Perrusi - Notas Sobre 'Futebol e Violência

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Artur Perrusi - "Notas sobre 'futebol e violncia' " - CAOS n 1 - abril/...

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Revista Eletrnica de Cincias Sociais

Universidade Federal da Paraba Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes Departamento de Cincias Sociais Curso de Cincias Sociais ISSN - 1517-6916

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CAOS Nmero 1 Abril de 2000

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Nmero 1 Abril de 2000 Nmero Zero Dezembro de 1999

Notas sobre "futebol e violncia" (1)


(2)

Artur Perrusi

"Como pode ser brbaro um povo que tem como maior abstrao de triunfo o grito de gol?" Carlos Drummond de Andrade

INTRODUO
H muito, uma inquietao ronda o cotidiano de todo torcedor: a questo da violncia no futebol! Sou um amante do fut e, enquanto tal, venho ficando preocupado com o recrudescimento da violncia nos estdios. Por isso, decidi analisar algumas questes relativas ao tema "futebol e violncia". Assunto difcil e complexo, mas sobretudo abrangente: futebol e violncia so grudes do nosso cotidiano! Fazem parte, digamos assim, de nossas vidas. E discutir problemas que repercutem diretamente no nosso dia-a-dia pode no ser to monumental assim (como, por exemplo, seria debater a Poltica ou a Arte), mas muito mais rduo, j que so assuntos que dizem respeito a todos e, portanto, todos podem meter o bedelho - todos opinam, logo no h especialistas na matria, estando todos em p de igualdade na discusso; pois, nesse Brasil velho e enfadado, de quase 500 anos, no h assuntos mais "democrticos"... Sim, "respiramos" futebol e violncia no dia-a-dia. Atualmente, para a imensa maioria do povo brasileiro, essas duas "entidades" so fontes de "extrema preocupao" - em casa, na rua, no trabalho, no bar - ; to extremas que so comezinhas, mesmo banais, fazendo parte inclusive da formao de nossa identidade. Em suma, para os brasileiros desse fim de milnio, futebol e violncia so assuntos "universais", sem distino de raa, classe ou renda. E se ficamos alegres com a universalidade do futebol, permanecemos perplexos diante da generalidade da violncia; pior, ficamos pasmos diante do encaixe quase perfeito entre o futebol e a violncia. a violncia dos jogadores; dos tcnicos, quando fabricam, entre outras coisas, tticas de "conteno" do jogo e do adversrio; dos dirigentes, no seu modus faciendi; da dita "rivalidade" entre as torcidas; da mdia, quando une, entre outras coisas, futebol e ufanismo... violncia lato sensu: fsica, simblica, ideolgica, o diabo a quatro. Alguns tericos do esporte diro que violncia e futebol sempre estiveram intrinsecamente relacionados, e o que vemos atualmente a renovao histrica dessa eterna relao. Ora, se a violncia fundou a cultura humana (vejam os

CONSELHO EDITORIAL Adriano de Len Artur Perrusi Carla Mary S. Oliveira

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antigos jusnaturalistas e mesmo... Freud), ela estaria tambm diretamente conectada gnese do futebol. Por que tantas metforas guerreiras no meio futebolstico? O futebol no seria a guerra feita por outras maneiras? O futebol, e o esporte de forma geral, no uma "catarse" que sublima e apazigua o instinto violento do ser humano? Pode ser, e voltaremos a discutir tal viso do futebol no artigo, pois os argumentos so poderosos e pertinentes.
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Contudo, mesmo admitindo que futebol e violncia tenham uma relao profunda, a impresso atual a de que, assim como a violncia vem desnaturando o tecido social brasileiro, o mesmo vem acontecendo com o futebol - uma das maiores causas do esvaziamento dos estdios em So Paulo, por exemplo, sem dvida a violncia. Talvez estejamos vivendo uma situao limite, ultrapassando uma fronteira que separa, algumas vezes de forma indistinta, a normalidade do patolgico. O excesso de violncia vem transformando qualitativamente nossa viso da sociedade e nosso ponto de vista sobre o futebol. E sendo o esporte um modo de agir e conhecer a realidade humana, e sendo o futebol o esporte fundamental do povo brasileiro, e sendo ele um amlgama de nossa identidade, um deslocamento nesse ponto de vista, uma mudana determinada justamente pela violncia pode trazer, a mdio e longo prazo, resultados catastrficos. Se a violncia desnaturar de vez o futebol, tenham certeza de que o imaginrio brasileiro vai mudar, se j no est mudando, e pra pior. Podem crer. Por fim, para terminar esta introduo, devo dizer que o texto tem como funo lanar questes, estabelecer discusses... Se os leitores comearem a se questionar sobre o problema do futebol e da violncia, saberei que valeu a pena ter escrito o artigo. Em suma, no pretendo oferecer aos leitores uma resposta ao tema - resposta bem mais variada e complexa do que sonha meu limitado conhecimento -, mas sim abrir um leque de questes.

VIOLNCIA NO FUTEBOL OU VIOLNCIA DO FUTEBOL


Queimando o tutano para escrever este artigo, comecei a tentar explicitar, na minha mente, qual era realmente a questo que estava examinando. Explico: vou analisar a violncia no futebol ou a violncia do futebol? No incio, pensei que tal problema fosse um tanto incuo, produto talvez da minha confuso mental. Depois, fui verificando que no, de fato a interrogao era legtima e podia trazer alguns esclarecimentos interessantes, principalmente se fosse entendida como um procedimento pedaggico que facilitasse a separao do joio do trigo, e por a vai. Na verdade, a confuso no era somente um produto da minha vocao cognitiva, mas tambm resultado do exame das diversas posies sobre o assunto, muitas das quais completamente discordantes entre si.

no futebol...
Assim, uma viso edulcorada do futebol, quando este entendido - alguns exemplos entre muitos outros - como uma "revoluo do lazer", uma "celebrao do tempo livre" ou a "unio universal entre os homens", certamente examinar a violncia no futebol. Ora, neste caso a violncia viria de "fora", sendo externa ao futebol, isto , no seria intrnseca ao campo futebolstico. A violncia no futebol seria conjuntural, pois trazida de outro meio, este sim violento - por exemplo: seja via Estado (instrumentalizao pela poltica), seja por uma outra esfera social (instrumentalizao pelo racismo) -, que se apropriaria do nosso esporte favorito. Sem tal violncia, que circunda as fronteiras do meio futebolstico, no haveria, portanto, violncia no futebol. No fundo, no precisaramos do conceito de violncia para entendermos o futebol, enquanto objeto de estudo. Tais posies so coerentes e vo ao encontro de nossa experincia cotidiana. A maioria absoluta dos torcedores que vai ao campo assistir a uma partida no vivencia - pelo menos, de forma consciente - o futebol como um evento violento ou que produza violncia. Mesmo que ocorram "descargas emocionais", tipo palavres, raiva da derrota ou gestos intempestivos, provavelmente tais situaes

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no so vivenciadas como um ato violento, enquanto tal. Aparentemente, a violncia trazida de fora, seja pela crise econmica, seja pela crise social e de segurana... Ora, se vivemos numa sociedade ultraviolenta, por que no pensar que tal violncia no esteja impregnando - e trazendo-a naturalmente para - o futebol? Violncia na sociedade e mesmo da sociedade, logo violncia no futebol. Ainda que exista muita verdade no raciocnio descrito acima, pois explica vrias facetas da questo "futebol e violncia", postular uma violncia no futebol, isto , pens-la como um fenmeno extrnseco ao campo futebolstico, como algo que vem de "fora", dificulta a compreenso do fenmeno dos hooligans ou das torcidas organizadas. Explico: como a violncia vem de "fora" do futebol, e sendo as torcidas organizadas grupos notoriamente violentos, de que maneira, por conseguinte, perceb-los enquanto parte do mundo do futebol, inclusive como torcedores? No causa surpresa que os membros das torcidas organizadas ou os hooligans sejam percebidos como delinqentes (e, de fato, muitos o so!) que vm aos estdios para bagunar e cometer atos violentos (e, de fato, isso ocorre), mas no propriamente para torcer. No so torcedores e no fazem parte do ordeiro mundo do futebol - eles vm de "fora". Na verdade, fazem parte de um outro mundo, o do crime - no s do crime, pois a violncia do hooligan vista muitas vezes como no humana (animals, como dizem os tablides ingleses) ou mesmo como inumana. Com efeito, h uma clara tendncia de criminalizao do "torcedor organizado", realizada principalmente pela polcia brasileira. Cuida-se do hooligan brasileiro da mesma forma que do marginal: na base da porrada. Torcida organizada e marginalidade so, no senso comum, praticamente sinnimos, e no por mera coincidncia. Talvez um dos mritos da polcia inglesa tenha sido o de compreender - aps uma srie de condutas erradas, vale dizer - que o hooligan no um delinqente propriamente dito, pois at mesmo estatisticamente a delinqncia minoria na torcida organizada, e sim um torcedor, mas de um tipo diferente (vou discutir tal questo na continuao da srie "futebol e violncia", no site "Futiba" http://www.uol.com.br/futiba/). De certa forma, o hooliganismo comeou a ser visto como uma violncia do futebol, e no apenas como um fenmeno comum relacionado criminalidade, criando-se inclusive na Scotland Yard uma "unidade especial de inteligncia sobre o futebol" para tratar do problema. Compreender a violncia como um fenmeno externo ao campo futebolstico possui outra dificuldade: independentemente de ser intrnseca ou extrnseca, a violncia sempre existiu no futebol desde as suas origens. Por exemplo: se as origens do fut remontam Idade Mdia, o jogo praticado, at ento, era to violento que, em 1314, o rei ingls Eduardo II proibiu seu exerccio; na Inglaterra elisabetana, o futebol, uma espcie de "base football player", era visto como um jogo vil, conforme afirma o duque de Kent no Rei Lear de Shakespeare; la soule, verso francesa do jogo de bola, era to violenta que os reis Felipe V e Carlos V tiveram que proibi-la em 1319 e 1369, respectivamente. Assim, os exemplos histricos so numerosos e eloqentes (vrios nos sculos XIX e XX), relacionando sempre futebol e violncia. O futebol, historicamente, no parece um campo pacfico invadido externamente pela violncia alheia, mas sim um esporte que possui a sua prpria violncia. Desse modo, deve-se examinar a violncia do futebol e no no futebol? Sim, no, mas sim, mas no, nem isso (eu pareo um tucano falando). Contudo, para facilitar, comearei pelo "sim", e vejamos aonde isso vai dar...

Do futebol (primeiro clich)...


O que significa dizer que a violncia vem do futebol? Bem, seguindo o raciocnio do artigo anterior, seria alegar que a violncia intrnseca ao futebol, ou seja, que no externa ao mundo futebolstico, e sim, e at mesmo, constituinte do contedo esportivo do futebol.

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Tal alegao, no entanto, no to evidente assim, pois as diversas posies que se nutrem dessa inferncia so nuanadas, e a noo de violncia , geralmente, introduzida de forma indireta e latente. Seria raro encontrar uma posio colocando, de forma explcita, que o futebol explicado pelo conceito de violncia; na verdade, a violncia vista muitas vezes como uma conseqncia inevitvel do futebol. De todo modo, para fins de exposio, analisarei algumas posies tericas comumente encontradas no meio acadmico - que, direta ou indiretamente, consideram a violncia como intrnseca ao futebol. Por exemplo: teorias que analisam o fut como "po e circo" ou "pio do povo", geralmente colocado como fazendo parte do aparato de "dominao de classe"; teorias que definem o fut como uma instituio que sublima a violncia, atravs da prpria violncia simblica desse esporte, afirmando o futebol como uma "guerra feita por outros meios"; ou ainda teorias que continuam a tradio terica da psicologia social de criminlogos e psiquiatras do final do sculo XIX, julgando o fut como uma degradao do tecido social, cuja massa de torcedores vista como uma horda primitiva, anrquica e catica, em que toda violncia possvel e temida. Analisarei especialmente essas trs posies, at porque so as mais conhecidas, j fazendo parte, digamos assim, do patrimnio cognitivo do senso comum; em suma, podem ser consideradas como clichs. Alis, nada contra os clichs, aviso logo, pois podem servir como inspirao a um argumento ou mesmo como fonte de esclarecimento e conhecimento - o futebol, por exemplo, um mar de clichs e, convenhamos, sem eles, o que seria de ns, opinantes do fut? Contudo, o clich geralmente redutor, talvez porque precise pagar o preo da simplicidade; afinal, uma frmula que precisa ser simples para ser repisada e popularizada. O perigo que o clich parece ser uma meia-verdade, isto , no seria uma mera mentira, em que a verdade apenas est sendo negada e, portanto, continua embutida na negao; no, a meia-verdade est aqum da veracidade e alm da mentira, sendo um labirinto onde se procura a verdade, mas no se sabe se a busca v ou realmente sem propsito. "Futebol po e circo" seria um exemplo perfeito de clich, a comear pela sua longevidade: panem et circenses eram responsabilidades do imperador romano (na verdade, de toda a nobreza romana), mas o po e o circo foram, na poca, alm de uma tentativa de apaziguamento do furor plebeu (principalmente na decadncia do imprio romano), tambm um dom coletividade, um mecenato cidade. Visitando cidades antigas gregas e romanas, percebe-se que vrios prdios pblicos foram doaes de "notveis", perfazendo um costume provavelmente relacionado a uma moral de "classe" - tal fato acontece e aconteceu na dita modernidade; no Brasil, por exemplo, vem-se vrias doaes do tipo, principalmente vindas da liberalidade do nosso capitalismo emergente. Com o surgimento da democracia e do Estado de Direito, a "doao" tornou-se "intolervel", saturando-se de desconfiana cvica, e o "dom" virou sinnimo de troca de favores - no sentido antigo, seria "po e circo" a troca de favores que acontece no dia-a-dia entre os usurios e a polcia rodoviria. Evidentemente, as "doaes" continuam, embora na surdina, principalmente em pases onde o Estado de Direito apenas de direito e no de fato; mas, com as devidas excees, tais "doaes" so vistas com maus olhos. Mudando historicamente as conotaes pblicas e privadas do termo "doao", a acepo da expresso "po e circo" passou a significar quase exclusivamente "apaziguamento das massas". Se subentende-se o que significa "apaziguamento", deve-se concluir que as "massas", por um motivo ou por outro, geralmente esto "colricas" com alguma coisa - como toda "elite" paranica por natureza, deve-se entender que a "fria" popular invariavelmente vai de encontro ao status quo da sociedade.

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Aparentemente, a causa do furor popular sempre um mistrio para os gentishomens - "por que urram tanto?" - perguntam. "Esto com fome?" "Que se d po" - diz o papa-figo da Bahia. "Esto gritando ainda?"... "Que se d circo" - diz o rei do paulistrio. Nesse sentido, "po e circo" significa um tipo de lazer coletivo no qual a coletividade participante submete-se a um mecanismo qualquer de "apaziguamento" de seu furor e/ou de sua tendncia sublevao, sofrendo, com isso, um "afastamento" de seus verdadeiros interesses. Em suma, a "massa" distrai-se e se esquece da dura realidade - tal viso pode-se misturar teoricamente com a teoria da catarse e da sublimao, como veremos mais adiante. O futebol, enquanto "po e circo", seria uma espcie de pio que anestesiaria os torcedores, desviando-os das mazelas cotidianas e de uma conscientizao poltica da realidade. O futebol produziria, assim, uma "despolitizao" das massas, fazendo parte do aparato simblico de dominao das "classes dominantes". O futebol, enquanto "po e circo", faria parte das diversas formas de "violncia simblica" que alienam as massas, os trabalhadores e quejandos. Bem, pode-se fazer vrias crticas a essa posio. Uma das observaes possveis seria bem pessoal: minha sensao a de que, se o escrito acima for verdadeiro, eu seria, digamos assim, um parvo. Sim, um parvo. Bem, primeiro implica dizer que preciso ser apaziguado de alguma forma, mesmo que minha me repita que fui e sou um rapaz calmo e pacfico - de qualquer forma, o famoso "apaziguamento das massas" est indo de gua abaixo: o torcedor violento entra violento no estdio e sai to violento quanto. Segundo, que as partidas de futebol "distraem-me" ao ponto de esquecer a dura realidade brasileira e a existncia de Eurico Miranda ou a de Ricardo Teixeira - vou ao estdio e volto "limpo" de rancor e de raiva contra o mundo. No sei se porque tenho um ressentimento danado contra o establishment ou porque seja vacinado contra a alienao, mas o problema que no me esqueo de nada! Posso me distrair, claro, e o futebol uma forma de distrao, mas nenhum mecanismo cognitivo entorpece meu senso crtico por causa do futebol. Mas voc um pequeno-burgus! - exclama um esprito de porco. Certo, sou um pequeno-burgus, e sendo assim, tenho uma vida melhor, uma educao formal e mais acesso s informaes, podendo combater um pouco mais eficazmente a "alienao". Mas isso quer dizer que o "popular" um dbil mental que vai ao estdio e "esquece" que miservel, que h pobres e ricos, sacanagens, dominao, represso, explorao nesse mundo? A "alienao" causada pelo efeito "po e circo" do futebol seria seletiva, ao ponto de poupar um pequeno-burgus, mas no um "plebeu"? Um mecanismo seletivo de classe? Evidentemente, h imbecis no povo, tanto quanto h na pequena ou grande "burguesia"; afinal, a imbecilidade no um monoplio de classe. Mas no consigo compreender - ou, pelo menos, at hoje nunca li tal explicao - como funciona esse mecanismo cognitivo de "despolitizao" do torcedor. Seria o espetculo em si? Mas como? A bola teria uma funo hipntica, causando um efeito de distanciamento da realidade? Mas como? Seria o efeito de distraimento? Confesso que, durante uma partida de futebol, esqueo-me momentaneamente do PFL e quejandos, mas declaro que fao a mesma coisa quando escuto msica, quando assisto a um filme no cinema, quando estou lavando os pratos... Em suma, geralmente o cio e o lazer distraem-me o suficiente para esquecer-me momentaneamente das mazelas do cotidiano e da dura realidade brasileira. No fundo, no propriamente um esquecimento, e sim uma mudana de foco e de ateno. Partindo do princpio de que a normalidade da cognio humana no passa necessariamente pela obsesso, podemos supor que no ficamos o tempo todo concentrado num tema ou assunto. Assim, mudar de tema ou se distrair com uma atividade de lazer, isto , assistir a um jogo de bola, por exemplo, no significa um esquecimento ou um distanciamento duradoiro da realidade.

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A teoria do futebol como "po e circo", advogada por alguns setores da esquerda, retoma mutatis mutandis o velho preconceito conservador contra o lazer das classes populares. Se o conservador gostaria de ver, no fundo, o trabalhador no parando de trabalhar (frias? Que desperdcio!), o "esquerdista" gostaria de ver o trabalhador no parando de... militar. Nesse sentido, o futebol ocuparia o tempo da militncia, inviabilizando a luta de classes - quem no se lembra da "proibio" de torcer pelo Brasil na copa de 70, quando nitidamente a ditadura estava instrumentalizando as vitrias da canarinha?! O conservador e o "esquerdista", assim, reencontram-se numa velha encruzilhada, onde reproduzem uma velha mania elitista: a dos educadores das massas - essa plebe que, se no trabalha, vai gastar o dinheiro na bebida; se no milita, vai alienar-se no futebol! Contudo, no nego que o futebol tambm seja um instrumento de controle social, embora tanto quanto as frias ou a escola. Tais instituies, incluindo o fut, no tm uma natureza fixa; nesse caso, uma natureza alienada. So espaos coletivos que podem ou no ser instrumentalizados ( direita ou esquerda), dependendo da conjuntura histrica. O fut, como manifestao coletiva da vida em sociedade, oferece um "campo" onde as pessoas expressam sentimentos, emoes e descontentamentos que podem ou no ser vinculados a outras "instituies sociais", como a poltica. E tais vinculaes so histricas, e no ontolgicas, isto , no so dadas de forma evidente como se fizessem parte da natureza do futebol. Por que reduzir o ato de torcer por um clube de futebol a uma compensao ilusria? Por que transformar o gosto pelo espetculo num distanciamento da realidade? inegvel o prazer que um torcedor sente em assistir a uma partida de futebol, mas duvido muito que tal hedonismo apague-lhe a diferena entre a diverso e o cotidiano, independentemente do fato de viver numa sociedade onde seu dia-a-dia tem como horizonte a excluso social e a quase ausncia de mobilidade social. No porque gritei feito um louco pelo Santa Cruz, exclamei invectivas febris contra o Sport ou sa completamente extenuado depois de uma vitria ou de uma derrota do meu clube, que perdi a minha capacidade prosaica de dar sentido minha vida e s minhas preocupaes. Enquanto torcedor, no estou condenado passividade poltica, alienao e reproduo das relaes de dominao. Degusto o "po" e vou ao "circo" - mas, juro que a minha alma no fica corrompida, mesmo voltando "pra l de Bagd" ao lar; em suma, permaneo intacto espiritualmente (pelo menos o que descubro no outro dia quando - para o bem ou para o mal - olho-me no espelho)...

Do futebol (segundo clich)...


Pode-se imaginar a seguinte hiptese: digamos que vivemos numa sociedade ultraviolenta; melhor ainda: digamos que nossa sociedade seja intrinsecamente violenta, seja por atavismo, seja por Destino, seja-l-por-qual-motivo-for. Sim, digamos tudo isso e, a partir disso, fiquemos um tanto embatucados em saber como nossa sociedade se equilibra ou resolve, de alguma forma, o problema da violncia, j que intuitivamente sabemos que ela um grande perigo para a manuteno da "vida social" - deixo de lado, por ora, esse mal-estar (ou aporia) bsico de uma sociedade naturalmente violenta, tendo que lutar contra sua prpria natureza, mas no conseguindo evitar de se manter enquanto tal, isto , violenta. Uma das provveis solues para a reproduo de uma sociedade intrinsecamente violenta seria a existncia de instituies de sublimao, isto , instituies sociais que sublimem ou purifiquem a violncia. Assim, atravs de um processo de "sublimao" ou de purificao, a violncia seria eliminada ou diminuda, permitindo que a sociedade se reproduza e controle sua prpria "fria" interna. Tais instituies funcionariam semelhana da tragdia grega, cuja "funo" era "aliviar" a "tenso" social atravs da encenao dramtica de situaes terrveis, ou seja, de coisas de nunca mais se ver, mesmo com o tanto de coisas passveis de nunca serem vistas que tinham lugar na vida e no

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imaginrio gregos; assim, ao trazer tona os mais entranhados sentimentos e emoes, a tragdia proporcionava ao homem grego antigo uma espcie de purgao e alvio dos mesmos. Tal interpretao da tragdia grega (pelo menos, uma das interpretaes) foi dada por Aristteles, via sua conhecida teoria da catarse. Podemos imaginar, caso tal interpretao seja correta, o grego antigo como um ser humano atormentado por sentimentos de extrema intensidade e violncia, necessitando de uma instituio, como o teatro, que aplacasse ou diminusse o poder desagregador do seu prprio pathos. Contudo, vale assinalar que Aristteles considerava tambm o teatro grego como uma instituio que formava e educava o indivduo, perfazendo o que se chamava, naquela poca, de paidia. Pode-se discutir por que os modernos apropriaram-se muito mais do lado esttico ou psicolgico (por exemplo: teoria da sublimao da violncia) da teoria aristotlica da catarse do que do seu lado tico ou pedaggico. Os motivos dessa apropriao unilateral so vrios e, infelizmente, no h tempo nem espao para discutir tal assunto aqui; de todo modo, o que importa nesta discusso que a teoria da catarse foi identificada a uma teoria de "purificao" ou "sublimao" de algumas potencialidades humanas, como a violncia, por exemplo. Pois bem, se na Grcia Antiga o teatro tinha um papel de "sublimao", quais seriam as instituies modernas que cumpririam tal funo? Pode-se especular sobre muitas, mas uma das principais certamente seria o esporte e, em particular, o futebol. A prtica do futebol e, principalmente, o espetculo futebolstico representariam no mundo moderno o que a tragdia teria sido na antiga Grcia. A catarse do futebol eliminaria, diminuiria ou purificaria a violncia que todo torcedor ou espectador traz, de forma implcita ou explcita, do meio onde vive e trabalha ou mesmo do seu prprio frum ntimo. Sendo vrias as teorias que se nutrem do paradigma da teoria da catarse, reunilas-ei, no intuito de simplificar, em dois grupos: o primeiro diz respeito s teorias "teraputicas" da catarse (3); o segundo, s teorias "perpetuadoras" da catarse(4). As teorias "teraputicas" da catarse, no geral, subentendem o seguinte: a catarse oferecida pelo espetculo futebolstico "purga" a violncia potencial ou real do torcedor; nesse sentido, a catarse possui uma funo teraputica, pois aliviaria e "trataria" a violncia potencial ou real do indivduo. J as teorias "perpetuadoras" da catarse julgam o espetculo futebolstico como reprodutor ou mesmo reforador da violncia latente ou concreta do torcedor; nesse caso, a catarse seria "negativa", mais parecida com um xtase propagador de um estado potente ou real de um indivduo. De todo modo, as teorias "perpetuadoras", assim como as "teraputicas" afirmam que o espetculo futebolstico substitui uma violncia real e concreta por uma outra simblica, quase sempre virtual e imaginria. A "funo" principal da catarse seria justamente evitar a realizao da violncia real, substituindo-a por um violncia simblica. Seria tal assertiva que uniria as teorias "teraputicas" e "perpetuadoras"... Nesse sentido, as teorias "teraputicas" seriam otimistas, visto implicarem que o torcedor sairia do espetculo futebolstico, pelo menos temporariamente, sublimado da violncia; j as teorias "perpetuadoras" seriam pessimistas, pois no garantido que o torcedor saia purificado da violncia - na verdade, o mnimo que se garante a realizao simblica da violncia potencial ou real do torcedor. Tenta-se prevenir, assim, o risco da exploso concreta da violncia, que colocaria em perigo o tecido social. Pode-se traduzir pragmaticamente tal viso da seguinte forma: diante do risco de violncia concreta, prefervel a violncia simblica. E como se daria a catarse? Em outras palavras: qual seria a "metodologia" da purificao e/ou da perpetuao? As respostas so variadas... Talvez as mais comuns - tanto do lado das teorias "teraputicas quanto do das "perpetuadoras" - sejam aquelas que relacionam o espetculo futebolstico com o fenmeno da guerra; isto , o futebol seria uma (5) espcie de "guerra ritual" . Assim, no espetculo futebolstico, o torcedor faria parte ou assistiria a uma mimesis simblica da guerra e, a partir dos rituais

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desse processo mimtico e simblico, purgaria ou reproduziria a violncia social. E, de fato, no difcil encontrar exemplos da mimesis: gritos de guerra das torcidas; metforas guerreiras: atacante, ataque, contra-ataque, artilheiro, etc.; investimentos simblicos em signos, tais como bandeiras, emblemas, insgnias; exploso de sentimentos e emoes de intensa carga agressiva, externados geralmente por expresses e gestos chulos, e por a vai. O futebol, desse modo, purgaria ou reproduziria a violncia atravs da reproduo simblica da atividade mais violenta da espcie humana: a guerra! O fut seria a "guerra realizada por outros meios"! "Teraputicas" ou "perpetuadoras", as teorias da catarse conectariam organicamente o futebol ao fenmeno da violncia. E a "materialidade" dessa mimesis seria principalmente os ritos tpicos do jogo de bola - sistemas de regras e cerimnias que "formatam" o fenmeno futebol. E no falo de rituais toa; afinal de contas, as teorias que se nutrem da teoria da catarse, ao tentarem compreender como ela se realiza, utilizam abundantemente conceitos provenientes da sociologia e da antropologia da religio (6) parafraseando um etnlogo francs : a partida um rito; a Igreja, o clube; a Cria, os dirigentes, e os padres, os comentaristas esportivos... Sendo uma religio profana, pode-se dizer que o futebol assume tambm a funo do mito, no sentido de resolver as tenses, os conflitos e as contradies sociais - que geram a violncia - no campo do imaginrio, da fantasia, da substituio simblica, j que tais questes no poderiam ser equacionadas na realidade. O futebol parece ser, assim, uma guerra sem exrcitos e uma religio sem Deus. Se boa parte do dito acima pertinente e tem sua utilidade na anlise do futebol, vrias dvidas e questes persistem (pelo menos no meu esprito) e vale a pena examin-las criticamente: talvez um dos problemas de se imaginar um processo catrtico purificador ou reprodutor seja o de se conceber o mecanismo cognitivo pelo qual se realiza a catarse. O que quero dizer o seguinte: digamos que, por fora do argumento, o futebol seja realmente uma "guerra ritual"; sendo assim, como o indivduo (neste caso, o torcedor) interioriza tal processo simblico de substituio? O processo de interiorizao consciente ou inconsciente? O mecanismo cognitivo aparenta-se sugesto hipntica?; se sou um indivduo violento, posso aventar que o futebol, como "guerra ritual", reproduziria ou mesmo estimularia a minha violncia; contudo, mesmo sendo violento, a passagem do gesto (as diversas condutas ritualsticas que fao durante a partida de futebol) ao ato (um ato qualquer de violncia) no evidente e imediata - um filme de ultraviolncia tipicamente americano incita violncia? Ora, a discusso no simples... E, num exemplo contrrio, se sou um torcedor pacfico (como a imensa maioria dos torcedores...), o que acontece quando sou alvejado pela violncia simblica? Permaneo pacfico enquanto tal, sublimado pelo espetculo, ou fico feito uma jaritataca furiosa presa numa gaiola? Considerando as duas opes, o que acontece exatamente em mim? Sou sugestionado? Sou estimulado? Sou manipulado? Sou purificado? Sou alienado? Tudo indica que o processo catrtico, segundo tais teorias, consumado minha revelia; mas, como todo processo inconsciente, seus mecanismos precisam ser decifrados e conhecidos, e at agora no o foram. Assim, considero as teorias da catarse ainda como uma hiptese a ser demonstrada; acredito que considerar o fut uma "guerra ritual" no pertinente ou, simplesmente, no ajuda a entender o futebol enquanto tal - inclusive, vale o mesmo raciocnio na considerao do fut como uma religio profana. No nego que possam existir elementos religiosos ou "guerreiros" no futebol; no entanto, discordo da reduo do futebol a tais elementos ou, expressando-me de uma forma mais contundente, no concordo em se subsumir a autonomia do fut, enquanto fato social total, ao campo da guerra ou da religio. Assim como nem todo prazer tem um carter sexual

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(como apregoa o pansexualismo freudiano), nem toda paixo ou violncia tem um contedo religioso ou guerreiro, respectivamente; se o fut uma "guerra ritual" ou uma violncia simblica que substitui a violncia social concreta, cabe uma pergunta relativamente ingnua: a maioria dos torcedores e daqueles que participam do mundo futebolstico tm uma "representao" do fut como uma "guerra ritual" ou uma violncia simblica? Minha hiptese (confesso que baseada na intuio) que no. Se tal hiptese comprovada, invalida a teoria da catarse? No, j que, aparentemente, o processo catrtico seria inconsciente; logo, independente da opinio e das representaes do torcedor. Nesse sentido, a representao do torcedor no serve como critrio de verificao ou validao da hiptese da catarse, visto que o processo catrtico realizado revelia do torcedor. Em suma, a opinio do torcedor vale pouca coisa, exceto para mostrar a disparidade entre sua conscincia e os processos sociais que moldam sua prtica e suas representaes de forma inconsciente. tudo bem, muitas vezes a verdade est oculta e vai de encontro s reflexes dos comuns dos mortais. Mas, outras vezes, o profundo est oculto, s que na superfcie... Ou, como disse Oscar Wilde, "o verdadeiro mistrio do mundo o visvel e no o invisvel". E, se o "visvel" aparece atravs das representaes dos indivduos, talvez seja interessante levar em conta a opinio de indivduos que esto diretamente relacionados com o fenmeno em questo - os torcedores e suas opinies sobre o futebol -, e no considerar tais opinies como iluses a priori. Portanto, revelia de socilogos e antroplogos, os torcedores e aqueles que participam do mundo futebolstico "sabem", "entendem", "conhecem" e produzem "conhecimento" sobre o futebol; pode-se apresentar inumerveis exemplos de violncia no futebol, e tal fato deve ser considerado; contudo, acho que a pergunta fundamental talvez seja a seguinte: por que a maioria absoluta das partidas de futebol no mundo inteiro terminam pacificamente e no causam distrbio algum? Por que as conseqncias cotidianas do futebol so apenas esportivas e no polticas, ideolgicas, ticas e tnicas? Convenhamos, no um tpico exagero "intelectual" considerar o futebol como uma "guerra feita por outros meios"?!; as teorias que se nutrem do "paradigma" da teoria da catarse apresentam a seguinte premissa antropolgica: a violncia um instinto bsico do homem. Tal premissa derivada de um velho mito fundador da modernidade: a violncia fundadora da cultura (sociedade). Tal mito foi canonizado pelos jusnaturalistas, advogados do "direito natural", e principalmente pela filosofia social de Hobbes. Provavelmente um mito enraizado noutro mais antigo ainda: a Doutrina do Pecado Original da tradio judaico-crist. Afinal, a violncia como "instinto" faz parte de nossas noturnas entranhas, endemoninhadas aps a Queda (falo daquela "queda" primeva, a da ma, e no da ltima - a Daquele Muro, que no deixa de ser uma plida metfora da primeira). Considero a Doutrina do Pecado Original como uma das mais profundas "teorias" psicolgicas do ser humano, sendo uma tradio de pensamento que vai de St Agostinho, Swift, e o escambau, at o maior moralista do sculo XX: Freud! Seria uma belssima crtica a todo racionalismo ingnuo que acredita num poder quase divino da Razo, desconhecendo nossas "profundezas", lugar de tantos mistrios e desvios. Como disse um adepto da Doutrina, Pascal: "o corao tem razes que a prpria razo desconhece". Pois , e a violncia seria uma dessas razes misteriosas e refratrias Razo... Mas o problema no o fato de se reconhecer a natureza misteriosa e irracional de nossas entranhas; o problema outro: se a violncia fundadora da cultura ou da sociedade, ela seria anterior ao mundo propriamente humano; ela seria natural. A naturalizao da violncia uma conseqncia direta do seu papel de fundadora da cultura humana - sendo natural, impossvel mudar a natureza violenta do homem, exceto talvez atravs da... engenharia gentica. Por isso a necessidade de instituies sublimatrias da violncia; por isso a considerao do esporte e, em particular, o futebol, como uma dessas instituies; por isso a busca obsessiva de demonstrar que o fut

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violento. Prefiro enveredar por outro caminho: considero a violncia como um fato cultural por excelncia. Faz parte da vida social humana, no lhe sendo anterior. Seria uma potencialidade tipicamente humana, existindo virtualmente e em exemplos individuais - caso de uma sociedade baseada em valores pacficos -, ou como determinao social fundamental - caso de uma sociedade como a da Alemanha Nazista. A violncia no est inscrita na biologia humana e sim na sua cultura. Ela no natural. Um leo ou outro mamfero superior no violento; ele pode ser agressivo. A conexo da violncia com a natureza biolgica do homem d-se justamente atravs do fenmeno natural da agressividade. A violncia no deve ser confundida com a agressividade. Para existir violncia, seria necessria a existncia de uma sociedade humana, isto , seria preciso a existncia da linguagem, da cultura, da vida social e do... desejo. Sim, desejo. A violncia o (7) desejo, explcito ou tcito, de destruio . O desejo, por mais que os sociobilogos esperneiem, no existe no mundo no humano, nem como tal nas sociedades primatas. Chita jamais desejou, nem mesmo a Tarzan... Assim, no concebo a priori o fut violento, embora este possa, dependendo do contexto, tornar-se assim; contudo, creio que um futebol indefinidamente violento definharia, pois sua contnua violncia entraria em profundo conflito com suas regras que so explicitamente contra atos violentos. O futebol pode ser considerado agressivo, pois um esporte de "contato", muitas vezes rspido. Um zagueiro, quando comete uma falta, no necessariamente violento. A falta parte inevitvel do jogo. Mas, se um tcnico manda fazer as famosas faltas de conteno no meio do campo ou manda quebrar o craque do time adversrio, tais faltas so violentas, pois houve premeditao, inteno e desejo de violncia. Quem torna o fut violento no seriam nossos instintos, e sim ns mesmos, enquanto sujeitos de sentido e de desejo. No herdamos a violncia e sim a "construmos". Um dos primeiros passos para prevenir a violncia seria assumi-la enquanto potencialidade do humano. O apelo para que se acabe com a violncia no caso aqui, do futebol - o apelo para que se acabe com uma situao que necessita de violncia. Como todo valor da humanidade, a violncia indestrutvel; pois, mesmo no "existindo" numa determinada realidade, sempre "habitar" os mundos da probabilidade e da possibilidade - como disse Gramsci, "a possibilidade no a realidade, mas no deixa de ser uma realidade". A violncia pode ser evitada ou mesmo protelada, sendo um preo a pagar exigido pelo "processo de civilizao". A grande questo talvez seja, assim, lutar pelo adiamento desse pagamento.

Do futebol (terceiro clich)...


Talvez, de todos os clichs, o agora analisado seja o mais preconceituoso em relao ao futebol - atualmente aquele que est se tornando o mais popular, provavelmente por causa do recrudescimento da violncia nos estdios. um clich que tem suas razes na psicologia social do sculo XIX, sendo uma espcie de atualizao do famoso estudo de Gustave Le Bon: "A psicologia das (8) multides" . Seria a "demonizao" da multido, entendida como uma horda anrquica e desorganizada, movida basicamente por instintos, personificando, enquanto tal, a morte dos laos sociais. Seria como se, a partir da multido, a interao social deixasse de existir. E, uma vez que os instintos, nessa psicologia racionalista, so vistos de uma forma "negativa", significando mais uma perverso da razo do que outra coisa, a violncia tornar-se-ia, enquanto instinto tpico, o leitmotiv da multido. E como ficaria o indivduo na horda? Nada bem. Ele sofreria um processo de regresso cognitiva, com a conseqente perda do seu controle volitivo, sendo comandado pelo caos impessoal da multido. O indivduo perderia sua individualidade e sua identidade, pois seria vtima de uma fuso entre sua personalidade e a massa. O resultado de todo

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esse processo aterrador: perdendo sua individualidade, o indivduo perde sua razo, afasta-se da "civilizao" e se inunda de "instintos bsicos", principalmente os mais pavorosos, a comear pela violncia. Sim, ele se torna muito violento... Tal viso seria um clich de matiz conservador, atestando um conhecido medo de base: o medo das massas, to caracterstico do sculo XIX e de vrias "elites" de nossa poca. Seria a defesa desesperada da integridade do indivduo diante do poder de fuso da multido. Pode-se at conceber uma situao em que ocorra tal fuso; pode-se at pensar em alguns exemplos concretos de fuso, principalmente nos casos cujo "tema", que move e interpela a turba, seja "negativo" e de fcil assimilao emocional; contudo, tais situaes so bem especficas e no podem funcionar como paradigma para outras situaes que envolvam "multides". Sociologicamente, "a multido como horda ensandecida" seria uma interpretao de tipo irracional da ao coletiva. Ainda que se possa conceber determinadas aes coletivas irracionais, geralmente a ao coletiva, mesmo quando ocorrem exploses de violncia, inteligvel e a violncia motivada, sendo dificilmente assimilada a exploses irracionais. O clich pode ser conservador, mas no monoplio de intelectuais assumidamente conservadores. Pode-se encontrar a utilizao do clich, at mesmo com mais virulncia, entre intelectuais de esquerda, principalmente na (9) anlise do fenmeno do hooliganismo . E, de fato, as torcidas organizadas so vistas, no apenas no meio acadmico, mas tambm no "senso comum", como hordas babando sangue (e, muitas vezes, a violncia das torcidas a isso se assemelha). O clich emigrou de uma avaliao geral de toda multido e de toda ao coletiva, para uma considerao especfica de um fenmeno social particular: as torcidas organizadas. Contudo, seria difcil considerar a torcida organizada como uma horda anrquica e desorganizada; ao contrrio, ela parece ser "ultra-organizada" - vide o exemplo de hooligans alemes utilizando meios sofisticados de comunicao e de organizao durante a ltima copa do mundo na Frana. A torcida organizada no uma "horda", embora seja violenta - ao menos, os rituais que "guiam" as condutas dos indivduos na torcida organizada parecem estimular as relaes de agressividade e, consequentemente, a transformao desta em violncia. Tal violncia seria irracional? Acredito que no. Boa parte da violncia das "organizadas" nitidamente premeditada, motivada e dirigida contra seu pior inimigo: uma outra organizada. E, na maioria das vezes, a violncia das organizadas nunca se concretiza, realizando-se num complexo aparato de mise-en-scne, no qual o teatro e a simulao de violncia - a "exibio" da torcida - parecem ser mais importantes do que propriamente o confronto fsico entre as torcidas. Pode-se fazer a hiptese de que a "ultra-organizao" das organizadas surja justamente a partir de um meio "anmico", isto , de um meio social onde as normas e as regras perderam boa parte de sua legitimidade e de sua eficcia; onde as pessoas no sabem mais quais so os direitos e os deveres de um convvio social contratual e institucional; onde no sabem mais a quem recorrer porque a legitimidade de toda sano foi por gua abaixo. As organizadas se nutrem ento da anomia? Talvez. Da insegurana social generalizada? Pode ser. No entanto, mesmo que tais hipteses sejam falsas, acredito que as "organizadas" so, de fato, organizadas e que sua violncia, quando acontece, no "instintiva" ou "irracional", e sim desejada e, muitas vezes, premeditada.

INCONCLUSES
Depois de todo esse priplo, confesso que termino a viagem um tanto insatisfeito. Na verdade, meu desagrado recai justamente na diviso bsica do artigo: a violncia do e a violncia no futebol. Inicialmente, pensei que tinha sido um bom insight e, de fato, tal diviso ajudou-me a perceber algumas questes; mas com

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o transcorrer da anlise fui enredando-me em algumas dificuldades tericas. O que quero dizer o seguinte: vrias teorias examinadas no artigo analisam a violncia como sendo no futebol e, tambm, do futebol. E, provavelmente, a realidade da violncia est no e vem do futebol; afinal de contas, ela pode perpassar toda e qualquer instituio social. No fundo, enredei-me nas aporias do dualismo entre o externo e o interno, entre o "dentro" e o "fora", entre o no e o do... Como superar tais aporias? Sinceramente, no sei bem... Talvez uma das formas seja reavaliar o papel do futebol na sociologia e na antropologia. O futebol sempre aparece explicado por outras realidades, como a religio e a poltica. Sua verdade est sempre deslocada de si mesmo, em outro lugar que no o do futebol. O ponto de referncia para compreend-lo sempre est fora de si mesmo, como se, somente atravs da poltica ou religio, por exemplo, o futebol pudesse realmente ser entendido. Enquanto tal, no seria inteligvel; enquanto derivao de outra instncia, enfim seria compreendido. Talvez devssemos compreender o fut como um fato social total; isto , como um "campo" ou uma "instituio" relativamente autnoma. Mais: no s autnoma, mas que tambm condensasse vrias outras determinaes sociais. O futebol tambm serviria como ponto de referncia para se entender outros fenmenos sociais como a religio, a poltica e, no caso do tema desse artigo, a violncia. Ao invs de explicarmos o fut pela violncia, faramos a viagem inversa: explicaramos vrias facetas gerais da violncia via o futebol. Imaginem explicar detalhes da missa de padre Marcelo via o espetculo futebolstico? Em suma, a sociologia do esporte deveria reivindicar, por exemplo, um status epistemolgico (10) semelhante ao adquirido pela sociologia ou pela antropologia da religio . No acho que esteja exagerando. O futebol tem uma importncia fundamental para o brasileiro; entender nossos valores e nossos processos de identificao passa necessariamente pelo futebol. Parodiando o antigo tcnico irlands do Liverpool, Bill Shankly: o futebol, para o brasileiro, no uma questo de vida ou de morte. muito mais importante do que isso. Como desprezar esse ponto de referncia bsico para compreendermos a ns mesmos? Aproveitando que estou entusiasmado, diria que o futebol uma das instncias sociais brasileiras que encarna o que tem de mais moderno no povo brasileiro. O fut competio, epopia individual, ascenso e descenso, mobilidade social, mrito, fim dos status de nascena, de etnia, social e de renda, afirmao de soberania nacional - o fut a encarnao do desejo igualitrio do povo brasileiro. O fut trabalho em equipe, diviso de tarefas, planificao de todos, projeto em comum, unio de cores e de sentido, organizador de coraes e mentes, xito coletivo - o fut a encarnao do desejo de solidariedade do povo brasileiro. O fut contingncia, destino incerto, o impondervel, estando entre o certo e o errado (bola na mo ou mo na bola? Foi falta ou no?), o justo e o injusto (mereceu a vitria?), o legtimo e o ilegtimo (o juiz roubou?) - o fut a encarnao do desejo de justia e liberdade do povo brasileiro. Ufa!, fim do ufanismo... mas vocs no acham que a fenomenologia do drible do jogador brasileiro diz tanto de nosso "carter" quanto o candombl e o carnaval? Enfim, o futebol encarna e produz valores caros s sociedades democrticas... para o bem ou para o mal. Pois a epopia futebolstica tambm nos avisa que, na modernidade, onde tem vencedor, tem perdedor; onde tem mrito, tem "jeitinho"; onde tem altrusmo, tem egosmo; onde tem um, tem outro. O fut nos avisa que, no nosso mundo, entre o xito e o fracasso, h uma incerteza fundamental assim, ele nos consola, pois, numa sociedade onde a exigncia do sucesso absoluta e o fracasso significa depresso, pelo menos ficamos sabendo que o acaso, de vez em quando, abre uma ferida no Destino. O fut encarna, definitivamente, uma das leis cotidianas da nossa modernidade: "a (11) interdependncia complexa dos destinos na busca da felicidade" .

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Que assim seja!

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ACTES de la recherche en sciences sociales. (1994). Actes de la recherche en sciences sociales - Les enjeux du football(103). BROHM, Jean-Marie. (1983). Les meutes sportives: critique de la domination. Paris: L'Harmattan. COSTA, Jurandir Freire. (1984). Violncia e psicanlise. Rio de Janeiro: Graal. EHRENBERG, Alain. (1991). Le culte de la performance. Paris: Calmann-Lvy. ELIAS, Nobert & DUNNING, Eric. (1986). Sport et civilisation. Paris: Fayard. LE BON, Gustave. (1975). Psychologie des foules. Paris: Retz. LE MONDE Diplomatique. (1998). Le Monde Diplomatique - Manire de Voir - Football et passions politiques (39). PERELMAN, Marc. (1998). Le stade barbare, la fureur du spectacle sportif. Paris: ditions Mille et Une Nuits. SEBRELI, Juan Jos. (1998). La era del ftbol. Buenos Aires: Sudamericana.

NOTAS
1) Com vrias modificaes, este artigo faz parte da srie "futebol e violncia", publicada originalmente no site "Futiba" - http://www.uol.com.br/futiba/ - onde assino uma coluna esportiva: "Fora do Eixo". Sendo uma srie ainda inacabada, os artigos continuaro a ser produzidos; assim, caso algum se interesse em acompanhar o prosseguimento dos textos, s acess-los na internet. Por outro lado, preferi no "academizar" o texto, deixando-o no estilo original, pois uma mudana formal no melhoraria necessariamente o contedo; alm do mais, acredito que discutir futebol tem como referncia estilstica... a mesa de bar e algumas cervejinhas. Dessa forma, seria um desrespeito a todos os torcedores de futebol um texto "srio" e que no casse "nos braos do adjetivo ululante". 2) Professor do Departamento de Cincias Sociais - CCHLA - UFPb, Joo Pessoa. 3) Mesmo que seja redutor colocar a teorizao de Elias no grupo das teorias "teraputicas" da catarse, pois ela muito mais complexa e abrangente, preferi correr o risco; afinal de contas, o dito "processo de civilizao" que refina, sofistica e suaviza, ao longo do tempo, a agressividade primeva dos seres humanos transforma, atravs do esporte, a violncia concreta em violncia simblica, isto , faz justamente o que apregoam as teorias da catarse. Ver Nobert Elias e Eric Dunning, "Sport et Civilisation", Paris, Fayard, 1986. 4) Ver, por exemplo, Ignacio Ramonet, "Le Football, c'est la guerre", Manire de voir (Le monde diplomatique), n39, maio-junho 1998. 5) Ver, por exemplo, Marc Perelman, "Le stade barbare, la fureur du spectacle sportif", Paris, ditions Mille e une nuits, 1998. 6) Ver Marc Aug, "Un sport ou un rituel", Manire de voir (Le monde diplomatique), n39, maio-junho 1998. 7) Ver a defesa da violncia como desejo de destruio no livro de ensaios de Jurandir Freire Costa, "Violncia e Psicanlise", Rio de Janeiro, Graal, 1984 8) Ver Gustave Le Bon, "Psychologie des foules", Paris, Retz, 1975. 9) Ver Jean-Marie Brohm, "Une violence cannibale", Manire de voir (Le monde diplomatique), n39, maio-junho 1998. O ttulo do artigo, sem dvida, extremamente sugestivo; j o ttulo de um livro do autor, praticamente diz tudo: Les meutes sportives. Critique de la domination. Lembrar que "meutes" em francs significa uma tropa de cachorros treinados para a caa... 10) Para uma defesa admirvel dessa tese, ver Alain Ehrenberg, "Le culte de la performance", Paris, Calmann-Lvy, 1991. 11) Christian Bromberger, "Le rvelateur de toutes les passions", Manire de voir (Le monde diplomatique), n39, maio-junho 1998, pgina 35.

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