Dissertação Marcelo Azevedo de Paula

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS ESCOLA SUPERIOR DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO AMBIENTAL

MARCELO AZEVEDO DE PAULA

ASPECTOS JURDICOS DO TERMO DE COMPROMISSO QUE ASSEGURA A PERMANNCIA DAS POPULAES TRADICIONAIS NOS PARQUES NACIONAIS: ESTUDO DE CASO DO PARQUE NACIONAL DO JA

MANAUS 2011

MARCELO AZEVEDO DE PAULA

ASPECTOS JURDICOS DO TERMO DE COMPROMISSO QUE ASSEGURA A PERMANNCIA DAS POPULAES TRADICIONAIS NOS PARQUES NACIONAIS: ESTUDO DE CASO DO PARQUE NACIONAL DO JA

Dissertao apresentada ao Programa de Psgraduao em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, como requisito para a obteno do grau de Mestre em Direito Ambiental.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Srgio Rodrigo Martnez

MANAUS 2011

TERMO DE APROVAO

MARCELO AZEVEDO DE PAULA

ASPECTOS JURDICOS DO TERMO DE COMPROMISSO QUE ASSEGURA A PERMANNCIA DAS POPULAES TRADICIONAIS NOS PARQUES NACIONAIS: ESTUDO DE CASO DO PARQUE NACIONAL DO JA

Dissertao aprovada pelo Programa de PsGraduao em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, pela Comisso Julgadora abaixo identificada.

Manaus, 16 de dezembro de 2011.

_____________________________________ Presidente: Prof. Dr. Srgio Rodrigo Martnez Universidade do Estado do Amazonas

___________________________________________ Membro: Profa. Dra. Maria Anete Leite Rubim Universidade Federal do Amazonas

__________________________________________ Membro: Prof. Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Universidade do Estado do Amazonas

Aos meus avs paternos Elias Alves de Paula e Maria Martins de Paula e avs maternos Newton Cabral de Azevedo e Joaquina Bezerra de Azevedo, originrios do hinterland amaznico, nascidos na beira dos rios. (in memoriam) A meus pais, Mario Jorge Martins de Paula e Maria do Carmo Azevedo de Paula, nascidos no beirado dos rios, do Paran do Cambixe e do Madeira, professores por formao acadmica e vocao, a quem tributo minha vida e formao. minha esposa Mrcia Christina Gurgel do Amaral de Paula e minhas filhas Maria Eduarda Gurgel do Amaral de Paula e Maria Fernanda Gurgel do Amaral de Paula, citadinas como eu, mas em constante busca pelas razes amaznicas.

AGRADECIMENTOS Deus pela vida. Aos professores e professoras da minha vida escolar e acadmica, sempre presentes em minhas lembranas. Universidade do Estado do Amazonas, pela rica oportunidade proporcionada pelo Programa de Ps-Graduao em Direito Ambiental. Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Direito Ambiental, na pessoal do Coordenador do PPGDA, Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo, os sinceros agradecimentos pelos ensinamentos e debates. Aos servidores e colaboradores do Programa de Ps-Graduao em Direito Ambiental, em especial Clarissa Caminha Beserra, Lcia Helena Santana Ferreira e Raimunda Albuquerque de Oliveira, muito obrigado. Fundao Vitria Amaznica, representados por Carlos Durigan e Yara Camargo, pela disponibilidade de vasto material bibliogrfico. Justia Militar da Unio sou grato pela licena que me possibilitou finalizar este Curso. Ao Professor Doutor Srgio Rodrigo Martinez, meu professor e orientador, obrigado pela persistncia, pela insistncia, pela pacincia e por ter me proporcionado um renascimento epistemolgico. Aos carssimos colegas Programa de Ps-Graduao em Direito Ambiental que comigo participaram das aulas desse Curso, obrigado pela dialtica e pelos conhecimentos divididos. Aos colegas Denison Melo de Aguiar e Moyss Alencar de Carvalho, obrigado pela disponibilidade de relevante material e pela colaborao.

O homem no realiza a sua natureza numa humanidade abstracta, mas nas culturas tradicionais. (LVI-STRAUSS, 1952, p.24)

A pluralidade a condio da ao humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto , humanos, sem que ningum seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. (ARENDT, 2002, p. 16)

O espao social se retraduz no espao fsico. (BOURDIEU, 1997, p. 160)

A Amaznia no um vazio demogrfico ou cultural (...) O mundo amaznico inclui muitos ecossistemas inter-relacionados, cada um com sua prpria histria natural (MORN, 1990a, p. 18)

Aos homens e mulheres que se encontram no Parque Nacional do Ja: Ex facto, oritur jus (O direito nasce do fato) (XAVIER, 2000, p. 228)

RESUMO A presena humana, em unidades de conservao de proteo integral, costuma ser vista como uma ameaa ao meio ambiente. Os Parques Nacionais foram os precursores das unidades de conservao tendo inspirado outros modelos no mundo. O homem habitava tais espaos, quando da implementao desse tipo de unidade e, ainda assim, as populaes foram afastadas. Tais situaes ainda persistem mais de um sculo depois da criao do primeiro parque nacional e as populaes que no foram expulsas desses espaos sofrem forte presso, inclusive institucional, para deixarem as reas, o que tambm ocorre no Brasil, apesar de constarem no ordenamento jurdico normas protetivas cultura dessas coletividades. No mundo, diversos outros espaos territoriais tiveram a mesma configurao com idntico tratamento s populaes residentes, causando rompimento de laos sociais, econmicos, culturais, e, para algumas culturas, o espao tinha simbolismo mstico-religioso. A presente pesquisa prope uma reflexo acerca de um instrumento jurdico que assegura a permanncia de populaes em unidades de conservao integral, utilizando como exemplo uma rea na Amaznia: o Parque Nacional do Ja, no Amazonas. Palavras-chave: Meio ambiente. Parques nacionais. Populaes tradicionais.

ABSTRACT The human presence in integral protection conservation unities has seen as a dangerous. The National Parks was the forerunner of the model of conservation units that inspired other national parks in the world. The man lived such spaces, when the implementing this type of conservation unit and, even so the populations were turned away. Such situations still exist, more than a century after the creation of the first national park and those who were not suffer hard pressure, including institutional to leave these areas, which also occurs in Brazil, despite there are registered legal norms to protect the culture of these communities. Worldwide, many other territorial areas had the same configuration with the same treatment to local residents, causing rupture cultural, economic and social ties, and in some cultures the space has mystic and religious symbolism. This research proposes an reflection about an legal instrument that allowed the presence of populations in integral protection conservation unity, using as an example area in the Amazon: the Jau National Park, Amazonas. Keywords: Environment. National Parks. Traditional people.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACP ADCT ADI ARPA CDB CRFB ETEP EMBRAPA EUA FUNASA FVA IBAMA

Ao Civil Pblica Ato das Disposies Constitucionais Transitrias Ao Direta de Inconstitucionalidade reas Protegidas da Amaznia Conveno sobre a Diversidade Biolgica Constituio da Repblica Federativa do Brasil Espaos territoriais especialmente protegidos Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria Estados Unidos da Amrica Fundao Nacional de Sade Fundao Vitria Amaznica Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

IBDF ICMBio INPA MMA MPF NUC/IBAMA ONG ONU PARNA PNAP PNUMA POLAMAZNIA PPG 7 PUC RDS REBIO RESEX

Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia Ministrio do Meio Ambiente Ministrio Pblico Federal Ncleo de Unidades de Conservao do IBAMA Organizao No Governamental Organizao das Naes Unidas Parque Nacional Plano Estratgico Nacional de reas Protegidas Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente Programa e Plos Agropecurios e Minerais da Amaznia Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais Brasileiras Pontifcia Universidade Catlica Reserva do Desenvolvimento Sustentvel Reserva Biolgica Reserva Extrativista

RMS SUDHEVEA SEMA SISNAMA SNUC STF SUDEPE TAC TEK TEKMS UC UFMG UFPE UICN UNESCO

Recurso Ordinrio em Mandado de Segurana Superintendncia do Desenvolvimento da Borracha Secretaria do Meio Ambiente Sistema Nacional de Meio Ambiente Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza Supremo Tribunal Federal Superintendncia do Desenvolvimento da Pesca Termo de Ajustamento de Conduta Traditional Ecological Knowledge Traditional Ecological Knowledge and Management Systems Unidade de Conservao Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal de Pernambuco Unio Internacional para a Conservao da Natureza Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (trad.)

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LISTA DE ILUSTRAES

Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6

Mapa com a localizao do PARNA-Ja.........................................................69 Mapa com o Mosaico do Baixo Rio Negro......................................................70 Mapa com a localizao de comunidades e localidades do PARNA-Ja.........82 Foto da comunidade Floresta............................................................................85 Foto da comunidade Tapira.............................................................................85 Fotografia de assembleia do termo de compromisso do PARNA-Ja...........107

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Tabela 2 Tabela 3 -

Censos do PARNA-Ja....................................................................................83 Levantamento de moradores no plano de manejo............................................83 Itens alimentares dos moradores do PARNA-Ja............................................84

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ANEXOS

Anexo A - Ata da Procuradoria da Repblica/AM, de 16 de dezembro de 2003.................135 Anexo B - Termo de Compromisso firmado na Procuradoria da Repblica/AM, de 19 de dezembro de 2003...................................................................................................137 Anexo C - Termo de Compromisso da REBIO-Piratuba......................................................140 Anexo D - Atas de reunies preparatrias do Termo de Compromisso do PARNA-Ja......149 Anexo E - Minuta do Termo de Compromisso do PARNA-Ja...........................................162 Anexo F - Memorando que encaminhou a minuta do Termo de Compromisso do PARNAJa.......................................................................................................................166

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SUMRIO INTRODUO......................................................................................................................14 1 UNIDADES DE CONSERVAO E PRESENA HUMANA....................................18 1.1 ASPECTOS LEGAIS PRELIMINARES SOBRE MEIO AMBIENTE............................18 1.2 UNIDADES DE CONSERVAO NO DIREITO BRASILEIRO..................................22 1.3 POPULAES TRADICIONAIS: CONCEITOS ...........................................................25 1.4 A RELAO JURDICA ENTRE UNIDADES DE CONSERVAO E POPULAES TRADICIONAIS...........................................................................................33 1.5 A PROTEO DAS POPULAES TRADICIONAIS NO DIREITO BRASILEIRO.39 1.6 A DIGINIDADE DAS POPULAES TRADICIONAIS E O RESPEITO ALTERIDADE E AO MULTICULTURALISMO.................................................................44 2 O PARQUE NACIONAL DO JA ..................................................................................53 2.1 ANTECEDENTES DOS PARQUES NACIONAIS NO MUNDO...................................53 2.2 ANTECEDENTES DOS PARQUES NACIONAIS NO BRASIL ...................................59 2.3 ANTECEDENTES DO PARQUE NACIONAL DO JA ...............................................64 2.4 CARACTERIZAO E FUNDAMENTO LEGAL DO PARQUE NACIONAL DO JA...........................................................................................................................................67 2.5 A GESTO DO PARQUE NACIONAL DO JA...........................................................74 2.6 A POPULAO TRADICIONAL DO PARQUE NACIONAL DO JA.......................78 3 TERMO DE COMPROMISSO QUE ASSEGURA A PERMANNCIA DAS POPULAES TRADICIONAIS EM PARQUES NACIONAIS....................................89 3.1. ANTECEDENTES FTICOS DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA..89 3.2 FUNDAMENTOS LEGAIS DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA......94 3.3 O EXEMPLO PRECURSOR DA RESERVA BIOLGICA DO LAGO PIRATUBA....99 3.4 A CONSTRUO DO TERMO DE COMPROMISSO E A PARTICIPAO DA COMUNIDADE.....................................................................................................................103 3.5 A MINUTA DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA..............................110 4 CONSIDERAES FINAIS ..........................................................................................116 REFERNCIAS...................................................................................................................121 ANEXOS...............................................................................................................................134

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INTRODUO Os agrupamentos humanos mais sujeitos a serem remanejados no processo de criao de uma unidade de proteo integral so as chamadas populaes tradicionais e, no caso do Parque Nacional do Ja (PARNA-Ja), rea objeto desta pesquisa, essa afirmao tambm verdadeira. A populao que habita essa unidade de conservao (UC) est sofrendo forte presso institucional para abandonar suas moradias. Por isso, a escolha desta pesquisa tangencia dois aspectos: social e jurdico. O aspecto social deve-se ao fato de haver populaes residentes em unidades de conservao antes da instituio legal dos espaos territoriais especialmente protegidos. Quando tais reas so criadas, novos territrios surgem sobrepostos aos j existentes, acarretando uma interveno poltica e jurdica na autodeterminao das comunidades, lugares que possuem simbolismo afetivo reconhecido pela comunidade local. No mbito jurdico, esta dissertao abordar o termo de compromisso, dispositivo inovador no mbito da legislao ambiental, que resulta dos esforos conservacionistas com o escopo de autorizar a permanncia de populaes tradicionais que residem em unidade de conservao de proteo integral no pas, representando um corte com o modelo at ento vigente para a criao de reas protegidas, caracterizado pela excluso dos grupos sociais locais nos debates, tratando-os at ento como invisveis. A situao de excluso das populaes residentes em espaos protegidos no restrita ao mbito do Parque Nacional do Ja; situao similar ocorre em outras unidades de conservao no Brasil, assim como em espaos territoriais congneres em outras partes do mundo. No Brasil, exemplos de implantao de unidade de conservao com a retirada de populaes tradicionais foram o Parque Nacional de Anavilhanas, no Amazonas, a Reserva Biolgica de Trombetas, a Floresta Nacional de Sarac-Taquera e a Floresta Nacional de Carajs, todas no Par. Outros casos em que houve registro de retirada de populaes foram o Parque Nacional do Iguau, no Paran, o Parque Nacional da Serra da Bocaina, no Rio de Janeiro/So Paulo, e as Estaes Ecolgicas de Aiuaba, no Cear, Marac-Jipioca, no Ama, Serra das Araras, no Mato Grosso, e de Cuni, em Rondnia. Outros casos so o Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais, e o Parque Nacional da Serra do Divisor, no Estado do Acre.

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O primeiro parque nacional instalado no mundo, o de Yellowstone, em 1872, no foi criado em uma terra vazia, mas em territrio de tribos indgenas e levou expulso de populaes que naqueles locais se encontravam antes da instituio desses espaos protegidos. Tal tratamento, alm de acarretar a perda da territorialidade de populaes cuja ligao com o lugar tem especial simbolismo, constri outro tipo de refugiado: os refugiados ambientais, grupos humanos que fogem do lugar onde vivem em razo da ocorrncia de desastres ambientais e poluio, ou no caso de populaes deslocadas dos parques nacionais (e de outras unidades de proteo integral). O texto constitucional traz, expressamente, o princpio da igualdade como componente do rol de direitos fundamentais, sendo ainda a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil, postulados que esto presentes no caso abordado associados proteo do meio ambiente, consubstanciada pela criao de espaos territoriais especialmente protegidos. Assim, a questo abordada neste trabalho abriga, portanto, relaes entre direitos que possuem proteo constitucional, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de um lado, e os modos de viver, criar, como patrimnio cultural brasileiro, e a dignidade da pessoa humana, do outro. Diante da proteo da questo cultural no prisma constitucional, cogita-se da existncia de uma Constituio cultural, tanto quanto uma Constituio poltica, econmica, social ou ambiental. Fundamentado na insero da dignidade humana e do meio ambiente como objetivos fundamentais do Estado, parte da doutrina chega a propor o desenvolvimento de um Estado Ambiental de Direito, e, at mesmo, de um Estado de Direito Socioambiental, com base em uma participao popular ativa. No presente trabalho, a situao ftica tratada nesta dissertao est ocorrendo com as populaes tradicionais que se encontram no PARNA-Ja. Assim, a metodologia desta dissertao foi baseada neste estudo de caso. O tipo de pesquisa desenvolvida a pesquisa qualitativa, enfatizando as qualidades do tema com a compreenso de informaes de forma global acerca do seu objeto, interrelacionando-o com fatores diversos.

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Decorrente da pesquisa qualitativa, o foco desta pesquisa foi o estudo do caso do PARNA-Ja, cujo escopo limitar os assuntos a serem tratados, com uma abordagem jurdica, em uma unidade bem definida, qual seja o termo de compromisso que assegura a permanncia de um grupo populacional (o ser) no Parque Nacional do Ja (o lugar). O nico termo de compromisso existente no Brasil, em uma unidade de conservao de proteo integral, o Termo de Compromisso n 001/2006, celebrado entre o IBAMA e a Comunidade do Sucuriju, referente utilizao dos lagos do cinturo lacustre oriental do Estado do Amap, localizados no interior da Reserva Biolgica do Lago Piratuba. Assim, alm do estudo de caso factual, a presente dissertao tambm pode ser considerada como estudo de caso comparado, pois possibilita o estabelecimento de relaes comparativas entre dois casos especficos, no caso o termo de compromisso da Reserva Biolgica do Lago Piratuba (j implantado) ser utilizado como referncia para o termo de compromisso do Parque Nacional do Ja (em tramitao). No plano terico, fez-se um levantamento bibliogrfico com diversas fontes: em rgos governamentais (ICMBIO e IBAMA) e na organizao no governamental Fundao Vitria Amaznia (FVA), cogestora do Parque Nacional do Ja, utilizando-se de documentao direta e levantamento de dados e informaes. Por meio de levantamento bibliogrfico da doutrina jurdica e de outras cincias relacionadas a esse tipo de pesquisa e ao tema, tais como a antropologia, a geografia, a ecologia e a histria, foi possvel analisar as relaes homem-natureza em um contexto histrico em um dado territrio. Considerando ainda a impossibilidade temporal e humana de abranger integralmente rea objeto deste projeto, uma vez que as discusses sobre a confeco do termo de compromisso j findaram, o grande nmero de comunidades, bem como a dimenso do PARNA-Ja, optou-se por recortar essa realidade, buscando dados sobre o termo de compromisso em andamento. Nesta dissertao, prope-se o estudo da problemtica em torno do instrumento jurdico garantidor da permanncia das populaes tradicionais na unidade de conservao de proteo integral do Parque Nacional do Ja e contribuir para a discusso sobre esse modelo excludente de espao protegido os parques nacionais. A dissertao est dividida em trs captulos, sendo que, em relao ao primeiro, sero abordadas generalidades sobre as unidades de conservao, destacando-se os aspectos

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histricos, a definio, a regulamentao legal, a classificao, bem como conceitos de populaes tradicionais, a proteo das populaes tradicionais nos tratados de direitos humanos e a proteo constitucional no Brasil relacionando-as com unidades de conservao. No segundo captulo, abordar-se- a rea objeto desta pesquisa, o Parque Nacional do Ja, descrevendo sua caracterizao, mencionando o fundamento legal de existncia e apresentando aspectos socioeconmicos das pessoas que l se encontram. O terceiro captulo abordar o instrumento jurdico que recebeu a designao legal de termo de compromisso que tem como escopo assegurar a permanncia das populaes tradicionais em parques nacionais. Sero apresentados o fundamento legal, o contedo, os participantes e as clusulas do termo de compromisso do Parque Nacional do Ja, com nfase para a construo do termo de compromisso, a participao da populao, a tramitao do termo de compromisso e a situao atual do termo de compromisso. O estudo destina-se a apresentar subsdios jurdicos, histricos e sociais que permitam a compreenso deste novel instrumento jurdico o qual prev a participao popular na sua formatao, com reflexes acerca da presena humana em reas protegidas, fato que, como adiante se ver, ocorre na Amaznia, no Brasil e no mundo. Vale o registro de que o fato objeto desta pesquisa o termo de compromisso ainda est ocorrendo no tempo e no espao e, alm disso, o primeiro documento jurdico a ser efetivado no Brasil em Parques Nacionais, razo pela qual ser tomado como referncia, para o fito de comparao, o nico termo de compromisso existente e j implantado em outra unidade de proteo integral: o termo de compromisso da Reserva Biolgica do Lago Piratuba.

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1 UNIDADES DE CONSERVAO E PRESENA HUMANA 1.1 ASPECTOS LEGAIS PRELIMINARES SOBRE MEIO AMBIENTE

O homem iniciou sua existncia como nmade, coletor, caador e pescador, explorando a riqueza do habitat e, aps o esgotamento dos recursos, mudou-se para outras regies. Com o passar do tempo, aprendeu as tcnicas de cultivo, passando a se fixar em determinada regio e a cultivar a terra, mantendo uma constncia na produo de alimentos. Atualmente, o homem, para satisfazer seus desejos ilimitados, utiliza-se dos bens da natureza que, por sua vez, so limitados e esgotveis. A consequncia disso a terrvel deteriorao das condies ambientais. No sculo XX, no suficiente o direito vida; h que se ter vida com qualidade, erigido categoria de princpio nas Constituies escritas. (MACHADO, 2009, p. 60) O momento que inaugurou a preocupao com o meio ambiente foi a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em 1972, promovida pela Organizao das Naes Unidas (ONU), em Estocolmo/Sucia, e que contou com 114 pases. Nesse evento internacional, confeccionou-se uma carta contendo os princpios e os objetivos da proteo ambiental. O Brasil vinha na contramo desse pensamento, visto que no perodo militar liderou um grupo de pases na defesa do crescimento a qualquer custo, ou seja, as naes em desenvolvimento ou subdesenvolvidas no deveriam arcar com os custos decorrentes da proteo ao meio ambiente, sob o pretexto de que eram alvos de problemas socioeconmicos gravssimos. Em suma, propagou-se o abuso dos recursos naturais da Terra. Combatendo essa ideia, Milar acentua que (2004, p. 50):
[...] a natureza no serve ao homem. A utilizao dos recursos naturais, inteligentemente realizada, deve subordinar-se aos princpios maiores de uma vida digna, em que o interesse econmico cego no prevalea sobre o interesse comum da sobrevivncia da humanidade e do prprio Planeta.

Aps quase uma dcada da Conferncia de Estocolmo, foi promulgada a Lei n 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispe sobre a Poltica Nacional do Meio Ambiente, sendo o primeiro diploma legal no Brasil a disciplinar o meio ambiente enquanto direito autnomo.

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Etimologicamente, a palavra ambiente tida por particpio presente derivado do verbo ambire (latim), ou seja, ir volta; arrodear. Hoje, ainda h certa fidelidade semntica origem do vocbulo, medida que se pode entender ambiente como o mbito em que vive o ser humano. Mateo (apud SILVA, 2002, p. 19) e outros juristas reconheciam a expresso meio ambiente como redundante. J a doutrina moderna vem desconsiderando a existncia do pleonasmo (o termo "meio" j estaria contido naquilo que se considera ambiente), sob o argumento de que meio ambiente tem conotao mais ampla, o que se percebe claramente na conceituao dada por SILVA (2002, p. 20):
O meio ambiente , assim, a interao do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento da vida em todas as suas formas. A integrao busca assumir uma concepo unitria do ambiente, compreensiva dos recursos naturais e culturais.

Nada obstante o esforo doutrinrio em conceituar meio ambiente, a Lei n 6.938/81, no art. 3, I, dispe que meio ambiente o conjunto de condies, leis, influncias e interaes de
ordem fsica, qumica e biolgica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

As duas ideias (doutrinria e legal) corroboram o entendimento de que a expresso meio ambiente no redundante, posto que retrata, alm do ambiente/espao, o conjunto de relaes fsicas, qumicas e biolgicas entre os seres biticos (vivos) e abiticos (no vivos) existentes no ambiente e que so imprescindveis manuteno da vida. O conceito doutrinrio, ora citado, leva em considerao trs aspectos do meio ambiente, quais sejam:
Artificial - compreende o espao urbano construdo (aglomerado de edificaes) e os lugares pblicos (ruas, praas, reas verdes), i.e., espao urbano fechado e aberto, respectivamente; Cultural - consistente no patrimnio histrico, cultural, paisagstico, artstico, arqueolgico, turstico, fruto da obra humana e caracterizado pelo valor agregado; Natural ou Fsico - abarca o solo, a gua, o ar atmosfrico, a flora e tudo o mais que diga respeito relao dos seres vivos com o meio (ambiente fsico) em que se inserem.

Alm dos aspectos artificial, cultural e natural, h previso do meio ambiente do trabalho, o qual Melo (2001) defende ser integrante do meio ambiente, at porque positivado na Carta Magna, no art. 200, inciso VIII, a despeito de haver divergncias doutrinrias quanto essa classificao.

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Silva (2002, p. 21), numa interpretao restritiva, entende que a Lei n 6.938/81 define meio ambiente to somente sob o aspecto natural ou fsico. Para ele, o meio ambiente artificial tutelado pelo Direito Urbanstico cujo objetivo a preservao da qualidade de vida do indivduo em relao ao entorno, e no o equilbrio ecolgico do local em que este se insere, independentemente da rea que o cerca. No mbito artificial, o homem o foco da proteo legal (at porque a sua criao lhe devida). J no ambiente natural, a proteo incide sobre todas as formas de vida. Nessa viso, o Direito Ambiental tutela o equilbrio ecolgico e, por via reflexa, a qualidade de vida do homem; de outro vrtice, o Direito Urbanstico visa proteger o entorno artificial, preservando-se a qualidade de vida do homem (viso antropocntrica). Sirvinskas (2008, p. 4) assevera que o direito ambiental trata-se de uma disciplina relativamente nova no direito brasileiro. O direito ambiental era um apndice do direito administrativo e do direito urbanstico, que s adquiriu sua autonomia com o advento da Lei n 6.938/81. Antes, a proteo jurdica se dava de forma reflexa, indireta e mediata, j que advinha da tutela de outros direitos, como, por exemplo, o direito de vizinhana, de propriedade, da sade, das regras urbanas de ocupao do solo, dentre outros. A Lei n 6.938/81 traou as diretrizes e os mecanismos de formulao e aplicao da poltica nacional do meio ambiente. Com o advento da Constituio da Repblica Federativa do Brasil (CRFB), em 05 de outubro de 1988, complementou-se o arcabouo jurdico ao se inserirem, no Captulo VI, os princpios que regem o Direito Ambiental, o que refora a ideia de que se trata de cincia autnoma. A doutrina pacfica no sentido de que a Lei n 6.938/81 foi recepcionada pela CRFB e que, por fora do disposto no art. 24, VI e 1, norma geral ambiental. Essa tese sustentase no fato de que o Brasil adotou a teoria da recepo das leis, ou seja, recepciona-se a legislao anterior naquilo que for compatvel com os novos princpios e preceitos constitucionais. Milar (2004, p. 84) afirma que o Direito Ambiental cuida tanto do ambiente natural quanto do artificial, visto que a atividade humana afeta a existncia do Planeta. Observa, ademais, que a Lei n 6.938/81 traz um conceito de meio ambiente elstico, que no se atm aos recursos naturais, mas que abarca, tambm, o ecossistema humano.

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Silva (2007, p. 228) entende que o meio ambiente um macro-bem, uma vez que seus elementos esto sujeitos a regime jurdico especial, enquanto bens essenciais manuteno das vidas em todas as suas formas e cuja compreenso do tratamento constitucional demanda uma anlise sistmica da Carta Magna. A CRFB, no art. 225, caput, estatui um conceito de meio ambiente ao estabelecer que "todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo. Evidencia-se, nessa proposio, a natureza jurdica do bem ambiental, qual seja, bem de uso comum do povo. O art. 98 do Cdigo Civil consagra essa ideia, certamente com a finalidade de reforar o regime jurdico de direito pblico do bem ambiental. E, mesmo sob essa tica, incide na espcie o art. 81, pargrafo nico, inciso I, do Cdigo de Defesa do Consumidor, haja vista tratar-se de um bem difuso e, portanto, pertencente coletividade (res communes omnium). Nesse caso, cabe administrao pblica sua guarda e gesto. De outro vrtice, enquadrar o bem ambiental na categoria de direito pblico no to fcil por se tratar de direito de terceira gerao, posio em que a linha divisria entre os ramos pblico e privado muito tnue. Quanto considerao do Direito Ambiental como ramo do direito pblico, preciso esclarecer que essa tese esbarra, por exemplo, no direito de propriedade. Ademais, hoje, a dicotomia entre direito pblico e privado deixou de ser rigorosa. Na verdade, o direito privado sofre inseres do direito pblico e vice-versa. O problema se d justamente com os direitos novos, que j nascem com a marca da miscigenao. Fontoura (2001, p. 11), no plano internacional, assevera que o desenvolvimento do Direito Ambiental Internacional se apresenta como uma das principais transformaes do Direito das Gentes em toda a sua histria. Ainda no plano internacional, Benjamin (2008, p. 61), acentua que seguro dizer que a constitucionalizao do ambiente uma irresistvel tendncia internacional, que coincide com o surgimento e consolidao do Direito Ambiental. Canotilho (2008, p.1) vai alm da constitucionalizao; o autor assevera j existir cronologia de geraes de direitos no direito ao ambiente, mencionando problemas ecolgicos de primeira gerao e problemas ecolgicos de segunda gerao.

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Leuzinger (2002, p. 302) entende que o direito ao meio ambiente um direito difuso, portanto, de terceira gerao que traz como principais caractersticas sua transindividualidade e a indivisibilidade de seu objeto, desvinculando-se de critrios patrimoniais e abandonando a ideia tradicional de direito subjetivo. O mais importante o quanto afirmado por Silva (2007, p. 230), o que evidencia o direito ao meio ambiente como direito humano fundamental:
[...] No h possibilidade da concretizao dos demais direitos fundamentais sem o direito ao meio ambiente, que reduz em ltima anlise como o direito prpria vida, ou seja, o direito gua em quantidade e qualidade adequadas para suprir as necessidades humanas fundamentais, o direito a respirar um ar sadio, o direito a que exista um controle de substncias que comportem riscos para a existncia da prpria vida. O direito ao meio ambiente configura-se, portanto, como a matriz de todos os demais direitos fundamentais.

Assim, sob a tica da interpretao sistmica, a Carta de 1988 destacou tanto o meio ambiente natural (art. 225) quanto o cultural ou o do trabalho (art. 200, VIII), sendo que, em relao ao meio ambiente natural, criou os espaos territorialmente protegidos, tambm nominados unidades de conservao.

1.2 UNIDADES DE CONSERVAO NO DIREITO BRASILEIRO

A CRFB, de 05 de outubro de 1988 foi a primeira Carta Magna ptria a tratar do meio ambiente como direito fundamental 1, consoante o caput do artigo 225, a seguir transcrito, tratamento diverso das Constituies anteriores:
Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes.

Para cumprir o comando constitucional de preservar o meio ambiente s futuras geraes, com o propsito de assegurar a efetividade desse direito, a Constituio prev que o Poder Pblico deva definir, em todas as unidades da Federao, espaos territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos (art. 225, inciso III)

Art.5, inciso LXIII, da CRFB/88: qualquer cidado parte legtima para propor ao popular que vise a anular ato lesivo ao patrimnio pblico ou de entidade de que o Estado participe, moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimnio histrico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada m-f, isento de custas judiciais e do nus da sucumbncia.

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O mencionado dispositivo constitucional determina que a alterao e a supresso desta situao (especialmente protegido) sejam efetivadas somente por meio de lei e probe qualquer utilizao que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteo. Antes dessa ordem constitucional, a Lei n 6.938/81, trazia no bojo do art. 9, e entre seus instrumentos, o inciso VI que prev:
[...] a criao de espaos territoriais especialmente protegidos pelo Poder Pblico federal, estadual e municipal.

Esse espao territorialmente protegido, previsto na CRFB e na Lei n 6.938/81, chamado de Unidade de Conservao, assim conceituado pelo art. 2, da Lei n 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservao (SNUC) da Natureza:
I - unidade de conservao: espao territorial e seus recursos ambientais, incluindo as guas jurisdicionais, com caractersticas naturais relevantes, legalmente institudo pelo Poder Pblico, com objetivos de conservao e limites definidos, sob regime especial de administrao, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteo;

Todavia, o mencionado diploma legal no colocou termo nas divergncias acerca da definio de UC. Neste sentido, salienta Silva (2004, p. 230), a Lei 9.985/00, de 18.7.2000, perdeu boa oportunidade de assumir uma terminologia adequada, tal como prevista na Constituio (art. 225, III). Espao protegido , conforme Mars de Souza Filho (1993, p. 11)
[...] todo local, definidos ou no seus limites, em que a lei assegura especial proteo. Ele criado por atos normativos ou administrativos que possibilitem administrao pblica a proteo especial de certos bens, restringindo ou limitando sua possibilidade de uso ou transferncia, pelas suas qualidades inerentes.

A UICN (Unio Internacional para a Conservao da Natureza) define unidade de conservao como sendo: uma superfcie de terra ou mar consagrada proteo e manuteno da diversidade biolgica, assim como dos recursos naturais e dos recursos culturais associados, e manejada atravs de meios jurdicos e outros eficazes. (UICN, 1988, p. 185) Contudo, espaos territoriais especialmente protegidos no podem ser utilizados como sinnimo de unidades de conservao, pois estas so as espcies daqueles, consoante como Silva (2005, p. 161): um espao territorial se converte numa unidade de conservao,

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quando assim declarado expressamente, para lhe atribuir um regime jurdico mais restritivo e mais determinado. Os espaos territoriais especialmente protegidos so:
[...] reas geogrficas pblicas ou privadas (poro do territrio nacional) dotadas de atributos ambientais que requeiram sua sujeio, pela lei, a um regime jurdico de interesse pblico que implique sua relativa imodificabilidade e sua utilizao sustentada, tendo em vista a preservao e proteo da integridade de amostras de toda a diversidade de ecossistemas, a proteo ao processo evolutivo das espcies, a preservao e proteo dos recursos naturais (SILVA, 2005, p. 160-161).

No resta dvida de que um dos principais instrumentos da Poltica Nacional do Meio Ambiente para conservar a natureza, adotado mundialmente, a criao de reas naturais protegidas, ou seja, as unidades de conservao, que tm como objetivos, consoante o art. 4, da Lei n 9.985/2000:
I - contribuir para a manuteno da diversidade biolgica e dos recursos genticos no territrio nacional e nas guas jurisdicionais; II - proteger as espcies ameaadas de extino no mbito regional e nacional; III - contribuir para a preservao e a restaurao da diversidade de ecossistemas naturais; IV - promover o desenvolvimento sustentvel a partir dos recursos naturais; V - promover a utilizao dos princpios e prticas de conservao da natureza no processo de desenvolvimento; VI - proteger paisagens naturais e pouco alteradas de notvel beleza cnica; VII - proteger as caractersticas relevantes de natureza geolgica, geomorfolgica, espeleolgica, arqueolgica, paleontolgica e cultural; VIII - proteger e recuperar recursos hdricos e edficos; IX - recuperar ou restaurar ecossistemas degradados; X - proporcionar meios e incentivos para atividades de pesquisa cientfica, estudos e monitoramento ambiental; XI - valorizar econmica e socialmente a diversidade biolgica; XII - favorecer condies e promover a educao e interpretao ambiental, a recreao em contato com a natureza e o turismo ecolgico; XIII - proteger os recursos naturais necessrios subsistncia de populaes tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente. (grifos nossos)

O Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio), rgo gestor das UC, j compreende a importncia das populaes tradicionais na gesto das reas protegidas quando assevera, em publicao interna que a gesto das UCs devem ser instrumentos dinmicos e passarem por constante monitoramento, quando da realizao do

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evento Seminrio e Oficina sobre Termos de Compromisso com Populaes Tradicionais em Unidades de Conservao da Natureza de Proteo Integral. 2 Constata-se, pois, que no houve excluso quanto participao de populaes, notadamente as populaes locais nos procedimentos de criao, implantao e gesto das unidades de conservao (art. 5, inciso III, da Lei n 9.985/2000), at mesmo no tocante administrao das reas protegidas (art. 5, inciso V, da Lei n 9.985/2000). No presente trabalho, o local onde ocorre a instrumentalizao do instituto jurdico objeto desta dissertao uma unidade de conservao, notadamente o Parque Nacional do Ja, espao territorialmente protegido de uso indireto, rea que possua comunidades no seu interior quando de sua instalao, as nominadas populaes tradicionais.

1.3 POPULAES TRADICIONAIS: CONCEITOS

Nos ltimos anos, a sociedade global vem buscando alternativas para a questo ambiental. O desenvolvimento sustentvel ou ecodesenvolvimento se apresenta como uma delas, pois visa compatibilizar o desenvolvimento econmico, a preservao do meio ambiente e a melhoria da qualidade de vida. O desenvolvimento sustentvel foi a meta estabelecida na Agenda 21 e na Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, tambm nominada Declarao Rio-Eco ou Rio 92, cujo princpio 4 acentua que:
[...] Para alcanar o desenvolvimento sustentvel, a proteo ambiental constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e no pode ser considerada isoladamente deste.

O desenvolvimento sustentvel, conforme Sachs (2008, p. 15), acrescenta uma outra dimenso a sustentabilidade ambiental dimenso da sustentabilidade social. O crescimento desejvel e salutar, no entanto, preciso equacionar desenvolvimento econmico-social e proteo do meio ambiente. Em outras palavras, necessrio pensar o meio ambiente como patrimnio dessa e das futuras geraes, sob pena de colocar em risco a prpria biodiversidade e, em sentido amplo, o ecossistema planetrio.
2

Boletim Interno do ICMBio. Braslia: ICMBio, n. 123, v. 4, p.10, nov. 2010.

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Para alcanar esse ideal, imprescindvel que o ser humano promova modificaes considerveis em sua conduta. Isso requer educao ambiental adequada, seja na escola ou mesmo fora dela, e a criao de leis visando coibir os abusos cometidos pelos poluidores e degradadores do meio ambiente, sejam pessoas fsicas ou jurdicas. No que diz respeito vida sustentvel, vale mencionar seus princpios norteadores, conforme lio de Milar (2004, p. 55):
I - Respeitar e cuidar da comunidade dos seres vivos - os indivduos devem preocupar-se uns com os outros e com as demais formas de vida; II - Melhorar a qualidade da vida humana - o desenvolvimento econmico no prescinde da dignidade da pessoa humana, que, entre outros, envolve o acesso educao, a liberdade poltica e o combate violncia; III - Conservar a vitalidade e a diversidade do Planeta - devem-se adotar medidas com o objetivo de preservar a biodiversidade e o uso sustentvel dos recursos renovveis; IV - Minimizar o esgotamento de recursos no renovveis - visa prolongar a disponibilidade desses recursos, valendo-se da reciclagem, uso em menor escala na atividade industrial, ou mediante substituio destes por espcie renovvel; V - Permanecer nos limites da capacidade de suporte do Planeta Terra refere-se implementao de polticas pblicas para adequar o homem ao espao fsico em que se insere, dotando-o de todas as garantias necessrias para a preservao da espcie (a dificuldade reside em definir o que seja suporte do Planeta Terra); VI - Modificar atitudes e prticas pessoais - impe a reavaliao dos valores individuais visando preservao do meio ambiente e melhoria da qualidade de vida.

Milar (2004, p. 97) traa o seguinte paralelo:


I - Numa viso tica tradicional, em que se pretende ressarcir o inocente, d-se a primazia ao fator humano; numa perspectiva tica moderna, em que muitos fatores mais so ponderados, no se separam a espcie humana e o ecossistema planetrio; II - Permitir que as comunidades cuidem do seu prprio ambiente - tratase de medida bsica para o estabelecimento de uma sociedade sustentvel, j que cada cidado se constitui canal adequado para exigir a soluo dos problemas ambientais; III - Gerar uma estrutura nacional para integrao do desenvolvimento e conservao - o programa de sustentabilidade deve abarcar os interesses da populao, com vistas preveno de problemas; IV - Construir uma aliana global - a ideia que a sustentabilidade mundial, se alcanada, beneficiar todos os pases.

O movimento internacional acerca do Direito Ambiental faz crer que se est diante de uma cincia cujo carter metaindividual, ou seja, no h fronteiras. A tese que vem sendo sustentada a de um Direito Ambiental Internacional, que teria por objeto regras internacionais de cooperao entre os povos, relativamente ao meio ambiente (CF, art. 4,

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IX). Esse fato ocasionaria a migrao do direito flexvel (soft law) - normas de Direito Ambiental Internacional sem contedo obrigatrio, ou seja, com carter de mera recomendao - para o direito positivo (hard law), caracterizado pela necessria observncia do contedo normativo. Compulsando-se alguns trechos da Declarao de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, de 1972, marco normativo internacional acerca da questo ambiental, constata-se, de plano, que a presena do homem nunca foi afastada da questo da conservao do meio ambiente:
1. O homem ao mesmo tempo obra e construtor do meio ambiente que o cerca, o qual lhe d sustento material e lhe oferece oportunidade para desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. Em larga e tortuosa evoluo da raa humana neste planeta chegou-se a uma etapa em que, graas rpida acelerao da cincia e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, de inmeras maneiras e em uma escala sem precedentes, tudo que o cerca. Os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o artificial, so essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito vida mesma. (grifos nossos)

Como se profetizasse o futuro, a referida Declarao no impediu o homem de modificar o meio ambiente, sobretudo quando for para assegurar condies mnimas de existncia e com dignidade:
3. O homem deve fazer constante avaliao de sua experincia e continuar descobrindo, inventando, criando e progredindo. Hoje em dia, a capacidade do homem de transformar o que o cerca, utilizada com discernimento, pode levar a todos os povos os benefcios do desenvolvimento e oferecer-lhes a oportunidade de enobrecer sua existncia. Aplicado errnea e imprudentemente, o mesmo poder pode causar danos incalculveis ao ser humano e a seu meio ambiente. Em nosso redor vemos multiplicar-se as provas do dano causado pelo homem em muitas regies da terra, nveis perigosos de poluio da gua, do ar, da terra e dos seres vivos; grandes transtornos de equilbrio ecolgico da biosfera; destruio e esgotamento de recursos insubstituveis e graves deficincias, nocivas para a sade fsica, mental e social do homem, no meio ambiente por ele criado, especialmente naquele em que vive e trabalha. (grifos nossos)

Relativo a esse panorama, Diegues (2001) apresenta a etnoconservao como um esboo de teoria da conservao que surge a partir dos questionamentos suscitados com a constatao das ambiguidades das teorias preservacionistas elaboradas nos pases do Norte, onde se prega a criao de reas protegidas na ideia de natureza selvagem intocada. Assim, a etnoconservao permite pensar novas estratgias de conservao para a proteo da biodiversidade e a diversidade cultural, na qual a comunho entre pesquisa e as

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populaes tradicionais construiria uma nova aliana entre homem e a natureza, o novo naturalismo. Registra Fonseca (2011, p. 17), que a diversidade social claramente decorrente da diversidade ambiental que impe nveis diversos de adaptabilidade condies mesolgicas que aliceram, passo a passo, a configurao dos padres culturais, configurando uma etologia dos conjuntos humanos, pois cada um pratica formas prprias de adaptao ao ambiente natural. Tal assertiva corroborada por Morn (1990a, p. 31) quando assevera que a difuso cultural forma de adaptao ao ecossistema, contrapondo-se corrente preservacionista, sendo esta adaptao varivel, a depender do contexto onde ela ocorre, salientando que uma populao humana, num ecossistema especfico, apresenta respostas que refletem presses ambientais presentes e passadas. Inserida na definio de diversidade biolgica, est a diversidade cultural, formada pelos componentes tangveis acima descritos (territrio e recursos naturais), e por componentes intangveis (conhecimentos, inovaes e prticas), de natureza imaterial, tais como os chamados conhecimentos autctones, parte integrante e indissocivel da biodiversidade. (SANTILLI, 2005, p. 78) Nestes termos, o conceito de biodiversidade vai alm de um conjunto de seres vivos de origem animal e vegetal. Abarca-se ainda, todos os organismos vivos ou microorganismos, alem dos bens imateriais, reconhecidos como conhecimentos tradicionais associados ao ecossistema, bem como o prprio ecossistema em que esto inseridos. Por conhecimentos tradicionais, entende-se:
[...] um corpo de conhecimento construdo por um grupo de pessoas atravs de sua vivencia em contato prximo com a natureza por varias geraes. Ele inclui um sistema da classificao, um conjunto de observaes empricas sobre o ambiente local e um sistema de automanejo que governa o uso dos recursos. (PNUMA, 1972)

Para Witkoski (2010, p. 43), o ecossistema extenso geral do ambiente onde ocorre a adaptao humana, salientando ainda que no existe adaptao perfeita na relao homem e meio ambiente (p. 54). Shiraishi Neto (2006a, p. 10) acentua a existncia da diferena entre tradio e costume e que atrela o sentido de tradicional ao direito consuetudinrio, que causa o congelamento das prticas jurdicas prprias das comunidades tradicionais.

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Isso ocorre porque tradio, no sentido de populaes tradicionais, nada tem a ver com permanncia e mais se atm a processos reais e sujeitos sociais que transformam dialeticamente suas prticas, mesmo quando as convertem em normas para fins de interlocuo, redefinindo suas relaes sociais e com a natureza (SHIRAISHI NETO, 2006a, p. 11). Para Almeida (2006, p. 26), as teorias do pluralismo jurdico, para as quais o direito produzido pelo Estado no o nico, ganharam fora com a Constituio de 1988 e que, juntamente com elas e com as crticas ao positivismo, que historicamente confundiu as chamadas minorias dentro da noo de povo, tambm foi contemplado o direito diferena, enunciando o reconhecimento de direitos tnicos. A Lei do SNUC, nos artigos 18 e 20, ao definir as reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentvel, estabeleceu, ainda que indiretamente, o conceito de "populaes tradicionais", "cuja subsistncia baseia-se no extrativismo e,

complementarmente, na agricultura de subsistncia e na criao de animais de pequeno porte" (no caso das reservas extrativistas), ou
[...] cuja existncia baseia-se em sistemas sustentveis de explorao dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de geraes e adaptados s condies ecolgicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteo da natureza e na manuteno da diversidade biolgica" (no caso das reservas de desenvolvimento sustentvel).

Quanto ao conceito de populaes tradicionais, o Decreto n 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, no art. 3, inciso I, estabelece que:
Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas prprias de organizao social, que ocupam e usam territrios e recursos naturais como condio para sua reproduo cultural, social, religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes e prticas gerados e transmitidos pela tradio.

O conceito de "populaes tradicionais" foi, entretanto, desenvolvido pelas cincias sociais, e, para compreend-lo, parece-nos fundamental recorrer aos conhecimentos produzidos por essas cincias. A categoria "populaes tradicionais" est relacionada ao uso de tcnicas ambientais de baixo impacto e a formas equitativas de organizao social e de representao, como conceituado por Cunha (2009, p. 300):
[...] grupos que conquistaram ou esto lutando para conquistar (prtica e simbolicamente) uma identidade pblica conservacionista que inclui algumas das seguintes caractersticas: uso de tcnicas ambientais de

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baixo impacto, formas equitativas de organizao social, presena de instituies com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderana local e, por fim, traos culturais que sao seletivamente reafirmados e reelaborados.

Brahy (2008, p. 289) sintetiza que populao tradicional identificada pelo modo de produo e transmisso. Dourado (2010, p. 55-56) acentua que a expresso conhecimento tradicional polissmica e que o conhecimento no mero estoque de informaes de carter cumulativo, pois implica relaes sociais, qualificando como capital intelectual ou capital cultural. Carneiro da Cunha & Almeida (2001), discorrendo sobre o tema, salientando que se trata de uma estao ecolgica, apontam que as populaes tradicionais subsistem da pesca, agricultura e prestao de servios aos moradores locais, o exerccio dessas atividades, desde que realizadas de forma compatvel com os objetivos de uma determinada unidade de conservao, nos termos de seu plano diretor e respectivo zoneamento. Segundo Witkoski (2010, p. 27), as populaes tradicionais possuem vasta experincia na utilizao e conservao da biodiversidade e da ecologia dos ambientes terras, florestas e guas onde trabalham e vivem. Carneiro da Cunha & Almeida (2001) exemplificam autorizaes normativas para a permanncia de populaes tradicionais em unidades de conservao de proteo integral:
A Lei n 293, de 20 de abril de 1995, do Estado do Rio de Janeiro, dispe sobre a permanncia de populaes nativas residentes em unidades de conservao. A referida lei autoriza o Poder Executivo a assegurar s populaes nativas residentes h mais de cinquenta anos em unidades de conservao do Estado do Rio de Janeiro o direito real de uso das reas ocupadas, "desde que dependam, para sua subsistncia, direta e prioritariamente, dos ecossistemas locais, preservados os atributos essenciais de tais ecossistemas".

Os ribeirinhos, tambm inseridos nas populaes tradicionais, so o agrupamento humano mais numeroso no Parque Nacional do Ja (FVA, 1998) e a populao mais sujeita a ser remanejada no processo de criao das unidades de proteo integral. Como retrato dos ribeirinhos, tem-se que eles construram um modo de vida integrado pela agricultura e extrativismo vegetal ou animal, vivendo em funo dos produtos da floresta, dos rios e das terras molhadas da vrzea amaznica (FRAXE, 2010, p. 20).

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A Lei n 9.985/2000, sobre os grupos sociais classificados como populaes tradicionais, prev que se deva garantir s populaes tradicionais cuja subsistncia dependa da utilizao de recursos naturais existentes no interior das unidades de conservao meios de subsistncia alternativos ou a justa indenizao pelos recursos perdidos (art. 5, inciso X).
O Decreto n 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, prev, no art. 3, inciso II, quais so

os espaos das populaes tradicionais:


[...] os espaos necessrios a reproduo cultural, social e econmica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporria, observado, no que diz respeito aos povos indgenas e quilombolas, respectivamente, o que dispem os arts. 231 da Constituio e 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias e demais regulamentaes. Em verdade, o dispositivo acima transcrito, do Decreto n 6.040/2007, construiu o que

denominou de territrios tradicionais. Assim, no basta afirmar a existncia de um direito, preciso assegur-lo, como afirma Bobbio (1992). Essa a situao atual dos movimentos sociais que, reconhecidos formalmente, buscam seu espao em luta de seus direitos. Leff (2008) menciona que a cidadania forja estratgias de poder e legitimao para as comunidades, pois a excluso deslegitima (MLLER, 2009). Mesmo antes de reconhecidas formalmente, as populaes tradicionais agiam. Enquanto os seringueiros promoviam o empate 3, os ribeirinhos faziam o fechamento" dos lagos, na defesa de seus direitos e protegiam os recursos de um rpido esgotamento. Aps as atuaes de choque acima, o Estado interveio regulando as aes, por meio, por exemplo, dos acordos de pesca 5 ou do termo de ajustamento de conduta. Essas atuaes pela defesa do espao coletivo somente foram possveis por uma razo: a permanncia desses grupos no espao em que vivem.
4

Ao dos seringueiros que consistia em obstaculizar o avano da explorao madeireira no Acre, liderado por Chico Mendes na dcada de 80. 4 Ao dos ribeirinhos que consistia em promover a interrupo da passagem de barcos comerciais pesqueiros para o interior dos lagos ou para determinados locais em corpos aquticos. 5 Instruo Normativa n 29 IBAMA, de 31 de dezembro de 2002. Art. 1, pargrafo nico. Entende-se por acordo de pesca, um conjunto de medidas especficas decorrentes de tratados consensuais entre os diversos usurios e o rgo gestor dos recursos pesqueiros em uma determinada rea, definida geograficamente.

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O fato de que as pessoas se encontram no territrio de um Estado tudo menos uma situao irrelevante. Compete-lhes, juridicamente, a qualidade de ser humano, a dignidade humana, a personalidade jurdica. Os habitantes no habitam um Estado, mas um territrio (MLLER, 2009, p. 60). Alm disso, o respeito e reconhecimento das comunidades tradicionais acentuam o respeito alteridade, em especial no povo brasileiro, miscigenado e pluritnico, afirmao esta extrada de um dos mais significativos elementos de interpretao constitucional o prembulo da Constituio:
Ns, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social (...) (grifo nosso)

O prembulo, como assentou a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal (STF), no constitui norma central, no tem valor normativo, apresentando-se desvestido de fora cogente. 6 Outrossim, em outros julgados do STF, consta que o prembulo atua como norte interpretativo, que qualifica o Brasil com valores supremos de uma sociedade pluralista, fraterna e sem preconceitos, sociedade que se pe como base de inspirao do princpio da dignidade da pessoa humana. 7 Miranda (2002, p. 437-438), ao tratar sobre o valor e ao significado dos prembulos constitucionais, acentua que:
[...]o prembulo parte integrante da Constituio, com todas as suas consequncias. Dela no se distingue nem pela origem, nem pelo sentido, nem pelo instrumento em que se contm. Distingue-se (ou pode distinguir-se) apenas pela sua eficcia ou pelo papel que desempenha. Os prembulos no podem assimilar-se s declaraes de direitos.

Hrbele (2005, p. 93) salienta que os prembulos so essncia de uma Constituio e conferem um significado singular dignidade humana como ponto de partida.

Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n 2076 / AC. Relator: Min. CARLOS VELLOSO e Mandado de Segurana (MS) n 24.645-MC-DF. Relator: Min. CELSO DE MELLO. 7 Habeas Corpus (HC) n 97.256/RS e Recurso Ordinrio em Mandado de Segurana (RMS) n 26.071/DF, em ambos Relator: Min. AYRES BRITTO.

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Como afirmado no Mandado de Segurana (MS) n 24.645-MC-DF, prembulo no um conjunto de preceitos, nem pode ser invocado enquanto tal, isoladamente; nem cria direitos ou deveres. Em verdade, a Repblica Federativa do Brasil no precisa do prembulo da Constituio para afirmar-se multicultural, miscigenada e pluritnica; a histria prova que o Brasil assim o ; a miscigenao de sua populao tambm o faz. Associado ao prembulo da CRFB/88, os modos de viver, criar e fazer tm proteo constitucional, pois constituem patrimnio cultural brasileiro, uma vez que so portadores de referncia da identidade, da ao e da memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216, inciso II). H tambm previso constitucional em relao criao de espaos territoriais especialmente protegidos, disciplinada pelo art. 22 da Lei n 9.985/2000 (SNUC), dispositivo que estatui que a criao das nominadas unidades de conservao ocorram por ato do poder pblico, sem fazer referncia a que tipo de ato seja, podendo ser criadas por ato federal, estadual ou municipal, pois a Lei do SNUC, pelo art. 3, prev a possibilidade de unidades de conservao por qualquer dos entes federativos. Portanto, quando se cria uma rea protegida, deve-se levar em considerao a presena de populaes, pois possuem tutela constitucional e na prpria legislao que rege o Sistema Nacional de Unidades de Conservao.

1.4

RELAO

JURDICA

ENTRE

UNIDADES

DE

CONSERVAO

POPULAES TRADICIONAIS

A Constituio de 1988 relevou de importncia a cultura que alcana a identidade e memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, mencionada em diversos dispositivos (artigos 225; 261 e quanto etnia, art. 231). Em relao cultura, importante frisar que, tanto na Amaznia como em outros locais no mundo, foram os modos de viver locais que mantiveram o meio ambiente. Exemplo

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disso o depoimento de Maatai 8 (2007, p. 215), quando afirma que sob muitos aspectos, a cultura de nossos antepassados protegeu o meio ambiente do pas. Mars de Souza Filho (1998, p. 120) acentua que a questo da territorialidade assume a proporo da prpria sobrevivncia dos povos, um povo sem territrio, ou melhor, sem o seu territrio, est ameaado de perder suas referncias culturais e, perdida a referncia, deixa de ser povo. Uma das exigncias para a criao de UC a realizao prvia de estudos tcnicos e de consultas pblicas com vistas a garantir a publicidade do ato, de modo que a populao local e outros interessados possam se manifestar, bem como para delimitar a localizao e a dimenso do espao protegido (art. 22, 2, da Lei do SNUC). Antes da Lei do SNUC, diversas categorias de unidades de conservao haviam sido criadas por outras normas, sendo que, com o advento do referido diploma legal, ocorreu a consolidao dos tipos de espaos protegidos existentes em um nico texto, com a criao de categorias e a extino de outras. So dois os tipos de UC:
Art. 7o As unidades de conservao integrantes do SNUC dividem-se em dois grupos, com caractersticas especficas: I - Unidades de Proteo Integral; II - Unidades de Uso Sustentvel.

O propsito das Unidades de Proteo Integral a preservao da natureza, conforme o art. 7, 1, da Lei n. 9.985/2000, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceo dos casos previstos na Lei do SNUC. O Parque Nacional do Ja, rea objeto deste estudo, uma unidade de proteo integral, de conformidade com o art. 8, inciso III, da Lei n. 9.985/2000:
Art. 8o O grupo das Unidades de Proteo Integral composto pelas seguintes categorias de unidade de conservao: I - Estao Ecolgica; II - Reserva Biolgica; III - Parque Nacional; IV - Monumento Natural; V - Refgio de Vida Silvestre.

Vencedora do Prmio Nobel da Paz em 2004, criadora do Movimento Cinturo Verde, no Qunia.

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No caso dos parques nacionais, num resgate histrico, os parques so as primeiras unidades de conservao e proteo criadas pelo Direito Brasileiro (MARS DE SOUZA FILHO, 1993, p. 23). O objetivo bsico de um parque nacional a preservao de ecossistemas naturais de grande relevncia ecolgica e beleza cnica, possibilitando a realizao de pesquisas cientficas e atividades de educao ambiental e de turismo ecolgico (art. 11, da Lei do
SNUC).

No se vislumbra, entre os objetivos dessa categoria de unidade de conservao, o acolhimento, a habitao de determinada populao. Em que pese o fato da Lei do SNUC haver consolidado as normas existentes acerca de unidades de conservao, mister tecer consideraes sobre imprecises conceituais existentes. De incio, a ementa da Lei n 9.985, de 18 de julho de 2000, assim se apresenta: regulamenta o art. 225, 1o, incisos I, II, III e VII da Constituio Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza e d outras providncias. Na ementa consta, pois, que o referido diploma legal regulamenta dispositivo constitucional instituindo ainda o SNUC. Ocorre que na Constituio inexiste o termo unidades de conservao, utilizando a Carta Magna a nomenclatura espaos territoriais especialmente protegidos. A impreciso que merece maior destaque ocorre entre os relevantes termos conservao e preservao. No art. 2, a Lei n 9.985/2000 conceitua esses dois termos. Outrossim, a referida lei, apesar de instituir o SNUC traz no seu bojo espao territoriais protegidos que tm por escopo a preservao da natureza. Assim, questiona-se: a Lei que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservao tem como objetivo a preservao? Ou deve tambm considerar a conservao, sem prejudicar os atributos da rea protegida? E determinadas populaes que habitavam tal rea efetivamente prejudicam o ecossistema, especialmente onde a presena de rgos de fiscalizao fraca e quase inexistente? De acordo com Morsello (2001), a prtica usual do estabelecimento de UCs era a expulso da populao local, s vezes, residentes h sculos no local. Os problemas e

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prejuzos desse modelo foram reconhecidos pela UICN que, desde 1984, vem alterando suas diretrizes em relao ao tema, mas ainda no existe um consenso: alguns acham que as populaes podem desenvolver suas atividades como caa, pesca e extrativismo, outros discordam totalmente e outros ainda acreditam em compromissos entre a populao e os objetivos conservacionistas. Dessa forma, o acesso ou a presena de populaes locais s UCs se constituem em um dos maiores e mais polmicos problemas na gesto dessas reas. Constatam-se relaes predatrias em unidades de conservao em diversos pontos do Pas, como exemplo, unidades de conservao no Sudeste, utilizadas como lazer e veraneio ou como forma de especulao imobiliria em reas da Mata Atlntica do Estado de So Paulo (LEITO, 2002, p. 75). Ocorre que no pode haver generalizao em relao s demais unidades de conservao, sob pena de incorrer em injustias. No mbito internacional, instrumento jurdico marcante a Conveno Internacional Relativa Proteo da Herana Universal Cultural e Natural, aprovada no ano de 1972, em Paris, da qual o Brasil signatrio. Seu principal objetivo estabelecer um sistema de proteo herana cultural e natural de valor universal, organizando de firma permanente e de acordo com os modernos mtodos cientficos. A Constituio de 1988 deu relevo cultura envolvendo o conceito de identidade e memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Tal noo mencionada em diversos dispositivos (arts. 225, e quanto etnia, art. 231 e 261), cogitando-se a existncia de uma Constituio cultural, ao lado de uma Constituio poltica, econmica, social ou ambiental. A Carta Magna de 1988 estabelece ainda, categoricamente, que todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes (caput do art. 225). Do mesmo modo, em outro artigo, afirma que constituem patrimnio brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem tanto as formas de expresso como os modos de criar, fazer e viver (art. 216, incisos I e II).

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Indubitavelmente, as unidades de conservao, gnero onde a categoria parques nacionais esto inseridos constituiu, de incio, um modo de proteger o meio ambiente. Outrossim, na evoluo do conceito de parque e, consequentemente, do conceito de unidade de conservao, surgiram as de uso direto em que admitida a presena de populao local e o uso racional dos recursos naturais. Esse modelo sofre crticas da corrente preservacionista, que defende a perspectiva de reas protegidas sem moradores, em especial quanto capacidade desse tipo de UC em conservar a natureza. Fvero (2001) tambm considera que o desenvolvimento do conceito de UCs no Brasil foi baseado na viso preservacionista dos Estados Unidos da Amrica onde o homem necessariamente um destruidor na natureza, impedindo e desconsiderando quaisquer relaes naturais entre o homem e os recursos naturais, salvo aquelas exclusivamente cientficas, e pondera que:
[...] a delimitao de reas protegidas e/ou das UCs podem contribuir efetivamente para a conservao ambiental e paralelamente com o desenvolvimento sustentvel, entretanto, seus objetivos e metas precisam estar em conformidade com as necessidades e as particularidades locais (p.16).

As populaes indgenas e os remanescentes de quilombos tm seus direitos assegurados de modo expresso na CRFB, respectivamente no art. 231 e seguintes, e art. 68, do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT), apesar de que, como ressaltado por LEITO (2002, p. 78), a Lei do SNUC silente com relao incluso de ndios e quilombolas no espectro das populaes tradicionais. No tocante s comunidades tradicionais, apesar de no constarem, expressamente, na CRFB disposies similares s populaes indgenas e aos remanescentes de quilombos, a Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB), assinada no Rio de Janeiro em 1992, aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo n 2 de 1994, e promulgada pelo Decreto n 2.519, de 16 de maro de 1998, em seu artigo 10 dispe que as partes contratantes devem na medida do possvel:
[...] proteger e encorajar a utilizao costumeira de recursos biolgicos de acordo com prticas culturais tradicionais compatveis com as exigncias de conservao ou utilizao sustentvel bem ainda apoiar populaes locais na elaborao e aplicao de medidas corretivas em reas degradadas onde a diversidade biolgica tenha sido reduzida.

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A Declarao de Limoges II apresentou recomendaes que tinham como destinatria a Conferncia Mundial do Meio Ambiente (Rio + 10), em Joanesburgo, frica do Sul, em 2002, dentre outras, com o propsito de:
[...]a) reafirmar os termos atuais do estatuto jurdico prprio, interno e internacional das coletividades autctones e comunidades tradicionais e, segundo a necessidade, aprofundar e renovar a inspirao e a formulao; b) assegurar uma gesto equitativa e participativa dos recursos naturais garantindo a plena satisfao das necessidades das coletividades autctones e comunidades tradicionais; c) assegurar uma parceria real, plena e igual no nvel local, nacional e internacional, com as coletividades autctones e comunidades tradicionais, assim como os sistemas jurdicos que da se originam.

Ao assumir o carter pluritnico, a Constituio inclui as etnias indgenas, os afrodescendentes e outros grupos participantes do processo civilizatrio nacional e propicia a aplicao de igual tratamento aquele dispensado aos demais grupos tnicos. No perodo de concepo dos parques nacionais, a populao que l residia era transgressora das normas estatais, uma vez que seu objetivo era contrrio aquele imposto pelo Estado. Com a abertura democrtica no Brasil, consolidada com a Constituio de 05 de outubro de 1988, os movimentos populares passaram a ter voz e reivindicar seus direitos coletivamente. O marco desse movimento foram os seringueiros do Acre, liderados por Chico Mendes, sendo que tais movimentos passaram da marginalidade (perodo de implantao dos parques), para a invisibilidade (deixaram de ser transgressores, mas ainda no existiam formalmente) at o reconhecimento estatal (atualidade). Conforme Esterci, Lima & Lena (2002, p. 3), delineou-se desde o final dos anos 80 e foi se consolidando aos poucos uma aliana entre esses segmentos organizados identificados como populaes tradicionais9 e o movimento ambientalista que defendia interesses universais de proteo da vida. Tais alianas representam, como acentua Jelin (1996, p. 24), um processo de construo de cidadania ativa, aberta ao debate permanente, reforando a importncia das comunidades tradicionais na proteo do meio ambiente.

Dentre os vrios conceitos existentes Lena (2002, p. 11) entende populaes tradicionais como sendo aquelas que exploram os recursos naturais com impactos reduzidos devido baixa densidade demogrfica e falta de integrao ao mercado.

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A Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB), assinada na Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, no perodo de 5 a 14 de junho de 1992, reconheceu a estreita e tradicional dependncia de recursos biolgicos de muitas comunidades locais e populaes indgenas com estilos de vida tradicionais, e que desejvel repartir equitativamente os benefcios derivados da utilizao do conhecimento tradicional, de inovaes e de prticas relevantes conservao da diversidade biolgica e utilizao sustentvel de seus componentes 10. Nesse passo, todos os grupos tnicos ou tradicionais tm direito a um territrio cultural, consubstanciado o espao necessrio ao exerccio dos direitos culturais, pois nesses territrios fsicos onde vivem esto presentes sua histria, sua identidade, seus modos de produo e reproduo cultural, no sendo apenas algo exterior identidade; imanente a ela. A criao de unidades de conservao, conforme a CRFB, indispensvel para a proteo do meio ambiente. Todavia, ao criar unidades de conservao, o Estado altera as condies socioculturais de aglomerados humanos, em especial das populaes tradicionais, presumindo que essas comunidades seriam nocivas ao meio ambiente.

1.5 A PROTEO DAS POPULAES TRADICIONAIS NO DIREITO BRASILEIRO

Neste tpico, ser abordado o tratamento constitucional dos direitos e garantias dos povos indgenas e dos quilombolas at a proteo das populaes tradicionais. O tratamento constitucional dos direitos e garantias dos povos indgenas encontra assento constitucional no dispositivo a seguir transcrito:
Art. 231. So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 1. So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies.

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Trecho do prembulo da Conveno sobre Diversidade Biolgica.

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2. As terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

A Constituio no estabeleceu, pois, um carter de imemorabilidade para fins de reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios. Ao contrrio, constitucionalizou, conforme Silva (2005, p. 857), a teoria da posse indigenata, que no se confunde com a ocupao, com a mera posse, mas sim fonte primria e congnita da posse territorial; um direito congnito, enquanto a ocupao ttulo adquirido, ou seja, no se concebe que os ndios tivessem adquirido, por simples ocupao, aquilo que lhes congnito e primrio. Assim, a dignidade humana dos povos indgenas est condicionada ao respeito aos seus territrios, aos seus modos de vida e s suas instituies, como garantia prvia e imprescindvel satisfao das necessidades bsicas. Portanto, o espao e as formas de vida, enquanto direitos consuetudinrios, devem ser protegidos, sendo esse o comando constitucional (DANTAS, 2004, p. 226). E no caso dos direitos dos indgenas, como afirma Zagrebelsky (1997, p. 11), tem-se que os enunciados constitucionais so, na verdade, princpios uma vez que as normas constitucionais so prevalecentemente princpios quando versam sobre direitos e justia. Aps a Constituio Federal de 1988, a concluso no outra: a Constituio Federal de 1988 contm a maior incluso de garantias e direitos referentes aos ndios e s sociedades indgenas em toda a histria constitucional brasileira (DANTAS, 2003, p. 492). Todos os direitos constitucionalmente consagrados aos povos indgenas foram ratificados no julgamento da Petio n 3388/Roraima, em 19 de maro de 1999, quando o STF determinou a demarcao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol, em carter contnuo, como captulo avanado do Constitucionalismo Fraternal. Outrossim, o STF, no julgamento em questo, harmonizou o direito demarcao das terras indgenas com outros elementos constitucionalmente tutelados, como o caso da faixa de fronteira, ao reconhecer que h compatibilidade entre o usufruto de terras indgenas e faixa de fronteira, pois:
[...] a permanente alocao indgena nesses estratgicos espaos em muito facilita e at obriga que as instituies de Estado (Foras Armadas e Polcia Federal, principalmente) se faam tambm presentes com seus postos de vigilncia, equipamentos, batalhes, companhias e agentes. Sem precisar de licena de quem quer que seja para faz-lo.

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No caso das comunidades quilombolas, a Constituio de 1988 determina que sejam reconhecidas as terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos, nos seguintes termos:
Art.68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

O dispositivo, acima transcrito, exige interpretao conjunta com outros dispositivos constitucionais que, notadamente, reconhecem as reas ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos como patrimnio cultural brasileiro. Vrios instrumentos normativos internacionais11, ratificados pelo Brasil, trazem a obrigatoriedade de implementao de polticas e de instrumentos legais que garantam o direito a terra e proteo cultural, entre eles, destaca-se a Conveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho sobre Povos Indgenas e Tribais, que regula em mbito internacional a promoo e defesa dos direitos culturais e territoriais desses povos, tendo sido incorporada ao ordenamento jurdico interno brasileiro, por meio da edio do Decreto Legislativo 142/2002, em vigor desde 25 de julho de 2003. Vale ressaltar que o nico caso de propriedade comunitria plena admitido no ordenamento jurdico brasileiro a propriedade quilombola, pois o art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias da Constituio Federal de 1988 reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, impondo ao Estado o dever de emitir-lhes os ttulos respectivos, ou seja, de reconhecer formalmente este direito e impor o seu reconhecimento a toda sociedade. O artigo 11 do Decreto n 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta a identificao, reconhecimento, delimitao, demarcao e titulao das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos, trata a sobreposio s unidades de conservao constitudas, em relao s reas de segurana nacional, faixa de fronteira e s terras indgenas, e estabelece que a Fundao Palmares e os rgos gestores dessas terras conciliem os interesses do Estado de forma a garantir a sustentabilidade dessas comunidades.

Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econmicos e Culturais (1966), Conveno Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial (1965, Declarao sobre Raa e Preconceito Racial (1978), Declarao sobre Assentamentos Humanos de Vancouver (1976), Declarao da ONU sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou tnicas, Religiosas ou Lingusticas (1992).

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No caso do Parque Nacional do Ja, o processo de reconhecimento quilombola foi finalizado, tendo sido a comunidade do Tambor, localizada na rea central do Parque, certificada pela Fundao Cultural Palmares 12. As populaes indgenas e os remanescentes de quilombos tm seus direitos assegurados de modo expresso na CRFB, respectivamente no art. 231 e seguintes, e art. 68, do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT). Confirmao da assertiva acima o quanto afirmado por Santilli (2005, p. 42), ao destacar que a Constituio seguiu uma orientao claramente multicultural e pluritnica, reconhecendo direitos coletivos e povos indgenas e quilombolas, e assegurando-lhes direitos territoriais especiais. Em relao s comunidades tradicionais, outrossim, no h regra protetiva expressa no Texto Constitucional no mesmo patamar daquelas para as populaes indgenas e para os remanescentes de quilombos, a despeito da Constituio tutelar os modos de viver. No se pode olvidar que comunidades j habitavam as unidades de conservao, conforme o resgate histrico apresentado, antes mesmo de sua instituio legal. Segundo Wallauer (1998), em 1977, existiam no mundo 9.766 UCs, totalizando 870 milhes de hectares em 149 pases. Sem dvida, essas reas contribuem em muito para a conservao dos ambientes naturais e sua biodiversidade, mas apresentam muitas dificuldades para sua instalao e real cumprimento de seus objetivos. Uma delas no que pese a crescente contribuio de reas particulares transformadas em UCs est o custo de aquisio de terras pelos governos, especialmente nos pases mais pobres, completadas com a tenso das retiradas dessas reas do processo produtivo convencional, da falta de polticas de planejamento e gesto, da falta de recursos para o seu funcionamento e manuteno adequados, sejam recursos financeiros, estruturais ou humanos. Assim, muito comum que reas reveladas em estatsticas oficiais como UCs notadamente em pases mais pobres estejam apenas no papel, no possuindo as mnimas condies de cumprir seus objetivos e muitas vezes no possuindo nem sua rea delimitada. Leuzinger (2002, p. 310) aponta que, aproximadamente, em 80% das unidades existentes habitadas, 36% so unidades de conservao de uso indireto.

12 Portaria n. 11, da Fundao Cultural Palmares, de 06 de junho de 2006, publicada no Dirio Oficial da Unio n 108, Seo 1, p. 5.

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Para Morsello (2001), com base em vrios autores, a situao de muitos pases de dificuldades econmicas onde as necessidades bsicas da populao ainda no foram satisfeitas, sendo difcil, nessa situao, a disputa por recursos para a implantao e manuteno de UCs. Para Diegues (2004), a noo norte-americana de conservao da natureza que culminou com a criao do Yellowstone est baseada na noo de natureza selvagem wilderness que se contrape noo de natureza domesticada dos europeus. Essa noo estabelece que a natureza somente pode ser protegida quando separada do convvio humano. Essa viso de wilderness acabou sendo a preponderante e expandiu-se mundialmente atravs do conceito de reas de proteo sem moradores, o que transforma ainda mais as UCs como concorrentes com as populaes locais. Apesar dessa sobreposio territorial e as implicaes para o deslocamento dos grupos humanos do interior das unidades de conservao de uso indireto, percebe-se que estas populaes no tm tido nenhuma participao na eleio e definio destas unidades de conservao. (MOREIRA et al, 1996, p. 12) Quando se discute sobre os direitos das populaes tradicionais, est se abordando, dentro da pluralidade consagrada na Constituio, o respeito dignidade humana, pois como salienta Shiraishi Neto (2006, p. 177), no caso das situaes sociais que envolvem esses povos e grupos sociais, entendo que se trata de atribuir ao princpio da pluralidade o mesmo valor que atribudo ao princpio da dignidade humana. Conforme Sousa Santos, Meneses & Nunes (2006, p. 22) os termos conhecimento local, conhecimento indgena, conhecimento tradicional ou mesmo etnocincia tm surgido com frequncia na ltima dcada, com o objectivo (sic) de chamar a ateno para a pluralidade de sistemas de produo de saber no mundo. No caso da Amaznia os saberes das populaes ribeirinhas enfrentam um fluxo que varia em funo da vinculao de suas vidas e atividades produtivas que, por vezes, impem ritmos estranhos aos das populaes modernas. Morn (1990) destaca que, ao longo de sua existncia histrica, as populaes indgenas e caboclas da Amaznia tm-se adaptado ao meio ambiente fsico amaznico e s foras externas da sociedade colonial e nacional., em que os graus de adaptao ao meio ambiente amaznico que cada uma tem atingido variam em funo das foras histricas, sociais e poltico-econmicas que os tm influenciado.

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A importncia internacional dos conhecimentos tradicionais, bem como o papel das populaes locais e das comunidades indgenas, foi reconhecida com o advento da Conveno sobre Diversidade Biolgica. No caso de finalidades biotecnolgicas, o relevo de tais conhecimentos desconsidera sua incluso no conceito de biodiversidade, desviando para um carter estritamente comercial, a partir do qual o valor e agregado a capacidade de localizao de propriedades da diversidade biolgica com aplicao industrial. No se trata, neste caso, de um direito individualmente protegido, mas sim de uma comunidade e seu bem imaterial, seus conhecimentos, costumes e cultura aplicveis de forma prtica no uso de propriedades naturais. O Brasil assinou e ratificou a Conveno sobre Diversidade Biolgica, incluindo em seu ordenamento a Medida Provisria n. 2.186-16/01 para regulamentar o acesso aos recursos genticos, respeitando os conhecimentos tradicionais e incluindo a repartio de benefcios para sua proteo. Isso caracteriza a mudana na conscincia etnocntrica do mundo ocidental, pois as formas de saber que no fossem oriundas do mundo urbano-industrial eram consideradas como ultrapassadas ou mesmo sem valor.

1.6 A DIGINIDADE DAS POPULAES TRADICIONAIS E O RESPEITO ALTERIDADE E AO MULTICULTURALISMO A conservao ambiental in situ13 tem sido viabilizada, dentre outras formas, por meio da criao de reas protegidas no mundo todo. Esse tipo de interveno implica um ordenamento territorial e tem sido bastante polemizado desde seu incio pela constatao de que, embora supostamente selvagens e estritamente naturais, as reas ambientalmente protegidas so, frequentemente, habitadas por grupos culturais muito diversos, cujos modos de vida passam a ser submetidos s regras da conservao ambiental, constituindo o que se denomina como um primitivismo forado. (BARRETTO FILHO, 2006, p. 113)

Conservao de ecossistemas e habitats naturais e a manuteno e recuperao de populaes viveis de espcies em seus meios naturais e, no caso de espcies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas propriedades caractersticas (Art. 2, inciso VII, da Lei n 9.985/2000).

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Por outro lado, tem crescido, tanto nacional como internacionalmente, a constatao de que grupos minoritrios e etno-culturais devem ter garantias e direitos especficos que lhes permitam manter seus modos de vida diversos dentro dos Estados nacionais em que vivem (TAYLOR, 1993). E a civilizao implica, como ressaltou Lvi-Strauss (1952, p.89), a coexistncia de culturas que oferecem entre si a mxima diversidade e consiste mesmo nessa coexistncia. A civilizao mundial s poderia ser coligao, escala mundial, de culturas que preservassem cada uma sua originalidade. o que se denomina multiculturalismo a designar, originalmente, a coexistncia de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades modernas (SOUSA SANTOS, 2003, p. 26). No somente no PARNA-Ja, mas em diversas unidades de conservao do Brasil residem populaes indgenas, remanescentes de quilombos e populaes tradicionais. Essas novas formas de ocupao e uso comum dos recursos naturais emergiram pelo conflito, delimitando territorialidades especficas, e no tiveram at 1988 qualquer reconhecimento legal. As territorialidades especficas podem ser entendidas aqui como resultantes dos processos de territorializao, apresentando delimitaes mais definitivas ou contingenciais, dependendo da correlao de fora em cada situao social de antagonismo (ALMEIDA, 1989, p. 183). Distinguem-se, neste sentido, tanto a noo de terra, estrito senso, quanto daquela de territrio, conforme foi sublinhado, e sua emergncia atm-se a expresses que manifestam elementos identitrios ou correspondentes sua forma especfica de territorializao (ALMEIDA,1989, p. 183-184). Ribeirinhos, faxinalenses, caiaras, criadores de fundo de pasto, quebradeiras de coco, seringueiros, castanheiros, pescadores artesanais, mangabeiros, laguistas, povos ilhus, cipozeiros, caiaras, dentre outros, constituem o modo de viver do povo brasileiro. Registre-se que a situao das comunidades tradicionais, como dito alhures, representa a garantia legal do ser e do lugar de uma determinada comunidade amaznica, tangenciando direito humano inserto no art. 1, inciso III, da CRFB/88: a dignidade da pessoa humana.

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A dignidade da pessoa est consagrada em vrios tratados internacionais de direitos humanos, dentre os quais o Pacto de San Jose da Costa Rica (art. 11). E a dignidade, conforme Carmen Lcia Antunes Rocha, um conceito em permanente processo de construo e desenvolvimento (1999, p. 24). SARLET (2005, p. 37), esboa o seguinte conceito sobre dignidade:
a qualidade intrnseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e considerao por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condies existenciais mnimas para uma vida saudvel, alm de propiciar e promover sua participao ativa e corresponsvel nos destinos da prpria existncia e da vida em comunho com os demais seres humanos.

A legislao brasileira infraconstitucional, Lei do SNUC (9985/2000) e respectivo decreto regulamentador (4.340/2002) estabelecem a transferncia compulsria dos moradores dessas reas, trazendo alteraes profundas s comunidades afetadas, de ordem tica, social, econmico, poltico e cultural e que, para algumas, etnias, possui simbolismo msticoreligioso. Gmez-Pompa & Kaus (1992) contestam a poltica ambiental de preservao dos ecossistemas. Para eles, essa poltica est baseada mais em crenas ocidentais sobre a natureza do que em realidade, uma vez que selecionamos o que deva ser preservado e de que maneira deva ser manejado. A partir da dcada de 70, a comunidade internacional comea a se importar com os crescentes conflitos envolvendo populaes e reas protegidas, com destaque para os conflitos com os grupos tnicos africanos que foram desalojados para criao de reas naturais protegidas. (BRITO, 2003, p.28) O marco dessa poca a Conferncia das Naes Unidas sobre o Ambiente Humano que ocorreu em 1972 e ficou conhecida como a Conferncia de Estocolmo. Pela primeira vez, num frum intergovernamental, foram discutidos problemas polticos, sociais e econmicos do meio ambiente global, com o intuito de se empreender aes corretivas. Uma de suas primeiras aes foi criar o PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente. Talvez o maior legado da Conferncia de Estocolmo tenha sido a insero definitiva das questes ambientais na agenda mundial e o estabelecimento do conceito de que os

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problemas ambientais transcendiam fronteiras, e que estavam relacionados a questes de ordem poltica, econmica, social e cultural (BRITO, 2003, p. 29). Em meados da dcada de 70, lanado o Programa Man and Biosfere (MAB) da UNESCO. Comeava-se assim a aceitar a realidade da ocupao humana em reas naturais protegidas e instalaram-se ao redor do mundo as Reservas da Biosfera que introduzem o conceito de desenvolvimento em equilbrio nas relaes entre o homem e seu ambiente (BRITO, 2003, p. 29). nesse contexto mundial que emerge, ao lado dos trabalhos preocupados com a degradao ambiental e a perda global da biodiversidade, a importncia do homem nesse processo, salientando que seu papel no era unicamente de destruidor, ou seja, nem todos contribuam para a destruio do ambiente, ao revs eram responsveis pela sua conservao. H, pois, a preocupao em estudar o conhecimento tradicional dos povos em relao ao meio ambiente, ressaltando a capacidade das comunidades de se valer de estratgias de conservao dos recursos naturais como forma de assegurar sua reproduo material e imaterial. Ou seja, essas comunidades atribuem valor aos recursos naturais: valor de uso e valor simblico. Diegues & Arruda (2001, p. 26) consideram a etnocincia como um dos enfoques que mais tem contribudo para o conhecimento das populaes tradicionais, partindo da lingustica para estudar os saberes das populaes humanas sobre os processos naturais, tentando descobrir a lgica subjacente ao conhecimento humano do mundo natural, as taxonomias e classificaes totalizadoras. O precursor dos estudos etnocientficos foi Claude Lvi-Strauss que, em 1962, publicou O Pensamento Selvagem (La pense sauvage). Lvi-Strauss estudou os sistemas de classificao indgenas, contrapondo-se aos funcionalistas (Malinowski e outros), argumentando que o conhecimento dos selvagens no est ligado unicamente s suas necessidades. Ele discute que o homem primitivo mais do que funcionalista; ele por observao conhecedor do que est no seu ambiente, mesmo que no lhe seja til:
[...] De tais exemplos, que se poderiam retirar de todas as regies do mundo, concluir-se-ia, de bom grado que as espcies animais e vegetais no so conhecidas porque so teis; elas so consideradas teis ou interessantes porque so primeiro conhecidas. (LVI-STRAUSS, 1989, p.24)

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Berta Ribeiro (1995) descreve em detalhes o modo de vida dos ndios do Alto Rio Negro (com destaque para os Desna), inclusive as tcnicas de identificar e classificar os recursos naturais disponveis em seu ambiente e como conseguiram desenvolver estratgias e tcnicas adequadas de manejo com vistas preservao. A autora se props tambm a uma reflexo sobre a criatividade das culturas indgenas dos trpicos; o saber ecolgico que, por meio da dominao dos mecanismos de reproduo das plantas e animais, desenvolveu estratgias adequadas sua preservao; a herana indgena para a cultura brasileira, viva at hoje, no somente entre os habitantes do interior, mas tambm entre os urbanos, de forma to integrada que a maioria das pessoas nem sabe que so legados indgenas. (BERTA RIBEIRO, 1995) No posfcio O sabor do saber indgena, Berta Ribeiro (1995, p.237) aduz que a vocao da Amaznia a biodiversidade, a policultura (em pequenas glebas e maneira indgena), produtos florestais, artesanato e ecoturismo. So imensas as potencialidades da floresta na medida em que fora manejada inteligentemente. (...) As reservas de biodiversidade da Amaznia ainda existem por causa dos territrios indgenas, porque a se conservam ecossistemas inteiros. Berta Ribeiro conclui sua obra ao afirmar que os ndios e as populaes originais alm de terem desenvolvido conhecimentos sobre biologia amaznica, criaram tambm mecanismos de autoconteno para proteg-la e preserv-la, e que esses mecanismos no se tratam de arcasmos ou de sobrevivncias obsoletas. O atrasado, o retrgrado transformar em capim a floresta amaznica (BERTA RIBEIRO, 1995, p.238). Todo ser humano tem direito a querer melhores condies de sobrevivncia, facilidades proporcionadas pela sociedade urbana, sem que isso destrua seu modo de vida tradicional que continuamente realimentado, h vrias geraes, pela transmisso oral e pela vivncia prtica. A partir da dcada de 80, destacaram-se os estudos sobre as formas de gesto dos recursos naturais e da organizao sociocultural das populaes tradicionais. Desenvolveu-se um campo de ao com inovadoras perspectivas de valorizao dos saberes tradicionais na gesto dos recursos naturais, que vai alm do aspecto cognitivo, os quais so designados pela sigla TEK (Traditional Ecological Knowledge). (BORGES et al., 2004, p. 65) O TEK, conforme Borges et al (2004, p. 65), foi associado tutela do direito de propriedade intelectual direcionado para proteo de agricultores e coletores, ante as

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empresas capitalistas que se apropriam do conhecimento desses povos sem pagar por isso. No campo de referncias da gesto, nas organizaes internacionais (p.ex. IUCN, UNESCO), alm da sigla TEK, tais saberes so nomeados por TEKMS (Traditional Ecological Knowledge and Management Systems). Na verdade, trata-se, consoante Comparato (1993, p. 78), do reconhecimento do direito fundamental prpria identidade, no campo sociocultural. O fato que identidade, segundo Wolkmer (2001, p. 130), deve ser compreendida como o reconhecimento de subjetividades libertadas e como recuperao de experincias compartilhadas por coletividades polticas, sujeitos coletivos e movimentos sociais, como um processo de ruptura o qual permite que movimentos sociais se tornem sujeitos de sua prpria histria. E esse reconhecimento no significa que a isonomia deva ser abolida ou restringida, pois indispensvel entender que todos os grupos sociais tm igual direito preservao de suas caractersticas culturais, sem privilgios de nenhuma espcie (COMPARATO, 1993, p. 78) Geertz refora o reconhecimento das diferenas entre "aqueles que pensam diferente de mim", pois justamente nessas assimetrias que reside a possibilidade do respeito alteridade, diferena: "temos que conhecer um ao outro, e viver com este conhecimento, ou acabaremos como nufragos num mundo beckettiano de solilquios em coliso." (1999, p. 30) O objetivo, segundo Geertz, pensar sobre uma diversidade de uma maneira bem diferente da que estamos acostumados. (1999, p. 31). A diversidade tambm possui proteo em tratados internacionais, como o caso da Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural14, na qual consta que a defesa da diversidade cultural um imperativo tico, inseparvel do respeito dignidade do ser humano (art. 4). Na Constituio brasileira, o multiculturalimo est presente em todos os dispositivos dedicados proteo da cultura, impondo-se ao Estado a obrigao de proteger as manifestaes culturais dos diferentes grupos sociais e tnicos (SANTILLI, 2005, p. 75).

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Conveno aprovada e discutida na 31. Sesso da Conferncia Geral da UNESCO, em Paris, no dia 02 de novembro de 2001.

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Vale destacar que os direitos culturais so considerados, na Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural, como marcos da diversidade cultural e parte integrante dos direitos humanos, e, portanto, so universais, indissociveis e interdependentes (art. 5). O reconhecimento devido no s uma cortesia que devemos aos demais: uma necessidade humana vital (TAYLOR, 1993, p. 45). No caso do territrio, a partir do momento em que h identificao com este so criados laos de afetividade com ele. Esse novo arranjo socioespacial (a unidade de conservao) impe uma ruptura, um desenraizamento, um separar o homem do seu cho. O sentimento o de estar sendo apartado de suas razes, de sua origem, mesmo que os moradores permaneam nas unidades de conservao. Simone Weil descreve o desenraizamento como uma doena quase mortal para as populaes que so atingidas por ele:
[...] Cada ser humano precisa ter mltiplas razes. Precisa receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermdio dos meios dos quais faz parte naturalmente. (...) No deve alimentar-se das contribuies externas seno depois de as ter digerido, e os indivduos que o compem no devem receb-las seno atravs dele. H desenraizamento todas as vezes que h conquista militar, e nesse sentido a conquista quase sempre um mal. (...) quando o conquistador permanece estrangeiro ao territrio de que se tornou possuidor, o desenraizamento uma doena mortal para as populaes submetidas. Atinge o grau mais agudo quando h deportaes macias ou h supresso brutal de todas as tradies locais. (WEIL, 2001, p. 44)

Ainda sobre o desenraizamento, Weil argumenta que, mesmo sem interveno militar, esse pode ocorrer no interior dos pases pela fora da dominao econmica:
[...] o poder do dinheiro e a dominao econmica podem impor uma influncia estrangeira a ponto de provocar a doena do desenraizamento.

Furlan (2000, p. 470) refora que as populaes locais precisam ser enxergadas pelos administradores como aliados na conservao do ambiente natural:
At hoje h uma enorme resistncia do movimento ambientalista, bem como dos rgos pblicos, a qualquer tentativa de permitir a adequada permanncia dessas populaes nas reas que j ocupam. Recusam-se a reconhecer que as prticas tradicionais (intencionalmente ou no) permitiram a conservao da rea. Desprezam o conhecimento para o desenvolvimento de formas sustentveis de aproveitamento da floresta. Tambm no conseguem perceber que, se estas populaes permanecerem na rea, usufruturias que so da floresta, ser do

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interesse delas proteg-las de eventuais aes predatrias, facilitando o controle sobre a rea como um todo.

A via da negociao o caminho mais provvel para propiciar um convvio mais amistoso entre administrao e moradores. S que esse procedimento exige que os moradores estejam organizados para que possam lutar por causas comuns, deixando as desavenas pessoais para serem debatidas internamente. Essa luta pelo interesse comum no algo novo. Ihering assim j se posicionava:
Quem defende o seu direito, defende tambm na esfera estreita deste direito, todo o direito. O interesse e as consequncias do ato dilatam-se portanto muito para l de sua pessoa. (IHERING, 1997, p. 46)

a busca pela sua personalidade, da sua honra, do seu sentimento do direito, do respeito a si prprio, pois a fora do direito reside no sentimento, exatamente como a do amor (IHERING, 1997, p. 38) O Direito, conforme Streck (1988, p. 53), no est imune/blindado contra as transformaes ocorridas no campo filosfico, pois um fenmeno inserido em uma intersubjetividade racional, a ser produzida e garantida com base nos processos de compreenso, em um mbito de constituio de entendimento, Primack & Rodrigues (2001) discutem que o estabelecimento de UCs revelia dos moradores locais gera uma explorao dos recursos muito superiores ao modo de vida daquela populao pela falta de alternativas ou pela revolta. Tal forma de excluso pode vir a se tornar o crculo vicioso a que aludiu Ost (1995) em que os grupos humanos que migram tendem a conquistar as reas ecolgicas mais frgeis, o que acarretar na degradao dos recursos naturais, unida a uma misria acrescida, que por seu turno gera uma presso cada vez mais destrutiva sobre os meios j fragilizados. A Constituio Federal encontra-se em harmonia com os instrumentos jurdicos internacionais de proteo da biodiversidade e sociodiversidade dos quais o Brasil signatrio, rompendo com sistema constitucional anterior, pois reconhece o Estado brasileiro como pluritnico e multicultural, garantindo a todos o pleno exerccio dos direitos culturais, apoiando e incentivando a valorizao e a difuso das manifestaes culturais populares, indgenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatrio nacional (art. 215, caput, e 1), que se traduzem dentre outros em suas formas de expresso e em seus modos de criar, fazer e viver (art. 216, incisos I e II).

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Assim, o respeito aos direitos das populaes que sempre ocuparam os espaos, atualmente denominados de proteo especial, , portanto, direito tambm fundamental e integra o rol de garantias de um Estado Democrtico de Direito. A expulso de populaes sem a indicao de aspecto objetivo de que degradam o meio ambiente em que vivem, ofende a dignidade da pessoa humana e a criao de uma rea protegida, que possui tutela constitucional, sem atentar para a presena de populaes tende a violar outro postulado constitucional: a dignidade da pessoa humana. Desse modo, o termo de compromisso objeto desta dissertao propicia, em ltima anlise, o resgate da dignidade dessas comunidades.

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2 O PARQUE NACIONAL DO JA 2.1 ANTECEDENTES DOS PARQUES NACIONAIS NO MUNDO

A necessidade das sociedades modernas de preservar espaos naturais ldicos, aprazveis est ligada s crenas do homem como destruidor. Durante a existncia, a histria registra que o homem tem degradado o meio ambiente. Na antiguidade, j se verifica a preocupao em demarcar espaos protegidos; h relatos que o imperador Ashoka, em 252 a.C., determinou a proteo de certos animais, peixes e florestas. Registra-se tambm outro imperador indiano, Babar, no sculo XV, criou territrios para proteo de rinocerontes, salientando que a atividade fim dessas reas era para a caa desses animais. (WALLAUER, 1998) A civilizao Inca imps limites fsicos e sazonais para a caa de determinadas espcies e na Europa Medieval, a palavra parque significava um espao no qual animais estavam sob a responsabilidade do soberano. (MORSELLO, 2008, p. 22) Danos causados pela poluio das indstrias instaladas em Londres e nos seus arredores j era percebidos nos sculos XVI e XVII, assim como sua superpopulao. (THOMAS, 1988) Em fins do sculo XVIII, a natureza passou a ser considerada refgio espiritual do homem. No s cientistas, mas pessoas comuns se interessaram por estudar espcies animais e vegetais. Partiram dessas pessoas as primeiras campanhas, na Inglaterra, pela preservao da natureza. (THOMAS, 1988) As reas criadas na Europa tinham como principal objetivo a proteo de recursos para assegurar aristocracia o exerccio da caa e a proviso de madeira. (QUINTO, 1983) Thomas cita trechos de um relatrio escrito na dcada de 1830 sobre a relao espiritual do homem com a natureza, mas com a indicao de que os animais haviam sido criados para servir aos homens:
[...] Deus criou o boi e o cavalo para labutar a nosso servio, disse o naturalista William Swainson; o co para demonstrar lealdade afetuosa e as galinhas para exibir perfeita satisfao em um estado de parcial confinamento. O piolho era indispensvel, explicava o reverendo Willian Kirby, porque fornecia poderoso incentivo aos hbitos de higiene. (1988, p. 24-25)

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Outro autor que discorre sobre a natureza e o homem Simon Schama em sua obra Paisagem e Memria, de 1996. Ele prope uma escavao feita abaixo do nvel de viso convencional com a finalidade de recuperar os veios de mito e memria existentes sobre a superfcie (SCHAMA, 1996, p. 25). Antunes (2001, p. 322) afirma que a primeira reserva natural foi estabelecida na Frana, no ano de 1853, em Fointainebleau, oficializada por decreto de 13 de agosto de 1861, tendo sido o ato consequncia de um movimento organizado por um grupo de artistas e intelectuais, cuja finalidade era a de preservao da mencionada rea natural. As teorias mais elaboradas no sentido de se estabelecer reas protegidas tiveram como marco a concepo desenvolvida nos Estados Unidos no sculo XIX que culminou com a criao do primeiro Parque Nacional, Yellowstone National Park, em 1872, com grande valorizao da beleza cnica do local e com o objetivo de proporcionar benefcio e lazer populao. (MORSELLO, 2008, p. 27) A preocupao inicial com a beleza cnica das reas protegidas foi dando lugar a uma importncia cada vez maior para a preservao da natureza, conservao da biodiversidade e com outros propsitos ligados preocupao ecolgica e tambm com o objetivo de fazer frente ao processo de desenvolvimento desenfreado que causa a destruio e a transformao dos ambientes naturais. Pode-se verificar que a criao dos primeiros parques se d na Europa (em pases como a Inglaterra) e nos Estados Unidos. O mesmo homem que destruiu e dominou a natureza confina pores desta para proteg-la de seus prprios atos. A conscincia ecolgica vai surgir no rastro de desastres ecolgicos e do histrico de devastao. Nos Estados Unidos, a criao do Parque Nacional de Yellowstone objetivava oferecer atrativos para uso pblico, principalmente de carter recreativo e turstico com exaltao da beleza cnica, mas vetava a presena fixa do homem. Ratificam-se, ento, os propsitos da corrente preservacionista para a qual a natureza concebida longe da presena humana (wilderness - reas selvagens no habitadas permanentemente). Schama (1996) questiona o conceito ou crena de natureza selvagem, dando como exemplo a criao de Yosemite Valley (1864) com o lugar de significado sagrado para o povo americano, um verdadeiro den, uma natureza selvagem, sem mculas humanas:

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evidente que o prprio ato de identificar o local pressupe nossa presena e, conosco, toda a pesada bagagem cultural que carregamos. (...) afinal a natureza selvagem no demarca a si mesma, no se nomeia. (...) Tampouco a natureza selvagem venera a si mesma. Foram necessrias visitas santificantes de pregadores da Nova Inglaterra (...) para represent-la como o parque sagrado do Oeste. (SCHAMA, 1996, p. 17)

Os idealizadores de Yosemite optaram por deixar o homem fora da sua rea, tanto as companhias de minerao quanto os ndios Ahwahneechee foram meticulosa e energicamente expulsos do idlico cenrio (SCHAMA, 1996, p. 18). Tal concepo de conservao da natureza nominada in situ, mais difundida no mundo, que prope o estabelecimento de um sistema de reas naturais protegidas. Segundo o Manual de planificadn de sistemas nacionales de reas silvestres protegidas en America Latina, os Sistemas Nacionais de reas Naturais Protegidas so:
[...] un conjunto de espacios naturales protegidos, de relevante importncia ecolgica y social, pertenecientes a la nacin, que ordenadamente relacionados entre si y atravs de su proteccin e manejo, contrbuyen al logro de determinados objetivos de conservacin y, a su vez, al desarrollo sostenido de la nacin. (MOORE & OMARZBAL, 1988, p. 2)

A criao de parques nacionais ou de outras reas naturais protegidas considerada por Machlis & Tichnell (1985) um fenmeno global. O pressuposto inicial que fundamentou a existncia de reas naturais protegidas foi o da socializao do usufruto, por toda a populao, das belezas cnicas existentes em determinados territrios. Por exemplo, ao criar o Parque Nacional de Yellowstone, o Departmento do Interior norte-americano determinava que a rea protegida que se situava no curso superior do rio Yellowstone seria:
[...] reservada y separada de la colonizacin, ocupacin o venta bajo las leves de los Estados Unidos y dedicada y apartada para parque pblico o terrenos de recreo para el beneficio y disfrule del pueblo; y toda persona que se eslablezca u ocupe este parque o cualquiera de sus partes, excepto las posteriormente estipuladas, ser considerada infractor y por tanto ser desalojada del lugar. (AMEND, 1991, p. 3)

Yellowstone teve tambm sua histria de conflito e derramamento de sangue. O parque foi criado na rea dos ndios shoshones e a proteo tanto da natureza quanto dos ndios constava do plano original de criao do parque. No entanto, quando de sua efetiva

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criao, os nativos eram vistos como demnios vermelhos rastejantes. Muitos foram expulsos de forma velada e centenas de outros foram mortos em conflitos com as autoridades locais. Anos depois, a administrao do parque foi transferida para o exrcito americano. (DIEGUES, 2004 e MORSELLO, 2008) Vale dizer que antes da criao do Servio Nacional de Parques, o Exrcito dos EUA protegeu o espao territorial criado, no perodo de 1886 a 1918, tendo instalado o Forte Yellowstone, para essa finalidade 15. Assim, o valor recreativo e a beleza cnica, pouco a pouco, deram lugar conservao de habitats e espcies, sendo este considerado atualmente como o principal objetivo de criao de UCs. (MORSELLO, 2001) O caso particular da criao do Parque Nacional de Yellowstone representou, nos EUA, uma vitria dos presercionistas, dentre os quais o naturalista John Muir, na poca seu maior expoente. Segundo pesquisa procedida na pgina do Servio Nacional de Parques dos Estados Unidos da Amrica (EUA) na rede mundial de computadores
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, a histria da presena

humana em Yellowstone remonta h cerca de 11 mil anos. Desse perodo at incio do sculo XIX, vrios grupos de nativos americanos residiam no parque e utilizavam o espao como territrios de caa e rotas de transporte. Yellowstone est localizado nos estados norte-americanos do Wyoming, Montana e Idaho, situados no meio-norte e oeste dos EUA. O nome do primeiro parque nacional dos Estados Unidos e do mundo foi dado pela tribo Minnetaree que chamava o rio do seu interior de Mitse a-da-zi, que se traduz como "Rock Yellow River" (Rio da Rocha Amarela). Em 1797, o gegrafo e explorador David Thomson usou a verso em ingls Yellow Stone, a partir da qual, pela juno das duas palavras, o rio passou a ser chamado e que, futuramente, daria nome ao parque: Yellowstone.17 Segundo os propsitos da corrente nominada preservacionista, o conceito de biodiversidade no contempla a presena humana (wilderness - reas selvagens no habitadas

Disponvel em <http://www.nps.gov/yell/historyculture>. Acesso em 06.07.2010 (traduo livre). Ibidem. 17 Disponvel em <http://www.nps.gov/yell/planyourvisit/upload/Yell257.pdf>. Acesso em 06.07.2010 (traduo livre).
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permanentemente), sendo o naturalista John Muir, na poca seu maior expoente. (DIEGUES, 2004). Para os preservacionistas, as reas virgens deveriam receber proteo total, sendo permitidas em seu interior apenas as atividades de carter recreativo ou recreacional. (MCCORMICK, 1992) Esse pressuposto, que estava no bojo das formas de percepo da sociedade urbana perante a natureza, no era o nico. Conservacionistas, com pressupostos diferentes, tambm acreditavam ser possvel a explorao dos recursos naturais do continente de forma racional e sustentvel. Seu maior representante foi Gifford Pinchot, para o qual a conservao deveria se basear em trs princpios: desenvolvimento (o uso dos recursos pela gerao presente); preveno do desperdcio; e o desenvolvimento dos recursos naturais para todos. (MCCORMICK, 1992) O aumento de reas protegidas em todo o mundo com um ciclo de criao nos anos 20 e 30 e com grande impulso a partir dos anos 50 e o grande nmero de propsitos dessas reas provocaram a proliferao dos mais diversos tipos de parques e outras reas protegidas com grande diversificao de objetivos e significados. Em 1948, foi criada a UICN (Unio Internacional para a conservao da Natureza) 18, que passou a desempenhar um papel fundamental para o desenvolvimento da filosofia de reas naturais protegidas, atuando tambm no assessoramento para o planejamento e manejo dessas reas em nvel mundial. O conceito de preservao era bem distinto em pases da Europa, como a Inglaterra, onde imperava o conceito de criao de reas naturais para pesquisa de fauna e flora. O Countryside Act de 1949 amplia a conceituao e define parques como sendo reas de finalidades mltiplas que poderiam ser alteradas pela ocupao e expanso humanas. Em funo disso, a UICN passou a classificar os parques ingleses numa nova categoria de manejo: paisagens protegidas. Em 1962, a UICN realiza o Primeiro Congresso Mundial de Parques Nacionais, no qual foram discutidos, de modo inaugural, critrios para classificao de espaos protegidos, passando a fazer recomendaes sobre as diversas terminologias e objetivos dos tipos de unidades de conservao. (MORSELLO, 2001)

18 rgo vinculado ONU (Organizao das Naes Unidas), com o objetivo de obter cooperao internacional nas reas de conservao da natureza.

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Ainda nesse Primeiro Congresso, era latente a influncia da concepo norteamericana de parques com base no modelo Yellowstone de parque sem gente, tanto que em 1964, quase um sculo aps a criao de Yellowstone, o Wilderness Act, nos Estados Unidos, ratifica que as unidades de conservao devem ser reas onde o homem apenas visitante e no morador e onde a beleza natural essencial para estimular os sentimentos de enlevo do homem moderno. Em 1972, realizado o segundo Congresso Mundial, em Yellowstone, incentivando a demarcao de novas unidades de conservao e a proteo absoluta dessas reas de preservao. (QUINTO, 1983) O Terceiro Congresso Mundial de Parques Nacionais, em Bali, em 1982, destacou a expanso do nmero de reas protegidas no mundo e foi considerado como uma importante estratgia para a conservao dos recursos naturais do planeta. Outrossim, apareceram discusses sobre a utilizao sustentvel dos recursos da natureza, recomendando-se a criao de reas com a categoria de uso mltiplo e sustentvel, assim como as decises sobre planejamento e manejo dos recursos naturais deveriam ser tomadas com as comunidades residentes. (DIEGUES, 2004) A quinta recomendao do Plano de Ao de Bali de Parques sugeriu "promover a ligao entre a gesto da rea protegida e desenvolvimento sustentvel", pois as pessoas que vivem dentro ou perto de reas protegidas podem apoiar a sua gesto. (SCHERL et al., 2004, p. 4) Em 1992, em Caracas, ocorreu o Quarto Congresso Mundial de Parques Nacionais e reas Protegidas, cujo ttulo Povos e Parques ressaltou a importncia de outras categorias de UCs, alm dos parques nacionais. Entre outras, as recomendaes foram para que a gesto de reas protegidas fosse realizada de uma maneira sensvel s necessidades e preocupaes dos povos locais. (SCHERL et al., 2004, p. 5) Ainda no Quarto Congresso Mundial de Parques Nacionais e reas Protegidas, as comunidades, organizaes no governamentais e instituies do setor privado foram encorajadas a participar ativamente na implantao e gerenciamento de parques nacionais e reas protegidas. (SCHERL et al., 2004, p. 5) A necessidade de encontrar formas inovadoras e eficazes para a gesto das reas protegidas no mbito do desenvolvimento sustentvel e estratgias de reduo da pobreza

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foram os destaques do Quinto Congresso Mundial de Parques e reas Protegidas, realizado em Durban, frica do Sul, em setembro de 2003. (SCHERL et al., 2004, p. 5) Assim, percebe-se que a dinmica dos debates internacionais caminha em direo pacificao do uso sustentvel dos recursos pelas comunidades locais, realidade ainda diversa, pois sequer possvel manter tais populaes no espao em que vivem. Similar ao modelo precursor no mundo, a ideologia isolacionista do homem em relao natureza foi adotada no Brasil, conforme se verifica pelo histrico dos parques nacionais.

2.2 ANTECEDENTES DOS PARQUES NACIONAIS NO BRASIL

O Brasil apresenta, desde o incio de sua histria moderna, grandes conflitos entre a forma de seu desenvolvimento e o uso e conservao da natureza. Os recursos naturais eram utilizados de forma equilibrada por um grande nmero de naes indgenas que habitavam as terras brasileiras, mas a partir da chegada dos portugueses se iniciou a devastao do pau-brasil (Caesalpinia echinata) e logo a seguir uma grande intensificao de abertura de reas para o estabelecimento da cultura da cana-de-acar. Essas atividades, concentradas na costa, causaram grandes devastaes na floresta. Com a descoberta do ouro em Minas Gerais e em outros locais longe da costa, iniciou-se a ocupao do interior do pas e as consequentes agresses ao ambiente natural nesses locais. No incio do sculo XIX, Jos Bonifcio de Andrada e Silva props a criao no Brasil de um setor administrativo especfico para as matas e bosques, similar ao concedido aos setores de Obras Pblicas, Minerao, Agricultura e Indstria. Jos Bonifcio declarava sua preocupao com as matas, pois representavam um grande livro, cujo segredo e riquezas poderiam ser arrebatados pelo conhecimento cientfico. (DIEGUES, 2004, p.112) Em 14 de junho de 1937, criado o primeiro Parque Nacional, em Itatiaia, no Rio de Janeiro, por meio do Decreto n 1.713, do Governo Getlio Vargas, com o objetivo de incentivar a pesquisa e o lazer para a populao urbana. (QUINTO, 1983 apud DIEGUES, 2004) Uma semelhana em relao a Yellowstone diz respeito ao fato de esses primeiros parques nacionais brasileiros terem sido instalados em reas onde havia concentrao

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populacional urbana e de atividades humanas, almejando uma tomada de conscincia para conservao de ecossistemas remanescentes, ao passo que, no caso dos parques norteamericanos, havia uma concepo de suposta intocabilidade humana (considerando o tratamento aos povos que habitavam). Essa situao percebida pela localizao do Parque Nacional de Itatiaia, cujas terras pertenciam a Irineu Evangelista de Souza, Visconde de Mau, e foram adquiridas pela Unio para a instalao de dois ncleos coloniais, que no foram bem sucedidos. 19 Como unidade de conservao, a histria de Itatiaia mais antiga: no perodo de 1920 a 1927, foi reserva florestal e de 1927 at sua criao, possua o modelo de estao biolgica20. A proposta de criao do Parque Nacional de Itatiaia surgiu ainda no sculo XIX (1876) com Andr Rebouas, tendo como modelo os parques americanos, propondo a criao de parques nacionais na Ilha do Bananal e em Sete Quedas, sendo que, em 1914, foram criados por decreto os dois primeiros parques nacionais do pas, no ento territrio do Acre. Essas iniciativas, porm, foram ignoradas em termos de gesto e mesmo em termos legais e essas reas nunca foram implementadas. (MEDEIROS, 2007) Prevaleceu, no iderio de criao dos parques nacionais brasileiros, o conceito de natureza que exclua o homem igualmente ao seu precursor norte-americano, Yellowstone; a ideia de separar o natural do no natural estava presente em concepes preservacionistas mundo afora e tambm no Brasil, por meio das polticas pblicas. Como alerta Furlan (2000), as polticas pblicas brasileiras enxergam homens e natureza como opostos e formulam estratgias de conservao reforando essa separao. Medeiros (2007) salienta que o Cdigo Florestal de 1934, institudo pelo Decreto n 23.793, de 23 de janeiro de 1934, tornou possvel o estabelecimento de unidades de conservao tal qual o modelo atual 21. Pdua (2002) tece crticas aos procedimentos de criao das unidades de conservao no Brasil, enfatizando a sua proliferao sem base tcnica e, s vezes, sem necessidade.

19 20

Disponvel em: <http://www.icmbio.gov.br>. Acesso em 03.07.2010. Disponvel em: <http://www.icmbio.gov.br>. Acesso em 03.07.2010. 21 Apesar de no Cdigo Florestal de 1934 no existir as tipologias previstas na Lei n. 9985/2000 (SNUC): unidade de proteo integral e unidade de uso sustentvel (art. 7.).

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Em 1939, foram criados dois outros parques nacionais, o do Iguau22 e o da Serra dos rgos23, ambos estabelecidos na Mata Atlntica, j que era a rea de maior visibilidade e que apresentava, mesmo na dcada de 1930, nvel crtico de devastao. (DEAN, 1997, apud MEDEIROS, 2007) Aps os trs parques (Itatiaia, Iguau e Serra dos rgos), entre a dcada de 1940 e o incio do regime militar, diversos parques foram criados 24. No Cdigo Florestal promulgado em 1965 25, foram apenas duas as menes a parques nacionais:
Art. 26. Constituem contravenes penais, punveis com trs meses a um ano de priso simples ou multa de uma a cem vezes o salrio-mnimo mensal, do lugar e da data da infrao ou ambas as penas cumulativamente: d) causar danos aos Parques Nacionais, Estaduais ou Municipais, bem como s Reservas Biolgicas; Art. 42. omissis 2 Nos mapas e cartas oficiais sero obrigatoriamente assinalados os Parques e Florestas Pblicas.

Sobre os dispositivos acima transcritos do Cdigo Florestal emergem as seguintes consideraes: todos devem saber onde os parques esto situados (art. 42, 2), pois a ao danosa (sem especificar qual) uma contraveno (art. 26, d). Quatorze anos depois do Cdigo Florestal, foi editado o regulamento dos parques nacionais 26, contendo o conceito, objetivos e outras disposies especficas sobre essas reas protegidas (tais como plano de manejo, vedao de introduo de espcies estranhas, dentre outras):
CONCEITO: Art. 1. 1. Para os efeitos deste Regulamento, consideram-se Parques Nacionais, as reas geogrficas extensas e

Dec. n 1.035, de 10.01.39. Dec. n 1.822, de 30.11.39. 24 Dec. n 25.865, de 24.11.48, cria o Parque Nacional de Paulo Afonso (BA); Dec. n 45.954, de 30.04.59, cria o Parque Nacional de Ubirajara (CE); Dec. n 47.446, de 17.12.1959, cria o Parque Nacional de Aparados da Serra (RS); Dec. n 47.570, 31.12.59, cria Parque Nacional do Araguaia; Dec. n 49.874, de 11.01.61, cria o Parque Nacional das Emas (GO); Dec. n 49.875, de 11.1.1961, cria o Parque Nacional do Tocantins (GO), alterado posteriormente para Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (Dec. n 70.492, de 11.05.1972); Dec. n 50.455, de 14.04.1961, cria o Parque Nacional do Xingu (MT); Dec. n 50.646, de 24.5.1961, cria o Parque Nacional de Capara (MG/ES); Dec. n 50.774, de 08.06.61, cria o Parque Nacional das Sete Cidades (PI); Dec. n 50.922, de 06.07.61, cria o Parque Nacional de So Joaquim (SC); Dec. n 50.923, de 06.07.61, cria o Parque Nacional do Rio de Janeiro (aps alterado para Parque Nacional da Tijuca Dec n 60.183, de 08.02.67; Dec. n 241, de 29.11.61, cria o Parque Nacional de Braslia (DF) e Dec. n 242, de 29.11.61, cria o Parque Nacional do Monte Pascoal (BA). 25 Lei n 4.771, de 15.09.1965. 26 Dec. n 84.017, de 21.09.1979.
23

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delimitadas, dotadas de atributos naturais excepcionais, objeto de preservao permanente, submetidas condio de inalienabilidade e indisponibilidade no seu todo. OBJETIVOS: Art. 1. 2. Os Parques Nacionais destinam-se a fins cientficos, culturais, educativos e recreativos e, criados e administrados pelo Governo Federal, constituem bens da Unio destinados ao uso comum do povo, cabendo s autoridades, motivadas pelas razes de sua criao, preserv-los e mant-los intocveis.

Apesar da pretensa intocabilidade, o prprio regulamento, indiretamente, reconhece a existncia de populaes no interior dos parques nacionais:
Art 2. Sero considerados Parques Nacionais as reas que atendam s seguintes exigncias: I Possuam um ou mais ecossistemas totalmente inalterados ou parcialmente alterados pela ao do homem, nos quais as espcies vegetais e animais, os stios geomorfolgicos e os " habitats ", ofeream interesse especial do ponto de vista cientfico, cultural, educativo e recreativo, ou onde existam paisagens naturais de grande valor cnico. (grifo nosso)

Na Amaznia, a criao dos parques nacionais foi inspirada na Teoria dos Refgios27 proposta por Haffer, em 1969, segundo a qual a biodiversidade no Brasil, notadamente na regio amaznica, estaria associada s transformaes climticas que ocorreram durante e depois das glaciaes (principalmente no Pleistoceno28), perodo em que o continente sulamericano teria passado de uma expanso da semi-aridez a uma posterior retropicalizao. No perodo de semiaridez, a caatinga teria sido a vegetao dominante, ao passo que as florestas tropicais ficaram restritas a regies isoladas entre si - da a denominao refgios -, at se expandirem novamente durante a retropicalizao. Portanto, segundo essa teoria, a diversidade e a distribuio diferencial das espcies animais e vegetais em florestas tropicais, hoje contnuas, poderiam ser explicadas pelas amplas mudanas climticas que teriam provocado alteraes no sistema florestal, no espao total do que hoje a Amaznia.

27 Segundo Moon (2010, p. 74), estudos publicados pela Revista Science, tentam demonstrar que a biodiversidade amaznica no remonta ao trmino da idade do gelo. muito anterior, descontruindo a Teoria dos Refgios, que era o modelo utilizado, at ento, para explicar a origem da biodiversidade nas florestas tropicais. 28 Uma das fases do Perodo Tercirio, o ltimo do perodo glacial, durante o qual ocorreu profundas mudanas climticas na Amaznia, e o clima ficou muito seco, transformando a regio que era formada por florestas em savanas e cerrados, onde restaram algumas ilhas de vegetao florestal, denominados de refgio de Pleistoceno. Com a volta das condies atuais, a floresta recobriu a savana, e essas ilhas foram uma das responsveis pela atual diversidade biolgica da Floresta Amaznica ( BENATTI, 1997, p.5).

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No perodo de semiaridez, as espcies permaneceram isoladas nos refgios de florestas tropicais, submetidas a presses seletivas particulares e, portanto, a diferentes processos de subespecializao. Assim sendo, descobrir a regio original desses refgios poderia fornecer importantes subsdios para a compreenso da tropicalidade em polticas de conservao ambiental. (ABSBER, 1992) Essa Teoria influenciou a opo do ento Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) para eleger as reas de refgios como prioridades de conservao da natureza na Amaznia. Durante o perodo militar, imperava a viso nacionalista de defesa do territrio que, associada ao desenvolvimentismo tecnocrata, refletiu na poltica de meio ambiente com a criao de mais parques nacionais29, mantendo-se o carter centralizador e excludente, em relao s populaes tradicionais. Segundo Moraes (1997, p.13), a apropriao de novos lugares, com suas populaes, riquezas e recursos naturais, era o mvel bsico da colonizao. Isso imprime uma marca na sociedade gestada na colnia, que tinha na conquista territorial um forte elemento de identidade. A prtica de ignorar os direitos tradicionais com a criao de novas unidades de conservao tem sido denominada ecolonialismo, devido sua semelhana com os abusos histricos dos direitos dos nativos praticados por foras colonialistas de pocas passadas. (COX E ELMQVIST, 1993 apud PRIMACK E RODRIGUES, 2001) Assim, sob a tica que comanda o processo de instalao do colonizador, se expressa num padro extensivo (do ponto de vista do espao) e intensivo (do ponto de vista dos recursos naturais) de uso do solo. Nesse quadro, as populaes so vistas como apenas um meio de se retirar a riqueza natural. (MORAES, 1997, p.13) Moraes (1997) destaca ainda que construir o pas uma ideia recorrente na histria, cujo pressuposto foi a ocupao dos imensos espaos ou fundos territoriais no explorados, alimentando os projetos nacionais de integrao, que perpassam o imaginrio dos

Dec. n 68.172, de 4.2.1971, cria o Parque Nacional da Serra da Bocaina (RJ/SP); Dec. n 70.355, de 3.4.1972, cria o Parque Nacional da Serra da Canastra (MG); Dec. n 73.683, de 19.2.1974, cria o Parque Nacional da Amaznia (AM/PA); Decreto n 83.548, de 05.06.79, cria o Parque Nacional da Capivara (PI); Dec. n 83.550, de 5.6.1979, cria o Parque Nacional do Pico da Neblina (AM); Dec. n 84.019, de 21.09.79, cria o Parque Nacional Pacas-Novos (RO); Dec. n 84.913, de 15.07.80, cria o Parque Nacional Cabo Orange (AP); Dec. n 86.392, de 24.09.81, cria o Parque Nacional Pantanal Mato-Grossense.

29

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governantes brasileiros at hoje se alterando, evidentemente, os objetivos e focos dos planos estratgicos de integrao:
[...] a formao do Estado do Brasil vai estar continuamente marcada por uma forte orientao de cunho geopoltico: garantir a soberania e a integridade dos fundos territoriais ser sempre sua misso bsica. Da um aparelho de Estado construdo tendo por referncia o domnio do territrio e no o bem-estar do povo. Isso se ilustra numa mxima que atravessa a ao estatal ao longo de nossa histria: tutela do povo em nome da integridade do espao. (MORAES, 1997, p. 15)

Diegues & Arruda (2001) criticam o modelo norte-americano de preservao ambiental centrado nas reas protegidas de uso indireto, que tem no Parque Yellowstone sua maior expresso. Ainda conforme os autores, a importao desse tipo de reas protegidas, no incio do sculo XX, pela frica, sia e Amrica Latina, sofreu resistncias das populaes locais. Por ser um modelo originariamente norte-americano, esse tipo de conservao no se enquadrou a outras realidades de pases com distintas formas de ocupao, como o caso do Brasil. (DIEGUES E ARRUDA, 2001) Dessa forma, o contexto dos espaos territorialmente protegidos apresenta similar peculiaridade. So modelos operacionais importados, em que no h previso, mais at restrita a presena do homem no interior da rea, mesmo as populaes que habitavam antes da criao dessas unidades. Nesse contexto e com base nesse modelo foi criado o Parque Nacional do Ja.

2.3 ANTECEDENTES DO PARQUE NACIONAL DO JA

Evans & Meggers (1965, p. 64) informam que possivelmente o homem penetrou no Novo Mundo atravs do Estreito de Bering, h cerca de 40.000 anos. Por volta de 12.000 anos passados, seno antes, os imigrantes chegaram ao extremo sul da Amrica. Neves (2006, p. 23) acentua que datas ao redor de 9200 a.C. foram obtidas na escavao da Pedra Pintada, uma gruta localizada no atual municpio de Monte Alegre, no Par. De qualquer modo, diferentes partes da Amaznia j eram ocupadas em torno de 7000 a.C. (NEVES, 2006, p. 24)

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No caso do PARNA-Ja, os registros que se tm da presena humana na regio tambm so confirmados pelos achados arqueolgicos na rea. Conforme Barretto Filho (2001, p. 215-6), Michael Heckenberger, diretor do Projeto Arqueolgico da Amaznia Central, coordenou em setembro de 1996 um levantamento arqueolgico preliminar nos arredores da confluncia do Rio Ja com o Rio Negro, nos marcos da elaborao do Plano de Manejo do PNJ e, naquela ocasio, em pouco menos de uma semana de trabalho, identificou 16 stios arqueolgicos:
[...] Alguns dos fragmentos de cermica encontrados esto provavelmente afiliados fase Itacoatiara, enquanto que outros, decorados, estariam associados Tradio Policroma Amaznica, especificamente sub-tradio Guarita. A equipe tambm reconheceu, como em outras partes da Amaznia, uma correlao entre a presena de terra preta e restos arqueolgicos. (BARRETTO FILHO, 2001, p. 216)

Tais achados pertencem aos chamados paleondios, antecessores dos atuais povos indgenas. (MEGGERS, 1987, p. 64) Segundo Souza & Machado (1998, p. 39), naes de milhares de habitantes, como a brava nao Muhra, viviam na boca do rio Negro, dominando as vrzeas frteis e os corpos de terra firme que se estendem entre a margem esquerda, a campina de Manacapuru e o vale do Ja. Benchimol (1977) menciona que os ndios que iniciaram a ocupao humana e os seus descendentes desenvolveram as suas matrizes histrico-culturais em ntimo contato com o ambiente fsico, adaptando-se s peculiaridades regionais e oportunidades econmicas oferecidas pela floresta, pela vrzea e pelo rio, deles retirando os recursos materiais de sua subsistncia. A paisagem do PARNAJa emblemtica na evoluo dos rios amaznicos, desde o perodo do plioceno 30. (SOUZA & MACHADO, 1998, p. 33) Conforme Souza & Machado (1998, p. 33), quase toda a Amaznia formada por processos geolgicos do quaternrio 31, possuindo:
[...] Regies de depresso como o mdio rio Negro esto cobertas por sedimentos originados especialmente no pleistoceno. A malha de rios serpenteantes, a hesitao dos leitos e sua drenagem das guas fazem dessa parte

Trmino do perodo Tercirio Superior, com durao em torno de seis milhes de anos. nesse perodo que surgem os Homindeos. (SOUZA, 1977, p. 101) 31 a ltima grande diviso do tempo geolgico. Embora no exista concordncia geral, considerado ter-se iniciado h aproximadamente 2 milhes de anos, estendendo-se at o presente. (GUERRA et al., 2009, p. 241)

30

66

central de ntidas caractersticas geolgicas. Partes de seus portentos e de sua beleza vem da formao que remonta os tempos glaciais.

O vale principal do rio Amazonas, onde est localizado o rio Ja, encontra-se no ponto central da Amrica do Sul, que compreende uma rea erodida formada durante a era glacial wurmiana
32

, que fez baixar o nvel dos mares, h 18.000 anos, com os mares a 130

metros abaixo do seu nvel, as reas de drenagem do rio Amazonas foram atingidas, formando um imenso lago interior (SOUZA & MACHADO, 1998, p. 34). O Parque Nacional do Ja, no entanto, segundo Souza & Machado (1998, p. 32), nunca sofreu as consequncias dos ciclos econmicos que determinam a ocupao do vale do Rio Negro, pois sempre foi uma rea de passagem e refgio temporrio. O PARNA-Ja foi criado durante o perodo do regime militar, perodo no qual o Estado, atravs dos Planos Nacionais de Desenvolvimento I e II (PND I e II) e, mais especificamente, o POLAMAZNIA33 determinava duas iniciativas aparentemente antagnicas para fomentar o seu povoamento: a do desenvolvimento e a da conservao. Assim, o parque surgiu nos interstcios de locais onde havia projetos desenvolvimentistas, tais como a modernizao do setor florestal e a expanso e modernizao da fronteira agrcola na regio amaznica. Em um local que, segundo relatrio dos eclogos (SCHUBART et al., 1977 apud BARRETTO FILHO, 2001) que fizeram a primeira expedio rea com vistas definio de uma rea protegida, era praticamente inabitado o que mais tarde evidenciou-se ao contrrio. A importncia do ecossistema da regio do PARNA-Ja possua, poca que antecedeu sua criao, defensores de lados opostos: uns defendiam a grande presena de endemismo do local (WETTERBERG et al., 1976, apud BARRETTO FILHO, 2001), baseados na teoria de refgios do pleistoceno, enquanto outros alegavam a inexistncia de importncia endmica na regio (FORESTA, 1991, apud BARRETTO FILHO, 2001). Atualmente essa discusso j no mais polemizada nesses termos: fez-se inquestionvel o fato de que importante conservar o PARNA-Ja. De acordo com o Plano de Uso Pblico do Parque Nacional do Ja (AUBRETON, 2002), no ano de 1977, uma expedio realizada pelos alunos do curso de ps-graduao em

32 33

Relativo a wrm: quarta e ltima glaciao do Pleistoceno. (SOUZA,1977, p. 137). Programa e Polos Agropecurios e Minerais da Amaznia, criado pelo Decreto n 74.67, de 25 de setembro de 1975.

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Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia (INPA) produziu um relatrio que deu impulso criao do PARNA-Ja. Com base nesses estudos, foi proposta, em 1979, a criao de uma Reserva Biolgica (REBIO), em seguida, transformada em Parque Nacional, devido s restries das REBIO visitao pblica. O PARNA-Ja foi, ento, criado em 1980.

2.4 CARACTERIZAO E FUNDAMENTO LEGAL DO PARQUE NACIONAL DO JA

O PARNA-Ja situa-se no Estado do Amazonas, aproximadamente 200km ao noroeste de Manaus e possui 2.272.000 hectares de reas pertencentes aos municpios de Novo Airo e Barcelos. o segundo parque do pas em extenso e uma das maiores reservas de floresta tropical mida e intacta do mundo, com rea maior que o Estado de Israel no Amap, com 3.867.000 hectares 35. No Amazonas, o rio comanda a vida, verdade inexorvel, no lapidar ttulo da obra de Tocantins (2000), e dos cursos dgua o homem amaznico obtm seu sustento e sua sobrevivncia. Para o homem amaznico, para o ribeirinho, consoante Thiago de Mello (2005, p.27), na sua casa, na sua comida, no seu trabalho de cada dia, o regime das guas um elemento constante no trabalho de cada dia, salientando que tambm so ciclos econmicos. Para o homem amaznico, as condies de trabalho so inseparveis das guas (WITKOSKI, 2010, p. 33). Vrias localidades amaznicas e vrios cursos dgua tm seus nomes associados a peixes, por exemplo, a comunidade objeto desta dissertao reside em uma unidade de conservao (UC) de proteo integral, o Parque Nacional do Ja (PARNA-Ja tambm designado por PNJ).
34

,e

somente menor em extenso do que o Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque,

34 35

No Almanaque Abril (2001, p. 99) consta que a rea de Israel de 2.070.000ha. Disponvel em: <http://www.icmbio.gov.br>. Acesso em: 15.06.2010.

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O parque tem o mesmo nome de origem tupi (ya) do rio que banha a regio e de um enorme peixe que vive em suas guas, um dos maiores peixes brasileiros, o ja (Paulicea luetkeni). Uma das peculiaridades mais marcantes do PARNA-Ja o fato de proteger totalmente a bacia de um rio extenso (o Rio Ja, possuindo cerca de 450 km), um ecossistema de guas escuras 36. Alm do Parque Nacional do Ja, institudo pelo Decreto n 85.200, de 24 de setembro de 1980, existem outros seis parques nacionais no Amazonas: Parque Nacional do Pico da Neblina37, Parque Nacional Nascentes do Lago Jari38, Parque Nacional de Anavilhanas39, Parque Nacional da Amaznia40, Parque Nacional do Juruena41 e Parque Nacional Campos Amaznicos42, salientando que apenas o Ja e os trs primeiros encontramse exclusivamente no Estado. Criado pelo Decreto n. 85.200/1980, o PARNA-Ja abarca praticamente toda a bacia hidrogrfica do rio Ja na sua rea principal. Os seus limites principais estabelecidos pelo decreto so os que se seguem, conforme a figura a seguir:
Art 1 criado, no estado do amazonas, na bacia do rio ja, com rea estimada de 2.272.000 hectares (dois milhes duzentos e setenta e dois mil hectares), o Parque Nacional do Ja, subordinado ao Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF, autarquia vinculada ao Ministrio da Agricultura, compreendido dentro do seguinte permetro: o ponto inicial a confluncia do Rio Ja com o Rio Negro e a partir deste sobe pela margem direita do Rio Ja at a foz do Rio Carabinani e continua por este, em sua margem direita at a sua nascente principal, seguindo os divisores de guas deste rio com o Igarap A, do Rio Ja com o Rio Cunauaru, Igarap Timb Titic e Igarap Sebastio; continuando pelo Igarap Maruim e posteriormente pela margem esquerda do Rio Pauini e Rio Unini, indo desembocar novamente no Rio Negro, e pela margem esquerda deste ltimo rio at o ponto inicial desta descrio.

36 Benchimol (1977, p. 526) salienta que os rios de gua preta (o Negro, o Ja, dentre outros), so caracterizados por estabilidade relativa de seus leitos; pequena incidncia de eroso fluvial; encostas ngremes e altas falsias marginais; solos arenosos e areno-argilosos do plat tercirio; cidos e fortemente laterizados, ausncia de sedimentos e argilas em suspenso em suas guas; presena de cido hmico, responsvel pela cor preta de suas margens; pobreza de sais minerais, escassez de peixes, animais, insetos e plantas aquticas e submersas, denominados rios da fome. 37 Decreto n 83.550, de 05.06.1979 (localizado no Municpio de So Gabriel da Cachoeira, Amazonas). 38 Decreto s/n, de 05.05.2008 (localizado nos Municpios de Tapau e Beruri, ambos no Amazonas). 39 Lei n 11.799, de 29 de outubro de 2008 (localizado no Municpio de Novo Airo, Amazonas). 40 Decreto n 73.683, de 19.02.1974 (localizado em reas dos Estados do Amazonas e Par). 41 Decreto s/n, de 05.06.2006 (localizado em reas dos Estados do Amazonas e de Mato Grosso). 42 Decreto s/n, de 21.06.2006 (localizado em reas dos Estados do Amazonas e de Rondnia).

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Figura 1. Mapa com a localizao do PARNA-Ja.

Fonte: Borges et al (2004, p.5).

Fazendo comparao com um Estado da Federao, segundo Barretto Filho (2005, p. 45), o PARNA-Ja um Estado de Sergipe dentro do Amazonas. Das UC existentes no Brasil, o Parque Nacional da Serra da Capivara, o Parque Nacional do Iguau e o Parque Nacional do Ja so stios do Patrimnio Natural Mundial da UNESCO 43. No PARNA-Ja existem ambientes representativos dos ecossistemas amaznicos, com uma das unidades de conservao mais representativas de bacias de guas pretas na Amaznia central: florestas de terra firma, florestas de igap, campinarana, campinas, capoeira e campos alagveis, alm dos ambientes aquticos (rios, igaraps e lagos). (FVA, 1998, p.30) O acesso ao PARNA-Ja, partindo de Manaus, ocorre por via fluvial, pelo Rio Negro ou pela Rodovia AM070, que liga Manaus aos Municpios de Iranduba e Manacapuru, distando cerca de 70 km. Partindo de Manacapuru, h a Rodovia AM-352 que alcana o

43

Disponvel em: <http://www.iphan.gov.br/patrimnoniocultural/bensdobrasilnalistadopatrimoniomundial>. Acesso em 15.06.2010.

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Municpio de Novo Airo, 98 km depois. A partir de Novo Airo, o acesso somente ocorre por via fluvial. O PARNA-Ja tambm integra o Mosaico do Baixo Rio Negro, que alcana 11 reas protegidas 44, conforme a figura a seguir apresentada: Figura 2. Mapa com o Mosaico do Baixo Rio Negro

Fonte: Fundao Vitria Amaznica (2010), s.n.

O PARNA-Ja, junto com outras reas, compe o Corredor Central da Amaznia, atravs do Projeto Corredores Ecolgicos 45, que um componente do Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais Brasileiras PPG 7. O Projeto tem como principal objetivo a conservao in situ da diversidade biolgica das florestas tropicais do Brasil, por meio da

Alm do PARNA-Ja, fazem parte do mosaico do Baixo Rio Negro: RESEx Unini, Parque Estadual Rio Negro Setor Sul; Parque Estadual Rio Negro Setor Norte; APA Margem Direita do Rio Negro; APA Margem Esquerda do Rio Negro; Estao Ecolgica de Anavilhanas; Reserva de Desenvolvimento Sustentvel do Tup; APA M.E Tarum Au-Tarum Mirim. 45 Os corredores ecolgicos so pores de ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando unidades de conservao, que possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a disperso de espcies e a recolonizao de reas degradadas, bem como a manuteno de populaes que demandam para sua sobrevivncia reas com extenso maior do que aquela das unidades individuais (art. 2, XIX, da Lei n. 9.985/00).

44

71

interao de UCs pblicas e privadas em corredores ecolgicos selecionados. Segundo o disposto no site da Secretaria de Desenvolvimento Sustentvel do Amazonas:
[...]este projeto apresenta uma nova estratgia de conservao da biodiversidade, indo alm do paradigma das ilhas biolgicas constitudas pelas unidades de conservao, para propor o manejo integrado de grandes extenses de terra mediante o uso gradativo de seus recursos, desde a conservao estrita at o aproveitamento sustentado. 46

Por fim, o PARNA-Ja tambm faz parte da Reserva da Biosfera

47

da Amaznia

Central, que o principal instrumento do Programa MaB (Man and Biosphere), tambm da UNESCO, que busca aprofundar os conhecimentos para a conservao dos Patrimnios Natural e Cultural, visando promoo do desenvolvimento sustentvel nas biorregies constitutivas do planeta. Essa sobreposio de reconhecimentos vindos de diversas instncias, alm de traduzir a importncia biolgica da rea, constitui uma situao bastante intrigante do ponto de vista poltico, pois se trata de intervenes de entidades internacionais (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura, UNESCO, e Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais do Brasil, PPG7) em assuntos de gesto ambiental e cultural localizados num determinado Estado, pas, municpios, naes (indgenas). Concernente titularidade da terra, a maior parte da rea formada por terras devolutas do Estado do Amazonas. Sob domnio privado, h cerca de 40 mil hectares, que representam 1,76% da extenso do parque. Na poca do recadastramento realizado pela Fundao Vitria Amaznica (FVA), em 1996, havia 886 pessoas distribudas em 143 famlias na regio. Esses moradores desenvolvem atividades de pesca, extrativismo e agricultura de subsistncia e detm a posse de pequenas parcelas de terra s margens do Rio Ja, cuja extenso e bacia esto totalmente inseridas no parque, e nas margens do Rio Unini, limite norte da rea. (FVA/IBAMA, 1998) Dada a complexidade da floresta amaznica e as incontveis possibilidades de se adentrar ou abordar sua ecologia e seus ecossistemas, o veredicto final sobre a importncia ou

46 47

Disponvel em: <http://www.sds.am.gov.br/programas_02.php?cod=1153>. Acesso em: 10.07.2010. A Reserva da Biosfera um modelo de gesto integrada, participativa e sustentvel dos recursos naturais, que tem por objetivos bsicos a preservao da biodiversidade e o desenvolvimento das atividades de pesquisa cientfica, para aprofundar o conhecimento dessa diversidade biolgica, o monitoramento ambiental, a educao ambiental, o desenvolvimento sustentvel e a melhoria da qualidade de vida das populaes (Art. 41, da Lei n. 9.985/00).

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no de se preservar uma determinada rea possivelmente muito abrangente em face da escolha dos dados ou abordagem a serem utilizados. O fato do PARNA-Ja contar com cinco diferentes mecanismos
48

para fortalecer a

conservao da sua biodiversidade at agora no resultou em nenhuma ao concreta para solucionar sua situao fundiria. De fato, as concepes de como a biodiversidade deve ser protegida de cada uma destas instncias varia um pouco, e a sobreposio destes diversos mecanismos jurdicos e polticos, nacionais, regionais e internacionais talvez contribuam para complexificar a implantao do PARNA-Ja nos termos previstos pelo SNUC. H uma distino metodolgica referente ao grupo de atores relacionados ao PARNAJa. So eles: os ex-moradores e os moradores. Ambos apresentam especificidades e diferenciaes e tambm semelhanas entre si, de modo que, rigorosamente falando, muitos poderiam ser classificados tanto como ex-moradores, quanto como moradores. De qualquer modo, o foco da presente dissertao dirigido aos moradores do parque, embora as mobilizaes de ambos os grupos tm ou podem ter efeitos claros sobre o outro grupo, como no caso da Ao Civil Pblica (APC) dos ex-moradores, que foi vinculada criao da RESEX Unini, pleiteada pelos atuais moradores. Inicialmente, a ideia da FVA (antes da Lei do SNUC ser aprovada) era de que a populao residente na regio pudesse permanecer na rea, apesar da instituio do parque. (FVA, 1998, p.30) Se o Projeto de Lei n 2.282/92, referente ao SNUC, tivesse sido sancionado integralmente, isso seria permitido, pois, de acordo com ele, uma UC de proteo integral que tivesse sido criada anteriormente promulgao do SNUC e tivesse reas ocupadas por populaes tradicionais, poderia ter sua tipologia modificada, em sua parte ocupada por estas populaes, como Reserva Extrativista ou Reserva Ecolgico-Cultural. A FVA coloca explicitamente essa inteno no seu livro A Gnese de um Plano de Manejo49: o caso do Parque Nacional do Ja. (FVA, 1998, p. 99).

1) Parque Nacional; 2) Stio do Patrimnio Natural Mundial da UNESCO; 3) Reserva da Biosfera; 4) Mosaico do Baixo Rio Negro e 5) Projeto Corredores Ecolgicos. 49 Plano de manejo o documento tcnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservao, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da rea e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantao das estruturas fsicas necessrias gesto da unidade (Art. 2, 17, Lei 9.985/00).

48

73

Assim sendo, conforme a Mensagem Presidencial n 967, de 18 de julho de 2000, coube veto ao art. 56 e seus incisos, sendo o inciso I, por contrariar o interesse pblico e o inciso II, por afrontar a Constituio Federal. Consideram-se como moradores do PARNA-Ja as pessoas que vivem no parque, mesmo que: 1) tenham casa construda na cidade, como um investimento ou precauo com relao ao momento que tero que deixar o parque; 2) tenham parte da famlia morando na cidade para dar seguimento educao formal dos filhos; 3) passem temporadas na cidade visitando parentes, vendendo e comprando mercadoria ou trabalhando em algum emprego temporrio; 4) passem um tempo na cidade por motivos de sade. Com a promulgao da Lei do SNUC, a presena de agrupamentos humanos no era mais autorizada nos espaos territoriais protegidos dos parques nacionais:
Art. 11. O Parque Nacional tem como objetivo bsico ecossistemas naturais de grande relevncia ecolgica possibilitando a realizao de pesquisas cientficas e o de atividades de educao e interpretao ambiental, contato com a natureza e de turismo ecolgico. a preservao de e beleza cnica, desenvolvimento de recreao em

Aps a promulgao da Lei do SNUC, no houve a previso da possibilidade de alterao da classificao da unidade de conservao, pelo fato de o art. 56 e incisos do Projeto de Lei n 27/1999 terem sido vetados pelo Presidente da Repblica 50. Estas as razes do veto:
"O inciso I do art. 56, ao obrigar o Poder Pblico a promover o reassentamento de populaes tradicionais, estabelecendo, inclusive, o prazo de cinco anos para tanto, aborda matria alheia ao Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza. O reassentamento de populaes matria relativa poltica fundiria do Governo Federal, no se admitindo que esta lei venha a abordar tema to dspar problemtica relativa s unidades de conservao. Ademais, tornar obrigatrio o reassentamento de populaes presentes no interior de unidades de conservao j existentes pode suscitar a ocupao irregular dessas reas. O inciso II do art. 56 tambm merece veto. Ao determinar a reclassificao das unidades de conservao do Grupo de Proteo Integral pelo Poder Pblico, esse dispositivo autoriza o Poder Executivo

Esse era o texto (vetado) do projeto de lei: Art. 56. A presena de populao tradicional em uma unidade de conservao do Grupo de Proteo Integral criada em funo de legislao anterior obriga o Poder Pblico, no prazo de cinco anos a partir da vigncia desta Lei, prorrogvel por igual perodo, a adotar uma das seguintes medidas: I - reassentar a populao tradicional, nos termos do art. 42 desta Lei; ou II - reclassificar a rea ocupada pela populao tradicional em Reserva Extrativista ou Reserva de Desenvolvimento Sustentvel, conforme o disposto em regulamento.

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a tornar menos restritiva a proteo dispensada rea. Dessa forma, contraria o art. 225, 1o, inciso III, da Constituio Federal, que determina que somente lei poder alterar os espaos territoriais especialmente protegidos, vedada qualquer utilizao que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteo.

Assim, volta-se a uma discusso que perdura desde a concepo do primeiro parque nacional no mundo, com a excluso de populaes do interior desses espaos protegidos, aspecto que, em relao ao PARNA-Ja, tem sido atenuado pela gesto compartilhada dessa rea protegida, envolvendo outros atores alm dos agentes estatais.

2.5 A GESTO DO PARQUE NACIONAL DO JA

O rgo gestor do PARNA-Ja foi, a princpio, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), conforme o art.3 do Decreto n 85.200/80, tendo instalado uma base flutuante na foz do rio Ja e iniciou sua atuao no local meses depois do decreto acima. Em 1989, o IBDF foi extinto por intermdio da Medida Provisria n 28/89 (convertida na Lei n 7.732/89) e, em seguida, a MP n 34/89 (convertida na Lei n 7.735/89) extinguiu a SEMA e a SUDEPE, criando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA). O IBAMA era vinculado ao Mistrio do Interior e foi formado pela unio de outros rgos que desempenhavam atividades bem diferentes. Eram eles os mesmos extintos pelas leis citadas: a SUDHEVEA, o IBDF, a SEMA e a SUDEPE. A administrao do IBAMA cabia a um presidente e cinco diretores, nomeados pelo Presidente da Repblica. Foram transferidos ao IBAMA a competncia e os mesmos direitos e obrigaes que antes eram conferidos aos rgos que se fundiram para form-lo. Em 1990, foi criada a Secretaria do Meio Ambiente da Presidncia da Repblica SEMAM, da qual o IBAMA era o rgo gestor da questo ambiental. O IBAMA era o gestor da questo ambiental, responsvel por formular, coordenar, executar e fazer executar a Poltica Nacional do Meio Ambiente e da preservao, conservao e uso racional, fiscalizao, controle e fomento dos recursos naturais renovveis, at o advento da Medida Provisria n 366, de 26 de abril de 2007, quando a gesto das

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unidades de conservao federais de proteo integral e de uso sustentvel foi transferida ao Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio). Na mesma data em que foi apresentada a Medida Provisria n 366/2007, foi editado o Decreto n 6.100, de 26 de abril de 2007, que aprovou a estrutura regimental do ICMBio e criou os cargos em comisso e funes gratificadas para o referido rgo. Na exposio de motivos para a criao do ICMBio, a ento Ministra Marina Silva, declara que o objetivo bsico da criao dessa novel autarquia federal :
[...] promover maior eficincia e eficcia na execuo de aes da poltica nacional de unidades de conservao da natureza e proposio, implantao, gesto, proteo, fiscalizao e monitoramento das unidades de conservao institudas pela Unio, bem como na execuo das polticas relativas ao uso sustentvel dos recursos naturais renovveis, apoio ao extrativismo e s populaes tradicionais nas unidades de conservao de uso sustentvel institudas pela Unio. Ademais, caber ao Instituto Chico Mendes fomentar e executar programas de pesquisa, proteo, preservao e conservao da biodiversidade, de acordo com as diretrizes proferidas pelo Ministrio do Meio Ambiente. 51

No mesmo documento acima mencionado, a atuao do IBAMA seria reservada para


[...] execuo das polticas nacionais de meio ambiente relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, autorizao de uso dos recursos naturais e fiscalizao, monitoramento e controle ambiental, observadas as diretrizes emanadas do Ministrio do Meio Ambiente. 52

A mencionada medida provisria (n 366/2007) foi convertida na Lei n 11.516, de 28 de agosto de 2007 53, mantendo-se a vinculao do ICMBio ao Ministrio do Meio Ambiente, estabelecendo que cabe ao referido rgo
[...] a execuo da poltica nacional de unidades de conservao da natureza, referentes s atribuies federais relativas proposio, implantao, gesto, proteo, fiscalizao e monitoramento das unidades de conservao institudas pela Unio (Art. 1o , inciso I).
51

Exposio de Motivos Interministerial N 23/MMA/MP/2007, de 25.04.2007. Disponvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Exm/EMI-23-MMA-MP.htm>. Acesso em: 09.05.2010. 52 Ibidem. 53 Aps a prorrogao da vigncia da Medida Provisria n 366, de 26 de abril de 2007, por 60 dias, a partir de 26 de junho de 2007, nos termos do 7 do art. 62 da Constituio Federal, com a redao dada pela Emenda Constitucional n 32, de 2001, conforme Ato do Presidente da Mesa do Congresso Nacional n. 40, de 18 de junho de 2007.

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um dos objetivos do ICMBio o apoio ao extrativismo e s populaes tradicionais apenas nas unidades de conservao de uso sustentvel institudas pela Unio (Art. 1o , inciso II). Coube-lhe ainda o exerccio do poder de polcia ambiental para a proteo das UC institudas pela Unio (Art. 1o , inciso IV). O ICMBio responsvel pela gesto das unidades de conservao distribudas em todo o territrio nacional, no total de 290, abrangendo, aproximadamente, 8% do Brasil, sendo 126 UC de proteo integral, e desse grupo, perfazendo 4% do territrio, 62 parques nacionais. A organizao no governamental (ONG) Fundao Vitria-Amaznica (FVA), criada em 19 de janeiro de 1990, comeou a sua atuao no PARNA-Ja, por intermdio de um levantamento socioeconmico por amostragem. A partir dele, em 1992, planejou-se uma expedio multidisciplinar unidade, que contou com membros da ONG, tcnicos do IBAMA e pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia (INPA) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que resultaria no Plano de Ao para a Consolidao do Parque Nacional do Ja, que objetivava servir de orientao autarquia gestora (FVA/IBAMA, 1998, p. 7). Em 1992, a FVA redigiu o Censo e Levantamento Socioeconmico dos Moradores do PARNA- Ja, em parceria com pesquisadores do INPA, da Fundao Nacional de Sade (FUNASA) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (EMBRAPA), cuja elaborao estava prevista no plano de ao. Em 1993, a ONG reuniu numa expedio o grupo de pesquisadores multidisciplinares que trabalhariam no parque, nos trs anos posteriores, e cujos estudos embasariam o Plano de Manejo. (FVA/IBAMA, 1998, p. 7-8) Ainda no ano de 1993, a FVA e o IBAMA oficializaram um termo de cooperao tcnica 54, que resultou no Plano de Manejo do parque, concludo em 1998. (FVA/IBAMA, 1998, p. 7)

A Fundao Vitria Amaznica, desde 1993 tem trabalhado em conjunto com o IBAMA atravs de um termo de cogesto com o IBAMA, sob o n 39/93, e a partir da por Termos de Cooperao Tcnica que vm sendo periodicamente renovados (FVA, 1998). O mais recente, e atual, foi o Acordo de Cooperao Tcnica n 07/2010, agora firmado com o ICMBio, assinado em 12.11.2010, cujo objeto a elaborao e a execuo de atividades relacionadas conservao ambiental e o desenvolvimento da pesquisa cientifica no PARNA-Ja e RESEx-Unini, documento cujo extrato foi publicado no Dirio Oficial da Unio em 06.12.2010.

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Granziera (2009, p. 378) estatui que a responsabilidade pela gesto das Unidades de Conservao dos rgos e entidades do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), ou seja, a Administrao Pblica federal, estadual e municipal, cujos rgos e entidades detenham competncia para tanto. No comeo de 1995, o Plano de Ao Emergencial foi aprovado, embasando-se em discusses entre membros do IBAMA, da FVA, representantes dos moradores e de outras instituies. A ONG participou de reunies com o IBAMA, pesquisadores e residentes, como a I Reunio sobre Manejo e Conservao de Bichos de Casco (quelnios), em 1995, oportunidade em que:
[...] estiveram presentes mais de 150 pessoas, a maioria moradores do Parque, alm da secretria de Educao do municpio de Barcelos, um representante da prefeitura de Novo Airo, o superintendente estadual, o chefe do Ncleo de Unidades de Conservao e a equipe de educao ambiental do IBAMA, uma equipe de pesquisadores e consultores da FVA e do INPA. Essa reunio repassou os resultados da pesquisa sobre quelnios e envolveu os moradores no manejo deles dentro do PNJ. As propostas sugeridas para discusso foram: o zoneamento de lagos e de praias, a defesa de espcies ameaadas ou de distribuio restrita e o monitoramento da produo, comercializao e proteo. (FVA/IBAMA, 1998, p. 8)

O texto do Plano de Ao Emergencial elencou ainda a ocorrncia prvia ao Plano de Manejo de outras atividades que denominou de socioeducativas junto aos moradores, possibilitando mapear o uso de recursos naturais da unidade e combinar conhecimentos classificados como tradicionais e cientficos, indicando o envolvimento dos moradores. Tal situao traduz-se no princpio da participao o qual informa o Direito Ambiental que evidenciaria o dilogo entre todos os envolvidos: cogestores, pesquisadores, moradores, representantes dos rgos oficiais de conservao e prefeituras, e objetivaria alcanar o consenso mnimo necessrio para uma gesto eficiente da unidade. (FVA/IBAMA, 1998, p. 8-9) Resultante de um processo de construo que envolveu comunitrios, IBAMA e pesquisadores, o plano de manejo desemboca no termo de compromisso para assegurar a permanncia da comunidade tradicional no Parque Nacional do Ja que representa um avano nas relaes entre o IBAMA e os comunitrios da rea, ao pactuar o compromisso e a responsabilidade dos envolvidos no uso e proteo dos recursos naturais.

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2.6 A POPULAO TRADICIONAL DO PARQUE NACIONAL DO JA Apesar da presente dissertao estar voltada para um instrumento jurdico, que ser doravante apresentado, com base na concluso de MALINOWSKI (1978, p.34), claro est que para exercer a tarefa de estudar o homem deve-se estudar o domnio que a vida exerce sobre ele, razo pela qual no se pode deixar de fazer a inter-relao homem-natureza, inclusive no prisma histrico. Sero apresentadas evidncias histricas da presena do homem branco 55, do negro e povos ancestrais ndios na rea do PARNA-Ja, salientado que no referido espao territorial no h terra indgena, como rea juridicamente protegida. Os territrios em que vivem as comunidades tradicionais contam fragmentos de sua memria sobre o passado vivido no stio, do seu presente sofrido e de um futuro incerto. Como muito bem alertado por Toledo (1988 apud PRIMACK E RODRIGUES, 2001, p.282), no h como resguardar a herana natural de um pas, sem que seja dado valor equivalente para a herana cultural:
difcil planejar uma poltica de conservao em um pas que caracterizado pela diversidade cultural de sua populao rural, sem levar em considerao a dimenso cultural; o profundo relacionamento que existe desde os remotos tempos entre natureza e cultura. Cada espcie de planta, grupo de animais, tipo de solo e paisagem quase sempre tem uma expresso lingustica correspondente, uma categoria de conhecimento, um uso prtico, um sentido religioso, um papel em um ritual, uma vitalidade individual ou coletiva. Salvaguardar a herana natural do pas sem resguardar as culturas que lhe tem dado vida, reduzir a natureza a algo sem reconhecimento, esttico, distante, quase morto.

Na Amaznia, como em diversos outros lugares do planeta, o homem se fixa onde existe gua, porque a gua a fonte mais importante para a agricultura e para a evoluo da prpria vida social (ARAJO, 2003, p. 11). Sternberg (1998, p. 15) salienta que quanto s relaes entre a gua e a sociedade humana, o elemento lquido universalmente condio indispensvel para a presena do homem, em que a canoa representa para o varziano da Amaznia, o papel do cavalo ou do jegue, para o sertanejo de outras terras (STERNBERG, 1998, p. 16).

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Brito (2001, p. 68) salienta que branco so todos os homens que no so ndios, nem negros, nem caboclos.

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Em toda a vida do homem da Amaznia, esto presentes artefatos extrados da natureza: a canoa, a casa, a moda, os utenslios (ARAJO, 2003, p. 582). A existncia de moradores nos limites do PARNA-Ja remonta a muitas geraes. Todavia, tal como se apresentam na atualidade, as comunidades foram constitudas por famlias extensas ou por juno de vrios grupos domsticos, visando ao acesso e usufruto de recursos comunitrios obtidos junto s instituies pblicas, como escola, motor de luz, entre outros servios. No incio, esses agrupamentos so nomeados como localidades, mas ao obterem bens e servios pblicos, passam a ser reconhecidos primeiramente por seus moradores e posteriormente pelos agentes externos, como comunidades. No caso dos europeus, h relatos histricos de que os portugueses firmaram sua presena na Amaznia a partir de 1660, com a construo dos fortes da Barra e Barcelos. As potencialidades do rio Negro, a mo-de-obra abundante, alm da posio estratgica foram os argumentos que motivaram os portugueses a investir na rea. (SOUZA & MACHADO, 1998) Registro da atuao portuguesa na rea do Rio Ja tambm apresentado por Loureiro (1978, p. 149) quando assevera que
[...] Pedro da Costa Favela, auxiliado por frei Teodsio de Viegas, em 1668, estabeleceu na foz do riacho Alurium, no rio Negro, uma misso, em 1732, transferida pelo carmelita Frei Jos de Madalena para a foz do rio Ja, sob a invocao de Santo Elias, que mais tarde tomou o nome de Airo. Nesta tarefa, tambm recebeu a preciosa ajuda dos ndios Tapajs.

Depois, em 1759, Santo Elias do Ja passou a ser denominada Airo (LOUREIRO, 1978, p. 152). No Sculo XVIII, os portugueses idealizam Barcelos como a sua capital mais ocidental na Amaznia, mandando para l o arquiteto e urbanista Antnio Jos Landi e como consequncia do Tratado de Madri, o governo portugus precisava estabelecer os limites agora estendidos de seus domnios na Amrica do Sul, formando a fronteira com as terras de Espanha. (SOUZA & MACHADO, 1998) Conforme Souza & Machado (1998, p. 129), Barcelos foi a primeira cidade brasileira a ter uma arquitetura no barroca.

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Fora das rotas de expanso comercial, tanto Barcelos como sua vizinha Santos Elias do Airo regrediram no desenvolvimento tencionado pelos portugueses, salientando que Santo Elias do Airo foi extinta, originando outro municpio: Novo Airo. Tanto portugueses como espanhis, no processo de conquista e ocupao, transplantaram e difundiram os valores e smbolos culturais europeus, tendo havido resistncia consolidao dessa conquista em face da rebeldia das populaes nativas, que se opunham escravido (BENCHIMOL, 2009, p.73). O povoamento da regio foi fazendo-se lentamente e quase sempre s margens dos rios (ARAJO, 2003, p.64), salientando que a partir de 1750, houve uma poltica de casamento inter-raciais estimulada pela coroa portuguesa na Amrica do Sul e implementada por Sebastio Jos de Carvalho e Melo, Marqus de Pombal (OLIVEIRA, 2008, p. 21). Benchimol (2009, p. 118) informa que no Amazonas, o rio Negro tinha apenas 710 escravos negros, o que vem confirmar a tendncia de concentrao do contingente da populao negra e mulata no baixo Amazonas e Belm, havendo uma pequena participao nos rios Negro e Solimes. O historiador Victor Leonardi (1999, p. 169) registrou a chegada dos precursores da famlia na primeira dcada do sculo XX, ou seja, como parte do processo de migrao de nordestinos para o vale do rio Ja, durante a poca de explorao de ltex e produo de borracha mais intensa na regio, entre 1880 e 1914. Em suas palavras:
[...] Esses negros da foz do Pau[n]ini vieram de Sergipe (...) na primeira dcada do sculo XX. Primeiro veio um casal, senhor Jacinto Francisco de Almeida e sua esposa, dona Leopoldina. No tiveram filhos. Mais tarde veio um sobrinho deles dois, chamado Jos Maria dos Santos. Desse Z Maria, descendem os negros mais antigos do rio Pau[n]ini, principalmente do lugar chamado Tambor Jacinto fixara-se no lugar chamado Arpo, e Z Maria, no Tambor [...].

O negro est presente no PARNA-Ja, em uma comunidade quilombola, o Tambor, que pode ser verificada na Figura 2. O ndio 56, o branco e o negro so as etnias que formam a identidade brasileira.

BRITO (2001, p. 51) salienta que a palavra ndio foi utilizada para nomear o homem ou grupos humanos que habitavam as terras americanas poca dos descobrimentos, sendo a categoria ndio uma criao da sociedade e da cultura e no das sociedades ou culturas indgenas.

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O amaznico o fruto do contato intertnico entre o ndio e o branco: ndio (matriz) + branco (matriz) = caboclo (nova identidade). (BRITO, 2001, p. 50) O homem amaznico integrou-se ao ecossistema, de modo que:
[...]as populaes originais, depois nativas e as tradicionais que se espalharam pela vasta plancie, tm demonstraes claras e evidentes de que possvel construir aqui sociedades harmnicas e bem adaptadas a esse ambiente natural. E os saberes que elas foram empiricamente adquirindo e armazenando, constituem hoje um patrimnio de valor incalculvel, pois so a fonte mais pura de conhecimento sobre a regio. (FONSECA, 2004, p.11)

Assim, as mestiagens que formaram o povo brasileiro e a populao amaznica se confrontam com a pretensa intocabilidade da rea do PARNA-Ja, uma vez que essa histria ocorreu nos municpios que ficam prximos referida unidade de conservao: Barcelos e Novo Airo. No caso do PARNA-Ja, na parte central da Amaznia, no h cachoeiras ou montanhas que impeam a vida social. So os rios, aqui, a base para um grande sistema de comunicaes entre as comunidades nacionais da Amaznia e as comunidades estrangeiras de toda a Hilia (ARAJO, 2003, p.37). A gua, pois, o veculo da sociabilidade. (ARAJO, 2003, p.37) Morn (1990a, p. 191) acentua que a populao distribui-se em funo do acesso rea de pesca e se dispersa de forma a controlar um territrio sobre o qual tem direitos e responsabilidades. Os cursos dgua aqui, conforme Arajo (2003, p. 38), tm o poder de estabelecer relaes sociais, de acelerar processos sociais, construir as ligaes do intra-humano. Todo o processo social da vida de relaes, na Amaznia, feito base substancial da gua. Benchimol (2009, p. 33) assevera que o homem amaznico da Amaznia tradicional, dos povos ribeirinhos dos baixos rios e do beirado 57 da calha central, sobrevive em todos os pequenos stios, povoados, vilarejos e cidades que se estabeleceram ao longo do rio Amazonas e seus afluentes. E assim procede a populao que habita os corpos aquticos do PARNA-Ja, distribuindo-se na margem dos rios, conforme se verifica na figura que se segue:

Beirado a margem dos rios principais, onde se fixaram os primeiros desbravadores e permaneceram os seus descendentes. A se encontram grandes seringais e castanhais, sem a riqueza e a fartura dos afluentes de guas pretas, assim como povoados e sedes municipais. (MAIA, 1999, p. 23)

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Figura 3. Mapa com a localizao de comunidades e localidades do PARNA-Ja.

Fonte: Borges et al (2004, p. 25).

As comunidades do PARNA-Ja so: Carabinani (rio Carabinani); Seringalzinho, Lzaro e Tambor (rio Ja); Lago das Pedras, Terra Nova, Democracia, Tapira, Manapana, Floresta, (rio Unini); Vista Alegre e Aracu (rio Pauini). As localidades do PARNA-Ja so: Enseada (rio Negro); Bela Vista, Queiroz, Cachoeira, Patau, Miratucu, Capoeira Grande, Nova Vida, Urubutinga, Supriano, Tambor Velho, Peixe-Boi, Ing e Anta (rio Ja); Lago Jordo, Bacaba, Samama, Castanho, Monte Cristo, Lago das Pombas (rio Unini); Cujubim, Jurupari e Bolvia (rio Pauini). Apesar de no existir dados tabulados relativos ao censo de 2010/2011 58, em 1992, a
populao total do Parque era de 979 pessoas reduzindo-se para 920 pessoas (-6%) em 2001. As populaes de cada rio apresentaram comportamentos diferenciados. No rio Unini foram registradas 602 pessoas em 1992 e em 2001 este nmero subiu para 669 pessoas (+11%). No rio Ja, o comportamento foi inverso, com uma populao de 377 pessoas em 1992 reduzindo-se para 251 pessoas em 2001 (-33%) (FVA, 2004, p. 47). Visualizando os resultados dos censos anteriores, tem-se um recorte da situao da populao do PARNA-Ja nos censos de 1992, 1998 e 2001:

Tal informao foi repassada em pesquisa feita no IBGE, em Manaus, no dia 10 de setembro de 2011, prestada pelo servidor pblico Adjalma Nogueira Jaques, responsvel pelo Setor de Disseminao de Informaes.

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Tabela 1. Censos do PARNA-Ja

Fonte: FVA, 2004, p. 47

No plano de manejo do PARNA-Ja tambm foi feito levantamento dos moradores sendo o registro mais antigo o do ano de 1990: Tabela 2. Levantamento de moradores no plano de manejo

Fonte: FVA, 1998, p. 139.

Considerando as tabelas acima, verifica-se ter ocorrido um pequeno decrscimo populacional no decorrer do tempo. (FVA/IBAMA, 1998) Em relao alimentao, na grande maioria das refeies, os moradores consumem mandioca e peixe, o que inclui vrios subprodutos da mandioca (farinha, tapioca, beiju, pde-moleque, bolo, macaxeira etc.) e vrias espcies de peixe (piranha, pacu, tucunar, aracu, jaraqui, pirarucu etc.). Os animais de caa (quelnios, mamferos e aves) so apenas o quinto item alimentar (vindo depois do caf, de frutas de pomar e coletadas). A criao domstica insignificante como fonte de alimento, tendo sido citada em apenas 0,5% das refeies, conforme a tabela a seguir.

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Tabela 3. Itens alimentares dos moradores do PARNA-Ja

Fonte: FVA, 1998, p. 48

Acerca das relaes entre as comunidades tradicionais e o ecossistema, Diegues (2004, p. 92) preleciona que:
Os povos desenvolveram uma srie de maneiras de conviver com os ambientes frgeis. Ns conhecemos muito pouco sobre como esses sistemas se desenvolveram, como eles funcionam e como podem ser adaptados para faz-los mais produtivos e ecologicamente sadios. Sabemos, no entanto, que a chave para o entendimento das atividades sustentveis em ambientes frgeis comea com as populaes locais. Seu conhecimento valioso para o futuro do ambiente da terra e dos povos. No entanto, ns nunca conheceremos esses ambientes se os povos que os desenvolveram continuam a ser destrudos ou impedidos de continuar seu modo de vida tradicional.

Isso pode ser constatado pelos depoimentos de alguns exmoradores do PARNA-Ja que migraram para o Municpio de Novo Airo e formaram associao para defesa de seus direitos, conforme levantamento do Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia:
Quando escuto e vejo meus companheiros, que me viram crescer, falando da diferena de sua vida dentro do Rio Ja e de como sua vida hoje na cidade fico triste. Sinto vontade de chorar, quando sei que algum foi abordado pelos fiscais e assim uma famlia inteira ficou passando fome. Fico revoltado quando penso que para visitar a minha terra, onde eu nasci, tenho que ter autorizao, dia e hora para entrar e dia e hora para sair. E que ainda tenho que levar meu alimento pois no tenho o direito de usar aquilo que eu tambm ajudei a preservar e tambm e tambm ajudei a construir. Muitas destas famlias foram humilhadas e at multadas pela tal proibio. (ALMEIDA, 2007, p. 8)

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Indubitavelmente, como se ver pelas imagens a seguir, os moradores do PARNA-Ja so ribeirinhos, adaptados ao ecossistema e de baixo impacto sua atividade: Figura 4. Foto da comunidade Floresta

Fonte: FVA, 1998, p. 145.

Figura 5. Foto da comunidade Tapira

Fonte: FVA, 1998, p. 145.

Os moradores e ex-moradores do PARNA-Ja so, efetivamente, homens e mulheres levantados do cho, aqueles que, se ainda sobreviventes, fazem emergir luz e contradio, e, se j mortos, esto ressuscitados pelos ideais presentes ainda radiantes. (FACHIN, 2003, p. 32).

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Conforme Arajo (2003, p. 144), a convivncia inter-humana, os processos de interao, de crescimento da cultura, intensificaram-se quando as distncias sociais so menores. As comunidades, de acordo com seus vnculos socioculturais, possuem ritmos prprios de gerir suas atividades, utilizando seus saberes na transformao dos recursos para criar condies de adaptao realidade. Em termos de comunidade, os seres humanos no pertencem apenas ao "gnero humano, mas tambm a comunidades especficas. A condio humana implica um sentido de pertencer a uma comunidade poltica. (JELIN, 1996, p.21) A integrao homem-natureza no foi observada nos conceitos desenvolvimentistas implementados na regio, como acentua Fonseca (2004, p. 11) nos ltimos 100-150 anos (perodo muito curto em relao histria regional), os modelos de desenvolvimento introduzidos na Amaznia tm pouco em comum com a realidade biogeoqumica que determina nossa vocao natural. As pessoas no so apenas organismos biolgicos, so tambm seres sociais e indivduos nicos. bom ressaltar que, embora o homem seja um ser social, cada indivduo tem suas percepes do mundo, nicas, e nenhuma dessas vises pode ser desprezada ou vista como sem valor. Pode-se afirmar que o homem formado por dois universos: um exterior e outro interior. O primeiro est em constante processo de adaptao ao meio, o segundo visto atravs das respostas que interpretam a realidade. Energias de todas as ordens chegam a todo instante, isso faz com que aconteam constantes estmulos ao sistema sensorial dando informaes sobre o meio ambiente natural, cultural e social. Matas, rios, lagos, igaraps, furos, igaps, roas e quintais compem os ambientes manejados pelos moradores atravs da adoo de uma variedade de tcnicas simples e engenhos prticos que lhes permitem o atendimento de suas necessidades de subsistncia (complementada com a venda do excedente) e, tambm, a reproduo dos recursos contidos nesses espaos. So pessoas dos ecossistemas (DEUMANN, 1989 apud FONSECA, 2011, p. 16), expresso que define
[...] os que vivem em simbiose com os ecossistemas e conseguem viver com o uso sustentado dos recursos naturais, distinguindo-os dos povos da biosfera que so sociedades interligadas por uma economia global de alto consumo e desperdcio dos recursos naturais.

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Assim, a retirada das populaes tradicionais desses espaos protegidos configura uma verdadeira excluso por estar presente. 59 Conforme Derani (2008, p. 73), elementos da realidade no partem do intelecto humano puramente, mas de relacionamentos com o meio natural e social e a realidade que a ao das populaes tradicionais, de modo controlado, no degrada a natureza e demonstra que a realizao de um novo modelo de desenvolvimento passa, no entanto, decidida e reconhecidamente, pelas populaes locais. (ESTERCI, LIMA, & LENA, 2002, p. 4) Na Amaznia, a ligao do homem aos cursos dgua intensa. Tanto que, conforme Tocantins (2000, p. 278), a noo do jus soli parece que se priva de seu contedo sentimental em detrimento do rio, pois quando algum se refere terra natal s costuma dizer: eu nasci no Juru, eu nasci no Purus. Benchimol (1977, p. 440), tambm corrobora o quanto afirmado por Tocantins quando acentua que o homem assim nasce, casa e vive e morre no rio. Todos ns na Amaznia somos filhos do rio. Os povos desenvolvem leituras de suas paisagens, no uma leitura de palavras, mas do ambiente que os cercam. Estar em um ambiente estar envolvido com ele, percebendo-o, modificando-o, lendo-o, interagindo com ele; dessa forma, passa a ser reconhecido e reinterpretado a cada nova vivncia ambiental, a cada nova informao. Esses so alguns fatores que influenciam os indivduos a perceber de modo diferente o mesmo ambiente, pois revelam o traado imbricado de fronteiras de natureza material e imaterial. A floresta, os igaraps, os lagos formam um espao produtivo, de trabalho institudo pelas relaes sociais tanto intra e intergrupais, quanto intra e intercomunidades. A dependncia de recursos naturais disponveis no local, o intercmbio homemnatureza nos diferentes ambientes os tornam usurios e aprendizes ao mesmo tempo em que adaptam formas novas de uso no cultivo e na coleta desses recursos. So aprendizes que tambm ensinam suscitando benefcios em termos de difuso de saberes, ou melhor, ecologia de saberes, no dizer de Sousa Santos; Meneses & Nunes (2006).

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MARS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. A presena de populaes tradicionais em unidades de conservao. Entrevista realizada em 13/08/2010, no Auditrio da Pontifcia Universidade Catlica (PUC) do Paran, no V Simpsio de Dano Ambiental na Sociedade de Risco / III Encontro Nacionais dos Grupos de Pesquisa em Direito Ambiental, promovido pelo Programa de Ps-Graduao em Direito da PUC/PR, em Curitiba-PR, no perodo de 11 a 13/08/2010.

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Afinal, conforme Herrera Flores (2004, p. 52) humanizarnos, no significa, pues, negar que seamos seres biolgicos y naturales, sino seres que son capaces de explicar, interpretar e intervenir en la naturaleza de la que somos parte y en la que vivimos. Na utilizao dos diversos ecossistemas, o respeito aos ritmos dos ciclos da natureza evidencia a existncia de um conjunto de conhecimentos sobre tcnicas que sustentam o padro de subsistncia dessas populaes. (FVA, 1998) A ampliao dos conhecimentos sobre as populaes nativas poder servir para potencializar, de modo racional, o manejo dos recursos naturais no renovveis e para apoiar aes que visem renovabilidade dos recursos naturais a longo prazo. A garantia da permanncia das populaes locais somente possvel por meio de instrumento jurdico que estabelea acordo de convivncia que permite s comunidades usarem recursos da UC necessrios ao seu modo de vida tradicional de forma controlada e monitorada.

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3 TERMO DE COMPROMISSO QUE ASSEGURA A PERMANNCIA DAS POPULAES TRADICIONAIS EM PARQUES NACIONAIS 3.1. ANTECEDENTES FTICOS DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA Segundo Morsello (2008, p. 247), o modelo de parques sem habitantes no representa a realidade mundial. Estima-se que cerca de 50% das reas protegidas do mundo sejam habitadas. Todavia, os parques nacionais existem praticamente na legislao de todos os pases e tm a finalidade de preservar o ambiente (MARS DE SOUZA FILHO, 1993, p. 23). Vianna (2008, p. 27) afirma que no Brasil, muitas reas naturais protegidas de uso indireto, foram criadas onde j havia a presena humana, configurando conflitos de interesses. Essa ocupao humana era e ainda diversificada, incluindo as populaes tradicionais. No Brasil, Santilli (2005, p. 156) exemplifica um caso de implantao de unidade de conservao com a retirada de populaes tradicionais (e vizinha ao PARNA-Ja): Estao Ecolgica de Anavilhanas 60. Ainda na regio Norte, Guerra & Coelho (2009, p. 83, 84 e 90) fornecem outros exemplos nesse mesmo sentido: Reserva Biolgica de Trombetas, da Floresta Nacional de Sarac-Taquera, da Floresta Nacional de Carajs. Brito (2003, p. 106), cita retirada de populaes do interior do Parque Nacional do Iguau e do Parque Nacional da Serra da Bocaina; das Estaes Ecolgicas de Aiuaba, Marac-Jipioca, Serra das Araras e de Cuni. Jacinto (1998) menciona a presena de populaes no Parque Nacional Grande Serto Veredas. Campos (2001) salienta a existncia de comunidades no Parque Nacional de Ilha Grande 61. Interessante o caso do Parque Nacional do Iguau em que houve a retirada de populaes tanto no Brasil quanto na Argentina, na unidade de conservao congnere, o de o Parque Nacional de Iguazu.

Anavilhanas, concebido inicialmente como estao ecolgica (Decreto n 86.061, de 2 de junho de 1981), , atualmente, um parque nacional institudo pela Lei n 11.799, de 29 de outubro de 2008 (art. 1). 61 O decreto de criao do Parque Nacional de Ilha Grande foi considerado caduco, em razo de deciso datada de 08 de abril de 2010, nos autos da Ao Civil Pblica n 2009.70.00.025365-5, da 6 Vara Federal de Curitiba/PR.

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No mundo, Brito (2003, p. 22) cita como exemplo a tribo Ik, em Uganda, e pescadores artesanais do Canad, tambm retirados de suas terras. Diegues (2004, p. 19) exemplifica que os Tharus, no Nepal, tm grande dificuldade de sobreviver tendo em vista a proibio da prtica de suas atividades tradicionais aps a instalao de parques. Esse tratamento, alm de acarretar a perda da territorialidade de populaes cuja ligao com o lugar tem especial simbolismo, constri outro tipo de refugiado: os refugiados ambientais (MARTINEZ, 2009, p.50), tambm chamados flagelados ambientais, ou ainda refugiados da conservao (DOWIE, 2008, p. 113), grupos humanos que fogem do lugar onde vivem em razo da ocorrncia de desastres ambientais e poluio (Chernobyl e Bhopal, por exemplo), ou no caso de populaes deslocadas dos parques nacionais (e de outras unidades de proteo integral), sob o argumento de que pem em risco o ecossistema existente, o que poder provocar o aumento do contingente de submoradias nas reas urbanas (favelizao), bem como da misria. Entre outros diversos casos, Santilli (2005, p. 155) destaca que os Masai, populao tradicional do Qunia, deixaram suas terras para a implantao de um parque nacional. Outro parque nacional criado com o sacrifcio da expulso de populaes tradicionais foi o Krger, na frica da Sul. Morsello (2008, p. 143) acentua que o primeiro parque nacional instalado no mundo, o de Yellowstone, em 1872, no foi criado em uma terra vazia, mas em territrio das tribos Crow, Blackfeet e Shoshone-Banncok. Colchester (2000, p. 233) informa que parques nacionais para a proteo dos gorilas, no Zaire, Uganda e Ruanda levaram expulso dos pigmeus batwas. Usualmente, segundo Morsello (2008, p. 248), e tal pode ser confirmado tambm no caso do Parque Nacional do Ja, o territrio propriedade oficial do estado mas, na realidade, controlado de fato pelos residentes. Conforme Furriela (2002, p. 38), a Conveno de Aarhus62 uma das normas mais completas e atuais sobre o tema da participao pblica na gesto do meio ambiente e processos relacionados que reflete um amplo debate fomentado pela ONU.

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Conveno aprovada e discutida pela Comisso Econmica para a Europa da Organizao das Naes Unidas, em 21 de abril de 1998, na Dinamarca, intitulada Conveno sobre Acesso Informao, Participao Pblica em Processos Decisrios, e Justia em Matria Ambiental. (FURRIELA, 2002, p. 38)

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O artigo 1 da Conveno de Aarhus dispe sobre o direito de assegurar a participao popular em processos decisrios:
Para contribuir para a proteo do direito de qualquer pessoa das presentes e futuras geraes a viver num ambiente adequado para seu bem-estar, dever ser garantido o seu direito de acesso informao, participao pblica em processos decisrios e justia em matria de meio ambiente.

A origem do Termo de Compromisso do Parque Nacional do Ja, como documento, remonta ao dia 16 de dezembro de 2003 quando da realizao de reunio para discusso das bases de um termo de compromisso ou termo ajustamento de conduta (TAC) celebrado pelo Ministrio Pblico Federal (MPF) com representantes do IBAMA, da Fundao Vitria Amaznia (FVA), membros da Comisso de Moradores e ex-moradores do Rio Ja, cujo objeto era a regularizao fundiria do Parque Nacional do Ja (Anexo A). O Chefe da PARNA-Ja, poca, salientou que a situao dessa UC era um problema histrico de praticamente todas as UCs do pas, conforme trecho constante no Anexo A.Tal afirmao pode ser confirmada pela celebrao de um TAC, semelhante ao que ocorreu inicialmente com o PARNA-Ja, no Parna Nacional Cabo Orange63, o Termo de Compromisso 01/2007, tambm assinado pelo IBAMA, MPF e a Colnia de Pescadores Z-3 de Oiapoque/AP. O TAC do PARNA Cabo Orange tinha por finalidade permitir a pesca de pequeno porte em parte das guas que compe a rea marinha na mencionada UC, no municpio de Oiapoque/AP. Interessante o registro de alguns considerandos do TAC do PARNA Cabo Orange:
- Que o princpio da dignidade da pessoa humana fundamento do Estado Democrtico de Direito Brasileiro, conforme previsto no art. 1, inc. III, da CRFB; - Que o exerccio da atividade pesqueira pela populao local do municpio de Oiapoque condio essencial a sua sobrevivncia em condies mnimas de dignidade; - Que a instituio do Parque Nacional do Cabo Orange limitou significativamente a atividade pesqueira desenvolvida pelos muncipes

Com uma rea de 619.000 ha, criado pelo Decreto n 84.913, de 15 de julho de 1980, no extremo norte do Amap, prximo baa do Rio Oiapoque que, neste trecho, separa o Brasil da Guiana Francesa. Situado nos municpios de Caloene e Oiapoque, tem a vegetao marcada por florestas de terra firme e pela plancie flviomarinha de Macap-Oiapoque, com reas planas de restingas e grandes manguezais, sujeitos a inundaes frequentes pelas guas do mar. O Parque abriga o Rio Cacipor, que ao ser invadido pelas guas do oceano, causa o fenmeno da pororoca (Disponvel em <http://uc.socioambiental.org/uc/1439>. Acesso em 15.09.2011).

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de Oiapoque, tendo em vista que sua rea marinha alcana seis milhas nuticas;

poca da celebrao do TAC no PARNA-Ja havia a presso do IBAMA para que os moradores desocupassem o Parque Nacional do Ja, ao argumento de que a presena humana era ilegal. Tal situao mantm-se, agora sob a atuao do IMCBio. A concepo de ilhas isoladas da sociedade, inicialmente apoiada por preservacionistas, tericos do equilbrio insular, est perdendo fora de argumentao. Estudos cientficos (arqueolgicos, histricos e ecolgicos) demonstram que muitas reas consideradas naturais e de alta biodiversidade foram influenciadas h milhares de anos por atividades humanas. Nata Ata em questo, o objetivo do termo de compromisso foi a definio de regras para o reassentamento e indenizao ou subsdio mais a assistncia tcnica, que, conforme sugesto do Chefe do PARNA-Ja poca, por um a dois anos, at que as famlias pudessem estabilizar seus processos de produo. Ressalta-se que o termo de compromisso tratado naquela ocasio no o termo objeto desta pesquisa, e sim um TAC firmado entre o MPF e o rgo ambiental. O termo de compromisso ou o TAC tm eficcia de ttulo executivo extrajudicial, a teor do art. 5, 6, da Lei n 7.347, de 24 de julho de 1985 (LACP), e tal compromisso de ajustamento s exigncias legais surge porque algum - pessoa fsica ou jurdica, de direito privado ou de direto pblico - no est integralmente cumprindo a legislao que, no caso, era a legislao ambiental, vez que havia infratores em uma rea protegida. Vale dizer que ajustamento no significa transigncia no cumprimento das obrigaes legais, pois o Ministrio Pblico no pode fazer concesses diante de "interesses sociais e individuais indisponveis" (art. 127, caput, da CF/88), divergindo do instituto da transao, uma vez que no h concesses mtuas das partes envolvidas, retratando a celebrao de um ajuste e no induz ao despojamento de direitos indisponveis em questo. A sugesto para firmar tais termos de compromisso foi da FVA. Vale o registro de que os termos de compromisso a que se referia a Ata, celebrada em 16 de dezembro de 2003, tinham a natureza de TAC, como ressaltou expressamente o Membro do MPF (final da Ata) e no do termo de compromisso objeto desta pesquisa, mesmo institudo no ano anterior, como se ver no prximo tpico.

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Na Ata de 16 de dezembro de 2003, foi ajustado que o reassentamento das famlias no PARNA-Ja deveria ocorrer em rea similar e com acordo dos moradores, bem como sobre a possibilidade de criao de uma Reserva Extrativista do Rio Unini. Outro aspecto previsto na Reunio de 16 de dezembro de 2003 foi o registro da existncia de 182 famlias no PARNA-Ja e que 42 moravam nos Rio Ja e Carabinani (no interior da UC), sendo que a maioria morava no Rio Unini, onde se pleiteava a criao de uma RESEX. Para as demais famlias, assim como para 65 famlias que moravam em Novo Airo, a soluo provvel seria o reassentamento e indenizao, que deveriam ocorrer em etapas para atender imediatamente aqueles moradores que j saram do Parque e hoje se encontram na cidade de Novo Airo, e depois os moradores que ainda residiam no Parque. Ficou assentado ainda, na oportunidade, que os valores das indenizaes devem levar em conta o conceito de posse agroextrativista ou tradicional, explanado no Plano de Manejo do PARNA elaborado pela FVA, a fim de no se fixar somente nas benfeitorias (quadriltero: casa, roa, casa de farinha) e sim englobar as reas de uso como o lago, as trilhas de castanha, a rea de caa, etc. A FVA salientou ainda sobre a existncia de recursos para projetos especficos em comunidades na modalidade de micro-crdito. De incio, esse TAC retirou a situao de invisibilidade ou ilegalidade das comunidades que se encontram no PARNA-Ja, conferindo-lhes dignidade, inserindo-os em um documento jurdico, sob a tutela do MPF, em contraposio poltica estatal de excluso daquela rea protegida e, mais, imps obrigaes ao IBAMA, apresentando como ltimo considerando, o fato de que:
[...] com a criao do Parque Nacional do Ja, atravs do Decreto n 85.200 de 24.09.1980, as populaes tradicionais residentes no foram realocadas ou indenizadas na forma dos dispositivos acima transcritos, sendo que vrias famlias saram da rea do Parque, estando hoje residindo na cidade de Novo Airo, e outras continuam no Parque sem alternativa econmica para sua subsistncia.

Interessante sublinhar que a Ata foi lavrada no dia 16 de dezembro de 2003 e, no dia 19 de dezembro de 2003, foi celebrado o termo de compromisso (Anexo B) firmado pelo MPF e pelo IBAMA, contendo 05 (cinco) clusulas: 1) a primeira, constando a responsabilidade de o IBAMA destinar recursos para regularizao fundiria do PARNA-Ja, inclusive o reassentamento e/ou indenizao da populao residente na UC; 2) a segunda com previso da criao de uma RESEX no limite norte do PARNA-Ja (Rio Unini); 3) a terceira prev a base de clculo da indenizao a ser paga s pessoas e famlias moradoras e ex-

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moradoras do PARNA-Ja; 4) a quarta, com a determinao para que o reassentamento das pessoas ou famlias moradoras do PARNA-Ja, que assim o preferirem, ser feito em rea com as mesmas caractersticas naturais do local original, com subsdio/assistncia tcnica por parte do IBAMA. Vale salientar que, ao fim do termo, na clusula quinta do Anexo B, o MPF alerta que, eventual descumprimento de quaisquer das clusulas motivar a propositura de ao civil pblica (ACP). No caso do PARNA-Ja, a celebrao desse TAC, muito embora necessria para garantir um freio perseguio sofrida pela populao que se encontra naquela rea, ainda revela que a presena humana no interior da UC era indesejvel, subsistindo o iderio construdo com a criao de Yellowstone. Tal ilao decorre do fato de que, nos considerandos existentes antes das clusulas do termo de compromisso, verificam-se disposies da Lei n 9.985/2000, acerca do tratamento das populaes tradicionais e, tendo sido celebrado, em 19 de dezembro de 2003, o referido documento no trouxe, como fundamento, o Decreto n 4.340, de 22 de agosto de 2002, que regulamentou a referida lei, mesmo editado h mais de um ano da assinatura do termo de compromisso. Certamente, o Decreto n 4.340/2002 era do conhecimento do MPF, pois suas disposies so muito mais objetivas em relao proteo das populaes tradicionais residentes em uma UC, sendo o termo firmado em 2003 de natureza precria. O que pode ter ocorrido o fato de que tal documento foi o melhor possvel naquela oportunidade, considerando o acordo entre as partes envolvidas. O Decreto n 4.340/2002 o fundamento primaz do termo de compromisso acerca da permanncia das populaes tradicionais em unidades de conservao, servindo como fundamento tambm para a populao que se encontra no interior do PARNA-Ja.

3.2 FUNDAMENTOS LEGAIS DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA

A Lei n. 9.985 de 18 de julho de 2000, que regulamentou o art. 225, 1o, incisos I, II, III e VII da Constituio Federal, se refere presena humana nas UCs de Proteo Integral em duas ocasies, tratando-a como uma situao excepcional e transitria.

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A primeira referncia encontra-se no art. 7 pargrafo primeiro, em que a Lei do SNUC estatuiu que objetivo bsico das UCs de Proteo Integral preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceo dos casos ali previstos. Entre os conceitos adotados pelo SNUC no art. 2, o uso indireto apresentado no inciso X como aquele que no envolve consumo, coleta, dano ou destruio dos recursos naturais. Esse conceito de uso indireto explicita a incompatibilidade proposta pela lei entre a presena humana e o alcance dos objetivos da unidade: como pode a populao viver na rea sem consumir nem coletar nenhum recurso natural ? A segunda referncia ocorre no pargrafo nico do art. 28, quando determina que at a formulao do Plano de Manejo,
[...] todas as atividades e obras desenvolvidas nas unidades de conservao de proteo integral devem se limitar quelas destinadas a garantir a integridade dos recursos que a unidade objetiva proteger, assegurando-se s populaes tradicionais porventura residentes na rea as condies e os meios necessrios para a satisfao de suas necessidades materiais, sociais e culturais.

O regulamento do SNUC, o Decreto n 4.340, de 22 de agosto de 2002, refora essa disposio de excepcionalidade e transitoriedade da presena humana nas Unidades de Conservao de Proteo Integral, ao dedicar um Captulo inteiro - o IX - para regulamentar o reassentamento de populaes tradicionais. O art. 35 do Decreto n 4.340/2002 determina que o processo indenizatrio de que trata o art. 42 da Lei do SNUC respeite o modo de vida e as fontes de subsistncia das populaes tradicionais, enquanto o art. 36 determina que apenas as populaes tradicionais residentes na unidade no momento da sua criao tero direito ao reassentamento. No h meno indenizao da posse das comunidades residentes nas UCs de proteo integral, sendo-lhes, portanto, negado o reconhecimento de domnio, ainda que a rea seja ocupada h geraes. O art. 38 deixa a cargo do rgo fundirio competente, quando solicitado pelo rgo executor, apresentar, em seis meses, programa de trabalho para atender s demandas de reassentamento das populaes tradicionais, com definio de prazos e condies para a sua realizao. O art. 39 dispe sobre a forma como as populaes tradicionais podero permanecer na Unidade de Conservao de Proteo Integral, impondo a celebrao de termo de

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compromisso, a ser negociado entre o rgo executor e as populaes, ouvido o conselho da unidade de conservao. Os pargrafos desse artigo regulamentam o teor, inclusive prazo e condies para o reassentamento, e as partes compromissrias. Aqui o legislador impe prazo para sua celebrao; um ano para as UCs a serem criadas, e dois anos para as reas j criadas. A populao que for reassentada ou mesmo removida sem a devida indenizao pode propor ao indenizatria contra o ente federado que emitiu o ato de criao, na pessoa de seu rgo gestor, na forma da legislao civil e processual em vigor, buscando ir alm da compensao das perdas materiais, pois a maior perda imaterial, a territorialidade, e tem repercusses intergeracionais. Estabelece o 1o, do art. 11, da Lei do SNUC que o parque nacional de posse e domnio pblicos, onde as reas particulares includas em seus limites sero desapropriadas, sendo que a visitao pblica est sujeita s normas e restries estabelecidas no Plano de Manejo da unidade, s normas estabelecidas pelo rgo gestor e quelas previstas em regulamento (art. 11, 2o, da Lei do SNUC). Ocorre que, com a edio do Decreto n 4.340/2002, houve uma possibilidade jurdica de assegurar a permanncia das comunidades que l residem. Assim dispe o art. 39, do Decreto n 4.340/2002:
Art. 39. Enquanto no forem reassentadas, as condies de permanncia das populaes tradicionais em Unidade de Conservao de Proteo Integral sero reguladas por termo de compromisso, negociado entre o rgo executor e as populaes, ouvido o conselho da unidade de conservao.

O inciso III do Art. 5., da Lei n. 9.985/2000, que trata das diretrizes pelas quais ser regido o SNUC, assinala a tendncia para um processo com um mnimo de participao da sociedade civil ao prever que deve ser assegurada a participao efetiva das populaes locais na criao, implantao e gesto das unidades de conservao. O segundo e o terceiro pargrafos do Art. 22 do mesmo diploma legal reforam a preocupao em foco:
Art. 22. [...] 2. A criao de uma unidade de conservao deve ser precedida de estudos tcnicos e de consulta pblica que permitam identificar a localizao, a dimenso e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento. 3. No processo de consulta de que trata o 2., o Poder Pblico obrigado a fornecer informaes adequadas e inteligveis populao local e a outras partes interessadas.

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No caso da presena desses grupos sociais em UC de proteo integral, como o caso do Parque Nacional do Ja, o Art. 42 da Lei no 9.985/2000 estabelece a seguinte providncia:
Art. 42. As populaes tradicionais residentes em unidades de conservao nas quais sua permanncia no seja permitida sero indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e devidamente realocadas pelo Poder Pblico, em local e condies acordados entre as partes.

O artigo 39 do decreto regulamentador trata do caso em que as populaes residentes em unidades de conservao de proteo integral no foram ainda reassentadas. Procura dar um tratamento jurdico para uma situao ignorada at ento, em que tais populaes eram invisveis ou criminalizadas em relao ao uso que fazem dos recursos do entorno de suas comunidades, o que concorre para a expulso destas de suas terras sem que lhes sejam garantidas as condies objetivas de reproduo de seu modo de vida, de seus hbitos e costumes. O referido dispositivo prev ainda o contedo e o prazo do termo de compromisso:
Art. 39. [...] 1o O termo de compromisso deve indicar as reas ocupadas, as limitaes necessrias para assegurar a conservao da natureza e os deveres do rgo executor referentes ao processo indenizatrio, assegurados o acesso das populaes s suas fontes de subsistncia e a conservao dos seus modos de vida. 2o O termo de compromisso ser assinado pelo rgo executor e pelo representante de cada famlia, assistido, quando couber, pela comunidade rural ou associao legalmente constituda. 3o O termo de compromisso ser assinado no prazo mximo de um ano aps a criao da unidade de conservao e, no caso de unidade j criada, no prazo mximo de dois anos contado da publicao deste Decreto. 4o O prazo e as condies para o reassentamento das populaes tradicionais estaro definidos no termo de compromisso.

A comunidade local e suas prticas tm guarida em convenes internacionais, como o caso da Conveno sobre Diversidade Biolgica, em que o art. 8., alnea j, prev que cada parte contratante deve:
[...] em conformidade com sua legislao nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovaes e prticas das comunidades locais e populaes indgenas com estilo de vida tradicionais relevantes conservao e utilizao sustentvel da diversidade e incentivar sua mais ampla aplicao com a aprovao e a participao dos detentores desse conhecimento, inovaes prticas; e encorajar a repartio equitativa dos benefcios oriundos da utilizao desse conhecimento, inovaes e prticas.

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Outrossim, apesar da proteo normativa, a violncia contra as populaes locais, cujos ensinamentos so transmitidos pela tradio, da a designao tradicionais, continua to forte hoje como no passado. Se antes era fsica e directa, hoje -o (sic) muitas vezes de forma mais dramtica, porque apostada na destruio e aniquilamento cultural, no epistemicdio (SOUSA SANTOS; MENESES e NUNES, 2006, p. 24). A soluo, consoante Sousa Santos, Meneses e Nunes (2006, p. 24):
[...] passa por um duplo processo de debate interno no prprio campo da cincia e de abertura de um dilogo entre formas de conhecimento e de saber que permita a emergncia de ecologias de saberes em que a cincia possa dialogar e articular-se com outras formas de saber, evitando a desqualificao mtua e procurando novas configuraes de conhecimentos.

O termo de compromisso a que alude o art. 39, do Decreto n 4.340/2002, representa a garantia legal do ser e do lugar de uma determinada comunidade amaznica, uma vez que tangencia direito humano inserto no art. 1, inciso I, da CRFB: a dignidade da pessoa humana. Na realidade, ainda est presente na questo em foco a dicotomia homem-natureza, em que, para muitos cientistas, os adeptos corrente preservacionista, o homem deve ser apartado da natureza, pois no colabora para a sua conservao. Os ambientes naturais devem ser preservados como uma reminiscncia de tempos passados e dos quais o homem s pode ser visitante, lhe cabendo somente reverenciar a natureza. Assim, o termo de compromisso confere proteo normativa permanncia da comunidade tradicional na rea protegida do Parque Nacional do Ja, de modo a ser instrumento jurdico para garantir a dignidade daquela populao e inserir o saber local como elemento de eficcia dos planos de gesto da unidade de conservao, permitindo a compreenso dos hbitos e do modo de vida caipira, caiara, indgena, ribeirinho, faxinalense, dentre outros, na contramo da tendncia hodierna homogeneizao cultural cujo padro a cultura ocidental urbana. O prprio ICMBio reconhece a importncia do termo de compromisso ao ressaltar experincias em unidades de conservao de proteo integral como o caso da
[...] Rebio do Rio Trombetas, sobre acordo envolvendo coleta de castanha; e de termo de compromisso firmado com comunidades locais no Parna Serra da Canastra (MG) e Serra dos rgos (RJ). Tambm foram apresentadas experincias de termos de compromisso em

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desenvolvimento, como na Esec Serra Geral do Tocantins e no Parna Ja 64 (AM) e da Serra do Divisor (AC).

Cabe o registro da concluso do Seminrio e Oficina sobre Termos de Compromisso com Populaes Tradicionais em Unidades de Conservao da Natureza de Proteo Integral:
[...] a apresentao de experincias foi a base para os trabalhos em grupo e construo das propostas de normas, procedimentos e diretrizes para implementao desse importante instrumento previsto no Snuc. 65

O nico espao territorial protegido em que houve a primeira celebrao, no Brasil, do termo de compromisso regulado pelo art. 39, do Decreto n 4.340/2002 foi a Reserva Biolgica do Lago Piratuba 66 , razo pela qual ser utilizado como referncia em relao ao contedo do instrumento jurdico da minuta do PARNA-Ja.

3.3 O EXEMPLO PRECURSOR DA RESERVA BIOLGICA DO LAGO PIRATUBA

O nico termo de compromisso efetivado no Brasil foi implantado na Reserva Biolgica do Lago Piratuba e ser utilizado como referncia para o termo de compromisso do Parque Nacional do Ja (em tramitao) 67. O Decreto n 5.758, de 13 de abril de 2006, que institui o Plano Estratgico Nacional de reas Protegidas (PNAP), apresenta possvel mudana institucional no tratamento da relao homem-natureza, pois elenca entre os seus princpios os seguintes, constantes no item 1.1.:
III - valorizao dos aspectos ticos, tnicos, culturais, estticos e simblicos da conservao da natureza; [...] VII - reconhecimento das reas protegidas como um dos instrumentos eficazes para a conservao da diversidade biolgica e sociocultural;

Boletim Interno do ICMBio. Braslia: ICMBio, n. 123, v. 4, p.10, nov. 2010. Ibidem. 66 Ibidem, p. 11. 67 BARRETTO FILHO, Henyo Trindade. Impresses sobre populaes tradicionais em unidades de conservao. Entrevista realizada em 16/07/2010, no Auditrio da Reitoria da UEA, por ocasio do Simpsio Internacional sobre conhecimentos tradicionais na Pan-Amaznia, promovido pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia PNCSA/PPGAS-UFAM, em Manaus-Am. O estudo de caso comparativo entre o termo de compromisso do PARNA-Ja e da REBIO do Lago Piratuba foi abordado nesta entrevista.
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VIII - valorizao da importncia e da complementariedade de todas as categorias de unidades de conservao e demais reas protegidas na conservao da diversidade biolgica e sociocultural; (grifo nosso)

Conforme ressalta Fonseca (2011, p. 239):


[...]os manuais de metodologia de pesquisa separam conhecimento cientfico do conhecimento tradicional (popular) por considerarem que este ltimo, por ter origem na relao do homem com seu meio, sem mtodo e sem sistematizao, tem suas bases assentadas em critrios reflexivos e valorativos sendo, por isso falvel e inexato [...].

Em relao ao texto do Decreto n 5.758/2006 verifica-se, claramente, sinal de mudana de paradigma, pois admite valores culturais e socioculturais associados conservao da natureza, bem como no inciso XX do mesmo dispositivo listado como princpio a participao social na gesto das reas protegidas, com vistas ao desenvolvimento social, com especial ateno para as populaes do interior e do entorno das reas protegidas. Em outra passagem do Decreto n 5.758/2006, figura como uma das diretrizes fomentar a participao social em todas as etapas da implementao e avaliao do Plano Estratgico Nacional de reas Protegidas (item 1.2., X). Constitui objetivo geral do referido Plano, no item 4.2., II, letra f, promover a governana diversificada, participativa, democrtica e transparente do SNUC, possuindo como estratgia fomentar a organizao e o fortalecimento institucional de comunidades locais, quilombolas e povos indgenas, bem como de outras partes interessadas. (grifo nosso) O item 5.2., II, letra g, do Decreto n 5.758/2006, prev a necessidade de documentar conhecimento e experincias sobre a gesto de reas protegidas, inclusive os conhecimentos tradicionais e o item 6.4., I, letra a, estabelece a incorporao contnua dos conhecimentos tcnico-cientficos e conhecimentos tradicionais no estabelecimento e na gesto das unidades de conservao. Assim, constata-se claramente que tais dispositivos colocam o conhecimento tradicional no mesmo patamar do conhecimento cientfico, ambos importantes para a gesto de reas protegidas. Imperioso destacar o item 6.4., I, letra c, do PNAP, ao listar como estratgia o estmulo e fomento de estudos que gerem conhecimentos tcnico-cientficos e tradicionais que contribuam para a conservao da diversidade biolgica e sociocultural, auxiliando o estabelecimento e gesto das unidades de conservao. (grifos nossos)

101

Essa norma d sentido afirmao de que estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem cientfica (SOUSA SANTOS, 1987, p. 9). Possivelmente, este o propsito do termo de compromisso objeto desta pesquisa: a construo de uma soluo negociada, de modo a aliar o conhecimento tradicional conservao do meio ambiente natural. O instrumento objeto do presente projeto o primeiro termo de compromisso, no Brasil, que assegura a permanncia de populaes tradicionais em um Parque Nacional, existindo apenas um instrumento no pas, celebrado em outra categoria de unidade de proteo integral, Reserva Biolgica (REBIO), constante no Anexo C: o Termo de Compromisso n 001/2006, firmado entre o IBAMA e a Comunidade do Sucuriju, referente utilizao dos lagos do cinturo lacustre oriental do Estado do Amap, localizados no interior da Reserva Biolgica do Lago Piratuba. Outra diferena em relao ao termo de compromisso da Comunidade do Sucuriju que, no caso do PARNA-Ja, o mencionado instrumento regular as condies em que a comunidade tradicional residente no interior dessa UC utilizar os recursos naturais existentes, ao passo que no caso na REBIO do Lago Piratuba regula apenas as condies de acesso da comunidade ao espao territorialmente protegido. A Reserva Biolgica (REBIO) do Lago Piratuba est localizada no extremo leste do Estado do Amap, na rea dos municpios de Tartarugalzinho e Amap. A Unidade foi criada por meio do Decreto n 84.914 de 16 de julho 1980 e teve seus limites alterados pelo Decreto n 89.932 de 10 de julho de 1984. Tal qual no PARNA-Ja, antes da criao da UC, j existiam moradores dentro da rea e vrias famlias continuam na Reserva, mesmo aps quase trinta anos de sua criao, os chamados laguistas (SAUTCHUK,2007, p. 15). As comunidades tradicionais tiveram suas vidas modificadas em razo das restries de uso impostas pela Reserva, entre as quais se inclui a Vila do Sucuriju localizada no limite nordeste da unidade de conservao, no litoral do Estado do Amap. Assim, com a criao da Reserva Biolgica do Lago Piratuba, a Vila do Sucuriju se
transformara num enclave entre a Rebio do Lago Piratuba e o mar; a pesca martima comercial colapsara; permaneciam as dificuldades no suprimento de gua potvel; os obstculos no acesso aos servios pblicos tornavam-se relativamente mais significativos (SAUTCHUK, 2007, p.

33).

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Similar ao PARNA-Ja, ainda durante o regime militar, no houve nenhum tipo de consulta ou participao da Comunidade do Sucuriju na delimitao ou at mesmo na criao da Reserva Biolgica do Lago Piratuba, tendo os pescadores tradicionais assumido uma condio de ilegalidade. O caso da REBIO do Lago Piratuba representa a anlise de Monjeau (2007) a respeito dos principais fatores sociais e naturais que influenciam a conservao da natureza. Em sua observao, a maioria dos problemas locais acontece quando a criao das unidades de conservao ignora a realidade social local e, na maioria das situaes, com a usurpao de terras de populaes locais. Como Diegues enfatiza, a criao dessas unidades de conservao seguiu o modelo norte-americano de Parques Nacionais desenvolvido no final do sculo passado, o qual foi concebido a partir do conceito de wilderness, no sentido de grandes reas desabitadas (DIEGUES, 2004, p. 24). Mesmo assim, apesar desta exigncia por ausncia de moradores, grande parte dessas unidades de conservao teve suas reas sobrepostas sobre as reas das populaes locais, conflitando, desta forma, com os interesses dessas populaes em permanecer na erea protegida. Em muitos casos, a criao dessas UC tem gerado disputas traumticas com as populaes locais, pois a sua implementao tem implicado desapropriao dessas populaes de suas terras, tal qual no caso do PARNA-Ja. Interessante registrar que no Anexo C, item 2, tpico considerandos consta a informao sobre estudos que afirmam a existncia de moradores no local da rea protegida ainda no sculo XIX:
Considerando o relatrio sobre a relao da Comunidade da Vila de Sucuriju, municpio de Amap AP, com os lagos do norte da Reserva Biolgica do Lago Piratuba, de autoria do antroplogo Carlos Emanuel Sautchuk, que afirma a existncia de moradores, desde a passagem do sculo XIX para o XX, tanto no Cabo Norte, regio litornea do municpio de Amap - AP (onde hoje se encontra a Vila do Sucuriju) quanto nos lagos denominados de cinturo lacustre oriental (que passaram a pertencer Reserva Biolgica do Lago Piratuba em 1980).

Outro fundamento dos considerandos, item 4, faz referncia ao art. 42, 2, da Lei n 9.985/00, dispositivo que determina que devero ser estabelecidas normas e aes especficas destinadas a compatibilizar a presena das populaes tradicionais residentes com os objetivos da unidade de conservao, sem prejuzo dos modos de vida, das fontes de

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subsistncia e os locais de moradia destas populaes, bem como assegurando-se a sua participao na elaborao das referidas normas e aes. O ltimo item dos considerandos, faz aluso ao art. 39 do decreto federal n 4.340/2002, segundo o qual as condies de permanncia das populaes tradicionais em Unidade de Conservao de Proteo Integral sero reguladas por termo de compromisso, negociado entre o rgo executor e as populaes, ouvido o conselho da unidade de conservao. O Termo de Compromisso n 001/2006 firmado entre o IBAMA, poca rgo ambiental responsvel pela gesto das UC, e a Comunidade do Sucuriju, composto de 30 clusulas, que estabelecem vigncia, objeto, as condies de acesso rea protegida, identificao de moradores cadastrados, proibio de uso de locais de reproduo de espcies, proibio de determinados procedimentos de pesca, regulao da pesca de determinadas espcies, inclusive estabelecendo o nmero do anzol, previso de avaliaes semestrais, enfim um documento amplo. Na clusula primeira estabelece que estar vigente o referido instrumento enquanto os lagos do cinturo lacustre oriental (que hoje fazem parte da Reserva Biolgica do Lago Piratuba) forem imprescindveis para a subsistncia da Vila do Sucuriju e existirem as moradias sazonais dos pescadores nesses lagos. O objetivo estabelecer normas e aes especficas destinadas a compatibilizar a presena dos pescadores da Vila do Sucuriju, no interior da Reserva Biolgica do Lago Piratuba, com os objetivos da unidade de conservao, sem prejuzo dos modos de vida, e com a presena da comunidade, seja na REBIO do Lago Piratuba ou no PARNA-Ja, na construo do termo de compromisso, em razo do princpio da participao.

3.4 A CONSTRUO DO TERMO DE COMPROMISSO E A PARTICIPAO DA DA COMUNIDADE

Um dos objetivos do SNUC a proteo dos recursos naturais necessrios subsistncia de populaes tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-os social e economicamente e, como uma de suas diretrizes, a garantia s populaes tradicionais, cuja sobrevivncia dependa da utilizao de recursos naturais

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existentes no interior das unidades de conservao, de meios de subsistncia alternativos ou da justa indenizao pelos recursos perdidos. As populaes tradicionais constituem grupos sociais que construram seus saberes em um determinado territrio e possuem modos distintos de utilizao dos recursos naturais, que, como salientado, no representam degradao ao meio ambiente, ao contrrio, asseguram o seu modo de fazer e viver em comunidade e a sua identidade cultural, modos esses tutelados constitucionalmente. SCHERL (2004) indica a necessidade de se desenvolver pesquisas sobre alternativas econmicas sustentveis capazes de incorporar as tcnicas tpicas dessas comunidades locais. Tal parceria pode minimizar os conflitos decorrentes das desigualdades socioculturais que no contribuem para o projeto de conservao da biodiversidade. Assim, SCHERL discute a importncia e as possibilidades de gerir as Unidades de Conservao como um ncleo para, alm da preservao dos recursos, tambm reduzir a pobreza e a marginalizao de populaes tradicionais que dependem dos recursos presentes nessas reas. O atual modelo de UC sinaliza para uma necessidade de mudana na cincia moderna que considera os outros saberes e formas de aquisio de conhecimento sobre a natureza como irracionais e, por isso, irrelevantes ao progresso da sociedade. Nesse passo, a incorporao das comunidades tradicionais locais em um processo democrtico de decises sobre a conservao da natureza tende utopia, dada a centralidade poltica que a cincia moderna e seus produtos ocupam na sociedade contempornea. a caracterizao de uma situao de invisibilidade e ilegalidade de grupo de pessoas em pleno Estado Democrtico de Direito. Dallari (1993, p. 129) acentua que sendo o Estado Democrtico aquele em que o prprio povo governa, evidente que se coloca o problema de estabelecimento dos meios para que o povo possa externar sua vontade, pois o mnimo que qualquer cidado possui o direito de participar do governo (DALLARI, 1999). Sousa Santos (2003, p. 141) identifica uma democracia participativa, na qual, apesar de dizer respeito ao povo indgena Kulina, no h limitao para as populaes tradicionais, uma vez que no Brasil, Estado constitucional, este mais do que o Estado de Direito. O elemento democrtico no foi apenas introduzido para travar o poder (to check the power); foi tambm reclamado pela necessidade de legitimao desse mesmo poder (to legitimize state power). (CANOTILHO, 1998, p. 93)

105

Vale ressaltar que os rgos estatais reconhecem a necessidade de participao popular em unidades de conservao, o que pode ser verificado pela criao do programa de voluntariado em tais espaos 68:
Art. 6. Qualquer unidade de conservao federal, estadual ou municipal, de categoria prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza poder participar do Programa de Voluntariado.

Essa a recomendao do Quinto Congresso Mundial de Parques Nacionais e reas Protegidas, em relao s reas protegidas:
As reas protegidas no devem existir como ilhas, divorciadas contexto social, cultural e econmico em que se encontram (Recomendao 5,29, V Congresso Mundial de Parques da IUCN, in Scherl et al., 2004, p. 3).

O termo de compromisso documento que se originou da reao dos moradores e exmoradores do Parque Nacional do Ja que se mobilizaram e foram reivindicar o respeito a sua dignidade, justamente nessa forma de democracia participativa a que aludiu Sousa Santos. Pelo fato de ser um termo de compromisso, portanto, no mnimo possui natureza contratual tendo em vista a necessidade de impor deveres e obrigaes s partes contratantes, existindo a bilateralidade obrigacional, busca-se, de incio, fundamento no Ttulo V do Cdigo Civil (Dos contratos em geral), constando a seguinte a redao do art. 851:
Art. 851. admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litgios entre pessoas que podem contratar. (grifos nossos)

Poder-se-ia cogitar da utilizao desse dispositivo pelo fato de haver litgio, embora no h lide, por exemplo, entre rgo ambiental e moradores do PARNA-Ja. Todavia, o art. 852 do Cdigo Civil apresenta-se como uma barreira intransponvel a esta utilizao:
Art. 852. vedado compromisso para soluo de questes de estado, de direito pessoal de famlia e de outras que no tenham carter estritamente patrimonial. (grifos nossos)

imperioso destacar a natureza jurdica do termo de compromisso, uma vez que compulsando o Cdigo Civil Brasileiro, no h como aplic-lo s disposies do objeto desta pesquisa, em que pese ter sido o referido cdigo atualizado perante a Constituio vigente.

68

Portaria n 19 - IBAMA, de 21 de janeiro de 2005. Dispe sobre a criao do Programa de Voluntariado em Unidades de Conservao.

106

Como abordado em tpicos anteriores (1.5 e 1.6), no se trata no presente caso de questo patrimonial, mas de simbolismos e preservao da identidade cultural e mesmo do respeito dignidade, o que exclui a utilizao do Cdigo Civil como fundamento do instrumento jurdico objeto desta pesquisa. Apesar de no haver possibilidade de aplicao do Cdigo Civil em relao natureza do termo de compromisso, aproveita-se o art. 851 em relao capacidade para contratar, inserto no caput, do art. 5, do referido diploma legal, pois para a validade do ato o Cdigo Civil requer agente capaz, sendo tal capacidade aferida no momento do ato (VENOSA, 2004). Em virtude da presena de rgo pblico, no caso, o ICMBio, uma autarquia federal, poderia ser imputada ao termo de compromisso a natureza de contrato administrativo. Ocorre que, na sua formatao, o termo de compromisso, conforme o caput do art. 39, do Decreto n 4.340/2002, deve ser fruto de soluo negociada entre o rgo executor e as populaes, ouvido o conselho da unidade de conservao. Outra caracterstica elementar do contrato administrativo a supremacia de uma das partes, que, a seu turno, procede da prevalncia do interesse pblico sobre interesses particulares (MELLO, 2002, p. 554). Assim, ao termo de compromisso previsto no art. 39, do Decreto n 4.340/2002 no pode ser dedicada, exclusivamente, a natureza de contrato administrativo, vez que no surgiu do poder de imprio da Administrao Pblico e no possui, por exemplo, as chamadas clusulas exorbitantes 69; esse instrumento tem natureza hbrida, ou ento, como a prpria situao ftica o ampara, ele um documento plural, multifacetrio, vez que se origina da negociao entre o morador, seu grupo comunitrio e o rgo pblico ambiental. Seguindo o conceito de contrato administrativo, difcil enquadrar o termo de compromisso em tal definio:
[...] um tipo de avena travada entre a Administrao e terceiros na qual, por fora de lei, de clusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a permanncia do vnculo e as condies preestabelecidas assujeitam-se a cambiveis imposies de interesse pblico, ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado (MELLO, 2002, p. 557-558).

No Direito Administrativo, compreende as prerrogativas da Administrao que, assim, exorbitam do Direito Privado (DE PLCIDO E SILVA, 2002, p. 173), tais como a resciso unilateral por parte da Administrao e a clusula da exceo ao contrato no cumprido (exceptio non adimpleti contractus).

69

107

O termo de compromisso pode ser nominado de contrato atpico, uma vez que tanto quanto os particulares, o Estado pode encontrar-se na situao de insuficincia dos modelos contratuais preexistentes (JUSTEN FILHO, 2000, p. 51). Na realidade, a natureza jurdica mais aproximada do termo de compromisso mesmo do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), instrumento jurdico que possui eficcia de ttulo executivo extrajudicial, largamente utilizado pelo Ministrio Pblico, conforme tpico 3.1 anterior. Outra relevncia desse instrumento jurdico a possibilidade de resoluo de conflitos sem a submisso ao Poder Judicirio, afastando-se, conseguintemente, do sistema binrio que vigora nas demandas judiciais, vez que no h interesse em solues no convencionais, assim como no h preocupao sobre o relacionamento entre as partes. O que fica patente o modo de construo desse documento, originado de assembleias com as comunidades residentes no PARNA-Ja (Anexo D), com a presena dos moradores, da ONG Fundao Vitria Amaznica e do rgo ambiental, em reunies ou assembleias. Nessas assembleias, conforme a imagem que se segue, so tratados diversos aspectos, dentre os quais, por exemplo, os recursos naturais que devero ser considerados no termo de compromisso, extrativismo, caa, pesca, regras de convivncia, preparao do roado, necessidade de servios (escola, posto de saude, telefone pblico, poo artesiano, energia solar). Figura 6. Fotografia com assembleia do termo de compromisso do PARNA-Ja

Fonte: Disponvel em <http://www.fva.org.br>. Acesso em 13.09.2011.

108

Quando da realizao das assembleias, as reunies so ordenadas em 02 tipos: normas gerais (normas que cabem a todas as comunidades, que ser acordada do mesmo modo com todos) e normas especficas em relao a cada comunidade (especificidades e necessidades de cada comunidade, que devero estar expressas e previstas no Termo). Exemplo do apoio comunidade em relao ao meio ambiente, notadamente no caso de recursos pesqueiros, o que foi discutido na Ata constante no Anexo D:
[...] A comunidade sugere uma nova rea de preservao de quelnios, pois trata-se de uma praia mais protegida, pois fica dentro do lago - lago do Rosrio e praia do Panelo. Vila Nunes, representada nessa reunio pelo Sr. Antnio, informa que a rea de preservao daquela comunidade a praia do Vov e lago do Arraia. Para dar certo, necessrio o apoio da comunidade. Jonas prope que o ICMBio forme um "fiscal" por comunidade para proteger as praias. (grifos nossos)

Na Ata constante no Anexo D podem ser verificadas as discusses e o resultado com definies de condutas relativas ao Parque Nacional do Ja, como se observa em relao limitao da pesca:
- Sobre a pesca, as comunidades do PNJ podero realizar a pesca comercial apenas na rea da RESEX. Na rea do Parque, no pode haver pesca comercial, ornamental ou esportiva. - Fica definida como rea de uso da comunidade Vista Alegre (a mesma na RESEX): parte de cima do lago do Caranguejo at o lado de baixo do lago Acari. - Na discusso sobre a quantidade de peixe para alimentao a ser transportada em viagem para fora do Parque ficou definido que ser permitida 10kg por famlia, dependendo ainda de uma acordo para todo o rio.

Ao final, os presentes subscrevem as atas e aps consolidao dos pleitos e a anlise oficial da minuta, o documento retorna para ser apresentado comunidade, em momento posterior, para ser discutido e referendado, aps o que, quando formalizado, ser assinado. E no h como subsistir a proteo eficaz ao meio ambiente sem o apoio da comunidade local, considerando que os rgos ambientais no possuem estrutura de pessoal capaz de fiscalizar as unidades de conservao, uma vez que, como ressaltado por estudo da ONU o Brasil deficiente na gesto das unidades de conservao e apresenta baixo oramento para investimento em infraestrutura 70.

70

Disponvel em <http://uc.socioambiental.org/noticia/onu-afirma-que-brasil-%C3%A9-deficiente-nagest%C3%A3o-das-unidades-de-conserva%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em 15.09.2011.

109

A atual situao do termo de compromisso no permitiu, in locu, o acompanhamento da gnese e da construo deste instrumento, o que somente foi possvel pela anlise dos documentos constantes nos Anexos, considerando que o instrumento em questo vem se aperfeioando desde dezembro de 2003, conforme apresentado no item 3.1. A ONU ressalta que o Brasil possui a quarta maior rea coberta por unidades de conservao (1.278.190 km), com um total de 8,5% de sua superfcie coberta por UC, mas fica atrs de naes mais pobres e menores quando so comparados quesitos como funcionrios e oramento por hectare. Cita como exemplo a Costa Rica, pas da Amrica Central com 4,5 milhes de habitantes, que possui um funcionrio para cada 26 km de rea e investe R$ 31,29 em cada hectare (10 mil m). O Brasil, por sua vez, tem um funcionrio para cada 186 km de florestas protegidas e aplica R$ 4,43 em cada hectare. O nmero muito abaixo dos Estados Unidos, que aplica R$ 156,12 por hectare (35 vezes mais que o Brasil) e tem um funcionrio para cada 21 km. Obviamente, no caso da Amaznia, a proporo de agentes estatais ainda menor, pois como afirma a reportagem retirada da rede mundial de computadores, o prprio Secretrio de Biodiversidade e Florestas do Ministrio do Meio Ambiente afirmou que tem que "usar a criatividade para melhorar a gesto e proteo" e cita ainda como exemplo o PARNA-Ja, ao mencionar que devem ser feitas parcerias com instituies acadmicas ou ONGs para uma gesto compartilhada nas unidades de conservao, salientando que tal situao j ocorre nos parques nacionais da Serra da Capivara (PI) e do Ja (AM). Em verdade, somente a criatividade no basta para atuar na gesto e proteo de uma unidade de conservao como o PARNA-Ja que conta, atualmente, com apenas 04 analistas ambientais, conforme informao obtida em recente documento oficial do ICMBio, o Boletim Interno do ICMBio n 154, p. 3. Sinal da importncia do termo de compromisso e, ao mesmo tempo, do incio das discusses sobre tal instrumento jurdico, ainda que passados oito anos de sua instituio legal, o fato de no ano de 2010, o ICMBio realizou a primeira Oficina sobre termos de compromisso com populaes tradicionais em unidades de conservao da natureza de proteo integral, no perodo de 10 a 13 de novembro de 2010, em Braslia-DF, consoante informao obtida em recente documento oficial do ICMBio, o Boletim Interno do ICMBio n 123, p. 10.

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3.5 A MINUTA DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA

Uma das providncias elecandas no TAC firmado pelo MPF e IBAMA no dia 19 de dezembro de 2003 (Anexo B), foi cumprida em 21 de junho de 2006, com a edio do Decreto s/n, que criou a Reserva Extrativista Rio Unini, no Municpio de Barcelos, Estado do Amazonas, abrangendo uma rea de aproximadamente oitocentos e trinta e trs mil, trezentos e cinquenta e dois hectares, localizada na confluncia do Rio Unini com o Rio Negro. A RESEX Rio Unini tem por objetivo, de conformidade com o art. 2, do Decreto s/n, de 21 de junho de 2006, proteger os meios de vida e a cultura da populao extrativista residente na rea de sua abrangncia e assegurar o uso sustentvel dos recursos naturais da unidade. Apesar desta pesquisa estar direcionada para uma unidade de proteo integral, no somente em unidades de uso indireto que ocorrem conflitos, como ressaltado por Oliveira & Camargo (2006), em artigo sobre a Reserva de Desenvolvimento Sustentvel (RDS) do Tup. Oliveira & Camargo (2006, p. 219) concluem que a excluso das populaes tradicionais (usurios locais dos recursos naturais) da formao e gesto das unidades de conservao prejudicial para o meio ambiente natural e para a efetivao do desenvolvimento sustentvel, pois uma excluso (baseada em uma ideologia preservacionista) que prejudica a interao do homem com o meio que o circunda e gera problemas sociais, ensejando a pobreza. H tambm exemplos exitosos da relao homem-natureza e um deles o caso da Reserva de Desenvolvimento Sustentvel Mamirau. A rea da Reserva, criada em 1990, inicialmente como Estao Ecolgica (Decreto n 12.836 de 9 de maro de 1990), numa rea de 1.124.000 hectares, localiza-se no municpio de Tef, no interior do Estado do Amazonas, fazendo limites com os municpios de Mara, Alvares, Uarini, Juru e Fonte Boa, distando cerca de 600 km de Manaus, na regio do Mdio Solimes, na confluncia dos rios Solimes e Japur, entre as Bacias do Rio Solimes e do Rio Negro. Sua poro mais a leste fica nas proximidades da cidade de Tef, no Amazonas. (BANNERMAN, 2008)

111

Conforme Bannerman (2008), as comunidades residentes na poca da instituio da unidade de conservao, cuja categoria inicial - estao ecolgica - incompatvel com o uso dos recursos naturais, viviam da pesca e da coleta e da agricultura de subsistncia. Tal fato motivou a adequao jurdica da unidade de conservao realidade local, sendo que, em 1996, Mamirau foi reclassificada pelo Governo do Estado do Amazonas em Reserva de Desenvolvimento Sustentvel. Os territrios em que vivem as comunidades tradicionais contam fragmentos de sua memria sobre o passado vivido no stio, do seu presente sofrido e de um futuro incerto. Como muito bem alertado por Toledo (1988 apud PRIMACK E RODRIGUES, 2001, p.282), no h como resguardar a herana natural de um pas, sem que seja dado valor equivalente para a herana cultural:
difcil planejar uma poltica de conservao em um pas que caracterizado pela diversidade cultural de sua populao rural, sem levar em considerao a dimenso cultural; o profundo relacionamento que existe desde os remotos tempos entre natureza e cultura. Cada espcie de planta, grupo de animais, tipo de solo e paisagem quase sempre tem uma expresso lingustica correspondente, uma categoria de conhecimento, um uso prtico, um sentido religioso, um papel em um ritual, uma vitalidade individual ou coletiva. Salvaguardar a herana natural do pas sem resguardar as culturas que lhe tem dado vida, reduzir a natureza a algo sem reconhecimento, esttico, distante, quase morto. (grifos nossos)

Com base no Termo de Compromisso n 001/2006, firmado entre o IBAMA e a Comunidade do Sucuriju, constante no Anexo C, comparando-a com a minuta do Termo de Compromisso formulado para o Parque Nacional do Ja (Anexo E), verifica-se no haver o tpico considerandos, em que ressalta a existncia de populaes antes da instituio da rea protegida ou que faa referncia ao fundamento legal da celebrao do instrumento jurdico. Delineada a natureza jurdica do termo de compromisso, qual seja documento pblico uma vez que tem a atuao de rgo de direito pblico, o ICMBio, e regula condies de acesso rea que tem proteo pblica, uma unidade de conservao, v-se que o termo de compromisso est adstrito s disposies da Lei n 8.666, de 21 de junho de 1993, uma vez que alm de licitaes, o referido diploma legal tambm regula os contratos administrativos. A minuta do termo de compromisso referente ao PARNA-Ja possui 09 clusulas, considerando ter havido incorreo em relao numerao da oitava clusula.

112

Cabe o registro de que o termo de compromisso da REBIO do Lago Piratuba possui um detalhamento maior, em relao minuta do termo de compromisso do PARNA-Ja, acerca das limitaes quanto ao uso dos recursos naturais expresso em, pelo menos, 09 clusulas, regulando inclusive a pesca, e o perodo, de determinadas espcies. Alm de detalhamento maior no termo de compromisso da REBIO do Lago Piratuba, verifica-se no ter sido lanada na minuta do termo de compromisso do PARNA-Ja a legislao aplicvel ao contrato, exigncia prevista no art. 55, inciso XII, da Lei n 8.666/93. Vale dizer, que no caso da REBIO do Lago Piratuba, esta legislao est presente, o Decreto n 4.340/2002, justamente o diploma legal que fundamenta o instrumento jurdico. Outro aspecto importante no previsto na minuta do termo de compromisso do PARNA-Ja foi sobre a identificao do morador dessa UC, a exemplo do existente no Termo do Lago Piratuba com documento especfico fornecido pelo rgo ambiental, o que facilita a fiscalizao e controle daqueles que pretendem ter acesso rea protegida. Em relao a determinadas autorizaes quanto ao uso dos recursos naturais destacam-se aqueles previstos na clusula terceira do Anexo E:
I - continuidade da agricultura familiar com abertura de at 2 quadras/ano por famlia, nos mesmos locais e reas hoje em utilizao, sendo permitida a abertura de outras reas nos casos de comprovada necessidade com autorizao prvia e superviso do ICMBio; II - queima controlada em reas utilizadas para agricultura, com superviso do ICMBio; III - aproveitamento de madeira em reas de roado para finalidades domsticas; IV - reforma das edificaes, embarcaes e manuteno das benfeitorias j existentes, e ampliao ou construo de novas estruturas avaliadas como indispensveis permanncia digna, reproduo e subsistncia das famlias; mediante autorizao do ICMBIO; V - complementao ou substituio de cultura ou atividade por outra de demonstrado menor potencial de impacto ambiental, a ser avaliada pelo ICMBio; VI - corte ou erradicao de espcies vegetais exticas, sem autorizao do ICMBio, exceto nas reas de Preservao Permanente e Reserva Legal, VII - captura artesanal de peixes, de acordo com as normas aplicadas pesca, e desde que exercida pelos moradores para consumo prprio, vedada a captura de espcies ameaadas de extino, mesmo localmente. VIII - extrativismo vegetal para consumo e para pequena atividade comercial, cora vistas a gerar rendimento econmico para compra de diversos insumos necessrios a vida cotidiana familiar, devendo a explorao do recurso ser feita de forma manejada e previamente autorizada pelo ICMBio;

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IX - caa para subsistncia, respeitando-se as espcies em extino, perodos de reproduo e mes acompanhadas de filhotes, zelando pelo no desperdcio; X - criao de espcies domsticas de pequeno porte, em cercados adequados e com a superviso do ICMBio; XI - operao do turismo em base comunitria, respeitado o Plano de Uso Pblico da unidade.

Em relao a determinadas restries quanto ao uso dos recursos naturais destacam-se as seguintes proibies constantes na clusula quarta do Anexo E:
I - corte de espcies de vegetao nativa, com exceo dos casos de extrema necessidade e devidamente autorizados pelo ICMBio; II - criao, comrcio e domesticao de espcies de animais silvestres; III - criao de abelhas exticas ou de espcies que no ocorrem no Parque; IV - realizao de qualquer tipo de barramento nos cursos d'gua; V - estabelecimento de tanques para aquicultura; VI - despejo de lixo, resduos txicos e lastros de embarcaes nos rios e lagos que compe os recursos hdricos do Parque.

Restrio inserta na minuta do termo de compromisso do PARNA-Ja a limitao da entrada de no moradores, somente mediante a assinatura de Termo de No Morador, prevista na clusula quinta do Anexo E, em que o morador responsabilizar-se- pelos atos do visitante. Nesse caso, tal trecho de duvidosa legalidade, uma vez que prev, explicitamente, hiptese de responsabilizao objetiva. De acordo com o 1 do art. 39 do Decreto n 4.340/2002, o termo de compromisso
deve indicar as reas ocupadas, as limitaes necessrias para assegurar a conservao da natureza e os deveres do rgo executor referentes ao processo indenizatrio, assegurados o acesso das populaes s suas fontes de subsistncia e a conservao dos seus modos de vida.

Decompondo-se o dispositivo legal acima em relao minuta do termo de compromisso do PARNA-Ja tem-se que:
I - as reas ocupadas: o Parque Nacional do Ja clusula primeira; II - as limitaes necessrias para assegurar a conservao da natureza: clusulas terceira e quarta; III - os deveres do rgo executor referentes ao processo indenizatrio: inexiste no termo compromisso; IV acesso das populaes s suas fontes de subsistncia e a conservao dos seus modos de vida: das permisses clusula terceira.

Outra ausncia relevante no termo do PARNA-Ja a falta de designao do Foro para dirimir eventuais conflitos, exigncia em qualquer contrato administrativo, conforme dispe o 2, do art. 55, da Lei n 8.666/93.

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O prazo para assinatura do termo de compromisso, segundo o 3 do art. 39 do Decreto n 4.340/2002, de 01 ano da criao da UC ou de 02 anos da publicao do referido decreto federal, que, certamente, j foi extrapolado. De qualquer forma, em razo da caracterstica de negociao, posteriormente das anlises oficiais a que a minuta deva ser submetida e retorno comunidade, tal prazo , praticamente, inexequvel. Mesmo no caso da REBIO do Lago Piratuba, esse somente foi assinado em 30 de novembro de 2006, portanto 04 anos aps a edio do decreto em questo. De igual forma ao Termo da REBIO do Lago Piratuba o fato de que, na minuta do termo de compromisso do PARNA-Ja, os signatrios so o rgo ambiental (ICMBio, no caso do PARNA-Ja foi), o morador e o presidente da associao comunitria, consoante previso do 2 do art. 39 do Decreto n 4.340/2002. Assim, tomando-se como referncia o Termo de Compromisso da REBIO do Lago Piratuba, nico documento desse gnero em execuo, e o fato de ainda ser uma minuta o Termo de Compromisso do PARNA-Ja, constatam-se ausncias relevantes, sejam no mbito ftico (no caso de limitaes a uso de espcies), sejam no mbito legal (no caso da legislao aplicvel, dos deveres do rgo executor e do foro). A situao atual do Termo de Compromisso do Parque Nacional do Ja ainda a minuta apresentada no Anexo E, encaminhada ao rgo sede do ICMBio em Braslia-DF por meio do Memorando PNJ n 055/2009, datado de 03 de novembro de 2009, constante no Anexo F. Aps anlise da minuta pelo rgo sede do ICMBio e retorno sede em Manaus, a minuta foi objeto de novas assembleias, nos dias 16 e 17 de fevereiro de 2011, com tcnicos da FVA, do ICMBIO e representantes da Associao dos Moradores do Rio Unini (AMORU). Conforme informao da Fundao Vitria Amaznica, neste evento foram reunidas todas as comunidades do Rio Unini para discutir e acordar a minuta do termo de compromisso e rever as regras que iro compor o anexo normativo do documento. 71

Disponvel em <http://www.fva.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=97:fva-e-icmbiodiscutem-termo-de-compromisso-com-comunidades-do-parque-nacional-do-jau&catid=3:noticias&Itemid=1>. Acesso em 13.09.2011.

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Participaram da Assembleia 41 representantes das comunidades Floresta, Tapira, Manapana, Lago das Pombas, Vista Alegre localizadas no Parque, Terra Nova, Patau e Lago das Pedras. A expectativa que at o final de 2011, os termos de compromisso sejam assinados entre as famlias moradoras do rio Unini e os gestores do Parque Nacional do Ja.

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4 CONSIDERAES FINAIS

A ideia de que o homem est inserido no ecossistema e dele necessita para sua sobrevivncia conduz concluso de que o meio ambiente direito humano fundamental de terceira gerao. exatamente isso que ocorre com o Direito Ambiental, relacionando-se com o direito vida num ambiente ecologicamente equilibrado. bem indivisvel por natureza, no sendo passvel de apropriao. Nesse sentido, imperioso limitar seu uso no presente para t-lo no futuro. Contudo, para que as reas protegidas consigam alcanar os objetivos pretendidos, em primeiro lugar, elas no podero permanecer como ilhas de preservao do meio natural, isoladas da realidade local; em segundo lugar, esses espaos protegidos no devem ser institudos sem consultar a sociedade, especialmente as comunidades diretamente afetadas; em terceiro lugar, criao de reas de proteo ambiental poder ser compatvel com a presena das populaes tradicionais, que tambm podem auxiliar na gesto dessas reas. O movimento preservacionista, inspirado em uma perspectiva ecocntrica, trata como ilegal a presena humana nos biomas, por ser entendida como destruidora dos ecossistemas naturais. Tal ideologia, inspirada no modelo norte-americano do primeiro parque nacional no mundo, o Yellowstone, desencadeou a criao de diversos outros parques nacionais. As unidades de conservao exercem um relevante papel para a conservao dos recursos naturais dos ecossistemas, com a preservao de amostras representativas de reas naturais e de sua diversidade biolgica, bem como a manuteno da estabilidade ecolgica dos territrios prximos e os valores culturais de uma populao circunvizinha. E, nesse processo, h diversas terminologias para definir uma categoria especfica de manejo, como parques, reservas, florestas, entre outras. Outrossim, tais nomenclaturas no tm serventia alguma se as normas e as diretrizes de planos de manejo de uma unidade no forem respeitadas e praticadas, bem como a sua legislao. As primeiras unidades de conservao foram criadas sem nenhum tipo de critrio cientfico e tcnico, isto , estabelecidas apenas em razo de suas belezas cnicas, resultando em processo de criao deficiente e gesto precria. O que ocorre tambm a criao de unidades como resposta a ndices decrescentes de biodiversidade em ecossistemas do planeta, com a pretenso de reverter o processo de extino de recursos em constante acelerao em razo da ao predatria do homem sobre a natureza.

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A criao do Parque Nacional do Ja tambm foi inspirada nesse iderio em que o homem deve ser apartado da natureza e mais, de que no havia a existncia de pessoas na rea delimitada. O que se percebe que, to somente, a criao de unidades no garantir a conservao dos recursos naturais se forem executadas sem polticas de defesa do meio ambiente e sem a participao das comunidades locais, somadas a uma educao e conscincia ambiental nessas comunidades. Alm da falta de preparo de tcnicos e de esclarecimento da populao, outros fatores comprometem a conservao da biodiversidade, dentre as quais a problemtica da questo fundiria, a fiscalizao precria, demora na aplicao de multas e compensaes em relao rea degradada, bem como a infraestrutura (fsica e humana) das unidades. A condio de pas megadiverso e plural da Repblica Federativa do Brasil no pode deixar excluir a diversidade cultural como participante e, em alguns momentos, agente desta constituio biodiversa, at porque a diversidade cultural, consubstanciada nos direitos culturais, tambm direito humano. Com efeito, um dos elementos marcantes da forma de organizao social das populaes tradicionais o modo com se relacionam com a natureza. certo que todos os grupos sociais possuem certa interdependncia com os recursos naturais, mas para essas populaes a importncia de tal relao possui inmeras particularidades, no sendo legtimo qualquer tipo de comparao entre essas e as sociedades ditas industriais. As populaes tradicionais, tal qual aquelas que habitam o Parque Nacional do Ja, se inserem nas discusses acerca da biodiversidade contrapondo-se s teses preservacionistas fundamentadas na separao entre homem e natureza, sendo o termo de compromisso o instrumento jurdico que consagra essa incluso, afastando, inclusive no campo legal, a ideia excludente da relao homem-natureza. Desta feita, para pases em desenvolvimento como o Brasil, considerando a estreita relao entre sociodiversidade e biodiversidade, h necessidade de alternativas que permitam no apenas a proteo da biodiversidade, mas o desenvolvimento social, principalmente dos povos tradicionais. A conservao diz respeito estratgia de uso da natureza em bases sustentveis, isto , fundadas em manejo, racionalidade da explorao dos recursos considerando o homem

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como sujeito no equilbrio de tal relao. Assim, a estratgia de uso sustentvel dos recursos naturais insere os povos tradicionais como atores da proteo da biodiversidade. Nesse passo, quando se cria uma rea protegida, devem-se levar em considerao todos esses aspectos, inclusive a possibilidade de uma relao simbitica entre homem e natureza, como ocorre no Parque Nacional do Ja, pois exsurge uma indagao: como pode ser protegido o patrimnio cultural brasileiro, que possui tutela constitucional, com a excluso de populaes do local onde a cultura se originou? Tal poltica unilateral de criao de unidades de conservao em reas de que j habitavam populaes tradicionais tem levado a uma coliso de dois direitos fundamentais garantidos constitucionalmente: o direito cultural e o natural. Neste caso, h um choque, um autntico conflito de direitos. Trata-se de um autntico conflito entre direitos fundamentais e bens jurdicos das populaes tradicionais, expressado pelo patrimnio cultural, e o direito de preservao de um bem ambiental, no caso o meio ambiente. Tendo em vista que no ordenamento jurdico brasileiro inexiste normas constitucionais inconstitucionais, ou seja no h possibilidade de uma antinomia constitucional, para a soluo desse conflito deve-se partir do pressuposto de que todos os direitos tm, em princpio, igual valor, devendo os seus conflitos serem solucionados por meio do recurso ao princpio da concordncia prtica, de modo que no pode levar ao sacrifcio ou aniquilao de um em relao ao outro. As definies de unidades de conservao contm os princpios conservacionistas do incio do sculo, com valores socioculturais diferentes dos que existem na realidade brasileira hodierna; por isso exigem mudanas e atualizaes capazes de abarcar tais princpios e valores e fazer com que seus preceitos sejam aplicveis ao abrigo de novos paradigmas. Na elaborao das normas, o legislador deixa-se impregnar pelos valores socioculturais vigentes em um dado momento histrico. Logo, a mens legis espelha o esprito sociocultural vigente poca de sua elaborao. Antes que as populaes tradicionais desapaream mais rpido do que as florestas tropicais nas quais habitam, mister conhecer o modo de vida dessas populaes, pois grande parte do conhecimento sobre os recursos naturais so obtidos por meio da tradio.

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A defesa do meio ambiente maior do que a defesa somente da flora, da fauna e do meio fsico; inclui tambm o ser humano, atravs de suas atividades culturais e materiais, consubstanciado a diversidade cultural de um pas plural. Registre-se aspecto assaz paradoxal em relao ao tema objeto desta pesquisa: a instalao de uma unidade de proteo integral com comunidades no seu interior, no caso no Parque Nacional do Ja, s refora o fato de que, nessa situao, tais grupos humanos no degradaram o meio ambiente. Ao revs, se aquelas comunidades tivessem causado degradao sensvel ao meio ambiente, no se teria uma unidade de proteo integral. No pode deixar de ser reconhecido o valor das unidades de conservao para proteo da biodiversidade; outrossim, a eventual retirada de populaes da reas que o Estado pretendeu proteger pode significar a acelerada degradao ambiental daqueles espaos. De outra parte, cada vez mais se reconhece o papel relevante das populaes tradicionais para a conservao e uso sustentvel dos recursos naturais, pois essas populaes possuem conhecimentos e prticas de subsistncia que so adequadas ao meio em que vivem e possuem um papel de guardies do patrimnio biogentico do planeta, sem perder de vista que tambm h registros de mau uso dos recursos naturais ou utilizao de reas protegidas, tais como veraneios ou com vistas especulao imobiliria, como ocorre em exemplos antes mencionados na Mata Atlntica. Ademais, os princpios que inspiraram a criao de algumas unidades de conservao, a exemplo do Parque Nacional do Ja, so anteriores Constituio atual, merecedores, portanto, de uma reviso normativa para se harmonizarem com os mandamentos constitucionais, em especial o postulado da dignidade humana. Caso contrrio, estaramos, em tese, diante de uma inconstitucionalidade, pois se de um lado a Constituio tutela os elementos naturais, artificiais e culturais, de outro, a lei ordinria e os agentes do poder pblico ambiental desconsideram o aspecto cultural. Vale dizer que a criao do PARNA-Ja foi inspirada em cartografia poltica, em que as pessoas l existentes eram invisveis e aps passaram a ser transgressores. Hoje, tais pessoas passam a buscar uma cartografia da existncia. No se pode partir da premissa que a presena humana seja nociva ao ambiente. Devem ser utilizados critrios objetivos e tcnicos hbeis a essa constatao, afastando subjetivismos e generalismos. Tais critrios podem estar elencados no termo de

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compromisso que se reveste de verdadeiras regras de convivncia entre homem e natureza, limitando a ao humana nos espaos protegidos. Os povos tradicionais tm travado uma luta em busca de seu protagonismo no uso dos recursos naturais, consubstanciando uma desobedincia civil de no aceitao de um modelo ps-posto, sem reconhecer a realidade local. No caso das comunidades presentes no Parque Nacional do Ja, no h na literatura oficial pesquisada elementos ou informaes que permitam indicar que tal populao esteja causando degradao ao meio ambiente; talvez, at mesmo, possa ser indicativo do trabalho de conscientizao realizado para a consecuo do termo de compromisso. A rea do Parque Nacional do Ja de difcil acesso e, diferente de diversas outras no pas, no apresenta proximidade com estradas ou rodovias ou mesmo aglomerados urbanos, de modo que as comunidades ali instaladas, obrigatoriamente, optaram por esse modo de vida que causa pouqussima degradao ao meio ambiente natural. O termo de compromisso, originrio do poder estatal, um exemplo de instrumento de democracia direta que permite a construo de um documento oficial no seio da comunidade, com a participao desta e de rgos pblicos e no governamentais, normatizado, estipulando regras de conduta dos recursos naturais em relao aqueles que habitam espaos protegidos. Percebe-se no haver esgotamento do modelo estatal, mas a necessidade da participao e cooperao de outros atores para a consecuo dos objetivos propostos pelo prprio Estado, qual seja, a proteo de determinados espaos territoriais. O termo de compromisso, assim, revela-se tambm uma soluo negociada, uma forma de mediao social, sem perder o carter cogente, uma vez que tambm impe sanes, mas no de inspirao unilateral, evitando a via de cima para baixo, de molde a evitar flagrantes injustias e evidenciando prtica democrtica, ao prever a participao do cidado, respeitando a sua dignidade, relevando a cidadania, ao mesmo tempo em que prev limitaes ao uso dos recursos naturais.

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ANEXOS

135

ANEXO A - ATA DA PROCURADORIA DA REPBLICA/AM, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2003

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ANEXO B - TERMO DE COMPROMISSO FIRMADO NA PROCURADORIA DA REPBLICA/AM, EM 19 DE DEZEMBRO DE 2003

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ANEXO C - TERMO DE COMPROMISSO DA REBIO-PIRATUBA

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ANEXO D - ATAS DE REUNIES PREPARATRIAS DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA

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ANEXO E - MINUTA DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA

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ANEXO F - MEMORANDO QUE ENCAMINHOU A MINUTA DO TERMO DE COMPROMISSO DO PARNA-JA

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