O Crime Do Padre Amaro
O Crime Do Padre Amaro
O Crime Do Padre Amaro
Language: Portuguese
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de Portugal).)
*Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias
decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final
deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 2
O CRIME
DO
PADRE AMARO
*O Crime do Padre Amaro.* Terceira edição inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e na
acção da edição primitiva. 1 grosso volume. 1$200
No prelo:
EÇA DE QUEIROZ
O CRIME
DO
PADRE AMARO
TERCEIRA EDIÇÃO
PORTO
Casa editora
1889
NOTA
O Crime do Padre Amaro recebeu no Brazil e em Portugal alguma attenção da Critica, quando foi publicado
ulteriormente um romance intitulado--O Primo Bazilio. E no Brazil e em Portugal escreveu-se (sem todavia se
adduzir nenhuma prova effectiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitação do romance do snr. E.
Zola--La Faute de l'Abbé Mouret; ou que este livro do auctor do Assomoir e de outros magistraes estudos
sociaes suggerira a idéa, os personagens, a intenção do Crime do Padre Amaro.
Eu tenho algumas razões para crêr que isto não é correcto. O Crime do Padre Amaro foi escripto em 1871,
lido a alguns amigos em 1872, e publicado em 1874. O livro do snr. Zola, La Faute de l'Abbé Mouret (que é o
quinto volume da série Rougon Macquart), foi escripto e publicado em 1875.
Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) eu considero esta razão apenas como subalterna e insufficiente. Eu
podia, emfim, ter penetrado no cerebro, no pensamento do snr. Zola, e ter avistado, entre as fórmas ainda
indecisas das suas creações futuras, a figura do abbade Mouret,--exactamente como o veneravel Anchises no
valle dos Elyseos podia vêr, entre as sombras das raças vindouras fluctuando na nevoa luminosa do Lethes,
aquelle que um dia devia ser Marcellus. Taes coisas são possiveis. Nem o homem prudente as deve considerar
mais extraordinarias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos céos--e outros prodigios provados.
O que, segundo penso, mostra melhor que a accusação carece de exactidão, é a simples comparação dos dois
romances. La Faute de l'Abbé Mouret é, no seu episodio central, o quadro allegorico da iniciação do primeiro
homem e da primeira mulher no amor. O abbade Mouret (Sergio), tendo sido atacado d'uma febre cerebral,
trazida principalmente pela sua exaltação mystica no culto da Virgem, na solidão d'um valle abrazado da
Provença (primeira parte do livro), é levado para convalescer ao Paradou, antigo parque do seculo XVII a que
o abandono refez uma virgindade selvagem, e que é a representação allegorica do Paraiso. Ahi, tendo perdido
na febre a consciencia de si mesmo a ponto de se esquecer do seu sacerdocio e da existencia da aldeia, e a
consciencia do universo a ponto de ter medo do sol e das arvores do Paradou como de monstros
estranhos--erra, durante mezes, pelas profundidades do bosque inculto, com Albina que é o genio, a Eva
d'esse logar de legenda; Albina e Sergio, semi-nús como no Paraiso, procuram sem cessar, por um instincto
que os impelle, uma arvore mysteriosa, da rama da qual cae a influencia aphrodisiaca da materia procreadora;
sob este symbolo da Arvore da Sciencia se possuem, depois de dias angustiosos em que tentam descobrir, na
sua innocencia paradisiaca, o meio physico de realisar o amor; depois, n'uma mutua vergonha subita, notando
a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e d'ahi os expulsa, os arranca o padre Archangins, que é a
personificação theocratica do antigo Archanjo. Na ultima parte do livro o abbade Mouret recupera a
consciencia de si mesmo, subtrae-se á influencia dissolvente da adoração da Virgem, obtem por um esforço da
oração e um privilegio da graça a extincção da sua virilidade, e torna-se um asceta sem nada d'humano, uma
sombra cahida aos pés da cruz; e, é sem que lhe mude a côr ao rosto que asperge e responsa o esquife de
Albina, que se asphyxiou no Paradou sob um montão de flôres de perfumes fortes.
Os criticos intelligentes que accusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de
l'Abbé Mouret não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do snr. Zola que foi talvez a origem de
toda a sua gloria. A semelhança casual dos dois titulos induziu-os em erro.
Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade cornea ou má fé cynica poderia assemelhar esta bella
allegoria idyllica, a que está misturado o pathetico drama d'uma alma mystica, ao Crime do Padre Amaro que,
como podem vêr n'este novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clerigos e de beatas tramada e
murmurada á sombra d'uma velha Sé de provincia portugueza.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 4
Aproveito este momento para agradecer á Critica do Brazil e de Portugal a attenção que ella tem dado aos
meus trabalhos.
Eça do Queiroz.
O CRIME
DO
PADRE AMARO
Foi no domingo de Paschoa que se soube em Leiria que o parocho da Sé, José Migueis, tinha morrido de
madrugada com uma apoplexia. O parocho era um homem sanguineo e nutrido, que passava entre o clero
diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se historias singulares da sua voracidade. O Carlos da
Botica--que o detestava--costumava dizer, sempre que o via sahir depois da sésta, com a face afogueada de
sangue, muito enfartado:
Com effeito estourou, depois d'uma ceia de peixe--á hora em que defronte, na casa do dr. Godinho que fazia
annos, se polkava com alarido. Ninguem o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era
estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos d'um cavador, a voz rouca, cabellos nos ouvidos,
palavras muito rudes.
Nunca fôra querido das devotas: arrotava no confessionario; e, tendo vivido sempre em freguezias da aldeia
ou da serra, não comprehendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao
principio, quasi todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de labia!
E quando as beatas, que lhe eram fieis, lhe iam fallar de escrupulos, de visões, José Migueis escandalisava-as,
rosnando:
Era miguelista--e os partidos liberaes, as suas opiniões, os seus jornaes enchiam-no d'uma cólera irracionavel:
Nos ultimos annos tomára habitos sedentarios e vivia isolado--com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu
unico amigo era o chantre Valladares que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim
gemia, havia dois annos, o seu rheumatismo n'uma quinta do alto Minho. O parocho tinha um grande respeito
pelo chantre, homem sêcco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador d'Ovidio--que fallava fazendo
sempre boquinhas e com allusões mythologicas.
No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava offerecer-lhe todos os dias rapé da sua
caixa d'ouro, disse aos outros conegos, baixinho, ao deixar-lhe cahir sobre o caixão, segundo o ritual, o
primeiro torrão de terra:
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o conego Campos contou-a á noite
ao chá em casa do deputado Novaes; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do
chantre, e affirmou-se com respeito--que sua excellencia tinha muita pilheria!
Dias depois do enterro appareceu, errando pela Praça, o cão do parocho, o Joli. A criada entrára com sezões
no hospital; a casa fôra fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portaes. Era um gôso pequeno,
extremamente gordo,--que tinha vagas semelhanças com o parocho. Com o habito das batinas, avido d'um
dono, apenas via um padre punha-se a seguil-o, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz Joli;
enxotavam-no com as ponteiras dos guardasoes; o cão, repellido como um pretendente, toda a noite uivava
pelas ruas. Uma manhã appareceu morto ao pé da Misericordia; a carroça do estrume levou-o e, como
ninguem tornou a vêr o cão na Praça, o parocho José Migueis foi definitivamente esquecido.
Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro parocho. Dizia-se que era um homem muito
novo, sahido apenas do seminario. O seu nome era Amaro Vieira. Attribuia-se a sua escolha a influencias
politicas, e o jornal de Leiria, A Voz do Districto, que estava na opposição, fallou com amargura, citando o
Golgotha, no favoritismo da côrte e na reacção clerical. Alguns padres tinham-se escandalisado com o artigo;
conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.
--Não, não, lá que ha favor, ha; e que o homem tem padrinhos, tem, disse o chantre. A mim quem me escreveu
para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da justiça). Até me diz na carta que o
parocho é um bello rapagão. De sorte que--acrescentou sorrindo com satisfação--depois de Frei Hercules
vamos talvez ter Frei Apollo.
Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o parocho novo: era o conego Dias que fôra, nos primeiros annos
do seminario, seu mestre de Moral. No seu tempo, dizia o conego, o parocho era um rapaz franzino, acanhado,
cheio de espinhas carnaes...
--Parece que o estou a vêr com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto bom rapaz. E
espertote...
O conego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordára, o ventre saliente enchia-lhe a batina; e
a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anecdotas de frades
lascivos e glotões.
O tio Patricio, o antigo, negociante da Praça, muito liberal, e que quando passava pelos padres rosnava como
um velho cão de fila, dizia ás vezes ao vêl-o atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão, encostado ao
guardachuva:
O conego vivia só com uma irmã velha, a snr.^a D. Josepha Dias, e uma criada, que todos conheciam tambem
em Leiria, sempre na rua, entrouxada n'um chale tingido de negro e arrastando pesadamente as suas chinelas
de ourelo. O conego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares
com perú, e tinha reputação o seu vinho duque de 1815. Mas o facto saliente da sua vida--o facto commentado
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 6
e murmurado--era a sua antiga amizade com a snr.^a Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joanneira, por
ser natural de S. João da Foz. A S. Joanneira morava na rua da Misericordia e recebia hospedes. Tinha uma
filha, a Ameliasinha, rapariga de vinte e tres annos, bonita, forte, muito desejada.
O conego Dias mostrára um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na
Praça, na sacristia da Sé exaltou os seus bons estudos no seminario, a sua prudencia de costumes, a sua
obediencia: gabava-lhe mesmo a voz: «um timbre que é um regalo!»
Predizia-lhe com emphase um destino feliz, uma conesia decerto, talvez a gloria d'um bispado!
E um dia, emfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, creatura servil e calada, uma carta que recebera
de Lisboa de Amaro Vieira.
Era uma tarde de agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a
estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido, já se passava sobre a
Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras
estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguezia de Marrazes,
que a estrada nova devia desbastar e encorporar; camadas de cascalho cobriam o chão; e os grossos cylindros
de pedra, que acalcam e recamam os macadams, enterravam-se na terra negra e humida das chuvas.
Em roda da Ponte a paizagem é larga e tranquilla. Para o lado d'onde o rio vem são collinas baixas, de fórmas
arredondadas, cobertas da rama verde-negra dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos, estão
os casaes que dão áquelles logares melancolicos uma feição mais viva e humana--com as suas alegres paredes
caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e
lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros
pallidos, estende-se até os primeiros areaes o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de aguas
abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade; apenas uma esquina das cantarias pesadas e
jesuiticas da Sé, um canto do muro do cemiterio coberto de parietarias, e pontas agudas e negras dos
cyprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações rebeldes, onde destacam as ruinas
do Castello, todas envolvidas á tarde nos largos vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande
ar historico.
Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco á beira do rio. É um logar
recolhido, coberto de arvores antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Alli, caminhando devagar, fallando
baixo, o conego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre «uma idéa que ella lhe dera,
que lhe parecia de mestre! De mestre!» Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse uma casa de
aluguel, barata, bem situada, e se fosse possivel mobilada; fallava sobretudo de quartos n'uma casa de
hospedes respeitavel. «Bem vê o meu caro Padre-Mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me
convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o bastante. O que é necessario é que a
casa seja respeitavel, socegada, central; que a patrôa tenha bom genio e que não peça mundos e fundos; deixo
tudo isto á sua prudencia e capacidade, e creia que todos estes favores não cahirão em terreno ingrato.
Sobretudo que a patrôa seja pessoa accommodada e de boa lingua.»
Ora a minha idéa, amigo Mendes, é esta: mettêl-o em casa da S. Joanneira! resumiu o conego com um grande
contentamento. É rica idéa, hein?
--Ella tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que póde servir de escriptorio. Tem boa mobilia,
boas roupas...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 7
O conego continuou:
--É um bello negocio para a S. Joanneira: dando os quartos, roupas, comida, criada, póde muito bem pedir os
seus seis tostões por dia. E depois sempre tem o parocho de casa.
--Por causa da Ameliasinha é que eu não sei, considerou timidamente o coadjutor. Sim, póde ser reparado.
Uma rapariga nova... Diz que o senhor parocho é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que são linguas do
mundo.
--Ora historias! Então o padre Joaquim não vive debaixo das mesmas telhas com a afilhada da mãi? E o
conego Pedroso não vive com a cunhada, e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga de dezenove annos? Ora
essa!
--Não, não vejo mal nenhum. A S. Joanneira aluga os seus quartos, é como se fosse uma hospedaria. Então o
secretario geral não esteve lá uns poucos de mezes?
--Mais garantias, snr. Mendes, mais garantias! exclamou o conego. E parando, com uma attitude
confidencial:--E depois a mim é que me convinha, Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!
--Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o conego. E com uma entonação terna,
risonhamente paternal:--que ella é merecedora, é merecedora. Boa até alli, meu amigo!--Parou, esgazeando os
olhos:--Olhe que dia em que eu não lhe appareça pela manhã ás nove em ponto, está n'um phrenesi! «Oh
creatura! digo-lhe eu, a senhora rala-se sem razão.» Mas então, é aquillo! Pois quando eu tive a colica o anno
passado! Emmagreceu, snr. Mendes! E depois não ha lembrança que não tenha! Agora, pela matança do
porco, o melhor do animal é para o padre santo, vossê sabe? é como ella me chama.
--Lá isso! exclamou o conego parando outra vez. Lá isso! Bem conservada até alli! Pois olhe que já não é
criança! Mas nem um cabello branco, nem um, nem um só! E então que côr de pelle!--E mais baixo, com um
sorriso guloso:--E isto aqui! ó Mendes, e isto aqui!--Indicava o lado do pescoço debaixo do queixo,
passando-lhe devagar por cima a sua mão papuda:--É uma perfeição! E depois mulher de aceio, muitissimo
aceio! E que lembrançasinhas! Não ha dia que me não mande o seu presente! é o covilhete de geleia, é o
pratinho d'arroz dôce, é a bella murcella d'Arouca! Hontem me mandou ella uma torta de maçã. Ora havia de
vossê vêr aquillo! A maçã parecia um creme! Até a mana Josepha disse: «Está tão boa que parece que foi
cozida em agua benta!»--E pondo a mão espalmada sobre o peito:--São coisas que tocam a gente cá por
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 8
--Eu bem sei, disse o conego parando de novo e tirando lentamente as palavras, eu bem sei que por ahi
rosnam, rosnam... Pois é uma grandissima calumnia! O que é, é que eu tenho muito apêgo áquella gente. Já o
tinha em tempo do marido. Vossê bem o sabe, Mendes.
--A S. Joanneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o conego batendo
no chão fortemente com a ponteira do guardasol.
--As linguas do mundo são venenosas, senhor conego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E depois d'um
silencio acrescentou baixo:--Mas aquillo a vossa senhoria deve-lhe sahir caro!
--Pois ahi está, meu amigo! Imagine vossê que desde que o secretario geral se foi embora a pobre da mulher
tem tido a casa vazia: eu é que tenho dado para a panella, Mendes!
--Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as decimas, os jornaes! Por isso digo eu,
o parocho é uma mina. Com os seis tostões que elle der, com o que eu ajudar, com alguma coisa que ella tire
da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um allivio, Mendes.
Ficaram calados. A tarde descahia muito limpida; o alto céo tinha uma pallida côr azul; o ar estava immovel.
N'aquelle tempo o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em sêcco; e a agua baixa arrastava-se com um
marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos.
Duas vaccas, guardadas por uma rapariga, appareceram então pelo caminho lodoso que do outro lado do rio,
defronte da alameda, corre junto d'um silvado; entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço pellado da
canga, bebiam de leve, sem ruido; a espaços erguiam a cabeça bondosa, olhavam em redor com a passiva
tranquillidade dos sêres fartos--e fios de agua, babados, luzidios á luz, pendiam-lhes dos cantos do focinho.
Com a inclinação do sol a agua perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se as sombras dos arcos da ponte.
Do lado das colinas ia subindo um crepusculo esfumado, e as nuvens côr de sanguinea e côr de laranja que
annunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma decoração muito rica.
Quando, d'ahi a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o conego parou, e voltando-se para o coadjutor:
--Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S. Joanneira! É uma pechincha para todos.
II
Uma semana depois soube-se que o novo parocho devia chegar pela diligencia de Chão de Maçãs, que traz o
correio á tarde; e desde as seis horas o conego Dias e o coadjutor passeavam no largo do Chafariz, á espera de
Amaro.
Era então nos fins de agosto. Na longa alameda macadamisada que vai junto do rio, entre os dois renques de
velhos choupos, entreviam-se vestidos claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de
casebres pobres, velhas fiavam á porta; crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando os seus enormes
ventres nús; e gallinhas em redor iam picando vorazmente as immundicies esquecidas. Em redor do chafariz
cheio de ruido, onde os cantaros arrastam sobre a pedra, criadas ralham, soldados, com a sua fardeta suja,
enormes botas cambadas, namoravam, meneando a chibata de junco; com o seu cantaro bojudo de barro
equilibrado á cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares, meneando os quadris; e dois officiaes
ociosos, com a farda desapertada sobre o estomago, conversavam, esperando, a vêr quem viria. A diligencia
tardava. Quando o crepusculo desceu, uma lamparina luziu no nicho do santo, por cima do Arco; e defronte
iam-se alumiando uma a uma, com uma luz soturna, as janellas do hospital.
Já tinha anoitecido quando a diligencia, com as lanternas accesas, entrou na Ponte ao trote esgalgado dos seus
magros cavallos brancos, e veio parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz; o caixeiro do tio
Patricio partiu logo a correr para a Praça com o maço dos Diarios Populares; o tio Baptista, o patrão, com o
cachimbo negro ao canto da boca, desatrellava, praguejando tranquillamente; e um homem que vinha na
almofada, ao pé do cocheiro, de chapéo alto e comprido capote ecclesiastico, desceu cautelosamente,
agarrando-se ás guardas de ferro dos assentos, bateu com os pés no chão para os desentorpecer, e olhou em
redor.
--Oh, Padre-Mestre! disse o outro com alegria. E abraçaram-se, emquanto o coadjutor, todo curvado, tinha o
barrete na mão.
D'ahi a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça, entre a corpulencia vagarosa do
conego Dias e a figura esguia do coadjutor, um homem um pouco curvado, com um capote de padre. Soube-se
que era o parocho novo; e disse-se logo na botica que era uma boa figura de homem. O João Bicha levava
adiante um bahú e um sacco de chita; e como áquella hora já estava bebedo, ia resmungando o Bemdito.
Eram quasi nove horas, a noite cerrára. Em redor da Praça as casas estavam já adormecidas: das lojas debaixo
da arcada sahia a luz triste dos candieiros de petroleo, entreviam-se dentro figuras somnolentas, caturrando em
cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar á Praça, tortuosas, tenebrosas, com um lampeão mortiço,
pareciam deshabitadas. E no silencio o sino da Sé dava vagarosamente o toque das almas.
O conego Dias ia explicando pachorrentamente ao parocho «o que lhe arranjára». Não lhe tinha procurado
casa: seria necessario comprar mobilia, buscar criada, despezas innumeraveis! Parecera-lhe melhor tomar-lhe
quartos n'uma casa de hospedes respeitavel, de muito conchego--e n'essas condições (e alli estava o amigo
coadjutor que o podia dizer), não havia como a da S. Joanneira. Era bem arejada, muito aceio, a cozinha não
deitava cheiro; tinha lá estado o secretario geral e o inspector dos estudos; e a S. Joanneira (o Mendes amigo
conhecia-a bem) era uma mulher temente a Deus, de boas contas, muito economica e cheia de
condescendencias...
--Vossê está alli como em sua casa! Tem o seu cozido, prato de meio, café...
--Seis tostões. Que diabo, é de graça! Tem um quarto, tem uma saleta...
--Dois passos. Póde-se ir dizer missa de chinelos. Na casa ha uma rapariga, continuou com a sua voz pausada
o conego Dias. É a filha da S. Joanneira. Rapariga de vinte e dois annos. Bonita. Sua pontinha de genio, mas
bom fundo... Aqui tem vôsse a sua rua.
Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da velha Misericordia, com um lampeão
lugubre ao fundo.
--E aqui tem vossê o seu palacio! disse o conego, batendo na aldraba de uma porta esguia.
No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam saliencia, com os seus arbustos de
alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas de madeira; as janellas de cima, pequeninas, eram de
peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata amolgada.
A S. Joanneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e sardenta, alumiava com um candieiro de
petroleo; e a figura da S. Joanneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda, alta, muito
branca, d'aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pelle engelhada; os cabellos
arripiados, com um enfeite escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas percebiam-se
uns braços rechonchudos, um collo copioso e roupas aceadas.
--Muita honra em receber o senhor parocho! muita honra! Ha de vir muito cansado! por força! Para aqui, tem
a bondade? Cuidado com o degrausinho.
Levou-o para uma sala pequena pintada de amarello, com um vasto canapé de palhinha encostado à parede, e
defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta verde.
--É a sua sala, senhor parocho, disse a S. Joanneira. Para receber, para espairecer... Aqui--acrescentou abrindo
uma porta--é o seu quarto de dormir. Tem a sua commoda, o seu guarda-roupa...--Abriu os gavetões, gabou a
cama batendo a elasticidade dos colxões--Uma campainha para chamar sempre que queira... As chavinhas da
commoda estão aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto... Tem um cobertor só, mas querendo...
--Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, disse o parocho com a sua voz baixa e suave.
--Oh creatura de Deus! interrompeu o conego jovialmente, o que elle quer agora é cear!
--Tambem tem a ceiasinha prompta. Desde as seis que está o caldo a apurar...
--Eu estou bem em toda a parte, Padre-Mestre, disse o parocho, calçando os seus chinelos de ourelo. Olha o
seminario!... E em Feirão! Cahia-me a chuva na cama.
Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candieiro esmorecia. A noite estava muito negra. E havia sobre a
cidade um silencio concavo, de abobada.
Depois das cornetas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do quartel; por baixo da janella um
soldado, que se demorára n'alguma viella do castello, passou correndo; e das paredes da Misericordia sahia
constantemente o agudo piar das corujas.
--Ora vá, vá, que vossê deve estar a cahir de fome, Amaro!--disse o conego, erguendo-se muito pesado.
--Vai vossê vêr o que é um caldo de gallinha feito cá pela senhora! Da gente se babar!...
No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava, com a sua toalha muito
branca, a louça, os copos reluzindo á luz forte d'um candieiro d'abat-jour verde. Da terrina subia o vapor
cheiroso do caldo, e na larga travessa a gallinha gorda, afogada n'um arroz humido e branco, rodeada de nacos
de bom paio, tinha uma apparencia succulenta de prato morgado. No armario envidraçado, um pouco na
sombra, viam-se côres claras de porcelana; a um canto, ao pé da janella, estava o piano, coberto com uma
colcha de setim desbotado. Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha d'um taboleiro de roupa
lavada, o parocho esfregou as mãos, regalado.
--Para aqui, senhor parocho, para aqui, disse a S. Joanneira. D'ahi póde-lhe vir frio.--Foi fechar as portadas
das janellas; chegou-lhe um caixão de areia para as pontas dos cigarros.--E o senhor conego toma um copinho
de geleia, sim?
--Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o conego, sentando-se e desdobrando o guardanapo.
A S. Joanneira, no emtanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o parocho que, com a cabeça sobre o prato,
comia em silencio o seu caldo, soprando a colhér. Parecia bem feito: tinha um cabello muito preto, levemente
annelado. O rosto era oval, de pelle trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas compridas.
O conego, que não o via desde o seminario, achava-o mais forte, mais viril.
--Foi o ar da serra, dizia o parocho, fez-me bem.--Contou então a sua triste existencia em Feirão, na alta Beira,
durante a aspereza do inverno, só, com pastores. O conego deitava-lhe o vinho de alto, fazendo-o espumar.
--Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! D'esta gota não pilhava vossê no seminario.
Fallaram do seminario.
Riram; e bebendo, na alegria das reminiscencias, recordavam as historias de então, o catarrho do reitor, e o
mestre de canto-chão que deixára um dia cahir do bolso as poesias obscenas de Bocage.
--Viva! Não, lá n'isso tambem eu entro! exclamou logo o conego. A bella maçã assada! nunca me escapa!
Grande dona de casa, meu amigo, rica dona de casa, cá a nossa S. Joanneira! Grande dona de casa!
Ella ria; viam-se os seus dois dentes de diante, grandes e chumbados. Foi buscar uma garrafa de vinho do
Porto; poz no prato do conego, com requintes devotos, uma maçã desfeita polvilhada de assucar; e
batendo-lhe nas costas com a mão papuda e molle:
--Isto é um santo, senhor parocho, isto é um santo! Ai, devo-lhe muitos favores!
--Foi ao Morenal com a D. Maria. Aquillo naturalmente foram para casa das Gansosos passar a noite.
--Cá esta senhora é proprietaria, explicou o conego, fallando do Morenal. É um condado!--Ria com bonhomia,
e os seus olhos luzidios percorriam ternamente a corpulencia da S. Joanneira.
--Ah, senhor parocho, deixe fallar, é uma nesga de terra..., disse ella.
Muito achacada, muito!... A pobre de Christo era sua afilhada, orphã, e estava quasi tisica. Tinha-a tomado
por piedade...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 13
--E tambem porque a criada que cá tinha foi para o hospital, a desavergonhada... Metteu-se ahi com um
soldado!...
O padre Amaro baixou devagar os olhos--e trincando migalhas perguntou se havia muitas doenças n'aquelle
verão.
--Cholerinas, das fructas verdes, rosnou o conego. Mettem-se pelas melancias, depois tarraçadas de agua... E
suas febritas...
--Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo, tenho saude,
tenho!
--Ai, Nosso Senhor lh'a conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou a S. Joanneira.--Contou
immediatamente a grande desgraça que tinha em casa, uma irmã meia idiota entrevada havia dez annos! Ia
fazer sessenta annos... No inverno viera-lhe um catarrho, e desde então, coitadinha, definhava, definhava...
--Ha bocado, ao fim da tarde, teve ella um ataque de tosse! Pensei que se ia embora. Agora descansou mais...
Continuou a fallar «d'aquella tristeza», depois da sua Ameliasinha, das Gansosos, do antigo chantre, da
carestia de tudo--sentada, com o gato no collo, rolando com os dois dedos, monotonamente, bolinhas de pão.
O conego, pesado, cerrava as palpebras; tudo na sala parecia ir gradualmente adormecendo; a luz do candieiro
esmorecia.
--Pois senhores, disse por fim o conego mexendo-se, isto são horas!
A S. Joanneira alumiava no patamar, com o candieiro. Mas nos primeiros degraus o parocho parou, e
voltando-se, affectuosamente:
--Não, não, acudiu o conego que se embrulhava na capa de lustrina, bocejando, vossê ámanhã janta commigo.
Eu venho por cá, vamos ao chantre, á Sé, e por ahi... E olhe que tenho lulas. É um milagre, que isto aqui
nunca ha peixe.
--Eu dizia, explicou o parocho, porque infelizmente hoje em dia ninguem cumpre...
--Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ella. Mas eu! credo!... A salvação da minha alma antes de tudo!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 14
Uma voz disse adeusinho! adeusinho! E appareceu, subindo quasi a correr, com os vestidos um pouco
apanhados adiante, uma bella rapariga, forte, alta, bem feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um
ramo de alecrim.
--Sobe, filha. Aqui está o senhor parocho. Chegou agora á noitinha, sobe!
Amelia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de cima, onde o parocho ficára,
encostado ao corrimão. Respirava fortemente de ter corrido; vinha córada; os seus olhos vivos e negros
luziam; e sahia d'ella uma sensação de frescura e de prados atravessados.
O parocho desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar, murmurando boas noites! com a cabeça baixa. O
conego, que descia atraz, pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amelia:
--Ora vá-se encommendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com a sua mão grossa e
cabelluda.
Ella subiu a correr, emquanto o conego, depois d'ir buscar o guardasol á saleta, sahia, dizendo á criada, que
erguia o candieiro sobre a escada:
--Está bom, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então ás oito, Amaro! Esteja a pé! Vai-te, rapariga, adeus!
Reza á Senhora da Piedade que te seque essa catarrheira.
O parocho fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado.
Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga d'um Christo crucificado. Amaro abriu o seu Breviario,
ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima,
sobre o tecto, através das orações rituaes que machinalmente ia lendo, começou a sentir o tic-tic das botinas de
Amelia e o ruido das saias engommadas que ella sacudia ao despir-se.
III
Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marqueza d'Alegros. Seu pai era criado do marquez; a
mãi era criada de quarto, quasi uma amiga da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um livro, o Menino
das selvas, com barbaras imagens coloridas, que tinha escripto na primeira pagina branca: Á minha muito
estimada criada Joanna Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido,--Marqueza d'Alegros. Possuia
tambem um daguerreotypo de sua mãi: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e
sensualmente fendida, e uma côr ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãi, que fôra
sempre tão sã, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge. Amaro completára então seis annos.
Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do
bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganhára amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma
adopção tacita; e começou, com grandes escrupulos, a vigiar a sua educação.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 15
A marqueza d'Alegros ficára viuva aos quarenta e tres annos e passava a maior parte do anno retirada na sua
quinta de Carcavellos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capella em casa, um respeito
devoto pelos padres de S. Luiz, sempre preoccupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no
receio do Céo e nas preoccupações da Moda, eram beatas e faziam o chic fallando com igual fervor da
humildade christã e do ultimo figurino de Bruxellas. Um jornalista de então dissera d'ellas:--Pensam todos os
dias na toilette com que hão de entrar no paraiso.
No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta de alamedas aristocraticas onde os pavões gritavam, as duas
meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então occupações avidamente aproveitadas: cosiam
vestidos para os pobres da freguezia, bordavam frontaes para os altares da igreja. De maio a outubro estavam
inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e dôces; como não tinham S.
Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo
de verão.
A senhora marqueza resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida ecclesiastica. A sua figura amarellada e
magrita pedia aquelle destino recolhido: era já affeiçoado ás coisas de capella, e o seu encanto era estar
aninhado ao pé de mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo fallar de santas. A senhora marqueza não o
quiz mandar ao collegio porque receava a impiedade dos tempos e as camaradagens immoraes. O capellão da
casa ensinava-lhe o latim, e a filha mais velha, a snr.^a D. Luiza, que tinha um nariz de cavallete e lia
Chateaubriand, dava-lhe lições de francez e de geographia.
Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se á tarde
acompanhava a senhora marqueza ás alamedas da quinta quando ella descia pelo braço do padre Liset ou do
respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, môno, muito encolhido, torcendo com as mãos humidas o forro
das algibeiras--vagamente assustado das espessuras d'arvoredos e do vigor das relvas altas.
Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé d'uma ama velha. As criadas de resto
feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas, e
elle rolava por entre as saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Ás vezes, quando a
senhora marqueza sahia, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas: elle abandonava-se, meio nú, com os
seus modos languidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, além d'isso,
utilisavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tornou-se enredador,
muito mentiroso.
Aos onze annos, ajudava á missa, e aos sabbados limpava a capella. Era o seu melhor dia; fechava-se por
dentro, collocava os santos em plena luz em cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações
gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santissimo, ia tirando a traça dos vestidos das
Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Martyres.
No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miudo e amarellado; nunca dava uma boa risada, trazia
sempre as mãos dos bolsos. Estava constantemente mettido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas;
bolia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava de manhã
arrancal-o a uma somnolencia doentia em que ficava amollecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado
ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.
N'um domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marqueza de repente
cahiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada
Joanna, entrasse aos quinze annos no seminario e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado de realisar
esta disposição piedosa. Amaro tinha então treze annos.
As filhas da senhora marqueza deixaram logo Carcavellos e foram para Lisboa, para casa da snr.^a D. Barbara
de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro era um homem
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 16
obeso, casado com a filha d'um pobre empregado publico, que o aceitára para sahir da casa do pai, onde a
mesa era escassa, ella devia fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o marido, as suas mãos
cabelludas, a loja, o bairro e o seu apellido de snr.^a Gonçalves. O marido esse adorava-a como a delicia da
sua vida, o seu luxo; carregava-a de joias e chamava-lhe a sua duqueza.
Amaro não encontrou alli o elemento feminino e carinhoso em que estivera tepidamente envolvido em
Carcavellos. A tia quasi não reparava n'elle; passava os seus dias lendo romances, as analyses dos theatros nos
jornaes, vestida de sêda, coberta de pó d'arroz, o cabello em cachos, esperando a hora em que passava debaixo
das janellas, puxando os punhos, o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro apropriou-se então de Amaro
como d'uma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer logo ás cinco horas da manhã; e o
rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul, molhando á pressa o pão na chavena de café, ao canto da mesa da
cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio chamava-lhe o burro. Pesava-lhes até o
magro pedaço de vacca que elle comia ao jantar. Amaro emmagrecia e todas as noites chorava.
Sabia já que aos quinze annos devia entrar no seminario. O tio todos os dias lh'o lembrava:
--Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro! Em tendo quinze annos é para o seminario. Não
tenho obrigação de carregar comtigo! Besta na argola, não está nos meus principios!
Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepelliz; a sua
natureza passiva, facilmente dominavel, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe desagradava
ser padre. Desde que sahira das rezas perpetuas de Carcavellos conservára o seu medo do inferno, mas
perdera o fervor dos santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora marqueza, pessoas
brancas e bem tratadas que comiam ao lado das fidalgas e tomavam rapé em caixas d'ouro; e convinha-lhe
aquella profissão em que se falla baixo com as mulheres,--vivendo entre ellas, cochichando, sentindo-lhes o
calor penetrante,--e se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um annel de
rubi no dedo minimo; monsenhor Sávedra com os seus bellos oculos d'ouro, bebendo aos goles o seu copo de
madeira. As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fôra padre
na Bahia, viajára, estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas que cheiravam a
agua de colonia apoiadas ao castão d'ouro da bengala, todo rodeado de senhoras em extase e cheias d'um riso
beato, cantava, para as entreter, com a sua bella voz:
Um anno antes de entrar para o seminario o tio fel-o ir a um mestre para se affirmar mais no latim, e
dispensou-o de estar ao balcão. Pela primeira vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia só á escóla,
passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exercicio de infanteria, espreitou ás portas dos cafés, leu os cartazes dos
theatros. Sobretudo começára a reparar muito nas mulheres--e vinham-lhe, de tudo o que via, grandes
melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da escóla, ou aos domingos depois de ter ido
passear com o caixeiro ao jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janellinha
n'um vão sobre os telhados. Encostava-se alli olhando, e via parte da cidade baixa que a pouco e pouco se
alumiava de pontos de gaz: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que não
conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrazados de luz e mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas
pelos perystillos dos theatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente appareciam-lhe no fundo negro
da noite fórmas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca, ou um
braço roliço arregaçado até ao hombro... Mas em baixo, na cozinha, a criada começava a lavar a louça,
cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe então desejos de descer, ir roçar-se por ella,
ou estar a um canto a vêl-a escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas viellas, de saias
engommadas e ruidosas, passeando em cabello, com botinas cambadas: e, da profundidade do seu sêr,
subia-lhe uma preguiça, como que a vontade de abraçar alguem, de não se sentir só. Julgava-se infeliz,
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 17
E d'ahi a pouco, sobre o Tito-Livio, cabeceando de somno, sentindo-se desgraçado, roçando os joelhos um
contra o outro, torturava o diccionario.
Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre, porque não poderia casar. Já as
convivencias da escóla tinham introduzido na sua natureza effeminada curiosidades, corrupções. Ás
escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava mais amarello.
Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco humidos, as lampadas
tristes, os quartos estreitos e gradeados, as batinas negras, o silencio regulamentado, o toque das
sinetas--deram-lhe uma tristeza lugubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito agradou.
Começaram a tratal-o por tu, a admittil-o, durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo, ás
conversas em que se contavam anecdotas dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente se lamentavam
as melancolias da clausura: porque quasi todos fallavam com saudade das existencias livres que tinham
deixado: os da aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de cantigas e de
abraços, as filas da boiada que recolhe, emquanto um vapor se exhala dos prados; os que vinham das pequenas
villas lamentavam as ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram as visinhas, os alegres dias de mercado,
as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim. Não lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as
suas arvores definhadas, os altos muros somnolentos, o monotono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos
corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se faziam as meditações da manhã e se estudavam á noite as lições;
e invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes--o almocreve que viam passar na estrada tocando
os seus machos, o carreiro que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes, apoiados
ao seu cajado, com o seu alforge escuro.
Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada; á tardinha uma diligencia costumava passar, levantando
a poeira, entre os estalidos do chicote, ao trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros alegres, que
levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos charutos; quantos olhares os seguiam! quantos
desejos iam viajando com elles para as alegres villas e para as cidades, pela frescura das madrugadas ou sob a
claridade das estrellas!
E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortaliça, quando o regente de voz grossa começava a lêr
monotonamente as cartas d'algum missionario da China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades
dos jantares de familia! As boas postas de peixe! o tempo da matança! os rojões quentes que chiam no prato!
os sarrabulhos cheirosos!
Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto enfastiado da tia coberto de pó
d'arroz; mas insensivelmente poz-se tambem a ter saudades dos seus passeios aos domingos, da claridade do
gaz e das voltas da escóla com os livros n'uma correia, quando parava encostado á vitrina das lojas a
contemplar a nudez das bonecas!
Lentamente, porém, com a sua natureza incaracteristica, foi entrando como uma ovelha indolente na regra do
seminario. Decorava com regularidade os seus compendios; tinha uma exactidão prudente nos serviços
ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se muito baixo diante dos lentes--chegou a ter boas notas.
Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar o seminario com beatitude e maceravam os joelhos,
ruminando, com a cabeça baixa, textos da Imitação ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos em alvo,
empallideciam d'extase; mesmo no recréio, ou nos passeios, iam lendo algum volumesinho de Louvores a
Maria; e cumpriam com delicia as regras mais miudas--até subir só um degrau de cada vez, como
recommenda S. Boaventura. A esses o seminario dava um ante-gosto do céo: a elle só lhe offerecia as
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 18
Não comprehendia tambem os ambiciosos: os que queriam ser caudatarios d'um bispo, e nas altas salas dos
paços episcopaes erguer os reposteiros de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de
ordenados, servir uma igreja aristocratica, e, diante das devotas ricas que se accumulam no frou-frou das sêdas
sobre o tapete do altar-mór, cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fóra da Igreja:
ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lageadas o tlim-tlim d'um sabre; ou a farta vida da lavoura, e
desde a madrugada, com um chapéo desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas largas
eiras cheias de medas, apear á porta das adegas. E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdocio
ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminario para comer bem, ganhar dinheiro e
conhecer as mulheres.
No entretanto, escutando por sympathia aquelles para quem o seminario era o «tempo das galés», sahia muito
perturbado d'aquellas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre. Ás vezes fallavam de fugir.
Faziam planos, calculando a altura das janellas, as peripecias da noite negra pelos negros caminhos: anteviam
balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso:
sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos,
ardia, como uma braza silenciosa, o desejo da Mulher.
Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada de estrellas, pousada sobre a esphera, com o olhar errante
pela luz immortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ella como para um refugio, rezava-lhe
a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a lithographia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante
de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez lubricamente; e mesmo a sua
curiosidade ousava erguer as pregas castas da tunica azul da imagem e suppôr fórmas, redondezas, uma carne
branca... Julgava então vêr os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama d'agua benta;
mas não se atrevia a revelar estes delirios, no confessionario, ao domingo.
Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral fallar, com a sua voz roufenha, do Peccado, comparal-o
á serpente e, com palavras unctuosas e gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a pompa mellíflua
dos seus periodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a serpente
ominosa! E depois era o mestre de Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer a
Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Chrysologo, S. Cypriano e S. Jeronymo, explicava os anathemas
dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo, Filha da
mentira, Porta do inferno, Cabeça do crime, Escorpião...
--E como disse o nosso padre S. Jeronymo,--e assoava-se estrondosamente--Caminho de iniquidades, iniquitas
via!
Até nos compendios encontrava a preoccupação da Mulher! Que sêr era esse, pois, que através de toda a
theologia ora era collocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apostrophes barbaras?
Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extatica,
dando-lhe por acclamação o profundo reino dos céos,--ora vai fugindo diante d'ella como do Universal
Inimigo, com soluços de terror e gritos d'odio, e escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas e nos claustros,
vai alli morrendo do mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações! ellas renasciam,
desmoralisavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfallecia no desejo de os quebrar.
E em redor d'elle sentia iguaes rebelliões da natureza: os estudos, os jejuns, as penitencias podiam domar o
corpo, dar-lhe habitos machinaes, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um ninho
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 19
serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam eram os sanguineos, tão doloridamente apertados na Regra
como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento
irrompia: luctavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos lymphaticos a natureza comprimida produzia
as grandes tristezas, os silencios molles: desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um
velho baralho, lêr um romance, obter de intrigas demoradas um maço de cigarros--quantos encantos do
peccado!
Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente,
escrevinhavam notas no silencio da alta livraria, eram respeitados, usavam oculos, tomavam rapé. Elle mesmo
tinha ás vezes ambições repentinas da sciencia; mas diante dos vastos in-folios vinha-lhe um tedio
insuperavel. Era no emtanto devoto: rezava, tinha fé illimitada em certos santos, um terror angustioso de
Deus. Mas odiava a clausura do seminario! A capella, os chorões do pateo, as comidas monotonas do longo
refeitorio lageado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria bom,
puro, crente, se estivesse na liberdade d'uma rua ou na paz d'um quintal, fóra d'aquellas negras paredes.
Emmagrecia, tinha suores eticos: e mesmo no ultimo anno, depois do serviço pesado da Semana Santa, como
começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa.
Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminario, esta
carta do snr. padre Liset:
«Meu querido filho e novo collega.--Agora que está ordenado, entendo em minha consciencia que devo
dar-lhe conta do estado dos seus negocios, pois quero cumprir até ao fim o encargo com que carregou os meus
hombros debeis a nossa chorada marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou.
Porque, ainda que os bens mundanos pouco deviam importar a uma alma votada ao sacerdocio, são sempre as
boas contas que fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida
marqueza--para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna--está inteiramente exhausto. Aproveito
esta occasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabelecimento, se
entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: cahiu sob o imperio das paixões, e tendo-se
ligado illegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa
de hospedes na rua dos Calafates n.^o 53. Se toco n'estas impurezas, tão improprias de que um tenro levita
como o meu querido filho tenha d'ellas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitavel
familia. Sua irmã, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que
devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circumstancias, que o meu querido filho esteja de posse
d'este facto. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguezia de Feirão,
na Gralheira, vou fallar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de attender um pobre
padre que só pede a Deus misericordia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos
caminhos da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade n'este
nosso santo ministerio quando sabemos comprehender quantos são os balsamos que derrama no peito e
quantos os refrigerios que dá--o serviço de Deus! Adeus, meu querido filho e novo collega. Creia que sempre
o meu pensamento estará com o pupillo da nossa chorada marqueza, que decerto do céo, onde a elevaram as
suas virtudes, supplica á Virgem, que ella tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupillo.» Liset.
Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho de Feirão, na Gralheira, serra da Beira-Alta. Esteve alli desde
outubro até ao fim das neves.
Feirão é uma parochia pobre de pastores e n'aquella época quasi deshabitada. Amaro passou o tempo muito
ocioso, ruminando o seu tedio á lareira, ouvindo fóra o inverno bramir na serra. Pela primavera vagaram nos
districtos de Santarem e de Leiria parochias populosas, com boas congruas. Amaro escreveu logo á irmã
contando a sua pobreza em Feirão; ella mandou-lhe, com recommendações de economia, doze moedas para ir
a Lisboa requerer. Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham-lhe fortificado o
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 20
sangue; voltava robusto, direito, sympathico, com uma boa côr na pelle trigueira.
Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates n.^o 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços vermelhos
n'uma cuia enorme, toda coberta de pó d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu
os seus magros braços a Amaro.
-Como estás bonito! Ora não ha! Quem te viu! Ih, Jesus! que mudança!
Admirava-lhe a batina, a corôa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a salvação da sua
alma e sobre a carestia dos generos, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão.
--Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E baratinho!... Ai! ter-te de graça queria eu, mas... Tenho sido
muito infeliz, Joãosinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça...
Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luiz. Tinha ido para França. Lembrou-se então da filha
mais nova da senhora marqueza d'Alegros, a snr.^a D. Luiza, que estava casada com o conde de Ribamar,
conselheiro d'Estado, com influencia, regenerador fiel desde cincoenta e um e duas vezes ministro do reino.
E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da snr.^a condessa
de Ribamar, a Buenos-Ayres. Á porta um coupé esperava.
--A senhora condessa vai sahir, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado á
hombreira do pateo, de cigarro na boca.
N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do pateo
lageado, uma senhora sahia, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados sobre a
testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido e agudo, e no queixo um signalzinho de cabellos claros.
--A senhora condessa já me não conhece..., disse Amaro com o chapéo na mão, adiantando-se curvado. Sou o
Amaro.
--O Amaro!? disse ella como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem elle é! Ora não ha! Está um homem!
Quem diria!
Amaro sorria-se.
Ella escutava-o com as mãos apoiadas n'uma alta sombrinha de sêda clara, e Amaro sentia vir d'ella um
perfume de pó d'arroz e uma frescura de cambraias.
--Pois deixe estar, disse ella, fique descansado. Meu marido ha de fallar. Eu me encarrego d'isso. Olhe, venha
por cá.--E com o dedo sobre o canto da boca:--Espere, ámanhã vou para Cintra. Domingo, não. O melhor é
d'aqui a quinze dias. D'aqui a quinze dias pela manhã, sou certa.--E rindo com os seus largos dentes
frescos:--Parece que o estou a vêr traduzir Chateaubriand com a mana Luiza! Como o tempo passa!
Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, n'um aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes d'ouro, e
saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.
Amaro começou então a esperar. Era em julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e
durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Ás vezes ia conversar com
a tia para a sala de jantar; as janellas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monotona susurração das
moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia crochet, com a luneta encavallada na ponta do
nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama.
Á noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se, no ar pesado e immovel: a todos os cantos se
apregoava monotonamente agua fresca! Pelos bancos, debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam;
em redor da praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades dos cafés
reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.
Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janella aberta ao calor da noite, estirado em cima da cama, em
mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam,
com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido ha de fallar! E via-se
já parocho n'uma bonita villa, n'uma casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranquillo e
importante, recebendo bandejas de dôce das devotas ricas.
Vivia então n'um estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminario lhe causava a
continencia, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que elle
gostava de vêr ao domingo tocar á missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a
face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao céo as orações que manda o ritual, trazia a
carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.
Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando, muito
acanhado, o largo tapete vermelho fixado com varões de metal. Da alta claraboia cahia uma luz suave; ao
cimo da escada, no patamar, sentado n'uma banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado á parede
branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço cahido, dormia. Fazia um grande calor; aquelle alto
silencio aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento com o seu guardasol pendente do dedo minimo,
hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta, o
seu rico grilhão d'ouro; e ia descer quando ouviu por detraz d'um reposteiro um riso grosso de homem.
Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho n'uma larga
sala com estofos de damasco amarello; uma grande luz entrava das varandas abertas, e viam-se arvoredos de
jardim. No meio da sala tres homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:
Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de ouro, voltou-se surprehendido, com o charuto ao canto da
boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde.
--Sou Amaro...
--Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade... Minha mulher fallou-me.
Tem a bondade...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 22
E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi calvo, de calças brancas muito curtas:
--O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi creado de pequeno em casa de minha sogra. Nasceu
lá, creio eu...
--Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro que se conservava afastado, com o guardasol na mão.
--Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora,--já não ha d'isso!--fel-o padre. Houve até um
legado, creio eu... Emfim, aqui o temos parocho... Onde, senhor padre Amaro?
--Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado. Era um homem magro, entalado n'uma
sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com soberbas suiças d'um negro de tinta e um admiravel cabello
lustroso de pomada, apartado até ao cachaço n'uma risca perfeita.
--Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguezia pobre, sem distracções, com um clima
horrivel...
--É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos e activos devem estar nas
parochias difficeis, nas cidades... É claro! Mas não: olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, ha um
velho, um gottoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé.
--É verdade, disse o ministro, mas essas collocações nas boas parochias devem naturalmente ser recompensas
dos bons serviços. É necessario o estimulo...
--Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionaes, serviços á Igreja, não serviços aos
governos.
--Respeito muito a opinião de vossa excellencia, mas se me permitte... Sim, digo eu, os parochos na cidade
são-nos d'um grande serviço nas crises eleitoraes. D'um grande serviço!
--Olhe vossa excellencia, continuou elle, sôfrego da palavra. Olhe vossa excellencia em Thomar. Porque
perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada mais.
O conde acudiu:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 23
--Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes eleitoraes.
O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas, cheias da auctoridade d'um
vasto entendimento:
--A religião, disse elle, póde, deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento, operando, por assim
dizer, como freio...
--Mas descer ás intrigas, continuou o conde devagar, aos imbroglios... Perdôe-me, meu caro amigo, mas não é
d'um christão.
--Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem das suiças soberbas. Sou-o a valer! Mas tambem sou liberal.
E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais solidas...
--Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero e desacredita a politica.
--Mas são ou não as maiorias um principio sagrado? gritava rubro o das suiças, accentuando o adjectivo.
--Minha mulher ha de querer vêl-o, disse-lhe então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que
levantou:--Entre. É o senhor padre Amaro, Joanna!
Era uma sala forrada de papel branco assetinado, com moveis estofados de casimira clara. Nos vãos das
janellas, entre as cortinas de pregas largas d'uma fazenda adamascada côr de leite, apanhadas quasi junto do
chão por faxas de sêda, arbustos delgados, sem flôr, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma
meia luz fresca dava a todas aquellas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas d'uma cadeira uma arara
empoleirada, firme n'um só pé negro, coçava vagarosamente, com contracções aduncas, a sua cabeça verde.
Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os cabellinhos louros e frisados da
senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz
gordo, de face rechonchuda, sentado diante d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotovêlos sobre os joelhos
abertos, occupava-se em balançar, como um pendulo, um pince-nez de tartaruga. A condessa tinha no regaço
uma cadellinha, e com a sua mão sêcca e fina, cheia de veias, acamava-lhe o pêllo branco como algodão.
--Como está, snr. Amaro?--A cadella rosnou.--Quieta, Joia... Sabe que já fallei no seu negocio? Quieta, Joia...
O ministro está alli.
Amaro pousou-se á beira d'um fauteil, com o seu guardasol na mão--e reparou então n'uma senhora alta que
estava de pé, junto do piano, fallando com um rapaz louro.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 24
--Que tem feito estes dias, snr. Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua irmã?
Houve um silencio. Amaro, d'olhos baixos, passava, com um gesto embaraçado e errante, os dedos pelos
beiços.
--Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. Está o mesmo sempre; muito amavel, muito
dôce. É a alma mais virtuosa!...
--Não diga isso, primo! Jesus, brada aos céos! Pois então o padre Liset, tão respeitavel!... E depois outras
maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... Vê-se que é um coração delicado...
--Ai, nem diga isso! Que o padre Felix é uma pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset tem uma
religião mais...--E com um gesto delicado procurava a palavra:--mais fina, mais distincta... Emfim, vive com
outra gente.--E sorrindo para Amaro:--Pois não acha?
--Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que enthusiasmo!... Ai, é outra
coisa!--E voltando-se para a senhora que estava junto do piano:--Pois não achas, Thereza?
Amaro afirmou-se então n'ella. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura, uma
linha de hombros e de seio magnifica; os cabellos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a pallidez do
rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Marie Antoinette; o seu vestido preto, de mangas curtas e
decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom
monotono das alvuras da sala; o collo, os braços estavam cobertos por uma gaze preta, que fazia apparecer
através a brancura da carne; e sentia-se nas suas fórmas a firmeza dos marmores antigos, com o calor d'um
sangue rico.
Fallava baixo, sorrindo, n'uma lingua aspera que Amaro não comprehendia, cerrando e abrindo o seu leque
preto--e o rapaz louro, bonito, escutava-a retorcendo a ponta d'um bigode fino, com um quadrado de vidro
entalado no olho.
--Havia muita devoção na sua parochia, snr. Amaro? perguntava no emtanto a condessa.
--É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, considerou ella com um tom piedoso.--Queixou-se da
obrigação de viver na cidade, nos captiveiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua quinta de Carcavellos,
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 25
rezar na pequena capella antiga, conversar com as boas almas da aldeia!--e a sua voz tornára-se terna.
--Ora, prima! dizia; ora, prima!--Não, elle, se o obrigassem a ouvir missa n'uma capellinha de aldeia, até lhe
parecia que perdia a fé!... Não comprehendia, por exemplo, a religião sem musica... Era lá possivel uma festa
religiosa sem uma boa voz de contralto!?
--Está claro que é. É outra coisa! Tem cachet! Ó prima, lembra-se d'aquelle tenor... como se chamava elle? O
Vidalti. Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglezinhos? O tantum ergo?
No emtanto o rapaz louro viera apertar a mão á senhora condessa, fallando-lhe baixo, muito risonho. Amaro
admirava a nobreza da sua estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe cahira uma luva, e
apanhou-lh'a servilmente. Quando elle sahiu Thereza, depois de se ter aproximado vagarosamente da janella e
olhado para a rua--foi sentar-se n'uma causeuse com um abandono que punha em relêvo a magnifica
esculptura do seu corpo; e voltando-se preguiçosamente para o rapaz rechonchudo:
--Vamo-nos, João?
Amaro fez-se vermelho: sentia que Thereza pousava sobre elle os seus bellos olhos d'um negro humido como
o setim preto coberto de agua.
Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando o cabo do guardasol:
--Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Ha sempre neve, diz que a igreja não tem telhado, são tudo
pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao ministro a vêr se o mudavamos. Pede-lhe tu tambem...
A condessa contou que Amaro requerera para uma parochia melhor. Fallou de sua mãi, da amizade que ella
tinha a Amaro...
--Morria-se por elle. Ora um nome que ella lhe dava... Não se lembra?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 26
--Frei Maleitas!... Tem graça! Como o snr. Amaro era amarellito, sempre mettido na capella...
--Não se parece com aquelle pianista do anno passado? continuou Thereza. Não me lembra agora o nome...
Amaro fez-se escarlate. Thereza ergueu-se arrastando a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.
Ella correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e tocou a phrase do Rigoleto,
parecida com o Minuete de Mozart, que diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro acto, da senhora
de Crécy--e cujo rhythmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de braços que se
desenlaçam em despedidas supremas.
Amaro estava enlevado. Aquella sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o collo de
Thereza que elle via sob a negra transparencia da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquillos arvoredos de
jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéa d'uma existencia superior, de romance, passada sobre alcatifas
preciosas, em coupés acolchoados, com arias de operas, melancolias de bom gosto e amores d'um gozo raro.
Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a musica chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de
jantar da tia e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e, assustado, demora
o seu prazer--pensando que vai voltar á dureza das côdeas sêccas e á poeira dos caminhos.
No emtanto Thereza, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga aria inglesa de Haydn, que diz tão
finamente as melancolias da separação:
--Bravo! bravo! exclamou o ministro da justiça apparecendo á porta, batendo dôcemente as palmas. Muito
bem, muito bem! Deliciosamente!
--Mas, minhas senhoras, disse o ministro sentando-se confortavelmente, com as pernas muito estiradas, a face
satisfeita: de que se trata? É uma coisa grave? meu Deus! prometto, prometto solemnemente...
--Bem, disse Thereza batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a melhor parochia vaga?
--Ah! disse o ministro comprehendendo e olhando para Amaro, que vergou os hombros, córado.
O homem das suiças, que estava de pé fazendo saltar circumspectamente os berloques, adiantou-se, cheio de
informações:
--Leiria é excellente!
--Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, séde do bispado, uma cidade... O senhor padre Amaro é um
ecclesiastico novo...
--Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava ternamente a cabeça da arara.
--Parece-me inutil, o pobre Correia está vencido! A prima Thereza chamou-lhe novo!
--Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja excepcional; eu não sou tambem tão
antigo...
Todos riram.
--Snr. Correia, disse Thereza, está entendido. O senhor padre Amaro vai para Leiria!
--Bem, bem, succumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma tyrannia!
--Estou contente hoje, disse ella. Olhou um momento para o chão, distrahida, dando pequeninas pancadas no
vestido de sêda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a dôce aria ingleza:
--É negocio feito, disse-lhe elle. O Correia entende-se com o bispo. D'aqui a uma semana está nomeado. Póde
ir descansado.
Amaro fez uma cortezia e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:
--Lembre-me nas suas orações, senhor padre Amaro, disse ella. E continuou, com a sua voz magoada, dizendo
ao piano--as tristezas da aldeia quando Lubin esta ausente!
Amaro d'ahi a uma semana soube o seu despacho. Mas não tornára a esquecer aquella manhã em casa da
senhora condessa de Ribamar,--o ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, promettendo o seu
despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes...Cantava-lhe sempre no
cerebro aquella aria triste do Rigoleto; e perseguia-o a brancura dos braços de Thereza sob a gaze negra!
Instinctivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço airoso do rapaz
louro:--detestava-o então, e a língua barbara que fallava, e a terra heretica d'onde viera; e latejavam-lhe as
fontes á idéa de que um dia poderia confessar aquella mulher divina e sentir o seu vestido de sêda preta roçar
pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do confessionario.
Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para Santa Apolonia, com um gallego que lhe
levava o bahú. A madrugada rompia. A cidade estava silenciosa, os candieiros apagavam-se. Ás vezes uma
carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe interminaveis; saloios começavam a chegar
montados nos seus burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; n'uma ou n'outra rua
uma voz aguda já apregoava os jornaes; e os moços dos theatros corriam com o pote da massa, pregando nas
esquinas os cartazes.
Quando chegou a Santa Apolonia a claridade do sol alaranjava o ar por detraz dos montes da Outra-Banda: o
rio estendia-se, immovel, riscado de correntes de côr de aço sem lustre; e já alguma vela de falua passava,
vagarosa e branca.
IV
Ao outro dia, na cidade, fallava-se da chegada do parocho novo, e todos sabiam já que tinha trazido um bahú
de lata, que era magro e alto, e que chamava Padre-Mestre ao conego Dias.
As amigas da S. Joanneira,--as intimas--a D. Maria da Assumpção, as Gansosos, tinham ido logo pela manhã
a casa d'ella para se pôrem ao facto... Eram nove horas; Amaro sahira com o conego. A S. Joanneira, radiosa,
importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas arregaçadas, nos arranjos da manhã; e immediatamente,
com animação, contou a chegada do parocho, as suas boas maneiras, o que tinha dito...
Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o bahú de lata, uma prateleira que lhe arranjára para os livros.
--Está muito bem, está tudo muito bem, diziam as velhas andando pelo quarto, devagar, com respeito, como
n'uma igreja.
--Rico capote! observou D. Joaquina Gansoso apalpando o panno das largas bandas que pendiam ao comprido
do cabide.--É obra para um par de moedas!
--A mim o que me consola é que elle seja um rapaz novo, disse D. Maria da Assumpção, piedosamente.
--Tambem a mim, disse com auctoridade a D. Joaquina Gansoso. Estar a gente a confessar-se e a vêr o pingo
do rapé, como era com o Raposo, credo! até se perde a devoção! E o bruto do José Migueis! Não, lá isso Deus
me mate com gente nova!
A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do parocho,--um crucifixo que estava ainda embrulhado n'um
jornal velho, o album de retratos, onde o primeiro cartão era uma photographia do Papa abençoando a
christandade. Todas se extasiaram.
Ao sahir, beijando muito a S. Joanneira, felicitaram-na porque adquirira, hospedando o parocho, uma
auctoridade quasi ecclesiastica.
--Pudera!... gritou D. Maria da Assumpção, já á porta da rua, traçando o seu mantelete.--Pudera!... Para o
vermos á vontade!
Ao meio dia veio o Libaninho, o beato mais activo de Leiria; e subindo a correr os degraus, já gritava com a
sua voz fina:
--Ó S. Joanneira!
--Então o senhor parocho veio, hein? perguntou o Libaninho, mostrando á porta da sala de jantar o seu rosto
gordinho côr de limão, a calva luzidia; e vindo para ella com o passinho miudo, um gingar de quadris:
A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua mocidade, o seu ar piedoso, a brancura dos seus
dentes...
--Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura devota.--Mas não se podia demorar, ia
para a repartição!--Adeus, filhinha, adeus!--E batia com a sua mão papuda no hombro da S. Joanneira.--Estás
cada vez mais gordinha! Olha que rezei hontem a Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!
--Adeus, Ruça! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãi dos Homens.--E avistando Amelia pela porta do
quarto entreaberta:--Ai, que estás mesmo uma flôr, Mélinha! Quem se salvava na tua graça bem eu sei!
--Ai, não posso, filha, não posso!--E a sua vozinha era quasi chorosa.--Olha que ámanhã é Santa Barbara: tem
seis Padre-Nossos de direito!
Amaro fôra visitar o chantre com o conego Dias, e tinha-lhe entregado uma carta de recommendação do
senhor conde de Ribamar.
--Conheci muito o senhor conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis, no Porto. Somos amigos
velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: ha que annos isso vai!
E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, fallou com satisfação do seu tempo: contou anecdotas da
Junta, apreciou os homens de então, imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua excellencia), os tics, as
caturrices--sobretudo Manoel Passos, que elle descrevia passeando na Praça Nova, com o comprido casaco
pardo e o chapéo de grandes abas, dizendo:
Os senhores ecclesiasticos da camara riram com gozo. Houve uma grande cordialidade. Amaro sahiu muito
lisonjeado.
Depois jantou em casa do conego Dias, e foram passear ambos pela estrada de Marrazes. Uma luz dôce e
esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga
tranquilidade; fumos esbranquiçados sahiam dos casaes, e sentiam-se os chocalhos melancolicos dos gados
que recolhem. Amaro parou junto da ponte, e disse, olhando em redor a paizagem suave:
A snr.^a D. Maria da Assumpção vestira-se, como nos domingos, de sêda preta: o seu chinó, d'um louro
avermelhado, estava coberto com as rendas d'um enfeite negro; as mãos descarnadas, calçadas de mitenes,
solemnemente pousadas no regaço, reluziam de anneis; do broche sobre o pescoço até ao cinto, um grosso
grilhão d'ouro cahia com passadores lavrados. Conservava-se direita e ceremoniosa, com a cabeça um pouco
de lado, os oculos d'ouro assentes sobre o nariz acavallado: tinha no queixo um grande signal cabelludo; e
quando se fallava de devoções ou de milagres dava um geito ao pescoço, e abria um sorriso mudo que
descobria os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas. Era viuva e rica, e soffria
d'um catarrho chronico.
Amaro comprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter algum dinheiro, mas costumavam
receber hospedes. A mais velha, a snr.^a D. Joaquina Gansoso, era uma pessoa sêcca, com uma testa enorme e
larga, dois olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no seu chale, direita, com
os braços cruzados, fallava perpetuamente, n'uma voz dominante e aguda, cheia de opiniões. Dizia mal dos
homens e dava-se toda á Igreja.
A irmã, a snr.^a D. Anna, era extremamente surda. Nunca fallava, e com os dedos cruzados sobre o regaço, os
olhos baixos, fazia girar tranquillamente os dois pollegares. Nutrida, com o seu perpetuo vestido preto de
riscas amarellas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda a noite, e só accentuava a sua presença de
vez em quando por suspiros agudos: dizia-se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do correio. Todos a
lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em recortar papeis para caixas de dôce.
Estava tambem a snr.^a D. Josepha, a irmã do conego Dias. Tinha a alcunha de castanha pilada. Era uma
creaturinha mirrada, de linhas aduncas, pelle engelhada e côr de cidra, voz sibilante; vivia n'um perpetuo
estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contracções nervosas de birra, toda saturada de fel. Era
temida. O maligno doutor Godinho chamava-lhe a estação central das intrigas de Leiria.
--Fomos quasi até lá ao fim da estrada de Marrazes, disse o conego, sentando-se pesadamente por detraz da S.
Joanneira.
--Muito bonito.
Fallaram das lindas paizagens de Leiria, das boas vistas: a snr.^a D. Josepha gostava muito do passeio ao pé
do rio; até já ouvira dizer que nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a igreja da
Encarnação, no alto.
--Eu por mim gósto d'aquelle bocado ao pé da ponte, debaixo dos chorões.--E partindo com os dentes o fio da
costura:--É tão triste!
Amaro olhou para ella, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul muito justo ao seio bonito; pescoço
branco e cheio sahia d'um collarinho voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos dentes
brilhava; e pareceu ao parocho que um buçosinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra subtil e dôce.
Houve um pequeno silencio--o conego Dias com o beiço descahido ia já cerrando as palpebras.
--Está talvez com a enxaqueca, pobre de Christo! lembrou piedosamente a snr.^a D. Maria da Assumpção.
--Homem! disse logo com azedume a irmã do conego, a snr.^a D. Josepha Dias, é milagre ter o senhor
reparado!
--Porquê, minha senhora? disse elle erguendo-se e chegando-se ao grupo das velhas.
Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pelle branca, regular, um pouco fatigado, destacava bem um
bigode pequeno muito negro, cahido aos cantos, que elle costumava mordicar com os dentes.
--Ainda elle o pergunta! exclamou a snr.^a D. Josepha Dias. O senhor, que nem lhe tira o chapéo!
--Eu!?
--Disse-m'o elle, affirmou ella com uma voz cortante. E acrescentou: Ai, senhor parocho, bem póde chamar o
snr. João Eduardo para o bom caminho!--E teve um risinho maligno.
--Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse elle rindo, com as mãos nos bolsos. E a cada
momento os seus olhos se voltavam para Amelia.
--É uma graça! exclamou a snr.^a D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o senhor disse hoje lá em casa, de
tarde, da Santa da Arregassa, não ha de ganhar o céo!
--Ora essa! gritou a irmã do conego voltando-se bruscamente para João Eduardo. Então o que tem o senhor a
dizer da Santa? Acha talvez que é uma impostora?
--Credo, Jesus! disse a snr.^a D. Maria da Assumpção apertando as mãos e fitando João Eduardo com um
terror piedoso. Pois elle havia de dizer isso? Cruzes!
--Não, o snr. João Eduardo, affirmou gravemente o conego, que espertára, desdobrando o seu lenço
vermelho--não era capaz de dizer uma d'essas.
--Credo! Pois não tem ouvido fallar, senhor parocho? exclamou n'uma admiração a snr.^a D. Maria da
Assumpção.
--Ha de ter ouvido, affirmava a snr.^a D. Josepha Dias com auctoridade. Diz que os jornaes de Lisboa vem
cheios d'isso!
--É com effeito uma coisa bem extraordinaria, ponderou com um tom profundo o conego.
--Se é! se é! disseram.
--Olhe, senhor parocho, começou a snr.^a D. Joaquina Gansoso endireitando-se no chale, fallando com
solemnidade: a Santa é uma mulher que aqui ha n'uma freguezia perto, que está ha vinte annos na cama...
--Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assumpção, tocando-lhe com o leque no braço.
--Vinte e cinco, vinte e cinco, affirmou a S. Joanneira. E o conego apoiou-a, oscillando gravemente a cabeça.
--Está entrevadinha de todo, senhor parocho! rompeu a irmã do conego, avida de fallar. Parece uma alminha
de Deus! Os bracinhos são isto!--E mostrava o dedo minimo.--Para a gente a ouvir é necessario pôr-lhe a
orelha ao pé da boca!
--Pois se ella se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a snr.^a D. Maria da Assumpção.
Coitadinha! que até a gente lembrar-se...
Houve entre as velhas um silencio commovido. João Eduardo, que por traz das velhas, de pé, com as mãos
nos bolsos, sorria mordicando o bigode, disse então:
--Olhe, senhor parocho, a coisa é o que os medicos dizem: é que aquillo é uma doença nervosa.
Aquella irreverencia fez, entre as velhas devotas, um escandalo; a snr.^a D. Maria da Assumpção persignou-se
logo «á cautela».
--Pelo amor de Deus! gritou a snr.^a D. Josepha Dias, o senhor diga isso diante de quem quizer, menos de
mim! É uma affronta!
--É que até póde cahir um raio, dizia para os lados, baixo, a snr.^a D. Maria da Assumpção, muito aterrada.
--Olhe, tambem lh'o digo, exclamou a snr.^a D. Josepha Dias, o senhor é um homem sem religião e sem
respeito pelas coisas santas.--E voltando-se para o lado de Amelia, muito azeda:--Olhe, filha minha é que eu
lhe não dava!
--Eu digo o que dizem os medicos. E de resto, acredite que não tenho prentenções a casar com pessoa da sua
familia! Nem mesmo comsigo, snr.^a D. Josepha!
--Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
--Tudo, senhor parocho, disse a snr.^a D. Joaquina Gansoso: está sempre de cama, sabe rezas para tudo;
pessoa por quem ella peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ella e cura-se de toda a molestia. E
depois, quando communga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o
céo, que até chega a fazer terror.
Era um rapaz extremamente alto, amarello, com as faces cavadas, uma grenha riçada, um bigode á D.
Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quasi todos os dentes de diante; e nos
seus olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra na mão.
--Mal, respondeu elle com voz triste, sentando-se. Sempre as dôres no peito, a tossesita ...
--Uma viagem á Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a snr.^a D. Joaquina Gansoso com auctoridade.
--Uma viagem á Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense de
administração com dezoito vintens por dia, mulher e quatro filhos... Para a Madeira!
--Coitadita, lá vai! Tem saude, graças a Deus! Gorda, sempre com bom appetite. Os pequenos, os dois mais
velhos é que estão doentes; de mais a mais agora a criada tambem cahiu de cama! É o diacho! Paciencia!
paciencia!--E encolhia os hombros.
Todos riram: e a snr.^a D. Joaquina Gansoso informou o parocho que aquelle rapaz, o Arthur Couceiro, era
muito engraçado e tinha uma bella voz. Era a melhor da cidade para modinhas.
A Ruça tinha então entrado com o chá; a S. Joanneira, enchendo as chavenas d'alto, dizia:
As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente as torradas, sentia-se o mastigar
ruminado dos queixos; e por causa dos pingos da manteiga e das nodoas do chá estendiam prudentemente os
lenços sobre o regaço.
--Vai um docinho, senhor parocho? disse Amelia, apresentando-lhe o prato. São da Encarnação, muito
fresquinhos.
--Obrigado.
--Ah! se é do céo... disse elle todo risonho. E olhou para ella, tomando o bolo com a ponta dos dedos.
O snr. Arthur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de musica; e
Amelia, logo que a Ruça levou a bandeja, accommodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarello.
Os pedidos cruzaram-se:
As mulheres reprovaram:
--Isso, isso! disseram: uma coisa de sentimento, ó Arthur, uma coisa de sentimento!
Arthur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente á face uma expressão dolorosa, ergueu a voz, cantou
lugubremente:
Era uma canção dos tempos romanticos de 51, o Adeus! Dizia uma suprema despedida, n'um bosque, por uma
tarde pallida d'outono; depois, o homem solitario e precito, que inspirára um amor funesto, ia errar
desgrenhado á beira do mar; havia uma sepultura esquecida n'um valle distante, brancas virgens vinham
chorar á claridade do luar!
Arthur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervallos, durante o acompanhamento, sorria em redor--e
na sua boca cheia de sombra viam-se os restos de dentes pôdres. O padre Amaro, ao pé da janella, fumando,
contemplava Amelia, enlevado n'aquella melodia sentimental e morbida: o seu perfil fino, de encontro á luz,
tinha uma linha luminosa; destacava harmoniosamente a curva do seu peito; e elle seguia as suas palpebras de
grandes pestanas, que do teclado para a musica se erguiam e se abaixavam com um movimento dôce. João
Eduardo, junto d'ella, voltava-lhe as folhas da musica.
Mas Arthur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, n'um gesto desolado e vehemente, soltou a ultima
estrophe:
--Ah! para coisas de sentimento não ha outro.--E bocejando enormemente: Pois menino, tenho tido toda a
noite as lulas a conversar cá por dentro.
Mas chegára a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituaes; e a snr.^a D. Josepha Dias, com o seu
olho d'avara a luzir, chocalhava já vivamente o grosso sacco dos numeros.
Era junto d'ella. Elle hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio sentar-se um pouco córado, ageitando
timidamente a volta.
Fez-se logo um grande silencio; e, com a voz dormente, o conego começou a tirar os numeros. A snr.^a D.
Anna Gansoso dormitava ao seu canto, resonando ligeiramente.
Com o abat-jour as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, cahindo sobre o chale escuro que cobria a
mesa, fazia destacar os cartões ennegrecidos do uso e as mãos sêccas das velhas, pousadas em attitudes
aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela derretia-se com uma chamma alta e
direita.
O conego rosnava os numeros com as pilherias veneraveis da tradição: 1, cabeça de porco!--3, figura de
entremez!
--E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o Arthur Couceiro, com a cabeça entre os
punhos.
--Então não joga, snr. João Eduardo? disse ella. Onde está?
--E receba as entradas, já que está de pé, disse a S. Joanneira. Seja o senhor recebedor!
João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez reis.
Fôra a irmã do conego que não tocára no seu cobre acastellado. João Eduardo disse, curvando-se:
--Eu!? gritou ella, furiosa. Olha uma d'estas! Até fui a primeira! Credo! Duas moedas de cinco reis, por signal!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 37
--Ah! bem, disse elle então, fui eu que me esqueci! Cá ponho.--E rosnou: Beata e ladra!
Amaro sorriu. Estava distrahido, e fatigado; ás vezes mesmo esquecia-se de marcar, e Amelia dizia-lhe,
tocando-lhe no cotovêlo:
Tinham já apostado dois ternos: ella ganhára; depois faltou a ambos para quinarem o numero trinta e seis.
Em roda repararam.
--Ora vamos a vêr se quinam ambos, disse a snr.^a D. Maria da Assumpção, envolvendo-os no mesmo olhar
baboso.
Mas o trinta e seis não sahía; havia outras quadras nos cartões alheios; Amelia receava que quinasse a snr.^a
D. Joaquina Gansoso, que se mexia muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro ria, involuntariamente
interessado.
--Quinamos! gritou ella, triumphante; e tomando o cartão do parocho e o seu mostrava-os, para conferirem,
orgulhosa, muito córada.
--Ora Deus os abençôe, disse o conego, jovial, entornando-lhes diante o pires cheio de moedas de dez reis.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas começaram a agasalhar-se. Amelia sentou-se
ao piano, tocando ao de leve uma polka. João Eduardo aproximou-se d'ella, e baixando a voz:
--Muitos parabens por ter quinado com o senhor parocho. Que enthusiasmo!--E como ella ia responder:--Boa
noite! disse elle sêccamente, embrulhando-se no seu chale-manta com despeito.
A Ruça alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo adeusinhos. O snr. Arthur
harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 38
Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviario; mas distrahia-se, lembravam-lhe as figuras das
velhas, os dentes pôdres de Arthur, sobretudo o perfil de Amelia. Sentado á beira da cama, com o Breviario
aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da
agulha, o seu buçosinho gracioso...
Sentia a cabeça pesada do jantar do conego e da monotonia do quino, com uma grande sêde além d'isso das
lulas e do vinhito do Porto. Quiz beber, mas não tinha agua no quarto. Lembrou-se então que na sala de jantar
havia uma bilha d'Extremoz com agua fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o
castiçal, subiu devagarinho. Havia **luz** na sala, estava o reposteiro corrido: ergueu-o e recuou com um ah!
Vira n'um relance Amelia, em saia branca, a desfazer o atacador do collete: estava junto do candieiro e as
mangas curtas, o decote da camisa deixavam vêr os seus braços brancos, o seio delicioso. Ella deu um
pequeno grito, correu para o quarto.
Amaro ficou immovel, com um suor á raiz dos cabellos. Poderiam suspeitar uma offensa! Palavras indignadas
iam sahir decerto através do reposteiro do quarto, que ainda se balouçava agitado!
--Aquella Ruça! aquella desleixada! Desculpe, senhor parocho, desculpe. Olhe ahi ao pé da mesa, a bilha.
Achou?
--Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a agua escorria-lhe pelos dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amelia sentiu por baixo passos nervosos pisarem o soalho: era Amaro que,
com o capote aos hombros e em chinelas, fumava, excitado, pelo quarto.
Ella, em cima, não dormia tambem. Sobre a commoda, dentro de uma bacia, a lamparina extinguia-se, com
um mau cheiro de murrão de azeite; brancuras de saias cahidas no chão destacavam; e os olhos do gato, que
não socegava, reluziam pela escuridão do quarto com uma claridade phosphorica verde.
Na casa visinha uma criança chorava sem cessar, Amelia sentia a mãi embalar-lhe o berço, cantar-lhe baixo:
Era a pobre Catharina engommadeira, que o tenente Sousa deixára com um filho no berço, e gravida
d'outro--para ir casar a Extremoz! Tão bonita era, tão loura--e mirrada agora, tão chupada!
Como ella conhecia aquella cantiga! Quando tinha sete annos sua mãi dizia-a, nas longas noites de inverno, ao
irmãosinho que morrera!
Lembrava-se bem! Moravam então n'outra casa, ao pé da estrada de Lisboa; á janella do seu quarto havia um
limoeiro e a mãi punha, na sua ramagem luzidia, os coeiros do Joãosinho a seccarem ao sol. Não conhecera o
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 39
papá. Fôra militar, morrera novo; e a mãi ainda suspirava ao fallar da sua bella figura com o uniforme de
cavallaria. Aos oito annos ella foi para a mestra. Como se lembrava! A mestra era uma velhita roliça e branca,
que fôra tacho das freiras de Santa Joanna d'Aveiro; com os seus oculos redondos, junto á janella, empurrando
a agulha, morria-se por contar historias do convento: as perrices da escrivã, sempre a escabichar os dentes
furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata, com uma pronuncia minhota; a mestra de cantochão,
admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Tavoras; e a legenda de uma freira que morrera de
amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores, soltando gemidos dolorosos e
clamando:--Augusto! Augusto!
Amelia ouvia aquellas historias, encantada. Gostava então tanto de festas d'igreja e da convivencia dos santos,
que desejava ser uma «freirinha, muito bonita, com um véosinho muito branco.» A mamã era muito visitada
por padres. O chantre Carvalhosa, um homem velho e robusto, que soprava de asthma ao subir a escada e
tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa. Amelia chamava-lhe padrinho. Quando ella
voltava da mestra, á tarde, encontrava-o sempre a palestrar com a mãi, na sala, de batina desabotoada,
deixando vêr o longo collete de velludo preto com raminhos bordados a amarello. O senhor chantre
perguntava-lhe pelas lições e fazia-a dizer a taboada.
Á noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o conego Cruz; e um velhito calvo, de perfil de passaro, com
oculos azues, que fôra frade franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas da mãi, com as
suas meias; e um capitão Couceiro, de caçadores, que tinha os dedos negros do cigarro e trazia sempre a sua
viola. Mas ás nove horas mandavam-na deitar; pela frincha do quarto ella via a luz, ouvia as vozes; depois
fazia-se um silencio, e o capitão, repenicando a guitarra, cantava o lundum da Figueira.
Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipathicos: sobretudo o padre Valente, tão gordo, tão
suado, com umas mãos papudas e molles, d'unhas pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe
devagarinho a orelha, e ella sentia o seu halito impregnado de cebola e de cigarro. O seu amiguinho era o
conego Cruz, magro, com o cabello todo branco, a volta sempre aceada, as fivelas luzidias; entrava
devagarinho, comprimentando com a mão sobre o peito e uma voz suave cheia de ss. Já então sabia o
catecismo e a doutrina: na mestra, em casa, por qualquer «bagatella» fallavam-lhe sempre dos castigos do céo;
de tal sorte que Deus apparecia-lhe como um sêr que só sabe dar o soffrimento e a morte e que é necessario
abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, amimando os padres. Por isso, se ás vezes ao deitar lhe
esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro dia, porque temia que Deus lhe mandasse sezões ou a
fizesse cahir na escada.
Mas o seu melhor tempo foi quando começou a tomar lições de musica. A mãi tinha na sala de jantar, ao
canto, um velho piano, coberto com um pano verde, tão desafinado, que servia de aparador! Amelia
costumava cantarolar pela casa; a sua voz fina e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas da mãi
diziam-lhe:
--Tu tens ahi um piano, porque não mandas ensinar a rapariga? Sempre é uma prenda! olha que lhe póde
servir de muito!
O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da Sé d'Evora, extremamente infeliz: a filha unica, muito
linda, fugira-lhe com um alferes para Lisboa; e, passados dois annos, o Silvestre da Praça, que ia muito á
capital, vira-a descer a rua do Norte, de garibaldi escarlate e alvaiade n'um olho, com um marinheiro inglez.
O velho cahira em grande melancolia e grande miseria; e por piedade tinham-lhe dado um emprego no
cartorio da camara ecclesiastica. Era uma figura triste de romance picaresco. Muito magro, alto como um
pinheiro, deixava crescer até aos hombros os seus cabellos brancos e finos; os olhos, cansados,
lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia: e parecia muito transido, no seu
capote côr de vinho que só lhe chegava á cintura e que tinha uma gola d'astrakan. Chamavam-lhe o Tio
Cegonha pela sua alta magreza e o seu ar solitario. Amelia um dia tinha-lhe chamado Tio Cegonha; mas
mordeu logo o beiço, toda envergonhada.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 40
--Ai, chame, minha rica menina, chame! Tio Cegonha?... ora, que tem? Cegonha sou eu, e bem cegonha!
Era então no inverno. As grandes chuvas com os sudoestes não cessavam; a aspera estação opprimia os
pobres. Viam-se n'aquelle anno familias esfomeadas indo á camara pedir pão. O Tio Cegonha vinha sempre
ao meio-dia dar a lição; o seu guardachuva azul deixava um ribeiro na escada; tiritava; e quando se sentava
escondia, na sua vergonha de velho, as botas encharcadas com a sola aberta. Queixava-se sobretudo do frio
das mãos, que o impedia de ferir com justeza o teclado e não o deixava escrever no cartorio.
Mas quando a S. Joanneira lhe pagou o primeiro mez das lições, o velho appareceu muito contente, com umas
grossas luvas de lã.
--Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas meias de lã. Deus a abençôe, minha
menina, Deus a abençôe!
E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lagrimas. Amelia tornára-se a «sua rica amiguinha». Já lhe fazia
confidencias: contava-lhe as suas necessidades, as saudades da filha, as suas glorias na Sé d'Evora, quando
diante do senhor **arcebispo**, vistoso na sua sobrepelliz escarlate, acompanhava o Lausperenne.
Amelia não se esqueceu das meias de lã do Tio Cegonha. Pediu ao chantre que lhe désse umas meias de lã.
--Ora essa! para quê? para ti? disse elle com o seu riso grosso.
--Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças! ha de ser o diabo!... Pois sim, ahi tens.--E deu-lhe dois
pintos para umas meias de lã.
No dia seguinte tinha-os ella embrulhados n'um papel, que dizia por fóra em letras garrafaes: Ao meu rico
amigo Tio Cegonha, a sua discipula.
O velho sorriu-se:
--Ora, minha rica menina, quanto me hão de dar? uma bagatella. Quatro vintens por dia. Mas o snr. Netto
faz-me algum bem...
Sentiram-se os passos da mãi; e Amelia, retomando gravemente a attitude de lição, começou a solfejar alto,
com um ar profundo.
E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a mãi a dar de almoçar e de jantar ao Tio Cegonha
nos dias de lição. Assim se estabeleceu entre ella e o velho uma grande intimidade. E o pobre Tio Cegonha,
sahindo do seu frio isolamento, acolhia-se áquella amizade inesperada, como a um conchego tepido.
Encontrava n'ella o elemento feminino que amam os velhos, com as caricias, as suavidades de voz, as
delicadezas de enfermeira; achava n'ella a unica admiradora da sua musica; e via-a sempre attenta ás historias
do seu tempo, ás recordações da velha Sé d'Evora que elle amava tanto, e que lhe fazia dizer, quando se
fallava de procissões ou de festas de igreja:
Amelia applicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada da sua vida: já tocava contradansas e antigas
arias de velhos compositores; a snr.^a D. Maria da Assumpção estranhava que o mestre lhe não ensinasse o
Trovador.
Mas o Tio Cegonha só conhecia a musica classica, arias ingenuas e dôces de Lully, motivos de minuetes,
motetes floridos e piedosos dos dôces tempos freiraticos.
Uma manhã o Tio Cegonha encontrou Amelia muito amarella e triste. Desde a vespera queixava-se de
«mal-estar». Era um dia nublado, muito frio. O velho queria ir-se embora.
--Não, não, Tio Cegonha, disse ella, toque alguma coisa para eu me entreter.
Elle tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas extremamente melancolica.
O Tio Cegonha contou-lhe que era o começo de uma Meditação feita por um frade seu amigo.
Amelia quiz logo saber a historia; e sentando-se no mocho do piano, embrulhando-se no seu chale:
Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira; ella morrera no convento d'aquelle
amor infeliz; e elle, de dôr e de saudade, fizera-se frade franciscano...
--Era bonito?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 42
--Se era! Um rapaz na flôr da vida, rico... Um dia veio ter commigo ao orgão: «Olha o que eu fiz», disse-me
elle. Era um papel de musica. Abria em ré menor. Poz-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica menina, que musica!
Mas não me lembra o resto!
Amelia todo o dia pensou n'aquella historia. De noite veio-lhe uma grande febre, com sonhos espessos, em
que dominava a figura do frade frasciscano, na sombra do orgão da Sé d'Evora. Via os seus olhos profundos
reluzirem n'uma face encovada: e, longe, a freira pallida, nos seus habitos brancos, encostada ás grades negras
do mosteiro, sacudida pelos prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades franciscanos
caminhava para o côro: elle ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre o rosto, arrastando as sandalias,
emquanto um grande sino, no ar nublado, tocava o dobre dos finados. Então o sonho mudava: era um vasto
céo negro, onde duas almas enlaçadas e amantes, com habitos de convento e um ruido ineffavel de beijos
insaciaveis, giravam, levadas por um vento mystico; mas desvaneciam-se como nevoas, e na vasta escuridão
ella via apparecer um grande coração em carne viva, todo trespassado de espadas--e as gotas de sangue que
cahiam d'elle enchiam o céo d'uma chuva escarlate.
Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouvêa tranquillisou a S. Joanneira com uma simples palavra:
--Nada de sustos, minha rica senhora, são os quinze annos da rapariga. Hão de lhe vir ámanhã as vertigens e
os enjôos... Depois acabou-se. Temol-a mulher.
A S. Joanneira comprehendeu.
--Esta rapariga tem o sangue vivo e ha de ter as paixões fortes! acrescentou o velho pratico, sorrindo e
sorvendo a sua pitada.
Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã, depois do seu almoço d'açorda, cahiu de repente morto com
uma apoplexia. Que consternação inesperada para a S. Joanneira! Durante dois dias, esguedelhada, em saias
brancas, chorou, gemeu pelos quartos. D. Maria da Assumpção, as snr.^{as} Gansosos vieram acalmar,
amansar a sua dôr: e a snr.^a D. Josepha Dias resumiu as consolações de todas, dizendo:
Era então no começo de setembro; a snr.^a D. Maria da Assumpção, que tinha uma casa na praia da Vieira,
propôz levar a S. Joanneira e Amelia para a estação dos banhos, para ella espalhar, nos bons ares saudaveis,
em logar differente, aquella dôr.
--É uma esmola que me fazes, dissera a S. Joanneira. Sempre me lembra que era alli que elle punha o
guardachuva... Alli que elle se sentava a vêr-me costurar!
--Está bom, está bom, deixa-te d'isso. Come e bebe, toma os teus banhos, e o que lá vai lá vai. Olha que elle
tinha bem os seus sessenta.
Amelia tinha então quinze annos, mas era já alta e de bonitas fórmas. Foi uma alegria para ella a estação na
Vieira! Nunca vira o mar; e não se fartava de estar sentada na areia, fascinada pela vasta agua azul, muito
mansa, cheia de sol; ás vezes no horisonte passava um fumo delgado de paquete; a monotona e gemente
cadencia da vaga adormentava-a; e em redor o areal faiscava, a perder de vista, sob o céo azul-ferrete.
Como se lembrava bem! Logo pela manhã estava a pé. Era a hora do banho: as barracas de lona alinhavam-se
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 43
ao comprido da praia; as senhoras, sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar,
palrando; os homens, de sapatos brancos, estendidos em esteiras, chupavam o cigarro, riscavam emblemas na
areia; emquanto o poeta Carlos Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava só, soturno, junto da vaga,
seguido do seu Terra-Nova. Ella sahia então da barraca com o seu vestido de flanella azul, a toalha no braço,
tiritando de susto e de frio: tinha-se persignado ás escondidas e toda tremula, agarrada á mão do banheiro,
escorregando na areia, entrava na agua, rompendo a custo a maresia esverdeada que fervia em redor. A onda
vinha espumando, ella mergulhava, e ficava aos saltos, suffocada e nervosa, cuspindo a agua salgada. Mas,
quando sahia do mar, como vinha satisfeita! Arfava, com a toalha pela cabeça, arrastando-se para a barraca,
mal podendo com o peso do vestido encharcado, risonha, cheia de reacção; e em redor vozes amigas
perguntavam:
Depois, de tarde, eram os passeios à beira-mar, a apanhar conchinhas; o recolher das redes, onde a sardinha
toda viva ferve aos milheiros, luzidia sobre a areia molhada; e que longas perspectivas de occasos ricamente
dourados, sobre a vastidão do mar triste, que escurece e geme!
D. Maria da Assumpção tinha sido visitada, logo ao chegar, por um rapaz, filho do snr. Brito de Alcobaça, seu
parente. Chamava-se Agostinho, ia frequentar o quinto anno de direito na Universidade. Era um moço
delgado, de bigode castanho, pera, cabello comprido deitado para traz, e luneta: recitava versos, sabia tocar
guitarra, contava anecdotas de caloiros, fazia partidas, e era famoso na Vieira, entre os homens, «por saber
conversar com senhoras».
--O Agostinho, patife! diziam. É chalaça a esta, chalaça áquella. Lá para sociedade não ha outro!
Logo desde os primeiros dias Amelia reparou que os olhos do snr. Agostinho Brito se fitavam constantemente
n'ella, «p'ra namoro». Amelia córava muito, sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido; e admirava-o,
achava-o muito «dengueiro».
--Oh, minhas senhoras, isto aqui não é forja de ferreiro! exclamou elle, jovial.
--Qual Judia! disse elle, ha de ser mas ha do ser a Morena!--E olhou para Amelia.--Foi uma poesia que fiz
hontem.
--Valeu, valeu!
Fez-se um silencio: o snr. Agostinho deitou o cabello para traz, fincou a luneta, apoiou as duas mãos ás costas
d'uma cadeira, e fitando Amelia:
Nasceste nos verdes campos Onde Leiria é famosa, Tens a frescura da rosa, E o teu nome sabe a mel...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 44
Era a filha do escrivão de direito de Alcobaça; tinha-se feito muito pallida, e, lentamente, desmaiava na
cadeira, com os **braços** pendentes, o queixo sobre o peito. Borrifaram-na de agua, levaram-n'a para o
quarto de Amelia; quando lhe desapertaram o vestido e lhe deram vinagre a respirar, ergueu-se sobre o
cotovêlo, olhou em redor, começaram a tremer-lhe os beiços e rompeu a chorar. Fóra, os homens em grupo,
commentavam:
--O calor que ella tinha sei eu... rosnou o sargento de caçadores.
O snr. Agostinho torcia o bigode, contrariado. Algumas senhoras foram a casa acompanhar a snr.^a D.
Juliana. D. Maria da Assumpção e a S. Joanneira, atabafadas nos seus chales, iam tambem. Havia vento, um
criado levava um lampeão, e todos caminhavam na areia, calados.
--Tudo isto é teu proveito, disse a snr.^a D. Maria da Assumpção baixo á S. Joanneira, demorando-se um
pouco atraz.
--Meu!?
--Teu. Pois tu não percebeste? A Juliana, em Alcobaça, era namoro do Agostinho. Mas o rapaz aqui anda pelo
beiço pela Amelia. A Juliana percebeu, viu-o recitar aquelles versos, olhar para ella, zás!
--Deixa lá, o Agostinho tem um par de mil cruzados que lhe deixam as tias. É um partidão!
Ao outro dia, á hora do banho, a S. Joanneira vestia-se na sua barraca, e Amelia, sentada na areia, esperava,
pasmada para o mar.
Era Agostinho. Amelia, calada, começou a riscar a areia com a sombrinha. O snr. Agostinho suspirou, alisou
outro pedaço d'areia com o pé, escreveu--Amelia. Ella, muito vermelha, quiz apagar com a mão.
--Então! disse elle. E debruçando-se, baixo:--É o nome da Morena, bem vê. O seu nome sabe a mel!...
Ella sorriu:
--Ora! importa-me a mim bem com ella! Estou farto d'aquelle estafermo! Então que quer? Eu cá sou assim.
Tanto digo que me não importo com ella, como digo que ha uma pessoa por quem dava tudo... Eu sei...
--É, disse elle rindo. É justamente por quem eu ando apaixonado, é pela D. Bernarda.
--Ah! o senhor anda apaixonado! disse ella devagar, com os olhos baixos, riscando a areia.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 45
--Diga-me uma coisa, está a mangar commigo? exclamou Agostinho puxando uma cadeirinha, sentando-se
junto d'ella.
Calaram-se um momento.
--Já.
--Estava.
Agostinho ergueu os olhos, e vendo o bonito rosto trigueiro, todo risonho, exclamou com vehemencia:
A mãi de Amelia, levantando o pano da barraca, sahia, muito abafada, de lenço amarrado na cabeça.
E desde então seguia sempre Amelia, de manhã no banho, de tarde á beira-mar; apanhava-lhe conchas; e
tinha-lhe feito outros versos--o Sonho. Uma estrophe era violenta:
Outubro findava, as férias tinham acabado. Uma noite o alegre rancho da snr.^a D. Maria da Assumpção e das
amigas fôra dar um passeio ao luar. Á volta, porém, erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram o céo,
cahíram gotas d'agua. Estavam então junto a um pequeno pinheiral, e as senhoras, aos gritinhos, quizeram
abrigar-se. Agostinho, com Amelia pelo braço, rindo alto, foi penetrando longe dos outros na espessura; e
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 46
então, sob o monotono e gemente rumor das ramas, disse-lhe baixo, cerrando os dentes:
--Vai-se?
--Escreve-me! disse.
De repente teve um gemido dôce como um arrulho de ave, e abandonava-se--quando a voz aguda de D.
Joaquina Gansoso gritou:
Ao outro dia, com effeito, o snr. Agostinho partiu. Vieram as primeiras chuvas, e dentro em pouco tambem
Amelia, a mãi, a snr.^a D. Maria da Assumpção voltaram para Leiria.
Passou o inverno.
E um dia, em casa da S. Joanneira, D. Maria da Assumpção deu parte que o Agostinho Brito, segundo lhe
escreviam de Alcobaça, tinha o casamento justo com a menina do Vimeiro.
--Caspitè! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os seus trinta contos! Olha o méco!
Amava Agostinho; e não podia esquecer aquelles beijos de noite no pinheiral cerrado. Pareceu-lhe então que
não tornaria a ter alegria! Ainda lembrada d'aquelle moço da historia do Tio Cegonha, que por amor se
escondera na solidão de um convento, começou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte devoção,
manifestação exagerada das tendencias que desde pequenina as convivencias de padres tinham lentamente
creado na sua natureza sensivel; lia todo o dia livros de rezas; encheu as paredes do quarto de lithographias
coloridas de santos; passava longas horas na igreja, accumulando Salve-Rainhas á Senhora da Encarnação.
Ouvia todos os dias missa, quiz commungar todas as semanas--e as amigas da mãi achavam-na «um modêlo,
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Foi por esse tempo que o conego Dias e sua irmã, a snr.^a D. Josepha Dias, começaram a frequentar a casa da
S. Joanneira. Dentro em pouco o conego tornou-se o «amigo da familia». Depois do almoço era certo com a
sua cadellinha, como outr'ora o chantre com o seu guardachuva.
--Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joanneira. Mas o senhor chantre não ha dia nenhum
que me não lembre d'elle!
A irmã do conego tinha então organisado com a S. Joanneira a Associação das Servas da Senhora da Piedade.
A snr.^a D. Maria da Assumpção, as Gansosos «filiaram-se»; e a casa da S. Joanneira tornou-se um centro
ecclesiastico. Foi esse o momento melhor da vida da S. Joanneira; «a Sé, como dizia com tedio o Carlos da
botica, era agora na rua da Misericordia». Parte dos conegos, o novo chantre vinham todas as sextas-feiras.
Havia imagens de santos na sala de jantar e na cozinha. As criadas, por escrupulo, eram examinadas em
doutrina antes de serem aceitas. Alli muito tempo fizeram-se as reputações: se se dizia de um homem--não é
temente a Deus, havia o dever de o desacreditar santamente. As nomeações de sineiros, coveiros, serventes de
sacristia arranjavam-se alli por intrigas subtis e palavras piedosas. Tinham tomado um certo vestuario entre o
preto e o rôxo: toda a casa cheirava a cera e a incenso; e a S. Joanneira, mesmo, monopolisára o commercio
das hostias.
Assim passaram annos. Pouco a pouco, porém, o grupo devoto dispersou-se: a ligação do conego Dias e da S.
Joanneira, muito commentada, afastou os padres do cabido; o novo chantre morrera de apoplexia
tambem--como era de tradição n'aquella diocese, fatal aos chantres; e já não eram divertidos os quinos das
sextas-feiras. Amelia mudára muito; crescera: fizera-se uma bella moça de vinte e dois annos, d'olhar
avelludado, beiços muito frescos--e achava a sua paixão pelo Agostinho uma «tontice de criança». A sua
devoção subsistia, mas alterada: o que amava agora na religião e na igreja era o apparato, a festa--as bellas
missas cantadas ao orgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o altar-mór na gloria das
flôres cheirosas, o roçar das correntes dos incensadores de prata, os unisonos que rompem briosamente no
côro das alleluias. Tomava a Sé como a sua Opera: Deus era o seu luxo. Nos domingos de missa gostava de se
vestir, de se perfumar com agua de colonia, de se ir aninhar sobre o tapete do altar-mór, sorrindo ao padre
Brito ou ao conego Saldanha.--Mas em certos dias, como dizia a mãi, «murchava»: voltavam então os
abatimentos d'outr'ora, que a amarellavam, lhe punham duas rugas velhas ao canto dos labios: tinha n'essas
occasiões horas d'uma vaga saudade parva e morbida, em que só a consolava cantar pela casa o Santissimo ou
as notas lugubres do toque da Agonia. Com a alegria voltava-lhe o gosto do culto alegre--e lamentava então
que a Sé fosse uma ampla estructura de pedra d'um estylo frio e jesuitico: quereria uma igreja pequenina,
muito dourada, tapetada, forrada de papel, illuminada a gaz; e padres bonitos officiando a um altar ornado
como uma étagère.
Fizera vinte e tres annos quando conheceu João Eduardo, no dia da procissão de Corpus-Christi, em casa do
tabellião Nunes Ferral, onde elle era escrevente. Amelia, a mãi, a snr.^a D. Josepha Dias tinham ido vêr a
procissão da bella varanda do tabellião, guarnecida de colchas de damasco amarello. João Eduardo estava lá,
modesto, sério, todo vestido de preto. Havia muito que Amelia o conhecia; mas n'aquella tarde, reparando na
brancura da sua pelle e na gravidade com que ajoelhava, pareceu-lhe «muito bom rapaz».
Á noite, depois do chá, o gordalhufo Nunes, de collete branco, foi pela sala exclamando, enthusiasmado, com
a sua voz de grillo:--É tirar pares, é tirar pares!--emquanto a filha mais velha ao piano tocava com brio
estridente uma mazurka franceza. João Eduardo aproximou-se de Amelia:
João Eduardo não dansou tambem, foi encostar-se a uma hombreira com a mão na abertura do collete, os
olhos fitos em Amelia. Ella percebia, desviava o rosto, mas estava contente; e quando João Eduardo, vendo
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 48
uma cadeira vazia, veio sentar-se ao pé d'ella, Amelia fez-lhe logo logar accommodando os folhos de sêda,
agradada. O escrevente, embaraçado, torcia o bigode com a mão tremula. Por fim Amelia voltando-se para
elle:
--Ai! eu estou velha para estes divertimentos, sou uma pessoa séria.
--De si!? ora essa! Está a caçoar commigo? Porque me hei de eu rir do senhor? Boa!... Então o senhor que tem
que faça rir?--E agitava o seu leque de sêda preta.
--Palavra!
Mas a snr.^a D. Josepha Dias, que os vigiava, aproximou-se, de testa muito franzida--e João Eduardo
levantou-se, intimidado.
Á sahida, quando Amelia no corredor punha os seus agasalhos, João Eduardo veio dizer-lhe, de chapéo na
mão:
--Então continúa a interessar-se por mim? disse ella apertando em redor do pescoço as pontas da sua manta de
lã.
Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia ambulante de zarzuela. Fallava-se muito da contralto, a
Gamacho. A snr.^a D. Maria da Assumpção tinha um camarote, levou a S. Joanneira e Amelia--que duas
noites antes estivera costurando, com uma pressa commovida, um vestido de cassa todo florido de laços de
sêda azul. João Eduardo na platéa--emquanto a Gamacho, empastada de pó de arroz sob a sua mantilha
valenciana, vibrando com uma graça decrepita o leque de lentejoulas, garganteava malaguenhas agudas--não
se fartou de contemplar, de desejar Amelia. Á sahida veio comprimental-a, offerecer-lhe o braço até á rua da
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 49
Misericordia: a S. Joanneira, a snr.^a D. Maria da Assumpção seguiam atraz com o tabellião Nunes.
--Deixe lá a mamã!
E João Eduardo, então, fallando-lhe junto do rosto, disse-lhe «a sua grande paixão». Tomou-lhe a mão, repetia
todo perturbado:
Amelia estava nervosa da musica do theatro; a noite quente de verão, com a sua vasta scintillação de estrellas,
tornava-a toda languida. Abandonou a mão, suspirou baixinho.
Mas, como ella pensou, «fôra decerto um fogacho»--porque, dias depois, quando conheceu mais João
Eduardo, quando pôde fallar livremente com elle, reconheceu que «não tinha nenhuma inclinação pelo rapaz».
Estimava-o, achava-o sympathico, bom moço; poderia ser um bom marido; mas sentia dentro em si o coração
adormecido.
O escrevente porém começou a ir á rua da Misericordia quasi todas as noites. A S. Joanneira estimava-o pelo
seu «proposito» e pela sua honradez. Mas Amelia ia-se mostrando «fria»: esperava-o á janella pela manhã
quando elle passava para o cartorio, fazia-lhe olhos dôces á noite,--mas só para o não descontentar, para ter na
sua existencia desoccupada um interessesinho amoroso.
Emfim accordou-se tacitamente em esperar, até que elle obtivesse o lugar de amanuense do governo civil,
rasgadamente promettido pelo doutor Godinho--o temido doutor Godinho!
Assim vivera Amelia até à chegada d'Amaro: e, durante a noite, estas recordações vinham-lhe por fragmentos,
como pedaços de nuvens que o vento vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde, acordou já o sol ia alto:
e espreguiçava-se, quando ouviu dizer a Ruça na sala de jantar:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 50
--É o senhor parocho que vai sahir com o senhor conego; vão á Sé.
Amelia saltou da cama, correu á janella em camisa, ergueu uma pontinha da cortina de cassa, olhou. A manhã
resplandecia: e o padre Amaro pelo meio da rua conversando com o conego, assoava-se ao seu lenço branco,
muito airoso na sua batina de pano fino.
VI
Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em commodidades, Amaro sentiu-se feliz. A S.
Joanneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o
«quarto do senhor parocho andava que nem um brinco»! Amelia tinha com elle uma familiaridade picante de
parenta bonita: «tinham calhado um com outro», como dissera, encantada, D. Maria da Assumpção. Os dias
iam assim passando para Amaro, faceis, com boa mesa, colchões macios e a convivencia meiga de mulheres.
A estação ia tão linda que até as tilias floresceram no jardim do Paço: «quasi milagre»! disse-se: o senhor
chantre, contemplando-as todas as manhãs da janella do seu quarto, em robe-de-chambre, citava versos das
Eclogas. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrella, dos desconsolos do seminario e do aspero
inverno na Gralheira--aquella vida em Leiria era para Amaro como uma casa sêcca e abrigada onde o alegre
lume estala e a sôpa cheirosa fumega, depois d'uma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.
Ia cedo dizer missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas de casimira, meias de lã por baixo
das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquella hora só algumas devotas, com o mantéo
escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé d'um altar envernizado de branco.
Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no lagedo, emquanto o sacristão, pachorrento,
contava «as novidades do dia».
Depois, com o calice na mão, d'olhos baixos, passava á igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente diante do
Santissimo Sacramento, subia devagar ao altar onde as duas velas de cera esmoreciam com uma claridade
pallida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:
--Ad Deum qui lætificat juventutem meam, resmungava, n'um latim syllabado, o sacristão.
Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma devoção enternecida. «Estava agora
habituado», dizia. E como não ceava, e áquella hora, em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia
appetite, engorolava depressa, monotonamente, as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos. Por traz o
sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando
de revez para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que elle «trazía d'olho» desde a
Paschoa. Largas resteas de sol cahiam das janellas lateraes. Um vago aroma de junquilhos sêccos adocicava o
ar.
Amaro, depois de recitar rapidamente o Offertorio, limpava o calice com o purificador; o sacristão, um pouco
vergado dos rins, ia buscar as galhetas, apresentava-as, curvado--e Amaro sentia o cheiro do oleo rançoso que
lhe reluzia no cabello. N'aquella parte da missa, por um antigo habito de emoção mystica, Amaro tinha um
recolhimento sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza, a exhortação
universal á oração--Orate, fratres! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca
babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, d'onde pendiam grandes rosarios negros. Então o sacristão ia
ajoelhar-se por traz d'elle, sustentando ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a sineta.
Amaro consagrava o vinho, levantava a hostia--Hoc est enim corpus meum!--elevando alto os braços para o
Christo cheio de chagas rôxas sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos batiam
concavamente nos peitos; e no silencio sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 51
--Deo gratias! respondia o sacristão respirando alto, com o allivio da obrigação finda.
E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a benção, era já pensando na
alegria do almoço, na clara sala de jantar da S. Joanneira e nas boas torradas. Áquella hora já Amelia o
esperava com o cabello cahido sobre o penteador, tendo na pelle fresca um bom cheiro de sabão d'amendoas.
Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar onde a S. Joanneira e Amelia costuravam.
«Estava aborrecido em baixo, vinha um bocado para o cavaco», dizia. A S. Joanneira, n'uma cadeira pequena,
ao pé da janella, com o gato aninhado na roda do vestido de merino, cosia de luneta na ponta do nariz.
Amelia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado: a cabeça inclinada sobre o trabalho
mostrava a sua risca fina, nitida, um pouco afogada na abundancia do cabello; os seus grandes brincos de
ouro, em fórma de pingos de cera, oscillavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma
pequenina sombra; as olheiras leves côr de bistre esbatiam-se delicadamente sobre a pelle de um trigueiro
mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu peito cheio respirava devagar. Ás vezes, cravando a agulha
na fazenda, espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então Amaro gracejava:
Ella ria; conversavam. A S. Joanneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a criada; ou havia
quem offerecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a Ruça vinha ao armario
buscar um prato ou uma colhér: então fallava-se do preço dos generos, do que havia para o jantar. A S.
Joanneira tirava as lunetas, traçava a perna e, balouçando o pé calçado n'uma chinela d'ourelo, punha-se a
dizer os pratos:
--Hoje temos grão de bico. Não sei se o senhor parocho gostará, foi para variar...
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria affinidade de gostos com Amelia.
Depois, animando-se, bolia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrára uma carta; perguntou-lhe pelo derriço;
ella respondeu, picando vivamente o posponto:
--Não é tanto assim, acudiu elle.--Mas suspendeu-se, muito vermelho, affectando tossir.
Amelia ás vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo pediu-lhe para sustentar nas mãos uma meadinha de
retroz que ella ia dobar.
--Deixe fallar, senhor parocho! exclamou a S. Joanneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confiança!...
Mas Amaro promptificou-se, rindo, todo contente:--elle estava alli para o que quizessem, até para dobadoura!
Era mandarem, era mandarem! E as duas mulheres riam, d'um riso calido, enlevadas n'aquellas maneiras do
senhor parocho, «que até tocavam o coração»! Ás vezes Amelia pousava a costura e tomava o gato no collo;
Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do Maltez que se arredondava, fazendo um ron-ron de gozo.
--Gostas? dizia ella ao gato, um pouco córada, com os olhos muito ternos.
Depois a S. Joanneira erguia-se para dar o remedio á idiota ou ir palrar á cozinha. Elles ficavam sós; não
fallavam, mas os seus olhos tinham um longo dialogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez
dormente. Então Amelia cantarolava baixo o Adeus ou o Descrente: Amaro accendia o seu cigarro, e escutava
bamboleando a perna.
Amelia cantava mais accentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, mirava o alinhavado
ou o posponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.
Amaro achava aquellas unhas admiraveis, porque tudo que era ella ou vinha d'ella lhe parecia perfeito:
gostava da côr dos seus vestidos, do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabellos, e olhava até com
ternura para as saias brancas que ella punha a seccar á janella do seu quarto, enfiadas n'uma cana. Nunca
estivera assim na intimidade d'uma mulher. Quando percebia a porta do quarto d'ella entreaberta, ia resvalar
para dentro olhares gulosos, como para perspectivas d'um paraiso: um saiote pendurado, uma meia estendida,
uma liga que ficára sobre o bahú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo
pallido. E não se saciava de a vêr fallar, rir, andar com as saias muito engommadas que batiam as hombreiras
das portas estreitas. Ao pé d'ella, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre: o Sacerdocio,
Deus, a Sé, o Peccado ficavam em baixo, longe; via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como d'um
monte se vêem as casas desapparecer no nevoeiro dos valles; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar
um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.
Descia, ia folhear o seu Breviario; mas a voz de Amelia fallava em cima, o tic-tic das suas botinas batia o
soalho... Adeus! a devoção cahia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá voltavam
as tentações em bando a apoderar-se do seu cerebro, frementes, arrulhando, roçando-se umas pelas outras
como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, soffria. E lamentava então a sua
liberdade perdida: como desejaria não a vêr, estar longe de Leiria, n'uma aldeia solitaria, entre gente pacifica,
com uma criada velha cheia de proverbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam
e os gallos cacarejam ao sol! Mas Amelia, de cima, chamava-o--e o encanto recomeçava, mais penetrante.
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joanneira trinchava,
emquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a
toalha. A Ruça, cada dia mais etica, servia mal, sempre a tossir: Amelia ás vezes erguia-se para ir buscar uma
faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, attencioso.
--Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor parocho! dizia ella. E punha-lhe a mão no hombro, e os seus olhos
encontravam-se.
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estomago, sentia-se regalado, gozava muito no bom
calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas; ás vezes mesmo,
com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amelia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar
sentido, dizia «que muito lhe pezava não ter uma irmãzinha assim»!
Amelia gostava de ensopar o miolo de pão no môlho do guisado; a mãi dizia-lhe sempre:
E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o crepusculo crescia, a Ruça trazia o
candieiro. O brilho dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava á S. Joanneira mamã;
Amelia sorria, d'olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. D'ahi a pouco vinha o
café; o o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca e quebrando a cinza do
cigarro na borda do pires.
Áquella hora apparecia sempre o conego Dias; sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:
--Ora Nosso Senhor nos dê muito boas noites! dizia assomando á porta.
Elle sentava-se, exhalando um profundo uff!--Vá lá a gotinha do café! E batendo no hombro do parocho,
olhando para a S. Joanneira:
Riam; vinham as historias do dia. O conego costumava trazer no bolso o Diario Popular; Amelia
interessava-se pelo romance, a S. Joanneira pelas correspondencias amorosas nos annuncios.
Amaro então fallava de Lisboa, de escandalos que lhe contára a tia, dos fidalgos que conhecera «em casa do
senhor conde de Ribamar». Amelia, enlevada, escutava-o com os cotovêlos sobre a mesa, roendo
vagarosamente a ponta do palito.
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre velha, com
uma medonha touca de rendas negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma maçã
raineta, fazendo debaixo da roupa uma saliencia quasí imperceptivel, fixava em todos, com custo, os seus
olhinhos concavos e chorosos.
--É o senhor parocho, tia Gertrudes! gritava-lhe Amelia ao ouvido. Vem vêr como está.
--Ah! é o menino!
--Pobre de Christo! dizia Amaro. Pobre de Christo! Deus lhe dê uma boa morte!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 54
E voltavam para a sala de jantar onde o conego Dias, todo enterrado na velha poltrona de chita verde, com as
mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:
A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro, soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo enleado n'um
sentimentalismo agradavel.
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a lêr os Canticos a Jesus,
traducção do francez publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrasinha beata, escripta com
um lyrismo equivoco, quasi torpe--que dá á oração a linguagem da luxuria: Jesus é invocado, reclamado com
as sofreguidões balbuciantes d'uma concupiscencia allucinada: «Oh! vem, amado do meu coração, corpo
adoravel, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abraza-me! queima-me! Vem!
esmaga-me! possue-me!» E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade,
geme, ruge, declama assim em cem paginas inflammadas onde as palavras gozo, delicia, delírio, extase,
voltam a cada momento, com uma persistencia hysterica. E depois de monologos phreneticos d'onde se exhala
um bafo de cio mystico, vêm então imbecilidades de sacristia, notasinhas beatas resolvendo casos difficeis de
jejuns, e orações para as dôres de parto! Um bispo approvou aquelle livrinho bem impresso; as educandas
lêem-n'o no convento. É beato e excitante; tem as eloquencias do erotismo, todas as pieguices da devoção;
encaderna-se em marroquim e dá-se ás confessadas: é a cantharida canonica!
Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aquelles periodos sonoros, tumidos de desejo; e no silencio, por
vezes, sentia em cima ranger o leito de Amelia: o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça ás costas
da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vêl-a em collete diante do toucador desfazendo as trancas; ou,
curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos.
Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.
--Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse elle, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto da costura.
Ao outro dia, ao almoço, Amelia estava pallida, com as olheiras até ao meio da face. Queixou-se de insomnia,
de palpitações.
Durante lodo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste--e sem razão, ás vezes, o rosto
abrazava-se-lhe de sangue.
Os peores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando João Eduardo vinha passar as
noites «em familia». Até ás nove horas o parocho não sahia do quarto; e quando subia para o chá
desesperava-se de vêr o escrevente embrulhado no seu chale-manta, sentado junto de Amelia.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 55
--Ai o que estes dois têm para ahi palrado, senhor parocho! dizia a S. Joanneira.
Amaro tinha um sorriso livido, partindo devagar a sua torrada, com os olhos fitos na chavena.
Amelia, na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o parocho a mesma familiaridade alegre, mal
levantava os olhos da costura; o escrevente calado chupava o cigarro; e havia grandes silencios em que se
sentia o vento uivar, encanado na rua.
--Olha quem andar agora nas aguas do mar! dizia a S. Joanneira fazendo devagar a sua meia.
As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro: detestava-o pela sua pouca devoção, pelo seu
bonito bigode preto. E diante d'elle sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.
--Estou tão cansada! respondia Amelia apoiando-se nas costas da cadeira, com um suspirosinho de fadiga.
A S. Joanneira, então, que não gostava de «vêr gente mona», propunha uma bisca de tres; e o padre Amaro,
tomando o seu candieiro de latão, descia para o quarto, muito infeliz.
N'essas noites quasi detestava Amelia; achava-a casmurra. A intimidade do escrevente na casa parecia-lhe
escandalosa: decidia mesmo fallar á S. Joanneira, dizer-lhe «que aquelle namoro de portas a dentro não podia
ser agradavel a Deus». Depois, mais razoavel, resolvia esquecel-a, pensava em sahir da casa, da parochia.
Representava-se então Amelia com a sua corôa de flôres de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de
casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus lençoes de renda... e todas as provas, as
certezas do amor d'ella pelo «idiota do escrevente» cravavam-se-lhe no peito como punhaes...
Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir que lhe penetrasse no quarto o
rumor da sua voz ou o frou-frou das suas saias. Mas d'ahi a pouco, como todas as noites, escutava com o
coração aos saltos, immovel e ancioso, os ruidos que ella fazia em cima ao despir-se, palrando ainda com a
mãi.
Um dia Amaro jantára em casa da snr.^a D. Maria da Assumpção; fôra depois passear pela estrada de
Marrases, e á volta, ao fim da tarde, encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no
patamar, estavam os chinelos de ourelo da Ruça.
Lembrou-se que Amelia tinha ido passar a tarde com a snr.^a D. Joaquina Gansoso, n'uma fazenda ao pé da
Piedade, e que a S. Joanneira fallára em ir á irmã do conego. Fechou devagar a cancella, subiu á cozinha a
accender o seu candieiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda galochas de
borracha; os seus passos não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S.
Joanneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surprehendido, afastou subtilmente um lado do
reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou.--Oh Deus de Misericordia! a S. Joanneira, em saia branca,
atacava o collete; e, sentado á beira da cama, em mangas de camisa, o conego Dias resfolegava grosso!
Amaro desceu, collado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados da Sé. O
céo ennevoára-se, leves gotas de chuva cahiam.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 56
Nunca suspeitára um tal escandalo! A S. Joanneira, a pachorrenta S. Joanneira! O conego, seu mestre de
Moral! E era um velho, sem os impetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a
nutrição, as dignidades ecclesiasticas! Que faria então um homem novo e forte, que sente uma vida abundante
no fundo das suas veias reclamar e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava no seminario, o que lhe
dizia o velho padre Sequeira, cincoenta annos parocho da Gralheira:--«Todos são do mesmo barro!» Todos
são do mesmo barro,--sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminarios, dirigem as
consciencias envoltos em Deus como n'uma absolvição permanente, e têm no emtanto, n'uma viella, uma
mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das attitudes devotas e da austeridade do officio,
fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!
Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquella, a S. Joanneira e a filha, que viviam assim
sustentadas pela lubricidade tardia de um velho conego? A S. Joanneira fora decerto bonita, bem feita,
desejavel--outr'ora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, áquelles amores
senis e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hospedes, viviam da
concubinagem. Amelia ia sósinha á igreja, ás compras, á fazenda; e com aquelles olhos tão negros, talvez já
tivesse tido um amante!--Resumia, filiava certas recordações: um dia que ella lhe estivera mostrando na
janella da cozinha um vaso de rainunculos, tinham ficado sós, e ella, muito córada, puzera-lhe a mão sobre o
hombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra occasião ella roçára-lhe o peito pelo braço! A noite cahira,
com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só idéa deliciosa que o fazia
tremer: ser o amante da rapariga, como o conego era o amante da mãi! Imaginava já a boa vida escandalosa e
regalada; emquanto em cima a grossa S. Joanneira beijocasse o seu conego cheio de difficuldades
asthmaticas,--Amelia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um chale sobre os
hombros nús... Com que phrenesi a esperaria! E já não sentia por ella o mesmo amor sentimental, quasi
doloroso: agora a idéa muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panellinha, dava áquelle
homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua.--Que pechincha de casa!
A chuva cahía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar. Subiu.
--Ih, como vem frio! disse-lhe Amelia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a humidade da nevoa.
Sentada á mesa, costurava com um chale-manta pelos hombros: João Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S.
Joanneira.
Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe de repente, sem saber porque, o
duro choque d'uma realidade antipathica: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dansar uma sarabanda
na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam--vendo alli Amelia ao pé do noivo, curvada sobre uma
costura honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candieiro de familia!
E tudo em redor lhe apparecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armario
cheio de louça luzidia da Vista-Alegre, o sympathico e bojudo pote d'agua, o velho piano mal firme nos seus
tres pés torneados; o paliteiro tão querido de todos--um Cupido rechonchudo com um guardachuva aberto
erriçado de palitos, e aquella tranquilla bisca jogada com os dichotes classicos. Tudo tão decente!
Affirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joanneira, como para descobrir n'ellas as marcas das
beijocas do conego: ah! tu, não ha duvida, és «uma barregã de clerigo ». Mas Amelia! com aquellas longas
pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da mãi; ou, experiente, estava bem
resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança d'um amor legal!--E Amaro, da sombra, examinava-a
longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.
--Cansadinho, senhor parocho, hein? disse a S. Joanneira. E para João Eduardo:--Trunfo, faz favor, seu cabeça
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 57
no ar?
--Ah menino, menino! dizia ella com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas!
Amelia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto com botões de vidro, que lhe
disfarçava a fórma do seio.
E Amaro irritava-se d'aquelles olhos fixos na costura, d'aquelle casaco amplo escondendo a belleza que mais
appetecia n'ella! E nada a esperar! Nada d'ella lhe pertenceria, nem a luz d'aquellas pupillas, nem a brancura
d'aquelles peitos! Queria casar--e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus!
Odiou-o então, d'um odio complicado d'inveja ao seu bigode negro e ao seu direito d'amar...
--Está incommodado, senhor parocho? perguntou Amelia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.
O escrevente, baralhando as cartas, começára a fallar de uma casa que queria alugar; a conversa cahiu sobre
arranjos domesticos.
Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôz a vela sobre a commoda; o espelho estava defronte, e a sua
imagem appareceu-lhe; sentiu-se feio, ridiculo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma colleira, e por
traz a corôa hedionda. Comparou-se instinctivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabello todo, a
sua liberdade! Para que hei de eu estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome,
uma casa, a maternidade; elle só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do peccado! Ella
sympathisava talvez com elle, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar; nada mais
natural! Via-se pobre, bonita, só: cubiçava uma situação legitima e duradoura, o respeito das visinhas, a
consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!
Odiou-a então, e o seu vestido afogado, e a sua honestidade! A estupida, que não percebia que ao pé d'ella,
sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciencia! Desejou que
ella fosse como a mãi,--ou peor, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia impudente, traçando a perna e
fitando os homens, uma femea facil como uma porta aberta ...
--Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada!--pensou, recahíndo em si um pouco
envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito
dogma!
Abafava. Abriu a janella. O céo estava tenebroso; a chuva cessára; o piar das corujas na Misericordia cortava
só o silencio.
Enterneceu-se, então, com aquella escuridão, aquella mudez de villa adormecida. E sentiu subir outra vez, das
profundidades do seu sêr, o amor que sentira ao principio por ella, muito puro, d'um sentimentalismo devoto:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 58
via a sua linda cabeça, d'uma belleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua
alma foi para ella n'um desfallecimento d'adoração, como no culto a Maria e na Saudação Angelica; pediu-lhe
perdão anciosamente de a ter offendido; disse-lhe alto: És uma santa! perdôa!--Foi um momento muito dôce,
de renunciamento carnal...
E, espantado quasi d'aquellas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôz-se a pensar
com saudade--que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amoravel, dedicado, dengueiro,
sempre de joelhos, todo d'adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas!
Á idéa d'aquellas felicidades inaccessiveis, os olhos arrazaram-se-lhe de lagrimas. Amaldiçoou, n'um
desespero, «a pêga da marqueza que o fizera padre», e o bispo que o confirmára!
Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias de Amelia. Correu a espreitar pela
fechadura, cravando os dentes no beiço, de ciume. A cancella bateu, Amelia subiu cantarolando baixo.--Mas a
sensação d'amor mystico que o penetrára um momento, olhando a noite, passára; e deitou-se, com um desejo
furioso d'ella e dos seus beijos.
VII
Dias depois o padre Amaro e o conego Dias tinham ido jantar com o abbade da Cortegassa.--Era um velho
jovial, muito caridoso, que vivia ha trinta annos n'aquella freguezia e passava por ser o melhor cozinheiro da
diocese. Todo o clero das visinhanças conhecia a sua famosa cabedella de caça. O abbade fazia annos, havia
outros convidados--o padre Natario e o padre Brito: o padre Natario era uma creaturinha biliosa, sêcca, com
dois olhos encovados, muito malignos, a pelle picada das bexigas e extremamente irritavel. Chamavam-lhe o
Furão. Era esperto e questionador; tinha fama de ser grande latinista, e ter uma logica de ferro; e dizia-se
d'elle: é uma lingua de vibora! Vivia com duas sobrinhas orphãs, declarava-se extremoso por ellas,
gabava-lhes sempre a virtude, e costumava chamar-lhes as duas rosas do seu canteiro. O padre Brito era o
padre mais estupido e mais forte da diocese; tinha o aspecto, os modos, a forte vida de um robusto beirão que
maneja bem o cajado, emborca um almude de vinho, péga alegremente á rabiça do arado, serve de trolha nos
arranjos de um alpendre, e nas séstas quentes de junho atira brutalmente as raparigas para cima das medas de
milho. O senhor chantre, sempre correcto nas suas comparações mythologicas, chamava-lhe--o leão de
Nemeia.
A sua cabeça era enorme, de cabello lanigero que lhe descia até ás sobrancelhas: a pelle cortida tinha um tom
azulado, do esforço da navalha de barba; e, nas suas risadas bestiaes, mostrava dentinhos muito miudos e
muito brancos do uso da brôa.
Quando iam sentar-se á mesa chegou o Libaninho todo azafamado, gingando muito, com a calva suada,
exclamando logo em tons agudos:
--Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais um bocadinho. Passei pela igreja de Nossa Senhora da Ermida,
estava o padre Nunes a dizer uma missa de intenção. Ai, filhos! papei-a logo, venho mesmo consoladinho!
A Gertrudes, a velha e possante ama do abbade, entrou então com a vasta terrina do caldo de gallinha; e o
Libaninho, saltitando em roda d'ella, começou os seus gracejos:
A velha aldeã ria com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia a massa do seio.
--Ai, filha! as mulheres querem-se como as peras, maduras e de sete cotovêlos. Então é que é chupal-as!
O jantar fôra todo cozinhado pelo abbade: logo á sopa as exclamações começaram:
O excellente abbade estava escarlate de satisfação. Era, como dizia o senhor chantre, «um divino artista»!
Lera todos os Cozinheiros completos, sabia innumeras receitas: era inventivo--e, como elle affirmava dando
martelladinhas no craneo, «tinha-lhe sahido muito petisco d'aquella cachimonia»! Vivia tão absorvido pela
sua «arte» que lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fieis ajoelhados para receberem a palavra de
Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho. E alli vivia feliz, com a sua
velha Gertrudes, de muito bom paladar tambem, com o seu quintal de ricos legumes, sentindo uma só ambição
na vida--ter um dia a jantar o bispo!
--Oh, senhor parocho! dizia elle a Amaro, por quem é! mais um bocadinho de cabedella, faça favor! Essas
côdeasinhas de pão ensopadas no môlho! Isso! isso! Que tal, hein?--E com um aspecto modesto:--Não é lá por
dizer, mas a cabedella hoje sahiu-me boa!
Estava com effeito, como disse o conego Dias, de tentar Santo Antonio no deserto! Todos tinham tirado as
capas, e, só com as batinas, as voltas alargadas, comiam devagar, fallando pouco. Como no dia seguinte era a
festa da Senhora da Alegria, os sinos na capella, ao lado, repicavam; e o bom sol do meio-dia dava tons muito
alegres á louça, ás bojudas canecas azues com vinho da Bairrada, aos pires de pimentões escarlates, ás frescas
malgas de azeitonas pretas--emquanto o bom abbade, d'olho arregalado, mordendo o beiço, ia cortando com
cuidado nacos brancos do peito do capão recheado.
As janellas abriam para o quintal. Viam-se dois largos pés de camelias vermelhas crescendo junto ao peitoril,
e para além das copas das macieiras um pedaço muito vivo de céo azul-ferrete. Uma nora chiava ao longe,
lavadeiras batiam a roupa.
Sobre a commoda, entre in-folios, na sua peanha um Christo perfilava tristemente contra a parede o seu corpo
amarello, coberto de chagas escarlates: e, aos lados, sympathicos santos sob redomas de vidro, lembravam
legendas mais dôces de religião amavel: o bom gigante S. Christovão atravessando o rio com o divino
pequerrucho que sorri, e faz saltar o mundo sobre a sua mãosinha como uma pella; o dôce pastor S. Joãosinho
coberto com uma pelle de ovelha, e guardando os seus rebanhos, não com um cajado, mas com uma cruz; o
bom porteiro S. Pedro, tendo na sua mão de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do céo!
Nas paredes, em lithographias de coloridos crueis, o patriarcha S. José apoiava-se ao seu cajado onde
florescem lirios brancos; o cavallo empinado do bravo S. Jorge pisava o ventre d'um dragão surprehendido; e
o bom Santo Antonio, á beira d'um regato, sorria, fallando a um tubarão. O tlim-tlim dos copos, o ruido das
facas animavam a velha sala de tecto de carvalho defumado, d'uma alegria desusada. E Libaninho devorava,
dizendo pilherias:
--Gertrudinhas, flôr do caniço, passa-me as vagens. Não me olhes assim, magana, que me fazes revolver os
intestinos!
--O diabo é o homem! dizia a velha. Olha p'r'ó que lhe deu! Fallasse-me aqui ha trinta annos, seu perdido!
--Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto coisas pela espinha acima!
Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoára a
batina, deixando vêr a sua grossa camisola de lã da Covilhã, onde a marca da fabrica, feita de linha azul, era
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 60
Um pobre então viera á porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e emquanto Gertrudes lhe mettia no
alforge metade d'uma brôa, os padres fallaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguezias.
--Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abbade. Ó Dias, mais este bocadinho da aza?
--Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre Natario.--Em muitas fazendas sabia elle
que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas
portas.--Sucia de mariolas! resumiu.
--Deixe lá, padre Natario, deixe lá! disse o abbade. Olhe que ha pobreza devéras. Por aqui ha familias,
homem, mulher e cinco filhos, que dormem no chão como porcos e não comem senão hervas.
--Então que diabo querias tu que elles comessem? exclamou o conego Dias lambendo os dedos depois de ter
esburgado a aza do capão. Querias que comessem perú? Cada um como quem é!
O bom abbade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estomago, e disse com affecto:
--Ai, filhos! acudiu o Libaninho n'um tom choroso, se houvesse só pobresinhos isto era o reininho dos céos!
--É bom que haja quem tenha cabedaes para legados pios, edificações de capellas...
--A propriedade devia estar na mão da Igreja, interrompeu Natario com auctoridade.
Mas a grande causa da miseria, dizia Natario com uma voz pedante, era a grande immoralidade.
--Ah! lá isso não fallemos! exclamou o abbade com desgosto. N'este momento ha só aqui na freguezia mais de
doze raparigas solteiras gravidas! Pois senhores, se as chamo, se as reprehendo, põem-se-me a fungar de riso!
--Lá nos meus sitios, disse o padre Brito, quando foi pela apanha da azeitona, como ha falta de braços, vieram
as maltas trabalhar. Pois agora o verás! Que desafôro!--Contou a historia das maltas, trabalhadores errantes,
homens e mulheres, que andam offerecendo os braços pelas fazendas, vivem na promiscuidade e morrem na
miseria.--Era necessario andar sempre de cajado em cima d'elles!
--Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mãos na cabeça. Ai, o peccado que vai pelo mundo! Até se
me estão a erriçar os cabellos!
Mas a freguezia de Santa Catharina era a peor! As mulheres casadas tinham perdido todo o escrupulo.
E o padre Brito fallou de um caso na freguezia de Amor: raparigas de dezeseis e dezoito annos que
costumavam reunir-se n'um palheiro--o palheiro do Silverio--e passavam lá a noite com um bando de
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 61
marmanjos!
Então o padre Natario, que já tinha os olhos luzidios, a língua solta, disse, repoltreando-se na cadeira e
espaçando as palavras:
--Eu não sei o que se passa lá na tua freguezia, Brito; mas se ha alguma coisa o exemplo vem de alto... A mim
têm-me dito que tu e a mulher do regedor...
--E aqui para nós, meus ricos, disse o conego Dias baixando a voz, com o olhinho acceso n'uma malicia
confidencial, sempre lhes digo que é uma mulher de mão cheia!
--É mentira! clamou o Brito. E fallando de um jacto:--Quem anda a espalhar isso é o morgado da Cumiada,
porque o regedor não votou com elle na eleição... Mas tão certo como eu estar aqui, quebro-lhe os
ossos!--Tinha os olhos injectados, brandia o punho:--Quebro-lhe os ossos!
--Ai, socega, leãosinho! disse o Libaninho com ternura. Não te percas, filhinho!
Mas recordando a influencia do morgado da Cumiada, que era então opposição e que levava duzentos votos á
urna, os padres fallaram de eleições e dos seus episodios. Todos alli, a não ser o padre Amaro, sabiam, como
disse Natario, «cozinhar um deputadosinho». Vieram anecdotas; cada um celebrou as suas façanhas.
--Caspitè! disseram.
--Sim, senhores.
Tinha-se entendido com um missionario, e na vespera da eleição receberam-se na freguezia cartas vindas do
céo e assignadas pela Virgem Maria, pedindo, com promessas de salvação e ameaças do inferno, voto para o
candidato do governo. De chupeta, hein?
--Homem! disse o abbade com ingenuidade, d'isso é que eu cá precisava. Eu então tenho de andar ahi a
estafar-me de porta em porta.--E sorrindo bondosamente:--Com o que se faz ainda alguma coisita é com o
relaxe da congrua!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 62
--E com a confissão, disse o padre Natario. A coisa então vai pelas mulheres, mas vai segura! Da confissão
tira-se grande partido.
--Mas emfim a confissão é um acto muito sério, e servir assim para eleições...
O padre Natario, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos excitados, soltou uma palavra imprudente:
--Se tomo a confissão a serio!? gritou o padre Amaro recuando a cadeira, com os olhos arregalados.
--Escutem, creaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou
pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que se passa, de dirigir o
rebanho para aqui ou para alli... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Ahi está o que é--a
absolvição é uma arma!
O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, «tinha já um tal terror que até lhe tremiam as pernas»!
Natario irritou-se:
--Então talvez me queiram dizer, gritou, que qualquer de nós, pelo facto de ser padre, porque o bispo lhe
impoz tres vezes as mãos e porque lhe disse o accipe, tem missão directa de Deus,--é Deus mesmo para
absolver?!
--A confissão é a essencia mesma do sacerdocio, soltou o padre Amaro com gestos escolares, fulminando
Natario. Leia Santo Ignacio! leia S. Thomaz!
--Anda-me com elle! gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando Amaro.--Anda-me com elle, amigo
parocho! Salta-me no cachaço do impio!
--Oh, senhores! berrou Natario furioso com a contradicção, o que eu quero é que me respondam a isto. E
voltando-se para Amaro:--O senhor, por exemplo, que acaba de almoçar, que comeu o seu pão torrado, tomou
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 63
o seu café, fumou o seu cigarro, e que depois se vai sentar no confessionario, ás vezes preoccupado com
negocios de familia ou com faltas de dinheiro, ou com dôres de cabeça ou com dôres de barriga, imagina o
senhor que está alli como um Deus para absolver?
O argumento surprehendeu.
O conego Dias, pousando o talher, ergueu os braços, e com uma solemnidade comica exclamou:
--Não fallemos n'essas coisas, não fallemos n'essas coisas, disse logo prudentemente o abbade. Vamos ao
arrozinho. Gertrudes, dá cá a garrafinha do Porto!
--Absolver é exercer a graça. A graça só é attributo de Deus: em nenhum auctor encontra que a graça seja
transmissivel. Logo...
--Ponho duas objecções... gritou Amaro com o dedo em riste, em attitude de polemica.
--Oh, filhos! oh, filhos! acudiu o bom abbade afflicto. Deixem a sabbatina, que até nem lhes sabe o arrozinho!
Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com as precauções classicas:
Para o saborear, depois de o fazer reluzir á luz na transparencia dos copos, repoltreavam-se nas velhas
cadeiras de couro; começaram as saudes! A primeira foi ao abbade, que murmurava:--Muita honra... muita
honra... Tinha os olhos chorosos de satisfação.
--A sua santidade Pio IX! gritou então o Libaninho brandindo o calix. Ao martyr!
Todos beberam commovidos. Libaninho entoou em voz de falsete o hymno de Pio IX: o abbade, prudente,
fêl-o calar por causa do hortelão que no quintal aparava o buxo.
A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natario tornára-se terno, fallava das suas sobrinhas, «as suas duas
rosas», e citava Virgilio, molhando as castanhas em vinho. Amaro, todo deitado para traz na cadeira, as mãos
nos bolsos, olhava machinalmente as arvores do jardim, pensando vagamente em Amelia, nas suas fórmas:
suspirou mesmo com um desejo d'ella--emquanto o padre Brito, rubro, queria convencer os republicanos a
marmeleiro.
Mas Natario começára a discutir com o conego historia ecclesiastica: e, muito questionador, voltou aos seus
argumentos vagos sobre a doutrina da Graça: affirmava que um assassino, um parricida poderia ser
canonisado--se se tivesse revelado o estado de Graça! Divagava, com phrases d'escóla em que se lhe pegava a
lingua. Citou santos que tinham sido escandalosos; outros que pela sua profissão deviam ter conhecido,
praticado, amado o vicio. Exclamou com as mãos na cinta:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 64
--Militar!? gritou o Libaninho.--E erguendo-se correndo a Natario, lançando-lhe um braço ao pescoço com
uma ternura pueril e avinhada:--Militar!? E que era elle? Que era elle, o meu devoto Santo Ignacio?
Natario repelliu-o:
--Sargento de caçadores! dizia erguendo as mãos n'um impeto beato. Meu rico Santo Ignacio! Bemdito e
louvado seja elle por toda a eternidade!
E então o abbade propôz que fossem tomar café para debaixo da parreira.
Eram tres horas. Ao erguer-se todos cambaleavam um pouco, arrotando formidavelmente, com risadas
espessas; só Amaro tinha a cabeça lucida, as pernas firmes--e sentia-se muito terno.
--Pois agora, collegas, disse o abbade sorvendo o ultimo gole de café, o que está a calhar é um passeio à
fazenda.
--Para esmoer, rosnou o conego erguendo-se com difficuldade. Vamos lá á fazenda do abbade!
Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito de carros. O dia estava muito azul, d'um sol tepido. A
vereda seguia entre vallados erriçados de silvas; para além as terras lisas estendiam-se cobertas de rastolho; a
espaços as oliveiras destacavam, com grande nitidez, na sua folhagem fina; para o horisonte arredondavam-se
collinas cobertas da rama verde-negra dos pinheiros; havia um grande silencio; só ás vezes, ao longe, n'um
caminho, um carro chiava. E n'aquella serenidade da paizagem e da luz, os padres iam caminhando devagar,
tropeçando um pouco, d'olho acceso, estomago enfartado, chacoteando e achando a vida boa.
O conego Dias e o abbade, de braço dado, caturravam. O Brito, ao lado de Amaro, jurava que havia de beber o
sangue ao morgado da Cumiada.
Adiante de todos ia o padre Natario: levava a capa no braço, arrastando pelo chão; a batina desabotoada por
traz deixava vêr o forro immundo do collete; e as suas pernas escanifradas, com as meias pretas de lã cheias
de passagens, faziam bordos que o atiravam contra o silvado.
--Eu só me contentava em agarrar n'um cajado e correr tudo! tudo!--E gesticulava com um gesto immenso que
abrangia o mundo.
Mas pararam de repente: Natario adiante gritava com uma voz furiosa:
Era á volta do atalho. Tropeçára com um velho que conduzia uma ovelha; ia cahindo; e ameaçava-o com o
punho fechado n'uma raiva avinhada.
O homem balbuciava, tinha tirado o chapéo; viam-se os seus cabellos brancos; parecia ser um antigo criado de
lavoura envelhecido no trabalho; era talvez avô--e curvado, vermelho de vergonha, encolhia-se com as sebes
para deixar passar no estreito caminho de carros os senhores padres joviaes e excitados da vinhaça!
Amaro não os quiz acompanhar até á fazenda. Ao fim da aldeia, no cruzeiro, tomou pelo caminho de Sobros,
voltou para Leiria.
--Olhe que é uma legoa á cidade, dizia o abbade. Eu mando-lhe apparelhar a egoa, collega.
--Qual historia, abbade, a perninha é rija!--E, traçando alegremente a capa, partiu cantarolando o Adeus.
Ao pé da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se, ao comprido d'um muro de quinta coberto de musgos e
erriçado no alto de luzidios fundos de garrafas. Quando Amaro chegou proximo ao portão de carros, baixo e
pintado de vermelho, encontrou no meio do caminho, parada, uma grande vacca malhada; Amaro divertido
espicaçou-a com o guarda-chuva; a vacca trotou balouçando a papeira--e Amaro ao voltar-se viu Amelia, ao
portão, que saudava, dizendo toda risonha:
--Vim á quinta com a D. Maria da Assumpção. Vim dar uma vista d'olhos á fazenda.
Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma sombra dôce, estendia-se até á casa que se entrevia no fundo,
branquejando ao sol.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 66
--É. A nossa fazenda fica do outro lado, mas entra-se tambem por aqui. Vá, Joanna, avia-te!
A rapariga pôz a canastra á cabeça, deu as boas tardes, metteu pelo caminho de Sobros, batendo muito os
quadris.
--Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa propriedade... considerava o parocho.
--Venha vêr a nossa fazenda! disse Amelia. É uma migalhinha de terra, mas para fazer uma idéa. Vai-se por
aqui mesmo... Olhe, vamos ter lá baixo com a D. Maria, quer?
Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O chão estava cheio de folhas sêccas, e, entre os troncos
espaçados, moitas de hortensias pendiam abatidas, amarelladas dos chuveiros; ao fundo a casa baixa, velha, de
um andar só, assentava pesadamente. Ao longo da parede grandes aboboras amadureciam ao sol, e no telhado,
todo negro do inverno, esvoaçavam pombos. Por traz o laranjal formava uma massa de folhagens
verde-escuras; uma nora chiava monotonamente.
O olival era longe, no fundo da quinta: havia ainda grandes lamas, não se podia ir lá sem tamancos.
--Vai-se a gente sujar toda, disse Amelia. Deixar lá a D. Maria, hein? Vamos nós vêr a quinta... Por aqui,
senhor parocho...
Estavam defronte d'um velho muro onde cresciam clematites. Amelia abriu uma porta verde; e por tres
degraus de pedra desconjuntados desceram a uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do muro cresciam
rosas de todo o anno; do outro lado, por entre os pilares de pedra que sustentavam a latada e os pés torcidos
das cepas, via-se, batido de luz, com tons amarellados, um grande campo de herva; os tectos baixos do curral
coberto de colmo destacavam ao longe em escuro, e d'esse lado um fumosinho leve e branco perdia-se no ar
muito azul.
Amelia a cada momento parava, explicava a quinta:--Alli ia semear-se cevada; além havia de vêr o cebolinho,
estava muito bonito...
Amaro ouvia-a fallar, com a cabeça baixa, olhando-a de lado; a sua voz n'aquelle silencio dos campos
parecia-lhe mais rica, mais dôce; o grande ar dava-lhe uma côr mais picante ás faces; o seu olhar rebrilhava.
Para saltar umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que elle entreviu, perturbou-o como
um começo da sua nudez.
Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao comprido d'um regueiro. Amelia riu muito do parocho, que
tinha medo de sapos. Elle então exagerou os seus sustos. Ó menina Amelia, haveria viboras? E roçava-se por
ella, afastando-se das hervas altas.
--Vê aquelle vallado? Pois para o lado de lá é a nossa fazenda. Entra-se pela cancella, vê? Mas veja lá se está
cansado! Que o senhor parece-me que não é grande caminhador... Ai, um sapo!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 67
Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o hombro. Ella empurrou-o dôcemente, e com um riso calido:
Estava toda contente, toda viva. Fallava na sua fazenda com uma vaidadesinha satisfeita de entender da
lavoura, de ser proprietaria.
--Está? fez ella.--Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava fechada! Que pena! E abalava, impaciente, as
grades estreitas, entre as duas fortes hombreiras de madeira encravadas na espessura do silvado.
Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a voz:--Antonio! Antonio!
Ninguem respondeu.
--Anda lá para o fundo da quinta! disse ella. Que sécca! Se o senhor parocho quizesse, aqui adiante póde-se
passar. Ha uma abertura no vallado, chamam-lhe o salto da cabra. Póde a gente saltar para o outro lado.
--Quando eu era pequena nunca passava pela cancella, saltava sempre por alli. E cada trambolhão quando o
chão estava resvaladiço com a chuva! Era um vivo demonio, aqui onde me vê! Ninguém ha de dizer, senhor
parocho, hein? Ai! vou-me a fazer velha!--E voltando-se para elle, com um risinho onde luzia o esmalte dos
dentes:--Não é verdade? Estou-me a fazer velha, hein?
Elle sorria. Custava-lhe fallar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois do vinho do abbade, amollecia-o: e a
figura d'ella, os seus hombros, os seus encontros davam-lhe um desejo continuo e intenso.
Era uma abertura estreita no vallado: a terra do outro lado, mais baixa, estava toda lamacenta. Via-se d'alli a
fazenda da S. Joanneira: o campo plano estendia-se até um olival, com a herva fina muito estrellada de
pequenos malmequeres brancos; uma vacca preta, de grandes malhas, pastava; e para além viam-se tectos
aguçados de casaes onde voavam revoadas de pardaes.
Traçou a capa, saltou; mas escorregou nas hervas humidas--e immediatamente Amelia, debruçando-se, rindo
muito, com grandes acenos de mãos:
--E agora adeus, senhor parocho, que eu vou ter com a D. Maria. Ahi fica preso na fazenda. Para cima não
póde o senhor pular, pela cancella não póde o senhor passar! É o senhor parocho que está preso...
--Salte, salte!
--Salte, menina!
Saltou, foi cahir-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se--e, sentindo entre os braços o
corpo d'ella, apertou-a brutalmente e beijou-a com furor no pescoço.
Amelia desprendeu-se, ficou diante d'elle, suffocada, com a face em braza, compondo na cabeça e em roda do
pescoço, com as mãos tremulas, as pregas da manta de lã. Amaro disse-lhe:
--Ameliasinha!
Mas ella de repente apanhou os vestidos, correu ao comprido do vallado. Amaro, com grandes passadas,
seguiu-a atarantado. Quando chegou á cancella, Amelia fallava ao caseiro, que apparecia com a chave.
Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a parreira. Amelia adiante palrava com o
caseiro; e atraz Amaro, de cabeça baixa, seguia muito murcho. Ao pé da casa Amelia parou, fazendo-se
vermelha, compondo sempre a manta em redor do pescoço:
--Ó Antonio, disse, ensine o portão ao senhor parocho. Muito boas tardes, senhor parocho.
E através das terras humidas correu para o fundo da quinta, para os lados do olival.
A snr.^a D. Maria da Assumpção ainda lá estava, sentada n'uma pedra, tagarellando com o tio Patricio; um
bando de mulheres, com grandes varas, batiam em redor a ramagem das oliveiras.
--Que é isso, tonta? D'onde vens tu a correr, rapariga? Credo, que doida!
Sentou-se ao pé da velha; e ficou immovel, com as mãos cahídas no regaço, respirando fortemente, os beiços
entreabertos, os olhos fixos n'uma abstracção. Todo o seu sêr se abysmava n'uma só sensação:
Estava ha muito namorada do padre Amaro--e ás vezes, só, no seu quarto, desesperava-se por imaginar que
elle não percebia nos seus olhos a confissão do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas o ouvia pela manhã
pedir de baixo o almoço, sentia uma alegria penetrar todo o seu sêr sem razão, punha-se a cantarolar com uma
volubilidade de passaro. Depois via-o um pouco triste. Porquê? Não conhecia o seu passado; e, lembrada do
frade d'Evora, pensou que elle se fizera padre por um desgosto d'amor. Idealisou-o então: suppunha-lhe uma
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 69
natureza muito terna, parecia-lhe que da sua pessoa airosa e pallida se desprendia uma fascinação. Desejou
tel-o por confessor: como seria bom estar ajoelhada aos pés d'elle, no confessionario, vendo de perto os seus
olhos negros, sentindo a sua voz suave fallar do paraiso! Gostava muito da frescura da sua boca; fazia-se
pallida à idéa de o poder abraçar na sua longa batina preta! Quando Amaro sahia, ia ao quarto d'elle, beijava a
travesseirinha, guardava os cabellos curtos que tinham ficado nos dentes do pente. As faces abrazavam-se-lhe
quando o ouvia tocar a campainha.
Se Amaro jantava fóra com o conego Dias estava todo o dia impertinente, ralhava com a Ruça, ás vezes
mesmo dizia mal d'elle, «que era casmurro, que era tão novo que nem inspirava respeito». Quando elle fallava
d'alguma nova confessada, amuava, com um ciume pueril. A sua antiga devoção renascia, cheia de um fervor
sentimental: sentia um vago amor physico pela Igreja; desejaria abraçar, com pequeninos beijos demorados, o
altar, o orgão, o missal, os santos, o céo, porque não os distinguia bem d'Amaro, e pareciam-lhe dependencias
da sua pessoa. Lia o seu livro de missa pensando n'elle como no seu Deus particular. E Amaro não sabia,
quando passeava agitado pelo quarto, que ella em cima o escutava, regulando as palpitações do seu coração
pelas passadas d'elle, abraçando o travesseiro, toda desfallecida de desejos, dando beijos no ar, onde se lhe
representavam os labios do parocho!
A tarde cahia quando D. Maria e Amelia voltaram para a cidade. Amelia adiante, calada, chibatava a sua
burrinha, emquanto D. Maria da Assumpção vinha palrando com o moço da quinta, que segurava a arreata.
Ao passar junto á Sé tocou a Ave-Marias. E Amelia, rezando, não podia destacar os olhos das cantarias da
igreja tão grandiosamente erguidas, decerto para que elle alli celebrasse! Lembravam-lhe então domingos em
que o vira, ao repicar dos sinos, dar a benção dos degraus do altar-mór; e todos se curvavam, mesmo as
senhoras do morgado Carreiro, mesmo a senhora baroneza de Via-Clara e a mulher do governador civil, tão
orgulhosa, com o seu nariz de cavallete! Dobravam-se sob os seus dedos erguidos, e achavam decerto tambem
bonitos os seus olhos negros! E era elle que a tinha apertado nos braços, ao pé do vallado! Sentia ainda no
pescoço a pressão calida dos seus beiços: uma paixão flammejou como uma chamma por todo o seu sêr:
largou a arreata do burrinho, apertou as mãos contra o peito, e cerrando os olhos, lançando toda a sua alma
n'uma devoção:
--Ó Nossa Senhora das Dôres, minha madrinha, faze que elle goste de mim!
No adro lageado conegos passeavam, conversando. A botica defronte já tinha luz, os bocaes reluziam; e por
detraz da balança a figura do pharmaceutico Carlos, com o seu boné bordado a missanga, movia-se
magestosamente.
VIII
--E agora? E agora? dizia elle encostado ao canto da janella, sentindo o coração encolhido.
Devia sahir immediatamente da casa da S. Joanneira! Não podia continuar alli, na mesma familiaridade,
depois de ter tido «aquelle atrevimento com a pequena».
Que ella não ficára muito indignada--apenas atordoada; contivera-a talvez o respeito ecclesiastico, a
delicadeza para com o hospede, a attenção para com o amigo do conego. Mas podia contar á mãi, ao
escrevente... Que escandalo! E via já o senhor chantre, traçando a perna e fitando-o,--que era a sua attitude de
reprehensão--dizer-lhe com pompa:--«São esses desregramentos que deshonram o sacerdocio. Não se
comportaria d'outro modo um Satyro no monte Olympo!»--Poderiam desterral-o outra vez para alguma
freguezia da serra!... Que diria a senhora condessa de Ribamar?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 70
E depois, se persistisse em vêl-a na intimidade, ter constantemente presentes aquelles olhos negros, o sorriso
calido que lhe fazia uma covinha no queixo, a curva d'aquelle peito--a sua paixão, crescendo surdamente,
irritada a toda a hora, recalcada para dentro, tornal-o-hia doido, «podia fazer alguma asneira»!
Decidiu-se então a ir fallar ao conego Dias: a sua natureza fraca necessitava sempre receber forças d'uma
razão, d'uma experiencia alheia: costumava consultar ordinariamente o conego que, pelo habito da disciplina
ecclesiastica, elle julgava mais intelligente por ser seu superior na hierarchia; e não perdera, desde o
seminario, a sua dependencia de discipulo. Depois, se quizesse arranjar uma casa e uma criada para ir viver
só, necessitava o auxilio do conego, que conhecia Leiria como se a tivesse edificado.
Encontrou-o na sala de jantar. O candieiro de azeite esmorecia com um murrão avermelhado. Os tições da
brazeira, cobertos d'uma pulverisação de cinza, revermelhavam vagamente. E o conego, sentado n'uma cadeira
de braços, com o capote pelos hombros, os pés embrulhados n'um cobertor, amodorrado no calor do lume,
com o Breviario sobre os joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a Trigueira estirada dormitava como elle.
--É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que preguiça é essa?
--Ah! é vossê? disse o conego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do abbade, tomei uma gota de
chá, veio o quebranto... Então que é feito?
--Pois o abbade deu-nos um rico jantar. A cabedella estava de mão cheia! Eu carreguei-me um bocado, disse o
conego rufando com os dedos na capa do Breviario.
-Vossê com effeito anda amarello, disse o conego, considerando-o. Purgue-se, homem!
--Vossê percebe... Tenho estado a pensar, é assim exquisito estar em casa de duas mulheres, com uma
rapariga...
--Ora, historias! Que me vem vossê contar? Vossê é hospede... Deixe-se d'isso, homem! É como quem está na
hospedaria.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 71
--É verdade, tenho estado a pensar hoje n'isto. Tenho minhas razões.--Ia a dizer:--Fiz uma tolice,--mas
acanhou-se.
--Sou.
--É. Vossê que quer?--E n'um tom magano, com que julgou agradar ao conego:--A gente tambem gosta do que
é bom...
--Bem, bem, disse o conego rindo, percebo. Vossê, como eu sou amigo da casa, quer-me dizer por bons
modos que tem nojo de tudo aquillo!
--Oh, homem! exclamou o conego abrindo os braços. Vossê quer sahir da casa? Por alguma é! Ora a mim
parece-me que melhor...
--É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava agora grandes passadas pela sala. Mas estou com esta ferrada!
Veja vossê se me arranja uma casita barata com alguma mobilia... Vossê entende melhor d'essas coisas...
Mas a porta rangeu, D. Josepha Dias entrou: e depois de conversarem sobre o jantar do abbade, o catarrho da
pobre D. Maria da Assumpção, a doença de figado que ia minando o engraçado conego Sanches--Amaro
sahiu, quasi contente agora de se não «ter desabotoado com o padre-mestre».
O conego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquella resolução d'Amaro de deixar a casa da S. Joanneira
era bem vinda; quando elle o trouxera d'hospede para a rua da Misericordia, combinára com a S. Joanneira
diminuir-lhe a mezada que havia annos lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se logo; a S.
Joanneira, se não tinha hospede, dormia só no primeiro andar: o conego podia então saborear livremente os
carinhos da sua velhota,--e Amelia, na sua alcova, em cima, era alheia a este «conchêgosinho». Quando veio o
padre Amaro, a S. Joanneira cedeu-lhe o quarto e dormia n'uma cama de ferro ao pé da filha: e o conego então
reconheceu, como elle disse, desconsolado--«que aquelle arranjo tinha estragado tudo». Para gozar as doçuras
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 72
da sésta com a sua S. Joanneira era necessario que Amelia jantasse fóra, que a Ruça estivesse na fonte, outras
combinações importunas; e elle, conego do cabido, na egoista velhice, quando precisava ter recato com a sua
saude, via-se obrigado a esperar, a espreitar, a ter nos seus prazeres regulares e hygienicos as difficuldades
d'um collegial que ama a senhora professora. Ora se Amaro sahisse, a S. Joanneira descia ao seu quarto, no
primeiro andar; vinham as antigas commodidades, as tranquillas séstas. É verdade que tinha de dar a antiga
mezada... Daria a mezada!
--Que está para ahi o mano a fallar só? perguntou a snr.^a D. Josepha despertando do quebranto em que ia
cahindo, ao pé do lume.
--Estava cá a malucar como hei de castigar a carne na quaresma...--disse o conego com um riso grosso.
A essa hora a Ruça chamava o padre Amaro para o chá: e elle subia devagar, com o coração pequenino,
receando encontrar a S. Joanneira muito carrancuda, já informada do insulto. Achou só Amelia--que tendo-lhe
sentido os passos na escada tomára rapidamente a costura e, com a cabeça muito baixa, dava grandes
agulhadas, vermelha como o lenço que abainhava para o conego.
Amelia costumava sempre ter um olá! ou um ora viva! muito amavel; aquella seccura aterrou-o; disse-lhe
logo muito perturbado:
--Menina Amelia, eu peço-lhe que me perdôe... Foi um atrevimento... Eu nem soube o que fiz... Mas
acredite... Estou resolvido a sahir d'aqui. Até já pedi ao senhor conego Dias que me arranjasse casa...
Fallava com o rosto baixo--e não via Amelia erguer os olhos para elle, surprehendida e toda desconsolada.
--Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o senhor padre Natario: grande jantar! Conte lá, conte lá!
Amaro teve de dizer os pratos, as pilherias do Libaninho, a discussão theologica; depois fallaram da fazenda:
e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer á S. Joanneira que ia deixar a casa,--o que era, coitada, para a
pobre mulher, uma perda de seis tostões por dia!
Na manhã seguinte o conego foi a casa d'Amaro, pela manhã, antes d'ir ao côro. O parocho fazia a barba á
janella:
--Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã... Ha uma casita lá para os meus lados, que é
um achado. Era do major Nunes, que vai mudado para o 5.
--Tem mobilia?
--Então...
--Então é entrar e começar a gozar. E aqui para nós, Amaro, vossê tem razão. Estive a pensar no caso... É
melhor para vossê viver só. De modo que vista-se, e vamos vêr a casita.
A casa era na rua das Sousas, d'um andar, muito velha, com a madeira carunchosa: a mobilia, como disse o
conego, «podia passar a veteranos»; algumas lithographias desbotadas pendiam lugubremente de grandes
prégos negros; e o immundo major Nunes deixára os vidros quebrados, os soalhos todos escarrados, as
paredes riscadas de phosphoros, e até sobre um poial da janella duas piugas quasi negras.
Amaro aceitou a casa. E n'essa mesma manhã o conego ajustou-lhe uma criada, a snr.^a Maria Vicencia,
pessoa muito devota, alta e magra como um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como
considerou o conego Dias) era a propria irmã da famosa Dionysia!
A Dionysia fôra outr'ora a Dama das Camelias, a Ninon de Lenclos, a Manon de Leiria: gozára a honra de ser
concubina de dois governadores civis e do terrivel morgado da Sertejeira; e as paixões phreneticas que
inspirára tinham sido para quasi todas as mães de familia de Leiria causa de lagrimas e de fanicos. Agora
engommava para fóra, encarregava-se de empenhar objectos, entendia muito de partos, protegia «o rico
adulteriosinho» segundo a singular expressão do velho D. Luiz da Barrosa cognominado o infame, fornecia
lavradeirinhas aos senhores empregados publicos, sabia toda a historia amorosa do districto. E via-se sempre
na rua a Dionysia com o seu chale de xadrez traçado, o pesado seio tremendo dentro d'um chambre sujo, o
passinho discreto e os antigos sorrisos--mas a que faltavam já os dois dentes de diante.
O conego logo n'essa tarde deu parte á S. Joanneira da resolução d'Amaro. Foi um grande espanto para a
excellente senhora! Queixou-se, com amargura, da ingratidão do senhor parocho.
--Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo porquê: é que este arranjo de quarto em cima, etc.,
está-me a arrazar a saude.
Deu outras razões de prudencia hygienica e acrescentou, passando-lhe com bondade os dedos pelo pescoço:
--E o que é perder a conveniencia, não se afflija a senhora! Eu darei p'r'á panella como d'antes; e como a
colheita foi boa porei mais meia moeda para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá uma beijoca,
Augustinha, sua bréjeira! E ouça, hoje como-lhe cá as sopas.
Amaro no emtanto em baixo ia emmalando a sua roupa. Mas a cada momento parava, dava um ai triste, ficava
a olhar em redor o quarto, a cama fôfa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de chita onde
elle lia o Breviario, ouvindo, por cima, cantarolar Amelia.
Adeus as boas manhãs passadas ao pé d'ella, vendo-a costurar! Adeus as alegres sobremesas, que se
prolongavam á luz do candieiro! Adeus os chás, ao pé da brazeira, quando o vento uivava fóra e cantavam as
frias goteiras! Tudo tinha acabado!
A S. Joanneira e o conego appareceram então á porta do quarto. O conego resplandecia; e a S. Joanneira disse,
muito magoada:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 74
--É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os hombros tristemente. Mas ha razões... Eu sinto...
--Olhe, senhor parocho, disse a S. Joanneira, não se offenda com o que lhe vou dizer, mas eu já lhe queria
como filho...--E levou o lenço aos olhos.
--Tolices! exclamou o conego. Pois então elle não póde vir aqui em amizade, passar as noites para o cavaco,
tomar o seu café?... O homem não vai para o Brazil, senhora!
--Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era tel-o de portas a dentro!
Emfim, ella bem sabia que a gente na sua casa está muito melhor... Fez-lhe então grandes recommendações
sobre a lavadeira, que mandasse buscar o que quizesse, louças, lençoes...
E, continuando a arrumar a sua roupa, o parocho desesperava-se agora contra a resolução que tomára. A
pequena evidentemente não tinha aberto bico! Para que sahiria então d'aquella casa tão barata, tão confortavel,
tão amiga? E odiava o conego pelo seu zelo tão precipitado.
O jantar foi triste. Amelia, decerto para explicar a sua pallidez, queixava-se de dôres na cabeça. Ao café o
conego quiz a sua «dóse de musica»; e Amelia, ou machinalmente ou com intenção, disse a canção querida:
Ai! adeos! acabaram-se os dias Que ditoso vivi a teu lado! Sôa a hora, o momento fadado, É forçoso deixar-te
e partir!
Então, áquella chorosa melodia repassada das tristezas da separação, Amaro sentiu-se tão perturbado que teve
de se erguer bruscamente, ir encostar o rosto á vidraça, esconder as duas lagrimas que irreprimivelmente lhe
saltavam das palpebras. Os dedos d'Amelia embrulhavam-se tambem no teclado; até a mesma S. Joanneira
disse:
--Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá, Amaro. Eu vou comsigo até a rua das Sousas...
Amaro então quiz dizer adeus á idiota; mas, depois d'um forte accesso de tosse, a velha dormia, muito fraca.
--Deixal-a socegada, disse Amaro. E apertando a mão á S. Joanneira:--Muito obrigado por tudo, minha
senhora, acredite...
--Oh, senhora! disse o conego rindo-se, já ha bocado lhe disse, o homem não vai p'r'ás Indias!
Emfim Amaro desceu: e o João Ruço que na sua chegada a Leiria lhe trouxera o bahú para a rua da
Misericordia, muito bebedo, cantarolando o Bemdito,--levava-lh'o agora para a rua das Sousas, bebedo
tambem, mas trauteando o Rei-chegou.
Quando Amaro, n'essa noite, se viu só n'aquella casa tristonha, sentiu uma melancolia tão pungente e um tedio
tão negro da vida, que, com a sua natureza lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar alli a morrer!
Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro, pequena, com um colchão duro e
uma coberta vermelha; o espelho com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatorio, a bacia e o
jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janella; tudo alli cheirava a môfo; e fóra, na
rua negra, cahia sem cessar a chuva triste. Que existencia! E seria sempre assim!...
Desesperou-se então contra Amelia: accusou-a, com o punho fechado, das commodidades que perdera, da
falta de mobilia, da despeza que ia ter, da solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração devia ter vindo
ao seu quarto e dizer-lhe: «Senhor padre Amaro, para que sae de casa? Eu não estou zangada!» Porque emfim
quem irritára o seu desejo? Ella, com as suas maneirinhas ternas, os seus olhinhos adocicados! Mas não,
deixára-o emmalar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo tocar com estrondo a valsa do
Beijo!
Jurou então não voltar a casa da S. Joanneira. E, a grandes passadas pelo quarto, pensara no que havia de fazer
para humilhar Amelia. O quê? Desprezal-a como uma cadella! Ganhar influencia na sociedade devota de
Leiria, ser muito do senhor chantre; afastar da rua da Misericordia o conego e as Gansosos; intrigar com as
senhoras da boa roda para que se afastassem d'ella, com seccura, no altar-mór, á missa do domingo; dar a
entender que a mãi era uma prostituta... Enterral-a! cobril-a de lama! E na Sé, ao sahir da missa, regalar-se de
a vêr passar encolhida no seu mantelete preto, escorraçada de todos, emquanto elle, á porta, de proposito,
conversaria com a mulher do senhor governador civil e seria galante com a baroneza de Via-Clara!... Depois
prégaria um grande sermão, na quaresma, e ella ouviria dizer, na arcada, nas lojas: «Grande homem, o padre
Amaro!» Tornar-se-hia ambicioso, intrigaria e, protegido pela senhora condessa de Ribamar, subiria nas
dignidades ecclesiasticas: e o que pensaria ella quando o visse um dia bispo de Leiria, pallido e interessante na
sua mitra toda dourada, passando, seguido dos incensadores, ao longo da nave da Sé, entre um povo ajoelhado
e penitente, sob os roucos cantos do orgão? E ella o que seria então? Uma magra creatura murcha, embrulhada
n'um chale barato! E o snr. João Eduardo, o escolhido d'agora, o esposo? Seria um pobre amanuense mal
pago, com uma quinzena roçada, os dedos queimados do cigarro, curvado sobre o seu papel almasso,
imperceptivel na terra, adulando alto e invejando baixo! E elle, bispo, na vasta escadaria hierarchica que sobe
até ao céo, estaria já muito para cima dos homens, na zona de luz que faz a face de Deus-Padre!--E seria par
do reino, e os padres da sua diocese tremeriam de o vêr franzir a testa!
Que faria ella áquella hora? pensava. Costurava decerto, na sala de jantar: estava o escrevente: jogavam a
bisca, riam--ella roçava-lhe talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa! Recordou o seu pé, o bocadinho da
meia que vira quando ella saltava as lamas na quinta; e essa curiosidade inflammada subia pela curva da perna
até ao seio, percorrendo bellezas que suspeitava... O que elle gostava d'aquella maldita! E era impossivel
obtel-a! E todo o homem feio e estupido podia ir á rua da Misericordia pedil-a á mãi, vir á Sé dizer-lhe:
«Senhor parocho, case-me com esta mulher», e beijar, sob a protecção da Igreja e do Estado, aquelles braços e
aquelle peito! Elle não. Era padre! Fôra aquella infernal pêga da marqueza d'Alegros!...
Abominava então todo o mundo secular--por lhe ter perdido para sempre os privilegios: e, como o sacerdocio
o excluia da participação nos prazeres humanos e sociaes, refugiava-se, em compensação, na idéa da
superioridade espiritual que elle lhe dava sobre os homens. Aquelle miseravel escrevente podia casar e possuir
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a rapariga--mas que era elle em comparação d'um parocho a quem Deus conferira o poder supremo de
distribuir o céo e o inferno?...--E repastava-se d'este sentimento, enchendo o espirito d'orgulhos sacerdotaes.
Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora idéa que esse dominio só era valido na região abstracta das
almas; nunca o poderia manifestar, por actos triumphantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da
Sé--mas, apenas sahia para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a
acção sacerdotal a uma mesquinha influencia sobre almas de beatas... E era isto que lamentava, esta
diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder ecclesiastico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o
corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a auctoridade dos tempos em que a Igreja era a
nação e o parocho dono temporal do rebanho. Que lhe importava, no seu caso, o direito mystico d'abrir ou
fechar as portas do céo? O que elle queria era o velho direito d'abrir ou fechar a porta das masmorras!
Necessitava que os escreventes e as Amelias tremessem da sombra da sua batina... Desejaria ser um sacerdote
da antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a denuncia e dos terrores que inspira o carrasco, e alli n'aquella
villa, sob a jurisdicção da sua Sé, fazer estremecer, á idéa de castigos torturantes, aquelles que aspirassem a
realisar felicidades--que lhe eram a elle interdictas: e pensando em João Eduardo e em Amelia, lamentava não
poder accender as fogueiras da Inquisição!--Assim aquelle inoffensivo moço tinha durante horas, sob a
excitação colerica d'uma paixão contrariada, ambições grandiosas de tyrannia catholica:--porque todo o padre,
o mais boçal, tem um momento em que é penetrado pelo espirito da Igreja ou nos seus lances de
renunciamento mystico ou nas suas ambições de dominação universal: todo o sub-diacono se julga uma hora
capaz de ser santo ou de ser Papa: não ha seminarista que não tenha, durante um instante, aspirado com
ternura á caverna no deserto em que S. Jeronymo, olhando o céo estrellado, sentia descer-lhe sobre o peito a
Graça como um abundante rio de leite: e o abbade pansudo que á tardinha, á varanda, palita o dente furado
saboreando o seu café com um ar paterno, traz dentro em si os indistinctos restos d'um Torquemada.
A vida d'Amaro tornou-se monotona. Março ia muito molhado, muito frio; e, depois do serviço na Sé, Amaro
entrava em casa, tirava as botas enlameadas, ficava em chinelas a aborrecer-se. Ás tres horas jantava; e nunca
levantava a tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente, do jantarinho na rua da
Misericordia, quando Amelia, com o seu collar muito branco, lhe passava a sopa de grãos de bico, sorrindo,
toda carinhosa. Ao lado a Vicencia servia, têsa e enorme, com o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre
constipada; e de vez em quando, desviando a cabeça, assoava-se ao avental com ruido. Era muito suja: as
facas tinham o cabo humido da agua gordurosa das lavagens. Amaro, desgostoso e indifferente, não se
queixava; comia mal, á pressa; mandava vir o café, e ficava horas esquecidas sentado á mesa, quebrando a
cinza do cigarro na borda do prato, perdido n'um tedio mudo, sentindo os pés e os joelhos frios do vento que
entrava pelas frinchas da sala desabrigada.
Ás vezes o coadjutor, que nunca o visitára na rua da Misericordia, apparecia ao fim do jantar: sentava-se
arredado da mesa, e ficava calado, com o seu guardachuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar ao
parocho, repetia, invariavelmente:
Ao principio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S. Joanneira, provocando, animando o
coadjutor (que era de Leiria) a contar os escandalos da rua da Misericordia. O coadjutor, por servilismo, tinha
sorrisos mudos, repassados de perfidia.
O outro encolhia os hombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das orelhas, n'uma expressão de malicia;
mas não pronunciava um som, receando que as suas palavras, repetidas, escandalisassem o senhor conego.
Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, phrases molles: um baptisado que havia; o que dissera o conego
Campos; um frontal do altar que era necessario limpar. Aquella conversa enfastiava Amaro: sentia-se muito
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pouco padre, muito distante da panellinha ecclesiastica: não o interessavam as intriguinhas do cabido, as
parcialidades tão commentadas do senhor chantre, os roubos da Misericordia, as turras da camara ecclesiastica
com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado, nas palestras ecclesiasticas em que tão
femininamente se deleitam os padres, e que têm a puerilidade d'uma caturrice e a tortuosidade d'uma
conspiração.
Accendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guardachuva, e sahia com um olhar de revez á Vicencia.
Era aquella a peor hora, a da noite, quando ficava só. Procurava lêr, mas os livros enfastiavam-n'o:
deshabituado da leitura não comprehendia «o sentido». Ia olhar á vidraça: a noite estava tenebrosa, o lagedo
reluzia vagamente. Quando acabaria aquella vida? Accendia o cigarro, e do lavatorio para a janella
recomeçava os seus passeios, com as mãos atraz das costas. Deitava-se sem rezar ás vezes: e não tinha
escrupulos: julgava que ter renunciado a Amelia era já uma penitencia, não necessitava cansar-se a lêr orações
no livro; celebrára o «seu sacrificio»--sentia-se vagamente quite com o céo!
E continuava a viver só: o conego nunca vinha á rua das Sousas, «porque, dizia, era casa que só o entrar n'ella
até se lhe agoniava o estomago». E Amaro, cada dia mais amuado, não voltára a casa da S. Joanneira.
Escandalisára-se muito que ella não lhe tivesse mandado pedir para ir ás partidas da sexta-feira; attribuira «a
desfeita» á hostilidade d'Amelia; e, mesmo para a não vêr, trocára com o padre Silveira a missa do meio-dia
onde ella costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com aquelle novo sacrificio!
Todas as noites Amelia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação tão forte no coração que ficava
como suffocada um momento. Depois os botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ella conhecia os
passos fôfos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira, cerrando os olhos, como na
fadiga d'uma desesperança repetida. Esperava o padre Amaro; e ás vezes, pelas dez horas, quando já não era
possível que elle viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe entumecia a garganta de soluços, tinha
de pousar a costura, dizer:
--Vou-me deitar, estou com umas dôres de cabeça que não paro!
--Oh Senhora das Dôres, minha madrinha! porque não vem elle, porque não vem elle?
Nos primeiros dias, apenas elle se fôra embora, toda a casa lhe pareceu deshabitada e lugubre! Quando vira no
quarto d'elle os cabides sem a sua roupa, a commoda sem os seus livros, rompeu a chorar. Foi beijar a
travesseirinha onde elle dormia, apertou ao peito com delirio a ultima toalha a que elle limpára as mãos! Tinha
constantemente o seu rosto presente, elle entrava sempre nos seus sonhos. E com a separação o seu amor ardia
mais forte e mais alto, como uma fogueira que se isola.
Uma tarde, que fôra visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao chegar á ponte gente parada,
embasbacada com gozo para uma rapariga de cuia á banda e garibaldi escarlate, que, de punho no ar, já rouca,
praguejava contra um soldado: o rapazola, um beirão de cara redonda e lorpa coberta de pennugem loura,
virava-lhe as costas, encolhendo os hombros, as mãos muito enterradas nos bolsos, rosnando:
O snr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parára a olhar, descontente d'aquella «falta d'ordem publica».
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--Olá, menina Amelia! Não, uma brincadeira do soldado. Atirou-lhe um rato morto á cara, e a mulher está a
fazer aquelle espalhafato. Bebedas!
Mas a rapariga de garibaldi vermelha voltára-se--e Amelia aterrada reconheceu a Joanninha Gomes, sua
amiga da mestra, que fôra amante do padre Abilio! O padre fôra suspenso, deixára-a; ella partira para Pombal,
depois para o Porto; de miseria em miseria voltára a Leiria, e ahi vivia n'alguma viella ao pé do quartel,
entisicando, gasta por todo um regimento!--Que exemplo, santo Deus, que exemplo!
E tambem ella gostava d'um padre! Tambem ella, como outr'ora a Joanninha, chorava sobre a sua costura
quando o senhor padre Amaro não vinha! Onde a levava aquella paixão? Á sorte da Joanninha! A ser a amiga
do parocho! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por elle, com um filho
nas entranhas, sem um pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento que limpa n'um momento um céo
ennevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de Joanninha varreu-lhe do espirito as nevoas amorosas e
morbidas em que ella se ia perdendo. Decidiu aproveitar a separação, esquecer Amaro: lembrou-se mesmo de
apressar o seu casamento com João Eduardo para se refugiar n'um dever dominante; durante alguns dias
forçou-se a interessar-se por elle; começou mesmo a bordar-lhe umas chinelas...
Mas pouco a pouco a idéa má que, atacada, se encolhera e se fingira morta,--principiou lentamente a
desenroscar-se, a subir, a invadil-a! De dia, de noite, costurando e rezando, a idéa do padre Amaro, os seus
olhos, a sua voz appareciam-lhe, tentações teimosas! com um encanto crescente. Que faria elle? porque não
vinha? gostava d'outra? Tinha ciumes indefinidos, mas mordentes, que a queimavam. E aquella paixão ia-a
envolvendo como uma atmosphera d'onde não podia sahir, que a seguia se ella fugia, e que a fazia viver! As
suas resoluções honestas resequiam-se, morriam como debeis florinhas n'aquelle fogo que a percorria. Se ás
vezes a lembrança de Joanninha ainda voltava, repellia-a com irritação; e acolhia alvoroçadamente todas as
razões insensatas que lhe vinham de amar o padre Amaro! Tinha agora só uma idéa:--atirar-lhe os braços ao
pescoço e beijal-o... oh! beijal-o! Depois, se fosse necessario, morrer!
Não o supportava com os seus olhos voltados sempre para ella, a sua quinzena preta, as suas monotonas
conversas sobre o governo civil.
E idealisava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lubricos; de dia vivia n'uma inquietação de
ciumes, com melancolias lugubres, que a tornavam, como dizia a mãi, «uma môna, que até enraivece»!
O genio azedava-se-lhe.
Andava, com effeito, amarella, perdera o appetite. E emfim uma manhã ficou de cama com febre. A mãi,
assustada, chamou o doutor Gouvêa. O velho pratico, depois de vêr Amelia, veio à sala de jantar sorvendo
com satisfação a sua pitada.
--Case-me esta rapariga, S. Joanneira, case-me esta rapariga. Tenho-lh'o dito tantas vezes, creatura!
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--Mas case-a por uma vez, S. Joanneira, case-a por uma vez! repetia elle pelas escadas, arrastando um pouco a
perna direita que um rheumatismo teimoso encolhia.
Amelia emfim melhorou--com grande alegria de João Eduardo, que emquanto ella estivera doente vivera
n'uma afflicção, lamentando não poder ser seu enfermeiro, e derramando ás vezes no cartorio uma lagrima
triste sobre os papeis sellados do severo Nunes Ferral.
No domingo seguinte, á missa das nove horas na Sé, Amaro, ao subir para o altar, entre as devotas que se
arredavam viu de relance Amelia ao pé da mãi, com o seu vestido de sêda preta de largos folhos. Cerrou um
momento os olhos; e mal podia sustentar o calix com as mãos tremulas.
Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o missal, se persignou e se voltou para
a igreja dizendo Dominus vobiscum--a mulher do Carlos da botica disse baixo a Amelia «que o senhor
parocho estava tão amarello, que devia ter alguma dôr». Amelia não respondeu, curvada sobre o livro, com
todo o sangue nas faces. E durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a face banhada n'um extase
baboso, gozou a sua presença, as suas mãos magras erguendo a hostia, a sua cabeça bem feita curvando-se na
adoração ritual; uma doçura corria-lhe na pelle quando a voz d'elle, apressada, dizia mais alto algum latim: e
quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e a direita estendida, disse para a igreja o Benedicat vos, ella,
com os olhos muito abertos, arremessou toda a sua alma para o altar, como se elle fosse o proprio Deus a cuja
benção as cabeças se curvavam ao comprido da Sé, até ao fundo, onde os homens do campo com os seus
varapaus pasmavam para os dourados do sacrario.
Á sahida da missa começára a chover; e Amelia e a mãi, á porta com outras senhoras, esperavam uma
«aberta».
--Estamos á espera que passe a chuva, senhor parocho, disse a S. Joanneira voltando-se. E immediatamente,
muito reprehensiva:--E porque não tem apparecido, senhor parocho? Realmente! Que lhe fizemos nós? Credo,
até dá que fallar...
--Mas um bocadinho á noite. Olhe, póde crêr, tem-me causado desgosto... E todos têm reparado. Não, lá isso,
senhor parocho, tem sido ingratidão!
Amelia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbação olhava para todos os pontos o céo carregado, como
assustada do temporal.
Amaro então offereceu-lhe o seu guardachuva. E emquanto a S. Joanneira o abria, apanhando com cuidado o
vestido de sêda, Amelia disse ao parocho:
--Até á noite, sim?--E mais baixo, olhando em redor, com medo:--Oh, vá! Tenho estado tão triste! tenho
estado como doida! Vá, peço-lh'o eu!
Amaro, voltando para casa, continha-se para não correr de batina pelas ruas. Entrou no quarto, sentou-se aos
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pés da cama, e alli ficou saturado de felicidade, como um pardal muito farto n'um raio de sol muito quente:
recordava o rosto d'Amelia, a redondeza dos seus hombros, a belleza dos encontros, as palavras que lhe
dissera:--Tenho estado como doida! A certeza de que «a rapariga gostava d'elle» entrou-lhe então na alma
com a violencia de uma rajada, e ficou a susurrar por todos os recantos do seu sêr com um murmurio
melodioso de felicidades agitadas. E passeava pelo quarto com passadas de covado, estendendo os braços,
desejando a posse immediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte do espelho altear a arca
do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a elle! Mal pôde jantar. Com que
impaciencia desejava a noite! A tarde clareára; a cada momento tirava o seu «cebolão» de prata, indo olhar á
janella, com irritação, a claridade do dia que se arrastava devagar no horisonte. Engraxou elle mesmo os seus
sapatos, lustrou o cabello de banha. E antes de sahir rezou cuidadosamente o seu Breviario--porque, em
presença d'aquelle amor adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos escandalisados o
viessem perturbar: e não queria, com desleixos de devoção, dar-lhes razão de queixa.
Ao entrar na rua d'Amelia o coração bateu-lhe tão forte que teve de parar, suffocado; e pareceu-lhe melodioso
o piar das corujas na velha Misericordia, que ha tantas semanas não ouvia.
--Ditosos olhos que o vêem! Pensavamos que tinha morrido! Grande milagre!...
Estava a snr.^a D. Maria da Assumpção, as Gansosos. Arredaram as cadeiras com enthusiasmo para lhe dar
logar, admiral-o.
--Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!
O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O snr. Arthur Couceiro improvisou-lhe um
fadinho á viola:
Ora já cá temos o senhor parocho Nos chás da S. Joanneira. Isto já parece outra coisa, Volta a bella
cavaqueira!
--Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o conego. Uma casmurrice, digo eu!
Amelia não fallava, com as faces abrazadas, os olhos humidos pasmados para o padre Amaro--a quem tinham
dado a poltrona do conego, e que se repoltreava n'ella, tumido de gozo, fazendo rir as senhoras pelas pilherias
com que contava os desleixos da Vicencia.
IX
Assim recomeçou a intimidade de Amaro na rua da Misericordia. Jantava cedo, depois lia o seu Breviario; e
apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça passando rente da
botica, onde os frequentadores caturravam, com as mãos molles apoiadas ao cabo dos guardachuvas. Mal
avistava a janella da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao toque agudo da
campainha sentia ás vezes um susto indefinido d'achar a mãi já desconfiada ou Amelia mais fria!... Mesmo
por superstição entrava sempre com o pé direito.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 81
Encontrava já as Gansosos, a D. Josepha Dias; e o conego, que jantava agora muito com a S. Joanneira, e que
áquella hora, estirado na poltrona, findava a sua somneca, dizia-lhe bocejando:
Amaro ia sentar-se ao pé d'Amelia que costurava á mesa; o olhar penetrante que se trocavam era todos os dias
como o mutuo juramento mudo que o seu amor crescera desde a vespera; e ás vezes mesmo, debaixo da mesa,
roçavam os joelhos com furor. Começava então a «cavaqueira». Eram sempre os mesmos interessesinhos, as
questões que iam na Misericordia, o que dissera o senhor chantre, o conego Campos que despedira a criada, o
que se rosnava da mulher do Novaes...
--Mais amor do proximo! resmungava o conego mexendo-se na poltrona. E com um arrôto curto tornava a
cerrar as palpebras.
Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amelia immediatamente abria a mesinha para a partida
de manilha: os parceiros eram a Gansoso, D. Josepha, o parocho: e como Amaro jogava mal, Amelia, que era
mestra, sentava-se por detraz d'elle para o «guiar». Logo ás primeiras vasas havia altercações. Então Amaro
voltava o rosto para Amelia, tão perto que confundiam os seus halitos.
O seu braço roçava o hombro do parocho: Amaro sentia o cheiro da agua de colonia que ella usava com
exagero.
Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João Eduardo, mordicando o bigode, contemplava-a com paixão;
Amelia, para se desembaraçar d'aquelles dois olhos langorosos fitos n'ella, tinha-lhe dito por fim «que até era
indecente, diante do parocho que era de ceremonia, estar assim a cocal-a toda a noite».
--Ó snr. João Eduardo, vá conversar com a mamã, senão têmol-a aqui têmol-a a dormir.
E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S. Joanneira, que, de lunetas na ponta do nariz, fazia somnolentamente a
sua meia.
Depois do chá Amelia sentava-se ao piano. Causava então enthusiasmo em Leiria uma velha canção
mexicana, a Chiquita. Amaro achava-a de appetite; e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos,
apenas Amelia começava com muita languidez tropical:
Mas Amaro amava sobretudo a outra estrophe, quando Amelia, com os dedos frouxos no teclado, o busto
deitado para traz, rolando os olhos ternos, em movimentos dôces de cabeça, dizia toda voluptuosa, syllabando
o hespanhol:
Si á tua ventana llega Una paloma, Trata-la com cariño, Que es mi persona.
Mas as velhas reclamavam-o para continuar a manilha, e elle ia sentar-se, cantarolando as ultimas notas, com
o cigarro ao canto da boca, os olhos humidos de felicidade.
Ás sextas-feiras era a grande partida. A snr.^a D. Maria da Assumpção apparecia sempre com o seu bello
vestido de sêda preta: e como era rica e tinha parentela fidalga davam-lhe com deferencia o melhor logar ao
pé da mesa--que ella ia occupar, meneando pretenciosamente os quadris, com ruge-ruges de sêda. Antes do
chá a S. Joanneira levava-a sempre ao seu quarto, onde guardava para ella uma garrafa de geropiga velha: e
alli as duas amigas tagarellavam muito tempo, sentadas em cadeirinhas baixas. Depois Arthur Couceiro, cada
dia mais chupado e mais tisico, cantava o fado novo que compuzera, chamado o Fado da Confissão; eram
quadras feitas para regalar aquella piedosa reunião de saias e de batinas:
Na capellinha do amor, No fundo da sacristia, Ao senhor padre Cupido Confessei-me n'outro dia...
Vinha depois a confissão de peccadinhos dôces, um acto de contrição de amor, uma penitencia terna:
Seis beijinhos de manhã, De tarde um abraço só... E p'ra acalmar dôces chammas Jejuar a pão de ló.
Aquella composição galante e devota fôra muito apreciada na sociedade ecclesiastica de Leiria. O senhor
chantre pedira uma cópia, e perguntára, referindo-se ao poeta:
E informado que era o escrevente da administração, fallou d'elle com tanto apreço á esposa do senhor
governador civil, que Arthur obteve a gratificação de oito mil reis, que havia annos implorava.
Áquellas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua ultima pilheria era furtar beijos á snr.^a D. Maria da
Assumpção; a velha escandalisava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revez um olhar
guloso. Depois o Libaninho desapparecia um momento, e entrava com uma saia d'Amelia vestida, uma touca
da S. Joanneira, fingindo uma chamma lubrica por João Eduardo--que, entre as risadas agudas das velhas,
recuava, muito escarlate. Brito e Natario vinham ás vezes: formava-se então um grande quino. Amaro e
Amelia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos collados, ambos vermelhos, permaneciam
vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.
Amaro sahia sempre de casa da S. Joanneira mais apaixonado por Amelia. Ia pela rua devagar, ruminando
com gozo a sensação deliciosa que lhe dava aquelle amor--uns certos olhares d'ella, o arfar desejoso do seu
peito, os contactos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque gostava de pensar
n'ella, ás escuras, atabafado nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas
successivas que ella lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra flôr, até que ficava como
embriagado d'orgulho: era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o a elle, a elle padre, o eterno
excluido dos sonhos femininos, o sêr melancollico e neutro que ronda como um sêr suspeito á beira do
sentimento! Á sua paixão misturava-se então um reconhecimento por ella; e com as palpebras cerradas
murmurava:
Mas na sua paixão havia ás vezes grandes impaciencias, Quanto tinha estado, durante tres horas da noite,
recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade que se exhalava de todos os seus movimentos,--ficava tão
carregado de desejos que necessitava conter-se «para não fazer um disparate alli mesmo na sala, ao pé da
mãi». Mas depois, em casa, só, torcia os braços de desespero: queria-a alli de repente, offerecendo-se ao seu
desejo: fazia então combinações--escrever-lhe-hia, arranjariam uma casita discreta para se amarem,
planeariam um passeio a alguma quinta! Mas todos aquelles meios lhe pareciam incompletos e perigosos, ao
recordar o olho finorio da irmã do conego, as Gansosos tão mexeriqueiras! E diante d'aquellas difficuldades
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 83
que se erguiam como as muralhas successivas d'uma cidadella, voltavam as antigas lamentações: não ser
livre! não poder entrar claramente n'aquella casa, pedil-a á mãi, possuil-a sem peccado, commodamente!
Porque o tinham feito padre? Fôra «a velha pêga» da marqueza de Alegros! Elle não abdicára voluntariamente
a virilidade do seu peito! Tinham-o impellido para o sacerdocio como um boi para o curral!
Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas accusações mais longe, contra o Celibato e a Igreja:
porque prohibia ella aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que até têm
os animaes? Quem imagina que desde que um velho bispo diz--serás casto--a um homem novo e forte, o seu
sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina--accedo--dita a tremer pelo seminarista assustado,
será o bastante para conter para sempre a rebellião formidavel do corpo? E quem inventou isso? Um concilio
de bispos decrepitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das suas escólas, mirrados como
pergaminhos, inuteis como eunucos! Que sabiam elles da Natureza e das suas tentações? Que viessem alli
duas, tres horas para o pé da Ameliasinha, e veriam, sob a sua capa de santidade, começar a revoltar-se-lhe o
desejo! Tudo se illude e se evita, menos o amor! E se elle é fatal, porque impediram então que o padre o sinta,
o realise com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o vá procurar pelas viellas obscenas!--Porque a
carne é fraca!
A carne! Punha-se então a pensar nos tres inimigos da alma--Mundo, Diabo e Carne. E appareciam á sua
imaginação em tres figuras vivas: uma mulher muito formosa; uma figura negra d'olho de braza e pé de cabra;
e o mundo, coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavallos, palacetes)--de que lhe parecia uma personificação
sufficiente o senhor conde de Ribamar! Mas que mal tinham elles feito á sua alma? O diabo nunca o vira; a
mulher formosa amava-o e era a unica consolação da sua existencia; e do mundo, do senhor conde, só
recebera protecção, benevolencia, tocantes apertos de mão... E como poderia elle evitar as influencias da
Carne e do Mundo? A não ser que fugisse, como os santos d'outr'ora, para os areaes do deserto e para a
companhia das feras! Mas não lhe diziam os seus mestres no seminario que elle pertencia a uma Igreja
militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção d'um serviço santo.--Não comprehendia, não
comprehendia!
Procurava então justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A Biblia está cheia de nupcias!
Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro, com a
cabeça coberta de faxas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro branco; os levitas batem em discos
de prata, gritam o nome de Deus; abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar passar a caravana que leva
os bem esposados; e as arcas de sandalo onde vão os thesouros do dote rangem, amarradas com cordas de
purpura, sobre o dorso dos camêlos! Os martyres no circo casam-se n'um beijo, sob o bafo dos leões, ás
acclamações da plebe! Jesus mesmo não vivêra sempre na sua santidade inhumana; era frio e abstracto nas
ruas de Jerusalem, nos mercados do Bairro de David; mas lá tinha o seu logar de ternura e de abandono em
Bethania, sob os sycomoros do Jardim de Lazaro; alli, emquanto os magros nazarenos seus amigos bebem o
leite e conspiram á parte, elle olha defronte os tectos dourados do templo, os soldados romanos que jogam o
disco ao pé da Porta de Ouro, os pares amorosos que passam sob os arvoredos de Gethesemani--e pousa a mão
sobre os cabellos louros de Martha, que ama e fia a seus pés!
O seu amor era pois uma infracção canonica, não um peccado da alma: podia desagradar ao senhor chantre,
não a Deus: seria legitimo n'um sacerdocio de regra mais humana. Lembrava-se de se fazer protestante: mas
onde, como? Parecia-lhe mais extraordinariamente impossivel que transportar a velha Sé para cima do monte
do Castello.
Encolhia então os hombros, escarnecendo toda aquella vaga argumentação interior. «Philosophia e palhada»!
Estava doido pela rapariga,--era o positivo. Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma... E o
senhor bispo se não fosse velho faria o mesmo, e o Papa faria o mesmo!
Eram ás vezes tres horas da manhã, e ainda passeava no quarto, fallando só.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 84
Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite pela rua das Sousas, tinha visto na janella do parocho uma
luz amortecida! Porque ultimamente João Eduardo, como todos que têm um desgosto amoroso, tomára o
habito triste de andar até tarde pelas ruas.
O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebêra a sympathia de Amelia pelo parocho. Mas
conhecendo a sua educação e os habitos devotos da casa, attribuia aquellas attenções quasi humildes com
Amaro ao respeito beato pela sua batina de padre, pelos seus privilegios de confessor.
Instinctivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fôra inimigo de padres! achava-os um «perigo
para a civilisação e para a liberdade»; suppunha-os intrigantes, com habitos de luxuria, e conspirando sempre
para restabelecer «as trevas da meia idade»; odiava a confissão que julgava uma arma terrivel contra a paz do
lar; e tinha uma religião vaga--hostil ao culto, ás rezas, aos jejuns, cheia de admiração pelo Jesus poetico,
revolucionario, amigo dos pobres, e «pelo sublime espirito de Deus que enche todo o Universo»! Só desde
que amava Amelia é que ouvia missa, para agradar á S. Joanneira.
E desejaria sobretudo apressar o casamento para tirar Amelia d'aquella sociedade de beatas e padres, receando
ter mais tarde uma mulher que tremesse do inferno, passasse horas a rezar estações na Sé, e se confessasse aos
padres «que arrancam ás confessadas os segredos d'alcova»!
Quando Amaro voltára a frequentar a rua da Misericordia, ficou contrariado. «Cá temos outra vez o
marmanjo»! pensou. Mas que desgosto, quando reparou que Amelia tratava agora o parocho com uma
familiaridade mais terna, que a presença d'elle lhe dava visivelmente uma animação singular, «e que havia
uma especie de namoro»! Como ella se fazia vermelha, mal elle entrava! Como o escutava, com uma
admiração babosa! Como arranjava sempre a ficar ao pé d'elle nas partidas de quino!
Uma manhã, mais inquieto, veio á rua da Misericordia,--e emquanto a S. Joanneira tagarellava na cozinha,
disse bruscamente a Amelia:
--Menina Amelia, sabe? Está-me a dar um grande desgosto com essas maneiras com que trata o senhor padre
Amaro.
--Que maneiras?! Ora essa! então como quer que o trate? É um amigo da casa, esteve aqui d'hospede...
--Ah! mas socegue. Se isso o quezila, verá. Não me torno a chegar ao pé do homem.
João Eduardo, tranquillisado, raciocinou--que «não havia nada». Aquelles modos eram excessos de beaterio.
Enthusiasmo pela padraria!
Amelia decidiu então disfarçar o que lhe ia no coração: sempre considerára o escrevente um pouco tapado--e
se elle percebêra, que fariam as Gansosos tão finas, e a irmã do conego que era cortida em malicia! Por isso
mal sentia Amaro na escada, d'ahi por diante, tomava uma attitude distrahida, muito artificial: mas, ai! apenas
elle lhe fallava com a sua voz suave ou voltava para ella aquelles olhos negros que lhe faziam correr
estremeções nos nervos,--como uma ligeira camada de neve que se derrete a um sol muito forte a sua attitude
fria desapparecia, e toda a sua pessoa era uma expressão continua de paixão. Ás vezes, absorvida no seu
enlevo, esquecia que João Eduardo estava alli; e ficava toda surprehendida quando ouvia a um canto da sala a
sua voz melancolica.
Ella sentia de resto que as amigas da mãi envolviam a sua «inclinação» pelo parocho n'uma approvação muda
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 85
e affavel. Elle era, como dizia o conego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos olhares das velhas
exhalava-se uma admiração por elle que fazia ao desenvolvimento da paixão d'Amelia uma atmosphera
favoravel. D. Maria da Assumpção dizia-lhe ás vezes ao ouvido:
E todas ellas achavam João Eduardo «um presta-p'ra-nada»! Amelia então já não disfarçava a sua indifferença
por elle: as chinelas que lhe andava a bordar tinham ha muito desapparecido do cesto do trabalho, e já não
vinha á janella vel-o passar para o cartorio.
A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de João Eduardo--na alma, que, como elle dizia, lhe andava
mais negra que a noite.
--A rapariga gosta do padre, tinha elle concluido. E á dôr da sua felicidade destruida juntava-se a afflicção
pela honra d'ella ameaçada.
Uma tarde, tendo-a visto sahir da Sé, esperou-a adiante da botica, e muito decidido:
--Eu quero-lhe fallar, menina Amelia... Isto não póde continuar assim... Eu não posso... A menina traz namoro
com o parocho!
--Ouça, menina Amelia. Eu não a quero insultar, mas é que não sabe... Tenho andado, que até se me parte o
coração!--E perdeu a voz, de commovido.
--Pela minha salvação!... Não ha nada!... Mas tambem lhe digo, se torna a fallar em tal, ou a insultar-me,
conto tudo á mamã, e o senhor escusa de nos voltar a casa.
Era uma velha, que levantára a cortina de cassa n'uma janella baixa, e espreitava com olhinhos reluzentes e
gulosos, a face toda resequida encostada sôfregamente á vidraça. Separaram-se então--e a velha desconsolada
deixou cahir a cortina.
Amelia n'essa noite--emquanto as senhoras discutiam com algazarra os missionarios que então prégavam na
Barrosa--disse baixo a Amaro, picando vivamente a costura:
--Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para mim nem esteja tão chegado... Já houve quem reparasse.
Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assumpção; e, apesar da recommendação d'Amelia,
os seus olhos não se despregavam d'ella, n'uma interrogação muda e anciosa, já assustado que as
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 86
desconfianças da mãi ou a malicia das velhas «andassem armando escandalo». Depois do chá, no rumor das
cadeiras que se accommodavam ao quino, perguntou-lhe rapidamente:
--Quem reparou?
Desde então cessaram as olhadellas dôces, os logares chegadinhos á mesa, os segredos; e sentiam um gozo
picante em affectar maneiras frias, tendo a certeza vaidosa da paixão que os inflammava. Era para Amelia
delicioso--emquanto o padre Amaro afastado tagarellava com as senhoras--adorar a sua presença, a sua voz,
as suas graças, com os olhos castamente applicados ás chinelas do João Eduardo que muito astutamente
recomeçára a bordar.
Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o parocho installado alli todas as noites,
com a face próspera, a perna traçada, gozando a veneração das velhas. «A Ameliasinha, sim, agora portava-se
bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...»: mas elle sabia que o parocho a desejava, a «cocava»; e apesar do juramento
d'ella pela sua salvação, da certeza que não havia nada--temia que ella fosse lentamente penetrada por
aquella admiração caturra das velhas, para quem o senhor parocho era um anjo: só se contentaria em arrancar
Amelia (já empregado no governo civil) áquella casa beata: mas essa felicidade tardava a chegar--e sahia
todas as noites da rua da Misericordia mais apaixonado, com a vida estragada de ciumes, odiando os padres,
sem coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas ruas até tarde; ás vezes voltava ainda vêr as
janellas fechadas da casa d'ella; ia depois á alameda ao pé do rio, mas o frio ramalhar das arvores sobre a agua
negra entristecia-o mais; vinha então ao bilhar, olhava um momento os parceiros carambolando, o marcador,
muito esguedelhado, que bocejava encostado ao reste. Um cheiro de mau petroleo suffocava. Sahia; e
dirigia-se, devagar, á redacção da Voz do Districto.
O redactor da Voz do Districto, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente o
Rachitico, por ter uma forte corcunda no hombro e uma figurinha enfezada d'hectico. Era extremamente sujo;
e a sua carita de femea, amarellada, d'olhos depravados, revelava vícios antigos, muito torpes. Tinha feito
(dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: «Se vossê não fosse um
rachitico, quebrava-lhe os ossos»--que, vendo na sua corcunda uma protecção sufficiente, ganhára um descaro
sereno. Era de Lisboa, o que o tornava mais suspeito aos burguezes sérios: attribuia-se a sua voz rouca e acre
«a fartar-lhe as campainhas»: e os seus dedos queimados terminavam em unhas muito compridas--porque
tocava guitarra.
A Voz do Districto fôra creada por alguns homens, a quem chamavam em Leiria o grupo da Maia,
particularmente hostis ao senhor governador civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do grupo,
tinha encontrado em Agostinho, como elle dizia, o homem que se precisa: o que o grupo precisava era um
patife com orthographia, sem escrupulos, que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calumnias, as
allusões que elles traziam informemente á redacção, em apontamentos. Agostinho era um estylista de vilezas.
Davam-lhe quinze mil reis por mez e casa de habitação na redacção--um terceiro andar desmantelado n'uma
viella ao pé da Praça.
Agostinho fazia o artigo de fundo, as locaes, a Correspondencia de Lisboa; e o bacharel Prudencio escrevia o
folhetim litterario sob o titulo de Palestras Leirienses: era um moço muito honrado, a quem o snr. Agostinho
era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se todos os sabbados
fraternalmente á mesma banca, a revêr as provas da sua prosa--prosa tão florida de imagens, que se
murmurava na cidade, ao lêl-a: «Que opulencia! Que opulencia, Jesus!»
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 87
João Eduardo reconhecia tambem que o Agostinho era «um trastesito»; não se atreveria a passear com elle de
dia nas ruas; mas gostava de ir para a redacção, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho fallar de Lisboa,
do tempo que lá vivêra empregado na redacção de dois jornaes, no theatro da rua dos Condes, n'uma casa de
penhores, e em outras instituições. Estas visitas eram segredos!
Áquella hora da noite a sala da typographia no primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se aos
sabbados); e João Eduardo encontrava em cima Agostinho abancado, com uma velha jaqueta de pelles cujos
colchetes de prata tinham sido empenhados--ruminando, curvado, á luz d'um medonho candieiro de petroleo,
sobre longas tiras de papel: estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto d'uma caverna.
João Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a velha guitarra de Agostinho
repenicava o fado corrido. O jornalista no emtanto, com a testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente:
«a coisa não lhe sahia catita»: e como nem o fadinho o inspirava, erguia-se, ia a um armario engulir um
copinho de genebra que gargarejava nas fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente, accendia o
cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:
Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa, porque terminava por dizer, com odio:
Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu quartilho na taberna do tio João, á
Mouraria, com a Anna alfaiata ou com o Bigodinho--ouvindo o João das Biscas de cigarro ao canto da boca, o
olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a morte da Sophia!
Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João Eduardo os seus artigos, muito alto. E João
interessava-se--porque essas «producções», sendo ultimamente sempre «desandas ao clero», correspondiam ás
suas preoccupações.
Era por esse tempo que, em virtude da famosa questão da Misericordia, o doutor Godinho se tornára muito
hostil ao cabido e «á padraria». Sempre detestára padres; tinha uma má doença de figado, e como a Igreja o
fazia pensar no cemiterio, odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da mortalha. E Agostinho, que
tinha um profundo deposito de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho, exagerava as suas verrínas:
mas, com o seu fraco litterario, cobria o vituperio de tão espessas camadas de rhetorica que, como dizia o
conego Dias, «aquillo era ladrar, não era morder»!
Uma d'essas noites João Eduardo encontrou Agostinho todo enthusiasmado com um artigo que compuzera de
tarde, e que lhe «sahira cheio de piadas á Victor Hugo»!
Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor Godinho. Depois de celebrar as
virtudes do doutor, «esse tão respeitavel chefe de familia» e a sua eloquencia no tribunal que «arrancára
tantos desventurados ao cutelo da lei», o artigo, tomando um tom roncante, apostrophava Christo:--«Quem te
diria a ti (bradava Agostinho), ó immortal Crucificado! quem te diria, quando no alto do Golgotha expiravas
exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, á tua sombra, seria expulso d'um estabelecimento de
caridade o doutor Godinho,--a alma mais pura, o talento mais robusto...»--E as virtudes do doutor Godinho
voltavam, em passo de procissão, solemnes e sublimadas, arrastando caudas de adjectivos nobres.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 88
Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se directamente a
Roma:--«É no seculo XIX que vindes atirar á face de Leiria liberal os dictames do Syllabus! Pois bem.
Quereis a guerra? Tel-a-heis!»
E retomando a leitura:--«Quereis a guerra? Tel-a-heis! Levantaremos bem alto o nosso estandarte, que não é o
da demagogia, comprehendei-o bem! e arvorando-o, com braço firme, no mais alto baluarte das liberdades
publicas, gritaremos á face de Leiria, á face da Europa: Filhos do seculo XIX! ás armas! Ás armas pelo
progresso!»
João Eduardo, que ficára um momento calado, disse então, levantando as suas expressões em harmonia com a
prosa sonora de Agostinho:
Uma phrase tão litteraria surprehendeu o jornalista: fitou João Eduardo, disse:
--E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma desanda aos padres... E eu tocava-lhes os pôdres. Eu é que os
conheço!...
O doutor Godinho ainda na vespera lhe recommendára:--«Em tudo que cheirar a padre, para baixo! Havendo
escandalo, conta-se! não havendo, inventa-se!»
Tinha avidez d'elle, porque sabendo como João Eduardo vivia na intimidade da «panellinha canonica da S.
Joanneira» suppunha-o no segredo de infamias especiaes.
--Qual! affirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da redacção. Quem diabo vai saber?
Succedeu na noite seguinte que João Eduardo surprehendeu o padre Amaro resvalando sorrateiramente um
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 89
segredinho a Amelia--e ao outro dia appareceu de tarde na redacção com a pallidez d'uma noite velada,
trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escriptas n'uma letra de cartorio. Era o artigo, e intitulava-se:
Os modernos phariseus!--Depois de algumas considerações, cheias de flôres, sobre Jesus e o Golgotha, o
artigo de João Eduardo era, sob allusões tão diaphanas como teias d'aranha, um vingativo ataque ao conego
Dias, ao padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natario!... Todos tinham a sua dóse, como exclamou cheio
de jubilo o Agostinho.
--É que está forte, diabo! É como se tivesse os nomes proprios! Mas descansa, eu arranjarei.
Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho--que o achou «uma catilinaria atroz». Entre o doutor
Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo: elle reconhecia em geral a necessidade da religião entre as massas;
sua esposa, a bella D. Candida, era além d'isso d'inclinações devotas, e começava a dizer que aquella guerra
do jornal ao clero lhe causava grandes escrupulos: e o doutor Godinho não queria provocar odios
desnecessarios entre os padres, prevendo que o seu amor da paz domestica, os interesses da ordem e o seu
dever de christão o forçariam bem cedo a uma reconciliação,--«muito contra as suas opiniões, mas...»
--Isto não póde ir como artigo da redacção, deve apparecer como communicado. Cumpra estas ordens.
Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, á volta da Sé, estivera occupado em compôr
laboriosamente uma carta a Amelia. Impaciente, como elle dizia, «com aquellas relações que não andavam
nem desandavam, que era olhar e apertos de mão e d'alli não passava»--tinha-lhe dado uma noite, á mesa do
quino, um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a tinta azul:--Desejo encontral-a só, porque tenho muito
que lhe fallar. Onde póde ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso affecto. Ella não respondera:--E
Amaro despeitado, descontente tambem por não a ter visto n'essa manhã á missa das nove, resolveu «pôr tudo
a claro n'uma carta de sentimento»: e preparava os periodos sentidos que lhe deviam ir revolver o coração,
passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado sobre o Diccionario de
synonymos.
«Ameliasinha do meu coração: (escrevia elle) Não posso atinar com as razões maiores que a não deixaram
responder ao bilhetinho que lhe dei em casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade que
tinha de lhe fallar a sós, e as minhas intenções eram puras, e na innocencia d'esta alma que tanto lhe quer e
que não medita o peccado.
«Deve ter comprehendido que lhe voto um fervente affecto, e pela sua parte me parece, (se não me enganam
esses olhos que são os pharoes da minha vida, e como a estrella do navegante) que tambem tu, minha
Ameliasinha, tens inclinação por quem tanto te adora; pois que até outro dia, quando o Libano quinou com os
seis primeiros numeros, e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com
tanta ternura, que até me pareceu que o céo se abria e que eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Porque não
respondeste pois? Se pensas que o nosso affecto póde ser desagradavel aos nossos anjos da guarda, então te
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 90
direi que maior peccado commettes trazendo-me n'esta incerteza e tortura, que até na celebração da missa
estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa elevar a minha alma no divino sacrificio. Se eu visse que
este mutuo affecto era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh minha bem amada filha, façamos o sacrificio a
Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha alma e vejo
n'ella a brancura dos lirios. E o teu amor tambem é puro como a tua alma, que um dia se unirá á minha, entre
os córos celestes, na bemaventurança. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliasinha, que até às
vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos! Responde pois, e dize se não te parece que poderia
arranjar-se a vermo-nos no Morenal, pela tarde. Pois eu anceio por te exprimir todo o fogo que me abraza,
bem como fallar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo
caminho do amor, até aos extases d'uma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a offerta do coração
do teu amante e pai espiritual
«Amaro».
Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ella bem dobrada no bolso da batina foi á rua da
Misericordia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de Natario, discutindo.
--Quem está por cá?--perguntou á Ruça, que alumiava, encolhida no seu chale.
Galgou os degraus, e á porta da sala, com o seu capote ainda pelos hombros, tirando alto o chapéo:
--O quê? perguntou Amaro. E reparando no silencio, nos olhos cravados n'elle:--O que é? Alguma coisa de
novo?
Era papel em que elle não puzera os olhos, disse. Então as senhoras indignadas romperam:
--Ai! é um desafôro!
Natario, com as mãos enterradas nas algibeiras, contemplava o parocho com um sorrisinho sarcastico,
soltando d'entre os dentes:
Amaro reparava, já aterrado, na pallidez d'Amelia, nos seus olhos muito vermelhos. E emfim o conego
erguendo-se pesadamente:
--Têsa!
A S. Joanneira deu mais luz ao candieiro: o conego Dias accommodou-se á mesa, desdobrou o jornal, pôz os
oculos cuidadosamente, e, com o lenço do rapé nos joelhos, começou a leitura do Communicado na sua voz
pachorrenta.
O principio não interessava: eram periodos enternecidos em que o liberal exprobrava aos phariseus a
crucifixão de Jesus:--«Por que o matasteis? (exclamava elle). Respondei!» E os phariseus
respondiam:--«Matamol-o porque elle era a liberdade, a emancipação, a aurora de uma nova era», etc. O
liberal então esboçava, a largos traços, a noite do Calvario:--«Eil-o pendente da cruz, traspassado de lanças, a
sua tunica jogada aos dados, a plebe infrene», etc. E, voltando a dirigir-se aos phariseus infelizes, o liberal
gritava-lhes com ironia:--«Contemplai a vossa bella obra!» Depois, por uma gradação habil, o liberal descia
de Jerusalem a Leiria:--«Mas pensam os leitores que os phariseus morreram? Como se enganam! Vivem!
conhecemol-os nós; Leiria está cheia d'elles, e vamos apresental-os aos leitores...»
--Agora é que ellas começam, disse o conego olhando para todos em redor, por cima dos oculos.
Com effeito «ellas começavam»; era, n'uma fórma brutal, uma galeria de photographias ecclesiasticas: a
primeira era a do padre Brito:--«Vêde-o, (exclamava o liberal) grosso como um touro, montado na sua egua
castanha...»
--Até a côr da egua! murmurou com uma indignação piedosa a snr.^a D. Maria da Assumpção.
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando
devagar os joelhos.
«...Especie de caceteiro», continuava o conego que lia aquellas phrases crueis com uma tranquillidade dôce,
«desabrido de maneiras, mas que não desgosta de se dar á ternura, e, segundo dizem os bem informados,
escolheu para Dulcinêa a propria e legitima esposa do seu regedor...»
--Qual liberal! Quem eu racho é o doutor Godinho. O doutor Godinho é que é o dono do jornal. O doutor
Godinho é que eu racho!
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas á côxa.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 92
Lembraram-lhe o dever christão de perdoar as injurias. A S. Joanneira com unção citou a bofetada que Jesus
Christo supportou. Devia imitar Christo.
--Credo, senhor padre Brito, credo! exclamou a irmã do conego recuando a cadeira.
--Homem, ninguem puxou por vossê, disse severamente Amaro. E com um tom pedagogo:--Apenas lhe
lembrarei, como devo, que em taes casos, quando se diz a blasphemia má, o reverendo padre Scomelli
recommenda confissão geral e dois dias de recolhimento a pão e agua.
--Bem, bem, resumiu Natario. O Brito commetteu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a Deus, e a
misericordia de Deus é infinita!
Houve uma pausa commovida em que se ouviu a snr.^a D. Maria da Assumpção murmurar «que ficára sem
pinga de sangue»; e o conego, que durante a catastrophe pousára os oculos sobre a mesa, retomou-os, e
continuou serenamente a leitura:
«...Desconfiai d'elle: se puder trahir-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos, folga: as suas intrigas trazem o
cabido n'uma confusão porque é a vibora mais damninha da diocese, mas com tudo isso muito dado á
jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro.»
--É para que vossê veja, disse Natario erguendo-se lívido. Que lhe parece? Vossê sabe que eu, quando fallo
das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do meu canteiro. É um gracejo. Pois senhores, até vem
com isto!--E com um sorriso macilento, de fel:--mas ámanhã hei de saber quem é! Ólaré! Eu hei de saber
quem é!
--Deite ao desprezo, senhor padre Natario, deite ao desprezo, disse a S. Joanneira pacificadora.
--Obrigado, minha senhora, acudiu Natario curvando-se com uma ironia rancorosa--obrigado! Cá recebi!
Mas a voz imperturbavel do conego retomára a leitura. Agora era o retrato d'elle, traçado com odio:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 93
«...Conego bojudo e glutão, antigo caceteiro do senhor D. Miguel, que foi expulso da freguezia de Ourem,
outr'ora mestre de Moral n'um seminario e hoje mestre de immoralidade em Leiria...»
--Vossê pensa que me dá isto cuidado? disse elle. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a Deus! Deixar
rosnar quem rosna!
--Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de brio!
--Ora, mana! replicou o conego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguem lhe pede a
sua opinião!
--Nem preciso que m'a peçam! gritou ella impertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e como quero.
Se não tem vergonha, tenho-a eu!
--Menos lingua, mana, menos lingua! disse o conego fechando os seus oculos. Olhe não lhe cáiam os dentes
postiços!
--Seu malcriado!
Recearam logo que lhe désse o flato: a S. Joanneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o quarto, em
baixo, amparando-a, com palavras brandas:
--Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escandalo! Nossa Senhora te valha!
--Deixe-a lá, rosnou o conego, deixe-a lá! Aquillo passa-lhe. São calores!
Amelia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a snr.^a D. Maria da Assumpção e a
Gansoso surda, que iam tambem «socegar a D. Josepha, coitadita»! Os padres agora estavam sós; e o conego
voltando-se para Amaro:--Ouça vossê, que é a sua vez--disse retomando o jornal.
«...Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, parochos por influencias de condes da capital, vivendo
na intimidade das familias de bem onde ha donzellas inexperientes, e aproveitando-se da influencia do seu
sagrado ministerio para lançar na alma da innocente a semente de chammas criminosas!»
«...Dize, sacerdote de Christo, onde queres arrastar a impolluta virgem? Queres arrastal-a aos lodaçaes do
vicio? Que vens fazer aqui ao seio d'esta respeitavel familia? Porque rondas em volta da tua prêsa como o
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 94
milhafre em torno da innocente pomba? Para traz, sacrilego! Murmuras-lhe seductoras phrases, para a
desviares do caminho da honra; condemnas á desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira
offerecer sua mão trabalhadora; e vaes-lhe preparando um horroroso futuro de lagrimas. E tudo para quê? Para
saciares os torpes impulsos de tua criminosa lascivia!...»
«...Mas acautela-te, presbytero perverso!» E a voz do conego tinha tons cavos ao soltar aquellas apostrophes.
«Já o archanjo levanta a espada da justiça. E sobre ti, e teus cumplices, já a opinião da illustrada Leiria fita seu
olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infamia.
Tremei, sectarios do Syllabus! Cuidado, sotainas negras!»
O padre Amaro tinha os olhos ennevoados de duas lagrimas de raiva: passou devagar o lenço pela testa,
soprou, disse com os beiços a tremer:
--Eu, collegas, nem sei o que hei de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto é a calumnia das calumnias.
--É o que eu tinha dito, acudiu Natario, é necessario fallar ao secretario geral...
--Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Auctoridade! O que é, é rachal-o! Eu bebia-lhe o sangue!...
--E vossê, Natario, é que deve ir ao secretario geral. Vossê tem lingua, tem logica.
--Se os collegas decidem, disse Natario curvando-se, vou. E hei de lh'as cantar, á auctoridade!
Amaro ficára junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o Libaninho murmurava:
--Ai, filhos, eu não é nada commigo, mas só de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a vergar as pernas. Ai,
filhos, um desgosto assim...
Mas sentiram a voz da snr.^a Joaquina Gansoso subindo a escada; e o conego immediatamente com uma voz
prudente:
--Collegas, o melhor, diante das senhoras, é não se fallar mais n'isto. Bem basta o que basta.
D'ahi a momentos, apenas Amelia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que estava com uma forte dôr de
cabeça, e despediu-se das senhoras.
--Sim, minha senhora, disse elle embrulhando-se no seu capote, não me estou a sentir bem. Boas noites... E
vossê, Natario, appareça ámanhã pela Sé á uma hora.
Apertou a mão de Amelia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e molle,--e sahiu com os hombros
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 95
vergados.
--Se ia pallido, ámanhã estará córado. E agora quero dizer uma coisa: esse aranzel do jornal é a calumnia das
calumnias! Eu não sei quem o escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são infamias. É pateta e
maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e como já se tagarellou bastante sobre o caso,
a senhora mande vir o chá. E o que lá vai, lá vai, não se falla mais na questão.
--Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguem, não ha necessidade de estar aqui com cara de
pezames. E tu, pequena, senta-te ao instrumento e repenica-me essa Chiquita!
O secretario geral, o snr. Gouvêa Ledesma, antigo jornalista, e, em annos mais expansivos, auctor do livro
sentimental Devaneios de um sonhador, estava então dirigindo o districto na ausencia do governador civil.
Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representára de galan no theatro academico, em Coimbra,
com muito applauso; e tomára a esse tempo o habito de passear á tarde na Sophia, com o ar fatal com que no
palco arrepellava os cabellos, ou levava, nos transes d'amor, o lenço aos olhos. Depois em Lisboa arruinára
um pequeno patrimonio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Matta, muita calça no Xafredo e
perniciosas convivencias litterarias: aos trinta annos estava pobre, saturado de mercurio e auctor de vinte
folhetins romanticos na Civilisação: mas tornára-se tão popular, que era conhecido nos lupanares e nos cafés
por um cognome carinhoso--era o Bibi. Julgando então que conhecia a fundo a existencia, deixou crescer as
suiças, começou a citar Bastiat, frequentou as camaras e entrou na carreira administrativa; chamava agora á
republica que tanto exaltára em Coimbra uma absurda chimera; e Bibi era um pilar das instituições.
Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia ás senhoras, nas soirées do deputado Novaes,--«que
estava cansado da vida». Rosnava-se que a esposa do bom Novaes andava doida por elle: e em verdade Bibi
escrevêra a um amigo da capital:--«emquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a
Novaesitos».
Levantava-se tarde; e n'essa manhã, de robe-de-chambre á mesa do almoço, partia os seus ovos quentes, lendo
com saudade no jornal a narração apaixonada d'uma pateada em S. Carlos, quando o criado,--um gallego que
trouxera de Lisboa--veio dizer que «estava alli um cura».
--Um cura? Que entre para aqui!--E murmurou para sua satisfação pessoal:--O Estado não deve fazer esperar a
Igreja.
Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natario que entrava, muito composto, na sua longa batina de
lustrina.
--Uma cadeira, Trindade! Toma uma chavena de chá, senhor cura? Soberba manhã, hein? Estava justamente
pensando em v. s.^a--isto é, estava pensando no clero em geral... Acabava de lêr as peregrinações que se estão
fazendo a Nossa Senhora do Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da melhor roda... É realmente
consolador vêr renascer a fé... Ainda hontem eu disse em casa do Novaes: «no fim de tudo a fé é a mola real
da sociedade». Tome uma chavena de chá... Ah! é um grande balsamo!...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 96
--Mas não! Quando digo um grande balsamo refiro-me á fé, não ao chá! Ah! ah! É boa, não?
E prolongou a sua risadinha com complacencia. Queria agradar a Natario, pelo principio que repetia muito,
com um sorriso astuto--«que quem está mettido na politica deve ter por si a padraria».
--E depois, acrescentou, como eu dizia hontem em casa do Novaes, que vantagem para as localidades!
Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois com a affluencia dos devotos está uma cidade... Grandes hoteis,
boulevards, bellas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento economico, correndo parelhas com o
renascimento religioso.
--Pois eu vinha aqui fallar a v. exc.^a a respeito d'um communicado na Voz do Districto.
--Ah! interrompeu o secretario geral, perfeitamente, li! Uma famosa verrina... Mas litterariamente, como
estylo e como imagens, que miseria!
--Eu!?
--A auctoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e implicitamente os seus sacerdotes... Que tenha
v. exc.^a em vista, eu não venho aqui em nome do clero...
--Sou apenas um pobre padre sem influencia... Venho, como particular, perguntar ao senhor secretario geral se
se póde permittir que caracteres respeitaveis da Igreja diocesana sejam assim diffamados...
--Suspenso!? Por quem é, senhor cura! Mas v. s.^a decerto não quer que eu volte aos tempos dos
corregedores-móres! Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um principio sagrado! Nem as leis de
imprensa o permittem... Mesmo querelar pelo ministerio publico porque um periodico diz duas ou tres
pilherias sobre o cabido, impossivel! Tínhamos de querelar de toda imprensa de Portugal, com excepção da
Nação e do Bem Publico! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta annos de progresso, a propria idéa
governamental? Mas nós não somos os Cabraes, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitissima luz!
Justamente o que nós queremos é luz!
--Perfeitamente. Mas então quando, pelas eleições, a auctoridade nos vier pedir o nosso auxilio, nós, vendo
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 97
--E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os senhores abbades, nós vamos trahir a
civilisação?
--Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é opposição, observou então Natario; proteger-lhe o jornal é
implicitamente proteger-lhe as manobras...
--Meu caro senhor cura, v. s.^a não está no segredo da politica. Entre o doutor Godinho e o governo civil não
ha inimizade, ha apenas um arrufo... O doutor Godinho é uma intelligencia... Vai reconhecendo que o grupo
da Maia não produz nada... O doutor Godinho aprecia a politica do governo, e o governo aprecia o doutor
Godinho.
Natario ergueu-se:
--Impossibilis est, disse o secretario. De resto acredite, senhor cura, que como particular revolto-me contra o
Communicado; mas como auctoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas creia, e póde dizel-o a
todo o clero diocesano, a Igreja catholica não tem um filho mais fervente que eu, Gouvêa Ledesma... Quero
porém uma religião liberal, de harmonia com o progresso, com a sciencia... Foram sempre as minhas idéas;
préguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no gremio... Assim, por exemplo, não acho que haja
poesia maior que a poesia do christianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Sómente lamento que elle
não arvore a bandeira da civilisação!--E o antigo Bibi, contente da sua phrase, repetia:--Sim, lamento que elle
não arvore a bandeira da civilisação... O Syllabus é impossivel n'este seculo de electricidade, senhor cura! E a
verdade é que nós não podemos querelar d'um jornal porque elle diz duas ou tres pilherias sobre o sacerdocio,
nem nos convém, por altas razões de política, escandalisar o doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
--Um criado de v. s.^a Sinto que não tome uma chavena de chá... E como vai o nosso chantre?
--S. exc.^a n'estes ultimos dias, segundo creio, tem tornado a soffrer de tonturas.
--Sinto. Uma intelligencia tambem! Grande latinista... Tenha cuidado com o degrau!...
Natario correu á Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera. Amaro passeava devagar no terraço,
com as mãos atraz das costas: tinha as olheiras batidas e a face envelhecida.
--Nada!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 98
Amaro mordeu o beiço: e emquanto Natario lhe contava, excitado, a conversação com o secretario geral, «e
como argumentára com elle, e como o homem tagarellára, tagarellára»,--a face do parocho cobria-se d'uma
sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do guardasol, a herva que crescia nas fendas
do terraço.
--Um patarata! resumiu o padre Natario com um grande gesto. Pela auctoridade não se faz nada. É escusado...
Mas a questão agora é entre mim e o liberal, padre Amaro! Eu hei de saber quem é, padre Amaro! E quem o
esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...
No emtanto João Eduardo desde o domingo triumphava: o artigo fizera escandalo: tinham-se vendido oitenta
numeros avulsos do jornal, e o Agostinho affirmára-lhe que na botica da Praça a opinião era «que o liberal
conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça»!
Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse escandalisar a S. Joanneira, desejaria ir
pelas lojas dizer bem alto--fui eu, eu é que o escrevi!--E já ruminava outro, mais terrivel, que se deveria
intitular: O diabo feito ermita, ou O sacerdocio de Leiria perante o seculo XIX!
O doutor Godinho encontrára-o na Praça, e parára com condescendencia, para lhe dizer:
--A coisa tem feito barulho. Vossê é o diabo! E a piada ao padre Brito é bem jogada. Que eu não sabia... E diz
que é bonita, a mulher do regedor...
--Não sabia, e saboreei. Vossê é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa como um
communicado. Vossê comprehende... Eu não me convém ter turras de mais com o clero... E depois lá minha
esposa tem seus escrupulos... Emfim é mulher, e é conveniente que as mulheres tenham religião... Mas no
meu fôro interior saboreei... Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra dos diabos na eleição
passada... Ah! e outra coisa, o seu negocio arranja-se. Lá para o mez que vem tem vossê o seu emprego no
governo civil.
João Eduardo foi para o cartorio, tremulo d'alegria. O snr. Nunes Ferral sahira: o escrevente aparou devagar
uma penna, começou a cópia d'uma procuração--e de repente, agarrando o chapéo, correu á rua da
Misericordia.
A S. Joanneira costurava só á janella; Amelia fôra ao Morenal; e João Eduardo, logo da porta:
--Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que lá para o mez que vem tenho o meu
emprego...
--Que me diz?...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 99
--Ai, João Eduardo! fez a S. Joanneira com um grande suspiro, que me tira um peso do coração... Que tenho
estado... Olhe, nem tenho dormido!...
João Eduardo presentiu que ella ia fallar do Communicado. Foi pôr o chapéo n'uma cadeira ao canto; e
voltando á janella, com as mãos nos bolsos:
--Aquella pouca vergonha no Districto! Que diz vossê? Aquella calumnia! Ai! tenho-me feito velha!
João Eduardo escrevera o artigo sob as solicitações do ciume, só para «enterrar» o padre Amaro; não previra o
desgosto das duas senhoras; e vendo agora a S. Joanneira com duas lagrimas no branco dos olhos, sentia-se
quasi arrependido. Disse ambíguamente:
Mas aproveitando o sentimento da S. Joanneira para servir a sua paixão, acrescentou sentando-se, chegando a
cadeira para ao pé d'ella:
--Eu nunca lhe quiz fallar d'isso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliasinha tratava o parocho com muita
familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo, ia-se
rosnando... Eu bem sei que ella, coitada, não via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que é Leiria. Que linguas,
hein!
A S. Joanneira então declarou que lhe ia fallar como a um filho: o artigo affligira-a, sobretudo por causa
d'elle, João Eduardo. Porque emfim elle podia acreditar tambem, desfazer o casamento, e que desgosto! E ella
podia dizer-lhe, como mulher de bem, como mãi, que não havia entre a pequena e o senhor parocho nada,
nada, nada! Era a rapariga que tinha aquelle genio communicativo! E o parocho tinha boas palavras, sempre
muito delicado... Que ella sempre o dissera, o senhor padre Amaro tinha maneiras que tocavam o coração...
--E olhe, não sei se me fica mal dizer-lh'o, mas a rapariga quer-lhe devéras, João Eduardo.
--E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ella... E lá do artigo que me importa a mim!
Então a S. Joanneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para ella! Ella sempre o dissera,
como rapaz de bem, não havia outro na cidade de Leiria!
O escrevente enterneceu-se:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 100
--E falle á noite á Ameliasinha, disse ao sahir. Eu venho ámanhã, e felicidade não ha de faltar...
--Louvado seja Nosso Senhor! acrescentou a S. Joanneira retomando a sua costura, com um suspiro de muito
allivio.
Apenas n'essa tarde Amelia voltou do Morenal, a S. Joanneira, que estava pondo a mesa, disse-lhe:
--Ah!...
--Ora de quê! Que se fallava muito na cidade do artigo do Districto; que se perguntava a quem alludia o
periodico com as donzellas inexperientes, e que a resposta era: «Quem ha de ser? a Amelia da S. Joanneira, da
rua da Misericordia!» O pobre João diz que tem andado tão desgostoso!... Não se atrevia, por delicadeza, a
fallar-te... Emfim...
--Mas que hei de eu fazer, minha mãi? exclamou Amelia com os olhos subitamente cheios de lagrimas
áquellas palavras que cahiam sobre os seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
--Eu digo-te isto para teu governo. Faze o que quizeres, filha. Eu bem sei que são calumnias! Mas tu sabes o
que são linguas do mundo... O que te posso dizer é que o rapaz não acreditou no periodico. Que era isso que
me dava cuidado!... Credo! tirou-me o somno... Mas não, diz que não lhe importa o artigo, que te quer da
mesma maneira, e está a arder por que se faça o casamento... E eu por mim o que fazia, para calar toda essa
gente, era casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por elle, bem sei. Deixa lá! Isso vem depois. O João é
bom rapaz, vai ter o emprego...
--Pois foi o que elle me veio dizer tambem... Esteve com o doutor Godinho, diz que lá para o fim do mez está
empregado... Emfim tu fazes o que entenderes... Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te d'um
momento para o outro...
Amelia não respondeu, olhando de frente no telhado voarem os pardaes--menos desassocegados, n'aquelle
instante, que os seus pensamentos.
Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzella inexperiente a que alludia o Communicado era ella,
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 101
Amelia, e torturava-a o vexame de vêr assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ella pensava,
mordendo o beiço n'uma raiva muda, com os olhos afogados de lagrimas), aquillo vinha estragar tudo! Na
Praça, na Arcada já se diria com risinhos perversos:--«Então a Ameliasita da S. Joanneira mettida com o
parocho, hein?» Decerto o senhor chantre, tão severo em «coisas de mulheres,» reprehenderia o padre
Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos de mão, ahi estava a sua reputação estragada, estragado o seu
amor!
Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a escarnecel-a; no aceno que lhe
fez da porta da botica o respeitavel Carlos julgou vêr uma seccura reprehensível; á volta encontrára o Marques
da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéo, e ao entrar em casa julgava-se desacreditada--esquecendo que
o bom Marques era tão curto da vista que usava na loja duas lunetas sobrepostas.
--Que hei de eu fazer? que hei de eu fazer? murmurava, às vezes, com as mãos apertadas na cabeça. O seu
cerebro de devota apenas lhe fornecia soluções devotas--entrar n'um recolhimento, fazer uma promessa a
Nossa Senhora das Dôres «para que a livrasse d'aquelle apuro», ir confessar-se ao padre Silverio... E
terminava por se vir sentar resignadamente ao pé da mãi com a sua costura, considerando, muito enternecida,
que desde pequena fôra sempre bem infeliz!
A mãi não lhe fallára claramente sobre o Communicado; tivera apenas palavras ambíguas:
--É uma pouca vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a sua consciencia socegada, o mais
historias...
Mas Amelia via-lhe bem o desgosto--na face envelhecida, nos tristes silencios, nos suspiros repentinos quando
fazia meia á janella com a luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que havia «grande fallatorio na
cidade», de que a mãi, coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D. Josepha Dias--cuja boca produzia o
mexerico mais naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
E então o seu amor pelo parocho, que até ahi, n'aquella reunião de saias e batinas da rua da Misericordia se lhe
afigurára natural, agora, julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora acostumada a
respeitar--os Guedes, os Marques, os Vazes,--apparecia-lhe já monstruoso: assim as côres d'um retrato pintado
á luz d'azeite, e que á luz d'azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes quando lhes cae em cima a
luz do sol. E quasi estimava que o padre Amaro não tivesse voltado á rua da Misericordia.
No emtanto, com que anciedade esperava todas as noites o seu toque de campainha! Mas elle não vinha; e
aquella ausencia, que a sua razão julgava prudente, dava ao seu coração o desespero d'uma traição. Na
quarta-feira á noite não se conteve, disse, córando sobre a sua costura:
O conego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se, rosnou:
E Amelia, que ficára branca como a cal, teve immediatamente a certeza que o parocho, aterrado com o
escandalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos zelosos «do bom nome do clero»--tratava de se
descartar d'ella! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãi, escondeu o seu desespero: foi mesmo sentar-se ao
piano, e tocou mazurkas tão estrondosas--que o conego, tornando a mexer-se na poltrona, grunhiu:
Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo parocho flammejava mais irritada; e todavia
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 102
detestava-o pela sua cobardia. Mal uma allusão n'um jornal o picára, ficára a tremer na sua batina, apavorado,
não se atrevendo sequer a visital-a--sem se lembrar que tambem ella se via diminuida na sua reputação, sem
ser satisfeita no seu amor! E fôra elle que a tentára com as suas palavrinhas dôces, as suas denguices!
Infame!... Desejava violentamente apertal-o ao coração--e esbofeteal-o. Teve a idéa insensata de ir ao outro
dia à rua das Sousas atirar-se-lhe aos braços, installar-se-lhe no quarto, fazer um escandalo que o obrigasse a
fugir da diocese... Porque não? Eram novos, eram robustos, poderiam viver longe, n'outra cidade--e a sua
imaginação começou a repastar-se logo hystericamente nas perspectivas deliciosas d'essa existencia, em que
se figurava constantemente a dar-lhe beijos! Através da sua intensa excitação, aquelle plano parecia-lhe muito
pratico, muito facil: fugiriam para o Algarve; lá, elle deixaria crescer o cabello (que mais bonito seria então!)
e ninguem saberia que era um padre; poderia ensinar latim, ella coseria para fóra; e viveriam n'uma
casinha--onde o que mais a attrahia era o leito com as duas travesseirinhas chegadas... E a unica difficuldade
que via em todo este plano radiante era fazer sahir de casa, às escondidas da mãi, o bahú com a sua
roupa!--Mas quando acordou, essas resoluções morbidas, á luz clara do dia, desfizeram-se como sombras:
tudo aquillo lhe parecia agora tão impraticavel, e elle tão separado d'ella, como se entre a rua da Misericordia
e a rua das Sousas se erguessem inaccessivelmente todas as montanhas da terra. Ai, o senhor parocho
abandonára-a, era certo! Não queria perder os lucros da sua parochia nem a estima dos seus superiores!...
Pobre d'ella! Considerou-se então para sempre infeliz e desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito
intenso o desejo de se vingar do padre Amaro.
Foi então que reflectiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a publicação do Communicado não
apparecera na rua da Misericordia. Tambem me volta as costas--pensou com amargura. Mas que lhe
importava! No meio da afflicção que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do amor do escrevente,
piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem prazer, era uma contrariedade imperceptivel: uma
infelicidade viera que lhe arrebatava bruscamente todas as affeições--a que lhe enchia a alma e a que apenas
lhe acariciava a vaidadesinha: e irritava-a, sim, não sentir já o amor do escrevente collado a suas saias, com a
docilidade d'um cão--mas todas as suas lagrimas eram para o senhor parocho, «que já não queria saber d'ella»!
Só lamentava a deserção de João Eduardo, porque perdia assim um meio sempre prompto de fazer enraivecer
o padre Amaro...
Por isso n'essa tarde á janella, calada, olhando no telhado defronte voarem os pardaes--depois de saber que
João Eduardo, certo do emprego, viera fallar emfim á mãi,--pensava com satisfação no desespero do parocho
ao vêr publicados na Sé os banhos do seu casamento. Depois as palavras muito praticas da S. Joanneira
trabalhavam-lhe silenciosamente n'alma: o emprego do governo civil rendia 25$000 reis mensaes; casando,
reentrava logo na sua respeitabilidade de senhora; e se a mãi morresse, com o ordenado do homem e com o
rendimento do Morenal, podia viver com decencia, ir mesmo no verão aos banhos... E via-se já na Vieira,
muito comprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do governador civil.
--Que lhe parece, minha mãi?--perguntou bruscamente. Estava decidida pelas vantagens que entrevia; mas,
com a sua natureza lassa, desejava ser persuadida e forçada.
--É sempre o melhor--murmurou Amelia entrando no quarto. E sentou-se muito triste aos pés da cama, porque
a melancolia que lhe dava o crepusculo tornava-lhe agora mais pungente a saudade «dos seus bons tempos
com o senhor parocho».
N'essa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S. Joanneira, repousada agora das suas
inquietações, estava muito somnolenta, a cada momento cabeceava com a meia cahida no regaço. Amelia
então pousava a costura, e com o cotovêlo sobre a mesa, fazendo girar o abat-jour verde do candieiro,
pensava no seu casamento: o João Eduardo era bom rapaz, coitado; realisava o typo de marido tão estimado
na pequena burguezia--não era feio e tinha um emprego; decerto o offerecimento da sua mão, apesar das
infamias do jornal, não lhe parecia, como a mãi dissera, «um rasgo de mão cheia»; mas a sua dedicação
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 103
lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois annos que o pobre João gostava d'ella...
Começou então laboriosamente a lembrar tudo o que n'elle lhe agradava--o seu ar sério, os seus dentes muito
brancos, a sua roupa aceada.
Fóra ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças, dava-lhe appetites de confortos, um bom
lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir no berço--porque seria um rapaz, chamar-se-hia Carlos e teria
os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro!... Depois de casada, decerto, tornaria a encontrar o senhor
padre Amaro... E então uma idéa atravessou todo o seu sêr, fêl-a erguer bruscamente, ir por instincto procurar
a escuridão da janella para occultar a vermelhidão do rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéa
implacavelmente apoderára-se d'ella como um braço muito forte que a suffocava e lhe dava uma agonia
deliciosa. E então o antigo amor, que o despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo dasua alma,
rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome d'Amaro: desejou
avidamente os seus beijos--oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre
d'ella!... Então á janella, com a face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.
-Pois a coisa a fazer-se, filha, devia ser já... Era começar o enxoval, e se fosse possivel casar-te para o fim do
mez.
Ella não respondeu--mas a sua imaginação alvoroçou-se áquellas palavras. Casada d'ahi a um mez, ella!
Apesar de João Eduardo lhe ser indifferente, a idéa d'aquelle rapaz, novo e apaixonado, que ia viver com
ella, dormir com ella, deu uma perturbação a todo o seu sêr.
--Que lhe parece, minha mãi? Eu está-me a custar entrar em explicações com o João Eduardo, dizer-lhe que
sim. O melhor era escrever-lhe...
--Tambem acho, filha, escreve-lhe... A Ruça leva a carta pela manhã... Uma carta bonita, e que agrade ao
rapaz.
Amelia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:
«A mamã cá me pôz ao facto da conversação que teve comsigo. E se a sua affeição é verdadeira, como creio
e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus
sentimentos. E a respeito d'enxoval e papeis, ámanhã se fallará, pois que o esperamos para o chá. A mamã
está muito contente e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero ha de ser, com a ajuda de
Deus. A mamã recommenda-se e eu sou
«Amelia Caminha».
Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante d'ella deram-lhe o desejo d'escrever ao
padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o seu amor, com a mesma penna, molhada na mesma tinta, com que
aceitava por marido o outro?... Accusal-o da sua cobardia, mostrar o seu desgosto--era humilhar-se! E,
apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras «Meu
adorado Amaro...» Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de
separar-se assim, em silencio, para sempre!... Separarem-se porquê?--pensou. Depois de casada podia bem
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 104
vêr o senhor padre Amaro. E a mesma idéa voltava, subtilmente, mas n'uma fórma tão honesta agora, que a
não repellia: decerto, o senhor padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a christandade a pessoa
que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciencia; haveria então entre elles uma troca
deliciosa e constante de confidencias, de dôces admoestações; todos os sabbados iria receber ao
confessionario, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquillo seria
casto, muito picante, e para gloria de Deus.
Sentiu-se quasi satisfeita com a impressão, que não definia bem, d'uma existencia em que a carne estaria
legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos d'uma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem,
por fim... E d'ahi a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na suacasa, com o seu marido, e que
jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do
senhor parocho.
Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando á janella,
fallaram do casamento. Amelia não se queria separar da mãi, e, como a casa tinha accommodações, os
noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joanneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor conego
ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua de mel para a fazenda da D. Maria. E Amelia áquellas
perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãi que, de luneta na ponta do nariz, a admirava
babosa.
Ás Ave-Marias a S. Joanneira fechou-se em baixo no seu quarto a rezar a sua corôa, e deixou Amelia só
«para se entender com o rapaz».--D'ahi a pouco, com effeito, João Eduardo bateu á campainha. Vinha muito
nervoso, de luvas pretas, enfrascado em agua de colonia. Quando chegou á porta da sala de jantar não havia
luz, e a bonita fórma d'Amelia destacava de pé, junto á claridade da vidraça. Elle pôz o chale-manta a um
canto como costumava, e vindo para ella que ficára immovel, disse-lhe, esfregando muito as mãos:
--Eu mandei-a pela Ruça logo pela manhã para o pilhar em casa, disse ella immediatamente com as faces a
arder.
--Pois sim...
--Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem! dizia. E as suas mãos, com pressões ternas,
iam-se apoderando dos braços d'ella, dos pulsos aos cotovêlos.
--A mamã diz que podemos viver juntos, disse ella, esforçando-se por fallar tranquillamente.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 105
--Está claro, e eu vou mandar fazer lençoes, acudiu elle, todo alterado.
Attrahiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os labios; ella teve um soluçosinho, abandonou-se-lhe entre os
braços, toda fraca, toda languida.
Mas os sapatos da mãi rangeram na escada, e Amelia foi vivamente para o aparador accender o candieiro.
A S. Joanneira parou á porta; e para dar a sua primeira approvação maternal, disse, com bonhomia:
Foi o conego Dias que participou ao padre Amaro o casamento d'Amelia, uma manhã, na Sé. Fallou no «a
proposito do enlace», e acrescentou:
--E vossê agora appareça por lá, agora está tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence á historia...
O que lá vai, lá vai!
--Está claro, está claro...--rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa, sahiu da igreja.
Ia indignado; e continha-se, para não praguejar alto, pelas ruas. Á esquina da viella das Sousas quasi
esbarrou com Natario, que o agarrou logo pela manga, para lhe soprar ao ouvido:
--De quê?
--Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego... Foi o doutor Godinho... É outro
que tal!... Veja vossê esta corja: o doutor Godinho no jornal ás bulhas com o governo civil, e o governo civil
a atirar postas aos afilhados do doutor Godinho... Vá lá entendel-os! Isto é um paiz de biltres!
--Diz que grande alegrão na casa da S. Joanneira!--disse o parocho, com um azedume negro.
--Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo para nada!... Eu cá ando no meu fito,
saber quem é o liberal e escachal-o! Não posso vêr esta gente que leva a chicotada, coça-se, e curva a orelha.
Eu cá não! eu guardo-as!--E, com uma contracção de rancor que lhe curvou os dedos em garra e lhe
encolheu o peito magro. disse por entre os dentes cerrados:--Eu, quando odeio, odeio bem!
--Vossê se fôr á rua da Misericordia dê lá os parabens a essa gente...--E acrescentou com os olhinhos em
Amaro:--O palerma do escrevente leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!
Depois d'aquelle terrivel domingo em que apparecera o Communicado, o padre Amaro, ao principio, muito
egoistamente, apenas se preoccupára com as consequências--«consequencias fataes, santo Deus!»--que lhe
podia trazer o escandalo. Hein! se pela cidade se espalhasse que era elle o padre ajanotado que o liberal
apostrophava! Viveu dois dias aterrado, tremendo de vêr apparecer o padre Saldanha, com a sua cara
ameninada e voz melliflua, a dizer-lhe «que sua excellencia o senhor chantre reclamava a sua presença»!
Passava já o tempo preparando explicações, respostas habeis, lisonjas a sua excellencia.--Mas quando viu
que, apesar da violencia do artigo, sua excellencia parecia disposto «a fazer a vista grossa», occupou-se
então, mais tranquillo, dos interesses do seu amor tão violentamente perturbados. O medo tornava-o
astucioso; e decidiu não voltar algum tempo á rua da Misericordia.
Ao fim de quinze dias, tres semanas, quando o artigo estivesse esquecido, appareceria de novo em casa da S.
Joanneira: deixaria vêr bem á rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as
conversasinhas baixas, os logarzinhos chegados ao quino; depois, pela D. Maria da Assumpção, pela D.
Josepha Dias, obteria que Amelia deixasse o padre Silverio, e se confessasse a elle: poderiam então
entender-se, no segredo do confessionario: combinariam uma conducta discreta, encontros cautelosos aqui e
além, cartinhas pela criada: e aquelle amor assim conduzido, com prudenciasinha, não teria o perigo de
apparecer uma manhã annunciado no periodico! E regosijava-se já da habilidade d'esta combinação, quando
lhe vinha o grande choque--casava-se a rapariga!
Depois dos primeiros desesperos, desabafados em patadas no soalho e blasphemias de que pedia logo perdão
a Nosso Senhor Jesus Christo, quiz serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquella paixão?
Ao escandalo. E assim, casada ella, cada um entrava no seu destino legitimo e sensato--ella na sua familia,
elle na sua parochia. Depois, quando se encontrassem, um comprimento amavel; e elle poderia passear a
cidade com a sua cabeça bem direita, sem medo dos ápartes da Arcada, das insinuações da gazeta, das
severidades de sua excellencia e das picadinhas da consciencia! E a sua vida seria feliz.--Não, por Deus! a
sua vida não poderia ser feliz sem ella! Tirado á sua existencia aquelle interesse das visitas à rua da
Misericordia, os apertosinhos de mão, a esperança de delicias melhores--que lhe restava a elle? Vegetar,
como um dos tortolhos nos cantos humidos do adro da Sé! E ella, ella que o entontecera com os seus olhinhos
e as suas maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe apparecia outro, bom para marido, com 25$000 reis por
mez! Todos aquelles suspiros, aquellas mudanças de côr--chalaça! Mangára com o senhor parocho!...
O que a odiava!--menos que o outro porém, o outro que triumphava porque era um homem, tinha a sua
liberdade, o seu cabello todo, o seu bigode, um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a
imaginação rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da igreja
triumphantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E a estas idéas dava patadas furiosas no
soalho--que assustavam a Vicencia na cozinha.
Depois procurava socegar, retomar a direcção das suas faculdades, applical-as todas a achar uma vingança,
uma boa vingança! E voltava então o antigo desespero de não viver no tempo da inquisição, e com uma
denuncia de irreligião ou de feiticeria, mandal-os ambos para um carcere. Ah! n'esse tempo um padre
gozava! Mas agora, com os senhores liberaes, tinha de vêr aquelle miseravel escrevente a seis vintens por dia
apoderar-se-lhe da rapariga--e elle, sacerdote instruido, que podia ser bispo, que podia ser Papa, tinha de
vergar os hombros e ruminar solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus tinham algum
valor--malditos fossem elles! Quereria vêl-os cheios de filhos, sem pão na prateleira, com o ultimo cobertor
empenhado, resequidos de fome, injuriando-se,--e elle a rir-se, elle a regalar-se!...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 107
Na segunda-feira não se conteve, foi á rua da Misericordia. A S. Joanneira estava em baixo na saleta com o
conego Dias. E apenas viu Amaro:
--Oh, senhor parocho! bem apparecido! Estava a fallar em v. s.^a! Já estranhava não o vermos, agora que ha
alegria em casa.
--Alguma vez havia de ser, disse o conego jovialmente. Deus os faça felizes e lhes dê poucos filhos, que a
carne está cara.
Era Amelia que tocava como outr'ora a valsa dos Dois Mundos; e João Eduardo, muito chegado a ella,
voltava as folhas da musica.
--Quem entrou, Ruça? gritou ella sentindo os passos da rapariga nas escadas.
Um fluxo de sangue abrazou-lhe o rosto--e o coração batia-lhe tão forte, que ficou um momento com os dedos
immoveis sobre o teclado.
--Não se precisava cá do senhor padre Amaro, rosnou João Eduardo por entre dentes.
Amelia mordeu o beiço. Teve odio ao escrevente: n'um instante repugnou-lhe a sua voz, os seus modos, a sua
figura de pé junto d'ella: pensou com deleite como depois de casada (já que tinha de casar) se confessaria
toda ao padre Amaro, e não deixaria de o amar! Não sentia n'aquelle momento escrupulos; e quasi desejava
que o escrevente lhe visse no rosto a paixão que a revolvia.
--Credo, creatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para lá, que nem me deixa os braços livres para
tocar!
A sua voz elevava-se, com uma modulação ardente,--dirigindo o canto, através do soalho, ao coração do
parocho, em baixo.
E o parocho, com a sua bengala entre os joelhos, sentado no canapé, devorava todos os tons da voz
d'ella--emquanto a S. Joanneira tagarellava, contando as peças de algodão que comprára para lençoes, os
arranjos que ia fazer no quarto dos noivos, e as vantagens de viverem juntos...
--Uma felicidade por ahi além, interrompeu o conego erguendo-se pesadamente. E vamos lá para cima, que
isto de noivos não se querem sós...
--Ah, lá n'isso, disse a S. Joanneira rindo, fio-me n'elle, que é homem de bem ás direitas.
Amaro, ao subir a escada, tremia--e, mal entrou na sala, o rosto d'Amelia, alumiado pelas luzes do piano,
deu-lhe um deslumbramento, como se as vesperas do noivado a tivessem embellezado e a separação lh'a
tornasse mais appetitosa. Foi dar-lhe gravemente um aperto de mão, outro ao escrevente, disse baixo, sem os
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 108
olhar:
Voltou as costas, e foi conversar com o conego que se enterrára na sua poltrona queixando-se
d'enfastiamento e reclamando o chá.
Amelia ficára como abstracta, correndo inconscientemente os dedos pelo teclado. Aquelle modo do padre
Amaro confirmava a sua idéa: queria a todo o custo descartar-se d'ella, o ingrato! fazia «como se nada
tivesse havido», o villão! Na sua cobardia de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal, da Arcada, de
tudo,--sacudia-a da sua imaginação, do seu coração, da sua vida, como se sacode um insecto que tem
peçonha!... Então, para o enraivecer, começou a cochichar ternamente com o escrevente; roçava-se-lhe pelo
hombro, rendida, com risinhos, segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma peça a quatro mãos;
depois ella beliscou-o, elle deu um gritinho exagerado.--E a S. Joanneira contemplava-os babosa, emquanto
o conego dormitava já, e o padre Amaro, abandonado a um canto como outr'ora o escrevente, ia folheando o
velho album.
Mas um brusco repique da campainha veio sobresaltal-os todos: passos rapidos galgaram a escada, pararam
em baixo na saleta: e a Ruçaappareceu dizendo «que era o senhor padre Natario, que não desejava subir, e
queria dar uma palavra ao senhor conego».
--Fracas horas para embaixadas, rosnou o conego, arrancando-se com custo ao fundo confortavel da
poltrona.
Amelia fechou logo o piano--e a S. Joanneira pousando a meia foi em bicos de pés escutar ao alto da escada:
fóra ventava forte, e para os lados da Praça afastava-se o toque de retreta.
--Ó Amaro!
--Padre-Mestre?
A S. Joanneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre Natario emfim descobrira o
liberal!
A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e na parede, n'um velho painel muito
escuro--que ultimamente o conego dera á S. Joanneira--destacava uma face livida de monge e um osso
frontal de caveira.
O conego Dias accommodára-se ao canto do canapé, sorvendo reflectidamente a pitada; e Natario, que se
agitava pela sala, exclamou logo:
--Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!... Não quiz subir porque imaginei que estaria o
escrevente, e estas coisas são cá para nós. Estava a começar a dizer ao collega Dias... Tive lá em casa o
padre Saldanha. Temol-as boas!
O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, já inquieto, perguntou:
--Primo: o collega Brito mudado da freguezia d'Amor para ao pé d'Alcobaça, para a serra, para o inferno...
--Obras do liberal, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe tempo a meditar o Communicado do
Districto, mas por fim sahiu-se! O pobre Brito lá vai esfogueteado!...
--Ólá! interrompeu severamente o conego. Então, senhora, então! Isto aqui não é casa de murmuração!...
Siga com o seu recado, collega Natario.
--Secundo, continuou Natario: é o que eu ia dizer ao collega Dias... O senhor chantre, em vista do
Communicado e d'outros ataques da imprensa, está decidido a «reformar os costumes do clero diocesano»,
palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam summamente os conciliabulos de ecclesiasticos e de
senhoras... Que quer saber o que é isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Emfim,
palavras textuaes de sua excellencia--está decidido a limpar as cavalhariças d'Augias!...--o que quer dizer em
bom portuguez, minha senhora, que vai andar tudo n'uma roda-viva.
Houve uma pausa consternada. E Natario, plantado no meio da saleta com as mãos enterradas nas
algibeiras, exclamou:
--Olhe, collega, disse, entre mortos e feridos ha de escapar alguem... E a senhora não se fique ahi com essa
cara de Mater-dolorosa, e mande servir o chá, que é o importante.
--O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós ás torradinhas, e lá em cima, diante dos rapazes, caluda.
O chá foi silencioso. O conego, a cada bocado de torrada, respirava affrontado, franzia muito o sobr'olho; a
S. Joanneira, depois de fallar da D. Maria da Assumpção que estava mal do catarrho, ficou toda murcha,
com a testa sobre o punho; Natario, a grandes passadas, fazia uma ventania na sala com as abas do casacão.
--E quando vem essa boda? exclamou elle, estacando subitamente diante d'Amelia e do escrevente; que
tomavam o chá sobre o piano.
--São horas de me ir chegando á rua das Sousas, minhas senhoras, disse com uma voz desalentada.
Mas a S. Joanneira não consentiu. Credo, estavam todos mônos como se estivessem de pêzames!... Que
fizessem um quino para espairecer...--O conego porém, sahindo do seu torpor, disse com severidade:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 110
--Está a senhora muito enganada, ninguem está môno. Não ha razões senão para estar alegre. Pois não é
verdade, senhor noivo?
--Eu cá por mim, senhor conego, não tenho razão senão para estar feliz.
--Pois está claro, disse o conego. E agora Deus lhes dê boas noites a todos, que eu vou quinar para valle de
lençoes. E o Amaro tambem.
Amaro foi apertar silenciosamente a mão d'Amelia,--e os tres padres desceram calados.
Na saleta a vela ainda ardia com um murrão. O conego entrou a buscar o seu guardachuva; e então,
chamando os outros, cerrando devagarinho a porta, disse-lhes baixo:
--Eu, collegas, não quiz assustar ha pouco a pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses fallatorios... É
o diabo!
Estavam de pé no meio da saleta. Fóra o vento uivava: a luz da vela agitada fazia alternadamente destacar e
reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira: e em cima Amelia cantarolava a Chiquita.
Amaro recordava outras noites felizes em que elle, triumphante e sem cuidados, fazia rir as senhoras,--e
Amelia, gorgeando Ai chiquita que si, revirava-lhe olhares rendidos...
--Eu, disse o conego, os collegas sabem, tenho que comer e beber, não me importa... Mas é necessario manter
a honra da classe!
--E não carece duvida, acrescentou Natario, que se ha outro artigo e mais fallatorios, estala com certeza o
raio...
Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natario d'uma chuva miudinha.
Da janella de cima, alumiada, sahiam os sons do piano, nos acompanhamentos da Chiquita. O conego
soprava, agarrando fortemente o guardachuva contra o vento; ao lado Natario, cheio de fel, rilhava os
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 111
dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça cahida, n'um abatimento de derrota; e
emquanto os tres padres, assim agachados sob o guardachuva do conego, iam chapinhando as poças pela
rua tenebrosa, por traz a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!
XII
D'ahi a dias, os frequentadores da botica, na Praça, viram com espanto o padre Natario e o doutor Godinho
conversando em harmonia, á porta da loja de ferragens do Guedes. O recebedor,--que era escutado com
deferencia em questões de politica estrangeira--observou-os com attenção através da porta vidrada da
pharmacia, e declarou com um tom profundo «que não se admiraria mais se visse Victor Manoel e Pio IX
passearem de braço dado»!
O cirurgião da camara porém não estranhava aquelle «commercio d'amizade».--Segundo elle o ultimo artigo
da Voz do Districto, evidentemente escripto pelo doutor Godinho, (era o seu estylo incisivo, cheio de logica,
atulhado d'erudição!) mostrava que a gente da Maia se queria ir aproximando da gente da Misericordia. O
doutor Godinho (na expressão do cirurgião da camara) fazia tagatés ao governo civil e ao clero diocesano: a
ultima phrase do artigo era significativa--«não seremos nós que regatearemos ao clero os meios de exercer
proficuamente a sua divina missão!»
A verdade era (como observou um individuo obeso, o amigo Pimenta) que, se não havia ainda paz, já havia
negociações--porque na vespera elle vira, com aquelles seus olhos que a terra tinha de comer, o padre
Natario sahindo de manhã muito cedo da redacção da Voz do Districto!
O amigo Pimenta ergueu-se com magestade, deu um puxão grave ao cós das calças, e ia indignar-se--quando
o recebedor acudiu:
--Não, não, o amigo Pimenta tem razão. A verdade é que eu n'outro dia vi o patife do Agostinho fazer grande
barretada ao padre Natario. E que o Natario traz intriga na mão, isso é seguro! Eu gósto d'observar as
pessoas... Pois senhores, o Natario, que nunca apparecia aqui na Arcada, agora vejo-o sempre ahi com o
nariz pelas lojas... Depois a grande amizade com o padre Silverio... Hão de reparar que são ambos certos ahi
na Praça ás Ave-Marias... E é negocio com a gente do doutor Godinho... O padre Silverio é o confessor da
mulher do Godinho... Umas coisas pegam com as outras!
Era muito commentada, com effeito, a nova amizade do padre Natario com o padre Silverio. Havia cinco
annos tinha occorrido na sacristia da Sé, entre os dois ecclesiasticos, uma questão escandalosa: Natario
correra até de guardachuva erguido para o padre Silverio, quando o bom conego Sarmento, banhado em
lagrimas, o reteve pela batina, gritando:--«Oh, collega, que é a perdição da religião»! Desde então Natario e
Silverio não fallavam--com desgosto de Silverio, um bonacheirão, d'uma obesidade hydropica, que, segundo
diziam as suas confessadas, «era todo affeição e perdão». Mas Natario, sêcco e pequeno, tinha tenacidade no
rancor. Quando o snr. chantre Valladares começou a governar o bispado, chamou-os, e, depois de lhes
lembrar com eloquencia a necessidade «de manter a paz na Igreja», de lhes recordar o exemplo tocante de
Castor e Pollux, empurrou Natario com uma brandura grave para os braços do padre Silverio--que o teve um
momento sepultado na vastidão do peito e do estomago, murmurando todo commovido:
Mas Natario, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o papelão, as dobras que tomava,
conservou com o padre Silverio um tom amuado: na Sé ou na rua, resvalando junto d'elle com um geito
brusco do pescoço, rosnava apenas: Senhor padre Silverio, ás ordens!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 112
Havia porém duas semanas, uma tarde de chuva Natario fizera repentinamente uma visita ao padre
Silverio--sob pretexto que «o pilhàra alli uma pancada d'agua, e que se vinha recolher um instante».
--E tambem, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dôr d'ouvidos, que uma das minhas sobrinhas,
coitada, está como doida, collega!
O bom Silverio, esquecendo decerto que ainda n'essa manhã vira as duas sobrinhas de Natario sãs e
satisfeitas como dois pardaes, apressou-se a escrever a receita, todo feliz de utilisar os seus queridos estudos
de medicina caseira; e murmurava, banhado de riso:
--Ora que alegria, collega, vêl-o aqui de novo n'esta sua casa!
A reconciliação foi tão publica--que o cunhado do senhor barão de Via-Clara, bacharel de grandes dotes
poeticos, lhe dedicou uma d'aquellas satyras que elle intitulava Ferrões, que iam manuscriptas de casa em
casa, muito saboreadas e muito temidas; e chamára a composição, tendo presente decerto a figura dos dois
sacerdotes: Famosa reconciliação do Macaco e da Baleia! Era com effeito frequente, agora, vêr a pequena
figura de Natario gesticulando e saltitando ao lado do vulto enorme e pachorrento do padre Silverio.
Uma manhã mesmo os empregados da administração (que era então no largo da Sé) gozaram muito,
observando da sacada os dois padres que passeavam no terraço, ao tepido sol de maio. O senhor
administrador,--que passáva as horas da repartição namorando com um binoculo, por traz da vidraça do seu
gabinete, a esposa do Telles alfaiate--começára subitamente a dar gargalhadas á janella: o escrivão Borges
correu logo, de penna na mão, á varanda, a vêr de que ria sua senhoria, e, muito divertido, a fungar, chamou
á pressa o Arthur Couceiro que estava copiando, para estudar á guitarra, uma canção da Grinalda: o
amanuense Pires, severo e digno, aproximou-se, carregando para a orelha o seu barretinho de sêda, com
horror ás correntes d'ar; e em grupo, d'olho arregalado, observavam os dois padres, que tinham parado á
esquina da igreja. Natario parecia excitado: procurava decerto persuadir, abalar o padre Silverio; e em
bicos de pés, plantado diante d'elle, agitava phreneticamente as mãos muito magras. Depois, subitamente,
apoderou-se-lhe do braço, arrastou-o ao comprido do terraço lageado: ao fundo parou, recuou, fez um gesto
largo e desolado, como attestando a perdição possivel d'elle, da Sé ao lado, da cidade, do universo em redor;
o bom Silverio, com os olhos muito abertos, parecia apavorado. E recomeçaram a passear. Mas Natario
exaltava-se: dava recuões bruscos, atirava estocadas com um longo dedo ao vasto estomago de Silverio,
batia patadas furiosas nas lages polidas; e de repente, de braços pendentes, mostrava-se acabrunhado. Então
o bom Silverio fallou um momento com a mão espalmada sobre o peito; immediatamente, a face biliosa de
Natario illuminou-se; pulou, bateu no hombro do collega palmadinhas de muito jubilo,--e os dois sacerdotes
entraram na Sé, chegados e rindo baixinho.
--Aquillo tudo é a respeito do jornal, disse Arthur Couceiro, vindo retomar o seu trabalho lyrico. O Natario
não socega emquanto não souber quem escreveu o Communicado; disse-o elle em casa da S. Joanneira... E a
coisa pelo Silverio vai bem, que é o confessor da mulher do Godinho.
--Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou pachorrentamente o officio que compunha, remettendo para
Alcobaça um preso--que ao fundo da saleta, entre dois soldados, esperava sobre um banco, prostrado e
embrutecido, com uma face de fome e as mãos em ferros.
D'ahi a dias tinha havido na Sé o Officio de corpo presente pelo rico proprietario Moraes, que morrera d'um
aneurisma, e a quem sua esposa (em penitencia decerto dos desgostos que lhe dera com a sua affeição
desordenada por tenentes d'infanteria) estava fazendo, como se disse, «exequias de pessoa real».--Amaro
desvestira-se, e na sacristia, á luz d'um velho candieiro de latão, escrevia assentos atrazados, quando a porta
de carvalho rangeu, e a voz agitada de Natario disse:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 113
--Que temos?
--Que escrevente?
--O João Eduardo! É elle! É o liberal! Foi elle que escreveu o Communicado!
--Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escripto pela letra d'elle. O que se chama vêr! Cinco tiras de
papel!
--Custou! exclamou Natario. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de papel! E quer escrever outro! O
senhor João Eduardo! O nosso rico amigo senhor João Eduardo!
--Mas ainda isto não é nada! O senhor Eduardo que nós viamos alli na casa da S. Joanneira, tão bom
mocinho, é um patife antigo! É o intimo do Agostinho, o bandido da Voz do Districto! Está mettido na
redacção até altas horas da noite... Uma orgia, vinhaça, mulheres... E gaba-se de ser atheu... Ha seis annos
que se não confessa... Chama-nos a canalha canonica... É republicano... Uma fera, meu caro senhor, uma
fera!
Amaro, escutando Natario, arrumava atarantadamente, com as mãos tremulas, papeis no gavetão da
escrivaninha.
Amaro fechou o gavetão, e muito nervoso, passando o lenço pelos labios seccos:
--Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga, coitada... Casar agora com um homem d'esses... Um perdido!
Os dois padres, então, olharam-se fixamente. No silencio, o velho relogio da sacristia punha o seu tic-tac
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 114
plangente. Natario tirou da algibeira dos calções a caixa do rapé, e com os olhos ainda fixos em Amaro, a
pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:
--Caro collega, é uma questão de consciencia... Para mim era uma questão de dever! Não se póde deixar
casar a pobre pequena com um bréjeiro, um pedreiro-livre, um atheu...
Mas o sacristão entrou; eram as horas de fechar a igreja; vinha perguntar se suas senhorias se demoravam.
E, emquanto o sacristão corria os pesados ferrolhos da porta interior do pateo, os dois padres muito
chegados fallavam baixo.
--Vossê vai ter com a S. Joanneira, dizia Natario. Não, escute, é melhor que lhe falle o Dias; o Dias é que
deve fallar á S. Joanneira. Vamos pelo seguro. Vossê falle á pequena e diga-lhe simplesmente que o ponha
fóra de casa!--E ao ouvido de Amaro:--Diga á rapariga que elle vive ahi de casa e pucarinho com uma
desavergonhada!
E foram descendo a igreja atraz do sacristão, que fazia tilintar o seu mólho de chaves, pigarreando grosso.
Nas capellas pendiam as armações de paninho negro agaloadas de prata; ao centro, entre quatro fortes
tocheiras de grosso murrão, estava a eça, com o largo pano de velludilho cobrindo o caixão do Moraes,
recahindo em pregas franjadas; á cabeceira tinha uma larga corôa de perpetuas; e aos pés pendia, d'um
grande laço de fita escarlate, o seu habito de cavalleiro de Christo.
--O quê?
--Cortar-lhe os víveres!
--Cortar-lhe os víveres!?
--O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro amanuense, hein? Pois vou-lhe desmanchar
o arranjinho!... E o Nunes Ferral que é dos meus, homem de boas idéas, vai pôl-o fóra do cartorio... E que
escreva então Communicados!
--Emquanto o não vir por essas ruas a pedir um bocado de pão, não o largo, padre Amaro, não o largo!
--Oh, Natario! oh, collega! Isso é de pouca caridade... Isso não é de christão... E então aqui que Deus está a
ouvil-o...
--Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, não é a resmungar Padre-nossos. Para
impíos não ha caridade! A inquisição atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacal-os pela fome. Tudo é
permittido a quem serve uma causa santa... Que se não mettesse commigo!
Iam a sahir; mas Natario deitou um olhar para o caixão do morto, e apontando com o guarda-chuva:
--Sim.
--Boa bêsta!
--Foram os Officios do Moraes... Eu nem dei por isso, occupado cá na minha campanha... E a viuva fica rica.
É generosa, é presenteadora... Quem a confessa é o Silverio, hein? Tem as melhores pechinchas de Leiria,
aquelle elephante!
--Resumindo: o Dias falla á S. Joanneira, e vossê falla á pequena. Eu por mim me entenderei com a gente do
governo civil e com o Nunes Ferral. Encarreguem-se vossês do casamento, que eu me encarrego do
emprego!--E batendo no hombro do parocho jovialmente:--É o que se póde dizer atacal-o pelo coração e pelo
estomago! E adeusinho, que as pequenas estão á espera para a ceia! Coitadita, a Rosa tem estado com um
defluxo!... É fraquita, aquella rapariga, dá-me muito cuidado... Que eu em a vendo murcha até perco logo o
somno. Que quer vossê? Quando se tem bom coração...--Até ámanhã, Amaro.
Amaro entrou em casa ainda um pouco tremulo, mas muito decidido, muito feliz: tinha um dever delicioso a
cumprir! E dizia alto, com passos graves pela casa, para se compenetrar bem d'essa responsabilidade
estimada:
Como christão, como parocho, como amigo da S. Joanneira o seu deverera procurar Amelia, e, com
simplicidade, sem paixão interessada, contar-lhe que fôra João Eduardo, o seu noivo, que escrevera o
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 116
Communicado.
Foi elle! Diffamou os íntimos da casa, sacerdotes de sciencia e de posição; desacreditou-a a ella; passa as
noites em deboche na possilga do Agostinho; insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligião; ha seis annos
que se não confessa! Como diz o collega Natario, é uma fera! Pobre menina! Não, não podia casar com um
homem que lhe impediria a vida perfeita, lhe achincalharia as boas crenças! Não a deixaria rezar, nem
jejuar, nem procurar no confessor a direcção salutar, e, como diz o santo padre Chrysostomo, «amadureceria
a sua alma para o inferno»! Elle não era seu pai, nem seu tutor; mas era parocho, era pastor:--e se a não
subtrahisse áquelle destino heretico pelos seus conselhos graves, pela influencia da mãi e das amigas,--seria
como aquelle que tem a guarda d'um rebanho n'uma herdade, e abre indignamente a cancella ao lobo! Não, a
Ameliasinha não havia de casar com o atheu!
E o seu coração então batia forte sob a effusão d'aquella esperança. Não, o outro não a possuiria! Quando
viesse a apoderar-se legalmente d'aquella cinta, d'aquelles peitos, d'aquelles olhos, d'aquella
Ameliasinha,--elle, parocho, lá estava para lhe dizer alto: Para traz, seu canalha! isto aqui é de Deus!
E tomaria então bem cuidado em guiar a pequena á salvação! Agora o Communicado estava esquecido, o
senhor chantre tranquillisado: d'ahi a dias poderia voltar sem susto á rua da Misericordia, recomeçar os
deliciosos serões--apoderar-se de novo d'aquella alma, formal-a para o paraiso...
E aquillo, Jesus! não era uma intriga para a arrancar ao noivo: os seus motivos (e dizia-o alto, para se
convencer melhor) eram muito rectos, muito puros: aquillo era um trabalho santo para a arrancar ao
inferno: elle não a queria para si, queria-a para Deus!... Casualmente, sim, os seus interesses de amante
coincidiam com os seus deveres de sacerdote. Mas se ella fosse vesga e feia e tola, elle iria igualmente à rua
da Misericordia, em serviço do céo, desmascarar o snr. João Eduardo, diffamador e atheu!
Mas toda a noite sonhou com Amelia. Tinha fugido com ella: e ia-a levando por uma estrada que conduzia ao
céo! O diabo perseguia-o; elle via-o, com as feições de João Eduardo, soprando e rasgando com os cornos os
delicados seios das nuvens. E elle escondia Amelia no seu capote de padre, devorando-a por baixo de beijos!
Mas a estrada do céo não findava.--«Onde é a porta do paraiso?» perguntava elle a anjos de cabelleiras
d'ouro que passavam, n'um dôce rumor de azas, levando almas nos braços. E todos lhe respondiam:--«Na rua
da Misericordia, na rua da Misericordia numero nove!» Amaro sentia-se perdido: um vasto ether côr de leite,
penetravel e macio como uma pennugem d'ave, envolvia-o, e elle procurava debalde uma taboleta de
hospedaria! Por vezes resvalava junto d'elle um globo reluzente d'onde sahia o rumor d'uma creação; ou um
esquadrão d'archanjos, com couraças de diamantes, erguendo alto espadas de fogo, galopavam n'um
rhythmo nobre...
Amelia tinha fome, tinha frio. «Paciencia, paciencia, meu amor!» dizia-lhe elle. Caminhando, vieram a
encontrar uma figura branca, que tinha na mão uma palma verde. «Onde está Deus, nosso pai?»
perguntou-lhe Amaro, com Amelia conchegada ao peito. A figura disse:--«Eu fui um confessor, e sou um
santo: os seculos passam, e immutavelmente, sempiternamente sustento na mão esta palma e banha-me um
extase igual! Nenhuma tinta modifica esta luz para sempre branca; nenhuma sensação sacode o meu sêr para
sempre immaculado; e immobilisado na bemaventurança, sinto a monotonia do céo pesar-me como uma capa
de bronze. Oh! pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas differentes da terra--ou bracejar, sob as
variedades da dôr, nas chammas do purgatorio!»
Amaro murmurou: «Bem fazemos nós em peccar!»--Mas Amelia desfallecia fatigada. «Durmamos, meu
amor!» E, deitados, viam estrellas fluctuando n'uma poeirada como o joio sacudido vivamente do crivo.
Então nuvens começaram a dispôr-se em torno d'elles, em pregas de cortinados, dando um perfume de
sachets; Amaro pousou a sua mão sobre o peito d'Amelia: um enleio muito dôce enervava-os: enlaçaram-se,
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 117
os seus labios pegavam-se humidos e quentes:--«Oh, Ameliasinha!» murmurava elle.--«Amo-te, Amaro,
amo-te!» suspirava ella.--Mas de repente as nuvens afastaram-se como os cortinados d'um leito; e Amaro viu
diante o diabo que os alcançara, e que, com as garras na cinta, esgaçava a boca n'uma risada muda. Com
elle estava outro personagem: era velho como a substancia; nos anneis dos seus cabellos vegetavam
florestas; a sua pupilla tinha a vastidão azul d'um oceano; e nos dedos abertos, com que cofiava a barba
infindavel, caminhavam, como em estradas, filas de raças humanas.--«Aqui estão os dois sujeitos», dizia-lhe
o diabo retorcendo a cauda.--E por traz Amaro via agglomerarem-se legiões de santos e de santas.
Reconheceu S. Sebastião com as suas settas cravadas; Santa Cecilia trazendo na mão o seu orgão; por entre
elles sentia balarem os rebanhos de S. João; e no meio erguia-se o bom gigante S. Christovão apoiado ao seu
pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro não se podia desenlaçar de Amelia, que chorava muito baixo; os
seus corpos estavam sobrenaturalmente collados; e Amaro, afflicto, via que as saias d'ella levantadas
descobriam os seus joelhos brancos.--«Aqui estão os dois sujeitos», dizia o diabo ao velho personagem, «e
repare o meu prezado amigo, porque todos aqui somos apreciadores, que a pequena tem bonitas pernas!»
Santos vetustos alçaram-se sôfregamente em bicos de pés, estendendo pescoços onde se viam cicatrizes de
martyrios: e as onze mil virgens bateram o vôo como pombas espavoridas! Então o personagem, esfregando
as mãos d'onde se esfarelavam universos, disse grave: «Fico inteirado, meu caro amigo, fico inteirado! Com
que, senhor parocho, vai-se á rua da Misericordia, arruina-se a felicidade do snr. João Eduardo (um
cavalheiro), arranca-se a Ameliasinha á mamã, e vem-se saciar concupiscencias reprimidas a um cantinho
da Eternidade? Eu estou velho--está rouca esta voz que outr'ora tão sabiamente discursava pelos valles. Mas
pensa que me assombra o senhor conde de Ribamar, seu protector, apesar de ser um pilar da Igreja e uma
columna da Ordem? Pharaó era um grande rei--e eu afoguei-o, e os seus principes captivos, os seus
thesouros, os seus carros de guerra, e as manadas dos seus escravos! Eu cá sou assim! E se os senhores
ecclesiasticos continuarem a escandalisar Leiria--eu ainda sei queimar uma cidade como um papel inutil, e
ainda me resta agua para diluvios!» E voltando-se para dois anjos armados de espadas e lanças, o
personagem bradou: «Chumbem uma grilheta aos pés do padre, e levem-no ao abysmo numero sete!» E o
diabo gania: «Ahi estão as consequencias, senhor padre Amaro!» Elle sentiu-se arrebatado de sobre o seio
d'Amelia por mãos de braza; e ia luctar, bradar contra o juiz que o julgava--quando um sol prodigioso que
vinha nascendo do Oriente bateu no rosto do personagem, e Amaro, com um grito, reconheceu o Padre
Eterno!
N'essa noite João Eduardo, indo da Praça para casa da S. Joanneira, ficou assombrado, ao vêr apparecer á
outra boca da rua, do lado da Sé, o Santissimo em procissão.
E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas de mantéo pela cabeça, as tochas faziam destacar opas
de paninho escarlate; sob o pallio os dourados da estola do parocho reluziam; uma campainha tocava
adiante, ás vidraças appareciam luzes;--e na noite escura o sino da Sé repicava, sem descontinuar.
João Eduardo correu aterrado--e soube logo que era a extrema-unção á entrevada.
Tinham posto na escada um candieiro de petroleo sobre uma cadeira. Os serventes encostaram á parede da
rua os varaes do pallio, e o parocho entrou. João Eduardo, muito nervoso, subiu tambem: ia pensando que a
morte da entrevada, o luto retardariam o seu casamento; contrariava-o a presença do parocho e a influencia
que elle adquiria n'aquelle momento; e foi quasi quezilado que perguntou á Ruça na saleta:
--Foi a pobre de Christo que esta tarde começou a esmorecer, o senhor doutor veio, diz que estava a acabar,
e a senhora mandou pelos sacramentos.
O quarto da velha era junto á cozinha, e tinha n'aquelle momento uma solemnidade lugubre.
Sobre uma mesa coberta de toalha de folhos, estava um prato com cinco bolinhas de algodão entre duas velas
de cera. A cabeça da entrevada, toda branca, a sua face côr de cera mal se distinguiam do linho do
travesseiro; tinha os olhos estupidamente dilatados; e ia apanhando incessantemente com um gesto lento a
dobra do lençol bordado.
A S. Joanneira e Amelia rezavam ajoelhadas á beira da cama: a snr.^a D. Maria da Assumpção (que
casualmente entrára, ao voltar da fazenda) ficára á porta do quarto aterrada, agachada sobre os
calcanhares, murmurando Salve-Rainhas. João Eduardo, sem ruido, dobrou o joelho junto d'ella.
O padre Amaro, curvado quasi ao ouvido da entrevada, exhortava-a a que se abandonasse á Misericordia
divina; mas, vendo que ella não comprehendia, ajoelhou, recitou rapidamente o Misereatur; e no silencio, a
sua voz erguendo-se nas syllabas latinas mais agudas, dava uma sensação de enterro que enternecia, fazia
soluçar as duas senhoras. Depois ergueu-se, molhou o dedo nos santos oleos: murmurando as expressões
penitentes do ritual ungiu os olhos, o peito, a boca, as mãos--que ha dez annos só se moviam para chegar a
escarradeira, e as plantas dos pés que ha dez annos só se applicavam a buscar o calor da botija. E depois de
queimar as bolinhas de algodão humidas de oleo, ajoelhou-se, ficou immovel, com os olhos postos no
Breviario.
João Eduardo voltou em pontas de pés á sala, sentou-se no mocho do piano: agora decerto, durante quatro
ou cinco semanas. Amelia não tornaria a tocar... E uma melancolia amolleceu-o, vendo no dôce progresso do
seu amor aquella brusca interrupção da morte e dos seus ceremoniaes.
A snr.^a D. Maria entrou então, toda transtornada d'aquella scena--e seguida d'Amelia que trazia os olhos
muito vermelhos.
--Ah! ainda bem que aqui está, João Eduardo! disse logo a velha. Que quero que me faça um favor, que é
acompanhar-me a casa... Estou toda a tremer... Estava desprevenida, e com perdão de Deus seja dito, não
posso ver gente na agonia... Que ella, coitadinha, vai-se como um passarinho... E peccados não os tem...
Olhe, vamos pela Praça que é mais perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas não posso ficar... É que me
dava a dôr... Ai, que desgosto!... Que para ella até é melhor... Pois olhem, sinto-me a desfallecer...
Foi mesmo necessario que Amelia a levasse a baixo, ao quarto da S. Joanneira, a reconfortal-a
caridosamente com um calix de geropiga.
--Ameliasinha, disse então João Eduardo, se eu sou cá necessario para alguma coisa...
--Não te esqueças, filha, recommendou descendo a snr.^a D. Maria da Assumpção, põe-lhe as duas velas
bentas á cabeceira... Allivia muito na agonia... E se tiver muitos arrancos, põe outras duas apagadas, em
cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!
Á porta, mal viu o pallio, os homens com as tochas, apoderou-se do braço de João Eduardo, collou-se toda a
elle com terror--um pouco tambem, com o accesso de ternura que lhe dava sempre a geropiga.
Amaro promettera voltar mais tarde, para «as acompanhar, como amigo, n'aquelle transe». E o conego (que
chegára, quando a procissão com o pallio dobrava a esquina para o lado da Sé), informado d'esta delicadeza
do senhor parocho, declarou logo que visto que o collega Amaro vinha fazer a noitada, elle ia descansar o
corpo porque, Deus bem o sabia, aquellas commoções arrazavam-lhe a saude.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 119
--E a senhora não havia de querer que eu apanhasse alguma e me visse nos mesmos assados...
--Credo, senhor conego! exclamou a S. Joanneira, nem diga isso!...--E começou a choramingar, muito
abalada.
--Pois então boas noites, disse o conego, e nada de affligir. Olhe, a pobre creatura, alegria não a tinha: e
como não tem peccados não lhe importa achar-se na presença de Deus. Tudo bem considerado, senhora, é
uma pechincha! E adeusinho, que me não estou a sentir bem...
Tambem a S. Joanneira não se sentia bem. O choque, logo depois de jantar, dera-lhe ameaças de
enxaqueca:--e quando Amaro voltou, ás onze, Amelia que fôra abrir a porta, disse-lhe, ao subir á sala de
jantar:
--O senhor parocho desculpe... A mamã veio-lhe a enxaqueca, coitada... Estava que nem via... Deitou-se, pôz
agua sedativa e adormeceu...
Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabeça virada para a parede; dos seus beiços abertos sahia um
gemido muito debil e continuo. Sobre a mesa agora, uma grossa vela benta, de murrão negro, erguia uma luz
triste; e ao canto, transida de medo, a Ruça, segundo as recommendações da S. Joanneira, ia rezando a
corôa.
--O senhor doutor, disse Amelia baixo, diz que morre sem o sentir... Diz que ha de gemer, gemer, e de repente
acabar como um passarinho...
Voltaram á sala de jantar. Toda a casa estava silenciosa: fóra ventava forte. Havia muitas semanas que não
se encontravam assim sós. Muito embaraçado, Amaro aproximou-se da janella: Amelia encostou-se ao
aparador.
--E está frio, disse ella, encolhendo-se no chale. Eu tenho estado passada de medo...
--Nunca.
--Pois está frio, disse Amaro, com a voz alterada da perturbação que lhe ia dando a presença d'ella áquella
hora da noite.
--Na cozinha está a brazeira accêsa, disse Amelia. É melhor irmos para lá.
--É melhor.
Foram. Amelia levou o candieiro de latão: e Amaro, indo remexer com as tenazes o brazido vermelho, disse:
--Ha que tempo que eu não entro aqui na cozinha!... Ainda tem os vasos com os raminhos fóra da janella?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 120
--Ainda, e um craveiro...
Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da brazeira.--Amelia, inclinada para o lume, sentia os olhos do
padre Amaro devora-la silenciosamente. Elle ia fallar-lhe, decerto! Tinha as mãos a tremer; não ousava
mover-se, erguer as palpebras, com medo que lhe rompessem as lagrimas; mas anciava pelas suas palavras,
ou amargas ou dôces...
--Menina Amelia, disse, eu não esperava poder assim fallar-lhe a sós. Mas as coisas arranjaram-se... É
decerto a vontade de Nosso Senhor! E depois, como as suas maneiras mudaram tanto...
--Sei. Se não fosse aquelle infame Communicado, e as calumnias... nada se tinha passado, e a nossa amizade
seria a mesma, e tudo iria bem... É justamente a esse respeito que eu lhe quero fallar.
Chegou a cadeira mais para junto d'ella, e muito suave, muito tranquillo:
--Lembra-se d'esse artigo em que todos os amigos da casa eram insultados? em que eu era arrastado pela rua
da amargura? em que a menina mesma, a sua honra era offendida?... Lembra-se, hein? Sabe quem o
escreveu?
--O snr. João Eduardo! disse o parocho muito tranquillamente, cruzando os braços diante d'ella.
Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho pelas saias para a fazer sentar; e a sua voz continuou
paciente e suave:
--Ouça. Sente-se. Foi elle que o escreveu. Soube hontem tudo. O Natario viu o original escripto pela letra
d'elle. Foi elle que descobriu. Por meios dignos decerto... e porque era a vontade de Deus que a verdade
apparecesse. Agora escute. A menina não conhece esse homem.--Então, baixo, contou-lhe o que sabia de
João Eduardo, por Natario; as suas noitadas com o Agostinho, as suas injurias contra os padres, a sua
irreligião...
--Jesus... Jesus!...
--Eu então entendi que como intimo da casa, como parocho, como christão, como seu amigo, menina
Amelia... porque acredite que lhe quero... emfim, entendi que era o meu dever avisal-a! Se eu fosse seu irmão,
dizia-lhe simplesmente: «Amelia, esse homem fóra de casa!» Não o sou, infelizmente. Mas venho, com
dedicação d'alma, dizer-lhe: «O homem com quem quer casar surprehendeu a sua boa fé e de sua mamã; vem
aqui, sim senhor, com apparencias de bom moço, e no fundo é...»
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 121
--Menina Amelia, é o homem que escreveu esse Communicado! que fez ir o pobre Brito para a serra de
Alcobaça! que me chamou a mim seductor!que chamou devasso ao senhor conego Dias! Devasso! Que
lançou veneno nas relações de sua mamã com o conego! e que a accusou á menina, em bom portuguez, de se
deixar seduzir! Diga, quer casar com esse homem?
Ella não respondeu, com os olhos cravados no lume, duas lagrimas mudas sobre as faces.
Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando ao pé d'ella, com a voz abrandada, gestos muito amigos:
--Mas supponhamos que não era elle o auctor do Communicado, que não tinha insultado em letra redonda a
sua mamã, o senhor conego, os seus amigos: resta ainda a sua impiedade! Veja que destino o seu se casasse
com elle! Ou teria de condescender com as opiniões do homem, abandonar as suas devoções, romper com os
amigos de sua mãi, não pôr os pés na igreja, dar escandalo a toda a gente honesta, ou teria de se pôr em
opposição com elle, e a sua casa seria um inferno! Por tudo uma questão! Por jejuar á sexta-feira, por ir á
exposição do Santíssimo, por cumprir o domingo... Se se quizesse confessar, que desavenças! Um horror! E
sujeitar-se a ouvil-o escarnecer os mysterios da fé! Ainda me lembro, na primeira noite que aqui passei, com
que desacato elle fallou da santa da Arregassa!... E ainda me lembro uma noite que o padre Natario aqui
fallava dos soffrimentos do nosso santo padre Pio IX, que seria preso, se os liberaes entrassem em Roma...
Como elle tinha risinhos de escarneo, como disse que eram exagerações!... Como se não fosse perfeitamente
certo que por vontade dos liberaes veriamos o chefe da Igreja, o vigario de Christo, dormir n'um calabouço
em cima d'umas poucas de palhas! São as opiniões d'elle, que elle apregôa por toda a parte! O padre Natario
diz que elle e o Agostinho estavam no café ao pé do Terreiro a dizer que o baptismo era um abuso, porque
cada um devia escolher a religião que quizesse, e não ser forçado, de pequeno, a ser christão! Hein, que lhe
parece? Como seu amigo lh'o digo... Para bem de sua alma antes a queria vêr morta do que ligada a esse
homem! Case com elle, e perde para sempre a graça de Deus!
Amelia levou as mãos ás fontes, e deixando-se cahir para as costas da cadeira, murmurou, muito desgraçada:
Amaro então sentou-se ao pé d'ella, tocando-lhe quasi o vestido com o joelho, pondo na voz uma bondade
paternal:
--E depois, minha filha, pensa que um homem assim póde ter bom coração, apreciar a sua virtude, querer-lhe
como um marido christão? Quem não tem religião não tem moral. Quem não crê não ama, diz um dos nossos
santos padres. Depois de lhe passar o fogacho da paixão, começaria a ser duro comsigo, mal humorado,
voltaria a frequentar o Agostinho e as mulheres da vida, e maltrata-la-hia talvez... E que susto constante para
si! Quem não respeita a religião não tem escrupulos: mente, rouba, calumnia... Veja o Communicado. Vir
aqui apertar a mão ao senhor conego, e ir para o jornal chamar-lhe devasso! Que remorsos não sentiria a
menina, mais tarde, á hora da morte! É muito bom emquanto se tem saude e se é nova; mas quando chegasse
a sua ultima hora, quando se achasse, como aquella pobre creatura que está alli, nos ultimos arrancos, que
terror não sentiria de ter de apparecer diante de Jesus Christo, depois de ter vivido em peccado ao lado
d'esse homem! Quem sabe se elle não recusaria que lhe dessem a extrema-unção! Morrer sem sacramentos,
morrer como um animal!...
--Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, senhor parocho! exclamou Amelia rompendo n'um chôro nervoso.
--Não chore, disse elle tomando-lhe suavemente a mão entre as suas, muito tremulas. Escute, abra-se
commigo... Vá, esteja socegada, tudo se remedeia. Não ha banhos publicados... Diga-lhe que não quer casar,
que sabe tudo, que o odeia...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 122
Esfregava, apertava devagarinho a mão d'Amelia. E subitamente, com voz d'um ardor brusco:
--Não.
Ella não respondeu, com o peito a arfar fortemente, os olhos dilatados para o lume.
Passou-lhe o braço sobre o hombro, attrahindo-a dôcemente. Ella tinha as mãos abandonadas no regaço;
sem se mover voltou devagar para elle os olhos resplandecentes sob uma nevoa de lagrimas, e entreabriu
devagar os labios, pallida, toda desfallecida. Elle estendeu os beiços a tremer--e ficaram immoveis, collados
n'um só beijo, muito longo, profundo, os dentes contra os dentes.
--Minha senhora! minha senhora! gritou de repente, n'um terror, a voz da Ruça, dentro.
Amaro ergueu-se d'um salto, correu ao quarto da entrevada. Amelia estava tão tremula, que precisou
encostar-se á porta da cozinha um momento, com as pernas vergadas, a mão sobre o coração. Recuperou-se,
desceu a acordar a mãe.
Quando entraram no quarto da idiota, Amaro ajoelhado, com a face quasi sobre o leito, rezava: as duas
senhoras rojaram-se no chão; uma respiração accelerada sacudia o peito, as ilhargas da velha; e á medida
que o arquejo se tornava mais rouco, o parocho precipitava as suas orações. Subitamente o som agonisante
cessou: ergueram-se: a velha estava immovel, com os bugalhos dos olhos sahidos e baços. Expirára.
O padre Amaro trouxe logo as senhoras para a sala;--e ahi a S. Joanneira, curada, pelo choque, da sua
enxaqueca, desabafou, em accessos de chôro, recordando o tempo em que a pobre mana era nova, e que
bonita era! e que bom casamento estivera para fazer com o morgado da Vigareira!...
--E o genio mais dado, senhor parocho! Uma santa! E quando a Amelia nasceu, e que eu estive tão mal, que
não se tirou de ao pé de mim, noite e dia!... E alegre, não havia outra... Ai, Deus da minha alma, Deus da
minha alma!
Bateram então á campainha. Amaro desceu, com uma vela. Era João Eduardo, que ao vêr o parocho áquella
hora na casa,--ficou petrificado, junto da porta aberta; emfim balbuciou:
--Ah!
João Eduardo fez-se pallido da coléra que lhe davam aquelles modos de dono da casa. Esteve ainda um
momento, hesitando--mas vendo o parocho abrigar a luz, com a mão, contra o vento da rua:
--Boa noite.
O padre Amaro subiu:--e depois de deixar as duas senhoras no quarto da S. Joanneira (porque, cheias de
terror, queriam dormir juntas), voltou ao quarto da morta, despertou a vela sobre a mesa, accommodou-se
n'uma cadeira, e começou a lêr o Breviario.
Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa, o parocho, sentindo o somno entorpecel-o, veio á sala de
jantar; reconfortou-se com um calix de vinho do Porto que achára no aparador; e saboreava regaladamente
o cigarro, quando ouviu na rua passos de botas fortes que iam, vinham, por baixo das janellas. Como a noite
estava escura não pôde distinguir «o passeante».--Era João Eduardo que rondava a casa, furioso.
XIII
Ao outro dia cedo, a snr.^a D. Josepha Dias que entrára, havia pouco, da missa, ficou muito surprehendida,
ouvindo a criada que lavava as escadas dizer de baixo:
O parocho ultimamente raras vezes vinha a casa do conego; e D. Josepha gritou logo lisonjeada e já curiosa:
--Que suba para aqui, não é de ceremonia! É como de familia. Que suba!
Estava na sala de jantar, arranjando n'uma travessa ladrilhos de marmelada, com um vestido de hareje preto
esgaçado na ilharga e arqueado em redor dos tornozelos por uma crinoline d'um só arco; trazia n'essa
manhã oculos azues; e foi logo ao patamar, arrastando os seus medonhos chinelos d'ourêlo, e preparando,
por debaixo do lenço preto repuxado sobre a testa, um ar agradavel para o senhor parocho.
--Ora ditosos olhos! exclamou. Eu entrei ha bocadinho, e já cá tenho a primeira missinha. Fui hoje á capella
de Nossa Senhora do Rosario... Disse-a o padre Vicente. Ai! e que virtude que me fez hoje, senhor parocho!
Sente-se. Ahi não, que lhe vem ar da porta... E então a pobre entrevada lá se foi... Conte lá, senhor parocho...
O parocho teve de descrever a agonia da entrevada, a dôr da S. Joanneira; como depois de morta a face da
velha parecera remoçar; o que as senhoras tinham decidido a respeito da mortalha...
--Aqui para nós, D. Josepha, é um grande allivio para a S. Joanneira...--E de repente, puxando-se para a
beira da cadeira, assentando as mãos nos joelhos:--E que me diz á do senhor João Eduardo? Já sabe? Foi
elle que escreveu o artigo!
--Ai! nem me falle n'isso, senhor parocho! Nem me falle n'isso, que até tenho estado doente!
--Ah, já sabe?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 124
--E mais que sei, senhor parocho! O senhor padre Natario, devo-lhe esse favor, esteve aqui hontem e
contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma perdida!
--E sabe que é o intimo do Agostinho, que são bebedeiras na redacção até de madrugada, que vai para o
bilhar do Terreiro achincalhar a religião...
--Ai, por quem é, senhor parocho, nem me diga, nem me diga! Que hontem, quando o senhor padre Natario
esteve ahi, até tive escrupulos d'ouvir tanto peccado... Que lhe devo esse favor, ao senhor padre Natario, logo
que soube veio-me contar... É de muito delicado... E olhe, senhor parocho, a mim sempre me quiz parecer
isso mesmo do homem. Eu nunca o disse, nunca o disse! Que lá isso, esta boquinha nunca se pôz em vidas
alheias... Mas tinha cá dentro um palpite. Elle ia á missa, cumpria o jejum; mas eu cá tinha a desconfiança
que aquillo era para enganar a S. Joanneira e a pequena. Agora se vê! Eu foi creatura que nunca me cahiu
em graça! Nunca, senhor parocho!--E de repente, com os olhinhos luzidios d'uma alegria perversa:--E agora,
já se sabe, o casamento desmancha-se?
--Elle, minha senhora, seria notorio que uma rapariga de bons principios fosse casar com um pedreiro-livre,
que não se confessa ha seis annos!
--Credo, senhor parocho! antes vêl-a morta! É necessario dizer tudo á rapariga...
--Pois foi justamente para isso que eu a vim procurar, minha senhora. Eu hontem já fallei com a pequena...
Mas comprehende, no meio d'aquelle desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado, não pude insistir
muito. Emfim disse-lhe o que havia, aconselhei-a por bons modos, expuz-lhe que ia perder a sua alma, ter
uma vida desgraçada, etc. Fiz o que pude, minha senhora, como amigo e como parocho. E como era o meu
dever (ainda que me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que, como christã e como senhora, tinha
obrigação de romper com o escrevente.
--E ella?
--Não disse que sim nem que não. Pôz-se a fazer biquinho, a choramingar. É verdade que estava muito
alterada com a morte em casa. Que a rapariga não morre por elle, isso é claro; mas quer casar, tem medo
que a mãi morra, que se veja só... Emfim sabe o que são raparigas! Que as minhas palavras fizeram-lhe
effeito, ficou muito indignada, etc... Mas emfim, eu pensei que o melhor era a senhora fallar-lhe. A senhora é
a amiga da casa, é madrinha, conheceu-a de pequena... Estou certo que no seu testamento havia de lhe deixar
uma boa lembrança... Tudo isto são considerações...
--Ai, fica por minha conta, senhor parocho! exclamou a velha; hei de lh'as cantar!...
--A rapariga o que precisa é quem a dirija. Aqui para nós, precisa quem a confesse! Ella confessa-se ao
padre Silverio; mas, sem querer dizer mal, o padre Silverio, coitado, pouco vale. Muito caridoso, muita
virtude; mas o que se chama geito não tem. Para elle a confissão é a desobriga. Pergunta doutrina, depois faz
o exame pelos mandamentos da lei de Deus... Veja a senhora!... Está claro que a rapariga não furta, nem
mata, nem deseja a mulher do seu proximo! A confissão assim não lhe aproveita: o que ella precisa é um
confessor têso, que lhe diga--para alli! e sem réplica. A rapariga é um espirito fraco; como a maior parte das
mulheres não se sabe dirigir por si; necessita por isso um confessor que a governe com uma vara de ferro, a
quem ella obedeça, a quem conte tudo, de quem tenha medo... É como deve ser um confessor.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 125
--Não digo que não. Havia de aconselhal-a bem; sou amigo da mãi, acho que ella é boa rapariga e digna da
graça de Deus. Que eu, sempre que converso com ella, todos os conselhos que posso, em tudo, dou-lh'os...
Mas a senhora comprehende, ha coisas em que se não póde estar a fallar na sala, com gente á volta... Só se
está á vontade no confessionario. E é o que me falta, são as occasiões de lhe fallar só. Mas emfim eu não
posso ir dizer-lhe: «a menina agora ha de se confessar commigo»! Eu n'isso sou muito escrupuloso...
--Ora isso é que era um grande favor! Era um bem que fazia áquella alma! Porque se a rapariga me entrega
a direcção da sua alma, então podemos dizer que lhe acabaram as difficuldades, e temol-a no caminho da
graça... E quando lhe vai fallar, D. Josepha?
D. Josepha, «como julgava peccado adiar», estava decidida a fallar-lhe essa mesma noite.
--Não me parece, D. Josepha. Hoje é noite de pezames... O escrevente naturalmente está lá...
--Credo, senhor parocho! Pois eu e as outras pequenas havemos de passar a noite debaixo das mesmas telhas
com o hereje?
--Tem de ser. Emfim o rapaz por ora é considerado da familia... Além d'isso, D. Josepha, a senhora, a D.
Maria e as Gansosinhos são pessoas da maior virtude... Mas nós não devemos ter orgulho da nossa virtude.
Arriscamo-nos a perder-lhe todos os fructos. E é um acto de humildade, que agrada muito a Deus, o
misturar-nos ás vezes com os maus; é como quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado com um
trabalhador d'enxada... É como se dissessemos: «eu sou-te superior em virtude, mas comparado com o que
devia ser para entrar na gloria, quem sabe se não sou tão peccador como tu!...» E esta humilhação da alma é
a melhor offerta que podemos fazer a Jesus.
Amaro curvou-se:
--Deus ás vezes, na sua bondade, inspira-me justas palavras... Pois minha senhora, eu não quero massar
mais. Ficamos entendidos. A senhora falla á pequena ámanhã; e se, como é de crêr, ella consentir em escutar
os meus conselhos, traz-m'a á Sé no sabbado, ás oito horas. E falle-lhe têso, D. Josepha!
--Deixe-a commigo, senhor parocho!... Então não quer provar da minha marmelada?
--Provarei, disse Amaro tomando um ladrilho em que cravou os dentes com dignidade.
--Pois adeus, D. Josepha... Ah, é verdade, que diz o nosso conego d'este caso do escrevente?
--O mano?...
Vinha, com effeito, da fazenda--furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos homens.
Tinham-lhe roubado uma porção de cebolinho; e, abafado de cólera, alliviava-se repetindo com gozo o nome
do Inimigo.
--Credo, mano, que até lhe fica mal!--exclamou D. Josepha tomada d'escrupulos.
--Ora mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co'os diabos! e repito co'os diabos! Mas eu lá
disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo!
--Ha uma falta de respeito por tudo! exclamou o conego. Um cebolinho que dava saude só olhar para elle!
Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu chamo um sacrilegio!... Um desaforado sacrilegio!--acrescentou
convictamente; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho d'um conego, parecia-lhe um acto tão negro
d'impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da Sé.
--Qual falta de religião! replicou o conego exasperado. Falta de cabos de policia, é o que é!--E voltando-se
para Amaro:--Hoje é o enterro da velha, hein? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá dentro uma volta
lavada e os sapatos de fivela!
--Isso é outra maroteira que tal! fez logo o conego. Vejam essa, tambem! Que quadrilha vai pelo mundo, que
quadrilha!--E ficou de braços cruzados, com os olhos arregalados, como contemplando uma legião de
monstros, soltos pelo universo, e arremessando-se com impudencia contra as reputações, os principios da
Igreja, a honra das familias e o cebolinho do clero.
Ao sahir, o padre Amaro renovou ainda as suas recommendações a D. Josepha, que o acompanhára ao
patamar:
--Então hoje, noite de pezames, não se faz nada. Ámanhã falla á rapariga, e lá para o fim da semana leva-m'a
á Sé. Bem. E convença a rapariga, D. Josepha, trate de salvar aquella alma! Olhe que Deus tem os olhos em
si. Falle-lhe têso, falle-lhe têso!... E o nosso conego que se entenda com a S. Joanneira.
--Póde ir descansado, senhor parocho. Sou madrinha, e, quer ella queira quer não, hei de pôl-a no caminho
da salvação...
N'essa noite, com effeito, D. Josepha «não fez nada». Eram os pezames na rua da Misericordia. Estavam em
baixo, na saleta, alumiada lugubremente por uma só vela com um abat-jour verde-escuro. A S. Joanneira e
Amelia, de luto, occupavam tristemente o canapé ao centro; e em redor, nas fileiras de cadeiras apoiadas á
parede, as amigas, cobertas de negro pesado, conservavam-se funebremente immoveis, de faces contristadas,
n'um torpôr mudo: ás vezes duas vozes ciciavam, ou d'um canto, na sombra, sahia um suspiro: depois o
Libaninho, ou Arthur Couceiro, ia em bicos de pés espevitar o murrão da véla: a snr.^a D. Maria da
Assumpção expectorava o seu catarrho com um som choroso: e no silencio ouviam tamancos bater o lagedo
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 127
A intervallos a Ruça, toda de negro, entrava com o taboleiro de dôces e copos de chasada; levantava-se então
o abat-jour; e as velhas, que já iam cerrando as palpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo os lenços
aos olhos, e, com ais, serviam-se de bolinhos da Encarnação.
João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado, ao pé da Gansoso surda que dormia com a boca aberta: toda
a noite o seu olhar procurara debalde o olhar d'Amelia, que não se movia, com o rosto sobre o peito, as mãos
no regaço, torcendo e destorcendo o seu lenço de cambraiela. O padre Amaro e o conego Dias vieram ás
nove horas: o parocho com passos graves foi dizer á S. Joanneira:
--Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua excellentissima mana está a esta
hora gozando a companhia de Jesus Christo.
Houve em redor uma murmuração de soluços; e como não restavam cadeiras, os dois ecclesiasticos
sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no meio a S. Joanneira e Amelia em lagrimas. Eram assim
reconhecidos pessoas de familia; a snr.^a D. Maria da Assumpção notou baixinho a D. Joaquina Gansoso:
E até ás dez horas a noite de pezames continuou soturna e somnolenta, perturbada apenas pela tosse
constante de João Eduardo que estava constipado, e que--na opinião da snr.^a D. Josepha Dias que o disse a
todos, depois--«tossia só para fazer troça e para achincalhar o respeito aos mortos».
D'ahi a dois dias, ás oito horas da manhã, a snr.^a D. Josepha Dias e Amelia entraram na Sé--depois de
terem fallado no terraço á Amparo, mulher do boticario, que tinha uma criança com sarampo, e, apesar de
não ser coisa de cuidado, «viera á cautela fazer uma promessa».
O dia estava ennevoado, a igreja tinha uma luz parda. Amelia, pallida sob a sua mantilha de renda, parou
defronte do altar de Nossa Senhora das Dôres, deixou-se cahir de joelhos, e ficou immovel, com o rosto sobre
o livro de missa. A snr.^a D. Josepha Dias, com passos fôfos, depois de se ter prostrado diante da capella do
Santíssimo e do altar-mór, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro lá passeava, com
os hombros vergados, as mãos atraz das costas:
--Então? perguntou logo, erguendo para D. Josepha a sua face muito barbeada, onde os olhos reluziam
inquietos.
--Está alli, disse a velha baixinho, n'uma expressão de triumpho. Fui eu mesmo buscal-a! Ai, fallei-lhe têso,
senhor parocho, não lh'as poupei! Agora é comsigo!
--Obrigado, obrigado, D. Josepha! disse o padre, apertando-lhe as mãos ambas com força. Deus ha de lh'o
levar em conta.
Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o lenço, a carteira dos papeis; e, cerrando devagarinho a
porta da sacristia, desceu á igreja. Amelia ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro immovel contra o
pilar branco.
Ella ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as mãos as pregas da mantilha em
roda do pescoço.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 128
--Aqui lh'a deixo, senhor parocho, disse a velha. Vou á Amparo da botica, e venho depois por ella... Ora vai,
filha, vai, Deus t'alumie essa alma!
--Ai, não se prenda, snr. Carlos, dizia-lhe a velha. Não largue os seus afazeres. Eu deixei a afilhada na Sé, e
venho aqui descansar um bocadinho.
--Começos da primavera, disse o Carlos que retomára o seu ar magestoso, de pé no meio da sala, com os
dedos nas aberturas do collete. Tambem eu me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas sanguíneas,
soffremos sempre d'isto que se póde chamar o renascimento da seiva... Ha uma abundancia d'humores no
sangue, que, não sendo eliminados pelos canaes proprios, vão, por assim dizer, abrir caminho, aqui e além,
pelo corpo, sob a fórma de furunculo, espinha, nascida, ás vezes em logares bem incommodos, e, ainda que
em si insignificantes, acompanhados sempre, por assim dizer, d'um cortejo... Perdão, sinto o praticante a
palrar... Se me dá licença... Respeitos ao nosso conego. Que use a magnesia de James!
D. Josepha então quiz vêr a menina com o sarampo. Mas não passou da porta do quarto, recommendando á
pequena, que arregalava uns olhos de febre, muito abafada na roupa, «não se descuidasse das suas
oraçõesinhas de manhã e á noite». Aconselhou á Amparo alguns remedios, que eram milagrosos no sarampo;
mas se a promessa fôra feita com fé, a menina podia-se considerar curada... Ai, todos os dias dava graças a
Deus de se não ter casado! Que filhos eram só para trabalho e canceiras; e com as quezilias que traziam e o
tempo que tomavam, eram até causa d'uma mulher se descuidar das suas praticas e metter a alma no
inferno...
--Tem razão, D. Josepha, disse a Amparo, é um castigo... E eu com cinco! Ás vezes fazem-me tão doida, que
me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me a chorar só commigo...
Tinham voltado para junto da janella, e gozaram muito, espreitando o senhor administrador do concelho,
que, por traz da vidraça da repartição, namorava de binoculo a do Telles alfaiate.--Aí, era um escandalo!
Que nunca houvera em Leiria auctoridades assim! O secretario geral em um desafôro com a Novaes... Que se
podia esperar de homens sem religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josepha, estava predestinada a
parecer como Gomorrha pelo fogo do céo?--A Amparo cosia com a cabeça baixa, envergonhada talvez diante
d'aquella indignação piedosa, dos desejos culpados que a roiam de vêr o Passeio Publico e de ouvir os
cantores em S. Carlos.
Mas bem depressa a snr.^a D. Josepha começou a fallar do escrevente. A Amparo não sabia nada; e a velha
teve a satisfação de contar prolixamente, «tim-tim por tim-tim», a historia do Communicado, o desgosto na
rua da Misericordia, e a campanha de Natario para descobrir o liberal. Alargou-se principalmente sobre o
caracter de João Eduardo, a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um dever de christã aniquilar o
atheu, deu mesmo a entender que alguns roubos, ultimamente commettidos em Leiria, eram «obra de João
Eduardo».
--Isso pertence á historia, declarou com jubilo D. Josepha Dias. Vão pôl-o fóra de casa! E por muito feliz se
deve o homem dar em não ir parar ao banco dos réos... Que a mim o deve, e á prudencia do mano e do
senhor padre Amaro. Que havia motivos para o ferrar na cadeia!
D. Josepha indignou-se. Credo, a Amelia era uma rapariga de juízo, de muita virtude! Apenas conheceu os
desafôros, foi a primeira a dizer que não, e que não! Ai! detestava-o...--E D. Josepha, baixando a voz em
confidencia, contou «que era positivo que elle vivia com uma desgraçada para os lados do quartel».
--Disse-m'o o senhor padre Natario, affirmou. E aquillo é homem que da sua boca nunca sae senão a verdade
pura... Foi muito delicado commigo, devo-lhe esse favor. Apenas soube, veio-m'o logo dizer a casa, pedir-me
conselhos... Emfim, muito attencioso.
Mas o Carlos appareceu de novo. Tinha a botica desembaraçada um momento (que não o tinham deixado
respirar toda a manhã!) e vinha fazer companhia ás senhoras.
--Então já sabe, snr. Carlos, exclamou logo D. Josepha, o caso do Communicado e do João Eduardo?
O pharmaceutico arregalou os seus olhos redondos. Que relação havia entre um artigo tão indigno e esse
mancebo que lhe parecia honesto?
--Honesto!? ganiu a snr.^a D. Josepha Dias. Foi elle que o escreveu, snr. Carlos!
E vendo o Carlos morder o beiço de surpreza, D. Josepha, enthusiasmada, repetiu a historia da «maroteira».
O pharmaceutico deu a sua opinião, n'uma voz vagarosa, sobrecarregada da auctoridade d'um vasto
entendimento:
--N'esse caso digo, e todas as pessoas de bem o dirão commigo, é uma vergonha para Leiria. Eu já tinha
observado, quando li o Communicado: a religião é a base da sociedade, e minal-a é, por assim dizer, querer
aluir o edificio... É uma desgraça que haja na cidade d'esses sectarios do materialismo e da republica, que,
como é sabido, querem destruir tudo o que existe: proclamam que os homens e as mulheres se devem unir
com a promiscuidade de cães e cadellas... (Desculpem exprimir-me assim, mas a sciencia é a sciencia).
Querem ter o direito de entrar em minha casa, levar-me as pratas e o suor do meu rosto; não admittem que
haja auctoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada hostia...
--E ousa esta seita fallar em liberdade! Eu tambem sou liberal... Que, francamente o digo, eu não sou
fanatico... Nem pelo facto d'um homem pertencer ao sacerdocio, o julgo um santo, não... Por exemplo,
sempre embirrei com o parocho Migueis... Era uma giboia! Desculpe-me a senhora, mas era uma giboia.
Disse-lh'o na cara, porque a lei das rolhas já lá vai... Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto,
justamente para não haver lei das rolhas... Disse-lh'o na cara: «V. s.^a é uma giboia!» Mas, emfim, quando
um homem veste uma batina deve ser respeitado... E o Communicado, repito, é um vergonha para Leiria... E
tambem lhe digo, com esses atheus, esses republicanos, não deve haver consideração!... Eu sou homem
pacifico, aqui a Amparosinho conhece-me bem; pois se eu tivesse d'aviar uma receita para um republicano
declarado, não tinha duvida, em logar de lhe dar uma d'essas composições beneficas que são o orgulho de
nossa sciencia, de lhe mandar uma dóse d'acido prussico... Não, não direi que lhe mandasse acido prussico...
mas se estivesse no banco dos jurados havia de lhe fazer cahir em cima todo o peso da lei!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 130
E balançou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lançando um grande gesto em redor, como se
esperasse os applausos d'um conselho de districto ou d'uma municipalidade em sessão.
Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D. Josepha embrulhou-se á pressa no seu mantelete para ir
buscar a pequena, coitada, que havia d'estar farta d'esperar.
O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que remettia ao seu senhorio):
--Repita ao nosso conego quaes são as minhas opiniões... Que n'essa questão do Communicado e d'ataques
ao clero, estou d'alma e coração com suas senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo vai-se a
embrulhar.
Quando D. Josepha entrou na igreja, Amelia estava ainda no confessionario. A velha tossiu alto, ajoelhou, e,
com as mãos sobre a face, abysmou-se n'uma devoção á Senhora do Rosario. A igreja ficou n'uma
immobilidade e n'um silencio. Depois D. Josepha, voltando-se para o confessionario, espreitou por entre os
dedos; Amelia conservava-se immovel, com a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido negro
espalhada em redor; e D. Josepha recahiu na sua reza. Uma chuva fina fustigava agora os vidros d'uma
janella ao lado. Emfim houve no confessionario um rangido da madeira, um frou-frou de vestidos nas
lages,--e D. Josepha, voltando-se, viu de pé diante d'ella Amelia com a face escarlate e o olhar reluzindo
muito.
Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras sahiram da Sé. Ainda cahia uma chuva fina; mas o snr. Arthur
Couceiro, que passava no largo com officios para o governo civil, foi leval-as á rua da Misericordia debaixo
do seu guardachuva.
XIV
João Eduardo, á noitinha, ia sahir de casa para a rua da Misericordia, levando debaixo do braço um rolo de
amostras de papel de parede para Amelia escolher, quando á porta encontrou a Ruça que ia puxar a
campainha.
--Que é, Ruça?
--As senhoras foram passar a noite fóra de casa, e aqui está esta carta que manda a menina.
João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o coração, e seguia com o olhar pasmado a Ruça, que descia a rua,
batendo os tamancos. Foi ao pé do candieiro, defronte, abriu a carta:
«O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão que era v. s.^a uma pessoa de bem e
que me poderia fazer feliz; mas como se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu o artigo do Districto, e
calumniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus costumes não me dão garantia de
felicidade na vida de casada, deve desde hoje considerar tudo acabado entre nós, pois não ha banhos
publicados nem despezas feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor seja bastante delicado para
não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na rua. O que tudo lhe communico por ordem da mamã, e sou
«criada de v. s.^a
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 131
«Amelia Caminha».
João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a claridade do candieiro, immovel
como uma pedra, com o seu rolo de papeis pintados debaixo do braço. Machinalmente voltou a casa. As
mãos tremiam-lhe tanto, que mal podia accender o candieiro. De pé, junto da mesa, releu a carta. Depois
ficou alli, fatigando a vista contra a chamma da torcida, com uma sensação arrefecedora de Immobilidade e
de Silencio, como se subitamente, sem choque, toda a vida universal tivesse emmudecido e parado. Pensou
onde teriam ellas ido passar a noite. Lembranças de serões felizes na rua da Misericordia atravessaram-lhe
devagar na memoria: Amelia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o cabello muito preto e o collar muito
branco o seu pescoço tinha uma pallidez que a luz amaciava... Então a idéa de que a perdera para sempre
varou-lhe o coração com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as mãos, tonto. Que havia de fazer?
que havia de fazer? Resoluções bruscas relampejavam-lhe um momento no espirito, esvaiam-se. Queria
escrever-lhe! tiral-a por justiça! ir para o Brazil! saber quem descobrira que elle era o auctor do artigo!--E
como isto era o mais practicavel áquella hora, correu á redacção da Voz do Districto.
Agostinho, estirado no canapé, com a véla ao pé sobre uma cadeira, saboreava os jornaes de Lisboa. A face
decomposta de João Eduardo assustou-o.
--Que é?
--Homem, disse, nada d'espalhafatos... Eu dou-te a minha palavra d'honra que não disse a ninguem do
Communicado. É verdade que ninguem me perguntou...
--Eu o que sei é que os padres andavam n'uma azafama para saber quem era. O Natario esteve ahi uma
manhã, por causa do annuncio de uma viuva que recorre á caridade publica, mas do Communicado não se
disse nem palavra... O doutor Godinho é que sabia, entende-te com elle! Mas então fizeram-te alguma?
Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e sahiu arremessando a porta. Passeou na Praça; foi ao
acaso pelas ruas; depois, attrahido pela obscuridade, á estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma
intoleravel palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos,
parecia-lhe seguir n'um silencio universal; por vezes a idéa da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o
coração, e então imaginava vêr toda a paizagem oscillar e o chão da estrada afigurava-se-lhe molle como um
lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam onze horas; e achou-se na rua da Misericordia, com o olhar cravado
para a janella da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto d'Amelia alumiou-se tambem; ella
ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um desejo furioso da sua belleza, do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para
casa: uma fadiga intoleravel prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade indefinida, profunda, foi-o
amollecendo, e chorou muito tempo, enternecendo-se mais com o som dos seus proprios soluços,--até que
ficou adormecido, de bruços, n'uma massa inerte.
Ao outro dia, cedo, Amelia vinha da rua da Misericordia para a Praça, quando ao pé do Arco João Eduardo
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 132
Mas elle plantára-se diante d'ella, muito decidido, com os olhos vermelhos como carvões:
--Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade, fui eu que o escrevi, foi uma desgraça; mas a menina tinha-me
ralado de ciumes... Mas o que a menina diz de maus costumes é uma calumnia. Eu sempre fui um homem de
bem...
--O senhor padre Amaro é que o conhece! Faz favor de me deixar passar...
--Faz favor de me deixar passar! disse ella irritada, tão alto, que um sujeito gordo de chale-manta parou
olhando.
João Eduardo recuou, tirando o chapéo; e ella, immediatamente, refugiou-se na loja do Fernandes.
Então, n'um desespero, correu a casa do doutor Godinho. Já na vespera, por entre os seus-accessos de chôro,
sentindo-se tão abandonado, se lembrára do doutor Godinho. Fôra outr'ora seu escrevente; e como por
pedido d'elle entrára no cartorio do Nunes Ferral, e por sua influencia ia ser accommodado no governo civil,
julgava-o uma Providencia prodiga e inesgotavel! Demais, desde que escrevera o Communicado
considerava-se da redacção da Voz do Districto, do grupo da Maia; agora, que era atacado pelos padres,
devia claramente ir acolher-se á forte protecção do seu chefe, do doutor Godinho, do inimigo da reacção, o
«Cavour de Leiria», como dizia, arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, auctor dos Ferrões.--E João
Eduardo, dirigindo-se ao casarão amarello, ao pé do Terreiro onde o doutor vivia, ia n'um alvoroço
d'esperanças, contente com se refugiar, como um cão escorraçado, entre as pernas d'aquelle colosso.
O doutor Godinho descera já ao escriptorio, e repoltreado na sua poltrona abbacial de prégos amarellos,
com os olhos no tecto de carvalho escuro, acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu com
magestade os «bons dias» de João Eduardo.
As altas estantes d'in-folios graves, as resmas d'autos, o apparatoso painel representando o marquez de
Pombal, de pé n'um terraço sobre o Tejo, expulsando com o dedo a esquadra ingleza--acanharam como
sempre João Eduardo; e foi com voz embaraçada que disse vinha alli para que sua excellencia lhe désse
remedio n'uma desgraça que lhe succedia.
--Desordens, bordoada?
Contou então, prolixamente, a sua historia desde a publicação do Communicado: leu muito commovido, a
carta d'Amelia; descreveu a scena ao pé do Arco... Alli estava agora, escorraçado da rua da Misericordia
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 133
por obras do senhor parocho! E parecia-lhe a elle, apesar de não ser formado em Coimbra, que contra um
padre que se introduzia n'uma familia, desinquietava uma menina simples, a levava por intrigas a romper
com o noivo e ficava de portas a dentro senhor d'ella--devia haver leis!
--Leis!? exclamou traçando vivamente a perna. Que leis quer vossê que haja? Quer querelar do parocho?...
Porque? Elle bateu-lhe? roubou-lhe o relogio? insultou-o pela imprensa? Não. Então?...
--Oh, senhor doutor! mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem de maus costumes, senhor
doutor! Calumniou-me!
--Tem testemunhas?
--Não, senhor.
--Então?
E o doutor Godinho, assentando os cotovêlos sobre a banca, declarou que como advogado não tinha nada a
fazer. Os tribunaes não tomavam conhecimento d'essas questões, d'esses dramas moraes por assim dizer, que
se passavam nas alcovas domesticas... Como homem, como particular, como Alipio de Vasconcellos Godinho
tambem não podia intervir porque não conhecia o senhor padre Amaro, nem essas senhoras da rua da
Misericordia... Lamentava o facto, porque emfim fôra novo, sentira a poesia da mocidade, e sabia
(infelizmente sabia!) o que eram esses transes do coração... E ahi está tudo o que elle podia fazer--lamentar!
Tambem para que tinha elle dado a sua affeição a uma beata?...
--A culpa não é d'ella, senhor doutor! A culpa é do padre que a anda a desencaminhar! A culpa é d'essa
canalha do cabido!
O doutor Godinho estendeu com severidade a mão, e aconselhou o snr. João Eduardo que tivesse cuidado
com semelhantes asserções! Nada provava que o senhor parocho possuisse n'essa casa outra influencia que
não fosse a d'um habil director espiritual... E recommendava ao snr. João Eduardo, com a auctoridade que
lhe davam os annos e a sua posição no paiz, que não fosse espalhar, por despeito, accusações que só serviam
para destruir o prestigio do sacerdocio, indispensavel n'uma sociedade bem constituida!--Sem elle, tudo seria
anarchia e orgia!
E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava n'essa manhã com «o dom da palavra».
Mas a face consternada do escrevente, que não se movia, de pé junto á banca, impacientava-o; e disse com
seccura, puxando para diante de si um volume d'autos:
--Emfim, acabemos, que quer o amigo? Já vê, eu não lhe posso dar remedio.
--Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer alguma coisa por mim... Porque emfim eu fui uma victima...
Tudo isto vem de se saber que eu escrevi o Communicado. E tinha-se combinado que havia de ser segredo. O
Agostinho não o disse, só o senhor doutor o sabia...
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--Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o disse? Não disse... Isto é, disse;
disse-o a minha mulher, porque n'uma familia bem constituida não deve haver segredos entre esposo e
esposa. Ella perguntou-me, disse-lh'o... Mas supponhamos que fui eu que o espalhei pelas ruas. De duas uma:
ou o Communicado era uma calumnia, e então sou eu que devo accusal-o de ter polluido um jornal honrado
com um acervo de diffamaçães; ou era verdade, e então que homem é o senhor que se envergonha das
verdades que solta, e que não se atreve a manter á luz do dia as opiniões que redigiu na escuridão da noite?
Duas lagrimas ennevoaram os olhos de João Eduardo. Então, diante d'aquella expressão esmorecida,
satisfeito de o ter esmagado com uma argumentação tão logica e tão poderosa, o doutor Godinho abrandou:
--Bem, não nos zanguemos, disse. Não se falla mais era pontos d'honra... O que póde acreditar é que lamento
o seu desgosto.
Deu-lhe conselhos de uma solicitude paternal. Que não succumbisse; havia mais meninas em Leiria e
meninas de bons principios que não viviam sob a direcção da sotaina. Que fosse forte, e que se consolasse
pensando que elle, doutor Godinho--e era elle!--tambem tivera em moço desgostos do coração. Que evitasse
o dominio das paixões que lhe seria prejudicial na carreira publica. E que se o não fizesse por seu interesse
proprio, o fizesse ao menos em attenção a elle, doutor Godinho!
--Isto succede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre diabo, não dou votos nas eleições, não vou ás
soirées do Novaes, não subscrevo para o club. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de contos de reis!...
Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e da religião que os justifica. Voltou
muito decidido ao escriptorio, e entreabrindo a porta:
--Vossa excellencia ao menos agora dá licença que eu desabafe no jornal?... Queria contar esta maroteira,
cascar n'essa canalha...
Esta audacia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com severidade na poltrona, e cruzando
terrivelmente os braços:
--O snr. João Eduardo está realmente a abusar! Pois o senhor vem-me pedir que transforme um jornal
d'idéas n'um jornal de diffamações!? Vá, não se prenda! Peça-me que insulte os principios da religião, que
achincalhe o Redemptor, que repita as babuseiras de Renan, que ataque as leis fundamentaes do Estado, que
injurie o rei, que vitupere a instituição da familia! O senhor está ebrio!
--O senhor está ebrio! Cuidado, meu caro amigo, cuidado, olhe que vai por um declive! É por esse caminho
que se chega a perder o respeito da auctoridade, da lei, das coisas santas e do lar. É por esse caminho que se
vai ao crime! Escusa d'arregalar os olhos... Ao crime, digo-lh'o eu! Tenho a experiencia de vinte annos de
fôro. Homem, detenha-se! refreie essas paixões! Safa! Que idade tem o senhor?
--Pois não ha desculpa para um homem de vinte e seis annos ter essas idéas subversivas. Adeus, feche a
porta. E escute: escusa de pensar em mandar outro Communicado para outro qualquer jornal. Não lh'o
consinto, eu que o tenho protegido sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa de negar, estou-lh'o a
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 135
lêr nos olhos. Pois não lh'o consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma má acção social!
--Uma pessima acção social! Aonde nos querem os senhores levar com os seus materialismos, os seus
atheismos?! Quando tiverem dado cabo da religião de nossos paes, que têm os senhores para a substituir?!
Que têm?! Mostre lá!
A expressão embaraçada de João Eduardo (que não tinha alli, para a mostrar, uma religião que substituisse
a de nossos paes) fez triumphar o doutor.
--Não têm nada! Têm lama, quando muito têm palavriado! Mas emquanto eu fôr vivo, pelo menos em Leiria,
ha de ser respeitada a Fé e o principio da Ordem! Podem pôr a Europa a fogo e sangue, em Leiria não hão
de erguer cabeça. Em Leiria estou eu álerta, e juro que lhes hei de ser funesto!
João Eduardo recebia d'hombros vergados estas ameaças, sem as comprehender. Como podia o seu
Communicado e as intrigas da rua da Misericordia produzirem assim catastrophes sociaes e revoluções
religiosas! Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder decerto a amizade do doutor, o emprego no governo
civil... Quiz abrandal-o:
--Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões, a vingança o vão levando por um caminho fatal... O que espero
é que os meus conselhos o detenham. Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta, homem!
João Eduardo sahiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor Godinho, aquelle colosso, repellia-o
com palavras tremendas! E que podia elle, pobre escrevente de cartorio, contra o padre Amaro que tinha por
si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o Papa, classe solidaria e compacta que lhe apparecia como uma
medonha cidadella de bronze erguendo-se até ao céo?! Eram elles que tinham causado a resolução d'Amelia,
a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de parochos, conegos e beatas. Se elle pudesse
arrancal-a áquella influencia, ella tornaria a ser bem depressa a sua Ameliasinha que lhe bordava chinelas,
e que vinha toda córada vêl-o passar á janella! As suspeitas que outr'ora tivera tinham-se desvanecido
n'aquelles serões felizes, depois de decidido o casamento, quando ella, costurando junto do candieiro, fallava
da mobilia que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha. Ella amava-o, decerto... Mas quê!
tinham-lhe dito que elle era o auctor do Communicado, que era hereje, que tinha costumes devassos; o
parocho, na sua voz pedante, ameaçára-a com o inferno; o conego, furioso, e todo poderoso na rua da
Misericordia porque dava para a panella, fallára têso--e a pobre menina, assustada, dominada, com aquelle
bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez
persuadida, de boa fé, que elle era uma fera! E áquella hora, emquanto elle alli andava pelas ruas,
escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da rua da Misericordia, enterrado na poltrona, senhor
da casa e senhor da rapariga, de perna traçada, palrava d'alto! Canalha! E não haver leis que o vingassem!
e não poder sequer «fazer escandalo», agora que a Voz do Districto se lhe tornava inaccessivel!
Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o parocho aos murros, com a força do padre Brito. Mas o que
o satisfaria mais seriam artigos tremendos n'um jornal que revelassem as intrigas da rua da Misericordia,
amotinassem a opinião, cahissem sobre o padre como catastrophes, o forçassem a elle, ao conego e aos
outros a desapparecerem corridos da casa da S. Joanneira! Ah! estava certo que a Ameliasinha, livre
d'aquelles galfarros, correria logo aos seus braços, com lagrimas de reconciliação...
Procurava assim á força convencer-se que «a culpa não era d'ella»; recordava os mezes de felicidade antes
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 136
da chegada do parocho; arranjava explicações naturaes para aquellas maneirinhas ternas que ella outr'ora
tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciumes desesperados:--era o desejo, coitada, de ser
agradavel ao hospede, ao amigo do senhor conego, de o reter para vantagem da mãi e da casa! E além
d'isso, como ella andava contente depois de resolvido o casamento! A sua indignação contra o
Communicado, estava certo, não era natural d'ella--vinha-lhe soprada pelo parocho e pelas beatas. E achava
uma consolação n'esta idéa que não era repellido como namorado, como marido--mas que era uma victima
das intrigas do torpe padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto
accumulava-lhe na alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava anciosamente
uma vingança, atirando a imaginação aqui e além--mas vinha-lhe sempre a mesma idéa, o artigo de jornal, a
verrina, a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se tivesse por si um «figurão»!
Um homem do campo, amarello como uma cidra, que ia caminhando devagar, com o braço ao peito, deteve-o
a perguntar-lhe onde morava o doutor Gouvêa.
--Na primeira rua, á esquerda, o portão verde ao pé do lampeão, disse João Eduardo.
E uma esperança immensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouvêa é que o podia salvar! O doutor
era seu amigo: tratava-o por tu desde que o curára havia tres annos da pneumonia; approvava muito o seu
casamento com Amelia; havia ainda semanas perguntára-lhe ao pé da Praça:--«Então, quando se faz essa
rapariga feliz?» E que respeitado, que temido na rua da Misericordia! Era medico de todas as amigas da
casa que, apesar de se escandalisarem com a sua irreligião, dependiam humildemente da sua sciencia para
os achaques, os flatos, os xaropes. Além d'isso, o doutor Gouvêa, inimigo decidido da «padraria», decerto se
ia indignar com aquella intriga beata: e João Eduardo via-se já entrando na rua da Misericordia atraz do
doutor Gouvêa, que reprehendia a S. Joanneira, arrasava o padre Amaro, convencia as velhas,--e a sua
felicidade recomeçava, inabalavel agora!
--O senhor doutor está? perguntou elle quasi alegre, á criada que no pateo estendia a roupa ao sol.
Em dias de mercado os doentes do campo affluiam sempre. Mas áquella hora--quando os visinhos das
freguezias se reunem nas tabernas--havia só um velho, uma mulher com uma criança ao collo e o homem do
braço ao peito, esperando n'uma saleta baixa com bancos, dois manjaricões na janella e uma grande gravura
da Coroação da Rainha Victoria. Apesar do sol claro que entrava do pateo, e de uma fresca folhagem de tilia
que roçava o peitoril da janella, a saleta dava tristeza, como se as paredes, os bancos, os mesmos
manjaricões estivessem saturados da melancolia das doenças que alli tinham passado. João Eduardo entrou
e sentou-se a um canto.
Tinha batido meio dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado tanto: era de uma freguezia distante,
deixára no mercado a irmã, e havia uma hora que o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada
momento a criança rabujava, ella sacudia-a nos braços: calavam-se depois: o velho arregaçava a calça,
contemplava com satisfação uma chaga na canella envolta em trapos: e o outro homem dava bocejos
desconsolados que tornavam mais lugubre a sua longa face amarella. Aquella demora enervava, amollecia o
escrevente; sentia perder gradualmente o animo de occupar o doutor Gouvêa; preparava laboriosamente a
sua historia, mas ella parecia-lhe agora bem insufficiente para o interessar. Vinha-lhe então um desalento,
que as faces insipidas dos doentes tornavam ainda mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta
vida, cheia só de miserias, de sentimentos trahidos, de afflicções, de doenças! Erguia-se; e com as mãos atraz
das costas ia olhar desconsoladamente a Coroação da Rainha Victoria.
De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas senhoras ainda lá estariam. Lá
estavam; e através do batente de baeta verde, que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes
pachorrentas palrarem.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 137
Tambem elle deixára a cavalgadura á porta do Fumaça, e a rapariga na praça... E o que teria a esperar na
botica, depois! Com tres legoas ainda a fazer para voltar á freguezia!... Ser doente é bom, mas para quem é
rico e tem vagares!
A idéa da doença, da solidão que ella traz, faziam agora parecer a João Eduardo mais amarga a perda de
Amelia. Se adoecesse teria de ir para o hospital. O malvado do padre tirára-lhe tudo--mulher, felicidade,
confortos de familia, dôces companhias da vida!
Emfim sentiram no corredor as duas senhoras que sahiam. A mulher com a criança apanhou o seu cabaz,
precipitou-se. E o velho, apoderando-se logo do banco junto da porta, disse com satisfação:
--Agora cá o patrão!
E immediatamente contou a historia da sua chaga: fôra uma trave que lhe cahira em cima; não fizera caso;
depois a ferida assanhára-se; e agora alli estava, manco e cortidinho de dôres.
--Eu não estou doente, disse o escrevente. São negocios com o senhor doutor.
Emfim foi a vez do velho, depois a do homem amarello de braço ao peito. João Eduardo, só, passeava
nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difficil ir assim, sem ceremonia, pedir protecção ao doutor.
Com que direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dôres do peito ou desarranjos de estomago, e
depois, incidentalmente, contar os seus infortunios...
Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante d'elle, com a sua longa barba grisalha que lhe cahia sobre a
quinzena de velludo preto, o largo chapéo desabado na cabeça, calçando as luvas de fio d'Escocia.
Seguiu-o ao gabinete--o conhecido gabinete do doutor Gouvêa, que com o seu cahos de livros, o seu tom
poeirento, uma panoplia de flechas selvagens e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade a reputação
d'uma «cella d'alchimista».
--Está bom, disse o doutor, explica-te como puderes. Não ha nada mais difficil que ser claro e breve; é
necessario ter genio. Que é?
João Eduardo então tartamudeou a sua historia, insistindo sobretudo na perfidia do padre, exagerando a
innocencia de Amelia...
--Vejo o que é. Tu e o padre, disse elle, quereis ambos a rapariga. Como elle é o mais esperto e o mais
decidido, apanhou-a elle. É lei natural: o mais forte despoja, elimina o mais fraco; a femea e a prêsa
pertencem-lhe.
--Vossa excellencia está a caçoar, senhor doutor, mas a mim retalha-se-me o coração!
--Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a philosophar, não estou a caçoar... Mas emfim, que queres tu
que eu te faça?
Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, tambem, com mais pompa!
O doutor sorriu:
--Eu posso receitar á rapariga este ou aquelle xarope, mas não lhe posso impôr este ou aquelle homem!
Queres que lhe vá dizer: «A menina ha de preferir aqui o snr. João Eduardo?» Queres que vá dizer ao padre,
um maganão que eu nunca vi: «O senhor faz favor de não seduzir esta menina?»
--Mas calumniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de maus costumes, um patife...
--Não, não te calumniaram. Sob o ponto de vista do padre e d'aquellas senhoras que jogam á noite o quino na
rua da Misericordia tu és um patife: um christão que nos periodicos vitupera abbades, conegos, curas,
personagens tão importantes para se communicar com Deus e para se salvar a alma, é um patife. Não te
calumniaram, amigo!
--Eu comprehenderia, disse, se fosse um homem de maus costumes, senhor doutor. Mas eu porto-me bem; eu
não faço senão trabalhar; eu não frequento tabernas nem troças; eu não bebo, eu não jógo; as minhas noites
passo-as na rua da Misericordia, ou em casa a fazer serão para o cartorio...
--Meu rapaz, tu pódes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religião de nossos paes, todas as
virtudes que não são catholicas são inuteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro,
são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fôres um modelo de bondade mas
não fôres á missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura--és simplesmente
um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impeccavel,
têm sido julgados verdadeiros canalhas porque não foram baptisados antes de ter sido perfeitos. Has de ter
ouvido fallar de Socrates, d'um outro chamado Platão, de Catão, etc... Foram sujeitos famosos pelas suas
virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes d'esses homens
estava cheio o inferno... Isto prova que a moral catholica é differente da moral natural e da moral social...
Mas são coisas que tu comprehendes mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo a doutrina catholica, um
dos grandes desavergonhados que passeiam as ruas da cidade; e o meu visinho Peixoto, que matou a mulher
com pancadas e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma filhita de dez annos, é entre o clero um
homem excellente porque cumpre os seus deveres de devoto e toca figle nas missas cantadas. Emfim, amigo,
estas coisas são assim. E parece que são boas, porque ha milhares de pessoas respeitaveis que as consideram
boas, o Estado mantem-as, gasta até um dinheirão para as manter, obriga-nos mesmo a respeital-as--e eu,
que estou aqui a fallar, pago todos os annos um quartinho para que ellas continuem a ser assim. Tu
naturalmente pagas menos...
--Mas emfim vaes ás festas, ouves musica, sermão, desforras-te dos teus sete vintens. Eu, o meu quartinho
perco-o; consolo-me apenas com a idéa de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja--da Igreja que em
vida me considera um bandido, e que para depois de morto me tem preparado um inferno de primeira classe.
Emfim, parece-me que temos cavaqueando bastante... Que queres mais?
João Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava o doutor, parecia-lhe, mais que nunca, que se um
homem de palavras tão sabias, de tantas idéas, se interessasse por elle, toda a intriga seria facilmente
desfeita e a sua felicidade, o seu logar na rua da Misericordia recobrados para sempre.
--Então vossa excellencia não póde fazer nada por mim? disse muito desconsolado.
--Eu posso talvez curar-te d'outra pneumonia. Tens outra pneumonia a curar? Não? Então...
--Fazes mal. Não deve haver victimas, quando não seja senão para impedir que haja tyrannos--disse o
doutor, pondo o seu largo chapéo desabado.
--Porque no fim de tudo, exclamou ainda João Eduardo que se prendia ao doutor com uma sofreguidão
d'afogado, no fim de tudo o que o patife do parocho quer, com todos os seus pretextos, é a rapariga! Se ella
fosse um camafeu, bem se importava o maroto que eu fosse um impio ou não! O que elle quer é a rapariga!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 140
--É natural, coitado--disse, já com a mão no fecho da porta. Que queres tu? Elle tem para as mulheres, como
homem, paixões e orgãos; como confessor, a importancia d'um Deus. É evidente que ha de utilisar essa
importancia para satisfazer essas paixões; e que ha de cobrir essa satisfação natural com as apparencias e
com os pretextos do serviço divino... É natural.
João Eduardo então, vendo-o abrir a porta, desvanecer-se a esperança que o trouxera alli, disse, furioso,
vergastando o ar com o chapéo:
--Canalha de padres! Foi raça que sempre detestei! Queria-a vêr varrida da face da terra, senhor doutor!
--Isso é outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escutal-o ainda, e parando á porta do quarto. Ouve lá.
Tu crês em Deus? no Deus do céo, no Deus que lá está no alto do céo, e que é lá de cima o principio de toda
a justiça e de toda a verdade?
--Tambem...
--Então para que queres varrer os padres da face da terra? Deves pelo contrario ainda achar que são
poucos. És um liberal racionalista nos limites da Carta, ao que vejo... Mas se crês no Deus do céo, que nos
dirige lá de cima, e no peccado original, e na vida futura, precisas d'uma classe de sacerdotes que te
expliquem a doutrina e a moral revelada de Deus, que te ajudem a purificar da macula original e te
preparem o teu logar no paraiso! Tu necessitas dos padres. E parece-me mesmo uma terrivel falta de logica
que os desacredites pela imprensa...
--Nem no outro. Eu não preciso dos padres no mundo, porque não preciso do Deus do céo. Isto quer dizer,
meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro em mim, isto é, o principio que dirige as minhas acções e os meus
juizos. Vulgo Consciencia... Talvez não comprehendas bem... O facto é que estou aqui a expôr doutrinas
subversivas... E realmente são tres horas...
E mostrou-lhe o cebolão.
--Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixão está a roer cá por dentro!...
--Ah! fez o doutor, é uma bella e grande coisa a paixão! O amor é uma das grandes forças da civilisação.
Bem dirigida levanta um mundo e bastava para nos fazer a revolução moral...--E mudando de tom:--Mas
escuta. Olha que isso ás vezes não é paixão, não está no coração... O coração é ordinariamente um termo de
que nos servimos, por decencia, para designar outro orgão. É precisamente esse orgão o unico que está
interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E n'esses casos o desgosto não dura. Adeus,
estimo que seja isso!
XV
João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado, todo cansado da noite desesperada
que passára, d'aquella manhã cheia de passos inuteis, das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouvêa.
Tinha a alma extenuada de tantos esforços de paixão, d'esperança e de cólera. Desejaria ir estirar-se ao
comprido, n'um sitio isolado, longe de advogados, de mulheres e de padres, e dormir durante mezes. Mas
como já passava das tres horas, apressava-se para o cartorio do Nunes. Teria talvez ainda de ouvir um
sermão por ter chegado tão tarde! Triste vida a sua!
Dobrára a esquina no Terreiro, quando ao pé da casa de pasto do Osorio se encontrou com um moço de
quinzena clara, debruada de uma fita negra muito larga, e com um bigodinho tão preto que parecia postiço
sobre as suas feições extremamente pallidas.
Era um Gustavo, typographo da Voz do Districto, que havia dois mezes fôra para Lisboa. Segundo dizia o
Agostinho, era «rapaz de cabeça e instruidote, mas d'idéas do diabo». Escrevia ás vezes artigos de Politica
Estrangeira, onde introduzia phrases poeticas e retumbantes, amaldiçoando Napoleão III, o czar e os
oppressores do povo, chorando a escravidão da Polonia e a miseria do proletario. A sympathia entre elle e
João Eduardo proviera de conversas sobre religião, em que ambos exhalavam o seu odio ao clero e a sua
admiração por Jesus Christo. A revolução d'Hespanha enthusiasmára-o tanto que aspirára a pertencer á
Internacional; e o desejo de viver n'um centro operario, onde houvesse associações, discursos e fraternidade,
levára-o a Lisboa. Encontrára lá bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a mãi, velha e
doente, e como era mais economico viverem juntos, voltára a Leiria. O Districto, além d'isso, na perspectiva
d'eleições, prosperava a ponto de augmentar o salario aos tres typographos.
Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo a que lhe fizesse companhia. Não havia d'acabar o mundo, que
diabo, por elle faltar um dia ao cartorio!
João Eduardo então lembrou-se que desde a vespera não tinha comido. Era talvez a debilidade que o
trouxera assim estonteado, tão prompto a desanimar... Decidiu-se logo--contente, depois das emoções e das
fadigas da manhã, de se estirar no banco da taberna, diante d'um prato cheio, na intimidade com um
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 142
camarada d'odios iguaes aos seus. Demais, os repellões que soffrera davam-lhe uma necessidade, uma avidez
de sympathia; e foi com calor que disse:
--Homem, valeu! Caes-me do céo! Este mundo é uma choldra. Se não fosse por alguma hora que se passa em
amizade, caramba, não valia a pena andar por cá!
--Porquê? As coisas não correm bem? Turras com a besta do Nunes, hein? perguntou-lhe.
--Isso de spleen é d'inglez! Oh menino, havias de vêr o Taborda no Amor londrino!... Deixa lá o spleen. É
deitar lastro para dentro e carregar no liquido!
O dono da casa de pasto, o tio Osorio, personagem obeso e contente da vida, com as mangas da camisa
arregaçadas até aos hombros, os braços nús muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa e finoria,
felicitou logo Gustavo de o vêr de novo em Leiria. Achava-o mais magrito... Havia de ser das más aguas de
Lisboa e do muito pau campeche nos vinhos... E que havia d'elle servir aos cavalheiros?
Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapéo para a nuca, apressou-se a soltar o gracejo, que tanto o
enthusiasmára em Lisboa:
O tio Osorio, prompto á réplica, disse logo, dando um raspão de rodilha sobre o zinco do contador:
--Então estão vossês muito atrazados! Em Lisboa era todos os dias o meu almoço... Bem, acabou-se, dê-nos
duas iscas com batatas... E bem saltadinho, isso!
Accommodaram-se á «mesa dos envergonhados», entre dois tabiques de pinho fechados por uma cortina de
chita. O tio Osorio, que apreciava Gustavo, «moço instruido e de pouca troça», veio elle mesmo trazer a
garrafa do tinto e as azeitonas; e limpando os copos ao avental enxovalhado:
--Então que ha de novo pela capital, snr. Gustavo? Como vai por lá aquillo?
O typographo deu immediatamente seriedade ao rosto; passou a mão pelos cabellos, e deixou cahir algumas
phrases enigmaticas:
--Tremidito... Muito pouca vergonha em politica... A classe operaria começa a mexer-se... Falta d'união, por
ora... Está-se á espera de vêr como as coisas correm em Hespanha... Ha de havel-as bonitas! Tudo depende
d'Hespanha ...
Mas o tio Osorio, que juntára alguns vintens e comprára uma fazenda, tinha horror a tumultos... O que se
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 143
queria no paiz era paz... Sobretudo o que lhe desagradava era contar-se com hespanhoes... De Hespanha,
deviam os cavalheiros sabel-o, «nem bom vento nem bom casamento»!
--Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo. Quando se tratar d'atirar abaixo Bourbons e imperadores,
camarilhas e fidalguia, não ha portuguezes nem hespanhoes, todos são irmãos! Tudo é fraternidade, tio
Osorio!
--Pois então é beber-lhe á saude, e beber-lhe rijo, que isso é que faz andar o negocio, disse o tio Osorio
tranquillamente, rolando a sua obesidade para fóra do cubiculo.
--Elephante! rosnou o typographo, chocado com aquella indifferença pela Fraternidade dos Povos. Que se
podia esperar, de resto, d'um proprietario e d'um agente d'eleições?
Trauteou a Marselheza, enchendo os copos d'alto, e quiz saber o que tinha feito o amigo João Eduardo... Já
se não ia pelo Districto? O rachitico dissera-lhe que não havia despegal-o da rua da Misericordia...
--Nada decidido... Tem havido difficuldades.--E acrescentou com um sorriso desconsolado:--Temos tido
arrufos.
--Pieguices! soltou o typographo, com um movimento d'hombros, que exprimia um desdem de revolucionario
pelas frivolidades do sentimento.
--Pieguices... Não sei se são pieguices, disse João Eduardo. O que sei é que dão desgostos... Arrasam um
homem, Gustavo...
Mas o typographo achava todas essas historias de mulheres ridiculas. O tempo não estava para amores... O
homem do povo, o operario que se agarrava a uma saia para não despegar, era um inutil... era um vendido!
Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar o trabalho das garras
do capital, acabar com os monopolios, trabalhar para a republica! Não se queria lamuria, queria-se acção,
queria-se a força!--E carregava furiosamente no r da palavra--a forrrça!--agitando os seus pulsos
magrissimos de tisico sobre o grande prato d'iscas que o moço trouxera.
João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o typographo, doido pela Julia padeira, apparecia
sempre com os olhos vermelhos como carvões, e atroava a typographia com suspiros medonhos. A cada ai os
camaradas, troçando, davam uma tossesinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo e o Medeiros tinham-se
esmurrado no pateo...
--Olha quem falla! disse por fim. És como os outros... Estás ahi a palrar, e quando te chega és como os
outros.
O typographo então--que, desde que em Lisboa frequentára um Club democratico d'Alcantara e ajudára a
redigir um manifesto aos irmãos cigarreiros em grève, se considerava exclusivamente votado ao serviço do
Proletariado e da Republica--escandalisou-se. Elle? Elle como os outros? Perder o seu tempo com saias?...
--Está vossa senhoria muito enganado!--E recolheu-se a um silencio chocado, partindo com furor a sua isca.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 144
--Ó Gustavo, sejamos razoaveis: um homem póde ter os seus principios, trabalhar pela sua causa, mas casar,
arranjar o seu conchego, ter uma família.
--Nunca! exclamou o typographo exaltado. O homem que casa está perdido! D'ahi por diante é ganhar a
papa, não se mexer do buraco, não ter um momento para os amigos, passear de noite os marmanjos quando
elles berram com os dentes... É um inutil! é um vendido! As mulheres não entendem nada de politica. Têm
medo que o homem se metta em barulhos, tenha turras com a policia... Está um patriota atado de pés e mãos!
E quando ha um segredo a guardar? O homem casado não póde guardar um segredo!... E ahi está ás vezes
uma revolução compremettida... Sêbo p'r'á familia! Outra de azeitonas, tio Osorio!
--Então que estão os senhores aqui a questionar, que parece que entraram os da Maia no conselho de
districto?
--O tio Osorio é que vai dizer. Diga lá o amigo. Vossemecê era homem de mudar as suas opiniões politicas
para fazer a vontade á sua patrôa?
--Eu lhe respondo, senhor Gustavo. Mulheres são mais espertas que nós... E em politica, como em negocio,
quem fôr com o que ellas dizem vai pelo seguro... Eu sempre consulto a minha, e se quer que lhe diga, já vai
em vinte annos e não me tenho achado mal.
O tio Osorio, acostumado áquella expressão querida do typographo, não se escandilisou; gracejou até, com o
seu amor ás boas réplicas:
--Vendido não direi, mas vendedor p'r'ó que quizer... Pois é o que lhe digo, snr. Gustavo. O senhor casará, e
depois m'as contará.
--O que lhe hei de contar, é quando houver uma revolução, entrar-lhe por aqui d'espingarda ao hombro, e
mettel-o em conselho de guerra, seu capitalista!
--Pois emquanto isso não chega é beber-lhe e beber-lhe rijo, disse o tio Osorio retirando-se com pachorra.
E, como adorava discussões, recomeçou logo--sustentando que o homem, embeiçado por uma saia, não tem
firmeza nas suas convicções politicas...
João Eduardo sorria tristemente, n'uma negação muda, pensando comsigo que, apesar da sua paixão por
Amelia, não se tinha confessado nos dois ultimos annos!
--E é o que te ha de succeder!... Tu tens idéas menos más a respeito de religião, mas ainda te hei de vêr d'opa
vermelha e cirio na mão na procissão do Senhor dos Passos... Philosophia e atheismo não custam nada
quando se conversa no bilhar entre rapazes... Mas pratical-os em familia, quando se tem uma mulher bonita e
devota, é o diabo! É o que te ha de succeder, se é que te não vai succedendo já: has de atirar as tuas
convicções liberaes para o caixão do cisco, e fazer barretadas ao confessor da casa!
João Eduardo fazia-se escarlate de indignação. Mesmo nos tempos da sua felicidade, quando tinha Amelia
certa, aquella accusação (que o typographo fazia só para questionar, para palrar) tel-o-hia escandalisado.
Mas hoje! Justamente quando elle perdera Amelia por ter dito d'alto, n'um jornal, o seu horror a beatos!
Hoje que se achava alli, com o coração partido, roubado de toda a alegria, exactamente pelas suas opiniões
liberaes!...
--Isso dito a mim tem graça! disse com uma amargura sombria.
O typographo galhofou:
--Por quem és não me apoquentes, Gustavo, disse o escrevente muito chocado. Tu não sabes o que se tem
passado. Se soubesses não me dizias isso...
Contou-lhe então a historia do Communicado--calando todavia que o escrevera n'um fogo de ciumes, e
apresentando-o como uma pura affirmação de principios... E que notasse esta circumstancia, ia então casar
com uma rapariga devota, n'uma casa que era mais frequentada por padres que a sacristia da Sé...
Encheu os copos com transporte, bebeu uma grande saude a João Eduardo.
--Caramba, quero vêr isso! Quero mandal-o á rapaziada em Lisboa!... E que effeito fez?
--E os padrecas?
--Em braza!
João Eduardo encolheu os hombros. O Agostinho não o dissera. Desconfiava da mulher do Godinho, que o
sabia pelo marido, e que o fôra metter no bico do padre Silverio, seu confessor, o padre Silverio da rua das
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Therezas...
--Sim.
Olhava agora João Eduardo com respeito, aquelle João Eduardo que se lhe revelava inesperadamente um
paladino do livre-pensamento.
--Bebe, amigo, bebe!--dizia-lhe, enchendo-lhe o copo com affecto, como se aquelle esforço heroico de
liberalismo necessitasse ainda, depois de tantos dias, reconfortos excepcionaes.
Tanto interesse commoveu João Eduardo: e d'um fôlego fez a sua confidencia. Mostrou-lhe mesmo a carta
d'Amelia que ella decerto, coitada, fôra levada a escrever n'um terror do inferno, sob a pressão dos padres
furiosos...
Era-o com effeito; e o typographo considerava-o com uma admiração crescente. Já não era o Pacatinho, o
escrevente do Nunes, o chichisbéo da rua da Misericordia--era uma victima das perseguições religiosas. Era
a primeira que o typographo via; e, apesar de não lhe apparecer na attitude tradicional das estampas de
propaganda, amarrado a um poste de fogueira ou fugindo com a familia espavorida a soldados que galopam
da sombra do ultimo plano, achava-o interessante. Invejava-lhe secretamente aquella honra social. Que chic
que lhe daria a elle entre a rapaziada d'Alcantara! Famosa pechincha, ser uma victima da reacção sem
perder o conforto das iscas do tio Osorio e os salarios inteiros ao sabbado!--Mas sobretudo o procedimento
dos padres enfurecia-o! Para se vingarem d'um liberal, intrigarem-no, tiraram-lhe a noiva!--Oh, que
canalha!... E esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e á Familia, trovejou d'alto contra o clero, que é
quem sempre destroe essa instituição social, perfeita, d'origem divina!
João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho: d'alli por diante o Districto estava fechado aos
senhores livre-pensadores!
Mas tinha uma idéa, caramba! Publicar um folheto! Um folheto de vinte paginas, o que se chama no Brazil
uma mofina, mas n'um estylo floreado (elle se encarregava d'isso), cahindo sobre o clero com um
desabamento de verdades mortaes!
João Eduardo enthusiasmou-se. E diante d'aquella sympathia activa de Gustavo, vendo n'elle um irmão,
soltou as ultimas confidencias, as mais dolorosas. O que havia no fundo da intriga era a paixão do padre
Amaro pela pequena, e era para se apoderar d'ella que o escorraçava a elle... O inimigo, o malvado, o
carrasco--era o parocho!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 147
O typographo apertou as mãos na cabeça: semelhante caso (que todavia era para elle trivial, nas locaes que
compunha) succedido a um amigo seu que estava alli bebendo com elle, a um democrata, parecia-lhe
monstruoso, alguma coisa semelhante aos furores de Tiberio na velhice, violando, em banhos perfumados, as
carnes delicadas de mancebos patricios.
Não queria acreditar. João Eduardo accumulou as provas. E então Gustavo, que tinha molhado vastamente
de tinta as iscas de figado, ergueu os punhos fechados, e com a face entumecida, dente rilhado, berrou em
rouco:
--Abaixo a religião!
Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremettido. Mas João Eduardo socegou-o. E o typographo,
sentando-se tranquillamente, rechupou o fundo do copo.
Então, com os cotovêlos sobre a mesa, a garrafa entre elles, conversaram baixo, de rosto a rosto, sobre o
plano do folheto. A coisa era facil: escrevel-o-hiam ambos. João Eduardo queria-o em fórma de romance,
d'enredo negro, dando ao personagem do parocho os vicios e as perversidades de Caligula e d'Hellogabalo.
O typographo porém queria um livro philosophico, de estylo e de principios, que **demolisse** d'uma vez
para sempre o Ultramontanismo! Elle mesmo se encarregava de imprimir a obra aos serões, gratis, já se
sabe.--Mas appareceu-lhes então, bruscamente, uma difficuldade.
Era uma despeza de nove ou dez mil reis; nenhum os tinha--nem um amigo que, por dedicação aos principios,
lh'os adiantasse.
João Eduardo coçou desconsoladamente a cabeça. Estava justamente pensando no Nunes e na sua
indignação de devoto, de membro da junta de parochia, d'amigo do chantre, apenas lêsse o pamphleto! E se
soubesse que era o seu escrevente que o compuzera, com as pennas do cartorio, no papel almaço do
cartorio... Via-o já rôxo de cólera, alçando sobre o bico dos sapatos brancos a sua pessoa gordalhufa, e
gritando na voz de grillo:--«Fóra d'aqui, pedreiro-livre, fóra d'aqui!»
--Ficava eu bem arranjado, disse João Eduardo muito sério, nem mulher nem pão!
Isto fez lembrar tambem a Gustavo a cólera provavel do doutor Godinho, dono da typographia. O doutor
Godinho, que depois da reconciliação com a gente da rua da Misericordia, retomára publicamente a sua
consideravel posição de pilar da Igreja e esteio da Fé...
Então praguejaram de raiva. Perder uma occasião d'aquellas para pôr a calva á mostra ao clero!
O plano do folheto, como uma columna tombada que parece maior, afigurava-se-lhes, agora que estava
derrubado, d'uma altura, d'uma importancia colossal. Não era já a demolição local d'um parocho scelerado,
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era a ruina, ao longe e ao largo, de todo o clero, dos jesuitas, do poder temporal, de outras coisas
funestas...--Maldição! se não fosse o Nunes, se não fosse o Godinho, se não fossem os nove mil reis do
papel...
Aquelle perpetuo obstaculo do pobre, falta de dinheiro e dependencia do patrão, que até para um folheto era
estorvo, revoltou-os contra a sociedade.
--Positivamente é necessario uma revolução! affirmou o typographo. É necessario arrasar tudo, tudo!--E o
seu largo gesto sobre a mesa indicava, n'um formidavel nivelamento social, uma demolição de igrejas,
palacios, bancos, quarteis e predios de Godinhos!--Outra do tinto, tio Osorio!...
Mas o tio Osorio não apparecia. Gustavo martellou a mesa a toda a força com o cabo da faca. E emfim,
furioso, sahiu fóra ao contador «para arrebentar a pansa áquelle vendido que fazia assim esperar um
cidadão».
Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando com o barão de Via-Clara, que, em vesperas d'eleições,
vinha pelas casas de pasto apertar a mão aos compadres. E alli na taberna, parecia magnifico o barão, com
a sua luneta d'ouro, os botins de verniz sobre o sólo terreo, tossicando ao cheiro acre do azeite fervido e das
emanações das borras de vinho.
Mas vendo João Eduardo aniquilado, com a cabeça entre os punhos, o typographo exhortou-o a não
esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de casar com uma beata...
--Não me poder vingar d'aquelle maroto! interrompeu João Eduardo com um repellão no prato.
--Não te afflijas, prometteu o typographo com solemnidade, que a vingança não vem longe!
Fez-lhe então, baixo, a confidencia «das coisas que se preparavam em Lisboa». Tinham-lhe afiançado que
havia um club republicano a que até pertenciam figurões--o que era para elle uma garantia superior de
triumpho. Além d'isso, a rapaziada do trabalho mexia-se... Elle mesmo--e murmurava quasi contra a face de
João Eduardo, estirado sobre a mesa--fôra fallado para pertencer a uma secção da Internacional, que devia
organisar um hespanhol de Madrid; nunca vira o hespanhol, que se disfarçava por causa da policia; e a
coisa falhára porque o Comitétinha falta de fundos... Mas era certo haver um homem, que possuia um talho,
que promettera cem mil reis... O exercito, além d'isso, estava na coisa: tinha visto n'uma reunião um sujeito
barrigudo que lhe tinham dito que era major, e que tinha cara de major...--De modo que, com todos estes
elementos, a opinião d'elle Gustavo, era que dentro de mezes, governo, rei, fidalgos, capitalistas, bispos,
todos esses monstros iam pelos ares!
--E então somos nós os reisinhos, menino! Godinho, Nunes, toda a cambada ferramol-a na enxovia de S.
Francisco. Eu a quem me atiro é ao Godinho... Padres, derreamol-os á pancada! E o povo respira, emfim!
--Mas d'aqui até lá! suspirou João Eduardo, que pensava com amargura que quando a revolução viesse já
seria tarde para recuperar a Ameliasinha...
--Ora até que emfim, «seu fidalgo»! disse o typographo a trasbordar de sarcasmo.
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--Não se pertence á classe, mas é-se tratado por ella com consideração, replicou logo o tio Osorio, a quem a
satisfação fazia parecer mais pansudo.
--Dezoito na freguezia, e esperanças de dezenove. E que se ha de servir mais aos cavalheiros? Nada mais?
Pois é pena. Então é beber-lhe, é beber-lhe!
E correu a cortina, deixando os dois amigos em frente da garrafa cheia, aspirarem a uma Revolução que lhes
permittisse--a um rehaver a menina Amelia, a outro espancar o patrão Godinho.
Eram quasi cinco horas quando sahiram emfim do cubiculo. O tio Osorio, que se interessava por elles por
serem rapazes d'instrucção, notou logo, examinando-os do canto do balcão onde saboreava o seu Popular,
que «vinham tocaditos». João Eduardo, sobretudo, de chapéo carregado e beiço trombudo: «pessoa de mau
vinho», pensou o tio Osorio, que o conhecia pouco. Mas o snr. Gustavo, como sempre, depois dos seus tres
litros, resplandecia de jubilo. Grande rapaz! Era elle que pagava a conta; e gingando para o balcão, batendo
d'alto com as suas duas placas:
--Ah bandido! imaginas que o suor do povo, o dinheiro do trabalho é para encher a pansa dos Philistinos?
Mas não as perdes! Que no dia do ajuste de contas quem ha de ter a honra de te furar esse bandulho ha de
ser cá o Bibi... E o Bibi sou eu... Eu é que sou o Bibi! Não é verdade, João, quem é o Bibi?
João Eduardo não o escutava: muito carrancudo, olhava com desconfiança um borracho, que na mesa do
fundo, diante do seu litro vazio, com o queixo na palma da mão e o cachimbo nos dentes, embasbacára,
maravilhado, para os dois amigos.
--Dize aqui ao tio Osorio quem é o Bibi! Quem é o Bibi?... Olhe p'ra isto, tio Osorio! Rapaz de talento, e dos
bons! Veja-me isto! Com duas pennadas dá cabo do ultramontanismo! É cá dos meus! Tambem entre nós é
p'r'á vida e p'r'á morte. Deixa lá a conta, Osorio barrigudo, ouve o que te digo! Este é dos bons... E se elle
aqui voltar e quizer dois litros a credito, é dar-lh'os... Cá o Bibi responde por tudo.
Mas o borracho arrancára-se com esforço ao seu banco: de cachimbo espetado, arrotando forte, veio
plantar-se diante do typographo, e, tremeleando nas pernas, estendeu-lhe a mão aberta.
--Que quer vossê? Aposto que foi vossê que berrou ha pouco «Viva Pio Nono»? Seu vendido... Tire p'ra lá a
pata!
O borracho, repellido, grunhiu; e, embicando contra João Eduardo, offereceu-lhe a mão espalmada.
E não se arredava, com os cinco dedos muito espetados, despedindo um halito fetido.
--Brincadeiras de mãos, não! exclamou logo severamente o tio Osorio. Brutalidades, não!
--Quem não tem decencia vai p'r'á rua, disse muito grave o tio Osorio.
--Quem vai p'r'á rua, quem vai p'r'á rua? rugiu o escrevente, empinando-se, de punho fechado. Repita lá isso
d'ir p'r'á rua! Com quem está vossê a fallar?
O tio Osorio não replicava, apoiado sobre as mãos ao balcão, patenteando os seus enormes braços que lhe
faziam o estabelecimento respeitado.
Mas Gustavo, com auctoridade, poz-se entre os dois, e declarou que era necessario ser-se cavalheiro!
Questões e más palavras, não! Podia-se chalacear e troçar os amigos, mas como cavalheiros! E alli só havia
cavalheiros!
--Oh, João! oh, João! dizia-lhe com grandes gestos, isso não é d'um homem illustrado!
Que diabo! Era necessario ter-se boas maneiras! Com repentes, com vinho desordeiro, não havia pandega,
nem sociedade, nem fraternidade!
--Eu respondo por elle, Osorio! É um cavalheiro! Mas tem tido desgostos, e não está acostumado a um litro
de mais. É o que é! Mas é dos bons... Vossê desculpe, tio Osorio. Que eu respondo por elle...
Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a mão ao tio Osorio. O taberneiro declarou com emphase que
não quizera insultar o cavalheiro. Os shake-hands então succederam-se com vehemencia. Para consolidar a
reconciliação, o typographo pagou tres «canas brancas». João Eduardo, por brio, offereceu tambem um
«giro» de cognac. E com os copos em fila sobre o balcão, trocavam boas palavras, tratavam-se de
cavalheiros--emquanto o borracho, esquecido ao seu canto, derreado para cima da mesa, a cabeça sobre os
punhos e o nariz sobre o litro, se babava silenciosamente, com o cachimbo cravado nos dentes.
--D'isto é que eu gósto! dizia o typographo a quem a aguardente augmentára a ternura. Harmonia! Cá o meu
fraco é a harmonia! Harmonia entre a rapaziada e entre a humanidade... O que eu queria era vêr uma
grande mesa, e toda a humanidade sentada n'um banquete, e fogo preso, e chalaça, e decidirem-se as
questões sociaes! E o dia não vem longe em que vossê o ha de vêr, tio Osorio!... Em Lisboa as coisas vão-se
preparando p'ra isso. E o tio Osorio é que ha de fornecer o vinho... Hein, que negociosinho! Diga que não
sou amigo!
--Isto aqui entre nós, hein, que somos todos cavalheiros! E cá este--abraçava João Eduardo--é como se fosse
irmão! Entre nós é p'r'á vida e p'r'á morte! E é mandar a tristeza ao diabo, rapaz! Toca a escrever o folheto...
O Godinho, e o Nunes...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 151
--O Nunes racho-o! soltou com força o escrevente, que, depois das «saudes» com cana, parecia mais
sombrio.
Dois soldados entraram então na taberna--e Gustavo julgou que eram horas d'ir para a typographia. Senão,
não se haviam de separar todo o dia, não se haviam de separar toda a vida!... Mas o trabalho é dever, o
trabalho é virtude!
Sahiram, emfim, depois de mais shake-hands com o tio Osorio. Á porta, Gustavo jurou ainda ao escrevente
uma lealdade d'irmão; obrigou-o a aceitar a sua bolsa de tabaco; e desappareceu á esquina da rua, de
chapéo para a nuca, trauteando o Hymno do trabalho.
João Eduardo, só, abalou logo para a rua da Misericordia. Ao chegar á porta da S. Joanneira, apagou com
cuidado o cigarro na sola do sapato, e deu um puxão tremendo ao cordão da campainha.
João Eduardo foi-se encostar á parede defronte, e ficou alli, de braços cruzados, observando a casa: as
janellas estavam fechadas, as cortinas de cassa corridas: dois lenços de rapé do conego seccavam em baixo
na varanda.
Aproximou-se de novo e bateu devagarinho a aldrava. Depois repicou com furor a campainha. Ninguem
appareceu: então, indignado, partiu para os lados da Sé.
Ao desembocar no largo, diante da fachada da igreja, parou, procurando em redor com o sobr'olho
carregado: mas o largo parecia deserto; á porta da pharmacia do Carlos um rapazito, sentado no degrau,
guardava pela arreata um burro carregado de herva; aqui e além, gallinhas iam picando o chão vorazmente;
o portão da igreja estava fechado; e apenas se ouvia o ruido de martelladas n'uma casa ao pé em que havia
obras.
E João Eduardo ia seguir para os lados da Alameda--quando appareceram no terraço da igreja, da banda da
sacristia, o padre Silverio e o padre Amaro, conversando, devagar.
Batia então um quarto na torre, e o padre Silverio parou a acertar o seu cebolão. Depois os dois padres
observaram maliciosamente a janella da administração, de vidraças abertas, onde se via, no escuro, o vulto
do senhor administrador de binoculo cravado para a casa do Telles alfaiate. E desceram emfim a escadaria
da Sé, rindo d'hombro a hombro, divertidos com aquella paixão que escandalisava Leiria.
Foi então que o parocho viu João Eduardo que estacára no meio do largo. Parou para voltar á Sé decerto,
evitar o encontro; mas viu o portão fechado, e ia seguir d'olhos baixos, ao lado do bom Silverio que tirava
tranquillamente a sua caixa de rapé,--quando João Eduardo, arremessando-se, sem uma palavra, atirou a
toda a força um murro ao hombro d'Amaro.
Janellas no largo abriam-se á pressa. A Amparo da botica, em saia branca, appareceu á varanda,
espavorida; o Carlos precipitára-se do laboratorio em chinelas; e o senhor administrador, debruçado na
sacada, bracejava, com o binoculo na mão.
Emfim o escrivão da administração, o Domingos, compareceu, muito grave, de mangas de lustrina enfiadas:
e com o cabo de policia levou logo para a administração o escrevente, que não resistia, todo pallido...
O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor parocho para a botica; fez preparar, com estrepito, flôr de
laranja e ether; gritou pela esposa, para arranjar uma cama... Queria examinar o hombro de sua senhoria:
haveria intumecencia?
--Obrigado, não é nada, dizia o parocho muito branco. Não é nada. Foi um raspão. Basta-me uma gota
d'agua...
Mas a Amparo achava melhor um calix de vinho do Porto; e correu acima a buscar-lh'o, tropeçando nos
pequenos que se lhe penduravam das saias, dando ais, explicando pela escada á criada que tinham querido
matar o senhor parocho!
Á porta da botica juntára-se gente, que embascava para dentro; um dos carpinteiros que trabalhavam nas
obras affirmava que «fôra uma facada»; e uma velha por traz debatia-se, de pescoço esticado, para vêr o
sangue. Emfim, a pedido do parocho, que receava escandalo, o Carlos veio magestosamente declarar que não
queria motim à porta! O senhor parocho estava melhor. Fôra apenas um sôco, um raspão de mão... Elle
respondia por sua senhoria.
E, como o burro ao lado começára a ornear, o pharmaceutico voltando-se indignado para o rapazito que o
segurava pela arreata:
--E tu não tens vergonha, no meio d'um desgosto d'estes, um desgosto para toda a cidade, de ficar aqui com
esse animal, que não faz senão zurrar! Para longe, insolente, para longe!
Aconselhou então os dois sacerdotes a que subissem para a sala, para evitar a «curiosidade da populaça». E
a boa Amparo appareceu logo com dois calices do Porto, um para o senhor parocho, outro para o senhor
padre Silverio que se deixára cahir a um canto do canapé, apavorado ainda, extenuado d'emoção.
--Tenho cincoenta e cinco annos, disse elle depois de ter chupado a ultima gota de porto, e é a primeira vez
que me vejo n'um barulho!
O padre Amaro, mais socegado agora, affectando bravura, chasqueou o padre Silverio:
--Vossê tomou o caso muito ao tragico, collega... E lá ser a primeira, vamos lá... Todos sabem que o collega
esteve pegado com o Natario...
--Ah, sim, exclamou o Silverio, mas isso era entre sacerdotes, amigo!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 153
Mas a Amparo, ainda muito tremula, enchendo outro calix ao senhor parocho, quiz saber «os particulares,
todos os particulares...»
--Não ha particulares, minha senhora, eu vinha aqui com o collega... Vinhamos cavaqueando... O homem
chegou-se a mim, e, como eu estava desprevenido, deu-me um raspão no hombro.
--Mas porquê? porquê? exclamou a boa senhora, apertando as mãos, n'um assombro.
O Carlos então deu a sua opinião. Ainda havia dias, elle dissera, diante da Amparosinho e de D. Josepha, a
irmã do respeitavel conego Dias, que estas idéas de materialismo e atheismo estavam levando a mocidade
aos mais perniciosos excessos... E mal sabia elle então que estava prophetisando!
--Vejam vossas senhorias este rapaz! Começa por esquecer todos os deveres de christão (assim nol-o
affirmou D. Josepha), associa-se com bandidos, achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam vossas
senhorias a progressão), não contente com estes extravios, publica nos periodicos ataques abjectos contra a
**religião**... E emfim, possuido de uma vertigem d'atheismo, atira-se, diante mesmo da cathedral, sobre um
sacerdote exemplar (não é por vossa senhoria estar presente) e tenta assassinal-o! Ora, pergunto eu, o que
ha no fundo de tudo isto? Odio, puro odio á religião de nossos paes!
Mas a Amparo, indifferente ás causas philosophicas do delicto, ardia na curiosidade de saber o que se
passaria na administração, o que diria o escrevente, se o teriam posto a ferros... O Carlos promptificou-se
logo a ir averiguar.
De resto, disse elle, era o seu dever, como homem de sciencia, esclarecer a justiça sobre as consequencias
que **podia ter** trazido um murro, a força de braço, na região delicada da clavicula... (ainda que, louvado
Deus, não havia fractura, nem inchaço), e sobretudo queria revelar á auctoridade, para que ella tomasse as
suas providencias, que aquella tentativa d'espancamento não provinha de vingança pessoal. Que podia ter
feito o senhor parocho da Sé ao escrevente do Nunes? Provinha d'uma vasta conspiração d'atheus e
republicanos contra o sacerdocio de Christo!
Na sua precipitação zelosa de conservador indignado, ia mesmo de chinelas e quinzena de laboratorio: mas
Amparo alcançou-o no corredor:
Ella mesmo lha ajudou a enfiar, emquanto o Carlos, com a imaginação trabalhando viva (aquella
desgraçada imaginação que, como elle dizia, até ás vezes lhe dava dôres de cabeça), ia preparando o seu
depoimento, que faria ruido na cidade. Fallaria de pé. Na saleta da administração seria um apparato
judicial: á sua mesa, o senhor administrador, grave como a personificação da Ordem; em redor os
amanuenses, activos sobre o seu papel sellado; e o réo, defronte, na attitude tradicional dos criminosos
politicos, os braços cruzados sobre o peito, a fronte alta desafiando a morte. Elle, Carlos, então, entraria e
diria: Senhor administrador, aqui venho espontaneamente pôr-me ao serviço da vindicta social!
--Hei de lhes mostrar, com uma logica de ferro, que é tudo resultado d'uma conspiração do racionalismo.
Pódes estar certa, Amparosinho, é uma conspiração do racionalismo! disse, puxando, com um gemido
d'esforço, as presilhas dos botins de cano.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 154
--Hei de tomar notas. Mas não se trata da S. Joanneira. Isto é um processo politico!
Atravessou o largo magestosamente, certo que os visinhos, pelas portas, murmuravam: Lá vai o Carlos
depôr... Ia depôr, sim, mas não sobre o murro no hombro de sua senhoria. Que importava o murro? O grave
era o que estava por traz do murro--uma conspiração contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a Propriedade! É o
que elle provaria d'alto ao senhor administrador. Este murro, excellentissimo senhor, é o primeiro excesso
d'uma grande revolução social!
E empurrando o batente de baeta que dava accesso para a administração do concelho de Leiria, ficou um
momento com a mão no ferrolho, enchendo o vão da porta da pompa da sua pessoa. Não, não havia o
apparato judicial que elle concebera. O réo lá estava, sim, pobre João Eduardo, mas sentado á beira do
banco, com as orelhas em braza, olhando estupidamente o soalho. Arthur Couceiro, embaraçado com a
presença d'aquelle intimo dos serões da S. Joanneira, alli no assento dos presos, para o não olhar fixára o
nariz sobre o immenso copiador d'officios, onde desdobrára o Popular da vespera. O amanuense Pires, de
sobrancelhas muito erguidas e muito sérias, embebia-se na ponta da penna de pato que aparava sobre a
unha. O escrivão Domingos, esse, sim, vibrava d'actividade! O seu lapis rascunhava com furor; o processo
estava-se decerto apressando; era tempo de trazer a sua idéa... E o Carlos então adiantando-se:
--Senhor administrador!
--Ninguem tem phosphoros, hein? É extraordinario que não haja aqui nunca phosphoros! Uma repartição
d'estas sem um phosphoro... Que fazem os senhores aos phosphoros? Mande buscar por uma vez meia duzia
de caixas!
--Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui venho solicito e espontaneo, por assim dizer...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 155
--Diga-me uma coisa, snr. Carlos, interrompeu a auctoridade. O parocho e o outro ainda estão lá na botica?
--O senhor parocho e o senhor padre Silverio ficaram com minha esposa a repousar da commoção que...
--Que venham quanto antes... São cinco horas e meia, queremo-nos ir embora! Vejam que massada tem sido
esta aqui, todo o dia! A repartição fecha-se ás tres!
E sua excellencia, rodando sobre os tacões, foi debruçar-se á sacada do seu gabinete--áquella sacada d'onde
elle diariamente, das onze ás tres, retorcendo o bigode louro e entesando o plastron azul, depravava a mulher
do Telles.
--Ó amigo Carlos--e o sorrisinho do escrivão tinha uma supplicação tocante--desculpe, hein? Mas... Traz-me
de lá uma caixita de phosphoros?
N'este momento à porta apparecia o padre Amaro; e por traz a massa enorme do Silverio.
Todos os empregados se ergueram; João Eduardo tambem, branco como a cal do muro. O parocho, com as
suas passadas subtis d'ecclesiastico, atravessou a repartição, seguido do bom Silverio que ao passar diante
do escrevente descreveu d'esguelha um semi-circulo cauteloso, com terror ao réo; o senhor administrador
acudira a receber suas senhorias; e a porta do gabinete fechou-se discretamente.
O Carlos sentára-se descontente. Viera alli para esclarecer a auctoridade sobre os perigos sociaes que
ameaçavam Leiria, o Districto e a Sociedade, para ter o seu papel n'aquelle processo, que, segundo elle, era
um processo politico--e alli estava calado, esquecido, no mesmo banco ao lado do réo! Nem lhe tinham
offerecido uma cadeira! Seria realmente intoleravel que as coisas se arranjassem entre o parocho e o
administrador sem o consultarem a elle! Elle, o unico que percebera n'aquelle murro dado no hombro do
padre--não o punho do escrevente, mas a mão do Racionalismo! Aquelle desdem pelas suas luzes parecia-lhe
um erro funesto na administração do Estado. Positivamente o administrador não tinha a capacidade
necessaria para salvar Leiria dos perigos da revolução! Bem se dizia na Arcada--era uma bambocha!
--Ó snr. Domingos, faz favor, vem-nos fallar? disse sua excellencia.
O escrivão apressou-se com importancia; e a porta cerrou-se de novo, confidencialmente. Ah! aquella porta,
fechada diante d'elle, deixando-o de fóra, indignava o Carlos. Alli ficava, com o Pires, com o Arthur, entre as
intelligencias subalternas, elle que promettera á Amparosinho fallar d'alto ao administrador! E quem era
ouvido, e quem era chamado? O Domingos, um animal notorio, que começava satisfação com um ccedilhado!
Que se podia de resto esperar d'uma auctoridade que passava as manhãs de binoculo a deshonrar uma
familia? Pobre Telles, seu visinho, seu amigo!... Não, realmente devia fallar ao Telles!
Mas a sua indignação cresceu quando viu o Arthur Couceiro, um empregado da repartição, na ausencia do
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 156
seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha, vir familiarmente junto do réo, dizer-lhe com melancolia:
--Ah, João, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja-se, verás!
João tinha encolhido tristemente os hombros. Havia meia hora que alli estava, sentado á beira d'aquelle
banco, sem se mexer, sem despregar os olhos do soalho, sentindo-se interiormente tão vazio de idéas, como
se lhe tivessem tirado os miolos. Todo o vinho, que na taberna do Osorio e no largo da Sé lhe accendia na
alma fogachos de cólera, lhe retesava os pulsos n'um desejo de desordem, parecia subitamente eliminado do
seu organismo. Sentia-se agora tão inoffensivo como quando no cartorio aparava cautelosamente a sua
penna de pato. Um grande cansaço entorpecia-o; e alli esperava, sobre o banco, n'uma inercia de todo o seu
sêr, pensando estupidamente que ia viver para uma enxovia em S. Francisco, dormir n'uma palhoça, comer
da Misericordia... Não tornaria a passear na Alameda, não veria mais Amelia... A casita em que vivia seria
alugada a outro... Quem tomaria conta do seu canario? Pobre animalzinho, ia morrer de fome, decerto... A
não ser que a Eugenia, a visinha, o recolhesse...
O Domingos de repente sahiu do gabinete de sua excellencia, e fechando vivamente a porta sobre si, em
triumpho:
O Carlos pensou que era aquelle o maior escandalo administrativo desde o tempo dos Cabraes! E ia
retirar-se enojado (como no quadro classico o Stoico que se afasta d'uma orgia patricia) quando o senhor
administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos se ergueram.
Sua excellencia deu dois passos na repartição, e revestido de gravidade, distillando as palavras, com as
lunetas cravadas no réo:
--O senhor padre Amaro, que é um sacerdote todo caridade e bondade, veio-me expôr... Emfim, veio-me
supplicar que não désse mais andamento a este negocio... Sua senhoria com razão não quer vêr o seu nome
arrastado nos tribunaes. Além d'isso, como sua senhoria disse muito bem, a religião, de que elle é... de que
elle é, posso dizel-o, a honra e o modêlo, impõe-lhe o perdão da offensa... Sua senhoria reconhece que o
ataque foi brutal, mas frustrado... Além d'isso parece que o senhor estava bebedo...
Todos os olhos se fixaram em João Eduardo, que se fez escarlate. Aquillo pareceu-lhe n'esse momento peor
que a prisão.
--Emfim, continuou o administrador, por altas considerações que eu pesei devidamente, tomo a
responsabilidade de o soltar. Veja agora como se porta. A auctoridade não o perde d'olho... Bem, póde ir
com Deus!
E sua excellencia recolheu-se ao gabinete. João Eduardo ficou immovel, como parvo.
--P'r'á China, p'ra onde quizer! Liberus, libera, liberum! exclamou o Domingos que, interiormente detestando
padres, jubilava com aquelle final.
João Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo Carlos; duas lagrimas
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 157
Immediatamente a papelada foi arrumada, aqui e além, á pressa. É que era tarde! O Pires recolhia as suas
mangas de lustrina e a sua almofadinha de vento. O Arthur enrolou os seus papeis de musica. E no vão da
janella, amuado, esperando ainda, o Carlos olhava sombriamente o largo.
Emfim os dois padres sahiram acompanhados até á porta pelo senhor administrador, que, terminados os
deveres publicos, reapparecia homem de sociedade.--Então porque não tinha o amigo Silverio vindo a casa
da baroneza de Via-Clara? Houvera um voltarete furibundo. O Peixoto levára dois codilhos. Tinha dito
blasphemias medonhas!... Criado de suas senhorias. Estimava bem que tudo se tivesse harmonisado. Cuidado
com o degrau... Ás ordens de suas senhorias...
Ao voltar porém ao seu gabinete dignou-se parar diante da mesa do Domingos, e retomando alguma
solemnidade:
--A coisa passou-se bem. É um bocado irregular, mas sensata! Bem basta já os ataques que ha contra o clero
nos jornaes... A coisa podia fazer barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido ciumes do padre, que
queria desinquietar a rapariga, etc. É mais prudente abafar a coisa... Quanto mais que, segundo o parocho
me provou, toda a influencia que elle tem exercido na rua da Misericordia ou onde diabo é, tem tido por fim
livrar a rapariga de casar com aquelle amigo, que, como se vê, é um bebedo e uma fera!
O Carlos roia-se. Todas aquellas explicações eram dadas ao Domingos! A elle, nada! Alli ficava, esquecido
no vão da janella!
Mas não! Sua excellencia, de dentro do seu gabinete, chamou-o mysteriosamente com o dedo.
--Eu estava para passar pela botica--disse-lhe o administrador baixo e sem transição, dando-lhe um papel
dobrado--para que me mandasse isto a casa, hoje. É uma receita do doutor Gouvêa... Mas já que o amigo
aqui está...
--Isso está acabado! interrompeu vivamente sua excellencia. Não se esqueça, mande-me isso antes das seis. É
para tomar ainda esta noite. Adeus. Não se esqueça!
Ao entrar na botica, a sua cólera flammejava. Ou elle não se chamava Carlos, ou havia de mandar uma
correspondencia tremenda ao Popular!... Mas a Amparo, que lhe espreitára a volta da varanda, correu,
atirando-lhe as perguntas:
--Então? Que se passou? O rapaz foi p'r'á rua? Que disse elle? Como foi?
Então, vendo os olhos da Amparo e os do praticante abertos para devorar a citação do seu depoimento--o
Carlos, tendo de resalvar a dignidade de esposo e a superioridade de patrão, disse laconicamente:
Foi então que o Carlos, recordando-se, leu a receita que amarrotára na mão. A indignação
emmudeceu-o--vendo que era aquelle todo o resultado da sua grande entrevista com a auctoridade!
O que era? E no seu furor, desdenhando o segredo profissional e o bom renome da auctoridade, o Carlos
exclamou:
--É um frasco de xarope de Gibert para o senhor administrador! Ahi tem a receita, snr. Augusto.
A Amparo, que, com alguma pratica de pharmacia, conhecia os beneficios do mercurio, fez-se tão escarlate
como as fitas flammejantes que lhe enfeitavam a cuia.
Toda essa tarde se fallou com excitação pela cidade «da tentativa d'assassinato de que estivera para ser
victima o senhor parocho». Algumas pessoas censuravam o administrador por não ter procedido: os
cavalheiros da opposição sobretudo, que viram na debilidade d'aquelle funccionario uma prova incontestavel
de que o governo ia, com os seus desperdicios e as suas corrupções, levando o paiz a um abysmo!
Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que mansidão! O senhor chantre
mandou-o chamar á noitinha, recebeu-o paternalmente com um «viva o meu cordeiro paschal»! E depois de
escutar a historia do insulto, a generosa intervenção...
--Filho, exclamou, isso é alliar a mocidade de Telemacho á prudencia de Mentor! Padre Amaro, vossê era
digno de ser sacerdote de Minerva na cidade de Salento!
Quando Amaro entrou á noite em casa da S. Joanneira--foi como a apparição d'um santo escapo ás feras do
Circo ou á plebe de Diocleciano! Amelia, sem disfarçar a sua exaltação, apertou-lhe ambas as mãos, muito
tempo, toda tremula, com os olhos humidos. Deram-lhe, como nos grandes dias, a poltrona verde do conego.
A snr.^a D. Maria da Assumpção quiz mesmo que se lhe puzesse uma almofada para elle apoiar o hombro
dorido. Depois teve de contar miudamente toda a scena, desde o momento em que, conversando com o
collega Silverio (que se portára muito bem), avistára o escrevente no meio do largo, de bengalão alçado e ar
de matamouros...
Aquelles detalhes indignavam as senhoras. O escrevente apparecia-lhes peor que Longuinhos e que Pilatos.
Que malvado! O senhor parocho devia-o ter calcado aos pés! Ah! era d'um santo, ter perdoado!
--Fiz o que me inspirou o coração, disse elle baixando os olhos. Lembrei-me das palavras de Nosso Senhor
Jesus Christo: elle manda offerecer a face esquerda depois de se ter sido esbofeteado na face direita...
--Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão á face direita... Emfim, são ordens de Nosso Senhor Jesus
Christo, offereço a face esquerda. São ordens de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever de sacerdote,
oh, senhoras, desanco o patife!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 159
--E doeu-lhe muito, senhor parocho? perguntou do canto uma vozinha expirante e desconhecida.
Acontecimento extraordinario! Era a snr.^a D. Anna Gansoso que fallára depois de dez longos annos de
taciturnidade somnolenta! Aquelle torpor que nada sacudira, nem festas, nem lutos, tinha emfim, sob um
impulso de sympathia pelo senhor parocho, uma vibração humana!--Todas as senhoras lhe sorriram,
agradecidas, e Amaro, lisonjeado, respondeu com bondade:
--Quasi nada, snr.^a D. Anna, quasi nada, minha senhora... Que elle deu de rijo! Mas eu sou de boa
carnadura.
--Ai, que monstro! exclamou D. Josepha Dias, furiosa á idéa do punho do escrevente descarregado sobre
aquelle hombro santo. Que monstro! Eu queria-o vêr com uma grilheta a trabalhar na estrada! Que eu é que
o conhecia! A mim nunca elle me enganou... Sempre lhe achei cara d'assassino!
Foi um clamor. Ai, que o não desculpasse! Parecia até sacrilegio! Era uma fera, era uma fera!
E a exultação foi grande quando Arthur Couceiro, apparecendo, deu logo da porta a novidade, a ultima: o
Nunes mandára chamar o João Eduardo e dissera-lhe (palavras textuaes): «Eu, bandidos e malfeitores não
os quero no meu cartorio. Rua!»
Todos riram. Só Amelia, curvada sobre a sua costura, se fizera muito pallida, aterrada áquella idéa que João
Eduardo teria talvez fome...
--Pois olhem, não acho caso para rir! disse a S. Joanneira. É até coisa que me vai tirar o somno... Pensar que
o rapaz ha de querer um bocado de pão e não ha de ter... Credo! Não, isso não! E o senhor padre Amaro
desculpe...
Mas Amaro tambem não desejava que o rapaz cahisse em miseria! Não era homem de rancor, elle! E se o
escrevente viesse á sua porta com necessidade, duas ou tres placas (não era rico, não podia mais), mas tres
ou quatro placas dava-lh'as... Dava-lh'as de coração.
Tanta santidade fanatisou as velhas. Que anjo! Olhavam-n'o, babosas, com as mãos vagamente postas. A sua
presença, como a d'um S. Vicente de Paulo, exhalando caridade, dava á sala uma suavidade de capella: e a
snr.^a D. Maria da Assumpção suspirou de gozo devoto.
Mas Natario appareceu, radiante. Deu grandes apertos de mãos em redor, rompeu em triumpho:
--Então já sabem? O **patife**, o assassino, escorraçado de toda a parte como um cão! O Nunes expulsou-o
do cartorio. O doutor Godinho disse-me agora que no governo civil não punha elle os pés. Enterrado,
demolido! É um allivio p'r'á gente de bem!
Todos o reconheciam. Fôra elle, com a sua habilidade, a sua labia, que descobrira a perfidia de João
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 160
--E em tudo o que pretender, o maroto, ha de me encontrar pela frente. Emquanto elle estiver em Leiria não o
largo! Que lhes disse eu, minhas senhoras?... «Eu é que o esmago!» Pois ahi o têm esmagado!
A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona, regaladamente, no repouso merecido de uma victoria
difficil. E voltando-se para Amelia:
--E agora, o que lá vai, lá vai! Livrou-se de uma fera, é o que lhe posso dizer!
Então os louvores--que já lhe tinham repetido prolixamente desde que ella rompera com a
fera--recomeçaram, mais vivos:
--Foi a coisa de mais virtude que tens feito em toda a tua vida!
--Emfim é Santa Amelia, disse o conego erguendo-se, enfastiado d'aquellas glorificações. Pois parece-me que
temos fallado bastante do patife... Mande agora a senhora vir o chá, hein?
Amelia permanecia calada, cosendo á pressa; erguia ás vezes rapidamente para Amaro um olhar
desassocegado; pensava em João Eduardo, nas ameaças de Natario; e imaginava o escrevente com as faces
encovadas de fome, foragido, dormindo pelas portas dos casaes... E emquanto as senhoras se
accommodavam, palrando, á mesa do chá, ella pôde dizer baixo a Amaro:
--Não posso socegar com a idéa que o rapaz soffra necessidades... Eu bem sei que é um malvado, mas... É
como um espinho cá por dentro. Tira-me toda a alegria.
O padre Amaro disse-lhe então, com muita bondade, mostrando-se superior á injuria, n'um alto espirito de
caridade christã:
--Minha rica filha, são tolices... O homem não morre de fome. Ninguem morre de fome em Portugal. É novo,
tem saude, não é tolo, ha de se arranjar... Não pense n'isso... Aquillo é palavriado do padre Natario... O
rapaz naturalmente sae de Leiria, não tornamos a ouvir fallar d'elle... E em toda a parte ha de ganhar a
vida... Eu por mim perdoei-lhe, e Deus ha de tomar isso em conta.
Estas palavras tão generosas, ditas baixo, com um olhar amante, tranquillisaram-na inteiramente. A
clemencia, a caridade do senhor parocho pareceram-lhe melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos e
de monges piedosos.
Depois do chá, ao quino, ficou junto d'elle. Uma alegria plena e suave penetrava-a deliciosamente. Tudo o
que até ahi a importunára e a assustára, João Eduardo, o casamento, os deveres, desapparecera emfim da
sua vida: o rapaz iria para longe, empregar-se--e o senhor parocho alli estava, todo d'ella, todo apaixonado!
Por vezes, por baixo da mesa, os seus joelhos tocavam-se, a tremer: n'um momento em que todos faziam um
alarido indignado contra Arthur Couceiro que pela terceira vez quinára e brandia o cartão triumphante,
foram as mãos que se encontraram, se acariciaram; um pequeno suspiro simultaneo, perdido na gralhada
das velhas, ergueu o peito d'ambos; e até ao fim da noite foram marcando os seus cartões, muito calados,
com as faces accêsas, sob a pressão brutal do mesmo desejo.
Emquanto as senhoras se agasalhavam, Amelia aproximou-se do piano para correr uma escala, e Amaro
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 161
Ella ia responder--quando a voz de Natario, que se embrulhava no seu capote ao pé do aparador, exclamou,
muito severa:
Todos se voltaram, na surpreza que dava aquella indignação, a olhar o largo volume encadernado que
Natario indicava com a ponta do guardachuva, como um objecto abominavel. D. Maria da Assumpção
aproximou-se logo d'olho reluzente, imaginando que seria alguma d'essas novellas, tão famosas, em que se
passam coisas immoraes. E Amelia chegando-se tambem, disse, admirada de tal reprovação:
--Que é o Panorama vejo eu, disse Natario com seccura. Mas tambem vejo isto.--Abriu o volume na primeira
pagina branca, e leu alto:--«Pertence-me este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e serve-me de recreio
nos meus ocios.» Não comprehendem, hein? Pois é muito simples... Parece incrivel que as senhoras não
saibam que esse homem, desde que poz as mãos n'um sacerdote, está ipso facto excommungado, e
excommungados todos os objectos que lhe pertencem!
Todas as senhoras, instinctivamente, afastaram-se do aparador onde jazia aberto o Panorama fatal,
arrebanhando-se, n'um arripiamento de medo, áquella idéa da Excommunhão que se lhes representava como
um desabamento de catastrophes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus Vingador: e alli
ficaram mudas, n'um semi-circulo apavorado, em torno de Natario, que, de capotão pelos hombros e braços
cruzados, gozava o effeito da sua revelação.
Natario indignou-se:
--Se estou a fallar sério!? Essa é forte! Pois eu havia de gracejar sobre um caso d'excommunhão, minha
senhora? Pergunte ahi ao senhor conego se eu estou a gracejar!
Todos os olhos se voltaram para o conego, essa inesgotavel fonte de saber ecclesiastico.
Elle então, tomando logo o ar pedagogico que lhe voltava dos seus antigos habitos do seminario sempre que
se tratava de doutrina, declarou que o collega Natario tinha razão. Quem espanca um sacerdote, sabendo
que é um sacerdote, está ipso facto excommungado. É doutrina assente. É o que se chama a excommunhão
latente; não necessita a declaração do pontifice ou do bispo, nem o ceremonial, para ser valida, e para que
todos os fieis considerem o offensor como excommungado. Devem-no tratar portanto como tal... Evital-o a
elle, e ao que lhe pertence... E este caso de pôr mãos sacrilegas n'um sacerdote era tão especial, continuava o
conego n'um tom profundo, que a bulla do Papa Martinho V, limitando os casos de excommunhão tacita,
conserva-a todavia para o que maltrata um sacerdote...--Citou ainda mais bullas, as Constituições de
Innocencio IX e de Alexandre VII, a Constituição Apostolica, outras legislações temerosas; rosnou latins,
aterrou as senhoras.
--Esta é a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor não se fazer d'isso espalhafato...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 162
--Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas
excommungadas.
D. Joaquina Gansoso arrastára Amelia para o vão da janella, perguntando-lhe se tinha outros objectos
pertencentes ao homem. Amelia, atarantada, confessou que tinha algures, não sabia onde, um lenço, uma
luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.
A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas n'um furor santo. D. Josepha Dias, D. Maria
da Assumpção fallavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, n'uma delicia inquisitorial de
exterminação devota. Amelia e a Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre a roupa branca,
as fitas e as calcinhas, á caça dos «objectos excommungados». E a S. Joanneira assistia, attonita e assustada,
áquelle alarido d'auto-de-fé que atravessava bruscamente a sua sala pacata, refugiada ao pé do conego, que
depois de ter rosnado algumas palavras sobre «a Inquisição em casas particulares», se enterrára
commodamente na poltrona.
--É para lhes fazer sentir que se não perde impunemente o respeito á batina, dizia Natario baixo a Amaro.
O parocho assentiu, com um gesto mudo de cabeça, contente d'aquellas cóleras beatas que eram como a
affirmação ruidosa do amor que lhe tinham as senhoras.
Mas D. Josepha impacientava-se. Agarrára já o Panorama com as pontas do chale, para evitar o contagio, e
gritava para dentro, para o quarto, onde continuava pelos gavetões uma rebusca furiosa:
--Então appareceu?
Era a Gansoso que entrava triumphante com a cigarreira, a velha luva e o lenço de algodão.
E as senhoras, em alarido, arremetteram para a cozinha. A mesma S. Joanneira as seguiu, como boa dona de
casa, para fiscalisar a fogueira.
--Não senhor, padre-mestre, não senhor, acudiu logo Natario fazendo-se sério. Eu rio porque a coisa, assim
vista, parece patusca. Mas o sentimento é bom. Prova a verdadeira devoção ao sacerdocio, horror á
impiedade... Emfim o sentimento é excellente.
O conego ergueu-se:
--E é que se pilhassem o homem eram capazes de o queimar... Não lh'o digo a brincar, que a mana tem
figados para isso... É um Torquemada de saias...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 163
--Eu não resisto a ir vêr a execução! exclamou o conego. Eu quero vêr com os meus olhos!
E os tres padres então foram até á porta da cozinha. As senhoras lá estavam, em pé diante da lareira, batidas
da luz violenta da fogueira que fazia destacar estranhamente as mantas d'agasalho de que já se tinham
coberto. A Ruça, de joelhos, soprava esfalfada. Tinham cortado com o facão a encardernação do Panorama;
e as folhas retorcidas e negras, com um faiscar de fagulhas, voavam pela chaminé nas linguas do fogo claro.
Só a luva de pellica não se consumia. Debalde com as tenazes a punham no vivo da chamma: tisnava,
reduzida a um caroço engorolado; mas não ardia. E a sua resistencia aterrava as senhoras.
--É que é a da mão direita com que commetteu o desacato! dizia furiosa D. Maria da Assumpção.
--O mano faz favor de não troçar com coisas sérias! gritou D. Josepha.
--Oh, mana! a senhora quer saber melhor que um sacerdote como é que se queima um impio? A pretenção
não está má! É bufar-lhe, é bufar-lhe!
Então, confiadas na sciencia do senhor conego, a Gansoso e D. Maria da Assumpção, acocoradas, bufaram
tambem. As outras olhavam, n'um sorriso mudo, o olho brilhante e cruel, no gozo d'aquella exterminação
grata a Nosso Senhor. O fogo estalava, pulando com uma força galharda, na gloria da sua antiga funcção de
purificador dos peccados.--E por fim sobre as achas em braza, nada restou do Panorama, do lenço e da luva
do impio.
A essa hora João Eduardo, o impio, no seu quarto, sentado aos pés da cama, soluçava, com a face banhada
em lagrimas, pensando em Amelia, nos bons serões da rua da Misericordia, na cidade para onde iria, na
roupa que empenharia, e perguntando em vão a si mesmo porque o tratavam assim, elle que era tão
trabalhador, que não queria mal a ninguem, e que a adorava tanto, a ella?
XVI
No domingo seguinte havia missa cantada na Sé, e a S. Joanneira e Amelia atravessaram a Praça para ir
buscar D. Maria da Assumpção, que em dias de mercado e de «populacho» nunca sahia só, receosa que lhe
roubassem as joias ou lhe insultassem a castidade.
N'essa manhã, com effeito, a affluencia das freguezias enchia a Praça: os homens em grupo, atravancando a
rua, muito sérios, muito barbeados, de jaqueta ao hombro; as mulheres aos pares, com uma fortuna de
grilhões e de corações d'ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se por traz dos
balcões alastrados de lençaria e de chitas; nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo mercado, entre os
saccos de farinha, os montões de louça, os cestos de brôa, ia um regatear sem fim; havia multidão ao pé das
tendas onde reluzem os espelhinhos redondos e transbordam os mólhos de rosarios; velhas faziam pregão por
traz dos seus taboleiros de cavacas; e os pobres, afreguezados á cidade, choramingavam Padre-nossos pelas
esquinas.
Já senhoras passavam para a missa, todas em sêdas, de rostinho sisudo; e a Arcada estava cheia de
cavalheiros, têsos nos seus fatos de casimira nova, fumando caro, gozando o domingo.
Amelia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo alto d'um grupo: Ai, que me leva o
coração! E as duas senhoras, apressando-se, dobravam para a rua do Correio, quando lhes appareceu o
Libaninho de luvas pretas e cravo ao peito. Não as tinha visto desde «o desacato do largo da Sé», e rompeu
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 164
logo em exclamações. Ai, filhas, que desgosto aquelle! O malvado do escrevente! Elle tinha tido tanto que
fazer, que só n'essa manhã é que pudera ir ao senhor parocho dar-lhe os sentimentos; o santinho recebera-o
muito bem, estava-se a vestir; elle quiz-lhe vêr o braço e felizmente, louvores a Deus, nem uma pisadura... E
se ellas vissem, que carnadura tão delicada, que pelle tão branca... Uma pellinha d'archanjo!
A criada, a Vicencia, que havia dias se queixava, tinha ido n'essa madrugada para o hospital com um
febrão...
--E alli está o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vossês! Para hoje bem, que vai jantar com o nosso
conego (tambem lá estive, ai, que santo!), mas ámanhã, mas depois? Que elle já tem em casa a irmã da
Vicencia, a Dionysia... Mas, oh, filhas, a Dionysia! Foi o que eu lhe disse: a Dionysia póde ser uma santa,
mas que reputação!... É que não ha peor em Leiria... Uma perdida que não põe os pés na igreja... Tenho a
certeza que o senhor chantre até havia de reprovar!
As duas senhoras concordaram logo que a Dionysia (mulher que não cumpria os preceitos, que representára
em theatros de curiosos) não convinha ao senhor parocho...
--Olha, S. Joanneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu lá lh'o disse, lá lhe fiz a proposta. É
ferrar-se outra vez em tua casa. Que é onde está bem, com gente que o acarinha, que lhe trata da roupa, que
lhe sabe os gostos, e onde tudo é virtude! Elle não disse que nãonem que sim. Mas olha que se lhe podia lêr
na cara que está a morrer por isso... Tu é que lhe devias fallar, S. Joanneirinha!
Amelia fizera-se tão escarlate como a sua gravata de sêda da India. E a S. Joanneira disse ambiguamente:
--Era como teres um santo de portas a dentro, filha! disse com calor o Libaninho. Lembra-te d'isso! E era um
gosto para todos... Tenho a certeza que até Nosso Senhor se havia d'alegrar... E agora adeus, pequenas, que
vou de fugida. Não vos demoreis, que está a missinha a cahir.
As duas senhoras continuaram caladas até casa de D. Maria da Assumpção. Nenhuma queria arriscar
primeiro uma palavra sobre aquella possibilidade tão inesperada, tão grave, do senhor parocho voltar para a
rua da Misericordia! Foi só quando pararam que a S. Joanneira disse, ao puxar à campainha:
--Ai, o senhor parocho realmente não póde ter a Dionysia de portas a dentro...
Foi tambem a expressão da snr.^a D. Maria da Assumpção quando lhe contaram, em cima, a doença da
Vicencia e a installação da Dionysia: causava horror!
--Que eu não a conheço, disse a excellente senhora. E tenho até vontade de a conhecer. Que me dizem que é
dos pés à cabeça uma crosta de peccado!
A S. Joanneira então fallou da «proposta do Libaninho». D. Maria da Assumpção declarou logo com ardor
que era uma inspiração de Nosso Senhor. Que nunca o senhor parocho devia ter sahido da rua da
Misericordia! Até parece que mal elle se fôra embora, Deus retirára a sua graça da casa... Não houvera
senão desgostos--o Communicado, a dôr de estomago do conego, a morte da entrevadinha, aquelle
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 165
desgraçado casamento (que estivera por um triz, que horror!), o escandalo do largo da Sé... A casa tinha
parecido enguiçada!... E era até peccado deixar viver o santinho n'aquelle desarranjo, com a suja da
Vicencia, que nem lhe sabia dar uma passagem nas meias!
--Em parte nenhuma póde estar melhor que em tua casa... Tem tudo o que necessita, de portas a dentro... E
para ti é uma honra, é estar em graça. Olha, filha, se eu não fosse só, sempre o digo, quem o hospedava era
eu! Que aqui é que elle estava bem... Que salinha para elle, hein?
A sala com effeito era toda ella uma immensa armazenagem de santaria e de bric-à-brac devoto: sobre as
duas commodas de pau preto com fechaduras de cobre apinhavam-se, sob redomas, em peanhas, as Nossas
Senhoras vestidas de sêda azul, os Meninos Jesus frizados com o ventresinho gordo e a mão abençoadora, os
Santo Antonios no seu burel, os S. Sebastiões bem fréchados, os S. Josés barbudos. Havia santos exoticos,
que eram o seu orgulho, que lhe fabricavam em Alcobaça--S. Paschoal Baylão, S. Didacio, S. Chrisolo, S.
Gorislano... Depois eram os bentinhos, os rosarios de metal e de caroços d'azeitonas, contas de côres, rendas
amarellas d'antigas alvas, corações de vidro escarlate, almofadinhas com J. M. entrelaçados a missanga,
ramos bentos, palmas de martyres, cartuchinhos d'incenso. As paredes desappareciam forradas de estampas
de Virgens de todas as devoções,--equilibradas sobre o orbe, enrodilhadas aos pés da cruz, trespassadas
d'espadas. Corações d'onde gotejava sangue, corações d'onde sahia uma fogueira, corações d'onde
dardejavam raios: orações encaixilhadas para as festas particularmente amadas--o Casamento de Nossa
Senhora, a Invenção da Santa Cruz, os Estigmas de S. Francisco, sobretudo o Parto da Santa Virgem, a mais
devota, que vem pelas quatro temporas. Sobre as mesas lamparinas accêsas, para serem collocadas sem
demora aos santos especiaes, quando a boa senhora tivesse a sua sciatica, ou que o catarrho se assanhasse,
ou lhe viessem as caimbras. Ella mesma, só ella, arrumava, espanejava, lustrava toda aquella santa
população celeste, aquelle arsenal beato, que era apenas sufficiente para a salvação da sua alma e o allivio
dos seus achaques. O seu grande cuidado era a collocação dos santos; alterava-a constantemente, porque ás
vezes, por exemplo, sentia que Santo Eleuterio não gostava d'estar ao pé de S. Justino, e ia então pendural-o
a distancia, n'uma companhia mais sympathica ao santo. E distinguia-os (segundo os preceitos do ritual que
o confessor lhe explicava), dando-lhes uma devoção graduada, e não tendo por S. José de segunda classe o
respeito que sentia por S. José de primeira classe. Aquella riqueza era a inveja das amigas, a edificação dos
curiosos, e fazia sempre dizer ao Libaninho, quando a vinha visitar, abrangendo a sala n'um olhar
langoroso:--Ai, filha, é o reininho dos céos!
--Não é verdade, continuava a excellente senhora radiante, que elle aqui é que estava bem, o santinho do
parocho? É como ter o céo debaixo da mão!
As duas senhoras concordaram. Ella podia ter a sua casa arranjada com devoção, ella que era rica...
--Não o nego, tenho aqui empregadinhos alguns centos de mil reis. Sem contar o que está no relicario...
Ah, o famoso relicario de sandalo forrado de setim! Tinha lá uma lascasinha da verdadeira Cruz, um bocado
quebrado do espinho da Corôa, um farrapinho do cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se com azedume,
entre as devotas, que coisas tão preciosas, d'origem divina, deviam estar no sacrario da Sé. D. Maria da
Assumpção, temendo que o senhor chantre soubesse d'aquelle thesouro seraphico, só o mostrava ás intimas,
mysteriosamente. E o santo sacerdote, que lh'o obtivera, fizera-a jurar sobre o Evangelho de não revelar a
procedencia «para evitar fallatorios».
--Não ha melhor. Trinta mil reis me custou... Mas dava sessenta, mas dava cem! mas dava tudo!--E
babando-se toda, diante do trapinho precioso:--O cueirinho! dizia quasi a chorar. Meu rico Menino, o seu
cueirinho...
Mas o meio dia ia bater--e as tres senhoras apressaram-se para a Sé, para pilhar logar no altar-mór.
Já no largo encontraram D. Josepha Dias, que se precipitava para a igreja, sôfrega da missa, com o
mantelete descahido sobre o hombro e uma pluma do chapéo a despregar-se. Tinha estado toda a manhã
n'um phrenesi com a criada! Fôra necessario fazer ella todos os preparos para o jantar... Ai, tinha medo que
nem a missinha lhe dêsse virtude, de nervosa que estava...
--Que temos lá o senhor parocho hoje... Vossês sabem que adoeceu a criada... Ah, já me esquecia, o mano
quer que tu lá vás jantar tambem, Amelia. Diz que é para haverem duas damas e dois cavalheiros...
--E tu vai depois buscal-a, S. Joanneira, á noitinha... Credo, vesti-me tanto á pressa, que até parece que me
está a cahir o saiote!
Quando as quatro senhoras entraram, a igreja estava já cheia. Era uma missa cantada ao Santissimo. E
apesar de contrario ao rigor do ritual, por um costume diocesano (que o bom Silverio, muito estricto na
liturgia, nunca cessava de reprovar) havia, estando presente a Eucharistia, musica de rebeca, violoncello e
flauta. O altar, muito ornado, com as reliquias expostas, destacava n'uma alvura festiva; docel, frontal,
paramentos dos missaes eram brancos, com relevos d'ouro desmaiado; nos vasos erguiam-se ramos
pyramidaes de flôres e folhagens brancas; os velludilhos decorativos, dispostos como velarios, punham dos
dois lados do tabernaculo a brancura de duas vastas azas desdobradas, lembrando a Pomba Espiritual; e os
vinte castiçaes erguiam as suas chammas amarellas em throno até ao sacrario aberto, que mostrava d'alto,
engastada n'um rebrilhar d'ouros vivos, a hostia redonda e baça. Por toda a igreja apinhada corria uma
susurração lenta; aqui e além um catarrho expectorava, uma criança choramigava; o ar adensava-se já dos
halitos juntos e d'um cheiro d'incenso; e do côro, onde as figuras dos musicos se moviam por traz dos braços
dos rebecões e das estantes, vinha a cada momento um afinar gemido de rebeca, ou um pio de flautim. As
quatro amigas tinham-se apenas accommodado junto do altar-mór, quando os dois acolythos, um têso como
um pinheiro, o outro gordalhufo e enxovalhado, entraram do lado da sacristia, sustentando alto e direito nas
mãos os dois castiçaes consagrados; atraz o Pimenta vesgo, com uma sobrepelliz muito vasta para elle,
lançando os seus sapatões em passadas pomposas, trazia o incensador de prata; depois successivamente,
durante o rumor do ajoelhar pela nave e do folhear dos livrinhos, appareceram os dois diaconos; e emfim,
paramentado de branco, d'olhos baixos e mãos postas, com aquelle recolhimento humilde que pede o ritual e
que exprime a mansidão de Jesus marchando ao Calvario, entrou o padre Amaro--ainda vermelho da questão
furiosa que tivera na sacristia, antes de se revestir, por causa da lavagem das alvas.
Amelia passou a sua missa embebecida, pasmada para o parocho--que era, como dizia o conego, «um grande
artista para missas cantadas»; todo o cabido, todas as senhoras o reconheciam. Que dignidade, que
cavalheirismo nas saudações ceremoniosas aos diaconos! Como se prostrava bem diante do altar, aniquilado
e escravisado, sentindo-se cinza, sentindo-se pó diante de Deus, que assiste de perto, cercado da sua côrte e
da sua familia celeste! Mas era sobretudo admiravel nas bençãos; passava devagar as mãos sobre o altar
como para apanhar, recolher a graça que alli cahia do Christo presente, e atirava-a depois com um gesto
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largo de caridade por toda a nave, por sobre o estendal de lenços brancos de cabeça, até ao fundo onde os
homens do campo muito apertados, de varapau na mão, pasmavam para a scintillação do sacrario! Era
então que Amelia o amava mais, pensando que aquellas mãos abençoadoras lh'as apertava ella com paixão
por baixo da mesa do quino: aquella voz, com que elle lhe chamava filhinha, recitava agora as orações
ineffaveis, e parecia-lhe melhor que o gemer das rebecas, revolvia-a mais que os graves do orgão! Imaginava
com orgulho que todas as senhoras decerto o admiravam tambem; mas só tinha ciumes, um ciume de devota
que sente os encantos do céo, quando elle ficava diante do altar, na posição extatica que manda o ritual, tão
immovel como se a sua alma se tivesse remontado longe, para as alturas, para o Eterno e para o Insensivel.
Preferia-o, por o sentir mais humano e mais accessivel, quando, durante o Kirie ou a leitura da Epistola, elle
se sentava com os diaconos no banco de damasco vermelho; ella queria então attrahir-lhe um olhar; mas o
senhor parocho permanecia de olhos baixos n'uma compostura modesta.
Amelia, sentada sobre os calcanhares, com a face banhada n'um sorriso, admirava-lhe o perfil, a cabeça bem
feita, os paramentos dourados--e lembrava-se quando o vira a primeira vez descendo a escada da rua da
Misericordia, com o seu cigarro na mão. Que romance se passára desde essa noite! Recordava o Morenal, o
salto do vallado, a scena da morte da titi, aquelle beijo ao pé da lareira... Ai, como acabaria tudo aquillo?
Queria então rezar; folheava o livro, mas vinha-lhe á idéa o que o Libaninho n'essa manhã dissera: «o
senhor parocho tinha uma pellesinha tão branca como um archanjo...» Devia-a ter decerto muito delicada,
muito tenra... Um desejo intenso queimava-a: imaginava que era uma tentadora visitação do demonio,--e
para a repellir arregalava os olhos para o sacrario e para o throno que o padre Amaro, cercado dos
diaconos, incensava em semi-circulos significando a Eternidade dos Louvores, emquanto o côro berrava o
Offertorio... Depois elle mesmo, de pé, no segundo degrau do altar, de mãos postas, foi incensado; o Pimenta
vesgo fazia ranger galhardamente as correntes de prata do thurifero; um perfume d'incenso derramava-se,
como uma annunciação celeste; ennevoava-se o sacrario sob os rolos alvos de fumo; e o parocho apparecia a
Amelia transfigurado, quasi divinisado!... Oh, adorava-o então!
A igreja tremia ao clamor do orgão em pleno; de bocas abertas, os coristas solfejavam a toda a força; em
cima, alçando-se entre os braços dos rebecões, o mestre da capella, no fogo da execução, brandia
desesperadamente a sua batuta feita d'um rolo de canto-chão.
Ao jantar, em casa do conego, a snr.^a D. Josepha censurou-a repetidamente de «não dar palavra».
Não fallava, mas debaixo da mesa o seu pésinho não cessava de roçar, pisar o do padre Amaro. Como
escurecera cedo tinham accendido as velas; o conego abrira uma garrafa, não do seu famoso duque de 1815,
mas do «1847», para acompanhar a travessa d'aletria, que enchia o centro da mesa, com as iniciaes do
parocho desenhadas a canella; era, como explicára o conego, «uma galanteria da mana ao convidado».
Amaro fizera logo uma saude com o 1847 «á digna dona da casa». Ella resplandecia, medonha no seu
vestido de bareje verde. O que sentia é que o jantar fosse tão mau... Que aquella Gertrudes estáva-se a fazer
uma desleixada... Ia-lhe deixando esturrar o pato com macarrão!
--São favores do senhor parocho. É porque eu lhe acudi a tempo... Mais uma colhérzinha d'aletria, senhor
parocho.
Estava já rubro, e parecia mais obeso, com o seu grosso jaquetão de flanella e o guardanapo atado ao
pescoço.
--Boa gota! repetiu, d'este não provou hoje vossê nas galhetas...
--Credo, mano! exclamou D. Josepha com a boca cheia de fios d'aletria, muito escandalisada da
irreverencia.
--O credo é p'r'á missa! Esta pretenção de se metter sempre em questões que não percebe! Pois fique sabendo
que é d'uma grande importancia a questão da qualidade do vinho, na missa. É que é necessario que o vinho
seja bom...
--Concorre para a dignidade do santo sacrificio, disse o parocho muito sério, fazendo uma caricia de joelho
a Amelia.
--E não é só isso, disse o conego tomando logo o tom pedagogo. É que o vinho, quando não é bom e tem
ingredientes, deixa um deposito nas galhetas; e, se o sacristão não é cuidadoso e não as limpa, as galhetas
ganham um cheiro pessimo. E sabe a senhora o que acontece? Acontece que o sacerdote, quando vai a beber
o sangue de Nosso Senhor Jesus Christo, não está prevenido e faz-lhe uma careta. Ora ahi tem a senhora!
E deu um forte chupão ao calix. Mas estava fallador n'essa noite, e depois d'arrotar devagar, interpellou de
novo D. Josepha, assombrada de tanta sciencia.
--E diga-me lá então a senhora, já que é tão doutora: o vinho, no divino sacrificio, deve ser branco ou tinto?
D. Josepha parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o sangue de Nosso Senhor.
Ella recusou-se, com um risinho. Como não era sacristão, não sabia...
Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, então devia ser branco...
--E porquê?
Não sabia.
--Porque Nosso Senhor Jesus Christo, quando pela primeira vez consagrou, fel-o com vinho branco. E a
razão é muito simples: é porque na Judéa n'esse tempo, como é notorio, não se fabricava vinho tinto...
Repita-me a senhora a aletria, faça favor.
Então, a proposito do vinho e da limpeza das galhetas, o padre Amaro queixou-se do Bento sacristão. N'essa
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 169
manhã antes de se paramentar--justamente quando entrára o senhor conego na sacristia--acabava de lhe dar
uma desanda a respeito das alvas. Em primeiro logar dava-as a lavar a uma Antonia que vivia amancebada
com um carpinteiro, em grande escandalo, e que era indigna de tocar os paramentos santos. Esta era a
primeira. Depois, a mulher trazia-as tão enxovalhadas que era um desacato usal-as no divino sacrificio...
--Ai, mande-m'as a mim, senhor parocho, mande-m'as a mim, acudiu D. Josepha. Dou-as á minha lavadeira,
que é pessoa de muita virtude e traz a roupa escarolada. Ai, até era uma honra para mim! Eu mesmo as
passava a ferro, e até se podia benzer o ferro...
Mas o conego (que positivamente estava n'aquella noite d'uma loquacidade copiosa) interrompeu-a, e
voltando-se para o padre Amaro, fixando-o profundamente:
--Ora a proposito de eu entrar na sacristia, sempre lhe quero dizer, amigo e collega, que commetteu hoje um
erro de palmatoria.
--Depois de se revestir, continuou o conego pausadamente, já com os diaconos ao lado, quando fez a cortezia
á imagem da sacristia, em logar de fazer a cortezia profunda, fez só a meia cortezia.
--Alto lá, padre-mestre! exclamou o padre Amaro. É o texto da rubrica. Facta reverentia cruci, feita a
reverencia á cruz: isto é, a reverencia simples, abaixar ligeiramente a cabeça...
E, para **exemplificar**, fez uma cortezia a D. Josepha que lhe sorriu toda, torcendo-se.
--Nego! exclamou formidavelmente o conego que em sua casa, á sua mesa, punha d'alto as suas opiniões. E
nego com os meus auctores. Elles ahi vão!--E deixou-lhe cahir em cima, como penedos d'autoridade, os
nomes venerados de Laboranti, Baldeschi, Merati, Turrino e Pavonio.
Amaro afastára a cadeira, puzera-se em attitude de controversia, contente de poder, diante d'Amelia,
«enterrar» o conego, mestre de theologia moral e um colosso de liturgia pratica.
--E além d'isso tenho por mim o bom-senso, padre-mestre. Primò, a rubrica, como expuz. Secundò, o
sacerdote, tendo na sacristia o barrete na **cabeça**, não deve fazer cortezia inteira, porque lhe póde cahir
o barrete e temos desacato maior. Tertiò, seguir-se-hia um absurdo, porque então a cortezia antes da missa á
cruz da sacristia seria maior que a que se faz depois da missa á cruz do altar!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 170
--É meia cortezia. Leia a rubrica: Caput inclinat. Leia Gavantus, leia Garriffaldi. E nem podia deixar de ser
assim! Sabe porquê? Porque depois da missa o sacerdote está no auge da dignidade, uma vez que tem dentro
em si o corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. Logo, o ponto é meu!
O conego abatera a papeira sobre as pregas do guardanapo, como um boi atordoado. E depois d'um
momento:
--Vossê não deixa de ter razão... Eu foi para o ouvir... Faz-me honra cá o discipulo, acrescentou piscando o
olho a Amelia. Pois é beber, é beber! E depois salta o cafésinho bem quente, mana Josepha!
--Aqui está isto que vem de casa da menina Amelia. A senhora manda muitos recados, que não póde vir, que
se achou incommodada.
--Em ultimo caso com este seu criado. E essa virtudesinha podia ir socegada...
--Deixe lá, mana. O que passa pela boca d'um santo, santo fica.
--Tem muita razão o senhor conego Dias! O que passa pela pela boca d'um santo, santo fica! Para que viva!
--Á sua!
--Não te agonies, filha, disse D. Josepha. Vou-te eu levar, vamos todos levar-te...
Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos em redor, e passando a mão pelo estomago:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 171
--Que é? que é?
D. Josepha, já assustada, não queria que elle comesse a pêra. Que a ultima vez que lhe dera fôra por causa
da fructa...
--Não estou bem, não estou bem! Jesus! Oh, diabo! Oh, caramba! Ai! ai! morro!
Alvoroçaram-se em volta d'elle. D. Josepha amparou-o pelo braço até ao quarto, gritando á criada que fosse
buscar o doutor. Amelia correu á cozinha a aquecer uma flanella para lhe pôr no estomago. Mas não
apparecia flanella. Gertrudes topava contra as cadeiras, espavorida, á procura do seu chale para sahir.
Amaro então, realmente assustado, entrou-lhe no quarto. D. Josepha de joelhos diante da commoda gemia
orações a uma grande lithographia de Nossa Senhora das Dôres; e o pobre padre-mestre, estirado de barriga
sobre a cama, rilhava o travesseiro.
--Mas, minha senhora, disse o parocho severamente, não se trata agora de rezar. É necessario fazer-lhe
alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
--Ai, senhor parocho, não ha nada, não ha nada, choramingou a velha. É uma dôr que vem e vai n'um
momento. Não dá tempo p'ra nada! Um chá de tilia allivia-o ás vezes... Mas por desgraça hoje nem tilia
tenho! Ai, Jesus!
Amaro correu a casa a buscar tilia. E d'ahi a pouco voltava esbaforido com a Dionysia, que vinha offerecer a
sua actividade e a sua experiencia.
--Muito agradecida, senhor parocho, dizia D. Josepha. Rica tilia! É de muita caridade. Elle agora
naturalmente cae em somnolencia. Vem-lhe sempre depois da dôr... Eu vou para ao pé d'elle, desculpem-me...
Esta foi peor que as outras... São estas fructas mald...--Reteve a blasphemia, aterrada.--São as fructas de
Nosso Senhor. É a sua divina vontade... Desculpem-me, sim?
Amelia e o parocho ficaram sós na sala. Os seus olhares reluziram logo do desejo de se tocar, de se beijar,
mas as portas estavam abertas; e sentiam no quarto, ao lado, as chinelas da velha. O padre Amaro disse
então alto:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 172
--Dá-lhe todos os tres mezes, disse Amelia. A mamã já andava com o presentimento. Ainda me tinha dito
antes d'hontem: é o tempo da dôr do senhor conego, estou com mais cuidado...
As suas mãos iam apertar-se ardentemente por sobre a mesa; mas D. Josepha appareceu, encolhida no seu
chale. O mano tinha adormecido. E ella estava que não se podia ter nas pernas. Ai, aquelles abalos
arrazavam-lhe a saude! Accendera duas velas a S. Joaquim e fizera uma promessa a Nossa Senhora da
Saude. Era a segunda aquelle anno, por causa da dôr do mano. E Nossa Senhora não lhe tinha faltado...
--Nunca falta a quem a implora com fé, minha senhora, disse com unção o padre Amaro.
O alto relogio d'armario bateu então cavamente oito horas. Amelia fallou outra vez no cuidado em que estava
pela mamã... Demais a mais ia-se a fazer tão tarde...
Amelia correu á janella, inquieta. O lagedo defronte, debaixo do candieiro, reluzia muito molhado. O céo
estava tenebroso.
D. Josepha estava afflicta com o contratempo; mas a Amelia bem via, ella agora não podia despegar de casa;
a Gertrudes fôra ao doutor; naturalmente não o encontrára, andava a procural-o de casa em casa, quem
sabe quando viria...
O parocho então lembrou que a Dionysia (que viera com elle e esperava na cozinha) podia ir acompanhar a
snr.^a D. Amelia. Eram dois passos, não havia ninguem pelas ruas. Elle mesmo iria com ellas até á esquina
da Praça... Mas deviam apressar-se, que ia cahir agua!
D. Josepha foi logo buscar um guardachuva para Amelia. Recommendou-lhe muito que contasse á mamã o
que tinha succedido. Mas que não se affligisse ella, que o mano estava melhor...
--E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada, dize-lhe que se fez tudo o que se pôde, mas que a dôr não deu
tempo para nada!
Ao abrirem a porta a chuva cahia grossa. Amelia então quiz esperar. Mas o parocho, apressado, puxou-a
pelo braço:
Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo do guardachuva, com a Dionysia ao lado, muito calada, de
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 173
chale pela cabeça. Todas as janellas estavam apagadas; no silencio as goteiras cantavam d'enxurrão.
--É que agora cae a cantaros, disse Amaro. Realmente parece-me que o melhor é entrar no pateo de minha
casa e esperar um bocado...
--Tolices! exclamou elle impaciente. Vai-se-lhe estragar o vestido... É um instante, é um aguaceiro. Para
aquelle lado, vê, está a alliviar. Vai passar... É uma tolice... A mamã, se a visse apparecer debaixo d'uma
carga d'agua, zangava-se, e com razão!
--Não, não!
E alli ficaram, calados, no pateo escuro, olhando as cordas d'agua que reluziam á luz do candieiro defronte.
Amelia estava toda atarantada. A negrura do pateo e o silencio assustavam-n'a; mas parecia-lhe delicioso
estar assim n'aquella escuridão, ao pé d'elle, ignorada de todos... Insensivelmente attrahida, roçava-se-lhe
pelo hombro; e recuava logo, inquieta de ouvir a sua respiração tão agitada, de o sentir tão junto das saias.
Percebia por traz, sem a vêr, a escada que levava ao quarto d'elle; e tinha um desejo immenso de lhe ir vêr
acima os seus moveis, os seus arranjos... A presença da Dionysia, encolhida contra a porta e muito calada,
embaraçava-a; todavia a cada momento voltava os olhos para ella, receando que desapparecesse, se sumisse
na negrura do pateo ou da noite...
Amaro então começou a bater com os pés no chão, a esfregar as mãos, arripiado.
--Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lages estão regeladas... Realmente era melhor esperar em cima
na sala de jantar...
--Pieguices! Até a mamã se havia de zangar... Vá, Dionysia, accenda luz em cima.
--Porque não? Que pensas tu? É uma pieguice. É emquanto não passa o aguaceiro. Dize...
Ella não respondia, respirando muito forte. Amaro pousou-lhe a mão sobre o hombro, sobre o peito,
apertando-lh'o, acariciando a sêda. Toda ella estremeceu. E foi-o emfim seguindo pela escada, como tonta,
com as orelhas a arder, tropeçando a cada degrau na roda do vestido.
--Minha Dionysia, tu percebes... Eu fiquei de confessar aqui a menina Amelia. É um caso muito sério... Volta
d'aqui a meia hora. Toma.--Metteu-lhe tres placas na mão.
Elle voltou ao quarto com a luz. Amelia lá estava, immovel, toda pallida. O parocho fechou a porta--e foi
para ella, calado, com os dentes cerrados, soprando como um touro.
Meia hora depois Dionysia tossiu na escada. Amelia desceu logo, muito embrulhada na manta: ao abrirem a
porta do pateo passavam na rua dois borrachos galrando: Amelia recuou rapidamente para o escuro. Mas
Dionysia d'ahi a pouco espreitou; e vendo a rua deserta:
Amelia embrulhou mais o rosto e apressaram o passo para a rua da Misericordia. Já não chovia; havia
estrellas; e uma frialdade sêcca annunciava o norte e o bom tempo.
XVII
Ao outro dia Amaro, vendo no relogio que tinha á cabeceira que ia chegando a hora da missa, saltou
alegremente da cama. E, enfiando o velho paletot que lhe servia de robe-de-chambre, pensava n'essa outra
manhã em Feirão em que acordára aterrado por ter na vespera, pela primeira vez depois de padre, peccado
brutalmente sobre a palha da estrebaria da residencia com a Joanna Vaqueira. E não se atrevera a dizer
missa com aquelle crime na alma, que o abafava com um peso de penedo. Considerára-se contaminado,
immundo, maduro para o inferno, segundo todos os santos padres e o seraphico concilio de Trento. Tres
vezes chegára á porta da igreja, tres vezes recuára assombrado. Tinha a certeza de que, se ousasse tocar na
Eucharistia com aquellas mãos com que repanhára os saiotes da Vaqueira, a capella se aluiría sobre elle, ou
ficaria paralysado vendo erguer-se diante do sacrario, d'espada alta, a figura rutilante de S. Miguel
Vingador! Montára a cavallo e trotára duas horas, pelos barreiros de D. João, para ir á Gralheira
confessar-se ao bom abbade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de innocencia, de exagerações piedosas e de
terrores noviços! Agora tinha aberto os olhos em redor á realidade humana. Abbades, conegos, cardeaes e
monsenhores não peccavam sobre a palha da estrebaria, não--era em alcovas commodas, com a ceia ao lado.
E as igrejas não se aluiam, e S. Miguel Vingador não abandonava por tão pouco os confortos do céo!
Não era isso o que o inquietava--o que o inquietava era a Dionysia, que elle ouvia na cozinha, arrumando e
tossicando, sem se atrever a pedir-lhe agua para a barba. Desagradava-lhe sentir aquella matrona
introduzida, installada no seu segredo. Não duvidava decerto da sua discrição, era o seu officio; e algumas
meias libras manteriam a sua fidelidade. Mas repugnava ao seu pudor de padre saber que aquella velha
concubina de auctoridades civis e militares, que rolára a sua massa de gordura por todas as torpezas
seculares da cidade, conhecia as suas fragilidades, as concupiscencias que lhe ardiam sob a batina de
parocho. Preferiria que fosse o Silverio ou Natario que o tivesse visto na vespera, todo inflammado: era entre
sacerdotes, ao menos!... E o que o incommodava era a idéa de ser observado por aquelles olhinhos cynicos,
que não se impressionavam nem com a austeridade das batinas nem com a respeitabilidade dos uniformes,
porque sabiam que por baixo estava igualmente a mesma miseria bestial da carne...
--Entre! disse Amaro sentando-se logo, curvando-se vivamente sobre a mesa, como absorvido, abysmado nos
seus papeis.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 175
A Dionysia entrou, pousou o pucaro da agua sobre o lavatorio, tossiu, e fallando sobre as costas d'Amaro:
--Ó senhor parocho, olhe que isto assim não tem geito. Hontem iam vendo sahir daqui a pequena. É muito
sério, menino... Para bem de todos é necessario segredo!
Não, não a podia impôr! A mulher estabelecia-se, à força, na sua confidencia. Aquellas palavras mesmo,
murmuradas com medo das paredes, revelando uma prudencia de officio, mostravam-lhe a vantagem d'uma
cumplicidade tão experiente.
--Iam vendo. Eram dois bebedos... Mas podiam ser dois cavalheiros.
--É verdade.
--E na sua posição, senhor parocho, na posição da pequena!... Tudo se deve fazer pelo calado... Nem os
moveis do quarto devem saber! Em coisas que eu protejo, exijo tanta cautela como se se tratasse de morte!
--Bem; e agora, Dionysia, que lhe parece? perguntou elle recostado na cadeira, esperando os conselhos da
matrona.
--A mim parece-me que para vêr a pequena não ha como a casa do sineiro!
Ella recordou-lhe, muito tranquillamente, a excellente disposição do sitio. Um dos quartos ao pé da sacristia,
como elle sabia, dava para um pateo onde se tinha feito um barracão no tempo das obras. Pois bem,
justamente do outro lado eram as trazeiras da casa do sineiro... A porta da cozinha do tio Esguelhas abria
para o pateo: era sahir da sacristia, atravessal-o, e o senhor parocho estava no ninho!
--E ella?
--Ella entra pela porta do sineiro, pela porta da rua que dá para o adro. Não passa viva alma, é um ermo. E
se alguem visse, nada mais natural, era a menina Amelia que ia dar um recado ao sineiro... Isto, já se vê, é
ainda pelo alto, que o plano póde-se aperfeiçoar...
--Sim, comprehendo, é um esboço, disse Amaro que passeava pelo quarto reflectindo.
--Eu conheço bem o sitio, senhor parocho, e creia o que lhe digo: para um senhor ecclesiastico que tem o seu
arranjinho, não ha melhor que a casa do sineiro!
--Ó tia Dionysia, diga lá com franqueza: não é a primeira vez que vossê aconselha a casa do sineiro, hein?
Ella então negou, muito decisivamente. Era homem que nem conhecia, o tio Esguelhas! Mas tinha-lhe vindo
aquella idéa de noite, a malucar na cama. Pela manhã cedo fôra examinar o sitio, e reconhecera que estava a
calhar.
Tossicou, foi-se aproximando sem ruido da porta; e voltando-se ainda, com um ultimo conselho:
O tio Esguelhas passava na Sé, entre os serventes e os sacristães, por um macambusio. Tinha uma perna
cortada e usava muleta: e alguns sacerdotes, que desejariam o emprego para os seus protegidos, sustentavam
mesmo que aquelle defeito o tornava, segundo a Regra, improprio para o serviço da Igreja. Mas o antigo
parocho José Migueis, em obediencia ao senhor bispo, conservára-o na Sé, argumentando que o trambolhão
desastroso que motivára a amputação fôra na torre, n'uma occasião de festa, collaborando no culto: ergo
estava claramente indicada a intenção de Nosso Senhor em não prescindir do tio Esguelhas. E quando Amaro
tomára conta da parochia, o côxo valera-se da influencia da S. Joanneira e d'Amelia para conservar, como
elle dizia, a corda do sino. Era além d'isso (e fôra a opinião da rua da Misericordia) uma obra de caridade. O
tio Esguelhas, viuvo, tinha uma filha de quinze annos paralytica, desde pequena, das pernas. «O diabo
embirrou com as pernas da familia», costumava dizer o tio Esguelhas. Era decerto esta desgraça que lhe
dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga (cujo nome era Antonia, e que o pai chamava Tótó) o
torturava com perrices, phrenesis, caprichos abominaveis. O doutor Gouvêa declarára-a hysterica: mas era
uma certeza, para as pessoas de bons principios, que a Tótó estava possuida do Demonio. Houvera mesmo o
plano de a exorcismar: o senhor vigario geral, porém, sempre assustado com a imprensa, hesitára em
conceder a permissão ritual, e tinham-lhe feito apenas, sem resultado, as aspersões simples de agua benta.
De resto não se sabia a natureza do endemoninhamento da paralytica: a snr.^a D. Maria da Assumpção
ouvira dizer que consistia em uivar como um lobo; a Gansosinho, em outra versão, assegurava que a
desgraçada se dilacerava com as unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam pela rapariga,
respondia sêccamente:
--Lá está.
Os intervallos do seu serviço da igreja passava-os todos com a filha no casebre. Só atravessava o largo para
ir á botica por algum remedio, ou comprar bolos á confeitaria da Thereza. Todo o dia aquelle recanto da Sé,
o pateo, o barracão, o alto muro ao lado coberto de parietarias, a casa ao fundo com a sua janella de
portada negra n'uma parede lazeirenta, permaneciam n'um silencio, n'uma sombra humida: e os meninos do
côro, que ás vezes se arriscavam a ir pé-ante-pé, pelo pateo, espreitar o tio Esguelhas, viam-no
invariavelmente curvado á lareira, com o cachimbo na mão, cuspilhando tristemente para as cinzas.
Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a missa do senhor parocho. E Amaro, n'essa manhã, ao
revestir-se, sentindo-lhe nas lageas do pateo a muleta, ia já ruminando a sua historia--porque não podia
pedir ao tio Esguelhas o uso do seu casebre sem explicar, d'algum modo, que o desejava para um serviço
religioso... E que serviço, a não ser preparar, em segredo e longe das opposições mundanas, alguma alma
terna para o convento e para a santidade?
Ao vêl-o entrar na sacristia, deu-lhe logo uns «bons dias» amaveis. Achou-lhe uma bella cara de saude!
Tambem não admirava--porque, segundo todos os santos padres, a frequentação dos sinos, pela virtude
particular que lhes communica a consagração, dão uma alegria e um bem-estar especiaes. Contou então com
bonhomia ao tio Esguelhas e aos dois sacristães que, quando era pequeno, em casa da senhora marqueza
d'Alegros, o seu grande desejo era ser um dia sineiro...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 177
--Não se riam, é verdade. E não me ficava mal... N'outros tempos eram clerigos d'ordens menores que
tocavam os sinos. Os nossos santos padres consideram-n'os um dos meios mais efficazes da piedade. Lá disse
a glosa pondo o verso na bôca do sino:
Laudo Deum, populum voco, congrego clerum. Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro...
O que quer dizer, como sabem: Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o clero, choro os mortos, afugento as
pestes, alegro as festas.
Citava a glosa com respeito, já revestido d'amicto e alva, no meio da sacristia; e o tio Esguelhas
impertigava-se sobre a sua muleta áquellas palavras que lhe davam uma auctoridade e uma importancia
imprevista.
O sacristão tinha-se aproximado com a casula rôxa. Mas Amaro não terminára a glorificação dos
sinos;--explicou ainda a sua grande virtude em dissipar as tempestades (apesar do que dizem alguns sabios
presumpçosos), não só porque communicam ao ar a unção que recebem da benção, mas porque dispersam os
demonios que erram entre os vendavaes e os trovões. O santo concilio de Milão recommenda que se toquem
os sinos sempre que haja tormenta...
--Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou sorrindo com solicitude pelo sineiro, aconselho-lhe que n'esses
casos é melhor não se arriscar. Sempre é estar no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso, tio Mathias.
-Domine, quis dixisti jugum meum... Aperte mais os cordões por traz, tio Mathias. Suave est, et onus meum
leve...
Fez uma cortezia á imagem e entrou na igreja, na attitude da rubrica, d'olhos baixos e corpo direito;
emquanto o Mathias, depois de ter tambem saudado com um raspão de pé o Christo da sacristia, se
apressava com as galhetas, tossindo forte para clarear a garganta.
Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave, no Offertorio e ao Orate fratres, o padre Amaro dirigia-se
sempre (por uma benevolencia que o ritual permitte) para o sineiro, como se o Sacrificio fosse por sua
intenção particular;--e o tio Esguelhas, com a sua muleta pousada ao lado, abysmava-se então n'uma
devoção mais respeitosa. Mesmo ao Benedicat, depois de ter começado a benção voltado para o altar para
recolher do Deus vivo o deposito da Misericordia, terminou-a, virando-se devagar para o tio Esguelhas
especialmente, como para lhe dar a elle só as Graças e Dons de Nosso Senhor!
--E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar na sacristia, vá-me esperar ao pateo que temos que
conversar.
Não tardou a vir ter com elle, com uma face grave que impressionou o sineiro.
--Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho fallar-lhe d'um caso sério... Verdadeiramente pedir-lhe
um favor...
Não, não era um favor... Porque, quando se tratava do serviço de Deus, todos tinham o dever de concorrer na
proporção das suas forças... Tratava-se d'uma menina que se queria fazer freira. Emfim, para lhe provar a
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 178
Contou-lhe então uma historia diffusa que ia forjando laboriosamente, segundo as sensações que imaginava
vêr na face pasmada do sineiro. A rapariga desgostára-se da vida, com as desavenças que tivera com o
noivo. Mas a mãi, que estava velha, que a necessitava para o governo da casa, não queria consentir,
suppondo que era uma velleidade... Mas não, era vocação... Elle sabia-o... Infelizmente, quando havia
opposição, a conducta do sacerdote era muito delicada... Todos os dias os jornaes impios (e infelizmente era
a maioria!) gritavam contra as influencias do clero... As auctoridades, mais impias que os jornaes, punham
obstaculos... Havia leis terriveis... Se soubessem que elle andava a instruir a menina para professar,
ferravam-no na cadeia! Que queria o tio Esguelhas?... Impiedade, alheismo do tempo! Ora, elle necessitava
ter com a pequena muitas e muitas conferencias: para a experimentar, para conhecer as suas disposições, vêr
bem se é para a Solidão que ella tem geito, ou para a Penitencia, ou para o serviço dos enfermos, ou para a
Adoração Perpetua, ou para o ensino... Emfim, estudal-a por dentro e por fóra.
--Mas onde? exclamou, abrindo os braços como na desolação d'um santo dever contrariado. Onde? Em casa
da mãi não póde ser, já andam desconfiados. Na igreja impossivel, era o mesmo que na rua. Em minha casa,
já vê, menina nova...
--Está claro.
--De modo que, tio Esguelhas... E estou certo que vossê m'o ha de agradecer... pensei na sua casa...
--Oh, senhor parocho, acudiu o sineiro, eu, a casa, os trastes, está tudo ás ordens!
O que o tio Esguelhas receava é que a casa não fosse decente e não tivesse as commodidades...
--Ora! fez o padre sorrindo, n'um renunciamento de todos os confortos humanos. Comtanto que haja duas
cadeiras e uma mesa para pôr o livro da oração...
De resto, por outro lado, dizia o sineiro, lá como sitio retirado e casa socegada estava a preceito. Ficavam
alli, elle e a menina, como os monges no deserto. Nos dias em que o senhor parocho viesse, elle sahia a dar o
seu giro. Na cozinha não poderiam accommodar-se, porque o quartito da pobre Tótó era ao pé... Mas tinham
o quarto d'elle, em cima.
Mas o sineiro tranquillisou-o, vivamente. Estava agora todo interessado n'aquella conquista d'uma noiva
para Nosso Senhor; queria por força que o seu telhado abrigasse a santa preparação da alma da menina...
Talvez lhe attrahisse a elle a piedade de Deus! Mostrou com calor as vantagens, as facilidades da casa. A
Tótó não embaraçava. Não se mexia da cama. O senhor parocho entrava pela cozinha do lado da sacristia, a
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 179
--E ella que faz, a Tótó? perguntou o padre Amaro, hesitando ainda.
Coitadita, para alli estava... Tinha manias: ora fazia bonecas e apaixonava-se por ellas a ponto de ter febre;
outros dias passava-os n'um silencio medonho com os olhos cravados na parede. Mas ás vezes estava alegre,
palrava, chalaceava... Uma desgraça!
--Devia-se entreter, devia lêr, disse o padre Amaro para mostrar interesse.
O sineiro suspirou. Não sabia lêr, a pequena, nunca quizera aprender. Era o que elle lhe dizia--se pudesses
lêr já te não pesava tanto a vida! Mas então? Tinha horror a applicar-se... O senhor padre Amaro devia ter a
caridade de a persuadir, quando viesse a casa...
Mas o parocho não o escutava, todo abysmado n'uma idéa que lhe alumiára a face d'um sorriso. Achára
subitamente a explicação natural a dar á S. Joanneira e ás amigas das visitas d'Amelia a casa do sineiro: era
a ensinar a lêr a paralytica! A educal-a! A abrir-lhe a alma ás bellezas dos livros santos, da historia dos
martyres e da oração!...
--Está decidido, tio Esguelhas, exclamou, esfregando as mãos de jubilo. É em sua casa que se ha de fazer da
rapariga uma santa. E d'isto--e a sua voz deu um grave profundo--um segredo inviolavel!
Veio logo á sacristia escrever um bilhete, que devia passar em segredo a Amelia, em que lhe explicava
detalhadamente «o arranjinho que fizera para gozarem novas e divinas felicidades». Prevenia-a que o
pretexto para ella vir todas as semanas a casa do sineiro devia ser a educação da paralytica: elle mesmo o
proporia á noite em casa da mamã. «Que n'isto, dizia, ha alguma verdade, pois seria grato a Deus que se
alumiasse com uma boa instrucção religiosa as trevas d'aquella alma. E matamos assim, querido anjo, dois
coelhos com uma só cacheirada!»
Depois entrou em casa. Como se sentou regalamente á mesa do almoço, com um contentamento pleno de si,
da vida e das dôces facilidades que n'ella encontrava! Ciumes, duvidas, torturas do desejo, solidão da carne,
tudo o que o consumira mezes e mezes, além na rua da Misericordia e alli na rua das Sousas, passára. Estava
emfim installado á larga na felicidade! E recordava, abysmado n'um gozo mudo, com o garfo esquecido na
mão, toda aquella meia hora da vespera, prazer por prazer, resaboreando-os mentalmente um a um,
saturando-se da deliciosa certeza da posse--como o lavrador que percorre a leira de terra adquirida que os
seus olhos invejaram muitos annos. Ah, não tornaria a olhar de lado, com azedume, os cavalheiros que
passeavam na Alameda com as suas mulheres pelo braço! Tambem elle agora tinha uma, toda sua, alma e
carne, linda, que o adorava, que usava boas roupas brancas, e trazia no peito um cheirinho d'agua de
colonia! Era padre, é verdade... Mas para isso tinha o seu grande argumento: é que o comportamento do
padre, logo que não dê escandalo entre os fieis, em nada prejudica a efficacia, a utilidade, a grandeza da
religião. Todos os theologos ensinam que a ordem dos sacerdotes foi instituida para administrar os
sacramentos; o essencial é que os homens recebam a santidade interior e sobrenatural que os sacramentos
contêm; e comtanto que elles sejam dispensados segundo as formulas consagradas, que importa que o
sacerdote seja santo ou peccador? O sacramento communica a mesma virtude. Não é pelos meritos do
sacerdote que elles operam, mas pelos meritos de Jesus Christo. O que é baptisado ou ungido, ou seja por
mãos puras ou por mãos torpes, fica igualmente bem lavado da macula original, ou bem preparado para a
vida eterna. Isto lê-se em todos os santos padres, estabeleceu-o o seraphico concilio de Trento. Os fieis nada
perdem, na sua alma e na sua salvação, com a indignidade do parocho. E se o parocho se arrepende á hora
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 180
extrema, tambem se lhe não fecham as portas do céo. Logo em definitiva tudo acaba bem, e em paz geral...--E
o padre Amaro, raciocinando assim, sorvia com prazer o seu café.
A Dionysia, ao fim do almoço, veio saber, muito risonha, se o senhor parocho fallára ao tio Esguelhas...
--Fallei por alto, disse elle ambiguamente. Não ha nada decidido... Roma não se construiu n'um dia.
E recolheu-se á cozinha, pensando que o senhor parocho mentia como um hereje. Tambem, não se
importava... Nunca gostára de arranjos com os senhores ecclesiasticos; pagavam mal, e suspeitavam
sempre...
E mesmo ouvindo Amaro que sahia, correu á escada a dizer-lhe--que emfim, ella tinha a olhar pela sua casa,
e quando o senhor parocho tivesse arranjado criada...
--A snr.^a D. Josepha Dias anda-me a tratar d'isso, Dionysia. Espero ter alguem ámanhã. Mas vossê
appareça... Agora que somos amigos...
--Quando o senhor parocho quizer é chamar-me da janella para o quintal, disse ella do alto da escada. Para
tudo que precisar. De tudo sei um bocadinho, até de desarranjos e de partos... E n'este ponto posso até
dizer...
Mas o padre não a escutava: atirára com a porta de repellão, fugindo, indignado d'aquella utilidade torpe
assim brutalmente offerecida.
Foi d'ahi a dias que elle fallou em casa da S. Joanneira da filha do sineiro.
Na vespera dera o bilhete a Amelia; e n'essa noite, emquanto na sala se galrava alto, aproximára-se do
piano, onde Amelia, com os dedos preguiçosos, corria escalas, e abaixando-se para accender o cigarro á
vela, murmurára:
--Leu?
--Optimo!
Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde a Gansoso estava contando uma catastrophe que lêra
n'um jornal, succedida em Inglaterra: uma mina de carvão que desabára, sepultando cento e vinte
trabalhadores. As velhas arripiavam-se horrorisadas. A Gansoso então, gozando o effeito, accumulou
loquazmente os detalhes: a gente que estava fóra esforçára-se por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes em
baixo os gemidos e os ais; era ao lusco-fusco; havia uma tormenta de neve...
--Desagradavel! rosnou o conego, aconchegando-se na sua poltrona, gozando o calor da sala e a segurança
dos tectos.
A snr.^a D. Maria da Assumpção declarou que todas essas minas, essas machinas estrangeiras lhe causavam
medo. Vira uma fabrica ao pé d'Alcobaça, e parecera-lhe uma imagem do inferno. Estava certa que Nosso
Senhor não as via com bons olhos...
--É como os caminhos de ferro, disse D. Josepha. Tenho a certeza que foram inspirados pelo demonio! Não o
digo a rir. Mas vejam aquelles uivos, aquelle fogaracho, aquelle fragor! Ai, arripia!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 181
O padre Amaro galhofou,--assegurando á snr.^a D. Josepha que eram ricamente commodos para andar
depressa! Mas, tornando-se logo sério, acrescentou:
--Em todo o caso é incontestavel, que ha n'essas invenções da sciencia moderna muito do demonio. E é por
isso que a nossa santa Igreja as abençôa, primeiro com orações e depois com agua benta. Hão de saber que é
o costume. Com agua benta para lhes fazer o exorcismo, expulsar o espirito inimigo: e com orações para as
resgatar do peccado original que não só existe no homem, mas nas coisas que elle construe. É por isso que se
benzem e se purificam as locomotivas... Para que o demonio não se possa servir d'ellas para seu uso.
D. Maria da Assumpção quiz immediatamente uma explicação. Como era a maneira usual do Inimigo se
servir dos caminhos de ferro?
O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O Inimigo tinha muitas maneiras, mas a habitual era esta: fazia
descarrilar um trem de modo que morressem passageiros, e como essas almas não estavam preparadas pela
Extrema-Unção, o demonio alli mesmo, zás, apoderava-se d'ellas!
--É de velhaco! rosnou o conego, com uma admiração secreta por aquella manha tão habil do Inimigo.
Mas D. Maria da Assumpção abanou-se langorosamente, com o rosto banhado n'um sorriso de beatitude:
--Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados, a nós é que não nos succedia isso... Que não nos pilhava
desprevenidas!
Era verdade; e todas gozaram um momento aquella certeza deliciosa de estarem preparadas, de poderem
lograr a malicia do Tentador!
O padre Amaro então tossiu como para preparar as vias, e apoiando as duas mãos sobre a mesa, n'um tom de
pratica:
--É necessario muita vigilancia para conservar de longe o demonio. Ainda hoje eu estava a pensar n'isso (foi
mesmo a minha meditação) a respeito de um caso bem triste que tenho lá ao pé da Sé... É a filhita do sineiro.
As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe as palavras, n'uma curiosidade subitamente excitada,
esperando ouvir a historia picante d'alguma façanha de Satanaz. E o parocho continuou com uma voz a que o
silencio em redor dava solemnidade:
--Alli está aquella rapariga, todo o santo dia, pregada na cama! Não sabe lêr, não tem devoções habituaes,
não tem o costume da meditação; é por consequencia, para empregar a expressão de S. Clemente--uma alma
sem defeza. O que succede? Que o demonio, que ronda constantemente e não perde dentada, estabelece-se
alli como em sua casa! Por isso, como me dizia hoje o pobre tio Esguelhas, são phrenesis, desesperos,
furores sem razão... Emfim o pobre homem tem a vida estragada.
--E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou D. Maria da Assumpção, indignada d'aquella impudencia de
Satanaz, **installando-se** n'um corpo, n'um leito, que apenas a estreiteza do pateo separava dos
contrafortes da Sé.
Amaro acudiu:
--Tem a D. Maria razão. O escandalo é enorme. Mas então? Se a rapariga não sabe lêr! Se não sabe uma
oração, se não tem quem a instrua, quem lhe leve a palavra de Deus, quem a fortifique, quem lhe ensine o
segredo de frustrar o Inimigo!...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 182
Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala, de hombros vergados, n'uma mágoa de pastor a quem uma
força desproporcional arrebata uma ovelha amada. E, exaltado pelas suas palavras, sentia, com effeito, uma
piedade que o invadia, uma compaixão verdadeira por aquella pobre creatura, a quem a falta de consolações
devia tornar mais intensa a agonia da immobilidade...
As senhoras olhavam-se, magoadas com aquelle caso triste d'abandono d'alma,--sobretudo pela dôr que elle
parecia trazer ao senhor parocho.
A snr.^a D. Maria da Assumpção, que percorria em imaginação o abundante arsenal da devoção, lembrára
logo que se lhe puzessem alguns santos á cabeceira, como S. Vicente, Nossa Senhora das Sete Chagas... Mas
o silencio das amigas exprimiu bem a insufficiencia d'aquella galeria devota.
--As senhoras dir-me-hão talvez, disse o padre Amaro sentando-se de novo, que se trata apenas da filha do
sineiro. Mas é uma alma! É uma alma como as nossas!
--Todos têm direito á graça do Senhor, disse o conego gravemente, n'um sentimento d'imparcialidade,
admittindo a igualdade das classes logo que não se tratava de bens materiaes e apenas dos confortos do céo.
--P'ra Deus não ha pobre nem rico, suspirou a S. Joanneira. Antes pobre, que dos pobres é o reino do céo!
--Não, antes rico, acudiu o conego, estendendo a mão para deter aquella falsa interpretação da lei divina.
Que o céo tambem é para os ricos. A senhora não comprehende o preceito. Beati pauperes, bemditos os
pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos ricos; não
quererem mais que o bocado de pão que têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena
de não serem bemditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que préga que os trabalhadores e as
clases baixas devem viver melhor do que vivem, vai d'encontro á expressa vontade da Igreja e de Nosso
Senhor, e não merece senão chicote, como excommungados que são! Ouf!
E estirou-se, extenuado de ter fallado tanto. O padre Amaro, esse, permanecia calado, com o cotovêlo sobre a
mesa, esfregando devagar a testa. Ia lançar a sua idéa, como vinda d'uma inspiração divina, propôr que
fosse Amelia levar uma educação devota á triste paralytica... E hesitava supersticiosamente diante do seu
motivo todo carnal, todo de concupiscencia. A filha do sineiro apparecia-lhe agora, exageradamente,
abysmada n'uma treva d'agonia. Sentia toda a caridade que haveria em consolal-a, entretel-a, fazer-lhe os
dias menos amargos... Esta acção redimiria decerto muitas culpas, encantaria Deus, se fosse feita n'um puro
espirito de fraternidade christã! Vinha-lhe uma compaixão sentimental de bom rapaz por aquelle miseravel
corpo pregado n'uma cama, sem nunca vêr o sol nem a rua... E alli estava embaraçado, n'aquella piedade
que o invadia, sem se decidir, coçando a nuca, arrependido quasi de ter fallado ás senhoras da Tótó...
--Ó senhor padre Amaro, se se lhe mandasse aquelle livro com pinturas de vidas dos santos? Eram pinturas
que edificavam. A mim tocavam-me alma... Não és tu que o tens, Amelia?
Amaro então olhou-a. Tinha-a quasi esquecido. Estava agora do outro lado da mesa, abainhando um
esfregão: a risca muita fina desapparecia na abundancia espessa do cabello, onde a luz do candieiro ao lado
punha um traço lustroso; as pestanas pareciam mais longas, mais negras sobre a pelle da face, d'um
trigueiro calido, que uma tinta rosada aquecia; o vestido justo, que se franzia n'uma prega sobre o hombro,
elevava-se amplamente sobre a fórma dos peitos, que elle via arfar no rhythmo da respiração igual... Era
aquella a belleza que mais appetecia n'ella; imaginava-os d'uma côr de neve, redondos e cheios; tivera-a nos
braços, sim, mas vestida, e as suas mãos sôfregas tinham **encontrado** só a sêda fria... Mas na casa do
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 183
sineiro seriam d'elle, sem obstaculo, sem vestidos, á disposição dos seus labios. Por Deus! e nada impedia
que ao mesmo tempo consolassem a alma da Tótó! Não hesitou mais. E erguendo a voz, no meio do
palratorio das velhas que discutiam agora a desapparição da Vida dos Santos:
--Não, minhas senhoras, não é com livros que se vale á rapariga... Sabem a idéa que me veio? Era um de nós,
o que estiver menos occupado, levar-lhe a palavra de Deus e educar aquella alma!--E acrescentou,
sorrindo:--E a fallar a verdade, a pessoa mais desoccupada aqui de todos nós é a menina Amelia...
Então foi uma surpreza! Pareceu a mesma vontade de Nosso Senhor vinda n'uma revelação. Os olhos de
todas accenderam-se n'uma excitação devota, á idéa d'aquella missão de caridade, que partia alli d'ellas, da
rua da Misericordia... Extasiavam-se, no ante-gosto guloso dos elogios do senhor chantre e do cabido! Cada
uma dava o seu conselho, n'uma assiduidade de participar da santa obra, de partilharem as recompensas que
o céo certamente prodigalisaria. D. Joaquina Gansoso declarou com calor que invejava Amelia; e chocou-se
muito vendo-a de repente rir.
--Imaginas que não o faria com a mesma devoção? Já estás com o orgulho da boa acção... Olha que assim
não t'aproveita!
Mas Amelia continuava tomada d'um riso nervoso, deitada para as costas da cadeira, suffocando-se para se
conter.
Calmaram-na: Amelia teve de lhe jurar sob os Santos Evangelhos que fôra uma idéa extravagante que tivera,
que era nervoso...
--Ai, disse D. Maria da Assumpção, ella tem razão em s'orgulhar. Que é uma honra p'r'á casa! Em se
sabendo...
--Mas não se deve saber, snr.^a D. Maria da Assumpção! De que serve, aos olhos do Senhor, uma boa obra
de que se tire alarde e vangloria?
--Isto não deve sahir d'aqui. É entre Deus e nós. Queremos salvar uma alma, consolar uma enferma, e não ter
elogios nos periodicos. Pois não é assim, padre-mestre?
--Vossê esta noite tem fallado com a lingua de ouro de S. Chrysostomo. Eu estou edificado; e não se me dava
agora de vêr apparecer as torradas.
Foi então, emquanto a Ruça não trazia o chá, que se decidiu que Amelia, todas as semanas, uma ou duas
vezes segundo fosse a sua devoção, **iria em** segredo, para que a acção fosse mais valiosa aos olhos de
Deus, passar uma hora à cabeceira da paralytica, lêr-lhe a Vida dos Santos, ensinar-lhe rezas e insufflar-lhe
a virtude.
--Emfim, resumiu a snr.^a D. Maria da Assumpção voltando-se para Amelia, não te digo senão uma coisa:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 184
abichaste!
A Ruça entrou com o taboleiro, no meio dos risos que provocára a «tolice de D. Maria», como disse Amelia,
que se fizera escarlate.--E foi assim que ella e o padre Amaro se puderam vêr livremente, para gloria do
Senhor e humilhação do Inimigo.
Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as suas visitas caridosas á
paralytica perfizessem ao fim do mez o numero symbolico de sete, que devia corresponder, na idéa das
devotas, ás Sete lições de Maria. Na vespera o padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que deixava a
porta da rua apenas cerrada, depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a pratica do
senhor parocho. Amelia n'esses dias erguia-se cedo: tinha sempre alguma saia branca a engommar, algum
laçarote a compôr; a mãi estranhava-lhe aquelles arrebiques, o desperdicio d'agua de colonia de que ella se
inundava; mas Amelia explicava que «era para inspirar á Tótó idéas de aceio e de frescura». E depois de
vestida sentava-se, esperando as onze horas, muito séria, respondendo distrahidamente ás conversas da mãi,
com uma côr nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relogio: emfim a velha matraca gemia cavamente
as onze horas, e ella, depois d'uma olhadella ao espelho, sahia, dando uma beijoca á mamã.
Ia sempre receosa, n'uma inquietação de ser espreitada. Todas as manhãs pedia a Nossa Senhora da Boa
Viagem que a livrasse de maus encontros; e se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para lisonjear
os gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a assustava era o largo da Sé, sobre o
qual a Amparo da botica, costurando por traz da janella, exercia uma vigilancia incessante. Fazia-se então
pequenina no seu mantelete, e abaixando o guardasol sobre o rosto, entrava emfim na Sé, sempre com o pé
direito.
Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida n'uma luz fusca, amedrontava-a: parecia-lhe sentir, na
taciturnidade dos santos e das cruzes, uma reprehensão ao seu peccado; imaginava que os olhos de vidro das
imagens, as pupillas pintadas dos paineis se fixavam n'ella, com uma insistencia cruel, e percebiam o arfar
que ao seu seio dava a esperança do prazer. Ás vezes mesmo, atravessada d'uma superstição, para dissipar o
descontentamento dos santos, promettia dar-se n'essa manhã toda á Tótó, occupar-se caridosamente só
d'ella, e não se deixar tocar sequer no vestido pelo senhor padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro
o não encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Tótó, postar-se à janella da cozinha, vigiando a
porta massiça da sacristia de que ella conhecia uma por uma as chapas negras de ferro.
Elle apparecia, emfim. Era então nos começos de março; já tinham chegado as andorinhas; ouviam-n'as
chilrear, n'aquelle silencio melancolico, esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas dos
logares humidos cobriam os cantos d'uma verdura escura. Amaro, ás vezes muito galante, ia procurar uma
florzinha. Amelia impacientava-se, rufava na vidraça da cozinha. Elle apressava-se; ficavam um momento á
porta, apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam emfim vêr a Tótó--e dar-lhe os
bolos que o parocho lhe trazia no bolso da batina.
A cama da Tótó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu corpinho de tisica quasi não fazia saliencia
enterrado na cova da enxerga, sob os cobertores enxovalhados que ella se entretinha a esfiar. N'esses dias
tinha vestido um chambre branco, os cabellos reluziam-lhe d'oleo; porque ultimamente, desde as visitas
d'Amaro, viera-lhe «uma birra de parecer alguem», como dizia encantado o tio Esguelhas, a ponto de se não
querer separar d'um espelho e d'um pente que escondia debaixo do travesseiro e obrigar o pai a encafuar sob
a cama, entre a roupa suja, as bonecas que agora desprezava.
Amelia sentava-se um instante aos pés do catre, perguntando-lhe se estudára o A B C, obrigando-a a dizer
aqui e além o nome d'uma letra. Depois queria que ella repetisse sem a errar a oração que lhe andava
ensinando;--emquanto o padre, sem passar da porta, esperava, com as mãos nos bolsos, enfastiado,
embaraçado com os olhos reluzentes da paralytica que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe o
corpo com pasmo e com ardor, e que pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto trigueiro tão chupado
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 185
que se lhe via a saliencia das maxillas. Não sentia agora nem compaixão nem caridade pela Tótó; detestava
aquella demora; achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amelia tambem pesavam aquelles momentos
em que, para não escandalisar muito Nosso Senhor, se resignava a fallar à paralytica. A Tótó parecia
odial-a; respondia-lhe muito carrancuda; outras vezes persistia n'um silencio rancoroso, voltada para a
parede; um dia despedaçára o alphabeto; e encolhia-se toda encruada se Amelia lhe queria compor o chale
sobre os hombros ou conchegar-lhe a roupa...
Emfim Amaro, impaciente, fazia um signal a Amelia; ella punha logo diante da Tótó o livro com estampas da
Vida dos Santos.
--Vá, ficas agora a vêr as figuras... Olha, este é S. Matheus, esta Santa Virginia... Adeus, eu vou lá a cima
com o senhor parocho rezarmos para que Deus te dê saude e te deixe ir passear... Não estragues o livro, que
é peccado.
--É p'r'á nossa conferencia, para te ensinar os deveres de freira, dizia elle, galhofando.
--Ensina, então! murmurava ella de braços abertos, pondo-se diante do padre, com um sorriso calido onde
brilhava um branquinho dos dentes, n'um abandono que se offerecia.
Elle atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabellos; às vezes mordia-lhe a orelha; ella dava um
gritinho; e ficavam então muito quedos, escutando, com medo da paralytica em baixo. O parocho depois
fechava as portadas da janella e a porta muito perra que tinha d'empurrar com o joelho. Amelia ia-se
despindo devagar; e com as saias cahidas aos pés ficava um momento immovel, como uma fórma branca na
escuridão do quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte. Ella então persignava-se depressa, e
sempre ao subir para o leito dava um suspirosinho triste.
Amelia só podia demorar-se até ao meio dia. O padre Amaro por isso pendurava o seu cebolão no prego da
candeia. Mas quando não ouviam as badaladas da torre, Amelia conhecia a hora pelo cantar d'um gallo
visinho.
Ficavam ainda um momento calados, n'uma lassidão dôce, muito chegados um ao outro. Pelas vigas
separadas do telhado mal junto viam aqui e além fendas de luz: ás vezes sentiam um gato, com as suas
passadas fofas, vadiar, fazendo bolir alguma telha solta; ou um passaro, pousando, chilreava e ouviam-lhe o
fremito das azas.
Amaro não findava ainda de a beijocar: ella então, para acabar, fugia-lhe, ia escancarar a porta do quarto;
o padre descia, atravessava em duas passadas a cozinha sem olhar para a Tótó, e entrava na sacristia.
Amelia, essa, antes de sahir, vinha vêr a paralytica, saber se gostára das estampas. Encontrava-a ás vezes
com a cabeça debaixo dos cobertores, que entalava e prendia com as mãos para se **esconder**; outras
vezes, sentada na cama, examinava Amelia com olhos em que se accendia uma curiosidade viciosa; chegava
o rosto para ella, com as narinas dilatadas que pareciam cheiral-a; Amelia recuava, inquieta, córando
tambem; queixava-se então de ser tarde, recolhia a Vida dos Santos,--e sahia, amaldiçoando aquella
creatura tão maliciosa na sua mudez.
Ao passar no largo, áquella hora, via sempre a Amparo á janella. Ultimamente mesmo julgára prudente
contar-lhe em segredo a sua caridade com a Tótó. A Amparo, mal a via, chamava-a; e debruçando-se toda na
varanda:
--Lá vai.
--Já lê?
--Já soletra.
--Já a diz.
Amelia baixava os olhos, modesta. E o Carlos, que estava tambem no segredo, deixava o balcão para vir á
porta admirar Amelia.
--Vem da sua grande missão de caridade, hein? dizia, d'olho arregalado, balanceando-se na ponta das
chinelas.
--Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado! Pois vá, minha santa menina, recados á mamã.
--Veja o snr. Augusto aquillo... Em logar de passar o seu tempo, como as outras, em namoros, faz-se anjo da
guarda! Passa a flôr dos annos com uma entrevada! Veja o senhor se a philosophia, o materialismo, e essas
porcarias são capazes d'inspirar acções d'este jaez... Só a religião, meu caro senhor! Eu queria que os
Renans e essa cambada de philosophos vissem isto! Que eu, tenha o senhor em vista, admiro a philosophia,
mas quando ella, por assim dizer, vai de mãos dadas com a religião... Sou homem de sciencia e admiro um
Newton, um Guizot... Mas (e grave o senhor estas palavras) se a philosophia se afasta da religião... (grave
bem estas palavras) dentro de dez annos, snr. Augusto, está a philosophia enterrada!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 187
E continuava a mexer-se pela pharmacia a passos lentos, de mãos atraz das costas, ruminando o fim da
philosophia.
XVIII
«Ando na graça de Deus», pensava elle ás vezes á noite, ao despir-se, quando por um habito ecclesiastico,
fazendo o exame dos seus dias, via que elles se seguiam faceis, tão confortaveis, tão regularmente gozados.
Não houvera, nos ultimos dois mezes, nem attritos nem difficuldades no serviço da parochia; todo o mundo,
como dizia o padre Saldanha, andava d'um humor de santo. D. Josepha Dias arranjára-lhe muito barata uma
cozinheira excellente, e que se chamava Escolastica. Na rua da Misericordia tinha a sua côrte admiradora e
devota; cada semana, uma ou duas vezes, vinha áquella hora deliciosa e celeste na casa do tio Esguelhas; e
para completar a harmonia até a estação ia tão linda, que já no Morenal começavam a abrir as rosas.
Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ninguem da sacristia suspeitava os seus
rendez-vous com Amelia. Aquellas visitas á Tótó tinham entrado nos costumes da casa; chamavam-lhe «as
devoções da pequena»; e não a interrogavam com particularidades, pelo principio beato que as devoções são
um segredo que se tem com Nosso Senhor. Só ás vezes alguma das senhoras perguntava a Amelia--como ia a
doente; ella assegurava que estava muito mudada, que começava a abrir os olhos á lei de Deus; então, muito
discretamente, fallavam de coisas differentes. Havia apenas o plano vago de irem um dia, mais tarde, quando
a Tótó soubesse bem o seu catecismo e pela efficacia da oração se tivesse tornado boa, admirar em romaria a
obra santa de Amelia e a humilhação do Inimigo.
Amelia mesmo, perante esta confiança tão larga na sua virtude, propuzera um dia a Amaro, como muito
habil--dizer ás amigas que o senhor parocho ás vezes vinha assistir á pratica piedosa que ella fazia á Tótó...
--Assim, se alguem te surprehendesse a entrar para a casa do tio Esguelhas, já não havia suspeitas.
--Não me parece necessario, disse elle. Deus está comnosco, filha, é claro. Não queiramos intrometter-nos
nos seus planos. Elle vê mais longe que nós...
Ella concordou logo--como em tudo que sahia dos seus labios. Desde a primeira manhã, na casa do tio
Esguelhas, ella abandonára-se-lhe absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: não havia
na sua pelle um cabellinho, não corria no seu cerebro uma idéa a mais pequenina, que não pertencesse ao
senhor parocho. Aquella possessão de todo o seu sêr não a invadira gradualmente; fôra completa, no
momento que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ella. Parecia que os beijos d'elle lhe tinham
sorvido, esgotado a alma: agora era como uma dependencia inerte da sua pessoa. E não lh'o occultava;
gozava em se humilhar, offerecer-se sempre, sentir-se toda d'elle, toda escrava; queria que elle pensasse por
ella e vivesse por ella; descarregára-se n'elle, com satisfação, d'aquelle fardo da responsabilidade que
sempre lhe pesára na vida; os seus juizos agora vinham-lhe formados do cerebro do parocho, tão
naturalmente como se sahisse do coração d'elle o sangue que lhe corria nas veias. «O senhor parocho queria
ou o senhor parocho dizia» era para ella uma razão toda sufficiente e toda poderosa. Vivia com os olhos
n'elle, n'uma obediencia animal: tinha só a curvar-se quando elle fallava, e quando vinha o momento a
desapertar o vestido.
Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ella desforrava-o de todo um passado de dependencias--a
casa do tio, o seminario, a sala branca do senhor conde de Ribamar... A sua existencia de padre era uma
curvatura humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediencia ao senhor bispo, á camara ecclesiastica, aos
canones, á Regra que nem lhe permittia ter uma vontade propria nas suas relações com o sacristão. E agora,
emfim, tinha alli aos seus pés aquelle corpo, aquella alma, aquelle sêr vivo sobre quem reinava com
despotismo. Se passava os seus dias, por profissão, louvando, adorando e incensando Deus,--era elle tambem
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 188
agora o Deus d'uma creatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ella ao menos, era bello,
superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra como os mais sabios. Ella mesmo, um dia, dissera-lhe,
depois de ter estado um momento pensativa:
Ella acreditava-o--com um receio, todavia, que as altas dignidades o afastassem d'ella, o levassem para
longe de Leiria. Aquella paixão, em que estava abysmada e que a saturava, tornára-a estupida e obtusa a
tudo o que não respeitava ao senhor parocho ou ao seu amor. Amaro de resto não lhe consentia interesses,
curiosidades alheias á sua pessoa. Prohibia-lhe até que lêsse romances e poesias. Para que se havia de fazer
doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ella fallára, com algum appetite, d'um baile que
iam dar os Vias-Claras, offendeu-se como d'uma traição. Fez-lhe em casa do tio Esguelhas accusações
tremendas: era uma vaidosa, uma perdida, uma filha de Satanaz!...
--Mas mato-te! Percebes? Mato-te!--exclamou, agarrando-lhe os pulsos, fulminando-a com o olhar accêso.
Tinha um medo, que o pungia, de a vêr subtrahir-se ao seu imperio, perder-lhe a adoração muda e absoluta.
Pensava ás vezes que ella se fatigaria, com o tempo, d'um homem que não lhe satisfazia as vaidades e os
gostos de mulher, sempre mettido na sua batina negra, com a cara rapada e a corôa aberta. Imaginava que
as gravatas de côres, os bigodes bem torcidos, um cavallo que trota, um uniforme de lanceiros exercem sobre
as mulheres uma fascinação decisiva. E se a ouvia fallar d'algum official do destacamento, d'algum
cavalheiro da cidade, eram ciumes desabridos...
Mas escusava de fallar da creatura, então! Era ter curiosidade, pôr o pensamento n'outro! D'essas faltas de
vigilancia sobre a alma e a vontade é que se aproveitava o demonio!...
Viera assim a ter um odio a todo o mundo secular--que a poderia attrahir, arrastar para fóra da sombra da
sua batina. Impedia-lhe, com pretextos complicados, toda a communicação com a cidade. Convenceu mesmo
a mãi que a não deixasse ir só á Arcada e ás lojas. E não cessava de lhe representar os homens como
monstros d'impiedade, cobertos de peccados como d'uma crosta, estupidos e falsos, votados ao inferno!
Contava-lhe horrores de quasi todos os rapazes de Leiria. Ella perguntava-lhe aterrada, mas curiosa:
--Não te posso dizer, respondia com uma reticencia, indicando que lhe fechava os labios o segredo da
comfissão.
E ao mesmo tempo martellava-lhe os ouvidos com a glorificação do sacerdocio. Desenrolava-lhe com pompa
a erudição dos seus antigos compendios, fazendo-lhe o elogio das funcções, da superioridade do padre. No
Egypto, grande nação da antiguidade, o homem só podia ser rei se era sacerdote! Na Persia, na Ethiopia, um
simples padre tinha o privilegio de desthronar os reis, dispôr das corôas! Onde havia uma auctoridade igual
á sua? Nem mesmo na côrte do céo. O padre era superior aos anjos e aos seraphins--porque a elles não fôra
dado como ao padre o poder maravilhoso de perdoar os peccados! Mesmo a Virgem Maria, tinha ella um
poder maior que elle, padre Amaro? Não: com todo o respeito devido à magestade de Nossa Senhora, elle
podia dizer com S. Bernardino de Sena: «o sacerdote excede-te, ó mãi amada!»--porque, se a Virgem tinha
incarnado Deus no seu castissimo seio, fôra só uma vez, e o padre, no santo sacrificio da missa, incarnava
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 189
Deus todos os dias! E isto não era argucia d'elle, todos os santos padres o admittiam...
Então deslumbrava-a com citações venerandas: S. Clemente, que chamou ao padre «o Deus da terra»; o
eloquente S. Chrysostomo, que disse «que o padre é o embaixador que vem dar as ordens de Deus». E Santo
Ambrosio que escreveu: «entre a dignidade do rei e a dignidade do padre ha maior differença que a que
existe entre o chumbo e o ouro»!
--E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te parece?
Ella atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar, possuir n'elle o «ouro de Santo
Ambrosio», o «embaixador de Deus», tudo o que na terra havia mais alto e mais nobre, o sêr que excede em
graça os archanjos!
Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a influencia da sua voz--que
a faziam crêr na promessa que elle lhe repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ella o
interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tomal-a pela mão para a acompanhar e
desfazer todas as duvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do céo; e que na sua sepultura, como succedera
em França a uma rapariga amada por um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova
celeste de que a virgindade não se estraga nos abraços santos d'um padre...
Isto encantava-a. Áquella idéa da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava toda pensativa, n'um
antegosto de felicidades mysticas, com suspirinhos de gozo. Affirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.
Amaro galhofava.
Engordára com effeito. Estava agora d'uma belleza ampla e toda igual. Perdera aquella expressão inquieta
que lhe punha nos labios uma seccura e lhe afilava o nariz. Nos seus beiços havia um vermelho quente e
humido; o seu olhar tinha risos sob um fluido sereno; toda a sua pessoa uma apparencia madura de
fecundidade. Fizera-se preguiçosa: em casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar
longamente com um sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um momento, a agulha, o panno
que ella costurava, toda a sua pessoa... Estava revendo o quarto do sineiro, o catre, o senhor parocho em
mangas de camisa.
Passava os seus dias esperando as oito horas, em que elle apparecia regularmente com o conego. Mas os
serões agora pezavam-lhe. Elle recommendára-lhe muita reserva; ella exagerava-a, por um excesso de
obediencia, a ponto de nunca se sentar ao pé d'elle ao chá, e de nem mesmo lhe offerecer bolos. Odiava então
a presença das velhas, a gralhada das vozes, as pachorras do quino: tudo lhe parecia intoleravel no mundo,
excepto estar só com elle... Mas depois, em casa do sineiro, que desforra! Aquelle rosto todo alterado,
aquellas suffocações de delirio, aquelles ais agonisantes, depois a immobilidade da morte, assustavam ás
vezes o padre. Erguia-se no cotovêlo, inquieto:
--Estás incommodada?
Ella abria os olhos espantados, como resurgindo de muito longe; e era realmente bella, cruzando os braços
nús sobre o peito descoberto, dizendo lentamente com a cabeça que não...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 190
XIX
Uma circumstancia inesperada veio estragar aquellas manhãs da casa do sineiro. Foi a extravagancia da
Tótó. Como disse o padre Amaro, «a rapariga sahia-lhes um monstro»!
Tinha agora por Amelia uma aversão desabrida. Apenas ella se aproximava da cama, atirava a cabeça para
debaixo dos cobertores, torcendo-se com phrenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amelia fugia, impressionada
com a idéa de que o diabo que habitava a Tótó, recebendo o cheiro que ella trazia da igreja nos vestidos,
impregnados d'incenso e salpicados d'agua benta, se espolinhava de terror dentro do corpo da rapariga...
Amaro quiz reprehender a Tótó, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas, a sua ingratidão demoniaca para
com a menina Amelia que vinha entretel-a, ensinal-a a conversar com Nosso Senhor... Mas a paralytica
rompeu n'um chôro hysterico; depois, de repente, ficou immovel, hirta, esbugalhando os olhos em alvo, com
uma escuma branca na bôca. Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama d'agua; Amaro, por prudencia,
recitou os exorcismos... E Amelia desde então resolveu «deixar a fera em paz». Não tentou mais ensinar-lhe o
alphabeto, nem orações a Sant'Anna.
Mas, por escrupulo, iam sempre ao entrar vêl-a um instante. Não passavam da porta da alcova,
perguntando-lhe d'alto «como ia». Nunca respondia. E elles retiravam-se logo aterrados com aquelles olhos
selvagens e brilhantes, que os devoravam, indo d'um a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando-se com uma
faiscação metallica nos vestidos d'Amelia e na batina do padre, como para lhe adivinhar o que estava por
baixo, n'uma curiosidade avida que lhe dilatava desesperadamente as narinas e lhe arreganhava os beiços
lividos. Mas era a mudez, obstinada e rancorosa, que os incommodava sobretudo. Amaro, que não acreditava
muito em possessos e endemoninhados, via alli os symptomas de loucura furiosa. Os sustos d'Amelia
augmentaram.--Felizmente que as pernas inertes cravavam a Tótó alli na enxerga! Senão, Jesus, era capaz de
lhes entrar no quarto e mordêl-os n'um accesso!
Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer da manhã, «depois d'aquelle espectaculo»; e decidiu
então, d'ahi por diante, subir para o quarto sem fallar á Tótó.
Foi peor. Quando a via atravessar da porta da rua para a escada, a Tótó debruçava-se para fóra do leito,
agarrada ás bordas da enxerga, n'um esforço ancioso para a seguir, para a vêr, com a face toda descomposta
do desespero da sua immobilidade. E Amelia ao entrar no quarto sentia vir de baixo uma risadinha sêcca, ou
um ui! prolongado e uivado que a gelava...
Andava agora aterrada: viera-lhe a idéa que Deus estabelecera alli, ao lado do seu amor com o parocho, um
demonio implacavel para a escarnecer e apupar. Amaro, querendo-a tranquillisar, dizia-lhe que o nosso
santo padre Pio IX, ultimamente, declarára peccado crêr em pessoas possessas...
--Isso é da religião velha. Agora vai-se mudar tudo isso... Emfim a sciencia é a sciencia...
Ella presentia que Amaro a enganava--e a Tótó estragava a sua felicidade. Emfim Amaro achou o meio de
escaparem «á maldita rapariga»: era entrarem ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar a cozinha
para subir a escada, e a posição da cama da Tótó, na alcova, não lhe permittia vêl-os, quando elles
cautelosamente passassem pé ante pé. Era facil, de resto, porque á hora do rendez-vous, entre as onze e o
meio dia, nos dias de semana, a sacristia estava deserta.
Mas succedia que, quando elles entravam em pontas de pés e mordendo a respiração, os seus passos, por
mais subtis, faziam ranger os velhos degraus da escada. E então a voz da Tótó sahia da alcova, uma voz
rouca e aspera, berrando:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 191
Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a paralytica. Amelia tremia, toda branca.
Elles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se por dentro. Mas aquella voz d'um desolamento lugubre, que
lhes parecia vir dos infernos, chegava-lhes ainda, perseguia-os:
Amelia cahia sobre o catre, quasi desmaiada de terror. Jurava não voltar áquella casa maldita...
--Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre furioso. Onde nos havemos de vêr então? Queres que nos
deitemos nos bancos da sacristia?
--Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava Amelia, apertando as mãos.
--Nada! É doida... E o pobre tio Esguelhas tem tido um desgosto... Emfim, que queres que lhe faça?
Ella não respondia. Mas em casa, quando se ia aproximando o dia de rendez-vous, começava a tremer á idéa
d'aquella voz que lhe atroava sempre nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror ia-a despertando
lentamente do adormecimento de todo o sêr, era que cahira nos braços do parocho. Interrogava-se agora:
não andaria commettendo um peccado irremissivel? As affirmações de Amaro, assegurando-lhe o perdão do
Senhor, já não a tranquillisavam. Ella bem via, quando a Tótó uivava, uma pallidez cobrir o rosto do
parocho, como correr-lhe no corpo um calefrio do inferno entrevisto. E se Deus os desculpava--porque
deixava assim o demonio atirar-lhes, pela voz da paralytica, a injuria e o escarneo?
Ajoelhava então aos pés da cama, arremessava orações sem fim para Nossa Senhora das Dôres, pedindo-lhe
que a alumiasse, que lhe dissesse o que era aquella perseguição da Tótó, e se era sua intenção divina
mandar-lhe assim um aviso medonho. Mas Nossa Senhora não lhe respondia. Não a sentia como outr'ora
descer do céo ás suas orações, entrar-lhe na alma aquella tranquillidade suave como uma onda de leite que
era uma visitação da Senhora. Ficava toda murcha, torcendo as mãos, abandonada da graça. Promettia
então não voltar a casa do sineiro;--mas quando o dia chegava, á idéa d'Amaro, do leito, d'aquelles beijos
que lhe levavam a alma, d'aquelle fogo que a penetrava, sentia-se toda fraca contra a tentação; vestia-se,
jurando que era a ultima vez; e ao toque das onze partia, com as orelhas a arder, o coração tremendo da voz
da Tótó que ia ouvir, as entranhas abrazando-se no desejo do homem que a ia atirar para cima da enxerga.
Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se á auctoridade sagrada da sua batina. Elle
então, vendo-a chegar tão pallida e tão transtornada, galhofava para a tranquillisar. Não, era uma tolice, se
iam agora estragar o regalosinho d'aquellas manhãs, porque havia uma doida na casa! Promettera-lhe de
resto procurar outro sitio para se vêrem: e mesmo com o fim de a distrahir, aproveitando a solidão da
sacristia, mostrava-lhe ás vezes os paramentos, os calices, as vestimentas, procurando interessal-a por um
frontal novo ou por uma antiga renda de sobrepelliz, provando-lhe, pela familiaridade com que tocava nas
reliquias, que era ainda o senhor parocho e não perdera o seu credito no céo.
Foi assim que uma manhã lhe fez vêr uma capa de Nossa Senhora, que havia dias chegára de presente d'uma
devota rica d'Ourem. Amelia admirou-a muito. Era de setim azul, representando um firmamento, com
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 192
estrellas bordadas, e um centro, de lavor rico, onde flammejava um coração d'ouro cercado de rosas d'ouro.
Amaro desdobrára-a, fazendo scintillar junto da janella os bordados espessos.
--Rica obra, hein? centos de mil reis... Experimentamol-a hontem na imagem... Vai-lhe como um brinco. Um
bocadito comprida, talvez...--E olhando Amelia, n'uma comparação da sua alta estatura com a figura
atarracada da imagem da Senhora:--A ti é que te havia de ficar bem. Deixa vêr...
Ella recuou:
--Tolice! disse elle adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro de setim branco, d'uma alvura de
nuvem matutina. Não está benzida... É como se viesse da modista.
Elle então zangou-se. Queria talvez saber melhor do que elle o que era peccado, não? Vinha agora a menina
ensinar-lhe o respeito que se deve aos vestuarios dos santos?
Poz-lh'a nos hombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata lavrada. E afastou-se para a contemplar
toda envolvida no manto, assustada e immovel, com um sorriso cálido de gozo devoto.
Ella então, movendo-se com uma cautela solemne, chegou-se ao espelho da sacristia--um antigo espelho de
reflexo esverdeado com um caixilho negro de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz. Mirou-se um
momento, n'aquella sêda azul celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo das estrellas, com uma
magnificencia sideral. Sentia-lhe o peso rico. A santidade que o manto adquirira no contacto com os hombros
da imagem penetrava-a d'uma voluptuosidade beata. Um fluido mais dôce que o ar da terra envolvia-a,
fazia-lhe passar no corpo a caricia do ether do paraiso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou mais alto, no
céo...
Ella deu uma olhadella viva ao espelho. Era, decerto, linda. Não tanto como Nossa Senhora... Mas com o seu
rosto trigueiro, de labios rubros, alumiado por aquelle rebrilho dos olhos negros, se estivesse sobre o altar,
com cantos ao orgão e um culto susurrando em redor, faria palpitar bem forte o coração dos fieis...
Amaro então chegou-se por detraz d'ella, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda--e estendendo os
labios por sobre os d'ella, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos d'Amelia cerravam-se, a cabeça
inclinava-se-lhe para traz, pesada de desejo. Os beiços do padre não se desprendiam, avidos, sorvendo-lhe a
alma. A respiração d'ella apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfalleceu sobre o hombro
do padre, descórada e morta de gozo.
Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as palpebras como acordada de muito longe; uma onda
de sangue escaldou-lhe o rosto:
Então Amaro fez-se muito sério. Realmente não se devia brincar com coisas sagradas...
Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lençol branco, collocou-o no gavetão, sem uma palavra.
Amelia olhava-o petrificada: e só os seus labios pallidos se moviam n'uma oração.
Quando elle lhe disse, emfim, que eram horas d'irem a casa do sineiro--recuou, como diante do demonio que
a chamasse.
Elle insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ella bem sabia que não era peccado, quando as
coisas não estavam benzidas... Era ser muito pobre d'espirito... Que demonio, só meia hora, ou um quarto
d'hora!
--Hoje não!
Amaro encolheu os hombros. E Amelia atravessou rapidamente a igreja, de cabeça baixa e olhos nas lages,
como se passasse entre as ameaças cruzadas dos santos indignados.
No dia seguinte de manhã, a S. Joanneira, que estava na sala de jantar, sentindo o senhor conego subir
soprando forte, veio encontral-o á escada e fechou-se com elle na saleta.
Queria contar-lhe a afflicção que tivera de madrugada. A Amelia acordára de repente aos gritos, que Nossa
Senhora lhe estava a pousar o pé no pescoço! que suffocava! que a Tótó a queimava por detraz! e que as
labaredas do inferno subiam mais alto que as torres da Sé!... Emfim um horror!... Viera encontral-a em
camisa a correr pelo quarto, como doida. D'ahi a pouco cahira para o lado com um ataque de nervos. Toda a
casa estivera em alvoroço... A pobre pequena lá estava de cama, e em toda a manhã apenas tocára n'uma
colher de caldo.
--Ai, senhor conego, não! exclamou a S. Joanneira, que parecia acabrunhada, sentada diante d'elle na borda
d'uma cadeira. É outra coisa: são aquellas desgraçadas visitas á filha do sineiro!
E então desabafou, com a effusão labial de quem abre os diques a um descontentamento accumulado. Nunca
quizera dizer nada, porque emfim reconhecia que era uma grande obra de caridade. Mas, desde que aquillo
começára, a rapariga parecia transtornada. Ultimamente, então, andava de todo. Ora alegrias sem razão,
ora umas trombas de dar melancolia aos moveis. De noite sentia-a passear pela casa até tarde, abrir as
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 194
janellas... Ás vezes tinha até medo de lhe vêr o olhar tão exquisito: quando vinha de casa do sineiro era
sempre branca como a cal, a cahir de fraqueza. Tinha de tomar logo um caldo... Emfim, dizia-se que a Tótó
tinha o demonio no corpo. E o senhor chantre, o outro que tinha morrido (Deus lhe falle n'alma), costumava
dizer que n'este mundo as duas coisas que se pegavam mais ás mulheres eram tisicas e demonio no corpo.
Parecia-lhe, pois, que não devia consentir que a pequena fosse a casa do sineiro, sem estar certa que aquillo
nem lhe prejudicava a saude nem lhe prejudicava a alma. Emfim, queria que uma pessoa de juizo,
d'experiencia, fosse examinar a Tótó...
--N'uma palavra, disse o conego que escutára d'olhos cerrados aquella verbosidade repassada de lamuria, o
que a senhora quer é que eu vá vêr a paralytica e saber á justa o que se passa...
Aquella palavra, que S. Joanneira, na sua gravidade de matrona, reservava para a intimidade das séstas,
enterneceu o conego. Fez uma caricia ao pescoço gordo da sua velhota, prometteu com bondade ir estudar o
caso...
Mas o conego preferia que Amelia estivesse presente. Podia assim vêr como as duas se davam, se havia
influencia do espirito maligno...
--Que isto que eu faço é d'agradecer... É por ser p'ra quem é... Que bem me bastam os meus achaques, sem
me occupar dos negocios de Satanaz.
No fundo aquelle encargo desagradava-lhe: era uma perturbação nos seus habitos, toda uma manhã
desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo d'exercitar a sua sagacidade; além d'isso odiava o espectaculo de
doenças e de todas as circumstancias humanas relacionadas com a morte. Mas, emfim, fiel á sua promessa,
d'ahi a dias, na manhã em que fôra prevenido que Amelia ia á Tótó, arrastou-se contrariado para a botica do
Carlos; e installou-se, com um olho no Popular e outro na porta, á espera que a rapariga **atravessasse**
para a Sé. O amigo Carlos estava ausente; o snr. Augusto occupava os seus vagares sentado á escrivaninha,
de testa sobre o punho, relendo o seu Soares de Passos; fóra, o sol já quente dos fins de abril fazia rebrilhar
o lageado do largo; não passava ninguem; e só quebravam o silencio as martelladas nas obras do doutor
Pereira. Amelia tardava. E o conego, depois de ter considerado longo tempo, com o Popular cahido nos
joelhos, o medonho sacrificio que fazia pela sua velhota, ia cerrando as palpebras, já tomado da quebreira,
n'aquelle repouso calado do meio dia proximo--quando entrou na botica um ecclesiastico.
--Oh, abbade Ferrão, vossê pela cidade! exclamou o conego Dias despertando do seu quebranto.
--De fugida, collega, de fugida, disse o outro collocando cuidadadosamente sobre uma cadeira dois grossos
volumes que trazia, amarrados n'um barbante.
Tinha o cabello todo branco; devia passar já dos sessenta annos; mas era robusto, uma alegria bailava
sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha dentes magnificos a que uma saude de granito conservava o esmalte;
o que o desfigurava era um nariz enorme.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 195
Informou-se logo com bondade se o amigo Dias estava alli de visita ou infelizmente por motivo de doença.
--Ah, fez o velho discretamente.--E emquanto tirava com methodo d'uma carteira atulhada de papeis a receita
para o praticante, deu ao conego noticias da freguezia. Era lá, nos Poyaes, que o conego tinha a fazenda, a
Ricoça. O abbade Ferrão passára de manhã diante da casa e ficára surprehendido vendo que lhe andavam a
pintar a fachada. O amigo Dias tinha algumas idéas d'ir lá passar o verão?
Não, não tinha. Mas como trouxera obras dentro e a fachada estava uma vergonha, mandára-lhe dar uma
mão d'oca. Emfim era necessario alguma apparencia, sobretudo n'uma casa que estava á beira da estrada,
onde passava todos os dias o morgadelho dos Poyaes, um parlapatão que imaginava que só elle tinha um
palacete decente em dez leguas á roda... Só para metter ferro áquelle atheu! Pois não lhe parecia, amigo
Ferrão?
O abbade estava justamente lamentando comsigo aquelle sentimento de vaidade n'um sacerdote; mas, por
caridade christã, para não contrariar o collega, apressou-se a dizer:
O conego então, vendo passar no largo uma saia e um mantelete, foi á porta affirmar-se se era Amelia. Não
era. E voltando, retomado agora da sua preoccupação, vendo que o praticante fôra dentro ao laboratorio,
disse ao ouvido do Ferrão:
O abbade desculpou-se polidamente. Viera fallar ao senhor vigario geral, fôra depois ao Silverio para lhe
pedir aquelles dois volumes, vinha alli aviar uma receita para um velho da freguezia, e tinha d'estar de volta
aos Poyaes ao toque das duas horas.
O abbade então confessou ao caro collega que eram coisas que não gostava d'examinar. Aproximava-se
sempre d'ellas com um espirito rebelde á crença, com desconfianças e suspeitas que lhe diminuiam a
imparcialidade.
--Mas emfim ha prodigios! disse o conego.--Apesar das suas proprias duvidas, não gostava d'aquella
hesitação do abbade, a proposito d'um phenomeno sobrenatural, em que elle, conego Dias, estava
interessado. Repetiu com seccura:--Tenho alguma experiencia, e sei que ha prodigios.
--Decerto, decerto ha prodigios, disse o abbade. Negar que Deus ou a Rainha do céo possa apparecer a uma
creatura é contra a doutrina da Igreja... Negar que o demonio possa habitar o corpo de um homem, seria
estabelecer um erro funesto... Aconteceu a Job, sem ir mais longe, e á familia de Sara. Está claro, ha
prodigios. Mas que rarissimos que são, conego Dias!
Calou-se um momento olhando o conego, que tapava o nariz com rapé em silencio--e continuou mais baixo,
com o olho brilhante e fino:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 196
--E depois não tem o collega notado que é uma coisa que só succede ás mulheres? É só a ellas, cuja
**malicia** é tão grande que o proprio Salomão não lhes pôde resistir, cujo temperamento é tão nervoso,
tão contradictorio que os medicos não as comprehendem. É só a ellas que succedem prodigios!... O collega já
ouviu de ter apparecido a nossa Santa Virgem a um respeitavel tabellião? Já ouviu d'um digno juiz de direito
possuido do espirito maligno? Não. Isto faz reflectir... E eu concluo que é malicia n'ellas, illusão,
imaginação, doença, etc... Não lhe parece? A minha regra n'esses casos é vêr tudo isso d'alto e com muita
indifferença.
Mas o conego, que vigiava a porta, brandiu subitamente o guardasol, fazendo para o largo:
Era Amelia que passava. Parou logo, contrariada d'aquelle encontro que a ia ainda retardar mais. E já o
senhor parocho devia estar desesperado...
--De modo que, disse o conego á porta abrindo o seu guardasol, vossê, abbade, era lhe cheirando a
prodigio...
--Oh, collega! oh, collega! exclamou o abbade, offendido com aquella injustiça feita á incomparavel
sabedoria de Salomão.
Tinha preparado uma historia habil para justificar a sua visita á paralytica; mas durante a sua conversação
com o abbade ella escapára-lhe, como tudo o que deixava um momento nos reservatorios da memoria; e foi
sem transição que disse simplesmente a Amelia:
Amelia ficou petrificada. E o senhor parocho, naturalmente, já lá estava! Mas sua madrinha Nossa Senhora
das Dôres, que ella invocou logo n'aquella afflicção, não a deixou enleada no embaraço.--E o conego, que
caminhava ao lado d'ella, ficou surprehendido ouvindo-lhe dizer com um risinho:
--Viva, hoje é o dia das visitas á Tótó! O senhor parocho disse-me que tambem talvez hoje apparecesse por
lá... Talvez lá esteja até.
--Ah! O amigo parocho tambem? Está bom, está bom. Faremos uma consulta á Tótó!
Amelia então, contente da sua malicia, tagarellou sobre a Tótó. O senhor conego ia vêr... Era uma creatura
incomprehensivel... Ultimamente, ella não tinha querido contar em casa, mas a Tótó tomára-lhe birra... E
dizia coisas, tinha um modo de fallar de cães e d'animaes, d'arripiar!... Ai, era um encargo que já lhe
pesava... Que a rapariga não lhe escutava as lições, nem as orações, nem os conselhos... Era uma fera!
Que queria! A rapariga era uma porca, não havia tel-a arranjado. O pai, esse, um desleixado tambem...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 197
--É aqui, senhor conego, disse, abrindo a porta da alcova--que agora, em obediencia ás ordens do senhor
parocho, o tio Esguelhas deixava sempre fechada.
Encontraram a Tótó meio erguida sobre a cama, com a face accêsa n'uma curiosidade, áquella voz do
conego que não conhecia.
--Vá, comprimenta o senhor conego, disse Amelia, começando logo, com uma caridade desacostumada, a
compôr a roupa da cama, a arrumar a alcova. Dize-lhe como estás... Não te faças amuada!
Mas a Tótó permaneceu tão muda como a imagem de S. Bento que tinha á cabeceira, examinando muito
aquelle sacerdote tão gordo, tão grisalho, tão differente do senhor parocho... E os seus olhos, mais brilhantes
todos os dias á medida que se lhe cavavam as faces, iam, como de costume, do homem para Amelia, n'uma
anciedade de perceber porque o trazia ella alli, aquelle velho obeso, e se ia tambem subir com elle para o
quarto.
Amelia agora tremia. Se o senhor parocho entrasse, e alli, diante do cónego, a Tótó, tomada do seu phrenesi,
rompesse aos gritos, tratando-os de cães!... Com o pretexto de dar uma arrumadella foi à cozinha vigiar o
pateo. Faria um signal da janella, apenas Amaro apparecesse.
--E o outro?
--Que outro?
--O bonito. O que vai com ella p'ró quarto. O que a belisca...
Mas Amelia entrava: e a paralytica calou-se logo, repousada, com os olhos cerrados e respirando
regaladamente, como n'um allivio repentino de todo o seu soffrimento. O conego, esse, immobilisado
d'assombro, permanecia na mesma postura, dobrado sobre a cama como para ascultar a Tótó. Ergueu-se por
fim, soprou como n'uma calma d'agosto, sorveu d'espaço uma pitada forte; e ficou com a caixa aberta entre
os dedos, os olhos muito vermelhos cravados na colcha da Tótó.
--Então, senhor conego, que lhe parece cá a minha doente? perguntou Amelia.
--Sim senhor, muito bem... Vai bem... É exquisita... Pois é andar, é andar... Adeus...
O Carlos, que voltára, apressou-se, offerecendo flôr de laranja, perguntando se sua excellencia estava
incommodado...
--Cansadote, disse.
Tomou o Popular de sobre a mesa, e alli ficou, sem se mexer, abysmado nas columnas do periodico. O Carlos
tentou fallar da politica do paiz, depois dos negocios d'Hespanha, depois dos perigos revolucionarios que
ameaçavam a Sociedade, depois da deficiencia da administração do concelho de que era agora um
adversario feroz... Debalde. Sua excellencia grunhia apenas monosyllabos soturnos. E o Carlos, emfim,
recolheu-se a um silencio chocado, comparando, n'um desdem interior que lhe vincava de sarcasmo os cantos
dos beiços, a obtusidade soturna d'aquelle sacerdote à palavra inspirada d'um Lacordaire e d'um Malhão!
Por isso o Materialismo em Leiria, em todo o Portugal erguia a sua cabeça d'hydra...
Batia uma hora na torre quando o conego, que vigiava a Praça pelo canto do olho, vendo passar Amelia,
arremessou o jornal, sahiu da botica sem dizer uma palavra e estugou o seu passo d'obeso para casa do tio
Esguelhas. A Tótó estremeceu de medo ao vêr de novo aquella figura bojuda apparecer á porta da alcova.
Mas o conego riu-se para ella, chamou-lhe Tótósinha, prometteu-lhe um pinto para bolos; e mesmo sentou-se
aos pés da cama com um ah! regalado, dizendo:
--Ora vamos nós agora conversar, amiguinha... Esta é que é a pernita doente, hein? Coitadita! Deixa que te
has de curar... Hei de pedir a Deus... Fica por minha conta.
Ella fazia-se ora toda branca ora toda vermelha, olhando aqui e além, inquieta, na perturbação que lhe dava
aquelle homem a sós com ella tão perto que lhe sentia o halito forte.
--Então, ouve cá, disse elle chegando-se mais para ella, fazendo ranger o catre com o seu peso. Ouve cá,
quem é o outro? Quem é que vem com a Amelia?
--É o bonito, é o magro, vêm ambos, sobem p'r'ó quarto, fecham-se por dentro, são como cães!
--E vão p'r'ó quarto, hein? lá p'ra cima? E tu que ouves, tu que ouves? Dize tudo, pequena, dize tudo!
A paralytica então contou, com um furor que dava tons sibilantes à sua voz de tisica,--como ambos entravam,
e a vinham vêr, e se roçavam um pelo outro, e abalavam para o quarto em cima, e estavam lá uma hora
fechados...
Mas o conego, com uma curiosidade lubrica que lhe punha uma chamma nos olhos mortiços, queria saber os
detalhes torpes:
--E olha, Tótósinha, já os viste beijarem-se, abraçarem-se? Anda, dize, que te dou dois pintos.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 199
Ella não descerrava os labios; e a sua face transtornada parecia ao conego selvagem.
O conego então endireitou-se, bufou outra vez com o seu grande sôpro d'encalmado, e coçou vivamente a
corôa.
Esteve um momento considerando e partiu para a rua das Sousas, de guardasol em riste, apressando a sua
obesidade, com a face apopletica de furor. No largo da Sé, porém, parou a reflectir ainda; e rodando sobre
os tacões, entrou na igreja. Ia tão levado que, esquecendo um habito de quarenta annos, não dobrou o joelho
ao Santissimo. E arremessou-se para a sacristia--justamente quando o padre Amaro sahia, calçando
cuidadosamente as luvas pretas que usava agora sempre para agradar á Ameliasinha.
--O que é? exclamou o conego de golpe, é a maroteira das maroteiras! É a sua infamia! é a sua infamia!...
--Não ha padre-mestre! O senhor desencaminhou a rapariga! Isso é que é uma canalhice mestra!
--Viu!?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 200
Imaginára n'um relance uma traição, o conego escondido n'um recanto da casa do tio Esguelhas...
--Não vi, mas é como se visse!--continuou o conego n'um tom tremendo. Sei tudo. Venho de lá. Disse-m'o a
Tótó. Fecham-se no quarto horas e horas! Até se ouve em baixo ranger a cama! É uma ignominia !
O parocho, vendo-se pilhado, teve, como um animal acossado e entalado a um canto, uma resistencia de
desespero.
O conego pulou.
--O que tenho!? o que tenho!? Pois o senhor ainda me falla n'esse tom!? O que tenho é que vou d'aqui
immediatamente dar parte de tudo ao senhor vigario geral!
--Que é lá? que é lá? exclamou o conego de guardasol erguido. Vossê quer-me pôr as mãos?
O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre a testa em suor, com os olhos cerrados; e depois de um
momento, fallando com uma serenidade forçada:
--Ouça lá, senhor conego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na cama com a S. Joanneira...
--Vi, vi, vi! affirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa... O senhor estava em mangas de
camisa, ella tinha-se erguido, estava a apertar o collete. Até o senhor me perguntou «quem está ahi?» Vi,
como estou a vêl-o agora. O senhor a dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que o senhor vive ha dez annos
amigado com a S. Joanneira, á face de todo o clero! Ora ahi tem!
O conego, já antes esfalfado dos excessos do seu furor, ficou agora, áquellas palavras, como um boi
atordoado. Só pôde dizer d'ahi a pouco, muito murcho:
O padre Amaro então, quasi tranquillo, certo do silencio do conego, disse com bonhomia:
--Traste porquê? Diga-me lá! Traste porquê? Temos ambos culpas no cartorio, eis ahi está. E olhe que eu
não fui perguntar, nem peitar a Tótó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com
coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escóla e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor
faz aquillo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se á velha, eu que sou
novo arranjo-me com a pequena. É triste, mas que quer? É a natureza que manda. Somos homens. E como
sacerdotes, para honra da classe, o que temos é fazer costas!
O conego escutava-o, bamboleando a cabeça, na aceitação muda d'aquellas verdades. Tinha-se deixado
cahir n'uma cadeira, a descansar de tanta cólera inutil; e erguendo os olhos para Amaro:
Então riram ambos. Immediatamente cada um declarou retirar as palavras offensivas que tinha dito; e
apertaram-se gravemente a mão. Depois conversaram.
O conego, o que o tinha enfurecido era ser lá com a pequena de casa. Se fosse com outra... até estimava! Mas
a Ameliasinha!... Se a pobre mãi viesse a saber estourava de desgosto.
--Mas a mãi escusa de saber! exclamou Amaro. Isto é entre nós, padre-mestre! Isto é segredo de morte! Nem
a mãi sabe de nada, nem eu mesmo digo á pequena o que se passou hoje entre nós. As coisas ficam como
estavam, e o mundo continua a rolar... Mas vossê, padre-mestre, tenha cuidado!... Nem uma palavra á S.
Joanneira... Que não haja agora traição!
O conego, com a mão sobre o peito, deu gravemente a sua palavra d'honra de cavalheiro e de sacerdote que
aquelle segredo ficava para sempre sepultado no seu coração.
--Homem! disse o conego sentenciosamente, é o que a gente leva de melhor d'este mundo.
--É verdade, padre-mestre, é verdade! É o que a gente leva de melhor d'este mundo.
Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquillidade d'alma. Até ahi incommodava-o, por vezes, a idéa
de que correspondera ingratamente á confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalisado na rua da
Misericordia. Mas a tacita approvação do conego viera tirar-lhe, como elle dizia, aquelle espinho da
consciencia. Porque emfim, o chefe de familia, o cavalheiro respeitavel, o cabeça--era o conego. A S.
Joanneira era apenas uma concubina... E Amaro mesmo, às vezes agora, em tom de galhofa, tratava o Dias
de seu caro sogro.
Outra circumstancia viera alegral-o: a Tótó adoecera de repente: o dia seguinte ao da visita do conego,
passára-o soltando golfadas de sangue: o doutor Cardoso, chamado á pressa, fallára de tisica galopante,
questão de semanas, caso decidido...
--É d'estas, meu amigo, tinha elle dito, que é trás... trás...--Era a sua maneira de pintar a morte, que, quando
tem pressa, conclue o seu trabalho com uma fouçada aqui, outra além.
As manhãs na casa do tio Esguelhas eram agora tranquillas. Amelia e o parocho já não entravam em pontas
de pés, tentando esgueirar-se para o prazer, despercebidos da Tótó. Batiam com as portas, palravam forte,
certos que a Tótó estava bem prostrada de febre, sob os lençoes humidos dos suores constantes. Mas Amelia,
por escrupulo, não deixava de rezar todas as noites uma salve-rainha pelas melhoras da Tótó. Ás vezes
mesmo ao despir-se, no quarto do sineiro, parava de repente, e fazendo um rostinho triste:
--Ai, filho! até me parece peccado, nós aqui a gozarmos, e a pobre pequena lá em baixo a luctar com a
morte...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 202
Amaro encolhia os hombros. Que lhe haviam elles de fazer, se era a vontade de Deus?...
Tinha agora d'aquellas pieguices frequentes que impacientavam o padre Amaro. Em certos dias apparecia
muito murcha; trazia sempre algum sonho lugubre a contar, que a torturára toda a noite, e em que ella
pretendia descobrir avisos de desgraças...
Perguntava-lhe ás vezes:
Amaro enfurecia-se. Realmente era estupido! Tinham apenas uma hora para se verem, e haviam d'estar a
estragal-a com lamurias?
--É que não imaginas, dizia ella, trago o coração negro como a noite.
Com effeito as amigas da mãi estranhavam-na. Ás vezes durante serões inteiros não descerrava os labios,
pendida sobre a sua costura, picando mollemente a agulha; ou então, muito cansada mesmo para trabalhar,
ficava junto da mesa fazendo girar devagar o abat-jour verde do candieiro, com o olhar vazio e a alma muito
longe.
Ella sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava muito lentamente a sáia branca que havia semanas andava
abainhando. A mãi, vendo-a sempre tão pallida, pensára em chamar o doutor Gouveia.
O que provava a todos que era nervoso eram os sustos subitos que a tomavam--a ponto de dar um grilo, quasi
desmaiar, se de repente uma porta batia. Certas noites mesmo, exigia que a mãi viesse dormir ao pé d'ella,
com medo de pesadêlos e de visões.
--É o que diz sempre o senhor doutor Gouveia, observava a mãi ao conego, é uma rapariga que necessita
casar...
--Não lhe falta nada, resmungava. Tem tudo o que precisa. Tem de mais, ao que parece...
Era com effeito a idéa do conego, que a rapariga (como elle dizia só comsigo) «andava-se a arrasar de
felicidade». Nos dias em que sabia que ella fôra vêr a Tótó, não se fartava de a estudar, cocando-a do fundo
da poltrona com um olho pesado e lubrico. Prodigalisava-lhe agora as familiaridades paternaes. Nunca a
encontrava na escada sem a deter, com coceguinhas aqui e alli, palmadinhas na face muito prolongadas.
Queria-a em casa repetidas vezes pela manhã; e emquanto Amelia palrava com D. Josepha, o conego não
cessava de rondar em torno d'ella, arrastando as chinelas com um ar de velho gallo. E eram entre Amelia e a
mãi conversas sem fim sobre esta amizade do senhor conego, que decerto lhe deixaria um bom dote.
--Seu maganão, tem dedo!--dizia sempre o conego quando estava só com Amaro, arregalando os olhos
redondos. Aquillo é um bocado de rei!
Amaro entufava-se:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 203
--Não é mau bocado, padre-mestre, é um bom bocado.
Era este um dos **grandes** gozos d'Amaro--ouvir gabar aos collegas a belleza d'Amelia, que era chamada
entre o clero «a flôr das devotas». Todos lhe invejavam aquella confessada. Por isso insistia muito com ella
em que se ajanotasse nos domingos, á missa; zangára-se mesmo ultimamente de a vêr quasi sempre
entrouxada n'um vestido de merino escuro, que lhe dava um ar de velha penitente.
Mas Amelia, agora, já não tinha aquella necessidade amorosa de contentar em tudo o senhor parocho.
Acordára quasi inteiramente d'aquelle adormecimento estupido d'alma e do corpo, em que a lançára o
primeiro abraço de Amaro. Vinha-lhe apparecendo distinctamente a consciencia pungente da sua culpa.
N'aquelles negrumes d'um espirito beato e escravo, fazia-se um amanhecimento de razão.--O que era ella no
fim? A concubina do senhor parocho. E esta idéa, posta assim descarnadamente, parecia-lhe terrivel. Não
que lamentasse a sua virgindade, a sua honra, o seu bom nome perdido. Sacrificaria mais ainda por elle,
pelos delirios que elle lhe dava. Mas havia alguma coisa peor a temer que as reprovações do mundo: eram as
vinganças de Nosso Senhor. Era da perda possivel do paraiso que ella gemia baixo; ou de mais medonho
ainda, d'algum castigo de Deus, não das punições transcendentes que acabrunham a alma além da tumba,
mas dos tormentos que vêm durante a vida, que a feririam na sua saude, no seu bem-estar e no seu corpo.
Eram vagos medos de doenças, de lepras, de paralysias ou de pobrezas, de dias de fome--de todas essas
penalidades de que ella suppunha prodigo o Deus do seu catecismo. Como em pequena, nos dias em que se
esquecia de pagar á Virgem o seu tributo regular de salve-rainhas, temia que ella a fizesse cahir na escada
ou levar palmatoadas na mestra, arrefecia de medo agora, á idéa de que Deus, em castigo d'ella se deitar na
cama com um padre, lhe mandasse um mal que a desfigurasse ou a reduzisse a pedir esmola pelas viellas.
Estas idéas não a deixavam, desde o dia em que na sacristia peccára de concupiscencia dentro do manto de
Nossa Senhora. Tinha a certeza que a Santa Virgem a odiava, e que não cessava de reclamar contra ella;
debalde procurava abrandal-a, com um fluxo incessante de orações humilhadas; sentia bem Nossa Senhora,
inaccessivel e desdenhosa, de costas voltadas. Nunca mais aquelle divino rosto lhe sorrira; nunca mais
aquellas mãos se tinham aberto para receber com agrado as suas orações, como ramos congratulatorios. Era
um silencio sêcco, uma hostilidade gelada de divindade offendida. Ella conhecia o credito que Nossa Senhora
tem nos concilios do céo; desde pequena lh'o tinham ensinado; tudo o que ella deseja o obtem, como uma
recompensa devida aos seus prantos no Calvario; seu Filho sorri-lhe á sua direita, o Deus-Padre falla-lhe á
esquerda... E comprehendia bem que para ella não havia esperança--e que alguma coisa medonha se
preparava lá era cima, no paraiso, que lhe cahiria um dia sobre o corpo e sobre a alma, esmagando-a com
um desabamento de catastrophe. Que seria?
Cessaria as suas relações com Amaro, se o ousasse: mas receava quasi tanto a sua cólera como a de Deus.
Que seria d'ella, se tivesse contra si Nossa Senhora e o senhor parocho? Além d'isso, amava-o. Nos seus
braços, todo o terror do céo, a mesma idéa do céo desapparecia; refugiada alli, contra o seu peito, não tinha
medo das iras divinas: o desejo, o furor da carne, como um vinho muito alcoolico, davam-lhe uma coragem
colerica; era com um brutal desafio ao céo que se enroscava furiosamente ao seu corpo.--Os terrores vinham
depois, só no seu quarto. Era esta lucta que a empallidecia, lhe punha pregas d'envelhecimento ao canto dos
labios seccos e ardidos, lhe dava aquelle ar murcho de fadiga que irritava o padre Amaro.
--Mas que tens tu, que parece te espremeram o succo? perguntava-lhe elle quando aos primeiros beijos a
sentia toda fria, toda inerte.
Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam, repetidas agora todos os dias. Se tinha dito a missa
com fervor? Se tinha lido o Breviario? Se tinha feito a oração mental?...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 204
--Sabes tu que mais? disse elle furioso. Sêbo! E esta! Tu pensas que eu sou ainda seminarista, e que tu és o
padre examinador, que verifica se cumpri a Regra? Ora a tolice!
Era com effeito a sua preoccupação, agora, que Amaro fosse um bom padre. Contava, para se salvar e para
se livrar da cólera de Nossa Senhora, com a influencia do parocho na côrte de Deus: e temia que elle por
negligencia de devoção a perdesse, e que, diminuindo o seu fervor, diminuissem os seus meritos aos olhos do
Senhor. Queria-o conservar santo e favorito do céo, para colher os proveitos da sua protecção mystica.
Amaro chamava a isto «caturrices de freira velha». Detestava-as, por as achar frivolas--e porque tomavam
um tempo precioso, n'aquellas manhãs da casa do sineiro...
--Nós não viemos aqui para lamurias, dizia elle, muito sêccamente. Fecha a porta, se queres.
Ella obedecia,--e então aos primeiros beijos na penumbra da janella cerrada, elle reconhecia emfim a sua
Amelia, a Amelia dos primeiros dias, o delicioso corpo que lhe tremia todo nos braços, em espasmos de
paixão.
E cada dia a desejava mais, d'um desejo continuo e tyrannico, que aquellas horas escassas não satisfaziam.
Ah! positivamente, como mulher não havia outra!... Desafiava a que houvesse outra, mesmo em Lisboa,
mesmo nas fidalgas!... Tinha pieguices, sim, mas era não as tomar a sério, e gozar emquanto era novo!
E gozava. A sua vida por todos os lados tinha confortos e doçuras--como uma d'estas salas onde tudo é
acolchoado, não ha moveis duros nem angulos, e o corpo, onde quer que pouse, encontra a elasticidade molle
d'uma almofada.
Decerto, o melhor eram as suas manhãs em casa do tio Esguelhas. Mas tinha outros regalos. Comia bem:
fumava caro n'uma boquilha d'espuma: toda a sua roupa branca era nova e de linho: comprára alguma
mobilia: e não tinha, como outr'ora, embaraços de dinheiro, porque a snr.^a D. Maria da Assumpção, a sua
melhor confessada, lá estava com a bolsa prompta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma pechincha: uma noite
em casa da S. Joanneira, a excellente senhora, a proposito d'uma familia d'inglezes que vira passar n'um
char-á-banc para ir visitar a Batalha, exprimira a opinião que os inglezes eram herejes.
--Pois sim, filha, mas é um baptismo para rir. Não é o nosso rico baptismo, não lhes vale.
O conego então, que gostava de a torturar, declarou pausadamente que a snr.^a D. Maria dissera uma
blasphemia. O santo concilio de Trento, no seu canon IV, sessão VII, lá determinára «que aquelle que disser
que o baptismo dado aos herejes, em nome do Padre, do Filho e do Espirito, não é o verdadeiro baptismo,
seja excommungado!» E a D. Maria, segundo o santo concilio, estava desde esse momento excommungada!...
A excellente senhora teve um flato. Ao outro dia foi lançar-se aos pés d'Amaro, que em penitencia da sua
injuria feita ao canon IV, sessão VII do santo concilio de Trento, lhe ordenou trezentas missas de intenção
pelas almas do purgatorio--que D. Maria lhe estava pagando a cinco tostões cada uma.
Assim, elle podia ás vezes entrar na casa do tio Esguelhas com um ar de satisfação mysteriosa e um
embrulhosinho na mão. Era algum presente para Amelia, um lenço de sêda, uma gravatinha de côres, um par
de luvas. Ella extasiava-se com aquellas provas da affeição do senhor parocho; e era então no quarto escuro
um delirio d'amor, emquanto em baixo a tisica, sobre a Tótó, ia fazendo «trás... trás...»
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 205
XX
A criada dos Dias indicou ao padre Amaro o escriptorio, e correu acima contar a D. Josepha que o senhor
parocho viera procurar o senhor conego, e com uma cara tão transtornada que decerto tinha succedido
alguma desgraça!
Amaro abrira abruptamente a porta do escriptorio, fechou-a de repellão, e sem mesmo dar os bons dias ao
collega, exclamou:
O conego, que estava escrevendo, cahiu como uma massa fulminada para as costas da cadeira:
--Gravida!
E no silencio que se fez o soalho gemia sob os passeios furiosos do parocho da janella para a estante.
--Certissimo! A mulher já ha dias andava desconfiada. Já não fazia senão chorar... Mas agora é certo... As
mulheres conhecem, não se enganam. Ha todas as provas... Que hei de eu fazer, padre-mestre?
--Imagine vossê o escandalo! A mãi, a visinhança... E se suspeitam de mim?... Estou perdido... Eu não quero
saber, eu fujo!
O conego coçava estupidamente o cachaço, com o beiço cahido como uma tromba. Representavam-se-lhe já
os gritos em casa, a noite do parto, a S. Joanneira eternamente em lagrimas, toda a sua tranquillidade
extincta para sempre...
--Mas diga alguma coisa! gritou-lhe Amaro desesperado. Que pensa vossê? Veja se tem alguma idéa... Eu
não sei, eu estou idiota, estou de todo!
--Vá p'r'ó inferno, homem! Não se trata de moral... Está claro que foi uma asneira... Adeus, está feita!
--Mas então que quer vossê? disse o conego. Não quer decerto que se dê uma droga á rapariga, que a
arrase...
Amaro encolheu os hombros, impaciente com aquella idéa insensata. O padre-mestre, positivamente, estava
divagando...
--Mas então que quer vossê? repetia o conego n'um tom cavo, arrancando as palavras do abysmo do thorax.
--Que quero!? quero que não haja escandalo! Que hei de eu querer?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 206
--Então é casal-a! exclamou o conego com explosão. Então é casal-a com o escrevente!
--Casal-a já! Emquanto é tempo! Pater est quem nuptiæ demonstrant... Quem é marido é que é pai.
Mas a porta abriu-se, e appareceram os oculos azues, a touca negra de D. Josepha. Não se pudera conter em
cima, na cozinha, tomada d'um phrenesi agudo de curiosidade; descera na ponta das chinelas e collára o
ouvido á fechadura do escriptorio; mas o grosso reposteiro de baetão estava cerrado por dentro, um ruido de
lenha que se descarregava na rua abafava as vozes. A boa senhora então decidiu-se a entrar, «a dar os bons
dias ao senhor parocho».
Mas debalde, por detraz dos vidros defumados, os seus olhinhos agudos esquadrinharam anciosamente o
carão espesso do mano e a face pallida d'Amaro. Os dois sacerdotes estavam impenetraveis como duas
janellas fechadas. O parocho mesmo fallou ligeiramente do rheumatico do senhor chantre, da notícia que
corria sobre o casamento do senhor secretario geral... Ao fim d'uma pausa ergueu-se, contou que tinha n'esse
dia uma famosa orelheira para o jantar--e a snr.^a D. Josepha, roendo-se, viu-o abalar depois de ter dito já
por detraz do reposteiro ao conego:
--Até á noite.
E o conego, muito grave, continuou a escrever. D. Josepha então não se conteve; e depois de arrastar um
momento as chinelas em torno da banca do mano:
--Ha novidade?
--Grande novidade, mana! disse-lhe o conego, sacudindo os bicos da penna. Morreu o senhor D. João VI!
--Malcriado! rugiu ella rodando sobre os sapatões, cruelmente perseguida por uma risadinha do mano.
Foi á noite, em baixo, na saleta da S. Joanneira, emquanto Amelia em cima, com a morte n'alma, martellava
a Valsa dos dois mundos, que os dois padres, muito chegados no canapé, de cigarro nos dentes, por debaixo
do tenebroso painel onde a vaga mão do cenobita se estendia em garra sobre a caveira, cochicharam o seu
plano:--antes de tudo era **necessario** achar João Eduardo, que desapparecera de Leiria; a Dionysia,
mulher de faro, ia bater todos os recantos da cidade para descobrir a toca em que a fera se acoutava; depois,
immediatamente, porque o tempo urgia, Amelia escrever-lhe-hia... Só quatro palavras simples: que soubera
que elle fôra victima d'uma intriga; que nunca perdera nada da amizade que lhe tinha; que lhe devia uma
reparação; e que **viesse** vêl-a... Se o rapaz hesitasse agora, o que não era provavel (o conego
affirmava-o), fazia-se-lhe reluzir a esperança do emprego no governo civil, facil d'obter pelo Godinho,
inteiramente governado pela mulher, que era uma escravasinha do padre Silverio...
--Mas o Natario, disse Amaro, o Natario que detesta o escrevente, que dirá elle a esta revolução?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 207
--Homem, exclamou o conego com uma grande palmada na côxa, que me tinha esquecido! Pois vossê não
sabe o que aconteceu ao pobre Natario?...
--Quando?
--Esta manhã. Eu soube-o agora à noitinha. Eu sempre lh'o disse: homem, esse animal ferra-lhe alguma! Pois
senhores, ferrou-lh'a. E têsa! Tem p'ra pêras... E eu que me tinha esquecido! Nem as senhoras lá em cima
sabem nada.
Foi uma desolação, em cima, quando souberam. Amelia fechou o piano. Todos lembraram logo remedios que
se lhe devia mandar, foi uma gralhada de offerecimentos--ligaduras, fios, um unguento das freiras
d'Alcobaça, meia garrafinha d'um licôr dos monges do deserto d'ao pé de Cordova... Era necessario tambem
assegurar a intervenção do céo: e cada uma se promptificou a usar do seu valimento com os santos da sua
intimidade: D. Maria da Assumpção, que ultimamente praticava com Santo Eleuterio, offereceu a sua
influencia; D. Josepha Dias encarregava-se d'interessar Nossa Senhora da Visitação; D. Joaquina Gansoso
afiançou S. Joaquim...
--Eu?...
E fez-se pallida, n'uma tristeza de toda a sua alma, pensando que ella, com os seus peccados e os seus
delírios, perdera a util amizade de Nossa Senhora das Dôres.--E não poder ella tambem concorrer com a sua
influencia no céo para restabelecer a perna de Natario, foi uma das amarguras maiores, talvez a punição
mais viva que sentira desde que amava o padre Amaro.
Foi em casa do sineiro, d'ahi a dias, que Amaro participou a Amelia o plano do padre-mestre. Preparou-a,
revelando-lhe primeiro que o conego sabia tudo...
--Sabe tudo em segredo de confissão, acrescentou para a socegar. Além d'isso elle e tua mãi têm culpas em
cartorio... Tudo fica em familia...
Depois tomou-lhe a mão, e olhando-a com ternura, como compadecendo-se já das lagrimas afflictas que ella
ia chorar:
--E agora escuta, filha. Não te afflijas com o que te vou dizer, mas é necessario, é a nossa salvação...
Ás primeiras palavras, porém, do casamento com o escrevente, Amelia indignou-se com espalhafato.
O quê? Elle punha-a n'aquelle estado e agora queria descartar-se d'ella e passal-a a outro? Era ella
porventura um trapo que se usa e que se atira a um pobre? Depois de ter posto fóra de casa o homem, havia
de humilhar-se, chamal-o e cahir-lhe nos braços?... Ah, não! Tambem ella tinha o seu brio! Os escravos
trocavam-se, vendiam-se, mas era no Brazil!
Enterneceu-se então. Ah, elle já não a amava, estava farto d'ella! Ah, que desgraçada, que desgraçada que
era!--Atirou-se de bruços para a cama e rompeu n'um chôro estridente.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 208
--Cala-te, mulher, que te podem ouvir na rua! dizia Amaro desesperado, sacudindo-a pelo braço.
--Não me importa! Que ouçam! P'r'á rua vou eu gritar que estou n'este estado, que foi o senhor padre Amaro,
e que me quer agora deixar!...
Amaro fazia-se livido de raiva, com um desejo furioso de lhe bater. Mas conteve-se; e com uma voz que
tremia sob a sua serenidade:
--Tu estás fóra de ti, filha... Dize lá, posso eu casar comtigo? Não! Bem, então que queres? Se se percebe que
estás assim, se tens o filho em casa, vê o escandalo!... Por ti, estás perdida, perdida p'ra sempre! E eu, se se
souber, que me succede? Perdido tambem, suspenso, mettido em processo talvez... De que queres tu que eu
viva? Queres que morra de fome?
Enterneceu-se tambem áquella idéa das privações e das miserias do padre interdicto.--Ah, era ella, era ella
que o não amava, e que depois d'elle ter sido tão carinhoso e tão delicado, lhe queria pagar com o escandalo
e com a desgraça...
--Não, filha, é uma desgraça que nos succede, mas tem de ser. Se tu soffres, imagina eu! Vêr-te casada, a
viver com outro... Nem fallemos n'isso... Mas então, é a fatalidade, é Deus que a manda!
Ella ficára aniquilada, á beira do leito, tomada ainda de grandes soluços. Tinha chegado emfim o castigo, a
vingança de Nossa Senhora, que ella sentia preparar-se ha tempos no fundo dos céos, como uma tormenta
complicada. Ahi estava, agora, peor que os fogos do Purgatorio! Tinha de se separar de Amaro que
imaginava amar mais, e ir viver com o outro, com o excommungado! Como poderia ella nunca reentrar na
graça de Deus, depois de ter dormido e vivido com um homem que os canones, o Papa, toda a terra, todo céo
consideravam maldito?... E devia ser esse seu marido, talvez o pai d'outros filhos... Ah, Nossa Senhora
vingava-se de mais!
--E como posso eu casar com elle, Amaro, se o homem está excommungado?!
Amaro então apressou-se a tranquillisal-a, prodigalisando os argumentos. Era necessario não exagerar... O
rapaz, verdadeiramente, excommungado não estava... Natario e o conego tinham interpretado mal os
canones e as bullas... Bater n'um sacerdote que não estava revestido não era motivo d'excommunhão ipso
facto, segundo certos auctores... Elle, Amaro, era d'essa opinião... De mais a mais podiam levantar-lhe a
excommunhão.
--Tu comprehendes... Como disse o santo concilio de Trento, e como sabes, nós atamos e desatamos. O moço
foi excommungado?... Bem, levantamos-lhe a excommunhão... Fica tão limpo como d'antes. Não, isso não te
dê cuidado.
--Tu não me deixaste dizer... Arranja-se-lhe o emprego. Arranja-lh'o o padre-mestre. Está tudo
combinadinho, filha!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 209
Ella não respondeu, muito quebrada e muito triste, com duas lagrimas persistentes ao comprido das faces.
--Não, por ora não se percebe, respondeu ella com um grande ai.
Ficaram calados: ella limpando as lagrimas, serenando para sahir; elle de cabeça baixa, trilhando
lugubremente o soalho do quarto, pensando nas boas manhãs d'outr'ora, quando só havia alli beijos e
risadinhas abafadas; tudo mudára agora, até o tempo que estava todo nublado, um dia de fim de verão,
ameaçando chuva.
--Não. Vaes-te?
No emtanto a Dionysia farejava pela cidade na pista de João Eduardo. A sua actividade desenvolvera-se,
sobretudo, mal soubera que o conego Dias, o ricaço, estava interessado na «pesquiza». E todos os dias, á
noitinha, esgueirava-se cautelosamente pelo portão d'Amaro a dar-lhe as novidades: já sabia que o
escrevente estivera ao principio em Alcobaça com um primo boticario; depois fôra para Lisboa; ahi, com
uma carta de recommendação do doutor Gouvêa, empregára-se no cartorio d'um procurador; mas o
procurador, passados dias, por uma fatalidade, morrera de apoplexia; e desde então o rasto de João
Eduardo perdia-se no vago, no cahos da capital. Havia, sim, uma pessoa que lhe devia saber a morada e os
passos: era o typographo, o Gustavo. Mas infelizmente o Gustavo, depois d'uma questão com o Agostinho,
deixára o Districto e desapparecera. Ninguem sabia para onde fôra; por desgraça, a mãi do typographo não
a podia informar--porque morrera tambem.
--Oh, senhores! dizia o conego quando o padre Amaro lhe ia levar estes fios d'informação. Oh, senhores! mas
então n'essa historia toda a gente morre! Isso é uma hecatombe!
--Vossê graceja, padre-mestre, mas é sério. Olhe que um homem em Lisboa é agulha em palheiro. É uma
fatalidade!
Então, afflicto já, vendo passar os dias, escreveu á tia, pedindo-lhe que esquadrinhasse por toda a Lisboa, a
vêr se por lá apparecera «um tal João Eduardo Barbosa...» Recebeu uma carta da tia em garatujas de tres
paginas, queixando-se do Joãosinho, do seu Joãosinho, que lhe fizera a vida um inferno, embebedando-se
com genebra a ponto que não lhe paravam hospedes em casa. Mas estava agora mais tranquilla: o pobre
Joãosinho havia dias jurára-lhe pela alma da mamã que d'ahi por diante não beberia senão gazosa.
Emquanto ao tal João Eduardo perguntára na visinhança e ao snr. Palma do ministerio das obras publicas,
que conhecia toda a gente, mas nada averiguára. Havia, sim, um Joaquim Eduardo que tinha uma loja de
quinquilherias no bairro... E se fosse o negocio com elle bem ia, que era um homem de bem...
Resolveu-se elle então a escrever. E instado pelo padre Amaro (que não cessava de lhe representar o que a S.
Joanneira e elle mesmo, conego Dias, soffreria com o escandalo) chegou a auctorisar ao seu amigo da
capital as despezas necessarias para empregar a policia. A resposta demorou-se, mas veio emfim,
promettedora e magnifica! O habil policia Mendes descobrira João Eduardo! Somente não lhe sabia ainda a
morada, avistára-o apenas n'um café; mas em dois ou tres dias o amigo Mendes promettia informações
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 210
precisas.
O desespero dos dois sacerdotes, porém, foi grande quando, d'ahi a dias, o amigo do conego escreveu que o
indivíduo, que o habil policia Mendes tomára por João Eduardo, n'um café da Baixa, sobre signaes
incompletos, era um moço de Santo Thyrso que estava na capital a fazer concurso para delegado... E havia
tres libras e dezesete tostões de despeza.
--Dezesete demonios! rugiu o conego, voltando para Amaro furioso. E no fim de contas foi o senhor que
gozou, que se refocillou, e sou eu que estou aqui a arrasar a minha saude com estas andadas, e a fazer
desembolsos d'esta ordem!
Mas não estava nada perdido, graças a Deus. A Dionysia lá andava no faro!
Amelia recebia estas noticias com desconsolação. Depois das primeiras lagrimas, a irremediavel necessidade
impuzera-se-lhe, muito forte. Por fim que lhe restava? D'ahi a dois ou tres mezes, com aquelle seu
desgraçado corpo de cinta fina e quadris estreitos, não poderia esconder o seu estado. E que faria então?
Fugir de casa, ir como a filha do tio Cegonha para Lisboa, ser espancada no Bairro Alto pelos marujos
inglezes, ou como a Joanninha Gomes, que fôra a amiga do padre Abilio, levar pela cara os ratos mortos que
lhe atiravam os soldados? Não. Então, tinha de casar...
Depois vir-lhe-hia um menino ao fim dos sete mezes (era tão frequente!), legitimado pelo sacramento, pela lei
e por Deus Nosso Senhor... E o seu filho teria um papá, receberia uma educação, não seria um engeitado...
Desde que o senhor parocho lhe affirmára, em juramento, que o escrevente não estava realmente
excommungado, que com algumas orações se lhe levantaria a excommunhão, os seus escrupulos devotos
esmoreciam como brazas que se apagam. No fim, em todos os erros do escrevente, ella só podia descobrir a
incitação do ciume e do amor: fôra n'um despeito de namorado que escrevera o Communicado, fôra n'um
furor de paixão trahida que espancára o senhor parocho... Ah! não lhe perdoava esta brutalidade! Mas que
castigado fôra! Sem emprego, sem casa, sem mulher, tão perdido na miseria anonyma de Lisboa que nem a
policia o achava! E tudo por ella. Pobre rapaz! No fim não era feio... Fallavam da sua impiedade; mas vira-o
sempre muito attento á missa, rezava todas as noites uma oração especial a S. João que ella lhe dera
impressa n'um cartão bordado...
Com o emprego no governo civil podiam ter uma casinha e uma criada... Porque não seria feliz, por fim? Elle
não era rapaz de botequins, nem de vadiagem. Tinha a certeza de o dominar, de lhe impôr os seus gostos e as
suas devoções. E seria agradavel sahir aos domingos de manhã para a missa, arranjada, de marido ao lado,
comprimentada de todos, podendo, á face da cidade, passear o seu filho muito vistoso na sua touca de rendas
e na sua grande capa franjada! Quem sabe se, então, pelos carinhos que désse ao pequerrucho e pelos
confortos de que cercasse o homem, o céo e Nossa Senhora se não abrandariam! Ah! para isso faria tudo,
para ter outra vez no céo aquella amiga, a sua querida Nossa Senhora, amavel e confidente, sempre prompta
a curar-lhe as dôres, a livral-a de infortunios, occupada a preparar-lhe no paraiso um luminoso conchego!
Pensava assim horas inteiras, sobre a sua costura; pensava assim, mesmo no caminho para casa do sineiro; e
depois de ter estado um momento com a Tótó, muito quieta agora, extenuada da febre lenta, quando subia ao
quarto, a primeira pergunta a Amaro era:
--Tenho muita pressa, tenho, respondia ella muito séria, que a vergonha é para mim.
Elle calava-se; e havia tanto odio como amor nos beijos que lhe dava--áquella mulher que se resignava assim
tão facilmente a ir dormir com outro!
Tinha ciumes d'ella--que lhe tinham vindo ultimamente desde que a vira conformar-se áquelle casamento
odioso! Agora, que ella já não chorava, começava a enfurecer-se da falta das suas lagrimas; e secretamente
desesperava-se d'ella não preferir a vergonha com elle á rehabilitação com o outro. Não lhe custaria tanto se
ella continuasse a barafustar, a fazer um alarido de prantos; isso seria uma prova séria de amor, em que a
sua vaidade se banharia deliciosamente; mas aquella aceitação do escrevente agora, sem repugnancia e sem
gestos d'horror, indignava-o como uma traição. Viera a suspeitar que a ella no fundo não lhe desagradava a
mudança. João Eduardo por fim era um homem; tinha a força dos vinte e seis annos, os attractivos d'um bello
bigode. Ella teria nos braços d'elle o mesmo delirio que tinha nos seus... Se o escrevente fosse um velho
consumido de rheumatismo, ella não mostraria a mesma resignação. Então, por vingança do padre, para
«lhe desmanchar o arranjo», desejava que João Eduardo não apparecesse: e muitas vezes, quando a
Dionysia lhe vinha dar conta dos passos, dizia-lhe com um mau sorriso:
--Não se canse. O homem não apparece. Deixe lá... Não vale a pena ganhar dôr de peito...
Mas a Dionysia tinha o peito forte--e uma noite veio, triumphante, dizer-lhe que estava na pista do homem!
Vira emfim o Gustavo, o typographo, entrar para a casa de pasto do tio Osorio. Ao outro dia ia-lhe fallar, e
havia de se saber tudo...
Foi uma hora amargurada para Amaro. Aquelle casamento, por que anciára no primeiro momento de terror,
agora, que o sentia seguro, parecia-lhe a catastrophe da sua vida.
Perdia Amelia para sempre!... Aquelle homem que elle expulsára, que elle supprimira, alli lhe vinha, por uma
d'estas peripecias malignas em que a Providencia se compraz, levar-lhe a mulher legitimamente. E a idéa que
elle ia tel-a nos braços, que ella lhe daria os beijos fogosos que lhe dava a elle, que balbuciaria oh,
João!--como agora murmurava oh, Amaro!--enfurecia-o. E não podia evitar o casamento; todos o queriam,
ella, o conego, até a Dionysia com o seu zêlo venal!
De que lhe servia ser um homem com sangue nas veias e as paixões fortes d'um corpo são? Tinha de dizer
adeus á rapariga,--vêl-a partir de braço dado com o outro, com o marido, irem ambos para casa brincar com
o filho, um filho que era seu! E elle assistiria á destruição da sua alegria de braços cruzados, esforçando-se
por sorrir, voltaria a viver só, eternamente só, e a relêr o Breviario!... Ah! se fosse no tempo em que se
supprimia um homem com uma denuncia d'heresia!... Que o mundo recuasse duzentos annos, e o snr. João
Eduardo havia de saber o que custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amelia...
E esta idéa absurda, na exaltação da febre em que estava, apoderou-se tão fortemente da sua imaginação que
toda a noite a sonhou--n'um sonho vivido, que muitas vezes depois contou rindo ás senhoras. Era uma rua
estreita batida d'um sol ardente; entre as altas portas chapeadas, uma populaça apinhava-se; pelos balcões,
fidalgos muito bordados retorciam o bigode cavalheiresco; olhos reluziam, entre as pregas das mantilhas,
accêsos n'um furor santo. E pela calçada, a procissão do auto-de-fé movia-se devagar, n'um vasto ruido, sob
o tremendo dobre a finados de todos os sinos visinhos. Adiante os flagellantes semi-nus, de capuz branco
sobre o rosto, dilaceravam-se, uivando o Miserere, com as costas empastadas de sangue: sobre um jumento
ia João Eduardo, idiota de terror, com as pernas pendentes, a camisa alva sarapintada de diabos côr de fogo,
tendo ao peito um rotulo em que estava escripto--POR HEREJE; por traz um medonho servente do Santo
Officio espicaçava furiosamente o jumento; e ao pé um padre, erguendo alto o crucifixo, berrava-lhe aos
ouvidos os conselhos do arrependimento. E elle, Amaro, caminhava ao lado cantando o Requiem, de
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 212
Breviario aberto n'uma mão, com a outra abençoando as velhas, as amigas da rua da Misericordia que se
agachavam para lhe beijar a alva. Ás vezes voltava-se para gozar aquella pompa lugubre, e via então a longa
fila da confraria dos Nobres: aqui era um personagem pansudo e apopletico, além uma face de mystico com
um bigode feroz e dois olhos chammejantes; cada um levava uma tocha accêsa, e na outra mão sustentava o
chapéo cuja pluma negra varria o chão. Os capacetes dos arcabuzeiros reluziam; uma cólera devota
contorcia as faces esfomeadas do populacho; e o prestito ondeava nas tortuosidades da rua, entre o clamor
do canto-chão, os gritos dos fanaticos, o dobrar aterrador dos sinos, o tlim-tlim das armas, n'um terror que
enchia toda a cidade,--aproximando-se da platafórma de tijolo onde já fumegavam as pilhas de lenha.
E o seu desengano foi grande, depois d'aquella gloria ecclesiastica do sonho, quando a criada o veio acordar
cedo com agua quente para a barba.
Era pois n'esse dia que se ia saber do snr. João Eduardo, e escrever-se-lhe!... Devia encontrar-se com Amelia
ás onze horas; e foi a primeira coisa que lhe disse, atirando a porta do quarto com mau modo:
--O homem appareceu... Pelo menos appareceu o amigo intimo, o typographo, que sabe onde a bêsta pára...
Amaro teve um gesto desesperado, d'impaciencia. Susto! Não estava má hypocrisia! Susto de quê? Com uma
mãi que era uma babosa, que lhe consentia tudo... O que era, era que queria casar... Queria outro! Não lhe
agradava aquelle divertimento pela manhã, de fugida... Queria a coisa commodamente, em casa. Imaginava a
menina que o illudia a elle, um homem de trinta annos e quatro annos de experiencia de confissão? Via bem
através d'ella... Era como as outras, queria mudar d'homem.
Ella não respondia, muito pallida. E Amaro, furioso com o seu silencio:
--Calas-te, está claro... Que has de tu dizer? Se é a verdade pura!... Depois dos meus sacrificios... Depois do
que tenho soffrido por ti... Apparece-te o outro, larga para o outro!
--Pudera! Se imaginas que me havia de perder por tua causa! Está claro que quiz!...--E olhando-a d'alto,
fazendo-lhe sentir um desprezo d'alma muito recta:--Mas nem vergonha tens de mostrar a alegria, o furor de
ir para o homem!... És uma desavergonhada, é o que é...
Ella, sem uma palavra, branca como a cal, agarrou o mantelete para sahir.
--P'ra onde vaes? Olha bem p'ra mim. És uma desavergonhada... Estou-te a dizer. Estás morta por dormir
com o outro...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 213
Elle ficou diante d'ella, enleado e tremulo: áquella palavra, áquella idéa do seu filho, uma piedade, um amor
desesperado revolveu todo o seu sêr: e arremessando-se sobre ella, n'um abraço que a esmagava, como
querendo sepultal-a no peito, absorvel-a toda só para si, atirando-lhe beijos furiosos que a magoavam, pela
face e pelos cabellos:
Ella soluçava, n'um pranto nervoso;--e toda a manhã foi no quarto do sineiro um delirio d'amor a que
aquelle sentimento da maternidade, ligando-os como um sacramento, dava uma ternura maior, um
renascimento incessante de desejo, que os lançava cada vez mais ávidos nos braços um do outro.
Esqueceram as horas; e Amelia só se decidiu a saltar do leito quando ouviram em baixo na cozinha a muleta
do tio Esguelhas.
Emquanto ella se arranjava á pressa diante do bocado d'espelho que ornava a parede, Amaro diante d'ella
contemplava-a com melancolia, vendo-a a passar o pente nos cabellos--nos cabellos que elle dentro em breve
não tornaria a vêr pentear; deu um grande suspiro, disse-lhe enternecido:
--Estão a acabar os nossos bons dias, Amelia. És tu que queres... Has de te lembrar algumas vezes d'estas
boas manhãs...
E atirando-se-lhe de repente ao pescoço, com a antiga paixão dos tempos felizes, murmurou-lhe:
--Juras?
--Juro.
--Sempre!
Ella desceu. O parocho, dando uma arranjadella ao leito, ouvia-a em baixo fallar tranquillamente com o tio
Esguelhas; e dizia comsigo que era uma grande rapariga, capaz d'enganar o diabo, e que havia de fazer
andar n'uma roda viva o pateta do escrevente.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 214
Aquelle «pacto», como lhe chamava o padre Amaro, tornou-se entre elles tão irrevogavel que já lhe discutiam
tranquillamente os detalhes. O casamento com o escrevente consideravam-no como uma d'estas necessidades
que a sociedade impõe e que suffoca as almas independentes, mas a que a natureza se subtrae pela menor
fenda, como um gaz irreductivel. Diante de Nosso Senhor, o verdadeiro marido d'Amelia era o senhor
parocho; era o marido da alma, para quem seriam guardados os melhores beijos, a obediencia intima, a
vontade; o outro teria quando muito o cadaver... Já ás vezes mesmo tramavam o plano habil das
correspondencias secretas, dos logares occultos de rendez-vous...
Amelia estava de novo, como nos primeiros tempos, em todo o fogo da paixão. Diante da certeza que em
algumas semanas o casamento ia tornar «tudo branco como a neve», os seus transes tinham desapparecido, o
mesmo terror da vingança do céo calmára-se. Depois, a bofetada que lhe dera Amaro fôra como a chicotada
que esperta um cavallo que preguiça e se atraza: e a sua paixão, sacudindo-se e relinchando forte, ia-a de
novo levando no impeto d'uma carreira fogosa.
Amaro, esse regosijava-se. Ainda ás vezes, decerto, a idéa d'aquelle homem, de dia e de noite com ella,
importunava-o... Mas, no fundo, que compensações! Todos os perigos desappareciam magicamente, e as
sensações requintavam. Findavam para elle aquellas atrozes responsabilidades da seducção, e ficava-lhe a
mulher mais appetitosa.
Instava agora com a Dionysia para que acabasse emfim aquella fastidiosa campanha. Mas a boa mulher,
decerto para se fazer pagar melhor pela multiplicidade d'esforços, não podia descobrir o
typographo--aquelle famoso Gustavo que possuia, como os anões de romance de cavallaria, o segredo da
torre maravilhosa onde vive o principe encantado.
--Oh, senhor! dizia o conego, isso até já cheira mal! Ha quasi dois mezes á busca d'um patife!... Homem,
escreventes não faltam. Arranje-se outro!
Mas emfim, uma noite em que elle entrára a descansar em casa do parocho, a Dionysia appareceu; e
exclamou logo da porta da sala de jantar, onde os dois padres tomavam o seu café:
--Então, Dionysia?
A mulher, porém, não se apressou: sentou-se mesmo, com licença dos senhores, porque vinha derreada...
Não, o senhor conego não imaginava os passos que se vira obrigada a dar... O maldito typographo
lembrava-lhe a historia, que lhe contavam em pequena, d'um veado que estava sempre á vista e que os
caçadores a galope nunca alcançavam. Uma perseguição assim!... Mas, finalmente apanhára-o... E tocadito,
por signal.
O Gustavo recebera de João Eduardo duas cartas: na primeira, onde lhe dava a morada, para o lado do
Poço do Borratem, annunciava-lhe a resolução de ir para o Brazil; na segunda dizia-lhe que mudára de casa,
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 215
sem lhe indicar a nova adresse, e declarava que pelo proximo paquete embarcava para o Rio; não dizia nem
com que dinheiro, nem com que esperanças. Tudo era vago e mysterioso. Desde então, havia um mez, o rapaz
não tornára a escrever, d'onde o typographo concluia que ia a essa hora nos altos mares...--«Mas havemos
de vingal-o!» tinha elle dito a Dionysia.
--Acho-a boa.
XXI
Que lagrimas quando Amelia soube a noticia! A sua honra, a paz da sua vida, tantas felicidades combinadas,
tudo perdido e sumido nas brumas do mar, a caminho para o Brazil!
Foram as semanas peores da sua vida. Ia para o parocho, banhada em lagrimas, perguntando-lhe todos os
dias o que havia de fazer.
--Fez-se tudo o que se pôde, dizia o conego desolado. É aguentar. Não se mettesse n'ellas!
Era bom o momento para contar com Deus, quando Elle, indignado, a acabrunhava de miserias! E aquella
indecisão, n'um homem e n'um padre, que devia ter a habilidade e a força de a salvar, desesperavam-na; a
sua ternura por elle sumia-se como a agua que a areia absorve; e ficava um sentimento confuso em que sob o
desejo persistente já transluzia o odio.
Espaçava agora de semana a semana os encontros na casa do sineiro. Amaro não se queixava; aquellas boas
manhãs do quarto do tio Esguelhas, eram sempre estragadas com queixumes; cada beijo tinha um rastro de
soluços; e aquillo enervava-o tanto, que lhe vinham desejos de se atirar tambem de bruços para a enxerga e
chorar toda a sua amargura.
No fundo accusava-a de exagerar os seus embaraços, de lhe communicar um terror desproporcionado. Outra
mulher, de melhor senso, não faria semelhante espalhafato... Mas quê, uma beata hysterica, toda nervos, toda
medo, toda exaltação!... Ah, não havia duvida, fôra «uma famosa asneira»!
Tambem Amelia pensava que fôra «uma asneira». E não ter nunca imaginado que aquillo lhe poderia
succeder! Qual! Como mulher, correra para o amor, toda tonta, certa que escaparia, ella,--e agora que
sentia nas entranhas o filho, eram as lagrimas e os espantos e as queixas! A sua vida era lugubre: de dia
tinha de se conter diante da mãi, applicar-se á sua costura, conversar, affectar felicidade... Era de noite que
a imaginação desencadeada a torturava com uma incessante phantasmagoria de castigos, d'este e do outro
mundo, miserias, abandonos, desprezo da gente honrada e chammas do purgatorio...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 216
Foi então que um acontecimento inesperado veio fazer diversão áquella anciedade que se ia tornando um
habito morbido do seu espirito. Uma noite a criada do conego appareceu, esfalfada de correr, a dizer que a
snr.^a D. Josepha estava á morte.
Na vespera a excellente senhora sentira-se doente com uma pontada no lado, mas insistira em ir á Senhora
da Incarnação rezar a sua corôa; voltou transida, com uma dôr maior e uma ponta de febre; e n'essa tarde,
quando o doutor Gouvêa foi chamado, tinha-se declarado uma pneumonia aguda.
A S. Joaneira correu logo a installar-se lá como enfermeira. E então, durante semanas, na tranquilla casa do
conego, foi um alvoroço de dedicações afflictas: as amigas, quando se não espalhavam pelas igrejas a fazer
promessas e a implorar os seus santos devotos, estavam lá em permanencia, sahindo e entrando no quarto da
doente com passos de phantasmas, accendendo aqui e além lamparinas ás imagens, torturando o doutor
Gouvêa com perguntas piegas. Á noite na sala, com o candieiro a meia luz, era pelos cantos um cochichar de
vozes lugubres; e ao chá, entre cada mastigadella de torrada, havia suspiros, lagrimas furtivamente
limpadas...
O conego lá estava a um canto, aniquilado, succumbido com aquella brusca apparição da doença e do seu
scenario melancolico--as garrafadas de botica enchendo as mesas, as entradas solemnes do medico, as faces
compungidas que vem saber se ha melhoras, o halito febril espalhado em toda a casa, o timbre funerario que
toma o relogio de parede no abafamento de todo o ruido, as toalhas sujas que ficam dias no logar em que
cahiram, o anoitecer de cada dia com a sua ameaça de treva eterna... De resto, um pezar sincero
prostrava-o; havia cincoenta annos que vivia com a mana e era animado por ella; o longo habito
tornára-lh'a cara; e as suas caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato pela casa faziam como uma
parte mesma de seu sêr... Além d'isso, quem sabe se a morte, entrando-lhe em casa, para poupar passos, o
não levaria tambem!...
Para Amelia aquelle tempo foi um allivio; ao menos ninguem pensava, ninguem reparava n'ella; nem a sua
face triste e os vestigios de lagrimas pareceriam estranhos, n'aquelle perigo em que estava a madrinha.
Demais os serviços de enfermeira occupavam-n'a: como era a mais forte e a mais nova, agora que a S.
Joaneira estava estafada de vigilias, era ella que passava as longas noites á beira de D. Josepha: e não havia
então desvelos que não tivesse, para abrandar Nossa Senhora e o céo com aquella caridade pela doente, para
merecer igual piedade quando o seu dia viesse de estar tambem prostrada n'um leito... Vinha-lhe agora, sob a
impressão funebre que se exhalava da casa, o presentimento repetido que morreria de parto; ás vezes só,
embrulhada no seu chale aos pés da doente, ouvindo-lhe o gemer monotono, enternecia-se sobre a sua
propria morte que julgava certa, e molhavam-se-lhe os olhos de lagrimas, n'uma saudade vaga de si mesma,
da sua mocidade e dos seus amores... Ia então ajoelhar-se junto da commoda onde uma lamparina
bruxoleava diante d'um Christo projectando sobre o papel claro da parede a sua sombra disforme que se
quebrava no tecto; e alli ficava rezando, pedindo a Nossa Senhora que não lhe recusasse o paraiso... Mas a
velha mexia-se com um ai doloroso; ia então aconchegar-lhe a roupa, fallar-lhe baixo. Vinha depois á sala
vêr no relogio se era o momento do remedio; e estremecia ás vezes, sentindo vir do quarto proximo um pio de
flautim ou um som rouco de trombone; era o conego a resonar.
Emfim, uma manhã, o doutor Gouvêa declarou D. Josepha livre de perigo. Foi um vivo regosijo para as
senhoras--certa, cada uma, que aquillo era devido á intervenção particular do seu santo devoto. E d'ahi a
duas semanas houve uma festa na casa, quando D. Josepha, pela primeira vez, amparada nos braços de todas
as amigas, deu dois passos tremulos no quarto. Pobre D. Josepha, o que d'ella fizera a doença! Aquella
vozinha irritada, em que as palavras eram despedidas como settas envenenadas, assemelhava-se agora
apenas a um som expirante, quando, n'um esforço ancioso da vontade, pedia a escarradeira ou o xarope.
Aquelle olhar sempre álerta, escrutador e maligno, estava hoje como refugiado no fundo das orbitas,
assustado da luz, das sombras e dos contornos das coisas. E o seu corpo, tão têso outr'ora, d'uma seccura de
ramo de sarmento, agora ao cahir no fundo da poltrona, sob a trapalhada dos agasalhos, parecia um trapo
tambem.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 217
Mas emfim o doutor Gouvêa, apesar d'annunciar uma convalescença longa e delicada, dissera rindo ao
conego, diante das amigas (depois de ter visto D. Josepha manifestar o seu primeiro desejo, o desejo de se
chegar á janella), que com muita cautela, tonicos, e as orações de todas aquellas boas senhoras--a mana
estava ainda para amores...
--Ai, doutor, exclamou D. Maria, as nossas orações não lhe hão de faltar...
--E eu não lhe hei de faltar com os tonicos, disse o doutor. De modo que, o que resta é congratularmo-nos.
Aquella jovialidade do doutor era para todos como a certeza da saude proxima.
E d'ahi a dias, o conego vendo aproximar-se o fim d'agosto, fallou de alugar casa na Vieira, como costumava
um anno sim outro não, para ir tomar os seus banhos de mar. O anno passado não fôra. Este era o anno de
praia...
--E a mana lá, n'aquelles ares saudaveis da beira-mar, é que acaba de ganhar forças e carnes...
Mas o doutor Gouvêa desapprovou a jornada. O ar muito picante e muito rico do mar não convinha á
fraqueza de D. Josepha. Era preferivel irem para a quinta da Ricoça, nos Poyaes, logar abrigado e muito
temperado.
Foi um desgosto para o pobre conego, que prodigalisou as lamurias. O quê! ir enterrar-se todo o verão, o
melhor tempo do anno, na Ricoça! E os seus banhos, meu Deus, os seus banhos?
--Veja o senhor,--dizia elle a Amaro, uma noite no escriptorio,--veja o que eu tenho sofrido... Durante a
doença, que desarranjo, que desordem na casa! Chá fôra d'horas, jantar esturrado! E os cuidados que tive,
que me emmagreceram... E agora, quando eu pensava poder ir refazer-me para a praia, não senhor, vai p'r'á
Ricoça, dispensa os teus banhos... Isto é o que eu chamo sofrer! E no fim de tudo não fui eu que estive doente.
Mas sou eu que as aguento... Perder dois annos a fio os meus banhos!...
O conego olhou-o com duvida, como se não achasse possivel a uma intelligencia humana descobrir o fim dos
seus males.
--Quando digo uma boa idéa, padre-mestre, devia dizer uma idéa sublime!
--Acabe, creatura...
--Escute. O senhor vai p'r'á Vieira, e a S. Joanneira, está claro, vai tambem. Naturalmente alugam casa um
ao pé do outro, como ella me disse que tinham feito ha dois annos...
--Adiante...
--Bem. Aqui temos a S. Joanneira na Vieira. Agora, a senhora sua mana parte p'r'á Ricoça.
--Não! exclamou Amaro em triumpho. Vai com a Amelia! A Amelia vai-lhe servir de enfermeira! Vão ambas
sós! e lá na Ricoça, n'aquelle buraco onde não vai viva alma, n'aquelle casarão onde póde uma pessoa viver
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 218
sem que ninguem em roda suspeite, lá é que a rapariga tem o filho! Hein, que lhe parece?
--É que concilia tudo! O senhor toma os seus banhos. A S. Joanneira, longe, não sabe o que se passa. Sua
mana goza os ares... A Amelia tem um sitio escondido p'r'á coisa... Á Ricoça ninguem a vai vêr... A D. Maria
tambem vai p'r'á Vieira. As Gansosos idem. A rapariga deve ter o bom successo ahi pelos principios de
novembro... Da Vieira, e isso fica por sua conta, não volta ninguem dos nossos até principios de dezembro...
E quando nos reunirmos de novo está a rapariga limpa e fresca.
--Pois senhores, por ser a primeira idéa que vossê tem n'estes dois ultimos annos, é uma grande idéa!
--Obrigado, padre-mestre.
Mas havia uma difficuldade feia: era o ir á D. Josepha, á rigorista D. Josepha, tão implacavel ás fraquezas
do sentimento, á D. Josepha que pedia para as mulheres frageis as antigas penalidades gothicas--as letras
marcadas na testa com ferro em braza, os açoutes nas praças publicas, os in pace tenebrosos--ir á D.
Josepha e pedir-lhe para ser cumplice d'um parto!
--Nós veremos, padre-mestre, replicou Amaro repoltreando-se e balouçando a perna, muito certo do seu
prestigio devoto. Nós veremos... Hei de lhe eu fallar... E quando lhe tiver contado umas lérias... Quando lhe
tiver representado que é para ella um caso de consciencia encobrir a pequena... Quando lhe lembrar que nas
vesperas da morte é que se deve fazer alguma boa acção, para não se apresentar á porta do paraiso com as
mãos vazias... Nós veremos!
--Talvez, talvez, disse o conego. A occasião é boa, porque a pobre mana está fraquita do juizo e leva-se como
uma criança.
--E é necessario não perder tempo, porque o escandalo estala. Olhe que esta manhã, lá em casa, a besta do
Libaninho pôz-se a gracejar com a rapariga, a dizer-lhe que tinha a cinta grossa...
Não, não seria por mal. Mas que a rapariga tem engrossado, é facto... Com esta atarantação da doença
ninguem tem tido olhos para nada... Mas agora póde-se reparar... É sério, amigo, é sério!
Por isso, logo na manhã seguinte, Amaro foi, segundo a expressão do conego, «dar a grande abordagem á
mana».
Antes, porém, explicou em baixo no escriptorio ao padre-mestre o seu plano: primeiro, ia dizer a D. Josepha
que o conego estava na inteira ignorancia do desastre da Ameliasinha, e que elle, Amaro, o sabia, não em
segredo de confissão (n'esse caso não o poderia revelar) mas pelas confidencias secretas dos dois--de Amelia
e do homem casado que a seduzira!... Do homem casado, sim!... Porque emfim era necessario provar á velha
que havia a impossibilidade d'uma reparação legitima...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 219
--Isso não vai bem arranjado, disse elle. A mana sabe bem que não iam homens casados á rua da
Misericordia.
O conego largou a rir, com gosto. O pobre Arthur, sem dentes, cheio de filhos, com os seus olhos de carneiro
triste, accusado de perder virgens!... Não, essa era boa!
Mas então subitamente partiu dos labios d'ambos o mesmo nome,--o Fernandes, o Fernandes da loja de
panos! Bello homem, que Amelia admirava muito! Sempre que sahia ia-lhe á loja: tinha mesmo havido
indignação na rua da Misericordia, havia dois annos, com a ousadia do Fernandes que acompanhára Amelia
pela estrada de Marrazes até ao Morenal!
Já se sabe, não se dizia explicitamente á mana,--mas dava-se-lhe a entender que fôra o Fernandes.
E Amaro subiu rapidamente para o quarto da velha, que era por cima do escriptorio. Esteve lá meia hora,
uma longa, uma pesada meia hora para o conego, que apenas podia ouvir em cima, ora rangerem as solas
d'Amaro, ora a tosse cavernosa da velha... E no seu passeio habitual pelo escriptorio, da estante para a
janella, com as mãos atraz das costas e a caixa de rapé nos dedos, ia considerando quantos incommodos,
quantas despezas lhe traria ainda aquelle «divertimento do senhor parocho»! Tinha de ter a rapariga na
quinta cinco ou seis mezes... Depois o medico, a parteira que era elle naturalmente que havia de pagar...
Depois algum enxoval para o pequeno... E que se lhe havia de fazer, ao pequeno?... Na cidade, a Roda fôra
supprimida; em Ourem, como os recursos da Misericordia eram escassos e a affluencia dos engeitados
escandalosa, tinham posto um homem ao pé da sineta da Roda, para interrogar e pôr embaraços; havia
indagações de paternidade, restituições de crianças; e a auctoridade, finoria, combatia o excesso dos
engeitamentos com o terror dos vexames...
Emfim o pobre padre-mestre via diante de si todo um erriçamento de difficuldades para lhe sacudir a
pachorra e estragar-lhe a digestão...--Mas o excellente conego, no fundo, não se indignava; sempre tivera
uma affeição de velho mestre pelo parocho; para a Amelia sempre o inclinára um fraco meio paternal, meio
lubrico; e mesmo já sentia pelo «pequeno» uma vaga condescendencia d'avô.
--Consentiu?
--Em tudo. Não foi sem difficuldade... Ia-se abespinhando. Fallei-lhe do homem casado... Que a rapariga
estava com a cabeça perdida, queria-se matar... Que se ella não consentisse em encobrir a coisa era
responsavel por uma desgraça... Lembre-se a senhora que está com os pés p'r'á cova, que Deus póde
chamal-a d'um momento a outro, e que se tiver na consciencia este peso, não ha padre que lhe dê a
absolvição!... Lembre-se que morre p'r'áhi como um cão!...
--Disse-lhe a verdade. Agora trata-se de fallar á S. Joanneira, e de a levar p'r'á Vieira quanto antes...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 220
--Outra coisa, amigo, interrompeu o conego. Tem vossê pensado no destino que se ha de dar ao fructo?
--Ah, padre-mestre... Isso é outra difficuldade... Tem-me apoquentado muito... Naturalmente dal-o a criar a
alguma mulher, longe, lá p'ra Alcobaça ou p'ra Pombal... A felicidade, padre-mestre, era que a criança
nascesse morta!
Logo n'essa noite elle fallou á S. Joanneira da ida para a Vieira, em baixo na saleta onde ella estava
arranjando pires de marmelada que andavam a seccar para a convalescença de D. Josepha. Começou por
dizer que lhe alugára a casa do Ferreiro...
--Mas isso é um nicho! exclamou ella logo. Onde hei de eu metter a pequena?
--Ora ahi é que está. É que justamente a Amelia d'esta vez não vai á Vieira.
--Não vai!?
Foi só então que o conego lhe explicou que a mana não podia ir só para a Ricoça, e que elle tinha pensado
em mandar com ella Amelia... Era uma idéa que lhe viera n'essa manhã.
--Eu não posso ir, tenho de tomar os meus banhos, a senhora bem sabe... A pobre de Christo não ha de estar
para lá só, com uma criada. Portanto...
--Isso é verdade. Mas olhe, para lhe dizer com franqueza, custa-me bem deixar a pequena... Se eu pudesse
dispensar os banhos, ia eu.
--Qual ia! A senhora vem p'r'á Vieira. Eu tambem não hei de estar lá só... Sua ingrata, sua ingrata!...--E
tomando um tom muito sério:--A senhora veja bem. A Josepha está com os pés p'r'á cova. Ella sabe que o que
eu tenho para mim chega. Ella tem affeição á pequena, sempre é madrinha; se a vir agora a tratal-a na
doença, a estar alli só com ella uns mezes, fica pelo beiço. Olhe que a mana ainda vale um par de mil
cruzados. A pequena póde apanhar um bom dote. Não lhe digo mais nada...
Em cima, Amaro estava contando rapidamente a Amelia «o grande plano», a scena com a velha: que ella se
promptificára logo, coitadinha, já cheia de caridade, desejando até ajudar para o enxoval do pequeno...
--N'ella pódes ter confiança, é uma santa... De modo que está tudo salvo, filha. É estar mettida quatro ou
cinco mezes na Ricoça.
Era isso que fazia choramingar Amelia: perder a estação da Vieira, o divertimento dos banhos!... Ir
enterrar-se todo um verão n'aquelle sinistro casarão da Ricoça! A unica vez que lá fôra, já ao fim da tarde,
ficára estarrecida de medo. Tudo tão escuro, d'um echo tão concavo... Tinha a certeza que ia lá morrer,
n'aquelle degredo.
--Tolice! fez Amaro. É dar graças ao Senhor de me ter inspirado esta idéa de salvação. Demais tens a D.
Josepha, tens a Gertrudes, o pomar para passear... E eu vou-te lá vêr todos os dias. Até has de gostar, verás.
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--Emfim que lhe hei de eu fazer? É aguentar. E com duas grossas lagrimas nas palpebras, amaldiçoava
intimamente aquella paixão que só amarguras lhe dava, e que agora, quando toda a Leiria ia para a Vieira, a
forçava a ella a ir fechar-se na solidão da Ricoça, ouvindo tossir a velha e os cães uivar na quinta...--E a
mamã, que diria a mamã?
--Que ha de dizer? A D. Josepha não póde ir p'r'á quinta só, sem uma enfermeira de confiança! Não te dê
cuidado. O padre-mestre está lá em baixo a trabalhal-a... E eu vou ter com ella, que já aqui estou só ha
bocado comtigo, e n'estes ultimos dias é necessario ter cautelinha...
--Idem.
D'ahi a dias, depois d'uma scena de prantos, Amelia partiu com D. Josepha para a Ricoça n'um char-à-banc.
Tinham arranjado, com almofadas, um recanto commodo para a convalescente. O conego acompanhava-a,
furioso com aquelle incommodo. E a Gertrudes ia em cima na almofada, á sombra da montanha que faziam
sobre o tope do carro os bahús de couro, os cestos, as latas, as trouxas, os saccos de chita, o açafate onde
miava o gato, e um fardo amarrado com cordas contendo os paineis dos santos mais queridos de D. Josepha.
Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S. Joanneira para a Vieira, de noite, por causa da calma. A rua
da Misericordia estava atravancada com o carro de bois, que conduzia as louças, os enxergões, o trem de
cozinha; e no mesmo char-à-banc que fôra á Cortegassa, ia agora a S. Joanneira e a Ruça que levava tambem
no regaço um açafate com o gato.
O conego fôra na vespera, só Amaro assistia á partida da S. Joanneira. E depois de toda uma azafama, de
galgarem cem vezes de baixo a cima as escadas por um cestinho que esquecera ou um embrulho que
desapparecia, quando a Ruça emfim fechou a porta á chave, a S. Joanneira, já no estribo do char-à-banc,
rompeu a chorar.
--Ai, senhor parocho, deixar a pequena!... Mal sabe o que me custa... Parece que a não torno a vêr. Appareça
pela Ricoça, faça-me essa esmola. Veja se ella está contente...
--Adeus, senhor parocho. Muito obrigada por tudo... Ai os favores que lhe devo!
--Tolices, minha senhora... Boa jornada, dê noticias! Recados ao padre-mestre. Adeus, minha senhora!
adeus, Ruça...
O char-à-banc partiu. E pelo mesmo caminho por onde elle ia rolando, Amaro foi andando devagar até á
estrada da Figueira. Eram então nove horas, nascera já o luar d'uma noite calida e serena de agosto. Uma
tenue nevoa luminosa suavisava a paizagem calada. Aqui e além uma fachada saliente de casa rebrilhava,
batida da lua, entre as sombras do arvoredo. Ao pé da ponte, parou a olhar melancolicamente o rio que
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 222
corria sobre a areia com uma susurração monotona; nos logares em que as arvores se debruçavam, havia
escuridões cerradas; e adiante uma claridade tremia sobre a agua, como um tecido de filigrana faiscante.
Alli esteve, n'aquelle silencio que o calmava, fumando cigarros e atirando as pontas para o rio, embebido
n'uma tristeza vaga. Depois, ouvindo as onze, veio voltando para a cidade, passou pela rua da Misericordia
n'um enternecimento de recordações: a casa, com as janellas fechadas, sem as cortinas de cassa, parecia
abandonada para sempre; os vasos de alecrim tinham ficado esquecidos aos cantos da janella... Quantas
vezes Amelia e elle se tinham encostado áquella varanda! Havia então um craveiro fresco, e conversando,
ella cortava uma folha, trincava-a nos dentinhos. Tudo tinha acabado agora!--E na Misericordia, ao lado, o
piar das corujas no silencio dava-lhe uma sensação de ruina, de solidão e de fim eterno.
A criada veio logo á escada dizer-lhe que o tio Esguelhas, n'uma afflicção, viera procural-o duas vezes,
haviam de ser nove horas. A Tótó estava a morrer, e só queria receber os sacramentos da mão do senhor
parocho.
Amaro, apesar da sua repugnancia supersticiosa em voltar assim n'essa noite, para um fim tão triste, ao meio
das recordações felizes da sua paixão, foi, para obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o aquella
morte, coincidindo com a partida d'Amelia, e como completando a subita dispersão de quanto até ahi o
interessára ou estivera misturado á sua vida.
A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e na escuridão da entrada topou com duas mulheres que
sahiam suspirando. Foi logo direito á alcova da paralytica: duas grandes velas de cera, trazidas da igreja,
ardiam sobre uma mesa; um lençol branco cobria o corpo da Tótó; e o padre Silverio, que fôra decerto
chamado por estar de semana, lia o Breviario, com o lenço nos joelhos, os seus grandes oculos na ponta do
nariz. Ergueu-se apenas viu Amaro:
--Ah, collega, disse muito baixo, andaram a procural-o por toda a parte... A pobre de Christo queria-o a
vossê... Eu, quando me foram buscar, ia fazer a partida a casa do Novaes. É a partida do sabbado... Que
scena! Morreu na impenitencia, como era dos livros. Quando me viu, e que vossê não vinha, que espectaculo!
Até tive medo que me cuspisse no crucifixo...
Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta do lençol, mas deixou-o logo recahir sobre a face da morta.
Depois subiu acima ao quarto onde o sineiro, estirado sobre a cama, voltado para a parede, soluçava
desesperadamente; estava com elle outra mulher, que se conservava a um canto, muda e immovel, com os
olhos no chão, no vago aborrecimento que lhe dava aquelle pesado dever de visinha. Amaro tocou no hombro
do sineiro, fallou-lhe:
--É necessario resignação, tio Esguelhas... São decretos do Senhor... Para ella é até uma felicidade.
O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o parocho, por entre o véo das lagrimas que lhe alagavam os
olhos, tomou-lhe a mão, quiz beijar-lh'a. Amaro recuou:
--Então, tio Esguelhas!... Deus ha de ser misericordioso, ha de lhe levar em conta a sua dôr...
Elle não o escutava, sacudido d'um pranto convulsivo,--emquanto a mulher, muito tranquillamente, limpava
ora um ora outro canto do olho.
Amaro desceu; e para alliviar o bom Silverio d'aquelle serviço excepcional, tomou o seu logar ao pé da vela,
com o Breviario na mão.
Alli ficou até tarde. A visinha ao sahir veio dizer-lhe que o tio Esguelhas tinha pegado a dormir; e ella
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 223
Toda a casa então ficou n'aquelle silencio, que a visinhança do vasto edificio da Sé fazia parecer mais
soturno; só ás vezes um mocho piava debilmente nos contrafortes, ou o grosso bordão batia os quartos. E
Amaro, tomado d'um indefinido terror, mas preso alli por uma força superior da consciencia sobresaltada, ia
precipitando as orações... Ás vezes o livro cahia-lhe sobre os joelhos; e então, immovel, sentindo por detraz a
presença d'aquelle cadaver coberto do lençol, recordava, n'um contraste amargo, outras horas em que o sol
banhava o pateo, as andorinhas esvoaçavam, e elle e Amelia subiam rindo para aquelle quarto onde agora,
sobre a mesma cama, o tio Esguelhas dormitava com soluços mal acalmados...
XXII
O conego Dias recommendára muito a Amaro que ao menos nas primeiras semanas, para evitar as suspeitas
da mana e da criada, não fosse á Ricoça. E a vida d'Amaro tornou-se então mais triste, mais vazia que
outr'ora, quando pela primeira vez deixando a casa da S. Joanneira viera para a rua das Sousas. Todos os
seus conhecidos estavam fóra de Leiria: D. Maria da Assumpção na Vieira; as Gansosinhos ao pé d'Alcobaça
com a tia, a famosa tia que havia dez annos estava para morrer e para lhes deixar uma grande herdade.
Depois do serviço da Sé, as horas, todo o longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo. Não estaria mais
separado de toda a communicação humana, se como Santo Antonio vivesse nos areaes do deserto libyco. Só o
coadjutor que, coisa singular, nunca lhe apparecia nos tempos felizes, voltára agora, como o companheiro
fatidico das horas tristes, a visital-o uma, duas vezes por semana, ao fim do jantar, mais magro, mais
chupado, mais soturno, com o seu eterno guardachuva na mão. Amaro odiava-o; ás vezes, para o impôr,
fingia-se todo occúpado n'uma leitura; ou precipitando-se para a mesa, mal lhe sentia nos degraus as
passadas lentas:
E Amaro, torturado por aquella figura lugubre que não se mexia na cadeira, atirava a penna, furioso,
agarrava o chapéo:
Ás vezes, farto de solidão, ia visitar o Silverio. Mas a felicidade pachorrenta d'aquelle sêr obeso, occupado
em colleccionar receitas de medicina caseira e em observar as perturbações phantasticas da sua digestão; os
seus constantes louvores do doutor Godinho, dos pequenos e da senhora; as chalaças obsoletas que elle
repetia havia quarenta annos e a innocente hilaridade que ellas lhe davam, impacientavam Amaro. Sahia,
enervado, pensando na sorte inimiga era a felicidade por fim: porque não havia de elle ser tambem um bom
padre caturra, com uma pequenina mania tyrannica, parasita regalado d'uma familia respeitavel, tendo um
d'estes sangues tranquillos que giram sob camadas de gordura, sem perigo de transbordar e de causar
desgraças, como um riacho que corre por debaixo d'uma montanha?...
Outras vezes ia ao collega Natario, cuja fractura, mal tratada ao principio, o retinha ainda na cama com o
apparelho na perna. Mas ahi, enjoava-o o aspecto do quarto--impregnado d'um cheiro d'arnica e de suor,
com uma profusão de trapos ensopados em malgas vidradas, e esquadrões de garrafas sobre a commoda
entre fileiras de santos. Natario, mal o via apparecer, rompia em queixas: As cavalgaduras dos medicos! A
sua má sorte habitual! As torturas a que o forçavam! O atrazo em que estava a medicina n'este maldito
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 224
paiz!... E ia salpicando o soalho negro de expectorações e de pontas de cigarro. Desde que estava doente, a
saude dos outros, sobretudo dos amigos, indignava-o como uma offensa pessoal.
E pensar que aquella besta do Brito nunca lhe doera a cabeça! E que o alarve do abbade se gabava de nunca
ter estado na cama depois das sete da manhã! Animaes!
Amaro então dava-lhe as novidades: alguma carta que recebera do conego, da Vieira, as melhoras da D.
Josepha...
Mas Natario não se interessava pelas pessoas a quem apenas o unia a convivencia e a amizade;
interessavam-n'o só os seus inimigos, com quem tinha ligações d'odio. Queria saber do escrevente, se já tinha
estourado de fome...
--Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cahir aqui n'esta maldita cama!...
As sobrinhas appareciam então--duas creaturinhas sardentas, d'olhos muito pisados. O seu grande desgosto
era que o titi não mandasse vir a benzedeira pôr-lhe virtude na perna: era o que tinha curado o morgadinho
da Barrosa, e o Pimentel d'Ourem...
--Coitaditas, não é por falta de cuidados d'ellas que eu ainda não arribei... Mas tenho soffrido, caramba!
E as duas rosas, com o mesmo movimento simultaneo, voltavam-se para o lado limpando os olhos aos lenços.
Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela estrada de Lisboa. Mas apenas se afastava do movimento
da cidade, a sua tristeza tornava-se mais intensa, concordando com aquella paizagem de collinas tristes e
arvores enfezadas: e a sua vida apparecia-lhe como essa mesma estrada monotona e longa, sem um incidente
que a alegrasse, estirando-se desoladamente até se perder nas brumas do crepusculo. Ás vezes, ao voltar,
entrava no cemiterio, ia passeando entre os renques de cyprestes, sentindo áquella hora do fim da tarde a
emanação adocicada das moitas de goivos; lia os epitaphios; encostava-se á grade dourada do jazigo da
familia Gouvêa, contemplando os emblemas em relevo, um chapéo armado e um espadim, seguindo as negras
letras da famosa ode que lhe adorna a lapida:
Caminhante, detem-te a contemplar Estes restos mortaes; E, se sentires a mágoa a transbordar, Detem teus
ais. Que Julio Cabral da Silva Maldonado Mendonça de Gouvêa, Moço fidalgo, bacharel formado, Filho da
illustre Cêa, Ex-administrador d'este concelho, Commendador de Christo, Foi de virtudes singular espelho,
Caminhante, crê n'isto.
Depois era o rico mausoléo do Moraes, onde sua esposa, que agora, rica e quarentona, vivia em
concubinagem com o bello capitão Trigueiros, fizera gravar uma piedosa quadra:
Entre os anjos espera, ó esposo, A metade do teu coração Que no mundo ficou, tão sózinha, Toda entregue ao
dever da oração!...
Algumas vezes, ao fundo do cemiterio, junto ao muro, via um homem ajoelhado ao pé d'uma cruz negra, que
um chorão assombreava, ao lado da valla dos pobres. Era o tio Esguelhas, com a sua moleta no chão,
rezando sobre a sepultura da Tótó. Ia fallar-lhe, e mesmo, n'uma igualdade que aquelle logar justificava,
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passeavam familiarmente, hombro a hombro, conversando. Amaro, com bondade, consolava o velho: de que
servia á desgraçada rapariga a vida para a passar estirada n'uma cama?
--Sempre era viver, senhor parocho... E eu, veja agora isto, sósinho de dia e de noite!
O sineiro então suspirava, perguntava pela snr.^a D. Josepha, pela menina Amelia...
E continuavam calados por entre as ruas de buxo que fecham os canteiros cheios do negrejamento das cruzes
e da brancura das lapidas novas. Amaro, ás vezes, reconhecia alguma sepultura que elle mesmo tinha
aspergido e consagrado: onde estariam aquellas almas que elle recommendára a Deus em latim, distrahido,
engorolando á pressa as orações para ir ter com Amelia? Eram jazigos de gente da cidade; elle conhecia de
vista as pessoas da familia; vira-as então lavadas em lagrimas, e agora passeavam em rancho pela Alameda
ou chalaceavam ao balcão das lojas...
Voltava para casa mais triste,--e a sua longa noite começava, infindavel. Tentava lêr; mas ao fim das dez
primeiras linhas bocejava de tedio e de fadiga. Ás vezes escrevia ao conego. Ás nove horas tomava chá; e
depois era um passear sem fim pelo quarto, fumando maços de cigarros, parando á janella a olhar a negrura
da noite, lendo aqui e além uma noticia ou um annuncio do Popular e recomeçando a passear com bocejos
tão cavos que a criada os ouvia na cozinha.
Para entreter estas noites melancolicas, e por um excesso de sensibilidade ociosa, tentára fazer versos, pondo
o seu amor e a historia dos dias felizes nas formulas conhecidas da saudade lyrica:
Lembras-te d'esse tempo da delicias, Ó anjo feiticeiro, Amelia amada, Quando tudo eram risos e ventura E a
vida nos corria socegada?
Lembras-te d'essa noite de poesia Em que a lua brilhava pelos céos, E nós unindo as almas, ó Amelia,
Erguemos nossa prece para Deus?...
Mas a despeito de todos os esforços nunca passára d'estas duas quadras--apesar de as ter produzido com
uma facilidade promettedora--como se o seu sêr contivesse apenas estas duas gottas isoladas de poesia, e,
soltas ellas á primeira pressão, nada mais restasse senão a sêcca prosa do temperamento carnal.
E esta existencia varia relaxára-lhe tão subtilmente todo o machinismo da vontade e da acção, que qualquer
trabalho que lhe pudesse encher a fastidiosa concavidade das horas infindaveis era-lhe odioso como o peso
d'um fardo injusto. Preferia ainda os tedios da ociosidade aos tedios da occupação. A não serem os deveres
estrictos que elle não podia desleixar sem escandalo e sem censura--desembaraçára-se, pouco a pouco, de
todas as praticas do zelo interior: nem a oração mental, nem as visitas regulares ao Santissimo, nem as
meditações espirituaes, nem o rosario á Virgem, nem a leitura á noite do Breviario, nem o exame de
consciencia--todas estas obras da devoção, estes meios secretos de santificação progressiva substituia-os
pelos infindaveis passeios pelo quarto, do lavatorio á janella, e por maços de cigarros fumados até ao negro
dos dedos. A missa, pela manhã, era rapidamente engorolada; o serviço da parochia feito com surdas
revoltas de impaciencia; tornára-se consummadamente o Indignus sacerdos dos ritualistas; e tinha na sua
ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete meios defeitos que os theologos attribuem ao mau padre.
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Só lhe restava através da sua sentimentalidade um appetite tremendo. E como a cozinheira era excellente, e a
snr.^a D. Maria da Assumpção, antes da sua partida para a Vieira, lhe deixára um fornecimento de cento e
cincoenta missas a cruzado--banqueteava-se, tratando-se a gallinha e a geleia, regando-se d'um vinho
picante da Bairrada que o padre-mestre lhe escolhera. E alli ficava á mesa, horas esquecidas, de perna
esticada, fumando sobre o café, e lamentando não ter á mão a sua Ameliasita...
--Que fará ella por lá, a pobre Ameliasita! pensava, espreguiçando-se com tedio e com langor.
Logo durante a jornada no char-à-banc D. Josepha lhe fizera tacitamente sentir que d'ella não tinha a esperar
nem a antiga amizade, nem o perdão do escandalo... E assim foi, quando se installaram. A velha tornou-se
intratavel: era todo um modo cruel de abandonar o tu, de a tratar por menina; uma recusa rispida se Amelia
lhe queria arranjar a almofada ou aconchegal-a no chale; um silencio reprehensivo quando ella lhe passava
o serão no quarto, costurando; e a todo o momento allusões suspiradas ao triste encargo que Deus lhe
mandava no fim dos seus dias...
Amelia, comsigo, accusava o parocho: elle promettera-lhe que a madrinha seria toda caridade, toda
cumplicidade; entregava-a por fim a uma semelhante ferocidade de velha virgem devota!...
Quando se viu n'aquelle casarão da Ricoça, n'um quarto regelado, pintado a côr de canario, lugubremente
mobilado com uma cama de docel e duas cadeiras de couro, chorou toda a noite com a cabeça, enterrada no
travessseiro--torturada por um cão que debaixo das janellas, estranhando sem duvida as luzes e o movimento
na casa, uivou até de madrugada.
Ao outro dia desceu á quinta a vêr os caseiros. Era talvez boa gente com quem podia distrahir-se. Encontrou
uma mulher, alta e lugubre como um cypreste, carregada de luto: um grande lenço negro tingido, muito
puxado para a testa, dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma tristeza de dobre a
finados. O homem pareceu-lhe ainda peor, semelhante a um ourango-tango, com duas orelhas enormes muito
despegadas do craneo, uma saliencia bestial de queixo, as gengivas deslavadas, um corpo desengonçado de
tisico, de peito mettido para dentro. Abalou bem depressa, foi vêr o pomar: andava maltratado; as ruasitas
estavam invadidas por um hervaçal humido; e a sombra das arvores muito juntas, n'um terreno baixo,
cercado d'altos muros, dava uma sensação doentia.
Era ainda preferivel passar os seus dias mettida no casarão; dias infindaveis em que as horas se iam
movendo com o vagar fastidioso d'um desfilar funerario.
O seu quarto era na frente; e pelas duas janellas recebia a impressão triste da paizagem que se estendia
defronte, uma ondulação monotona de terras estereis com alguma magra arvore aqui e além, um ar abafado
em que parecia errar constantemente a exhalação de paues proximos e de baixas humidas, e a que nem o sol
de setembro dissipava o tom sezonatico.
Logo pela manhã ia ajudar a levantar D. Josepha, accommodal-a no canapé; depois vinha costurar para ao
pé d'ella--como outr'ora na rua da Misericordia para ao pé da mãi; mas agora em logar das boas
«cavaqueiras» tinha só o silencio intratavel da velha e a sua ronqueira incessante. Pensára em fazer vir o seu
piano da cidade; mas, apenas em tal fallou, a velha exclamou com azedume:
--A menina está doida... Não tenho saude para tocatas! Ora o desproposito!
A Gertrudes tambem não lhe fazia companhia; nas horas em que não estava ao pé da velha, ou na cozinha,
desapparecia; era justamente d'aquella freguezia, e passava o seu tempo pelos casaes, palrando com as
antigas visinhas.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 227
A peor hora era ao anoitecer. Depois de rezar o seu rozario, ficava junto á janella olhando estupidamente as
gradações da luz poente; todos os campos pouco a pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um silencio
parecia descer, pousar sobre a terra; depois uma primeira estrellinha tremeluzia e brilhava; e diante d'ella
era então só uma massa inerte de sombra muda até ao horisonte, aonde ainda ficava um momento uma
delgada tira côr de laranja desbotada. O seu pensamento, sem nenhum tom de luz ou contorno de objecto em
redor que o prendesse, ia muito saudoso para longe, para a Vieira; áquella hora a mãi e as amigas recolhiam
do passeio na praia; já todas as redes estavam apanhadas; já pelos palheiros começam a apparecer as luzes;
é a hora do chá, dos quinos alegres, quando os rapazes da cidade vão em rancho pelas casas amigas, com
uma viola e uma flauta, improvisando soirées. E ella alli, só!...
Era então necessario deitar a velha, rezar com ella e com a Gertrudes o terço. Accendiam depois o candieiro
de latão, pondo-lhe diante uma velha chapeleira para dar sombra ao rosto da doente; e todo o serão, no
silencio lugubre, apenas se ouvia o rumor do fuso da Gertrudes que fiava agachada a um canto.
Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas, n'um medo constante de ladrões; e então começava para
Amelia a hora dos terrores supersticiosos. Não podia adormecer, sentido ao pé a negrura d'aquellas antigas
salas deshabitadas e em redor o tenebroso silencio dos campos. Ouvia ruidos inexplicaveis: era o soalho do
corredor que estalava, sob passadas mulplicadas; era a luz da vela que de repente se dobrava como sob um
halito invisivel; ou a distancia, para os lados da cozinha, o baque surdo d'um corpo. Accumulava então as
orações, encolhida debaixo da roupa; mas, se adormecia, as visões do pesadêlo continuavam-lhe os terrores
da vigilia. Uma vez acordára de repente, a uma voz que dizia, gemendo, por traz da alta barra da
cama:--Amelia, prepara-te, o teu fim chegou! Espavorida, em camisa, atravessou correndo a casa, foi
refugiar-se na cama da Gertrudes.
Mas na noite seguinte a voz sepulchral voltou quando ella ia adormecer: Amelia, lembra-te dos teus
peccados! Prepara-te, Amelia! Deu um grito, desmaiou. Felizmente a Gertrudes, que ainda se não deitára,
correu áquelle ai agudo que cortára o silencio do casarão. Achou-a estirada ao través do leito, com os
cabellos soltos da rede rojando no chão, as mãos geladas e como mortas. Desceu a acordar a mulher do
caseiro, e até de madrugada foi uma azafama para a chamar á vida. Desde esse dia a Gertrudes dormia ao
pé d'ella--e a voz não tornou a ameaçal-a por traz da barra.
Mas, de noite e de dia, não a deixou mais a idéa da morte e o pavor do inferno. Por esse tempo, um vendedor
ambulante d'estampas passou pela Ricoça; e a snr.^a D. Josepha comprou-lhe duas lithographias--a Morte
do Justo e a Morte do Peccador.
--Que é bom que cada um tenha o exemplo vivo diante dos olhos, disse ella.
Amelia não duvidou ao principio que a velha, que contava morrer no mesmo apparato de gloria com que
expirava o Justo da estampa, lhe quizera mostrar a ella, a peccadora, a scena pavorosa que a esperava.
Odiou-a por aquella «picardia». Mas a sua imaginação aterrada não tardou a dar á compra da estampa
outra explicação: era Nossa Senhora que alli mandára o vendedor de pinturas, para lhe mostrar ao vivo na
lithographia da Morte do Peccador o espectaculo da sua agonia: e estava então certa que tudo seria assim,
traço por traço--o seu anjo da guarda fugindo aos soluços; Deus-Padre desviando o rosto d'ella com
repugnancia; o esqueleto da morte rindo ás gargalhadas; e demonios de côres rutilantes, com todo um
arsenal de torturas, apoderando-se d'ella, uns pelas pernas, outros pelos cabellos, arrastando-a com uivos de
jubilo para a caverna chammejante toda abalada da tormenta de rugidos que solta a Eterna Dôr... E ella
podia vêr ainda, no fundo dos céos, a grande balança--com um dos pratos muito alto onde as suas orações
não pesavam mais que uma penna de canario, e o outro prato cahido, de cordas retesadas, sustentando a
enxerga da cama do sineiro e as suas toneladas de peccado.
Cahiu então n'uma melancolia hysterica que a envelhecia; passava os dias suja e desarranjada, não
querendo dar cuidado ao seu corpo peccador; todo o movimento, todo o esforço lhe repugnava; as mesmas
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orações lhe custavam, como se as julgasse inuteis; e tinha atirado para o fundo d'uma arca o enxoval que
andava a costurar para o filho--porque o odiava, aquelle sêr que ella sentia mexer-se-lhe já nas entranhas e
que era a causa da sua perdição. Odiava-o--mas menos que o outro, o parocho que lh'o fizera, o padre
malvado que a tentára, a estragára, a atirára ás chammas do inferno! Que desespero quando pensava n'elle!
Estava em Leiria socegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez--e ella alli sósinha, com
o ventre condemnado e enfartado do peccado que elle lá depuzera, ia-se afundindo na perdição sempiterna!
Decerto esta excitação a teria matado--se não fosse o abbade Ferrão que começára então a vir vêr muito
regularmente a irmã do amigo conego.
Amelia ouvira fallar muitas vezes n'elle na rua da Misericordia; dizia-se lá que o Ferrão tinha «idéas
exquisitas»: mas não era possivel recusar-lhe nem a virtude da vida nem a sciencia de sacerdote. Havia
muitos annos que era alli abbade; os bispos tinham-se succedido na diocese, e elle alli ficára esquecido
n'aquella freguezia pobre, de congrua atrazada, n'uma residencia onde chovia pelos telhados. O ultimo
vigario geral, que nunca dera um passo para o favorecer, dizia-lhe todavia, liberal de palavriado:
--Vossê é um dos bons theologos do reino. Vossê está predestinado por Deus para um bispado. Vossê ainda
apanha a mitra. Vossê ha de ficar na historia da Igreja portugueza como um grande bispo Ferrão!
--Bispo, senhor vigario geral! Isso era bom! Mas era necessario que eu tivesse o arrojo d'um Affonso
d'Albuquerque ou d'um D. João de Castro, para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!
E alli ficára, entre gente pobre, n'uma aldeia de terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e uma chavena
de leite, com uma batina limpa onde os remendos faziam um mappa, precipitando-se a uma meia legua por
um temporal desfeito se um parochiano tinha uma dôr de dentes, passando uma hora a consolar uma velha a
quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com um cruzado no fundo do bolso dos
calções para uma necessidade do seu visinho, grande amigo de todos os rapazitos a quem fazia botes de
cortiça, e não duvidando parar, se encontrava uma rapariga bonita, o que era raro na freguezia, e exclamar:
«Linda moça, Deus a abençôe!»
E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era tão celebre, que lhe chamavam «a donzella».
De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas d'estação aos pés do Santissimo Sacramento;
cumprindo com uma felicidade fervente as menores praticas da vida devota; purificando-se para os trabalhos
do dia com uma profunda oração mental, uma meditação de fé, d'onde a sua alma sahia mais agil, como d'um
banho fortificante; preparando-se para o somno com um d'estes longos e piedosos exames de consciencia, tão
uteis, que Santo Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que Plutarcho e Seneca, e que são a
correcção laboriosa e subtil dos pequenos defeitos, o aperfeiçoamento meticuloso da virtude activa,
emprehendido com um fervor de poeta que revê um poema querido... E todo o tempo que tinha vago,
abysmava-se n'um cahos de livros.
Tinha só um defeito o abbade Ferrão: gostava de caçar! Cohibia-se, porque a caça tira muito tempo, e é
sanguinario matar uma pobre ave que anda azafamada pelos campos nos seus negocios domesticos. Mas nas
claras manhãs d'inverno, quando ainda ha orvalho nas giestas, se via passar um homem d'espingarda ao
hombro, o passo vivo, seguido do seu perdigueiro--iam-se-lhe os olhos n'elle... Ás vezes porém, a tentação
vencia: agarrava furtivamente a espingarda, assobiava á Janota, e com as abas do casacão ao vento, lá ia o
theologo illustre, o espelho de piedade, através de campos e valles... E d'ahi a pouco--pum... pum! Uma
codorniz, uma perdiz em terra! E lá voltava o santo homem com a espingarda debaixo do braço, os dois
passaros na algibeira, cosendo-se com os muros, rezando o seu rosario á Virgem, e respondendo aos bons
dias da gente pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito criminoso.
O abbade Ferrão, apesar do seu aspecto «gêbo» e do seu grande nariz, agradou a Amelia, logo desde a
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primeira visita á Ricoça; e a sua sympathia cresceu, quando viu que D. Josepha o recebia com pouco
alvoroço, apesar do respeito que o mano conego tinha pela sciencia do abbade.
A velha, com effeito depois de ter estado só com elle n'uma pratica d'horas, condemnára-o com uma unica
palavra, na sua auctoridade de velha devota experiente:
--É relaxado!
Não se tinham realmente comprehendido. O bom Ferrão, tendo vivido tantos annos n'aquella parochia de
quinhentas almas, as quaes cahiam todas, de mães a filhas, no mesmo molde de devoção simples a Nosso
Senhor, Nossa Senhora e S. Vicente, patrono da freguezia, tendo pouca experiencia de confissão,
encontrava-se subitamente diante d'uma alma complicada de devota de cidade, d'um beaterio caturra e
atormentado; e ao ouvir aquella extraordinaria lista de peccados mortaes, murmurava espantado:
Percebera bem ao principio que tinha diante de si uma d'essas degenerações morbidas do sentimento
religioso, que a theologia chama Doença dos escrupulos--e de que na sua generalidade estão affectadas hoje
todas as almas catholicas; mas depois, a certas revelações da velha, receou estar realmente em presença
d'uma maniaca perigosa; e instinctivamente, com o singular horror que os sacerdotes têm pelos doidos,
recuou a cadeira.
Pobre D. Josepha! Logo na primeira noite em que chegára á Ricoça (contava ella), ao começar o rosario a
Nossa Senhora, lembrára-lhe de repente que lhe esquecera o saiote de flanella escarlate, que era tão efficaz
nas dôres das pernas... Trinta e oito vezes de seguida recomeçára o rosario, e sempre o saiote escarlate se
interpunha entre ella e Nossa Senhora!... Então desistira, d'exhausta, d'esfalfada. E immediatamente sentira
dôres vivas nas pernas, e tivera como uma voz de dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingança a
espetar-lhe alfinetes nas pernas...
O abbade pulou:
Havia outro peccado que a torturava: quando rezava, às vezes, sentia vir a expectoração; e, tendo ainda o
nome de Deus ou da Virgem na bôca, tinha de escarrar; ultimamente engulia o escarro, mas estivera
pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia d'embrulhada para o estomago e se ia misturar com
as fezes! Que havia de fazer?
Mas isto não era o peor: o grave era, que na noite antecedente estava toda socegada, toda em virtude, a rezar
a S. Francisco Xavier--e de repente, nem ella soube como, põe-se a pensar como seria S. Francisco Xavier nú
em pêllo!
O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Emfim, vendo-a a olhar anciosa para elle, á espera das suas
palavras e dos seus conselhos, disse:
--E tem convivido com pessoas que, como a senhora, são sujeitas a essas inquietações?
--Todas as pessoas que conheço, duzias d'amigas, todo o mundo... O Inimigo não me escolheu só a mim... A
todos se atira...
--Ai, senhor abbade, aquelles santos da cidade, o senhor parocho, o snr. Silverio, o snr. Guedes, todos, todos
nos tiravam sempre d'embaraços... E com uma habilidade, com uma virtude...
O abbade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando que por todo o reino tantos centenares
de sacerdotes trazem assim voluntariamente o rebanho n'aquellas trevas d'alma, mantendo o mundo dos fieis
n'um terror abjecto do céo, representando Deus e os seus santos como uma côrte que não é menos
corrompida nem melhor que a de Caligula e dos seus libertos.
Quiz então levar áquelle nocturno cerebro de devota, povoado de phantasmagorias, uma luz mais alta e mais
larga. Disse-lhe que todas as suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror d'offender a
Deus... Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo... Que é por amor que é
necessario servil-o, não por medo... Que todos esses escrupulos, Nossa Senhora a enterrar alfinetes, o nome
de Deus a cahir no estomago, eram perturbações da razão doente. Aconselhou-lhe confiança em Deus, bom
regimen para ganhar forças. Que não se cansasse em orações exageradas...
--E quando eu voltar, disse emfim erguendo-se e despedindo-se, continuaremos a conversar sobre isto, e
havemos de serenar essa alma.
E apenas a Gertrudes d'ahi a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os pés, D. Josepha exclamou, toda
indignada, quasi choramingando:
--Ai, não presta p'ra nada, não presta p'ra nada!... Não me percebeu... É um tapado... É um pedreiro-livre,
Gertrudes! Que vergonha n'um sacerdote do Senhor...
Desde esse dia não tornou a revelar ao abbade os peccados medonhos que continuava a commetter; e quando
elle, por dever, quiz recomeçar a educação da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se
confessava com o senhor padre Gusmão, não sabia se seria delicado receber d'outro a direcção moral...
--Tem razão, minha senhora, tem razão, deve-se ter muita delicadeza n'essas coisas...
Sahiu. E d'ahi por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe da saude, de ter fallado do tempo, da
estação, das doenças que iam, d'alguma festa na igreja,--apressava-se em se despedir e ir para o terraço
conversar com Amelia.
Vendo-a sempre tão tristonha, interessára-se por ella; para Amelia, as visitas do abbade eram uma
distracção, n'aquella solidão da Ricoça; e assim se iam familiarisando, a ponto que nos dias em que elle
regularmente vinha, Amelia punha um mantelete e ia pelo caminho dos Poyaes esperal-o até junto á casa do
ferrador. As conversas do abbade, fallador incansavel, entretinham-na, tão differentes dos mexericos da rua
da Misericordia,--como o espectaculo d'um largo valle com arvores, plantações, aguas, pomares e rumor de
lavouras, recreia os olhos habituados ás quatro paredes caiadas d'uma trapeira da cidade. Tinha com effeito
uma d'estas conversações semelhantes aos jornaes semanaes de recreio, o Thesouro das familias ou as
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 231
Leituras para serões, em que de ha tudo--doutrina moral, historias de viagens, anecdotas dos grandes
homens, dissertações sobre a lavoura, citação d'uma boa chalaça, traços sublimes da vida d'um santo, um
verso aqui e além, e até receitas, como uma muito util que deu a Amelia para lavar as flanellas sem
encolherem. Só era monotono quando fallava da sua familia parochiana, dos casamentos, baptisados,
doenças, questões, ou quando começava as suas historias de caça.
--Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Corrego das Tristes, quando uma revoada de perdizes...
Amelia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam façanhas da Janota, pontarias fabulosas contadas em
mimica, com imitações de vozes de passaros, e pum, pum de fusilaria. Ou então eram descripções das
caçadas selvagens que elle lêra com gula--a caça ao tigre do Nepal, ao leão d'Argelia e ao elephante,
historias ferozes que arrastavam a imaginação da rapariga para longe, para os paizes exoticos onde a herva
é alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em braza, e entre cada ramagem reluzem os olhos
d'uma fera... E depois, a proposito de tigres e de malaios, lembrava-lhe uma historia curiosa de S. Francisco
Xavier, e eil-o lançado, o terrivel palrador, na descripção dos feitos da Asia, das armadas da India e das
estocadas famosas do cerco de Diu!
Foi mesmo um d'esses dias, no pomar, em que o abbade, tendo começado por enumerar as vantagens que o
conego tiraria de transformar o pomar em terra de lavoura, acabára por contar perigos e valores dos
missionarios da India e do Japão--que Amelia, então em toda a intensidade dos seus terrores nocturnos,
fallou dos ruidos que ouvia na casa e dos sobresaltos que lhe davam.
--Oh, que vergonha! disse o abbade rindo; uma senhora da sua idade ter medo de papões...
Ella então, attrahida por aquella bondade do senhor abbade, contou-lhe as vozes que ouvia de noite por
detraz da barra da cama.
--Minha senhora, isso são imaginações que deve a todo o custo dominar... Decerto tem havido prodigios no
mundo, mas Deus não se põe assim a fallar a qualquer, por detraz das barras das camas, nem permitte ao
demonio que o faça... Essas vozes, se as ouve, e se os seus peccados são grandes, não vêm de detraz da cama,
vêm-lhe de si mesmas, da sua consciencia... E póde então fazer dormir ao pé de si a Gertrudes, e cem
Gertrudes, e todo o batalhão de infanteria, que as ha de continuar a ouvir... Havia de as ouvir, mesmo que
fosse surda. O que é necessario é calmar a consciencia que reclama penitencia e purificação...
Tinham subido ao terraço, fallando assim: e Amelia sentára-se fatigada n'um dos bancos de pedra que alli
havia, e ficára a olhar a quinta ao longe, os tectos dos curraes, a longa rua de loureiros, a eira, e a distancia
os campos que se succediam planos e avivados do tom humido que lhes dera a chuva ligeira da manhã: agora
a tarde estava d'uma placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que o sol do poente tocava de
vivos côr de rosa tenro... Pensava n'aquellas palavras tão sensatas do abbade, no descanso que gozaria se
cada peccado que lhe pesava na alma como um penedo se tornasse ligeiro e se dissipasse sob a acção da
penitencia. E vinham-lhe desejos de paz, d'um repouso igual á quietação dos campos que se estendiam diante
d'ella.
Um passaro cantou, depois calou-se; e recomeçou d'ahi a um momento com um trinado tão vibrante, tão
alegre, que Amelia sorria, escutando-o.
--É um rouxinol...
--Os rouxinoes não cantam a esta hora, disse o abbade. É um melro... Ahi está um que não tem medo de
phantasmas, nem ouve vozes... Olha que enthusiasmo, o maganão!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 232
Era com effeito um gorgear triumphante, um delírio de melro feliz, que dera de repente a todo o pomar uma
sonoridade festiva.
E Amelia, diante d'aquelle chilrear glorioso d'um passaro contente, subitamente, sem razão, n'um d'estes
abalos nervosos que vem às mulheres hystericas, rompeu a chorar.
--Não tem razão para o ser... Sejam quaes forem as afflicções, as inquietações, uma alma christã tem sempre
a consolação á mão... Não ha peccado que Deus não perdôe, nem dôr que não calme, lembre-se d'isso... O
que não deve é guardar em si o seu desgosto... É isso que a suffoca, que a faz chorar... Se eu lhe posso valer,
socegal-a, é procurar-me...
--Quando? disse ella toda desejosa já de se refugiar na protecção d'aquelle santo homem.
--Quando quizer, disse elle rindo. Eu não tenho horas para consolar... A igreja está sempre aberta, Deus está
sempre presente...
Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha se erguia, Amelia foi á residencia; e durante duas horas
esteve prostrada diante do pequeno confessionario de pinho--que o bom abbade por suas mãos pintára d'azul
escuro, com extraordinarias cabecinhas d'anjos que em logar d'orelhas tinham azas, uma obra d'alta arte de
que elle fallava com uma secreta vaidade.
XXIII
O padre Amaro acabára de jantar, e fumava, com os olhos no tecto, para não vêr o carão chupado do
coadjutor que havia meia hora alli estava, immovel e espectral, fazendo cada dez minutos uma pergunta que
cahia no silencio da sala como os quartos melancolicos que dá de noite um relogio de cathedral.
O coadjutor recahiu no silencio, começando logo a colligir laboriosamente as palavras para uma nova
pergunta. Soltou-a emfim, com lentidão:
A criada entrou, n'este momento, dizendo que «estava alli uma pessoa que queria fallar ao senhor parocho».
Era a sua maneira d'annunciar a presença de Dionysia na cozinha.
Havia semanas que ella não apparecia--e Amaro, curioso, sahiu logo da sala fechando a porta sobre si, e
chamou a matrona ao patamar.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 233
--Grande novidade, senhor parocho! E vim a correr, que é sério. Está cá o João Eduardo!
--Ora essa! exclamou o parocho. E eu justamente a fallar d'elle! É extraordinario! Olha que coincidencia...
--É verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E já estou informada de tudo. O homem está mestre dos filhos do
Morgadinho.
--Que Morgadinho?
--O Morgadinho dos Poyaes... Se vive lá, ou se vai pela manhã e vem á noite, isso não sei. O que sei é que
voltou... E janota, fato novo... Eu entendi que devia avisar, porque póde estar certo que elle, mais dia menos
dia, dá pela Ameliasinha lá na Ricoça... É no caminho p'ra casa do Morgado... Que lhe parece?...
--Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando não serve é que apparece. Então por fim não foi para o
Brazil?
--Pelos modos, não... Que a sombra d'elle não era, era elle mesmo em carne e osso... A sahir da loja do
Fernandes por signal, e todo peralta... Sempre é bom avisar a rapariga, senhor parocho, que se não vá ella
plantar de janella...
Amaro deu-lhe as duas placas que ella esperava--e d'ahi a um quarto d'hora, desembaraçado do coadjutor, ia
no caminho da Ricoça.
Batia-lhe forte o coração quando avistou o casarão amarello, pintado de novo, o largo terraço lateral em
linha com o muro do pomar, ornado d'espaço a espaço no parapeito de vasos nobres de pedra. Ia emfim,
depois de tão longas semanas, vêr a sua Ameliasinha! E já se alvoroçava á idéa das exclamações
apaixonadas com que ella lhe cahiria nos braços.
Ao rez do chão eram as cavallariças, do tempo da familia morgada que outr'ora alli habitára, agora
abandonadas ás ratazanas e aos tortulhos, recebendo a luz por estreitas janellas gradeadas que quasi
desappareciam sob camadas de teias de aranha; entrava-se por um immenso pateo escuro, onde havia longos
annos se acastellava a um canto toda uma montanha de pipas vazias; e o lance d'escadaria nobre, que levava
aos aposentos, era á direita, flanqueado de dois leõesinhos de pedra, benignos e somnolentos.
Amaro subiu até um sotão de tecto de carvalho apainelado, sem mobilia, com a metade do soalho coberta de
feijão sêcco.
Uma porta abriu-se. Amelia appareceu um instante, toda despenteada e em saia branca; deu um gritinho,
bateu com a porta--e o parocho sentiu-a fugir para o interior do casarão. Ficou muito desconsolado no meio
do salão, com o seu guardasol debaixo do braço, pensando na boa familiaridade com que entrava na rua da
Misericordia--que até pareciam as portas abrir-se de si mesmo e o papel das paredes clarear-se d'alegria.
--Oh, senhor parocho! Entre, senhor parocho! Ora até que emfim! Minha senhora, é o senhor
parocho!--gritava, na alegria de vêr emfim uma visita querida, um amigo da cidade, n'aquelle desterro da
Ricoça.
Levou-o logo para o quarto de D. Josepha, ao fundo da casa, um quarto enorme, onde, n'um pequeno canapé
perdido a um canto, a velha passava os dias encolhida no seu chale, com os pés embrulhados n'um cobertor.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 234
Ella não pôde responder, tomada d'um accesso de tosse que lhe dera a commoção da visita.
--Como vê, senhor parocho, murmurou emfim muito fraca. Para aqui vou, arrastando esta velhice. E vossa
senhoria? Porque não tem apparecido?
Amaro desculpou-se vagamente com os afazeres da Sé. E comprehendia agora, ao vêr aquella face amarella
e cavada, com uma medonha touca de rendas negras, que tristes horas Amelia alli devia passar. Perguntou
por ella; avistára-a de longe, mas ella deitára a fugir...
--É que não estava decente para apparecer, disse a velha. Hoje foi dia de barrela.
Amaro quiz então saber em que se entretinham, como passavam os dias n'aquella solidão...
Depois de cada palavra, parecia abater-se n'uma fadiga e a sua ronqueira crescia.
--Deixe fallar, senhor parocho, acudiu a Gertrudes que ficára de pé, ao lado do canapé, gozando a presença
do senhor parocho.--Deixe fallar... É que a senhora exagera tambem... Levanta-se todos os dias, dá o seu
passeinho até á sala, come a sua azita de frango... Temol-a aqui, temol-a arribada... É o que diz o senhor
abbade Ferrão, a saude foge a toda a brida e para voltar vem a passo...
A porta abriu-se. Amelia appareceu, muito escarlate, com o seu antigo robe-de-chambre de merino rôxo, o
cabello arranjado á pressa.
--Desculpe, senhor parocho, balbuciou, mas hoje tem sido um dia de balburdia...
Elle apertou-lhe a mão gravemente: e ficaram calados, como se estivessem separados pela distancia d'um
deserto. Ella não tirava os olhos do chão, enrolando com a mão tremula uma ponta da manta de lã que trazia
solta pelos hombros. Amaro achava-a mudada, um pouco inchada das faces, com uma ruga de velhice aos
cantos da bôca. Para romper aquelle silencio estranho, perguntou-lhe tambem se se dava bem...
--Para aqui vou indo... É um pouco triste isto. É como diz o senhor abbade Ferrão, é muito grande para a
gente se sentir em familia.
--Ninguem veio para aqui para se divertir, disse a velha sem descerrar as palpebras, com uma voz sêcca que
perdera toda a fadiga.
Amaro então, comprehendendo n'um relance que a velha torturava Amelia, disse com muita severidade:
--É verdade, não foi para se divertirem... Mas tambem não foi para se entristecerem de proposito... Pôr-se
uma pessoa de mau humor e fazer aos outros a vida negra, é uma falta horrivel de caridade; não ha peccado
peor aos olhos do Senhor... É indigno da graça de Deus quem tal pratica...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 235
Gertrudes amimou-a. Então, senhora, que até lhe fazia peor estar a affligir-se assim... Ora o disparate! Tudo
se havia de remediar com a ajuda de Deus. Saude não havia de faltar, nem alegria...
Amelia chegára-se á janella, decerto para esconder tambem as lagrimas que lhe saltavam dos olhos. E o
parocho, consternado com a scena, começou a dizer que D. Josepha não estava supportando com a
verdadeira resignação d'uma christã aquelles dias de doença... Nada escandalisava mais Nosso Senhor que
vêr as creaturas revoltarem-se contra as dôres ou os encargos que elle mandava... Era insultar a justiça dos
seus decretos...
--Tem razão, senhor parocho, tem razão, murmurou a velha muito contrita. Eu ás vezes nem sei o que digo...
São coisas da doença.
--Bem, bem, minha senhora, é resignar-se e tratar de vêr tudo côr de rosa. É o sentimento que Deus mais
aprecia. Eu comprehendo que é duro, estar para aqui enterrada...
--É o que diz o senhor abbade Ferrão, acudiu Amelia voltando da janella, a madrinha estranha... Assim
arrancada aos habitos de tantos annos...
Notando então a citação repetida das palavras do abbade Ferrão, Amaro perguntou se elle costumava vir
vêl-as...
--Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amelia. Vem quasi todos os dias.
--Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente d'um enthusiasmo tão vivo. Pessoa de muita virtude...
--De muita virtude, suspirou a velha. Mas...--Calou-se, não ousando decerto exprimir as suas reservas de
devota.--E exclamou n'uma supplica:--Ai, o senhor parocho é que devia vir por aqui, ajudar-me a levar esta
cruz da doença...
--Hei de vir, minha senhora, hei de vir. É bom para a distrahir, para lhe dar as noticias... E a proposito, tive
hontem carta do nosso conego.
Rebuscou na algibeira, leu alguns periodos da carta. O padre-mestre já tinha quinze banhos. A praia estava
cheia de gente. A D. Maria passára doente com um furunculo. O tempo famoso. Todas as tardes grandes
passeatas a vêr recolher as rêdes. A S. Joanneira, boa, mas fallando sempre na filha...
Mas a velha não se interessava com as novidades, gemendo a sua ronqueira. Foi Amelia que perguntou pelos
amigos de Leiria, pelo senhor padre Natario, pelo senhor padre Silverio...
--Pois, minha senhora, até outro dia. Esteja certa que hei de apparecer de vez em quando. E nada d'affligir...
Agasalho, boa dieta, e a misericordia de Deus não a ha de abandonar...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 236
Amelia estendera-lhe a mão, para se despedir alli no quarto; mas Amaro gracejando:
--Se não lhe causa incommodo, menina Amelia, sempre é bom vir mostrar-me o caminho, que eu perco-me
n'este casarão.
Sahiram ambos. E apenas no salão, a que as tres largas vidraças davam ainda uma claridade:
--O quê?
Ella ergueu as mãos para elle, n'uma supplicação anciosa, fallando toda tremula:
--Não, senhor parocho, deixe-me! Isso acabou. Bem basta o que peccamos... Quero morrer na graça de
Deus... Que nunca mais se falle em semelhante coisa!... Foi uma desgraça... Acabou-se... Agora o que quero é
o socego de minha alma...
--Bem, como queira, disse por fim. Em todo o caso, quero prevenil-a que o João Eduardo voltou, que passa
aqui todos os dias, e que é bom não se pôr de janella.
A Gertrudes n'este momento entrava com o candieiro accêso. E Amaro, sem se despedir d'Amelia, abalou, de
guardachuva em riste, rilhando os dentes de raiva.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 237
Mas a longa caminhada até á cidade calmou-o. Aquillo na rapariga por fim era apenas um accesso de
virtude e d'escrupulos! Vira-se alli só n'aquelle casarão, amargurada pela velha, impressionada pelos
palavrões do moralista Ferrão, longe d'elle, e tinha-lhe vindo aquella reacção de devota com os seus terrores
do outro-mundo e appetites de innocencia... Chalaça! Se elle começasse a ir á Ricoça, n'uma semana
reganhava todo o seu dominio... Ah, conhecia-a bem! Era só tocar-lhe, piscar-lhe o olho... Estava logo
rendida.
Passou porém uma noite inquieta, desejando-a mais que nunca. E ao outro dia á uma hora marchou para a
Ricoça, levando-lhe um ramo de rosas.
A velha ficou toda contente ao vêl-o. É que lhe dava saude a presença do senhor parocho! E se não fosse a
distancia havia de lhe pedir a esmola de vir todas as manhãs. Até depois d'aquella visitinha rezava com mais
fervor...
--Sahiu... Isso agora todas as manhãs é a passeata, disse a velha com azedume. Vai á residencia, é tôda do
abbade...
--Ah! fez Amaro com um sorriso livido. Nova devoção, hein?... é pessoa de muitos meritos, o abbade.
--Ai, não presta, não presta! exclamou D. Josepha. Não me percebe. Tem idéas muito exquisitas. Não dá
virtude...
Mas a velha erguera-se sobre o cotovêlo, e baixando a voz, com o magro carão accêso em odio:
--E aqui p'ra nós, a Amelia tem-se portado muito mal! Nunca lh'o hei de perdoar... Confessou-se ao abbade...
É uma indelicadeza, sendo a confessada do senhor parocho, não tendo recebido de vossa senhoria senão
favores... É uma ingrata, é uma traiçoeira!...
--A verdade! Que ella não o nega. Até se orgulha! É uma perdida, é uma perdida! Depois do favor que lhe
estamos a fazer...
Amaro disfarçou a indignação que o revolvia. Riu até. Era necessario não exagerar... Não havia ingratidão.
Era uma questão de fé. Se a rapariga pensava que o abbade a podia dirigir melhor, tinha razão em se abrir
com elle... O que todos queriam é que ella salvasse a sua alma... Que fosse pela direcção de fulano ou
sicrano, isso não importava... E nas mãos do abbade estava bem.
--Quasi todas... Que ella não ha de tardar, vai depois d'almoço, volta sempre a esta hora... Ai, tem-me
causado isto um desgosto!...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 238
--Pois minha senhora, eu não me posso demorar, que vim de fugida... Até um dia cedo.
E sem escutar a velha, que lhe pedia com anciedade que ficasse para jantar---desceu os degraus como uma
pedra que rola, metteu furioso pelo caminho da residencia, ainda com o seu ramo na mão.
Esperava encontrar Amelia na estrada; e não tardou em a avistar quasi ao pé da casa do ferreiro, agachada
ao pé do vallado, apanhando sentimentalmente florinhas silvestres.
Áquelle tu, e áquella voz colerica, ella poz rapidamente um dedo na bôca, assustada. O senhor abbade estava
dentro da casa com o ferreiro...
--Ouve lá, disse Amaro com os olhos chammejantes, agarrando-lhe o braço--tu confessaste-te ao abbade?...
--Mas confessaste tudo, tudo? perguntou elle com os dentes cerrados de raiva.
--Foste tu que me disseste muitas vezes... Que era o maior peccado n'este mundo, esconder alguma coisa ao
confessor!
Os seus olhos devoravam-na. E, através da nevoa de cólera que lhe enchia o cerebro e lhe fazia latejar as
veias na fronte, achava-a mais bonita, com umas redondezas em todo o corpo que ardia por abraçar, com uns
labios vermelhos avivados pelo largo ar do campo que elle queria morder até ao sangue.
--Ouve, disse-lhe cedendo a uma invasão brutal do desejo. Ouve... Acabou-se, não me importa. Confessa-te
ao diabo se te agrada... Mas has de ser a mesma para mim!
--Não, não! disse ella com força, desprendendo-se, prompta a fugir para casa do ferreiro.
--Tu m'as pagarás, maldita!--rosnou o padre por entre dentes, voltando as costas, descendo o caminho com
passadas de desesperado.
E não abrandou o passo até á cidade, levado de um impulso d'indignação que, sob aquella dôce paz d'um
meio d'outono, lhe suggeria planos de vinganças ferozes. Chegou a casa esfalfado, ainda com o ramo na
mão. Mas ahi, na solidão do quarto, veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua impotencia. Que lhe podia
fazer por fim? Ir pela cidade dizer que ella estava gravida? Seria denunciar-se a si. Espalhar que estava
amigada com o abbade Ferrão? Era absurdo: um velho de quasi setenta annos, d'uma fealdade de
caricatura, com todo um passado de virtude santa... Mas perdel-a, não tornar a ter nos braços aquelle corpo
de neve, não ouvir mais aquellas ternuras balbuciadas que lhe arrebatavam a alma para alguma coisa de
melhor que o céo... Isso não!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 239
E era possivel que ella, em seis ou sete semanas, tivesse assim esquecido tudo? N'aquellas longas noites na
Ricoça, só na cama, não lhe viria uma recordação das manhãs no quarto do tio Esguelhas?... Decerto: elle
sabia-o da experiencia de tantas confessadas que lhe tinham revelado afflictas a tentação muda e teimosa que
não deixa a carne que uma vez peccou...
Não: devia perseguil-a, e por todos os modos soprar-lhe aquelle desejo que agora ardia n'elle mais alto e
mais ruidoso.
Passou a noite a escrever-lhe uma carta de seis paginas, absurda, cheia d'implorações apaixonadas, de
argucias mysticas, de pontos d'exclamação e de ameaças de suicidio...
Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionysia. A resposta veio só á noite, por um rapazito da quinta. Com que
sofreguidão rasgou o sobrescripto! Eram apenas estas palavras: «Peço-lhe que me deixe em paz com os meus
peccados.»
Não desistiu: ao outro dia lá estava na Ricoça a visitar a velha. Amelia achava-se no quarto de D. Josepha,
quando elle appareceu. Fez-se muito pallida; mas os seus olhos não deixaram a costura--durante a meia hora
que elle alli ficou, ora n'um silencio sombrio acabrunhado para o fundo da poltrona, ora respondendo
distrahidamente á tagarellice da velha, muito falladora essa manhã.
E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia entrar fechava-se rapidamente no quarto: só vinha, se a velha
mandava a Gertrudes dizer-lhe «que estava alli o senhor o parocho que a queria vêr». Ia então, estendia-lhe
a mão, que elle achava sempre a escaldar--e tomando a sua eterna costura, junto da janella, ia picando o
posponto com uma taciturnidade que desesperava o padre.
Então jurava não voltar á Ricoça, desprezal-a,--mas depois de ter passado a noite, rolando-se pela cama sem
poder dormir, com a mesma visão da nudez d'ella cravada intoleravelmente no cerebro, lá partia de manhã
para a Ricoça, córando quando o apontador das obras na estrada, que o via passar todos os dias, lhe tirava o
seu boné d'oleado.
N'uma tarde que choviscava, ao entrar no casarão, dera com o abbade Ferrão que á porta abria o seu
guardachuva.
--Em vossa senhoria é que não ha que estranhar, que vem por aqui todos os dias...
--E que lhe importa ao senhor abbade se eu venho ou não? A casa é sua?
Então o bom homem estremeceu. Commettera, alli, a culpa mais grave do sacerdote catholico: o que sabia
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 240
d'Amaro, dos seus amores, era em segredo de confissão; e era trahir o mysterio do sacramento, mostrar que
desapprovava aquella insistencia no peccado. Tirou muito baixo o seu chapéo e disse humildemente:
--Tem vossa senhoria razão. Peço perdão do que disse, sem reflectir. Muito boas tardes, senhor parocho.
Amaro não entrou na Ricoça. Voltou para a cidade sob a chuva que batia forte agora. E, apenas em casa,
escreveu uma longa carta a Amelia, em que lhe contava a scena com o abbade, acabrunhando-o
d'accusações--sobretudo de lhe trahir indirectamente o segredo da confissão. Como das outras, d'esta carta
não veio resposta da Ricoça.
Então Amaro começou a acreditar que tanta resistencia não podia vir só do arrependimento e do terror do
inferno... «Alli ha homem», pensou. E devorado d'um ciume negro principiou a rondar de noite a Ricoça; mas
não viu nada; o casarão permanecia adormecido e apagado. Uma occasião, porém, ao aproximar-se do muro
do pomar, sentiu adiante no caminho que desce dos Poyaes uma voz cantarolar sentimentalmente a valsa dos
Dois mundos, e um ponto brilhante de charuto accêso adiantar-se na escuridão. Assustado, refugiou-se n'um
casebre que desmantelava em ruinas do outro lado da estrada. A voz calou-se; e Amaro, espreitando, viu
então um vulto que parecia embrulhado n'um chalemanta claro, parado, contemplando as janellas da Ricoça.
Um furor de ciume apossou-se d'elle, e ia saltar e atacar o homem--quando o viu seguir tranquillamente ao
comprido da estrada, de charuto alto, trauteando:
Ouves ao longe retumbar na serra O som do bronze que nos causa horror...
Pela voz, pelo chale-manta, pelo andar tinha reconhecido João Eduardo. Mas teve a certeza que se um
homem fallava de noite a Amelia ou entrava na quinta--não era decerto o escrevente. Todavia, receoso de ser
descoberto, não tornou a rondar o casarão.
Era com effeito João Eduardo, que sempre que passava pela Ricoça, de dia ou de noite, parava um momento
a olhar melancolicamente as paredes que ella habitava. Porque apesar de tantas desillusões, Amelia
permanecera para o pobre rapaz a ella, a bem amada, a coisa mais preciosa da terra. Nem em Ourem, nem
em Alcobaça, nem pelas estalagens onde errára, nem em Lisboa onde chegára como vem á praia uma quilha
de barco naufragado, deixára um momento de a ter presente na alma e de se enternecer com as saudades
d'ella. Durante esses dias tão amargos de Lisboa, os peores da sua vida, em que fôra fiel de feitos d'um
cartorio obscuro, perdido n'aquella cidade que lhe parecia ter a vastidão d'uma Roma ou d'uma Babylonia e
em que sentia o duro egoismo das multidões azafamadas, esforçava-se mesmo por desenvolver mais esse
amor que lhe dava como a doçura d'uma companhia. Achava-se menos isolado, tendo sempre no espirito
aquella imagem com quem travava dialogos imaginados, nos seus infindaveis passeios ao longo do Caes do
Sodré, accusando-a das tristezas que o envelheciam.
E esta paixão, sendo para elle como a indefinida justificação das suas miserias, tornava-o aos seus proprios
olhos interessante. Era «um martyr de amor»; isto consolava-o, como o consolára nas suas primeiras
desesperações considerar-se «uma victima das perseguições religiosas». Não era um pobre diabo banal a
quem o acaso, a preguiça, a falta d'amigos, a sorte e os remendos do casaco mantêm fatalmente nas
privações da dependencia: era um homem de grande coração, a quem uma catastrophe em parte amorosa e
em parte politica, um drama domestico e social, forçára assim, depois de luctas heroicas, a viajar d'um a
outro cartorio com um sacco de lustrina cheio d'autos. O destino tornára-o igual a tantos heroes que lera nas
novellas sentimentaes... E o seu paletot coçado, os seus jantares a quatro vintens, os dias em que não tinha
dinheiro para tabaco, tudo attribuia ao amor fatal d'Amelia e á perseguição d'uma classe poderosa, dando
assim, por um instincto muito humano, uma origem grandiosa ás suas miserias triviaes... Quando via passar
os que elle chamava os felizes--individuos batendo tipoia, rapazes que encontrava com uma linda mulher
pelo braço, gente bem atabafada que se dirigia aos theatros, sentia-se menos desgraçado pensando que
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 241
tambem elle possuia um grande luxo interior que era aquelle amor infeliz. E quando emfim por um acaso
obteve a certeza d'um emprego no Brazil, o dinheiro da passagem, idealisava a sua aventura banal
d'emigrante, repetindo-se durante todo o dia que ia passar os mares, exilado do seu paiz por uma tyrannia
combinada de padres e auctoridades e por ter amado uma mulher!
Quem lhe diria então, ao emmalar o seu fato no bahú de lata, que d'ahi a semanas estaria outra vez a meia
legua d'esses padres e d'essas auctoridades, contemplando d'olho terno a janella d'Amelia! Fôra aquelle
singular Morgadinho de Poyaes,--que não era nem Morgadinho nem de Poyaes, e apenas um ricaço
excentrico de ao pé d'Alcobaça que comprára aquella velha propriedade dos fidalgos de Poyaes, e que com a
posse da terra recebia do povo da freguezia a honra do titulo: fôra esse santo cavalheiro que o livrára dos
enjôos no paquete e dos acasos da emigração. Encontrára-o casualmente no cartorio onde elle ainda
trabalhava nas vesperas da viagem. O Morgadinho, cliente do velho Nunes, conhecia-lhe a historia, a
façanha do Communicado, o escandalo no largo da Sé; e já de ha muito concebera por elle uma sympathia
ardente.
O Morgadinho tinha com effeito por padres um odio maniaco, a ponto de não lêr no jornal a noticia d'um
crime, sem decidir (ainda mesmo quando o culpado estava já sentenciado) que «no fundo devia d'haver na
historia um sotaina». Dizia-se que este rancor provinha dos desgostos que lhe dera sua primeira mulher,
devota celebre d'Alcobaça. Apenas viu João Eduardo em Lisboa e soube da viagem proxima, teve
immediatamente a idéa de o trazer para Leiria, installal-o nos Poyaes, e entregar-lhe a educação das
primeiras letras dos seus dois pequenos como um insulto estridente feito a todo o clero diocesano. Imaginava
de resto João Eduardo um impio; e isto convinha ao seu plano philosophico d'educar os rapazitos n'um
«atheismo desbragado». João Eduardo aceitou, com as lagrimas nos olhos: era um salario magnifico que lhe
vinha, uma posição, uma familia, uma rehabilitação estrondosa...
--Oh, senhor Morgado, nunca hei de esquecer o que faz por mim!...
--É p'ra meu gosto proprio!... É p'ra arreliar a canalha! E partimos ámanhã!
Em Chão de Maçãs, apenas desceu do wagon, exclamou logo para o chefe da estação que não conhecia João
Eduardo, nem a sua historia:
--Cá o trago, cá o trago em triumpho! Vem p'ra quebrar a cara a toda a padraria... E se houver custas a
pagar, sou eu que as pago!
Foi ahi, nos Poyaes, logo ao outro dia da sua chegada, que João Eduardo soube que Amelia e D. Josepha
estavam na Ricoça. Soube-o pelo bom abbade Ferrão, o unico sacerdote a quem o Morgado fallava, e que
recebia em casa, não como padre, mas como cavalheiro.
--Eu como cavalheiro estimo-o, snr. Ferrão, costumava elle dizer, mas como padre abomino-o!
E o bom Ferrão sorria, sabendo que, sob aquella ferocidade d'impio obtuso, havia um santo coração, um
pai-de-pobres na freguezia...
O Morgado era tambem grande amador de alfarrabios, questionador incansavel; ás vezes os dois tinham
pelejas tremendas sobre historia, botanica, systemas de caça... Quando o abbade, no fogo da controversia,
punha d'alto alguma opinião contraria:
--O senhor apresenta-me isso como padre ou como cavalheiro? exclamava, empinando-se, o Morgado.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 242
--Então aceito a objecção. É sensata. Mas se fosse como padre, quebrava-lhe os ossos.
Ás vezes, pensando irritar o abbade, mostrava-lhe João Eduardo, batendo d'alto no hombro do rapaz, n'uma
caricia de amador, como um cavallo favorito:
--Veja-me isto! Já ia dando cabo d'um. E ainda ha de matar dois ou tres... E se o prenderem hei de eu livral-o
da forca!
--Isso não é difficil, senhor Morgado, dizia o abbade tomando tranquillamente a sua pitada. Que já não ha
forcas em Portugal...
Então era uma indignação do Morgado. Não havia forcas? E porque não? Porque tinhamos um governo livre
e um rei constitucional! Que se se seguisse a vontade dos padres, havia uma forca em cada praça e uma
fogueira em cada esquina!
--Diga-me uma coisa, snr. Ferrão, o senhor vem defender aqui em minha casa a inquisição?
--Não fallou por medo! Porque sabe perfeitamente que lhe enterrava uma faca no estomago!
E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala, fazendo um vendaval com as abas prodigiosas do seu
robe-de-chambre amarello.
--No fundo um anjo, diria o abbade a João Eduardo. Capaz de dar a camisa mesmo a um padre, se o
soubesse em necessidade... E vossê aqui está bem, João Eduardo... É não lhe reparar nas manias...
Tinha tomado affeição a João Eduardo, o abbade Ferrão: e sabendo por Amelia a famosa legenda do
Communicado quizera, segundo a sua expressão querida, «folhear o homem aqui e além». Conversára com
elle tardes inteiras na rua de loureiros da quinta, na residencia onde João Eduardo se ia fornecer de livros; e
sob o «exterminador de padres», como dizia o Morgado, encontrára um pobre moço sensivel, com uma
religião sentimental, ambições de paz domestica, e prezando muito o trabalho. Então viera-lhe uma idéa que,
sobretudo por lhe ter acudido um dia que sahia das suas devoções ao Santissimo, lhe pareceu descida de
cima, da vontade do Senhor: era o casal-o com Amelia. Não seria difficil levar aquelle coração fraco e terno
a perdoar o erro d'ella; e a pobre rapariga, depois de tantos transes, extincta aquella paixão que lhe entrára
na alma como um sôpro do Demonio, levando-lhe a vontade, a paz e o pudor d'empurrão para o abysmo,
encontraria na companhia de João Eduardo todo um resto de vida calmo, e contente, um canto suave
d'interior, refugio dôce e purificação do passado. Não fallou nem a um, nem a outro, n'esta idéa que o
enternecia. Não era o momento agora, que ella trazia nas entranhas o filho do outro. Mas ia preparando com
amor aquelle resultado,--sobretudo quando estava com Amelia, contando-lhe as suas conversas com João
Eduardo, algum dito muito sensato que elle tivera, os bons cuidados de preceptor que estava desenvolvendo
na educação dos Morgaditos.
--É um bom rapaz, dizia. Homem de familia... D'estes a quem uma mulher póde realmente confiar a sua vida
e a sua felicidade. Se eu pertencesse ao mundo, se tivesse uma filha, dava-lh'a...
Já não podia objectar áquelles elogios persuasivos a antiga, a grande objecção--o Communicado, a
impiedade! O abbade Ferrão destruira-lh'a um dia, com uma palavra:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 243
--Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz não escreveu contra os sacerdotes, escreveu contra os phariseus!
E para attenuar este julgamento severo, o menos caridoso que tivera havia muitos annos, acrescentou:
--Emfim, foi uma falta grave... Mas está muito arrependido. Pagou-o com lagrimas, e com fome.
Fôra tambem por esse tempo que o doutor Gouvéa começára a vir á Ricoça, porque D. Josepha tinha
peorado com os dias mais frios do outono. Amelia, ao principio, á hora da visita, fechava-se no seu quarto,
tremendo á idéa de vêr o seu estado descoberto pelo velho doutor Gouvêa, o medico da casa, aquelle homem
d'uma severidade legendaria. Mas emfim fôra necessario apparecer no quarto da velha, para receber as suas
instrucções de enfermeira sobre as horas dos remedios e as dietas. E um dia que acompanhára o doutor até á
porta, ficou gelada, vendo-o parar, voltar-se para ella cofiando a sua grande barba branca que lhe cahia
sobre o jaquetão de velludo, e dizer-lhe sorrindo:
--Bem, bem, pequena, não te quero mal por isso. Estás na verdade. A natureza manda conceber, não manda
casar. O casamento é uma fórmula administrativa...
Amelia olhava-o, sem o comprehender, com as duas lagrimas muito redondinhas a correrem-lhe devagar pela
face. Elle bateu-lhe com os dedos no queixo, muito paternal:
--Quero dizer que, como naturalista, regosijo-me. Acho que te tornaste util á ordem geral das coisas. Vamos
ao que importa...
--Então não é estupida?... Está bom, tambem t'o perdôo. Está na logica do teu temperamento. Não, não digo
nada, rapariga. Mas p'ra que diabo, então, não casaste tu com esse pobre João Eduardo? Fazia-te tão feliz
como o outro, e já não tinhas de pedir segredo... Emfim, isso para mim é um detalhe secundario... O essencial
é o que te disse... Manda-me chamar. Não te fies muito nos teus santos... Eu entendo mais d'isso que Santa
Brigida ou lá quem é. Que tu és forte, e has de dar um bom mocetão ao Estado.
Todas estas palavras que em parte não comprehendera bem, mas em que sentia uma vaga justificação e uma
bondade d'avô indulgente, sobretudo aquella sciencia que lhe promettia a saude e a que as barbas grisalhas
do doutor, umas barbas de Padre Eterno, davam um ar d'infallibilidade, reconfortaram-na, augmentaram a
serenidade que havia semanas gozava, desde a sua confissão desesperada na capella dos Poyaes.
Ah, fôra decerto Nossa Senhora, compadecida emfim dos seus tormentos, que lhe mandára do céo aquella
inspiração de se ir entregar toda dorida aos cuidados do abbade Ferrão! Parecia-lhe que deixára lá, no seu
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 244
confessionario azul-ferrete, todas as amarguras, os terrores, a negra farrapagem de remorso que lhe abafava
a alma. A cada uma das suas consolações tão persuasivas sentira desapparecer o negrume que lhe tapava o
céo: agora via tudo azul; e quando rezava, já Nossa Senhora não desviava o rosto indignado. É que era tão
differente aquella maneira de confessar do abbade! Os seus modos não eram os do representante rigido d'um
Deus carrancudo; havia n'elle alguma coisa de feminino e de maternal que passava na alma como uma
caricia; em logar de lhe erguer diante dos olhos o sinistro scenario das chammas do Inferno, mostrára-lhe
um vasto céo misericordioso com as portas largamente abertas, e os caminhos multiplicados que lá
conduzem, tão faceis e tão dôces de trilhar que só a obstinação dos rebeldes se recusa a tental-os. Deus
apparecia, n'aquella suave interpretação da outra vida, como um bom bisavô risonho; Nossa Senhora era
uma irmã de caridade; os santos, camaradas hospitaleiros! Era uma religião amavel, toda banhada de graça,
em que uma lagrima pura basta para remir uma existencia de peccado. Que differente da soturna doutrina
que desde pequena a trazia aterrada e tremula! Tão differente--como aquella pequena capella d'aldeia da
vasta massa de cantaria da Sé. Lá, na velha Sé, muralhas da espessura de covados separavam da vida
humana e natural: tudo era escuridão, melancolia, penitencia, faces severas d'imagens; nada do que faz a
alegria do mundo alli entrava, nem o alto azul, nem os passaros, nem o ar largo dos prados, nem os risos dos
labios vivos; alguma flôr que havia era artificial; o enxota-cães lá se postava ao portal para não deixar
passar as criancinhas; até o sol estava exilado, e toda a luz que havia vinha dos lampadarios funebres. E alli,
na capellita dos Poyaes, que familiaridade da natureza com o bom Deus! Pelas portas abertas penetrava a
aragem perfumada das madresilvas; pequerruchos brincando faziam sonoras as paredes caiadas; o altar era
como um jardinete e um pomar; pardaes atrevidos vinham chilrear até junto aos pedestaes das cruzes; ás
vezes um boi grave mettia o focinho pela porta com a antiga familiaridade do curral de Belem, ou uma
ovelha tresmalhada vinha regosijar-se de vêr um da sua raça, o Cordeiro Paschal, dormir regaladamente ao
fundo do altar com a santa cruz entre as patas.
Além d'isso o bom abbade, como elle lhe dissera, «não queria impossiveis». Sabia bem que ella não podia
arrancar n'um momento aquelle amor culpado, que ganhára raizes até ás profundezas do seu sêr. Queria
apenas que quando a assaltasse a idéa de Amaro se abrigasse logo na idéa de Jesus. Com a força colossal de
Satanaz, que tem o poder d'um Hercules, uma pobre rapariga não póde luctar braço a braço: póde sómente
refugiar-se na oração quando o sente, e deixal-o fatigar-se de rugir e espumar em torno d'esse asylo
impenetravel. Elle mesmo cada dia a ia ajudando n'aquella repurificação da alma, com uma solicitude de
enfermeiro: fôra elle que lhe marcára, como um ensaiador n'um theatro, a attitude que devia ter na primeira
visita de Amaro á Ricoça; era elle que chegava, com alguma breve palavra reconfortante como um cordial,
se a via vacillar n'aquella lenta reconquista da virtude; se a noite fôra agitada das lembranças calidas dos
prazeres passados, era durante toda a manhã uma boa palestra, sem tom pedagogico, em que lhe mostrava
familiarmente que o céo lhe daria alegrias maiores que o quarto enxovalhado do sineiro. Chegára, com uma
subtileza de theologo, a demonstrar-lhe que no amor do parocho não havia senão brutalidade e furor bestial;
que, dôce como era o amor do homem, o amor do padre só podia ser uma explosão momentanea do desejo
comprimido; quando tinham começado as cartas do parocho, analysára-lh'as phrase a phrase, revelando-lhe
o que ellas continham de hypocrisia, de egoismo, de rhetorica, e de desejo torpe...
Ia-a assim lentamente desgostando do parocho. Mas não a desgostava do amor legitimo, purificado pelo
sacramento; conhecia bem que ella era toda de carne e de desejos, e que lançal-a violentamente no
mysticismo seria apenas torcer-lhe um momento o instincto natural e não crear-lhe uma paz duradoura. Não
tentava arrancal-a bruscamente á realidade humana; elle não a queria para freira; só desejava que aquella
força amante que sentia n'ella servisse á alegria d'um esposo e á util harmonia d'uma familia, e não se
gastasse erradamente em concubinagens casuaes... No fundo, o bom Ferrão preferiria decerto na sua alma
de sacerdote que a rapariga se separasse absolutamente de todos os interesses egoistas do amor individual, e
se désse, como irmã da caridade, como enfermeira d'um recolhimento, ao amor mais largo de toda a
humanidade. Mas a pobre Ameliasita tinha a carne muito bonita e muito fraca; não seria prudente assustal-a
com sacrificios tão altos; era toda mulher--toda mulher devia ficar; limitar-lhe a acção era estragar-lhe a
utilidade. Christo não lhe bastava com os seus membros ídeaes pregados na cruz: era-lhe necessario um
homem como todos, de bigode e chapéo alto. Paciencia! Que ao menos elle fosse um esposo sob a
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 245
legitimação sacramental...
Assim a ia curando d'aquella paixão morbida com uma direcção de todos os dias, uma d'estas persistencias
de missionario que só dá a fé sincera, pondo a subtileza d'um casuista ao serviço da moralidade d'um
philosopho, paternal e habil--uma cura maravilhosa de que o bom abbade em segredo tirava alguma vaidade.
E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu que emfim a paixão por Amaro já não era na alma d'ella um
sentimento vivo; mas estava morto, embalsamado, arrumado no fundo da sua memoria como n'um jazigo,
escondido já sob a delicada florescencia d'uma virtude nova. Assim julgava pelo menos o bom
Ferrão--vendo-a agora alludir ao passado com o olhar tranquillo, sem aquelles rubores que outr'ora lhe
escaldavam a face ao simples nome de Amaro.
Ella, com effeito, já não pensava no senhor parocho com a commoção d'outr'ora: o terror do peccado, a
influencia penetrante do abbade, aquella brusca separação do meio devoto em que o seu amor se
desenvolvera, o gozo que sentia n'uma serenidade maior, sem sustos nocturnos e sem a inimizade de Nossa
Senhora, tudo concorrêra para que o fogo ruidoso d'aquelle sentimento se fosse reduzindo a alguma braza
que rebrilhava surdamente. O parocho estivera ao principio na sua alma com o prestigio d'um idolo coberto
d'oiro; mas tantas vezes, desde a sua gravidez, sacudira, nas horas de terror religioso ou de arrependimento
hysterico, aquelle idolo, que todo o dourado lhe ficára nas mãos, e a fórma trivial e escura que apparecia por
baixo já não a deslumbrava; viu por isso o abbade derrubar-lh'o inteiramente, sem chorar e sem luctar. Se
ainda pensava em Amaro, é porque não podia deixar de pensar na casa do sineiro; mas o que a tentava ainda
era o prazer e não o parocho.
E com a sua natureza de boa rapariga tinha um reconhecimento sincero pelo abbade. Como dissera a Amaro
n'aquella tarde, «devia-lhe tudo». Era o que sentia agora tambem pelo doutor Gouvêa, que vinha
regularmente vêr a velha de dois em dois dias. Eram os seus bons amigos, como dois papás que o céo lhe
mandava--um que lhe promettia a saude, outro a graça.
Refugiada n'aquellas duas protecções, gozou uma paz adoravel nas ultimas semanas de outubro. Os dias iam
muito serenos e muito tepidos. Era bom estar no terraço, pelas tardes, n'aquella serenidade outonal dos
campos. O doutor Gouvêa ás vezes encontrava-se com o abbade Ferrão; ambos se estimavam; depois da
visita á velha, iam para o terraço, e começavam logo as suas eternas questões sobre Religião e sobre Moral.
Amelia, com a costura cahida nos joelhos, sentindo os seus dois amigos ao pé, aquelles dois colossos de
sciencia e de santidade, abandonava-se ao encanto da hora suave, olhando a quinta onde as arvores já
empallideciam. Pensava no futuro; elle apparecia-lhe agora facil e seguro; era forte, e o parto, com a
presença do doutor, seria apenas uma hora de dôres; depois, livre d'aquella complicação, voltaria para a
cidade e para a mamã... E então uma outra esperança, que nascera das conversas constantes do abbade
sobre João Eduardo, vinha bailar-lhe na imaginação. Porque não?... Se o pobre rapaz a amasse ainda, e
perdoasse!... Elle nunca lhe repugnára como homem, e seria um casamento esplendido agora que elle tinha a
amizade do Morgado. Dizia-se que João Eduardo ia ser o administrador da casa... E entrevia-se vivendo nos
Poyaes, passeando na caleche do Morgado, chamada para jantar por uma campainha, servida por um
escudeiro de libré... Ficava muito tempo immovel, banhada na doçura d'esta perspectiva, emquanto o abbade
e o doutor ao fundo do terraço pelejavam sobre a doutrina da Graça e da Consciencia, e monotonamente a
agua das regas murmurava no pomar.
Foi por este tempo que D. Josepha, inquieta de não vêr apparecer o senhor parocho, mandára expressamente
o caseiro a Leiria, pedir a sua senhoria a esmola d'uma visita. O homem voltára com a espantosa noticia de
que o senhor parocho partira para a Vieira, e não viria senão d'ahi a duas semanas. A velha choramingou de
desgosto. E Amelia, n'essa noite, no seu quarto, não pôde adormecer--na irritação que lhe dava aquella idéa
do senhor parocho a divertir-se na Vieira, sem pensar n'ella decerto, chalaceando com as senhoras na praia,
e andando de serão em serão...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 246
Com a primeira semana de novembro vieram as chuvas. A Ricoça parecia agora mais lugubre n'aquelles dias
curtos, banhados d'agua, sob um céo de tempestade. O abbade Ferrão, tolhido de rheumatismo, já não
apparecia na quinta. O doutor Gouvêa, depois da visita de meia hora, abalava no seu velho cabriolet. A unica
distracção de Amelia era estar á janella por dentro dos vidros: tres vezes vira passar João Eduardo na
estrada; mas elle ao avistal-a baixava os olhos ou refugiava-se mais sob o guardachuva.
A Dionysia vinha tambem frequentemente: devia ser a parteira, apesar do doutor Gouvêa ter aconselhado a
Michaela, matrona d'uma experiencia de trinta annos. Mas Amelia «não queria mais gente no segredo», e
além d'isso Dionysia trazia-lhe as noticias d'Amaro, que ella sabia pela cozinheira. O senhor parocho
tinha-se achado tão bem na Vieira que se ia demorar até dezembro. Aquelle «procedimento infame»
indignava-a: não duvidava que o parocho queria estar longe quando chegassem os transes, os perigos do
parto. Além d'isso era decidido d'ha muito que a criança havia de ser entregue a uma ama de ao pé de
Ourem, que a criaria na aldeia: e agora o tempo chegava, e a ama não estava fallada, e o senhor parocho
apanhava conchinhas á beira-mar!...
--Ah! não me parece bem, não. Que eu podia fallar á ama... Mas bem vê, são coisas muito sérias... O senhor
parocho é que se encarregou de tudo...
--É infame!
Além d'isso ella descuidára-se do enxoval--e alli estava na vespera de ter a criança, sem um trapo para a
cobrir, sem dinheiro para lh'o comprar! A Dionysia tinha-lhe mesmo offerecido algumas peças de enxoval,
que uma mulher que ella tivera em casa lhe deixára empenhadas. Mas Amelia recusára-se a que o seu filho
usasse cueiros alheios, trazendo-lhe talvez um contagio de doença ou uma sorte infeliz.
Além d'isso as impertinencias da velha tornavam-se odiosas. A pobre D. Josepha, privada dos auxilios
devotos d'um padre, um verdadeiro padre (não um abbade Ferrão), sentia a sua velha alma indefesa exposta
a todas as audacias de Satanaz: a visão singular que tivera de S. Francisco Xavier nú, repetia-se agora com
uma insistencia pavorosa a respeito de todos os santos: era toda uma côrte do céo, arrojando tunicas e
habitos, e bailando-lhe na imaginação sarabandas em pêllo: e a velha estava morrendo da perseguição
d'estes espectaculos dispostos pelo demonio. Reclamára o padre Silverio, mas parecia que um rheumatismo
geral tolhia todo o clero diocesano: desde o principio do inverno o Silverio estava tambem de cama. O
abbade da Cortegassa, chamado urgentemente, veio--mas para lhe communicar a receita nova que
descobrira de fazer bacalhau à biscainha... Esta falta d'um padre virtuoso dava-lhe um humor feroz, que
recahia sobre Amelia n'uma chuva de impertinencias.
E a boa senhora estava pensando sériamente em mandar a Amor pelo padre Brito--quando uma tarde, ao fim
do jantar, inesperadamente, o senhor parocho appareceu!
Vinha magnifico, trigueiro do sol e do ar do mar, de casaco novo e botins de verniz. E palrando longamente
ácerca da Vieira, dos conhecidos que estavam, da pesca que fizera, dos soberbos quinos fazia passar
n'aquelle triste quarto de doente velha todo um sopro vivificante da vida divertida á beira-mar. D. Josepha
tinha duas lagrimas nas palpebras do gozo de vêr o senhor parocho, de o ouvir.
--E a mamã passa bem, disse elle a Amelia. Já tem os seus trinta banhos. Ganhou outro dia quinze tostões a
uma batotinha que se arranjou... E por cá que têm feito?
Então a velha rompeu em queixumes amargos: Uma solidão! Um tempo de chuva! Uma falta de amizades!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 247
Ai! ella estava alli a perder a sua alma n'aquella quinta fatal...
--Pois eu, disse o padre Amaro traçando a perna, dei-me tão bem que estou com idéas de voltar para a
semana.
--Sim, disse elle. Se o senhor chantre me der uma licença d'um mez, vou lá passal-o... Fazem-me uma cama
na sala de jantar do padre-mestre, e tomo um par de banhos... Estava farto de Leiria, e d'aquelle
aborrecimento...
Elle galhofou:
--Eu não sei, disse a velha com azedume, se os outros--e accentuou com rancor a palavra--se os outros não
precisam do senhor parocho... Eu é que não estou bem acompanhada, estou aqui a perder a minha alma...
Que as companhias que ahi vêm não dão honra nem proveito.
--E de mais a mais o senhor abbade Ferrão tem estado doente... Está com rheumatismo. Sem elle a casa
parece uma prisão.
D. Josepha deu um risinho d'escarneo. E o padre Amaro, erguendo-se para sahir, lamentou o bom abbade:
--Coitado! Santo homem... Hei de ir vêl-o em tendo vagar. Pois ámanhã cá appareço, D. Josepha, e havemos
de pôr essa alma em paz... Não se incommode, snr.^a D. Amelia, eu sei agora o caminho.
Mas ella insistiu em o acompanhar. Atravessaram o salão sem uma palavra. Amaro calçava as suas luvas
novas de pellica preta. E no alto da escada, muito ceremoniosamente, tirando o chapéo:
--Minha senhora...
E Amelia ficou petrificada vendo-o descer muito tranquillo--como se ella lhe fosse mais indifferente que os
dois leões de pedra, que em baixo dormiam com o focinho nas patas.
Foi para o quarto chorar de bruços sobre a cama, de raiva e de humilhação. O infame! E nem uma palavra
sobre o filho, sobre a ama, sobre o enxoval! Nem um olhar d'interesse para o seu corpo desfigurado por
aquella prenhez que elle lhe dera! Nem uma queixa irritada por todos os desprezos que ella lhe mostrára!...
Nada! Calçava as luvas, com o chapéo ao lado. Que indigno!
Ao outro dia o padre voltou mais cedo. Esteve muito tempo fechado no quarto com a velha.
Amelia, impaciente, rondava no salão com os olhos como carvões. Elle appareceu emfim, como na vespera,
calçando as suas luvas com um ar prospero.
--Minha senhora...
--Infame!
--Minha senhora...--repetiu.
O primeiro pensamento d'Amelia foi denuncial-o ao vigario geral. Depois passou a noite escrevendo-lhe uma
carta--tres paginas de accusações e de lastimas. Mas toda a resposta d'Amaro, ao outro dia, mandada
verbalmente pelo Joãosito da quinta, foi «que talvez apparecesse por lá na quinta-feira».
Teve outra noite de lagrimas--emquanto na rua das Sousas o padre Amaro esfregava as mãos, no regosijo do
seu «famoso estratagema». E todavia não o concebera elle mesmo; tinha-lhe sido suggerido na Vieira, onde
fôra para desabafar com o padre-mestre e espalhar a mágoa nos ares da praia; fôra lá que elle o aprendera,
o «famoso estratagema», n'uma soirée, ouvindo dissertar sobre o amor o brilhante Pinheiro, premiado em
direito e gloria d'Alcobaça.
--Eu n'isso, minhas senhoras--dizia o Pinheiro, passando a mão pela cabelleira de poeta, ao semi-círculo de
damas que pendiam dos seus labios d'ouro--eu n'isso sou da opinião de Lamartine (era alternadamente da
opinião de Lamartine ou de Pelletan). Digo como Lamartine: a mulher é igual á sombra; se correis atraz
d'ella, foge-vos; se fugis d'ella, corre atraz de vós!
Houve um muito bem, exclamado com convicção: mas uma senhora de grandes proporções, mãi de quatro
deliciosos anjos todos Marias (como dizia o Pinheiro), quiz explicações, porque nunca tinha visto fugir uma
sombra.
--É muito facil d'observar, snr.^a D. Catharina. Colloque-se vossa excellencia na praia, quando o sol começa
a declinar, com as costas para o astro. Se vossa excellencia caminha em frente, perseguindo a sombra, ella
vai-lhe adiante, fugindo...
Mas o parocho não o escutava; bailava-lhe já na imaginação «o famoso estratagema». Ah! mal voltasse a
Leiria, havia de tratar Amelia como uma sombra e fugir-lhe para ser seguido...--E o resultado delicioso alli
estava--tres paginas de paixão, com manchas de lagrimas no papel.
Na quinta-feira appareceu, com effeito. Amelia esperava-o no terraço, d'onde estivera desde manhã vigiando
a estrada com um binoculo de theatro. Correu a abrir-lhe o portãosinho verde no muro do pomar.
--Sósinha?
--A madrinha está a dormir e a Gertrudes foi á cidade... Tenho estado toda a manhã aqui ao sol.
Amaro ía penetrando pela casa, sem responder; diante d'uma porta aberta parou, vendo um grande leito de
docel, e em redor cadeiras de couro de convento.
--É.
--Muito melhor que o da rua da Misericordia. E boas vistas... São as terras do Morgado, além...
Elle riu:
--É boa! E porque não respondeste tu ás minhas? Quem começou? Foste tu. Dizes que não queres peccar
mais. Tambem eu não quero peccar mais. Acabou-se...
--Mas não é isso! exclamou ella pallida d'indignação. É que ha a pensar na criança, na ama, no enxoval...
Não é abandonar-me p'r'áqui!...
--Peço perdão... Eu prezo-me de ser um cavalheiro. Tudo isso ha de ficar arranjado antes de voltar p'r'á
Vieira...
Puzera-lhe fortemente as mãos nos hombros, retendo-o, apoderando-se d'elle: e alli mesmo, sem reparar na
porta apenas cerrada, abandonou-se-lhe como outr'ora.
D'ahi a dois dias o abbade Ferrão appareceu restabelecido do seu ataque de rheumatismo. Contou a Amelia
a bondade do Morgado, que chegára a mandar-lhe todas as tardes, n'um apparelho de lata com agua quente,
uma gallinha cozida em arroz. Mas era sobretudo a João Eduardo que devia a caridade melhor; todas as
suas horas vagas as passava ao pé da cama, lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar, ficando com elle até á uma
hora da noite n'um zelo de enfermeiro. Que rapaz! que rapaz!
--Diga-me, dá licença que eu lhe conte tudo, que lhe explique?... Que arranje que elle perdôe. e esqueça... E
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 250
Era n'essa noite que Amaro devia entrar pelo portalzinho do pomar de que Amelia lhe dera a chave.
Infelizmente tinham esquecido a matilha do caseiro. E apenas Amaro pôz o pé dentro do pomar, rompeu pelo
silencio da noite escura um tão desabrido ladrar de cães--que o senhor parocho abalou pela estrada, batendo
o queixo de terror.
XXIV
Amaro n'essa manhã mandou á pressa chamar a Dionysia, apenas recebeu o seu correio. Mas a matrona que
estava no mercado veio tarde, quando elle á volta da missa acabava d'almoçar.
--O bom successo da pequena?... Entre quinze a vinte dias... Porquê, ha novidade?
Havia; e o parocho leu-lhe então em confidencia uma carta que tinha ao lado.
Era do conego, que escrevia da Vieira, dizendo «que a S. Joanneira tinha já trinta banhos e queria voltar!
Eu, (acrescentava), perco quasi todas as semanas tres, quatro banhos, de proposito para os espaçar e dar
tempo, porque cá a minha mulher já sabe que eu sem os meus cincoenta não vai. Ora já tenho quarenta, veja
lá vossê. Demais por aqui começa a fazer frio devéras. Já se tem retirado muita gente. Mande-me pois dizer
pela volta do correio em que estado estão as coisas.» E n'um post-scriptum dizia: «Tem vossê pensado que
destino se ha de dar ao fructo?»
E Amaro alli mesmo escreveu a resposta ao conego, que a Dionysia devia levar ao correio: «A coisa póde
estar prompta d'aqui a vinte dias. Suspenda por todo o modo a volta da mãi! Isso de modo nenhum! Diga-lhe
que a pequena não escreve nem vai, porque a excellentissima mana passa sempre adoentada.»
E traçando a perna:
--E agora, Dionysia, como diz o nosso conego, que destino se ha de dar ao fructo?
--Eu pensei que o senhor parocho tinha arranjado tudo... Que se ia dar a criança a criar fóra da terra...
--Está claro, está claro, interrompeu o parocho com impaciencia. Se a criança nascer viva é evidente que se
ha de dar a criar, e que ha de ser fóra da terra... Mas ahi é que está! Quem ha de ser a ama? É isso que eu
quero que vossê me arranje. Vai sendo tempo...
A Dionysia pareceu muito embaraçada. Nunca gostára de inculcar amas. Ella conhecia uma boa, mulher
forte e de muito leite, pessoa de confiança; mas infelizmente entrára no hospital, doente... Sabia d'outra
tambem, até tivera negocios com ella. Era uma Joanna Carreira. Mas não convinha porque vivia justamente
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 251
--Qual não convém! exclamou o parocho. Que tem que viva na Ricoça?... Em a rapariga convalescendo as
senhoras vêm p'r'á cidade, e não se falla mais na Ricoça.
Mas a Dionysia procurava ainda, arranhando devagar o queixo. Tambem sabia d'outra. Essa morava para o
lado da Barrosa, a boa distancia... Criava em casa, era o seu officio... Mas n'essa nem fallar!
--Ai, menino, eu não gosto d'accusar ninguem. Mas, está provado, é uma tecedeira d'anjos!
--Uma quê?
A Dionysia gaguejou-lhe uma explicação. Eram mulheres que recebiam crianças a criar em casa. E sem
excepção as crianças morriam... Como tinha havido uma muito conhecida que era tecedeira, e as criancinhas
iam para o céo... D'ahi é que vinha o nome.
--Sem falhar.
Então a excellente matrona declarou que não queria accusar ninguem! Ella não fôra espreitar. Não sabia o
que se passava nas casas alheias. Mas as crianças morriam todas...
--Mas quem vai então entregar uma criança a uma mulher d'essas?
Houve um silencio. O parocho continuava o seu passeio do lavatorio para a janella, de cabeça baixa.
--Mas que proveito tira a mulher, se as crianças morrem? perguntou de repente. Perde as soldadas...
--É que se lhe paga um anno de criação adiantado, senhor parocho. A dez tostões ao mez, ou quartinho,
segundo as posses...
--Bem, Dionysia, vejo que a unica coisa a fazer é fallar á tal ama que vive ao pé da Ricoça, á Joanna
Carreira. Eu arranjarei isso...
A Dionysia fallou ainda das peças d'enxoval que já tinha comprado por conta do parocho, d'um berço muito
barato em segunda mão que vira no Zé Carpinteiro--e ia sahir com a carta para o correio, quando o parocho
erguendo-se e galhofando:
--Ó tia Dionysia, essa coisa da tecedeira d'anjos é uma historia, hein?
Então a Dionysia escandalisou-se. O senhor parocho sabia que ella não era mulher d'intrigas. Conhecia a
tecedeira d'anjos ha mais d'oito annos, de lhe fallar e de a vêr na cidade quasi todas as semanas. Ainda no
sabbado passado a vira sahir da taberna do Grego... O senhor parocho já tinha ido á Barrosa?
--Pois bem, sabe o começo da freguezia. Ha um muro cahido. Depois é um caminho que desce. Ao fundo
d'esse corregosito encontra um poço atulhado. Adiante, retirada, ha uma casita que tem um alpendre. É lá
que ella vive... Chama-se Carlota... Isto é p'ra lhe mostrar que sei, amiguinho!
O parocho ficou toda a manhã em casa, passeando pelo quarto, alastrando o chão de pontas de cigarros. Alli
estava agora diante d'aquelle episodio fatal que até ahi fôra apenas um cuidado distante--dispôr do filho!
Era bem grave entregal-o assim a uma ama desconhecida, na aldeia. A mãi, naturalmente, havia de querer ir
a todo o momento vêl-o, a ama poderia fallar aos visinhos. O rapaz viria a ser, na freguezia, o filho do
parocho... Algum invejoso, que lhe cubiçasse a parochia, poderia denuncial-o ao senhor vigario geral.
Escandalo, sermão, devassa: e, se não fosse suspenso, poderia como o pobre Brito ser mandado para longe,
para a serra, outra vez para os pastores... Ah! se o fructo nascesse morto! Que solução natural e perpetua! E
para a criança, uma felicidade! Que destino podia elle ter n'este duro mundo? Era o engeitado, era o filho do
padre. Elle era pobre, a mãi pobre... O rapaz cresceria na miseria, vadiando, apanhando o estrume das
bestas, ramelloso e tosco... De necessidade em necessidade iria conhecendo todas as fórmas do inferno
humano: os dias sem pão, as noites regeladas, a brutalidade da taberna, a cadeia por fim. Uma enxerga na
vida, a valla na morte... E se morresse--era um anjinho que Deus recolhia ao paraiso...
E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem posto, tecedeira d'anjos... Com
razão, quem prepara uma criança para a vida com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos e para as
lagrimas... Mais vale torcer-lhe o pescoço, e mandal-a direita para a eternidade bemaventurada! Olha elle!
Que vida a sua, n'esses trinta annos atraz! Uma infancia melancolica, com aquella pêga da marqueza
d'Alegros; depois a casa na Estrella, com o alarve do tio toucinheiro; e d'ahi as clausuras do seminario, a
neve constante de Feirão, e alli em Leiria tantos transes, tanta amargura... Se lhe tivessem esmagado o
craneo ao nascer, estava agora com duas azas brancas, cantando nos córos eternos.
Mas emfim não havia que philosophar: era partir para Poyaes e fallar á ama, á snr.^a Joanna Carreira.
Sahiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa. Ao pé da ponte veio-lhe porém de repente a idéa, a
curiosidade de ir á Barrosa vêr a tecedeira... Não lhe fallaria: examinaria apenas a casa, a figura da mulher,
os aspectos sinistros do sitio... Demais como parocho, como auctoridade ecclesiastica, devia observar
aquelle peccado organisado n'um recanto d'estrada, impune e rendoso. Podia mesmo denuncial-o ao senhor
vigario geral ou ao secretario do governo civil...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 253
Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas. Por aquella tarde suave e lustrosa fazia-lhe bem um passeio a
cavallo. Não hesitou, então; foi alugar uma egoa á estalagem do Cruz; e d'ahi a pouco, d'espora no pé
esquerdo, choutava a direito pelo caminho da Barrosa.
Ao chegar ao corrego, de que lhe fallára a Dionysia, apeou, foi andando com a egoa pela arreata. A tarde
estava admiravel; muito alto no azul, uma grande ave fazia semi-circulos vagarosos.
Encontrou emfim o poço atulhado ao pé de dois castanheiros onde passaros ainda chilreavam; adiante n'um
terreno plano, muito isolada, lá estava a casa com o seu alpendre: o sol declinando batia-lhe na unica janella
do lado, accendendo-a n'um resplendor d'ouro e braza; e, muito delgado, elevava-se da chaminé um fumo
claro no ar sereno.
Uma grande paz estendia-se em redor; no monte, escuro da rama dos pinheiros baixos, a capellinha da
Barrosa punha a alvura alegre da sua parede muito caiada.
Amaro ia imaginando então a figura da tecedeira; sem saber porque, suppunha-a muito alta, com um carão
trigueiro onde dois olhos de bruxa refulgiam.
Defronte da casa prendeu a egoa á cancella, e olhou pela porta aberta: era uma cozinha terrea, de grande
lareira, com sahida para o pateo estradado de matto onde dois bacorinhos foçavam. Na prateleira da
chaminé rebrilhava a louça branca. Dos lados pendiam grandes cassarolas de cobre, d'um lustro de casa
rica. N'um velho armario meio aberto branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem que uma claridade
parecia sahir do aceio e do arranjo das coisas.
Amaro então bateu forte as palmas. Uma rôla pulou assustada, dentro da sua gaiola de vime pendurada da
parede. Depois chamou alto:
--Senhora Carlota!
Immediatamente do lado do pateo uma mulher appareceu, com um crivo na mão. E Amaro, surprehendido,
viu uma agradavel creatura de quasi quarenta annos, forte de peitos, ampla de encontros, muito branca no
pescoço, com duas ricas arrecadas, e uns olhos negros que lhe lembraram os d'Amelia ou antes o brilho mais
repousado dos da S. Joanneira.
Assombrado, balbuciou:
Não se enganára, era ella; mas com a idéa que a figura medonha «que tecia os anjos» devia estar algures,
agachada n'um vão tenebroso da casa, perguntou ainda:
Justamente o marido sahia do pateo,--medonho, esse, quasi anão, com a cabeça embrulhada n'um lenço e
muito enterrada nos hombros, a face d'uma amarellidão de cera oleosa e lustrosa; no queixo annelavam-se
os pêllos raros d'uma barba negra; e sob as arcadas fundas sem sobrancelhas, vermelhejavam dois olhos
raiados de sangue, olhos d'insomnia e de bebedeira.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 254
--Para o seu serviço, vossa senhoria quer alguma coisa? disse, muito collado á saia da mulher.
Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando uma historia que ia forjando laboriosamente. Era uma
parente que ia ter o seu bom successo. O marido não pudéra vir fallar-lhes porque estava doente... Queriam
uma ama para lhes ir para casa, e tinham-lhe dito...
--Não, fóra de casa, não. Cá em casa--disse o anão que não se despegava das saias da mulher, mirando o
parocho de lado com o seu medonho olho injectado.
Ah, então tinham-n'o informado mal... Sentia; mas o que o parente queria era uma ama para casa.
Amaro arranjou a espora no pé, deu um puxão ao estribo, demorando-se, rondando em torno da
cavalgadura:
O anão voltou-se, trocou um olhar com a mulher que ficára á porta da cozinha.
--Mas sendo a coisa de noite, agora com este frio, é matar a criança...
Então os dois, fallando ao mesmo tempo, affirmaram que não lhe fazia mal. Havendo, já se sabe, carinho e
agasalho...
Amaro cavalgou vivamente a egoa, deu as boas tardes, e trotou pelo corrego.
Amelia agora começava a andar assustada. De dia e de noite só pensava n'aquellas horas, que se
avisinhavam, em que devia sentir chegarem as dôres. Soffria mais que durante os primeiros mezes; tinha
tonturas, perversões de gosto--que o doutor Gouvêa observava, franzindo a testa descontente. As noites eram
más, n'uma turbação de pesadêlos. Já não eram as allucinações religiosas: isso cessára n'uma subita
aplacação de todo o terror devoto: não sentiria menos temor de Deus, se já fosse uma santa canonisada.
Eram outros medos, sonhos em que o parto se lhe representava de modos monstruosos: ora era um sêr
medonho que lhe saltava das entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era uma cobra infindavel que lhe
sahia de dentro, durante horas, como uma fita de leguas, enrolando-se no quarto em roscas successivas que
ganhavam a altura do tecto: e acordava em tremuras nervosas que a deixavam prostrada.
Mas anciava por ter a criança. Estremecia á idéa de vêr um dia inesperadamente a mãi apparecer na Ricoça.
Ella escrevera-lhe, queixando-se do senhor conego que a retinha na Vieira, dos temporaes que já reinavam,
da solidão que se ia fazendo na praia. Além d'isso D. Maria da Assumpção voltára; felizmente, uma noite
providencialmente gelada dera-lhe durante a jornada uma inflammação dos bronchios--e estava de cama
para semanas, segundo dizia o doutor Gouvêa. O Libaninho, esse, tambem viera á Ricoça; e sahira
lastimando-se de não ter visto a Amelinha «que tinha n'esse dia enxaqueca».
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 255
--Se isto se demora mais quinze dias, vem-se a descobrir tudo, dizia ella, choramigando, a Amaro.
--O que tu me tens feito soffrer! suspirava ella, o que tu me tens feito soffrer!
Elle calava-se resignado--muito bom, muito terno agora com ella. Vinha-a vêr quasi todas as manhãs, porque
não queria pelas tardes encontrar o abbade Ferrão.
Tranquillisára-a a respeito da ama, dizendo-lhe que fallára á mulher da Ricoça inculcada pela Dionysia. Era
uma escolha rica a snr.^a Joanna Carreira! Mulher forte como um carvalho, com barricas de leite, e dentes
de marfim...
Tomavam-n'a agora pela primeira vez enthusiasmos de mãi. Desesperava-se em não poder ella mesma
costurar o resto do enxoval. Queria que o rapaz--porque havia de ser um rapaz!--se chamasse Carlos.
Scismava-o já homem, e official de cavallaria. Enternecia-se com a esperança de o vêr gatinhar...
Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os dias era a idéa de elle ser um engeitadinho!
Um dia veio ao abbade com um plano extraordinario «que lhe inspirára Nossa Senhora»: ella casaria já com
João Eduardo, mas o rapaz devia por uma escriptura adoptar o Carlinhos! Que para que o anjinho não fosse
um engeitado, casava até com um calceteiro da estrada! E apertava as mãos do abbade, n'uma supplicação
loquaz. Que convencesse João Eduardo, que désse um papá ao Carlinhos! Queria ajoelhar aos pés d'elle, do
senhor abbade, que era o seu pai e o seu protector.
--Oh, minha senhora, socegue, socegue. Esse é tambem o meu desejo, como lhe disse. E ha de arranjar-se,
mas mais tarde, disse o bom velho, atarantado d'aquella excitação.
Depois, d'ahi a dias, foi outra exaltação; descobrira de repente, uma manhã, que não devia trahir Amaro,
«porque era o papá do seu Carlinhos». E disse-o ao abbade; fez córar os sessenta annos do bom velho,
palrando muito convencidamente dos seus deveres d'esposa para com o parocho.
--Minha senhora, que está a dizer? que está a dizer? Caia em si... Que vergonha!... Imaginei que lhe tinham
passado essas loucuras.
--Mas é o pai do meu filho, senhor abbade, disse ella, olhando-o muito séria.
Fatigou então Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe cada meia hora que era o
«papá do seu Carlinhos».
--Bem sei, filha, bem sei, dizia elle impaciente. Obrigado. Não me gabo da honra...
Ella chorava, então, aninhada no sofá. Era necessaria toda uma complicação de caricias para a calmar.
Fazia-o sentar n'um banquinho junto d'ella; tinha-o alli como um boneco, contemplando-o, coçando-lhe
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 256
devagarinho a corôa; queria que se tirasse a photographia ao Carlinhos para a trazerem ambos n'uma
medalha ao pescoço; e se ella morresse, elle havia de levar o Carlinhos á sepultura, ajoelhal-o, pôr-lhe as
mãosinhas, fazel-o rezar pela mamã. Atirava-se então para a almofada, tapando o rosto com as mãos:
Ah, aquellas manhãs na Ricoça! Eram para elle como uma penalidade injusta. Ao entrar tinha de ir á velha
escutar-lhe as lamurias. Depois, era aquella hora com Amelia, que o torturava com as pieguices d'um
sentimentalismo hysterico,--estirada no sofá, grossa como um tonel, com a face entumecida, os olhos
papudos...
N'uma d'essas manhãs, Amelia, que se queixava de caimbras, quiz dar um passeio pelo quarto apoiada a
Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu velho robe-de-chambre, quando se sentiram, em baixo no caminho,
passos de cavallos: chegaram á janella--mas Amaro recuou vivamente, deixando Amelia que embasbacára
com a face contra a vidraça. Na estrada, galhardamente montado n'uma egoa baia, passava João Eduardo de
paletot branco e chapéo alto; ao lado trotavam os dois Morgaditos, um n'um poney, outro acorreado n'um
burro; e atraz, a distancia, n'um passo de respeito e de cortejo, um criado de farda, de bota de cano e
esporões enormes, com uma libré muito larga que lhe fazia na ilharga rugas grotescas, e no chapéo a roseta
escarlate. Ella ficára assombrada, seguindo-os até que as costas do lacaio desappareceram à esquina da
casa. Sem uma palavra, veio sentar-se no sofá. Amaro, que continuava passeando pelo quarto, teve então um
risinho sarcastico:
Ella não respondeu, muito escarlate. E Amaro, chocado, sahiu atirando com a porta, foi para o quarto de D.
Josepha contar-lhe a cavalgada, e vituperar o Morgado.
--Um excommungado de criado de farda! exclamava a boa senhora, com as mãos apertadas na cabeça. Que
vergonha, senhor parocho, que vergonha para a nobreza d'estes reinos!
Desde esse dia Amelia não tornou a choramigar, se pela manhã o senhor parocho não vinha. Quem esperava
agora com impaciencia era o senhor abbade Ferrão, pela tarde. Apoderava-se d'elle, queria-o n'uma cadeira
junto ao canapé: e depois de rodeios demorados d'ave que tenteia a presa, cahia sobre a pergunta fatal--se
tinha visto o senhor João Eduardo?
Queria saber o que elle dissera, se fallára n'ella, se a avistára á janella. Torturava-o com curiosidades sobre
a casa do Morgado, a mobilia da sala, o numero de lacaios e de cavallos, se o criado de farda servia á
mesa...
E o bom abbade respondia com paciencia--contente de a vêr esquecida do parocho, occupada de João
Eduardo: tinha agora a certeza que aquelle casamento se faria: ella evitava, de resto, pronunciar sequer o
nome d'Amaro, e uma vez mesmo respondeu ao abbade que lhe perguntava se o senhor parocho voltára á
Ricoça:
--Ai, vem pela manhã vêr a madrinha... Mas eu não lhe appareço, que nem estou decente...
Todo o tempo que podia estar de pé, passava-o agora á janella, muito arranjada da cinta para cima que era
o que se podia vêr da estrada--enxovalhada das saias para baixo. Estava esperando João Eduardo, os
Morgados e o lacaio; e tinha de vez em quando, com effeito, o gozo de os vêr passar, n'aquelle passo bem
lançado de cavallos de preço, sobretudo o da egoa baia de João Eduardo, que elle defronte da Ricoça fazia
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 257
sempre ladear, de chicote atravessado e perna á Marialva, como lhe ensinára o Morgado. Mas era o lacaio,
sobretudo, que a encantava: e com o nariz nos vidros seguia-o n'um olhar guloso, até que á volta da estrada
via desapparecer o pobre velho, de dorso corcovado, com a gola da farda até á nuca e as pernas
bamboleantes.
E para João Eduardo que delicia aquelles passeios com os Morgaditos, na egoa baia! Nunca deixava de ir á
cidade: fazia-lhe bater o coração o som das ferraduras sobre o lagedo: ia passar diante da Amparo da
botica, diante do cartorio do Nunes que tinha a sua banca ao pé da janella, diante da Arcada, diante do
senhor administrador que lá estava na varanda de binoculo para a Telles--e o seu desgosto era não poder
entrar com a egoa, os Morgaditos e o lacaio pelo escriptorio do doutor Godinho que era no interior da casa.
Foi um dia, depois d'um d'esses passeios triumphaes, que voltando ás duas horas da Barrosa, ao chegar ao
Poço das Bentas e ao subir para o caminho de carros, viu de repente o senhor padre Amaro que descia
montado n'um garrano. Immediatamente João Eduardo fez caracolar a egoa. O caminho era tão estreito, que
apesar de se chegarem às sebes quasi roçaram os joelhos--e João Eduardo pôde então, do alto da sua egoa
de cincoenta moedas, agitando ameaçadoramente o chicote, esmagar com um olhar o padre Amaro que se
encolhia muito pallido, com a barba por fazer, a face biliosa, esporeando ferozmente o garrano ronceiro. No
alto do caminho João Eduardo ainda parou, voltou-se sobre a sella, e viu o parocho que apeava á porta do
casebre isolado onde ha pouco, ao passar, os Morgaditos tinham rido «do anão».
Ao passar na Ricoça, João Eduardo, como sempre, poz a passo a egoa baia. Mas não viu por traz dos vidros
a costumada face pallida sob o lenço escarlate. As portadas da janella estavam meio cerradas; e ao portão,
desatrellado com os varões em terra, o cabriolet do doutor Gouvêa.
É que tinha chegado emfim o dia! N'essa manhã viera da Ricoça um moço da quinta com um bilhete de
Amelia quasi inintelligivel--Dionysia depressa, a coisa chegou! Trazia ordem tambem de ir chamar o senhor
doutor Gouvêa. Amaro foi elle mesmo avisar a Dionysia.
Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josepha, a propria D. Josepha, lhe inculcára uma ama--que elle já ajustára,
grande mulher, rija como um castanheiro. E agora combinaram rapidamente que n'essa noite Amaro se
postaria com a ama á portinha do pomar, e Dionysia viria dar-lhe a criança bem atabafada.
--Ás nove da noite, Dionysia. E não nos faça esperar!--recommendou-lhe ainda Amaro vendo-a abalar n'um
espalhafato.
Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face a face com aquella difficuldade que elle sentia como uma
coisa viva fixal-o e interrogal-o:--Que havia de fazer á criança? Tinha ainda tempo d'ir aos Poyaes ajustar a
outra ama, a boa ama que a Dionysia conhecia; ou podia montar a cavallo e ir á Barrosa fallar á Carlota...
E alli estava, diante d'aquelles dois caminhos, hesitando n'uma agonia. Queria serenar, discutir aquelle caso
como se fosse um ponto de theologia, pesando-lhe os prós e os contras: mas tinha temerariamente diante de
si, em logar de dois argumentos, duas visões:--a criança a crescer e a viver nos Poyaes, ou a criança
esganada pela Carlota a um canto da estrada da Barrosa...--E, passeando pelo quarto, suava d'angustia,
quando no patamar a voz inesperada do Libaninho gritou:
Foi necessario abrir ao Libaninho, apertar-lhe a mão, offerecer-lhe uma cadeira. Mas o Libaninho felizmente
não se podia demorar. Passára na rua, e subira a saber se o amigo parocho tinha noticias d'aquellas
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 258
santinhas da Ricoça.
--Vão bem, vão bem, disse Amaro que obrigava a face a sorrir, a prazentear.
--Eu não tenho podido ir lá, que tenho andado mais occupado!... Estou de serviço no quartel... Não te rias,
parochosinho, que estou lá fazendo muita virtude... Metto-me com os soldadinhos, fallo-lhes das chagas de
Christo...
--Andas a converter o regimento, disse Amaro que mexia nos papeis da mesa, passeava, n'uma inquietação
d'animal preso.
--Não é para as minhas forças, parocho, que se eu pudesse!... Olha, agora vou eu levar a um sargento uns
bentinhos... Foram benzidos pelo Saldanhinha, vão cheios de virtude. Hontem dei outros iguaes a um
anspeçada, perfeito rapaz, um amor de rapaz... Puz-lh'os eu mesmo por baixo da camisola... Perfeito rapaz!...
--Devias deixar esses cuidados pelo regimento ao coronel, disse Amaro abrindo a janella, abafando
d'impaciencia.
--Credo, olha o impio! Se o deixassem desbaptisava o regimento. Pois adeus, parochosinho. Estás
amarellinho, filho... Precisas purga, eu sei o que isso é.
--De quê?
--Foi o padre Saldanha que m'o disse. Diz que o nosso chantre declarára (palavras do Saldanhinha) que lhe
constava que ia na cidade um escandalo com um senhor ecclesiastico... Mas não disse quem nem o quê... O
Saldanha quil-o sondar, mas o chantre diz que recebera só uma denuncia vaga, sem nome... Tenho estado a
pensar: quem será?
--Pataratas do Saldanha...
--Ai, filho! Deus queira que sejam. Que quem folga são os impios... Quando fôres pela Ricoça dá recados
áquellas santinhas...
Amaro ficára aterrado. Era elle decerto, eram os seus amores com Amelia que já iam chegando ao vigario
geral em denuncias tortuosas! E alli vinha agora aquelle filho, criado a meia legua da cidade, ficar como
uma prova viva!... Parecia-lhe extraordinario, quasi sobrenatural, ter o Libaninho, que em dois annos não
lhe viera a casa duas vezes, ter o Libaninho entrado com aquella nova terrivel, quando elle estava alli n'uma
batalha com a consciencia. Era como a Providencia, que sob a fórma grotesca do Libaninho, vinha trazer-lhe
o seu aviso, murmurar-lhe: «Não deixes viver quem te póde trazer o escandalo! Olha que já se suspeita de
ti!»
Era decerto Deus apiedado que não queria que houvesse na terra mais um engeitado, mais um miseravel,--e
que reclamava o seu anjo!...
Não hesitou: partiu para a estalagem do Cruz, e d'ahi a cavallo para a casa de Carlota.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 259
De volta a casa atirou o chapéo para cima da cama, e sentiu emfim um allivio de todo o seu sêr. Estava
acabado! Lá fallára á Carlota e ao anão; lá lhe pagára um anno adiantado; agora era esperar pela noite!...
Mas na solidão do quarto toda a sorte de imaginações morbidas o assaltavam: via a Carlota a esganar a
criancinha rôxa; via os cabos de policia mais tarde a desenterrar o cadaver, o Domingos da administração
redigindo sobre um joelho o auto de corpo de delicto, e elle, de batina, arrastado para a cadeia de S.
Francisco, em ferros, ao lado do anão! Tinha quasi vontade de montar a cavallo, voltar á Barrosa desfazer o
ajuste. Mas uma inercia retinha-o. Depois, nada o forçava á noite a entregar a criança á Carlota... Podia
leval-a bem agasalhada á Joanna Carreira, a boa ama dos Poyaes...
Para escapar áquellas idéas que lhe faziam sob o craneo um ruido de tormenta, sahiu, foi vêr Natario que já
se erguia--e que lhe gritou immediatamente do fundo da poltrona:
João Eduardo passára-lhe na rua, na egoa baia, com os Morgadinhos; e Natario desde então rugia de
impaciencia de estár alli amarrado á cadeira e não poder recomeçar a campanha, expulsal-o por uma boa
intriga da casa do Morgado, arrancar-lhe a egoa e o lacaio.
Deixal-o! quando tinha uma idéa prodigiosa--que era provar ao Morgado, com documentos, que o João
Eduardo era um beato! Que lhe parecia, ao amigo Amaro?
Era engraçado, com effeito. O homem não deixava de o merecer, só pela maneira como olhava para a gente
de bem, do alto da egoa...--E Amaro fazia-se vermelho, ainda indignado do encontro, de manhã, no caminho
de carros da Barrosa.
--Está claro! exclamou Natario. Para que somos nós sacerdotes de Christo? Para exaltar os humildes e
derrubar os soberbos.
D'alli Amaro foi vêr D. Maria da Assumpção--que já se erguera tambem--que lhe fez a historia da sua
bronchite e a enumeração dos ultimos peccados: o peor era que, para se distrahir um bocado na
convalescença, recostava-se por traz da vidraça, e um carpinteiro que mórava defronte embasbacava para
ella; e por influencia do maligno, não tinha forças para se retirar para dentro, e vinham-lhe pensamentos
maus...
E apressou-se a pacificar-lhe os escrupulos--porque a salvação d'aquella velha alma idiota era para elle um
emprego melhor que a mesma parochia.
Já escurecia quando entrou em casa. A Escolastica queixou-se da demora que lhe esturrára o jantar. Mas
Amaro tomou apenas um copo de vinho e uma garfada d'arroz, que enguliu de pé, olhando com terror pela
janella a noite que impassivelmente cahia.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 260
Entrava no quarto a vêr se os candieiros já estavam accêsos, quando o coadjutor appareceu. Vinha fallar-lhe
sobre o baptisado do filho do Guedes, que estava marcado para o dia seguinte ás nove horas.
Temia que o coadjutor visse a alteração que sentia nas faces, ou que se installasse para toda a noite.
--Diz que vem na Nação d'antes d'hontem um artigo muito bom, observou o coadjutor, grave.
Passeava no seu trilho costumado, do lavatorio para a janella; parava ás vezes a rufar nos vidros; já se
tinham accendido os candieiros.
Então o coadjutor, chocado com aquella treva do quarto e aquelle passear de fera n'uma jaula, ergueu-se, e
com dignidade:
--Não!
--Anoitece...
Emfim Amaro desesperado declarou-lhe que tinha uma enxaqueca odiosa, que se ia encostar: e o homem
sahiu, depois de lhe lembrar ainda o baptisado do menino do seu amigo Guedes.
Amaro partiu logo para a Ricoça. Felizmente a noite estava tenebrosa e quente, annunciando chuva. Ia agora
tomado d'uma esperança que lhe fazia bater o coração: era que a criança nascesse morta! E era bem
possivel. A S. Joanneira em nova tivera duas crianças mortas; a anciedade em que vivera Amelia devia ter
perturbado a gestação. E se ella morresse tambem? Então a esta idéa, que nunca lhe acudira, invadiu-o
bruscamente uma piedade, uma ternura por aquella boa rapariga que o amava tanto, e que agora, por obra
d'elle, gritava dilacerada de dôres. E todavia, se ambos morressem, ella e a criança, era o seu peccado e o
seu erro que cahiam para sempre nos escuros abysmos da eternidade... Elle ficava, como antes da sua vinda
a Leiria, um homem tranquillo, occupado da sua igreja, d'uma vida limpa e lavada como uma pagina branca!
Parou junto ao casebre em ruinas á beira da estrada, onde devia estar a pessoa que da Barrosa vinha buscar
a criança: não se tinha decidido se seria o homem ou a Carlota: e Amaro receava encontrar o anão, para lhe
levar o filho, com aquelles olhos raiados d'um sangue mau. Fallou para dentro, para as trevas do casebre:
--Olá!
--Cá está!
Estava contente: parecia-lhe que não tinha nada a temer, se o filho partisse aninhado contra aquelle robusto
seio de quarentona fecunda, tão fresca e tão lavada.
Foi então rondar a casa. Estava apagada e muda, como um empastamento mais denso de sombra n'aquella
lugubre noite de dezembro. Nem uma fenda de luz sahia das janellas do quarto d'Amelia. No ar muito pesado
nenhuma folhagem ramalhava. E a Dionysia não apparecia.
Aquella demora torturava-o. Podia passar gente e vél-o rondar na estrada. Mas repugnava-lhe ir occultar-se
no casebre em ruinas ao pé de Carlota. Foi andando ao comprido do muro do pomar, voltou,--e viu então na
porta envidraçada do terraço uma claridade de luz apparecer.
Correu para a portinha verde do pomar que quasi immediatamente se abriu; e a Dionysia, sem uma palavra,
poz-lhe nos braços um embrulho.
Então o contacto do seu filho, contra o seu peito, desmanchou como um vendaval todas as idéas d'Amaro. O
quê! ir dal-o áquella mulher, á tecedeira d'anjos, que na estrada o atiraria a algum vallado, ou em casa o
arremessaria á latrina? Ah! não, era o seu filho!
Mas que fazer, então? Não tinha tempo de correr aos Poyaes e acordar a outra ama... A Dionysia não tinha
leite... Não o podia levar para a cidade... Oh! que desejo furioso de bater áquella porta da quinta,
precipitar-se para o quarto d'Amelia, metter-lhe o pequerruchinho na cama, muito agasalhado, e todos tres
ficarem alli como no conchego d'um céo! Mas quê, era padre! Maldita fosse a religião que assim o
esmagava!
De dentro do embrulho sahiu um gemido. Correu então para o casebre--quasi esbarrou com a Carlota, que
se apoderou logo da criança.
--Ahi está, disse elle. Mas ouça lá. Isto agora é sério. Agora é outra coisa. Olhe que o não quero morto... É
para o tratar. O que se passou não vale... É para o criar! é para viver. Vossê tem a sua fortuna... Trate
d'elle!...
--Não vai, com mil diabos! É o meu filho! Ha de levar o capote! Não quero que morra de frio!
Atirou-lh'o aos hombros com força, traçando-lh'o sobre o peito, agasalhando a criança;--e a mulher já
enfastiada metteu rapidamente pela estrada.
Amaro ficou alli plantado no meio do caminho, vendo o vulto perder-se na negrura. Então todos os seus
nervos, depois d'aquelle choque, se relaxaram n'uma fraqueza de mulher sensivel--e rompeu a chorar.
Muito tempo rondou a casa. Mas ella permanecia na mesma escuridão, n'aquelle silencio que o aterrava.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 262
Depois, triste e fatigado, veio voltando para a cidade, quando batiam as dez badaladas na Sé.
A essa hora, na sala de jantar da Ricoça, o doutor Gouvêa ceava tranquillamente o frango assado que lhe
preparára a Gertrudes, para depois das canceiras do dia. O abbade Ferrão, sentado junto da mesa,
assistia-lhe á ceia; viera munido dos sacramentos para o caso de haver perigo. Mas o doutor estava
satisfeito; durante as oito horas de dôres a rapariga mostrára-se corajosa; o parto fôra feliz, de resto, e
sahira um rapagão que fazia muita honra ao papá.
O bom abbade Ferrão baixava castamente os olhos áquelles detalhes, no seu pudor de sacerdote.
--E agora, dizia o doutor trinchando o peito do frango, agora que eu introduzi a criança no mundo, os
senhores (e quando digo os senhores, quero dizer a Igreja) apoderam-se d'elle e não o largam até á morte.
Por outro lado, ainda que menos sôfregamente, o Estado não o perde de vista... E ahi começa o desgraçado a
sua jornada do berço á sepultura, entre um padre e um cabo de policia!
--A Igreja, continuava o doutor com serenidade, começa, quando a pobre creatura ainda nem tem sequer a
consciencia da vida, por lhe impôr uma religião...
--Ó doutor, ainda que não seja senão por caridade com a sua alma, devo advertil-o que o sagrado Concilio
de Trento, canon decimo terceiro, commina a pena d'excommunhão contra todo o que disser que o baptismo é
nullo, por ser imposto sem a aceitação da razão.
--Tomo nota, abbade. Eu estou acostumado a essas amabilidades do Concilio de Trento para commigo e
outros collegas...
--Sublime, abbade. Uma assembléa sublime. O Concilio de Trento e a Convenção foram as duas mais
prodigiosas assembléas d'homens que a terra tem presenciado...
O abbade fez uma visagem de repugnacia áquelle cotejo irreverente entre os santos auctores da doutrina e os
assassinos do bom rei Luiz XVI.
--Depois, a Igreja deixa a criança em paz algum tempo emquanto ella faz a sua dentição e tem o seu ataque
de lombrigas...
--Vá, vá, doutor! murmurava o abbade, escutando-o pacientemente, de olhos cerrados--como significando
«anda, anda, enterra bem essa alma no abysmo de fogo e pez»!
--Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros symptomas de razão, continuava o doutor, quando se
torna necessario que elle tenha, para o distinguir dos animaes, uma noção de si mesmo e do universo, então
entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato de seis annos que
não sabe ainda o b-a-bá tem uma sciencia mais vasta, mais certa, que as reaes academias combinadas de
Londres, Berlim e Paris! O velhaco não hesita um momento para dizer como se fez o universo e os seus
systemas planetarios; como appareceu na terra a creação; como se succederam as raças; como passaram as
revoluções geologicas do globo; como se formaram as linguas; como se inventou a escripta... Sabe tudo:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 263
possue completa e immutavel a regra para dirigir todas as acções e formar todos os juizos; tem mesmo a
certeza de todos os mysterios; ainda que seja myope como uma toupeira vê o que se passa na profundidade
dos céos e no interior do globo; conhece, como se não tivesse feito senão assistir a esse espectaculo, o que lhe
ha de succeder depois de morrer... Não ha problema que não decida... E quando a Igreja tem feito d'este
marmanjo uma tal maravilha de saber, manda-o então aprender a lêr... O que eu pergunto é: para que?
--Diga lá abbade, para que os mandam os senhores ensinar a lêr? Toda a sciencia universal, o res scibilis,
está no Catecismo: é metter-lh'o na memoria, e o rapaz possue logo a sciencia e consciencia de tudo... Sabe
tanto como Deus... De facto, é Deus mesmo.
O abbade pulou.
--Isso não é discutir, exclamou, isso não é discutir!... Isso são chalaças á Voltaire! Essas coisas devem-se
tratar mais d'alto...
--Como chalaças, abbade? Tome um exemplo: a formação das linguas. Como se formaram? Foi Deus, que
descontente com a Torre de Babel...
Mas a porta da sala abriu-se, e appareceu a Dionysia. Havia pouco o doutor tinha-lhe dado uma desanda no
quarto d'Amelia; e agora a matrona fallava-lhe sempre encolhida de terror.
--Senhor doutor, disse ella no silencio que se fez, a menina acordou e diz que quer o filho.
--Bem, acabou-se...
--Ouça lá, diga-lhe que a criança vem ámanhã... Que ámanhã sem falta que lh'a trazem. Minta. Minta como
um cão; aqui o senhor abbade dá licença... Que durma, que socegue.
A Dionysia retirou-se. Mas a controversia não recomeçou: diante d'aquella mãi que acordava depois da
fadiga do parto e reclamava o seu filho, o filho que lhe tinham levado para longe e para sempre, os dois
velhos esqueceram a Torre de Babel e a formação das linguas. O abbade sobretudo parecia commovido. Mas
o doutor não tardou, sem piedade, a lembrar-lhe que eram aquellas as consequencias da situação do padre
na sociedade...
O abbade baixou os olhos, occupado na sua pitada, sem responder, como ignorando que houvesse um padre
n'aquella historia infeliz.
O doutor então, seguindo a sua idéa, discursou contra a preparação e educação ecclesiastica.
--Ahi tem o abbade uma educação dominada inteiramente pelo absurdo: resistencia ás mais justas
solicitações da natureza, e resistencia aos mais elevados movimentos da razão. Preparar um padre é crear
um monstro que ha de passar a sua desgraçada existencia n'uma batalha desesperada contra os dois factos
irresistiveis do universo--a força da Materia e a força da Razão!
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 264
--Estou a dizer a verdade. Era que consiste a educação d'um sacerdote? Primò: em o preparar para o
celibato e para a virgindade; isto é, para a suppressão violenta dos sentimentos mais naturaes. Secundò: em
evitar todo o conhecimento e toda a idéa que seja capaz d'abalar a fé catholica; isto é, a suppressão forçada
do espirito d'indagação e d'exame, portanto de toda a sciencia real e humana...
--Jesus, meu caro abbade, continuou tranquillamente o doutor, Jesus, os seus primeiros discipulos, o illustre
S. Paulo representaram em parabolas, em epistolas, n'um prodigioso fluxo labial, que as producções do
espirito humano eram inuteis, pueris, e sobretudo perniciosas...
O abbade passeava pela sala, indo contra um e outro movel como um boi espicaçado, apertando as mãos na
cabeça na desolação d'aquellas blasphemias; não se conteve, gritou:
--O senhor não sabe o que diz!... Perdão, doutor, peço-lhe humildemente perdão... O senhor faz-me cahir em
peccado mortal... Mas isso não é discutir... Isso é fallar com a leviandade d'um jornalista...
Lançou-se então com calor n'uma dissertação sobre a sabedoria da Igreja, os seus altos estudos gregos e
latinos, toda uma philosophia creada pelos santos padres...
--Leia S. Basilio! exclamou. Lá verá o que elle diz dos estudos dos auctores profanos, que são a melhor
preparação para os estudos sagrados! Leia a Historia dos mosteiros na meia idade! Era lá que estava a
sciencia, a philosophia...
--Mas que philosophia, senhor, mas que sciencia! Por philosophia meia duzia de concepções d'um espirito
mythologico, em que o mysticismo é posto em logar dos instinctos sociaes... E que sciencia! Sciencia de
commentadores, sciencia de grammaticos... Mas vieram outros tempos, nasceram sciencias novas que os
antigos tinham ignorado, a que o ensino ecclesiastico não offerecia nem base nem methodo, estabeleceu-se
logo o antagonismo entre ellas e a doutrina catholica!... Nos primeiros tempos, a Igreja ainda tentou
supprimil-as pela perseguição, a masmorra, o fogo! Escusa de se torcer, abbade... O fogo, sim, o fogo e a
masmorra. Mas agora não o póde fazer e limita-se a vituperal-as em mau latim... E no emtanto continúa a
dar nos seus seminarios e nas suas escólas o ensino do passado, o ensino anterior a essas sciencias,
ignorando-as, e desprezando-as, refugiando-se na escolastica... Escusa d'apertar as mãos na cabeça...
Estranha ao espirito moderno, hostil nos seus principios e nos seus methodos ao desenvolvimento espontaneo
dos conhecimentos humanos... O senhor não é capaz de negar isto! Veja o Syllabus no seu canon terceiro
excommungando a Razão... No seu canon decimo terceiro...
--Não senhor, está bem. Só a choramingar, a fallar no pequeno... Diz que o quer hoje por força...
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 265
--Póde-lhe fazer mal, abbade, póde--disse o doutor que rebuscava na sua pharmacia portatil. Mas eu vou-a
fazer dormir... Pois é verdade, a Igreja hoje é uma intrusa, abbade!
--Escusa de ir mais longe, abbade. Veja a Igreja em Portugal. É grato observar-lhe o estado de decadencia...
Pintou-lh'o a largos traços, de pé, com o seu frasco na mão. A Igreja fôra a Nação; hoje era uma minoria
tolerada e protegida pelo Estado. Dominára nos tribunaes, nos conselhos da corôa, na fazenda, na armada,
fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da maioria tinha mais poder que todo o clero do reino. Fôra a
sciencia no paiz; hoje tudo o que sabia era algum latim macarronico. Fôra rica, tinha possuido no campo
districtos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje dependia para o seu triste pão diario do ministro da justiça,
e pedia esmola á porta das capellas. Recrutára-se entre a nobreza, entre os melhores do reino; e hoje, para
reunir um pessoal, via-se no embaraço e tinha de o ir buscar aos engeitados da Misericordia. Fôra a
depositaria da tradição nacional, do ideal collectivo da patria; e hoje, sem communicação com o pensamento
nacional (se é que o ha) era uma estrangeira, uma cidadã de Roma, recebendo de lá a lei e o espirito...
--Pois se está assim tão prostrada, mais uma razão para a amar!--disse o abbade, erguendo-se escarlate.
--A menina está-se a queixar d'um peso na cabeça. Diz que sente faíscas diante dos olhos...
O doutor então immediatamente, sem uma palavra, seguiu a Dionysia. O abbade, só, passeava pela sala
ruminando toda uma argumentação erriçada de textos, de nomes formidaveis de theologos, que ia fazer
desabar sobre o doutor Gouvêa. Mas, meia hora passou, a luz do candieiro ia esmorecendo, e o doutor não
voltou.
Então aquelle silencio da casa, onde só o som dos seus passos sobre o soalho da sala punha uma nota viva,
começou a impressionar o velho. Abriu a porta devagarinho, escutou; mas o quarto d'Amelia era muito
afastado, ao fim da casa, ao pé do terraço; não vinha de lá nem rumor nem luz. Recomeçou o seu passeio
solitario na sala, n'uma tristeza indefinida que o ia invadindo. Desejaria bem ir vêr tambem a doente; mas o
seu caracter, o pudor sacerdotal não lhe permittiam aproximar-se sequer d'uma mulher no leito, em trabalho
de parto, a não ser que o perigo reclamasse os sacramentos. Outra hora mais longa, mais funebre, passou.
Então, em pontas de pés, córando na escuridão d'aquella audacia, foi até ao meio do corredor: agora,
aterrado, sentia no quarto d'Amelia um ruido confuso e surdo de pés movendo-se vivamente no soalho, como
n'uma lucta. Mas nem um ai, nem um grito. Recolheu á sala, e abrindo o seu Breviario começou a rezar.
Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem rapidamente, n'uma carreira. Ouviu uma porta a distancia bater.
Depois o arrastar no soalho d'uma bacia de latão. E emfim o doutor appareceu.
A sua figura fez empallidecer o abbade: vinha sem gravata, com o collarinho espedaçado; os botões do
collete tinham saltado; e os punhos da camisa, voltados para traz, estavam todos manchados de sangue.
O doutor não respondeu, procurando rapidamente pela sala o seu estojo, com a face animada d'um calor de
batalha. Ia já sahir com o estojo, mas lembrando-lhe a pergunta anciosa do abbade:
--Doutor, se ha perigo, peço-lhe que se lembre... É uma alma christã em agonia, e eu estou aqui.
--Certamente, certamente...
O abbade tornou a ficar só, esperando. Tudo dormia na Ricoça, D. Josepha, os caseiros, a quinta, os campos
em redor. Na sala, um relogio de parede, enorme e sinistro, que tinha no mostrador a carranca do sol e em
cima sobre o caixilho a figura esculpida em pau d'uma coruja pensativa, um movel de castello antigo, bateu a
meia noite, depois uma hora. O abbade a cada momento ia até ao meio do corredor: era o mesmo rumor de
pés n'uma lucta; outras vezes um silencio tenebroso. Voltava então para o seu Breviario. Meditava n'aquella
pobre rapariga que, além no quarto, estava talvez no momento que ia decidir da sua eternidade: não tinha ao
pé nem a mãi, nem as amigas: na memoria apavorada devia passar-lhe a visão do peccado: diante dos olhos
turvos apparecia-lhe a face triste do Senhor offendido: as dôres contorciam o seu corpo miseravel: e na
escuridão em que ia penetrando, sentia já o halito ardente da aproximação de Satanaz. Temeroso fim do
tempo e da carne!--Então rezava fervorosamente por ella.
Mas depois pensava no outro que fôra uma metade do seu peccado, e que agora na cidade, estirado na cama,
resonava tranquillamente. E rezava então tambem por elle.
Tinha sobre o Breviario um pequeno **crucifixo**. E contemplava-o com amor, abysmava-se enternecido na
certeza da sua força, contra a qual era bem pouca a sciencia do doutor e todas as vaidades da razão!
Philosophias, idéas, glorias profanas, gerações e imperios passam: são como os suspiros ephemeros do
esforço humano: só ella permanece e permanecerá, a cruz--esperança dos homens, confiança dos
desesperados, amparo dos frageis, asylo dos vencidos, força maior da humanidade: crux triumphus adversus
demonios, crux oppugnatorum murus...
Então o doutor entrou, muito escarlate, vibrante d'aquella tremenda batalha que estava dando lá dentro á
morte; vinha buscar outro frasco; mas abriu a janella, sem uma palavra, para respirar um momento uma
golfada d'ar fresco.
A um rumor de passos na sala ergueu a cabeça. Era a Dionysia, que suspirava, recolhendo todos os
guardanapos que encontrava nas gavetas do aparador.
--Ai, senhor abbade, está perdidinha... Depois das convulsões que foram d'arripiar, cahiu n'aquelle somno,
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 267
E olhando para todos os cantos como para se assegurar da solidão, disse muito excitada:
--Eu não quiz dizer nada... Que o senhor doutor tem um genio!... Mas sangrar a rapariga n'aquelle estado é
querer matal-a... Que ella tinha perdido pouco sangue, é verdade... Mas nunca se sangra ninguem em
semelhante momento. Nunca, nunca!
--Póde ter a sciencia que quizer... Eu tambem não sou nenhuma tola... Tenho vinte annos d'experiencia...
Nunca me morreu nenhuma nas mãos, senhor abbade... Sangrar em convulsões! Até causa horror!...
Estava indignada. O senhor doutor tinha torturado a creaturinha. Até lhe quizera administrar chloroformio...
Mas a voz do doutor Gouvêa berrou por ella do fundo do corredor--e a matrona abalou, com o seu mólho de
guardanapos.
O medonho relogio, com a sua coruja pensativa, bateu as duas horas, depois as tres... O abbade, agora,
cedia a espaços a uma fadiga de velho, cerrando um momento as palpebras. Mas resistia bruscamente: ia
respirar o ar pesado da noite, olhar aquella treva de toda a aldeia; e voltava a sentar-se, a murmurar, com a
cabeça baixa, as mãos postas sobre o Breviario:
Foi então Gertrudes que appareceu commovida. O senhor doutor mandára-a a baixo acordar o moço para
pôr a egoa ao cabriolet.
--Ai, senhor abbade, pobre creaturinha! Ia tão bem, e de repente isto... Que foi por lhe tirarem o filho... Eu
não sei quem é o pai, mas o que sei é que n'isto tudo anda um peccado e um crime!...
Mas o abbade não se apressava, olhando o doutor, com uma pergunta a bailar-lhe nos labios entreabertos, e
retendo-a por timidez: emfim, não se conteve, e n'um tom de medo:
--Não.
--É que nós, doutor, não devemos aproximar-nos d'uma mulher em parto illegitimo senão n'um caso
extremo...
--Está n'um caso extremo, senhor abbade, disse o doutor, vestindo já o seu grande casacão.
O abbade então recolheu o Breviario, a cruz--mas antes de sahir, julgando do seu dever de sacerdote pôr
diante do medico racionalista a certeza da eternidade mystica que se desprende do momento da morte,
murmurou ainda:
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 268
--É n'este instante que se sente o terror de Deus, o vão do orgulho humano...
--O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois dos soccorros da religião, os moribundos voltarem a si de
repente, por uma graça especial... A presença do medico então póde ser util...
--Eu ainda não vou, ainda não vou, disse o doutor, sorrindo involuntariamente de vêr a presença da
Medicina reclamada para auxiliar a efficacia da Graça.
Quando voltou ao quarto d'Amelia, a Dionysia e a Gertrudes, de rojos ao lado da cama, rezavam. O leito,
todo o quarto estava revolvido como um campo de batalha. As duas velas consumidas extinguiam-se. Amelia
estava immovel, com os braços hirtos, as mãos crispadas d'uma côr de purpura escura--e a mesma côr mais
arroxeada cobria-lhe a face rigida.
E debruçado sobre ella, com o crucifixo na mão, o abbade dizia ainda, n'uma voz d'angustia:
--Jesu, Jesu, Jesu! Lembra-te da graça de Deus! Tem fé na misericordia divina! Arrepende-te no seio do
Senhor! Jesu, Jesu, Jesu!
Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando o Miserere. O doutor que ficára á porta retirou-se
devagarinho, atravessou em bicos de pés o corredor, e desceu á rua, onde o moço segurava a egoa atrellada.
O doutor Gouvêa ergueu a gola do paletot, accommodou o seu estojo no assento--e d'ahi a um momento o
cabriolet rodava surdamente pela estrada, sob a primeira pancada de chuva, cortando a escuridão da noite
com o clarão vermelho das suas duas lanternas.
XXV
Ao outro dia desde as sete da manhã, o padre Amaro esperava a Dionysia em casa, postado á janella, com os
olhos cravados na esquina da rua, sem reparar na chuva miudinha que lhe fustigava a face. Mas a Dionysia
não apparecia: e elle teve de partir para a Sé, amargurado e doente, a baptisar o filho do Guedes.
Foi uma pesada tortura para elle vêr aquella gente alegre que punha na gravidade da Sé, mais sombria por
esse escuro dia de dezembro, todo um rumor mal contido de regosijo domestico e de festa paterna; o papá
Guedes resplandecente de casaca e gravata branca, o padrinho compenetrado com uma grande camelia ao
peito, as senhoras de gala, e sobretudo a parteira rechonchuda, passeando com pompa um montão de rendas
engommadas e de laçarotes azues onde mal se percebiam duas bochechinhas trigueiras. Ao fundo da igreja,
com o pensamento bem longe na Ricoça e na Barrosa, foi engorolando á pressa as ceremonias: soprando em
cruz sobre a face do pequerrucho para expulsar o Demonio que já habitava aquellas carninhas tenras;
impondo-lhe o sal sobre a bôca para que elle se desgostasse para sempre do sabor amargo do peccado e
tomasse gosto a nutrir-se só da verdade divina; tocando-o com saliva nas orelhas e nas narinas, para que elle
não escutasse jámais as solicitações da carne e jámais respirasse os perfumes da terra. E em roda, com
tochas na mão, os padrinhos, os convidados, na fadiga que davam tantos latins rosnados á pressa, só se
occupavam do pequeno, n'um receio que elle não respondesse com algum desacato impudente ás tremendas
exhortações que lhe fazia a Igreja sua Mãi.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 269
Amaro, então, pondo de leve o dedo sobre a touquinha branca, exigiu do pequerrucho que elle, alli em plena
Sé, renunciasse para sempre a Satanaz, ás suas pompas e ás suas obras. O sacristão Mathias, que dava em
latim as respostas rituaes, renunciou por elle--emquanto o pobre pequerrucho abria a boquinha a procurar o
bico da mama. Emfim o parocho dirigiu-se á pia baptismal seguido de toda a familia, das velhas devotas que
se tinham juntado, de gaiatos que esperavam uma distribuição de patacos. Mas foi toda uma atrapalhação
para fazer as unções: a parteira commovida não atinava a desapertar os laçarotes do chambre, para pôr a nú
os hombrosinhos, o peito do pequeno; a madrinha quiz ajudal-a: mas deixou escorregar a tocha, alastrou de
cera derretida o vestido d'uma senhora, uma visinha dos Guedes, que ficou embezerrada de raiva.
--Credo.
O Mathias:
--Volo.
Então a agua lustral cahiu sobre a cabecinha redonda como um melão tenro: a criança agora perneava
n'uma perrice.
Emfim, acabára! Amaro correu á sacristia a desvestir-se--emquanto a parteira grave, o papá Guedes, as
senhoras enternecidas, as velhas devotas e os gaiatos sahiam ao repique dos sinos; e agachados sob os
guardachuvas, chapinhando a lama, lá iam levando em triumpho Francisco, o novo christão.
Lá estava, com effeito, sentada no quarto, esperando-o, amarrotada, enxovalhada da lucta da noite e da lama
da estrada: e apenas o viu começou a choramingar.
--Que é, Dionysia?
A Dionysia berrou pela criada. Inundaram-lhe a face d'agua, de vinagre. Elle recuperou-se um pouco, muito
pallido: afastou-as com a mão, sem fallar; e atirou-se de bruços para sobre o travesseiro, n'um chôro
desesperado,--emquanto as duas mulheres consternadas iam recolhendo á cozinha.
--Parece que tinha muita amizade á menina, começou a Escolastica, fallando baixo como na casa d'um
moribundo.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 270
--Costume d'ir por lá. Foi hospede tanto tempo... Ai, eram como irmãos...--disse a Dionysia, ainda chorosa.
Fallaram então de doenças de coração--porque a Dionysia contára á Escolastica que a pobre menina tinha
morrido d'um aneurisma rebentado. A Escolastica tambem soffria do coração; mas n'ella eram flatos, dos
maus tratos que lhe dera o marido... Ah, tinha sido bem infeliz tambem!
A Escolastica correu á taberna ao fim da rua, trouxe a geropiga n'um copo de quartilho debaixo do avental: e
ambas á mesa, uma molhando sopas no café, outra escorropichando o copo, concordavam, com suspiros, que
n'este mundo tudo eram sustos e lagrimas.
Deram onze horas: e a Escolastica pensava em levar um caldo ao senhor parocho, quando elle chamou de
dentro. Estava de chapéo alto, com o casaco abotoado, os olhos vermelhos como carvões...
Chamou então a Dionysia: e sentado ao pé d'ella, quasi contra os joelhos da mulher, com a face rigida e
livida como um marmore, escutou em silencio a historia da noite--as convulsões de repente, tão fortes que
ella, a Gertrudes e o senhor doutor mal a podiam segurar! o sangue, as prostrações em que cahia! depois a
anciedade da asphyxia que a fazia tão rôxa como a tunica d'uma imagem...
Mas o moço do Cruz chegára com o cavallo. Amaro tirou d'uma gaveta, d'entre roupa branca, um pequeno
crucifixo, deu-o á Dionysia que ia voltar á Ricoça para ajudar a amortalhar a menina.
Desceu, montou; e apenas na estrada da Barrosa despediu a galope. Não chovia, agora; e entre as nuvens
pardas algum raio fraco do sol de dezembro fazia brilhar a relva, as pedras molhadas.
Quando chegou ao pé do poço entulhado, d'onde se avistava a casa de Carlota, teve de parar, para deixar
passar um longo rebanho d'ovelhas que tomava o caminho; e o pastor, com uma pelle de cabra ao hombro e
a borracha a tiracollo, fez-lhe lembrar de repente Feirão, toda a vida passada, que lhe voltava por
fragmentos bruscos--aquellas paizagens afogadas nos vapores pardacentos da serra; a Joanna rindo
estupidamente dependurada da corda do sino; as suas ceias de cabrito assado na Gralheira, com o abbade,
defronte da chaminé, onde a lenha verde estalava; os longos dias em que se desesperava na tristeza da
residencia, vendo fóra sem cessar cahir a neve... E veio-lhe um desejo ancioso d'essas solidões da serra,
d'essa existencia de lobo, longe dos homens e das cidades, sepultado lá com a sua paixão.
A porta da Carlota estava fechada. Bateu, foi de roda chamar, atirando a voz por cima do telhado dos
curraes, para o pateo, onde sentia cacarejar os gallos. Ninguem respondeu. Seguiu então pelo caminho da
aldeia, levando a egoa pela arreata; parou na taberna, onde uma mulher obesa fazia meia sentada á porta.
Dentro, no escuro da baiuca, dois homens com os seus quartilhos ao lado, batiam as cartas n'uma bisca
renhida; e um rapazola d'uma amarellidão de sezões, com um lenço amarrado na cabeça, olhava-lhes o jogo
tristemente.
A mulher tinha justamente visto passar a snr.^a Carlota, que até parára a comprar um quartilho de azeite.
Devia estar em casa da Michaela, ao adro. Chamou para dentro; uma rapariguita vesga appareceu de traz
da sombra das pipas.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 271
--Corre, vai á Michaela, dize à snr.^a Carlota que está aqui um senhor da cidade.
Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou sentado n'uma pedra, com o seu cavallo pela redea. Mas
aquella casa fechada e muda aterrava-o. Foi pôr o ouvido á fechadura, na esperança d'ouvir um chôro, uma
rabuje de criança. Dentro pesava um silencio de caverna abandonada. Mas tranquillisava-o a idéa que a
Carlota teria levado a criança comsigo, para Michaela. Devia realmente ter perguntando á mulher na
taberna, se a Carlota trazia uma criança ao collo... E olhava a casa bem caiada, com a sua janella em cima
que tinha uma cortininha de cassa, um luxo tão raro n'aquellas freguezias pobres; recordava a boa ordem, o
escarolado da louça da cozinha... Decerto, o pequerrucho devia ter tambem um berço aceado...
Ah, estava doido decerto na vespera, quando puzera alli, na mesa da cozinha, quatro libras em ouro, preço
adiantado d'um anno de criação, e dissera cruelmente ao anão--«conto comsigo»! Pobre pequerruchinho!...
Mas a Carlota comprehendera bem, á noite na Ricoça, que elle agora queria-o vivo, o seu filho, e creado com
mimo!... Todavia não o deixaria alli, não, sob o olho raiado de sangue do anão... Leval-o-hia essa noite á
Joanna Carreira dos Poyaes...
Que as sinistras historias da Dionysia, a tecedeira d'anjos, eram uma legenda insensata. A criança estava
muito regalada em casa de Michaela, chupando aquelle bom peito de quarentona sã... E vinha-lhe então o
mesmo desejo de deixar Leiria, ir enterrar-se em Feirão, levar comsigo a Escolastica, educar lá a criança
como sobrinho, revivendo n'elle largamente todas as emoções d'aquelle romance de dois annos; e alli
passaria n'uma paz triste, na saudade de Amelia, até ir como o seu antecessor, o abbade Gustavo que tambem
creára um sobrinho em Feirão, repousar para sempre no pequeno cemiterio, de verão sob as flôres silvestres,
de inverno sob a neve branca.
Então a Carlota appareceu; e ficou attonita ao reconhecer Amaro, sem passar da cancella, com a testa
franzida, a sua bella face muito grave.
--Nem me falle n'isso, que me tem dado um desgosto... Hontem mesmo, duas horas depois de ter chegado... O
pobre anjinho começa a fazer-se rôxo, e alli me morreu debaixo dos olhos...
Tinha aberto a porta, muito simplesmente, sem cólera nem receio. Amaro entreviu n'um relance, ao pé da
chaminé, um berço coberto com um saiote escarlate.
Sem uma palavra voltou as costas, atirou-se para cima do cavallo. Mas a mulher, muito loquaz subitamente,
rompeu a dizer que tinha ido justamente à aldeia para encommendar um caixãosinho decente... Como vira
que era filho de pessoa de bem, não o quisera enterrar embrulhado n'um trapo. Mas emfim, como o senhor
alli estava, parecia-lhe razoavel que désse algum dinheiro para a despeza... Uns dois mil reis que fossem.
Amaro considerou-a um momento com um desejo brutal de a esganar; por fim, metteu-lhe o dinheiro na mão.
E ia trotando no carreiro, quando a sentiu ainda correndo, gritando pst! pst! A Carlota queria-lhe restituir o
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 272
capote que elle emprestára na vespera: tinha feito muito bom serviço, que a criança chegára quente como um
rojãosinho... Infelizmente...
Na cidade, depois de apear à porta do Cruz, não entrou em casa. Foi direito ao paço do bispo. Tinha agora
uma idéa só: era deixar aquella cidade maldita, não vêr mais as faces das devotas, nem a fachada odiosa da
Sé...
Foi só ao subir a larga escadaria de pedra do paço, que lhe lembrou com inquietação o que o Libaninho
dissera na vespera da indignação do senhor vigario geral, da denuncia obscura... Mas a affabilidade do
padre Saldanha, o confidente do paço, que o introduziu logo na livraria de sua excellencia, tranquillisou-o. O
senhor vigario geral foi muito amavel. Estranhou o ar pallido e perturbado do senhor parocho...
--É que tenho um grande desgosto, senhor vigario geral. Minha irmã está a morrer em Lisboa. E venho pedir
a vossa excellencia licença para lá ir, por uns dias...
Ipse ratem conto subigit, velisque ministrat Et ferruginea subvectat corpora cymba.
Ninguem lhe escapa... Sinto, sinto... Não me esquecerei de a recommendar nas minhas orações...
Amaro, ao sahir do paço, foi direito á Sé. Fechou-se na sacristia, a essa hora deserta: e depois de pensar
muito tempo com a cabeça entre os punhos, escreveu ao conego Dias:
«Meu caro padre-mestre.--Treme-me a mão ao escrever estas linhas. A infeliz morreu. Eu não posso, bem vê,
e vou-me embora, porque, se aqui ficasse, estalava-me o coração. Sua excellentissima irmã lá estará tratando
do enterro... Eu, como comprehende, não posso. Muito lhe agradeço tudo... Até um dia, se Deus quizer que
nos tornemos a vêr. Por mim conto ir para longe, para alguma pobre parochia de pastores, acabar meus dias
nas lagrimas, na meditação e na penitencia. Console como puder a desgraça da mãi. Nunca me esquecerei do
que lhe devo, emquanto tiver um sopro de vida. E adeus, que nem sei onde tenho a cabeça.--Seu amigo do
C.--Amaro Vieira.»
Fechou a carta com uma obreia preta; e depois d'arranjar os seus papeis, foi abrir o grande portão chapeado
de ferro, olhar um momento o pateo, o barracão, a casa do sineiro... As nevoas, as primeiras chuvas já
davam áquelle recanto da Sé o seu ar lugubre d'inverno. Adiantou-se devagar, sob o silencio triste dos altos
contrafortes, espreitou á vidraça da cozinha do tio Esguelhas: elle lá estava, sentado á chaminé, com o
cachimbo na bôca, cuspilhando tristemente para as cinzas. Amaro bateu de leve nos vidros--e quando o
sineiro abriu a porta, aquelle interior conhecido, rapidamente entrevisto, a cortina da alcova da Tótó, a
escada que ia para o quarto, agitaram o parocho de tantas recordações e de saudades tão bruscas, que não
pôde fallar um momento, com a garganta tomada de soluços.
--Venho-lhe dizer adeus, tio Esguelhas, murmurou por fim. Vou a Lisboa, tenho minha irmã a morrer...
--Adeus, senhor parocho, adeus! disse o velho com os olhos arrazados d'agua.
Amaro fugiu para casa, contendo-se para não soluçar alto pelas ruas. Disse logo á Escolastica que ia partir
n'essa noite para Lisboa. O tio Cruz devia mandar-lhe um cavallo, para ir tomar o comboio a Chão de
Maçãs.
--Eu não tenho senão o dinheiro que é necessario para a jornada. Mas o que ahi me fica em lençoes e toalhas
é para vossê...
A Escolastica, chorando de perder o senhor parocho, quiz beijar-lhe a mão por tanta generosidade:
offereceu-se para fazer a mala...
Fechou-se no quarto. A Escolastica, ainda choramingando, foi logo recolher, examinar as poucas roupas que
estavam pelos armarios. Mas Amaro d'ahi a pouco gritou por ella: diante da janella uma harpa e uma
rebeca, em desafinação, tocavam a valsa dos Dois mundos.
--Dê um tostão a esses homens, disse o padre furioso. E diga-lhe que vão p'r'ó inferno... Que está aqui gente
doente!
Quando o moço do Cruz veio com o cavallo, pensando que o senhor parocho adormecera, ella foi-lhe bater
devagarinho á porta do quarto, choramingando já da despedida proxima. Elle abriu logo. Estava de capote
aos hombros; no meio do quarto prompta e acorreada a mala de lona que devia ir á garupa da egoa. Deu-lhe
um maço de cartas para ir entregar n'essa noite à snr.^a D. Maria da Assumpção, ao padre Silverio e a
Natario: e ia descer, entre os prantos da mulher, quando sentiu na escada um ruido conhecido de muleta, e o
tio Esguelhas appareceu muito commovido.
--Vossa senhoria ha de desculpar, mas... Tinha-me esquecido de todo, com os desgostos que tenho passado.
Já ha tempo que achei no quarto isto, e pensei que...
E metteu na mão de Amaro um brinco d'ouro. Elle reconheceu-o logo: era d'Amelia. Muito tempo ella o
procurára debalde; soltára-se decerto n'alguma manhã d'amor, sobre a enxerga do sineiro. Amaro então,
suffocado, abraçou o tio Esguelhas.
--Adeus! Adeus, Escolastica. Lembrem-se por cá de mim. Dê lembranças ao Mathias, tio Esguelhas...
O moço afivelou a maleta ao sellim, e Amaro partiu, deixando a Escolastica e o tio Esguelhas, a chorar
ambos á porta.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 274
Mas depois de ter passado os açudes, ao pé d'uma volta da estrada, teve de apear para compôr o estribo: e ia
montar, quando appareceram dobrando o muro o doutor Godinho, o secretario geral e o senhor
administrador do concelho, muito amigos agora, e que vinham, depois do passeio, recolhendo para a cidade.
Pararam logo a fallar ao senhor parocho--admirando-se de o vêr alli, de maleta na garupa, com ares de
jornada...
--Deve estar muito sentido, comprehendo... De mais a mais essa outra desgraça na casa d'aquellas senhoras
suas amigas... A pobre Ameliasinha, morta assim de repente...
--O quê? A Ameliasinha, aquella bonita que morava na rua da Misericordia? Morreu?
O senhor administrador soubera-o pela sua criada, que o ouvira da Dionysia. Dizia-se que fôra um
aneurisma.
--Pois senhor parocho, exclamou Bibi, desculpe se afflijo as suas crenças respeitaveis, que são as minhas de
resto... Mas Deus commetteu um verdadeiro crime... Levar-nos a rapariga mais bonita da cidade! Que olhos,
senhores! E depois com aquelle picantesinho da virtude...
Então, n'um tom de pezames, todos lamentaram aquelle golpe que devia ter affectado tanto o senhor parocho.
--Senti-o deveras... Conhecia-a bem... E com as suas boas qualidades, devia fazer, sem duvida, uma esposa
modêlo... Senti-o muito.
Apertou silenciosamente as mãos em redor--e emquanto os cavalheiros recolhiam á cidade, o padre Amaro
foi trotando pela estrada, que já escurecia, para a estação de Chão de Maçãs.
Ao outro dia, pelas onze horas, o enterro d'Amelia sahiu da Ricoça. Era uma manhã aspera: o céo e os
campos estavam afogados n'uma nevoa pardacenta; e cahia, muito miuda, uma chuva regelada. Era longe da
quinta a capella dos Poyaes. O menino do côro adiante, de cruz alçada, apressava-se, chapinhando a lama a
grandes pernadas; o abbade Ferrão, d'estola negra, abrigava-se, murmurando o Exultabunt Domino, sob o
guardachuva que sustentava ao lado o sacristão com o hyssope; quatro trabalhadores da quinta, abaixando a
cabeça contra a chuva obliqua, levavam n'uma padiola o esquife que tinha dentro o caixão de chumbo; e, sob
o vasto guardachuva do caseiro, a Gertrudes de mantéo pela cabeça ia desfiando as suas contas. Ao lado do
caminho o valle triste dos Poyaes cavava-se, todo pardo na neblina, n'um grande silencio; e a voz enorme do
vigario, mugindo o Miserere, rolava pela quebrada humida onde murmuravam os riachos muito cheios.
Mas ás primeiras casas da aldeia os moços do caixão pararam derreados; e então um homem, que estava
esperando debaixo d'uma arvore sob o seu guardachuva, veio juntar-se silenciosamente ao enterro. Era João
Eduardo, de luvas pretas, carregado de luto, com as olheiras cavadas em dois sulcos negros, grossas
lagrimas a correrem-lhe nas faces. E immediatamente, por traz d'elle, vieram collocar-se dois criados de
farda, com as calças muito arregaçadas e tochas na mão--dois lacaios que mandára o Morgado, para honrar
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 275
Então, vendo estas duas librés que vinham afidalgar o prestito, o menino do côro rompeu logo, erguendo
mais alto a cruz; os quatro homens, já sem fadiga, impertigaram-se ás varas da padiola: o sacristão bramiu
um Requiem tremendo. E pelas lamas do íngreme caminho da aldeia foi subindo o enterro, emquanto às
portas as mulheres se ficavam persignando, olhando as sobrepellizes brancas e o caixão de galões d'ouro,
que se iam afastando seguidos do grupo de guardachuvas abertos, sob a chuva triste.
A capella era no alto, n'um adro de carvalheiras: o sino dobrava: e o enterro sumiu-se para o interior da
igreja escura, ao canto do Subvenite sancti que o sacristão entoou em ronco.--Mas os dois criados de farda
não entraram porque o senhor Morgado assim o tinha ordenado.
Ficaram á porta, sob o guardachuva, escutando, batendo os pés regelados. Dentro seguia o cantochão;
depois era um ciciar d'orações que se amortecia: e de repente latins funebres lançados pela voz grossa do
vigario.
Então os dois homens, enfastiados, desceram do adro, entraram um momento na taberna do tio Seraphim.
Dois moços de gado da quinta do Morgado, que bebiam em silencio o seu quartilho, ergueram-se logo vendo
apparecer os dois criados de farda.
--Á vontade, rapazes, é sentar e beber, disse o velho baixito que acompanhava João Eduardo a cavallo. Nós
lá estamos, na massada do enterro... Boas tardes, snr. Seraphim.
Apertaram a mão ao Seraphim, que lhes mediu duas aguardentes--e informou-se se a defunta era a noiva do
snr. Joãosinho. Tinham-lhe dito que morrera d'uma veia rebentada.
O baixito riu:
--Qual veia rebentada! Não lhe rebentou coisa nenhuma. O que lhe rebentou foi um rapagão pelo ventre...
--Não me parece, disse o outro com importancia. O snr. Joãosinho estava em Lisboa... Obra d'algum
cavalheiro da cidade... Sabe vossemecê de quem eu desconfio, snr. Seraphim?...
Mas a Gertrudes, esbaforida, rompeu pela taberna gritando que o sahimento já ia ao pé do cemiterio, e que
não faltavam senão «aquelles senhores»! Os lacaios abalaram logo, e alcançaram o enterro quando ia
passando a pequena grade do cemiterio, ao ultimo versiculo do Miserere. João Eduardo agora levava uma
vela na mão, ia logo atraz do caixão d'Amelia, tocando-o quasi, com os olhos ennevoados de lagrimas fitos
no velludilho negro que o cobria. Sem cessar o sino na capella dobrava desoladamente. A chuva cahia mais
miuda. E todos calados, no silencio fusco do cemiterio, com passos abafados pela terra molle, iam-se
dirigindo para o canto do muro onde estava cavada de fresco a cova d'Amelia, negra e profunda entre a relva
humida. O menino do côro cravou no chão a haste da cruz prateada, e o abbade Ferrão, adiantando-se até á
beira do buraco escuro, murmurou o Deus cujus miseratione... Então João Eduardo, muito pallido, vacillou
de repente, e o guardachuva cahiu-lhe das mãos; um dos criados de farda correu, segurou-o pela cinta;
queriam-no levar, arrancal-o d'ao pé da cova; mas elle resistiu, e alli ficou, com os dentes cerrados,
segurando-se desesperadamente á manga do criado, vendo o coveiro e os dois moços amarrarem as cordas
no caixão, fazerem-no resvalar devagar entre a terra esfarellada que rolava, com um ranger de taboas mal
pregadas.
O caixão bateu no fundo com uma pancada surda: o abbade espalhou em cima uma pouca de terra em fórma
de cruz: e sacudindo lentamente o hyssope sobre o velludilho, a terra, a relva em redor:
--Requiescat in pace.
--Amen, disseram todos n'um murmurio, que ciciou, se perdeu entre os cyprestes, as hervas, os tumulos e as
nevoas frias d'aquelle triste dia de dezembro.
XXVI
Nos fins de maio de 1871 havia grande alvoroço na Casa Havaneza, ao Chiado, em Lisboa. Pessoas
esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos que atulhavam a porta, e alçando-se em bicos de pés esticavam
o pescoço, por entre a massa dos chapeus, para a grade do balcão, onde n'uma taboleta suspensa se
collavam os telegrammas da Agencia Havas; sujeitos de faces espantadas sahiam consternados, exclamando
logo para algum amigo mais pacato que os esperára fóra:
Dentro, na multidão de grulhas que se apertava contra o balcão, questionava-se forte; e pelo passeio, no
largo do Loreto, defronte ao pé do estanco, pelo Chiado até ao Magalhães, era, por aquelle dia já quente do
começo de verão, toda uma gralhada de vozes impressionadas onde as palavras--Communistas! Versailles!
Petroleiros! Thiers! Crime! Internacional! voltavam a cada momento, lançadas com furor, entre o ruido das
tipoias e os pregões dos garotos gritando supplementos.
Com effeito, a cada hora, chegavam telegrammas annunciando os episodios successivos da insurreição
batalhando nas ruas de Paris: telegrammas despedidos de Versailles n'um terror dizendo os palacios que
ardiam, as ruas que se aluiam; fuzilamentos em massa nos pateos dos quarteis e entre os mausoleus dos
cemiterios; a vingança que ia saciar-se até á escuridão dos esgotos; a fatal demencia que desvairava as
fardas e as blusas; e a resistencia que tinha o furor de uma agonia com os methodos d'uma sciencia, e fazia
saltar uma velha sociedade pelo petroleo, pela dynamite e pelo nitro-glycerina! Uma convulsão, um fim de
mundo--que vinte, trinta palavras de repente mostravam, n'um relance, a um clarão de fogueira.
O Chiado lamentava com indignação aquella ruina de Paris. Recordavam-se com exclamações os edificios
ardidos, o Hotel de Ville, «tão bonito», a rua Royale, «aquella riqueza». Havia individuos tão furiosos com o
incendio das Tulherias como se fosse uma propriedade sua: os que tinham estado em Paris um ou dois mezes
abriam-se em invectivas, arrogando-se uma participação de parisiense na riqueza da cidade, escandalisados
por a insurreição não ter respeitado monumentos em que elles tinham posto os seus olhos.
--Vejam vossês! exclamava um sujeito gordo. O palacio da Legião d'Honra destruido! Ainda não ha um mez
que eu lá estive com minha mulher... Que infamia! Que patifaria!
Mas espalhára-se que o ministerio recebera outro telegramma mais desolador: toda a linha do boulevard da
Bastilha á Magdalena ardia, e ainda a praça da Concordia, e as avenidas dos Campos-Elyseos até ao Arco
do Triumpho. E assim tinha a revolta arrazado, n'uma demencia, todo aquelle systema de restaurantes,
cafés-concertos, bailes publicos, casas de jogo e ninhos de prostitutas! Então houve por todo o largo do
Loreto até ao Magalhães um estremecimento de furor. Tinham pois as chammas aniquilado aquella
centralisação tão commoda da patuscada! Oh que infamia! O mundo acabava! Onde se comeria melhor que
em Paris? Onde se encontrariam mulheres mais experientes? Onde se tornaria a vêr aquelle desfilar
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 277
prodigioso d'uma volta de Bois, nos dias asperos e seccos d'inverno, quando as victorias das cocottes
resplandeciam ao pé dos phaetons dos agentes da Bolsa? Que abominação! Esqueciam-se as bibliothecas e
os museus: mas a saudade era sincera pela destruição dos cafés e pelo incendio dos lupanares. Era o fim de
Paris, era o fim da França!
Alguns moços porém, a quem o elemento dramatico da catastrophe revolvia o instincto romantico,
applaudiam a heroicidade da Communa--Vermorel abrindo os braços como o Crucificado, e sob as balas que
o trespassavam gritando: Viva a humanidade! O velho Delecluze, com um fanatismo de santo, dictando do
seu leito d'agonia as violencias da resistencia...
Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se pallidas, vendo já as suas casas na Baixa a
escorrer de petroleo e a mesma Casa Havaneza presa de chammas socialistas. Então era em todos os grupos
um furor d'auctoridade e repressão: era necessario que a sociedade, atacada pela Internacional, se
refugiasse na força dos seus principios conservadores e religiosos, cercando-os bem de baionetas! Burguezes
com tendas de capellistas fallavam da «canalha» com o desdem imponente d'um La Tremouille ou d'um
Ossuna. Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a vingança. Vadios pareciam furiosos «contra o operario
que quer viver como principe». Fallava-se com devoção na propriedade, no capital!
D'outro lado eram moços verbosos, localistas excitados que declamavam contra o velho mundo, a velha idéa,
ameaçando-os d'alto, propondo-se a derruil-os em artigos tremendos.
E assim uma burguezia entorpecida esperava deter, com alguns policias, uma evolução social: e uma
mocidade, envernizada de litteratura, decidia destruir n'um folhetim uma sociedade de dezoito seculos. Mas
ninguem se mostrava mais exaltado que um guarda-livros de hotel, que do alto do degrau da Casa Havaneza
brandia a bengala, aconselhando á França a restauração dos Bourbons.
Então um homem vestido de preto, que sahira do estanco e atravessava por entre os grupos, parou, sentindo
uma voz espantada que exclamava ao lado:
Voltou-se: era o conego Dias. Abraçaram-se com vehemencia, e para conversarem mais tranquillamente
foram andando até ao largo de Camões, e alli pararam, junto á estatua:
Tinha chegado na vespera. Trazia uma demanda com os Pimentas da Pojeira por causa d'uma servidão na
quinta, tinha appellado para a Relação, e vinha seguir de perto a questão na capital.
--E vossê, Amaro? Na ultima carta dizia-me que tinha vontade de sahir de Santo Thyrso.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 278
Era verdade. A parochia tinha vantagens; mas vagára Villa-Franca, e elle, para estar mais perto da capital,
viera fallar com o senhor conde de Ribamar, o seu conde, que lá andava obtendo a transferencia. Devia-lhe
tudo, sobretudo á senhora condessa!
--Não, coitada... Vossê sabe, ao principio tivemos um susto dos diabos... Pensavamos que lhe ia succeder
como á Amelia. Mas não, era hydropesia... E alli o que ha é anasarca...
O padre Amaro riu tambem: e durante um momento os dois sacerdotes pararam, apertando as ilhargas.
--Pois é verdade, disse emfim o conego. A coisa tinha sido realmente escandalosa... Porque emfim, repare o
amigo que o pilharam com o sargento, de tal modo que não havia a duvidar... E ás dez horas da noite, na
alameda! Já é imprudencia... Mas emfim a coisa esqueceu, e quando o Mathias morreu, lá lhe demos o logar
de sacristão, que é bem boa posta... Muito melhor que o que elle tinha no cartorio... E ha de cumprir com
zelo!
--Ha de cumprir com zelo, concordou muito sério o padre Amaro. E a proposito, a D. Maria da Assumpção?
--Homem, rosnam-se coisas... Criado novo... Um carpinteiro que morava defronte... O rapaz anda no trinque.
--Palavra?
--É divino!
--As Gansosos na mesma, continuou o conego. Têm agora a sua criada, a Escolastica.
--Eu mandei-lhe dizer, não? Lá está ainda nos Poyaes. O Morgado está mal do figado. E o João Eduardo diz
que está tisico... que eu não sei, nunca mais o vi... Quem m'o disse foi o Ferrão.
--E então?
--Deveras, padre-mestre?
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 279
--Na rua das Sousas, a dois passos da sua antiga casa. O D. Luiz da Barrosa é que lhe deu o dinheiro para
montar o estabelecimento. Pois aqui estão as novidades. E vossê está mais forte, homem! Fez-lhe bem a
mudança...
--Ó Amaro, e vossê a escrever-me que queria retirar-se para a serra, ir para um convento, passar a vida em
penitencia...
--Que quer vossê, padre-mestre?... N'aquelles primeiros momentos... Olhe que me custou! Mas tudo passa...
--Tudo passa, disse o conego. E depois d'uma pausa:--Ah! Mas Leiria já não é Leiria!
Passearam então um momento em silencio, n'uma recordação que lhes vinha do passado, os quinos divertidos
da S. Joanneira, as palestras ao chá, as passeatas ao Morenal, o Adeus e o Descrido cantados pelo Arthur
Couceiro e acompanhados pela pobre Amelia, que agora lá dormia, no cemiterio dos Poyaes, sob as flôres
silvestres...
--E que me diz vossê a estas coisas de França, Amaro? exclamou de repente o conego.
--Um horror, padre-mestre... O arcebispo, uma sucia de padres fuzilados!... Que brincadeira!
E o padre Amaro:
--E cá pelo nosso canto parece que começam tambem essas idéas...
O conego assim o ouvira. Então indignaram-se contra essa turba de maçons, de republicanos, de socialistas,
gente que quer a destruição de tudo o que é respeitavel--o clero, a instrucção religiosa, a familia, o exercito e
a riqueza... Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros desencadeados! Eram necessarias as antigas
repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote.
--Ahi ó que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não fazem senão desacreditar-nos... Destroem
no povo a veneração pelo sacerdocio...
Então junto d'elles passaram duas senhoras, uma já de cabellos brancos, o ar muito nobre; a outra, uma
creaturinha delgada e pallida, d'olheiras batidas, os cotovêlos agudos collados a uma cinta d'esterilidade,
pouff enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.
--Caspitè! disse o conego baixo, tocando o cotovêlo do collega. Hein, seu padre Amaro?... Aquillo é que
vossê queria confessar.
--Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse o parocho rindo, já as não confesso senão casadas!
O conego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade; mas retomou o seu ar ponderoso de padre
obeso, vendo Amaro tirar profundamente o chapéo a um cavalheiro de bigode grisalho e oculos d'ouro, que
entrava na praça, do lado do Loreto, com o charuto cravado nos dentes e o guardasol debaixo do braço.
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 280
Era o senhor conde de Ribamar. Adiantou-se com bonhomia para os dois sacerdotes; e Amaro, descoberto e
perfilado, apresentou «o seu amigo, o senhor conego Dias, da Sé de Leiria». Conversaram um momento da
estação, que já ia quente. Depois o padre Amaro fallou dos ultimos telegrammas.
--Nem me falle n'isso, senhor padre Amaro, nem me falle n'isso... Vêr meia duzia de bandidos destruir Paris...
O meu Paris!... Creiam vossas senhorias que tenho estado doente.
E então o conego:
O senhor conde de Ribamar, com pausa, em palavras que sabiam devagar, sobrecarregadas do peso das
idéas, disse:
--O resultado?... Não é difficil prevel-o. Quando se tem alguma experiencia da Historia e da Politica, o
resultado de tudo isto vê-se distinctamente. Tão distinctamente como os vejo a vossas senhorias.
--Suffocada a insurreição--continuou o senhor conde olhando a direito diante de si com o dedo no ar, como
seguindo, apontando os futuros historicos que a sua pupilla, ajudada pelos oculos d'ouro,
penetrava--suffocada a insurreição, dentro de tres mezes temos de novo o imperio... Se vossas senhorias
tivessem visto como eu uma recepção nas Tulherias ou no Hotel de Ville, nos tempos do imperio, haviam de
dizer, como eu, que a França é profundamente imperialista e só imperialista... Temos pois Napoleão III: ou
talvez elle abdique, e a imperatriz tome a regencia na menoridade do principe imperial... Eu aconselharia
antes, e já o fiz saber, que era esta talvez a solução mais prudente. Como consequencia immediata temos o
Papa em Roma outra vez senhor do poder temporal... Eu, a fallar a verdade, e já o fiz saber, não approvo
uma restauração papal. Mas eu não lhes estou aqui a dizer o que approvo, ou o que reprovo. Felizmente não
sou o dono da Europa... Seria um encargo superior á minha idade e ás minhas enfermidades. Estou a dizer o
que a minha experiencia da Politica e da Historia me aponta como certo... Dizia eu...? Ah! a imperatriz no
throno de França, Pio Nono no throno de Roma, ahi temos a democracia esmagada entre estas duas forças
sublimes, e creiam vossas senhorias um homem que conhece a sua Europa e os elementos de que se compõe a
sociedade moderna, creiam que depois d'este exemplo da Communa não se torna a ouvir fallar de republica,
nem de questão social, nem de povo, n'estes cem annos mais chegados!...
--Deus Nosso Senhor o ouça, senhor conde, fez com unção o conego.
Mas Amaro, radiante de se achar alli, n'uma praça de Lisboa, em conversação intima com um estadista
illustre, perguntou ainda, pondo nas palavras uma anciedade de conservador assustado:
--E crê vossa excellencia que essas idéas de republica, de materialismo, se possam espalhar entre nós?
O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois padres, até quasi junto das grades que cercam a estatua de
Luiz de Camões:
--Não lhes dê isso cuidado, meus senhores, não lhes dê isso cuidado! É possivel que haja ahi um ou dois
crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós 281
esturrados que se queixem, digam tolices sobre a decadencia de Portugal, e que estamos n'um marasmo, e
que vamos cahindo no embrutecimento, e que isto assim não póde durar dez annos. etc. etc. Babuseiras!...
--A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros invejam-nos... E o que vou a dizer não é para lisonjear a
vossas senhorias: mas emquanto n'este paiz houver sacerdotes respeitaveis como vossas senhorias, Portugal
ha de manter com dignidade o seu logar na Europa! Porque a fé, meus senhores, é a base da ordem!
--Sem duvida, senhor conde, sem duvida, disseram com força os dois sacerdotes.
--Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que prosperidade!
E com um grande gesto mostrava-lhes o largo do Loreto, que áquella hora, n'um fim de tarde serena
concentrava a vida da cidade. Tipoias vazias rodavam devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia e
tacão alto, com os movimentos derreados, a pallidez chlorotica d'uma degeneração de raça; n'alguma magra
pileca, ia trotando algum moço de nome historico, com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos
bancos da praça gente estirava-se n'um torpôr de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos sobre as suas
altas rodas, era como o symbolo de agriculturas atrazadas de seculos; fadistas gingavam, de cigarro nos
dentes; algum burguez enfastiado lia nos cartazes o annuncio d'operetas obsoletas; nas faces enfezadas de
operarios havia como a personificação das industrias moribundas... E todo este mundo decrepito se movia
lentamente, sob um céo lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a loteria e a batota publica, e
rapazitos de voz plangente offerecendo o Jornal das pequenas novidades_: e iam, n'um vagar madraço, entre o
largo onde se erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das casarias da praça onde
brilhavam tres taboletas de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam, com
um tom sujo d'esgoto aberto, as viellas de todo um bairro de prostituição e de crime.
--Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento... Meus senhores,
não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!
E o homem d'estado, os dois homens de religião, todos tres em linha, junto ás grades do monumento, gozavam
de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu paiz,--alli ao pé d'aquelle pedestal, sob o frio olhar de
bronze do velho poeta, erecto e nobre, com os seus largos hombros de cavalleiro forte, a epopeia sobre o
coração, a espada firme, cercado dos chronistas e dos poetas heroicos da antiga patria--patria para sempre
passada, memoria quasi perdida!
O original não tem capítulo XI, no entanto, a numeração das páginas não apresenta quebra na narração.
Optámos por não corrigir a numeração dos capítulos.
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