Resenha Do Livro o Fazedor de Velhos

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LACERDA, Rodrigo. O Fazedor de Velhos. So Paulo: Cosacnaify, 2008.

Premiao para livros que envelhecem

O recm divulgado prmio Jabuti 2009 elegeu O fazedor de Velhos de Rodrigo Lacerda como a melhor obra juvenil do ano. O autor recebeu ainda o prmio de melhor traduo de obra literria Francs-Portugus com o livro O conde de Monte Cristo, traduzido em parceria com Andr Telles para a Jorge Zahar Editora. O fazedor de velhos j havia sido laureado como melhor Livro Juvenil da Biblioteca Nacional e includo no catlogo White Ravens 2009. Nascido no Rio de Janeiro em 1969, Rodrigo Lacerda vem de uma famlia de editores. Graduado em Histria pela Universidade de So Paulo e com doutorado em literatura pela mesma instituio, trabalhou como editor de grandes instituies e atualmente vem se destacando como autor no cenrio literrio nacional. Rodrigo Lacerda escreveu os livros O Mistrio do Leo Rampante (novela, 1995, prmio Jabuti e prmio Certas Palavras de Melhor Romance), A Dinmica das Larvas (novela, 1996), Fbulas Para o Sculo XXI (livro infantil, 1998), Trip (contos, 1999), Vista do Rio (romance, 2004, finalista dos prmios Zaffari & Bordon, Portugal Telecom e Jabuti). Esse ano o autor lanou Outra vida pela editora Alfaguara. A primeira surpresa em relao ao livro O Fazedor de Velhos a impresso causada pelo projeto grfico arrojado. Desenvolvido por Luciana Facchini, de certa maneira o aspecto do livro rompe com o esperado para uma obra dedicada aos jovens. Apesar do vibrante laranja do ttulo e da contracapa, no h representaes de personagens ou cenas da histria. As ilustraes assinadas pela artista plstica Adrianne Gallinari so compostas por figuras geomtricas que perguntam e sugerem muito mais do que revelam. O ttulo intrigante tambm se afasta um pouco da idia tradicional de livros juvenis, propondo, talvez, a idia de que se dirige a um jovem mais maduro, um quase adulto, algum como Pedro, o narrador. No encontramos neste livro o narrador adolescente, caracterstico das narrativas do gnero, e nem o momento retratado pelo livro apenas este. Apesar de puxar pela memria alguns fatos da infncia e da primeira fase da adolescncia, o foco de Pedro recai sobre o perodo final do ensino mdio e o comeo da vida universitria. A narrativa comea pela infncia, com as torturantes sesses de literatura impostas pela me, professora universitria. Nesse captulo inicial a personagem apresenta a famlia e, principalmente, trata de explicar o gosto desenvolvido pelos clssicos da literatura como Jos de

Alencar e Ea de Queirs. Repleto de citaes e explicaes sobre esses autores, o captulo serve tambm como introduo personalidade e ao pensamento de Pedro. No primeiro captulo, denominado Tudo comea sem a gente perceber, j podemos observar a linguagem descontrada e coloquial do texto. O narrador usa muitas marcas de oralidade, como o a gente do ttulo do captulo, propondo um dilogo gil e bem humorado com o leitor: Eu no lembro direito quando meu pai e minha me comearam a me enfiar livros garganta abaixo. Mas foi cedo. (LACERDA, p. 7) O humor bem dosado do texto ajuda a manter o dilogo com o leitor e, principalmente, tira dos textos clssicos a seriedade habitual. Nos trechos seguintes, o narrador explica suas passagens favoritas de I-Juca Pirama:
Ela disse que os ndios roubavam a fora e a coragem dos inimigos de uma maneira muito concreta: comendo-os. No crus, assados. Mas mesmo assim... (LACERDA, p, 8) .......................................................... Mas tudo ainda piora. Os timbiras se recusam a aceitar o I-Juca Pirama de volta, e o pai, ao entender por qu, isto , ao saber que o filho havia chorado diante do inimigo, desiste de salvar a sua honra. Ter apelado para a generosidade dos timbiras j era ruim, ter usado a sua doena como desculpa era pssimo. Mas ter chorado, a no: merecia o pior castigo de todos, a maldio paterna. (LACERDA, p.9)

Nos captulos seguintes, Pedro narra momentos importantes de sua vida adolescente: uma aventura de frias aos dezesseis anos, o primeiro amor (no caso de Pedro, a primeira decepo) e a festa de formatura. Em todos estes momentos aparece a figura do fazedor de velhos, um antigo professor do colgio que antes da entrega dos diplomas faz um discurso inesperado e chocante sobre a passagem do tempo:
- Vocs vo descobrir, na carne, que sentir, nessa vida, sentir o tempo indo embora. (LACERDA, p. 37) ................................. - Se eu pudesse dar um conselho a vocs, eu diria: no queiram nunca ser eternamente jovens; gostar de viver gostar de sentir, e gostar de sentir , necessariamente, gostar de envelhecer. (LACERDA, p. 37)

Interessante observar como o discurso do velho professor destoa da supervalorizao atual da juventude. Em uma sociedade, como a atual, em que se despreza a velhice e se busca ser/parecer jovem para sempre, o livro prope uma reflexo sobre a passagem do tempo como algo bom, que agrega valor e experincia: Falem com o tempo. Conversem com ele. Fiquem ntimos dele. O tempo a nossa nica companhia garantida at o ltimo instante. (LACERDA, p. 38) O tempo da narrativa cronolgico, e a segunda parte do livro comea com o jovem Pedro aos vinte anos, cursando a faculdade de Histria e descontente com a escolha. Alm das aulas na faculdade, a personagem passa seu tempo lendo; a paixo pelos livros, iniciada fora na infncia, prosperou e faz Pedro gastar horas nos sebos procura de livros. Em um destes momentos, o jovem

universitrio encontra o antigo professor de Histria do colgio e acaba confessando-lhe como sua disciplina preferida na escola havia se tornado uma frustrao na faculdade. O professor Azevedo tenta acalmar o garoto contando-lhe que tambm teve dvidas quando tinha a mesma idade e revela ter sido ajudado por algum muito especial, seu professor Nabuco, o velho misterioso que havia feito o discurso da formatura de Pedro. Assustado e curioso com a coincidncia, o jovem pergunta sobre o tal professor e descobre que ele havia sido um historiador brilhante at abandonar a carreira e passar a uma vida reclusa sem que ningum soubesse a razo. O jovem aceita a sugesto e decide ligar para Nabuco pedindo que o receba para uma conversa, para, quem sabe, ajud-lo a decidir-se sobre a carreira que deve seguir. A partir da, Nabuco convida Pedro para trabalhar como seu assistente em estranhas tarefas literrias sobre a natureza humana. Uma das tarefas de Pedro ler grandes obras literrias e catalogar as personagens de acordo com sua personalidade ou psicologia; nesse processo o jovem comea a identificar-se com as personagens e se surpreende ao solidarizar-se no s com os bonzinhos mas tambm com os viles:
Quando terminei de fazer o seu perfil, fui fisgado por uma sensao desagradvel. Estava ao mesmo tempo horrorizado pelas crueldades do Edmund, e extremamente atrado por sua filosofia de vida. Condenava cada um dos seus atos, mas me identificava com a sua ideologia, com todos os seus motivos essenciais. Embora fosse praticamente um monstro humano, alguma coisa nele era um reflexo de mim. (LACERDA, p. 63)

A identificao com as personagens literrias amplia as noes dicotmicas de Bem e Mal, sensibilizando o olhar de Pedro para as diferenas, para as motivaes e para a compreenso da natureza humana, mas de maneira sutil, despertando, aos poucos, o amadurecimento. A terceira parte do livro prope uma nova experincia amorosa na vida de Pedro. A afilhada do excntrico Nabuco, Mayumi, estuda neurologia na Frana e est no Brasil para uma curta passagem de duas semanas. Tempo suficiente para que Pedro se apaixone pela jovem oriental, delicada e nada romntica. Mayumi representa o pensamento cientfico e a pragmtica da vida real e no gosta de Jos de Alencar. Nas duas semanas que passam juntos, Pedro e Mayumi vivem plenamente o amor que sentem, mas sofrem a proximidade da despedida. No convvio com a jovem, nas diferenas entre eles, Pedro reconhece a si mesmo. na alteridade de sua relao com Mayumi que Pedro consegue elaborar uma nova viso de si:
Quando via uma borboleta azul, especialmente linda, como a que encontrei sobre o canteiro perto do lago, ou um inseto desconhecido, especialmente estranho, meus olhos se maravilhavam como se estivessem diante de um milagre. A Mayumi, no. Somando seu esprito cientfico a sua cultura milenar e minimalista, estava atenta a detalhes. Reagia de forma prtica ao que tinha diante dos olhos. Quando via um inseto curioso, formulava a composio qumica da queratina que recobria seu esqueleto externo. (LACERDA, p. 77)

O humanismo de Pedro e do velho Nabuco e o cientificismo de Mayumi se completam na obra; no decorrer da narrativa, a personagem principal descobre que todos buscam a mesma coisa, compreender a tal natureza humana, mas cada um sua maneira. A idia reducionista de que humanismo e cientificismo se opem eternamente desconstruda pelo autor que, novamente, prope um olhar mais sensvel, mais amplo para as grandes questes. Importante observar que temtica do amor incorporado o aspecto bastante relevante na contemporaneidade que vida profissional. A transio para a vida adulta requer uma reflexo profunda sobre o amor e as relaes familiares, mas tambm sobre o futuro profissional e a realizao financeira. Temas aos quais Rodrigo Lacerda no se furta, pelo contrrio, aborda com bastante sensibilidade, sem subestimar o jovem leitor. A morte tambm um tema difcil de ser aprofundado nos livros juvenis, mas o autor consegue trabalhar com essa questo de forma natural e sem apelos melodramticos. Mesmo uma questo complexa como o suicdio tratada sem preconceito ou julgamento, propondo a reflexo, sem prescrever respostas corretas. Interessante observar o tratamento dado ao final feliz que acontece com a realizao amorosa e o casamento dos jovens, mas tambm com a realizao profissional, o que representa uma novidade no gnero. O narrador no perde de vista a busca por sua descoberta profissional e apia as decises de Mayumi, que coloca a formao acadmica frente do casamento. Outra inovao neste aspecto a absoro da tristeza como parte integrante da vida. Os jovens sofrem com a separao, com a distncia, com as dvidas profissionais e, sobretudo, com a tristeza da morte, mas compreendem que devem sentir a tristeza e super-la, compreendem que a felicidade tambm feita de frustraes, esperas e perdas. Nesse sentido, a obra de Rodrigo Lacerda pode ser considerada um livro de formao. Acompanha o jovem na sua transio entre a adolescncia e a vida adulta, sem prescrever respostas para as dvidas, mas propondo novas questes. Nessa busca pelo auto-conhecimento, o velho professor Nabuco assume o posto do mestre (ou da Fada-Madrinha) que prope os trabalhos iniciticos (as trs tarefas que o jovem deve cumprir para descobrir quem realmente ) e o acompanha no ritual de passagem. O livro tambm pode ser considerado como uma obra de formao no que tange ao repertrio cultural proposto e discutido pelo narrador. A paixo pelos livros no apenas mencionada no discurso de Pedro. Ela corporificada no texto com vrias citaes comentadas pelo narrador, que se utiliza de trechos de obras romnticas de Jos de Alencar para conquistar sua amada. aprendendo sobre o poeta americano Raymond Carver, o preferido de Mayumi, que o narrador amplia seu prprio repertrio literrio e prope novas buscas ao leitor.

Uma das grandes marcas do texto o humor do narrador, que no se perde em excessos ou coloquialismo banal e que faz parceria com um lirismo que no se confunde com sentimentalismo, nem mesmo para falar do primeiro amor. Com um texto gil e bem escrito, Rodrigo Lacerda consegue mais do que uma bela histria, atingindo um plano meta-narrativo que explicita as dificuldades da literatura. Enquanto leitor, Pedro enfrenta as dificuldades impostas pela leitura: a formao do gosto esttico, o enfrentamento dos clssicos, as dificuldades com a lngua. Enquanto escritor, Pedro tambm no encontra um caminho fcil e divide com o leitor o trabalho artesanal com a palavra, as horas gastas na escritura de uma nica cena, as inmeras mudanas de uma mesma vrgula. Como meta-narrativa, O fazedor de velhos no s uma metfora que se aplica ao velho Nabuco, mas ao escritor Pedro e prpria literatura. Pedro descobre-se um fazedor de velhos quando compreende que escrever , de alguma forma, fazer as pessoas sentirem. E isso que a literatura faz, nos faz sentir, nos faz pensar, nos coloca em contato com o tempo, nos faz cada vez mais velhos. Catalogar o livro de Rodrigo Lacerda em funo de uma faixa etria especifica tarefa bastante difcil; a obra encaixa-se no gnero juvenil, mas rompe com categorias muito rgidas, abarcando varias temticas e propondo questionamentos que podem sensibilizar os adolescentes mais jovens, os mais maduros e tambm os jovens no to jovens.

Ana Paula Rodrigues da Silva Mestranda Programa de Ps-Graduao em Literatura e Crtica Literria PUC - SP

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