O Futebol
O Futebol
O Futebol
“Os jogadores atuam, com pernas, numa representação destinada a um público de milhares ou milhões de fervorosos que assistem, das
arquibancadas ou de suas casas, com o coração nas mãos. Quem escreve a peça? O técnico? A obra zomba o autor. Seu desenrolar
segue o rumo do humor e da habilidade dos atores e, no final depende da sorte, que sopra como vento para onde quiser. Por isso o
desenlace é sempre um mistério, para os espectadores e também para os protagonistas, salvo nos casos de suborno ou de alguma outra
fatalidade do destino. Quantos teatros existem no grande teatro do futebol? Quantos cenários cabem no retângulo de grama verde?
Nem todos os jogadores atuam com as pernas. Há atores magistrais.”
(Eduardo Galeano, O teatro, 2004).
O que poderemos descobrir se olharmos por trás da cortina de um espetáculo de futebol? O aluno cauteloso ao
olhar diria: o futebol é um jogo, um esporte e não possui cortinas para olhar-se por trás. Outro aluno, mais audacioso,
poderia ainda responder: eu sei o que acontece por trás, até porque, eu vivo no “país do futebol”, nasci com esta
manifestação corporal impregnada em mim. E você, o que responderia?
O futebol alcança importância gigantesca em nosso país, a ponto de se afirmar ser este o país do futebol. Por isso,
você está convidado a espiar, através da cortina, e descobrir os ensaios e ajustes desta apresentação, bem como,
aprofundar seus conhecimentos sobre o que pode vir a ser o futebol, para além das quatro linhas que circunscrevem o
campo de jogo.
“Há um jogo que se passa no campo, jogado pelos jogadores como atividade profissional e esportiva. Há um outro jogo que se passa
na vida real, jogado pela população brasileira, na sua constante busca de mudança para seu destino. E um terceiro jogo jogado no
“outro mundo”, onde entidades são chamadas para influenciar no evento e, assim fazendo, promover transformações nas diferentes
posições sociais envolvidas no evento esportivo. Tudo isso revela como uma dada instituição, no caso o Football Association,
inventado pelos ingleses, pode ser diferencialmente apropriada.” (DAMATTA 1982, p.107).
O autor da citação acima está falando de que tipo de consciência? Será que da consciência social, aquela que
diferencia o homem de um animal? O que significa ter consciência? Como é formada nossa consciência?
É a partir desta última pergunta que iniciaremos nossa discussão sobre o futebol como ópio do povo. Ópio é um
analgésico muito potente, e faz nosso cérebro funcionar mais devagar. Disto é possível supor o porquê da expressão que
relaciona o futebol a uma espécie de contaminação da consciência crítica do ser humano.
A consciência é formada a partir de inúmeras questões de ordem política, econômica e ideológica, que assumem
importância em determinados períodos históricos na conformação ou efervescência da população.
A ideologia, conceito do qual tanto ouvimos falar, tem, na maioria das vezes, seu real significado pouco discutido.
Você já deve ter ouvido falar que cada um tem uma ideologia, ou que devemos ter nossas próprias ideologias. Será que
ideologia é, então, a mesma coisa que ideais a serem alcançados por cada um de nós?
Karl Marx (1818-1883), importante pensador na história da humanidade, conceituou ideologia a partir da
dinâmica da luta de classes. Ou seja, para ele, a ideologia está colocada na luta entre aqueles que dominam e aqueles que
são dominados. Veja um trecho que Marx escreveu sobre ideologia:
“Com efeito, cada nova classe que toma o lugar da que dominava antes dela é obrigada, para alcançar os fins a que se propõe, a
apresentar seus interesses como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade, isto é, para expressar isso mesmo em
termos ideais: é obrigada a emprestar às suas ideias a forma de universalidade, a apresentá-las como sendo as únicas racionais, as
únicas universalmente válidas”. (MARX, 1987, p.74).
Agora que você conhece um pouco mais sobre as possibilidades de compreensão do futebol, vamos problematizar
algumas questões, principalmente no que se refere à importância desta prática corporal, no cenário social e esportivo, bem
como no desenvolvimento dos negócios de maneira em geral.
O cenário esportivo e dos negócios andam juntos, constituem o cenário nacional?
Acompanhe-nos em mais esta “espiadinha”! O futebol, tanto como prática de lazer quanto
prática esportiva de alto rendimento, tem sofrido um processo de mercadorização em nossa
sociedade.
A venda dos direitos de imagem dos jogadores ou o uso e venda das marcas de
patrocinadores, bem como a venda dos direitos de transmissões de jogos pela TV e, até
mesmo, a venda de jogadores em altas transações formam um complexo e rendoso mercado
(AZEVEDO e REBELO, 2001).
Você sabe o que significa mercado? Deve ter ouvido, em telejornais, expressões
como: “o mercado está nervoso”, ou ainda, “o mercado de ações caiu”. A palavra mercadoria
é derivada de mercado. O que ela significa? Se, vivemos numa sociedade produtora de
mercadoria, o que o futebol tem a ver com essas terminologias?
Digamos que você está em um passeio e, porventura, lhe dá fome, você vai até sua mala e percebe que esqueceu o
lanche que havia preparado para comer. Mas não pode esperar até chegar em casa, pois está faminto e sai à procura de
algum lugar que tenha algo para satisfazer sua fome. Chegando neste local, escolhe o alimento que deseja e se dirige ao
caixa. Neste momento, é preciso pagar pela mercadoria que irá consumir. Mesmo que você não tenha esquecido o lanche
que havia preparado, a procedência do mesmo pode ser da vendinha perto de sua casa e, portanto, também foi comprado.
Ainda em nosso exercício de imaginação, agora você quer comprar uma bola, um rádio, ou algo que o agrade, que o
distraia em momentos de lazer.
Pois bem, aqui gostaríamos de dialogar com você sobre nossa sociedade, a sociedade capitalista, e como as
mercadorias assumem papel central na produção de toda a riqueza existente. No futebol não é diferente. Como esporte
espetáculo, suas mercadorias são vendidas aos torcedores e, entre elas, o jogador é uma mercadoria que pode estar à venda
por um determinado preço.
A riqueza de nossa sociedade baseia-se na acumulação de capital e dos lucros obtidos pela venda das mercadorias
– feitas pelas mãos dos trabalhadores.
Estas mercadorias são criadas para suprirem as necessidades humanas, sejam necessidades básicas ou
necessidades criadas culturalmente.
A mercadoria possui dois valores: o de uso e o de troca. O valor de uso diz respeito a sua utilidade, ou seja, a
partir da necessidade é que se produz determinada mercadoria. Digamos que você necessita de roupa, então o produto
“roupa” é criado para atender a sua necessidade, para que não passe frio em dias gelados, para que possa vestir roupas
leves em dias quentes. O valor de troca da mercadoria serve para cumprir a necessidade da sociedade capitalista de
acumular riqueza, aumentando o poço das desigualdades sociais entre ricos e pobres, grandes e pequenos consumidores.
Essas desigualdades assolam, inclusive, o meio futebolístico.
Assim como na sociedade, no futebol as desigualdades são enormes. Há jogadores cujo salário é superior a 5
milhões de reais por mês, como é o caso de Ronaldinho Gaúcho, enquanto outros ganham o salário mínimo em pequenos
times sem nenhuma expressão, nem mesmo local ou regional.
Os miseráveis do futebol também engordam as estatísticas do mundo da bola, as desigualdades e a injustiça são
generalizadas, tanto no futebol, quanto na sociedade.
Quem nunca viu seu time vender aquele jogador que era destaque? Quem nunca ficou enfurecido por esta venda
acontecer bem no meio do campeonato?
O jogador é um trabalhador como outro qualquer e, como tal, vende sua força de trabalho em troca de salário. O
clube, como um ótimo capitalista, vê nesta mercadoria a oportunidade de obter lucro com a possível venda para outra
equipe. Assim, está armada a cena para mais uma “espiada”, a venda de jogadores, (mercadoria) que atuam no Brasil, para
clubes internacionais.
O jogador, tratado como mercadoria por seu clube, vê, nesta transferência, a oportunidade de “mudar sua vida”,
ganhar um ótimo salário e visibilidade mundial.
O preço destes jogadores-mercadorias brasileiros é baixo em relação aos do mercado europeu, por uma série de
fatores. Um deles é, sem dúvida, a péssima administração que cerca o esporte. O outro é a dificuldade financeira
atravessada pelos clubes brasileiros. A crise econômica, que assolou o Brasil, causa impacto, também, nas possibilidades
econômicas dos clubes. Estes não têm muitas escolhas, a não ser vender seu jogador a preços estipulados pelos clubes
interessados.
Outro provável motivo, que pode ser atribuído ao barateamento dos jogadores transferidos ao mercado
internacional, diz respeito ao valor agregado à suposta profissionalização internacional.
Um exemplo pode ser a transferência do jogador Kaká, atuando na época pelo São Paulo Futebol Clube, para o
clube italiano Milan. Ao transferir-se para a Itália, Kaká tratou logo de “ajustar” sua imagem, e
vendê-la junto com seu produto. O futebol europeu, através das grandes parcerias entre empresas interessadas em mostrar
sua marca no cenário mundial, tem como forma de trabalho a vinculação de seus jogadores à imagem de uma
profissionalização que rende aos clubes milhões de dólares, e agrega ao valor do jogador quantias bem maiores que as
pagas na compra de um jogador daqui do Brasil.
Nossos clubes não conseguem manter contratos milionários com as empresas mais ricas do mundo por um motivo
muito claro, nossa população é pobre, temos milhões de problemas financeiros e, principalmente, ninguém confiaria neste
mercado, levando em conta o jogo capitalista.
As relações de mercado têm forçado os clubes brasileiros a se enquadrarem na lógica competitiva, da venda de
mercadorias, assim como as demais estruturas da sociedade. Ficamos nós, torcedores (espectadores),
“a ver navios”, com as mãos atadas pelo chamado mundo da bola, cada vez mais profissionalizado.
Finalizada nossa caminhada pelos bastidores do futebol, muitas questões ainda ficaram para “espiarmos”.
Questões que não caberiam neste texto, ficando como tarefa a serem pensadas, posteriormente relacionando-as com as
características da região onde você mora e, melhor que ninguém, saberá discuti-las e problematizá-las “dentro” e “fora”
das quatro linhas.
Referências Bibliográficas:
AZEVEDO, C.; REBELO, A. A corrupção no futebol brasileiro. In: Revista Motrivivência. Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.
DAMATTA, R. Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.
GALEANO, E. Futebol ao sol e à sombra. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 2004.
LUCENA, R.; PRONI, M. (orgs.). Da Matta: o futebol como drama e mitologia. In: Esporte e Sociedade. Campinas: Autores Associados, 2002.
MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. 18. ed. Trad. Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. 6. ed. Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Hucitech, 1987.
NADAL, T. de. Futebol alienação das massas. In: Revista mundo jovem, Porto Alegre, ano 16, no 107, março de 1978.
Documentos consultados ON LINE
GUTERMAN, M. Futebol não afasta pavor do Haiti. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u54863.shtml> Acesso em: 03 nov. 2005.
RANGEL, S. Com tanta riqueza por aí, cadê sua fração? Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk2902200001.htm> Acesso em: 04 nov. 2005.
Baseado na leitura do texto: Futebol para além das quatro linhas e nas discussões feitas
em sala, responda as seguintes questões:
1. Por quais razões o futebol causa sensações tão diferentes nas pessoas?
2. O futebol pode ser entendido como possibilidade de ideologia do pensamento da classe dominante da
sociedade. Como isso ocorreu no Brasil?
3. Por quais razões podemos afirmar que o futebol além de ser uma prática corporal, tanto esportiva quanto
social, pode ser considerado como uma mercadoria?
4. Qual o papel da mídia na propagação do discurso de que o futebol é uma identidade nacional?
5. As brigas entre torcidas organizadas é uma constante no nosso futebol. Em Natal, capital do Rio Grande do
Norte, as torcidas organizadas Máfia Vermelha e Gangue Alvinegra, dos principais times de futebol do
estado, América e ABC, respectivamente, frequentemente entram em conflito quando ocorrem jogos entre
essas equipes. Torcidas consideradas rivais dos grandes times de outros estados, como: Flamengo, Vasco,
Botafogo e Fluminense no Rio de Janeiro; São Paulo, Corinthians, Santos e Palmeiras e São Paulo em São
Paulo; Atlético Mineiro e Cruzeiro em Minas Gerais, Coritiba, Paraná e Atlético Paranaense no Paraná;
Sport, Náutico e Santa Cruz em Pernambuco; e Grêmio e Internacional no Rio Grande do Sul são
exemplos de serem formados por torcedores apaixonados e que muitas vezes extrapolam o “amor” pelo
clube e acabam beirando ao fanatismo. Por quais razões ocorrem tantos conflitos entre as torcidas
organizadas no futebol brasileiro?