencionalidade indeterminada, ela
comparvel classificao da polcia civil de "homicdio doloso", que exclui homicdio culposo. Os dados do
Registro Civil se referem a pessoas que residem no municpio de So Paulo.
n.d. = no disponvel
Feiguin e Lima (1995: 77) sugerem que a grande discrepncia nos registros
de homicdios pode ser explicada pelo fato de que os registros da polcia se referem
aos eventos em vez de se referirem a mortes individuais, como ocorre no registro
de bitos. Um evento de homicdio pode envolver vrias mortes. Como resultado,
quando analisam dados de 1988 a 1993, Feiguin e Lima (1995: 77) sugerem que a
discrepncia pode ser associada a um crescimento das mortes coletivas- as chaci-
nas- em anos mais recentes. No entanto, como a diferena no incio dos anos 80
mais alta do que a dos ltimos anos ou comparvel a ela (Tabela 2), difcil de-
mantm as informaes mais detalhadas, mas apenas para os ltimos anos e apenas para o muni-
cpio de So Paulo. Dados do registro de bitos tm uma classificao muito mais complexa e
acurada das causas de morte do que os da polcia, permitindo diferenciar, por exemplo, o instru-
mento usado e o motivo (intencional ou no intencional, ou, ainda, de intencionalidade indeter-
minada). Em geral, mortes provocadas intencionalmente so denominadas homicdios em estats-
ticas sanitrias. No entanto, como as categorias includas nessa classificao (E960 a E969) ex-
cluem as mortes provocadas em relao s quais a intencionalidade indeterminada, eu as consi-
dero como homicdio doloso, tornando-as comparveis categoria da polcia civil que exclui ho-
micdio culposo.
120 Teresa Pires do Rio Caldeira
uma tendncia do de chacinas nos ltimos anos.20 Feiguin e Lima
tambem sugerem duas outras hipteses para explicar a discrepncia entre os regis-
tros. A que eles tm referncias espaciais diferentes, sendo que os regis-
tros das policias se referem ao local do evento e os atestados de bito ao local da
morte, que pode ser um hospital longe do local do crime.21 No entanto, no pare-
ce ser este o caso. Se fosse, os diferenciais na cidade de So Paulo, que tem maior
de hospitais, deveriam ser maiores do que as diferenas nos OM, onde
se podena argumentar que mais eventos ocorrem.
22
No entanto, em alguns anos
acontece exatamente o contrrio, com as diferenas nos OM sendo maiores. Final-
mente, a. segunda hiptese adicional mencionada por Feiguin e Lima (1995: 78)
que as diferenas exprimiriam uma tentativa de "evitar a disseminao do pnico
entre a populao". Para que isso fosse correto, no entanto, seria necessrio a exis-
70
60
50
40
30
20
10
o
-10
-20
Grfico 6
Evoluo do registro de homicdio doloso
MSP e OM, 1981-1996
1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Ano
MSP
Polcia Civil
MSP
Registro Civil
OM
Polcia Civil
OM
Registro Civil
20
De acordo com a Secretaria de Segurana Pblica, em 1994 houve 19 chacinas na cidade
de So Paulo, com um total de 61 mortes. Em 1995 houve 30 chacinas e 96 mortes. Embora esses
eles no explicam a diferena entre as ocorrncias policiais e os dados
do Registro ClVll, que em 1994 foi de 473 e em 1995 foi de 894 na cidade de So Paulo.
.
21
Feiguin e L!ma (1995) usam uma tabulao especial de homicdios que difere dos dados
publicados pelo Seade que utilizo aqui. Para os dados da polcia civil, eles agru-
pam homiCidlO doloso e homicdio culposo. Para os dados do Registro Civil, usam uma tabulao
de acordo com o lugar da morte em vez do lugar de residncia da vtima.
.
22
,Feiguin e Lima (1995) analisam apenas dados do municpio de So Paulo, mas formulam
essa h1potese para os outros municpios.
Cidade de Muros
121
tncia de uma poltica explcita de esconder informao, que no parece provvel,
dada a insistncia das autoridades em que tem havido um crescimento na violn-
cia. Alm disso, parece improvvel que esse tipo de poltica pudesse afetar o Regis-
tro Civil.
Uma explicao alternativa leva em considerao as mortes causadas pela
polcia militar. De acordo com a Secretaria de Segurana Pblica, essas mortes so
registradas como "resistncia seguida de morte" na categoria "outros crimes", e
dessa forma no so registradas nem como homicdio doloso nem como homicdio
culposo pela polcia civil, embora possam ser registradas dessa maneira pelo Re-
gistro Civil. Considerando que em alguns anos o nmero dessas mortes elevado
(mais de mil, ver abaixo), elas poderiam ajudar a explicar as diferenas. Outra ex-
plicao a excluso das estatsticas da polcia sobre homicdio doloso das mortes
que ocorreram durante um roubo (latrocnio). Estas so provavelmente classifica-
das como homicdio doloso pelo Registro Civil, e recentemente tm sido ao redor
de 400 por ano na RMSP. Se somarmos o nmero de mortes pela polcia no classi-
ficadas como homicdio doloso, o nmero de latrocnios tambm no includos nos
totais da polcia civil para homicdios e o nmero de mltiplas mortes em chacinas
registradas como um evento de homicdio, podemos justificar uma poro signifi-
cativa da diferena total entre as duas fontes. Por exemplo, em 1993 a diferena
foi de 1.025. Naquele ano, houve 333latrocnios e 243 mortes pela polcia na RMSP,
ou um total de 576, que representa 56% da diferena. Em 1994, latrocnios e mor-
tes pela polcia respondem por 87,2% da diferena, e em 1995, por 46,7%.
Alm de indicar que os registros da polcia subestimam os nmeros de homi-
cdios dolosos, os dados baseados no registro compulsrio de mortes permite uma
anlise mais complexa do crescimento recente da violncia. Nos ltimos quinze anos,
a proporo de mortes violentas (acidentes, homicdios e suicdios) no total de mortes
quase dobrou na regio metropolitana de So Paulo (elas representavam 8,95% das
mortes em 1978; 15,82% em 1991; e 14,11o/o em 1993). Desde 1989, as mortes
violentas tm sido a segunda causa de morte no Brasil, enquanto em 1980 elas eram
a quarta (Souza e Minayo 1995: 90). Em So Paulo, elas foram a segunda causa
nos ltimos anos (depois das doenas respiratrias).
Os homicdios dolosos so responsveis pelo significativo aumento nesse grupo
de causas, considerando-se que a proporo de outras "causas externas" no nme-
ro total de mortes permaneceu relativamente constante. Enquanto em 1978 o ho-
micdio doloso foi causa de 1,44% das mortes na cidade de So Paulo, em 1994
essa proporo foi de 6,57%, um aumento de 356%. Em 1994, os homicdios per-
fizeram 6,57% do total das mortes e 19,15% das mortes de pessoas entre 20 e 49
anos de idade no MSP, tornando-se a principal causa de morte nesse grupo etrio.
Essa taxa drasticamente diferente da de 1976, quando o homicdio doloso foi
responsvel por apenas 4,9% das mortes nesse mesmo grupo etrio. A taxa foi es-
pecialmente elevada entre a juventude. Em 1994, 44,4% das mortes de pessoas de
15 a 24 anos foram causadas por homicdio. Durante os anos 80, os homicdios
cresceram 80% entre pessoas de 10 a 14 anos (Souza 1994: 49). Em 1994, 61,6%
das vtimas de homicdios dolosos na RMSP tinham entre 15 e 29 anos. A crimina-
lidade adolescente tambm cresceu, mas numa proporo menor do que a da vitimi-
122
Teresa Pires do Rio Caldeira
zao adolescente (ver Feiguin e Lima 1995: 78-80). Alm disso, as mortes violen-
tas afetam cinco vezes mais rapazes do que moas (Souza e Minayo 1995: 94). Em
1994, na RMSP, 93% de todas as vtimas de homicdio doloso eram homens.
Alm de afetar cada vez mais os jovens, e mais rapazes do que moas, h in-
dicaes de que o homicdio tambm afeta desproporcionalmente as pessoas po-
bres. Um estudo recente do Ncleo de Estudos de Seguridade e Assistncia Social,
que compara taxas de homicdio e indicadores socioeconmicos nos 96 distritos da
cidade de So Paulo, mostrou que os distritos com incidncia mais alta de homic-
dios tm uma m qualidade de vida e uma predominncia de famlias de baixa ren-
da (1995: especialmente tabelas 40A, 42A e 43A). De acordo com informaes do
Pro-aim (Programa de Aprimoramento de Informaes de Mortalidade no Muni-
cpio de So Paulo) para 1995, a maioria dos distritos da cidade de So Paulo com
taxas altas de homicdio doloso era muito pobre (96,87 no Jardim ngela, 88,44
no Graja, 83,20 em Parelheiros, 76,86 no Jardim So Lus, 75,28 em Capo Re-
dondo). Outros com taxas elevadas estavam entre os distritos deteriorados da rea
central da cidade (87,93 na S e 79,51 no Brs). As taxas mais baixas eram de dis-
tritos de classe mdia e alta nas reas centrais (2,87 em Perdizes, 11,50 em Moema,
12,54 na Vila Mariana, 13,52 na Bela Vista, 13,78 em Pinheiros).
Ao contrrio de tendncias anteriores a 1979, assim como do padro nos Es-
tados Unidos, onde as mortes por acidentes de automvel so em mdia o dobro
dos homicdios, na cidade de So Paulo os homicdios causam mais mortes do que
o trnsito desde 1983, e em 1992 essa proporo era o dobro (6,18% do total de
mortes, comparados a 2,98%). Essas so informaes dos registros de bitos. Como
mencionei antes, as estatsticas sobre mortes em acidentes de automvel variam
enormemente dependendo da fonte utilizada. De acordo as fontes tanto da polcia
civil quanto da militar, o nmero de ferimentos e/ou mortes em acidentes de auto-
mvel decresceu no MSP (em mdia -4,31% ao ano) e nos OM (-0,45%) entre 1981
e 1996. No entanto, de acordo com os dados do ministrio da sade analisados por
Jorge Mello e Latorre (1994: 30), as taxas de mortes por acidentes de automvel
por 100 mil habitantes permaneceram relativamente estveis desde 1970 (cerca de
25), depois de terem aumentado 151% entre 1960 e 1970. Embora as mortes e
ferimentos no tenham aumentado muito nos ltimos anos, o nmero de acidentes
de automvel no MSP mais que dobrou nas ltimas duas dcadas, de acordo com
a polcia militar. Em 1996, houve 195.378 acidentes de automvel no MSP, uma
mdia de 535 acidentes por dia. De todos os acidentes, 13,16% resultaram em mortes
ou ferimentos.
O crescimento de mortes violentas no algo exclusivo de So Paulo. As ta-
xas de homicdio cresceram na maioria das regies metropolitanas brasileiras du-
rante os anos 80 (Souza 1994: 53-5). Como conseqncia, no final dos anos 80 as
taxas de homicdio para o Brasil, que eram semelhantes (cerca de 10) s dos Esta-
dos Unidos no comeo da dcada, atingiram mais que o dobro das taxas america-
nas. A taxa de homicdio dos EUA historicamente alta se comparada quelas da
Europa e do Japo. Dos anos 70 aos 90, enquanto as taxas americanas oscilaram
entre 8 e 1 O homicdios por 100 mil habitantes, as taxas europias oscilaram entre
0,3 e 3,5, e as japonesas permaneceram em torno de 1 homicdio por 100 mil habi-
Cidade de Muros 123
tantes (Chesnais 1981: 471).
23
Em outras palavras, as atuais taxas de homicdio
brasileiras, acima de 20, so realmente muito altas se comparadas s americanas,
europias e japonesas das ltimas dcadas. No entanto, as taxas nacionais escon-
dem disparidades locais e muitas reas urbanas tm taxas de homicdio considera-
velmente mais altas que a mdia nacional. No caso do Brasil, no final dos anos 80
e na dcada de 90, o Rio de Janeiro, Recife e So Paulo so as trs regies metro-
politanas mais violentas, com taxas de homicdio mais altas do que 40 por 100 mil,
de acordo com dados do registro de bitos (Souza 1994). Nos EUA, em 1993, al-
gumas cidades tinham taxas muito maiores, como Nova Orleans (80,34), Washing-
ton, DC (78,54), Detroit (56,76) e Atlanta (50,38). Em outras grandes cidades, as
taxas eram comparveis s de So Paulo, mas ainda menores. Em 1993, esse era o
caso de Miami (34,09), Los Angeles (30,52) e Nova York (26,48). preciso obser-
var, no entanto, que as taxas de homicdio tm oscilado menos nos EUA do que no
Brasil, e tm diminudo de forma significativa desde o incio dos anos 90. difcil
obter informaes comparveis relativas a outras cidades e pases do Terceiro Mun-
do. Os dados nacionais sobre as causas de morte compilados pelas Naes Unidas
no esto disponveis para a maioria dos pases africanos e asiticos. Nos anos 1990,
os pases da Amrica Latina tiveram taxas relativamente altas (em mdia, maiores
do que 5 por 100 mil), e os caribenhos tiveram taxas ainda mais altas (maiores do
que 10). A Colmbia tem uma das taxas mais altas do mundo: 74,4 em 1990. O
Brasil (20,2 em 1989), o Mxico (17,2 em 1991) e a Venezuela (12,1 em 1989) vm
em seguida, com as taxas mais altas da Amrica Latina.
24
23
Chesnais analisa as estatsticas disponveis para a Europa e os Estados Unidos compara-
tivamente desde pelo menos a metade do sculo XIX. A falta de informaes e de anlises para pe-
rodos anteriores torna difcil falar sobre a tendncia histrica das taxas de homicdio no Brasil,
mas h indicaes de que nas primeiras dcadas desse sculo elas eram maiores do que na Europa
e nos EUA. Para o caso de So Paulo, Fausto (1984: 95) indica que entre 1910 e 1916 a taxa de
prises por homicdio por 100 mil habitantes estava ao redor de 10,7. De acordo com Bretas (1995:
111), as taxas de homicdios por 100 mil habitantes no Rio de Janeiro entre 1908 e 1929 oscila-
ram entre 3 (1918) e 12,33 (1926). A mdia foi de 8,09. Segundo Chesnais, a taxa de homicdio
de Paris entre 1910 e 1913 era de 3,4, e entre 1921 e 1930, 1,9 (1981: 79). Na Frana, a taxa de
homicdio doloso para o perodo de 1901-1913 era de 1,13, e para o perodo de 1920-1933, 1,06
(Chesnais 1981: 74). Para os EUA, a taxa para o perodo 1901-1910 era de 2,93, e entre 1911 e
1920 era de 6,28 (Chesnais 1981: 93). Os dados de Chesnais baseiam-se em estatsticas da Orga-
nizao Mundial de Sade. Conforme essa fonte, nos anos 90, as taxas de homicdio foram de:
9,8 nos Estados Unidos (a taxa de 1990 de acordo com o FBI foi de 9,4); 1,1 na Frana (1991);
1,2 na Alemanha (1992); 2,9 na Itlia (1991); 1,0 na Espanha (1990); 0,9 no Reino Unido (1992);
0,6 no Japo (1992) (Naes Unidas 1995: 484-505).
24
Os dados para as cidades americanas so dos Uniform Crime Reports for the United States,
baseados em ocorrncias policiais e publicados pelo FBI. Os dados para a Amrica Latina e para
o Caribe so das Naes Unidas (1995: 484-505) e referem-se s taxas de morte compiladas pelas
autoridades de sade. Situaes locais podem diferir consideravelmente das mdias nacionais. De
acordo com um estudo feito pelo Population Crisis Committee, em 1985 algumas das piores ta-
xas de homicdio por 100 mil habitantes ocorreram em Cape Town (64,6), Cairo (56,3), Alexandria
(49,3), Rio de Janeiro (49,3), Manila (36,5), Cidade do Mxico (27,6) e So Paulo (26,0) (Veja,
124 Teresa Pires do Rio Caldeira
CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE E OUTROS CRIMES
Os crimes contra a propriedade em So Paulo representam a maioria dos crimes
registrados: os furtos respondem por cerca de 3 7% dos registros e os roubos, por
cerca de 17%. Os roubos apresentaram o segundo maior crescimento (mdia de
crescimento anual de 8,95%) entre 1981 e 1996, logo atrs dos homicdios. Os piores
anos para os crimes contra a propriedade foram 1984 e 1985, e meados dos anos
90, como pode ser visto no Grfico 7. Os roubos cresceram mais do que os furtos
(com mdias de 8,95% e de 2,44% respectivamente), e a mdia de crescimento dos
roubos nos OM (10,56%) foi um pouco mais alta do que no MSP (9,18%). Isso
repete o padro de crescimento j detectado para os crimes contra a pessoa: formas
mais violentas de crime crescem mais e as taxas de crescimento so mais altas na
periferia do que no centro da regio metropolitana. No entanto, preciso tomar
cuidado com essas concluses, porque em geral os crimes violentos tendem a ser
mais bem registrados em razo de sua gravidade. Alm disso, as taxas de crimes
contra a propriedade por 100 mil habitantes so mais altas no MSP do que nos OM.
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1800
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600
400
200
o
1981
Grfico 7
Taxas de furto e roubo
MSP e OM, 1981-1996
1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Ano
--Furto- MSP Furto- OM --- Roubo- MSP --Roubo- OM
28 de novembro de 1990, p. 66). Devemos ser cuidadosos ao examinar essas taxas internacionais.
Para 1985, as taxas para a cidade de So Paulo apresentadas nesse estudo quase coincidiram com
as ocorrncias da polcia (26,98), mas so bem diferentes daquelas produzidas com base no regis-
tro de bitos tanto para So Paulo (35,8) quanto para o Rio de Janeiro (41,0).
Cidade de Muros
125
Furto e roubo de veculos correspondem a uma mdia de 20% dos furtos e roubos.
Esses crimes cresceram a taxas semelhantes no MSP e nos OM (5,44% e 5,78%
respectivamente), mas a taxa per capita o dobro no centro (854 por 100 mil compa-
rados a 443 por 100 mil em 1996). De acordo com o estudo do Ncleo de Estudos
de Seguridade e Assistncia Social relativo cidade de So Paulo, os distritos com
as taxas mais altas de roubo so os distritos centrais e abastados (1995: Tabela 43A).
Uma outra forma de avaliar o crescimento da violncia examinar o registro
de armas e as ocorrncias de posse ilegal de armas. O nmero anual de armas ad-
quiridas na regio metropolitana pulou de 9.832 em 1983 para 66.870 em 1994,
um crescimento de 580%. Esses nmeros, no entanto, esto longe de retratar o cres-
cimento do nmero de armas entre a populao, j que a apreenso de armas no
registradas tambm cresceu consideravelmente. As ocorrncias policiais de posse
ilegal de armas cresceram a uma mdia de 8,62% ao ano entre 1981 e 1996 no MSP
e 10,51% nos OM. Em 1996, a polcia registrou 5.563 casos de posse ilegal de ar-
mas na RMSP. Como divulgado pela mdia, muitas dessas armas so contraban-
deadas e algumas (especialmente aquelas usadas por traficantes de drogas) so mais
potentes do que as usadas pela polcia. A medida que aumenta o nmero de armas
nas mos da populao, aumenta a proporo de homicdios cometidos com elas.
De acordo com os dados de registros de bitos, em 1980, os homicdios por armas
de fogo eram 14,8% do total de homicdios em So Paulo; em 1989, eles j eram
31,2% (Souza 1994: 55) e em 1992,29,26%. O aumento da posse de armas indi-
ca no s um aumento do crime e da violncia, mas tambm mostra como os mo-
radores de So Paulo esto cada vez mais tomando para si a tarefa da defesa. Para
obter um quadro completo das tendncias do crime no perodo de 1981-1996, res-
ta observar o que aconteceu com o trfico de drogas e a violncia policial. Esta ltima
muito alta e constitui um componente crucial do crescimento da violncia no Brasil.
Analiso-a separadamente no captulo 5. Os registros de trfico de drogas oscilaram
entre 18 e 30 incidentes por 100 mil habitantes na RMSP. No entanto, difcil
detectar um padro, pois as taxas flutuaram consideravelmente. Apesar disso, tan-
to as autoridades pblicas como os meios de comunicao tm insistido que o tr-
fico de drogas especialmente a disseminao do crack em So Paulo- tem le-
vado a um aumento da violncia. Mas difcil avaliar essa influncia dada a falta
de informaes concretas.
BUSCANDO EXPLICAES
Os cientistas sociais geralmente oferecem trs tipos de explicaes para a
criminalidade e suas variaes. Primeiro, o crime relacionado a fatores como ur-
banizao, migrao, pobreza, indushializao e analfabetismo.;Segundoj ele
associado ao desempenho e caractersticas das instituies encarregadaSie
a ordem, sobretudo a polcia, mas tambm tribunais, prises e
ro, h explicaes psicolgicas que focalizam a personalidade de criminosos indi-
viduais. Na anlise a seguir, considero os dois primeiros tipos de explicaes, que
em geral se combinam, mas no vou tratar dos fatores psicolgicas, pois no estou
126 Teresa Pires do Rio Caldeira
me concentrando nos fenmenos individuais e sim nos sociais. Alm disso, para
entender o atual quadro da criminalidade em So Paulo, necessrio ir alm da-
quelas perspectivas e considerar trs outros tipos de fatores que no podem ser
quantificados. Primeiro, os elementos culturais, como as concepes dominantes
sobre a disseminao do mal, o papel da autoridade e concepes do corpo mani-
pulvel (que analiso no captulo 9). No Brasil, esses conceitos esto associados ao
apoio a prticas violentas e deslegitimao dos direitos individuais. Segundo, a
adoo disseminada de medidas ilegais e privadas para combater a criminalidade
cujos efeitos solapam o papel mediador e regulador do sistema judicirio e
tam um ciclo de vingana privada. Esse ciclo s pode fazer aumentar a violncia.
Terceiro, h que considerar as polticas relativas segurana pblica e os padres
tradicionais de desempenho da polcia: a ao violenta do Estado ao lidar com
0
crime acentua a violncia, ao invs de control-la. Comeo a desenvolver esses ar-
gumentos neste captulo e continuo a faz-lo nos captulos 4, 5 e 9.
Qualquer tentativa de explicar o crime em So Paulo fortemente limitada
pela qualidade das informaes. Os estudos mais detalhados disponveis, tanto em
relao ao Brasil quanto Amrica Latina, examinam a criminalidade no comeo
do sculo XX, e quase todos abordam a questo do crime no incio da industriali-
zao, seguindo uma abordagem internacional do tema que enfatiza os efeitos da
imposio de uma ordem social urbana.
25
Estudos mais recentes da violncia na
Amrica Latina em geral citam situaes excepcionais, como as guerras sujas no
Chile, Argentina e Uruguai, as guerras na Amrica Central, os conflitos do narco-
trfico na Colmbia e o movimento guerrilheiro no Peru.26
Depois que a criminalidade se tornou um problema no incio dos anos 80 al-
guns pesquisadores se voltaram para as estatsticas da regio metropolitana de So
Paulo. A maioria dos estudos, no entanto, ou se concentra em sries histricas ain-
da mais curtas do que as que consegui reunir (Batich 1988, Feiguin 1985, Feiguin
e Lima 1995, Mingardi 1992, Nepp 1990), ou analisam tipos especficos de crime
separadamente (Minayo 1994, Souza 1994, Souza e Minayo 1995). Em geral, es-
ses estudos so descritivos e no apresentam explicaes detalhadas, sugerindo que
o aumento do crime poderia ser associado crise econmica do incio dos anos 80
25
No caso de So Paulo, para o perodo de 1880-1924 h o estudo das estatsticas crimi-
nais de Fausto (1984). Para o Rio de Janeiro durante o perodo de 1907-1930, h o estudo de Bretas
(1995), que tambm analisa as estatsticas e relatrios produzidos pela polcia. Para o Rio de Ja-
neiro da virada do sculo, h o estudo de Chalhoub (1986), que no analisa estatsticas, mas tenta
descobrir por meio dos registros judicirios um quadro dos relacionamentos cotidianos e confli-
tos da classe trabalhadora. Para os perodos Colonial e Imperial, h os estudos de Aufderheide
1975, Ch.alhoub 1990, Franco 1974, Holloway 1993, Huggins 1985 e Lara 1988, mas apenas
Aufderhe1de, Holloway e Huggins analisam estatsticas. Para outros pases na Amrica Latina, h
os estudos de Johnson 1990, Rohlfes 1983, Taylor 1979, Vanderwood 1981. Sobre os bandidos
sociais brasileiros do comeo do sculo XX, o estudo clssico Queiroz 1977.
26
A bibliografia nesses casos vasta. Sumrios interessantes so, para o caso da Colmbia,
Comsin de estudios sobre la Violencia (1987), e para o caso do Peru, Comisin Especial de Se-
nado (1989).
Cidade de Muros
127
e s altas taxas de desemprego. A nica exceo no caso de So Paulo o estudo de
Pezzin (1987) que discuto abaixo. H estudos sobre outras cidades, como os de
Paixo (1983, 1986, 1988, 1990) sobre Belo Horizonte, e os de Coelho (1978, 1980,
1988) sobre o Rio de Janeiro. Suas principais contribuies foram crticas metodo-
lgicas indicando as limitaes e desvios das estatsticas oficiais e pondo por terra
vises tradicionais que associam o crime pobreza e marginalidade. Mais recente-
mente, h uma srie de estudos da distribuio espacial do crime que tentam analisar
o risco da violncia em cidades brasileiras.
27
Embora esses mapas mostrem uma forte
correlao entre reas pobres e risco de violncia, eles no apresentam explicaes
para o crescimento da violncia. No caso do Rio de Janeiro atual, h tambm impor-
tantes estudos etnogrficos feitos por Zaluar, em reas de classes trabalhadoras, e
Velho (1987, 1991), entre as classes mdias. Zaluar analisou as inter-relaes en-
tre trabalhadores e "bandidos", e suas vises do crime e da sociedade (Zaluar 1983,
1985, 1987, 1990, 1994). Ela no desenvolve nenhuma anlise quantitativa.
Estudos recentes sobre padres criminais nos EUA e na Europa questionam
seriamente a associao entre pobreza e criminalidade, considerada como bvia nas
conversas do dia-a-dia sobre o crime (Chesnais 1981, Gurr 1979, Lane 1980 e 1986,
Tittle, Villemez e Smith 1978). Esses estudos reconsideram a associao conven-
cional entre aumento do crime e rpido crescimento das cidades e pobreza urbana
que marcou o incio da industrializao- um argumento exposto, por exemplo,
por Chevalier (1973 [1958]). Alm disso, alguns estudos pem em xeque a noo
bastante comum de que a violncia cresce com a urbanizao e a industrializao.
Num amplo estudo comparando estatsticas de crime para pases europeus e os Es-
tados Unidos de meados do sculo XIX at o final dos anos 70, Jean-Claude Chesnais
argumenta que, embora o medo da insegurana possa ter aumentado, "houve du-
rante os ltimos sculos e as ltimas dcadas uma considervel regresso da crimi-
nalidade violenta" (1981: 14). De acordo com ele, observando esse longo perodo,
globalmente, a violncia direta contra as pessoa$ ( ... )est em franca di-
minuio em relao ao passado e justamente em relao aos crimes
mais graves que o recuo mais ntido. A tendncia incontestvel, tal-
vez at mais acentuada do que sugerem os nmeros, pois o registro tem
melhorado e quanto mais grave o crime, melhor o registro. (p. 441, gri-
fo no original)
Para Chesnais (Pref. e cap. 1 ), esse padro de longa durao de diminuio
da violncia contra as pessoas foi condicionado por processos como a diminuio
da escassez e da pobreza, a revoluo demogrfica com a diminuio da mortalidade
e a valorizao da vida, e especialmente o crescimento do Estado, com suas institui-
27
Vrios desses estudos foram patrocinados pelo Ministrio da Justia e pela Secretaria
Nacional de Direitos Humanos e fazem parte do projeto "Mapas do Risco da Violncia", coorde-
nado pelo Cedec em So Paulo. Para So Paulo, ver Ncleo de Estudos de Seguridade Social (1995),
e para o Rio de Janeiro, ver Cano ( 1997).
128 Teresa Pires do Rio Caldeira
es repressivas (a polcia e o sistema judicirio), e das instituies disciplinares como
as escolas e o exrcito. Esses processos foram acompanhados por uma profunda
transformao dos costumes e mentalidades descrita por Norbert Elias (1994 [1939])
como uma domesticao dos instintos. A hiptese de Chesnais de que esse processo
efeitos diferentes em vrias regies da Europa e nos Estados Unidos, mas por
fim espalhou-se por toda parte, reduzindo a violncia interpessoal. Chesnais chega
mesmo a argumentar que "seguindo uma lei clssica da criminologia, o movimen-
to da criminalidade global cresce com o desenvolvimento enquanto a
criminalidade grave regride" (1981: 443, grifo do original). Para Chesnais, o cri-
me violento diminuiu de forma consistente da Idade Mdia at o final dos anos 1970
e para entender essa transformao necessrio observar as transformaes
titucionais e culturais em vez de focalizar-se apenas variveis socioeconmicas.
Roger Lane tambm questiona a simples associao de aumento do crime ao
crescimento das cidades e industrializao, argumentando que as famosas "afrontas
contra a ordem" do incio da urbanizao "oscilaram mais freqentemente em res-
posta mudana das polticas pblicas do que s mudanas de comportamento"
(1986: 2). Alm disso, tanto os crimes violentos- especialmente homicdio, o mais
srio e mais bem registrado de todos os crimes - como alguns crimes contra a
propriedade parecem ter diminudo continuamente durante a urbanizao.
Apesar de que os crimes contra a propriedade habitualmente ten-
deram a crescer em pocas de privao e a decrescer em pocas de pros-
peridade, enquanto os crimes de violncia reagiram ao ciclo econmico
de forma exatamente oposta, essas oscilaes de curto prazo apenas
mascararam o fato de que ambos os tipos de crime estavam diminuindo
a longo prazo, s vezes de forma acentuada. A tendncia de queda co-
meou tipicamente por volta da metade do sculo XIX. Continuou por
um longo tempo, na maioria dos lugares at a metade do sculo XX. S
recentemente a incidncia do crime comeou a aumentar de novo, so-
bretudo a partir de 1960. O padro tpico, ento, tem sido uma longa
curva em "U", mais do que uma simples linha correndo paralelamente
ao crescimento urbano e ao desenvolvimento. ( ... ) Essa curva em "U" em
criminalidade provou ser um padro quase universal. (Lane 1986: 2)
Provavelmente por ter se concentrado em perodos mais recentes, Lane des-
creve uma curva em "U" em vez do declnio linear indicado por Chesnais, que ten-
de a desprezar variaes de curto prazo para enfatizar tendncias mais abrangentes.
Mas essas variaes so importantes para o entendimento de questes contempo-
rneas. As explicaes para a curva em "U" e especialmente para o crescimento da
violncia depois dos anos 60 ainda so vagas. Para o perodo anterior, a importn-
cia da consolidao do Estado e das instituies da ordem parece incontestvel, assim
como o "processo civilizatrio" e a conseqente pacificao interna das socieda-
des europias descritos por Elias. Parece tambm claro que a parte de baixo da curva
em "U" coincide com a maturidade do capitalismo (o que alguns chamam de fase
fordista) e o otimismo do perodo ps-guerra.
Cidade de Muros
129
Os padres atuais de crime, no entanto, diferem daqueles do inci? da
trializao. Por exemplo, a violncia associada a crimes contra a propnedade esta
crescendo como mostra o fato de que o roubo armado cresceu mais rapidamente
do que outro crime nos EUA (Lane 1986: 173) e em So Paulo. Alm
so,
0
formato geral da curva no reflete experincias especficas. Para pop_ulaao
afro-americana, por exemplo, a experincia do crime violento tem segmdo nao
curva em "U", mas uma tendncia linear crescente. Para Lane (1986), a exp.enen-
cia cultural e histrica, mais do que a pobreza ou a renda, explica essa realidade.
Se tivssemos dados disponveis, provavelmente encontraramos um padro seme-
lhante para os negros brasileiros, que so a maioria entre os mortos polcia
em So Paulo (Pinheiro et al. 1991) e constituem uma parte desproporcwnal da
populao carcerria (Brant 1986). .
Essas anlises de padres criminais nos EUA e na Europa podem nos aJudar
a formular algumas explicaes para a criminalidade violenta na So Paulo
Essa perspectiva sugere que tendncias da criminalidade violenta ser
cadas em parte pela histria das instituies da ordem e por culturais
longa durao que moldam o comportamento individual e as relaes mterpessoais.
Por serem as estatsticas muito precrias - no h forma de provar ou refutar a
existncia da curva em "U" em So Paulo-, as hipteses que podemos formular
so restritas. No entanto, ao contrrio do que sugere a anlise de Pezzin, o padro
recente de crescimento do crime violento no pode ser explicado somente por vari-
veis econmicas e de urbanizao.
28
Embora os estudos de Pezzin e Coelho permaneam atados s explicaes
socioeconmicas para o aumento do crime, suas anlises podem ajudar a
car a hiptese alternativa que apresento no final deste captulo. O estudo de Lil_Iana
Pezzin (1987) baseia-se em modelos nos quais ela correlaciona as de
contra a pessoa e crimes contra a propriedade a variveis como nveis de urbamza-
o, densidade demogrfica, crescimento da populao,
centro da cidade, taxa de pobreza, taxa de desemprego, atividade
grao e gastos per capita do Estado com segurana. O dessas vanaveis
inspirou-se diretamente na longa tradio dos estudos sobre o cnme em contextos
de industrializao e urbanizao. No entanto, para o perodo de 1970-1984 que
estudou, ela poderia estar se deparando com o outro lado da curva _en;
exige novas explicaes. Alm disso, para explicar o crescimento e nao
s
0
dos crimes contra a propriedade, que de fato a mudana mais Importante no
padro de criminalidade nos anos 80, ela talvez_ devesse, processos.
Pezzin foi incapaz de encontrar correlaao estatisttca stgmcativa entre suas
variveis e os crimes contra a pessoa. Ela concluiu que os crimes contra pessoa
28 Um estudo recente de Cludio Beato sustenta a interpretao que estou propondo. Ele
no consegue encontrar correlaes entre taxas de crime violento e indicadores de desigualdade
social, disponibilidade de servios pblicos, desemprego e qualidade de
parciais dessa pesquisa ainda em andamento foram apresentados na Conferencia Vwlence
and the CriminalJustice Response in Latin America: Towards an Agenda for Collaboratlve Research
in the Twenty-first Century", Universidade do Texas em Austin, maio de 1999.
130
Teresa Pires do Rio Caldeira
(crimes de "fora psicolg!c_a,, .. como_el;:t <;>schama) no so Illtto afetados. nem
pelas varivei socioeconmicas e. nveis de :do ta,.
do com segurana pbJica(Pezzin 1987: 108-9). Esse achado contradiz outros es-
tudos sobre i1minalidade que mostram que o crime violento, a longo prazo, di-
minuiu com as mudanas culturais e institucionais que acompanharam a urbani-
zao, a industrializao, a transio demogrfica, a consolidao dos Estados
nacionais modernos e a institucionalizao das foras policiais (por exemplo, Ches-
nais 1981: Intr. e cap. 1, e Gurr 1979: 356-8). Alm disso, a curto prazo, a expec-
tativa seria de que o crime violento diminusse com uma crise econmica (Lane 1986:
2), exatamente o contrrio do que aconteceu em So Paulo no perodo analisado
por Pezzin. Pelo fato de as variveis socioeconmicas utilizadas por Pezzin prova-
velmente no serem capazes de explicar o aumento do crime violento, ela encon-
trou-se sem explicaes e desconsiderou algumas descobertas ao associ-las, por
exemplo, a fatores psicolgicos.
Pezzin' descobriu que, ao contrrio do que aconteceu aos crimes contra a pes-
soa, os cri;;;es contra a propriedade estavam positiva e significativamente correla-
cionados aos indicadores de urbanizao, pobreza, migrao e desemprego (1987:
108-9). Os gastos com segurana do estado tambm estavam significativamente
correlacionados aos crimes contra a propriedade e, neste caso, os valores eram cla-
ramente maiores do que aqueles associados s variveis concernentes urbaniza-
o e pobreza. No entanto, Pezzin baseou suas concluses exclusivamente na
correlao dos crimes contra a propriedade com as variveis de urbanizao e po-
breza, insistindo em que o crescimento do crime estava relacionado recesso eco-
nmica do comeo dos anos 80 e ao nvel de pobreza que ela gerou.
No entanto, nem todos os indicadores socioeconmicos de Pezzin se compor-
taram como o esperado em relao aos crimes contra a propriedade. Um deles, o
analfabetismo, embora significativamente relacionado tanto aos crimes contra a
pessoa como contra a propriedade, demonstrou relaes negativas, ou seja, o inverso
do que era esperado. Incapaz de explicar essa descoberta, Pezzin atribuiu-a a proble-
mas de colinearidade (1987: 109). No entanto, a pesquisa de Brant (1986) entre a
populao carcerria do estado de So Paulo mostrou que o nvel de educao for
1
mal dos presos (apenas 3% analfabetos, 54,9% com 4 anos da escola
36% com colegial) "est acima da mdia da populao do pas e, em alguns casos,.\
acima at da mdia do estado de So Paulo" (Brant 1986: 50). Alm disso,
mostrou que 54,3% dos presos estavam empregados quando foram detidos (1986:
81) e que 37,2% dos desempregados haviam perdido o emprego h menos de 6 meses
(1986: 82). Um grande nmero de presos tinha uma histria ocupacional contnua
e tinha tido vrios empregos regulares (1986: 50). Em suma, esses dados indicam
no problemas de colinearidade, mas sim aspectos de uma realidade social que no
se explicam por velhas teorias e esteretipos. Alm disso, as concluses de Brant
contradizem a nica hiptese que Pezzin apresentou para dar conta daquilo que
nenhuma outra varivel pde explicar: o aumento da violncia.
A intensificao crescente da incidncia de violncia nos delitos
patrimoniais parece ser. .. um sintoma de novos fluxos de contingentes
Cidade de Muros 131
(de criminosos) sem a necessria habilidade ou tal
deficincia mediante o uso de armas. (Pezzin 1987: 111, gnfo no ongmal)
Alm de no ser apoiada pelos dados, essa hiptese pressupe que os profis-
sionais do crime no so violentos, e que basicamente so os principiantes - tal-
vez aqueles empurrados para a criminalidade pela crise econmic_a que se _vol-
tam para a violncia. Alm disso, a hiptese pressupe que a mawna dos cnmes
violentos so cometidos por no-profissionais. Isso est em total desacordo com as
afirmaes de Coelho (1988), Paixo (1983), Mingardi \19_92), Zaluar e
outros analistas do crime (como reprteres que cobrem dtanamente a pohe1a e as
autoridades da Segurana Pblica), que insistem que na ltima dcada o crime tor-
nou-se cada vez mais organizado e profissional, e que esta tendncia se expressa
principalmente no uso de armas, trfico de drogas e em grandes
o roubo de edifcios inteiros e o seqestro de executivos. Como os JOrnats tem re-
gistrado, as redes associadas a alguns seqestros traficantes de o
jogo do bicho, vrios polticos, advogados, gangues das pnsoes
e at a polcia. Estamos lidando com o aumento do cnme orgamzado e a_rmado,
no com indivduos inexperientes levados ao crime por um contexto de cnse.
Mas, se a hiptese de Pezzin parece no ter mrito, no entanto fcil ver
ela coerente com o universo no qual foi formulada, aquele que concebe o cnme e
a violncia em relao a indicadores de pobreza urbana e marginalidade.
a realidade resiste a esse modelo, essas explicaes se enfraquecem. De fato, exph-
caes socioeconmicas parecem se enfraquec,er ainda mais a questo no
apenas o crime, mas sim o crime violento. E a_ que estamos
tentando explicar, porque, como argumentei acima, fot a vtolencta que mudou ra-
dicalmente o padro do crime em 1983-1984. ., .
Em sua anlise Pezzin concentra-se quase exclusivamente nas vanave1s so-
cioeconmicas e no' d muita ateno correlao entre nveis de criminalidade e
gastos do Estado com segurana pblica. Coelho contrrio, parece des-
considerar variveis socioeconmicas e se concentrar pnnc1palmente naquelas as-
sociadas represso ao crime.
Em primeiro lugar, at que surjam confirmaes empricas em con-
tr.rio, seria oportuno arquivar as teorias segundo as quais a pobreza, "o
analfabetismo, o desemprego, os desnveis de renda ou as cnses econo-
micas constituem fatores causais ou determinantes da criminalidade ( ... )
Em segundo lugar, no h nada de surpreendente na constatao, de_ que
as variveis de dissuaso tm efeito mais pronunciado sobre os mve1s de
criminalidade do que as variveis socioeconmicas: o nmero de poli-
ciais nas ruas tem uma relao direta com as opes disponveis para o
infrator em potencial, o que no ocorre, por exemplo, com o nmero
de desempregados num dado momento. (Coelho 1988: 153)
Parece-me, no entanto, que devemos ter mais cuidado com essas conclus?e:
Um maior investimento em segurana pblica depois de 1984 de fato no fez d1m1-
132
Teresa Pires do Rio Caldeira
nuir o nvel de crimes violentos. Alm disso, as suposies de Coelho pa
i , _ recem ser
baseadas numa Imagem da pohe1a que nao come1de com a realidade brasileira re-
cente, marcada por uma polcia violenta e que se envolve com a criminalidade A
. SSim,
sua capacidade de controlar o crime questionvel e seu papel no agravamento da
violncia pode ser significativo. No entanto, a maioria da populao parece pensar
pedindo mais policiamento na rua e, pior ainda, uma fora policial
vwlenta. Em suma, o caso da polcia pode nos fornecer algumas indicaes
Importantes sobre como considerar a violncia em relao a outras questes alm
das variveis de desempenho econmico e crescimento urbano.
importante considerar o investimento do Estado na segurana pblica. Ta-
xas de gastos estatais per capita em segurana pblica apresentadas tanto por Pezzin
(1987: 150) como por Coelho (1988: 180), embora no coincidentes, mostram a
mesma tendncia: uma acentuada diminuio nos investimentos de 1979 em dian-
te, atingindo seu nvel mais baixo em 1984. Em outras palavras, os anos das maio-
res taxas de crescimento do crime coincidem com os piores nveis de investimento
estatal em segurana pblica e com os piores anos da crise econmica. Portanto,
difcil determinar qual fator teve mais influncia. Os dados de Pezzin mostram que
o nvel mais alto de investimento ocorreu durante os anos economicamente prs-
peros de 1974 a 1978, quando os crimes contra a propriedade tambm cresceram
(1987: 150). Alm disso, um investimento acentuado depois de 1984 foi incapaz
de fazer baixar as taxas do crime violento no final da dcada.
Um estudo feito pelo Nepp dos gastos com segurana pblica para o perodo
de 1983 a 1989 mostra que eles cresceram continuamente depois de 1984 (Nepp
1990: 157). Os gastos se referem ao aumento de pessoal e equipamento. O nme-
ro total de pssoal (policiais e servios administrativos) na polcia militar no esta-
do de So Paulo pulou de 53.829 em 1980 para 69.281 em 1989, e para 73 mil em
1995; na polcia civil, ele aumentou de 15.874 em 1980 para 26.383 em 1989 e
31.987 em 1995 (Nepp 1990: 64, e Secretaria da Segurana Pblica). Considera-
dos conjuntamente, isso significa que houve um aumento de 50,62% com pessoal
nas duas corporaes, enquanto a populao do estado cresceu 31,38o/o. Como re-
sultado, a relao populao/polcia caiu de 359:1 em 1980 para 308:1 em 1989, e
para 313:1 em 1995. Houve tambm um aumento no nmero de veculos policiais.
Entre 1979 e 1982- administrao de Paulo Maluf, o ltimo governador eleito
indiretamente durante o regime militar- apenas 391 veculos foram comprados.
Entre 1983 e 1986, durante o governo de Franco Montoro, 1.181 novos veculos
foram adquiridos, e entre 1987 e 1988, os dois primeiros anos do governo Orestes
Qurcia (1987-1988), 1.136 foram adicionados (Nepp 1990: 52). Alm disso, es-
tas duas ltimas administraes investiram pesadamente na renovao do sistema
de telecomunicaes e do equipamento eletrnico da polcia, na criao de novas
delegacias e no acrscimo de novos servios, como delegacias especializadas em
problemas das mulheres e do consumidor, ambas inicialmente criadas durante o
governo Montoro. Em suma, tqdas as variveis analisadas pelo Nepp indicam uma
expanso dos investimentos em segurana pblica de 1984 em diante. Mas ainda
assim a violncia continuou a crescer. Poder-se-ia argumentar que os efeitos desses
investimentos s sero percebidos a longo prazo. Se isso verdade, no entanto, as
Cidade de Muros 133
taxas de gastos anuais no deveriam ser relacionadas com as taxas de crime no
mesmo ano.
Nos captulos seguintes, sugiro que o crescimento da violncia no pode ser
explicado nem pelas variveis socioeconmicas e de urbanizao nem pelos gastos
estatais em segurana pblica apenas, mas est relacionado tambm a uma combi-
nao de fatores socioculturais que culminam na deslegitimao do sistema judi-
cirio como mediador de conflitos e na privatizao de processos de vingana, ten-
dncias que s podem fazer a violncia proliferar. Para explicar o aumento da vio-
lncia, temos que entender o contexto sociocultural em que se d o apoio da popu-
lao ao uso da violncia como forma de punio e represso ao crime, concepes
do corpo que legitimam intervenes violentas, o status dos direitos individuais, a
descrena no judicirio e sua capacidade de mediar conflitos, o padro violento do
desempenho da polcia e reaes consolidao do regime democrtico.
A profunda desigualdade que permeia a sociedade brasileira certamente ser-
ve de pano de fundo violncia cotidiana e ao crime. A associao de pobreza e
crime sempre a primeira que vem mente das pessoas quando se fala de violn-
cia. Alm disso, todos os dados indicam que o crime violento est distr:ibuqonesi-
gualmente e afeta especialmente os pobres. No entanto, desigualdade- e pobreza
sempre caracterizaram a soCiedade brasileira e difcil argumentar que apenas elas
explicam o recente aumento da criminalidade violenta. Na verdade, se a desigual-
dade um fator explicativo importante, no pelo fato de a pobreza estar corre-
lacionada diretamente com a criminalidade, mas sim porque ela reproduz a viti-
mizao e a criminalizao dos pobres, o desrespeito aos seus direitos e a sua falta
de acesso justia. De maneira similar, se o desempenho da polcia um fator
importante para explicar os altos nveis de violncia, isso est relacionado menos
ao nmero de policiais e a seu equipamento e mais aos seus padres de comporta-
mento, padres esses que parecem ter se tornado cada vez mais ilegais e violentos
nos ltimos anos. A polcia, mais do que garantir direitos e coibir a violncia, est
de fato contribuindo para a eroso ds diritosaos cidados e para o aumento da
violncia.
134 Teresa Pires do Rio Caldeira
4.
A POLCIA: UMA LONGA HISTRIA DE ABUSOS
Um dos aspectos mais perturbadores do crescimento da violncia em So Paulo
no que o crime violento esteja aumentando- algo que acontece em vrias cida-
des ao redor do mundo em propores semelhantes -, mas o fato de que as insti-
tuies da ordem parecem contribuir para esse crescimento em vez de control-lo.
Estudos sobre criminalidade em sociedades modernas mostram que as instituies
:da ordem (polcia, legislao criminal, tribunais e prises) "podem reprimir o cri-
"' me comum apenas se reforarem outras foras sociais que estejam se movendo na
mesma direo" (Gurr 1979: 370). A So Paulo de hoje parece representar um caso
em que as instituies da ordem esto de fato reforando foras sociais. Entretan-
to, isso acontece de uma maneira perversa: o que est sendo reforado a violn-
cia, a ilegalidade e a tendncia de se ignorar o sistema judicirio na resoluo de
conflitos. Mesmo tentativas explcitas de fazer cumprir o estado de direito, como
as do governador Franco Montoro (1983-1987), foram rechaadas pela popula-
o, que prefere mtodos privados, extralegais e violentos de lidar com a crimi-
nalidade ao invs do reconhecimento e do respeito aos direitos civis. Como resul-
tado, a violncia alta e o nmero de pessoas que morrem todo dia, tanto nas mos
de vigilantes particulares e justiceiros como nas da polcia, impressionante. Em
1991, apenas a polcia militar matou 1.140 pessoas no estado de So Paulo duran-
te "confrontos com criminosos"; em 1992, o nmero de mortes foi de 1.470. Este
ltimo nmero inclui 111 presos massacrados na Casa de Deteno, a maior pri-
so de So Paulo, em 2 de outubro. A maioria das mortes causadas por policiais
(87,5% em 1992) ocorreram na cidade de So Paulo e em sua regio metropolita-
na. Uma comparao revela o absurdo desses nmeros: em 1992, a polcia de Los
Angeles matou 25 civis em confrontos, e em Nova Y ork, a polcia matou 24 civis
(Chevigny 1995: 46, 67). Em 1992, as mortes provocadas pela polcia representa-
ram 20,63% de todos os homicdios na regio metropolitana de So Paulo, mas
apenas 1,2% do total em Nova York e 2,1% em Los Angeles.l
Em So Paulo, assim como em outras cidades brasileiras, a polcia parte do
problema da violncia. O uso de mtodos violentos, ilegais ou extralegais por par-
te da polcia antigo e amplamente documentado. Durante toda a histria repu-
blicana, o Estado encontrou maneiras tanto de legalizar formas de abuso e viola-
o de direitos, como de desenvolver atividades extralegais sem punio. A repres-
1
Valor relativo ao total de homicdios calculado pelo Registro Civil, que provavelmente inclui
as mortes causadas pela polcia. Se considerarmos o total de homicdios registrado pela polcia civil,
a porcentagem de mortes causadas pela polcia seria de 27,6%.
Cidade de Muros
135
so ao crime tem tido como alvo sobretudo as classes trabalhadoras e freqentemente
esteve ligada represso poltica: "a questo social" continua sendo "uma u ~
to de polcia". Conseqentemente, a populao, e especialmente os setores mais
pobres, tem sofrido continuamente vrias formas de violncia policial e injustia
legal, e aprendeu no apenas a desconfiar do sistema judicirio mas tambm a ter
medo da polcia.
A persistncia da violncia policial e seu crescimento recente foi possvel pelo
menos em parte por causa do apoio popular. Paradoxalmente, mesmo as camadas
trabalhadoras, que so as principais vtimas dessa violncia, apiam algumas de suas
formas. O comportamento da polcia parece estar em acordo com as concepes
da maioria, que no apenas acredita que a boa polcia dura (isto , violenta) e que
seus atos ilegais so aceitveis, como tambm reluta em apoiar as tentativas de al-
guns governantes de impor o estado de direito e o respeito aos direitos individuais.
Assim sendo, o apoio popular aos abusos da polcia sugere a existncia no de uma
simples disfuno institucional mas de um padro cultural muito difundido e in-
contestado que identifica a ordem e a autoridade ao uso da violncia. A deslegi-
timao dos direitos civis inerente a esse padro.
A histria da reduo do crime violento nas cidades europias ocidentais nos
ltimos dois sculos tambm a histria da consolidao da autoridade do Estado
e de suas instituies da ordem- a polcia e o sistema judicirio-, e do seu mo-
noplio do uso da fora. Esse processo coincide com profundas mudanas cultu-
rais no que diz respeito ao controle dos instintos e do corpo, ao disciplinamento
das populaes e expanso e legitimao da noo dos direitos individuais (Elias
1994 [1939]; Foucault 1977; Marshall1965 [1949]; Chesnais 1981). A sociedade
brasileira, apesar de ligada de maneiras complexas ao liberalismo europeu e a suas
instituies, tem uma histria especfica e diferente. Embora se possa falar de um
monoplio progressivo do uso da fora pelo Estado desde a Independncia, as for-
as policiais brasileiras nunca deixaram de usar a violncia e nunca pautaram seu
trabalho de controle da populao civil em termos de respeito aos direitos dos ci-
dados. Durante o Imprio e a vigncia do sistema escravista, as tentativas de cria-
o de uma ordem legal obviamente conviveram com a legitimidade das punies
corpreas inerentes escravido. Mesmo depois do fim da escravido e da amplia-
o legal da cidadania com a primeira constituio republicana, a ao violenta da
polcia contin4ou a interligar-se de maneiras complexas com o estado de direito e
com padres de dominao. Essa violncia teve apoio legal em alguns contextos e
foi ilegal em outros, mas na maior parte das vezes tem sido praticada com impuni-
dade e com significativa legitimidade, se por isso se entende o apoio do pblico.
Alm disso, essa violncia o lado complementar da deslegitimao do sistema
judicirio. Este ltimo desacreditado pela populao, que, em contextos de intenso
medo do crime, apia a contratao e o uso de seguranas particulares e de justi-
ceiros e cada vez mais transforma suas residncias em encla ves fortificados. Em
'
contextos como este, a possibilidade de que as instituies pblicas da ordem fa-
am a mediao legtima de conflitos e contenham a violncia drasticamente re-
duzida. O resultado um ciclo de vingana privada e ilegal que provoca a difuso
e a proliferao da violncia. Ao entrarem num ciclo da vingana em vez de agirem
136
Teresa Pires do Rio Caldeira
contra ela, as instituies da ordem apenas contribuem para o aumento da violn-
cia e para sua prpria deslegitimao.
Neste captulo, analiso a histria das polcias brasileiras e paulistas e seu pa-
dro de uso da violncia e de meios ilegais para controlar a populao. Comeo
estabelecendo uma referncia terica para a anlise das instituies da ordem no
Brasil. Critico algumas interpretaes do caso brasileiro como um exemplo de "mo-
dernidade incompleta", interpretaes que tomam como parmetro os padres
europeus e americano. Minha inteno no "desculpar" o padro brasileiro de
abuso e injustia ao remontar ao seu passado (colonial), mas demonstrar que avio-
lncia e o abuso so constitutivos das instituies da ordem brasileiras, da domi-
nao de classe, do padro de expanso dos direitos do cidado, e, portanto, da
democracia atual. Ao fazer isso, estabeleo um pano de fundo para outros argu-
mentos que desenvolvo nos captulos 5 e 9. No captulo 5, mostro que a prtica de
violncia pela polcia e a deslegitimao do sistema judicirio e dos direitos indivi-
duais coexistem com a consolidao da democracia poltica nos ltimos quinze anos
e constituem o carter disjuntivo da cidadania brasileira. No captulo 9, analiso a
questo dos direitos humanos, da pena de morte, e as concepes populares de
punio corprea e violenta. Argumento que o desrespeito aos direitos humanos
inseparvel de uma certa noo do corpo que chamo de "corpo incircunscrito".
UMA CRTICA NOO DE MODERNIDADE INCOMPLETA
A violncia e o desrespeito aos direitos pela polcia tm uma longa histria
no Brasil. Um padro constante de abuso da populao pelas foras policiais, so-
bretudo no caso das camadas trabalhadoras, tem-se repetido em governos liberais
ou conservadores, em perodos ditatoriais ou democrticos. Entretanto, pelo fato
de o nmero de abusos srios pela polcia no final dos anos 80 e comeo dos anos
90 ser especialmente alto, e tambm por terem acontecido durante urna consolida-
o democrtica em que o respeito aos direitos do cidado expandiu-se em vrias
outras reas (especialmente os direitos polticos), eles apresentam um desafio para
a anlise. Tendncias aparentemente contraditrias no representam um parado-
xo raro na histria brasileira. Na verdade, elas so to freqentes que h uma ten-
dncia de se pensar a sociedade brasileira como marcada por algumas fissuras pro-
fundas, articuladas em argumentos dualsticos, que opem os aspectos modernos e
retrgrados da sociedade.
2
Examino a seguir algumas das verses mais influentes
dessa idia, especialmente ao lidarem com a questo da violncia e das instituies
da ordem, para contrast-las com a minha interpretao sobre a democracia brasi-
leira atual e suas instituies violentas.
2
Essa tendncia pode ser rastreada ao longo de toda a histria das cincias sociais, tanto
brasileira quanto de brasilianistas. Ela algumas vezes expressa sob a idia de "dois Brasis": um
moderno, industrial e urbano, o outro retrgrado e rural.
Cidade de Muros 137
Na sua formulao mais geral, a interpretao dualista dos desenvolvimen-
tos paradoxais brasileiros sugere que o Brasil nunca se tornou uma sociedade to-
talmente moderna (um modelo identificado com a Europa ocidental ou com os
Estados Unidos). Em vez disso, o Brasil seria marcado pela ciso entre uma ordem
hierrquica (privada, informal, pessoal) e uma ordem igualitria (pblica, formal,
legal), que se relacionam de modo complexo para produzir a cultura brasileira. A
principal fonte contempornea dessa interpretao o trabalho de Roberto DaMatta
(1979, 1982, 1985).
3
Para ele, a ordem hierrquica a herana das relaes e ins-
tituies coloniais (isto , baseadas na escravido). Ela representaria a organizao
da vida social com base num cdigo moral holstico, no-escrito e implcito, em
vnculos pessoais e desiguais, dos quais os mais importantes seriam aqueles do
clientelismo e do favor. A ordem igualitria o modelo do liberalismo ocidental
(para DaMatta sobretudo americano), seus valores, procedimentos e suas institui-
es, especialmente o individualismo, a administrao pblica racional, o cdigo
constitucional explcito e escrito e o estado de direito, que- adicionaria - repre-
sentaria o paradigma de uma modernidade completa.
Tudo leva a crer, ento, que as relaes entre a nossa "moder-
nidade"- que se faz certamente dentro da gide da ideologia igualit-
ria e individualista -e a nossa moralidade (que parece hierarquizante,
complementar e "holstica") so complexas e tendem a operar num jogo
circular. Reforando-se o eixo da igualdade, nosso esqueleto hierar-
quizante no desaparece automaticamente, mas se refora e reage, in-
ventando e descobrindo novas formas de manter-se. (DaMatta 1979:156;
ver tambm DaMatta 1991:154-5)
A violncia um elemento crucial no arcabouo de DaMatta: ela um ins-
trumento de desigualdade e funciona como uma espcie de operador entre dois
cdigos sociais opostos, dois universos. "[] claro que a violncia no mundo brasi-
leiro mais um instrumento utilizado quando os outros meios de hierarquizar uma
dada situao falham irremediavelmente" (1979: 165). Descrita nestes termos, a
violncia algo extraordinrio, o ltimo recurso. Em um trabalho posterior centrado
diretamente na questo da violncia, DaMatta (1982) torna seu argumento mais
complexo. Ele ainda apresenta dois universos opostos, mas adiciona mais um: "o
outro mundo" das crenas religiosas. Alm disso, sugere que a violncia pode ser
usada no apenas pelos poderosos, mas tambm pelos "fracos". No entanto, man-
tm o argumento de que a violncia tem um papel de operador: ela sempre algo
que causa uma mudana de posies e uma transferncia entre um universo (hie-
rrquico) e outro (igualitrio). tambm o ltimo recurso, algo que as pessoas usam
quando perdem a pacincia e no tm outros meios de expressar sua exasperao
3
Uma interpretao anterior e semelhante aparece na provocativa anlise de Antonio Can-
dido (1970) do romance Memrias de um sargento de milcias. Ele prope que a sociedade brasi-
leira imperial foi marcada por uma dialtica de ordem e desordem.
138 Teresa Pires do Rio Caldeira
com o que consideram estar errado (no ser tratado "com o devido respeito" _
ou seja, com deferncia -no caso dos poderosos ou ser submetido a injustia ex-
cessiva no caso dos pobres). Quando usada pelo poderosos, sugere DaMatta, avio-
lncia afirma a hierarquia e desqualifica a igualdade; quando usada pelos pobres,
pode afirmar a igualdade (ao expor o carter excessivo da desigualdade), e nesse
sentido ela "individualiza" (1982: 35-8). Essa interpretao, que concebe a violn-
cia como um mediador e um operador de inverses, no revela, contudo, como a
violncia constitutiva de vrias dimenses da vida social, incluindo algumas das
mais legalistas e individualistas.
4
Na verdade, toda a histria da polcia brasileira indica claramente que avio-
lncia a norma institucional. O mesmo vale para a violncia que constitutiva do
universo domstico, o espancamento de crianas e de mulheres, um tipo de violn-
cia que DaMatta tende a desconsiderar, ao desenvolver a noo da casa como um
universo marcado por proteo (ver abaixo). A polcia brasileira tem usado avio-
lncia como seu padro regular e cotidiano de controle da populao, no como
uma exceo, e freqentemente o tem feito sob a proteo da lei. certamente ver-
dade que as elites tm sabido usar seus contatos e seu status para evitar maus-tra-
tos policiais- e nesse sentido seu comportamento coincide com a descrio de
DaMatta -, mas para as classes trabalhadoras, o tratamento violento tem sido
norma. Alm disso, para essas classes o cdigo de desigualdade pode no ser escri-
to, mas explcito. (s vezes tambm escrito: a legislao brasileira garante tra-
tamento preferencial pela polcia e pelo sistema carcerrio para qualquer "doutor",
ou seja, qualquer pessoa com grau universitrio). A violncia a linguagem regu-
lar da autoridade, tanto pblica quanto privada, isto , do Estado ou do chefe de
famlia. No pode, conseqentemente, ser vista como um operador entre cdigos
ou universos ou como uma fora usada apenas como ltimo recurso. Desse modo,
4
Linger (1992) tambm sugere um modelo dualista para explicar os significados da violn-
cia numa cidade brasileira, So Lus do Maranho. Ele contrape o carnaval, um "festival bquico",
briga, definida como uma confrontao ritualizada de rua que potencialmente letal. A violn-
cia ocorre em ambos, e para explic-la Linger invoca uma "teoria popular sobre o desabafo", ou
seja, sobre a expresso de frustraes, ressentimentos e irritaes. Segundo essa teoria, carnaval,
briga e desabafo supostamente formam um cultural cluster (cap. 11). O carnaval seria um "bom
desabafo" e representaria "o eu e a sociedade sob controle", enquanto a briga seria um "mau
desabafo" e representaria "o eu e a sociedade fora de controle" (1992: 225). Assim, o desabafo
o "operador" entre ordem e desordem, calma e violncia. Quando ele bem-sucedido, como num
carnaval organizado, produz communitas; quando mal-sucedido, leva a briga e morte. Linger
vai ao ponto de sugerir que o desabafo a "raison d'tre do Carnaval" (234 ), reduzindo, assim,
de maneira considervel, as muitas dimenses desse complexo festival social- uma reduo pro-
vavelmente necessria para equipar-lo briga, um evento social de significado cultural muitssi-
mo menor. A anlise de Linger restringe-se a uma teoria psicolgica popular sobre o controle da
agresso e no oferece nenhuma explicao sociolgica para a difuso da violncia. Assim, ele
reproduz a opinio de que a violncia tanto o extraordinrio quanto uma questo de autocontrole
individual. Essa viso impede o entendimento da violncia como um elemento constitutivo das
relaes de poder em interaes sociais cotidianas. Devo mencionar tambm que nenhuma das
pessoas que entrevistei sobre o aumento do crime e da violncia em So Paulo mencionou o desa-
bafo como parte dos seus esforos explicativos.
Cidade de Muros 139
a fim de entender as relaes sociais brasileiras e o papel que nelas desempenha a
violncia, necessrio abandonar a idia da violncia como algo extraordinrio e
a interpretao estrutural-dualista que v a ordem social como algo partido entre
um universo da hierarquia e vnculos pessoais e outro da igualdade e do direito. A
violncia constitutiva da ordem social, inclusive das instituies da ordem.
Thomas Holloway (1993) usa a interpretao de DaMatta na sua anlise da
histria da polcia do Rio de Janeiro de 1808 a 1889. Ele mostra como a constituio
e a institucionalizao progressiva das foras policiais estiveram intrinsecamente asso-
ciadas ao uso da violncia e da arbitrariedade, o que, no contexto do sistema es-
cravista, no constitui surpresa. Ele apresenta a histria da formao das foras poli-
ciais no Rio de Janeiro imperial como uma transio de formas privadas para for-
mas pblicas de controle da populao, uma transio, a seu ver, ainda incompleta.
Esse estudo examina o processo pelo qual as modernas instituies
policiais apoiaram e asseguraram a continuidade das tradicionais rela-
es sociais hierrquicas, estendendo-as ao espao pblico impessoal. A
contradio aparente um exemplo dos processos histricos incomple-
tos ou descontnuos que ajudam a explicar muitas das caractersticas do
Brasil contemporneo, inclusive a divergncia entre lei formal e as insti-
tuies ostensivamente encarregadas de faz-la cumprir e normas socio-
culturais que guiam o comportamento individual. (Holloway 1993: 6)
A noo implcita nesta citao, que ecoa a perspectiva de DaMatta, que
relaes sociais hierrquicas (por princpio desiguais) existem em contradio com
o espao pblico impessoal (idealmente igualitrio). Entretanto, possvel argumen-
tar que um espao pblico igualitrio no marcado por dominao e hierarquia
nunca existiu em lugar nenhum. At mesmo o suposto espao pblico impessoal
da Europa ocidental moderna e dos Estados Unidos , na verdade, estruturado com
base em relaes desiguais de classes, etnicidade e gnero. Nesse sentido, o Brasil
nem chega a ser peculiar. A combinao de princpios igualitrios com estruturas
de dominao e vrios tipos de desigualdades e hierarquias temrazes profundas
na modernidade ocidental e no constitui nenhum caso especial qe incompletude.
Esta , por exemplo, a concluso da anlise\qe Michel Foucault,m Vigiar e punir,
onde ele mostra que a reproduo da dominao e das desigualdades atravs das
disciplinas o complemento da legitimao do aparato jurdico da sociedade do
contrato (Foucault 1977: 218-28). Dumm (1987) chega mesma concluso para
os Estados Unidos. Alm disso, uma importante crtica feminista das teorias do
contrato demonstrou que o livre contrato entre iguais na realidade um contrato
entre homens que por princpio exclui e subordina as mulheres (por exemplo, Pa-
teman 1988). Assim, no h grande especificidade no fato de que na sociedade
brasileira a reproduo de padres de dominao e do que DaMatta chamaria de
ordem hierrquica tenha coexistido com a afirmao de princpios liberais iguali-
trios. O Brasil no o nico pas que incorporou os princpios liberais de igualda-
de na sua Constituio antes da abolio da escravido. Isso tambm aconteceu no
Estados Unidos. At o fim do sculo XIX, contudo, a elite nacional brasileira no
140
Teresa Pires do Rio Caldeira
esteve profundamente dividida no seu apoio escravido, e nunca envolveu-se em
uma guerra civil sobre esta questo. Essa unidade deu espao para que vrias insti-
tuies herdadas da escravido- inclusive o castigo fsico- persistissem basica-
mente incontestadas.
A questo central no se h formaes sociais com princpios e prticas
contraditrios, algo que poderamos provavelmente encontrar em qualquer socie-
dade, mas sim como devemos interpretar essas contradies. Uma das interpreta-
es mais influentes nas cincias sociais foi formulada por Roberto Schwarz (1977:
cap. 1). Ele sugere que atribuir princpios liberais e escravido a dois universos so-
ciais opostos significa insistir na artificialidade de princpios ocidentais (importa-
dos inapropriadamente) quando relacionados a prticas sociais existentes localmente.
Conseqentemente, essa realidade interpretada em termos de incompletude, des-
vio e descontinuidade. Alm disso, Schwarz sugere que as "idias fora do lugar"
do liberalismo tm sido instrumentais na organizao de prticas e relaes sociais
- foram, na verdade, constitutivas delas - e, portanto, no podem ser tratadas
na anlise social como contraditrias a elas.
Em resumo, as idias liberais no se podiam praticar, sendo ao
mesmo tempo indescartveis. Foram postas numa constelao especial,
uma constelao prtica, a qual formou sistema e no deixaria de afet-
las. Por isso, pouco ajuda insistir na sua clara falsidade. Mais interes-
sante acompanhar-lhes o movimento, de que ela, a falsidade, parte
verdadeira. Vimos o Brasil, bastio da escravatura, envergonhado diante
delas - as idias mais adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialis-
mo j vinha ordem do dia- e rancoroso, pois no serviam para nada.
Mas eram adotadas tambm com orgulho, de forma ornamental, como
prova de modernidade e distino. E naturalmente foram revolucion-
rias quando pesaram no Abolicionismo. Submetidas influncia do lu-
gar, sem perderem as pretenses de origem, gravitavam segundo uma
regra nova, cujas graas, desgraas, ambigidades e iluses eram tam-
bm singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vivi-
dos e praticados por todos como uma espcie de fatalidade, para os quais,
entretanto, no havia nome, pois a utilizao imprpria dos nomes era
a sua natureza. (Schwarz 1977: 22)
Uma crtica s explicaes dualistas de relaes sociais e instituies brasilei-
ras centra-se no fato de que elas tendem a pressupor ou propor distines ntidas e
dicotmicas na vida social, tais como pessoal e impessoal, privado e pblico, hie-
rrquico e igualitrio, casa e rua, princpios e prtica, legal e ilegal, lei formal e
aplicao da lei, e assim por diante.
5
Essas dicotomias foram distines que no
5
Todas essas oposies so encontradas em DaMatta (1979). Ver, por exemplo, o quadro
da p. 175 no qual ele lista as oposies entre as caractersticas do indivduo e da pessoa.
Cidade de Muros 141
existem na vida social, onde freqentemente ocorrem simultaneamente e sobrepem-
se umas s outras. Em outras palavras, essas dicotomias no captam o carter es-
sencialmente dinmico e com freqncia paradoxal das prticas sociais. Por exem-
plo, a oposio entre os universos estereotipados da casa e da rua tornou-se um lugar-
comum em anlises antropolgicas brasileiras e serve de ttulo a um dos livros de
DaMatta (1985). Ao associar a casa ao que privado, pessoal e protegido, e ao
identificar a rua com o pblico, impessoal e perigoso, essa interpretao transfor-
ma a violncia num problema de relacionamentos em pblico e freqentemente entre
pessoas de diferentes classes, obscurecendo a percepo de sua presena constitutiva
dos relacionamentos interpessoais e domsticos em todos os grupos sociais. Se qui-
sermos entender o apoio da populao (incluindo o das classes mais humildes) a
uma fora policial que mata e pena de morte, como tambm sua oposio aos
direitos humanos, temos que considerar a prtica disseminada e o apoio a inter-
venes violentas no corpo (o que inclui o espancamento de mulheres e crianas
dentro da casa que supostamente deveria proteg-las). Em outras palavras, prti-
cas de violncia dentro de casa e prticas pblicas de violncia no podem ser co-
locadas em oposio, e, o mais importante, no podem ser separadas de noes de
direitos individuais e do estado de direito. A violncia domstica constitutiva do
padro brasileiro de direitos individuais e no oposta a ele.
Outro exemplo de oposies equivocadas refere-se diretamente polcia e ao
sistema judicirio e sugerido por Holloway (1993), que contrape a lei formal e
o marco institucional, por um lado, prtica de abusos da polcia e aplicao da
lei por outro. De modo similar, essas oposies impedem o entendimento das ins-
tituies da ordem brasileiras e de seu papel na reproduo da violncia. De fato,
ambigidades, tratamentos diferenciados, regras e legislao excepcionais, privil-
gios, impunidade e legitimao de abusos so intrnsecos s instituies da ordem
e no externos a elas (ou seja, manifestaes de uma prtica desvirtuada). O pro-
blema no nem de princpios liberais versus uma prtica personalista e violenta,
nem de um marco constitucional versus uma prtica ilegal, mas sim de instituies
da ordem que so constitudas para funcionar com base em excees e abusos. Como
a histria da polcia e as polticas recentes de segurana pblica claramente indi-
cam, os limites entre legal e ilegal so instveis e mal definidos e mudam continua-
mente a fim de legalizar abusos anteriores e legitimar outros novos. Holston (1991b)
chegou a uma concluso semelhante ao analisar conflitos de terra. No Brasil, a lei
e os abusos so simultaneamente constitutivos das instituies da ordem. Tentar
cristalizar essas dimenses como pertencentes a universos opostos no notar o
carter intrinsecamente flexvel dos padres brasileiros de dominao e o fato de
que no Brasil o Estado nunca foi formal e "impessoal" e freqentemente no se
conforma s leis que cria.
As prticas de violncia e arbitrariedade, o tratamento desigual para pessoas
de grupos sociais diferentes, o desrespeito aos direitos e a impunidade daqueles
responsveis por essas prticas so constitutivos da polcia brasileira, em graus
variados, desde sua criao no comeo do sculo XIX at os dias atuais. Os abusos
de poder, a usurpao de funes do sistema judicirio, a tortura e o espancamen-
to de suspeitos, presos e trabalhadores em geral so prticas policiais profundamente
142 Teresa Pires do Rio Caldeira
enraizadas na histria brasileira. Essas prticas nem sempre foram ilegais, e fre-
qentemente foram exercidas com o apoio dos cidados. Em vrias ocasies, o
arbtrio autorizado da polcia foi bem amplo. Em outras, mudou-se a legislao para
acomodar prticas delinqentes existentes ou encobri-las. Comumente as leis de
exceo foram aprovadas durante ditaduras, mas muitas vezes sobreviveram du-
rante regimes democrticos, tornando-se parte de seu arcabouo constitucional. Os
parmetros legais do trabalho policial mudaram freqentemente, tornando inst-
veis os limites entre o legal e o ilegal, e criando condies para o prosseguimento
de uma rotina de abusos que pode ser descrita nos dias atuais como o modus operandi
da polcia (ver captulo 3 ). Em toda essa histria, o nico elemento sistematicamente
ausente a vontade poltica das autoridades estatais e dos cidados de controlar o
comportamento abusivo da polcia.
ORGANIZAO DAS FORAS POLICIAIS
A constituio das foras policiais no Rio de Janeiro no sculo XIX pode ser
vista como uma srie de experimentos de construo institucional, cristalizados em
legislao expedida entre 1809 e a Proclamao da Repblica, incluindo o Cdigo
Penal de 1830, revisado em 1832. Esses experimentos continuaram durante a Pri-
meira Repblica (1889-1930) e a era Vargas (1930-1945). A busca de um arcabouo
institucional para o trabalho da polcia, associada necessidade de adaptar as insti-
tuies policiais s vrias mudanas de regime poltico, explicam a constante reor-
ganizao e redefinio daquelas instituies desde o comeo do sculo XIX at 1969,
quando o regime militar mais uma vez reestruturou as foras policiais, dando-lhes
a forma que tm hoje. As mudanas contnuas no nome e no carter da fora poli-
cial dificultam a tarefa de entender sua histria.
6
Entretanto, alguns traos das insti-
tuies policiais persistiram ao longo do tempo. Os mais importantes deles so a
diviso da polcia desde 1831 entre uma fora civil e uma fora militar- que geral-
mente competem entre si num clima de hostilidade considervel- e, desde a metade
do sculo XIX, a preponderncia progressiva da fora militar na tarefa de patru-
lhamento de rua. Houve sempre uma polcia civil encarregada de tarefas judicirias
e administrativas e, em alguns momentos, de supervisionar o patrulhamento. Essa
fora foi comumente organizada sob a autoridade do chefe de polcia e vrios delega-
dos de distritos. O patrulhamento de rua tem cabido em geral a uma outra organiza-
o, geralmente militarizada, apesar de em alguns momentos ter estado sob a au-
toridade do chefe de polcia (como durante o Estado Novo). Em alguns perodos
6 Apesar de ~ foras policiais brasileiras terem sempre sido divididas, h uma tendncia na
literatura de falar sobre a polcia em geral, sem se especificar qual fora est sendo analisada. Isso
acontece, por exemplo, nos estudos de Bretas (1995), Cancelli (1993) e Lima (1986), que anali-
sam apenas a polcia civil, mas referem-se a ela como "a polcia" e no tornam necessariamente
claro que no esto considerando outros setores das instituies policiais. Fernandes (1974) ana-
lisa apenas a polcia militar em So Paulo.
Cidade de Muros 143
(por exemplo, entre 1926 e 1969 no estado de So Paulo), o patrulhamento foi divi-
dido em uma corporao militar (Fora Pblica) e uma corporao civil (Guarda Civil).
Os argumentos que apiam a militarizao da polcia so bem conhecidos:
uma polcia militarizada e hierrquica seria mais disciplinada, isolada da popula-
o, e teria um esprito de corpo, todas caractersticas vistas como necessrias para
evitar a corrupo e para controlar uma populao urbana tida como desordeira e
perigosa com uma fora policial composta de membros de sua prpria classe. A
primeira Polcia Militar foi organizada nos anos 1830 pelo Duque de Caxias. Mas
apesar de estruturada em termos militares, a polcia militar em suas vrias encar-
naes no fez diretamente parte do Exrcito, mas sempre constituiu uma organi-
zao paralela, freqentemente sob a autoridade civil. por isso que ela tem sido
caracterizada por alguns pesquisadores como uma instituio hbrida (por exem-
plo, Fernandes 1974).
Durante o Imprio (1822-1889), no apenas as novas instituies policiais eram
mal definidas, mas as fronteiras entre patrulhamento e tarefas judiciais (incluindo
punio) tambm eram vagas? Em geral, como mostra Holloway (1993), a polcia
tinha amplo poder de arbtrio, no apenas decidindo sobre detenes, mas tambm
determinando castigos "correcionais", como espancamento e priso, sem consulta
autoridade judiciria. Em alguns momentos essas prticas foram legais e por um
longo perodo no sculo XIX os policiais tiveram poderes judiciais locais (Holloway
1993:168; ver tambm Flory 1981).
A polcia exercia a violncia de diversas maneiras no sculo XIX. Legalmen-
te, ela detinha o poder de punir escravos. Holloway argumenta que o castigo fsico
de escravos era mais violento no Brasil que em outros pases, como os Estados Unidos
(Holloway 1993: 54). Em relao aos pobres em geral, a polcia usava espancamentos
e prises arbitrrias como forma tanto de intimidao como de castigo imediato
(correo). Mesmo depois que o poder judicirio foi subtrado da polcia em 1871,
a deteno correcional sem julgamento continuou a ser a regra (Holloway 1993:
284). Atravs das sucessivas reformas ao longo do sculo, a quantidade de violn-
cia- especialmente os aoites ordenados por tribunal e os aoites pblicos- parece
ter diminudo (Holloway 1993: 230). No entanto, claro que o relacionamento da
polcia (e tambm dos tribunais e da lei) com a populao foi sempre de represso
violenta e no de salvaguarda de direitos civis.
8
7
Uma definio ampla e flexvel da polcia caracterstica da formao da polcia em qual-
quer lugar, e no apenas no Brasil. Schwartz (1988: 4), por exemplo, argumenta que no sculo
XVIII a polcia francesa deveria ser entendida de uma maneira abrangente, associada idia de
governabilidade. Holloway (1993) fornece a principal anlise da histria das foras policiais du-
rante o Imprio.
8
A retrica usada para expressar a necessidade do uso da violncia tambm parece ter uma
surpreendente continuidade. Em 1888, um delegado citado como tendo dito: "Uma pessoa pre-
sa tem o direito de ser protegida da autoridade sob a qual ela est em custdia. Mas isso no sig-
nifica que [a polcia l no deva colocar em efeito toda a devida energia quando o respeito lei no
obtido por outros meios" (Holloway 1993: 245). Por mais de um sculo, "devida energia" tem
significado brutalidade.
144 Teresa Pires do Rio Caldeira
O padro de confronto, assdio e priso da populao no Rio de Janeiro do
sculo XIX revela claramente que o trabalho principal da polcia no era a repres-
so ao crime- que certamente existia-, mas o controle dos pobres. Holloway
(1993: 271) argumenta que:
a maioria esmagadora da atividade da polcia era a deteno e punio
sumria de pessoas cujo comportamento pblico violava normas ou a
ordem e a hierarquia tal como definidas por aqueles que criaram e man-
tinham a reao crescentemente elaborada e eficiente da polcia.
Escravos, estrangeiros e indigentes eram o principal alvo da polcia do final
do sculo XIX. Os comportamentos considerados como violao da ordem pbli-
ca incluam vrias formas corriqueiras de aglomerao pblica entre os pobres ur-
banos, como os encontros nas ruas e botecos, e especialmente os batuques de fun-
do de quintal. Considerava-se que barulho, msica, conversa em voz alta, exibies
pblicas de afeto e confrontos "violavam os padres de decncia prezados por aque-
les no comando" (Holloway 1993: 275). Uma das prticas mais perseguidas pela
polcia era a capoeira. Apesar de no constar dos cdigos penais de 1830 e 1832 e
de ter sido considerada ilegal apenas em 1890 (o Cdigo Republicano), a capoeira
serviu para justificar no apenas altos nmeros de detenes, mas tambm casti-
gos fsicos sumrios (Holloway 1993: 223-8). O mesmo vale para a prostituio,
que se tornou um crime apenas em 1940, mas foi sempre perseguida.
Na verdade, no apenas no Brasil, mas em cidades que se urbanizaram rapi-
damente de um modo geral, a polcia teve como atribuio fundamental controlar
a populao pobre, tida como perigosa.
9
No caso do Rio de Janeiro durante a Pri-
meira Repblica, Bretas (1995: cap. 2) mostra que a polcia estava principalmente
preocupada com os delitos de ordem pblica. As detenes por vadiagem atingi-
ram seu pico na primeira dcada do sculo XX. Como ocorrera durante o Imprio,
uma ofensa de definio vaga como essa era conveniente para o exerccio de todo
tipo de arbitrariedade sobre uma populao vista como temvel. Nos anos 20, ain-
da de acordo com Bretas, os delitos e acidentes de trnsito bem como a censura a
diverses entraram na lista das preocupaes da polcia.
Bris Fausto (1984) indica preocupaes semelhantes com a manuteno da
ordem para o caso de So Paulo. Em mdia, no perodo de 1892-1916, delitos como
vadiagem, desordem e embriaguez somaram 79,9% de todas as prises, enquanto
os crimes contra a propriedade somaram 11,7% e crimes contra a pessoa, 8,4%
(Fausto 1984: 46). Em outras palavras, em So Paulo a deteno tambm foi usa-
da como um instrumento para controlar a populao. Os negros, que constituam
9
Para discusses sobre as conexes entre o desenvolvimento de aparelhos repressivos do
Estado e as tentativas de controlar os pobres urbanos na Europa ocidental durante o incio da
industrializao, ver Schwartz (1988), Chevalier ([1958] 1973), Davis (1991) eJones (1982: cap-
tulos 5-7). Para uma anlise da contnua diminuio de prises por crimes sem vtimas nos Esta-
dos Unidos entre 1860 e 1920, ver Monkkonen (1981).
Cidade de Muros
145 f'
10% da populao no perodo de 1904-1916, compreendiam 28,5% dos presos
(1984: 52). Os estrangeiros representavam a maioria das pessoas detidas (uma mdia
de 55,5% no perodo de 1894-1916), mas eram tambm a maioria da populao
de So Paulo na poca. A anlise de Fausto demonstra que, apesar dos preconcei-
tos contra os imigrantes serem bem enraizados entre as autoridades de segurana
pblica nessa poca de imigrao intensa, o padro de criminalizao dos estran-
geiros era mais complexo que o dos negros e brasileiros pobres (1984: 59-69). Por
um lado, os estrangeiros eram menos visados por delitos de ordem pblica como
vadiagem (28,7% comparados a 71,3% para o perodo de 1904-1906) e mais fre-
qentemente indiciados por delitos graves (61,3% de todos os homicdios e 60,3%
de todos casos de furtos e roubos em 1880-1924) (1984: 44, 62). Por outro lado,
eles tinham melhores condies de se defender, tanto denunciando a discriminao
que sofriam em vrios jornais operrios, como organizando redes de apoio para
ajudar a pagar por sua defesa legal.
Mas existem tambm indicaes de que durante a Republica Velha as preo-
cupaes da elite paulista em relao polcia no se concentraram exclusivamen-
te no controle de uma populao potencialmente desordeira. Enquanto a polcia
civil continuava a lidar com o crime e o comportamento pblico dos trabalhado-
res, a elite traou outros planos para a polcia militar. So Paulo abrigava na poca
uma das principais oligarquias que disputavam o poder nacional, e uma das con-
quistas mais importantes da elite paulista foi estruturar a polcia provincial como
uma contrafora tanto em relao ao Exrcito controlado pelo governo federal, como
s foras policiais locais controladas por "coronis". A partir de 1868, alm da
polcia civil, So Paulo teve uma polcia provincial (o Corpo Policial Permanente).
No final do sculo XIX, havia tambm criado foras policiais separadas para o
interior e para a capital.
Em 1901, a provncia reorganizou suas foras policiais, unificando todo o
patrulhamento na Fora Pblica. A polcia civil judiciria continuou a existir o tempo
todo. Como Helosa Fernandes (1974) mostra, durante as trs dcadas seguintes,
as autoridades provinciais agiram para equipar, treinar, institucionalizar e profis-
sionalizar suas foras policiais "hbridas", que eram organizadas em termos mili-
tares mas controladas por autoridades civis. Como parte desse esforo, a provncia
trouxe uma misso francesa a So Paulo em 1906 para organizar a Fora Pblica.
Alm de controlar "desordens pblicas", especialmente os crescentes movimentos
sindicais das dcadas de 1910 e 1920, a Fora Pblica paulista transformou-se numa
importante fora local contra o governo federal, como provou a Revoluo de 1932,
na qual a Fora Pblica teve papel central. Em 1926, a provncia criou tambm a
Guarda Civil, encarregada do patrulhamento de ruas. Embora durante o Estado
Novo o governo federal tenha tentado controlar as foras policiais das provncias,
a estrutura dual das foras de patrulhamento (Fora Pblica e Guarda Civil) coe-
xistiu com a polcia civil em So Paulo at 1969, quando o governo militar unifi-
cou as duas foras de patrulhamento na Polcia Militar.
A era Vargas e especialmente o Estado Novo foram marcados pela tentativa
de colocar as foras estaduais sob o controle do governo federal. Alm disso, a polcia
assumiu um papel estratgico para impor os desejos da administrao federal e si-
146 Teresa Pires do Rio Caldeira
lenciar seus adversrios polticos. A polcia civil era a principal instituio encarre-
gada desses esforos e foi significativamente reforada, colocando-se com freqn-
cia acima do sistema judicirio. Muitos representantes do regime, como Francisco
Campos, ministro da Justia, defendiam publicamente o uso da violncia como forma
de manter a ordem (Cancelli 1993: 20). Outros expressaram na revista Cultura e
Poltica sua opinio de que a relao entre a justia e a polcia seria inevitavelmen-
te conflitiva e de que era melhor para o Estado confiar numa instituio "mais
mvel" e arbitrria como a polcia (Cancelli 1993: 23). A polcia e sua "flexibili-
dade" foram cruciais para a ditadura de Vargas.
Refletindo o papel estratgico da polcia para o regime, Vargas efetuou uma
completa reestruturao da polcia em mbito nacional. O departamento de pol-
cia do Distrito federal (a polcia civil do Rio de Janeiro) foi colocado sob jurisdi-
o direta do presidente e do ministro da Justia e Negcios Internos (1933). Em 2
de julho de 1934, o governo promulgou um decreto de 500 pginas (Decreto 24.531 ),
que detalhava as funes da polcia em todos os nveis e fornecia um modelo para
o patrulhamento das principais cidades. Este decreto estabeleceu as fundaes para
a federalizao e centralizao da polcia completadas depois de 1937 (Cancelli 1993:
60-4 ). Na prtica (ainda que no necessariamente na lei), todas as polcias estaduais
ficavam subordinadas diretamente polcia do Distrito federal (e no aos gover-
nos estaduais). De acordo com Cancelli, Filinto Mller, o poderoso chefe de pol-
cia do Distrito federal entre 1933 e 1942, tinha mais poder do que qualquer juiz e
mesmo do .que os ministros da Justia, e organizou todo o trabalho de represso,
tanto poltica quanto do crime. Diretamente sob a jurisdio do chefe de polcia
do Distrito federal estava a Delegacia Especial de Segurana Pblica e Social, que
depois de 1941 coordenou todos os servios de informao, inteligncia e censura
(1993: 54-5).
A ao repressiva da polcia durante o Estado Novo visou especialmente os
estrangeiros e supostos comunistas, freqentemente identificados entre si ( Cancelli
1993: 79-82). Para controlar os estrangeiros, o Estado brasileiro fez vrios acor-
dos de extradio com outras naes (1993: 82-92) e apoiou-se em delaes feitas
tanto por indivduos quanto por instituies, como os vrios sindicatos operrios
controlados pelo Ministrio do Trabalho (1993: 92-7; 140-58). Alm disso,
0
Es-
tado Novo tomou vrias medidas visando controlar a imigrao, promover a nacio-
nalizao e monitorar a vida dos estrangeiros no pas (1993: 121-59). Durante a
Segunda Guerra Mundial, residentes alemes, japoneses e judeus foram foco de re-
presso especial.
. . A prxima grande mudana na estrutura da polcia veio durante o regime
m1htar.
10
Este reorganizou as foras policiais, criando a verso atual da Polcia
Militar. O Decreto 667 de 1969 unificou todas as polcias estatais uniformizadas
10
Durante os anos da redemocratizao, de 1945 a 1964, a estrutura das foras policias
p a ~ e c e ter. permanecido a mesma pelo menos esse o caso em So Paulo, onde as foras poli-
Ciais contmuaram divididas entre a polcia civil, a Fora Pblica e a Guarda Civil. No entanto a
histria da polcia nesse perodo ainda est por ser escrita. '
Cidade de Muros
147
antes existentes (na poca elas eram duas em So Paulo, a Fora Pblica e a Guar-
da Civil) numa polcia militar estadual, a PM, subordinada ao Exrcito.l
1
Essa re-
forma foi considerada necessria como um meio de enfrentar a oposio ao regi-
me, sobretudo a da guerrilha. As mesmas tticas repressivas usadas contra adver-
srios polticos foram depois estendidas represso ao crime, tratado como "ini-
migo interno". Durante o regime militar, as principais instituies encarregadas da
represso foram a polcia militar estadual e vrias organizaes dentro do Exrci-
to. No entanto, a polcia civil desempenhou um papel complementar e esteve tam-
bm envolvida com a represso poltica. Tanto a polcia civil quanto a militar pra-
ticaram abusos de vrios tipos, desde desrespeitar a legislao e prender sem man-
dado judicial at tortura e morte de prisioneiros.l
2
Em 1983, depois das primeiras
eleies diretas para governadores, as polcias militares estaduais foram subordi-
nadas ao comandante-chefe do Exrcito da rea, que tinha poder para retirar a
polcia militar do controle do governador (Pinheiro 1983). Essa estrutura das for-
as policiais foi preservada em sua maior parte depois do fim do regime militar. A
Constituio democrtica de 1988 mantm uma diviso entre polcia civil (encar-
regada das tarefas administrativas e judicirias) e polcia militar (encarregada do
"patrulhamento uniformizado e ostensivo"), mas as subordina aos governadores e
a suas Secretarias de Segurana Pblica, e no ao Exrcito. A polcia militar tam-
bm foi definida como uma fora auxiliar e de reserva do Exrcito, que est encar-
regado da segurana nacional. Embora a Constituio de 1988 veja a segurana
pblica como uma responsabilidade dos estados, ela tambm define uma polcia
federal encarregada de defender os interesses da Unio, funcionando como sua polcia
judiciria, e encarregando-se de controlar o trfico de drogas e guardar as frontei-
ras. A Constituio de 1988 tambm define as tarefas das polcias federais rodo-
virias e ferrovirias.
UMA TRADIO DE TRANSGRESSES
A prtica de violncias e arbitrariedades pelas foras policiais tem se perpe-
tuado desde os tempos imperiais at nossos dias, independentemente do regime de
governo.l
3
Vale notar, contudo, que o recurso violncia como forma de controle
social no uma peculiaridade brasileira. O castigo fsico de escravos, criminosos
e suspeitos em geral foi a forma comum de punio legal at o final do Antigo Re-
11
Para uma anlise da histria da polcia militar e suas prticas a partir do regime militar,
ver Pinheiro (1982, 1983, e 1991 b), e Pinheiro et al. (1991 ).
12
Para um relatrio dos abusos durante o regime militar, ver Arquidiocese de So Paulo
(1986). Para uma anlise da concepo militar de segurana nacional que estruturou todo o apa-
rato repressivo, ver Stepan (1971 e 1988).
13
Do perodo colonial at o sculo XX, a violncia foi tambm comum entre os "homens
livres" e constitua um meio usual para a resoluo de conflitos interpessoais, como demonstra o
estudo de Franco (1974). Analiso a violncia interpessoal no captulo 9.
148 Teresa Pires do Rio Caldeira
gime e a criao das penitencirias modernas nos Estados Unidos e na Europa, ao
mesmo tempo que a tortura judicial era parte do processo jurdico. Uma vez aboli-
do legalmente, foi s por meio de srios esforos por parte do Estado, do sistema
de justia e dos cidados que o uso extralegal do castigo fsico e da tortura pela po-
lcia foi controlado. Esse controle sempre de alguma forma precrio e casos de
violncia policial vm a pblico com certa freqncia, mesmo onde o escrutnio da
ao policial intenso, como nos Estados Unidos. No Brasil, os esforos para con-
trolar a violncia da polcia tm sido dbeis, e o Estado tem sido incapaz de refrear
a rotina de abuso dos cidados depois que o castigo fsico deixou de figurar entre
as formas aceitveis de punio. De fato, com freqncia esses esforos de controle
simplesmente no existiram. Como resultado, contra a lei, ou s vezes amparada
por leis de exceo, a polcia continua a usar a brutalidade como meio de controle
social ainda hoje.
O aparato legal brasileiro que legitima o uso da fora pela polcia extenso e
no foi completamente eliminado por governos democrticos. No perodo colonial,
o castigo fsico era legal. A tortura judicial e vrios tipos de castigo fsico eram uma
parte importante do Cdigo Filipino que regeu a lei criminal em Portugal e suas
colnias (Holloway 1993: 29). Debates intensos sobre a natureza e a intensidade
do castigo fsico, sua ligao com a produo e a autoridade, e seu carter justo ou
excessivo, marcaram todo o perodo colonial, tanto em Portugal como no Brasil
(Lara 1988). O castigo fsico era tambm inerente escravido, e podia ser exerci-
do no s pelo Estado, mas tambm pelos proprietrios de escravos. Depois da
Independncia e durante o sculo XIX, houve uma tendncia dos agentes do Esta-
do de substiturem os senhores na administrao dos castigos fsicos aos escravos
(Holloway 1993). Como estes eram legalmente regulamentados, sua prtica do-
cumentada. H, por exemplo, registros razoveis de processos legais nos quais es-
cravos reclamavam de seus senhores e pediam ou para ser vendidos ou para com-
prar sua prpria liberdade com base nas queixas de castigos fsicos excessivos e
injustificados (Lara 1988, Chalhoub 1990).
Depois da abolio da escravatura,{1'888) e do final do Imprio (1889), v-
rias medidas legais ajudaram a perpetuar o uso da violncia pelas foras policiais.
Pinheiro e Sader (1985) descrevem muitas das leis de exceo adotadas durante a
Repblica Velha. Por exemplo, depois da revolta popular de 1924 em So Paulo,
criou-se a Delegacia de Ordem Poltica e Social (DOPS), em 1925, para manter uma
"vigilncia mais sria e permanente sobre as atividades que desintegram os princ-
pios tradicionais da Religio, do Pas e da Famlia" (citado por Pinheiro e Sader
1985: 80). Essa delegacia serviu como modelo para outras que se multiplicaram em
todos os Estados e sobreviveu por mais de sessenta anos, desempenhando um pa-
pel central na represso da oposio poltica durante o governo militar.
No de surpreender que a era Vargas tenha sido particularmente produtiva
no que se refere s leis de exceo, j que muitas delas foram necessrias para criar
e manter legalmente sua ditadura. As leis de exceo aprovadas em 1936, depois
da alegada rebelio comunista de 1935, estabeleceram que o Congresso poderia dar
ao presidente o poder de declarar a existncia de um estado de "grave comoo in-
terna", que suspenderia todas as garantias constitucionais. Esta era uma forma le-
Cidade de Muros 149
gal de dar a Vargas os poderes de um ditador. A pea mais importante da legisla-
o do perodo, no entanto, a Constituio de 1937, que inaugura o Estado Novo
ao abolir o Congresso e todas as formas de organizao e representao polticas.
Uma das instituies criadas em 1936 e depois tornada permanente pela Cons-
tituio de 1937 foi o Tribunal de Segurana Nacional. Funcionando com base em
regras de exceo, ele pode ser descrito como um sistema de justia paralelo con-
trolado diretamente pelo Executivo, que, dessa forma, atuava acima do Judicirio.
Esse tribunal especializava-se no julgamento rpido e sumrio de aes classifica-
das como "contrrias segurana nacional", uma categoria vaga que inclua prin-
cipalmente atividades polticas, mas tambm os chamados crimes contra a econo-
mia popular ou qualquer outro ato interpretado pelo governo como contrrio
ordem. Segundo Elizabeth Cancelli, os julgamentos no demoravam mais de 60 horas
e a presena fsica do ru, testemunhas e advogados no era obrigatria (1993: 103).
Esse tribunal no aceitava apelaes e o Tribunal Militar no tinha poder para anular
suas decises (1993: 104). O Tribunal de Segurana Nacional "julgou 6.988 pro-
cessos envolvendo 10 mil pessoas, condenando 4.099 delas com penalidades que
variavam de uma simples multa a 27 anos de priso" (Cancelli 1993: 104).
O regime militar que tomou o poder em 1964 tambm criou vrias leis de
exceo (os Atos Institucionais) e promulgou uma nova Constituio em 1967. As
regras que regem a atual polcia militar incluem algumas leis de exceo que a co-
locam acima do sistema civil de justia. O decreto-lei 1.001 de 1969- ainda em
vigor- estabelece que todos os crimes cometidos por corporaes militares devem
ser considerados crimes militares e julgados pela Justia Militar, mesmo que tenham
sido cometidos em tempos de paz e no cumprimento de funes civis. Em outras
palavras, desde 1969 houve uma justia especial para a polcia militar. Essa exce-
o tornou-se norma com a Constituio de 1988. Escrita sob um regime demo-
crtico e por uma Assemblia Constitucional eleita livremente, a Constituio de
1988 manteve a polcia militar como uma instituio encarregada do "policiamen-
to ostensivo e da preservao da ordem pblica" (art. 144, 5) e a Justia Militar
como a jurisdio para os crimes cometidos por policiais militares. Em maio de 1996,
depois de um massacre pela polcia militar no Par, o presidente Fernando Henrique
Cardoso apoiou um projeto que tramitava no Congresso h longo tempo propon-
do que os policiais militares fossem julgados por tribunais civis. O fato de que esse
projeto no foi aprovado imediatamente pelo Congresso indica o apoio que a cor-
porao militar ainda detm, apesar de suas aes violentas. Ele foi finalmente
aprovado em agosto de 1997 (Lei 9.299), mas sob uma forma mais branda. A nova
lei transfere para os tribunais comuns a jurisdio dos casos de homicdios dolosos
que envolvam policiais militares e soldados. No entanto, todos os outros crimes,
inclusive homicdio culposo e leso corporal dolosa, permanecem no sistema mili-
tar. Alm disso, a responsabilidade de caracterizar um homicdio como doloso ou
culposo ainda dos investigadores da polcia militar.
O Centro Santo Dias, um grupo de defesa dos direitos humanos associado
Arquidiocese de So Paulo, analisou 380 julgamentos da Justia Militar de 1977 a
1983. O grupo pretendia analisar todos os julgamentos de policiais, mas teve seu
acesso aos documentos proibido. Para o perodo estudado, descobriu-se que entre
150 Teresa Pires do Rio Caldeira
82 policiais acusados de homicdio doloso, apenas 14 foram considerados culpa-
dos ( 15,9%). Entre 44 policiais acusados de crimes contra a propriedade, 14 fo-
ram considerados culpados (31,8%). Finalmente, entre 53 policiais julgados por
questes de disciplina, 28 foram considerados culpados (52,8%). Isso indica que a
Justia Militar rigorosa quando se trata de disciplina interna, mas no to dura
quando o problema o assassinato de civis.
A impunidade intrinsecamente associada ao uso excessivo da fora. Como
Chevigny (1995) demonstrou em sua anlise de abusos policiais em seis cidades das
Amricas, a diminuio do abuso est diretamente relacionada ao reforo dos sis-
temas de accountability. Quando os policiais no so responsabilizados e punidos
por comportamentos extralegais ou ilegais, a violncia e os abusos continuam a
crescer. Analisando a polcia civil na Repblica Velha, Eretas sugeriu que seus abusos
podem ser explicados pela falta de interesse por parte das autoridades pblicas em
controlar a polcia, o que permitiu a criao de um "sistema de polcia muito inde-
pendente, virtualmente sem controle nem accountability" (1995: 246). Ele acres-
centa que, embora tenham havido algumas tentativas de controle durante a Rep-
blica Velha, elas nunca foram eficazes. Eretas analisou apenas a polcia civil do Rio
de Janeiro e suas concluses ao que parece no podem ser generalizadas. Fernandes
(1974) mostra que, durante o mesmo perodo, a Fora Pblica de So Paulo estava
sob um controle estreito da oligarquia local e da Misso Francesa encarregada de
trein-la. Podemos especular, portanto, que no existia nessa poca uma poltica
unificada de segurana pblica e que o controle das foras policiais era em larga
escala moldado por interesses polticos locais. Alm disso, muitas vezes um con-
trole mais rgido das foras policiais no significa menos abuso, mas sim o contr-
rio. Ditaduras corno a de Vargas e a dos militares colocaram a polcia sob um con-
trole mais firme. No entanto, como agir de forma abusiva fazia parte das tarefas
de represso, esses regimes introduziram leis de exceo e garantias de impunidade
para proteger aqueles que perpetravam abusos de interesse do regime. Accountability
pode existir nesse contexto, mas ela certamente tem significados diferentes sob di-
taduras ou sob regimes democrticos.
Num contexto democrtico, as leis de exceo no tm sentido e existem apenas
em aberta contradio com outros princpios constitucionais. A exceo legal que
coloca os atuais policiais militares fora do sistema civil de accountability, alm de
enfraquecer o estado de direito, estende a impunidade e a violncia da polcia mili-
tar para com a populao civil e indiretamente lhes assegura uma ampla latitude
para a arbitrariedade. Assim, as atuais instituies policiais, embora sob um regi-
me democrtico, permitem que a arbitrariedade e a violncia persistam. Alm dis-
so, criam um espao no qual os direitos podem ser diretamente contestados, como
por exemplo quando os direitos humanos so identificados a "privilgios de ban-
didos" (ver c<:ptulo 9).
14
14
Durante a administrao Cardoso no governo federal e durante os governos de Montoro
e Covas no estado de So Paulo, importantes medidas foram tomadas para fazer valer o estado de
direito. Eu as discuto no prximo captulo.
Cidade de Muros
151
As medidas legais de exceo que legitimaram a prtica da violncia e a arbi-
trariedade pela polcia e pelo Estado tambm funcionam como uma cobertura para
muitas outras prticas cotidianas e ilegais de abusos que constituram o modus
operandi da polcia durante toda a histria republicana.
Esses abusos tm sido documentados desde os primeiros anos do sculo XX
em jornais da classe trabalhadora, especialmente aqueles de orientao anarquis-
ta, mas tambm em jornais como O Estado de S. Paulo. Como Pinheiro (1981)
mostra em detalhes, desde o final do sculo XIX a imprensa e diplomatas estran-
geiros tm denunciado constantemente o uso excessivo da fora por parte da pol-
cia contra suspeitos, e especialmente contra trabalhadores em greve (ver tambm
Pinheiro 1981, 1991a; e Pinheiro e Sader 1985). A violncia foi usada para contro-
lar todas as revoltas populares do perodo. A represso s classes trabalhadoras
incluiu no apenas tortura e espancamento, mas tambm deteno ilegal, recusa de
julgamento, deportao em massa de trabalhadores estrangeiros e desterro de bra-
sileiros depois que eles comearam a ser numericamente importantes em revoltas
na virada do sculo.15
Pinheiro mostra (1981, 1991a; Pinheiro e Sader 1985) que a represso ao cri-
me tem estado entrelaada com a represso de revoltas populares, greves e movimen-
tos de oposio poltica. Nesse sentido, o Estado brasileiro e a polcia nunca fizeram
uma distino entre classes trabalhadoras, oposio poltica e classes perigosas. Alm
disso, essa longa histria de ilegalidade constitui uma longa tradio de impunidade.
Apesar da profuso de inquritos e sindicncias por parte do pr-
prio Estado, esses casos- maus-tratos, tortura, desrespeito pela pessoa
do acusado - se repetem monotonamente, jamais se chegando a um
resultado concreto. A investigao- s vezes conduzida pelos prprios
rgos acusados - tornou-se no Brasil um ritual de dissimulao que
de imediato serve para aplacar a revolta diante de algum excesso, mas
que jamais tem condies de interromper uma prtica que se confunde
com o prprio poder. Seria iluso esperar que o prprio Estado, caso
no se alterem profundamente as bases da organizao poltica, tenha
condies de interromper a prtica da violncia ilegtima que colabora
eficazmente para a sua sustentao. (Pinheiro 1981: 54)
15
A Revolta da Chibata simboliza esse tipo de abusos. Em 1910, marinheiros no Rio de
Janeiro se revoltaram contra o uso de chicotes em sua punio. Sua revolta teve o apoio das clas-
ses trabalhadoras do Rio. Depois de alguns dias, os marinheiros se renderam em troca de anistia.
Apesar disso, foram presos com correntes de ferro num barco e mandados para a Amaznia. Ao
mesmo tempo, a polcia aproveitou a oportunidade- como ela costumava fazer em casos de re-
volta- para "limpar" a cidade de todas as pessoas consideradas inconvenientes, e mandou para
a Amaznia pelo menos 292 presos comuns classificados como vagabundos: 105 marinheiros, 44
mulheres prisioneiras e 50 recrutas do exrcito (Pinheiro 1981: 42). Em outras palavras, uma re-
volta contra o castigo fsico no s acabou punindo aqueles que haviam recebido a promessa de
anistia, como tambm serviu de pretexto para uma "limpeza" totalmente ilegal na priso da cida-
de. Os marinheiros e presos foram mandados para trabalhar na Amaznia na instalao de cabos
de telex com o marechal Rondon.
152 Teresa Pires do Rio Caldeira
Assim sendo, os abusos contra presos polticos que ocorreram durante as di-
taduras (tanto de Vargas quanto do regime militar) no constituem novidade. Na
verdade, eles indicam como essas prticas podem ser tomadas como simples roti-
na. Alguns dos melhores registros dos abusos policiais do governo Vargas so os
livros e memrias escritos por ex-presos polticos, muitos deles comunistas, como
o famoso Memrias do crcere, de Graciliano Ramos. No entanto, pelo fato de as
prticas ilegais constiturem a norma e nem sempre serem percebidas como irregu-
laridades, uma outra fonte de documentao o prprio sistema judicirio. Em seus
registros h muitas peties feitas por presos denunciando torturas e os procedi-
mentos irregulares por meio dos quais eram detidos e mantidos em prises sem
processos formais ou alm dos limites de suas sentenas. Segundo Cancelli, a maioria
dos presos em situaes ilegais durante o Estado Novo estavam sob a autoridade
do chefe de polcia, que podia decidir seus destinos independentemente das deci-
ses do judicirio (1993: 206-15).
Exatamente o mesmo tipo de prticas ilegais continuou sob o regime militar
para os presos polticos e sob o regime democrtico para aqueles acusados de se-
rem criminosos. Durante os anos do regime militar, vrios processos judiciais con-
tra presos polticos continham descries de tortura, abusos fsicos e procedimen-
tos ilegais cometidos pelo Estado e por seus representantes. Como os registros fo-
ram muito bem guardados pela Justia Militar, a equipe que elaborou o livro Bra-
sil nunca mais pde us -los para documentar violaes dos direitos humanos no
Brasil. Em documentos de julgamentos da Justia Militar, esse grupo secretamente
obteve e analisou descries de torturas, os lugares em que elas ocorreram e os nomes
de 441 torturadores, assim como indicaes de procedimentos judiciais ilegais re-
lacionados a deteno, encarceramento e julgamento. De um total de 7.367 rus
em julgamentos polticos durante o regime militar, 1.918 declararam perante a justia
que tinham sido torturados, 81% durante o perodo de 1969-1974. Muitos outros
que foram torturados no o declararam em juzo (Arquidiocese de So Paulo 1985:
87-8). Alm disso, a equipe do Brasil nunca mais pde mostrar que, de 1964 a 1979,
pelo menos 144 pessoas foram mortas por razes polticas no Brasil e outras 125
desapareceram.
16
Em suma, os casos de abuso cometidos pelo Estado chegaram ao
conhecimento do sistema judicirio e foram registrados, mas isso no levou a uma
reao ou investigao. Os relatos sobre como esses registros foram obtidos durante
depoimentos do a impresso de que os juzes agiam como se nada de anormal
16
O projeto Brasil nunca mais, secretamente realizado pela Arquidiocese de So Paulo, fo-
tocopiou e analisou os documentos completos do tribunal militar correspondentes a 707 julga-
mentos realizados de 1964 a 1979 e registros fragmentados de dzias de outros julgamentos. Os
documentos esto agora em vrios arquivos pelo mundo. Um resumo das concluses, do qual es-
tou citando, foi publicado no Brasil em 1985. Uma verso editada desse resumo foi publicada em
ingls como Torture in Brazil (1986). As mortes e desaparecimentos mencionados pelo BNM so
apenas aqueles documentados, seja direta, seja indiretamente, nos julgamentos, e no incluem v-
timas de abusos que nunca estiveram ligados a julgamentos, como, por exemplo, nos casos de vio-
lncia rural. Sigaud (1987: 7-8) calcula que, entre 1964 e 1986, 916 camponeses foram mortos
por razes polticas, mas apenas 93 dessas mortes foram perpetradas por representantes do Estado.
Cidade de Muros 153
estivesse sendo relatado (Weschler 1990: cap. 1). Em suma, no h nenhuma con-
tradio aqui entre um sistema judicirio que opera de acordo com certas regras e
um aparato repressivo funcionando mal e operando de acordo com outras. Juntos,
eles constituam uma ordem na qual o respeito pelos direitos dos cidados no ti-
nha lugar.
Um outro tipo de abuso durante o regime militar foi praticado pelo Esqua-
dro da Morte e relatado por Hlio Bicudo (1976; ver tambm 1988), o procura-
dor-geral encarregado de investigar suas atividades. O Esquadro da Morte foi criado
em So Paulo no final dos anos 60 por integrantes da polcia civil, sob presso de
membros da recm-criada polcia militar, para melhorar sua imagem e mostrar um
bom desempenho na luta contra o crime. Para seus membros, isso significava "sim-
plesmente eliminar os criminosos, usufruindo do apoio da cpula da instituio e
mesmo do governador do Estado" (Bicudo 1976: 24-5). Um dos lderes do Esqua-
dro da Morte foi o chefe da polcia civil Srgio Fernandes Paranhos Fleury, tam-
bm responsvel por prises polticas, tortura e execues (Arquidiocese de So Paulo
1985: 74). Tanto Fleury, chefe da polcia por mais de uma dcada, como os inte-
grantes do Esquadro da Morte estavam envolvidos com o trfico de drogas (Bicudo
1976, 1988). As atividades do Esquadro da Morte cresceram em 1970, depois que
um policial foi morto. Segundo Bicudo (1976: 27), integrantes do Esquadro pro-
meteram matar 1 O suspeitos para cada policial morto e no hesitaram em tirar presos
dos crceres para cumprir esse propsito. No se sabe quantas pessoas foram mor-
tas pelo Esquadro da Morte (as estimativas da mdia variam de algumas centenas
at 2 mil). No entanto, como seus integrantes eram da polcia civil, alguns foram
levados a julgamento pelo procurador-geral do Estado. Embora todo tipo de ame-
aas e intimidaes tenha sido usado contra os juzes, e apesar de alguns deles, como
Hlio Bicudo, terem sido forados a sair do caso, o judicirio conseguiu conter as
atividades do Esquadro.
Vrias prticas de abuso continuam at hoje. A Constituio de 1988 traz
dispositivos destinados a prevenir algumas das piores arbitrariedades e abusos pra-
ticados pela polcia. Ela estabeleceu que a tortura um crime inafianvel e criou
vrios procedimentos para impedir prises arbitrrias. Em 1992, o Brasil ratificou
a Conveno das Naes Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Casti-
gos Cruis, Desumanos ou Degradantes. No entanto, essas disposies no s so
desrespeitadas como, o que mais grave, encontram ampla oposio por parte da
populao e de certos grupos polticos sem falar da prpria polcia (ver captulo
9). Eles argumentam que os novos dispositivos fomentam o crime porque atrapa-
lham o trabalho da polcia e em ltima instncia servem apenas para proteger os
bandidos. Isso mostra como no Brasil a ilegalidade e a exceo so a norma, e como
o padro de abusos da polcia ainda constituiu o parmetro do bom trabalho poli-
cial para uma parte considervel da populao. S ocasionalmente a arbitrarieda-
de da polcia criticada pela populao. Foi o que aconteceu, por exemplo, no fi-
nal do regime militar, quando o comportamento ilegal da polcia e do Estado gera-
ram um importante movimento de oposio. As classes mdias - cujos membros
tinham sido vtimas de torturas e prises ilegais- organizaram um movimento exi-
gindo anistia poltica e defendendo os direitos humanos. Mas o apoio popular
154 Teresa Pires do Rio Caldeira
defesa dos direitos humanos desapareceu quando as vtimas do abuso no eram mais
nem da classe mdia nem presos polticos.
Voltando questo da "modernidade incompleta", gostaria de acrescentar
duas observaes. Primeiro, a histria das instituies da ordem no Brasil sugere
que diferentes naes podem interagir com os mesmos elementos do que se pode-
ria chamar modernidade e produzir verses muito diferentes dela. Em vez de olhar
para a Europa ocidental e para os Estados Unidos como os modelos da constitui-
o de instituies modernas completas, portanto, mais interessante conceber o
estado de direito, o liberalismo e a cidadania como parte de um amplo repertrio
do qual, ao longo dos ltimos sculos, vrias naes emprestaram elementos e trans-
formaram-nos em termos de suas prprias prticas sociais. No h um modelo nico
de modernidade em relao ao qual os pases possam ser medidos e qualquer com-
pletude, determinada. H, contudo, vrias verses da modernidade, e o Brasil cer-
tamente incorpora uma delas.
Segundo, o padro de arbitrariedades e injustia especfico do Brasil tem tido
conseqncias para suas instituies da ordem. Como as fronteiras entre o legal e
o ilegal so instveis e como os abusos policiais so cometidos impunemente, no
s a polcia temida, mas tambm o sistema judicirio deslegitimado e percebido
como recurso no confivel para a justa resoluo de conflitos. Esse padro de abusos
e deslegitimao tem razes profundas na sociedade brasileira e no tem sido ime-
diatamente modificado pela adoo de um sistema poltico democrtico. Como
mostro no prximo captulo, a combinao de uma polcia violenta com um siste-
ma de justia deslegitimado fatal para o controle da violncia civil em qualquer
situao, mesmo numa democracia. Na verdade, ela s ajuda a violncia a prolife-
rar, colocando em xeque as instituies democrticas.
Cidade de Muros 155
5.
VIOLNCIA POLICIAL E DEMOCRACIA
Embora a violncia e o desrespeito de direitos pela polcia tenham uma longa
histria no Brasil, os abusos dos anos 80 e especialmente 90 em So Paulo so par-
ticularmente indignantes, por duas razes. Primeiro, por causa de seus nmeros
elevados e da sua incorporao como algo rotineiro no cotidiano da cidade. Segundo,
porque os abusos persistiram durante a consolidao democrtica e medida que
o respeito a outros direitos da cidadania, especialmente os direitos polticos, expan-
diu-se. Experincias do passado e tradio no explicam o quadro atual de violaes.
Ao contrrio, a histria recente dos abusos da polcia demonstra que, apesar de eles
serem constantes e contarem com significativo apoio popular, tambm esto asso-
ciados a polticas de segurana pblica e a sistemas de accountability. Se os abusos
aumentaram durante o perodo democrtico, isso se deve mais a decises adminis-
trativas e opes polticas do que a um padro intratvel herdado do passado. As-
sim, importante investigar como as poltics que fomentam os abusos (ou aque-
las que tentam control-los) foram formuladas, como elas manipularam os medos
e expectativas da populao e foram influenciadas por eles, e por que foram for-
muladas na poca em que o foram. Essas investigaes indicam o carter disjuntivo
da democratizao brasileira (Holston e Caldeira 1998) e mostram como os direi-
tos civis so no apenas o aspecto mais deslegitimizado da cidadania brasileira, mas
tambm a arena na qual a democracia publicamente confrontada e desacredita-
da.1 Nesse sentido, a explorao do medo do crime torna-se em certos momentos
uma arma poltica.
A questo da polcia e seu padro de violncia esteve no centro das discus-
ses polticas na dcada passada em So Paulo. Alm do crime ser uma das maio-
res preocupaes da populao, o controle do crime transformou-se num dos prin-
cipais temas para a expresso de discordncia poltica aps o incio da democrati-
zao. Franco Montoro, o primeiro governador eleito aps o regime militar, tomou
posse com um programa que previa a reforma da polcia e o respeito aos direitos
humanos. Ele foi governador entre 1983 e 1987, ou seja, exatamente quando o crime
cresceu de maneira drstica. Sua administrao enfrentou uma forte oposio no
s dentro da polcia e entre os polticos de direita, mas por parte do pblico em geral.
Apesar de sofrer todos os tipos de oposio, a administrao de Montoro tomou
importantes medidas para o controle da violncia policial. No entanto, seus suces-
sores Orestes Qurcia (1987-1991) e Lus Antnio Fleury (1991-1995), conside-
1
Para uma discusso mais ampla da disjuno entre o respeito aos direitos polticos e sociais
e o desrespeito aos direitos individuais no Brasil contemporneo, ver Holston e Caldeira 1998.
Cidade de Muros 157
rando o apoio popular a uma polcia dura e violenta, retornaram ao velho esquema.
Montoro conseguiu comear a controlar os grupos mais violentos da polcia (como
a Rota); seus sucessores os trouxeram de volta. Eles no apenas reverteram as polti-
cas de Montoro, como tambm ajudaram a manipular o medo do crime para desqua-
lificar a questo dos direitos humanos e para dar polcia mais espao para atuar
ilegalmente. Como resultado, as mortes pela polcia aumentaram ano aps ano,
alcanando um nmero surpreendente de quase 1.5 00 em 1992. O massacre de 111
presos na Casa de Deteno naquele ano simboliza o pice dessa poltica. Depois
disso, o prprio Fleury teve de adotar medidas para moderar as arbitrariedades.
Mrio Covas, que assumiu o poder em 1995 e foi reeleito em 1998, est mais uma
vez adotando polticas destinadas a controlar a violncia policial e teve de enfrentar
uma forte resistncia das foras policiais que provocaram greves e motins em 1997.
Este captulo desenvolve-se da seguinte maneira. Primeiro, discuto dados so-
bre a prtica da tortura nos distritos policiais e dados que mostram um nmero
surpreendente e crescente de civis mortos por policiais militares nos ltimos quin-
ze anos. Segundo, mostro que essas mortes, assim como a tortura nos distritos
policiais, associam-se a polticas de segurana pblica, e discuto as diferentes pol-
ticas que tm sido adotadas desde o comeo do regime democrtico. Terceiro, ana-
liso o massacre na Casa de Deteno em 1992 como smbolo dos resultados de uma
poltica pblica que apia uma polcia violenta. Quarto, apresento as opinies da
populao sobre as foras policiais expressas em entrevistas. Quinto, considero o
aumento significativo da indstria de segurana privada e sua relao com as for-
as policiais. Finalmente, argumento que a combinao da deslegitimao das ins-
tituies da ordem, crescimento do crime violento, adoo de meios privados para
lidar com a violncia e o crime, e violncia policial, geram um ciclo em que avio-
lncia continuamente reproduzida em vez de ser controlada. A natureza violenta
das foras policiais apenas contribui para esse ciclo.
A EscALADA DA VIOLNCIA PoLICIAL
O Brasil hoje uma democracia em que os direitos polticos e a liberdade de
organizao e de expresso so amplamente garantidos. Assim sendo, os principais
alvos da violncia policial no so adversrios polticos, mas sim os "suspeitos"
(supostos criminosos), em sua maioria pobres e desproporcionalmente negros.2 Em
parte por causa do apoio popular a essa violncia, as violaes dos direitos huma-
nos so uma questo pblica, exibidas diariamente pelos meios de comunicao de
massa, livres de censura. No entanto, essa informao no se tem feito acompanhar
2
Nesse sentido, a situao atual totalmente diferente daquela dos regimes militares no Cone
Sul dos anos 60 aos anos 80 e dos conflitos polticos na Amrica Central nas dcadas de 70 e 80
?odem ser como situaes de grande violncia poltica. Tem havido represso e
leneta contra parttctpantes de movimentos sociais, especialmente em reas rurais (contra o Movi-
mento dos Sem-Terra, por exemplo), mas nada comparvel ao que aconteceu durante os regimes
militares na Amrica Latina.
158 Teresa Pires do Rio Caldeira
de reaes de protesto. O que pior, muitas vezes os abusos so apoiados por uma
populao que classifica direitos humanos como "privilgios de bandidos".
Recentemente, as prticas de tortura e execues sumrias pela polcia, assim
como as condies degradantes das prises e os problemas com o sistema judici-
rio, tm sido amplamente documentados por instituies que defendem os direitos
humanos, como a Anistia Internacional (1988, 1990), o Americas Watch Committee
(1987, 1989, 1991a, 1991b, 1993 e Human Rights Watch/Americas 1994 e 1997),
a Comisso de Justia e Paz da Arquidiocese de So Paulo, o Centro Santo Dias, a
Comisso Teotnio Vilela (1986), o Ncleo de Estudos da Violncia da USP, a OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil) e cientistas sociais brasileiros. A mdia no ape-
nas informa quase todo dia a respeito de vrios tipos de abusos como tambm j
transmitiu cenas de tortura (por exemplo, em 8 de junho de 1989); a execuo su-
mria de 19 trabalhadores rurais do Movimento Sem Terra pela polcia militar do
Par (17 de abril de 1996); e cenas de extorso e abuso na Favela Naval em Diadema
'
na regio metropolitana de So Paulo (inclusive uma execuo), e na Cidade de Deus,
no Rio de Janeiro (maro de 1997).
Como resumiu um dos relatrios do Americas Watch sobre a violncia policial
em So Paulo e Rio, em geral "a polcia militar, uma fora de patrulha uniformiza-
da, responsvel por execues sumrias, e a polcia civil, encarregada da investiga-
o, responsvel por tortura" (1987: 6). No que se refere tortura, esse achado
confirmado por vrios estudos, inclusive aqueles de Lima (1986) e Mingardi (1992),
que apresentam a tortura como quase uma rotina da polcia civil no tratamento de
suspeitos e um mtodo ligado corrupo. De acordo com o Americas Watch:
A tortura de suspeitos comuns, no apenas por espancamento, mas
tambm por mtodos relativamente sofisticados, endmica nos distri-
tos policiais de So Paulo e Rio de Janeiro. H evidncia persuasiva de
que ela tambm predominante em outros lugares do Brasil. (1987: 9)
Apesar de existir documentao, a instaurao de processos contra policiais
envolvidos em tortura e outros crimes no tem sido muito comum. Alm disso, a in-
formao sobre tais processos no estado de So Paulo est disponvel apenas para o
perodo ps-1983, quando o primeiro governador eleito depois da instalao do regime
militar tomou posse. Dados do juiz corregedor da polcia civil do estado de So Paulo
indicam que, entre 1983 e julho de 1987, houve investigao de 259 casos de tortura
(isso no representa o nmero total de casos, mas apenas aqueles cujos documentos
esto disponveis); 362 policiais foram absolvidos e 218 foram condenados (Americas
Watch 1987: 36). De acordo com Pinheiro (1991a: 53), de 1981 a 1989, houve 580
policiais envolvidos em julgamentos e 362 foram absolvidos. Membros do grupo de
direitos humanos Centro Santo Dias declararam em uma entrevista que muitos dos
casos de que tomaram conhecimento nunca chegaram ao sistema judicirio, ou porque
a vtima e a famlia estavam com medo, ou porque era difcil obter provas.
Depois de 1988, a incidncia de tortura nas delegacias de So Paulo parece
ter cado (Chevigny 1995: 171-2, Americas Watch 1993: 21), devido aos esforos
de alguns juzes corregedores no estado de So Paulo e do procurador-geral, que
Cidade de Muros 159
decidiram fazer cumprir os novos princpios expressos na Constituio de 1988.
Agora existe uma equipe de promotores que investiga denncias e apresenta acusa-
es. Isso fez a polcia civil reduzir o uso de tortura. Essa diminuio indica a im-
portncia de um sistema civil de accountability e punio, assim como da von-
tade poltica de autoridades pblicas para fazer cumprir as leis existentes.
No que se refere s execues sumrias, a Tabela 3 apresenta o nmero de
civis e policiais militares que morreram ou foram feridos em confrontos em So Paulo
depois de 1981. Alguns dados so extremamente claros: o elevado nmero de civis
que morrem em confrontos com a polcia todos os anos; o fato de que o nmero de
mortes de civis desproporcionalmente mais alto do que o de mortes de policiais
militares; e o fato de que o nmero de mortes de civis ultrapassa em muito o nme-
ro de feridos. Ao comparar a violncia policial em seis regies nas Amricas (in-
cluindo Los Angeles, Nova York, Buenos Aires, Cidade do Mxico e Jamaica),
Chevigny (1995) encontrou muitos tipos de abuso (especialmente tortura, corrup-
o e uso excessivo de fora letal), mas no conseguiu encontrar nenhuma outra
situao que se aproximasse da de So Paulo nos anos 1980 e 1990. Alm disso,
na frica do Sul, o pas responsvel por metade de todas as execues judiciais no
mundo, em 1987- o ano em que se registrou o nmero mais alto de execues
desde 1910- 172 pessoas foram executadas (Amnesty International1989: 204).
Em outras palavras, a polcia de So Paulo, em 1992, matou sumariamente 8,5 vezes
mais que o regime do apartheid na frica do Sul em seu pior ano.
As mortes de civis em confrontos com a polcia militar de So Paulo dificil-
mente podem ser consideradas acidentais ou como um resultado do uso da violn-
cia pelos criminosos, como a PM alega. Se fosse esse o caso, o nmero de policiais
mortos tambm deveria aumentar, o que no acontece. Em So Paulo, a razo en-
tre mortes de civis e de policiais desproporcionalmente alta. Em Nova Y ork, en-
tre 1978 e 1985, a razo de civis e policiais mortos foi de 7,8 para 1; ou seja, para
cada policial morto, houve 7,8 mortes de civis. Em Chicago a razo foi de 8,7 para
1; e na Austrlia, entre 1974 e 1988, foi de 2,3 para 1 (Pinheiro et al. 1991: 99).
Durante a ltima dcada em So Paulo, a razo variou entre 7,3 para 1 em 1983,
17,2 para 1 em 1985, e 18,8 para 1 em 1992. Alm disso, no caso dos pases men-
cionados acima, trata-se de nmeros bem menores. Na Austrlia, com uma popu-
lao semelhante da regio metropolitana de So Paulo, de 1974 a 1988 apenas
49 civis e 21 policiais morreram. No Canad, 119 civis morreram entre 1970 e 1981
(Pinheiro et al. 1991: 99). Chevigny mostra que em Nova York o nmero de mor-
tes caiu de forma constante desde 1971 (Chevigny 1995: 66-7). O nmero de poli-
ciais mortos em So Paulo inclui aqueles que morreram fora do horrio de traba-
lho, a maioria trabalhando como guardas particulares. Dados da Secretaria de Se-
gurana Pblica mostram que em 1994 e 1995 o nmero de policiais que morre-
ram, seja como guardas particulares, seja a caminho do trabalho quatro vezes maior
que o daqueles que morreram no cumprimento do dever.
3
3
Relatrio trimestral da Ouvidoria da Polcia do Estado de So Paulo, dezembro de 1995
- fevereiro de 1996, p. 44.
160 Teresa Pires do Rio Caldeira
Tabela 3
Mortes e ferimentos em aes da Polcia Militar, 1981-1997
Estado de So Paulo
Civis Policiais
Ano Mortes Ferimentos Mortes': Ferimentos':
1981
1
300 n.d. n.d. n.d.
1982
2
286 74 26 897
1983
3
328 109 45 819
1984
4
481 190 47 654
1985
5
585 291 34 605
1986 399 197 45 599
1987 305 147 40 559
1988 294 69 30 360
1989 532 n.d. 32 n.d.
1990 585 251 13 256
1991
6
1.140 n.d. 78 250
1992 1.470
7
317 59 320
1993 409 n.d. 47 n.d.
1994 453 331 25
8
216
8
1995 500 312 23
9
224
9
1996 249 n.d. 32 n.d.
1997 253 n.d. 26 n.d.
de So Paulo
1986 359 152 29 254
1987 268 125 19 223
1988 411 159 22 223
1989 532 n.d. 32 n.d.
1990 585 n.d. 13 n.d.
1991 898 251 21 n.d.
1992 1.301
7
165
310
63
1993 243 194
3 10
66
1994 333 194 72
11
194
1995 331 220 51
11
205
1996 183 n.d. n.d. n.d.
Obs: n.d. informao no disponvel
Embora as fontes no especifiquem, h indcios de que o total de mortes e ferimentos de oficiais em vrios
anos inclui ocorrncias fora do expediente de trabalho. A maioria das mortes e ferimentos de policiais parece
acontecer quando esto voltando para casa ou trabalhando como seguranas particulares. Os dados dispon-
veis para 1993 e 1994 demonstram essa tendncia (ver notas 8 a 11); a Folha de S. Paulo (10/12/1991), citando
dados da polcia militar, sugere que apenas 30% das mortes de policiais militares ocorrem durante confrontos.
Em documento recente (Relatrio trimestral da Ouvidoria da Polcia do Estado de So Paulo, dez. 95-fev. 96,
p. 44), a Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo reconhece que a maior parte das mortes pro-
vavelmente ocorre quando os policiais esto trabalhando como vigilantes particulares. As mortes de civis apre-
sentadas na tabela referem-se exclusivamente a confrontos com a polcia militar.
Fontes: Para o estado de So Paulo: 1981-1989- Pinheiro et al. 1991: 97; 1990-1993 Ncleo de Estudos
da Violncia da USP, baseado em informaes da Coordenadoria de Comunicao Social da Polcia Militar;
1994-1997- Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo, Assessoria de Imprensa. Para a regio
metropolitana de So Paulo: 1986-1988- Nepp (1989: 11 e 1990: 81); 1989-1990- dados da polcia militar
publicados pela Folha de S. Paulo de 7/0811991, p. 4.1. Os dados dessa mesma fonte para 1988 coincidem com
aqueles do Nepp, e os de 1986 e 1987 so bastante prximos aos do Nepp; 1991- Ncleo de Estudos da Vi-
olncia da USP, baseado em informaes da Coordenadoria de Anlise e Planejamento da Secretaria de Segu-
rana Pblica do Estado de So Paulo; 1992-1996 Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo,
Assessoria de Imprensa.
Cidade de Muros
161
Notas:
1
Estimativa da Folha de S. Paulo.
2
O Americas Watch (1987: 25) registra 425 mortes de civis e 20 de policiais em 1982.
1
O Americas Watch registra o mesmo nmero de mortes de civis, mas apenas 30 mortes de policiais.
4
O Americas Watch registra o mesmo nmero de mortes de civis, mas apenas 35 mortes de policiais.
5
O Americas Watch registra 564 mortes de civis e 27 de policiais.
6
O Americas Watch (1993: 4) registra 1.074 mortes de civis em 1991.
7
Inclusive os 111 presos mortos na Casa de Deteno em 2 de outubro.
8
Nmeros relativos apenas a ocorrncias durante o servio. Dados da Assessoria de Imprensa da Secretaria de
Segurana Pblica do Estado de So Paulo indicam que, em 1994, enquanto 25 policiais morreram em servio,
outros 104 morreram em outros perodos, muitos, provavelmente, trabalhando como guardas particulares. O
nmero de oficiais mortos fora do servio em 1994 de 297.
9
Nmeros relativos apenas a ocorrncias durante o servio. Dados da Assessoria de Imprensa da Secretaria de
Segurana Pblica do Estado de So Paulo indicam que, em 1995, enquanto 23 policiais morreram em servio,
outros 90 morreram em outros perodos, muitos, provavelmente, trabalhando como guardas particulares. O
nmero de oficiais mortos fora do servio de 289.
10
Os nmeros de policiais mortos na regio metropolitana em 1992 e 1993 provavelmente incluem somente os
que morreram em servio. A fonte no especifica o contexto das mortes.
11
O total de policiais mortos na regio metropolitana maior que os valores para o estado provavelmente por
incluir mortes fora do servio. As informaes para a regio metropolitana e para o estado so de fontes diferentes.-
Aim disso, em So Paulo, a proporo de civis mortos em relao aos feridos absolutamente anormal. A
expectativa de que o nmero de pessoas feridas ultrapasse o nmero de pessoas mortas. Em Nova York, para
cada civil que morre em confronto com a polcia h em mdia trs feridos; em Los Angeles, a razo de 1 para
2. Em So Paulo, para cada policial que morre, h uma mdia de 17 feridos. Mas, no que se refere aos civis, a
proporo em So Paulo o oposto do esperado: em 1992, para cada civil ferido pela polcia militar houve 4,6
mortos; em 1991, a razo foi de 1 para 3,6 na regio metropolitana; e nos outros anos a mdia era de mais de
duas mortes para cada pessoa ferida. Em outras palavras, a polcia em So Paulo, e em outras cidades brasilei-
ras como Rio de Janeiro e Recife, mata mais pessoas do que fere. Isso indica claramente que a polcia est pro-
vavelmente usando suas armas mais do que necessrio para reprimir suspeitos. O massacre na Casa de Deten-
o um exemplo extremo dessa tendncia.
A polcia tambm tem usado armas longe dos lugares onde os crimes ocor-
rem e basicamente contra pessoas pobres, em especial homens jovens e negros. O
estudo de Pinheiro et al. (1991: 110), que analisou todos os casos de morte causa-
dos pela polcia militar na ltima dcada, concluiu que a maioria das mortes ocor-
reu em bairros pobres da periferia da regio metropolitana de So Paulo, longe dos
lugares em que os supostos crimes aconteceram. A maioria das pessoas que morre-
ram eram homens jovens: 71,5% eram homens entre 15 e 25 anos. A proporo
de negros entre aqueles que morreram muito maior do que a proporo de ne-
gros na populao.
De acordo com a polcia militar, a maioria das mortes- (63,6%) ocorreu em
situaes de "resistncia/reao polcia". "Apenas 8,1% ocorreram em casos de
fuga, e 5,8% em casos de pessoas presas em flagrante" (Pinheiro et al. 1991: 107).
No entanto, a concluso da equipe que estudou as informaes que mais do que
indicar uma tendncia da criminalidade, esses dados indicam a existncia de um "pa-
dro pr-fabricado" usado pela polcia quando uma morte ocorre (idem: 106).
Quaisquer que sejam as circunstncias, as ocorrncias so registradas como casos
de "resistncia seguida de morte" e classificadas e processadas separadamente das
ocorrncias de homicdios. Barcellos (1992) descreve o mesmo padro.
Uma indicao adicional do abuso policial a relao entre o nmero de pes-
soas mortas pela polcia e o nmero total de homicdios dolosos. De 1986 a 1990,
as mortes causadas pela polcia representavam uma mdia de 8% do total de ho-
162 Teresa Pires do Rio Caldeira
micdios na regio metropolitana de So Paulo; em 1991, essa porcentagem pulou
para 12,9%, e em 1992 para 20,63%.
4
Em Nova York, nos anos 90 a porcenta-
gem mdia foi de 1,2%, e em Los Angeles, 2,1 %. '
3 mostra ainda variaes acentuadas no nmero anual de mortes:
este dtmmmu de 1986 a 1988, e cresceu depois disso, em especial em 1991 e 1992
quando os nmeros atingiram um nvel surpreendente. Depois de 1992, os
ros diminuram substancialmente. Essas variaes podem ser entendidas
se polticas de segurana pblica adotadas desde o incio do perodo
democratiCo. O mvel alto de execues sumrias em 1991 e 1992 parece ter resul-
da de segurana pblica adotada especialmente por Lus An-
tomo Fleury, como secretrio de Segurana Pblica durante a administrao
de Orestes Querela (1987-1990), depois como governador (1991-1995). Alm dis-
so, as redues aps 1986 e 1992 parecem tambm ser o resultado de esforos para
refrear os abusos empreendidos primeiro pela administrao de Montoro, depois
po: dadas as repercusses do massacre da Deteno, e depois de 1995 por
As polticas pblicas no so a nica explicao para as mudanas
mve1s de Na verdade, a tradio de abusos - expressa na opinio p-
blica, nos mews de comunicao de massa e na autonomia da polcia- tem um
papel crucial e interpe fortes barreiras s polticas que visam control-los. Contu-
do, onde h vontade poltica, pelo menos um controle parcial pode ser exercido. E
se essa vontade coincide com as percepes populares (como depois do massacre),
em vez de ter de lutar contra elas (como durante a administrao de Montoro)
0
controle mais fcil e rapidamente. A anlise que se segue das polticas 'de
publica estado de So Paulo, seu contexto e a interferncia da opi-
mao pubhca desde o fim do regime militar permitir substanciar as afirmaes acima.
PROMOVENDO UMA POLCIA DURA
_ Montoro foi o primeiro governador eleito depois da instaura-
ao do m1htar. Conhecido membro da oposio, Montoro simbolizou as
expectativas de mudana e democratizao no comeo dos anos 80 expressas no
"retorno .estado de direito". Isso significava no apenas eleies demo-
cratiCas e a posstbthdade de criar uma nova ordem constitucional mas tambm a
de controlar os tipos de abuso de poder do' regime militar.
Montoro, candidato do PMDB (Partido do Movimento Democrtico Brasileiro) a
governador nas primeiras eleies diretas em 21 anos, foi eleito com 49,4% dos votos
no estado de So Paulo em 1982, quando os militares ainda estavam no governo
federal.
5
Ele tomou posse em maro de 1983 e foi governador at 1987.
. .
4
Essas _por:entagens refer_em-se ao nmero total de homicdios registrados pelo Registro
Crvrl. Se consrderassemos os regrstros da polcia civil, as porcentagens seriam maiores: 15,93%
em 1991, e 27,4% em 1992.
5
O candidato apoiado pelo partido do regime militar, Reynaldo de Barros recebeu 25 2%
dos votos. O restante foi distribudo entre os outros trs partidos de oposio. ' '
Cidade de Muros
163
Franco Montoro tomou a srio a tarefa de estabelecer um governo democr-
tico e um estado de direito que, para ele, inclua controlar a polcia. Seu plano de
governo, resumido em um documento chamado Proposta Montoro, inclua uma
parte sobre a reforma da polcia. No que dizia respeito polcia civil (Proposta 1982:
33 ), o documento reconheceu sua "estrutura interna autoritria e ineficiente, vul-
nervel a episdios de corrupo e abusos do poder", que traria "mais medo do
que tranqilidade aos cidados". Propunha, entre outras coisas, a reforma da Cor-
regedoria da Polcia Civil para assegurar "o controle eficiente das ocorrncias de
corrupo e violncia" e a reforma da cpula da hierarquia policial ao adotar a
eleio de alguns diretores por chefes de polcia. A polcia militar era uma assunto
mais difcil, j que estava submetida ao Exrcito, ainda no comando do gove_rno
federal. Apesar disso, a proposta de governo afirmava cautelosamente a necessida-
de de trazer a PM para dentro dos parmetros da lei, tornando "sua ao preven-
tiva e repressiva mais eficiente, menos estimuladora de reaes e aes violentas,
mais conforme lei que, em ltima anlise, visa a segurana do cidado" (Propos-
ta 1982: 34).
O compromisso de Montoro com essas idias foi confirmado por sua escolha
dos secretrios estaduais. Ele nomeou Jos Carlos Dias para a Secretaria da Justi-
a. Dias era um conhecido advogado de presos polticos durante os anos
e ex-presidente da Comisso de Justia e Paz da Arquidiocese de So Paulo, a pnn-
cipal instituio de defesa dos direitos humanos durante a ditadura. Como secret-
rio da Justia ele estaria frente do sistema judicirio, inclusive das prises, onde
sabia-se que o desrespeito aos direitos humanos era elevado. Ficou claro, contudo,
que defender direitos humanos sob a democracia era quase to difcil e polmico
quanto durante o regime militar.
6
Para secretrio de Segurana Pblica ( qual as duas polcias esto sujeitas),
Montoro escolheu Manoel Pedro Pimentel. Ele era um ex-secretrio da Justia,
conhecido como no ligado corrupo e como algum que, dados seus vnculos
com os governos anteriores, poderia facilitar o perodo de transio. Ele tomou posse
com a tarefa de criar uma "Nova Polcia" de acordo com as diretrizes da Propos-
ta. No entanto, os obstculos a esse projeto foram tais que Montoro teve de mu-
dar de secretrio trs vezes em um ano, substituindo Pimentel por Miguel Reale Jr.
e depois por Michel Temer. O ltimo deixou o cargo em 1986 e foi substitudo por
Eduardo Augusto Muylaert Antunes, que permaneceu no cargo at o final do go-
verno de Montoro, acumulando a pasta da Justia, que assumiu em substituio a
Jos Carlos Dias. Em poucos meses ficou claro que a tarefa de reformar a polcia
era muito mais difcil do que se havia pensado e que a defesa de princpios huma-
nitrios e democrticos no era suficiente para efetivar a reforma.
Mingardi oferece duas explicaes para o fracasso da reforma da polcia civil
(1992: parte II). Primeiro, que a polcia civil era uma instituio mais independen-
6 At onde sei, a histria do governo Montoro ainda no foi escrita. Contudo, a oposio a
Jos Carlos Dias, que comeou no dia em que ele revelou suas intenes para o cargo, bem do-
cumentada pela imprensa.
164
Teresa Pires do Rio Caldeira
te do que se supunha, e seus "hbitos e costumes" ilegais tinham profundas razes
na prtica da polcia e gozavam de amplo apoio popular? Para Mingardi, mudar
esses velhos hbitos numa situao de criminalidade crescente tornou-se uma tare-
fa impossvel (1992: parte li). Segundo, ele alega que o projeto da Nova Polcia foi
trado pelos secretrios que sucederam Pimentel: eles teriam tomado decises que
no s impediram a reforma, mas que tambm recolocaram no poder aqueles que
deveriam ter sido removidos. A meu ver, a descrio de Mingardi da histria das
polticas de segurana pblica enviesada pelo fato de que ele apresenta somente a
viso daqueles que cercavam Pimentel. Alm disso, apesar de mencionar a oposi-
o da populao e alguma resistncia (1992: parte III), ele no explora essas questes
a fundo. Argumento, ao contrrio, que a falha do governo Montoro em restabele-
cer um estado de direito no que se refere polcia deveu-se fundamentalmente
falta de apoio substancial a essa idia, tanto por parte da populao como pela
polcia.
Como era de esperar, as tentativas de reformar a polcia enfrentaram uma forte
resistncia interna, que incluiu protestos e greves de policiais, alguns deles registrados
pela imprensa. Na campanha municipal de 1986, por exemplo, vrios delegados
assinaram um manifesto que criticava publicamente a poltica de segurana de
Montoro (ver captulo 9). Entrevistei dois secretrios de Segurana Pblica desse
perodo (Miguel Reale Jr. e Eduardo Augusto Muylaert Antunes) e o secretrio da
Justia (Jos Carlos Dias). Eles descreveram a tarefa de impor um novo modus
operandi polcia como lenta e difcil, e mencionaram vrios episdios de oposi-
o e resistncia. Reale Jr. e Muylaert reconheceram que o que fizeram foi muito
menos do que pretendiam, mas mencionaram algumas mudanas importantes. Pri-
meiro, a da atitude da polcia frente a greves e protestos polticos. Enquanto, no
regime anterior, estes eram vistos como ameaadores, da em diante deveriam ser
aceitos, e a polcia teve de aprender a ajudar na organizao de manifestaes, no
na sua represso. Finalmente, eles tambm mencionaram, e os dados citados no
captulo 3 confirmam, que a administrao de Montoro comeou com uma fora
policial com equipamento insuficiente e ultrapassado e que o governo investiu lar-
gamente em equipamento, pessoal e salrios. Tambm alegaram que seu governo
esteve preocupado tanto em produzir boas estatsticas- o que no era o caso an-
tes - como em dar mais poder Corregedoria do Estado para investigar abusos
policiais.
No que se refere questo disciplinar nas foras policiais, a maioria das esta-
tsticas est disponvel apenas para o perodo ps-1983. Parece tambm que a Cor-
regedoria tornou-se mais ativa, algo confirmado por Mingardi (1992: 69-70). Apesar
dos nmeros nas Tabelas 4 e 5 serem ainda baixos, considerando-se a rotina de
abusos, ambas as tabelas mostram um nmero mais alto de policiais punidos du-
rante a administrao de Montoro. Isso especialmente claro no caso da PM: em
1984, o nmero de policiais punidos correspondeu a 1,0% do total de policiais
7
Essa explicao coincide com o argumento de Bretas sobre a autonomia da polcia civil
durante a Repblica Velha (1995: Concluso).
Cidade de Muros 165
militares (56.072). A maioria das punies estava relacionada ao controle da Rota,
que era um foco da ateno do governo. Durante a administrao de Fleury (1991-
1995), no entanto, os nmeros relativos polcia civil foram especialmente baixos.
Tabela 4
Punio de policiais civis
Estado de So Paulo, Secretaria de Segurana Pblica, 1981-1988, 1991-1993
Ano Punio
Demisso Advertncia
1981 12 n.d. n.d. n.d.
1982 13 n.d. n.d. n.d.
1983 39 481 202 13
1984 66 600 173. 15
1985 37 640 173 4
1986 45 590 123 10
1987 68 724 235 30
1988 60 478
1
133
1
49
1
1991" 29 128 17 6
1992>! 28 138 23 8
199Y 105 155 22 o
Fontes: Para demisses em 1981-1982 e 1988, Mingardi (1992: 69). Para 1981-1988, Corregedoria da Polcia
Civil, Corregepol, citado em Nepp (1990: 83). Para 1991-1993, Secretaria da Justia e da Cidadania,
preparado para a 50" Sesso da Comisso de Direitos Humanos das Naes Unidas, Genebra, 1994, Apend1ce
D-3 (dados da Corregedoria da Polcia Civil).
Obs: ".Os dados para 1991-1993 se referem apenas a casos de violncia (agresso, tortura, abuso do poder etc.)
e de corrupo (extorso, contrabando etc.).
n.d. = informao no disponveL
1
At julho.
Tabela 5
Policiais militares demitidos e expulsos
Estado de So Paulo, Secretaria de 1981-1993
Ano
1981 179
1982 181
1983 435
1984 587
1985 448
1986 406
1987 436
1988 589
1989 379
1990 n.d.
1991 404
1992 384
1993 391
Fonte: Para 1981-1989- Secretaria de Segurana Pblica, Estado Maior da PM, 1989, citado por Nepp (1990:
85). Para 1991-1993- Secretaria da Justia e da Cidadania, relatrio preparado para a soa Sesso da Comis-
so de Direitos Humanos das Naes Unidas, Genebra, 1994, Apndice e-2 (dados da Corregedoria da PM).
n.d. = informao no disponvel.
166 Teresa Pires do Rio Caldeira
A administrao Montoro tambm tentou estabelecer formas mais eficazes de
controlar o uso de armas. Ela determinou, por exemplo, que dados tcnicos de
qualquer morte causada por policiais deveriam ser enviados diretamente Secreta-
ria de Segurana Pblica, e estabeleceu novas regras para o controle das armas usadas
pela polcia militar. Antes disso, cada equipe da PM recebia suas armas diariamen-
te em conjunto, assinando um nico recibo. Quando as armas retornavam, o reci-
bo era destrudo. Isso tornava impossvel associar uma arma a um policial ou dis-
paro especfico.
8
Apesar de mesmo essas regras fundamentais de controle terem
enfrentado oposio, elas parecem ter surtido algum efeito. O nmero de policiais
punidos aumentou e o nmero de pessoas mortas pela polcia diminuiu, apesar do
nvel ainda alto. Em 1986, houve uma diminuio de 32% nas mortes de civis.
Muylaert, secretrio em 1986, diz que apesar de os nmeros "no serem gloriosos",
indicavam os resultados dos controles impostos polcia militar. 9
Alm disso, os secretrios de Segurana Pblica durante a administrao de
Montoro parecem concordar que seu compromisso em estabelecer um estado de
direito e seu discurso tiveram algum efeito em controlar a violncia e os abusos da
polcia, apesar de uma mudana efetiva ser um projeto a longo prazo. Numa en-
trevista em 25 de julho de 1990, Muylaert comentou:
O que eu disse ao Fleury quando eu entreguei a Secretaria foi o
seguinte: Fleury, cuidado com sua linguagem! Porque na polcia, quan-
do voc chega e diz "no quero nada de violncia, a poltica do governo
no admite, quem praticar violncia vai ser fulminado", ainda assim na
hora que voc vira as costas eles exorbitam. Se voc chega e diz que
precisa respeitar os direitos humanos s dos bons cidados e que preci-
sa ter energia com os bandidos, eles saem e matam quem eles quiserem.
Voc no tem como controlar isso e nem exigir, porque o que eles en-
tendem da sua linguagem, quando o secretrio diz "no tem violncia",
eles dizem "bom, s um pouquinho"; quando voc diz "usem a ener-
gia", eles vo cair matando.
Reale Jr. observou:
Era passar valores. Porque, veja bem, para voc passar que no
s o bandido, mas qualquer pessoa, e mesmo o bandido, porque no
porque ele praticou um delito que pode haver a pena de morte, transi-
tado e julgado, sendo juiz e executor o soldado. Ento pra passar esses
valores algo muito demorado, alguma coisa que voc encontra resis-
tncia, porque muito mais fcil para o policial, que vive tenso porque
8
Pinheiro (1982: 90) reproduz um documento do chefe da Rota certificando que era im-
possvel identificar as armas usadas por uma equipe da Rota devido maneira pela qual as armas
eram retiradas.
9
Entrevista, 25 de julho de 1990.
Cidade de Muros
167
ele est enfrentando a violncia cara a cara, muito mais fcil ele ter uma
resposta simples e responder com a violncia e matar a pessoa. Por que
que ele vai tomar medidas de prender algum se ele pode matar, se a
impunidade lhe est garantida? Como passar [valores] para esses poli-
ciais que vinham de um longo hbito autoritrio? ... Tudo isso era mui-
to difcil, uma mudana completa de mentalidade, uma alterao de
valores muito grande. S aos poucos isso feito. Agora, como isso feito
aos poucos, qualquer palavra contrria desmorona o trabalho. o que
o Qurcia fez. O Qurcia conseguiu desmoronar o trabalho que o Mon-
toro e os seus secretrios de Segurana fizeram no sentido de mudar a
mentalidade. Voltou tudo para trs. Ficou uma grande facilidade. Por-
que muito mais simples voc ter a impunidade garantida e a violncia
legitimada, especialmente pelos superiores. Uma palavra de um superior
dizendo "seja violento", isso vai de cima para baixo numa rapidez in-
crvel. O coronel falou, o praa no dia seguinte est sabendo. Se o coro-
nel fala alguma coisa de conteno, de prudncia, de bom senso, de equi-
lbrio, at chegar no praa demora. Agora, uma palavra de autorizao
de prtica de violncia corre como rastilho. Ento, um processo muito
lento. (Entrevista, 8 de agosto de 1990)
Essas observaes fazem eco s concepes sobre a difuso do mal expressas
por residentes de So Paulo e analisadas no captulo 2. Para Reale Jr., a violncia
se espalha rpida e facilmente; seu controle, entretanto, um projeto de elabora-
o cultural a longo prazo, com resultados frgeis sujeitos a reverso rpida. Mas,
se a mudana de valores um projeto a longo prazo, a administrao Montoro parece
ter demonstrado que a determinao poltica de controlar a violncia e impor o
estado de direito pode ter algum efeito a curto prazo, ainda que limitado. A falta
de vontade poltica para controlar a violncia policial nas duas administraes se-
guintes de Montoro no apenas reverteu os pequenos ganhos, como ajudou a
violncia a proliferar. Tanto como secretrio de Segurana Pblica da administra-
o de Qurcia como governador, Lus Antonio Fleury apoiou uma polcia dura, o
que resultou em um grande crescimento no nmero de mortes causadas pela pol-
cia, algo que tanto Fleury como seu primeiro secretrio de Segurana, Pedro Fran-
co de Campos, estavam prontos a defender. Entretanto, a responsabilidade no
apenas das escolhas do executivo. As decises de Montoro e de sua equipe de ten-
tar restabelecer o estado de direito e controlar a violncia policial gozavam de pouco
apoio popular. O que eles puderam fazer estava limitado tanto pela oposio po-
pular como pela resistncia da polcia. Para muitos moradores de So Paulo, a vio-
lncia ainda vista como um bom meio para lidar com a criminalidade, e foi pro-
metendo mais "energia" e mtodos violentos de patrulhamento que Fleury cons-
truiu sua reputao e foi eleito.
A histria da Rota oferece um bom exemplo tanto do apoio polcia violen-
ta quanto das possibilidades de control-la por meio de polticas pblicas. A Rota
-Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar- uma diviso especial da polcia mili-
tar famosa por ser responsvel pela maioria das mortes de civis na regio metropo-
168 Teresa Pires do Rio Caldeira
litana de So Paulo, mostradas na Tabela 3. Ela foi organizada em 1969, durante
o regime militar, para lutar contra ataques terroristas, em especial assaltos a ban-
co. Seus mais ou menos 700 policiais so organizados em grupos de "quatro ho-
mens armados com armas de alto poder de fogo, mobilidade e comunicao" (Pi-
nheiro 1982: 59). Depois do fim da represso aos opositores polticos do regime
militar, a Rota foi direcionada para combater a criminalidade. Segundo Pinheiro
(1982: 77), que cita estatsticas da Rota, de janeiro a setembro de 1981, a Rota atirou
em 136 civis, matando 129 deles e ferindo 7, enquanto um policial morreu e 18
ficaram feridos. Alm disso, ela prendeu 5.327 pessoas, das quais apenas 71 tinham
sido previamente condenadas. Em um padro comum desde o Imprio, todos os
outros foram "detidos para investigaes", o que significa que no havia acusaes
formais contra eles, apenas uma "suspeita". O jornalista Caco Barcellos acompa-
nhou muitos casos da Rota e publicou os resultados no livro Rota 66 (1992). Ele
mostra que os policiais da Rota agem freqentemente com base em suspeitas e que
sua reao comum atirar. Para encobrir seu uso excessivo de fora, alegam que
havia uma ameaa a suas vidas, quando geralmente no havia. Como Barcellos
coloca, "a pessoa morta sempre culpada por sua prpria morte" (1992: 74). A
maioria das pessoas mortas pela Rota no tinha antecedentes criminais e a investi-
gao sobre suas mortes particularmente difcil. Barcellos mostra que uma mino-
ria de policiais da Rota responsvel pela maior parte das mortes e fornece os nomes
daqueles que mais mataram.
Apesar do fato de que em 1983, quando Montoro tomou posse, havia me-
nos informao disponvel sobre a Rota do que h hoje, ela j era famosa por seu
uso da violncia e tornou-se um alvo simblico para o governo Montoro. Mesmo
antes de ele tomar posse, o controle da Rota era um assunto candente, no ape-
nas por causa da resistncia da corporao, mas tambm em devido ao apoio da
populao a ela. Durante a campanha eleitoral, os jornais anunciaram que Mon-
toro pretendia extinguir a Rota. Os protestos vieram de todos os lados e a Rota
foi defendida por seus lderes. Em 1 O de outubro de 1982, numa entrevista ao jor-
nal Folha de S. Paulo, o comandante da Rota, Niomar Cirne Bezerra, apresentou
um argumento que se tornaria famoso nos anos seguintes: "A Rota adorada na
periferia e odiada pelos intelectuais da classe mdia que vivem no centro da cida-
de". Em outras palavras, o argumento era de que as massas estavam a favor da
violncia, algo contrariado apenas por intelectuais, um grupo conhecido por apoiar
Montoro. O comandante da Rota concluiu sua entrevista, que aconteceu um ms
antes das eleies, dizendo:
Ns- a Rota somos a nica coisa que os bandidos temem. E,
como diz uma velha frase, o medo leva ao respeito, que se transforma
em admirao e conduz ao amor. (Folha de S. Paulo, 10 de outubro de
1982, "Rota, a mstica, os mtodos e as mortes")
Obviamente, Bezerra desconsiderou o medo que a populao tem da Rota,
mas sua filosofia parecia ser popular. Em dezembro de 1982, uma pesquisa de
opinio pblica feita pela Folha de S. Paulo revelou que 85,1% das pessoas entre-
Cidade de Muros 169
vistadas eram contra a extino da Rota.
10
Em fevereiro de 1983, antes de tomar
posse, o secretrio de Segurana Pblica anunciou que a Rota no seria extinta, mas
seria transformada em um grupo especial para ajudar em emergncias (Folha de S.
Paulo, 8 de fevereiro de 1983). A tarefa de policiar a periferia foi retirada da Rota.
Em junho, Manoel Pedro Pimentel reconheceu em uma entrevista que a presso para
colocar a Rota de novo nas ruas era forte e que o povo preferia seus mtodos vio-
lentos. Ele tambm revelou como estava dividido entre fazer valer os direitos hu-
manos, como a administrao do estado e alguns grupos queriam, ou trazer de volta
a Rota e atender ao desejo da populao. Pimentel comentou com um jornalista da
Folha de S. Paulo em 2 junho de 1983 ("Pimentel admite presses para a Rota voltar,
mesmo matando"):
Quando a gente permite que a Polcia Militar mate, h reao vio-
lenta dos que acham os Direitos Humanos desrespeitados e chegam a
rezar missa pela alma dos marginais. Por outro lado, a populao recla-
ma segurana e quer a Rota na rua para matar marginal. isso que o
povo pede aqui no meu gabinete, diariamente. Eles vm em delegaes
querendo a Rota, sabendo que ela vai matar. ( ... ) No irnico? Os
mesmos que hoje nos acusam de inrcia, se agirmos, nos acusaro ama-
nh por matarmos, porque se uma fora pesada como a Rota sair, cla-
ro que ela matar.
O que particularmente impressionante nessa declarao o modo pelo qual
a dvida do secretrio expressa: ele v uma escolha clara entre ceder aos grupos
de defesa dos direitos humanos (a aluso Igreja Catlica e sua defesa de "crimi-
nosos" evidente) ou o crescimento das mortes, e apresenta ambas como opes
no desejveis. Pimentel, ao contrrio de outros secretrios citados, parece no ver
maneiras de controlar a Rota: se ela agisse, ela obviamente mataria. tambm
surpreendente que essa possibilidade seja abertamente discutida pelo secretrio de
Segurana Pblica com a imprensa como uma questo de rotina.
Em agosto de 1983, um dia antes de Pimentel transferir o cargo para Reale
Jr., a Folha de S. Paulo publicou outra pesquisa de opinio pblica avaliando a
poltica de segurana pblica de Montoro. 40,7% da populao classificou-a como
"regular" e 39,1 %, como "ruim". Alm disso, 71,8% das pessoas entrevistadas
declararam que a poltica de segurana pblica deveria ser "mais dura" no comba-
te criminalidade. Mais dura significa mais violenta.
Foi, portanto, contra a opinio da maioria da populao- e no apenas contra
velhos hbitos e interesses da polcia- que o governo de Montoro continuou seus
esforos de controlar os abusos e a violncia policiais e estabelecer o estado de di-
reito. Em 1985, logo aps as eleies municipais, outra pesquisa da Folha de S. Paulo
revelou que 4 7,6% da populao achava que o principal problema da cidade no
10
"Populao quer a Rota", Folha de S. Paulo, 3 de dezembro de 1982.
170
Teresa Pires do Rio Caldeira
momento era a segurana.l
1
Durante essa campanha eleitoral, a questo dos direi-
tos humanos foi crucial e a oposio ao governo Montoro tornou-se explcita quando
a Associao dos Delegados de Polcia publicou um manifesto contra o PMDB e
sua poltica de defesa dos direitos humanos. Esse tema foi tambm central na cam-
panha governamental de 1986. Nas duas ocasies, polticos de direita em particu-
lar se dedicaram a atacar os direitos humanos (ver captulo 9).
O sucessor de Montoro, Orestes Qurcia, foi eleito nesse contexto, e de 1988
at 1992 a poltica de segurana pblica do estado de So Paulo apoiou explicita-
mente uma polcia "mais dura" .
12
Isso incluiu o fortalecimento dos policiais da
chamada "linha-dura", como o novo comandante da PM, coronel Celso Feliciano
de Oliveira, que tomou posse em novembro de 1989, declarando "aberta a tempo-
rada de caa aos bandidos" (Folha de S. Paulo, 2 de novembro de 1989). Ele acre-
ditava que o nico modo de combater a criminalidade era aumentando o nmero
de policiais nas ruas- e, claro, usando a violncia.
A meta do governo do Estado dar tranqilidade populao. Se
isso resultar em mortes, pode ter certeza de que houve reao dos ban-
didos. No estamos aqui para matar pessoas. Se fosse assim, matara-
mos todos aqueles que prendemos. (Cel. Feliciano, Folha de S. Paulo,
"Linha-dura na PM aumenta represso ao crime", 21 de novembro de
1989.)
Na semana que se seguiu a essa declarao, a PM matou quatro pessoas que
no tinham antecedentes criminais. Indagado sobre as mortes, o secretrio de Se-
gurana Pblica Lus Antonio Fleury reencenou o discurso que tanto Muylaert como
Reale Jr. identificaram como contendo uma permisso tcita para a ao violenta
da polcia. Em um artigo na Folha de S. Paulo, em 28 de novembro de 1989 ["Fleury
diz que a PM vai matar mais este ano"], Fleury declarou que "o fato de este ano
terem ocorrido mais mortes causadas pela PM significa que ela est mais atuante.
Quanto mais polcia nas ruas, mais chances existem de um confronto entre margi-
nais e policiais". Ele tambm complementou:
Continuamos respeitando a lei. Mas preciso considerar que vi-
vemos numa sociedade com problemas de violncia.( ... ) O policial mi-
11
"Para os eleitores, segurana o maior problema de So Paulo", Folha de S. Paulo, 8 de
setembro de 1985.
12
Um dos primeiros episdios muito srios de violao de direitos humanos ocorreu du-
rante o carnaval de 1989. Dezoito dos 50 prisioneiros mantidos numa cela forte de trs metros
quadrados morreram asfixiados no 42 Distrito Policial de So Paulo. Esse episdio revela os efei-
tos dos diferentes sistemas de accountability aos quais os policiais civis e militares esto sujeitos.
Os policiais civis envolvidos responderam a processo, foram condenados, e receberam penas de
priso excepcionalmente longas (de at 516 anos). Os policiais militares, no entanto, no foram
levados a julgamento pela Justia Militar.
Cidade de Muros 171
litar, se precisar usar todo o rigor, ter todo o apoio da cpula da pol-
cia. Mas se ele cometer um abuso, ser punido( ... ) preciso ter em mente
que o choque entre policiais e marginais tende a aumentar. No meu ponto
de vista, o que a populao quer que a polcia chegue junto. [ Grifos
meus]
A mensagem clara: os ndices de mortes causadas pela polcia so um resul-
tado de sua eficincia em desempenhar suas tarefas tal como desejado pela popula-
o. Quando o secretrio de Segurana Pblica fala da lei e da vida das pessoas nesse
tom casual, claro que os sonhos de um estado de direito j haviam se tornado
irrelevantes. Essa poltica mais dura, "que chega junto", persistiu, juntamente com
o apoio a Fleury, que foi eleito governador um ano depois dessa entrevista. Alm
disso, a mesma indiferena diante do nmero de mortes pela polcia e sua associa-
o a eficincia ocorreram em declaraes do primeiro secretrio de Segurana
Pblica de Fleury, Pedro Franco de Campos. Solicitado a comentar sobre as 1.140
mortes de 1991, ele disse: " preciso comparar com os chefes de famlia assassina-
dos" (O Estado de S. Paulo, 23 de dezembro de 1991, p. 3). Poucos dias antes ele
havia afirmado: "Os nmeros cresceram porque a polcia est mais presente nas
ruas. A polcia, no entanto, apenas revida. Ela sempre reage violncia do margi-
nal" (Folha de S. Paulo, 10 de dezembro de 1991, "Polcia Militar mata mais de
mil em 91 e bate recorde").
Uma indicao do apoio violncia policial a taxa de punio por abusos.
A Tabela 4 mostrou um nmero consideravelmente baixo de policiais civis puni-
dos nos primeiros anos da administrao de Fleury. Isso pode ser em parte justifi-
cado pelo fato de que esses dados se referem apenas a casos de violncia e cor-
rupo, enquanto para os anos anteriores no havia indicao da causa dos pro-
cessos. Mas algumas observaes deveriam ser feitas. Primeiro, o nmero de po-
liciais expulsos aumentou substancialmente em 1993, ou seja, depois que Pedro
Campos foi substitudo por Michel Temer e uma nova poltica foi adotada. Alm
disso, pelo fato de os casos de violncia e corrupo serem apresentados separa-
damente, podemos notar que os primeiros no geram muita punio, algo j ob-
servado no caso da Justia Militar. Na verdade, 86,85% dos casos de demisses
ocorreram em processos de corrupo. A maioria (64,2%) dos 1.154 casos de vio-
lncia abertos pela Corregedoria da Polcia Civil entre 1991 e 1993 foram arqui-
vados; 9,27% resultaram em absolvio e 25,65% em alguma forma de punio.
De 989 casos de corrupo, 36,5% foram arquivados, 21,74% resultaram em ab-
solvio e 39,33% em punio.
13
Uma das explicaes para o aumento das mortes pela polcia no comeo dos
anos 90 est relacionada a mudanas na Rota. Ela tinha sido desmobilizada e res-
tringida pelo governo Montoro, mas recebeu novos veculos e equipamentos no
13
Dados da Corregedoria da Polcia Civil. (Secretaria da Justia e da Cidadania, Relatrio
preparado para soa Sesso da Comisso de Direitos Humanos das Naes Unidas, Genebra, 1994,
Apndice D-3.)
172 Teresa Pires do Rio Caldeira
governo Fleury, e em 1991 ex-integrantes foram chamados de vo!ta.
da interveno de Montoro, o numero de pessoas mortas pela Rota havia dimmm-
do (Pinheiro et al. 1991). Aps uma cerimnia para incorporar mais veculos e
antigos integrantes corporao no comeo de dezembro de 1991, a Rota matou
20 pessoas em uma semana.
Para legitimar suas aes, a polcia militar insiste continuamente no "perigo
dos bandidos" e constri uma imagem de que a Rota protege os pobres na perife-
ria, que apiam seus mtodos violentos. Nessas explicaes, a PM freqentemente
ajudada pela mdia. O Jornal da Tarde, por exemplo, noticiou a cerimnia que
mencionei h pouco, qual estava presente o governador, que declarou estar hon-
rando uma promessa eleitoral ao dar mais equipamento Rota. Na mesma pgi-
na, outro artigo tratou do retorno dos antigos policiais sob o ttulo de "O capito
volta ao quartel. Como se chegasse do exlio". Nele, a reprter Marins Campos
conta aos leitores, em tom folhetinesco, sobre o final feliz para os policias militares
que tinham sido expulsos da Rota e podiam agora retornar.
O capito, num dia de 1984, descarregou a arma, tirou a braa-
deira e saiu para a avenida Tiradentes com jeito de quem tinha deixado
o corao pra trs, dentro de uma viatura da Rota. E doeu, como tiro
de bandido. Depois, vieram quase trs mil dias de exlio. Milhares de
horas, contadas nos dedos, igual prisioneiro que vai riscando na parede
o tempo que falta para a liberdade. O capito nunca se separou do hand-
talkie, o rdio da PM, sempre ligado na freqncia da Rota, onde, mes-
mo de longe, ouvia o som dos tiroteios e das sirenes. E doa.
Mas agora o capito Antonio Bezerra da Silva voltou para o seu
quartel sete anos e nove meses depois que o governador Franco Mon-
toro decidiu dispersar os homens da Rota, na tentativa de acabar com
uma polcia que tinha se tornado um mito. Um mito violento demais,
dizia o ento secretrio da Justia, Jos Carlos Dias, em nome dos direi-
tos humanos.
Mas foram muito fortes os apelos para que o governador manti-
vesse a Rota nas ruas. Ele manteve, mas dispersou os homens por ou-
tras unidades da Polcia Militar - os mesmos homens que, agora, es-
to voltando para seu quartel como quem chega de um longo exlio. E
o capito Bezerra est de novo ali, no momento em que o Batalho Tobias
de Aguiar faz 100 anos. Ao lugar onde viveu durante 1 O anos. De uma
janela, ele aponta para o jardim do ptio e repete: "Quando eu morrer,
quero ser cremado e ter minhas cinzas espalhadas bem aqui".
Tem muita gente, diz o capito, que no consegue entender um
homem que tem a Rota injetada na veia, que convive com metralhado-
ras, carabinas e um jeito de fazer polcia como quem est feliz ao lado
de uma mulher. ..
"No d para explicar o que a gente sente pela Rota", fala o capi-
to Bezerra. Ele tenta. "Talvez seja como saltar de pra-quedas pela
primeira vez", compara. "Uma mistura de medo, de felicidade, de coisa
Cidade de Muros
173
desconhecida, de desafio ... " E, trs mil dias depois da ltima ronda numa
viatura das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, o capito vai s ruas
para lembrar os velhos tempos. Com os olhos brilhando, o corao pu-
lando como criana na montanha-russa. (jornal da Tarde, 2 de dezem-
bro de 1991, p. 21.)
Violncia, abusos e ilegalidades foram esquecidas ou transformadas, jun-
to com o respeito pela lei e direitos humanos, em uma idiossincrasia de Jos Carlos
Dias e Franco Montoro. De qualquer modo, em algo a ser posto de lado para dar
lugar ao retorno romntico dos "heris" cujas vidas se entrelaam da polcia vio-
lenta e para quem o prazer da "caa aos criminosos" equiparado ao prazer de
estar com uma mulher e comparado pela reprter, uma mulher, s emoes de uma
criana na montanha-russa. Na verdade, a reprter prefere ajudar a reforar "mi-
tologia herica" da Rota e esquecer seus abusos. Em seu texto, o retorno dos ofi-
ciais sem dvida algo positivo. Com esse tipo de apoio pblico de uma imprensa
livre de censura e com a determinao dos polticos em ignorar a lei, claro que a
PM se sentiu livre para matar em 1991 e 1992.
0 MASSACRE NA CASA DE DETENO
O massacre de 111 presos na maior priso de So Paulo, a Casa de Deteno,
em 2 de outubro de 1992 simboliza a culminao da poltica de Fleury e Pedro Franco
de Campos de tolerar os abusos da polcia.l
4
Na verdade, esse evento bastante
revelador do carter paradoxal de uma sociedade em que instituies democrti-
cas e prticas repressivas abusivas coexistem. O massacre foi exaustivamente do-
cumentado por uma mdia livre que, como durante o impeachment do presidente
Collor que tinha ocorrido alguns dias antes, tomou para si a tarefa de desvelar o
que as autoridades pblicas estavam tentando esconder. A cobertura revela no s
os detalhes horrendos do massacre, mas tambm as opinies de autoridades pbli-
cas, defensores dos direitos humanos, prisioneiros e seus familiares e do pblico em
geral, dividido entre defensores e crticos da ao da polcia. Obviamente, ela tam-
bm expressa a perspectiva da imprensa, que particularmente reveladora sobre
at que ponto os abusos na sociedade brasileira so tomados como algo rotineiro.15
14
O massacre foi amplamente documentado pela mdia brasileira. Ele tambm foi registra-
do pela Anistia Internacional (1993), por Machado e Marques (1993) e por Piet e Pereira (1993).
Vrios massacres envolvendo policiais militares ocorreram no Rio de Janeiro no ano seguinte. Entre
eles incluem-se o assassinato de oito menores que dormiam nas proximidades da Igreja da Can-
delria, em 23 de julho de 1993, e o assassinato de 21 residentes da favela Vigrio Geral, em 30
de agosto de 1993.
15
Analisei a cobertura da imprensa do massacre na Casa de Deteno em cinco jornais e
duas revistas, todos publicados em So Paulo, pelo perodo de dez dias seguintes ao massacre. A
amostra inclui os dois maiores jornais paulistas com circulao nacional, Folha de S. Paulo e O
Estado de S. Paulo, e trs jornais locais, Jornal da Tarde, Folha da Tarde e Notcias Populares. As
174 Teresa Pires do Rio Caldeira
Numa ao que aparentemente pretendia controlar as lutas entre gangues
dentro do Carandiru, a polcia militar matou 111 presos no Pavilho 9.
16
Nenhum
policial morreu. Metralhadoras foram usadas dentro de um espao fechado e, como
0
relatrio da Anistia Internacional afirma:
H esmagadora evidncia para sugerir que a maioria dos presos,
incluindo os feridos, foram executados extrajudicialmente pela polcia
militar depois de terem se rendido, indefesos em suas celas. Evidncias
forenses indicam que os tiros foram disparados das portas para os fun-
dos e para os lados das celas, e nenhum tiro foi retornado. A alta pro-
poro de balas ( 60,4%) atiradas na cabea e no trax dos presos indi-
ca que no houve o uso do mnimo de fora para controlar, mas uma
clara inteno de causar mortes (Anistia Internacional 1993: 28).
O massacre teve traos dantescos, j que no s se atirou nos presos aleato-
riamente, como eles foram espancados, atacados por ces treinados para morder
os rgos genitais e perfurados com facas. Nus, muitos dos sobreviventes foram for-
ados a assistir a execues, a carregar os corpos de seus colegas mortos e a limpar
0
sangue que escorria por todo lugar, porque os policiais estavam apavorados com
a possibilidade de serem contaminados pela aids. Na verdade, uma razo que a
polcia deu para justificar sua ao foi a de que os presos atacaram com dardos
embebidos em sangue contaminado por HIV. Apesar de a polcia e o governo ten-
tarem esconder o massacre (eleies municipais aconteceriam em 3 de outubro e o
candidato do governador poderia ser prejudicado pelas notcias), fotos chocantes
apareceram em toda a imprensa dois dias depois: urna srie de corpos nus e muti-
lados, com grandes nmeros pretos escritos em suas pernas, dispostos lado a lado
em caixes abertos nos corredores do Instituto Mdico Legal. Uma viso de cam-
po de concentrao. Alguns dias depois, publicaram-se imagens de dentro da Casa
de Deteno: pilhas de corpos, closes de presos mortos, presos nus carregando ca-
dveres e a destruio dentro das celas. Estas foram complementadas por imagens
de parentes desesperados sendo atacados por ces e pela polcia na porta do Caran-
diru enquanto tentavam conseguir informaes sobre os presos que estavam l
dentro, ou de pessoas chorando do lado de fora do Instituto Mdico Legal, depois
de terem sido obrigadas a examinar todos os cadveres para identificar seus parentes.
16
A Casa de Deteno a maior priso de So Paulo, parte de um complexo penitencirio
chamado Carandiru. Foi construda no incio dos anos 60 no que era uma parte perifrica da cidade
para alojar 3.250 presos. No dia do massacre, porm, abrigava mais de 7.100 presos (as estatsticas
no so exatas, mas todas as verses mencionam mais de 7 mil). A superpopulao comum na
Casa de Deteno e em outras prises brasileiras, onde as condies de vida so totalmente precrias
e degradantes. (Ver, por exemplo, Anistia Internacional (1993) e Americas Watch (1989). Revoltas
na Casa de Deteno, considerada uma das piores prises brasileiras, so relativamente comuns, e a
maior ocorrida anteriormente, em 1987, resultou em 31 mortes. O massacre de 1992 ocorreu em uma
das alas da Casa de Deteno chamada Pavilho 9. Naquele dia, esse pavilho abrigava 2.069 presos
em vez dos mil para que tinha sido planejado. Esse pavilho considerado especialmente violento.
Cidade de Muros 175
As imagens no deixavam dvidas sobre o abuso da fora. As tentativas no
convincentes do governador, seu secretrio de Segurana Pblica e os comandan-
tes da polcia de minimizar os acontecimentos e culpar os presos pelas mortes in-
dignaram uma boa parte da populao. A mesma indignao repetiu-se quando
foram mostrados imprensa os policiais machucados e as armas apreendidas pela
polcia militar: no havia um nico ferimento grave, apenas contuses; nem uma
nica arma potente, apenas facas velhas, pedaos de madeira e algumas poucas armas
de fogo. (No foi toa que a polcia teve de usar o medo da aids como sua princi-
pal justificativa para atirar.) Todas as revistas e jornais publicaram fortes editoriais
contra o massacre e abriram suas colunas ao pblico em geral, intelectuais, organi-
zaes de direitos humanos e autoridades pblicas para expressar sua indigna0 .17
No entanto, a indignao no foi universal. Na verdade, em uma pesquisa por
telefone feita pela Folha de S. Paulo, um tero da populao de So Paulo endos-
sou a ao da polcia. De acordo com uma pesquisa de opinio feita pelo Estado
de S. Paulo, 44% da populao apoiava a polcia. Muitas pessoas foram s ruas
para se manifestar a favor da polcia e contra os defensores dos direitos humanos.
Muitos polticos de direita e deputados defenderam publicamente a polcia e aju-
daram a organizar manifestaes a seu favor.
Em geral, autoridades da administrao estadual e da polcia no s no cri-
ticaram o massacre, mas tambm tentaram diminuir seu significado e se esquivar
de qualquer responsabilidade por ele, embora a imprensa insistisse em que tanto o
governador como o secretrio de Segurana Pblica haviam sido consultados pre-
viamente. Durante as primeiras horas depois que as notcias vieram a pblico, as
declaraes de Campos imprensa, assim como as de Fleury em apoio a ele, de-
monstram como as autoridades pblicas podem ser abertamente desrespeitosas em
relao a direitos e vidas. Elas ainda sugerem que o massacre no foi totalmente
estranho sua poltica de segurana pblica. Campos negou repetidamente que o
que havia acontecido no Carandiru pudesse ser chamado de massacre, alegando que
tinha sido uma interveno necessria para "evitar uma fuga em massa" (Folha de
S. Paulo, 7 de outubro de 1992). Ele disse ainda que o atraso de quase dois dias
(dias antes de eleies municipais) em informar a populao se devera necessida-
de de se ter uma boa avaliao dos fatos e "proteger a populao" Uornal daTar-
de, 5 de outubro de 1992). Fleury declarou que tinha achado a ao da polcia
"adequada", considerando que a priso estava povoada por "um confronto de
gangues bem armadas" Uornal da Tarde, 5 de outubro de 1992). Tentando vender
o massacre como aceitvel e jogando com a crena de que as classes trabalhadoras
estavam a favor de uma polcia violenta, o governador ainda declarou que "oBra-
17
Embora todas as revistas e jornais tenham criticado as autoridades e a polcia, h dife-
renas muito significativas entre eles. De um lado, o Notcias Populares, tido como um jornal sen-
sacionalista especializado em crimes e notcias com um contedo sexual, escreveu uma das mais
fortes crticas ao governador e polcia. De outro, o Jornal da Tarde, um jornal do grupo O Esta-
do de S. Paulo, conhecido por sua preocupao com o estado de direito, surpreendentemente deu
mais espao que os outros jornais para os pontos de vista da polcia, e publicou vrios relatos nos
quais membros da polcia justificavam sua ao.
176 Teresa Pires do Rio Caldeira
sil s vai ter uma polcia de primeiro mundo quando for um pas de primeiro mun-
do ( ... ) A polcia um reflexo da sociedade, e a sociedade violenta. ( ... ) Minha
d
' " 18
emprega a, que e povo, aprovou . .
O coronel Eduardo Assumpo, comandante da PM, ofereceu uma das mais
surpreendentes defesas. Aqui esto partes da sua entrevista para a Folha da Tarde
("Os policiais matam dentro da lei, afirma comandante da PM", 6 de outubro de
1992)
Coronel- Se a PM recebida bala, ela no vai revidar atirando
rosas. Quando a PM mata algum, ela o faz dentro da lei, em legtima
defesa. ( ... )A sociedade confia na PM. ( ... )
Reprter- Houve um massacre de presos no pavilho 9 da Casa
de Deteno? Houve ordem para matar os presos?
Coronel- Que eu saiba, no houve ordem para matar ningum.
No d pra afirmar que foi um massacre, pois seria um prejulgamento.
( ... )
Reprter- Fotos da rebelio mostram presos nus mortos a tiros.
Geralmente os presos tiram as roupas por ordem da polcia, aps are-
belio estar controlada. Como o senhor v a acusao de vrios presos
terem sido mortos aps se renderem?
Coronel- No tenho condies de responder, pois no vi eles se
entregarem e eu no assisti cena. O que eu sei que tinham 2000 pre-
sos e morreram 111. Se houvesse predeterminao de matar, teriam mor-
rido todos.
Essa entrevista revela sinteticamente no s como o uso da violncia tornou-
se natural e aceito como legtimo dentro da polcia militar, mas tambm como co-
mandantes da instituio encontram meios de evadir a responsabilidade por ele. Eles
no se intimidam em usar argumentos bizarros como o de dizer que, se houvesse
inteno de matar, todos os presos teriam sido mortos. O fato de entrevistas como
essa terem aparecido na imprensa sem qualquer conseqncia posterior tambm
indica que os abusos so aceitos ou pelo menos tolerados. Alm disso, o fato de a
cobertura detalhada da imprensa no ter ajudado a gerar uma nica condenao
revela os limites das instituies democrticas no Brasil.
Em maro de 1993, um promotor da justia criminal civil apresentou acusa-
es contra um dos comandantes, e o promotor pblico da justia militar apresen-
tou acusaes contra 120 oficiais e soldados da polcia militar "pelos 'crimes mili-
tares' de homicdio, tentativa de homicdio e leso corporal dolosa, no cumprimento
18 interessante comparar as reaes das autoridades estaduais paulistas aps o massacre
com as reaes do presidente Fernando Henrique Cardoso depois do massacre de 19 integrantes
do Movimento dos Sem-Terra no interior do Par em abril de 1996. Cardoso condenou em ter-
mos bastante explcitos a ao da polcia militar e pediu ao Congresso que apreciasse um projeto
de lei que permitiria justia civil julgar policiais militares.
Cidade de Muros
177
do dever" (Amnesty International 1993: 27). Em 8 de maro de 1993, o juiz do
Primeiro Tribunal Militar de So Paulo aceitou as acusaes apresentadas pelo
promotor. At dezembro de 1999, ainda no havia ocorrido o julgamento. Entre-
tanto, em maio de 1996, a 8a Cmara de Direito Pblico do Tribunal de Justia
decidiu que o estado de So Paulo no era culpado pelo massacre. Aps examinar
o caso, o juiz superior Raphael Salvador, tambm vice-presidente da Associao
Paulista de Juzes, determinou que os presos eram responsveis: "eles iniciaram a
rebelio, destruram um pavilho e foraram a sociedade, atravs de sua polcia, a
se defender" (O Estado de S. Paulo, 4 de maio de 1996). At agora, a nica ao
concreta gerada por esse episdio foi tomada pelo executivo. Sob presso da mdia
e da populao, Fleury demitiu os seis principais comandantes do massacre. Alm
disso, embora tivesse no incio apoiado o secretrio de Segurana Pblica, teve de
substitu-lo e mudar sua poltica de tolerncia em relao violncia policial. Michel
Temer, que havia sido secretrio durante a administrao Montoro, foi convoca-
do para o posto. Ele adotou imediatamente um discurso de legalidade e tentou impor
novas regras: policiais envolvidos em tiroteios passaram a ser retirados do patru-
lhamento de rua e enviados para receber aconselhamento e um curso sobre direi-
tos humanos dado pela Anistia Internacional. Sua poltica reduziu o nmero de
mortes significativamente (ver Tabela 3 ), demonstrando que as autoridades pbli-
cas de fato tm meios para restringir a brutalidade policiai.1
9
A administrao de Mrio Covas, que tomou posse em 1995 e foi reeleito em
1998, est mais uma vez comprometida em controlar os abusos policiais. Como
mostra a Tabela 3, as mortes de civis diminuram nesse perodo.
20
O secretrio de
Segurana Pblica, Jos Afonso da Silva, atribui essa queda a duas iniciativas. A
primeira o PROAR, o Programa de Reciclagem de Policiais Envolvidos em Situa-
es de Alto Risco, criado em 1995. Atravs desse programa, todos os policiais
envolvidos em tiroteios fatais - no s os policiais que atiraram, mas todos os
membros da equipe- so removidos de seus cargos de patrulha por trs meses e
enviados para um programa de reciclagem, onde tambm recebem aconselhamento
e so reavaliados antes de retornar a suas tarefas anteriores. A segunda a criao
de um ombudsman para a polcia, um posto assumido por Benedito Domingos
Mariano, do Centro Santo Dias, um conhecido grupo de direitos humanos. Nos
primeiros seis meses (dezembro de 1995 a maio de 1996), o ombudsman recebeu
1.241 denncias, 246 das quais foram de violncia policial cometida por ambas as
foras (abuso de autoridade, espancamentos, torturas e homicdios). Em sua avalia-
o de 1997 das prticas de direitos humanos ao redor do mundo, o Departamen-
19
Ao contrrio do que aconteceu em So Paulo, a administrao do Rio adotou uma pol-
tica declaradamente "dura", gerando um drstico aumento nas mortes causadas por policiais
militares. Depois que o general Nilton Cerquera tomou posse como secretrio da Segurana P-
blica em 1995, o nmero de civis mortos aumentou seis vezes, de uma mdia de 3,2 por ms para
20,55. (Human Rights Watch/Americas 1997: 15.)
20
A administrao Covas tambm comeou a publicar os nmeros de mortes pela polcia
civil, antes no disponveis. Elas foram 47 em 1996 e 18 em 1997. O nmero de policiais civis
mortos foi de 17 em 1996 e 11 em 1997.
178 Teresa Pires do Rio Caldeira
to de Estado dos EUA creditou ao ombudsman "o aumento do nmero de investi-
gaes criminais internas abertas pela polcia de So Paulo de uma mdia anual de
cerca de quarenta para mais de cem entre novembro de 1995 e junho de 1996"
(Human Rights Watch/Americas 1997: 53).
Desde 1995, a poltica do estado de So Paulo de controlar a violncia poli-
cial tem estado associada a um esforo federal na mesma direo, cujo principal
smbolo o Plano Nacional dos Direitos Humanos adotado pela administrao de
Fernando Henrique Cardoso em maio de 1996. Sua administrao tambm criou
um Prmio Nacional de Direitos Humanos para homenagear as pessoas que defen-
dem os direitos humanos, e comeou a oferecer indenizao a vtimas de abusos
durante o regime militar. Pela primeira vez nas ltimas dcadas, os direitos huma-
nos esto sendo publicamente defendidos pelo governo federal. A administrao
Cardoso tambm promoveu a transferncia de julgamentos de homicdios envol-
vendo policiais militares da Justia Militar para os tribunais civis (ver captulo 4).
No mbito estadual, a administrao Covas adotou um Programa Estadual de Di-
reitos Humanos em 1997.
Apesar de as polticas de controle de abusos adotadas tanto no mbito esta-
dual quanto no federal terem efeitos positivos no combate ao desrespeito dos di-
reitos humanos, elas no so fceis de implementar. Isso se tornou claro nos meses
de junho e julho de 1997, quando o Congresso estava debatendo a lei que transfe-
riria para os tribunais civis a atribuio de julgar crimes de policiais militares.
Concomitantemente, o governo federal, por intermdio de sua Secretaria Nacional
de Direitos Humanos, estava elaborando um projeto de reforma policial para ser
enviado ao Congresso, e o governador Covas apresentou uma proposta para trans-
ferir todas as atividades de patrulha para a polcia civil e eliminar a diviso entre
as duas corporaes policiais. Com o pretexto de exigir aumentos de salrios, a
polcia respondeu com greves e motins nas principais capitais e em alguns casos as
duas foras policiais trocaram tiros e agresses. Esses incidentes foram amplamen-
te documentados pela mdia.
A resistncia a reformas vem no apenas da polcia, mas tambm da populao
e da mdia. Apesar do ultraje pblico depois do massacre de 1992, da reverso das
polticas pblicas e de seus resultados positivos, continua a existir significativo apoio
a uma polcia "dura". Na semana seguinte ao massacre, por exemplo, policiais e alguns
polticos, como o deputado Conte Lopes, organizaram manifestaes a favor da PM.
Estas atraram considervel nmero de pessoas, causando grandes congestionamentos.
Eventos da campanha eleitoral de 1994 revelam outras perversidades e ambigida-
des. O comandante da PM durante o massacre, coronel Ubiratan Guimares, apre-
sentou-se como candidato a deputado estadual. Ele fazia parte de um grupo de polticos
de direita que apiam a violncia policial e que se auto-intitula "bancada da segu-
rana" .21 Tanto o coronel Ubiratan Guimares como Afanasio Jazadji (que concor-
21 Esse bloco inclu os seguintes deputados: Afanasio Jazadji, que defende a tortura e ataca os
direitos humanos em seus programas de rdio, e foi o deputado mais votado em So Paulo em 1986;
Erasmo Dias, ex-secretrio da Segurana Pblica sob o regime militar; o ex-policial militar Conte Lo-
pes Lima, o mais ativo defensor da PM quando do massacre de 1992; e o delegado Hilkias de Oliveira.
Cidade de Muros
179
riam por partidos diferentes), eram identificados pelo nmero 111, ou seja, o nme-
ro de mortos na Casa de Deteno. Assim, deixaram claro no apenas o tipo de polcia
que apiam, mas quanto espao existe para endossar pblica e diretamente a prti-
ca da violncia. O nmero de votos que os candidatos da bancada da segurana re-
ceberam no foi muito expressivo se comparado aos votos que alguns deles recebe-
ram em eleies anteriores, mas foi suficiente para eleger trs deles.
22
Juntos, eles
somaram 191.231 votos, ou 1,76% do total de votos vlidos. Esse resultado en-
corajador se considerarmos que em 1986 Afanasio Jazadji foi eleito com mais de meio
milho de votos numa campanha baseada no ataque aos direitos humanos.
O episdio da Casa de Deteno e sua cobertura pela imprensa renem alguns
dos tpicos de debate pblico mais importantes durante a consolidao democrtica
no Brasil. Nos debates que apareceram na imprensa, a questo do sistema judici-
rio foi quase totalmente ignorada. Houve pouca discusso sobre os parmetros de
legalidade versus ilegalidade ou sobre o papel que o judicirio deveria exercer na
investigao das aes (por exemplo, a questo de que a Justia Militar, e no a
civil, estaria encarregada das investigaes). Em vez disso, a imprensa exigiu inves-
tigao e punio por parte do executivo e do legislativo. Isso pressionou o governa-
dor a substituir o secretrio de Segurana Pblica e deu incio a uma discusso sobre
a abertura de uma comisso de inqurito dentro da Assemblia Legislativa. Isso revela
no s os limites da conscincia sobre o papel do judicirio e dos direitos civis no
Brasil, mas tambm alguns vieses sobre como resolver conflitos. O Judicirio- am-
plamente tido como ineficaz - no foi de imediato considerado como a institui-
o que deveria conduzir a investigao, reparao e punio; esperava-se que ou
o Executivo ou o Legislativo executasse essas tarefas. Ao no trazer os temas da
legalidade, da justia e do judicirio para a frente do debate, a imprensa ajudou a
reproduzir as discusses sobre a violncia no nvel em que elas so determinadas
pela violncia extralegal do Estado e pelo sentimento popular: ela tacitamente re-
conheceu que decises autnomas das autoridades policiais no so submetidas a
um sistema de accountability, e que vinganas privadas rotineiramente passam ao
largo do sistema judicirio. Poder-se-ia argumentar que a imprensa estava apenas
reproduzindo fielmente uma questo social, algo confirmado pelo fato de que at
agora a nica punio ocorrida em relao a esse caso foi um ato do executivo (a
suspenso de seis comandantes pelo governador Fleury e a demisso do secretrio
de Segurana Pblica). Entretanto, pelo fato de essa mesma imprensa ter se orgu-
lhado de instigar mudana ao forar uma investigao de corrupo no executivo
e o impeachment de um presidente poucos dias antes do massacre, era razovel es-
perar que ela desempenhasse papel semelhante aps o massacre. O fato de que isso
no aconteceu revela os desafios que a questo da violncia e da justia apresen-
tam ao processo de democratizao.
A histria recente das polticas de segurana pblica mostra que dois gover-
nadores preferiram o caminho mais popular de garantir a impunidade da polcia e
22
Conte Lopes foi eleito com 66.772 votos; Afanasio Jazadji foi eleito com 58.326 votos;
Erasmo Dias foi eleito com 28.178 votos; o coronel Ubiratan teve 26.156 votos e no foi eleito;
Hilkias de Oliveira obteve 11.799 votos e no foi reeleito.
180 Teresa Pires do Rio Caldeira
fechar os olhos s violaes e ao crescimento da violncia que as acompanha. Fa-
zer cumprir o estado de direito no campo dos direitos civis e individuais uma
poltica mas que Montoro e Mrio Co:as .. Pode-
se concluir que, Ja que a tendenCia tradicional e o abuso, parece ser mais Simples
aquiescer a ela do que tentar consolidar o estado de direito. Tambm claro que
apenas uma forte vontade democrtica, embora necessria, no suficiente para
criar uma sociedade respeitadora dos direitos humanos e reverter o padro tradi-
cional de abusos, se uma parte dos cidados opem-se a isso.
Essa histria de abusos que culmina com o episdio da Casa de Deteno
tambm indica a importncia da opinio pblica e das concepes de violncia como
um remdio para a violncia. importante, ento, analisar a viso da populao
sobre a polcia e o sistema judicirio e a lgica que est por trs de seu apoio vio-
lncia. Essa anlise ajuda a explicar o papel enfraquecido do judicirio e a preferncia
em resolver conflitos ou por um ato do executivo ou por um processo privado.
A POLCIA VISTA PELOS CIDADOS
As camadas trabalhadoras brasileiras experienciam a violncia diariamente,
tanto por parte de criminosos como da polcia, que as transformou em seu alvo
principal.
23
Em conseqncia, os membros das camadas trabalhadoras no confiam
na polcia e dificilmente tm uma viso positiva dela. Na maior parte dos casos,
eles tm medo da polcia, e com razo.
5.1
-Olha, se chegar pra mim um cara e falar pra mim "eu sou bandido, eu vou levar a se-
nhora at em casa", eu aceito mais do que um cara fardado chegar perto de mim: "eu sou policial
e vou levar a senhora". No, eu no confio na polcia. Tenho medo de polcia ( ... ) Duas vezes
quase que eu fui levada at presa.
Empregada em servio de limpeza em aeroporto, Cidade Jlio, 34 anos, casada, trs fi-
lhos; o marido est desempregado.
5.2
-Voc sabe que a polcia confunde, ou muitas vezes, pra se nomear, pra se engrandecer,
ela mata, inconscientemente, um inocente, acusando como bandido. Ela bota o revlver ali na
mo do coitado. Voc pode, , se voc no tiver amizade, no tiver sabedoria ... teu filho morre
como bandido sem ele ser bandido, porque a polcia matou por engano, mas ele ps como ban-
dido e vai como bandido( ... ) Eu estou sabendo de um aluno, porque no estava com documento,
saiu correndo de medo da polcia e foi atirado e foi mantido como bandido, sem ele ser.
Dona de casa e lder de bairro,Jaguar, 35 anos, 4 filhos; o marido trabalhador especia-
lizado de uma fbrica txtil.
23
H tambm considervel violncia domstica em todas as classes da sociedade brasileira.
No captulo 9 discuto o tema do castigo fsico de crianas.
Cidade de Muros
181
5.3
-A polcia s prende esses cara trabalhador, esses trabalhador que trabalha, pai de fa-
mlia. A eles prendem, batem, fazem o que querem. Agora, esses bandidos a, no(. ..) Se um
cara desses, um pai de famlia, esquece o documento em casa, mesmo que ele esteja com a
marmita, se ele esquece o documento dele em casa e a polcia pegar ele a na rua, a, ele vai
pra cadeia. Mas se for um bandido, no (. ..) Rouba no fim da tarde, os caras prende, divide
0
dinheiro ... O mundo t completamente virado, no tem jeito.
Auxiliar de escritrio, 7 8 anos, Jardim das Camlias, mora com os pais, uma irm e dois
sobrinhos.
Para a maioria dos membros das classes trabalhadoras, suas experincias com
a polcia so de arbitrariedade. Suas descries de como a polcia mata por engano
e encobre os assassinatos coincidem com os relatos das organizaes de direitos
humanos e os de Barcellos (1992): o padro bem conhecido. A polcia confunde
trabalhadores com criminosos, usa de violncia contra eles e tenta disfarar seus
erros. Para a polcia, como para muita gente, a fronteira que separa a imagem do
trabalhador pobre da do criminoso de fato muito tnue. Em conseqncia, mem-
bros das classes trabalhadoras podem ser molestados pela polcia, mortos como
criminosos e suas reaes naturais de medo (como fugir) podem ser interpretadas
como comportamento de criminosos. As narrativas de pessoas das classes traba-
lhadoras esto cheias de exemplos de problemas causados por essa confuso entre
trabalhadores e criminosos, assim como de expresses de indignao geradas por
ela. Alm disso, seu discurso pontuado por referncias a sinais que deveriam pro-
var suas identidades como trabalhadores e sua dignidade, como a carteira profissio-
nal, a marmita e os calos nas mos. No entanto, mesmo os sinais mais claros po-
dem ser ignorados por uma fora policial que, na opinio popular, pode ser vio-
lenta com os trabalhadores mas branda com os criminosos. As razes que os tra-
balhadores do para pensar que os criminosos recebem "melhor tratamento" se
enquadram em duas categorias. De um lado, acreditam que a polcia tem interes-
ses monetrios no crime e nos criminosos: os policiais so corruptos e podem estar
envolvidos diretamente com o crime. De outro, esto convencidos de que a polcia
no est bem preparada para cumprir suas tarefas. Em ambas as circunstncias, as
imagens usadas para caracterizar o criminoso tambm podem ser usadas para des-
crever a polcia.
5.4
Ainda ontem mesmo eu estava escutando no rdio, o reprter falando que parece que
j foi preso trs policial e um delegado, eles mesmo esto roubando! Quer dizer que os prprios
policiais so bandidos tambm(. ..) Mas o pior que essa Rota a, eles s vezes matam at pessoas
inocentes. Ento, eles matam as pessoas inocentes enquanto que os bandidos esto a soltos
na rua. Agora: por que que no prende os bandidos? Porque eles do dinheiro para eles, n?
Eu acho que sim. Porque eles vo roubar, eles dividem com eles e tudo bem, a vai passando.
Dona de casa, Jardim das Camlias, 33 anos, quatro filhos; participou de vrios movimen-
tos sociais e associaes locais; o marido trabalhador especializado de uma pequena fbrica
txtil.
182 Teresa Pires do Rio Caldeira
5.5
_Eu no vejo eles muito como ... funcionrios do estado, eu vejo eles mais merc das
coisas; eles esto a mais para ganhar o deles ... em termos de comercializao e trfico de drogas,
em termos de comandarem ... no sei o termo disto, mas ... a prostituio, de comandarem re-
des de hotis especializadas em uma hora, esses hotis que se alugam por hora. E dentro da
polcia h muitos interesses pessoais entre eles, aglomerao de homens; eu sempre vi isso
como algo que sempre tende ... algo meio fora, algum desvio ... Em suma, a polcia para mim
tambm corrupta. Porte de armas, armas, drogas, coisas assim que so ... que envolvem muito
dinheiro, sabe? Ela tem a funo de apreender essas coisas; ela apreende e joga de novo, e criam
um capital para comprar hotis.
Universitrio, 23, Moca, desempregado; tem diploma de comunicao com especializa-
o em rdio, mora com os pais.
Mesmo quando no se acha que a polcia corrupta, considera-se que ela est
despreparada para a funo. Em geral, afirma-se que a polcia est prxima dos maus
elementos do ambiente do crime: perverso, doena, prostituio e ms influncias
so apenas alguns dos elementos de uma longa lista.
5.6
-O que que eu acho da polcia? Olha, eu acho o seguinte: lamentvel, n?, com traba-
lhadores como ns. Mas lamentvel que a polcia hoje est muito despreparada. No por
culpa do soldado, do policial; mais uma vez, a estrutura geral que est muito despreparada.
[Ele argumenta que os homens que se tornam policiais so-muito jovens e sem o neces-
srio treinamento. Por isso, sentem-se inseguros e com medo quando tm de enfrentar os cri-
minosos. Em conseqncia, usam suas armas mais do que o necessrio a fim de superar seus
medos ou s vezes "s para mostrar que so homens". Alm disso, dada a falta de instruo, eles
no tm noo de que esto l para servir a sociedade, que so pagos com o dinheiro dos im-
postos e que no deveriam molestar os cidados comuns.}
-Hoje em dia o policial encara todo mundo, todo mundo pra ele bandido, todo mun-
do pra ele marginal, todo mundo merece ser preso e todo mundo tem que respeit-lo. la-
mentvel, falta de preparo. A polcia sempre foi despreparada e est piorando. Nunca foi boa.
Proprietrio de um bar, Moca, tem diploma de direito mas no exerce a profisso; sol-
teiro, mora com trs colegas.
5.7
-A polcia uma calamidade pblica! Acho que falta de capacidade dos policiais. Eu
acho que eles pegam qualquer um pra ser guarda. Pegam qualquer um que vem l da Paraba,
do Maranho, daqueles fim-de-mundo l; no sabem nem ler e guarda! PM! Que que um
cara desses entende? Principalmente de lei? Deve ser isso, n? Voc no v, na polcia, voc
no v paulista nato; voc v tudo nortista!(. ..) A polcia, qualquer dez cruzeiros compra uma
polcia! Eles to l, mais ou menos nesse bloco a, pra pegar dinheiro mesmo. Eles quer dinhei-
ro, principalmente a PM.
Operrio especializado, aposentado, Jardim Marieta; cerca de 60 anos, casado, dois
filhos.
Cidade de Muros
183
5.8
-A polcia? A polcia tem medo de enfrentar bandido armado! S a Rota que no rateia
-a Rota o tipo do Esquadro da Morte ... O resto! ... Voc sabe que se voc depender de um
policial pra te defender, voc pode esquecer. Em mil, se encontra um que tem coragem, que
ele pensa na famlia dele ( ... )A polcia no tem uma base de treinamento, eles no tm uma
base de educao. E a maioria, agora eles to comeando a ter um pouquinho de educao
com o pblico. Mas a maioria deles eram uns cavalos, uns animais. Ningum desmente. A maioria
deles eram uns cavalos, ignorantes ... e uns analfabetos!( ... ) Se eu depender de socorro da polcia,
mais fcil eu pedir socorro pra um bandido e ele me socorrer de outro bandido do que a po-
lcia. Que que eles falam? "Eu tenho filho pra criar, eu tenho uma casa pra sustentar, eu no
vou morrer a, porque eu no ganho salrio pra isso." Quer dizer, a gente picha, mas no pra
pichar o policial, mas pichar a base de onde vem. E quem a base? O governo! Ento, eu
acho que nisso o governo tinha que dar apoio maior, um apoio moral, um apoio financeiro,
porque eles se expem ao perigo, a gente tem que ver isso, n?
Dona de casa e lder de bairro, Jaguar, 35 anos, 4 filhos; o marido trabalhador especi-
alizado de uma fbrica txtil.
Mesmo quando as pessoas conseguem entender os perigos enfrentados pe-
los policiais e suas ms condies de trabalho- muitos dos quais vivem nomes-
mo bairro- e encontram alguma justificativa para sua ineficincia, elas no dei-
xam de critic-los. Essa crtica elaborada por meio de associaes da polcia com
os esteretipos e elementos que compem a imagem do criminoso: eles so con-
siderados como vindos do Nordeste, mal-educados, animalescos, ignorantes (so-
bre seu papel pblico) e assim por diante. Na verdade, quando as pessoas falam
sobre crime, os dois principais personagens do universo do crime o cnmmoso
e o policial- no esto em lados opostos, mas, ao contrrio, compartilham mui-
tas caractersticas.
Muitas vezes, e especialmente em narrativas das classes mais altas, a polcia
descrita com os mesmos esteretipos que degradam os pobres. Por exemplo, na
citao 5.6, a arrogncia do policial (retratado como algum sem educao) com
uma arma nas mos descrita da mesma forma que uma entrevistada da classe alta
descreve a arrogncia de um trabalhador que compra um carro novo (citao 2.14).
Essa tendncia tambm aparece no comentrio a seguir sobre os riscos envolvidos
na expanso dos servios de segurana privada.
5.9
- Logicamente que voc soltar carinha de firma por a armado pela cidade mais um
risco. Quer dizer, com os policiais j uma coisa horrorosa. Voc imagina ... se voc expande o
nmero de caras armados, eu acho que pensando em termos globais, deve dar uma coisa meio
ruim( ... ) Voc pode at argumentar que isso tanto faz ser pblico ou privado, os caras que esto
armados so todos provenientes da mesma mentalidade, da mesma classe social, e to des-
preparados quanto, ou to prontos a usar as armas para qualquer bobagem quanto.
Jornalista free lance, 43 anos, Morumbi; divorciada, dois filhos.
A fuso de imagens de criminosos com as de policiais, e das de ambos com as
184 Teresa Pires do Rio Caldeira
d S
P
obres freqente em discusses sobre o crime. Em todas as circuns-
imagens o '
" nfuso pode levar morte- de pessoas da classe trabalhadora. Con-
tanCias, a co f' d
.. t mente no s as pessoas esto sempre com medo e descon 1a as, mas tam-
sequen e ' - d "
, f' difcil imaginar a reao certa- correr ou nao correr- quan o se veem
bem tca . . d . .
a
ra com policiais ou com cnmmosos. No caso os cnmmosos, parece que
cara a c ,
fingir ignorncia uma das melhores satdas.
5.10 . . d' d .
A_ Muitas vezes acontece um assalto ali, da a vizinhana ca1 em c1ma tzen o que e
1
aquele_ a polcia fala: "eu no peguei de flagrante, ento no levo", e vai embora. E
aque e, . d , t h
0
que acontece? o cara, pra se vingar, sa matando meto o, que e o que acon ece OJe
d
. por a: "Ah voc me entregou pra polcia ... ", que muttas vezes acontece. Isso
em ta _ _
1
, 7 ( ) E
acontece um crime assim na rua ... A populaao nao colabora a tcta por tsso, ne ....
d
de dar vingana, ele pega e no fala nada; pega, fala que nao v1u nada. Eu mesmo, se eu
me o E f.. - . d S
ver um ladro matando algum, eu mesmo no vou querer saber. u tnJo que nao v1 na a. e
a polcia me perguntar, eu vou falar: eu no nada. .
7
_Se por acaso voc for assaltado, voce acha que vale a pena dar "
A_ Eu acho que no vale, no. A gente vai dar a queixa, o delegado va1 perguntar onde
f
7" a gente faz tudo e ainda sai louco da vida, sabe que a gente vira as costas, ele rasga
OI ISSO. I
0 papel e joga fora. . , . , .
o mais velho dos trs irmos que vivem no Jard1m das Camelws- 22 anos, mecamco de
automveis e casado.
Em situaes de crime e violncia, os trabalhadores sentem-se
Ficam paralisados entre o medo da polcia, o medo da vingana do e,
como veremos, a crena de que o sistema judicirio incapaz de oferecer justia.
Sem proteo, adotam o silncio como uma maneira de manter boas relaoes com
criminosos que podem at conhecer pessoalmente. . .
Ironicamente ou no, essas vises foram confirmadas por um pohctal, um. PM
que mora no Jardim das Camlias, que se descreve como um e mte-
grante das classes trabalhadoras, e que compartilha muitas das opm10es de seus
vizinhos, incluindo a de que o silncio uma boa ttica para lidar com ameaas de
vingana.
5.11
PM _Fim de semana prolongado um desastre. O pessoal sai para viajar, quando volta
na segunda-feira ou no domingo noite, aquele monte de que a t arrom-
bada, levaram tudo. E
0
pior de tudo que a vizinhana no ve. Altas, o povo ve e tem medo
de avisar.
-E porque o povo tem medo de avisar? , . , .
PM- Devido fragilidade das leis. Ele sabe que se ele avisar a PM, ou a pol1c1a, a pol1c1a
civil, qualquer uma que seja, ele no vai ter proteo.
-Como assim?
PM A gente no pode dar proteo individual, n? A no ser venha de uma or-
dem superior que a gente tem que fazer a proteo daquela pessoa dev1do ela ser testemunha
185
Cidade de Muros
de algum crime, ou coisa parecida. Agora, se simplesmente a viatura passar e ela falar "olha
tem dois bandidos dentro daquela casa ali" ... tudo bem, a gente vai l e prende o cara, s
aquela pessoa depois fica merc dos bandidos. A gente no vai poder estar passando toda
hora na frente da casa dela, olhar se est tudo bem e tal. Muito porque o material blico nos-
so - material blico que eu digo viatura, essas coisas - frgil.
E que mais que voc acha que precisaria mudar para facilitar o trabalho de vocs?
PM - Nosso? Nosso no precisava mudar muita coisa, no. S haver justia. Porque
desanimador voc levar o indivduo para o Distrito ... Porque a corrupo tem em todos os lu-
gares. No estou querendo escapar a PM tambm disso. Tem certos policiais corruptos. Mas
na rea da polcia civil, aqui em So Paulo, mais. desanimador voc pegar um indivduo,
levar para o Distrito e o delegado- coisa que eu j vi-, o delegado pegar o dinheiro do cara
e falar assim: "Deixa o PM sair pra no ficar mal, que eu vou te soltar atrs". Eu j vi isso acon-
tecer, eu sair e ficar olhando o cara sair pela outra porta. Quer dizer, j passa da, n? Eu acho
que no Brasil tambm deveria arrumar um jeito de acabar com a corrupo, porque est vi-
rando um ... Outro dia eu estava comentando com um colega meu que isso aqui virou um
Paraguai. Aqui tudo na base do dinheiro. Voc quer conseguir alguma coisa, voc paga. En-
tendeu? ... Tem muita gente que deve na rua devido corrupo. Teria tambm que haver uma
legislao eficiente em relao corrupo( ... ) Se houvesse justia, mais alguma reformulao
nas leis ... no precisava ser muito, o cara dar uma estudadinha melhor para ver se d para
reformular da forma que a gente quer. (. ..)
O polcia militar muito ridicularizado. Eu estava comentando que, antigamente, h uns
tempos atrs, o polcia militar, era um orgulho andar fardado na rua. Hoje em dia motivo de
vergonha, o policial anda fardado, ele anda meio assim olhando, pra ver se t bem ... Os caras
ficam olhando para ele, ele j acha que os caras esto rindo da cara dele(. .. ) s vezes por falta
de respeito, s vezes pela brutalidade dos prprios polcias. Que tem polcia hoje em dia ... No
vamos atribuir toda a falha sociedade, eu acho que tem polcia hoje em dia tambm que no
est preparado para exercer a funo. Onde ele vai, j mostra a carteira: "sou polcia, no sei o
qu". Isso a no devia acontecer, n? o abuso. Ele gosta de prevalecer pela farda ou pelo
fato de ele ser polcia ( ... )A populao fala mesmo, no gosta de polcia, no sei por qu. No
sei se por causa das leis, sei l, sei que de certa forma o pessoal no gosta de polcia. Inclu-
sive a populao tem medo da polcia hoje em dia, n?
Policial militar, Jardim das Camlias, cerca de 30 anos, casado com uma mulher que tra-
balha como secretria em uma fbrica, um filho; nas horas de folga trabalha como segurana
particular.
Em suas descries de criminosos, as pessoas que entrevistei sempre melem-
bravam que preciso ter cuidado com generalizaes, que em qualquer catego-
ria h bons e maus elementos. O mesmo deveria valer para discusses sobre a po-
lcia. Mas mesmo quando um policial age do modo como deveria, a desconfian-
a popular to difundida que as pessoas preferem manter suas avaliaes ne-
gativas e ver o caso como uma exceo. Essa foi a atitude de uma entrevistada da
Moca que me disse que um policial tinha devolvido trs correntes de ouro que
lhe haviam sido roubadas num semforo. Quando o policial ligou, ela sups que
ele queria dinheiro. Quando percebeu que ele estava realmente devolvendo as
correntes, ela ficou to abismada que escreveu para a coluna do leitor da Folha
186 Teresa Pires do Rio Caldeira
de s. Paulo. Apesar disso, no entanto, sua opinio sobre a polcia continua inal-
terada: "Esse caso no me convenceu, mas at hoje eu admiro ele". Se levarmos
em considerao a arbitrariedade e a violncia da polcia, a constante confuso
(trabalhadores tidos por criminosos, policiais tidos por crimin?sos), a identifica-
o de criminosos com policiais (tanto simblica como matenal) e com
pobres- em suma, o contexto de incerteza, e medo poliCiais
quanto dos criminosos -, podemos apenas conclmr que a pohCia esta longe de
ser capaz de oferecer um sentimento de segurana s classes trabalhadora e m-
dia baixa. A populao freqentemente se sente pressionada contra a parede e sem
alternativas.
5.12
-Voc vai procurar sada de que jeito? No tem soluo pra procurar uma sada des-
sas ... que soluo que voc vai procurar? Voc vai, voc vai fazer reclamao de um polcia, ele
vai te perseguir depois ... E a gente tem medo de morrer, que essa gente anda tudo armado!
Voc vai fazer uma queixa de um poltico ... se ele descobrir que voc, eles vo mandar te
prender ... Ento, voc no pode fazer nada. Voc t mal, voc quer fazer as coisas e no pode
fazer. Se voc for fazer, voc vai preso ... t condenado morte!
Operrio especializado aposentado, Jardim Marieta, cerca de 60 anos; casado, dois
filhos.
O sistema judicirio est to longe de ser visto como confivel que em muitas
entrevistas nem foi mencionado como um elemento no controle do crime: o uni-
verso do crime parece incluir apenas criminosos, policiais e cidados impotentes,
que tm de negociar sua segurana por conta prpria e entre si. O sistema judici-
rio visto como totalmente enviesado contra trabalhadores, a quem no oferece-
ria a possibilidade de justia. Nas entrevistas com pessoas de todas as classes so-
ciais, a reao mais comum a menes do judicirio foi: " uma brincadeira, uma
piada!". Freqentemente, as pessoas no quiseram entrar em detalhes: era algo bvio.
Algumas pessoas, entretanto, estenderam-se em suas opinies.
5.13
-A justia neste pas no funciona. Isto eu afirmo por mim mesmo porque eu vejo as
coisas acontecerem e as coisas no tm uma resposta satisfatria para todos. A justia, a lei,
neste pas, no existe. O setor judicirio noexiste. Vida de advogado meio que farsa neste
pas. Infelizmente a maioria tem que se corromper para sobreviver, tem que favorecer a essas
pessoas que tm poder. Eu adoro a imagem do advogado, mas a imagem universal do advo-
gado; a imagem do advogado no Brasil para mim ultrajante. Para voc conseguir uma coisa
que voc sofreu que voc tem que remediar e depende da justia, alm de voc ir envelhecen-
do com essa perda que voc teve, de ela no ser remediada a curto prazo, alm de voc s
conseguir esta coisa daqui a anos, voc gastou muito. Hoje quem usa um advogado tem que
ter dinheiro tambm ...
Universitrio, 23 anos, Moca, desempregado; tem diploma de comunicao com espe-
cializao em rdio, mora com os pas.
Cidade de Muros
187
5.14
- Ele (Doca Street) devia ficar preso, pegar aquela priso perptua, porque ele matou a
moa a sangue frio. Vi passar isso da, no era pra ele estar solto de jeito nenhum.2
4
-E por que voc acha que deixaram ele solto?
-Eu acho que foi dinheiro, muito, porque matar uma pessoa assim friamente que nem
ele matou ela, era pra estar preso o resto da vida dele. Foi absolvido, voc v: a gente nem sabe
dizer se a justia justa ou se no (. ..) Eu garanto que se fosse uma pessoa bem pobre, que
no tivesse dinheiro, tava na cadeia ainda (. .. ) Cara bem rico, ele pode contratar os melhores
advogados e nisso a ele pode ser solto; um pobre, coitado, no tem dinheiro nem pra cair morto,
como que vai pagar advogado? ... Sei l, a justia, voc v o caso desse outro homem: ele era
inocente, porque ele matou pra se defender, dentro da casa dele, quer dizer que no era pra
estar preso! Ele no matou pra se defender e pra defender a esposa e os filhos? Eu acho que
no era pra ele estar preso.
Dona de casa, ex-empregada domstica e operria, Jardim das Camlias, 28 anos, casa-
da, trs filha; seu marido assistente de enfermagem em um hospital.
5.15
-Eu sempre falo para o meu cunhado, quando eu fico revoltado com alguma coisa, que
aqui no Brasil no tem lei. O pas sem lei, no ? Acontece coisa, desgraa com o cara que
pobre, um coitado, fica por isso mesmo. Tenho at prova de um caso que aconteceu com um
ajudante ...
[Ele conta o caso de um rapaz de 19 anos que trabalhava como ajudante de um motoris-
ta de caminho de uma empresa de transportes. Ele foi morto por um outro caminho que fez
uma manobra errada num posto de gasolina. As pessoas viram o caminho, anotaram acha-
pa e foram at a empresa, mas o dono recusou-se a dar o nome do motorista, e a polcia no
fez nada.}
Quando acontece alguma coisa, por exemplo: um empresrio seqestrado, notcia o
ano inteiro. A polcia vai atrs, vai fundo.
Vendedor desempregado, 32 anos, solteiro, mora com uma irm casada na Moca.
Essas opinies so claramente confirmadas pelos indicadores disponveis. De
todos os crimes registrados pela polcia civil no municpio de So Paulo em 1993
24
Ela se refere ao famoso crime envolvendo duas pessoas da classe alta e freqentadores
assduos de colunas sociais. Doca Street matou sua namorada, ngela Diniz, e foi absolvido du-
rante um julgamento controvertido no qual seus advogados argumentaram que ele tinha agido em
"legtima defesa da honra". O julgamento provocou uma forte reao das feministas, que desa-
fiaram o argumento jurdico de "legtima defesa da honra" usado para absolver homens que ma-
tam suas mulheres. Para uma histria desse argumento e de como seus usos tm mudado, ver
Ardaillon e Debert (1987) e Americas Watch (1991a). Tal argumento foi considerado ilegtimo
em 1991 pelo Supremo Tribunal Federal. interessante observar que a entrevistada das camadas
trabalhadoras que cito no est se referindo a esse crime da forma como ele geralmente discuti-
do - como uma prova de um sistema judicirio machista -, mas como uma prova de um siste-
ma judicirio com um vis de classe.
188
Teresa Pires do Rio Caldeira
(389.178 boletins de ocorrncia), apenas 20,4% resultaram na instalao de inqu-
rito. Na ltima dcada, essa taxa variou entre 17% e 21%. Em 1993, no que se
refere aos crimes de homicdio doloso, a taxa foi de apenas 73,8%, enquanto para
0
trfico de drogas ela alcanou 94,4% (Seade, dados no publicados).
Sentimentos de medo e vulnerabilidade em relao polcia, junto com a vi-
so de que o sistema judicirio tendencioso ou at mesmo totalmente injusto, fazem
com que pessoas das camadas trabalhadoras se sintam pressionadas contra a pare-
de. Algumas simplesmente aceitam o status quo. Outras procuram alternativas. Estas
so em geral encontradas fora dos limites da legalidade, e podem ser de dois tipos.
Por um lado, as pessoas consideram a possibilidade de reagir privadamente e fazer
justia com as prprias mos. Em geral, essa alternativa est mais no nvel do dis-
curso do que no da prtica. As pessoas podem expressar seu descontentamento e
sua frustrao defendendo a vingana pessoal, mas isso no significa que ajam dessa
maneira. Por outro lado, as pessoas apiam o uso de fora letal contra supostos
criminosos. Essas so reaes paradoxais, j que as pessoas esto geralmente pe-
dindo polcia, de quem tm medo, para ser violenta "com quem merece". Apesar
disso, sua lgica clara: uma vez mortos, os criminosos deixam de ser uma amea-
a. Entretanto, o paradoxo permanece: ao apoiar a ao violenta da polcia, ostra-
balhadores esto apenas ajudando a violncia a se espraiar e aumentando suas pr-
prias chances de vitimizao. Um entrevistado falou sobre seus problemas com a
companhia em que trabalhava at alguns dias atrs, que no pagara seu fundo de
garantia. Ele abriu um processo contra a companhia na Justia do Trabalho, mas
estava tendo problemas para lev-lo adiante.
25
5.16
-Explica pra mim aonde t a lei! Onde t a lei? Existe lei?
-A lei existe, na minha opinio, mas ela existe ...
-Aqui no Brasil no tem condies( ... ) Porque eu acho, sei l, eu sou um cara meio re-
voltado com injustia, viu, meu!. .. Eu no me conformo com uma coisa: por que o governo faz
tanta sacanagem com o trabalhador?(. .. ) A lei funciona pra um lado s. Pro lado do qu? Do
qu? Pra onde eles t ganhando dinheiro! Pro lado do dinheiro! lgico!! Rapaz, voc num
acha que um cara tem que ficar revoltado? Mas eu sozinho vou ficar revoltado? Vai adiantar
alguma coisa?(. .. )
Ento, o seguinte: o povo, o pobre, que no tem dinheiro, que se fode. isso que me
deixa mais irritado da vida por causa disso. Por que? S manda o dinheiro. E existe justia no
mundo? Por isso que eu falei pro dono da firma hoje, eu fui cobrar dele, eu falei: eu vou arre-
bitar voc, eu sei onde voc mora! Bicho, eu vou morrer na deteno.
-Que isso! No fala assim, cara!
- Os outros scios, tudo safado tambm. Porque no existe lei nesse mundo. Ento,
lei voc tem que fazer com as prprias mos.
-E isso leva a qu?
25
Entrevista de Antonio Flvio Pierucci (F), integrante da equipe de pesquisa do Cebrap.
Cidade de Muros 189
-Adianta alguma coisa, porque voc fez justia. J que no existe lei, voc fez justia
com as prprias mos. Eu acho bacana isso.
Trabalhador especializado em uma indstria metalrgica, recm-demitido do emprego;
Cidade Jlio, 27 anos.
O forte sentimento de ser continuamente urna vtima de injustias, no im-
porta o quanto se trabalhe ou quo bem (ele trabalhava desde os 11 anos), dras-
ticamente expresso por este entrevistado: a vingana privada e individual defen-
dida corno o nico recurso ainda disponvel- embora isso provavelmente viesse a
destruir sua vida. Algumas vezes, entretanto, as pessoas imaginam formas priva-
das de vingana que seriam menos arriscadas. Algumas pessoas acham que a ad-
ministrao da justia sumria deveria ser um trabalho da polcia. Esse o tipo de
raciocnio que apia as execues sumrias da polcia e no mbito do qual a vio-
lncia e a ilegalidade policial podem ser vistas corno positivas. Nesse contexto, o
Esquadro da Morte e a Rota, em vez de temidos, so admirados pelo pblico -
um sentimento que policiais militares esto sempre prontos a citar para justificar
seus abusos. Exatamente o mesmo tipo de percepo que leva ao apoio aos justi-
ceiros e tolerncia com linchamentos.
5.17
-Eu queria que existisse ainda o Esquadro da Morte, sabe? O Esquadro da Morte a
polcia que s mata; o Esquadro da Morte a justia com as prprias mos. Eu acho que podia
existir isso ainda. Tem que fazer justia com as prprias mos, mas os prprios delegados fa-
zer, as prprias autoridade, no a gente. Por que que a gente vai pegar o cara e matar? Por
que que a gente paga imposto? Pra isso, pra ser vigiado, pra ter melhores condies, como
que chama?- materiais. No adianta a gente linchar, o direito tinha que ser deles, o dever
deles, que a gente paga imposto pra isso.(. .. ) A lei tem que ser essa: matou, morreu.
Auxiliar de escritrio, Jardim das Camlias, 7 8 anos; mora com os pais, uma irm e dois
sobrinhos.
5.18
- Esquadro da Morte foi jia, foi a melhor polcia que teve. Depois que entrou o Es-
quadro da Morte e matou o Saponga, matou ele l no Trememb, acabou. So Paulo ficou
at 72 sem ter crime igual tinha antes. Foi uma beleza. Depois comeou a condenar os caras
do Esquadro da Morte. Era bom, e , o Esquadro da Morte, mas matar o cara certo, enten-
deu?, matar o cara certo. Que o cara que no presta tem que morrer mesmo- fica a comen-
do comida, atrapalhando a vida dos outros, ento some logo com ele, d lugar pra outro.
- Mas quem que decide quem o cara certo e quem o cara errado?
- no flagrante, pegar o cara roubando na hora. Se o cara sabe que o cara perigoso,
ento vai procurar o cara. Pegou, matou. Nada de prender. Prender j era!
Motorista, Jardim das Camlias, 32 anos; foi motorista de txi e agora trabalha como
motorista para um instituio pblica; casado, quatro filhos.
Para algumas pessoas, pedir justia polcia significa pedir a ela para exercer
vingana imediata- corno freqentemente ela faz-, sem a mediao do sistema
190
Teresa Pires do Rio Caldeira
judicirio e sem dar aos supostos criminosos a chance de subornar policiais. Desse
ponto de vista, a no_ mais nada a ver e/o ambos
considerados tendenciosos e InJustos-, mas tarnbern nao esta agmdo pnvadarnente
(como justiceiros). Seus integrantes ainda so vistos corno agentes pblicos, pagos
com dinheiro de impostos, mas pagos para serem os executores de uma vingana
imediata, de urna violncia que pode ser ilegal, mas que considerada justa e efi-
ciente. Essa viso tem implcita a imploso dos modelos legais dos papis da pol-
cia e da justia. A perverso desses modelos encontra sua lgica nas experincias
cotidianas de abusos e injustias praticadas pelas instituies da ordem, na ausn-
cia de urna noo de direitos individuais e no desejo de justia e vingana das pes-
soas. Se a lei fosse eficiente, se a Constituio fosse respeitada, talvez nada disso
fosse necessrio. Mas, j que as instituies da ordem falham, a vingana particular
parece necessria e as pessoas podem ir at o ponto de defender o linchamento, algo
que tambm tem crescido no Brasil conternporneo.
26
Um dos efeitos mais paradoxais da experincia de contnuas arbitrariedades
e injustias sofridas pelas classes trabalhadoras que respeitar a lei pode ser visto
corno urna forma a mais de injustia. A aplicao de princpios legais ou o reco-
nhecimento de alguns direitos podem ser percebidos apepas corno urna outra for-
ma de abuso e negligncia em relao aos direitos das camadas trabalhadoras. Urna
indicao nesse sentido a campanha contra os direitos humanos que analiso no
captulo 9. Outra o exemplo sempre repetido (por exemplo, 5.14) de que injus-
to condenar um homem que mata a fim de defender sua famlia.
5.19
-Eu acho tambm que a polcia, eles do muita colher de ch para esses bandidos. Que
uma coisa que me revolta que um bandido pode matar um pai de famlia, agora, um pai de
famlia no pode matar um bandido. Se ele entra na minha casa, quer dizer que eu no posso
fazer nada, agora eles podem pintar e bordar. Eu me revolto. E eu digo firme: eu sou a favor
da pena de morte, que Deus me perdoe, mas(. ..) ... eu acho que quando eles falavam nos direitos
humanos eles acham que no pode matar ningum, n? Acho que ... sei l. .. Agora, eu no concor-
do. Eu mesmo, tenho um conhecido meu, ele tinha uma mercearia, pequena; os bandidos entra-
ram, acho que pela terceira vez, roubaram, ele achou que era um de desaforo, n? Foi, atirou.
Um morreu, o outro parece que foi preso. Ele, coitado, teve que fugir. Fechou a mercearia, abando-
nou tudo, foi embora para o interior de SP. Agora, o outro que foi preso, no outro dia tava na
rua. Agora, ele falou que quando ele encontrar, ele vai matar; eles ainda entram, eles roubam
e ainda ameaam o pai de famlia que precisou largar sua casa, seu lar, deixou tudo. Fechou,
no mexeu em nada, no voltou mais no local, com medo. Eu no concordo de jeito nenhum.
Dona de casa, Jardim das Camlias, 33 anos, quatro filhos; participou de vrios movimen-
tos sociais e associaes locais; o marido trabalhador especializado de uma pequena fbrica
txtil.
26
De acordo com Martins (1991: 22), entre 1979 e 1988 a imprensa registrou 272lincha-
mentos no Brasil, 131 no estado de So Paulo. Em abril de 1991, um linchamento foi transmitido
pela televiso em cadeia nacional.
Cidade de Muros 191
O exemplo do trabalhador pobre que punido por defender sua famlia e seu
trabalho revela a perplexidade das pessoas em relao aplicao da lei. Por que
as pessoas deveriam ser punidas em casos de "defesa da honra"? Este argumento
nos traz perigosamente para perto da justificativa para absolver homens que mata-
ram suas mulheres. As camadas trabalhadoras, entretanto, formulam uma outra
questo: por que deveria a lei, que nunca funciona mesmo, punir nesse caso? Mes-
mo quando a justia age corretamente, parece injusta, porque como se no levas-
se em considerao o contexto em que as coisas acontecem, um contexto definido
pela ineficincia das formas pblicas de reparao e proteo. Os perigos dessa viso
so imensos, j que ela articulada fora do parmetro da legalidade e de um siste-
ma pblico de restituio. Dois entrevistados perceberam claramente os perigos de
privatizar tal sistema.
5.20
O problema hoje em dia esse: a impunidade. Agora, no saberia como resolver isso.
No estou me colocando aqui como salvador da ptria. Estou vendo os problemas e no sei
como resolver. Eu acho que isso compete s autoridades.
- O senhor acha que individualmente as pessoas no vo conseguir resolver isso?2
7
- Individualmente, no.
-Por exemplo, onde eu moro as pessoas sabem da ineficincia do governo, dessa impu-
nidade que o senhor est colocando, comearam eles mesmos a contratar policiamento, eles
mesmos a ter armas em casa ...
-Eu acho que esse caminho a seria o extremo, seria o fim da nao, seria o fim do go-
verno. Se o governo no consegue conter o mpeto de criminalidade, seria o fim, seria o caos.
Atacadista, Moca, 45, casado; mora com a esposa e dois filhos.
5.21
-A fica um crculo vicioso: a populao fica ultra-revoltada pelas barbaridades que os
ladres, os criminosos, assaltantes, cometem. E cometem mesmo. Eu acho, por exemplo, em
nvel pessoal, que se algum matasse algum de minha famlia e eu visse que o cara no foi
julgado, no fosse condenado, eu mandava matar ou matava. A nvel pessoal, a entra toda
uma emotividade, mas a nvel terico, como funciona um estado de direito, como funciona
uma jurisprudncia, a eu acho que o negcio tem que ser de outro jeito. Os direitos humanos
so a base de uma civilizao.
Corretora imobiliria, 56 anos, divorciada, comeou a trabalhar em 1990; mora no Alto
de Pinheiros com uma filha.
A distino entre os sentimentos privados de vingana, a lei e a defesa do es-
tado de direito foi feita por vrias pessoas, especialmente aquelas das classes m-
dia e alta. Apesar de elas representarem uma minoria entre aqueles que entrevistei,
mesmo entre as camadas mais altas, claro que as questes da polcia e da lei so
Entrevista feita por Joo Vargas.
192
Teresa Pires do Rio Caldeira
vivenciadas e pensadas de uma maneira diferente pelas classes altas. Freqentemente,
elas tm conscincia do padro violento e arbitrrio do comportamento da polcia
e podem criticar a Rota por seu uso excessivo da fora. Todavia, ao contrrio das
classes trabalhadoras, as pessoas das classes altas raramente so vtimas de confu-
so e violncia por parte da polcia ou do sistema judicirio. Alm disso, no esto
preocupadas com a falta de proteo policial, porque podem comprar sofisticados
sistemas de segurana e pagar guardas particulares na verdade, todos os que
entrevistei em bairros da classes mdia e alta tinham alguma forma de segurana
privada. No que diz respeito lei, as classes altas se do ao luxo de poder no lev-
la em considerao. Nas entrevistas no Morumbi, explorei essa questo ao perguntar
as opinies dos moradores sobre dar permisso aos seus filhos menores de idade
para dirigir sem carteira de motorista, uma prtica relativamente comum entre as
classes altas. Algumas pessoas me disseram que no permitiriam que seus filhos
fizessem isso, argumentando que a lei existe para ser respeitada e que as crianas
devem conhecer limites. Essas respostas geralmente vieram de pessoas que se clas-
sificavam como conservadoras e eram a favor de uma educao rgida. Outras,
entretanto, defendiam publicamente tal prtica.
5.22
-Criei trs filhas, minha concepo [ esta]: no permito duas coisas: andar de moto e
txico; o resto vocs podem fazer o que vocs quiserem. Porque, de moto, eu j vi tanto nego
morto{. .. ) Eu sou uma pessoa que gosto de cumprir aquilo que imposto, nunca gostei e nunca
vou gostar de algum me chamar ateno por eu ter errado. Eu via garoto com 14, 15 anos
pegando carro, saindo- um absurdo. A vida dinmica, no esttica. Se voc me perguntar
se voc daria o carro pro seu filho com 15 anos, eu daria um carro pro meu filho pra ele sair
com 15 anos. Voc sabe que contra a lei? Eu sei que contra a lei. Por que que eu daria? Eu
no tenho segurana de deixar um menino com 15 anos, 14 anos, 16 anos sair com condu-
o: ele vai ser assaltado, ele vai ser roubado. Ou vai andar de carro com um colega que eu
no conheo e eu no tenho confiana na responsabilidade dessa pessoa. Ento, eu darei um
carro com 15 anos pra evitar o qu? Pra evitar que ele sofra qualquer agresso. Ento, eu acho
que vlido.
Engenheiro, tcnico especializado trabalhando para a polcia; 50 anos, casado, cinco fi-
lhos; Morumbi.
O que se segue uma discusso entre pessoas com opinies diferentes. Duas
mulheres dizem que no deixariam seus filhos dirigirem antes dos 18 anos. P acha
que "cada coisa tem sua fase"; a outra, O, diz que h uma regra e que gosta de seguir
regras. Entretanto, sua amiga M diz que certamente daria um carro a seus filhos
menores porque ela os educa para confiar neles e, se algo lhes acontecer, ela prefe-
re que seja por algo que eles fizeram e no "porque ele estava num txi e o moto-
rista praticou alguma violncia com ele, ou ele foi roubado dentro de um nibus ... ".
Alm de expressar perspectivas diferentes, a discusso entre essas amigas torna claro
o quo relativa a defesa dos princpios da lei pode ser.
Cidade de Muros 193
5.23
-E o aspecto legal da coisa, o fato de que h uma lei?
M- Pra mim, a gente sabe de muitos casos de txi que estupram, ou acidentes, nibus
uma srie de coisas. Talvez no d certo educar desse jeito, mas o meu marido me
que o aspecto legal nessas alturas em ltima instncia. Vai acontecer o qu? Vai ser preso?
No vai. S se ele matar algum, propositalmente, alguma coisa ... Talvez eu vou ficar sem car-
ta ou o pai, tudo bem, mas ns temos essa conscincia. Mas se tiver que acontecer, eu sou
muito esse negcio de confiar, sabe?, ou voc acredita no teu filho, ou se no em quem que a
gente vai acreditar?
O- Tudo bem, mas eu acho que se tem leis, a gente tem que respeitar.
M-O aspecto legal eu no me incomodo muito, no. Eu me preocupo muito mais com
o meu filho como indivduo ...
sim ...
-Mas e essas coisas que ela fala: tem pro qu?
M - Pra mim, aqui no Brasil tem lei? [Risadas]
O - Mas por isso mesmo ...
M Se eu tivesse morando na Sua, eu seria a primeira a concordar.
O- Mas no pode, voc t morando aqui, voc tem que respeitar as leis daqui!
M Mas que lei?! Uma bandalheira que comea desde l de cima ...
O- Mas voc no pode ensinar o seu filho assim, porque seno vai ser pra sempre as-
M -Voc tem que acompanhar onde voc t morando: enquanto no mudarem, por
que que eu vou mudar sozinha?(. .. ) No que eu seja contra as leis, que eu acho que acima
das leis tem coisas mais importantes pra mim.
- Oue tipos de leis voc acha que no Brasil se respeita e que leis no se respeita?
M- Ah, meu Deus do cu, t difcil.
O- Normalmente se respeita para as classes baixas, as classes de pouco poder aquisitivo
-para esses as leis so muito bem cumpridas. Fazem eles seguirem as leis, obedecerem as leis.
Ns, da classe mdia, e a classe mais alta, no precisa respeitar, porque com o dinheiro se paga.
Eu no acho isso justo.
[Adiante na entrevista, essas concepes de lei provaram ser mais complexas do que o-
parenta m nesse ponto da discusso. Ou ando a conversa se voltou par a os efeitos do Pia no Collor,
tornou-se claro que o marido de O tinha um caixa 2 em sua empresa, algo que ela achava que
era necessrio. Sua amigas no perderam a oportunidade de apontar essa contradio.
M -A lei boa quando do lado de l do muro, do lado de c, no . Por isso que eu
falo: a gente tem que conviver.
O - (. .. ) Mas o que ns falamos, quero ver ... t certo, tem que obedecer as leis, mas se
eu no ver resultado, garanto que eu volto a roubar de novo, mas volto mesmo.
M Mas cad as leis? Voc t se contradizendo.
O - No. Esse tipo de lei, no, esse voc t vendo muito na cara.
M - Mas leis, foi o que ela perguntou, voc no tem que respeitar? Voc tem que res-
peita r tudo!
O- As leis foram colocadas, mas tambm no d pra voc respeitar assim fcil; voc
sabe, o marido dela sabe, o meu -so donos de empresas, sabem ...
M, O e P so mulheres e vizinhas no Morumbi, todas com quase 40 anos, e cada uma tem
gois filhos. O e P so donas de casa e casadas com homens de negcios; M trabalha como trei-
194
Teresa Pires do Rio Caldeira
nadara esportiva em um clube de elite e casada com um funcionrio pblico de alto escalo
que tambm tem seu negcio prprio.
Essas mulheres tm o privilgio de poder escolher no respeitar a lei: prova-
velmente nada ir acontecer, elas tm dinheiro para sair de qualquer inconvenien-
te. Quando a lei serve aos seus interesses, as pessoas a defendem; quando no, elas
a ignoram. Como uma delas reconheceu, no entanto, as pessoas das camadas tra-
balhadoras no tm essa escolha.
Apesar da imensa distncia que separa as diferentes classes sociais no Brasil,
e que marca seu relacionamento com a lei e o sistema judicirio,2
8
elas tm alguns
pontos em comum. As reaes de todos os grupos sociais a experincias cotidianas
com a violncia e com instituies da ordem ineficazes parecem estar levando a uma
deslegitimao do estado de direito. As pessoas que so vtimas de arbitrariedades,
violncia e injustias praticadas pelas instituies da ordem sentem que so deixa-
das sem alternativas dentro daquela ordem. Pessoas que tiram vantagens das fra-
quezas das instituies da ordem podem escolher ignor-las e fazer o que acham
mais apropriado. Em ambos os casos, no entanto, as reaes esto articuladas em
termos privados e freqentemente ilegais. Nos dois casos, o estado de direito
deslegitimado. Essas tendncias so tambm expressas pela difuso dos servios de
segurana privada (legais e ilegais), que incentivam reaes privadas ao crime.
SEGURANA COMO UMA QUESTO PRIVADA
A expanso dos servios de segurana privada em So Paulo nos ltimos anos
no pode ser associada exclusivamente nem ao aumento do crime e do medo, nem
a disfunes da polcia e do sistema judicirio. O crescimento da indstria da segu-
rana (tanto de equipamentos quanto de servios) uma caracterstica das socie-
dades ocidentais.em geral, e no algo especfico de So Paulo. Na verdade, segu-
rana hoje uma mercadoria vendida no mercado sob formas cada vez mais sofis-
ticadas e variadas. Em diversos pases ocidentais, o equipamento de segurana est
se tornando cada vez mais complexo e os servios privados esto crescendo consi-
f deravelmente, tanto em quantidade como em extenso.
29
Por exemplo, nos Esta-
c',dos Unidos, o nmero de pessoas empregadas na indstria de segurana privada
(saltou de 300 mil, em 1969, para 1 milho em 1980, e para 1,5 milho em 1990.
lS Reconhece-se que no Brasil a lei discrimina por classes: os pobres sofrem sanes crimi-
nais em relao s quais os ricos geralmente esto imunes, enquanto os ricos desfrutam de acesso
lei civil e comercial, da qual os pobres so sistematicamente excludos. Sobre as conseqncias
desse duplo vis e outros aspectos do descrdito do judicirio no Brasil, ver Holston e Caldeira
(1998).
29
V rias empresas que vendem equipamentos de segurana em So Paulo so filiais locais
de empresas multinacionais. Nos Estados Unidos, h mais de 16 milhes de sistemas de segurana
residencial em uso. Entre 1986 e 1991, a venda de sistemas de alarme cresceu 80%. The New York
Times, 9 de fevereiro de 1991, p. 4-1.
Cidade de Muros 195
Alm disso, nos EUA, os guardas particulares j ultrapassam em quase trs vezes
0
nmero de policiais, e na Gr-Bretanha e no Canad, em duas vezes (U.S. House
1993: 28, 97, 135; Bayley e Shearing 1996: 587). Servios privados so compra-
dos no s por empresas e instituies, mas tambm por cidados das classes m-
dia e alta, e mesmo por algumas divises do governo. Em todos os casos, os usu-
rios dependem dos servios privados para identificao, triagem e isolamento de
pessoas indesejadas, assim como para vigilncia e proteo. A privada
tornou-se um elemento central de) novo ej muito difundido
'rbnabaseado em enclaves fortificados.
Mas, apesar do crescimento dos servios e tecnologia de segurana privada
ser uma tendncia internacional, no Brasil ele assume algumas caractersticas dis-
tintas.
30
Num contexto em que a polcia desrespeita direitos e em que h imensa
desigualdade social, os servios de segurana privada contribuem para piorar essas
condies.
A histria da segurana privada no Brasil comea de uma forma peculiar: como
um produto do Estado militar. Um ms depois da promulgao da Lei de Seguran-
a Nacional em 1969, o Decreto Federal1.034 (21 de outubro de 1969) estabele-
ceu que os servios de segurana privada eram obrigatrios para instituies finan-
ceiras, principalmente bancos. Esse decreto foi contemporneo da criao tanto da
polcia militar quanto da Rota, e fazia parte dos esforos do governo para enfren-
tar assaltos terroristas a bancos. O fato de os servios de segurana terem se torna-
do obrigatrios gerou um considervel mercado para esses servios de um dia para
o outro, um mercado que desde ento s tem se expandido.
Inicialmente, a demanda veio dos bancos e freqentemente foi satisfeita por
empresas que j lhes prestavam outros servios. O caso do Banco do Brasil tpi-
co. Em So Paulo, esse banco solicitou empresa que fornecia os servios de limpeza
para que tambm lhe prestasse servios de segurana. A Pires Servios de Seguran-
a Ltda., criada como resposta a esse pedido, hoje a maior empresa de segurana
privada no estado de So Paulo, empregando 10 mil vigilantes (em 1996). Outros
grandes bancos, no entanto, decidiram criar seus prprios servios, de acordo com
as linhas da chamada "segurana orgnica". O Banespa, Banco do Estado de So
Paulo, um desses. Segurana orgnica a expresso usada para designar os servi-
os de segurana fornecidos internamente pelos empregados de uma certa empresa
- seja uma fbrica, banco, prdio de apartamentos, condomnio fechado ou mes-
mo uma residncia-, em vez de contratados de uma outra empresa especializada.
Desde 1969, houve trs fases de regulamentao dos servios de segurana
privada: de 1969 a 1983, de 1983 a 1995 e de 1995 at o presente. Na primeira
fase, regulamentada pelo Decreto 1.034, a definio da forma que os servios de-
veriam assumir era vaga. No entanto, ela revelava uma preocupao em controlar
os guardas e seu histrico poltico, j que seus nomes deveriam ser submetidos ao
Servio Nacional de Informao (SNI). O decreto de 1969 tambm estabelecia que
30
Para anlises do policiamento privado em pases desenvolvidos, ver Bayley e Shearing
(1996), Johnston (1992), Ocqueteau (1997), Ocqueteau e Pottier (1995) e Shearing (1992).
196 Teresa Pires do Rio Caldeira
a Secretaria Estadual de Segurana Pblica e o chefe da polcia civil estavam encar-
regados de controlar os servios privados de em e a pol-
cia civil deveria fornecer instruo e testar a capacidade dos vigilantes.
te,
0
decreto estabelecia que guardas particulares no cumprimento do dever tenam
status de policiais. -- .. ,,.
Essa situao mudou com a promulgao 4 de julho de 1983
(revisada pelo Decreto 89.056 de 24 de novembro de 1983). Essa lei
especfica do que a precedente, mas o aumento dos regulamentos e responsabilida-
des no significa necessariamente maior controle dos servios. A Lei 7.102 transfe-
riu
0
treinamento dos vigilantes da polcia para e o controle dos
servios e empresas de segurana privada das secretarias de segurana pblica es-
taduais e da polcia civil para o Ministrio da Justia e a Polcia Federal.
31
Uma
comisso de cinco membros do Ministrio da Justia deveria trabalhar com comis-
ses nas divises estaduais da Polcia Federal para inspecionar a indstria. No es-
tado de So Paulo, a Comisso de Vistoria tinha quatro membros em 1991 para
controlar 108 empresas distribudas por todo o estado. Em minhas entrevistas do
comeo dos anos 90 com empresrios de segurana privada, havia um consenso de
que o controle era mais brando do que antes, embora o nmero de exigncias ti-
vesse aumentado, especialmente as de treinamento e trabalhistas.
Os cursos de treinamento, por exemplo, teriam de ser providos por empresas
criadas especialmente para esse fim. Embora essas empresas sejam normalmente
associadas a uma ou mais empresas de segurana privada, elas tm que ser fsica e
judicialmente independentes, e, portanto, exigiram novos investimentos das empresas
existentes. Esses cursos supostamente deveriam oferecer 120 horas de instruo e
fornecer certificados para os futuros vigilantes, que no eram mais submetidos a
um teste na Academia de Polcia. amplamente reconhecido no setor que a maio-
ria dos cursos no estado de So Paulo (27 em 1991 e 35 em 1996) no dotava os
guardas das habilidades mnimas necessrias para o trabalho. Ao completar os
cursos, oferecidos pelos seus futuros patres, os vigilantes deveriam registrar seus
diplomas na Secretaria de Segurana Pblica e seus nomes seriam enviados ao Mi-
nistrio do Trabalho. Finalmente, a Lei 7.102 estabeleceu que guardas privados
podiam portar armas de calibre 32 ou 38, mas apenas em seus postos. As armas
so propriedade da empresa e no dos vigilantes, que no mais tm o status de
policiais.
Em 1994, o governo federal introduziu mudanas na Lei 7.102 que alteraram
consideravelmente seu alcance. A Lei 8.863, de 28 de maro de 1994, mudou a
31 Coincidentemente ou no, essa mudana ocorreu logo depois de os primeiros governa-
dores eleitos diretamente tomarem posse e seguiu-se mudana dos arquivos polticos (do DOPS)
da Secretaria Estadual de Segurana Pblica para a Polcia Federal. Na ocasio, os militares con-
tinuavam no governo federal, mas tinham perdido as eleies para governador na maior parte dos
estados. O controle dos servios de segurana privada foi deslocado para uma comisso especial
do Ministrio da Justia, a Comisso Executiva para Assuntos de Vigilncia e Transporte deVa-
lores do Ministrio da Justia, conforme regulamentado em 12 de dezembro de 1986 (Portaria 601
do Ministrio da Justia).
Cidade de Muros
197
definio de segurana privada para incluir os servios orgnicos, que at ento no
haviam sido regulamentados. A Lei 9.017, de 30 de maro de 1995,
32
estabeleceu
que qualquer pessoa contratada para desempenhar servios de segurana privada
deveria ter um diploma e ser registrada como vigilante particular na Secretaria de
Segurana Pblica. As pessoas contratando servios de segurana tm que cumprir
vrias obrigaes adicionais relacionadas a uniformes, instalaes e registro de ar-
mas. Pessoas do setor que entrevistei em 1996 consideravam essa nova legislao
impossvel de ser cumprida. A legislao tambm expandiu as exigncias de con-
trole sobre os servios de segurana em instituies financeiras. Finalmente, ela
passou o controle da segurana privada do Ministrio da Justia exclusivamente
para a Polcia Federal.
A nova lei tambm aumentou a Comisso Consultiva.
33
Esta formada por
representantes da Polcia Federal, Exrcito, banqueiros, companhias de seguro e
empresas e empregados da segurana privada. Est encarregada de sugerir polti-
cas, autorizar novas empresas e julgar queixas apresentadas contra empresas exis-
tentes. Na prtica, contudo, parece que uma de suas principais funes transmi-
tir s autoridades federais os interesses das empresas privadas, cujos representan-
tes formam a maioria dos membros da comisso. Em 1996, empresrios do setor
que entrevistei consideravam que a comisso era a melhor coisa criada pela nova
legislao. Claramente, a nova legislao os favorece: as empresas registradas tor-
naram-se as nicas capazes de oferecer servios legais. Para que os servios orgni-
cos existentes se adequassem nova legislao, eles teriam de pagar por cursos para
guardas privados oferecidos apenas por algumas empresas (representadas na comis-
so). Mas, a despeito do bom relacionamento com o governo federal, o setor pri-
vado ainda tem muitas reclamaes: regulamentao excessiva, restrio ao uso de
armas mais potentes e a falta de autoridade dos vigilantes, que continuam no ten-
do o status de policiais.
As diferentes leis revelam uma mudana na forma pela qual os servios de
segurana privada tm sido enquadrados no Brasil. Inicialmente, eles estiveram
subordinados a uma poltica de segurana nacional e a um estrito controle da po-
lcia. Com a segunda lei, esse controle foi relaxado e os regulamentos trabalhistas
aumentaram. O que tinha sido um instrumento para lutar contra a oposio pol-
tica foi adaptado para lutar contra a criminalidade. A terceira lei, assinada duran-
te o regime democrtico e seguindo a rpida expanso dos servios de segurana
em resposta s crescentes preocupaes da populao, tenta estender o controle do
Estado para compreender todo o mercado de servios de segurana. Ironicamente,
contudo, a nova lei imediatamente aumentou o campo ilegal desses servios, j que
uma de suas partes significativas so os servios de segurana orgnica ainda no
regularizados. Todavia, o Estado est claramente tentando controlar um setor ren-
Complementada pelo Decreto 1.592 de 10 de agosto de 1995 e pela Portaria 992 da Polcia
Federal de 25 de outubro de 1995.
33
Essa Comisso foi originalmente criada em 25 de fevereiro de 1991 (Portaria 73 do Mi-
nistrio da Justia) e reformada pela Portaria 1.545 de 8 de dezembro de 1995.
198 Teresa Pires do Rio Caldeira
/ 1 que tem crescido rapidamente que ainda bastante irregular, cujo setor re-
'. .
l
entado pequeno e bem-sucedido em fazer lobby por seus mteresses e que
gu am 34
obviamente apresenta desafios autoridade do Estad_o. .
Na verdade, a expanso do setor de segurana pnvada desafws
a organizao do policiamento em qualquer lugar, a p.onto. de em_ pa1s:s
d
nvolvidos argumentarem que ele "tem profundas 1mphcaoes para a vida pu-
ese d / . , (B 1
bl
. ( ) a vitalidade do direitos civis e o carter do governo emocrauco ay ey
ICa .
e Shearing 1996: 586). Se isso verdade em democracias bem
maginar as conseqncias no contexto brasileiro, com a deslegltlmaao das ms-
se I b d T
t"tuies da ordem e dos abusos policiais. Nesse contexto, a que ra o monopo 10
policiamento pelo Estado e a mudana da "natureza da governabilidade"
e Shearing 1996: 598), que parecem ser tendncias gerais, assumem caractenstlcas
especialmente problemticas. .
De acordo com o Ministrio de Justia, em 1986 havia 51 empresas de segu-
rana privada oficialmente registradas (incluindo aquelas de transporte de valores)
no estado de So Paul
0
.35 Em junho de 1991, havia 111 empresas e 27 cursos de
treinamento registrados, isto , o nmero de empresas tinha mais que dobrado
cinco anos. Essas 111 empresas empregavam 55.700 guardas registrados. Consi-
derando que o nmero total de policiais no estado de So Paulo em 1991 era
aproximadamente 95 mil (22 mil policiais civis e 69 havia
1,6 policial para cada vigilante privado registrado e um pnvado para cada
549 habitantes. Cinco anos depois, isto , em 1996, havia 281 empresas legalmen-
te registradas no estado (quase trs vezes o nmero em 1991), 35 cursos e 7
de veculos blindados. Juntas, essas empresas empregavam cerca de 100 mil VIgilan-
tes, quase
0
dobro do nmero de 1991 e quase igual aos 105 mil pol.iciais do estado
(31.987 policiais civis e 73 mil policiais militares). Mesmo se
zo de 1 para 1 de 1996, ela ainda pode ser considerada baixa- uma mdi-
cao da privatizao dos servios de segurana- quando comparada a de outros
1
.. /bl. 36
pases, onde a segurana privada supera largamente o po pu .
No entanto, essas cifras no representam todo o mercado. Ex1stem amda d01s
outros componentes: a segurana orgnica e os servios clandestinos, que
ser to grandes quanto o setor legal. Cada segmento do mercado de segurana pn-
34 De acordo com Jos Luiz Fernandes, presidente da Abrevis, Associao Brasileira de
Empresas de Vigilncia e Segurana, e do Sindicato das Empresas_ de Segurana Privada e
de Formao do Estado de So Paulo, o mercado de segurana pnvada cresceu em torno de 20 Yo
ao ano desde 1980 e, tanto em 1989 quanto em 1990, teve um lucro de 500 milhes (entrevista,
12 de junho de 1991, e Gazeta Mercantil, 1 <'de julho de 1990).
35 Estatsticas no publicadas, Comisso Executiva para Assuntos de Vigilncia e Transporte
de Valores.
36 Em 1990 havia nos Estados Unidos 1,5 milho de pessoas empregadas em empresas de
segurana privada' e aproximadamente 600 mil policiais, ou seja, uma proporo de 2,5 vigilantes
privados para cada policial. A perspectiva era de que por volta do 2000 os guardas de segurana
privada superassem numericamente os policiais em 3 para 1 (Umted States House 1993: 97, 135).
Cidade de Muros
199
vada apresenta srios problemas, que discuto a seguir. Comeo examinando o ain-
da pequeno mercado legalizado e as iniciativas de seu poderoso lobby. Discuto
ento, a segurana orgnica, que se tornou irregular com a nova legislao; e, fi:
nalmente, trato do setor clandestino. Um dos principais problemas comuns a to-
dos os setores o das relaes entre segurana privada e polcia, que tende a exa-
cerbar a j imensa desigualdade social brasileira ao diferenciar o tipo de segurana
a que cada grupo social tem acesso e est submetido.
O segmento legal da segurana privada pequeno e bem-organizado. 37 Os
donos das empresas percebem claramente a crescente atrao de seus servios e 0
potencial de expanso numa sociedade profundamente desigual, amedrontada com
as altas taxas de crime e incapaz de contar com as foras policiais. Esse setor lite-
ralmente lucra com o medo do crime. Proprietrios de empresas de segurana pri-
vada so a favor da regulamentao do setor pelo Estado se isso significa expan-
so dos negcios, mas ao mesmo tempo resistem s regulamentaes de suas ativi-
dades. Para proteger seu mercado, pressionam o Ministrio da Justia a manter a
lei que torna a segurana privada obrigatria para bancos; e querem estabelecer,
por meio de um decreto, um nmero mnimo de guardas por agncia bancria. Eles
lucraram com o aumento de exigncias em relao segurana orgnica e atacam
o mercado clandestino.
38
Ao mesmo tempo, no entanto, opem-se superviso de
seus servios pelas secretarias estaduais de segurana pblica porque temem que isso
pode significar um controle mais estrito, e reclamam amargamente de suas obriga-
es trabalhistas. 39
Para evitar o controle do Estado, os donos de empresas de segurana privada
esto desenvolvendo um discurso que enfatiza a natureza privada de seus servios
e ope a eficincia privada ineficincia pblica. Eles insistem na separao entre
privado e pblico e na especificidade de seus servios, a tal ponto que alguns de seus
Seguindo a legislao trabalhista corporativa, o setor legal organizado em dois sindica-
tos, um dos empregadores (Sindicato das Empresas de Segurana Privada e Cursos de Formao
do Estado de So Paulo) e um dos empregados (Sindicato dos Empregados em Empresas de Segu-
rana, Vigilncia, Cursos de Formao de Vigilantes, Transporte de Valores e Segurana Privada
de So Paulo). Alm disso, os donos de empresas tm sua prpria associao nacional, a Abrevis.
Existe ainda uma associao nacional de empresas de transporte de valores, ABVT (Associao
Brasileira das Empresas de Transporte de Valores).
38
Recentemente, representantes das empresas registradas tambm tm escrito na imprensa
sobre os perigos do que eles chamam de segurana privada "clandestina" (por exemplo, artigo de
Jos Luiz Fernandes na Gazeta Mercantil, 30 de julho de 1996).
39
Empresrios brasileiros da segurana privada esto ativamente envolvidos em expandir
seus negcios para os pases do Mercosul e formaram uma associao com esse fim. O Brasil o
nico pas no Mercosul que tem uma legislao especfica de segurana privada e os empresrios
esto se preparando para influenciar aquelas que sero criadas por outros pases. Eles esto espe-
cialmente preocupados em como moldar as legislaes trabalhistas, argumentando que o custo de
um guarda privado no Brasil 40% mais alto do que no Chile e 30/c) mais caro do que na Argen-
tina por causa das regulamentaes brasileiras. (Entrevistas com representantes das associaes
de empresas, julho de 1996.)
200 Teresa Pires do Rio Caldeira
parecem eliminar razo para continuarem a ao
r-" ontrole do Estado. As mais ambiCiosas dessas empresas, como de
I Ltda., pensam em criar prises privadas modelares e vendr seus servios
assim como criar um centro de treinamento to sofisticado que seria capaz
de vender servios de treinamento para a polcia.
40
Elas sabem que seus servios
so um bem de luxo que confere distino e no se envergonham de mencionar seu
efeito em termos de discriminao de classe. "Deixe a polcia civil e a militar para
os menos favorecidos, de acordo com a lei- que no funciona!", disse Jos Luiz Fer-
nandes, presidente da associao de proprietrios Abrevis.
41
A acentuao da de-
sigualdade social e a diviso da segurana entre um setor pblico para os pobres e
um setor privado para os ricos no simplesmente uma conseqncia negativa da
expanso da segurana privada, como normalmente o caso em pases desenvolvi-
dos, mas parte da poltica ativa das empresas que vendem esses servios no Brasil.
Apesar das tentativas das empresas de se oporem ao policiamento pblico, o
relacionamento entre os dois setores complexo. Isto est exemplificado pelo caso
do coronel Erasmo Dias. Ele foi secretrio de Segurana Pblica de So Paulo duas
vezes durante o regime militar, depois deputado federal e deputado estadual (seu
terceiro mandato comeou em 1995), cargo que tem usado para lutar contra os
direitos humanos junto com a "bancada da segurana" e a favor das prises priva-
das. Enfrenta vrias acusaes de tortura por ex-presos polticos e responsvel,
entre outros atos de represso violenta de movimentos sociais, pela invaso da
Universidade Catlica de So Paulo em 1978, na qual muitos estudantes foram gra-
vemente queimados. Desde 1986, tem sido um dos diretores da Pires Servios de
Segurana Ltda. e instrutor no curso de treinamento de vigilantes. Ele tambm es-
creveu um livro (Dias 1990), no qual defende a necessidade de um servio de segu-
rana privada, separado do servio pblico de policiamento, para aqueles que po-
dem pagar por ele. Sua presena como diretor da Pires indica as intricadas ligaes
entre a segurana pblica e a privada em So Paulo, entre a polcia e as empresas
privadas de segurana, e entre comportamento legal e ilegaL
Apesar de a segurana orgnica estar ainda basicamente no regularizada de
acordo com os termos das novas leis, ela no representa um mercado ilegal, j que
os guardas freqentemente tm contratos trabalhistas formais. No entanto, sobre-
tudo em grandes empresas, eles podem estar registrados sob outras categorias ocupa-
cionais, no como vigilantes, mesmo quando tm algum treinamento formal com
segurana. Muitos shopping centers, vrios complexos de escritrios e prdios de
apartamentos e condomnios fechados usam segurana orgnica. De acordo com
os presidentes tanto dos sindicatos dos empregados quanto dos empregadores,
40 A Pires Servios de Segurana Ltda. a maior empresa de segurana privada no estado
de So Paulo e provavelmente uma das mais sofisticadas do Brasil. Ela tinha 6.116 guardas regis-
trados em 1990, 10 mil em 1996 e um imenso centro de treinamento. Visitei as instalaes da Pires
vrias vezes, tive acesso s suas instalaes de treinamento e entrevistei cinco de seus diretores.
Seus planos de expanso esto claramente expostos no Jornal da Pires.
4
1 Entrevista, 12 de junho de 1991.
Cidade de Muros
201
aproximadamente 50% de todos os servios de segurana privada no estado de So
Paulo so fornecidos por segurana orgnica. A polcia federal estimou que em 1996
havia 1 O mil empresas com algum tipo de segurana orgnica.
Alm da segurana orgnica, h um grande mercado clandestino de seguran-
a privada no estado de So Paulo, ou seja, um mercado que ignora tanto as leis
trabalhistas quanto aquelas da segurana privada. Por ser uma atividade ilegal,
difcil obter uma estimativa confivel de sua dimenso, e as suposies variam imen-
samente. De acordo com Erivan Dias, presidente do sindicato dos empregados,
haveria aproximadamente 70 empresas trabalhando ilegaJmente no estado de So
Paulo em 1990 e empregando 50 mil pessoas.
42
O presidente da Abrevis declarou
em 1991 que essa estimativa era exagerada e que o nmero de empresas ilegais era
pequeno. Em 1996, no entanto, depois da nova legislao, o mesmo Jos Luiz Fer-
nandes declarou que havia em So Paulo cerca de 300 empresas clandestinas em-
pregando ao redor de 12 mil pessoas (Gazeta Mercantil, 30 de julho de 1996). A
polcia federal, que fecha pelo menos duas delas por ms, estimava que havia cerca
de 400 empresas clandestinas em 1996, em geral pequenas.
Em sua maioria, as pessoas envolvidas com o mercado marginal de seguran-
a privada so policiais ou ex-policiais, que no podem ser registrados como guar-
das privados. Em geral, eles usam armas da polcia e trabalham nos dias de folga,
tirando vantagem de seu esquema de trabalho ( 48 horas de servio por 48 horas de
folga). De acordo com dados da Secretaria de Segurana Pblica, eles morrem mais
freqentemente trabalhando como vigilantes do que como policiais. Em 1994, para
25 policiais que morreram no exerccio da atividade, outros 104 morreram em
perodos de folga; em 1995, esses nmeros foram 23 e 90. Logicamente, esse mer-
cado ilegal no segue a legislao trabalhista. Ele tambm usa armas ilcitas, mui-
tas vezes mais potentes do que as permitidas para os guardas registrados ou mes-
mo para a polcia. Algumas das empresas fechadas pela polcia federal eram dirigidas
por ex-policiais envolvidos com o Esquadro da Morte ou por conhecidos justicei-
ros, como o Esquerdinha.
Embora cifras exatas no estejam disponveis, a maioria das pessoas que en-
trevistei concorda que o mercado ilegal bem grande. Alm disso, essa foi a concluso
a que tive de chegar depois de observar que muitos
quais fiz pesquisa utilizam Os preos cob;ados pelas
empresas regulares so muito mais altos do que os das empresas ilegais, que, por
exemplo, no pagam seguro e obrigaes trabalhistas para seus funcionrios. Alm
disso, complicado para um condomnio contratar guardas particulares diretamente
e cumprir todos os requisitos, especialmente os que se referem aquisio e regis-
tro de armas. Nesse contexto, parece mais fcil usar o mercado ilegal e empregar
ex-policiais ou policiais que trazem suas prprias armas e mantm boas relaes
dentro da polcia para "limpar qualquer problema maior", isto , homicdios, como
disse a pessoa encarregada da segurana em um grande condomnio.
42
Entrevista, 17 de dezembro de 1990 e tambm Folha de S. Paulo, 23 de setembro de 1990,
p. D-5.
202 Teresa Pires do Rio Caldeira
Uma das dimenses mais srias do mercado de segurana clandestino sua
conexo com os esquadres da morte e "justiceiros" que agem na regio metropo-
litana de So Paulo. Os justiceiros muitas vezes so policiais, ex-policiais ou asso-
ciados com policiais (Bicudo 1988: 109-24). Freqentemente, eles agem por detrs
da fachada de uma empresa de segurana privada. Alm disso, po-
dem ser () nico que
a polcia no as protege, e impossibilitadas de outros privados
de segurana, muitas pessoas, especialmente comerCiantes na penfena, procuram
os justiceiros. Algumas vezes, comerciantes locais pagam para manter a ordem no
bairro; outras, grupos de moradores de um bairro decidem assumir a tarefa de manter
a ordem por conta prpria. Freqentemente,
gangues e traficantes de drogas. Como categoria, os justiceiros so
dos da populao e seus crimes regularmente se transformam em noticia nos JOr-
nais. De acordo com dados da imprensa, eles foram responsveis por pelo menos
300 mortes na cidade de So Paulo entre janeiro e agosto de 1990 (Pinheiro 1991a:
53). Alguns dos conhecidos justiceiros, como Cabo Bruno (que confessou mais de
50 assassinatos), Esquerdinha ou Juca P-de-Pato, tornaram-se heris populares na
tradio dos bandidos sociais.
43
Algumas vezes, quando foram presos, pessoas
pobres dos bairros que eles costumavam "proteger" tentaram libert-los fora, e
muitas outras encheram as salas dos tribunais quando eles foram a julgamento. Eles
tambm so transformados em heris em programas de rdio que se especializam
em recontar crimes.
O entrelaamento de segurana pblica e privada e de atividades legais e ile-
gais desqualifica um dos principais argumentos do setor privado regulamentado:
de que o privado poderia servir como alternativa e corretivo polcia. Embora no
haja dados sobre abusos e corrupo de vigilantes privados, o simples fato de que
o pessoal dos dois setores possa ser o mesmo, e as conexes de empresas de segu-
rana privada com justiceiros e com oficiais envolvidos em violaes dos direitos
humanos, invalidam qualquer diferenciao muito ntida entre os dois setores.
De fato, embora o policiamento pblico e o privado possam parecer opostos
sob alguns pontos de vista (especialmente o do consumidor), eles partilham carac-
tersticas bsicas e so estruturados em relaes de contigidade. Isto acontece no
s no Brasil, onde os abusos e o desrespeito vo de um setor ao outro, mas nas
democracias consolidadas da Amrica do Norte e da Europa ocidental, onde o res-
peito lei e aos cidados serve de parmetro aos dois setores. Nesse sentido, a des-
peito das diferenas, segurana pblica e <f segurana privada compartilham a mesma
matriz de relaes e estruturas. No Brasil, essa matriz de relaes instveis entre
o legal e o ilegal, de abusos e violncia; em outros casos, a matriz de respeito ao
estado de direito, como na Amrica do Norte e na Europa ocidental.
No Brasil, a complexa interpenetrao das atividades legais e ilegais, da pol-
cia e das empresas privadas, gera questes mais srias do que como regular empre-
sas legais ansiosas para expandir suas atividades ou como limitar o uso da fora e
43 Ver Fernandes (1991) para uma anlise do caso do Cabo Bruno e de outros justiceiros.
Cidade de Muros
203
a liberdade de ao dos guardas privados. A questo principal o respeito pelo estado
de direito e a consolidao do regime democrtico. O Estado deve ser capaz de con-
trolar a arena em que empresas ilegais de segurana privada fundem-se com esqua-
dres da morte e justiceiros e com as aes ilegais da prpria polcia. O controle
desse mercado ilegal no pode ser separado do controle dos abusos da fora poli-
cial, em si uma tarefa difcil. Isso indica o quo difcil ser controlar um setor que
prefere ser deixado de lado para servir elite, que sabe como se organizar para
defender suas prprias regras, dinmicas e lucros, e que no terreno clandestino
capaz de desfrutar do apoio de uma parte significativa da populao para as suas
aes de vingana privada.
H, ainda, a questo da desigualdade social. O crescimento da privatizao
da segurana leva ao aprofundamento da desigualdade no acesso segurana em
qualquer lugar (Bayley e Shearing 1996). No Brasil, onde a distncia entre as clas-
ses imensa, onde as camadas trabalhadoras tm sempre sido o alvo e a principal
vtima da polcia violenta, esse problema especialmente agudo. Com a difuso da
segurana privada, a discriminao contra os pobres pelas foras de "segurana"
dobrada. Por um lado, eles continuam a sofrer os abusos da polcia. Por outro, como
os ricos optam por viver, trabalhar e consumir em enclaves fortificados usando os
novos servios de segurana privada para manter os pobres e todos os "indesej-
veis" de fora, os pobres tornam-se vtimas das novas formas de vigilncia, contro-
le, desrespeito e humilhao. Numa sociedade altamente desigual, a segurana pri-
vada ir apenas servir para aprofundar essa desigualdade.
44
o CICLO DE VIOLNCIA
Embora a tradio de abusos por parte das instituies da ordem e de des-
crena no sistema judicirio no Brasil seja longa, sob o regime democrtico essas
tendncias atingiram nveis sem precedentes. Enquanto em alguns campos consoli-
daram-se procedimentos democrticos- com eleies livres, um Congresso legti-
mo, livre organizao de partidos, movimentos sindicais, movimentos sociais, im-
prensa livre etc.- outros, como os do crime, das foras policiais e do sistema judi-
cirio, tm resistido democratizao e os abusos continuam a ser cometidos de
forma impune e, freqentemente, com o apoio popular. Autoridades pblicas, em-
presas privadas e cidados contribuem todos para o problema da violncia em So
Paulo. medida que o crime violento aumenta, os abusos persistem e as pessoas
procuram meios privados e freqentemente ilegais de proteo, entramos num cr-
culo vicioso que s vai resultar no aumento da violncia.
44
Esse problema com certeza no exclusivo de sociedades altamente desiguais. "As socie-
dades democrticas ocidentais", argumentam Bayley e Shearing, "esto se transformando inexo-
ravelmente, receamos, num mundo tipo Laranja Mecnica, onde tanto o mercado quanto o go-
verno protegem os ricos dos pobres- um construindo barricadas e excluindo, outro por meio da
represso e encarceramento e no qual a sociedade civil para os pobres desaparece diante da
vitimizao criminal e da represso por parte do governo" (1996: 602).
204 Teresa Pires do Rio Caldeira
Uma vez que as pessoas se voltam para maneiras ilegais e privadas de lidar
com o crime, o crime e a violncia so removidos da esfera na qual pode haver uma
mediao legtima e ampla de conflitos, isto , aquela do sistema judicirio. Assim
sendo, essas tendncias no s minam o processo de expanso e consolidao de
um regime democrtico, como tambm inauguram
no qual ommais _v!gtni::JC no qual no h mais
autordde legtima que possa conter essa reproduo da violncia. Analisando a
difuso da violncia e seu controle em sociedades no-modernas, Ren Girard for-
mula uma hiptese sobre o papel privilegiado do sistema judicirio em deter ciclos
de violncia. Sua suposio que tanto a agressividade quanto a vingana so ina-
tas ao seres humanos e que "por detestarem a violncia ... os homens fazem da vin-
gana um dever" (1977: 15). A vingana , ento, um crculo vicioso de Gonse-
qncias devastadoras, e fundamental para qualquer sociedade criar mecanismos
capazes de deter esses crculos. Mesmo que no se concorde com as suposies de
Girard sobre a agressividade inata e se relacione as origens de ciclos de violncia a
processos sociais especficos, interessante explorar sua hiptese sobre o controle
desses eventos.
Girard agrupa em trs categorias os mtodos empregados por diferentes so-
ciedades para evitar ciclos interminveis de vingana. Primeiro, h medidas preven-
tivas estabelecidas por rituais de sacrifcio em que o esprito de vingana desvia-
do para canais substitutos. Segundo, h medidas compensatrias, como vendetas e
duelos, cujos efeitos curativos so precrios. Terceiro, h o sistema judicirio, "o
mais eficiente de todos os procedimentos curativos" (1977: 20-1). A razo pela qual
a ltima instituio a mais eficaz para conter um ciclo de vingana que ela trans-
forma a vingana de assunto privado em questo pblica.
r Nosso"-sistel1la judj9a( ( ... )serve para desviar a ameaa de vingan-
)a. O a vingana; em vez disso, limita-se efetivamente
\a um simples ato de represlia, decretado por um soberano especializa-
ldo nessa funo particular. As decises do judicirio so invariavelmente
apresentadas como a palavra final sobre a vingana (Girard 1977: 15).
O princpio que rege tanto a ao privada como a pblica o mesmo: vingana.
A diferena crucial, entretanto, e que tem enormes conseqncias sociais, que "sob
o sistema pblico, um ato de vingana no mais vingado; o processo encerrado,
o perigo de uma escalada, afastado" (Girard 1977: 16). Para que o sistema judici-
rio interrompa efetivamente ciclos de vingana, ele tem que manter sua autoridade
e legitimidade. Ele tem que ser capaz de estancar formas paralelas de vingana pri-
vada e ter o monoplio no exerccio da vingana. Isto exatamente o que no ocorre
\" na So Paulo contempornea. Apesar de o judicirio nunca ter desfrutado de um
) alto grau de legitimidade, recentemente-ele mais credibilidade em razo
) de sua incapacidade de punir os responsveis pelo nmero crescente de crimes vio-
(
lentos, de conter as execues sumrias extralegais cometidas pela polcia e a vin-
gana privada dos justiceiros e esquadres da morte, e porque as pessoas tendem a
'--ignor-lo e a resolver os conflitos pessoalmente ou por acordos privados.
Cidade de Muros 205
Se o sistema judicirio de fato crucial para impedir a difuso da vi I" .
- I' d - d d . o encta
entao a conso I aao a emocrac1a na sociedade brasileira contemporn '
- d I I d I" d ea e a
mterrupao o atua CIC o e v1o ene1a ependem da reforma desse sistema de
. , . d d d d' . . . . acordo
com o esta o e 1re1to, accoun:a.btltty, e respeito aos direitos civis. Como
esses pnncipiOs nunca foram realmente legltlmados no Brasil e so contrrios
1 h
. , . d b . . a uma
on?a e a usos, pnvat1zao da justia e instabilidade entre o legal e 0 ilegal
a dtmensao da tarefa de reforma considerveL45 '
_ os da polcia e criar novas polticas de segurana pblica
sao dtmensoes cruCiais tanto da consolidao da democracia quanto da interr _
o do ciclo de violncia. Na So Paulo atual, a polcia no s tem tido espao up
1 I . . para
ag1r 1 ega mente e com 1mpumdade, mas, o mais importante, tem usado continua-
mente a viol?cia manter espao. Em outras palavras, essas foras entra-
ram em um Ciclo vmgana .pnvada em vez de evit-la, e tm feito isso com pelo
menos algum apoio das autondades pblicas e dos cidados. Numa situao com
h espao pblico ou institucional legtimo a partir do qual o ciclo
vwlenCia possa ser controlado.
. Quando as .da falham em arbitrar conflitos de forma apro-
pnada, fo_rmas legitimas de vmgana e prover seguridade, pode-se esperar
que os aJam por conta prpria. De fato, a organizao da proteo em
termos pnvados, freqentemente ilegais e violentos, cresceu em So Paulo na lti-
ma dcada. Estes atos s servem para intensificar o ciclo de violncia. Os cidados
ter um na questo da violncia se forassem as autoridades p-
b_hcas a controlar efetivamente os abusos da polcia e a reformar o sistema judici-
no. Entretanto, tais iniciativas foram rechaadas de forma apaixonada por pelo
menos uma parte da populao de So Paulo. Como resultado, a violncia tem con-
tinuado a aumentar e o regime democrtico perde legitimidade.
Apesar de tudo, nos ltimos anos houve alguns sinais encorajadores: os Pla-
nos de Direitos Humanos, as polticas para refrear a violncia policial no estado de
So Paulo e a diminuio dos votos para a "bancada da segurana". Essas polti-
. . , .
45
Borer_nan (_1997) aplicou a hiptese de Girard sobre o papel do sistema ju-
em evttar Ciclos de vwlencta para analisar o destino dos pases do leste europeu e sua "in-
vocaao do estado de direito" no ps-socialismo. Ele concluiu que os Estados que so capazes de
se e se estabelecer como autoridades morais legtimas que provem justia e invocam
os pnnCiptos do estado de direito "no iro se desintegrar em ciclos de violncia". A chave dessa
transformao a "adoo por parte do Estado da responsabilidade por justia distributiva"
1 165). O _Estado que tipifica esse processo na anlise de Boreman e que, segundo
ele, fm o mats. bem-sucedido em controlar a violncia e institucionalizar o estado de direito foi a
Esse exemplo , no entanto, muito particular, j que a Alemanha Oriental foi
mcorporada ao quadro institucional j existente e em funcionamento na Alema-
nha se concentrar principalmente nesse caso especfico, Boreman no considera como
o estado de .dnetto pode ser legitimado num contexto em que ele no existia ou era muito abusivo
antes, .seJa.' em que os "invocao do estado de direito" no tm repre-
sentaao mstttucwnal e tem pouca ressonanCia JUnto populao. Esse parece ser 0 desafio de di-
versos Estados ps-socialistas, assim como do BrasiL
206 Teresa Pires do Rio Caldeira
odem encontrar uma enorme resistncia por parte da populao e em especial
:olcia, mas so que podem ampliar a democracia brasileira e contro-
0 atual ciclo de vwlene1a.
Muitos dos elementos que tm gerado o atual ciclo de violncia tm uma base
_. econmica. Pobreza e desigualdade social- para mencionar apenas os mais
sociO l d d ld d
/bvios- so cruciais para explicar a gumas as esigua a es e lllJUStlas asso-
0 das ao descrdito nas instituies da ordem e difuso da violncia. Entretanto,
Cla I. I - . f ..
enas as variveis socioeconmicas e as exp 1caes que e as geram sao msu !Cientes
explicar o aumento de formas privadas e ilegais de vingana e conseqente-
0
aumento da violncia. No so os indicadores de crise econmica, taxas
de desemprego, urbanizao ou at os gastos do Estado com segurana pblica que
devemos observar para entender a violncia contempornea. Ao contrrio, temos
de considerar o funcionamento cotidiano das instituies da ordem, o padro con-
tinuado de abusos por parte das foras policiais e seu desrespeito aos direitos, e a
rotina de prticas de injustia e discriminao. Devemos considerar os rituais coti-
dianos de maneira pela qual os cidados apelam para a vingana
nn;edidaem que as a falta de vontade de" muitas
autoridades pblicas de trazer as atividades da pohe1a para dentro dos parametros
do estado de direito ou de desenvolver polticas de segurana pblica pautadas por
princpios democrticos.
O crime violento e seu controle no constituem o nico contexto em que po-
/demos observar tendncias rumo privatizao, deslegitimao da mediao p-
";blica e aumento da desigualdade. Essas tendncias esto tambm moldando o es-
/ pao urbano, seus padres de segregao, novas formas de residncia, trabalho e
circulao, interaes pblicas e, conseqentemente, a qualidade da vida pblica.
Analiso esses aspectos nos prximos trs captulos, que constituem a Parte III deste
livro. No captulo 9, retorno disjuno entre o crescimento da violncia, da pri-
vatizao e das prticas ilegais de vingana e o processo de consolidao demo-
crtica no nvel do sistema poltico. O carter paradoxal dessa configurao deri-
va do fato bvio de que a lgica de um ciclo de violncia o oposto da lgica de
uma ordem democrtica baseada no respeito aos direitos de cidadania. Analiso
ainda outras dimenses da deslegitimao das instituies da ordem atravs de
uma discusso sobre a oposio ao respeito aos direitos humanos e a defesa da
pena de morte em So Paulo. Sugiro que h uma associao muito difundida en-
tre o exerccio da autoridade e o uso da violncia. Essa associao est na raiz do
ciclo de violncia que tenho descrito e da deslegitimao dos direitos individuais
na sociedade brasileira.
207
Cidade de Muros
Teresa Pires do Rio Caldeira
CIDADE DE MUROS
Crime, Segregao e Cidadania em So Paulo
Traduo
Frank Oliveira e Henrique Monteiro
Parte III
SEGREGAO URBANA
'
ENCLAVES FORTIFICADOS
E ESPAO PBLICO
"
I
6.
SO PAULO: PADR0ES DE SEGREGAO ESPACIAL
A segregao- tanto social quanto espacial- uma caracterstica impor-
tante das cidades. As regras que organizam o espao urbano so basicamente pa-
dres de diferenciao social e de separao. Essas regras variam cultural e histori-
camente, revelam os princpios que estruturam a vida pblica e indicam come. os
grupos sociais se inter-relacionam no espao da cidade. Ao longo do sculo XX, a
segregao social teve pelo menos trs formas diferentes de expresso no espao
urbano de So Paulo. A primeira estendeu-se do final do sculo XIX at os anos
1940 e produziu uma cidade concentrada em que os diferentes grupos sociais se
comprimiam numa rea urbana pequena e estavam segregados por tipos de mora-,
dia. A segunda forma urbana, a centro-periferia, dominou o desenvolvimento da'
cidade dos anos 40 at os anos 80. Nela, diferentes grupos sociais esto separados
por grandes distncias: as classes mdia e alta concentram-se nos bairros centrais
com boa infra-estrutura, e os pobres vivem nas precrias e distantes periferias.
Embora os moradores e cientistas sociais ainda concebam e discutam a cidade em
termos do segundo padro, uma terceira forma vem se configurando desde os anos
80 e mudando consideravelmente a cidade e sua regio metropolitana. Sobrepos-
tasao padro centro-periferia, as transformaes recentes esto gerando espaos
nos quais os diferentes grupos sociais esto muitas vezes prximos, mas esto se-
parados por muros e tecnologias de segurana, e tendem a no circular ou interagir
em reas comuns. O principal instrumento desse novo padro de segregao espa-
cial o que chamo de "enclaves fortificados". Trata-se de espaos privatizados,
fechados e monitorados para residncia, consumo, lazer e trabalho. A sua princi-
pal justificao o medo do crime violento. Esses novos espaos atraem aqueles
que esto abandonando a esfera pblica tradicional das ruas para os pobres, os
"marginalizados" e os sem-teto.
Meu interesse em descrever e analisar essas mudanas, especialmente as dos
ltimos 15 anos, duplo. Primeiro, quero demonstrar a necessidade de refazer o
mapa cognitivo da segregao social na cidade, atualizando as referncias atravs
das quais a vida cotidiana e as relaes sociais so entendidas. A no ser que a
centro-periferia seja revista e a maneira pela qual se concebe a incorpora-
o da desigualdade social no espao urbano seja modificada, no ser possvel
entender os presentes desafios da cidade. Segundo, quero mostrar que essas mudanas
espaCiais e seus instrumentos esto transformando significativamente a vida pbli-
ca e o espao pblico. Em cidades fragmentadas por endaves fortificados, difcil
manter os p"incpios de acessibilidade e livre circulao, que esto entre os valores
mais importantes das cidades modernas. Com a construo de enclaves fortifica-
dos, o carter do espao pblico muda, assim como a participao dos cidados
Cidade de Muros 211
A
na vida pblica. As transformaes na esfera pblica de So Paulo so semelhantes
a mudanas que esto ocorrendo em outras cidades ao redor do mundo e expres-
sam, portanto, uma verso particular de um padro mais difundido de segregao
espacial e transformao na esfera pblica.
O historiador da arte T. ]. Clark analisa a organizao da vida urbana e da
interao de classes em Paris do final do sculo XIX e mostra como ela se expressa
na pintura moderna. Escrevendo sobre o quadro Place de la Concorde, de Degas, e
os personagens nele representados, T. ]. Clark argumenta que
a cena tpica- isso a nova pintura certamente sgeriu- provavelmen-
te era aquela em que as classes coexistiam mas no se tocavam; onde cada
uma estava absorta num tipo de sonho, voltada para si mesma
ou para algum espetculo; deixando escapar sinais ambguos ( ... ) As
classes existem, mas os espaos de Haussmann permitem que elas no
sejam vistas. ( ... )A Histria existe, mas os espaos de Haussmann tm
lugar para que ela seja escondida. ( .. )[A] desateno [dos personagens
de Degas] sustentada pelos espaos vazios e pelo fluir das cenas. (Clark
1984: 73, 75, grifo no original)
Esse insight sobre a relao entre formas urbanas, interaes de classes e ex-
presso artstica sugere maneiras de considerar os padres de segregao espacial
de So Paulo, especialmente as transformaes recentes. Em sua anlise das pintu-
ras impressionistas de Paris, Clark identifica as principais caractersticas do novo
tipo de espao pblico (e sua representao) exempJificados no final do sculo XIX
pela reconstruo de Paris promovida por Haussmann. Os novos bulevares in-
corporavam as condies para o anonimato e o individualismo, permitindo tanto
a livre circulao quanto a desateno s diferenas e ajudando, assim, a consolidar
a imagem de um espao pblico abeno e igualitrio. Esses so exatamente os valo-
res que esto em xeque atualmente em So Paulo e em muitas outras cidades onde
o espao pblico no mais se relaciona ao ideal moderno de universalidade. Em vez
disso, ele promove a separao e a idia de que os grupos sociais devem viver em
endaves homogneos, isolados daqueles percebidos como diferentes. Conseqen-
temente, o novo padro de segregao espacial serve de base a um novo tipo de esfera
pblica que acentua as diferenas de classe e as estratgias de separao.
A seguir, delineio as caractersticas gerais dos trs padres de segregao da
cidade usando indicadores geogrficos, demogrficos e socioeconmicos. No cap-
tulo 7, analiso o aspecto mais revelador do novo modelo de segregao: a criao
de espaos murados e privados pelas classes mdia e alta. No captulo 8, discuto as
transformaes resultantes na vida pblica e nas interaes pblicas e uso o caso
de Los Angeles como comparao.
212
Teresa Pires do Rio \.\llc!Pir<>
A QDADE CONCENTRADA DO !NICJO DA !NDUSTRIALIZAO
De 1890 at cerca de 1940, o espao urbano e a vida social em So Paulo fo
ram caracterizados por concentrao e heterogeneidade.
1
Na ltima dcada do s-
culo XIX, a populao de So Paulo cresceu 13,96% ao ano (ver a Tabela 6), mas
a rea urbanizada no se expandiu proporcionalmente. Por volta de 1914, a densi-
dade populacional da cidade era de 110 hab/ha, comparada a 83 hab/ha em 1881
(F. Villaa citado por Rolnik 1997: 165). Com o advento da industrializao, a outro-
ra sossegada cidade voltada aos servios e negcios financeiros associados expor-
tao de caf- a atividade econmica dominante no estado de So Paulo a d-
cada de 1930- foi transformada num espao urbano catico. Na virada do sculo,
a construo era intensa: erguiam-se novas fbricas uma atrs da outra, e residncias
tinham que ser construdas rapidamente para abrigar as ondas de trabalhadores che-
gando a cada ano.2 As funes no eram espacialmente separadas, as fbricas eram
construdas perto das casas, e comrcio e servios intercalavam-se com residncias.
Tabela 6
Evoluo da populao
Cidade de So Paulo e Regio Metropolitana, 1872-1996
Ano So Paulo Taxa.de Outros Taxa de Regio Taxa de
crescimento municipios crescimento metropolitana crescimento
anual(%) daRM anual(%) Total anual(%)
!872 31.385
!890 64.934 4,12
1900 239.820 13,96
1920 579-033 4,51
1940 1.326.261 4,23 241.784 1.568.045
1950 2.198.096 5,18 464.690 6,75 2.662.786 5,44
1960 3.781.446 5,58 957.960 7,50 4.739.406 5,93
1970 5.924.615 4,59 2.215.1!5 8,74 8.139.730 5,56
!980 8.493.217 3,67 4.095.508 6,34 !2.588.725 4,46
1991 9.646.185 1,16 5.798.756 3,21 15.444.941 1,88
1996 9.839.436 0,40 6.743.798 3,07 16.583.234 1,43
Fome: Para 187i-1991, IBGE, Censo Brasileiro; para 1996, IBGE, Contagem 1996.
Obs: A regio metropolitana de So Paulo formada pelo municpio (cidade) de So Paulo e outros 3.8
pios adjacentes (OM).
1 A anlise histrica de So Paulo durante o perodo de 1890-1940 baseia-se nos seguintes
estudos: Bonduki 1982 e 1983; Langenbuch 1971; Morse 1970; Rolnik 1983, 1994 e 1997.
lreiro (1993) desenvolve uma anlise semelhante para o caso do Rio de Janeiro.
2 Os novos habitantes da cidade que chegavam para o trabalho em fbricas
eram principalmente imigrantes europeus. Eles vieram para o Brasil incentivados por uma polti
ca destinada a importar trabalhadores brancos qualificados para substituir os ex-escravos negros
e "branquear" a populao brasileira. Em 1893, .as pessoas nascidas no exterior representavam
55% da populao da cidade, de acordo com o censo. Esse foi o pico da imigrao
que diminuiu depois de 1900, quando a taxa de crescimento da popula.o comeou a cair. Em
1920, os estrangeiros representavl)m 36% da popul<1iio (Fausto 1984: 10).
/\
Embora a elite e os trabalhadores vivessem relativamente prximos uns dos
outros, havia uma tendncia de a elite ocupar a parte mais alta da cidade - em
direo ao espigo central onde se localizaria a Avenida Paulista- e os trabalhadores
viverem nas reas mais baixas, ladeando as margens dos rios Tamanduate e Tiet
e prximo ao sistema ferrovirio. No comeo do sculo, a segregao social se ex-
pressava tambm nas moradias: enquanto a elite {da indstria e da produo de caf)
e uma pequena classe mdia viviam em manses ou casas prprias, mais de 80%
das habitaes de So Paulo eram alugadas (Bonduki 1983: 146). A propriedade
qe uma casa no era definitivamente uma opo para os trabalhadores, que em sua
vtaioria viviam em cortios ou casas de cmodos, todos superpovoados.3 Essas cons-
tiues precrias constituam um bom investimento na poca e proliferaram pela
cidade. No havia prdios de apartamentos para alugar na poca. Uma minoria de
trabalhadores, basicamente os especializados, alugavam casas s para suas fam-
lias, em geral casas geminadas. Algumas fbricas construam essas casas geminadas
para seus trabalhadores especializados tanto como uma forma de atra-los com a
oferta de melhores moradias como para disciplin-los com a ameaa de despejo.
Numa cidade concentrada corno era So Paulo, que havia crescido e mudado
rapidamente, s preocupaes com a discriminao, classificao e controle da
populao eram intensas no comeo do sculo. Como tambm foi tpico nas cida-
des europias no incio da industrializao, essas preocupaes eram freqentemente
expressas em termos de sade e higiene, sempre associadas moralidade. Questes
sobre como abrigar os pobres e como organizar o espao urbano numa sociedade
que se industrializava estavam ligadas ao saneamento. Em conjunto, elas se torna-
ram o tema central das preocupaes da elite e das polticas pblicas durante as pri-
melras dcadas do sculo XX.
A elite paulista diagnosticou as desordens sociais da cidade em termos de
doena, sujeira e promiscuidade, idias logo associadas ao crime. Em 1890, o esta-
do de So Paulo criou o Servio Sanitrio, seguido pelo Cdigo Sanitrio de 1894.
Logo em seguida, agentes do estado comearam a visitar as moradias dos pobres,
especialmente os cortios, procurando por doentes e mantendo estatsticas e regis-
tros. Essas visitas geravam reaes negativas: era clara para as classes trabalhado-
ras a associao de servios sanitrios com controle social.4 Alm de controlar os
pobres, a elite comeou a separar-se deles. Temendo epidemias- assim como te-
mem o crime hoje- eidentificando os pobres e suas condies de vida a doenas
e epidemias, os membros das elites comearam a mudar-se das reas densamente
povoadas da cidade para regies um pouco afastadas e com empreendimentos imo-
3
Em 1900, a mdia de pessoas por prdio em So Paulo c;:ra de 11,07 (Bonduki 1982: 85).
4
Uma das principais revoltas populares na poca no se originou no espao de rrabalho,
mas seguiu-se deciso do governo de vacinar a populao cont.ra a varola e mandar agentes sa-
nitrios para as reas pobres do Rio de Janeiro a fim de suas casas e destruir aquelas
supostamente A Revolta da Vacina Obrigatria ocorreu em 1904, quando o prefeito
Pereira Passos lanou um programa radical de reform;t urbana do tipo abrindo
grandes avenidas no centro da cidade e destruindo muitas de moradores pobres.
214 Teresa Pires do Rio Caldeira
bilirios exdusivos. Uma destas regies era o novo bairro com o sugestivo nome
de Higienpolis. Eles tambm se mudaram para duas outras reas exclusivas: Cam-
pos Elsios e a Avenida Paulista. Ao mesmo tempo, representantes das elites na
administrao municipal e em instituies como a Federao das Indstrias esta-
vam planejando organizar, limpar e abrir o centro da cidade como Haussmann fi-
zera em Paris, e afastar os trabalhadores, instaliildo-os em casas unifamiliares que
elevariam seus padres morais. Identificaram a concentrao de trabalhadores e as
condies anti-higinicas a eles associadas como um mal a ser eliminado da vida
da cidade. Imaginaram a disperso, o isolamento, a abertura e a limpeza como
solues para o meio urbano catico e suas tenses sociais.
Durante as dcadas de 20 e 30-anos que podem ser considerados um perodo
de transio entre diferentes padres de organizao das diferenas sociais na ci-
dade e entre diferentes modos de interveno das autoridades pblicas- as preo-
cupaes Com o saneamento e o controle social so evidentes em pelo menos qua-
tro nveis polticos e institucionais: o governo municipal, a associao dos indus-
triais, os movimentos sindicais e populares, e o governo federal.
No mbito municipal, os prefeitos e seus secretrios procuraram abrir aveni- '
das, alargr ruas, embelezar e organizar o centro da cidade. No entanto, a cidade
estava mal equipada para lidar com as transformaes urbanas resultantes do imenso
influxo de novos moradores da virada do sculo. As concepes sobre planejamento
urbano e sobre o papel da interveno estatal no espao eram bastante precrias
at a segunda dcada do sculo (Morse 1970: caps. 19 e 21; Leme 1991). A nica
legislao urbana anterior- o Cdigo de Posturas de 1875, revisado e consolida-
do em 1886 -mostrava uma preocupao com saneamento, recursos naturais' e
ordeao do espao pblico e do comportamento pblico. O cdigo estabelecia a
largura das ruas e avenidas, a altura dos prdios e o nmero de andares, a dimen-
so das portas e janelas, alm de proibir a maioria dos tipos de uso privado das ruas,
que deveriam ser mantidas abertas circulao {ver Rolnik 1997: 32-5). As primeiras
leis sobre construo e zoneamento foram editadas na metade da dcada de 1910,
enquanto as peas mais importantes da interveno e legislao urbana aparece-
ram no final dos anos 20.
5
5
A Lei Municipal1.874,de 1915,criou a primeira diviso da cidade em quatro zonas (central,
urbana, suburbana e rural) e exigiu que as plantas de construo fossem aprovadas pela adminis-
uao municipal. O Ato 849, de 1916, regulamentou a construo. A Lei Municipal 2.611, de
1923, estabeleceu dimenses mnimas para um lote urbano (300 m
2
) e regras para a pavimenta-
o das ruas. Ela tambm estabeleceu que,para empreendimentos maiores que40 mil m
2
, o incor-
porador deveria doar espaos para ruas e reas verdes. Ao que parece, essa lei foi influenciada pela
City o f So Paulo Improvements and Free Hold Land Co., Lrd., a companhia que estava lanando
novos empreendimentos imobilirios inspirados nas cidades-jardins inglesas desde 1912. Esses
empreendimentos originaram os bairros chamados "jardins", que tm alojado as classes mdia e
alta desde os anos 20 (So Paulo, Sempla 1995: 15). Em 1929, a cidade aprovou seu primeiro Cdigo
de Obras (Lei Municipal3.427, Cdigo Arthur Saboya), que sistematizou a maior parte da legis-
lao anterior e estabeleceu um mnimo de trs andares por prdio na rea central, dessa forma
encorajando a constru.o vertical. Esse cdigo foi reconsolidado em 1934. Ver Morse (1970: 366-
7) para uma crtica desse plano.
Cidade de Muros 215
O principal efeito dessa urbana inicial foi estabelecer a disjuno
entre um territrio central para a: elite (o permet.r:o urbano), regido por leis espe-
ciais que eram sempre cumpridas,! e as regies suburbanas e rurais habitadas pelos
pobres e relativamente no legisladas, onde as leis eram cumpridas com menos ri-
gor. O mecanismo que produziu essa disjuno equivalente quele que descrevi
no captulo 4 em relao polcia: ambivalncia legal. Esse mecanismo constitutivo
da ocupao da terra brasileira e da legislao desde o incio da colonizao (Holston
1991b). Como as fronteiras do legal e do ilegal so mal definidas, o executivo tem
a autoridade de fato para dar a palavra final em disputas de terra e determinar a
legalidade caso a caso. As leis urbanas de 1910 estabelerarn uma diviso da cida-
de em quatro zonas: central, suburbana e rural. A maioria das leis criadas
na poca apenas s central e urbana, deixando as outras regies
(para onde os pobres estavam se niudando) no regulamentadas. Quando estendia-
s( a legislao essas zonas, como as exigncias de registro de empreendimentos e
regras para abrir ruas, logo formulavam-se excees. As exigncias de que novas
ruas tivessem infra-estrutura e dimenses mnimas, por exemplo, puderam ser legal-
mente ignoradas depois de 1923, quando uma nova lei ofereceu a possibilidade de
criao de "ruas particulares" nas regies suburbanas e rurais. Os preceitos legais
para o permetro urbano no se aplicavam a essas "ruas particulares". Mas provavel-
mente o melhor exemplo desse mecanismo refere-se instalao de infra-estrutura
urbana pela cidade, que desde o incio do sculo dependia do status legal da rua.
Muitas das novas ruas, especialmente nas zonas suburbana e rural, eram por princ-
pio ou irregulares ou ilegais, e assim sendo careciam de infra-estrutura urbana. E
embora elas tenham sido progressivamente assimiladas legalidade urbana por meio
de vrias anistias (1936, 1950, 1962 e 1968), os decretos eram suficientemente
ambguos para deixar ao executivo a determinao de quais ruas preenchiam os cri-
trios para a legalizao, e por conseguinte para a melhoria urbana, e quais no
pre.enchiam.
6
1
O mais fanoso empreendimento urbanstico do governo municipal no come-
o do sculo levou a uma transformao do padro de segregao e representou
uma mudana na concepo da interveno do Estado no planejamento urbano.
Foi o Plano de Avenidas, elaborado por Francisco Prestes Maia durante a adminis-
trao de Jos Pires do Rio, o ltimo prefeito da Repblica Velha.? O plano prow
punha mudar o sistema de circulao da cidade abrindo uma srie de avenidas
partindo_ do centro at os subrbios. Ele exigiu uma considervel demolio e re-
modelao da regio central, cuja zona comercial foi reformada e aumentada, esti-
mulndo a especulao imobiliria. Conseqentemente, os trabalhadores que no
6 Ver Holston (1991b) para uma anlise da relao entre as prticas ilegais e a ocupao da
terra no Brasil e especialmente na periferia de So Paulo. Ver Rolnik (1997) para uma anlise da
legislao urbana e da mesma dinmica legaVilegal entre 1886 e 1936.
1
Embora decises importantes baseadas no plano teli:ham comeado a ser tomadas no fi-
nal da dcada de 20, as principais obras foram executadas depois de 1938, durante a administra-
o de Prestes Maia.
216
podiam pagar os elevados aluguiS acabaram _expulsOs do centro. O Plano de Avew
nidas tamb_m optou por investir nas ruas em vez de expandir o servio de bondes.
Uma das principais causas da concentrao da cidade era que o transporte coletivo
baseava-se n:> sistema de bondes, que requeria instalaes caras e, portanto, expan-
dia-se lentamente. Porque esse sistema cobria apenas uma pequena rea da cidade,
era difcil desalojar os moradores pobres do centro da cidade, onde trabalhavam.
O lanamento de um sistema de nibus, associado progressiva abertura de novas
avenidas, possibilitou a expanso da cidade em direo periferia.
A segunda fonte de influncia nas transfotl:naes urbanas veio do grupo de
industriais ongregados na Federao das Indstrias e liderados por Roberto Si
monsen. Eles estavam interessados em estudar os padres de consumo e moradia
das classes trabalhadoras a fim de reformwlos. Promoveram a criao de uma s-
rie de instituies que se especializaram no estudo e.documentao das condies
de vida das classes trabalhadoras, especialmente a habitao popular, considerada
"o magno problema social" (Bonduki 1983: 147). Convencidos de que os empre-
gadores no podiam arcar com a responsabilidade de resolver esse problema, os
industriais eram favorveis aquisio da casa prpria pelos trabalhadores, o que
poderia reduzir suas despesas com moradia e aumentar suas possibilidades de conw
sumo. Obviamente, tambm interessados em organizar o espao da cidaw
de para a expanso industrial. .
A terceira fonte era o movimento sindical, que se tornou bastante forte sob a
influncia anarquista. Ele promoveu uma srie de greves importantes em So Pau-
lo durante a dcada de 10 (Fausto 1977) e na dcada de 20 uniuse a outros movi
mentos de oposio que levaram derrota da Repblica Velha. A habitao era um
tema central nos movimentos de trabalhadores, expresso principalmente em discus-
ses sobre o aluguel e seu controle. Desde a dcada de 1 O, os sindicatos anarquis-
tas propuseram a formao de "ligas de inquilinos" para boicotar o pagamento de
aluguis. Apesar dessa mobilizao, e a despeito da sua contribuio para a mu-
dana do regime poltico, a "questo da moradia" acabou sendo indivi-
dualmente por cada trabalhador, e no coletivamente.
Finalmente, a quarta influncia na transformao urbana foi o governo fede-
ral, especialmente depois da Revoluo de 1930. O recmwcriado Ministrio do
Trabalho defendeu a criao de oportunidades para as classes urbanas adquirirem
a casa prpria. Assim como os industriais, os representantes do Ministrio do Tra-
balho estavam interessados em cortar despesas com aluguel e disseminar o valor
da casa prpria, que consideravam uma das bases da estabilidade social. O gover
no federal tomou vrias iniciativas para propagar a casa prpria, nem todas igual-
mente bem-sucedidas.s O fator que teria o maior impacto na cidade e nos arranjos
8 Em 1937, o governo federal criou os Institutos de Previdncia, e em 1946, a Fundao da
Casa Popular, para construir casas de baixo custo para trabalhadores. Mas elas nunca cumpri
ram seu mandato: as poucas casas construdas foram distribudas de acordo com critrios diemew
lsticos. Vargas tambm renovou as Caixas Econmicas, que comearam a financiar casas para a
classe mdia.
habitacionais das camadas trabalhadoras ocorreu em 1942, no contexto de uma
crise de habitao marcada por aluguis altos provocados pela crise econmica
associada Segunda Guerra Mundial e pela reforma das regies centrais em vrias
cidades brasileiras. Esse fator foi a Lei do Inquilinato, que congelou todos os alu-
guis residenciais nos valores de dezembro de 1941. Essa medida deveria durar dois
anos, mas foi .sucessivamente at 1964, com apenas alguns pequenos
aumentos em resposta inflao.:Em So Paulo, a conseqncia imediata foi uma
diminuio do mercado de alugujs, j que deixou-"se de construir unidades de alu-
guel. 'Isso acelerou a partida de trabalhadores para a periferia, onde podiam encontrar
terrenos baratos (e irregulares) para construir suas casas.9
A interseo dessas vrias iniciativas e polticas, associada ao pronunciado
aumento populacional causado por migraes internas desde o comeo dos anos
30, levou a um novo padro de urbana, que iria caracterizar So Paulo
nos 50 anos seguintes.
10
No novo arranjo, pobres e ricos viveriam separados: dis-
tncia, crescimento econmico e represso poltica permitiriam uma peculiar de-
sateno de um em relao ao outro.
CENTRO-PERIFERIA: A CIDADE DISPERSA
O novo padro de urbanizao comumente chamado centro-periferia e tem
dominado o desenvolvimento de So Paulo desde os anos 40. Esse padro tem
quatro caractersticas principais: 1) disperso em vez de concentrado- a densi-
dade populacional caiu de !!O hab/ha em 1914 para 53 hab/ha em 1963 (F.
Villaa citado por Rolnik 1997: 165); 2) as classes sociais vivem longe uma das
outras no espao da cidade: as classes mdia e alta nos bairros centrais, legaliza-
dos e bem-equipados; os pobres na periferia, precria e quase sempre ilegal; 3) a
aquisio da casa prpria torna-se a regra para a maioria dos moradores da cida-
de, ricos e pobres; 4) o sistema de transporte baseia-se no uso de nibus para as
classes trabalhadoras e automveis para as classes mdia e alta.tl Esse padro de
urbanizao consolidou-se ao mesmo tempo em que a cidade tornou-se o centro
industrial do pas, com a expanso de indstrias pesadas enl substituio s ma-
nufaturas txteis e de alimentos (uma mudana associada .implantao da pro-
uma anlise das vrias dimenses da Lei do Inquilinato, ver Bonduki (1983 e 1994).
Para uma anlise da poltica trabalhista de Vargas, ver Santos {1979).
10
Desde 1934 vrias remies foram impostas imigrao estrangeira. No mesmo pero-
do, secas no Nordeste fizeram com que muitos se deslocassem para So Paulo. Durante o perodo
de 1.935-1939, 96% das 285 mil pessoas que migraram para o estado de So Paulo eram brasilei-
ros (Morse 1970: 302).
11
A anlise que se segue baseada em: Brant etal. (1989), Bonduki {1983), Caldeira (1984),
Camargo et ai. (1976) e Langenbuch (1971).
218 Teresa Pires do Rio Caldeira
..
duo de automveis), e quando a cidade recebeu um grande fluxo de migrantes
do Nordeste do Brasil.1
2
Durante esse perodo, a expanso urbana e a dinmica
industrial ultrapassaram os limites do municpio de So Paulo, provocando rpi-
das transformaes nos municpios circundantes, oficialmente integrantes dare-
gio metropolitana de So Paulo.
0NIBUS, ILEGALIDADE E AUTOCONSTRUO: A EXPANSO DA PERIFERIA
O do sistema de transporte pblico baseado em nibus foi fun-
damental para o desenvolvimento do novo padro de urbanizao. Embora o pre-
o da terra na periferia fosse relativamente baixo e houvesse loteamentos venda
desde da dcada de 10,1
3
eles permaneceram desocupados principalmente devido
falta de transporte. At o final dos anos 30, os nicos loteamentos ocupados fora
da centro eram aqueles prximos s estaes ferrovirias. No entanto, eles eram
poucos e sua possibilidade de expanso, limitada, pois as pessoas precisavam an-
dar at a estao. H No final dos anos 30, a abertura de novas avenidas tornou
possvel a difuso do uso dos nibus. Os primeiros comearam a rodar em 1924 e
no final da dcada j desafiavam o monoplio do sistema de bondes pertencente
So Paulo Tramway Light & Power Co., popularmente conhecida como Light.15
Precisando de menos infra-estrutura e sendo portanto mais flexveis, os nibus
passaram a circular por ruas no asfaltadas de bairros distantes do centro da cida-
de. Enquanto em 1948 os deslocamentos por bonde respondiam por 52,2% do total
de viagens em transporte pblico, em 1966 eles haviam cado para 2,4% do total.
Ao mesmo tempo, os deslocamentos em nibus subiram de 43,6% em 1948 para
91,2% em 1966 (Velze, R., citado por Kowarick e Bonduki 1994: !53). Os bon-
des encerraram suas operaes em 1968.
O principal agente da expanso dos servios de nibus no foi o governo, mas
empresrios particulares, a maioria dos quais tambm eram especuladores imobili-
12
O crescimento da populao mostrado na Tabela 6. Entre 1950 e 1960, mais de 1 nii-
lho de pessoas se estabeleceram na regio metropolitana. Entre 1960 e 1970 e entre 1970 e 1980,
o nmero de migrantes ultrapassou 2 milhes por perodo (Perillo 1993: 2).
I3 Cf. Langenbuch 1971. Especuladores imobilirios compraram a maioria dos lotes vendi
dos antes dos anos 30, os quais permaneceram desocupados. Para uma histria de um bairro de
periferia criad_o na dcada de 20, mas ocupado apenas nos anos 60, ver Caldeira 1984.
14 Em 1948, apenas 4,2% dos deslocamentos urbanos em transporte coletivo entre a casa e
o trabalho eram feitos por trem; durante os anos 50 e 60, a porcentagem dos deslocamentos por
trem nunca ultrapassou 6,6% do total (Velze, R., citado por Kowarick e Bonduki 1994: 153).
ts Esse monoplio foi quebrado no final dos anos 20, quando a cidade decidiu no renovar
o contrato com a Light e negar-lhe o monoplio do sistema de nibus. Ao mesmo tempo, o gover-
no municipal decidiu comear a construir a Avenida 9 de Julho, a primeira das novas avenidas
radiais.
Cidade de Muros 219
rios.
16
Como conseqUncia, o sistema era irregular .leatrio, projetado para servir
sobretudo aos interesses imobilirios. Ele tornou possvel vender lotes localizados
"no meio do mato" e ajudou a criar um tipo peculiar de espao urbano no qual reas
ocupadas e vazias intercalavam-se aleatoriamente por vastas reas. No havia ne-
nhum planejamento prvio e as regies ocupadas eram aquelas nas quais os especula-
dores tinham decidido investir. Sua estratgia era deixar reas vazias no meio das
ocupadas para que fossem colocadas no mercado mais tarde por preos mais altos.
A urba':lizao da periferia foi deixada principalmente para a iniciativa pri-
vada, com pouco controle ou a judia das autoridades governamentais at a dcada
de 70. A despeito dos discursos da:elite e do governo em favor tanto da difuso da
casa prpria para os pobres quantQ de um planejamento racional para a expanso
da cidade, o processo de abertura e venda de lotes na periferia que expandiu a ci-
dade drasticamente a partir dos anos 40 foi catico. A prpria legislao garantia
a excepcionalidade da periferia: enquanto regulava cuidadosamente o que definia
corno permetro urbano, deixava as zonas suburbana e rural quase sem regulamen-
tao e portanto abertas s mais diversas formas de explorao. Os especula dores
imobilirios desenvolveram vrias prticas ilegais ou irregulares para maximizar seus
lucros: da grilagem e fraude ao no suprimento de servios urbanos bsicos e desres-
peito das dimenses mnimas do lote exigidas por lt"!i. O resultado dessas prticas
que a maioria dos trabalhadores que compraram terrenos na periferia para cons-
truir suas casas descobriu com o tempo que suas propriedades estavam prejudica-
por alguma forma de ilegalidade e seus ttulos no podiam ser registrados. Ou
haviam comprado um terreno grilado, ou no conseguiam regulariz-lo por-
que suas dimenses estavam abaixo dos limites exigidos por lei, ou porque locali-
zava-se em loteamentos sem a infra-estrutura exigida pelos cdigos municipais. Alm
disso, os trabalhadores normalmente construam suas casas sem aprovar a planta
na prefeitura, j que geralmente no podiam arcar com o custo que isso envolvia.
Assim, mesmo quando os lotes eram legais, freqentemente a construo no era.17
A Secretar-ia de Planejamento de So Paulo estimou no incio dos anos 90
que 65% de toda a populao da cidade mora em residncias afetadas por pelo
menos uma das vrias formas de ilegalidade (Rolnik et a/. s.d.: 95). Todavia, os
trabalhadores sempre entenderam que exatamente a condio de ilegalidade dos
lotes e da construo, e o carter legal precrio da periferia como um todo, que
permite que eles se tornem proprietrios e resolvam seus problemas de moradia
16
Em 1948, os nibus pblicos respondiam por 31% dos deslocamentos entre a casa e o
trabalho, e os nibus particulares, por 12,6%. Em 1966, no entanto, a situao havia se inverti-
do: os nibus particulares faziam 75,7% dos deslocamentos e os nibus pblicos,apenas 15,5%
(Velze, R., citado por Kowarick e Bonduki 1994: 153).
17
Todas essas fo.mas de- ilegalidade ou irregularidade afetam as pessoas que compram seus
lotes de boa-f e pagam por eles. Eles constituem um caso diferente do das favelas, que so
das pela invaso de terras e onde as pessoas normalmente nO compram os lotes (embora possam
comprar seus barracos).
220 Teresa Pires do Rio Caldeira
(ver Caldeira 1984: caps. 1-3; Holston 1991b). Os lotes na periferia eram acess-
veis aos trabalhadores tanto em funo de sua ilegalidade quanto porque estavam
"no meio do mato": em bairros sem asfalto, eletricidade, gua, esgoto, telefone,
escolas ou hospitais e ligados cidade por um sistema deficiente de nibus nos
quais muitas horas por dia.
18
Tais infra-estruturas urbanas e servios
tenderam ser instalados ou melhorados apenas durante perodos democrticos
e sob a presso poltica de movimentos de moradores da periferia. Nos anos 50,
polticos populistas, em especial Jnio Quadros, estabeleceram uma poltica de
trocar infra-estrutura urbana por votos, prtica que acabou urbanizando o pri-
meiro anel da periferia (incluindo a famosa Vila Maria), que por sua vez tornou-
se sua principal base poltica. A mais importante mobilizao dos moradores da
periferia, nQ entanto, comeou nos anos 70 e caracterizou-se pela organizao dos
sociais autnomos.
Os moradores da periferia tambm foram negligenciados pelo faro de que
nunca puderam contar com nenhum tipo de financiamento para construir suas casas.
Os poucos programas criados para eles ou tinham exigncias que no podiam cum-
prir, ou foram rapidamente redirecionados para a classe mdia, como o caso do
Banco Nacional de Habitao (BNH). Portanto,'-bs trabalhadores terminaram cons-
truindo suas casas atravs da autoconstruo, o processo a longo prazo pelo qual
os trabalhadores compram um lote, constroem um quarto ou um barraco nos fun-
dos do lote) onde passam a morar, e ento gastam dcadas expandindo e melhorando
a construo, mobiliando e decorando a casa (ver as Fotos 1, 2 e 3). Esse processo
mudou radicalmente o status residencial da maioria da populao. A partir dos anos
40, a aquisio da casa prpria em So Paulo expandiu-se consideravelmente, ao
mesmo tempo que o aluguel diminuiu. Enquanto em 1920 apenas 19,1% dos do-
miclios eram propriedade dos moradores, em 1960 essa taxa subiu para 41%, e,
em 1991, 63;2.% j estavam nessa categoria.
19
Hoje, a proporo de habitaes
prias nos bairros perifricos (68,51 %) maior do que a mdia da cidade (63,57%),
confirmando a disseminao da autoconstruo como a principal alternativa habi-
tacional das camadas trabalhadoras (ver Tabela 7).
A expanso da rea urbanizada da regio metropolitana de So Paulo, resul-
tante basicamente do deslocamento dos trabalhadores em direo periferia e da
instalao de indstrias em algumas dessas regies, expressa no Mapa 1.
20
Ele
mostra que a maior expanso ocorreu durante os anos 50: Dos anos 40 at os anos
tS Em 1977, na zona leste da cidade, onde se localiza o Jardim das Camlias, moradores
que usavam nibus para ir ao trabalho gastavam uma mdia de 13 horas fora de casa, indo ou
vindo para o trabalho e trabalhando. Em 1987 a situao permanecia inalterada {Caldeira 1984:
62, Metr 1989: 41).
19 Para 1920, Bonduki (1982: 146); para 1960 e 1991, Censo Brasileiro.
20 Agradeo ao Laboratrio de Espacializao de Dados do Cebrap e especialmente a Ciro Bi
derman e Anderson Kazuo Nakano pela assistncia na elaborao dos mapas usados neste captulo.
Cidade de Muros 27.1 r
222
Fotos 2 e 3: Diferentes estgios de uma autoconstruda
no Jardir_n das Camlias, 1980, 1989 e 1993.
Teresa Pires do Rio Caldira
80, o processo. de expanso perifrica afetou no s a cidade de So Paulo, mas
tambm os 38 municpios circundantes que formaram uma conurbao para cons-
tituir sua regio metropolitana. Vrios desses municpios apresentam a mesma pre-
cariedade urbana e as mesmas altas taxas de crescimento populacional dos distri-
tos da periferia da capital e funcionam como sua extenso. Alguns desses munic-
pios tambm acomodaram muitas das novas indstrias instaladas na regio nas
dcadas de 50 e 60. A principal rea de desenvolvimento industrial foi a regio
sudeste da cidade- o ABCD.2
1
Mapa 1
ExpansO da rea Urbana, Regio Metropolitana de So Paulo, 1949-1992
Fonte: Emplasa e Cebrap. LED
-- Mvnicipio de $ao Pavio
[Bjl1949
c::J 1962
.. 1992
OviiOmetros
10 15
2! Encontra-se no Apndice um mapa da regio metropolitana com os nomes de todos os
municpios (Mapa 3).
. ....
. medida que a metrpole se expandiu as preocupaes das autoridades p-
blicas em regular o espao construdo, domar a expanso descontrolada e reme-
diar os efeitos mais perversos tambm aumentaram. Os regulamentos e planos mul-
tiplicaram-se a partir dos anos 60. No entanto, como j havia acontecido antes seus
efeitos foram sentidos principalmente nas reas centrais ocupadas pelas classes
e alta, as periferias permaneceram negligenciadas at os anos 70.
ALOJANDo os Rrcos E o CENTRo
O padro de habitao da:classe mdia de So Paulo tambm mudou, espe-
depois do final dos os 60. Seus membros tambm se tornaram pro-
prietrios, mas atravs de um processo completat:nente diferente. Ao contrrio do
que acontecia com as camadas trabalhadoras, as classes mdia e alta receberam fi-
nanciamento e no tiveram de suas csils. Mudaram-se para prdios de
o primeiro tipo de habitao a ser produzido por grandes empresas
e cujo mercado se expandiu de forma significativa nos anos 70, transformando os
bairros centrais. Alm disso, os edifcids eram o principal tipo de construo para
escritrios, no apenas no centro mas tambm em novas reas comerciais nas re-
gies sul e oeste da cidade.
Uma anlise da histria da verticalizao de So Paulo permite entender como
autoridades pblicas, tanto locais quanto federais, tentaram regular a expanso
l
1
rbana e estruturaram as reas mais ricas da cidade. O zoneamento municipal e os
regulamentos de deternJinaram onde os edifcios podiam ser construdos
e .que dimenses podiam ter, alm de terem criado barreiras construo de pr-
diOs de apartamentos para camadas de baixa renda. Polticas federais ditaram as
condies de financiamento de apartamentos para a classe mdia e para a prolife-
rao de grandes empreendimentos imobilirios que dominaram o mercado de re-
sidncias coletivas a partir dos anos 70. Em conjunto, as polticas municipais e fe-
derais ajudaram a transformar os prdios de apartamentos no principal tipo de
moradia das classes mdia e alta.
A construo de edifcios em So Paulo comeou na primeira dcada do s-
culo XX e localizou-se no centro da cidade. Conforme demonstra Ndia Somekh
Martins Ferreira, at 1940, 70% de todos os edifcios localizavam-se nos bairros
centrais e 65% eram no-residenciais. Em 1940, apenas 4,6% da populao de So
Paulo vivia em apartamentos e apenas 2,1% dos domiclios estavam em prdios de
apartamentos (Ferreira 1987: 75).
22
Durante a dcada de 40, a construo de edi-
fcis continuou limitada regio central e a uns poucos bairros circundantes, mas
a porcentagem de edifcios residenciais a aumentar. Naquela poca j era
22
A anlise da construo vertical de So Paulo para o pefodo de 1940-1979 baseada
em Ferreira (1987). A fonte de Ferreira o registro de elevadores na cidade de So Paulo. Desde-
1940, wdos os elevadores devem ser registrados na prefeitura. Esses registros con rm
0
endereo
de cada edifcio e o ano em que eles for:Hll co/f}Cados no merendo.
224
Teresa Pires do Rio C.1/dt'ir,,
possvel vender separadamente unidades em prdios de apartamentos, mas a maioria
dos edifcios residenciais era para aluguei.
2
3 De acordo com Carlos Lemos (1978:
54), quando iniciou-se a construo de prdios de apartamentos residenciais nos
anos 40, eles eram estigmatizados e associados a cortios, pobreza e falta de priva-
cidade e liberdade. Os apartamentos eram, portanto, uma soluo indesejada para
a classe mdia. Isso confirmado por uma pesquisa realizada pelo Ibope (Instituto
Brasileiro de Opinio Pblica e Estatstica) em dezembro de 1945 entre os mora-
dores das classes mdia e alta da cidade de So Paulo, em que 90)8% dos entrevista-
dos declararam preferir casas a apartamentos e 83,3% estavam de fato vivendo em
Na poca, a maioria dos entrevistados pagava aluguel: apenas 17,2% dos
homens entrevistados possuam residncia prpria; 53,2% tinham a inteno de
comprar uma casa, mas apenas 1,6% tinha a inteno de comprar um apartamento.
At o final da dcada de 50, a construo de edifcios no foi muito controla-
da pela administrao municipal. De 1957 em diante, no entanto, leis municipais
destinadas a controlar a expanso da cidade afetaram em particular a construo
de edifcios. As leis tiveram dois efeitos principais: por um lado, fecharam o mer-
cado imobilirio de prdios de apartamentos para a populao de baixa renda; por
outro, direcionaram os novos edifcios para fora 'do centro. Ambos os efeitos acom-
panharam o remodelamento da regio central que expulsou os pobres para as no-
vas periferias. Essas tendncias tm persistido dos anos 50 at o presente.
Em 1957, a Lei Municipal 5.261 limitou pela primeira vez o coeficiente de
aproveitamento do terreno: ele no poderia exceder a 6 vezes nos prdios comer
dais e 4 vezes nos prdios residenciais (isto , o total da rea construda no podia
ser maior do que 4 ou 6 vezes o tamanho do lote).
25
Alm disso, essa lei determi-
nou que a cota mnima de terreno por apartamento deveria ser de 35m
2
; isto , a
cada unidade deveria corresponder pelo menos 35 m
2
da rea do terreno. Embora
essa lei nunca tenha sido inteiramente cumprida- as incorporadoras sempre en-
viavam prefeitura suas plantas de prdios residenciais como se fossem comerciais,
conseguindo assim aumentar o coeficiente de aproveitamento-, ela acabou cau-
sando um aumento do tamanho dos.apartamentos e forando o deslocamento de
novos edifcios residenciais para regies fora do centro da cidade, onde os lotes eram
mais baratos .. Desde essa poca, os apartamentos se tornaram uma forma de mo-
radia quase exclusiva da classe mdia. .
Se as leis municipais explicam porque a construo de apartamentos de bat-
xa renda foi interrompida e porque os edifcios comearam a ser erguidos fora
23 O Decreto 5.481, de 25 de junho de 1928, regulamentou a venda de apartamentos indi
viduais em prdjos com mais de cinco andares (Ferreira 1987: 72). Nos EUA, a propriedade em
condomnio foi regulamentada apenas em 1961 (McKenzie 1994: 94).
24 As pesquisas originais do Jbope esto no Arquivo Edgard Leuenroth, na Unicamp. Os
dados citados acima so do volume 2 das pesquisas de 1945. Os documentos no so numerados
e so identificados apenas pela data.
2.1 Esta lei foi inspirada por Anhaia Melo, prefeito c pi:lnt'j:ldor de So Pnu!o, que era fnvo
rrivcl no controle da verricnl c d;l dcnsidndc popubdonnl dn cidade.
r>: .I. I I '
regio central, das no explicam porque alguns anos mais tarde a classe mdia es-
tava se mudando para um tipo de residncia que antes havia rejeitado fortemente.
Este fenmeno pode ser melhor entendido considerando-se a prxima importante
interveno do Estado nO mercado imobilirio de apartamentos, dessa vez em mbito
federal: a criao, em 1964, do BNH e do SFH (Sistema Financeiro de Habitao).
Este que comeou a operar em larga escala em 1967, foi criado especifica-
mente para promover a construo e financiamento da casa prpria para famlias
de renda baixa e muito baixa. Nd entanto, como sabido, nos anos 70 o BNH
tornou-se a principal fonte de finalciamento para a classe mdia, e o que ele mais
finaniava eram apartamentos em Prdios recm-construdos. Do total de recursos
fornecidos pelo SFH entre 1965 e 1985, apenas 6,4% foi para famlias com renda
menor do que 3,5 salrios mnimos (Brant et a/. 1989: 98).
2
6
O SFH provocou uma forte transformao num mercado imobilirio que vi-
nha sendo dominado por incorporadores relativamente pequenos e famlias que
construam suas prprias residnciaS. Ele estimulou a criao de grandes empresas
de incorporao imobiliria, que tomavam dinheiro emprestado do SFH para cons-
truir edifcios ou conjuntos habitacionais para serem vendidos com financiamento
do BNH. Embora dados para So Paulo no estejam disponveis, Ribeiro e Lago
mostram que no Rio de janeiro, do total de incorporadores imobilirios registrados
cidade no final dos anos 1980, 60% havia iniciado suas atividades durante a
dt\:ada de 70 (1995: 375). Esses incorporadores tinham muito mais capital do que
os"empreendedotes anteriores e dominaram completamente o mercado imobilirio
a partir dos anos 70, primeiro nas regies centrais das reas metropolitanas e mais
recentemente tambm nas periferias. Esses incorporadores construam sobretudo
edifcios, mas tambm alguns condomnios fechados horizontais.
Especialmente durante a dcada de 70, os anos do "milagre econmico", o
BNH (associado a grandes incorporadores) desempenhou um papel fundamental
no mercado imobilirio. Em So Paulo, 80,8% dos prdios de apartamentos residen-
ciais colocados.no mercado entre 1977 e 1982 receberam financiamento do BNH
(Salgado 1987: 58). A entrada do SFH no mercado imobilirio fez com que o nmero
de prdios de apartamentos registrados por ano no municpio de So Paulo mais
do que dobrasse.
27
Considerando-se que 63% das unidades financiadas pelo SFH
entre 1970 e 1974 eram para o assim chamado mercado mdio (isto , para a clas-
se mdia), 25% para o mercado econmico e apenas 12% para o mercado popular
(Rolnik et a/. s.d.: 111); no difcil concluir que os prdios de apartamentos eram
de classe mdia. Em outras palavras, a classe mdia conseguia emprsti-
mos baratos subsidiados pelo governo, e as camadas trabalhadoras, que no tinham
recursos para comprar no mercado formal e que s raramente atingiam as exign-
26
Ver Sachs (1990) para uma anlise das polticas de habitao durante a existnia do BNH.
27 O nmero de prdios de apartamentos registrado por ano no municpio de So Paulo pulou
de uma mdia de 265 entre 1959 e 1969 para 580 entre 1970 e 1976 (Ferreira 1987: 25). Para
anlises do Rio de janeiro que mostram um padro semelhante, ver Ribeiro (1993) e Ribeiro e
Lago (1995),
226 Teresa Pires do Rio Caldeira
cias do BNH para um pedido de emprstimo, construam casas por conta prpria
na periferia sem nenhuma ajuda financeira. Alm disso, o financiamento macio
de prdios de apartamentos pelo SFH provavelmente uma das principais razes
pelas quais a classe mdia em So Paulo abandonou o sonho de morar em casas.
Como seria de esperar, durante a dcada de 70 a distribuio de apartamen-
tos pela cidade expandiu-se consideravelmente, principalmente na parte sudoeste
da cidade. O tipo de edifcios e sua distribuio espacial foram novamente influen-
ciados por uma nova regulamentao municipal: o Cdigo de Zoneamento de So
Paulo, aprovado em 1972, que dividiu a cidade em oito zonas com diferentes coe-
ficientes de aproveitamento e tipos de uso do solo (residncia, comrdo, indstria,
servios etc.). O maior coeficiente de aproveitamento na cidade foi fixado em 4 e
aplicava-se a. uma rea correspondente a apenas 10% da regio urbana total. A maior
parte dos bairros de elite ficou em zonas classificadas como exclusivamente resi-
denciais e com coeficientes de aproveitamento baixo. Uma vez que aprovar plan-
tas fraudulentas ficou mais difcil depois que o BNH comeou a financiar a cons-
truo (ele financiava apenas residncias), o novo cdigo causou um aumento nos
preos dos terrenos e reforou a tendncia de deSlocamento dos edifcios pafa lon-
ge das regies centrais.
Prdios de apartamentos de classe mdia continuaram a ser construdos princi-
palmente em direo ao sudoeste e cada vez mais longe do centro. Ao mesmo tem-
po, em meados dos anos 70 os primeiros grandes condomnios fecha-
dos num padro de quase-clubes, alguns deles fora da cidade. Esse tipo de empre-
endimento imobilirio foi estimulado pelo novo zoneamento, que permitia que os
prdios excedessem os coeficientes de aproveitamento em algumas reas se diminus-
sem a taxa de ocupao e criassem reas verdes e equipamentos para uso coletivo.
A construo de edifcios comerciais e de escritrios durante os anos 70 seguiu a
mesma tendncia espacial. O centro de So Paulo no era mais o nico ncleo comer-
cial e de servios. Os escritrios se espalharam pela Avenida Paulista, pelos jardins
e pela Avenida Faria Lima, todos na parte sudoeste da cidade. Edifcios comerciais
e residenciais foram construdos um atrs do outro numa rea cada vez maior.
DISTNCIAS, GRANDES DISPARIDADES
Na dcada de 70, So Paulo tinha se tornado uma cidade na qual pessoas de
diferentes classes sociais no s estavam separadas por grandes distncias, mas tam-
bm tinham tipos de habitao e qualidade de vida urbana radicalmente diferen-
tes. Desde o final dos anos 60, a .cidade tem realizado estudos que indicm essas
disparidades. Em 1968, o PUB (Plano Urbanstico Bsico) mostrou que 52,4% dos
domiclios no tinham ligao de gua, 41,3% no estavam ligados rede de esgo-
tos e15,9% no dispunham de coleta de lixo (citado por Camargo et ai. 1976: 28).28
28
O PUB foi a base para o primeiro plano urbanstico geral da cidade. o Plano Diretor de
Desenvolvimento Integrado aprovado em 1971 (Lei Municipal 7.688).
Cidade de Muros
227
Alm disso, o plano indicou que 60% das ruas no eram asfaltadas e 76% no ti-
nham iluminao pblica (So Paulo, Sempla 1995: 19). A distribuio de infra-
estrutura e de servios pblicos era bastante desigual. Enquanto no centro 1,3%
dos domiclios no tinha gua 4,5% no estavam ligados rede de es-
goto, 1,7% no til).ha asfalto e 0,8% no tinha coleta de lixo, num distrito novo
,na periferia leste, cqmo ltaquera, em 89,3% dos domiclios no havia gua encanada,
96,9% no dispunham de esgotos, 87,5% no tinham asfalto e 71,9% no dispu-
nham de coleta de lixo. 29
A expanso da periferia sob essas condies precrias criou srios problemas
de saneamento e sde. As taxas de mortalidade e especialmente de mortalidade
infantil, que diminudo entre 1940 e 1960, aumentaram de 1960 at mea-
dos da dcada de 1'0. A expectativ de vida diminuiu de 62,3 anos no perodo de
1957-1967 para 60,8 anos no perodo de 1969-1971. Ao mesmo tempo, a morta-
lidade infantil aumentou de 62 (por mil nascidos vivos) para 80 em 1975. As taxas
de J';'lortalidade infntil eram muito mais altas na periferia do que nos distritos cen-
trah', Em 1975, por exemplo, em So Miguel Paulista, na periferia leste, a taxa de
mortalidade infantil era de 134, enquanto no Jardim Paulista era de 44,6 (So Paulo,
Emplasa 1982: 419).
Em resumo, nos anos 70 os pobres viviam na periferia, em bairros precrios
e em casas autocorlstrudas; as classes mdia e alta viviam em bairros bem-equipa-
dos e centrais, uma poro significativa delas em prdios de apartamentos (ver Fotos
4 e 5). O sonho da elite da Repblica Velha fora realizado: a maioria era proprie-
tria de casa prpria e os pobres estavam fora do sett caminho. Esse padro de se-
gregao social dependia do sistema virio, automveis. e nibus,
30
e sua consoli-
dao ocorreu ao mesmo tempo que So Paulo e sua regio metropolitana setor-
naram o principal centro industrial do pas e o seu mais importante plo econmi-
co. As novas indstrias (muitas delas metalrgicas) localizavam-se na periferia da
cidade e nos municpios circundantes. O comrcio e os servios, no entanto, per-
maneceram nas regies centrais, no apenas no velho centro, mas tambm prxi-
mo s novas reas de residncia das classes mdia e alta em direo zona sul da
cidade.
Tanto o Censo de 1970 quanto o de 1980 demonstraram a extenso da divi-
so da cidade entre centro e periferia. Um estudo de 1977 produzido pela Seplan
(Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de So Paulo), baseado nos dados
do Censo de 1970, ilustrou a segregao. Ele fez uma anlise discriminante por passos
usando as seguintes variveis para cada distrito da cidade: renda familiar, sanea-
mento bsico, densidade demogrfica, crescimento populacional, uso residencial do
29 Uma documentao detalhada das desigualdades sociais e espaciais na cidade e na regio
metropolitana em meados da dcada de 70 encontrase em Camargo et al. (1976). Ver Caldeira
(1984) para uma anlise do processo de pedferizao e para um estudo de caso em So Miguel,
na periferia leste, no final dos anos 70.
30 So Paulo tinha 63 mil veculos motorizados circularido em 1950; em 1966 eles eram 415
mil, e em 1993 eram 4,1 milhes (Morse 1970: 373; So Paulo, Sempia 1995: 89).
228 Teresa Pires do Rio Caldeira
Foto 4: Consolao, um bairro central de So Paulo que
combina edifcios comerciais e residenciais, 1980.
Foto 5: Jardim das Camlias, bairro da periferia leste da cidade de So Paulo, 1980.
Cidade de Muros
229
solo e mortalidade Esse estudo mostroU que os distritos da
cidade estavam distribudos em oito homognas, isto , grupos de bairros
com caracterstics sociais e urbanas
1
similares. A regio I era a ce.ntral, a mais rica
e bem-equipada; a regio VIII era a mais pobre, com menos infra-estrutura urbana
e a mais distante do centro (So Paulo, Seplan 1977); as outras ficavam em posi-
es intermediri::ts, estando as mais ricas mais prximo do centro. Dados do Cen-
so de 1980.confrmaram esse padro. Na regio I, que abrigava apenas 6,9% dos
domiclios e 6,3% da populao, 99,1% dos domiclios tinham ligao eltrica,
97,6% eram ligad.os rede geral de esgotos e 73,2% dispunham de telefone. Na
regio VIII, que abrangia 22,0% dos domiclios e 24,1% da_ populao, 98,8% dos
domiclios tinham ligao eltrica, mas apenas 19,1% estavam ligados rede de
esgotos e apenas 4,9% dispunham .de telefone. Em termos de tenda familiar m-
dia"na regio I, aqueles com renda 4e at cinco salrios mnimos eram 18,4% do
tota: na regio VIII, eram 64,6% do total (Caldeira 1984: 26-8).
Essa separao dos grupos sociais na cidade esteve associada a um perodo
de relativa s diferenas de dasses. Pelo menos trs fatores contribu-
ram para essa desteno e ajudaram a criar um uma separao entre as
classes, que muitos interpretaram como um. sinal de paz social. Primeiro, a separa-
o espacial das classes tornou seus encontros pouco freqentes e restritos princi-
palmente circulao em algumas regies centrais. Segundo, o crescimento econ-
mico a partir dos nos 50, e especialmente durante os anos 70- os "anos do mi-
lagre"-, gerou otimismo e ajudou a fortalecer a crena no progresso e na mobili-
dade social. Terceiro, a represso dos governos militares baniu organizaes pol-
ticas e a expresso pblica de oposio ao regime.
Mas a "calma, no durou muito. Nos ltimos anos do regime militar, o mo-
vimento sindical foi reorganizado na regio metropolitana de So Paulo e movimen-
tos sociais exigindo servios e equipamentos urbanos articularam-se por toda a
periferia. A elite no previra que a propriedade da casa, em vez de ser um meio de
estabidade social e docilidade da classe trabalhadora, iria, ao contrrio, politizar
os moradores da Periferia, levando-os a reivindicar seus direitos cidade. To logo
iniciou-se a "abertura poltica" em meados da dcada de 70, movimentos sociais
emergiram por toda a periferia. Os moradores pobres de So Paulo, que haviam
sido esquecidos no silncio das margens da cidade, aprenderam rapidamente que,
se pudessem se organizar, provavelmente poderiam melhorar a qualidade de vida
nos seus bairros. A mobiliZao poltica daqueles que at ento haviam sido exclu-
dos da arena poltica toi'nou visvel a periferia e ajudou a pop_ulao .de So Paulo
a perCeber o padro de segregao social e organizao espactal da ctdade. O mo-
delo centro-periferia passou a ser invocado em negociaes polticas entre os fun-
cionrios do governo e os representantes dos movimentos sociais. Foi tambm o
modelo usado pelos meios de comunicao de massa naS suas freqentes .reporta-
gens sobre manifestaes, e pelos cientistas sociais, que a
politizao que no haviam previsto. Esse modelo
cia comum para moradores, organizaes polticas, e
No entanto, medida que a periferia encontrava- seu cammho na pohnca e
intelectual da cidade, outros processos j estavam mudando sua conftgurao de
230
Teresa Pires do Rio Caldeira
tal forma que, num curto perodo de tempo, o modelo centro-periferia no era mais
capaz de representar acuradamente as dinmicas scio-espaciais da cidade.
PROXIMIDADE E MUROS NAS DCADAS DE 80 E 90
A So Paulo do final dos anos 90 mais diversa e fragmentada do que era
nos anos 70. Uma combinao de alguns deles semelhantes aos que afe-
tam outras cidades, transformou o padro de:tlistribuio de grupos sociais e ativi-
dades atravs da regio metropolitana. So Paulo continua a ser altamente segregada,
mas as desigualdades sociais so agora produzidas e inscritas no espao urbano de
modos diferentes. A oposio centro-periferia continua a marcar a cidade, mas os
processos que produziram esse padro mudaram consideravelmente, e novas for-
as j esto gerando outros tipos de espaos e uma distribuio diferente das clas-
ses sociais e atividades econmicas. So Paulo hoje uma regio metropolitana mais
complexa, que no pode ser mapeada pela simples oposio centro rico versus pe-
riferia pobre. Ela no oferece mais a possibilidade de ignorar as diferenas de clas--
ses; antes de mais nada, uma cidade de muros com uma populao obcecada por
segurana e discriminao social.
Vrios foram os processos que se combinaram para provocar as mudanas
recentes no padro de segregao espacial de So Paulo. Nos anos 80 e 90, a taxa
de crescimento populacional em So Paulo caiu significativamente, como resulta-
do de uma queda acentuada nas taxas de fecundidade (ver captulo 1) combinada
com emigrao. Isto , reverteram-se as tendncias demogrficas que haviam ca-
raCterizado a cidade nos ltimos cem anos. Essa mudana demogrfica combinou-
se a uma transformao nos padres residenciais especialmente para os moradores
mais ricos e os mais pobres. Pela primeira vez na histria da So Paulo moderna,
moradores ricos esto deixando as regies centrais da capital para habitar regies
distantes. Embora a riqueza continue geograficamente concentrada, a maioria dos
bairros centrais de classe mdia e alta perderam populao no perodo de 1980-
1996, enquanto a proporo de moradores mais ricos aumentou substancialmente
em alguns municpios no noroeste da regio metropolitana e em distritos no sudo-
este da cidade habitados anteriormente por pessoas pobres. Nessas novas reas, o
principal tipo de habitao o enclave fortificado. Ao mesmo tempo, a
da casa prpria por meio da auroconstruo na periferia tornou-se uma alternati-
va menos vivel para os trabalhadOres pobres. Isso o resultado da combinao
de dois processos: o empobrecimento causado pela crise econmica dos anos 80 e
as melhorias na infra-estrutura urbana na periferia, inclusive a legalizao de ter-
renos, resultante da presso dos movimentos sociais e de um novo tipo de ao dos
governos municipais. Em outras palavras, enquanto as rendas diminuram, a peri-
feria melhorou e tornou-se mais cara. Como resultado, muitos moradores pobres
tiveram de colocar de lado o sonho da casa prpria e cada vez mais optar por viver
em favelas ou em cortios, que aumentaram substancialmente.
A dinmica econmica e a distribuio de atividades econmicas tambm
mudou. O setor industrial, especialmente na cidade de So Paulo, perdeu sua pre-
Cidade de Muros 231 1 A
ponderncia para novas atividades Antigas reas industriais decaram,
enquanto novas zonas de escritrios e comrcio atraram tanto residentes ricos
quanto altos investimentos. Finalmente, o aumento do crime violento e do medo
desde dos anos 80 provocou a fortificao pa cidade, medida que mora-
dores de tod_as classes sociais b9scaram proteger seus espaos de residncia e
trabalho. Alem d1sso, como o medq e o crJme aunientaram, os preconceitos arti-
culados na fala do crime no s a exacerbar a separao de diferentes
grupos .sociais, mas tambm a aumcintar as tenses e suspeitas entre eles.
A fim de analisar esses processos e seus efeitos no padro de segregao em
So Paulo e em sua regio metropolitana, uso indicadores demogrficos e socioeco-
nmicos dos Censos de 1980 e 1991, da Contagem da Populao de 1996 e das
PNADs, todos prbduzidos pelo IBGE. Para uma anlise de transformaes recen-
tes no espao urbano, todas essas fontes apresentam limitaes. As PNADs s es-
to disponveis a regio metroPolitana como um todo. Para uma anlise mais
detalhada, necessrio separar a informao por municpios ou por distritos. No
entanto, a subdiviso da cidade em distritos foi completamente refeita entre os dois
censos, tornando a comparao impossvei.
3
l Como rlo h outros dados adequa-
dos1para 1980, a anlise que se segue aborda cada ano e tenta comparar suas ten-
dn('.ias principais.3
2
O mesmo problema no existe para os outros municpios da
regio metropoHtana, que so menores e mais homogneos e cujos limites perma-
neceram praticamente inalterados.
31
O Censo de 1980 apresenta dados para 56 distritos e subdistritos da cidade de So Paulo
e o Censo de 1991 apresenta dados para 96 distritos. Os novos distritos no so subdivises dos
antigos, mas tm limites totalmente diferentes, tornando impossvel a criao de unidades compa
rveis. A Secretaria _Municipal de Planejamento (Sempla) elaborou uma tabela que estima a popu
lao de 1980 de acordo com os novos distritos. Essa a nica informao disponvel de uma forma
comparvel de acordo com os novos distritos para o perodo de 1980-1991. Alm disso, a Emplasa
(Empresa de Planejamento da Grande So Paulo) produziu alguns poucos indica
dores comparveis para os velhos distritos. A Contagem de 1996, que tem dados organizados de
acordo com os novos distritos, restringe-se a alguns indicadores demogrficos,
32
Uma fonte alternativa de informao seriam as Pesquisas OD (Origem-Destino) realiza-
das pela Companhia do Metropolitano de So Paulo (Metr) em 1977 e 1987. Elas apresentam
resultaCos para pequenas subdivises da cidade chamadas zonas de trfego. Embora essas subdi-
vises tambm sejam diferentes para as duas datas, o Departamento de Planejamento da Secrera-
ria de Planejamento do Municpio de So Paulo criou unidades comparveis durante a adminis
trao de Luiza Erundina. Usei esses dados na minha tese, mas decidi abandon-los depois da
publicao do Censo de 1991, pois os dados para 1987 diferem consideravelmente dos resultados
do censo. A Pesquisa OD-87 usou estimativas populacionais que o censo provou estarem erradas
(por exemplo, para a cidade de So Paulo, a Pesquisa OD estimou um crescimento anual da po
pulao de 3,2% em vez do 1,1% observado pelo censo). Como conseqncia, a maioria das in
formaes em que me baseei antes da publicao do censo (e que usavam a densidade populacio
nal como uma varivel) estava incorreta. As discrepncias eram especialmente altas em relao a
alguns bairros fundamentais para minha anlise, como a Moca, que teve um crescimento popu
!acionai negativo (-1,6%) de acordo com o Censo de 1991, mas um crescimento anual significativo
de acordo com a Pesquisa OD-87 (2,0%). Na anlise atual no uso nenhum dado da Pesquisa OD
que dependa de estimativas populacionais. No entanto, uso seus dados sobre construes baseados
232 Teresa Pires do Rio Caldeira
REVERTENDO O PADRO DE CRESCIMENTO
Nos anos 80 e 90, as imagens de crescimento rpido e ininterrupto que ca-
racterizaram a cidade desde o sculo XIX perderam seus referenciais. De algumas
perspectivas, a cidade que "no pode parar" quase parou. Sua rea urbanizada
continuou se expandindo e sua populao ainda cresceu, mas a taxas que no se
comparam com as anteriores (ver Mapa 1 ). A rea urbana do municpio cresceu
12,68% entre 1980 e 1994 (de 733,4 km
2
para 826,4 km
2
[So Paulo, Sempla 1995:
30]), comparada a uma expanso de 37,5% entre 1965 e 1980. Na regio metro-
politana, aexpanso urbana continuou sendo significativa -24% (de 1.423,3 km
2
em 1980 para 1.765 km
2
em 1990) -,mas muito mais baixa do que o aumento
de 91,2% no perodo entre 1965-1980 (Marcondes 1995, citado por Leme e Meyer
1996: 9). 33 No entanto, uma das mais significativas inverses dos anos 80 e espe-
cialmente dos anos 90 foi o acentuado declniodo crescimento populacional. Como
mostra a Tabela 6,a taxa anual de crescimento populacional na cidade foi de 1,16%
entre 1980 e 1991 e de 0,4% entre 1991 e 1996, comparada a 3,67% nos anos 70.
Para os outros municpios da regio metropolitana, as taxas ainda foram altas,
3,21% e "3,07% respectivamente, mas metade da taxa de 6,34% dos anos 70. Entre
1980 e 1991, quase 760 mil pessoas deixaram a cidade de So Paulo (So Paulo,
Emplasa 1994: 136). A parte central e mais urbanizada da cidade foi a que mais per-
deu populao, enquanto as partes oeste e norte da regio metropolitana ganharam.
Dos distritos da cidade, 40,6% (nos quais viviam 33,5% da populao em
1991) tiveram um crescimento negativo da populao no perodo de 1980-1991
3
\
e, de 1991 a 1996,59,4% dos distritos perderam populao. Esses nmeros inclu-
em todo o centro expandido da cidade, dotado de melhor infra-estrutura urbana e
onde mora a populao mais rica. A tendncia do centro de crescer menos que a
periferia tornou-se clara desde os anos 50, quando algumas das regies industriais
mais antigas da cidade (Pari, Brs, Moca, Bom Retiro) e o centro velho (S, Santa
Ifignia) comearam a perder populao,
35
embora a maioria das regies centrais
continuasse a crescer. Nos anos 80, porm, o processo de perda populacional afe-
nos registros municipais de propriedade urbana (TPCL- Cadastro de Propriedade Urbana). OS re
sultadosdas Pesquisas OD esto So Paulo, Emplasa (1978), Metr (1989), e Rolnik eta/. (s.d.).
Dados de acordo com as zonas de trfego no foram publicados. Gostaria de agradecer ao Departa-
mento de Planejamento do municpio de So Paulo (da administrao Erundina) e especialmente
a Raquel Rolnik e Helosa Proena por terem permitido meu acesso a esses dados no-publicados.
.33 A cidade de So Paulo tem uma rea total de 1.509 km
2
A rea total da regio metropo
litana de 8.051 km
2
, . ,
A Praa da S simboliza, de um lado, a reapropnaao pohttca do espao
blico pelos cidados na transio para a Por outro, a
deteriorao do espao pblico, perigo, crime, em ao
social e
0
empobrecimento dos trabalhadores, que conttnuam a nas tdas e
vindas do trabalho, e que trabalham no mercado informal ou consomem seus
Jl Manifestaes menores ocorreram em outras reas, tanto no centro quanto na periferia,
mas nunca tiveram o mesmo simbolismo que as da Praa da S.
J26
Pires do Rio ( :;lldeim
dutos baratos. Ela simboliza tanto a fora como a deteriorao do espao pblico
e , conseqentemente, um smbolo do carter disjuntivo da democracia brasileira
(Holston e Caldeira 1998).
;xemplo da S outra indicao de que a democratizao polti-
ca nao e contradttona com a deteriorao dos espaos pblicos. Na verdade a
democratizao pode ter ajudado a acelerar a construo de muros e a deterio;a-
.o do pblico. Mas isso no ocorre da maneira simplista que alguns
ttcos de d1re1ta querem nos fazer crer: que a democracia cria desordem e crime e
gera a necessidade de muros. Se a democracia originou os mu-
r?s fo1 o ?emocratizao foi inesperadamente profupdo. At
0
ftm do regtme m1htar, a pohttca era um domnio exclusivo da elite. Com a abertu-
ra, .contudo, os moradores pobres da periferia passaram a ser importantes atores
ocupando a Praa da S para apresentar suas reivindicaes e afirmar seus
direitos cidade. Seus movimentos sindicais e sociais surpreenderam a todos eles
reivindicar um espao poltico que estava aberto, mas no
namente para eles. Na imaginao daqueles que preferem abandonar a cidade
0
medo do crime se entrelaa de maneiras complexas com outras
cadas por mudana, como mostrei no captulo 2. Ele se mistura com o medo dos
resultados eleitorais (especialmente o medo de que o PT pudesse ganhar as eleies,
como de fato aconteceu); com o medo de que se possa decair socialmente devido
e crise ec?nmca; o medo de que certos bens no mais sirvam para criar
dtstancuunento soctal ou conferir status; e o medo de que os pobres no mais pos
sam ser mantidos em seus lugares.
A coincidncia de democratizao com a,deteriorao do espao pblico e os
processoS de social, assim como os simbolismos ambguos
da Praa da Se, tmpedem quatsquer associaes fceis entre espaos pblicos ma-
teriais das e comunidades polticas. So Paulo demonstra que a
forma da comuntdade pobttca e o espao pblico da cidade podem se desenvolver
e.m d.irees opostas. Essa disjuno entre processo poltico e forma urbana
lcat1va. Por um lado, como as recentes transformaes urbanas no so um resul-
tado de poltics impostas pelo Estado, mas sim d maneira pela qual os cidados
se engaja.ram com sua cidade, elas podem ser vistas como o resultado de uma in-
terveno democrtica. Embora esse engajamento possa ser visto como uma for-
ma de democrtica, ele produziu sobretudo resultados no-democrticos. A
perversidde desse esforo dos cidados que ele levou segregao mais do que
tolerncia.
32
Por outro lado, na medida em que os cidados constroem todo tipo
32
O tipo de espao no-democrtico criado em So Paulo por meios democrticos similar
s vrias formuladas pelos movimentos NIMBY{Not In My Back
Y_a:d) na e analisadas por Davrs {1990). No entanto, se Davis revela uma aguda
em rela:10 aos disjuntivos da democracia nessa .-.nlise, faz o oposto guando
afmna que os espaos fort1frcaJos de Los Angeles um resultado direto das polticm; Jn era Bush-
Reagan. O entre poltica governamental e espao da cidade mais complicado do
que isso, como mostra o caso de So Paulo.
C:idadl' d, Muros
de muros e controles nos espaos da cidade, eles criam limites democratizao.
Atravs da criao de muros, os moradores recriam hierarquias, privilgios,' espa-
os exclusivos e rituais de segregao onde eles acabaram de ser removidos da es-
fera poltica. Uma cidade de muros no um espao democrtico. Na verdade, ela
se ope s possibilidades democrticas. Felizmente, no entanto, esse processo no
monoltico e h sempre a possibilidade de que espaos como a Praa da S se
encham de novo com pessoas de todas as classes, como Ocorreu quando elas se reu-
niram para derrubar o regime militar.
O 'EsTILO NE-INTERNACIONAt: SAo PAULO E Los ANGELES
Na So Paulo contempornea, os ptocessos disjuntivos no diminuem o fato
de que as fronteiras rgidas e policiadas e a .crescente segregao dos grupos sociais
criam um tipo de urbano que compromete os valores de abertura e liberdade
de circulao e pe em risco as interaes annimas e impessoais entre pessoas de
diferentes grupos sociais. Essas e outras transformaes similares podem ser detec-
tadas em muitas outras cidades ao redor do mundo, ainda que nem sempre com a
ou obviedade. De Johannesburgo a Budapeste, do Cairo Ci-
dade do Mxico, de Buenos Aires a Los Angeles, processos semelhantes ocorrem:
o erguimento de muros, a secesso das classes altas, a privatizao dos espaos p-
blicos e a proliferao das tecnologias de vigilncia esto fragmentando o espao
da cidade, separando grupos sociais e mudando o carter da vida pblica de ma-
neiras que contradizem os ideais modernos de vida urbana.
33
Da mesma maneira
que esses ideais ajudaram a moldar cidades por todo o mundo, transformaes
daquele ideal semelhantes s que esto ocorrendo ern So Paulo esto afetando
atualmente o carter do espao urbano e da vida pblica em vrios lugares. Assim,
importante ampliar a discusso e incluir alguma comparao.
Los Angeles Um caso interessante para essa comparao por duas razes.
Primeiro, vrios dos novos instrumentos usados para impor segregao em vrias
cidades pelo mundo parecem ter sido desenvolvidos primeiramente em Los Ao-
geles e sua regio metropolitana. Considera-se mesmo que alguns desses instru
mentes conferem regio seu carter distintivo. Nesse sentido, eles so mais evi-
dentes em L.A. que em outros lugares e podem nos ajudar a entender o processo
que ainda est se desenvolvendo em cidades como So Paulo. Segundo, o espao
pblico no-moderno de Los Angeles menos explicitamente incivil que o de So
Paulo e algumas de suas prticas de segregao podem no ser perceptveis ime-
diatamente. Nesse sentido, So Paulo oferece a forma mais clara e pode guiar a
percepo de caractersticas de Los Angeles. Conseqentemente, a justaposio
33 Ver, por exemplo: sobre ]ohannesburgo, Beavon (1998).e Mabin (1998); sobre Budapes-
te, Ladnyi (1998); sobre Buenos Aires, Lacarrieu (1997); sobre cidades americanas, Blakely e Snyder
(1997), Davis (1990}, Dumm (1993) e Ellin (1997).
328 Teresa Pires do Rio Caldeira
dos dois casos i.lumina ambos e sugere tendncias mais gerais nas transformaes
do espao pbhco.3
4
. Atf a metad.e do sculo XIX, tanto Los Angeles como So Paulo eram
Cidades mstgmflcantes. A mdustrializao e a migrao a partir da virada: do scul
as transformaram em gran.des regies metropolitanas. Espacialmente, contudo,
se desenvolveram de maneiras completamente diferentes. So Paulo cresceu de acor-
com .u.m modelo urbano orientado para o centro de linhagem europia que s
f01 recentemente. Em, co?traste, Los Angeles sempre foi dispersa e des-
centralizada, fav?recendo os suburb10s. Ela sempre foi o que Fogelson (1967) cha-
ma uma metropole fragmentada. Los Angeles sintetiza o sentimento antiurbano
americano, a valorizao da natureza e uma preferncia por comunidades de pe-
escai;S mesm?_no de uma metrpole global (Banham 1971, Wcin-
stem 1996). A reg1ao metropolitana se expandiu sob a forma de uma.
de retalhos de comunidades suburbanas de baixa densidade es-
ten(iendo-se um terreno extraordinariamente irregular de monta-
nhas, vales, e Tanto unindo o tecido quanto conferin-
do-he sua r?coi?um estiveram, primeiramente, uma
vel :ede de eletncas mterurbarlas e depois um sistema ainda mais
notavel de vias expressas {Soja 1996a: 433-4.)36
de a cid,ade sempre ter tido um centro, que cresceu ao redor do seu
do XV!II e continua a concentrar as principais estruturas
e um distrito fmanceiro dinmico, seu relacionamento com
0
resto
Cidade e. o de um centro tradicional. A regio metropolitana de Los Angeles
nao te_m um umco centro, mas sim uma rede de ncleos dinmicos. o centro reno-
v?_do e dos financeiros e econmicos da regio.37 Tudo na re-
g1ao _de a indstr_ia, foi sempre disperso e continuou a
descentrahzar a. med1da que a Cidade crescia Como resultado L A 1
,., , " < , a os nge es con-
temporanea e polmucleada e descentralizada" (Soja 1989: 194). Esse padro, que
. _
34
No minha inteno oferecer uma descrio detalhada da histria e do padro de urba
mzaao de Los Angeles. Para mais detalhes, ver Banham (1971); Cenzatti (1992); Davis (1985,
198?, 1990, 1991 e 1993); Folgelson (1967); Kling et al. (1991) Scott (1993) Scotte Soja (1996)
e SoJa (1989, 1992 e 1996a e 1996b), ' ' '
35
"Los Angeles a prim.eira cidade americana importante a se separar decisivamente dos
os e .a revelar o impulso de privatizao embutido nas origens da Revoluo Ame-
( ... !A de uma ordem hierrquica integrada tanto no espao construdo quanto no
me1o mstJtucJonal e em certo sentido a completa expresso do ,,po d dmo
h . . "" "" cracm que
n a uma a_poteose de ?a qual a multiplicidade de partes que competem leva a uma
textura umforme da attvldade polmca" (Weinstein 1996:22, 30}.
36
Sobre o sistema de transporte de Los Angeles, ver Wachs (1996).
_
37
(1991) e Soja (1989: cap. 9) sobre a importncia do centro de L. A. na estrutu
raao da reg1ao.
Cidade de Muros
329
' -
no r';>vo mas certamente no comum para cidades industriais, tem sido evoca-
do algumas vezes para caracterizar seu urbanismo como ps-moderno (Dear 1996:
85; Soja 1989 e 1996a). Como uma forma similar de expanso e estruturao ur-
banas aparece em outras regies metropolitanas, ela se torna um modelo. Isso su-
gerido, por exemplo, .pela afirmao de Garreau de que "cada cidade americana
que est crescendo, est crescendo ao estilo de Los Angeles, com mltiplos centros
urbanos" (Garreau 1991: 3; grifo no original).
i\ pesar de o urbanismo de Los Angeles nunca ter sido denso e concentrado,
at os anos 40 a expanso de residncias e indstrias foi contida dentro dos limites
do condado. Entre 1940 e 1970,a populao da regio metropolitana de Los Angeles
triplicou, chegando a quase 10 -milhes. Esse crescimento, no entanto, ocorreu na
forma da suburbanizao de massa, como atestado pelo boom de incorporaes
de cidades, algumas delas j fechadas e fortificadas nos anos 60 (Soja e Scott 1996:
8-9). Boa parte dessa expanso foi pelo crescimento do complexo mili-
tar-industrial. Depois de 1970, apesar de as taxas de crescimento da populao no
terem si
1
do to altas, elas ainda eram as mais altas de todas as regies metropolita-
nas americanas. Alm disso, eram muito mais altas nos condados mais externos,
especialmente em Orange County, do que em LA. (Soja e Scott 1996: 11). Carac-
terizada por Soja como uma "urbanizao perifrica", essa expanso criou uma
regio multicentrada baseada na industrializao de alta tecnologia e ps-fordista,
enclaves residenciais de luxo, imensos shopping centers regionais, ambientes pro-
gramados para o lazer (parques temticos, Disneyland), ligaes com as principais
universidades e com o Departamento de Defesa, e vrios enclaves de mo-de-obra
barata, a maioria de imigrantes (Soja 1989: caps. 8 e 9). O desenvolvimento das
ltimas trs dcadas na regio metropolitana de Los Angeles diferente do padro
de suburbaniiao residencial com dependncia de empregos do centro. Ele exem-
plifica uma nova "expole" na qual no s as residncias, mas tambm os empre-
gos, a produo e o consumo se expandiram na periferia e criaram ncleos relati-
vamente independentes. O mesmo tipo de desenvolvimento comeou a ser detectado
na regio metropolitana de So Paulo nos anos 80, apesar de numa escala menor.
A reestruturao urbana de Los Angeles acompanhou um processo de acele-
rada reestruturao econmica durante os anos 70 e 80; que a transformou no maior
centro industrial dos Estados Unidos. Enquanto o resto do pas estava se desin-
dustrializando, o setor industrial de LA. continuou a expandir-se. No essa
expanso envolveu uma "mudana na organizao industrial e na tecnologia das
prticas fordistas-keynesianas de produo de massa e consumo de massa( ... ) para
o que hoje se define cada vez mais como um sistema ps-fordista de produo fle-
xvel e desenvolvimento corporativo" (Soja 1996a: 438). Em outras palavras, a regio
passou por um complexo processo de desindustrializao e reindustrializao si-
multneas. Alm do mais, isso aconteceu concomitantemente expanso _pronun-
ciada do setor de servios. De 1969 a 1989, "o setor de servios aumentou seu
domnio de 45% para 58% de todos os empregos, fazendo de Los Angeles uma
economia mais voltada para servios do que a nao como umtodo" (Ong e Blu-
memberg 1996: 318). Essa mudana rumo aos serviosindica tanto uma transfor-
mao na estrutura econmica da regio quanto um novo papel internacional de
330
Teresa Pires do Rio Caldeira
Los Angeles, que se tornou alvo de macios investimentos estrangeiros o maior
b
'
centro ur ano na costa do Pacifico e o segUndo maior centro bancrio dos Estados
Unidos. Essas transformaes ocorreram medida que a regio tambm recebia um
macio influxo de mo-de-obra imigrante (ia sia e Amrica Latina, que transfor-
mou radicalmente a composio tnica e racial da regio. A populao do c onda-
do de Los Angeles "mudou de 70% de anglo-saxnicos para 60% de no-anglo-
saxnicos entre 1960 e 1990, a maioria morando em enclaves tnicos" (Soja e Scott
1996: 14). Em 1980, L.A. era a cidade mais racialmente segregada de todas as ci-
dades americanas (Soja e Scott 1996: 10).
... . Como em muitas outras cidades globais (Sassen 1991), a reestruturao eco-
nomtca de Los Angeles acentuou uma bifurcao no mercado de trabalho entre um
crescente grupo de trabalhadores altamente especializados e com altos salrios e uma
massa de trabalhadores de baixa especializao e baixo salrio, geralmente imigran-
tes sem documentos. No de surpreender, ento, que a disparidade econmica
sempre uma caracterstica da cidade, tenha. se aprofundado recentemente. Apcsa;
de o mesmo processo ter acontecido no pas como um todo, revertendo ganhos
sociais das dcadas anteriores, ele foi especialmente acentuado em Los Angeles. Ong
e Blumemberg (1996) mostram que entre 1969 e 1989 tanto a renda per capita como
a renda mdia familiar aumentaram na cidade e eram mais altas que as mdias
em Los Angeles a distribuio de renda era mais desigual. O
coeficiente de GINI para Los Angeles aumentou de 0,368 em 1969 para 0,401 em
1979 e para 0,444 em 1989, enquanto as taxas nacionais foram, respectivamente,
0,349, 0,365, e 0,396 (Ong e Blumemberg 1996: 319). Ao mesmo tempo, a taxa
de renda :Uncome ratio)- ou seja, o percentual de renda indo para o quinto mais
pobre de todas as famlias como uma porcentagem da renda indo para o quinto mais
rico- de em 1969 para 9,7% em 1979 e para 7,8% em 1989.38 A
taxa de pbbreza aumentou, pulando de 2,8% da populao em 1969 para mais de
15% em )989 e para uma estimativa de 23% em 1993 (Ong e Blumemberg 1996:
318-9, 31_2, 328). Os tornaram-se uma caracterstica da regio, medida
que empregos perdtdos no processo de reestruturao econmica, o estado
de bem-estar fot desmantelado e o custo da moradia subiu (Wolch e Dear 1993;
Wolch 1996). Dada a constituio e racial da cidade contempornea, no
surpresa que a disparidade econmica "coincide com as divises raciais e
tnicas, deixando os afro-americanos, latinos e asiticos desproporcionalmente
representados na base da escada econmica" (Ong e Blumemberg 1996; 312). Apesar
de os indicadores de desigualdade de Los Angeles ainda serem menores que os de
So Paulo, as disparidades e desigualdades em ambas as regies metropolitanas au-
mentaram medida que as regies passaram por crises econmicas e por rees-
truturao econmica. S podemos nos perguntar se o padro de Los Angeles co-
incide com o de So Paulo, onde as taxas mais agudas de desigualdade esto exata-
mente naquelas reas em que o desempenho econmico e a reestruturao tiveram
38
As taxas de renda para os Estados Unidos como um todo foram: 13,8% em 1969, 12,5%
em 1979 e 10,3% em 1989.
Cidade de Muros
331
mais sucesso e para onde os mais ricos esto se mudando para viver em enclaves
fortifit;;ados.
(epois dos anos 80, ficou claro que outro tipo de urbanizao estava aconteR
cendo na regio metropolitana de L.A. e que diferia sensivelmente tanto das forR
mas urbanas centralizadas anteriores como da suburbanizao residencial tradicioR
nal. Vrias expresses foram inventadas para descrever o novo fenmeno: "urba-
nizao perifrica," "Outer (versus lnner) Cities" "expoles", "edge cities", "psR
suburbano" etc. Para Edward Soja, que usa as trs primeiras expresses, a descenR
tralizao de Los Angeles ultrapassa a prpria regio e se torna "globalizada"
(1996a: 435). Ele argumenta, assim, que as novas dinmicas. urbanas requerem
perspectivas analticas completamente novas. Elas deveriam, por exemplo, ser ca-
pazes de explicar o papel de L.A. com "o maior centro produtivo e influente do
mundo para a manufatura e marketing de hiper-realidade" (1996a: 435). Esse pa-
pel especializado da regio se traduziria numa abrangente criao de parques te-
mticos e "scamscape".39
Entre as muitas caractersticas da urbanizao perifrica de L.A. que a sepa-
ram do urbanismo industrial tradicional, uma particularmente importante a
sncia Je um meio urbano densamente construdo. Mesmo nos distritos centrais de
L.A., que se desenvolveram basicamente de acordo com projetos modernistas, no
h um tecido urbarto denso cujos slidos pudessem gerr espaos capazes de emolR
durar o pblico e ptOmover uma vida significativa de pedestres na rua. As ruas so
largas e vazias e os carros circulam rapidamente. Caminhar algo desencorajado e
as massas urbanas. no se congregam. A circulao no espao pblico sempre
mediada pelo automvel- geralmente individual e particular, j que o transporte
pblico limitado e certamente no uma alternativa real para a maioria da po-
pulaO. A primazia do automvel constri ruas como espaos de circulao mo-
dernistas voltados para as mquinas, e, portanto, espaos para motoristas, no para
pedestres. As ruas tfpicas na regio de Los Angeles obviamente no so ruas-corre-
dores: elas so geralmente largas, podem ter altos limites de velocidade, seus ali-
nhamentos so truncadas por amplos espaos vazios e jardins, e, quando tm caiR
adas, estas so .vazias. Esse o tipo de rua criado por instrumentos modernistas
em que o pblico o que sobra. Como resultado,
a cidade vivenciada como uma passagem atravS do espao, com res-
tries estabeleddas pela velocidade e pelo movimento, e no pela con-
dio esttica dos slidos, dos prdios que definem a experincia do
pedestre nas cidades tradicionais. A indiferena resultante privatiza ainda
mais a experincia, desvaloriza o domnio pblico e, devido ao tempo
gasto em viagens, contribui para o isolamento. (Weinstein 1996: 35)
J9 As noes de Soja de hiper-realidade e simulacro, assim como as descries de parques
temticos e scamscapes, esto especialmente desenvolvidas em sua anlise de Orange County. Ver
Soja (1992 e 1996b: cap. 8).
332 Teresa Pires do Ri<> Caldeira
Mesmo onde as ruas-corredores provem urna moldura, como no centro a
vida na rua limitada: as atividades das pessoas ficam contidas nos prdios de ;sR
e nas passagens subterrneas e passarelas que conectam os prdios s lo-
Jas, restaurantes e hotis. Em outras palavras, muitas funes da rua foram trans-
feridas para espaos mais controlados e privatizados, e a separao entre o univer-
so da riqueza e dos negcios e o da pobreza e dos homeless imensa.40
Evidentemente, Los Angeles ainda tem reas abertas e no-privatizadas de uso
pblico relativamente intenso e que podem congrgar uma massa considervel de
pessoas. Entretanto, essas reas parecem ser principalmente de dois tipos no-mo-
dernos. Um so os espaos cada vez mais segregados e socialmente homogneos e
em que pessoas de um nico grupo social circulam (sejam os parques latinos se-
jam as reas de lojas de luxo de Beverly Hills, por exemplo). Esses espaos fa-
encontros heterogneos annimos. Outro so espaos especializados, prin-
cxpalmente para lazer e consumo, transformados em um tipo de parque temtico,
como a Promenade em Santa Monica ou o calado da praia de Venice. Estes cons-
tituem a categoria mais significativa de espaos que ainda permitem encontros an-
nimos e heterogneos, e portanto pode-se indagar o que acontece experincia
urbana_ de encontrar o outro quando ela se torna algo extraordinrio - ou seja,
algo fetto somente nos fins de semana e em espaos especiais - e no mais uma
questo de rotina diria.
. ': maior parte da vida pblica de L.A. acontece em espaos segregados, es-
pec!ahza&os e fechados, como shoppings, condomnios fechados, centros de entre-
tenimento e parques temticos de todos os tipos, em cuja criao Los Angeles foi
pioneira.
41
Todos eles so espaos privatizados, administrados por empresas ou as-
sociaes de proprietrios cujos interesses conflitam com as administraes pbli-
cas. Alm disso, como mostra David (1990: cap. 3), essas administraes privadas
podem envolver-se em vrias estratgias do tipo NIMBY (Not In My Back Yard)
para "proteger seu investimento", conseguindo a aprovao de todos os tipos de
legislao segregadonista para garantir a exclusividade de seus endaves. Esses en-
claves, geralmente para os mais ricos, existem em relao aos espaos deixados para
a populao mais pobre- os parques e ruas ocupados pelos homeless, os bairros
pobres e habitados por vrios grupos tnicos no centro, os territrios das gangues
e os de migrantes.
42
Em outras palavras, os ricos, os pobres e os in-
40
A criao de um labirinto de caminhos subterrneos e passarelas ligando edifcios do centro
existe em vrias cidades, como Atlanta, MinneapolisSaint Paul e Toronto. Ver Boddy (1992) para
uma anlise das "cidades-anlogas" formadas por essas passagens e o tipo de "apartheid espa-
cial" que elas criam. Ver Rutheiser (1996) para uma anlise do remodelamento do centro de Atlanta.
Sobre a reproduo da desigualdade no centro de Los Angeles, ver Da vis (1990).
41
Sorkin (1992) forriece uma interessante coleo de estudos sobre diferentes tipos de par-
ques temticos e espaos de elite em vrias cidades. Ver tambm Zukin (1991: captulo 8).
42
Argumentando contra o que chama de "narrativa de perda" do espao pblico, Margaret
Cra';fo_rd (1995)_alega que os moradores de Los Angeles esto continuamente refazendo o espa-
o pubhco. Ela nao acha que os espaos vazios impedem a sociabilidade e apresenta como exem-
Cidade de Muros
333
I (\ .
tegrantes de diferentes grupos tnicos no se encontram em espaos comuns na Los
Angeles contempornea.
Los Angeles exemplifica a nova forma urbana de uma maneira muito mais
explcita que So Paulo, onde o antigo urbanismo orie:ntado para o centro ainda
oferec :\ um cenrio para encontros annimos e heterogneos. Em L.A., as ruas so
mais vazias e os novos tipos de espaos descentralizados produzem zonas de apar-
theid para diferentes grupos sociais O ps-subrbio como um tipo de forma urba-
na no tem nada a ver com fronteiras "abertas e indeterminadas"; no tem nada a
ver com a criao de espaos para a vitalidade do pblico heterogneo. Os espaos
ps-suburbanos tm a ver com delimitaes e separaes claras, fronteiras rgidas
e encontros policiados e previsveis. Los Angeles no s fragmentada, ela cons-
tituda por enclaves. Seu padro ps-suburbano criou uma regio metropolitana que
mais desigual e mais segregada que a maioria das cidades americanas. A separa-
o garantida mais por instrumentos de projeto modernista do que pelos muro.s,
mas, apesar de estes serem mais sutis que os de So Paulo, eles geram o que SoJa
chama de "cidade carcerria" e que Da vis rotula como "fortaleza L.A." (Soja 1996a:
448-50, Davis 1990: cap.4).
Comparada de So Paulo, a fortificao de Los Angeles branda. Onde
bairros como o Morumbi usam muros altos, cercas de ferro e vigilantes armados,
o West:Side de Los Angeles usa principalmente alarmes eletrnicos e pequenos sinais
anunciando "Resposta Armada". Enquanto a elite de So Paulo claramente se apro-
pria de espaos pblicos - fechando ruas pblicas com correntes e outros obst-
culos fsicos e instalando guardas privados armados para controlar a circulao-
a elite de L.A. ainda mostra algum respeito pelas vias pblicas. No entanto, comuni-
dades cercadas por muros que se apropriam de ruas pblicas esto proliferando, e
pode-se perguntar se o padro mais discreto de separao e vigilncia de Los Angeles
no se relaciona em parte ao fato de que os pobres j vivem longe do West Side,
enquahto no Morumbi eles vivem do outro lado da rua. Alm disso, a polcia de
Los Angeles- apesar de considerada uma das mais parciais e violentas dos Esta-
dos Unidos- ainda parece ser efetiva e no-violenta se comparada de So Paulo.
Dois analistas de Los Angeles captaram as transformaes no carter de seu
espao construdo e de sua vida pblica de maneiras opostas e significativas. Charles
Jencks defende o novo urbanismo e a necessidade de segregar espaos. Em contraste,
Mike Davis enxerga na nova configurao "o fim do espao pblico". Discordo
de ambos, ainda que apie muitos aspectos da anlise de Da vis.
Charles Jencks analisa as tendncias recentes da arquitetura de Los Angeles
em relao a um diagnstico da configurao social da cidade. Para ele, o
pal problema de L.A. sua heterogeneidade, que inevitavelmente gera confhtos
pio de uso alternativo ou mesmo subversivo do espao pblico em L. A. os vendedores
tes (que se apropriam de caladas, esquinas e estacionamentos) e os sem-teto. Embora esses
pios sejam obviamente de usos do espao pblico, eles no so exemplos de usos
mas de segregao e excluso. Os espaos usados pelos vendedores ambulantes e sao
espaos restantes, os nicos que os grupos mais marginalizados- nqueles exdmdos das areas
prestigiadas e muradas- ainda podem apropriar.
334 Tcrcsn Pires do Rio Coklcir:l
tnicos crnicos e explica episdios como a rebelio de 1992 (1993: 88). Como ele
cons!dera essa heterogeneidade constitutiva da realidade de LA., e como seu diag-
nstico da situao econmica pessimista, ele prev que a tenso tnica ir au-
mentar, b ambiente se tornar mais defensivo e as pessoas vo lanar mo de meios
de cada vez mais diversificados e mesquinhos. Jencks v a adoo de tecno-
logla.s de segurana como inevitvel e como uma questo de realismo. Alm disso,
ele dtscute essa est sendo transformada em arte por estilos que
metamorfoseiam o matenal agressivo necessrio para a segurana em "sinais am- -
bguos de beleza inventiva e 'no entrem (1993: 89) e que projetam fachadas com
os fundos para a rua a fim de camuflar o contedo das casas. Para ele a resposta
ao conflito tnico : "arquitetura defensiva e realismo para com a rebelio" {1993:
89); esse realismo repousa nos arquitetos olharem para "o lado negro da diviso
do conflito e da decadncia, e representarem algumas verdades indesejveis" (1993;
91). Entre essas "verdades" est a afirmao de que a heterogeneidade e o conflito
aqui para ficar, de que as promessas do me/ting pot no podem mais ser cum-
pndas. Nesse contexto, as fronteiras tm que ser tanto mais claras como mais for-
temente defendidas.
Arquitetonicamente [Los Angeles] ter de aprender as lies de
esttica e eu-formalidade de Gehry: como transformar necessidades de-
sagradveis como as cercas de alambrados em sinais divertidos e amb-
guos de bem-vindo/no entre, beleza/espao defensivo( ... )
A arquitetura defensiva, embora lamentvel como ttica social,
tambm protege os direitos dos indivduos e grupos ameaados. (Jencks
1993: 93)
Jencks identifica a heterogeneidade tnica como a razo para os conflitos so-
ciais de Los Angeles e v a separao como. uma soluo. Seus argumentos fazem
lembrar uma forma de raciocnio que Balibar (1991: 22-3), seguindo P. A. Taguieff,
chama de racismo diferencialista. um tipo de argumento que naturaliza no
0
pertencimento.racial; rilas a cultura e a conduta racista. Esse argumento considera
que, j que as diferenas tnicas e culturais so insuperveis, a tentativa de aboli-
las ag:resso conflitos intertnicos. Como resultado, prossegue o argumento,
para ev1tar o confhto as pessoas precisam "respeitar os 'limiares de tolerncia',
manter as ou? em outras de acordo com o postulado
de sao os herdetros e portadores de uma nica cultura, segregar
coletiVidades (Bahbar 1991: 22-3). O queJencks prope e admira na interveno
de alguns arquitetos e planejadores no meio urbano de L.A. o desenvolvimento
de uma esttica de separao e de um espao construdo que impede encontros no
programados e heterogneos. bvio que ele no est interessado em alimentar
nenhum dos ideais do pblico moderno, mas exatamente seu oposto.
Mas a arquitetura defensiva de Los Angeles tambm tem seus crticos, e o mais
famoso deles Mike Davis. Para Davis {1990, 1991, 1993), a desigualdade social
e a segregao espacial so caractersticas centrais de Los Angeles, e sua expresso
LA." se refere ao tipo de espao que est sendo criado na cidade.
Cidade de Muros
335
Bem-vindos Los Angeles ps-liberal, onde a defesa de estilos de
vida de luxo traduz-se em uma proliferao de hovas represses ao es-
pao e ao movimento, fortalecidas pelos ubquos sinais de 'resposta ar-
mada'. Essa obsesso pelos sistemas de segurana fsicos e, colateral-
mente, pelo policiamento arquitetnico das fronteiras sociais tornou-se
um zeitgeist da reestruturao urbana, uma narrativa dominante no es-
pao construdo emergente dos anos 90. ( ... )Vivemos em 'cidades-for-
1 talezas' brutalmente divididas entre as 'celas fortificadas' da sociedade
rica e os 'lugares do terror' onde a polcia combate os pobres crimi-
nalizados. (Davis 1990; 223-4)
Mike Da vis atribui a Los Angeles cada vez mais segregada e privatizada a um
plano da elite ps-liberal (ou seja, republicanos da era Reagan-Bush), e reitera esse
tema em sua anlise da rebelio de 1992.(Davis 1993). Para ele, a Los Angeles con-
representa uma "nova guerra de classes ao nvel do espao construdo"
e demonstra que a "forma urbana est de fato seguindo uma funo repressiva na
esteira poltica da era Reagan-Bush. Los Angeles, em seu modo prefigurativo, ofe-
rece um catlogo especialmente inquietante das ligaes emergentes entre a arqui-
tetura e o estado policial americano" (Davis 1990: 228).
O texto de Da vis marcado por uma indignao sustentada por uma riqueza
de evidncias. No entanto, ele s vezes comprime processos sociais complexos em
um cenrio simplificado de guerra, que suas prprias descries desmentem. A
da segregao atual de So Paulo com a democratizao poltica reco-
menda ceticismo em afirmar uma correspondncia direta entre intenes polticas
e transformaes urbanas. Mas apesar dessa limitao, Davis elabora uma crtica
notvel da segregao espacial e social, e associa a configurao urbana emergente
aos temas cruciais da desigualdade social e opes polticas. Para ele, no h nada
inevitvel em relao "arquitetura-fortaleza", e ela tem conseqncias profundas
na maneira pela qual o espao pblico e as interaes pblicas so moldados.
Tanto em So Paulo como em Los Angeles, o espao pblico criado pelos
enclaves e instrumentos de estilo "defensivo" alimenta a reproduo de desigual-
dades isolamento e fragmentao.
4
3 Como ordens urbanas baseadas no enclausu-
e no policiamento de fronteiras, essas cidades negam os valores bsicos
do ideal moderno. Percebendo como o meio urbano contemporneo de Los Angeles
conflira com o pblico moderno, Da vis o considera a "destruio do espao pbli-
co" (Davis 1990: cap. 4). Mas essa frase evita muitas questes. Estamos lidando
com a destruio do espao pblico em geral ou com a criao de outro tipo de
espao pblico, que no democrtico, .que n? tolera e os
ideais modernos de abertura, heterogenetdade e Igualdade? Afmal, o ttpo sovietico
43 Discordo do argumento de Sorkin (1992: xii-xiii) de que na "nova cidade recombinante"
a ordem social no possa ser lida na forma urbana. e separao social so
te legveis no novo meio urbano, embora elas sejam certamente expressas num vocabularto nao-
moderno.
336
Tresa Pires do Rio Caldeira
de espao modernista monumental em Moscou ou Varsvia e o tipo modernista
de ainda. so apesar de no-modernos.
44
Da mesma maneira que
a ctdade mdustrtal nao mventou o espao pblico mas apenas sua verso moder-
na, a atual destruio do espao pblico tn<?derno est levando no ao fim do es-
pao pblico, mas criao de um outro tipo. Privatizao, enclausuramenro e ins-
trumentos de distanciamento oferecem meios no s de se retirar e de se minar um
certo espao pblico {moderno), mas tambm de se criar uma outra esfera pblica:
uma esfera que fragmentada, articulada e garantida com base em separao e toda
uma parafernlia tcnica, e na qual a igualdade, a abertura e a acessibilidade no
so valores bsicos. Os novos espaos estruturam a vida pblica em termos de desi-
reais: as diferenas no devem ser descartadas, tomadas como irrelevantes.
dei.xadas sem a:eno ou dis.faradas a fim de sustentar ideologias de
umversal ou mitos de pluralismo cultural pacfico. O novo meio urbano impe
desigualdades e separaes. um espao pblico no-democrtico e no-moderno.
claro que muitos daqueles que analisaram as novas caractersticas do urba-
nismo de Los Angeles, corno Edward Soja (1996a e b) e Michael Dear (1996) sim-
plesmente as chamariam de ps-modernas. No entanto, ao fazer isso, eles
certos aspectos da vida de L.A. como flexibilidade, sincretismo cultural, "heterodoxia
social" e de fronteiras que contradizem diretamente os aspectos que ve-
nho enfattzando. Apesar de esses aspectos tambm serem parte da vida pblica de
LA., eles no so as principais caractersticas que servem para organizar o espao
construdo. A noo de ps-moderno geralmente associada a experincias de fluidez
e ausncia de fronteiras; o espao urbano atual de L.A. marcado por caracte'rsti-
cas opostas.
45
. So Paulo e Los Angeles provavelmente tm tantas diferenas quanto simila-
Apesar disso, a justaposio dos dois casos especialmente sugestiva. Suas
stmtlandades que padres de segregao e reestruturao urbana no po-
dem ser entendxdos apenas como respostas locais a processos locais. Diferentes ci-
dades constituem seu meio urbano e seus espaos pblicos em um amplo dilogo
usando instrumentos que so parte de um repertrio comum. O modelo de
jardim, a arquitetura e o planejamento modernistas, e agora os enclaves fortifica-
44
A idia do "fim do espao pblico" aparece em outros livros recentes, como, por exem-
plo, no subttulo da coleo de ensaios organizada por Sorkin (1992). Dos autores representados
nesse volume, Davis o nico que aborda o tema diretamente. No entanto, vrias outras anlises
aludem implicitamente transformao do espao pblico, considerando o tipo de parque temtico
que estudam como "anlogo", "substituto", "teatral" etc., ou seja, de alguma forma como
os pblicos falsos. Nessas anlises h uma desistoric;izao do espao pblico, na medida em que
sua moderna. aparece com.o espao pblico em geral. Historicizar a noo de espao pbli-
co aJuda tanto a evitar a quanto a entender as transformaes atuais. Para uma discus-
so mais longa de Variations ona Theme Park, ver Caldeira (1994).
45
No entro aqui em discusses sobre arquitetura ps-moderna, da qual Los Angeles ofe-
rece numerosos exemplos. O foco da minha anlise so as formas urbanas e no os estilos arquite-
tnicos, embora o espao pblico de apartheid possa ser parcialmente moldado pelos edifcios do
estilo arquitetnico ps-moderno. .
Cidade de Muros
337
w
dos
1
"ps-subrbios" e parques temticos so parte de um repertrio do qual dife-
rentes cidades ao redor do mundo esto tomando elementos. Em outras pocas,
houve outros elementos nesse repertrio, como a Lei das ndias, a rua-corredor e
os bulevares haussmannianos. O uso de formas do repertrio contemporneo arti-
cula uma forte separao de grupos sociais, em um processo que transcende o es-
pao construdo. O medo do crime e a produo de esteretipos de outros perigo-
sos (os pobres, os migrantes etc.) so outras dimenses do mesmo processo. O in-
tenso medo do crime do paulistano, as altas taxas de violncia da cidade e seus al-
tos muros podem nos falar sobre tendncias semelhantes em Los Angeles, mesmo
que sob formas mclis brandas. Em So Paulo as tenses so mais altas do que em
L.A. : 10rque o gueto no est to enclausurado, as desigualdades so maiores, a
violricia mais ampla e o antigo urbanismo ainda mantm as maSsas nas ruas.
As diferenas entre as duas cidades, no entanto, indicam as histrias especfi-
cas e as escolhas de cada sociedade. Enquanto Los Angeles uma regio metropo-
litana que parece ter sempre favorecido a disperso, a suburbanizao e a privati-
zao, So Paulo desenvolveu-se de acordo coin um rhodelo europeu que valoriza
o centro, onde as principais atividades econmicas e as residncias das elites esta-
vam concentradas. Quando a cidade se expandiu, os pobres foram mandados para
longe, mas a elite permaneceu no centro. Apesar da importncia de o centro ter sido
um princpio organizador da cidade desde suas origens como vila colonial, o
espao urbano de So Paulo composto de vrias camadas de experimentos. Ele
expandiu-se rapidamente e sem muita preocupao com a preservao histrica,
como prova exemplarmente a Avenida Paulista e suas duas encarnaes: uma de
manses para os bares do caf e outra para as sedes modernistas de empresas. O
espao da cidade carrega vrios tipos de inscries: um centro velho com plano e
edifcios de inspirao neoclssica; o projeto de estilo cidade-jardim para bairros
da classe alta; algumas avenidas inspiradas em bulevares haussmannianos; inme-
ros prdios modernistas; a arquitetura vernacular das casas autoconstrudas; a
improvisao das fav:elas; e o desenho de inspirao ps-moderna dos enclaves for-
tificados contemporneos. Alguns desses elementos deixaram uma forte marca no
espao urbana, pois foram capazes de ditar sua reestruturao. O impacto mais
importante dos enclaves fortificados parece ser exatamente este: eles alteram o prin-
cpio de centralidade que sempre organizou o espao da cidade. Depois da abertu-
ra rumo periferia nos anos 40 (inspirada por Haussmann), o investimento atual
nas outer cities e nos enclaves provavelmente a mudana mais radical no espao
construdo, mudana que inaugura um novo padro de segregao. A justaposio
com Los Angeles indica que os instrumentos gerarido esse novo padro em So Paulo
no so exclusivamente locais, mas parte de um repertrio mais amplo. Ela tam-
bm sugere que estamos lidando no com uma mudana de estilo dos projetos, mas
com uma mudana no carter do espao pblico. A nova fotma urbana desafia o
espao pblico moderno e democrtico.
Apesar de projetos polticos nem sempre poderem ser lidos diretamente no meio
urbano, especialmente devido a seu multifacetamento, os instrumentos disponveis
no meio urbano esto relacionados a diferentes projetos polticos. Us-los, no en-
tanto, pode no significar necessariamente atingir o objetivo pretendido. De faro,
338
Teresa Pires do Rio Caldeira
o autorH:rio.Haussmann criou espaos democrticos em Paris (Clark 1984) e os
moderrtistf!S socialistas criaram espaos vazios no-democrticos em Braslia e em
muitos outros lugares do mundo (Holston 1989). De que modo forma urbana e
processos polticos coincidem em cidades com So Paulo e Los Angeles, e de que
modo eles divergem? Que processos democrticos podem estar se contrapondo s
transformaes urbanas e vice-versa? Se as desigualdades sociais parecem organi-
zar o meio urbano em vez de serem postas de'1ado pela tolerncia s diferenas e
por fronteiras indeterminadas, que tipo de modelo podemos adotar para o pbli-
co? A democracia ainda possvel nessa nova cidade de muros? Que tipo de comu-
nidade p9ltica corresponder nova esfera pblica fragmentada em que os inte-
resses sq expressos privadamente- por associaes de proprietrios, por exem-
plo- e rta qual se torna difcil defender o bem comum?
ESPAO PBLICO CONTRADITRIO
Apesar de suas especificidades, So e Los Angeles so hoje mais social-
mente deriguais e mais dispe_rsas do que coStumavam ser, e muitas das mudanas
nos seus espaos urbanos estao causando separao entre grupos sociais, que esto
cada vez mais confinados a endaves homogneos. Privatizao e fronteiras rgidas
(tanto materiais como simblicas) fragmentam continuamente o que costumavam
ser espaos mais abertos, e para manter os grupos separados.
No entanto, a experincia do espao urbano no a nica experincia dos
moradores dessas cidades, e certamente no sua nica experincia seja de dife-
rena social seja de democracia. Uma das caractersticas de Los Angeles repetida-
mente enfatizada por seus analistas seu imtlticulturalismo, a presena de um n-
mero exJfessivo de diferentes grupos tnicos mudando a feio de uma cidade
outrora predominantemente branca (anglo). Essas so as caractersticas destacadas
por aqueles que, como Soja e Dear, vem o urbanismo ps-moderno de uma pers-
pectiva positiva, em vez de enfatizar seus aspectos mais negativos, corno Da vis ten-
de a fazer. Soja (1996a), por exemplo, fala sobre um novo sincretismo cultural (la-
tino, asitico), fuso cultural e a construo de coalizes. H tambm a fala sobre
o hibridismo. e as culturas de fronteira. Alguns mencionam a importncia dos meios
de comunicao de massa e das novas formas de comunicao eletrnica e seu pa-
pel em borrar fronteiras e encurtar distncias, no apenas em L.A., mas em todo
lugar. Em So Paulo, a oposio aos impulsos segregacionistas e antidemocrticos
do espao urbano vem em parte tambm da mdia, mas principalmente de outras
fontes: do processo de democratizao, da proliferao de movimentos sociais e da
expanso dos direitos de cidadania das classes trabalhadoras e de vrias minorias.
Tanto em So Paulo como em Los Angeles, portanto, podemos detectar pro-
cessos sociais opostos: alguns promovendo tole,rncia diferena e flexibilizao
de fronteiras e alguns promovendo segregao, desigualdade e policiamento de fron-
teiras. Na verdade, ternos nessas cidades uma democracia poltica com muros ur-
banos; procedimentos democrticos usados para promover segregao, como nos
movimentos NIMBY; e multiculturalismo e formaes sincrticas com zonas de
Cidade de Muros 339
apartheid promovidas por endaves segregados. Esses processos opostos no esto
desconectados mas sim tensamente ligzdos. Eles expressam as tendncias
dit6rias qe caracterizam as duas sociedades. Ambas esto passando por
maes significativas. Ambas foram modificadas pela abertura e flexibilizao de
fronteiras (migrao e reestruturao econmica em Los Angeles, e
o, crise econmica e reestruturao em So Paulo). Se. olharmos por um
to para outras ciddes ao redor do mundo onde os enclaves esto aumentando, vemos
que algumas esto passando por processos parecidos de transformao e
tizao profundos (johannesburgo e Buenos Aires, por t:xemplo). A desestabilizao
de fronteiras perturbadora, especialmente para a elite. O seu movimento de
truir muros , portanto, compreensvel. O problema que as conseqncias da
mentao, da privatizao e dos muros so severas. Uma vez que os muros so cons
trudc;;, eles-alteram a vida pblica. Asmudanas que estamos vendo no espao
so fundamentalmente no-democrticas. O que est sendo reproduzido no
espao urbano segregao e intolerncia. O espao dessas cidades a principal
arena na qual essas tendncias antidemocrticas so articuladas.
Entre as condies necessrias para a democracia est a de que as pessoas
reconheam aqueles de grupos sociais diferentes como concidados, com direitos
equivalentes apesar de suas diferenas. No entanto, segregadas por muros
e enclaves alimentam o sentimento de que grupos diferentes pertencem a universos
separados e tm reivindicaes irreconciliveis. Cidades de muros no fortalecem
a cidadania, mas codtribuem para sua corroso. Alm disso, esse efeito no depende
diretamente nem no tipo de regime poltico nem das intenes daqueles no poder,
j que o desenho dos enclaves e muros traz em si mesmo uma certa lgica social.
As novas morfologias urbanas do medo do formas novas desigualdade, mantm
os grupos separados e inscrevem uma nova sociabilidade que contradiz os ideais
do pblico moderno e suas liberdades democrticas. Quando o acesso a certas reas
negado a algumas pessoas e quando grupos diferentes no interagem no espao
pblico, as referncias a ideais de abertura, igualdade e liberdade como princpios
organizadores da vida social no so mais possveis, mesmo como fico. As
qncias da nova separao e restrio na Vida pblica so srias: ao contrrio do
que pensa Jencks (1993), a arquitetura e o planejamePto defensivos promovem o
conflito em vez de evit-lo, ao tornarem explcitas as desigualdades sociais e a falta
de referncias comuns. Na verdade, podemos argumentar que a rebelio de Los Ao-
geles foi causada pela segregao social, no pela falta de separao e de defesas.
4
6
Se as experincias de separao expressas no meio urbano se tornarem
nicas em suaS sociedades, elas se distanciaro da democracia. No entanto, dada a
disjuno entre os diferentes tipos de experincias em cidades como Los Angeles e
So Paulo, h tambm a esperana de que o contrrio possa acontecer: que as
perincias de borrar fronteiras e de democratizao acabem se estendendo ao
pao urbano.
46 Soja, por exemplo, interpreta os distrbios de 1992 conio o primeiro movimento de re
sistncia ao ps-modernismo e ao ps-fordismo conservadores (1996a: 459).
340 Teresa Pires do Rio Caldeira