Desejo, Logo Existo?

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Desejo, logo existo?

Por Luciano Porciuncula Garrido

Os prejuzos causados pelo ativismo poltico do Conselho Federal de Psicologia so realmente incalculveis. Quando uma determinada cincia

prostituda em benefcio de ideologias, sua reputao cai no mais absoluto descrdito. Os critrios de validade que fundamentam a produo do conhecimento, e que so universalmente aceitos, acabam substitudos pela convenincia poltica daqueles que detm circunstancialmente o poder mesmo que seja o poder de uma simples autarquia.

Assim, a boa teoria no mais aquela que resiste ao teste de realidade ou apresenta um valor heurstico considervel, mas a que atende a certos anseios pessoais ou coletivos, por mais intangveis que sejam. E se os fatos negam a ideologia, tanto pior para os fatos. que as construes ideolgicas, em seu substrato mais ntimo, se assentam sobre disposies afetivas bastante arraigadas, algo que lhes confere uma capacidade de resilincia fora do comum. As ideologias no prestam contas realidade: se limitam a criticar o que existe em nome do que no existe, e talvez jamais possa existir. nesse ambiente de inspiraes obscurantistas e degradao intelectual que a psicologia tem se tornado terreno frtil para toda sorte de impostores e demagogos.

A ltima audincia pblica que discutiu a cura gay assim carinhosamente batizada pela imprensa foi um exemplo tpico dessas distores. Nela, houve um deputado que se sentiu vontade para opinar sobre assuntos relacionados Psicopatologia. Quais eram suas credenciais? Basicamente, um diploma de jornalista e uma fama exaurida em programa de reality show.

O grande problema, na verdade, no est tanto na tagarelice dos palpiteiros de ocasio, mas no silncio obsequioso com o qual boa parte dos psiclogos vem testemunhando disparates desse jaez. Isso mostra que a patrulha ideolgica do Conselho Federal de Psicologia alcanou o efeito almejado, e a esta altura dos acontecimentos, suponho eu, j decretou toque de recolher at na comunidade acadmica. Enquanto os psiclogos se escondem nos consultrios e guardam o mais absoluto mutismo, o deputado Jean Wyllys vem tribuna para dizer o seguinte:

bvio que algum homossexual vai ter egodistonia, mas por viver numa cultura homofbica que rechaa e subalterniza sua homossexualidade. O certo seria colocar o ego em sintonia com seu desejo, sair da vergonha para o orgulho.

Se bem entendi a opinio do deputado, ele parte da premissa de que o desejo sexual possui primazia sobre o ego; logo, o ego que deve estar em sintonia com o desejo, e no este em sintonia com aquele. Isso, segundo o sr. Wyllys, que o certo. Para efeito de argumentao, vou tomar a palavra certo no sentido aproximado de normal, j que no parece sensato supor que o certo, nesse caso, significa algo bizarro, anmalo ou desviante.

Dito isso, eu perguntaria ao sr. Wyllys: por que no considerar como certo ou normal, como queira o desejo sexual que est em conformidade com o sexo biolgico? Quais os critrios utilizados pelo deputado para definir seu padro de normalidade? preciso que ele aponte os fundamentos clnicos, tericos, filosficos, ou at metafsicos, sobre os quais est apoiada sua opinio.

Sigmund Freud, por exemplo, que considerado o maior psiclogo clnico de todos os tempos, pressupunha em sua teoria a existncia de um registro real da

sexualidade a diferena entre os sexos como causa do desejo para o sujeito. Essa idia, alis, foi condensada numa de suas clebres frases, segundo a qual anatomia destino. Em momento algum Freud disse que o desejo sexual era destino. Donde se depreende que a anatomia do sujeito um dado de realidade anterior a qualquer processo subjetivao, e, como tal, deve orient-lo. Alis, no s a anatomia, mas a fisiologia tambm.

Se o real precede o imaginrio e o simblico, e se o ego a instncia psquica regida pelo princpio de realidade, como ensinava Freud, natural que as pessoas achem certo (ou normal) que o desejo sexual esteja em sintonia com a realidade corporal.

O que leva o desenvolvimento psicossexual de algum a perder-se nos desvos de suas angstias e fantasias, levando-o a desordens na identidade sexual, algo passvel de investigao cientfica e, qui, de soluo teraputica vivel. Existem muitas tentativas de entender o fenmeno (fixao narcsica, horror castrao, etc), propostas por vrios estudiosos da sexualidade humana Freud entre eles. Porm, se a cultura encara com certa perplexidade ou estranhamento as prticas homossexuais, isso no d margem para presumir que a patologia esteja obrigatoriamente na cultura, como pretende o deputado Jean Wyllys ao cham-la de homofbica (na verdade, o intuito no diagnosticar uma patologia, mas proferir um simples insulto).

A capacidade de discernir o real do irreal, de diferenciar os estmulos provenientes do mundo exterior dos estmulos internos, est na prpria gnese do processo de subjetivao. Freud designava como prova de realidade a esse dispositivo que, de maneira gradativa, consolida as funes superiores da conscincia, memria, ateno e juzo, entre outros atributos que singularizam a natureza humana, razo pela qual se encontram to enraizados na cultura. A esse respeito, Freud quem diz:

A educao pode ser descrita, sem hesitao, como o incentivo superao do princpio do prazer, substituio dele pelo princpio de realidade. (Formulaes sobre os dois princpios do funcionamento psquico, Freud, 1911)

Sendo ainda mais especfico, os critrios de doena e sade utilizados pela disciplina da psicopatologia tambm pressupem em grande medida essa distino elementar entre fenmenos meramente subjetivos e a realidade objetiva. dentro dessa perspectiva que o delrio e a alucinao se constituem como exemplos extremos de manifestaes patolgicas que perturbam, respectivamente, o juzo e a percepo da realidade. Enquanto que os devaneios e as fantasias, embora considerados benignos sob o aspecto da higidez mental, nem por isso deixam de ser igualmente irreais.

Por tudo isso, no surpreende que o filsofo racionalista Ren Descartes, ao cabo de uma longa reflexo, tenha concludo que o fundamento indubitvel da existncia deve repousar sobre as faculdades humanas superiores, idia cuja frmula ganhou expresso lapidar no seu cogito, ergo sum. J o sr. Wyllys, o que faz? Como um bom hedonista, quer nos convencer de que o fundamento da existncia humana reside mesmo nas foras cegas do baixo-ventre, o que na mais respeitvel filosofia de alcova pode ser equacionado por outro mote, qual seja, o libido, ergo sum. Quem acredita que o ego deve se curvar aos desejos sexuais porque lhes confere um estatuto primordial na prpria definio de natureza humana.

Ainda que no houvesse quaisquer parmetros para se discutir a sexualidade humana, e que todas as opinies, portanto, fossem colocadas na vala-comum das idiossincrasias pessoais, subsistiria o fato de que as pessoas pautam suas vidas por valores. Colocar a mera fruio do desejo sexual como o que h de mais sublime na vida humana pode no ser uma regra vlida para todos. O que na concepo de uns significa sair da vergonha para o orgulho, pode ser o inverso para muitos outros, conforme as diferentes cosmovises que se adote.

por isso que o psiclogo no pode usar de sua autoridade profissional na tentativa de abolir sentimentos de vergonha ou culpa em seus pacientes. A misso do psiclogo clnico, segundo Freud, limita-se a transformar o sofrimento neurtico em infelicidade humana normal essa que todos ns, em maior ou menor medida, sentimos. Quem acredita que o objetivo da psicoterapia liberar os desejos sexuais de suas amarras culturais, convertendo indivduos neurticos em discpulos de Marqus de Sade, porque pretende impor suas convices hedonistas aos demais. Como alertava o psicanalista Gregory Zilboorg:

O Homem no pode ser curado das exigncias tico-morais e religiosas de sua personalidade, que nele vivem e dele fazem o que realmente . S o morboso, o irreal e intil podem ser analisados.

Em outra direo, tornou-se lugar-comum o argumento de que o homossexualismo seria prtica natural porque observada com freqncia em diversas espcies animais. Esse entendimento, porm, bastante falho, pois compara entre si fenmenos essencialmente diversos. Ainda que, em uma determinada espcie, se observe o coito em indivduos do mesmo sexo, no se pode defini-lo como homossexualismo sem incorrer naquilo que os etlogos chamam de antropomorfizao do comportamento animal.

Os animais no possuem desejo sexual no sentido empregado por ns. Animais possuem to-somente impulsos sexuais, e esses impulsos, em condies normais, seguem o comando fixo dos instintos estabelecidos ao longo de sua cadeia evolutiva. Acrescente-se que, sob a tica da evoluo, no pode haver algo como um instinto homossexual entre animais, pois certo que os indivduos com essa tendncia no repassariam sua carga gentica adiante. At um suposto instinto bissexual teria chances bem reduzidas de proliferao, j que seria uma desvantagem bastante palpvel se olharmos pela perspectiva ampla da escala evolutiva.

A hiptese explicativa mais plausvel para a ocorrncia desse fenmeno entre os animais segue outra direo. Quando premidos por um forte impulso sexual cujo meio de satisfao original encontra-se ausente, os animais comportam-se de modo a favorecer uma satisfao alucinatria do impulso. Quem nunca testemunhou ces que, ao verem-se privados de uma fmea, passam a montar em nossas pernas, simular o coito em outros animais, no ursinho de pelcia ou no puff da sala? Por que no poderiam faz-lo como de fato o fazem em outros ces do mesmo sexo? Se isso for homossexualismo, o que seriam os outros comportamentos?

Segundo Freud, o modo de satisfao alucinatrio tambm encontrado nos seres humanos, bem nos primrdios de seu desenvolvimento. Bebs que choram de fome e so acalmados por uma chupeta, ainda que no estejam sendo nutridos, experimentam tambm um modo de satisfao alucinatrio. Com o passar do tempo, na medida em que acumulam frustraes e percebem que esse tipo de mecanismo no capaz de aplacar a fome, as crianas o abandonam em favor de um sentido de realidade. a partir desse momento que ego vai se estruturando no aparelho psquico. Mas s os seres humanos so capazes disso.

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