O Crime Do Padre Amaro - Eca de Queiros

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O Crime do Padre Amaro, de Ea de Queirs Fonte:

QUEIRS, Ea de. O Crime do Padre Amaro. 12a ed., So Paulo: tica, 1998.
Texto proveniente de:
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A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo
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PREFCIO DA SEGUNDA EDIO
A designao inscrita no frontispcio deste livro - Edio Definitiva - necessita
uma explicao.
O Crime do Padre Amaro foi escrito h quatro ou cinco anos, e desde essa poca
esteve esquecido entre os meus papis - como um esboo informe e pouco
aproveitvel.
Por circunstncias que no so bastante interessantes para serem impressas este esboo de romance, em que a ao, os caracteres e o estilo eram uma
improvisao desleixada, foi publicado em 1875 nos primeiros fascculos da
Revista Ocidental, sem alteraes, sem correes, conservando toda a sua feio
de esboo, e de um improviso
....................................................................................................................
.......................................

Hoje O Crime do Padre Amaro aparece em volume - refundido e transformado.


Deitou-se parte da velha casa abaixo para erguer a casa nova. Muitos captulos
foram reconstrudos linha por linha; captulos novos acrescentados; a ao
modificada e desenvolvida; os caracteres mais estudados, e completados; toda a
obra enfim mais trabalhada.
Assim, O Crime do Padre Amaro da Revista Ocidental era um rascunho, a edio
provisria; o que hoje se publica a obra acabada, a edio definitiva .
Este trabalho novo conserva todavia - naturalmente - no estilo, no desenho dos
personagens, em certos traos da ao e do dilogo, muitos dos defeitos do
trabalho antigo: conserva vestgios considerveis de certas preocupaes de
Escola e de Partido, - lamentveis sob o ponto de vista da pura Arte - que
tiveram outrora uma influncia poderosa no plano original do livro. Mas como
estes defeitos provm da concepo mesma da obra, e do seu desenvolvimento
lgico - no podiam ser eliminados, sem que o romance fosse totalmente refeito
na idia e na forma. Todo o mundo compreender que - correes, emendas,
entrelinhas, folhas intercaladas no bastam para alterar absolutamente a
concepo primitiva de um livro, e a sua primitiva execuo.
Akenside Tewace - 5 de Julho de 1875.
EA DE QUEIRS

1
PREFCIO DA TERCEIRA EDIO
O Crime do Padre Amaro recebeu no Brasil e em Portugal alguma ateno da
Crtica, quando foi publicado ulteriormente um romance intitulado - O Primo
Baslio. E no Brasil e em Portugal escreveu- se (sem todavia se aduzir nenhuma
prova efetiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitao do romance do Sr.

E. Zola - La Faute de L'Abb Mouret; ou que este livro do autor do Assomoir e de


outros magistrais estudos sociais sugerira a idia, os personagens, a inteno de
O Crime do Padre Amaro.
Eu tenho algumas razes para crer que isto no correto. O Crime do Padre
Amaro foi escrito em 1871, lido a alguns amigos em 1872, e publicado em 1874
[sic]. O livro do Sr. Zola, La Faute de L'Abb Mouret (que o quinto volume da
srie Rougon Macquart), foi escrito e publicado em 1875.
Mas (ainda que isto parea sobrenatural) eu considero esta razo apenas como
subalterna e insuficiente. Eu podia, enfim, ter penetrado no crebro, no
pensamento do Sr. Zola, e ter avistado, entre as formas ainda indecisas das suas
criaes futuras, a figura do abade Mouret, - exatamente como o venervel
Anquises no vale dos Elsios podia ver, entre as sombras das raas vindouras
flutuando na nvoa luminosa do Lete, aquele que um dia devia ser Marcelo. Tais
coisas so possveis. Nem o homem prudente as deve considerar mais
extraordinrias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos Cus - e outros
prodgios provados.
O que, segundo penso, mostramelhor que a acusao carece deexatido, a
simples comparao dos dois romances. La Faute de L'Abb Mouret , no seu
epis6dio central, o quadro aleg6rico da iniciao do primeiro homem e da
primeira mulher no amor. O abade Mouret (Srgio), tendo sido atacado duma
febre cerebral, trazida principalmente pela sua exaltao mstica no culto da
Virgem, na solido de um vale abrasado da Provena (primeira parte do livro),
levado para convalescer ao Paradou, antigo parque do sculo XVII a que o
abandono refez uma virgindade selvagem, e que a representao alegrica do
Paraso. Ai, tendo perdido na lebre a conscincia de si mesmo a ponto de se
esquecer do seu sacerdcio e da existncia da aldeia, e a conscincia do universo
a ponto de ter medo do Sol e das rvores do Paradou como de monstros estranhos
- erra, durante meses, pelas profundidades do bosque inculto, com Albina que
o gnio, a Eva desse lugar de legenda; Albina e Srgio, seminus como no Paraso,
procuram sem cessar, por um instinto que os impele, urna rvore misteriosa, da
rama da qual cai a influncia afrodisaca da matria procriadora; sob este smbolo

da rvore da Cincia se possuem, depois de dias angustiosos em que tentam


descobrir, na sua inocncia paradisaca, o meio fsico de realizar o amor; depois,
numa mtua vergonha sbita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e
dai os expulsa, os arranca o padre Arcangias, que a personificao teocrtica do
antigo Arcanjo. Na ltima parte do livro o abade Mouret recupera a conscincia
de si mesmo, subtrai-se influncia dissolvente da adorao da Virgem, obtm
por um esforo da orao e um privilgio da graa a extino da sua virilidade, e
torna-se um asceta sem nada de humano, uma sombra cada aos ps da cruz; e,
sem que lhe mude a cor do rosto que asperge e responsa o esquife de Albina, que
se asfixiou no Paradou sob um monto de flores de perfumes fortes.
Os crticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma
imitao da Faute de L'Abb Mouret no tinham infelizmente lido o romance
maravilhoso do Sr. Zola, foi talvez a origem de toda a sua g16ria. A semelhana
casual dos dois ttulos induziu-os em erro.
Com conhecimento dos dois livros, s uma obtusidade crnea ou m-f cnica
poderia assemelhar esta bela alegoria idlica, a que est misturado o pattico
drama duma alma mstica, a'O Crime do Padre Amaro que, como podem ver
neste novo trabalho, apenas, no fundo, uma intriga de clrigos e de beatas
tramada e murmurada sombra duma velha S de provncia portuguesa.
Aproveito este momento para agradecer Crtica do Brasil e de Portugal a
ateno que ela tem dado aos meus trabalhos.
Bristol, 1 de Janeiro de 1880.
EA DE QUEIRS
2
I
Foi no domingo de Pscoa que se soube em Leiria, que o proco da S, Jos
Miguis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O proco era um
homem sangneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilo

dos comiles. Contavam-se histrias singulares da sua voracidade. O Carlos da


Botica - que o detestava - costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta,
com a face afogueada de sangue, muito enfartado:
- L vai a jibia esmoer. Um dia estoura!
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe - hora em que defronte, na
casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ningum o
lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral no era estimado. Era um
aldeo; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos
ouvidos, palavras muito rudes.
Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionrio, e, tendovivido
sempre em freguesias da aldeia ou da serra, no compreendia certas
sensibilidades requintadas da devoo: perdera por isso, logo ao princpio, quase
todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmo, to cheio
de lbia!
E quando as beatas, que lhe eram fiis, lhe iam falar de escrpulos de vises, Jos
Miguis escandalizava-as, rosnando:
- Ora histrias, santinha! Pea juzo a Deus! Mais miolo na bola!
As exageraes dos jejuns sobretudo irritavam-no:
- Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura!
Era miguelista - e os partidos liberais, as suas opinies, os seus jornais enchiamno duma clera
irracionvel:
- Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.
Nos ltimos anos tomara hbitos sedentrios, e vivia isolado - com uma criada
velha e um co, o
Joli. O seu nico amigo era o chantre Valadares, que governava ento o bispado,
porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo,
numa quinta do Alto Minho. O proco tinha um grande respeito pelo chantre,

homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovdio - que
falava fazendo sempre boquinhas, e com aluses mitolgicas.
O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hrcules.
- Hrcules pela fora - explicava sorrindo, Frei pela gula.
No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecerlhe todos os dias
rap da sua caixa de ouro, disse aos outros cnegos, baixinho, ao deixar-lhe cair
sobre o caixo, segundo o ritual, o primeiro torro de terra:
- a ltima pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graa do senhor governador do bispado; o
cnego Campos contou-o noite ao ch em casa do deputado Novais; foi
celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e
afirmou-se com respeito - que sua excelncia tinha muita pilhria!
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praa, o co do proco, o Joli. A
criada entrara com sezes no hospital; a casa fora fechada; o co, abandonado,
gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, que tinha vagas semelhanas com o proco. Com o hbito das batinas, vido dum
dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum
queria o infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sis; o co,
repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manh
apareceu morto ao p da Misericrdia; a carroa do estrume levou-o e, como
ningum tomou a ver o co, na Praa, o proco Jos Miguis foi definitivamente
esquecido.
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro proco. Diziase que era um homem muito novo, sado apenas do seminrio. O seu nome era
Amaro Vieira. Atribua-se a sua escolha a influncias polticas, e o jornal de
Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposio, falou com amargura, citando o
Glgota, no favoritismo da corte e na reao clerical. Alguns padres tinham-se

escandalizado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do


senhor chantre.
- No, no, l que h favor, h; e que o homem tem padrinhos, tem - disse o
chantre. - A mim quem me escreveu para a confirmao foi o Brito Correia (Brito
Correia era ento ministro da Justia). At me diz na carta que o proco um belo
rapago. De sorte que - acrescentou sorrindo com satisfao - depois de Frei
Hrcules vamos talvez ter Frei Apolo.
Em Leiria havia s uma pessoa que conhecia o proco novo: era o cnego Dias,
que fora nos primeiros anos do seminrio seu mestre de Moral. No seu tempo,
dizia o cnego, o proco era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas
carnais...
3
- Parece que o estou a ver com a batina muito coada e cara de quem tem
lombrigas!... De resto bom rapaz! E espertote...
O cnego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordara, o ventre
saliente enchia- lhe a batina e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o
beio espesso faziam lembrar velhas anedotas de frades lascivos e glutes.
O tio Patrcio, o Antigo, negociante da Praa, muito liberal e que quando passava
pelos padres rosnava como um velho co de fila, dizia s vezes ao v-lo
atravessar a Praa, pesado, ruminando a digesto, encostado ao guarda-chuva:
- Que maroto! Parece mesmo D. Joo VI!
O cnego vivia s com uma irm velha, a Sra. D. Josefa Dias, e uma criada, que
todos conheciam tambm em Leiria, sempre na rua, entrouxada num xale
tingido de negro, e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo. O cnego
Dias passava por ser rico; trazia ao p de Leiria propriedades arrendadas, dava
jantares com peru, e tinha reputao o seu vinho duque de 1815. Mas o fato
saliente da sua vida - o fato comentado e murmurado - era a sua antiga amizade
com a Sra. Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joaneira, por ser natural de

S. Joo da Foz. A S. Joaneira morava na Rua da Misericrdia, e recebia hspedes.


Tinha uma filha, a Ameliazinha, rapariga de vinte e trs anos, bonita, forte,
muito desejada.
O cnego Dias mostrara um grande contentamento com a nomeao de Amaro
Vieira. Na botica do Carlos, na Praa, na sacristia da S, exaltou os seus bons
estudos no seminrio, a sua prudncia de costumes, a sua obedincia: gabava-lhe
mesmo a voz: "um timbre que um regalo.'"
- Para um bocado de sentimento nos sermes da Semana Santa, est a calhar!
Predizia-lhe com nfase um destino feliz, uma conezia decerto, talvez a glria de
um bispado!
E um dia, enfim, mostrou com satisfao ao coadjutor da S, criatura servil e
calada, uma carta
que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
Era uma tarde de Agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova.
Andava ento a
construir-se a estrada da Figueira: o velho passadio de pau sobre a ribeira do Lis
tinha sido destrudo, j se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os
seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras
estavam suspendidas por questes de expropriao; ainda se via o lodoso
caminho da freguesia de Marrazes, que a estrada nova devia desbastar e
incorporar; camadas de cascalho cobriam o cho; e os grossos cilindros de pedra,
que acalcam e recamam os macadames, enterravam-se na terra negra e mida
das chuvas.
Em roda da Ponte a paisagem larga e tranqila. Para o lado de onde o rio vem
so colinas baixas, de formas arredondadas, cobertas da rama verde-negra dos
pinheiros novos; embaixo, na espessura dos arvoredos, esto os casais que do
queles lugares melanclicos uma feio mais viva e humana - com as suas
alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela
tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o
rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros plidos, estende-

se at os primeiros areais o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de


guas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se v da cidade; apenas uma
esquina das cantarias pesadas e jesuticas da S, um canto do muro do cemitrio
coberto de parietrias, e pontas agudas e negras dos ciprestes; o resto est
escondido pelo duro monte ouriado de vegetaes rebeldes, onde destacam as
runas do Castelo, todas envolvidas tarde nos largos vos circulares dos
mochos, desmanteladas e com um grande ar histrico.
Ao p da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco
beira do rio. um lugar recolhido, coberto de rvores antigas. Chamam-lhe a
Alameda Velha. Ali, caminhando devagar, falando baixo, o cnego consultava o
coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre ''uma idia que ela lhe dera, que
lhe parecia de mestre! De mestre!'' Amaro pedia-lhe com urgncia que lhe
arranjasse uma casa de aluguel, barata, bem situada, e se fosse possvel
mobilada; falava sobretudo de quartos numa casa de hspedes respeitvel. "Bem
v o meu caro padre-mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente
me convinha; eu no quero luxos, est claro: um quarto e uma saleta seria o
bastante. O que necessrio que a casa seja respeitvel, sossegada, central, que
a patroa tenha bom gnio e que no pea mundos e fundos; deixo tudo isto sua
prudncia e capacidade, e creia que todos estes favores no cairo em terreno
ingrato. Sobretudo que a patroa seja pessoa acomodada e de boa lngua."
- Ora a minha idia, amigo Mendes, esta: met-lo em casa da S. Joaneira!
resumiu o cnego com um grande contentamento. rica idia, hem!
- Soberba idia, disse o coadjutor com a sua voz servil.
- Ela tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que pode servir de
escritrio. Tem boa moblia, boas roupas...
- Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito. O cnego continuou:
4

- um belo negcio para a S. Joaneira: dando os quartos, roupas, comida, criada,


pode muito bem pedir os seus seis tostes por dia. E depois sempre tem o proco
de casa.
- Por causa da Ameliazinha que eu no sei - considerou timidamente o
coadjutor. - Sim, pode ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor
proco ainda novo... Vossa senhoria sabe o que so lnguas do mundo.
O cnego tinha parado:
- Ora histrias! Ento o padre Joaquim no vive debaixo das mesmas telhas com
a afilhada da me? E o cnego Pedroso no vive com a cunhada, e uma irm da
cunhada, que uma rapariga de dezenove anos? Ora essa!
- Eu dizia... atenuou o coadjutor.
- No, no vejo mal nenhum. A S. Joaneira aluga os seus quartos, como se fosse
uma hospedaria. Ento o secretrio-geral no esteve l uns poucos de meses?
- Mas um eclesistico... insinuou o coadjutor.
- Mais garantias, Sr. Mendes, mais garantias! exclamou o cnego. E parando,
com uma atitude confidencial: - E depois a mim que me convinha, Mendes! A
mim que me convinha, meu amigo!
Houve um pequeno silncio. O coadjutor disse, baixando a voz:
- Sim, vossa senhoria faz muito bem S. Joaneira...
- Fao o que posso, meu caro amigo, fao o que posso, disse o cnego. E com uma
entonao
terna, risonhamente paternal: - que ela merecedora! merecedora. Boa at ali,
meu amigo! - Parou, esgazeando os olhos: - Olhe que dia em que eu no lhe
aparea pela manh s nove em ponto, est num frenesi! Oh criatura! digo-lhe
eu, a senhora rala-se sem razo. Mas ento, aquilo! Pois quando eu tive a clica
o ano passado! Emagreceu, Sr. Mendes! E depois no h lembrana que no

tenha! Agora, pela matana do porco, o melhor do animal para o padre santo,
voc sabe? como ela me chama.
Falava com os olhos luzidos, uma satisfao babosa.
- Ah, Mendes! acrescentou, uma rica mulher!
- E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
- L isso! exclamou o cnego parando outra vez. L isso! Bem conservada at ali!
Pois olhe que
no uma criana! Mas nem um cabelo branco, nem um, nem um s! E ento que
cor de pele! - E mais baixo, com um sorriso guloso: - E isto aqui! Mendes, e isto
aqui! - Indicava o lado do pescoo debaixo do queixo, passando-lhe devagar por
cima a sua mo papuda: - uma perfeio! E depois mulher de asseio,
muitssimo asseio! E que lembranazinhas! No h dia que me no mande o seu
presente! o covilhete de gelia, o pratinho de arroz-doce, a bela morcela de
Arouca! Ontem me mandou ela uma torta de ma. Ora havia de voc ver aquilo!
A ma parecia um creme! At a mana Josefa disse: "Est to boa que parece que
foi cozida em gua benta!" - E pondo a mo espalmada sobre o peito: - So coisas
que tocam a gente c por dentro, Mendes! No, no l por dizer, mas no h
outra.
O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.
- Eu bem sei, disse o cnego parando de novo e tirando lentamente as palavras,
eu bem sei que por ai rosnam, rosnam... Pois uma grandssima calnia! O que ,
que eu tenho muito apego quela gente. J o tinha em tempo do marido. Voc
bem o sabe, Mendes.
O coadjutor teve um gesto afirmativo.
- A S. Joaneira uma pessoa de bem! olhe que uma pessoa de bem, Mendes!
exclamava o cnego batendo no cho fortemente com a ponteira do guarda. sol.

- As lnguas do mundo so venenosas, senhor cnego, disse o coadjutor com uma


voz chorosa. E depois dum silncio, acrescentou baixo: - Mas aquilo a vossa
senhoria deve-lhe sair caro!
- Pois a est, meu amigo! Imagine voc que desde que o secretrio-geral se foi
embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu que tenho dado para a
panela, Mendes!
- Que ela tem uma fazendita, considerou o coadjutor.
- Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as dcimas,
os jornais! Por isso digo eu, o proco uma mina. Com os seis tostes que ele
der, com que eu ajudar, com alguma coisa que ela tire da hortalia que vende da
fazenda, j se governa. E para mim um alvio, Mendes.
- um alvio, senhor cnego! repetiu o coadjutor.
Ficaram calados. A tarde descaa muito lmpida; o alto cu tinha uma plida cor
azul; o ar estava imvel. Naquele tempo o rio ia muito vazio; pedaos de areia
reluziam em seco; e a gua baixa arrastava- se com um marulho brando, toda
enrugada do roar dos seixos.
Duas vacas, guardadas por uma rapariga, apareceram ento pelo caminho lodoso
que do outro lado do rio, defronte da alameda, corre junto de um silvado;
entraram no rio devagar, e estendendo o pescoo pelado da canga, bebiam de
leve, sem rudo; a espaos erguiam a cabea bondosa, olhavam em redor com a
passiva tranqilidade dos seres fartos - e fios de gua, babados, luzidios luz,
pendiam-lhes dos cantos do focinho. Com a inclinao do sol a gua perdia a sua
claridade espelhada, estendiam-se as
5
sombras dos arcos da Ponte. Do lado das colinas ia subindo um crepsculo
esfumado, e as nuvens cor de sangnea e cor de laranja que anunciam o calor
faziam, sobre os lados do mar, uma decorao muito rica.

- Bonita tarde! disse o coadjutor.


O cnego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:
- Vamo-nos chegando s Ave-Marias, hem?
Quando, da a pouco, iam subindo as escadarias da S, o cnego parou, e
voltando-se para o
coadjutor:
- Pois est decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S. Joaneira! uma
pechincha para
todos.
- Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande
pechincha! E entraram na igreja, persignando-se.
II
Uma semana depois, soube-se que o novo proco devia chegar pela diligncia de
Cho de Mas, que traz o correio tarde; e desde as seis horas o cnego Dias e o
coadjutor passeavam no Largo do Chafariz, espera de Amaro.
Era ento nos fins de Agosto. Na longa alameda macadamizada que vai junto do
rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos claros de
senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de casebres pobres, velhas
fiavam porta; crianas sujas brincavam pelo cho, mostrando seus enormes
ventres nus; e galinhas em redor iam picando vorazmente as imundcies
esquecidas. Em redor do chafariz cheio de rudo, onde os cntaros arrastam sobre
a pedra, criadas ralham, soldados, com a sua fardeta suja, enormes botas
cambadas, namoravam, meneando a chibata de junco; com o seu cntaro bojudo
de barro equilibrado cabea sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares,
meneando os quadris; e dois oficiais ociosos, com a farda desapertada sobre o
estmago, conversavam, esperando, a ver quem viria. A diligncia tardava.
Quando o crepsculo desceu, uma lamparina luziu no nicho do santo, por cima do
Arco; e defronte iam-se iluminando uma a uma, com uma luz soturna, as janelas
do hospital.

J tinha anoitecido quando a diligncia, com as lanternas acesas, entrou na Ponte


ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e veio parar ao p do
chafariz, por baixo da estalagem do Cruz; o caixeiro do tio Patrcio partiu logo a
correr para a Praa com o mao dos Dirios Populares; o tio Baptista, o patro,
com o cachimbo negro ao canto da boca, desatrelava, praguejando
tranqilamente; e um homem que vinha na almofada, ao p do cocheiro, de
chapu alto e comprido capote eclesistico, desceu cautelosamente, agarrandose s guardas de ferro dos assentos, bateu com os ps no cho para os
desentorpecer, e olhou em redor.
- Oh, Amaro! gritou o cnego, que se tinha aproximado, oh ladro!
- Oh, padre-mestre! disse o outro com alegria. E abraaram-se, enquanto o
coadjutor, todo curvado, tinha o barrete na mo.
Da a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praa, entre a
corpulncia vagarosa do cnego Dias e a figura esguia do coadjutor, um homem
um pouco curvado, com um capote de padre. Soube- se que era o proco novo; e
disse-se logo na botica que era uma boa figura de homem. O Joo Bicha levava
adiante um ba e um saco de chita; e como aquela hora j estava bbedo, ia
resmungando o Bendito.
Eram quase nove horas, a noite cerrara. Em redor da Praa as casas estavam j
adormecidas: das lojas debaixo da arcada saa a luz triste dos candeeiros de
petrleo, entreviam-se dentro figuras sonolentas, caturrando em cavaqueira, ao
balco. As ruas que vinham dar Praa, tortuosas, tenebrosas, com um lampio
mortio, pareciam desabitadas. E no silncio o sino da S dava vagarosamente o
toque das almas.
O cnego Dias ia explicando pachorrentamente ao proco "o que lhe arranjara".
No lhe tinha procurado casa: seria necessrio comprar moblia, buscar criada,
despesas inumerveis! Parecera-lhe melhor tomar- lhe quartos numa casa de
hspedes respeitvel, de muito conchego - e nessas condies (e ali estava o
amigo coadjutor que o podia dizer), no havia como a da S. Joaneira. Era bem
arejada, muito asseio, a cozinha no deitava cheiro; tinha l estado o secretrio-

geral e o inspetor dos estudos; e a S. Joaneira (o Mendes amigo conhecia-a bem)


era uma mulher temente a Deus, de boas contas, muito econmica e cheia de
condescendncias...
- Voc est ali como em sua casa! Tem o seu cozido, prato de meio, caf...
- Vamos a saber, padre-mestre: preo? disse o proco. 6
- Seis tostes. Que diabo! de graa! Tem um quarto, tem uma saleta...
- Uma rica saleta, comentou o coadjutor respeitosamente.
- E longe da S? perguntou Amaro.
- Dois passos. Pode-se ir dizer missa de chinelos. Na casa h uma rapariga,
continuou com a sua
voz pausada o cnego Dias. E a filha da S. Joaneira. Rapariga de vinte e dois anos.
Bonita. Sua pontinha de gnio, mas bom fundo... Aqui tem voc a sua rua.
Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da velha
Misericrdia, com um lampio lgubre ao fundo.
- E aqui tem voc o seu palcio! disse o cnego, batendo na aldraba de uma porta
esguia.
No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam salincia,
com os seus arbustos de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas de
madeira; as janelas de cima, pequeninas, eram de peitoril; e a parede, pelas suas
irregularidades, fazia lembrar uma lata amolgada.
A S. Joaneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e sardenta,
alumiava com um candeeiro de petrleo; e a figura da S. Joaneira destacava
plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda, alta, muito branca, de
aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham j em redor a pele engelhada;
os cabelos arrepiados, com um enfeite escarlate, eram j raros aos cantos da testa
e no comeo da risca; mas percebiam-se uns braos rechonchudos, um colo
copioso e roupas asseadas.
- Aqui tem a senhora o seu hspede, disse o cnego subindo.

- Muita honra em receber o senhor proco! muita honra! H-de vir muito
cansado! por fora! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrauzinho.
Levou-o para uma sala pequena, pintada de amarelo, com um vasto canap de
palhinha encostado parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta
verde.
- a sua sala, senhor proco, disse a S. Joaneira. Para receber, para espairecer...
Aqui - acrescentou abrindo uma porta - o seu quarto de dormir. Tem a sua
cmoda, o seu guarda-roupa... - Abriu os gavetes, gabou a cama batendo a
elasticidade dos colches. - Uma campainha para chamar sempre que queira... As
chavinhas da cmoda esto aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto... Tem
um cobertor s, mas querendo...
- Est bem, est tudo muito bem, minha senhora, - disse o proco com a sua voz
baixa e suave. - pedir! O que h, da melhor vontade...
- Oh criatura de Deus! interrompeu o cnego jovialmente, o que ele quer agora
cear!
- Tambm tem a ceiazinha pronta. Desde as seis que est o caldo a apurar...
E saiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:
- V, Rua, mexe-te, mexe-te!...
O cnego sentou-se pesadamente no canap, e sorvendo a sua pitada:
- contentar, meu rico. Foi o que se pde arranjar.
- Eu estou bem em toda parte, padre-mestre, disse o proco, caando os seus
chinelos de ourelo.
Olha o seminrio!... E em Feiro! Caa- me a chuva na cama.
Para o lado da Praa, ento, sentiu-se o toque de cometas.
- Que aquilo? perguntou Amaro, indo janela.
- As nove e meia, o toque de recolher.
Amaro abriu a vidraa. Ao fim da rua um candeeiro esmorecia. A noite estava
muito negra. E

havia sobre a cidade um silncio cncavo, de abbada.


Depois das cometas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do
quartel; por baixo da
janela um soldado, que se demorara nalguma viela do Castelo, passou correndo; e
das paredes da Misericrdia saa constantemente o agudo piar das corujas.
- triste isto, disse Amaro.
Mas a S. Joaneira gritou de cima:
- Pode subir, senhor cnego! Est o caldo na mesa!
- Ora v, v, que voc deve estar a cair de fome, Amaro! - disse o cnego,
erguendo-se muito
pesado.
E detendo um momento o proco, pela manga do casaco:
- Vai voc ver o que um caldo de galinha feito c pela senhora! Da gente se
babar!...
No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava,
com a sua
toalha muito branca, a loua, os copos reluzindo luz forte dum candeeiro de
abajur verde. Da terrina subia o vapor cheiroso do caldo e, na larga travessa a
galinha gorda, afogada num arroz mido e branco, rodeada de nacos de bom paio,
tinha uma aparncia suculenta de prato morgado. No armrio envidraado, um
pouco na sombra, viam-se cores claras de porcelana; a um canto, ao p da janela,
estava o piano, coberto com uma colcha de cetim desbotado. Na cozinha frigiase; e sentindo o cheiro fresco que vinha dum tabuleiro de roupa lavada, o proco
esfregou as mos, regalado.
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- Para aqui, senhor proco, para aqui, disse a S. Joaneira. Dai pode vir-lhe frio. Foi fechar as portadas das janelas; chegou-lhe um caixo de areia para as pontas
dos cigarros. - E o senhor cnego toma um copinho de gelia, sim?

- V l, para fazer companhia, disse jovialmente o cnego, sentando- se e


desdobrando o guardanapo.
A S. Joaneira, no entanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o proco, que,
com a cabea sobre o prato, comia em silncio o seu caldo, soprando a colher.
Parecia bem-feito; tinha um cabelo muito preto, levemente anelado. O rosto era
oval, de pele trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas
compridas.
O cnego, que no o via desde o seminrio, achava-o mais forte, mais viril.
- Voc era enfezadito...
- Foi o ar da serra, dizia o proco, fez-me bem! - Contou ento a sua triste
existncia em Feiro,
na alta Beira, durante a aspereza do Inverno, s com pastores. O cnego deitavalhe o vinho de alto, fazendo-o espumar.
- Pois beber-lhe, homem! beber-lhe! Desta gota no pilhava voc no
seminrio. Falaram do seminrio.
- Que ser feito do Rabicho, o despenseiro? disse o cnego.
- E do Carocho, que roubava as batatas?
Riram; e bebendo, na alegria das reminiscncias, recordavam as histrias de
ento, o catarro do reitor, e o mestre do cantocho que deixara um dia cair do
bolso as poesias obscenas de Bocage.
- Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.
A S. Joaneira ento ps na mesa um prato covo com mas assadas.
- Viva! No, l nisso tambm eu entro! exclamou logo o cnego. A bela ma
assada! nunca me
escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica dona de casa, c a nossa S.
Joaneira! Grande dona de casa! Ela ria; viam-se os seus dois dentes de diante,
grandes e chumbados. Foi buscar uma garrafa de vinho do Porto; ps no prato do
cnego, com requintes devotos, uma ma desfeita, polvilhada de acar;

e batendo-lhe nas costas com a mo papuda e mole:


- Isto um santo, senhor proco, isto um santo! Ai! devo-lhe muitos favores!
- Deixe falar, deixe falar, dizia o cnego. - Espalhava-se-lhe no rosto um
contentamento baboso.
- Boa gota! acrescentou, saboreando o seu clice de Porto. Boa gota!
- Olhe que ainda dos anos da Amlia, senhor cnego.
- E onde est ela, a pequena?
- Foi ao Morenal com a D. Maria. Aquilo naturalmente foram para casa das
Gansosos passar a
noite.
- C esta senhora proprietria, explicou o cnego, falando do Morenal. um
condado! - Ria
com bonomia, e os seus olhos luzidios percorriam ternamente a corpulncia da S.
Joaneira. - Ah, senhor proco, deixe falar, uma nesga de terra... disse ela.
Mas vendo a criada encostada parede, sacudida com aflies de tosse:
- mulher, vai tossir l para dentro! credo!
A moa saiu, pondo o avental sobre a boca.
- Parece doente, coitada, observou o proco.
Muito achacada, muito!... A pobre de Cristo era sua afilhada, rf, e estava quase
tsica. Tinha-a
tomado por piedade...
- E tambm porque a criada que c tinha foi para o hospital, a desavergonhada...
Meteu-se a com
um soldado!...
O padre Amaro baixou devagar os olhos - e trincando migalhas, perguntou se
havia muitas

doenas naquele Vero.


- Colerinas, das frutas verdes, rosnou o cnego. Metem-se pelas melancias,
depois tarraadas de
gua... E suas febritas...
Falaram ento das sezes do campo, dos ares de Leiria.
- Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso Senhor
Jesus Cristo,
tenho sade, tenho!
- Ai, Nosso Senhor lha conserve, que nem sabe o bem que ! exclamou a S.
Joaneira. - Contou
imediatamente a grande desgraa que tinha em casa, uma irm meio idiota
entrevada havia dez anos! Ia fazer sessenta anos... No Inverno viera-lhe um
catarro, e desde ento, coitadinha, definhava, definhava... - H bocado, ao fim
da tarde, teve ela um ataque de tosse! Pensei que se ia embora. Agora
descansou mais...
Continuou a falar "daquela tristeza", depois da sua Ameliazinha, das Gansosos,
do antigo
chantre, da carestia de tudo - sentada, com o gato no colo, rolando com os dois
dedos, monotonamente,
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bolinhas depo. O cnego, pesado, cerrava as plpebras; tudo na sala parecia ir
gradualmente adormecendo; a luz do candeeiro esmorecia.
- Pois senhores, disse por fim o cnego mexendo-se, isto so horas!
O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos deu as graas.
- O senhor proco quer lamparina? perguntou cuidadosamente a S. Joaneira.
- No, minha senhora. No uso. Boas noites!
E desceu devagar, palitando os dentes.

A S. Joaneira alumiava no patamar, com o candeeiro. Mas nos primeiros degraus


o proco parou,
e voltando-se, afetuosamente:
- verdade, minha senhora, amanh sexta-feira, jejum...
- No, no, acudiu o cnego que se embrulhava na capa de lustrina, bocejando,
voc amanh
janta comigo. Eu venho por c, vamos ao chantre, S, e por a... E olhe que
tenho lulas. um milagre, que isto aqui nunca h peixe.
A S. Joaneira tranqilizou logo o proco.
- Ai, escusado lembrar os jejuns, senhor proco. Tenho o maior escrpulo!
- Eu dizia, explicou o proco, porque infelizmente hoje em dia ningum cumpre.
- Tem vossa senhoria muita razo, atalhou ela. - Mas eu! credo!... A salvao da
minha alma
antes de tudo!
A campainha embaixo, ento, retiniu fortemente.
- H-de ser a pequena, disse a S. Joaneira. Abre, Rua!
A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.
- s tu, Amlia?
Uma voz disse adeusinho! adeusinho! E apareceu, subindo quase a correr, com os
vestidos um
pouco apanhados adiante, uma bela rapariga, forte, alta, bem-feita, com uma
manta branca pela cabea e na mo um ramo de alecrim.
- Sobe, filha. Aqui est o senhor proco. Chegou agora noitinha, sobe!
Amlia tinha parado um pouco embaraada, olhando para os degraus de cima,
onde o proco ficara, encostado ao corrimo. Respirava fortemente de ter
corrido; vinha corada; os seus olhos vivos e negros luziam; e saa dela uma
sensao de frescura e de prados atravessados.

O proco desceu, cingido ao corrimo, para a deixar passar, murmurando boasnoites! com a cabea baixa. O cnego, que descia atrs, pesadamente, tomou o
meio da escada, diante de Amlia:
- Ento isto so horas, sua brejeira?
Ela teve um risinho, encolheu-se.
- Ora v-se encomendar a Deus, v! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com
a sua mo
grossa e cabeluda.
Ela subiu a correr, enquanto o cnego, depois de ir buscar o guarda- sol saleta,
saa, dizendo
criada, que erguia o candeeiro sobre a escada:
- Est bem, eu vejo, no apanhes frio, rapariga. Ento s oito, Amaro! Esteja a p!
Vai-te,
rapariga, adeus! Reza Senhora da Piedade que te seque essa catarreira.
O proco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um
bom cheiro de
linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga dum Cristo
crucificado. Amaro abriu o seu Brevirio, ajoelhou aos ps da cama, persignouse; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e ento por cima, sobre o
teto, atravs das oraes rituais que maquinalmente ia lendo, comeou a sentir o
tique-tique das botinas de Amlia e o rudo das saias engomadas que ela sacudia
ao despir-se.
.
III
Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marquesa de Alegros. Seu
pai era criado do marqus; a me era criada de quarto; quase uma amiga da
senhora marquesa. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das Selvas, com
brbaras imagens coloridas que tinha escrito na primeira pgina branca: minha

muito estimada criada Joana Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido, Marquesa de Alegros. Possua tambm um dagtterretipo de sua me: era uma
mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e
uma cor ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a me, que fora
sempre to s, sucumbiu, da a um ano, a uma tsica de laringe. Amaro
completara ento seis anos. Tinha uma irm mais velha que desde pequena vivia
com a av em Coimbra, e um tio,
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merceeiro abastado do bairro da Estrela. Mas a senhora marquesa ganhara
amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adoo tcita: e comeou,
com grandes escrpulos, a vigiar a sua educao.
A marquesa de Alegros ficara viva aos quarenta e trs anos, e passava a maior
parte do ano retirada na sua quinta de Carcavelos. Era uma pessoa passiva, de
bondade indolente, com capela em casa, um respeito devoto pelos padres de S.
Lus, sempre preocupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas
no receio do cu e nas preocupaes da Moda, eram beatas e faziam o chique
falando com igual fervor da humildade crist e do ltimo figurino de Bruxelas.
Um jornalista de ento dissera delas: - Pensam todos os dias na toalete com que
ho-de entrar no Paraso.
No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocrticas onde os
paves gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religio, a Caridade eram
ento ocupaes avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da
freguesia, bordavam frontais para os altares da igreja. De Maio a Outubro
estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os
livros beatos e doces; como no tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os
padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de Vero.
A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesistica.
A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido: era j afeioado
s coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado ao p das mulheres, no
calor das saias unidas, ouvindo falar de santas. A senhora marquesa no o quis

mandar ao colgio porque receava a impiedade dos tempos, e as camaradagens


imorais. O capelo da casa ensinava- lhe o latim, e a filha mais velha, a Sra. D.
Lusa, que tinha um nariz de cavalete e lia Chateaubriand, dava-lhe lies de
francs e de geografia.
Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha-morta. Nunca brincava,
nunca pulava ao sol. Se tarde acompanhava a senhora marquesa s alamedas da
quinta, quando ela descia pelo brao do padre Liset ou do respeitoso procurador
Freitas, ia a seu lado, mono, muito encolhido, torcendo com as mos midas o
forro das algibeiras, - vagamente assustado das espessuras de arvoredos e do
vigor das relvas altas.
Tomou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao p de uma ama velha. As
criadas de resto feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio
delas, beijocavam-no, faziam-lhe ccegas, e ele rolava por entre as saias, em
contato com os corpos, com gritinhos de contentamento. s vezes, quando a
senhora marquesa saa, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas; ele
abandonava-se, meio nu, com os seus modos lnguidos, os olhos quebrados,
uma roseta escarlate nas faces. As criadas, alm disso, utilizavam-no nas suas
intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tomou-se
enredador, muito mentiroso.
Aos onze anos ajudava missa, e aos sbados limpava a capela. Era o seu melhor
dia; fechava-se por dentro, colocava os santos em plena luz em cima duma mesa,
beijando-os com ternuras devotas e satisfaes gulosas; e toda a manh, muito
atarefado, cantarolando o Santssimo, ia tirando a traa dos vestidos das Virgens
e limpando com gesso e cr as aurolas dos Mrtires.
No entanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, mido e amarelado; nunca dava
uma boa risada; trazia sempre as mos nos bolsos. Estava constantemente
metido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas; bulia nas saias sujas,
cheirava os algodes postios. Era extremamente preguioso, e custava de
manh arranc-lo a uma sonolncia doentia em que ficava amolecido, todo

embrulhado nos cobertores e abraado ao travesseiro. J corcovava um pouco, e


os criados chamavam-lhe o padreca.

Num domingo gordo, uma manh, depois da missa, ao chegar-se ao terrao, a


senhora marquesa de repente caiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu
testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joana, entrasse aos
quinze anos no seminrio e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado de
realizar esta disposio piedosa. Amaro tinha ento treze anos.
As filhas da senhora marquesa deixaram logo Carcavelos e foram para Lisboa,
para a casa da Sra. D. Brbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado
para casa do tio, para a Estrela. O merceeiro era um homem obeso, casado com a
filha dum pobre empregado pblico, que o aceitara para sair da casa do pai, onde
a mesa era escassa, ela devia fazer as camas e nunca ia ao teatro. Mas odiava o
marido, as suas mos cabeludas, a loja, o bairro, e o seu apelido de Sra.
Gonalves. O marido, esse adorava-a como a delcia da sua vida, o seu luxo;
carregava-a de jias e chamava-lhe a sua duquesa.
Amaro no encontrou ali o elemento feminino e carinhoso, em que estivera
tepidamente envolvido em Carcavelos. A tia quase no reparava nele; passava os
seus dias lendo romances, as anlises dos teatros nos jornais, vestida de seda,
coberta de p-de-arroz, o cabelo em cachos, esperando a hora em que passava
debaixo das janelas, puxando os punhos, o Cardoso, gal da Trindade. O
merceeiro apropriou-se ento de Amaro como duma utilidade imprevista,
mandou-o para o balco. Fazia-o erguer
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logo s cinco horas da manh; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul,
molhando pressa o po na chvena de caf, ao canto da mesa da cozinha. De
resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio chamava-lhe o burro.
Pesava-lhes at o magro pedao de vaca que ele comia ao jantar. Amaro
emagrecia, e todas as noites chorava.

Sabia j que aos quinze anos devia entrar no seminrio. O tio todos os dias lho
lembrava:
- No penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro. Em tendo quinze
anos, para o seminrio. No tenho obrigao de carregar contigo! Besta na
argola, no est nos meus princpios!
E o rapaz desejava o seminrio, como um libertamento.
Nunca ningum consultara as suas tendncias ou a sua vocao. Impunham-lhe
uma sobrepeliz; a sua natureza passiva, facilmente dominvel, aceitava-a, como
aceitaria uma farda. De resto no lhe desagradava ser padre. Desde que sara das
rezas perptuas de Carcavelos conservara o seu medo do Inferno, mas perdera o
fervor pelos santos; lembravam-lhe porm os padres que vira em casa da
senhora marquesa, pessoas brancas e bem tratadas, que comiam ao lado das
fidalgas, e tomavam rap em caixas de ouro; e convinha-lhe aquela profisso em
que se cantam bonitas missas, se comem doces finos, se fala baixo com as
mulheres, - vivendo entre elas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,
- e se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um
anel de rubi no dedo mnimo; monsenhor Saavedra com os seus belos culos de
ouro, bebendo aos goles o seu copo de Madeira. As filhas da senhora marquesa
bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fora padre na Baia,
viajara, estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mos ungidas
que cheiravam a gua- de-colnia, apoiadas ao casto de ouro da bengala, todo
rodeado de senhoras em xtase e cheias dum riso beato, cantava, para as
entreter, com a sua bela voz:
Mulatinha da Baia, Nascida no Capuj...
Um ano antes de entrar para o seminrio, o tio f-lo ir a um mestre para se
afirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balco. Pela primeira vez na sua
existncia, Amaro possuiu liberdade. Ia s escola, passeava pelas ruas. Viu a
cidade, o exrcito de infantaria, espreitou s portas dos cafs, leu os cartazes dos
teatros. Sobretudo comeara a reparar muito nas mulheres - e vinham-lhe, de
tudo o que via, grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando

voltava da escola, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao
jardim da Estrela. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janelinha
num vo sobre os telhados. Encostava-se ali olhando, e via parte da cidade baixa,
que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gs: parecia-lhe perceber, vindo de
l, um rumor indefinido: era a vida que no conhecia e que julgava maravilhosa,
com cafs abrasados de luz, e mulheres que arrastam ruge- ruges de sedas pelos
peristilos dos teatros; perdia-se em imaginaes vagas, e de repente apareciamlhe no fundo negro da noite formas femininas, por fragmentos, uma perna com
botinas de duraque e a meia muito branca, ou um brao rolio arregaado at ao
ombro... Mas embaixo, na cozinha, a criada comeava a lavar a loua, cantando:
era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe ento desejos de descer, ir
roar-se por ela, ou estar a um canto a v-la escaldar os pratos; lembravam-lhe
outras mulheres que vira nas vielas, de saias engomadas e ruidosas, passeando
em cabelo, com botinas cambadas: e, da profundidade do seu ser, subia-lhe uma
preguia, como que a vontade de abraar algum, de no se sentir s. Julgava-se
infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo:
- Ento tu no estudas, mariola?
E da a pouco, sobre o Tito Lvio cabeceando de sono, sentindo-se desgraado,
roando os joelhos um contra o outro, torturava o dicionrio.
Por esse tempo comeava a sentir um certo afastamento pela vida de padre,
porque no poderia casar. J as convivncias da escola tinham introduzido na sua
natureza efeminada curiosidades, corrupes. s escondidas fumava cigarros:
emagrecia e andava mais amarelo.

Entrou no seminrio. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco


midos, as lmpadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as batinas negras,
o silncio regulamentado, o toque das sinetas - deram-lhe uma tristeza lgubre,
aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito agradou. Comearam a
trat-lo por tu, a admiti-lo, durante as horas de recreio ou nos passeios do
domingo, s conversas em que se contavam anedotas dos mestres, se caluniava o

reitor, e perpetuamente se lamentavam as melancolias da clausura: porque quase


todos falavam com saudade das existncias livres que tinham deixado: os da
aldeia no podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de
cantigas e de abraos, as filas da boiada que recolhe, enquanto um vapor se exala
dos prados; os
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que vinham das pequenas vilas lamentavam as ruas tortuosas e tranqilas de
onde se namoravam as vizinhas, os alegres dias de mercado, as grandes
aventuras do tempo em que se estuda latim. No lhes bastava o ptio do recreio
lajeado, com as suas rvores definhadas, os altos muros sonolentos, o montono
jogo da bola: abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Incio,
onde se faziam as meditaes da manh e se estudavam noite as lies; e
invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes - o almocreve que
viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia cantarolando ao
spero chiar das rodas, e at os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o
seu alforje escuro.
Da janela dum corredor via-se uma volta de estrada: tardinha uma diligncia
costumava passar, levantando a poeira, entre os estalidos do chicote, ao trote das
trs guas, carregadas de bagagem; passageiros alegres, que levavam os joelhos
bem embrulhados, sopravam o fumo dos charutos; quantos olhares os seguiam!
quantos desejos iam viajando com eles para as alegres vilas e para as cidades,
pela frescura das madrugadas ou sob a claridade das estrelas!
E no refeitrio, diante do escasso caldo de hortalia, quando o regente de voz
grossa comeava a ler monotonamente as cartas de algum missionrio da China
ou as Pastorais do senhor bispo, quantas saudades dos jantares de famlia! As
boas postas de peixe! O tempo da matana! Os rijes quentes que chiam no prato!
Os sarrabulhos cheirosos!
Amaro no deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto
enfastiado da tia coberto de p-de-arroz; mas insensivelmente ps-se tambm a
ter saudades dos seus passeios aos domingos, da claridade dogs e das voltas da

escola, com os livros numa correia, quando parava encostado vitrina das lojas a
contemplar a nudez das bonecas!
Lentamente, porm, com a sua natureza incaracterstica, foi entrando como uma
ovelha indolente na regra do seminrio. Decorava com regularidade os seus
compndios; tinha uma exatido prudente nos servios eclesisticos; e calado,
encolhido, curvando-se muito baixo diante dos lentes - chegou a ter boas notas.
Nunca pudera compreender os que pareciam gozar o seminrio com beatitude e
maceravam os joelhos, ruminando, com a cabea baixa, textos da Imitao ou de
Santo Incio; na capela, com os olhos em alvo, empalideciam de xtase; mesmo
no recreio, ou nos passeios, iam lendo algum volumezinho de Louvores a Maria;
e cumpriam com delcia as regras mais midas - at subir s um degrau de cada
vez, como recomenda S. Boaventura. A esses o seminrio dava um antegosto do
Cu: a ele s lhe oferecia as humilhaes duma priso, com os tdios duma
escola.
No compreendia tambm os ambiciosos; os que queriam ser caudatrios dum
bispo, e nas altas salas dos paos episcopais erguer os reposteiros de velho
damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados, servir uma
Igreja aristocrtica, e, diante das devotas ricas que se acumulam no frufru das
sedas sobre o tapete do altar-mor, cantar com voz sonora. Outros sonhavam at
destinos fora da Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lajeadas o
tlintlim dum sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um
chapu desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas largas
eiras cheias de medas, apear porta das adegas! E, a no ser alguns devotos,
todos, ou aspirando ao sacerdcio ou aos destinos seculares, queriam deixar a
estreiteza do seminrio para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as
mulheres.
Amaro no desejava nada:
- Eu nem sei, dizia ele melancolicamente.
No entretanto, escutando por simpatia aqueles para quem o seminrio era o
"tempo das gals",

saia muito perturbado daquelas conversas cheias de impaciente ambio da vida


livre. s vezes falavam de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janelas,
as peripcias da noite negra pelos negros caminhos: anteviam balces de
tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro
ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir, e, no
fundo das suas imaginaes e dos seus sonhos, ardia como uma brasa silenciosa o
desejo da Mulher.
Na sua cela havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre a
esfera, com o olhar errante pela luz imortal, calcando aos ps a serpente. Amaro
voltava-se para ela como para um refgio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas,
ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas
diante de si uma linda moa loura; amava-a; suspirava, despindo-se olhava-a de
revs lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da
tnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca... Julgava
ento ver os olhos do Tentador luzir na escurido do quarto; aspergia a cama de
gua benta; mas no se atrevia a revelar estes delrios, no confessionrio, ao
domingo.
Quantas vezes ouvira, nas prdicas, o mestre de Moral falar, com a sua voz
roufenha, do Pecado, compar-lo serpente e com palavras untuosas e gestos
arqueados, deixando cair vagarosamente a pompa melflua dos seus perodos,
aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos ps a
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serpente ominosa! E depois era o mestre de Teologia mstica que falava,
sorvendo o seu rap, no dever de vencer a Natureza! E citando S. Joo de
Damasco e S. Crislogo, S. Cipriano e S. Jernimo, explicava os antemas dos
santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expresses da Igreja,
Serpente, Dardo, Filha da Mentira, Porta do Inferno, Cabea do Crime,
Escorpio...
- E como disse o nosso padre S. Jernimo - e assoava-se estrondosamente Caminho de iniqidade, iniquita via!

At nos compndios encontrava a preocupao da Mulher! Que ser era esse, pois,
que atravs de toda a teologia ora era colocada sobre o altar como a Rainha da
Graa, ora amaldioada com apstrofes brbaras? Que poder era o seu, que a
legio dos santos ora se arremessa ao seu encontro, numa paixo exttica,
dando-lhe por aclamao o profundo reino dos Cus, - ora vai fugindo diante
dela como do Universal Inimigo, com soluos de terror e gritos de dio, e
escondendo-se, para a no ver, nas tebaidas e nos claustros, vai ali morrendo do
mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbaes: elas renasciam,
desmoralizavam-no perpetuamente: e j antes de fazer os seus votos desfalecia
no desejo de os quebrar.
E em redor dele, sentia iguais rebelies da natureza: os estudos, os jejuns, as
penitncias podiam domar o corpo, dar-lhe hbitos maquinais, mas dentro os
desejos moviam-se silenciosamente, como num ninho serpentes imperturbadas.
Os que mais sofriam eram os sangneos, to doloridamente apertados na Regra
como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando
estavam ss, o temperamento irrompia: lutavam, faziam foras, provocavam
desordens. Nos linfticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas,
os silncios moles: desforravam-se ento no amor dos pequenos vcios: jogar
com um velho baralho, ler um romance, obter de intrigas demoradas um mao de
cigarros - quantos encantos do pecado!
Amaro por fim quase invejava os estudiosos; ao menos esses estavamcontentes,
estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silncio da alta livraria,
eram respeitados, usavam culos, tomavam rap. Ele mesmo tinha s vezes
ambies repentinas de cincia; mas diante dos vastos infolios vinha-lhe um
tdio insupervel. Era no entanto devoto: rezava, tinha f ilimitada em certos
santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminrio! A
capela, os chores do ptio, as comidas montonas do longo refeitrio lajeado, os
cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria
bom, puro, crente, se estivesse na liberdade duma rua ou na paz dum quintal,
fora daquelas negras paredes. Emagrecia, tinha suores ticos: e mesmo no ltimo
ano, depois do servio pesado da Semana Santa, como comeavam os calores,
entrou na enfermaria com uma febre nervosa.

Ordenou-se enfim pelas tmporas de S. Mateus; e pouco tempo depois recebeu,


ainda no seminrio, esta carta do Sr. padre Liset:
"Meu querido filho e novo colega.- Agora que est ordenado, entendo em minha
conscincia que devo dar-lhe conta do estado dos seus negcios, pois quero
cumprir at o fim o encargo com que carregou os meus ombros dbeis a nossa
chorada marquesa, atribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe
deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco devam importar a uma alma
votada ao sacerdcio, so sempre as boas contas que fazem os bons amigos.
Saber, pois, meu querido filho, que o legado da querida marquesa - para quem
deve erguer em sua alma uma gratido eterna - est inteiramente exausto.
Aproveito esta ocasio para lhe dizerque depois da morte de seu tio, sua tia,
tendo liquidado o estabeleci mento, se entregou a um caminho que o respeito me
impede de qualificar: caiu sob o imprio das paixes, e tendo-se ligado
ilegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje
estabeleceu uma casa de hspedes na Rua dos Calafates n? 53. Se toco nestas
impurezas, to imprprias de que um tenro levita, como o meu querido filho,
tenha delas conhecimento, porque lhe quero dar cabal relao da sua
respeitvel famlia. Sua irm, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda
que no casamento no o ouro que devemos apreciar, todavia importante, para
futuras circunstncias, que o meu querido filho esteja de posse deste fato. Do que
me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguesia
de Feiro, na Gralheira, vou falar com algumas pessoas importantes que tm a
extrema bondade de atender um pobre padre que s pede a Deus misericrdia.
Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da
virtude, de que sei que a sua boa alma est repleta, e creia que se encontra a
felicidade neste nosso santo ministrio quando sabemos compreender quantos
so os blsamos que derrama no peito e quantos os refrigrios que d - o servio
de Deus.' Adeus, meu querido filho e novo colega. Creia que sempre o meu
pensamento estar com o pupilo da nossa chorada marquesa, que decerto do
Cu, onde a elevaram as suas virtudes, suplica Virgem, que ela tanto serviu e
amou, a felicidade do seu caro pupilo ". Liset.

13
"P.S. - O apelido do marido de sua irm Trigoso. " Liset.
Dois meses depois Amaro foi nomeado proco de Feiro, na Gralheira, serra da
Beira Alta. Esteve ali desde Outubro at o fim das neves.
Feiro uma parquia pobre de pastores e naquela poca quase desabitada.
Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tdio lareira, ouvindo
fora o Inverno bramir na serra. Pela Primavera vagaram nos distritos de
Santarm e de Leiria parquias populosas, com boas cngruas. Amaro escreveu
logo irm contando a sua pobreza em Feiro; ela mandou- lhe, com
recomendaes de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro
partiu imediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham- lhe fortificado o
sangue; voltava robusto, direito, simptico, com uma boa cor na pele trigueira.
Logo que chegou a Lisboa foi Rua dos Calafates no 53, a casa da tia: achou-a
velha, com laos vermelhos numa cuia enorme, toda coberta de p-de-arroz.
Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros
braos a Amaro.
- Como ests bonito! Ora no h! Quem te viu? Ih, Jesus! Que mudana!
Admirava-lhe a batina, a coroa: e contando-lhe as suas desgraas, com
exclamaes sobre a salvao da sua alma e sobre a carestia dos gneros, foi-o
levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguo.
- Ficas aqui como um abade, disse-lhe ela. E baratinho!... Ai! ter- te de graa
queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joozinho!... Ai! desculpa, Amaro!
Estou sempre com Joozinho na cabea...
Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Lus. Tinha ido para Frana.
Lembrou-se ento da filha mais nova da senhora marquesa de Alegros, a Sra. D.
Lusa, que estava casada com o conde de Ribamar, conselheiro de Estado, com
influncia, regenerador fiel desde cinqenta e um, duas vezes ministro do reino.

E, por conselho da tia, Amaro, logo que meteu o seu requerimento, foi uma
manh a casa da Sra. condessa de Ribamar, a Buenos Aires. porta um coup
esperava.
- A senhora condessa vai sair, disse um criado de gravata branca e quinzena de
alpaca, encostado ombreira do ptio, de cigarro na boca.
Nesse momento, duma porta de batentes de baeta verde, sobre um degrau de
pedra, ao fundo do ptio lajeado, uma senhora saa, vestida de claro. Era alta,
magra, loura, com pequeninos cabelos frisados sobre a testa, lunetas de ouro
num nariz comprido e agudo, e no queixo um sinalzinho de cabelos claros.
- A senhora condessa j me no conhece? disse Amaro com o chapu na mo,
adiantando-se curvado. Sou o Amaro.
- O Amaro? - disse ela, como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem ele ! Ora
no h! Est um homem. Quem diria!
Amaro sorria-se.
- Eu podia l esperar! continuou ela admirada. E est agora em Lisboa?
Amaro contou a sua nomeao para Feiro, a pobreza da parquia...
- De maneira que vim requerer, senhora condessa.
Ela escutava-o com as mos apoiadas numa alta sombrinha de seda clara, e
Amaro sentia vir dela
um perfume de p-de-arroz e uma frescura de cambraias.
- Pois deixe estar, disse ela, fique descansado. Meu marido h-de falar. Eu me
encarrego disso.
Olhe, venha por c. - E com o dedo sobre o canto da boca: - Espere, amanh vou
para Sintra. Domingo, no. O melhor daqui a quinze dias. Daqui a quinze dias
pela manh, sou certa. - E rindo com os seus largos dentes frescos: - Parece que
o estou a ver traduzir Chateaubriand com a mana Lusa! Como o tempo passa!
- Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
- Sim, bem. Est numa quinta em Santarm.

Deu-lhe a mo, calada de peau de sude, num aperto sacudido que fez tilintar os
seus braceletes
de ouro, e saltou para o coup, magra e ligeira, com um movimento que levantou
brancuras de saias. Amaro comeou ento a esperar. Era em Julho, no pleno
calor. Dizia missa pela manh em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e
casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. s vezes ia conversar com a
tia para a sala de jantar; as janelas estavam cerradas, na penumbra zumbia a
montona sussurrao das moscas; a tia a um canto do velho canap de palhinha
fazia croch, com a luneta encavalada na ponta do nariz; Amaro, bocejando,
folheava um antigo volume do Panorama.
noitinha saa, a dar duas voltas no Rossio. Abafava-se, no ar pesado e imvel: a
todos os cantos se apregoava monotonamente gua fresca! Pelos bancos, debaixo
das rvores, vadios remendados dormitavam; em redor da Praa, sem cessar,
caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as

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claridades dos cafs reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia,
bocejando, a sua preguia pelos passeios das ruas.
Amaro ento recolhia, e no seu quarto, com a janela aberta ao calor da noite,
estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros,
ruminava as suas esperanas. A cada momento lhe acudiam, com rebates de
alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido h- de
falar! E via-se j proco numa bonita vila, numa casa com quintal cheio de couves
e de saladas frescas, tranqilo e importante, recebendo bandejas de doce das
devotas ricas.
Vivia ento num estado de espirito muito repousado. As exaltaes, que no
seminrio lhe causava a continncia, tinham-se acalmado com as satisfaes que
lhe dera em Feiro uma grossa pastora, que ele gostava de ver ao domingo tocar
missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoa, e a face a

estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao Cu as oraes que


manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se
regaladamente.
No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
- No est, disse-lhe um criado da cavalaria.
Ao outro dia voltou, j inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro
subiu devagar,
pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho, fixado com vares de metal.
Da alta clarabia caia uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado
numa banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado parede branca
envernizada, com a cabea pendente e o beio cado, dormia. Fazia um grande
calor; aquele alto silncio aristocrtico aterrava Amaro; esteve um momento,
com o seu guarda-sol pendente do dedo mnimo, hesitando; tossiu devagarinho,
para acordar o criado que lhe parecia terrvel com a sua bela sua preta, o seu rico
grilho de ouro; e ia descer, quando ouviu por detrs dum reposteiro um riso
grosso de homem. Sacudiu com o leno o p esbranquiado dos sapatos, puxou
os punhos, e entrou muito vermelho numa larga sala com estofos de damasco
amarelo; uma grande luz entrava das varandas abertas, e viam-se arvoredos de
jardim. No meio da sala trs homens de p conversavam. Amaro adiantou-se,
balbuciou:
- No sei se incomodo...
Um homem alto, de bigode grisalho e culos de ouro, voltou-se surpreendido,
com o charuto ao canto da boca e as mos nos bolsos. Era o senhor conde.
- Sou o Amaro...
- Ah, disse o conde, o Sr. padre Amaro! Conheo muito bem! Tem a bondade...
Minha mulher falou-me. Tem a bondade.
E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quase calvo, de calas brancas muito
curtas:

- a pessoa de quem lhe falei. - Voltou-se para Amaro: - o senhor ministro.


Amaro curvou-se, servilmente.
- O Sr. padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi criado de pequeno em casa de
minha sogra.
Nasceu l, creio eu...
- Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro, que se conservava afastado, com o
guarda-sol na
mo.
- Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora - j no h disso! f-lo padre.
Houve at um legado, creio eu... Enfim, aqui o temos proco... Onde, Sr. padre
Amaro? - Feiro, excelentssimo senhor.
- Feiro?... disse o ministro estranhando o nome.
- Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado.
Era um homem magro, entalado numa sobrecasaca azul, muito branco de pele,
com soberbas
suas dum negro de tinta, e um admirvel cabelo lustroso de pomada, apartado
at ao cachao numa risca perfeita.
- Enfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguesia pobre, sem
distraes, com um clima horrvel...
- Eu meti j requerimento, excelentssimo senhor, arriscou Amaro timidamente.
- Bem, bem, afirmou o ministro. H-de arranjar-se, - e mascava o seu charuto.
- uma justia, disse o conde. Mais, uma necessidade! Os homens novos e
ativos devem estar
nas parquias difceis, nas cidades... claro! Mas no; olhe, l ao p da minha
quinta, em Alcobaa, h um velho, um gotoso, um padre-mestre antigo, um
imbecil!... Assim perde-se a f.

- verdade, disse o ministro, mas essas colocaes nas boas parquias devem
naturalmente ser recompensas dos bons servios. necessrio o estmulo...
- Perfeitamente, replicou o conde; mas servios religiosos, profissionais,
servios Igreja, no servios aos governos.
O homem das soberbas suas negras teve um gesto de objeo. - No acha?
perguntou-lhe o conde.
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- Respeito muito a opinio de vossa excelncia, mas se me permite... Sim, digo
eu, os procos na cidade so-nos dum grande servio nas crises eleitorais. Dum
grande servio!
- Pois sim. Mas...
- Olhe vossa excelncia, continuou ele, sfrego da palavra. Olhe vossa excelncia
em Tomar. Por que perdemos? Pela atitude dos procos. Nada mais.
O conde acudiu:
- Mas perdo, no deve ser assim; a religio, o clero no so agentes eleitorais.
- Perdo.., queria interromper o outro.
O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras
pausadas, cheias da
autoridade dum vasto entendimento:
- A religio, disse ele, pode, deve mesmo auxiliar os governos no seu
estabelecimento, operando,
por assim dizer, como freio...
- Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo pelculas mascadas
de charuto.
- Mas descer s intrigas, continuou o conde devagar, aos imbrglios... Perdoeme meu caro

amigo, mas no dum cristo.


- Pois sou-o, senhor conde, exclamou o homem das suas soberbas. Sou-o a
valer! Mas tambm
sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as
garantias mais slidas...
- Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero, e
desacredita a poltica.
- Mas so ou no as maiorias um princpio sagrado? gritava rubro o das suas,
acentuando o
adjetivo.
- So um principio respeitvel.
- Upa! upa, excelentssimo senhor! Upa!
O padre Amaro escutava, imvel.
- Minha mulher h-de querer v-lo, disse-lhe ento o conde. E dirigindo-se a
um reposteiro que
levantou: - Entre. o Sr. padre Amaro, Joana!
Era uma sala forrada de papel branco acetinado, com mveis estofados de
casimira clara. Nos
vos das janelas, entre as cortinas de pregas largas duma fazenda adamascada cor
de leite, apanhadas quase junto do cho por faixas de seda, arbustos delgados,
sem flor, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma meia-luz fresca
dava a todas aquelas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas duma cadeira
uma arara empoleirada, firme num s p negro, coava vagarosamente, com
contraes aduncas, a sua cabea verde. Amaro, embaraado, curvou-se logo
para um canto do sof, onde viu os cabelinhos louros e frisados da senhora
condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta
reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante dela numa
cadeira baixa, com os cotovelos sobre os joelhos abertos, ocupava- se em
balanar, como um pndulo, um pince- nez de tartaruga. A condessa tinha no

regao uma cadelinha, e com a sua mo seca e fina cheia de veias, acamava-lhe o
plo branco como algodo.
- Como est, Sr. Amaro? - A cadela rosnou. - Quieta, Jia. Sabe que j falei no seu
negcio? Quieta, Jia... O ministro est ali.
- Sim, minha senhora, disse Amaro, de p.
- Sente-se aqui, Sr. padre Amaro.
Amaro pousou-se beira dum fauteuil, com o seu guarda-sol na mo, - e reparou
ento numa
senhora alta que estava de p, junto do piano, falando com um rapaz louro.
- Que tem feito estes dias, Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua
irm?
- Est em Coimbra, casou.
- Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anis.
Houve um silncio. Amaro, de olhos baixos, passava, com um gesto embaraado
e errante, os
dedos pelos beios.
- O Sr. padre Liset est para fora? perguntou.
- Est em Nantes. Tinha uma irm a morrer, disse a condessa. - Est o mesmo
sempre: muito
amvel, muito doce. a alma mais virtuosa!...
- Eu prefiro o padre Flix, disse o rapaz gordo, estirando as pemas.
- No diga isso, primo! Jesus, brada aos Cus! Pois ento, o padre Liset, to
respeitvel!... E
depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... V-se que um
corao delicado... ' - Pois sim, mas o padre Flix...
- Ai, nem diga isso! Que o padre Flix uma pessoa de muita virtude, decerto;
mas o padre Liset tem uma religio mais... - e com um gesto delicado procurava a

palavra: - mais fina, mais distinta... Enfim, vive com outra gente. - E sorrindo
para Amaro: - Pois no acha?
Amaro no conhecia o padre Flix, no se recordava do padre Liset. - J velho o
Sr. padre Liset, observou ao acaso.
16
- Cr? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que
entusiasmo!... Ai, outra coisa! - E voltando-se para a senhora que estava junto
do piano: - Pois no achas, Teresa?
- J vou, respondeu Teresa, toda absorvida.
Amaro afirmou-se ento nela. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua
alta e forte estatura, uma linha de ombros e de seio magnfica; os cabelos pretos
um pouco ondeados destacavam sobre a palidez do rosto aquilino semelhante ao
perfil dominador de Maria Antonieta; o seu vestido preto, de mangas curtas e
decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada
de rendas negras, o tom montono das alvuras da sala; o colo, os braos estavam
cobertos por uma gaze preta, que fazia aparecer atravs da brancura da carne; e
sentia-se nas suas formas a firmeza dos mrmores antigos, com o calor dum
sangue rico.
Falava baixo, sorrindo, numa lngua spera que Amaro no compreendia,
cerrando e abrindo o seu leque preto - e o rapaz louro, bonito, escutava-a
retorcendo a ponta de um bigode fino, com um quadrado de vidro entalado no
olho.
- Havia muita devoo na sua parquia, Sr. Amaro? perguntava, no entanto, a
condessa.
- Muita, muito boa gente.
- onde ainda se encontra alguma f, nas aldeias, considerou ela com um tom
piedoso. -

Queixou-se da obrigao de viver na cidade, nos cativeiros do luxo: desejaria


habitar sempre na sua quinta de Carcavelos, rezar na pequena capela antiga,
conversar com as boas almas da aldeia! - e a sua voz tornara-se terna.
O rapaz rechonchudo ria-se:
- Ora, prima! dizia, ora, prima! - No, ele, se o obrigassem a ouvir missa, numa
capelinha de aldeia, at lhe parecia que perdia a f!... No compreendia, por
exemplo, a religio sem msica... Era l possvel uma festa religiosa, sem uma
boa voz de contralto?
- Sempre mais bonito, disse Amaro.
- Est claro que . outra coisa! Tem cachet! prima, lembra-se daquele tenor...
como se chamava ele? O Vidalti! Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira de
Endoenas, nos Inglesinhos? O tantum ergo?
- Eu preferia-o no Baile de Mscaras, disse a condessa.
- Olhe que no sei, prima, olhe que no sei!
No entanto o rapaz louro viera apertar a mo senhora condessa, falando-lhe
baixo, muito
risonho; Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a doura do seu olhar azul;
reparou que lhe cara uma luva, e apanhou-lha servilmente. Quando ele saiu
Teresa, depois de se ter aproximado vagarosamente da janela e olhando para a
rua - foi sentar-se numa causeuse com um abandono que punha em relevo a
magnfica escultura do seu corpo, e voltando-se preguiosamente para o rapaz
rechonchudo:
- Vamo-nos, Joo?
A condessa disse-lhe ento:
- Sabes que o Sr. padre Amaro foi criado comigo em Benfica?
Amaro fez-se vermelho: sentia que Teresa pousava sobre ele os seus belos olhos
dum negro

mido como o cetim preto coberto de gua.


- Est na provncia agora? perguntou ela, bocejando um pouco.
- Sim, minha senhora, vim h dias.
- Na aldeia? continuou ela, abrindo e cerrando vagarosamente o seu leque.
Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando o
cabo do guardasol:
- Na serra, minha senhora.
- Imagina tu, acudiu a condessa, um horror! H sempre neve, diz que a igreja
no tem telhado, so tudo pastores. Uma desgraa! Eu pedi ao ministro a ver se o
mudvamos. Pede-lhe tu tambm...
- O qu? disse Teresa.
A condessa contou que Amaro requerera para uma parquia melhor. Falou de sua
me, da amizade que ela tinha a Amaro...
- Morria-se por ele. Ora um nome que ela lhe dava... No se lembra?
- No sei, minha senhora.
- Frei Maleitas!... Tem graa! Como o Sr. Amaro era amarelito, sempre metido na
capela...
Mas Teresa, dirigindo-se condessa:
- Sabes com quem se parece este senhor?
A condessa afirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.
- No se parece com aquele pianista do ano passado? continuou Teresa. No me
lembra agora o
nome...
- Bem sei, o Jalette, disse a condessa. - Bastante. No cabelo, no.
17
- Est visto, o outro no tinha coroa!
Amaro fez-se escarlate. Teresa ergueu-se arrastando a sua soberba cauda,

sentou-se ao piano.
- Sabe msica? perguntou, voltando-se para Amaro.
- A gente aprende no seminrio, minha senhora.
Ela correu a mo, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e
tocou a frase do
Rigoleto, parecida com o Minuete de Mozart, que diz Francisco I, despedindo-se,
no sarau do primeiro ato, da senhora de Crcy, - e cujo ritmo desolado tem a
abandonada tristeza de amores que findam, e de braos que se desenlaam em
despedidas supremas.
Amaro estava enlevado. Aquela sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano
apaixonado, o colo de Teresa que ele via sob a negra transparncia da gaze, as
suas tranas de deusa, os tranqilos arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe
vagamente a idia duma existncia superior, de romance, passada sobre alcatifas
preciosas, em coups acolchoados, com rias de peras, melancolias de bom
gosto e amores dum gozo raro. Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a
msica chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu
cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e,
assustado, demora o seu prazer - pensando que vai voltar dureza das cdeas
secas e poeira dos caminhos.
No entanto Teresa, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga ria
inglesa de Haydn, que diz to finamente as melancolias da separao:
The village seems dead and asleep When Lubin is away!...
- Bravo! bravo! exclamou o ministro da Justia, aparecendo porta, batendo
docemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
- Tenho um pedido a fazer-lhe, Sr. Correia, disse Teresa erguendo- se logo. O
ministro veio, com uma pressa galante:
- Que , minha senhora? que ?
O conde e o sujeito de magnficas suas tinham entrado discutindo ainda. - A
Joana e eu temos que lhe pedir, disse Teresa ao ministro.

- Eu j pedi! j pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.


- Mas, minhas senhoras, disse o ministro, sentando-se confortavelmente, com
as pernas muito estiradas, a face satisfeita: de que se trata? uma coisa grave?
meu Deus! prometo, prometo solenemente...
- Bem, disse Teresa, batendo-lhe com o leque no brao. Ento qual a melhor
parquia vaga?
- Ah! disse o ministro, compreendendo e olhando para Amaro, que vergou os
ombros, corado.
O homem das suas, que estava de p fazendo saltar circunspectamente os
berloques, adiantouse, cheio de informaes:
- Das vagas, minha senhora, Leiria, capital do distrito e sede do bispado.
- Leiria? disse Teresa. Bem sei, onde h umas runas?
- Um Castelo, minha senhora, edificado por D. Dinis.
- Leiria excelente!
- Mas perdo, perdo! disse o ministro, Leiria, sede do bispado, uma cidade... O
Sr. padre Amaro
um eclesistico novo...
- Ora, Sr. Correia! exclamou Teresa, e o senhor no novo?
O ministro sorriu, curvando-se.
- Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coava ternamente a
cabea da arara. - Parece-me intil, o pobre Correia est vencido! A prima Teresa
chamou-lhe novo!
- Mas perdo, protestou o ministro. No me parece que seja uma lisonja
excepcional; eu no sou
tambm to antigo...
- Oh, desgraado! gritou o conde, lembra-te que j conspiravas em 1820.
- Era meu pai, caluniador, era meu pai!
Todos riram.
- Sr. Correia, disse Teresa, est entendido. O Sr. padre Amaro vai para Leiria!

- Bem, bem, sucumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas uma tirania!
- Thank you, fez Teresa, estendendo-lhe a mo.
- Mas, minha senhora, estou a estranh-la, disse o ministro, fixando-a.
- Estou contente hoje, disse ela. Olhou um momento para o cho, distrada,
dando pequeninas
pancadas no vestido de seda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e
recomeou a doce ria inglesa:
18
The village seems dead and asleep When Lubin is away!...
Entretanto, o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.
- negcio feito, disse-lhe ele. O Correia entende-se com o bispo. Daqui a uma
semana est nomeado. Pode ir descansado.
Amaro fez uma cortesia, e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:
- Senhor ministro, eu agradeo...
- senhora condessa, senhora condessa, disse o ministro sorrindo.
- Minha senhora, eu agradeo, veio ele dizer condessa, todo curvado.
- Ai, agradea a Teresa. Ela quer ganhar indulgncias, parece.
- Lembre-me nas suas oraes, Sr. padre Amaro, disse ela. E continuou, com a
sua voz magoada, dizendo ao piano - as tristezas da aldeia quando Lubin est
ausente!
Amaro da a uma semana soube o seu despacho. Mas no tomara a esquecer
aquela manh em casa da Sra. condessa de Ribamar, - o ministro de calas muito
curtas, enterrado na poltrona, prometendo o seu despacho; a luz clara e calma do
jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes... Cantava-lhe sempre no
crebro aquela ria triste do Rigoleto: e perseguia-o a brancura dos braos de
Teresa, sob a gaze negra! Instintivamente via-os enlaarem-se devagar, devagar,
em torno do pescoo airoso do rapaz louro: detestava-o ento, e a lngua brbara

que falava, e a terra hertica de onde viera: e latejavam-lhe as fontes idia de


que um dia pode- ria confessar aquela mulher divina, e sentir o seu vestido de
seda preta roar pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do
confessionrio.
Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraos da tia, partiu para Santa
Apolnia, com um galego que lhe levava o ba. A madrugada rompia. A cidade
estava silenciosa, os candeeiros apagavam-se. s vezes, uma carroa passava
rolando, abalando a calada; as ruas pareciam-lhe interminveis; saloios
comeavam a chegar montados nos seus burros, com as pernas balouadas,
cobertas de altas botas enlameadas; numa ou noutra rua uma voz aguda j
apregoava os jornais; e os moos dos teatros corriam com o pote da massa,
pregando nas esquinas os cartazes.
Quando chegou a Santa Apolnia a claridade do sol alaranjava o ar por detrs dos
montes da Outra Banda; o rio estendia-se, imvel, riscado de correntes de cor de
ao sem lustre; e j alguma vela de falua passava, vagarosa e branca.
IV
Ao outro dia, na cidade, falava-se da chegada do proco novo, e todos sabiam j
que tinha trazido um ba de lata, que era magro e alto, e que chamava PadreMestre ao cnego Dias.
As amigas da S. Joaneira - as ntimas - a D. Maria da Assuno, as Gansosos,
tinham ido logo pela manh a casa dela para se porem ao fato... Eram nove horas,
Amaro sara com o cnego. A S. Joaneira, radiosa, importante, recebeu-as no alto
da escada, de mangas arregaadas, nos arranjos da manh; e imediatamente,
com animao, contou a chegada do proco, as suas boas maneiras, o que tinha
dito...
- Mas venham vocs c abaixo, sempre quero que vejam.
Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o ba de lata, uma prateleira que lhe
arranjara para os livros. - Est muito bem, est muito bem, diziam as velhas
andando pelo quarto, devagar, com respeito,

como numa igreja.


- Rico capote! - observou D. Joaquina Gansoso, apalpando o pano das largas
bandas que
pendiam ao comprido do cabide. - obra para um par de moedas!
- E a boa roupa branca! disse a S. Joaneira, erguendo a tampa do ba.
O grupo das velhas curvou-se com admirao.
- A mim o que me consola que ele seja um rapaz novo, disse D. Maria da
Assuno,
piedosamente.
- Tambm a mim, disse com autoridade a D. Joaquina Gansoso.
Estar a gente a confessar-se e a ver o pingo do rap, como era com o Raposo,
credo! at se perde
a devoo! E o bruto do Jos Miguis! No, l isso Deus me mate com gente nova!
A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do proco, - um crucifixo que
estava ainda embrulhado num jornal velho, o lbum de retratos, onde o primeiro
carto era uma fotografia do Papa
abenoando a cristandade. Todas se extasiaram. 19
- o mais que se pode, diziam, o mais que se pode!
Ao sair, beijando muito a S. Joaneira, felicitaram-na porque adquirira,
hospedando o proco, uma autoridade quase eclesistica.
- Vocs apaream noite, disse ela do alto da escada.
- Pudera!... gritou D. Maria da Assuno, j porta da rua, traando o seu
mantelete. - Pudera!... Para o vermos vontade!
Ao meio-dia veio o Libaninho, o beato mais ativo de Leiria; e subindo a correr os
degraus, j gritava com a sua voz fina:
- S. Joaneira!
- Sobe, Libaninho, sobe, disse ela, que costurava janela.

- Ento o senhor proco veio, hem? perguntou o Libaninho, mostrando porta


da sala de jantar o
seu rosto gordinho cor de limo, a calva luzidia; e vindo para ela com o passinho
mido, um gingar de quadris:
- Ento que tal, que tal? tem bom feitio?
A S. Joaneira recomeou a glorificao de Amaro: a sua mocidade, o seu ar
piedoso, a brancura dos seus dentes...
- Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura devota. -.
Mas no se podia demorar, ia para a repartio! -. Adeus, filhinha, adeus! - E
batia com a sua mo papuda no ombro da S. Joaneira. - Ests cada vez mais
gordinha! Olha que rezei ontem a Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!
A criada tinha entrado.
- Adeus, Rua! Ests magrinha: pega-te com a Senhora Me dos Homens. - E
avistando Amlia pela porta do quarto entreaberta: - Ai, que ests mesmo uma
flor, Melinha! Quem se salvava na tua graa bem eu sei!
E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada
rapidamente, ganindo: - Adeusinho, adeusinho, pequenas!
- Libaninho, vens noite?
- Ai, no posso, filha, no posso. - E a sua vozinha era quase chorosa. - Olha que
amanh Santa
Brbara: tem seis Padre-Nossos de direito!

Amaro fora visitar o chantre com o cnego Dias, e tinha-lhe entregado uma carta
de recomendao do Sr. conde de Ribamar.
- Conheci muito o Sr, conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis, no
Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: h que anos isso vai!

E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, falou com satisfao do seu


tempo; contou anedotas da Junta, apreciou os homens de ento, imitou-lhes a
voz (era uma especialidade de sua excelncia), os tiques, as caturrices, sobretudo Manuel Passos, que ele descrevia passeando na Praa Nova, com o
comprido casaco pardo e o chapu de grandes abas, dizendo:
- nimo patriotas! o Xavier agenta-se!
Os senhores eclesisticos da cmara riram com gozo. Houve uma grande
cordialidade. Amaro saiu muito lisonjeado.
Depois jantou em casa do cnego Dias, e foram passear ambos pela estrada de
Marrazes. Uma luz doce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos
outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga tranqilidade; fumos
esbranquiados saam dos casais, e sentiam-se os chocalhos melanclicos dos
gados que recolhem. Amaro parou junto da Ponte, e disse, olhando em redor a
paisagem suave:
- Pois senhores, parece-me que me hei-de dar bem aqui!
- H-de-se dar regaladamente, afirmou o cnego, sorvendo o seu rap.
Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joaneira.
As velhas amigas estavam j na sala de jantar. Ao p do candeeiro de petrleo,
Amlia
costurava,
A Sra. D. Maria da Assuno vestira-se, como nos domingos, de seda preta: o seu
chin, dum
louro avermelhado, estava coberto com as rendas de um enfeite negro; as mos
descarnadas, caladas de mitenes, solenemente pousadas no regao, reluziam de
anis; do broche sobre o pescoo at ao cinto, um grosso grilho de ouro caa com
passadores lavrados. Conservava-se direita e cerimoniosa, com a cabea um
pouco de lado, os culos de ouro assentes sobre o nariz acavalado: tinha no
queixo um grande sinal cabeludo; e quando se falava de devoes ou de milagres
dava um jeito ao pescoo, e abria um sorriso

20
mudo que descobria os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas
como cunhas. Era viva e rica, e sofria dum catarro crnico.
- Aqui tem o senhor proco novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joaneira.
Ela ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, comovida.
- Estas so as senhoras Gansosos, h-de ter ouvido... disse a S. Joaneira ao
proco.
Amaro cumprimentou timidamente. Eram duas irms. Passavam por ter algum
dinheiro, mas
costumavam receber hspedes. A mais velha, a Sra. D. Joaquina Gansoso, era
uma pessoa seca, com uma testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz
arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no seu xale, direita, com os
braos cruzados, falava perpetuamente, numa voz dominante e aguda, cheia de
opinies. Dizia mal dos homens e dava-se toda Igreja.
A irm, a Sra. D. Ana, era extremamente surda. Nunca falava, e com os dedos
cruzados sobre o regao, os olhos baixos, fazia girar tranqilamente os dois
polegares. Nutrida, com o seu perptuo vestido preto de riscas amarelas, um rolo
de arminho ao pescoo, dormitava toda a noite, e s acentuava a sua presena de
vez em quando por suspiros agudos; dizia- se que tinha uma paixo funesta pelo
recebedor do correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em
recortar papis para caixas de doce.
Estava tambm a Sra. D. Josefa, a irm do cnego Dias. Tinha a alcunha de
castanha pilada. Era uma criaturinha mirrada, de linhas aduncas, pele engelhada
e cor de cidra, voz sibilante; vivia num perptuo estado de irritao, os olhinhos
sempre assanhados, contraes nervosas de birra, toda saturada de fel. Era
temida. O maligno doutor Godinho chamava-lhe a estao central das intrigas de
Leiria.
- Ento passeou muito, senhor proco? perguntou ela logo empertigando-se.

- Fomos quase at l ao fim da estrada de Marrazes, disse o cnego, sentando-se


pesadamente por detrs da S. Joaneira.
- No achou bonito, senhor proco? acudiu a Sra. D. Joaquina Gansoso.
- Muito bonito.
Falaram das lindas paisagens de Leiria, das boas vistas: a Sra. D. Josefa gostava
muito do
passeio ao p do rio; at j ouvira dizer que nem em Lisboa havia coisa assim. D.
Joaquina Gansoso preferia a igreja da Encarnao, no alto.
- Desfruta-se muito, dali.
Amlia disse sorrindo:
- Eu por mim gosto daquele bocado ao p da Ponte, debaixo dos chores. - E
partindo com os
dentes o fio da costura: - to triste!
Amaro olhou para ela, ento, pela primeira vez. Tinha um vestido azul muito
justo ao seio
bonito; o pescoo branco e cheio saa dum colarinho voltado; entre os beios
vermelhos e frescos o esmalte dos dentes brilhava; e pareceu ao proco que um
buozinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra sutil e doce.
Houve um pequeno silncio, - o cnego Dias com o beio descado ia j cerrando
as plpebras.
- Que ser feito do Sr. padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.
- Est talvez com a enxaqueca, pobre de Cristo! lembrou piedosamente a Sra. D.
Maria da
Assuno.
Um rapaz que estava junto do aparador disse ento:
- Eu vi-o hoje a cavalo, ia para os lados da Barrosa.
- Homem! disse logo, com azedume, a irm do cnego, a Sra. D. Josefa Dias,
milagre ter o

senhor reparado!
- Por qu, minha senhora? disse ele erguendo-se e chegando-se ao grupo das
velhas.
Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pele branca, regular, um pouco
fatigado,
destacava bem um bigode pequeno muito negro, cado aos cantos, que ele
costumava mordicar com os dentes.
- Ainda ele o pergunta! exclamou a Sra. D. Josefa Dias. O senhor, que nem lhe tira
o chapu!
- Eu?
- Disse-mo ele, afirmou ela com uma voz cortante. E acrescentou:
Ai, senhor proco, bem pode chamar o Sr. Joo Eduardo para o bom caminho. - E
teve um
risinho maligno.
- Mas eu parece-me que no ando no mau caminho, disse ele rindo, com as mos
nos bolsos. E a
cada momento os seus olhos se voltavam para Amlia.
- uma graa! exclamou a Sra. D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o senhor
disse hoje l em
casa, de tarde, da Santa da Arregassa, no h-de ganhar o Cu!
- Ora essa! gritou a irm do cnego, voltando-se bruscamente para Joo Eduardo.
Ento o que
tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que uma impostora?
21
- Credo, Jesus! disse a Sra. D. Maria da Assuno, apertando as mos e fitando
Joo Eduardo, com um terror piedoso. Pois ele havia de dizer isso? Cruzes!

- No, o Sr. Joo Eduardo, afirmou gravemente o cnego, que espertara,


desdobrando o seu leno vermelho - no era capaz de dizer uma dessas.
Amaro perguntou ento:
- Quem a Santa da Arregassa?
- Credo! Pois no tem ouvido falar, senhor proco? exclamou numa admirao a
Sra. D. Maria
da Assuno.
- H-de ter ouvido, afirmava a Sra. D. Josefa Dias com autoridade. Diz que os
jornais de Lisboa
vm cheios disso!
- , com efeito, uma coisa bem extraordinria, ponderou com um tom profundo
o cnego.
A S. Joaneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:
- Ai, no imagina, senhor proco, o milagre dos milagres!
- Se ! se !, disseram.
Houve um recolhimento devoto.
- Mas ento?... perguntou Amaro, todo curioso.
- Olhe, senhor proco, comeou a Sra. D. Joaquina Gansoso endireitando-se no
xale, falando
com solenidade: a Santa uma mulher que aqui h numa freguesia perto, que
est h vinte anos na cama...
- Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assuno, tocando- lhe com o
leque no brao.
- Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.
- Vinte e cinco, vinte e cinco, afirmou a S. Joaneira. E o cnego apoiou-a,
oscilando gravemente
a cabea.
- Est entrevadinha de todo, senhor proco! rompeu a irm do cnego, vida de
falar. Parece uma

alminha de Deus! Os bracinhos so isto! - E mostrava o dedo mnimo. - Para a


gente a ouvir necessrio pr-lhe a orelha ao p da boca!
- Pois se ela se sustenta da graa de Deus! disse lamentosamente a Sra. D. Maria
da Assuno. Coitadinha! que at a gente lembra-se...
Houve entre as velhas um silncio comovido. Joo Eduardo, que por trs das
velhas, de p, com as mos nos bolsos, sorria mordicando o bigode, disse ento:
- Olhe, senhor proco, a coisa o que os mdicos dizem: que aquilo uma
doena nervosa.
Aquela irreverncia fez, entre as velhas devotas, um escndalo; a Sra. D. Maria da
Assuno persignou-se logo "cautela".
- Pelo amor de Deus! gritou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor diga isso, diante de
quem quiser, menos de mim! uma afronta!
- que at pode cair um raio, dizia para os lados, baixo, a Sra. D. Maria da
Assuno, muito aterrada.
- Olhe, tambm lho digo, exclamou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor um homem
sem religio e sem respeito pelas coisas santas. - E voltando- se para o lado de
Amlia, muito azeda: - Olhe, filha minha que eu lhe no dava!
Amlia corou; e Joo Eduardo, fazendo-se vermelho tambm, curvou-se
sarcasticamente:
- Eu digo o que dizem os mdicos. E de resto, acredite que no tenho pretenses
a casar com pessoa da sua famlia! Nem mesmo consigo, Sra. D. Josefa!
O cnego deu uma risada muito pesada.
- Arreda! Cruzes! gritou ela, furiosa.
- Mas que faz ento a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
- Tudo, senhor proco, disse a Sra. D. Joaquina Gansoso: est sempre de cama,
sabe rezas para

tudo; pessoa por quem ela pea tem a graa do Senhor; a gente apegar-se com
ela e cura-se de toda a molstia. E depois, quando comunga, comea a erguer-se,
e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o Cu, que at chega a
fazer terror.
Mas neste momento uma voz disse porta da sala:
- Ora viva a sociedade! Isto hoje est de truz!
Era um rapaz extremamente alto, amarelo, com as faces cavadas, uma grenha
riada, um bigode
a D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quase
todos os dentes de diante; e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras,
errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra na mo.
- Ento como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
- Mal, respondeu ele com voz triste, sentando-se. Sempre as dores no peito, a
tossezita. - Ento no se dava bem com o leo de fgados de bacalhau?
22
- Qual! fez ele desconsoladamente.
- Uma viagem Madeira, isso que era, isso que era! disse a Sra. D. Joaquina
Gansoso com autoridade.
Ele riu, com uma jovialidade sbita:
- Uma viagem Madeira! No est m! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um
pobre amanuense de administrao com dezoito vintns por dia, mulher e quatro
filhos! Para a Madeira!
- E como vai ela, a Joanita?
- Coitadita, l vai! Tem sade, graas a Deus! Gorda, sempre com bom apetite. Os
pequenos, os dois mais velhos que esto doentes; demais a mais agora a criada
tambm caiu de cama! o diacho! Pacincia! Pacincia! - E encolhia os ombros.

Mas voltando-se para a S. Joaneira, dando-lhe uma palmada no joelho:


- E como vai a nossa Madre Abadessa?
Todos riram: e a Sra. D. Joaquina Gansoso informou o proco que aquele rapaz, o
Artur
Couceiro, era muito engraado e tinha uma bela voz. Era a melhor da cidade para
modinhas.
A Rua tinha ento entrado com o ch; a S. Joaneira, enchendo as chvenas de
alto, dizia:
- Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este do bom! da loja do Sousa...
E Artur oferecia acar com o seu antigo gracejo:
- Se est azedinho carregar-lhe no sal!
As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente as
torradas; sentia-se
o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos pingos da manteiga e das
ndoas do ch, estendiam prudentemente os lenos sobre o regao.
- Vai um docinho, senhor proco? disse Amlia, apresentando-lhe o prato. So
da Encarnao, muito fresquinhos.
- Obrigado.
- Aquele ali. toucinho do Cu.
- Ah! se do Cu.., disse ele todo risonho. E olhou para ela, tomando o bolo com
a ponta dos
dedos.
O Sr. Artur costumava cantar depois do ch. Sobre o piano uma vela alumiava o
caderno de
msica; e Amlia, logo que a Rua levou a bandeja, acomodou-se, correu os
dedos sobre o teclado amarelo.
- Ento hoje que h-de ser? perguntou Artur.
Os pedidos cruzaram-se:

- O guerrilheiro! O noivado do sepulcro.' O descrido.' o nunca mais!


O cnego Dias disse do seu canto pesadamente:
- Couceiro, v l aquela do Tio Cosme, meu brejeiro!
As mulheres reprovaram:
- Credo! por quem , senhor cnego! Que lembrana! E a Sra. D. Joaquina
Gansoso resumiu:
- Nada: uma coisa de sentimento para o senhor proco fazer idia.
- Isso, isso! disseram; uma coisa de sentimento, Artur, uma coisa de
sentimento!
Artur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente face uma expresso dolorosa,
ergueu a voz,
cantou lugubremente:
Adeus, meu anjo! Eu vou partir sem ti!
Era uma cano dos tempos romnticos de 51, o Adeus! Dizia uma suprema
despedida, num bosque, por uma tarde plida de Outono; depois, o homem
solitrio e precito, que inspirara um amor funesto, ia errar desgrenhado beira
do mar; havia uma sepultura esquecida num vale distante, brancas virgens
vinham chorar claridade do luar!
- Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
Artur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervalos, durante o
acompanhamento, sorria em redor - e na sua boca cheia de sombra viam-se os
restos de dentes podres. O padre Amaro, ao p da janela, fumando, contemplava
Amlia, enlevado naquela melodia sentimental e mrbida: o seu perfil fino, de
encontro luz, tinha uma linha luminosa; destacava harmoniosamente a curva
do seu peito; e ele seguia as suas plpebras de grandes pestanas, que do teclado
para a msica se erguiam e se abaixavam com um movimento doce. Joo
Eduardo, junto dela, voltava- lhe as folhas da msica.
Mas Artur, com a mo sobre o peito, a outra erguida no ar, num gesto desolado e
veemente, soltou a ltima estrofe:

E um dia, enfim, deste viver fatal,


23
Repousarei na escurido da campa!
- Bravo! bravo! exclamaram.
E o cnego Dias comentou baixo ao proco:
- Ah! para coisas de sentimento no h outro. - E bocejando enormemente: Pois,
menino, tenho
tido toda a noite as lulas a conversar c por dentro.
Mas chegara a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartes habituais; e a Sra.
D. Josefa Dias,
com o seu olho de avara a luzir, chocalhava j vivamente o grosso saco dos
nmeros.
- Aqui tem um lugar, senhor proco, disse Amlia.
Era junto dela. Ele hesitou; mas tinham aberto espao, e veio sentar- se um
pouco corado,
ajeitando timidamente a volta.
Fez-se logo um grande silncio; e, com a voz dormente, o cnego comeou a tirar
os nmeros. A
Sra. D. Ana Gansoso dormitava ao seu canto, ressonando ligeiramente.
Com o abajur as cabeas estavam na penumbra; e a luz crua, caindo sobre o xale
escuro que
cobria a mesa, fazia destacar os cartes enegrecidos do uso, e as mos secas das
velhas, pousadas em atitudes aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o
piano aberto a vela derretia-se com uma chama alta e direita.
O cnego rosnava os nmeros com as pilhrias venerveis da tradio: 1, cabea
de porco! - 3, figura de entrems!

- Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.


- Temei - murmurava outra com gozo.
E a irm do cnego, sfrega:
- Chocalhe esses nmeros, mano Plcido! V!
- E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o Artur
Couceiro, com a cabea
entre os punhos.
Enfim o cnego quinou. E Amlia olhando em redor pela sala:
- Ento no joga, Sr. Joo Eduardo? disse ela. Onde est?
Joo Eduardo saiu da sombra da janela, por trs da cortina.
- Tome l este carto, ande, jogue.
- E receba as entradas, j que est de p, disse a S. Joaneira. Seja o senhor
recebedor!
Joo Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez ris.
- Eu j dei, eu j dei! exclamavam todos, excitados.
Fora a irm do cnego que no tocara no seu cobre acastelado. Joo Eduardo
disse, curvando-se: - Parece-me que a Sra. D. Josefa no entrou.
- Eu?! gritou ela, furiosa. Olha uma destas! At fui a primeira! Credo! Duas
moedas de cinco
ris, por sinal! Que tal est o homem!
- Ah! bem, disse ele ento, fui eu que me esqueci! C ponho. - E rosnou: beata e
ladra!
E a irm do cnego dizia no entanto baixo Sra. D. Maria da Assuno:
- Queria ver se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!
- S quem no est feliz o senhor proco, observaram.
Amaro sorriu. Estava distrado, e fatigado; s vezes mesmo esquecia- se de
marcar, e Amlia
dizia-lhe, tocando-lhe no cotovelo:
- Olhe que no marcou, senhor proco.
Tinham j apostado dois ternos; ela ganhara; depois faltou a ambos para
quinarem o nmero

trinta e seis.
Em roda repararam.
- Ora vamos a ver se quinam ambos, disse a Sra. D. Maria da Assuno,
envolvendo-os no mesmo olhar baboso.
Mas o trinta e seis no saa; havia outras quadras nos cartes alheios; Amlia
receava que quinasse a Sra. D. Joaquina Gansoso, que se mexia muito na cadeira,
pedindo o quarenta e oito. Amaro ria, involuntariamente interessado.
O cnego tirava os nmeros com uma pachorra maliciosa. - V! v! Ande com
isso, senhor cnego! diziam-lhe. Amlia, debruada, os olhos vivos, murmurou:
- Dava tudo para que sasse o trinta e seis!
- Sim? A o tem... Trinta e seis! disse o cnego.
- Quinamos! gritou ela, triunfante; e, tomando o carto do proco e o seu
mostrava-os, para conferirem, orgulhosa, muito corada.
24
- Ora Deus os abenoe, disse o cnego, jovial, entornando-lhes diante o pires
cheio de moedas de dez ris.
- Parece milagre! considerou a Sra. D. Maria da Assuno, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas comearam a
agasalhar-se. Amlia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polca. Joo
Eduardo aproximou-se dela, e baixando a voz:
- Muitos parabns por ter quinado com o senhor proco. Que entusiasmo! - E
como ela ia responder: - Boa noite! disse ele secamente, embrulhando-se no seu
xale-manta com despeito.
A Rua alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo
adeusinhos. O Sr. Artur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.

Amaro foi para o seu quarto, comeou a rezar no Brevirio; mas distraia-se,
lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes podres de Artur, sobretudo o
perfil de Amlia. Sentado beira da cama, com o Brevirio aberto, fitando a luz,
via o seu penteado, as suas mos pequenas com os dedos um pouco trigueiros
picados da agulha, o seu buozinho gracioso...
Sentia a cabea pesada do jantar do cnego e da monotonia do quino, com uma
grande sede alm disso das lulas e do vinhito do Porto. Quis beber, mas no tinha
gua no quarto. Lembrou-se ento que na sala de jantar havia uma bilha de
Extremoz com gua fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calou as
chinelas, tomou o castial, subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o
reposteiro corrido; ergueu-o e recuou com um ah! Vira num relance Amlia, em
saia branca a desfazer o atacador do colete; estava junto do candeeiro e as
mangas curtas, o decote da camisa deixavam ver os seus braos brancos, o seio
delicioso. Ela deu um pequeno grito, correu para o quarto.
Amaro ficou imvel, com um suor raiz dos cabelos. Poderiam suspeitar uma
ofensa! Palavras indignadas iam sair decerto atravs do reposteiro do quarto, que
ainda se balouava agitado!
Mas a voz de Amlia, serena, perguntou de dentro:
- Que queria, senhor proco?
- Vinha buscar gua, balbuciou ele.
- Aquela Rua! aquela desleixada! Desculpe, senhor proco, desculpe. Olhe a ao
p da mesa, a
bilha. Achou?
- Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mo tremia-lhe, a gua escorria- lhe pelos
dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amlia sentiu por baixo passos nervosos pisarem
o soalho: era Amaro que, com o capote aos ombros e em chinelas, fumava,
excitado, pelo quarto.

V
Ela, em cima, no dormia tambm. Sobre a cmoda, dentro de uma bacia, a
lamparina extinguia- se, com um mau cheiro de morro de azeite; brancuras de
saias cadas no cho destacavam; e os olhos do gato, que no sossegava, reluziam
pela escurido do quarto com uma claridade fosfrica e verde.
Na casa vizinha, uma criana chorava sem cessar. Amlia sentia a me embalarlhe o bero, cantar-lhe baixo:
Dorme, dorme, meu menino, Que a tua me foi fonte!
Era a pobre Catarina engomadeira, que o tenente Sousa deixara com um filho no
bero, e grvida de outro - para ir casar a Extremoz! To bonita era, to loura - e
mirrada agora, to chupada!
Dorme, dorme, meu menino, Que a tua me foi fonte!
Como ela conhecia aquela cantiga! Quando tinha sete anos sua me dizia-a, nas
longas noites de Inverno, ao irmozinho que morrera!
Lembrava-se bem! moravam ento noutra casa, ao p da estrada de Lisboa;
janela do seu
quarto havia um limoeiro e a me punha, na sua ramagem luzidia, os cueiros do
Joozinho, a secarem ao
sol. No conhecera o pap. Fora militar, morrera novo; e a me ainda suspirava
ao falar da sua bela figura
com o uniforme de cavalaria. Aos oito anos ela foi para a mestra. Como se
lembrava! A mestra era uma
velhita rolia e branca, que fora tacho das freiras de Santa Joana de Aveiro; com
os seus culos redondos, 25
junto janela, empurrando a agulha, morria-se por contar histrias do convento:
as perrices da escriv, sempre a escabichar os dentes furados; a madre rodeira,
preguiosa e pacata, com uma pronncia minhota; a mestra de cantocho,
admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Tvoras; e a legenda de

uma freira que morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os
corredores, soltando gemidos dolorosos e clamando: - Augusto! Augusto!
Amlia ouvia aquelas histrias, encantada. Gostava ento tanto de festas de
igreja e da convivncia dos santos, que desejava ser uma "freirinha, muito
bonita, com um veuzinho muito branco". A mam era muito visitada por padres.
O chantre Carvalhosa, um homem velho e robusto, que soprava de asma ao subir
a escada e tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa.
Amlia chamava-lhe padrinho. Quando ela voltava da mestra, tarde,
encontrava-o sempre a palestrar com a me, na sala, de batina desabotoada,
deixando ver o longo colete de veludo preto com raminhos bordados a amarelo. O
senhor chantre perguntava-lhe pelas lies e fazia-a dizer a tabuada.
noite havia reunies: vinha o padre Valente; o cnego Cruz; e um velhito calvo,
de perfil de pssaro, com culos azuis, que fora frade franciscano e a quem
chamavam frei Andr. Vinham as amigas da me, com as suas meias; e um
capito Couceiro, de caadores, que tinha os dedos negros do cigarro e trazia
sempre a sua viola. Mas s nove horas mandavam-na deitar; pela frincha do
quarto ela via a luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silncio, e o capito,
repenicando a guitarra, cantava o lundum da Figueira.
Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipticos: sobretudo o
padre Valente, to gordo, to suado, com umas mos papudas e moles, de unhas
pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe devagarinho a orelha, e
ela sentia o seu hlito impregnado de cebola e de cigarro. O seu amiguinho era o
cnego Cruz, magro, com o cabelo todo branco, a volta sempre asseada, as fivelas
luzidias; entrava devagarinho, cumprimentando com a mo sobre o peito, e uma
voz suave cheia de ss. J ento sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em
casa, por qualquer "bagatela", falavam-lhe sempre dos castigos do Cu; de tal
sorte que Deus aparecia-lhe como um ser que s sabe dar o sofrimento e a morte,
e que necessrio abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, animando os
padres. Por isso, se s vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia
penitncia no outro dia, porque temia que Deus lhe mandasse sezes ou a fizesse
cair na escada.

Mas o seu melhor tempo foi quando comeou a tomar lies de msica. A me
tinha na sala de jantar, ao canto, um velho piano, coberto com um pano verde,
to desafinado, que servia de aparador. Amlia costumava cantarolar pela casa; e
a sua voz fina e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas da me diziamlhe:
- Tu tens a um piano, por que no mandas ensinar a rapariga? Sempre uma
prenda! olha que lhe pode servir de muito!
O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da S de vora,
extremamente infeliz: a filha nica, muito linda, fugira-lhe com um alferes para
Lisboa; e, passados dois anos, o Silvestre da Praa, que ia muito capital, vira-a
descer a Rua do Norte, de garibaldi escarlate e alvaiade num olho, com um
marinheiro ingls. O velho cara em grande melancolia e grande misria; e por
piedade tinham- lhe dado um emprego no cartrio da cmara eclesistica. Era
uma figura triste de romance picaresco. Muito magro, alto como um pinheiro,
deixava crescer at os ombros os seus cabelos brancos e finos; os olhos,
cansados, lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom
enternecia: e parecia muito transido, no seu capote cor de vinho que s lhe
chegava cintura e que tinha uma gola de astrac. Chamavam-lhe o Tio
Cegonha, pela sua alta magreza e o seu ar solitrio. Amlia um dia tinha-lhe
chamado Tio Cegonha; mas mordeu logo o beio, toda envergonhada.
O velho ps-se a sorrir:
- Ai, chame, minha rica menina, chame! Tio Cegonha?... ora, que tem? Cegonha
sou eu, e bem cegonha!
Era ento no Inverno. As grandes chuvas com os sudoestes no cessavam; a
spera estao oprimia os pobres. Viam-se naquele ano famlias esfomeadas indo
cmara pedir po. O Tio Cegonha vinha sempre ao meio-dia dar a lio; o seu
guarda-chuva azul deixava um ribeiro na escada; tiritava; e quando se sentava
escondia, na sua vergonha de velho, as botas encharcadas com a sola aberta.
Queixava- se sobretudo do frio das mos, que o impedia de ferir com justeza o
teclado, e no o deixava escrever no cartrio. '

- Prendem-se-me os dedos, dizia tristemente.


Mas quando a S. Joaneira lhe pagou o primeiro ms das lies, o velho apareceu
muito contente, com urnas grossas luvas de l.
- Ah, Tio Cegonha, como vem quentinho! disse-lhe Amlia.
- Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas meias de
l. Deus a abenoe, minha menina, Deus a abenoe!
26
E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lgrimas. Amlia tomara-se a "sua rica
amiguinha". J lhe fazia confidncias: contava-lhe as suas necessidades, as
saudades da filha, as suas glrias na S de vora, quando diante do senhor
arcebispo, vistoso na sua sobrepeliz escarlate, acompanhava o Lausperene.
Amlia no se esqueceu das meias de l do Tio Cegonha. Pediu ao chantre que lhe
desse umas meias de l.
- Ora essa! para qu? para ti? disse ele com o seu riso grosso.
- Para mim, sim, senhor.
- Deixe falar, senhor chantre! disse a S. Joaneira. Olha a idia!
- No deixe falar, no! d, sim?!
Lanou-lhe os braos ao pescoo; fez-lhe olhinhos doces.
- Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanas! h-de ser o diabo!... Pois sim,
a tens. - E
deu-lhe dois pintos para umas meias de l.
No dia seguinte tinha-os ela embrulhados num papel, que dizia por fora em
letras garrafais: Ao
meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discpula.
Uma manh, depois, viu-o mais amarelo, mais chupado:
- Tio Cegonha, disse de repente, quanto lhe do l no cartrio?
O velho sorriu-se:

- Ora, minha rica menina, quanto me ho-de dar? uma bagatela.


Quatro vintns por dia. Mas o Sr. Neto faz-me algum bem...
- E chegam-lhe quatro vintns?
- Ora! como ho-de chegar?
Sentiram-se os passos da me; e Amlia, retomando gravemente a atitude de
lio, comeou a
solfejar alto, com um ar profundo.
E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a me a dar de almoar e
de jantar ao Tio
Cegonha nos dias de lio. Assim se estabeleceu entre ela e o velho uma grande
intimidade. E o pobre Tio Cegonha, saindo do seu frio isolamento, acolhia-se
quela amizade inesperada, como a um conchego tpido. Encontrava nela o
elemento feminino que amam os velhos, com as carcias, as suavidades de voz,
as delicadezas de enfermeira; achava nela a nica admiradora da sua msica; e
via-a sempre atenta s histrias do seu tempo, s recordaes da velha S de
vora que ele amava tanto, e que lhe fazia dizer, quando se falava de procisses,
ou de festas de igreja:
- Para isso vora! em vora que !
Amlia aplicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada da sua vida; j
tocava contradanas e antigas rias de velhos compositores; a Sra. D. Maria da
Assuno estranhava que o mestre lhe no ensinasse o Trovador.
- Coisa mais linda! dizia.
Mas o Tio Cegonha s conhecia a msica clssica, rias ingnuas e doces de Lully,
motivos de minuetes, motetes floridos e piedosos dos doces tempos freirticos.
Uma manh o Tio Cegonha encontrou Amlia muito amarela e triste. Desde a
vspera queixava- se de "mal-estar". Era um dia nublado, muito frio. O velho
queria ir-se embora.

- No, no, Tio Cegonha, disse ela, toque alguma coisa para eu me entreter.
Ele tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas
extremamente melanclica.
- Que lindo! que lindo! dizia Amlia, de p junto ao piano.
E quando o velho deu as ltimas notas:
- O que ? perguntou ela.
O Tio Cegonha contou-lhe que era o comeo de uma Meditao feita por um frade
seu amigo.
- Coitado, disse, teve bem o seu tormento!
Amlia quis logo saber a histria; e sentando-se no mocho do piano,
embrulhando-se no seu
xale:
- Diga, Tio Cegonha, diga!
Era um homem que tivera em novo uma grande paixo por uma freira; ela
morrera no convento daquele amor infeliz; e ele, de dor e de saudade, fizera-se
frade franciscano...
- Parece que o estou a ver...
- Era bonito?
- Se era! Um rapaz na flor da vida, rico... Um dia veio ter comigo ao rgo: "Olha
o que eu fiz",
disse-me ele. Era um papel de msica. Abria em r menor. Ps-se a tocar, a
tocar... Ai, minha rica menina, que msica! Mas no me lembra o resto!
E o velho, comovido, repetiu no piano as notas plangentes da Meditao em r
menor.
Amlia todo o dia pensou naquela histria. De noite veio-lhe uma grande febre,
com sonhos espessos, em que dominava a figura do frade franciscano, na sombra
do rgo da S de vora. Via os
27

seus olhos profundos reluzirem numa face encovada: e, longe, a freira plida, nos
seus hbitos brancos, encostada s grades negras do mosteiro, sacudida pelos
prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades franciscanos
caminhava para o coro: ele ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre o
rosto, arrastando as sandlias, enquanto um grande sino, no ar nublado, tocava o
dobre dos finados. Ento o sonho mudava: era um vasto cu negro, onde duas
almas enlaadas e amantes, com hbitos de convento e um rudo inefvel de
beijos insaciveis, giravam, levadas por um vento mstico; mas desvaneciam-se
como nvoas, e na vasta escurido ela via aparecer um grande corao em carne
viva, todo traspassado de espadas, e as gotas de sangue que caam dele enchiam o
cu duma chuva escarlate. Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouveia
tranqilizou a S. Joaneira com uma simples palavra:
- Nada de sustos, minha rica senhora, so os quinze anos da rapariga. Ho-delhe vir amanh as vertigens e os enjos... Depois acabou-se. Temo-la mulher.
A S. Joaneira compreendeu.
- Esta rapariga tem o sangue vivo e h-de ter as paixes fortes! acrescentou o
velho prtico, sorrindo e sorvendo a sua pitada.
Por esse tempo o senhor chantre, uma manh, depois do seu almoo de aorda,
caiu de repente morto com uma apoplexia. Que consternaoinesperada, para a
S. Joaneira! Durante dois dias, esguedelhada, em saiasbrancas chorou, gemeu
pelos quartos. D. Maria da Assuno, as senhoras Gansosos vieram acalmar,
amansar a sua dor: e a Sra. D. Josefa Dias resumiu as consolaes de todos,
dizendo:
- Deixa, filha, que te no h-de faltar quem te ampare!
Era ento no comeo de Setembro; a Sra. D. Maria da Assuno, que tinha uma
casa na praia da Vieira, props levar a S. Joaneira e Amlia para a estao dos
banhos, para ela espalhar, nos bons ares saudveis, em lugar diferente, aquela
dor.

- uma esmola que me fazes, dissera a S. Joaneira. Sempre me lembra que era ali
que ele punha o guarda-chuva... Ali que ele se sentava a ver-me costurar!
- Est bom, est bom, deixa-te disso. Come e bebe, toma os teus banhos, e o que
l vai l vai. Olha que ele tinha bem os seus sessenta.
- Ah, minha rica! a gente pela amizade que lhes ganha.
Amlia tinha ento quinze anos, mas era j alta e de bonitas formas. Foi uma
alegria para ela a estao na Vieira! Nunca vira o mar; e no se fartava de estar
sentada na areia, fascinada pela vasta gua azul, muito mansa, cheia de sol; s
vezes no horizonte passava um fumo delgado de paquete; a montona e gemente
cadncia da vaga adormentava-a; e em redor o areal faiscava, a perder de vista,
sob o cu azul- ferrete.
Como se lembrava bem! Logo pela manh estava a p! Era a hora do banho: as
barracas de lona alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras, sentadas em
cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar, palrando; os
homens, de sapatos brancos estendidos em esteiras, chupavam o cigarro,
riscavam emblemas na areia; enquanto o poeta Carlos Alcoforado, muito fatal,
muito olhado, passeava s, soturno, junto da vaga, seguido do seu Terra-Nova.
Ela saa ento da barraca com o seu vestido de flanela azul, a toalha no brao,
tiritando de susto e de frio: tinha- se persignado s escondidas e toda trmula,
agarrada mo do banheiro, escorregando na areia, entrava na gua, rompendo a
custo a maresia esverdeada que fervia em redor. A onda vinha espumando, ela
mergulhava, e ficava aos saltos, sufocada e nervosa, cuspindo a gua salgada.
Mas, quando saa do mar, como vinha satisfeita! Arfava, com a toalha pela
cabea, arrastando-se para a barraca, mal podendo com o peso do vestido
encharcado, risonha, cheia de reao; e em redor vozes amigas perguntavam:
- Ento que tal, que tal? Mais fresquinha, hem?
Depois, de tarde, eram os passeios beira-mar, a apanhar conchinhas; o recolher
das redes, onde a sardinha toda viva ferve aos milheiros, luzidia sobre a areia

molhada; e que longas perspectivas de ocasos ricamente dourados, sobre a


vastido do mar triste, que escurece e geme!
D. Maria da Assuno tinha sido visitada, logo ao chegar, por um rapaz, filho do
Sr. Brito de Alcobaa, seu parente. Chamava-se Agostinho, ia freqentar o
quinto ano de direito na Universidade. Era um moo delgado, de bigode
castanho, pra, cabelo comprido deitado para trs, e luneta: recitava versos,
sabia tocar guitarra, contava anedotas de caloiros, fazia partidas, e era famoso na
Vieira, entre os homens, "por saber conversar com senhoras".
- O Agostinho, patife! diziam. chalaa a esta, chalaa quela. L para sociedade
no h outro! Logo desde os primeiros dias Amlia reparou que os olhos do Sr.
Agostinho Brito se fitavam constantemente nela, "p'ra namoro". Amlia corava
muito, sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido; e admirava-o, achava-o
muito "dengueiro".
Um dia em casa da Sra. D. Maria da Assuno pediram a Agostinho para recitar. Oh, minhas senhoras, isto aqui no forja de ferreiro! exclamou ele, jovial.
28
- Ora v! no se faa rogado, disseram, insistindo.
- Bem, bem, por isso no nos havemos de zangar.
- A Judia, Brito, lembrou o recebedor de Alcobaa.
- Qual Judia! disse ele, h-de ser mas h-de ser a Morena! - E olhou para Amlia.
- Foi uma
poesia que fiz ontem.
- Valeu, valeu!
- E c o rapaz acompanha, disse um sargento do 6 de Caadores, tomando logo a
guitarra. Fez-se um silncio: o Sr. Agostinho deitou o cabelo para trs, fincou a
luneta, apoiou as duas mos s costas duma cadeira, e fitando Amlia:
- Morena de Leiria! disse.

Nasceste nos verdes campos Onde Leiria famosa,


Tens a frescura da rosa, .
E o teu nome sabe a mel...
- Perdo, exclamou o recebedor, a Sra. D. Juliana no est boa. Era a filha do
escrivo de direito de Alcobaa; tinha-se feito muito plida, e, lentamente,
desmaiava na cadeira, com os braos pendentes, o queixosobre o peito.
Borrifaram-na de gua, levaram-na para o quarto de Amlia;quando lhe
desapertaram o vestido e lhe deram vinagre a respirar, ergueu- se sobre o
cotovelo, olhou em redor, comearam a tremer-lhe os beios e rompeu a chorar.
Fora, os homens em grupo comentavam:
- Foi o calor, diziam.
- O calor que ela tinha sei eu, rosnou o sargento de caadores. O Sr. Agostinho
torcia o bigode, contrariado. Algumas senhoras foram a casa acompanhar a Sra.
D. Juliana. D. Maria da Assuno e a S. Joaneira, atabafadas nos seus xales, iam
tambm. Havia vento, um criado levava um lampio, e todos caminhavam na
areia, calados.
- Tudo isto teu proveito, disse a Sra. D. Maria da Assuno baixo S. Joaneira,
demorando-se um pouco atrs.
- Meu!?
- Teu. Pois tu no percebeste? A Juliana, em Alcobaa, era namoro do Agostinho.
Mas o rapaz aqui anda pelo beio pela Amlia. A Juliana percebeu, viu-o recitar
aqueles versos, olhar para ela, zs!
- Ora essa!... disse a S. Joaneira.
- Deixa l, o Agostinho tem um par de mil cruzados que lhe deixam as tias. um
partido!
Ao outro dia, hora do banho, a S. Joaneira vestia-se na sua barraca, e Amlia,
sentada na areia,

esperava, pasmada para o mar.


- Ol! sozinha? disse uma voz por detrs.
Era Agostinho. Amlia, calada, comeou a riscar a areia com a sombrinha. O Sr.
Agostinho
suspirou, alisou outro pedao de areia com o p, escreveu - AMLIA. Ela, muito
vermelha, quis apagar com a mo.
- Ento! disse ele. E debruando-se, baixo: - o nome da Morena, bem v. O seu
nome sabe a mel!...
Ela sorriu:
- Ande, que fez ontem desmaiar aquela pobre Juliana - disse.
- Ora! importa-me a mim bem com ela! Estou farto daquele estafermo! Ento
que quer? Eu c
sou assim. Tanto digo que me no importo com ela, como digo que h uma
pessoa por quem dava tudo... Eu sei...
- Quem ? a Sra. D. Bernarda?
Era uma velha hedionda, viva de um coronel.
- , disse ele rindo. justamente por quem eu ando apaixonado pela D.
Bernarda.
- Ah! o senhor anda apaixonado! disse ela devagar, com os olhos baixos, riscando
a areia.
- Diga-me uma coisa, est a mangar comigo? exclamou Agostinho puxando por
uma cadeirinha,
sentando-se junto dela. Amlia ps-se de p.
- No quer que eu me sente ao p de si? perguntou ele ofendido. - Eu que
estava cansada de estar sentada.
Calaram-se um momento.
- J tomou banho? disse ela.

- J.
- Estava frio hoje?
29
- Estava.
As palavras de Agostinho eram agora muito secas.
- Zangou-se? disse ela docemente, pondo-lhe de leve a mo no ombro.
Agostinho ergueu os
olhos, e vendo o bonito rosto trigueiro, todo risonho, - exclamou com
veemncia: - Estou mesmo doido por si!
- Chut!... disse ela.
A me de Amlia, levantando o pano da barraca, saa, muito abafada, de leno
amarrado na cabea.
- Mais fresquinha, hem? perguntou logo Agostinho, tirando o chapu de palha. Estava por aqui?
- Vim dar uma vista de olhos. E agora toca ao almocinho, hem?
- Se servido... disse a S. Joaneira.
Agostinho, muito galante, ofereceu o brao mam.
E desde ento seguia sempre Amlia, de manh no banho, de tarde beira-mar;
apanhava-lhe conchas; e tinha-lhe feito outros versos - o Sonho. Uma estrofe
era violenta:
Senti-te contra o meu peito Tremer, palpitar, ceder...
Ela murmurava-os com grande comoo, de noite, suspirando, abraando o
travesseiro.
Outubro findava, as frias tinham acabado. Uma noite o alegre rancho da Sra. D.
Maria da Assuno e das amigas fora dar um passeio ao luar. volta, porm,
erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram o cu, caram gotas de gua.

Estavam ento junto a um pequeno pinheiral, e as senhoras, aos gritinhos,


quiseram abrigar-se. Agostinho, com Amlia pelo brao, rindo alto, foi
penetrando longe dos outros na espessura; e ento, sob o montono e gemente
rumor das ramas, disse-lhe baixo, cerrando os dentes:
- Estou doido por ti, filha!
- Creio l nisso! murmurou ela.
Mas Agostinho, tomando subitamente um tom grave:
- Sabes? talvez eu tenha de me ir amanh embora.
- Vai-se?
- Talvez; no sei ainda. Alm de amanh a matrcula.
- Vai-se... suspirou Amlia.
Ele ento tomou-lhe a mo, apertou-lha com furor:
- Escreve-me! disse.
- E a mim, escreve-me? disse ela.
Agostinho agarrou-a pelos ombros e machucou-lhe a boca de beijos vorazes.
- Deixe-me! deixe-me! dizia ela sufocada.
De repente teve um gemido doce como um arrulho de ave, e abandonava-se quando a voz
aguda de D. Joaquina Gansoso gritou:
- H uma aberta. andar! andar!
E Amlia, desprendendo-se, atarantada, correu a agachar-se sob o guarda-chuva
da mam.
Ao outro dia, com efeito, o Sr. Agostinho partiu. Vieram as primeiras chuvas, e
dentro em pouco
tambm Amlia, a me, a Sra. D. Maria da Assuno voltaram para Leiria. Passou
o Inverno.
E um dia, em casa da S. Joaneira, D. Maria da Assuno deu parte que o Agostinho
Brito, segundo lhe escreviam de Alcobaa, tinha o casamento justo com a menina
do Vimeiro.

- Cspite! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os seus trinta
contos! Olha o meco!
E diante de todos Amlia rompeu a chorar.
Amava Agostinho; e no podia esquecer aqueles beijos de noite no pinheiral
cerrado. Pareceu- lhe ento que no tornaria a ter alegria! Ainda lembrada
daquele moo da histria do Tio Cegonha, que por amor se escondera na solido
de um convento, comeou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte devoo,
manifestao exagerada das tendncias que desde pequenina as convivncias de
padres tinham lentamente criado na sua natureza sensvel; lia todo o dia livros
de rezas; encheu as paredes do quarto de litografias coloridas de santos; passava
longas horas na igreja, acumulando Salve-Rainhas Senhora da Encarnao.
Ouvia todos os dias missa, quis comungar todas as semanas - e as amigas da me
achavam- na "um modelo, de dar virtude a incrdulos" !
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Foi por esse tempo que o cnego Dias e sua irm, a Sra. D. Josefa Dias,
comearam a freqentar a casa da S. Joaneira. Dentro em pouco o cnego tornouse o "amigo da famlia". Depois do almoo era certo com a sua cadelinha, como
outrora o chantre com o seu guarda-chuva.
- Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joaneira. Mas o senhor
chantre no h dia nenhum que me no lembre dele!
A irm do cnego tinha ento organizado com a S. Joaneira a Associao das
Servas da Senhora da Piedade. A Sra. D. Maria da Assuno, as Gansosos
"filiaram-se"; e a casa da S. Joaneira tornou-se um centro eclesistico. Foi esse o
momento melhor da vida da S. Joaneira; "a S, como dizia com tdio o Carlos da
botica, era agora na Rua da Misericrdia". Parte dos cnegos, o novo chantre,
vinham todas as sextas-feiras. Havia imagens de santos na sala de jantar e na
cozinha. As criadas, por escrpulo, eram examinadas em doutrina antes de
serem aceitas. Ali muito tempo fizeram-se as reputaes: se se dizia de um
homem: no temente a Deus, havia o dever de o desacreditar santamente. As

nomeaes de sineiros, coveiros, serventes de sacristia arranjavam-se ali por


intrigas sutis e palavras piedosas. Tinham tomado um certo vesturio entre o
preto e o roxo; toda a casa cheirava a cera e a incenso; e a S. Joaneira, mesmo,
monopolizara o comrcio das hstias.
Assim passaram anos. Pouco a pouco, porm, o grupo devoto dispersou-se: a
ligao do cnego Dias e da S. Joaneira, muito comentada, afastou os padres do
cabido; o novo chantre morrera de apoplexia tambm - como era de tradio
naquela diocese, fatal aos chantres; e j no eram divertidos os quinos das
sextas-feiras. Amlia mudara muito; crescera: fizera-se uma bela moa de vinte
e dois anos, de olhar aveludado, beios muito frescos - e achava a sua paixo pelo
Agostinho uma "tontice de criana". A sua devoo subsistia, mas alterada: o que
amava agora na religio e na igreja era o aparato, a festa - as belas missas
cantadas ao rgo, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o
altar-mor na glria das flores cheirosas, o roar das correntes dos incensadores
de prata, os unssonos que rompem briosamente no coro das aleluias. Tomava a
S como a sua pera: Deus era o seu luxo. Nos domingos de missa gostava de se
vestir, de se perfumar com gua-de-colnia, de se ir aninhar sobre o tapete do
altar-mor, sorrindo ao padre Brito ou ao cnego Saldanha. Mas em certos dias,
como dizia a me, "murchava"; voltavam ento os abatimentos de outrora, que a
amarelavam, lhe punham duas rugas velhas ao canto dos lbios: tinha nessas
ocasies horas duma vaga saudade parva e mrbida, em que s a consolava cantar
pela casa o Santssimo ou as notas lgubres do toque da Agonia. Com a alegria
voltava- lhe o rosto do culto alegre - e lamentava ento que a S fosse uma
ampla estrutura de pedra dum estilo frio e jesutico: quereria uma igreja
pequenina, muito dourada, tapetada, forrada de papel, iluminada a gs; e padres
bonitos oficiando a um altar ornado como uma tagre.
Fizera vinte e trs anos quando conheceu Joo Eduardo no dia da procisso de
Corpus-Christi, em casa do tabelio Nunes Ferral, onde ele era escrevente.
Amlia, a me, a Sra. D. Josefa Dias tinham ido ver a procisso da bela varanda do
tabelio, guarnecida de colchas de damasco amarelo. Joo Eduardo estava l,
modesto, srio, todo vestido de preto. Havia muito que Amlia o conhecia; mas

naquela tarde, reparando na brancura da sua pele e na gravidade com que


ajoelhava, pareceu-lhe "muito bom rapaz".
noite, depois do ch, o gordalhufo Nunes, de colete branco, foi pela sala
exclamando, entusiasmado, com a sua voz de grilo: - tirar pares, tirar pares! enquanto a filha mais velha ao piano tocava com brio estridente uma mazurca
francesa. Joo Eduardo aproximou-se de Amlia:
- Ai, eu no dano! - disse ela logo com ar seco.
Joo Eduardo no danou tambm; foi encostar-se a uma ombreira com a mo na
abertura do colete, os olhos fitos em Amlia. Ela percebia, desviava o rosto, mas
estava contente; e quando Joo Eduardo, vendo uma cadeira vazia, veio sentar-se
ao p dela, Amlia fez-lhe logo lugar acomodando os folhos de seda, agradada. O
escrevente, embaraado, torcia o bigode com a mo trmula. Por fim Amlia
voltando-se para ele:
- Ento o senhor no dana tambm?
- E a Sra. D. Amlia? disse ele baixo.
Ela inclinou-se para trs, e batendo nas pregas do vestido:
- Ai! eu estou velha para estes divertimentos, sou uma pessoa sria.
- Nunca se ri? perguntou ele, pondo na voz uma inteno fina.
- s vezes rio quando h de qu, disse ela olhando-o de lado.
- De mim, por exemplo.
- De si!? Ora essa! Est a caoar comigo? Por que me hei-de eu rir do senhor?
Boa!... ento o
senhor que tem que faa rir? - e agitava o seu leque de seda preta. Ele calou-se,
procurando as idias, as delicadezas.
- Ento srio, srio, no dana?
- J lhe disse que no. Ai, que to perguntador!
- porque me interesso por si.
31

- Ora, deixe l! disse ela fazendo um indolente gesto de negativa.


- Palavra!
Mas a Sra. D. Josefa Dias, que os vigiava, aproximou-se, de testa muito franzida,
e Joo Eduardo
levantou-se, intimidado.
sada, quando Amlia no corredor punha os seus agasalhos, Joo Eduardo veio
dizer-lhe, de
chapu na mo:
- Cubra-se bem, no apanhe frio!
- Ento continua a interessar-se por mim? - disse ela apertando em redor do
pescoo as pontas da sua manta de l.
- O mais possvel, creia.
Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia ambulante de zarzuela.
Falava-se muito da contralto, a Gamacho. A Sra. D. Maria da Assuno tinha um
camarote, levou a S. Joaneira e Amlia - que duas noites antes estivera
costurando, com uma pressa comovida, um vestido de cassa todo florido de laos
de seda azul. Joo Eduardo na platia - enquanto a Gamacho, empastada de pde-arroz sob a sua mantilha valenciana, vibrando com uma graa decrpita o
leque de lantejoulas, garganteava malaguenhas agudas - no se fartou de
contemplar, de desejar Amlia. sada veio cumpriment-la, oferecer-lhe o
brao at a Rua da Misericrdia; a S. Joaneira, a Sra. D. Maria da Assuno
seguiam atrs com o tabelio Nunes.
- Ento gostou da Gamacho, Sr. Joo Eduardo?
- A falar-lhe a verdade nem sequer reparei nela.
- Ento que fez?
- Olhei para si, respondeu ele resolutamente.
Ela parou imediatamente, disse com a voz um pouco alterada: - Onde vem a
mam?

- Deixe l a mam!
E Joo Eduardo, ento, falando-lhe junto do rosto, disse-lhe "a sua grande
paixo". Tomou-lhe a mo, repetia todo perturbado:
- Gosto tanto de si! Gosto tanto de si!
Amlia estava nervosa da msica, do teatro; a noite quente de Vero, com a sua
vasta cintilao de estrelas tomava-a toda lnguida. Abandonou a mo, suspirou
baixinho.
- Gosta de mim, no verdade? perguntou ele.
- Sim, respondeu ela, e apertou os dedos de Joo Eduardo com paixo.
Mas, como ela pensou, "fora decerto um fogacho" - porque, dias depois, quando
conheceu mais
Joo Eduardo, quando pde falar livremente com ele, reconheceu que ''no tinha
nenhuma inclinao pelo rapaz''. Estimava-o, achava-o simptico, bom moo;
poderia ser um bom marido; mas sentia dentro em si o corao adormecido.
O escrevente porm comeou a ir Rua da Misericrdia quase todas as noites. A
S. Joaneira estimava-o pelo seu "propsito" e pela sua honradez. Mas Amlia iase mostrando "fria": esperava-o janela pela manh quando ele passava para o
cartrio, fazia-lhe olhos doces noite, - mas s para o no descontentar, para ter
na sua existncia desocupada um interessezinho amoroso.
Joo Eduardo um dia falou me em casamento:
- Como a Amlia quiser, eu por mim... disse a S. Joaneira. E Amlia, consultada,
respondeu ambiguamente:
- Mais tarde, por ora no me parece, veremos.
Enfim acordou-se tacitamente em esperar, at que ele obtivesse o lugar de
amanuense do governo civil, rasgadamente prometido pelo doutor Godinho - o
temido doutor Godinho!

Assim vivera Amlia at a chegada de Amaro: e, durante a noite, estas


recordaes vinham-lhe por fragmentos, como pedaos de nuvens que o vento
vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde, acordou j o sol ia alto: e
espreguiava-se, quando ouviu dizer a Rua na sala de jantar:
- o senhor proco que vai sair com o senhor cnego; vo S.
Amlia saltou da cama, correu janela em camisa, ergueu uma pontinha da
cortina de cassa, olhou. A manh resplandecia: e o padre Amaro pelo meio da rua
conversando com o cnego, assoava-se ao seu leno branco, muito airoso na sua
batina de pano fino.
VI
32
Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em comodidades, Amaro
sentiu-se feliz. A S. Joaneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua
roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o "quarto do senhor proco andava que
nem um brinco"! Amlia tinha com ele uma familiaridade picante de parenta
bonita: "tinham calhado um com o outro", como dissera, encantada, D. Maria da
Assuno. Os dias iam assim passando para Amaro, fceis, com boa mesa,
colches macios e a convivncia meiga de mulheres. A estao ia to linda que
at as tlias floresceram no jardim do Pao: "quase milagre!", disse- se: o senhor
chantre, contemplando-as todas as manhs da janela do seu quarto, em robede- chambre, citava versos das clogas. E depois das longas tristezas da casa do
tio da Estrela, dos desconsolos do seminrio e do spero Inverno na Gralheira aquela vida em Leiria era para Amaro como uma casa seca e abrigada onde o
alegre lume estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite de jornada na
serra, sob troves e chuveiros.
Ia cedo dizer a missa S, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas de
casimira, meias de ls por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhs
estavam frias: e quela hora s algumas devotas, com o mantu escuro pela
cabea, rezavam aqui e alm, ao p dum altar envernizado de branco. Entrava

logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os ps nolajedo, enquanto o


sacristo, pachorrento, contava "as novidades do dia".
Depois, com o clice na mo, de olhos baixos, passava igreja; e tendo dobrado o
joelho rapidamente diante do Santssimo Sacramento, subia devagar ao altar
onde duas velas de cera esmoreciam com uma claridade plida na larga luz da
manh, juntava as mos, murmurava, curvado:
- Introibo ad altare Dei.
- Ad Deum qui laetificat juventutem meam, resmungava, num latim silabado, o
sacristo. Amaro j no celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma
devoo enternecida.
"Estava agora habituado", dizia. E como no ceava, e quela hora em jejum, com
a frescura cortante do ar, j sentia apetite, engrolava depressa, monotonamente,
as santas leituras da Epstola e dos Evangelhos. Por trs o sacristo, com os
braos cruzados, passava vagarosamente a mo pela sua espessa barba bem
rapada, olhando de revs para a Casimira Frana, mulher do carpinteiro da S,
muito devota, que ele "trazia de olho" desde a Pscoa. Largas rstias de sol caiam
das janelas laterais. Um vago aroma de junquilhos secos adocicava o ar.
Amaro, depois de recitar rapidamente o ofertrio, limpava o clice com o
purificador; o sacristo, um pouco vergado dos rins, ia buscar as galhetas,
apresentava-as, curvado - e Amaro sentia o cheiro do leo ranoso que lhe
reluzia no cabelo. Naquela parte da missa, por um antigo hbito de emoo
mstica, Amaro tinha um recolhimento sentido: com os braos abertos, voltavase para a igreja, clamava, com largueza, a exortao universal orao - Orate,
fratres! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca
babosa, apertavam mais as mos contra o peito, de onde pendiam grandes
rosrios negros. Ento o sacristo ia ajoelhar-se por trs dele, sustentando
ligeiramente com uma das mos a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro
consagrava o vinho, levantava a hstia - Hoc est enim corpus meum! - elevando
alto os braos para o Cristo cheio de chagas roxas sobre a sua cruz de pau preto; a
campainha tocava devagar; as mos batiam concavamente nos peitos; e no

silncio sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo


lajeado da S, volta do mercado.
- Ite, missa est! dizia Amaro enfim.
- Deo gratias! respondia o sacristo respirando alto, com o alvio da obrigao
finda.
E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a
bno, era j
pensando na alegria do almoo, na clara sala de jantar da S. Joaneira e nas boas
torradas. quela hora j Amlia o esperava com o cabelo cado sobre o penteador,
tendo na pele fresca um bom cheiro de sabo de amndoas.

Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia sala de jantar, onde a S. Joaneira
e Amlia costuravam. "Estava aborrecido embaixo, vinha um bocado para o
cavaco", dizia. A S. Joaneira, numa cadeira pequena, ao p da janela, com o gato
aninhado na roda do vestido de merino, cosia de luneta na ponta do nariz.
Amlia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado; a cabea
inclinada sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, ntida, um pouco afogada na
abundncia do cabelo; os seus grandes brincos de ouro, em forma de pingos de
cera, oscilavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoo uma
pequenina sombra; as olheiras leves cor de bistre esbatiam-se delicadamente
sobre a pele de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu
peito cheio respirava devagar. s vezes, cravando a agulha na fazenda,
espreguiava-se devagarinho, sorria, cansada. Ento Amare gracejava:
- Ah preguiosa, preguiosa! Olha que mulher de casa!
33
Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia: o major
despedira a criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco do Carlos do
correio. De vez em quando a Rua vinha ao armrio buscar um prato ou uma

colher; ento falava-se do preo dos gneros, do que havia para o jantar. A S.
Joaneira tirava as lunetas, traava a perna, e balouando o p calado numa
chinela de ourelo, punha-se a dizer os pratos.
- Hoje temos gro-de-bico. No sei se o senhor proco gostar, foi para variar...
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria afinidade de
gostos com Amlia.
Depois, animando-se, bulia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrara uma
carta; perguntou-lhe pelo derrio; ela respondeu, picando vivamente o
pesponto:
- Ai! a mim ningum me quer, senhor proco...
- No tanto assim, acudiu ele. Mas suspendeu-se, muito vermelho, afetando
tossir.
Amlia s vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo, pediu-lhe para
sustentar nas mos uma
meadinha de retrs que ela ia dobar.
- Deixe falar, senhor proco! exclamou a S. Joaneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe
dando
confiana!...
Mas Amaro prontificou-se, rindo, todo contente: - ele estava ali para o que
quisessem, at para
dobadoura! Era mandarem, era mandarem!... E as duas mulheres riam, dum riso
clido, enlevadas naquelas maneiras do senhor proco, "que at tocavam o
corao" ! s vezes Amlia pousava a costura e tomava o gato no colo; Amaro
chegava-se, corria a mo pela espinha do malts que se arredondava, fazendo um
ronrom de gozo.
- Gostas? dizia ela ao gato, um pouco corada, com os olhos muito ternos.
E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
- Bichaninho gato! bichaninho gato!

Depois a S. Joaneira erguia-se para dar o remdio idiota ou ir palrar cozinha.


Eles ficavam
ss; no falavam, mas os seus olhos tinham um longo dilogo mudo, que os ia
penetrando da mesma languidez dormente. Ento Amlia cantarolava baixo o
Adeus ou o Descrente: Amaro acendia o seu cigarro, e escutava, bamboleando a
perna.
- to bonito isso! dizia.
Amlia cantava mais acentuadamente, cosendo depressa; e a espaos, erguendo
o busto, mirava o alinhavado ou o pesponto, passando-lhe por cima, para o
assentar, a sua unha polida e larga.
Amaro achava aquelas unhas admirveis, porque tudo que era ela ou vinha dela
lhe parecia perfeito: gostava da cor dos seus vestidos, do seu andar, do modo de
passar os dedos pelos cabelos, e olhava at com ternura para as saias brancas que
ela punha a secar janela do seu quarto, enfiadas numa cana. Nunca estivera
assim na intimidade duma mulher. Quando percebia a porta do quarto dela
entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas dum
paraso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o
ba, eram como revelaes da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo
plido. E no se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas
que batiam as ombreiras das portas estreitas. Ao p dela, muito fraco, muito
langoroso, no lhe lembrava que era padre; o Sacerdcio, Deus, a S, o Pecado
ficavam embaixo, longe, via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como de
um monte se vem as casas desaparecer no nevoeiro dos vales; e s pensava
ento na doura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoo, ou
mordicar-lhe a orelhinha.
s vezes revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o p:
- Que diabo, necessrio ter juzo! necessrio ser homem!
Descia, ia folhear o seu Brevirio; mas a voz de Amlia falava em cima, o tiquetique das suas

botinas batia o soalho... Adeus! a devoo caia como uma vela a que falta o vento;
as boas resolues fugiam, e l voltavam as tentaes em bando a apoderar-se do
seu crebro, frementes, arrulhando, roando-se umas pelas outras como um
bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, sofria. E
lamentava ento a sua liberdade perdida: como desejaria no a ver, estar longe de
Leiria, numa aldeia solitria, entre gente pacifica, com uma criada velha cheia de
provrbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e
os galos cacarejam ao sol! Mas Amlia, de cima, chamava-o - e o encanto
recomeava, mais penetrante.
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S.
Joaneira trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo oscaroos das
azeitonas na palma da mo e enfileirando-os sobre a toalha. A Rua, cada dia
mais tica, servia mal, sempre a tossir; Amlia s vezes erguia-se para ir buscar
uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, atencioso.
- Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor proco! dizia ela. E punha- lhe a mo no
ombro, e os seus olhos encontravam-se.
34
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estmago, sentia-se
regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada
tornava-se expansivo, tinha gracinhas; s vezes mesmo, com um brilho terno no
olho, tocava fugitivamente o p de Amlia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar
sentido, dizia "que muito lhe pesava no ter uma irmzinha assim" !
Amlia gostava de ensopar o miolo do po no molho do guisado: a me dizia-lhe
sempre: - Embirro que faas isso diante do senhor proco.
E ele ento rindo:
- Pois olhe, tambm eu gosto. Simpatia! magnetismo!
E molhavam ambos o po, e sem razo davam grandes risadas. Mas o crepsculo
crescia, a Rua trazia o candeeiro. O brilho dos copos e das louas alegrava
Amaro, enternecia-o mais; chamava S. Joaneira mam; Amlia sorria, de olhos

baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. Da a pouco vinha
o caf; e o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca,
e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
quela hora aparecia sempre o cnego Dias; sentiam-no subir pesadamente,
dizendo da escada: - Licena para dois!
Era ele e a cadela, a Trigueira.
- Ora Nosso Senhor vos d muito boas-noites! dizia assomando porta.
- Vai a gotinha de caf, senhor cnego? perguntava logo a S. Joaneira.
Ele sentava-se, exalando um profundo uff! V l a gotinha do caf! E batendo no
ombro do proco, olhando para a S. Joaneira:
- Ento, como vai c o seu menino?
Riam; vinham as histrias do dia. O cnego costumava trazer no bolso o Dirio
Popular; Amlia interessava-se pelo romance, a S. Joaneira pelas
correspondncias amorosas nos anncios.
- Ora vejam que pouca-vergonha!... dizia ela, deliciando-se.
Amaro ento falava de Lisboa, de escndalos que lhe contara a tia: dos fidalgos
que conhecera "em casa do Sr, conde de Ribamar". Amlia, enlevada, escutava-o
com os cotovelos sobre a mesa, roendo vagarosamente a ponta do palito.
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia cabeceira da
cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava
mais lvida a sua carinha engelhada como uma ma reineta, fazendo debaixo da
roupa uma salincia quase imperceptvel, fixava em todos, com susto, os seus
olhinhos cncavos e chorosos.
- o senhor proco, tia Gertrudes! gritava-lhe Amlia ao ouvido. Vem ver como
est. A velha fazia um esforo, e com uma voz gemida:
- Ah! o menino!
- o menino, , diziam rindo.

E a velha ficava a murmurar, espantada:


- o menino, o menino!
- Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe d uma boa morte!
E voltavam para a sala de jantar onde o cnego Dias, todo enterrado na velha
poltrona de chita
verde, com as mos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:
- Ora v um bocadinho de msica, pequena!
Amlia ia sentar-se ao piano.
- filha, toca o Adeus! recomendava a S. Joaneira comeando a sua meia. E
Amlia, ferindo o teclado:
Ai! adeus! acabaram-se os dias Que ditoso vivi a teu lado...
A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro,
sentia-se todo enleado num sentimentalismo agradvel.
Quando descia para o seu quarto, noite, ia sempre exaltado. Punha- se ento a
ler os Cnticos a Jesus, traduo do francs publicada pela sociedade das Escravas
de Jesus. uma obrazinha beata, escrita com um lirismo equvoco, quase torpe que d orao a linguagem da luxria: Jesus invocado, reclamado com as
sofreguides balbuciantes de uma concupiscncia alucinada: "Oh! vem, amado
do meu corao, corpo adorvel, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com
paixo e desespero! Abrasa- me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! " E
um amor divino, ora grotesco pela inteno, ora obsceno pela materialidade,
geme, ruge, declama assim em cem pginas inflamadas onde as palavras gozo,
delcia, delrio, xtase, voltam a cada momento, com uma persistncia histrica.
E depois de monlogos frenticos de onde se exala um bafo de cio mstico, vm
ento imbecilidades de sacristia,
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notazinhas beatas resolvendo casos difceis de jejuns, e oraes para as dores do
parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lem-no
no convento. beato e excitante; tem as eloqncias do erotismo, todas as

pieguices da devoo; encaderna-se em marroquim e d-se s confessadas; a


cantrida cannica!
Amaro lia at tarde, um pouco perturbado por aqueles perodos sonoros, tmidos
de desejo; e no silncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amlia; o
livro escorregava-lhe das mos, encostava a cabea s costas da poltrona, cerrava
os olhos, e parecia-lhe v-la em colete diante do toucador desfazendo as tranas;
ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta
descobria os dois seios muito brancos.
Erguia-se, cerrando os dentes, com uma deciso brutal de a possuir.
Comeara ento a recomendar-lhe a leitura dos Cnticos a Jesus.
- Ver, muito bonito, de muita devoo! disse ele, deixando-lhe o livrinho uma
noite no cesto
da costura.
Ao outro dia, ao almoo, Amlia estava plida, com as olheiras at o meio da face.
Queixou-se
de insnia, de palpitaes.
- E ento, gostou dos Cnticos?
- Muito. Oraes lindas! respondeu.
Durante todo esse dia no ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste - e sem
razo, s vezes, o rosto abrasava-se-lhe de sangue.

Os piores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando Joo


Eduardo vinha passar as noites em famlia. At s nove horas o proco no saa
do quarto; e quando subia para o ch desesperava-se de ver o escrevente
embrulhado no seu xale-manta, sentado junto de Amlia.
- Ai o que estes dois tm para a palrado, senhor proco! dizia a S. Joaneira.
Amaro tinha um sorriso lvido, partindo devagar a sua torrada, com os olhos fitos

na chvena. Amlia na presena de Joo Eduardo, agora, no tinha com o proco


a mesma familiaridade
alegre, mal levantava os olhos da costura; o escrevente, calado, chupava o
cigarro; e havia grandes silncios em que se sentia o vento uivar, encanado na
rua.
- Olha quem andar agora nas guas no mar! dizia a S. Joaneira, fazendo devagar a
sua meia.
- Safa! acrescentava Joo Eduardo.
As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro; detestava-o pela sua
pouca devoo,
pelo seu bonito bigode preto. E diante dele sentia-se mais enleado no seu
acanhamento de padre.
- Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joaneira.
- Estou to cansada! respondia Amlia apoiando-se nas costas da cadeira, com
um suspirozinho
de fadiga.
A S. Joaneira, ento, que no gostava de "ver gente mona", propunha uma bisca
de trs; e o
padre Amaro, tomando o seu candeeiro de lato, descia para o quarto, muito
infeliz.
Nessas noites quase detestava Amlia; achava-a casmurra. A intimidade do
escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidiu mesmo falar S. Joaneira,
dizer-lhe "que aquele namoro de portas adentro no podia ser agradvel a Deus".
Depois, mais razovel, resolvia esquec-la, pensava em sair da casa, da parquia.
Representava-se ento Amlia com a sua coroa de flores de laranjeira, e Joo
Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando da S, casados... Via a cama de
noivado com os seus lenis de renda... E todas as provas, as certezas do amor
dela pelo "idiota do escrevente" cravavam-se-lhe no

peito como punhais...


- Pois que casem, e que os leve o diabo!...
Odiava-a ento. Fechava violentamente a porta chave como para impedir que
lhe penetrasse no
quarto o rumor da sua voz ou o frufru das suas saias. Mas da a pouco, como todas
as noites, escutava com o corao aos saltos, imvel e ansioso, os rudos que ela
fazia em cima ao despir-se, palrando ainda com a me.
Um dia Amaro jantara em casa da Sra. D. Maria da Assuno; fora depois passear
pela estrada de Marrazes, e volta, ao fim da tarde, encontrou, ao entrar em
casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no patamar, estavam os chinelos de
ourelo da Rua.
- Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi fonte e esqueceu-se de fechar a porta.
Lembrou-se que Amlia tinha ido passar a tarde com a Sra. D. Joaquina Gansoso,
numa fazenda ao p da Piedade, e que a S. Joaneira falara em ir irm do cnego.
Fechou devagar a cancela, subiu cozinha a acender o seu candeeiro; como as
ruas estavam molhadas da chuva da manh, trazia ainda galochas de borracha; os
seus passos no faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu
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no quarto da S. Joaneira, atravs do reposteiro de chita, uma tosse grossa;
surpreendido, afastou sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta
espreitou. - Oh Deus de Misericrdia! a S. Joaneira, em saia branca, atacava o
colete; e, sentado beira da cama, em mangas de camisa, o cnego Dias
resfolegava grosso!
Amaro desceu, colado ao corrimo, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao
acaso para os lados da S. O cu enevoara-se, leves gotas de chuva caam.
- E esta! E esta! dizia ele assombrado.

Nunca suspeitara um tal escndalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S. Joaneira! O


cnego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os mpetos do sangue novo, j
na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrio, as dignidades eclesisticas!
Que faria ento um homem novo e forte, que sente uma vida abundante no
fundo das suas veias reclamar e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava
no seminrio, o que lhe dizia o velho padre Sequeira, cinqenta anos padre da
Gralheira: - "Todos so do mesmo barro!" Todos so do mesmo barro, - sobem
em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminrios, dirigem as
conscincias envoltos em Deus como numa absolvio permanente, e tm no
entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vo repousar
das atitudes devotas e da austeridade do ofcio, fumando cigarros de estanco e
palpando uns braos rechonchudos!
Vinham-lhe ento outras reflexes: que gente era aquela, a S. Joaneira e a filha,
que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho cnego? A S.
Joaneira fora decerto bonita, bem- feita, desejvel - outrora! Por quantos braos
teria passado at chegar, pelos declives da idade, queles amores senis e mal
pagos? As duas mulherinhas, que diabo, no eram honestas! Recebiam hspedes,
viviam da concubinagem. Amlia ia sozinha igreja, s compras, fazenda; e
com aqueles olhos to negros, talvez j tivesse tido um amante! - Resumia,
filiava certas recordaes: um dia que ela lhe estivera mostrando na janela da
cozinha um vaso de rainnculos, tinham ficado ss, e ela, muito corada, puseralhe a mo sobre o ombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra ocasio ela
roara-lhe o peito pelo brao! A noite cara, com uma chuva fina. Amaro no a
sentia, caminhando depressa, cheio de uma s idia deliciosa que o fazia tremer:
ser o amante da rapariga, como o cnego era o amante da me! Imaginava j a
boa vida escandalosa e regalada; enquanto em cima a grossa S. Joaneira
beijocasse o seu cnego cheio de dificuldades asmticas - Amlia desceria ao seu
quarto, p ante p, apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros
nus... Com que frenesi a esperaria! E j no sentia por ela o mesmo amor
sentimental, quase doloroso: agora a idia muito magana dos dois padres e as
duas concubinas, de panelinha, dava quele homem amarrado pelos votos uma
satisfao depravada! Ia aos pulinhos pela rua. - Que pechincha de casa!

A chuva caa, grossa. Quando entrou havia j luz na sala de jantar. Subiu.
- lh, como vem frio! disse-lhe Amlia sentindo, ao apertar-lhe a mo, a umidade
da nvoa. Sentada mesa, costurava com um xale-manta pelos ombros: Joo
Eduardo, ao p, jogava a
bisca com a S. Joaneira.
Amaro sentou-se um pouco embaraado; a presena do escrevente dera-lhe de
repente, sem saber
por qu, o duro choque duma realidade antiptica: e todas as esperanas, que lhe
tinham vindo a danar uma sarabanda na imaginao, encolhiam-se uma a uma,
murchavam - vendo ali Amlia ao p do noivo, curvada sobre uma costura
honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candeeiro de famlia!
E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de
ramagens verdes, o armrio cheio de loua luzidia da Vista Alegre, o simptico e
bojudo pote de gua, o velho piano mal firme nos seus trs ps torneados; o
paliteiro to querido de todos - um Cupido rechonchudo com um guarda-chuva
aberto eriado de palitos, e aquela tranqila bisca jogada com os dichotes
clssicos. Tudo to decente!
Afirmava-se ento nas grossas roscas do pescoo da S. Joaneira, como para
descobrir nelas as marcas das beijocas do cnego: ah! tu, no h dvida, s "uma
barreg de clrigo". Mas Amlia! com aquelas longas pestanas descidas, o beio
to fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da me; ou, experiente, estava
bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurana dum amor legal! - E
Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez
do seu rosto, da virgindade do seu passado.
- Cansadinho, senhor proco, hem? disse a S. Joaneira. E para Joo Eduardo: Trunfo, faz favor, seu cabea no ar!
O escrevente, namorado, distraa-se.
- o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joaneira a cada momento.
Depois ele esquecia-se de comprar cartas.

- Ah menino, menino! dizia ela com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas
orelhas!
Amlia ia cosendo com a cabea baixa: tinha um pequeno casabeque preto com
botes de vidro,
que lhe disfarava a forma do seio.
37
E Amaro irritava-se daqueles olhos fixos na costura, daquele casaco amplo
escondendo a beleza que mais apetecia nela! E nada a esperar. Nada dela lhe
pertenceria, nem a luz daquelas pupilas, nem a brancura daqueles peitos! Queria
casar - e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus!
Odiou-o ento, dum dio complicado de inveja ao seu bigode negro e ao seu
direito de amar...
- Est incomodado, senhor proco? perguntou Amlia, vendo-omexer-se
bruscamente na cadeira.
- No, disse ele secamente.
- Ah! fez ela, com um leve suspiro, picando rapidamente o pesponto.
O escrevente, baralhando as cartas, comeara a falar de uma casa que queria
alugar; a conversa caiu sobre arranjos domsticos.
- Traz-me luz! gritou Amaro Rua.
Desceu para o seu quarto, desesperado. Ps a vela sobre a cmoda; o espelho
estava defronte, e a sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridculo com a sua
cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e por trs a coroa hedionda.
Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabelo
todo, a sua liberdade! Para que hei-de eu estar a ralar- me? pensou. O outro era
um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; ele s poderia
dar-lhe sensaes criminosas, depois os terrores do pecado! Ela simpatizava
talvez com ele, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar;
nada mais natural! Via-se pobre, bonita, s: cobiava uma situao legitima e

duradoura, o respeito das vizinhas, a considerao dos lojistas, todos os


proveitos da honra!
Odiou-a ento, e o seu vestido afogado e a sua honestidade! A estpida, que no
percebia que ao p dela, sob uma negra batina, uma paixo devota a espreitava, a
seguia, tremia e morria de impacincia! Desejou que ela fosse como a me, - ou
pior, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia impudente, traando a perna e
fitando os homens, uma fmea fcil como uma porta aberta...
- Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! - pensou,
recaindo em si um pouco envergonhado. Est claro: no podemos pensar em
mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!
Abafava. Abriu a janela. O cu estava tenebroso; a chuva cessara; o piar das
corujas na Misericrdia cortava s o silncio.
Enterneceu-se, ento, com aquela escurido, aquela mudez de vila adormecida. E
sentiu subir outra vez, das profundidades do seu ser, o amor que sentira ao
princpio por ela, muito puro, dum sentimentalismo devoto: via a sua linda
cabea, duma beleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar;
e toda a sua alma foi para ela num desfalecimento de adorao, como no culto a
Maria e na Saudao Anglica; pediu-lhe perdo ansiosamente de a ter ofendido;
disse-lhe alto: s uma santa, perdoa! - Foi um momento muito doce, de
renunciamento carnal...
E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria
subitamente em si, ps- se a pensar com saudade - que se fosse um homem livre
seria um marido to bom! Amorvel, delicado, dengueiro, sempre de joelhos,
todo de adoraes! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe
as barbas! idia daquelas felicidades inacessveis, os olhos arrasaram-se-lhe de
lgrimas. Amaldioou, num desespero, "a pega da marquesa que o fizera padre",
e o bispo que o confirmara!
- Perderam-me! perderam-me! dizia, um pouco desvairado.

Sentiu ento os passos de Joo Eduardo que descia, e o rumor das saias de
Amlia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no beio, de
cime. A cancela bateu, Amlia subiu cantarolando baixo.
- Mas a sensao do amor mstico que o penetrara um momento, olhando a
noite, passara; e deitou-se, com um desejo furioso dela e dos seus beijos.
VII
Dias depois o padre Amaro e o cnego Dias tinham ido jantar com o abade da
Cortegassa. - Era
um velho jovial, muito caridoso, que vivia h trinta anos naquela freguesia e
passava por ser o melhor cozinheiro da diocese. Todo o clero das vizinhanas
conhecia a sua famosa cabidela de caa. O abade
fazia anos, havia outros convidados - o padre Natrio e o padre Brito: o padre
Natrio era uma criaturinha
biliosa, seca, com doisolhos encovados, muito malignos, a pele picada das
bexigas e extremamente irritvel. Chamavam-lhe o Furo. Era esperto e
questionador; tinha fama de ser grande latinista, e ter uma lgica de ferro; e
dizia-se dele: uma lngua de vbora! Vivia com duas sobrinhas
rfs, declarava-se extremoso por elas, gabava-lhes sempre a virtude, e
costumava chamar-lhes as 38
duas rosas do seu canteiro. O padre Brito era o padre mais estpido e mais forte
da diocese; tinha o aspecto, os modos, a forte vida de um robusto beiro que
maneja bem o cajado, emborca um almude de vinho, pega alegremente rabia
do arado, serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e nas sestas quentes de
Junho atira brutalmente as raparigas para cima das medas de milho. O senhor
chantre, sempre correto nas suas comparaes mitolgicas, chamava-lhe - o
leo de Nemeia.
A sua cabea era enorme, de cabelo langero que lhe descia at as . sobrancelhas:
a pele curtida tinha um tom azulado, do esforo da navalha de barba; e, nas suas

risadas bestiais, mostrava dentinhos muito midos e muito brancos do uso da


broa.
Quando iam sentar-se mesa chegou o Libaninho todo azafamado, gingando
muito, com a calva suada, exclamando logo em tons agudos:
- Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais um bocadinho. Passei pela igreja
de Nossa Senhora da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma missa de
inteno. Ai, filhos! papei-a logo, venho mesmo consoladinho!
A Gertrudes, a velha e possante ama do abade, entrou ento com a vasta terrina
do caldo de galinha: e o Libaninho, saltitando em redor dela, comeou os seus
gracejos:
- Ai, Gertrudinhas, quem tu fazias feliz, bem eu sei!
A velha alde ria, com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia a massa do
seio.
- Olha que arranjo me aparece agora pela tarde!...
- Ai, filha! as mulheres querem-se como as pras, maduras e de sete cotovelos.
Ento que
chup-las!
Os padres gargalharam; e, alegremente, acomodaram-se mesa.
O jantar fora todo cozinhado pelo abade: logo sopa as exclamaes comearam:
- Sim, senhor, famoso! Disto nem no Cu! Bela coisa!
O excelente abade estava escarlate de satisfao. Era, como dizia o senhor
chantre, "um divino
artista" ! Lera todos os Cozinheiros completos, sabia inmeras receitas; era
inventivo - e, como ele afirmava dando marteladinhas no crnio, "tinha-lhe
sado muito petisco daquela cachimnia" ! Vivia to absorvido pela sua "arte" que
lhe acontecia, nos sermes de domingo, dar aos fiis ajoelhados para receberem
a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos
do sarrabulho. E ali vivia feliz, com a sua velha Gertrudes, de muito bom paladar

tambm, com o seu quintal de ricos legumes, sentindo uma s ambio na vida ter um dia a jantar o bispo!
- Oh senhor proco! dizia ele a Amaro, por quem ! mais um bocadinho de
cabidela, faa favor! Essas codeazinhas de po ensopadas no molho! Isso! isso!
Que tal, hem? - E com um aspecto modesto: - No l por dizer, mas a cabidela
hoje saiu-me boa!
Estava com efeito, como disse o cnego Dias, de tentar Santo Anto no deserto!
Todos tinham tirado as capas, e, s com as batinas, as voltas alargadas, comiam
devagar, falando pouco. Como no dia seguinte era a festa da Senhora da Alegria,
os sinos na capela, ao lado, repicavam; e o bom sol do meio- dia dava tons muito
alegres loua, s bojudas canecas azuis com vinho da Bairrada, aos pires de
pimentes escarlates, s frescasmalgas de azeitonas pretas - enquanto o bom
abade, de olho arregalado, mordendo o beio, ia cortando com cuidado nacos
brancos do peito do capo recheado.
As janelas abriam para o quintal. Viam-se dois largos ps de camlias vermelhas
crescendo junto ao peitoril, e para alm das copas das macieiras um pedao muito
vivo de cu azul-ferrete. Uma nora chiava ao longe, lavadeiras batiam a roupa.
Sobre a cmoda, entre in-folios, na sua peanha, um Cristo perfilava tristemente
contra a parede o seu corpo amarelo, coberto de chagas escarlates: e, aos lados,
simpticos santos sob redomas de vidro, lembravam legendas mais doces de
religio amvel: o bom gigante S. Cristvo atravessando o rio com o divino
pequerrucho que sorri, e faz saltar o mundo sobre a sua mozinha como uma
pla; o doce pastor S. Joozinho coberto com uma pele de ovelha, e guardando os
seus rebanhos, no com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro S. Pedro,
tendo na sua mo de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do
Cu! Nas paredes, em litografias de coloridos cruis, o patriarca S. Jos apoiavase ao seu cajado onde florescem lrios brancos; o cavalo empinado do bravo S.
Jorge pisava o ventre dum drago surpreendido; e o bom Santo Antnio, beira
dum regato, sorria, falando a um tubaro. O tlintlim dos copos, o rudo das facas

animava a velha sala, de teto de carvalho defumado, duma alegria desusada. E


Libaninho devorava, dizendo pilhrias.
- Gertrudinhas, flor do canio, passa-me as bages. No me olhes assim, magana,
que me fazes revolver os intestinos!
- O diabo o homem! dizia a velha. Olha para o que lhe deu! Falasse-me aqui h
trinta anos, seu perdido!
- Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto coisas pela
espinha acima!
39
Os padres engasgavam-se de riso. J duas canecas de vinho estavam vazias: e o
padre Brito desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola de l da
Covilh, onde a marca da fbrica, feita de linha azul, era uma cruz sobre o
corao.
Um pobre ento viera porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e enquanto
Gertrudes lhe metia no alforje metade duma broa, os padres falaram dos bandos
de mendigos que agora percorriam as freguesias.
- Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abade. Dias, mais este
bocadinho da asa!
- Muita pobreza, mas muita preguia, considerou duramente o padre Natrio. Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se
marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas portas. Scia de mariolas, resumiu.
- Deixe l, padre Natrio, deixe l! disse o abade. Olhe que h pobreza deveras.
Por aqui h famlias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem no cho como
porcos e no comem seno ervas.

- Ento que diabo querias tu que eles comessem? exclamou o cnego Dias
lambendo os dedos depois de ter esburgado a asa do capo. Querias que
comessem peru? Cada um como quem !
O bom abade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estmago, e disse
com afeto:
- A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
- Ai filhos! acudiu o Libaninho num tom choroso, se houvesse s pobrezinhos
isto era o reininho
dos Cus!
O padre Amaro considerou com gravidade:
- bom que haja quem tenha cabedais para legados pios, edificaes de capelas...
- A propriedade devia estar na mo da Igreja, interrompeu Natrio com
autoridade.
O cnego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
- Para o esplendor do culto e propagao da f.
- Mas a grande causa da misria, dizia Natrio com uma voz pedante, era a
grande imoralidade. - Ah! l isso no falemos! exclamou o abade com desgosto.
Neste momento h s aqui na
freguesia mais de doze raparigas solteiras grvidas! Pois senhores, se as chamo,
se as repreendo, pem-se a fungar de riso!
- L nos meus stios, disse o padre Brito, quando foi pela apanha da azeitona,
como h falta de braos, vieram as maltas trabalhar. Pois agora o vers! Que
desaforo! - Contou a histria das maltas, trabalhadores errantes, homens e
mulheres, que andam oferecendo os braos pelas fazendas, vivem na
promiscuidade e morrem na misria. - Era necessrio andar sempre de cajado em
cima deles!
- Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mos na cabea. Ai, o pecado
que vai pelo mundo! At se me esto a eriar os cabelos!

Mas a freguesia de Santa Catarina era a pior! As mulheres casadas tinham perdido
todo o escrpulo.
- Piores que cabras, dizia o padre Natrio alargando a fivela do colete.
E o padre Brito falou dum caso na freguesia de Amor: raparigas de dezesseis e
dezoito anos que costumavam reunir-se num palheiro - o palheiro do Silvrio - e
passavam l a noite com um bando de marmanjos!
Ento o padre Natrio, que j tinha os olhos luzidios, a lngua solta, disse
repoltreando-se na cadeira e espaando as palavras:
- Eu no sei o que se passa l na tua freguesia, Brito; mas se h alguma coisa, o
exemplo vem de alto... A mim tm-me dito que tu e a mulher do regedor...
- mentira! exclamou o Brito, fazendo-se todo escarlate.
- Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, repreendendo-o com bondade.
- mentira! berrou ele.
- E aqui para ns, meus ricos, disse o cnego Dias baixando a voz, com o olhinho
aceso numa
malcia confidencial, sempre lhes digo que uma mulher de mo-cheia!
- mentira! clamou o Brito. E falando de um jato: - Quem anda a espalhar isso
o morgado da
Cumiada, porque o regedor no votou com ele na eleio... Mas to certo como eu
estar aqui, quebro-lhe os ossos! - Tinha os olhos injetados, brandia o punho: Quebro-lhe os ossos!
- O caso no para tanto, homem, considerou Natrio.
- Quebro-lhe os ossos! No lhe deixo um inteiro!
- Ai, sossega, leozinho! disse o Libaninho com ternura. No te percas, filhinho!
Mas recordando a influncia do morgado da Cumiada, que era ento oposio e
que levava

duzentos votos uma, os padres falaram de eleies e dos seus episdios. Todos
ali, a no ser o padre Amaro, sabiam, como disse Natrio, "cozinhar um
deputadozinho". Vieram anedotas; cada um celebrou as suas faanhas.
40
O padre Natrio na ltima eleio tinha arranjado oitenta votos! - Cspite!
disseram.
- Imaginem vocs como? Com um milagre!
- Com um milagre? repetiram espantados.
- Sim, senhores.
Tinha-se entendido com um missionrio, e na vspera da eleio receberam-se
na freguesia cartas vindas do Cu e assinadas pela Virgem Maria, pedindo, com
promessas de salvao e ameaas do Inferno, votos para o candidato do governo.
De chupeta, hem?
- De mo-cheia! disseram todos.
S Amaro parecia surpreendido.
- Homem! disse o abade com ingenuidade, disso que eu c precisava. Eu ento
tenho de andar
a a estafar-me de porta em porta. - E sorrindo bondosamente: - Com o que se
faz ainda alguma coisita com o relaxe da cngrua!
- E com a confisso, disse o padre Natrio. A coisa ento vai pelas mulheres, mas
vai segura! Da confisso tira-se grande partido.
O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:
- Mas enfim a confisso um ato muito srio, e servir, assim para eleies...
O padre Natrio, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos excitados,
soltou uma palavra
imprudente:
- Pois o senhor toma a confisso a srio?

Houve uma grande surpresa.


- Se tomo a confisso a srio? gritou o padre Amaro recuando a cadeira, com os
olhos
arregalados.
- Ora essa! exclamaram. Oh, Natrio! Oh, menino!
O padre Natrio exaltado queria explicar, atenuar:
- Escutem, criaturas de Deus! Eu no quero dizer que a confisso seja uma
brincadeira! Irra! Eu
no sou pedreiro-livre! O que eu quero dizer que um meio de persuaso, de
saber o que se passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando para
o servio de Deus, uma arma. A est o que - a absolvio uma arma!
- Uma arma! exclamaram.
O abade protestava, dizendo:
- Oh, Natrio! oh, filho! isso no!
O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, "tinha j um tal terror que at lhe
tremiam as pernas" !
Natrio irritou-se:
- Ento talvez me queiram dizer, gritou, que qualquer de ns, pelo fato de ser
padre, porque o
bispo lhe imps trs vezes as mos e porque lhe disse o accipe, tem misso direta
de Deus, - Deus mesmo para absolver? !
- Decerto! exclamaram, decerto!
E o cnego Dias disse meneando uma garfada de bages:
- Quorum remiseris peccata, remittuntur eis. a frmula. A frmula tudo,
menino...
- A confisso a essncia mesma do sacerdcio, soltou o padre Amaro com
gestos escolares,

fulminando Natrio. Leia Santo Incio! Leia S. Toms!


- Anda-me com ele! gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando Amaro. Anda-me com
ele, amigo proco! Salta-me no cachao do mpio!
- Oh, senhores! berrou Natrio furioso com a contradio, o que eu quero que
me respondam a
isto. E voltando-se para Amaro: - O senhor, por exemplo, que acaba de almoar,
que comeu o seu po torrado, tomou o seu caf, fumou o seu cigarro, e que depois
se vai sentar no confessionrio, s vezes preocupado com negcios de famlia ou
com faltas de dinheiro, ou com dores de cabea, ou com dores de barriga,
imagina o senhor que est ali como um Deus para absolver?
O argumento surpreendeu.
O cnego Dias, pousando o talher, ergueu os braos, e com uma solenidade
cmica exclamou:
- Hereticus est! herege!
- Hereticus est! tambm eu digo, rosnou o padre Amaro.
Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do arroz-doce.
- No falemos nessas coisas, no falemos nessas coisas, disse logo
prudentemente o abade.
Vamos ao arrozinho. Gertrudes, d c a garrafinha do Porto!
Natrio, debruado sobre a mesa, ainda arremessava argumentos a Amaro:
- Absolver exercer a graa. A graa s atributo de Deus: em nenhum autor
encontro que a
graa seja transmissvel. Logo...
41
- Ponho duas objees... gritou Amaro, com o dedo em riste, em atitude de
polmica.

- Oh filhos! oh filhos, acudiu o bom abade aflito. Deixem a sabatina, que at nem
lhes sabe o arrozinho!
Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com as
precaues clssicas:
- Mil oitocentos e quinze! dizia. Disto no se bebe todos os dias.
Para o saborear, depois de o fazer reluzir luz na transparncia dos copos,
repoltreavam-se nas velhas cadeiras de couro; comearam as sades! A primeira
foi ao abade, que murmurava: - Muita honra... muita honra... Tinha os olhos
chorosos de satisfao.
- A Sua Santidade Pio IX! gritou ento o Libaninho brandindo o clice. Ao mrtir!
Todos beberam comovidos. Libaninho entoou em voz de falsete o hino de Pio IX:
o abade, prudente, f-lo calar por causa do hortelo que no quintal aparava o
buxo.
A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natrio tornara-se terno, falava das
suas sobrinhas, "as suas duas rosas", e citava Virglio, molhando as castanhas em
vinho. Amaro, todo deitado para trs na cadeira, as mos nos bolsos, olhava
maquinalmente as rvores do jardim, pensando vagamente em Amlia, nas suas
formas; suspirou mesmo com um desejo dela - enquanto o padre Brito, rubro,
queria convencer os republicanos a marmeleiro.
- Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou entusiasmado o Libaninho.
Mas Natrio comeara a discutir com o cnego histria eclesistica: e, muito
questionador, voltou aos seus argumentos vagos sobre a doutrina da Graa:
afirmava que um assassino, um parricida poderia ser canonizado - se se tivesse
revelado o estado de Graa! Divagava, com frases de escola em que se lhe pegava
a lngua. Citou santos que tinham sido escandalosos; outros que pela sua
profisso deviam ter conhecido, praticado, amado o vcio. Exclamou com as
mos na cinta:

- Santo Incio foi militar!


- Militar? gritou o Libaninho. - E erguendo-se, correndo a Natrio, lanando-lhe
um brao ao pescoo com uma ternura pueril e avinhada: - Militar? E que era ele?
Que era ele, o meu devoto Santo Incio?
Natrio repeliu-o:
- Deixe-me, homem! Era sargento de caadores.
Houve uma enorme risada.
O Libaninho ficara exttico.
- Sargento de caadores! dizia erguendo as mos num mpeto beato. Meu rico
Santo Incio!
Bendito e louvado seja ele por toda a eternidade!
E ento o abade props que fossem tomar caf para debaixo da parreira.
Eram trs horas. Ao erguer-se todos cambaleavam um pouco, arrotando
formidavelmente, com
risadas espessas; s Amaro tinha a cabea lcida, as pernas firmes - e sentia-se
muito terno.
- Pois agora, colegas, disse o abade sorvendo o ltimo gole de caf, o que est a
calhar um
passeio fazenda.
- Para esmoer, rosnou o cnego erguendo-se com dificuldade. vamos l
fazenda do abade! Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito de carros.
O dia estava muito azul, dum sol
tpido. A vereda seguia entre valados eriados de silvas, para alm as terras lisas
estendiam-se cobertas de restolho; a espaos as oliveiras destacavam, com
grande nitidez, na sua folhagem fina; para o horizonte arredondavam-se colinas
cobertas da rama verde-negra dos pinheiros; havia um grande silncio; s s
vezes, ao longe, num caminho, um carro chiava. E naquela serenidade da
paisagem e da luz, os padres iam caminhando devagar, tropeando um pouco, de
olho aceso, estmago enfartado, chacoteando e achando a vida boa.

O cnego Dias e o abade, de brao dado, caturravam. O Brito, ao lado de Amaro,


jurava que havia de beber o sangue ao morgado da Cumeada.
- Prudncia, colega Brito, prudncia, dizia Amaro chupando o cigarro. E o Brito,
com passadas de carreto, rosnava.
- Hei-de comer-lhe os fgados.
O Libaninho atrs, s, cantarolava em falsete:
- Passarinho trigueiro, Salta c fora...
Adiante de todos ia o padre Natrio: levava a capa no brao, arrastando pelo cho;
a batinha desabotoada por trs deixava ver o forro imundo do colete; e as suas
pernas escanifradas, com as meias pretas de l cheias de passagens, faziam
bordos que o atiravam contra o silvado.
42
E no entanto Brito, com grandes bafos de vinho, roncava:
- Eu s me contentava em agarrar num cajado e correr tudo! tudo! - e gesticulava
com um gesto imenso que abrangia o mundo!
- Tem as asas quebradas, No pode agora...
Gania atrs o Libaninho.
Mas pararam de repente: Natrio adiante gritava com voz furiosa:
- Seu burro, voc no v? Sua besta!
Era volta do atalho. Tropeara com um velho que conduzia uma ovelha; ia
caindo; e ameaavao com o punho fechado numa raiva avinhada.
- Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente o homem.
- Sua besta! berrava Natrio com os olhos chamejantes. Que o racho!
O homem balbuciava, tinha tirado o chapu; viam-se os seus cabelos brancos;
parecia ser um

antigo criado da lavoura envelhecido no trabalho; era talvez av - e curvado,


vermelho de vergonha, encolhia-se com as sebes para deixar passar no estreito
caminho de carros os senhores padres joviais e excitados da vinhaa!
Amaro no os quis acompanhar at fazenda. Ao fim da aldeia, no cruzeiro,
tomou pelo caminho de Sobros, voltou para Leiria.
- Olhe que uma lgua cidade, dizia o abade. Eu mando-lhe aparelhar a gua,
colega.
- Qual histria, abade, a perninha rija! - e, traando alegremente a capa, partiu
cantarolando o Adeus...
Ao p da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se, ao comprido dum muro de
quinta coberto de musgos e eriada no alto de luzidios fundos de garrafas.
Quando Amaro chegou prximo ao porto de carros, baixo e pintado de
vermelho, encontrou no meio do caminho, parada, uma grande vaca malhada;
Amaro divertido espicaou-a com o guarda-chuva; a vaca trotou balouando a
papeira - e Amaro ao voltar-se viu Amlia, ao porto, que saudava, dizendo toda
risonha:
- Ento est-me a espantar o gado, senhor proco?
- a menina! Que milagre este?
Ela fez-se um pouco vermelha:
- Vim quinta com a D. Maria da Assuno. Vim dar uma vista de olhos
fazenda. Ao p de Amlia uma rapariga acamava couves numa canastra.
- Ento esta que a quinta da D. Maria?
E Amaro deu um passo para dentro do porto.
Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma sombra doce, estendia-se at
casa que se
entrevia no fundo, branquejando ao sol.
- . A nossa fazenda fica do outro lado, mas entra-se tambm por aqui. V,
Joana, avia-te!

A rapariga ps a canastra cabea, deu as boas-tardes, meteu pelo caminho de


Sobros, batendo
muito os quadris.
- Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa propriedade, considerava o proco.
- Venha ver a nossa fazenda! disse Amlia. uma migalhinha de terra, mais para
fazer uma
idia. Vai-se por aqui mesmo... Olhe, vamos ter l baixo com a D. Maria, quer?
- Valeu. Vamos l D. Maria, disse Amaro.
Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O cho estava cheio de folhas secas,
e, entre os
troncos espaados, moutas de hortnsias pendiam abatidas, amareladas dos
chuveiros; ao fundo a casa baixa, velha, de um andar s, assentava pesadamente.
Ao longo da parede grandes abboras amadureciam ao sol, e no telhado, todo
negro do Inverno, esvoaavam pombos. Por trs o laranjal formava uma massa
de folhagens verde- escuras; uma nora chiava monotonamente.
Um rapazinho passou com um balde de lavagem.
- Para onde foi a senhora, Joo? perguntou Amlia.
- Foi pro olival, disse o rapaz com a sua vozinha arrastada. O olival era longe, no
fundo da
quinta: havia ainda grandes lamas, no se podia ir l sem tamancos.
- Vai-se a gente sujar toda, disse Amlia. Deixar l a D. Maria, hem? Vamos ns
ver a quinta...
Por aqui, senhor proco...
Estavam defronte dum velho muro onde cresciam clematites. Amlia abriu uma
porta verde; e
por trs degraus de pedra desconjuntados desceram a uma rua toldada por uma
larga parreira. Junto do muro cresciam rosas de todo o ano; do outro lado, por

entre os pilares de pedra que sustentavam a latada e os ps torcidos das cepas,


via-se, batido de luz, com tons amarelados, um grande campo de erva; os tetos
43
baixos do curral coberto de colmo destacavam ao longe em escuro, e desse lado
um fumozinho leve e branco perdia-se no ar muito azul.
Amlia a cada momento parava, explicava a quinta. - Ali ia semear- se cevada;
alm havia de ver o cebolinho, estava muito bonito...
- Ah! a D. Maria da Assuno traz isto muito bem tratado!
Amaro ouvia-a falar, com a cabea baixa, olhando-a de lado; a sua voz naquele
silncio dos campos parecia-lhe mais rica, mais doce; o grande ar dava-lhe uma
cor mais picante s faces; o seu olhar rebrilhava. Para saltar umas lamas tinha
apanhado o vestido; e a brancura da meia, que ele entreviu, perturbou-o como
um comeo da sua nudez.
Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao comprido dum regueiro. Amlia
riu muito do proco, que tinha medo dos sapos. Ele ento exagerou os seus
sustos. menina Amlia, haveria vboras? Ele roava-se por ela, afastando-se
das ervas altas.
- V aquele valado? Pois para o lado de l a nossa fazenda. Entra- se pela
cancela, v? Mas veja l se est cansado! Que o senhor parece-me que no
grande caminhador... Ai, um sapo!
Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o ombro. Ela empurrou-o docemente, e com
um riso clido:
- Seu medroso! seu medroso!
Estava toda contente, toda viva. Falava na sua fazenda com uma vaidadezinha,
satisfeita de
entender da lavoura, de ser proprietria. - A cancela est fechada, parece - disse
Amaro.

- Est, fez ela. - Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava fechada! Que
pena! E abalava, impaciente, as grades estreitas, entre as duas fortes ombreiras
de madeira encravadas na espessura do
silvado.
- Foi o caseiro que levou a chave!
Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a voz: Antnio! Antnio! Ningum respondeu.
- Anda l para o fundo da quinta! disse ela. Que seca! Se o senhor proco
quisesse, aqui adiante
pode-se passar. H uma abertura no valado, chamam-lhe o salto da cabra. Pode a
gente saltar para o outro lado.
E caminhando rente ao silvado, chapinhando a lama, toda alegre:
- Quando eu era pequena nunca passava pela cancela! Saltava sempre por ali. E
cada trambolho, quando o cho estava resvaladio com a chuva! Era um vivo
demnio, aqui onde me v! Ningum h-de dizer, senhor proco, hem? Ai! voume a fazer velha! - E voltando-se para ele, com um risinho onde luzia o esmalte
dos dentes:
- No verdade? Estou-me a fazer velha, hem?
Ele sorria. Custava-lhe falar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois do vinho do
abade, amolecia- o: e a figura dela, os seus ombros, os seus encontros davam-lhe
um desejo contnuo e intenso.
- Aqui est o salto da cabra, disse Amlia parando.
Era uma abertura estreita no valado: a terra do outro lado, mais baixa, estava
toda lamacenta. Via-se dali a fazenda da S. Joaneira: o campo plano estendia-se
at um olival, com a erva fina muito estrelada de pequenos malmequeres
brancos; uma vaca preta, de grandes malhas, pastava; e para alm viam-se tetos
aguados dos casais, onde voavam revoadas de pardais.

- E agora? perguntou Amaro.


- Agora saltar, disse ela rindo.
- C vai! exclamou ele.
Traou a capa, saltou: mas escorregou nas ervas midas, - e imediatamente
Amlia, debruandose, rindo muito, com grandes acenos de mos:
- E agora adeus, senhor proco, que eu vou ter com a D. Maria. A fica preso na
fazenda. Para
cima no pode o senhor pular, pela cancela no pode o senhor passar! o senhor
proco que est preso... - menina Amlia! menina Amlia!
Ela cantarolava-lhe, escarnecendo:
Fico sozinha varanda,
Que o meu bem est na priso!
Aquelas maneirinhas excitavam o padre - e com os braos erguidos, a voz clida:
- Salte, salte!
Ela ento fez voz de mimo:
- Ai, tenho medinho! tenho medinho...
- Salte, menina!
- L vai! gritou ela bruscamente.
44
Saltou, foi cair-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se e sentindo entre os braos o corpo dela, apertou-a brutalmente e beijou-a com
furor no pescoo
Amlia desprendeu-se, ficou diante dele, sufocada, com a face em brasa,
compondo na cabea e em roda do pescoo, com as mos trmulas, as pregas da
manta de l. Amaro disse-lhe:
- Ameliazinha!

Mas ela de repente apanhou os vestidos, correu ao comprido do valado. Amaro,


com grandes passadas, seguiu-a atarantado. Quando chegou cancela, Amlia
falava ao caseiro, que aparecia com a chave.
Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a parreira.
Amlia adiante palrava com o caseiro; e atrs Amaro, de cabea baixa, seguia
muito murcho. Ao p da casa Amlia parou, fazendo-se vermelha, compondo
sempre a manta em redor do pescoo:
- Antnio, disse, ensine o porto ao senhor proco. Muito boas tardes, senhor
proco.
E atravs das terras midas correu para o fundo da quinta, para os lados do olival.
A Sra. D. Maria da Assuno ainda l estava, sentada numa pedra, tagarelando
com o tio
Patrcio; um bando de mulheres, com grandes varas, batiam em redor a ramagem
das oliveiras.
- Que isso, tonta? De onde vens tu a correr, rapariga? Credo! que doida!
- Vim a correr, disse ela toda vermelha, sufocada.
Sentou-se ao p da velha; e ficou imvel, com as mos cadas no regao,
respirando fortemente,
os beios entreabertos, os olhos fixos numa abstrao. Todo o seu ser se
abismava numa s sensao: - Gosta de mim! Gosta de mim!

Estava h muito namorada do padre Amaro - e s vezes, s, no seu quarto,


desesperava-se por imaginar que ele no percebia nos seus olhos a confisso do
seu amor! Desde os primeiros dias, apenas o ouvia pela manh pedir de baixo o
almoo, sentia uma alegria penetrar todo o seu ser sem razo, punha-se a
cantarolar com uma volubilidade de pssaro. Depois via-o um pouco triste. Por
qu? No conhecia o seu passado; e lembrada do frade de vora, pensou que ele
se fizera padre por um desgosto de amor. Idealizou-o ento: supunha-lhe uma
natureza muito terna, parecia- lhe que da sua pessoa airosa e plida se

desprendia uma fascinao. Desejou t-lo por confessor: como seria estar
ajoelhada aos ps dele, no confessionrio, vendo de perto os seus olhos negros,
sentindo a sua voz suave falar do Paraso! Gostava muito da frescura da sua boca;
fazia-se plida idia de o poder abraar na sua longa batina preta! Quando
Amaro saa, ia ao quarto dele, beijava a travesseirinha, guardava os cabelos
curtos que tinham ficado nos dentes do pente. As faces abrasavam-se-lhe
quando o ouvia tocar a campainha.
Se Amaro jantava fora com o cnego Dias, estava todo o dia impertinente,
ralhava com a Rua, s vezes mesmo dizia mal dele, "que era casmurro, que era
to novo que nem inspirava respeito". Quando ele falava de alguma nova
confessada, amuava, com cime pueril. A sua antiga devoo renascia, cheia de
um fervor sentimental: sentia um vago amor fsico pela Igreja; desejaria abraar,
com pequeninos beijos demorados, o altar, o rgo, o missal, os santos, o Cu,
porque no os distinguia bem de Amaro, e pareciam-lhe dependncias da sua
pessoa. Lia o seu livro de missa pensando nele como no seu Deus particular. E
Amaro no sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ela em cima o
escutava, regulando as palpitaes do seu corao pelas passadas dele, abraando
o travesseiro, toda desfalecida de desejos, dando beijos no ar, onde se lhe
representavam os lbios do proco!

A tarde caa quando D. Maria e Amlia voltaram para a cidade. Amlia adiante,
calada, chibatava a sua burrinha, enquanto D. Maria da Assuno vinha palrando
com o moo da quinta, que segurava a arreata. Ao passarem junto S tocou a
Ave-Maria. E Amlia, rezando, no podia destacar os olhos das cantarias da igreja
to grandiosamente erguidas, decerto para que ele ali celebrasse! Lembravamlhe ento domingos em que o vira, ao repicar dos sinos, dar a bno dos degraus
do altar- mor: e todos se curvavam, mesmo as senhoras do morgado Carreiro,
mesmo a Sra. baronesa da Via-Clara e a mulher do governador civil, to
orgulhosa com o seu nariz de cavalete! Dobravam-se sob os seus dedos erguidos,
e achavam decerto tambm bonitos os seus olhos negros! E era ele que a tinha
apertado nos braos, ao p do valado! Sentia ainda no pescoo a presso clida

dos seus beios: uma paixo flamejou como uma chama por todo o seu ser: largou
a arreata do burrinho, apertou as mos contra o peito, e cerrando os olhos,
lanando toda a sua alma numa devoo:
- Oh, Nossa Senhora das Dores, minha madrinha, faz que ele goste de mim!
45
No adro lajeado cnegos passeavam, conversando. A botica defronte j tinha luz,
os bocais reluziam; e por detrs da balana a figura do farmacutico Carlos, com o
seu bon bordado a mianga, movia-se majestosamente.
VIII
O padre Amaro voltara para casa aterrado.
- E agora? e agora? dizia ele, encostado ao canto da janela, sentindo o corao
encolhido.
Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! No podia continuar ali, na
mesma
familiaridade, depois de ter tido "aquele atrevimento com a pequena".
Que ela no ficara muito indignada -. apenas atordoada; contivera-atalvez o
respeito
eclesistico, a delicadeza para com o hspede, a ateno para com o amigo do
cnego. Mas podia contar me, ao escrevente... Que escndalo! E via o senhor
chantre, traando a perna e fitando-o, - que era a sua atitude de repreenso dizer-lhe com pompa: - "So esses desregramentos que desonram o sacerdcio.
No se comportaria de outro modo um Stiro no monte Olimpo!" - Poderiam
desterr-lo outra vez para alguma freguesia da serra!... Que diria a Sra. condessa
de Ribamar?
E depois, se persistisse em v-la na intimidade, ter constantemente presentes
aqueles olhos negros, o sorriso clido que lhe fazia uma covinha no queixo, a
curva daquele peito - a sua paixo, crescendo surdamente, irritada a toda a hora,
recalcada para dentro, torn-lo-ia doido, "podia fazer alguma asneira"!

Decidiu-se ento a ir falar ao cnego Dias: a sua natureza fraca necessitava


sempre receber foras duma razo, duma experincia alheia: costumava
consultar ordinariamente o cnego que, pelo hbito da disciplina eclesistica, ele
julgava mais inteligente por ser seu superior na hierarquia; e no perdera, desde
o seminrio, a sua dependncia de discpulo. Depois, se quisesse arranjar uma
casa e uma criada para ir viver s, necessitava o auxlio do cnego, que conhecia
Leiria como se a tivesse edificado.
Encontrou-o na sala de jantar. O candeeiro de azeite esmorecia com um morro
avermelhado. Os ties da braseira, cobertos duma pulverizao de cinza,
revermelhavam vagamente. E o cnego, sentado numa cadeira de braos, com o
capote pelos ombros, os ps embrulhados num cobertor, amodorrado no calor do
lume, com o Brevirio sobre os joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a
Trigueira estirada dormitava como ele.
Aos passos de Amaro o cnego abriu muito devagar os olhos, rosnou:
- Ia adormecendo, hem!
- cedo, disse o padre Amaro. Ainda no tocou a recolher. Ento que preguia
essa?
- Ah! voc? disse o cnego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do
abade, tomei
uma gota de ch, veio o quebranto... Ento que feito? - Vim por aqui.
- Pois o abade deu-nos um rico jantar. A cabidela estava de mo- cheia! Eu
carreguei-me um bocado, disse o cnego rufando com os dedos na capa do
Brevirio.
Amaro, sentado ao p dele, remexia devagar o brasido:
- Sabe voc, padre-mestre? disse ele de repente. Ia acrescentar: - Aconteceu-me
um caso! - Mas reteve-se, murmurou: - Estou hoje esquisito; tenho andado
ultimamente fora dos eixos...

- Voc, com efeito, anda amarelo, disse o cnego, considerando-o. Purgue-se,


homem! Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.
- Sabe? estou com idia de mudar de casa.
O cnego ergueu a cabea, arregalou os olhinhos sonolentos:
- Mudar de casa! Ora essa! por qu?
O padre Amaro chegou a cadeira para ele, e falando baixo:
- Voc percebe... Tenho estado a pensar, assim esquisito estar em casa de duas
mulheres, com
uma rapariga...
- Ora, histrias! Que me vem voc contar? Voc hspede... Deixe- se disso,
homem! como
quem est na hospedaria.
- No, no, padre-mestre, eu c me entendo...
E suspirou; desejava que o cnego o interrogasse, facilitasse as confidncias.
- Ento s hoje que pensa nisso, Amaro?!
- verdade, tenho estado a pensar hoje nisto. Tenho as minhas razes. - Ia a
dizer: - Fiz uma
tolice, - mas acanhou-se.
O cnego olhou para ele um momento: 46
- Homem! seja franco!
- Sou.
- Voc acha aquilo caro?
- No! disse o outro com uma negao impaciente.
- Bem, ento outra coisa...
- . Voc que quer? - E num tom magano, com que julgou agradar ao cnego: - A
gente tambm
gosta do que bom...
- Bem, bem, disse o cnego rindo, percebo. Voc, como eu sou amigo da casa,
quer-me dizer por

bons modos que tem nojo de tudo aquilo!


- Tolice! disse Amaro, erguendo-se, irritado de tanta obtusidade.
- Oh, homem! exclamou o cnego abrindo os braos. Voc quer sair da casa? Por
alguma ! Ora
a mim parece-me que melhor...
- verdade, verdade, dizia Amaro que dava agora grandes passadas pela sala.
Mas estou com
esta ferrada! Veja voc se me arranja uma casita barata com alguma moblia...
Voc entende melhor dessas coisas...
O cnego ficou calado, muito enterrado na poltrona, coando devagar o queixo.
- Uma casita barata, rosnou por fim. Eu verei, eu verei... talvez.
- Voc compreende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao cnego. A casa da
S. Joaneira... Mas a porta rangeu, D. Josefa Dias entrou: e depois de conversarem
sobre o jantar do abade, o
catarro da pobre D. Maria da Assuno, a doena de fgado que ia minando o
engraado cnego Sanches - Amaro saiu, quase contente agora de se no "ter
desabotoado com o padre-mestre".
O cnego ficou ainda ao p do lume, ruminando. Aquela resoluo de Amaro de
deixar a casa da S. Joaneira era bem-vinda: quando ele o trouxera de hspede
para a Rua da Misericrdia, combinara com a S. Joaneira diminuir-lhe a mesada
que havia anos lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se logo: a S.
Joaneira, se no tinha hspede, dormia s no primeiro andar: o cnego podia
ento saborear livremente os carinhosda sua velhota;- e Amlia na sua alcova,
em cima, era alheia a este "conchegozinho". Quando veio o padre Amaro, a S.
Joaneira cedeu-lhe o quarto, e dormia numa cama de ferro ao p da filha: e o
cnego ento reconheceu, como ele disse, desconsolado - "que aquele arranjo
tinha estragado tudo". Para gozar as douras da sesta com a sua S. Joaneira, era
necessrio que Amlia jantasse fora, que a Rua estivesse na fonte, outras
combinaes importunas: e ele, cnego do cabido, na egosta velhice, quando
precisava ter recato com a sua sade, via-se obrigado a esperar, a espreitar, a ter

nos seus prazeres regulares e higinicos as dificuldades dum colegial que ama a
senhora professora. Ora se Amaro sasse, a S. Joaneiradescia ao seu quarto, no
primeiro andar; vinham as antigas comodidades, as tranqilas sestas. verdade
que tinha de dar a antiga mesada... Daria a mesada!
- Que diabo! ao menos est um homem sua vontade, resumiu ele.
- Que est para a o mano a falar s? perguntou a Sra. D. Josefa, despertando do
quebranto em que ia caindo, ao p do lume.
- Estava c a ma1ucar como hei-de castigar a carne na quaresma - disse o cnego
com um riso grosso.

A essa hora a Rua chamava o padre Amaro para o ch: e ele subia devagar, com o
corao pequenino, receando encontrar a S. Joaneira muito carrancuda, j
informada do insulto. Achou s Amlia - que tendo-lhe sentido os passos na
escada tomara rapidamente a costura, e, com a cabea muito baixa, dava grandes
agulhadas, vermelha como o leno que abainhava para o cnego.
- Muito boa noite, menina Amlia.
- Muito boa noite, senhor proco.
Amlia costumava sempre ter um ol! ou um ora viva! muito amvel; aquela
secura aterrou-o;
disse-lhe logo muito perturbado:
- Menina Amlia, eu peo-lhe que me perdoe... Foi um atrevimento... Eu nem
soube o que fiz...
Mas acredite... Estou resolvido a sair daqui. At j pedi ao Sr, cnego Dias que me
arranjasse casa... Falava com o rosto baixo - e no via Amlia erguer os olhos
para ele, surpreendida e toda
desconsolada.
Neste momento a S. Joaneira entrou, e logo da porta, abrindo os braos:

- Viva! Ento j sei, j sei! Disse-me o Sr. padre Natrio: grande jantar! Conte l,
conte l! Amaro teve de dizer os pratos, as pilhrias do Libaninho, a discusso
teolgica; depois falaram
da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer S. Joaneira que ia deixar
a casa, - o que era, coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostes por
dial
47
Na manh seguinte o cnego foi a casa de Amaro, pela manh, antes de ir ao
coro. O proco fazia a barba janela:
- O1, padre-mestre! Que h de novo?
- Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manh... H uma casita
l para os meus lados, que um achado. Era do major Nunes, que vai mudado
para o 5.
Aquela precipitao desagradou a Amaro: perguntou, dando desconsoladamente
o fio navalha: - Tem moblia?
- Tem moblia, tem louas, tem roupas, tem tudo.
- Ento...
- Ento entrar e comear a gozar. E aqui para ns, Amaro, voc tem razo.
Estive a pensar no caso... melhor para voc viver s. De modo que vista-se, e
vamos ver a casita.
Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
A casa era na Rua das Sousas, de um andar, muito velha, com a madeira
carunchosa: a moblia, como disse o cnego, "podia passar a veteranos"; algumas
litografias desbotadas pendiam lugubremente de grandes pregos negros; e o
imundo major Nunes deixara os vidros quebrados, os soalhos todos escarrados,
as paredes riscadas de fsforos, e at sobre um poial da janela duas pegas quase
negras. Amaro aceitou a casa. E nessa mesma manh o cnego ajustou-lhe uma

criada, a Sra. Maria Vicncia, pessoa muito devota, alta e magra como um
pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como considerou o cnego
Dias) era a prpria irm da famosa Dionsia!
A Dionsia fora outrora a Dama das Camlias, a Ninon de Lenclos, a Manon de
Leiria: gozara a honra de ser concubina de dois governadores civis e do terrvel
morgado da Sertejeira; e as paixes frenticas que inspirara tinham sido para
quase todas as mes de famlia de Leiria causa de lgrimas e de fanicos. Agora
engomava para fora, encarregava-se de empenhar objetos, entendia muito de
partos, protegia "o rico adulteriozinho" segundo a singular expresso do velho D.
Lus da Barrosa, cognominado o infame, fornecia lavradeirinhas aos senhores
empregados pblicos, sabia toda a histria amorosa do distrito. E via-se sempre
na rua a Dionsia com o seu xale de xadrez traado, o pesado seio tremendo
dentro dum chambre sujo, o passinho discreto e os antigos sorrisos - mas a que
faltavam j os dois dentes de diante.
O cnego logo nessa tarde deu parte S. Joaneira da resoluo de Amaro. Foi um
grande espanto para a excelente senhora! Queixou-se, com amargura, da
ingratido do senhor proco.
O cnego tossiu grosso e disse:
- Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo por qu: que este
arranjo do quarto em cima, etc., est-me a arrasar a sade.
Deu outras razes de prudncia higinica, e acrescentou passando-lhe com
bondade os dedos pelo pescoo:
- E o que perder a convenincia, no se aflija a senhora! Eu darei para a panela
como dantes; e como a colheita foi boa porei mais meia moeda para os arrebiques
da pequena. Ora venha de l uma beijoca, Augustinha, sua brejeira! E oua,
como-lhe c as sopas.
Amaro no entanto embaixo ia emalando a sua roupa. Mas a cada momento
parava, dava um ai triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama fofa, a mesa

com a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de chita onde ele lia o Brevirio,
ouvindo, por cima, cantarolar Amlia.
- Nunca mais! pensava. Nunca mais!
Adeus as boas manhs passadas ao p dela, vendo-a costurar! Adeus as alegres
sobremesas, que se prolongavam luz do candeeiro! Adeus os chs, ao p da
braseira, quando o vento uivava fora e cantavam as frias goteiras! Tudo tinha
acabado!
A S. Joaneira e o cnego apareceram ento porta do quarto. O cnego
resplandecia; e a S. Joaneira disse, muito magoada:
- J sei, j sei, seu ingrato!
- verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os ombros tristemente. Mas
h razes... Eu sinto...
- Olhe, senhor proco, disse a S. Joaneira, no se ofenda com o que lhe vou dizer,
mas eu j lhe queria como filho... e levou o leno aos olhos.
- Tolices, exclamou o cnego. Pois ento ele no pode vir aqui em amizade,
passar as noites para o cavaco, tomar o seu caf?... O homem no vai para o
Brasil, senhora!
- Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era t-lo
de portas adentro!
Enfim, ela bem sabia que a gente na sua casa est muito melhor... Fez-lhe ento
grandes recomendaes sobre a lavadeira, que mandasse buscar o que quisesse,
louas, lenis...
- E veja l, no lhe esquea alguma coisa, senhor proco! - Muito obrigado,
minha senhora, muito obrigado.
48

E continuando a arrumar a sua roupa, o proco desesperava-se agora contra a


resoluo que tomara. A pequena evidentemente no tinha aberto bico! Para que
sairia ento daquela casa to barata, to confortvel, to amiga? E odiava o
cnego pelo seu zelo to precipitado.
O jantar foi triste. Amlia, decerto para explicar a sua palidez, queixava-se de
dores na cabea. Ao caf o cnego quis a sua "dose de msica"; e Amlia, ou
maquinalmente ou com inteno, disse a cano querida:
Ai! adeus! acabaram-se os dias Que ditoso vivi a teu lado!
Soa a hora, o momento fadado. foroso deixar-te e partir!
Ento, quela chorosa melodia repassada das tristezas da separao, Amaro
sentiu-se to perturbado que teve de se erguer bruscamente, ir encostar o rosto
vidraa, esconder as duas lgrimas que irreprimivelmente lhe saltavam das
plpebras. Os dedos de Amlia embrulhavam-se tambm no teclado; at a
mesma S. Joaneira disse:
- Oh! filha, toca outra coisa, credo!
Mas o cnego, erguendo-se pesadamente:
- Pois senhores, vo sendo horas. Vamos l, Amaro. Eu vou consigo at a Rua das
Sousas... Amaro ento quis dizer adeus idiota; mas depois de um forte acesso
de tosse, a velha dormia,
muito fraca.
- Deix-la sossegada, disse Amaro. E apertando a mo S. Joaneira: - Muito
obrigado por tudo,
minha senhora, acredite...
Calou-se, com um soluo na garganta.
A S. Joaneira tinha levado aos olhos a ponta do seu avental branco.
- Oh, senhora! disse o cnego rindo-se, j h bocado lhe disse, o homem no vai
para as ndias! - A gente pela amizade que lhes ganha, choramingou a S.
Joaneira.
Amaro tentou gracejar. Amlia, muito branca, mordia o beicinho.

Enfim Amaro desceu: e o Joo Ruo, que na sua chegada a Leiria lhe trouxera o
ba para a Rua
da Misericrdia, muito bbedo, cantarolando o Bendito, - levava-lho agora para a
Rua das Sousas, bbedo tambm, mas trauteando o Rei-chegou.

Quando Amaro, nessa noite, se viu s naquela casa tristonha, sentiu uma
melancolia to pungente e um tdio to negro da vida, que, com a sua natureza
lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar ali a morrer!
Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro,
pequena, com um colcho duro e uma coberta vermelha; o espelho com o ao
gasto luzia sobre a mesa; como no havia lavatrio, a bacia e o jarro, com um
bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janela; tudo ali cheirava a mofo;
e fora, na rua negra, caia sem cessar a chuva triste. Que existncia! E seria
sempre assim!...
Desesperou-se ento contra Amlia: acusou-a, com o punho fechado, das
comodidades que perdera, da falta de moblia, da despesa que ia ter, da solido
que o regelava! Se fosse mulher de corao devia ter vindo ao seu quarto, dizerlhe: Sr. padre Amaro, para que sai de casa? Eu no estou zangada! - Porque enfim
quem irritara o seu desejo? Ela, com as suas maneirinhas temas, os seus olhinhos
adocicados! Mas no, deixara-o ema. lar a roupa, descer a escada, sem uma
palavra amiga, indo tocar com estrondo a valsa do Beijo!
Jurou ento no voltar a casa da S. Joaneira. E, a grandes passadas pelo quarto,
pensava - no que havia de fazer para humilhar Amlia. Q qu? Desprez-la como
uma cadela! Ganhar influncia na sociedade devota de Leiria, ser muito do
senhor chantre: afastar da Rua da Misericrdia o cnego e as Gansosos; intrigar
com as senhoras da boa roda para que se afastassem dela, com secura, no altarmor, missa do domingo; dar a entender que a me era uma prostituta...
Enterr-la! cobri-la de lama! E na S, ao sair da missa, regalar-se de a ver passar
encolhida no seu mantelete preto, escorraada de todos, enquanto ele, porta,

de propsito, conversaria com a mulher do governador civil e seria galante com a


baronesa de Via-Clara!... Depois pregaria um grande sermo, na quaresma, e ela
ouviria dizer, na arcada, nas lojas: "Grande homem, o padre Amaro!". Tornar-seia ambicioso, intrigaria, e, protegido pela Sra. condessa de Ribamar, subiria nas
dignidades eclesisticas: o que pensaria ela quando o visse um dia bispo de Leiria,
plido e interessante na sua mitra toda dourada, passando, seguido dos
incensadores, ao longo da nave da
49
S, entre um povo ajoelhado e penitente, sob os roucos cantos do rgo? E ela o
que seria ento? Uma magra criatura murcha, embrulhada num xale barato! E o
Sr. Joo Eduardo, o escolhido de agora, o esposo? Seria um pobre amanuense mal
pago, com uma quinzena roada, os dedos queimados do cigarro, curvado sobre o
seu papel almao, imperceptvel na terra, adulando alto e invejando baixo! E ele,
bispo, na vasta escadaria hierrquica que sobe at ao Cu, estaria j muito para
cima dos homens, na zona de luz que faz a face de Deus-Padre! - E seria par do
reino, e os padres da sua diocese tremeriam de o ver franzir a testa!
Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
Que faria ela quela hora? pensava. Costurava decerto, na sala de jantar: estava o
escrevente: jogavam a bisca, riam - ela roava-lhe talvez com o p, no escuro,
debaixo da mesa. Recordou o seu p, o bocadinho da meia que vira quando ela
saltava as lamas na quinta, e essa curiosidade inflamada subia pela curva da
perna at ao seio, percorrendo belezas que suspeitava... O que ele gostava
daquela maldita! E era impossvel obt-la! E todo o homem feio e estpido podia
ir Rua da Misericrdia, pedi-la me, vir S dizer-lhe: "Senhor proco, caseme com esta mulher", e beijar, sob a proteo da Igreja e do Estado, aqueles
braos e aquele peito! Ele no. Era padre! Fora aquela infernal pega da marquesa
de Alegros!...
Abominava ento todo o mundo secular - por lhe ter perdido para sempre os
privilgios: e como o sacerdcio o exclua da participao nos prazeres humanos e
sociais, refugiava-se, em compensao, na idia da superioridade espiritual que

lhe dava sobre os homens. Aquele miservel escrevente podia casar e possuir a
rapariga - mas que era ele em comparao dum proco a quem Deus conferia o
poder supremo de distribuir o Cu e o Inferno?... - E repastava-se deste
sentimento, enchendo o esprito de orgulhos sacerdotais. Mas vinha-lhe bem
depressa a desconsoladora idia que esse domnio s era vlido na regio abstrata
das almas; nunca o poderia manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade.
Era um Deus dentro da S - mas apenas saia para o largo, era apenas um plebeu
obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a ao sacerdotal a uma mesquinha
influncia sobre almas de beatas... E era isto que lamentava, esta diminuio
social da Igreja, esta mutilao do poder eclesistico, limitado ao espiritual, sem
direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a
autoridade dos tempos em que a Igreja era a nao e o proco dono temporal do
rebanho. Que lhe importava, no seu caso, o direito mstico de abrir ou fechar as
portas do Cu? O que ele queria era o velho direito de abrir ou fechar a porta das
masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amlias tremessem da sombra
da sua batina... Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das vantagens
que d a denncia e dos terrores que inspira o carrasco, e ali naquela vila, sob a
jurisdio da sua S, fazer estremecer, idia de castigos torturantes, aqueles
que aspirassem a realizar felicidades - que lhe eram a ele interditas; e pensando
em Joo Eduardo e em Amlia; lamentava no poder acender as fogueiras da
Inquisio! - Assim aquele inofensivo moo tinha durante horas, sob a excitao
colrica duma paixo contrariada, ambies grandiosas de tirania catlica: porque todo o padre, o mais boal, tem um momento em que penetrado pelo
espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento mstico ou nas suas
ambies de dominao universal: todo o subdicono se julga uma hora capaz de
ser santo ou de ser papa: no h seminarista que no tenha, durante um instante,
aspirado com ternura caverna no deserto em que S. Jernimo, olhando o cu
estrelado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graa, como um abundante rio de
leite: e o abade panudo que tardinha, varanda, palita o dente furado
saboreando o seu caf com um ar paterno, traz dentro em si os indistintos restos
dum Torquemada.
IX

A vida de Amaro tornou-se montona. Maro ia muito molhado, muito frio; e


depois do servio na S, Amaro entrava em casa, tirava as botas enlameadas,
ficava em chinelas a aborrecer-se. s trs horas jantava; e nunca levantava a
tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente, do
jantarinho na Rua da Misericrdia, quando Amlia, com o seu colar muito branco,
lhe passava a sopa de gros-de-bico, sorrindo, toda carinhosa. Ao lado a Vicncia
servia, tesa e enorme, com o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre
constipada; e de vez em quando, desviando a cabea, assoava-se ao avental com
rudo. Era muito suja: as facas tinham o cabo mido da gua gordurosa das
lavagens. Amaro, desgostoso e indiferente, no se queixava; comia mal, pressa;
mandava vir o caf, e ficava horas esquecidas sentado mesa, quebrando a cinza
do cigarro na borda do prato, perdido num tdio mudo, sentindo os ps e os
joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas da sala desabrigada.
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s vezes o coadjutor, que nunca o visitara na Rua da Misericrdia, aparecia ao fim
do jantar: sentava-se arredado da mesa, e ficava calado com o seu guarda-chuva
entre os joelhos. Depois, julgando agradar ao proco, repetia, invariavelmente:
- Vossa senhoria aqui est melhor, sempre estar em sua casa.
- Est claro, rosnava Amaro.
Ao princpio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S. Joaneira,
provocando,
animando o coadjutor (que era de Leiria) a contar os escndalos da Rua da
Misericrdia. O coadjutor, por servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de
perfdia.
- Ali h podres, hem? dizia o proco.
O outro encolhia os ombros, com as mos muito espalmadas ao p das orelhas,
numa expresso de malcia; mas no pronunciava um som, receando que as suas
palavras, repetidas, escandalizassem o senhor cnego. Ficavam ento soturnos,
trocando, a espaos, frases moles; um batizado que havia; o que dissera o cnego

Campos; um frontal do altar que era necessrio limpar. Aquela conversa


enfastiava Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito distante da panelinha
eclesistica: no o interessavam as intriguinhas do cabido, as parcialidades to
comentadas do senhor chantre, os roubos da Misericrdia, as turras da cmara
eclesistica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado, nas
palestras eclesisticas em que to femininamente se deleitam os padres, e que
tm a puerilidade duma caturrice e a tortuosidade duma conspirao.
- O vento est sul? perguntava ele enfim, bocejando.
- Sempre! respondia o coadjutor.
Acendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guarda-chuva, e saa com um
olhar de revs
Vicncia.
Era aquela a pior hora, a da noite, quando ficava s. Procurava ler, mas os livros
enfastiavam-no; desabituado da leitura no compreendia "o sentido". Ia olhar
vidraa: a noite estava tenebrosa, o lajedo reluzia vagamente. Quando acabaria
aquela vida? Acendia o cigarro, e do lavatrio para a janela recomeava os seus
passeios, com as mos atrs das costas. Deitava-se sem rezar s vezes; e no
tinha escrpulos: julgava que ter renunciado a Amlia era j uma penitncia, no
necessitava cansar-se a ler oraes no livro; celebrara o "seu sacrifcio" - sentiase vagamente quite com o Cu!
E continuava a viver s: o cnego nunca vinha Rua das Sousas, "porque, dizia,
era casa que s o entrar nela at se lhe agoniava o estmago". E Amaro, cada dia
mais amuado, no voltara a casa da S. Joaneira. Escandalizara-se muito que ela
no lhe tivesse mandado pedir para ir s partidas da sexta-feira; atribura "a
desfeita" hostilidade de Amlia; e, mesmo para a no ver, trocara com o padre
Silveira a missa do meio-dia onde ela costumava ir, e dizia a das nove horas,
furioso com aquele novo sacrifcio!

Todas as noites Amlia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitao to


forte no corao que ficava como sufocada um momento. Depois os botins de

Joo Eduardo rangiam na escada, ou ela conhecia os passos fofos das galochas das
Gansosos: apoiava-se ento s costas da cadeira, cerrando os olhos, como na
fadiga duma desesperana repetida. Esperava o padre Amaro; e s vezes, pelas
dez horas, quando j no era possvel que ele viesse, a sua melancolia era to
pungente que se lhe intumescia a garganta de soluos, tinha de pousar a costura,
dizer:
- Vou-me deitar, estou com umas dores de cabea que no paro!
Atirava-se para a cama de bruos, murmurava numa agonia:
- Oh Senhora das Dores, minha madrinha! Por que no vem ele, por que no vem
ele?
Nos primeiros dias, apenas ele se fora embora, toda a casa lhe pareceu desabitada
e lgubre!
Quando vira no quarto dele os cabides sem a sua roupa, a cmoda sem os seus
livros, rompeu a chorar. Foi beijar a travesseirinha onde ele dormia, apertou ao
peito com delrio a ltima toalha a que ele limpara as mos! Tinha
constantemente o seu rosto presente, ele entrara sempre nos seus sonhos. E
com a separao o seu amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que
se isola.
Uma tarde, que fora visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao chegar
Ponte gente parada, embasbacada com gozo para uma rapariga de cuia banda e
garibaldi escarlate, que, de punho no ar, j rouca, praguejava contra um soldado:
o rapazola, um beiro de cara redonda e lorpa coberta de penugem loura, viravalhe as costas, encolhendo os ombros, as mos muito enterradas nos bolsos,
rosnando:
- No lhe fez mal, no lhe fez mal...
O Sr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parara a olhar, descontente daquela
"falta de ordem pblica".
- Algum barulho? perguntou-lhe Amlia.

51
- O1, menina Amlia! No, uma brincadeira do soldado. Atirou- lhe um rato
morto cara, e a mulher est a fazer aquele espalhafato. Bbedas!
Mas a rapariga de garibaldi vermelho voltara-se - e Amlia aterrada reconheceu a
Joaninha Gomes, sua amiga da mestra, que fora amante do padre Ablio! O padre
fora suspenso, deixara-a; ela partira para Pombal, depois para o Porto; de misria
em misria voltara a Leiria, e a vivia nalguma viela ao p do quartel, entisicando,
gasta por todo um regimento! - Que exemplo, Santo Deus, que exemplo!...
E tambm ela gostava dum padre! Tambm ela, como outrora a Joaninha,
chorava sobre a sua costura quando o Sr, padre Amaro no vinha! Onde a levava
aquela paixo! sorte da Joaninha! A ser a amiga do proco! E via-se j apontada
a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por ele, com um filho nas
entranhas, sem um pedao de po!... E, como uma rajada de vento que limpa
num momento um cu enevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de
Joaninha varreu-lhe do esprito as nvoas amorosas e mrbidas, em que ela se ia
perdendo. Decidiu aproveitar a separao, esquecer Amaro; lembrou-se mesmo
de apressar o seu casamento com Joo Eduardo, para se refugiar num dever
dominante; durante alguns dias forou-se a interessar-se por ele; comeou
mesmo a bordar-lhe umas chinelas...
Mas pouco a pouco a idia m que, atacada, se encolhera e se fingira morta, principiou lentamente a desenroscar-se, a subir, a invadi-la! De dia, de noite,
costurando e rezando, a idia do padre Amaro, os seus olhos, a sua voz
apareciam-lhe, tentaes teimosas! com um encanto crescente. Que faria ele?
por que no vinha? gostava de outra? Tinha cimes indefinidos, mas mordentes,
que a queimavam. E aquela paixo ia-a envolvendo como uma atmosfera de onde
no podia sair, que a seguia se ela fugia, e que a fazia viver! As suas resolues
honestas ressequiam-se, morriam como dbeis florinhas naquele fogo que a
percorria. Se s vezes a lembrana de Joaninha ainda voltava, repelia-a com
irritao; e acolhia alvoroadamente todas as razes insensatas que lhe vinham

de amar o padre Amaro! Tinha agora s uma idia - atirar-lhe os braos ao


pescoo e beij-lo, oh! beij-lo!... Depois, se fosse necessrio, morrer!
Comeou ento a impacientar-se com o amor de Joo Eduardo. Achava-o
"palerma".
- Que maada! pensava quando lhe sentia os passos na escada, noite.
No o suportava com os seus olhos voltados sempre para ela, a sua quinzena
preta, as suas
montonas conversas sobre o governo civil.
E idealizava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lbricos; de dia
vivia numa
inquietao de cimes, com melancolias lgubres, que a tornavam, como dizia a
me, "uma mona, que at enraivece"!
O gnio azedava-se-lhe.
- Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a me.
- No me sinto boa. Estou para ter alguma!
Andava, com efeito, amarela, perdera o apetite. E enfim uma manh ficou de
cama com febre. A
me, assustada, chamou o doutor Gouveia. O velho prtico, depois de ver Amlia,
veio sala de jantar sorvendo com satisfao a sua pitada.
- Ento, senhor doutor? disse a S. Joaneira.
- Case-me esta rapariga, S. Joaneira, case-me esta rapariga. Tenho- lho dito
tantas vezes, criatura!
- Mas, senhor doutor...
- Mas case-a por uma vez, S. Joaneira, case-a por uma vez! repetia ele pelas
escadas, arrastando um pouco a perna direita que um reumatismo teimoso
encolhia.

Amlia enfim melhorou - com grande alegria de Joo Eduardo, que enquanto ela
estivera doente vivera numa aflio, lamentando no poder ser seu enfermeiro, e
derramando s vezes no cartrio uma lgrima triste sobre os papis selados do
severo Nunes Ferral.

No domingo seguinte, missa das nove horas na S, Amaro, ao subir para o altar,
entre as devotas que se arredavam, viu de relance Amlia ao p da me, com o
seu vestido de seda preta de largos folhos. Cerrou um momento os olhos; e mal
podia sustentar o clix com as mos trmulas.
Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o missal,
se persignou e se voltou para a igreja dizendo Dominus vobiscum - a mulher do
Carlos da botica disse baixo a Amlia "que o senhor proco estava to amarelo,
que devia ter alguma dor". Amlia no respondeu, curvada sobre o livro com todo
o sangue nas faces. E durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a
face banhada num xtase baboso, gozou a sua presena, as suas mos magras
erguendo a hstia, a sua cabea bem-feita curvando-se na adorao ritual; uma
doura corria- lhe na pele quando a voz dele, apressada, dizia mais alto algum
latim; e quando Amaro, tendo a mo esquerda no peito e a direita estendida,
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disse para a igreja o Benedicat vos, ela, com os olhos muito abertos, arremessou
toda a sua alma para o altar, como se ele fosse o prprio Deus a cuja bno as
cabeas se curvavam ao comprido da S, at ao fundo, onde os homens do campo
com os seus varapaus pasmavam para os dourados do sacrrio.
sada da missa comeara a chover; e Amlia e a me, porta com outras
senhoras, esperavam uma "aberta".
- Ol! por aqui? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.
- Estamos espera que passe a chuva, senhor proco, disse a S. Joaneira
voltando-se. E imediatamente, muito repreensiva: - E por que no tem

aparecido, senhor proco? Realmente! Que lhe fizemos ns? Credo, at d que
falar...
- Muito ocupado, muito ocupado... balbuciou o proco.
- Mas um bocadinho noite. Olhe, pode crer, tem-me causado desgosto... E
todos tm reparado. No, l isso, senhor proco, tem sido ingratido!
Amaro disse, corando:
- Pois acabou-se. Hoje noite l apareo, e esto as pazes feitas...
Amlia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbao olhava para todos os
pontos o cu
carregado, como assustada do temporal.
Amaro ento ofereceu-lhe o seu guarda-chuva. E enquanto a S. Joaneira o abria,
apanhando com
cuidado o vestido de seda, Amlia disse ao proco:
- At noite, sim? - e mais baixo, olhando em redor, com medo: - Oh, v! Tenho
estado to
triste! tenho estado como doida! V, peo- lhe eu!
Amaro, voltando para casa, continha-se para no correr pelas ruas de batina.
Entrou no quarto,
sentou-se aos ps da cama, e ali ficou saturado de felicidade, como um pardal
muito farto num raio de sol muito quente: recordava o rosto de Amlia, a
redondeza dos seus ombros, a beleza dos encontros, as palavras que lhe dissera:
- Tenho estado como doida! A certeza de que "a rapariga gostava dele" entroulhe ento na alma com a violncia de uma rajada, e ficou a sussurrar por todos os
recantos do seu ser com um murmrio melodioso de felicidades agitadas. E
passeava pelo quarto com passadas de cvado, estendendo os braos, desejando a
posse imediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte ao
espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que
s o sustentasse a ele! Mal pde jantar. Com que impacincia desejava a noite! A

tarde clareava; a cada momento tirava o seu ''cebolo'' de prata, indo olhar
janela, com irritao, a claridade do dia que se arrastava devagar no horizonte.
Engraxou ele mesmo os seus sapatos, lustrou o cabelo de banha. E antes de sair
rezou cuidadosamente o seu Brevirio - porque, em presena daquele amor
adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos
escandalizados o viessem perturbar; e no queria, com desleixos de devoo,
dar-lhes razo de queixa.
Ao entrar na rua de Amlia o corao bateu-lhe to forte que teve de parar,
sufocado; pareceu- lhe melodioso o piar das corujas na velha Misericrdia, que
h tantas semanas no ouvia.
Que admirao quando ela apareceu na sala de jantar!
- Ditosos olhos que o vem! Pensvamos que tinha morrido! Grande milagre!
Estavam a Sra. D. Maria da Assuno, e as Gansosos. Arredaram as cadeiras com
entusiasmo
para lhe dar lugar, admir-lo.
- Ento que tem feito, que tem feito? E olhe que est mais magro!
O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O Sr. Artur
Couceiro improvisoulhe um fadinho viola:
Ora j c temos o senhor proco Nos chs da S. Joaneira.
Isto j parece outra coisa,
Volta a bela cavaqueira!
Houve palmas. E a S. Joaneira, toda banhada de riso.
- Ai, tem sido uma ingratido dele!
- Uma ingratido, diz a senhora? rosnou o cnego. Uma casmurrice, digo eu!
Amlia no falava, com as faces abrasadas, os olhos midos pasmados para o
padre Amaro - a

quem tinham dado a poltrona do cnego, e que se repoltreava nela, tmido de


gozo, fazendo rir as senhoras pelas pilhrias com que contava os desleixos da
Vicncia.
Joo Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho lbum.

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Assim recomeou a intimidade de Amaro na Rua da Misericrdia. Jantava cedo,
depois lia o seu Brevirio; e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhavase no seu capote e dava volta pela Praa passando rente da botica, onde os
freqentadores caturravam, com as mos moles apoiadas ao cabo dos guardachuvas. Mal avistava a janela da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se
erguiam; mas ao toque agudo da campainha sentia s vezes um susto indefinido
de achar a me j desconfiada ou Amlia mais fria!... Mesmo por superstio
entrava sempre com o p direito.
Encontrava j as Gansosos, a D. Josefa Dias; e o cnego, que jantava agora muito
com a S. Joaneira e que quela hora, estirado na poltrona, findava a sua soneca,
dizia-lhe bocejando:
- Ora viva o menino bonito!
Amaro ia sentar-se ao p de Amlia, que costurava mesa; o olhar penetrante
que se trocavam era todos os dias como o mtuo juramento mudo que o seu amor
crescera desde a vspera; e s vezes mesmo, debaixo da mesa, roavam os
joelhos com furor. Comeava ento a cavaqueira. Eram sempre os mesmos
interessezinhos, as questes que iam na Misericrdia, o que dissera o senhor
chantre, o cnego Campos que despedira a criada, o que se rosnava da mulher do
Novais...
- Mais amor do prximo! resmungava o cnego mexendo-se na poltrona. E com
um arroto curto tornava a cerrar as plpebras.

Ento as botas de Joo Eduardo rangiam na escada, e Amlia imediatamente abria


a mesinha para a partida de manilha: os parceiros eram a Gansoso, D. Josefa, o
proco; e como Amaro jogava mal, Amlia, que era mestra, sentava-se por detrs
dele para o "guiar". Logo s primeiras vasas havia altercaes. Ento Amaro
voltava o rosto para Amlia, to perto que confundiam os seus hlitos.
- Esta? perguntava, indicando a carta com olho lnguido.
- No! no! espere, deixe ver, dizia ela, vermelha.
O seu brao roava o ombro do proco: Amaro sentia o cheiro da gua-de-colnia
que ela usava
com exagero.
Defronte, ao p de Joaquina Gansoso, Joo Eduardo, mordicando o bigode,
contemplava-a com
paixo; Amlia, para se desembaraar daqueles dois olhos langorosos fitos nela,
tinha-lhe dito, por fim "que at era indecente, diante do proco que era de
cerimnia, estar assim a coc-la toda a noite".
s vezes mesmo dizia-lhe, rindo:
- Sr. Joo Eduardo, v conversar com a mam, se no temo-la aqui temo-la a
dormir.
E Joo Eduardo ia sentar-se ao p da S. Joaneira, que, de lunetas na ponta do
nariz, fazia
sonolentamente a sua meia.
Depois do ch Amlia sentava-se ao piano. Causava ento entusiasmo em Leiria
uma velha
cano mexicana, a Chiquita. Amaro achava-a de apetite; e sorria de gozo, com
os seus dentes muito brancos, apenas Amlia comeava com muita languidez
tropical:
Quando sali de la Habana, Valga-me Dios ! ...

Mas Amaro amava sobretudo a outra estrofe, quando Amlia, com os dedos
frouxos no teclado, o busto deitado para trs, rolando os olhos ternos, em
movimentos doces de cabea, dizia, toda voluptuosa, silabando o espanhol:
Si tua ventana llega Una paloma,
Trata-la com cario Que es mi persona.
E como a achava graciosa, crioula, quando ela gorjeava:
Ay chiquita que si,
Ay chiquita que no-o-o-o!
Mas as velhas reclamavam-no para continuar a manilha, e ele ia sentar-se,
cantarolando as ltimas notas, com o cigarro ao canto da boca, os olhos midos
de felicidade.
s sextas-feiras era a grande partida. A Sra. D. Maria da Assuno aparecia
sempre com o seu belo vestido de seda preta: e como era rica e tinha parentela
fidalga, davam-lhe com deferncia o melhor lugar ao p da mesa - que ela ia
ocupar, meneando pretensiosamente os quadris, com ruge-ruges de seda. Antes
do ch, a S. Joaneira levava-a sempre ao seu quarto, onde guardava para ela uma
garrafa de jeropiga velha: e ali as duas amigas tagarelavam muito tempo,
sentadas em cadeirinhas baixas. Depois
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Artur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tsico, cantava o fado novo que
compusera, chamado o Fado da Confisso; eram quadras feitas para regalar
aquela piedosa reunio de saias e de batinas:
Na capelinha do amor, No fundo da sacristia,
Ao senhor padre Cupido Confessei-me noutro dia...
Vinha depois a confisso de pecadinhos doces, um ato de contrio de amor, uma
penitncia terna:

Seis beijinhos de manh,


De tarde um abrao s...
E pra acalmar doces chamas Jejuar a po-de-l.
Aquela composio galante e devota fora muito apreciada na sociedade
eclesistica de Leiria. O senhor chantre pedira uma cpia, e perguntara,
referindo-se ao poeta:
- Quem o hbil Anacreonte?
E informado que era o escrevente da administrao, falou dele com tanto apreo
esposa do senhor governador civil, que Artur obteve a gratificao de oito milris, que havia anos implorava. quelas reunies nunca faltava o Libaninho. A
sua ltima pilhria era furtar beijos Sra. D. Maria da Assuno; a velha
escandalizava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revs um
olhar guloso. Depois o Libaninho desaparecia um momento, e entrava com uma
saia de Amlia vestida, uma touca da S. Joaneira, fingindo uma chama lbrica por
Joo Eduardo - que, entre as risadas agudas das velhas, recuava, muito escarlate.
Brito e Natrio vinham s vezes: formava-se ento um grande quino. Amaro e
Amlia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos colados, ambos
vermelhos, permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.
Amaro saa sempre de casa da S. Joaneira mais apaixonado por Amlia. Ia pela rua
devagar, ruminando com gozo a sensao deliciosa que lhe dava aquele amor uns certos olhares dela, o arfar desejoso do seu peito, os contatos lascivos dos
joelhos e das mos. Em casa despia-se depressa, porque gostava de pensar nela,
s escuras, atabafado nos cobertores; e ia percorrendo em imaginao, uma a
uma, as provas sucessivas que ela lhe dera do seu amor, como quem vai
aspirando uma e outra flor, at que ficava como embriagado de orgulho: era a
rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o a ele, a ele padre, o eterno excludo
dos sonhos femininos, o ser melanclico e neutro que ronda como um ser
suspeito beira do sentimento! sua paixo misturava-se ento um
reconhecimento por ela; e com as plpebras cerradas murmurava:
- To boa, coitadinha, to boa!


Mas na sua paixo havia s vezes grandes impacincias. Quando tinha estado,
durante trs horas da noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade
que se exalava de todos os seus movimentos, - ficava to carregado de desejos
que necessitava conter-se "para no fazer um disparate ali mesmo na sala, ao p
da me". Mas depois, em casa, s torcia os braos de desespero: queria-a ali de
repente, oferecendo-se ao seu desejo; fazia ento combinaes - escrever-lheia, arranjariam uma casinha discreta para se amarem, planeariam um passeio a
alguma quinta! Mas todos aqueles meios lhe pareciam incompletos e perigosos,
ao recordar o olho finrio da irm do cnego, as Gansosos to mexeriqueiras! E
diante daquelas dificuldades que se erguiam como as muralhas sucessivas duma
cidadela, voltavam as antigas lamentaes: no ser livre! no poder entrar
claramente naquela casa, pedi-la me, possu-la sem pecado, comodamente!
Por que o tinham feito padre? Fora "a velha pega" da marquesa de Alegros! Ele
no abdicava voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-no impelido
para o sacerdcio como um boi para o curral!
Ento, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusaes mais longe,
contra o Celibato e a Igreja: por que proibia ela aos seus sacerdotes, homens
vivendo entre homens, a satisfao mais natural, que at tm os animais? Quem
imagina que desde que um velho bispo diz - sers casto - a um homem novo e
forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina - accedo
- dita a tremer pelo seminarista assustado, ser o bastante para conter para
sempre a rebelio formidvel do corpo? E quem inventou isto? Um conclio de
bispos decrpitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das
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suas escolas, mirrados como pergaminhos, inteis como eunucos! Que sabiam
eles da Natureza e das suas tentaes? Que viessem ali duas, trs horas para o p
da Ameliazinha, e veriam, sob a sua capa de santidade, comear a revoltar-selhe o desejo! Tudo se ilude e se evita, menos o amor! E se ele fatal, por que

impediram ento que o padre o sinta, o realize com pureza e com dignidade?
melhor talvez que o v procurar pelas vielas obscenas! - Porque a carne fraca!
A carne! Punha-se ento a pensar nos trs inimigos da alma - MUNDO, DIABO e
CARNE. E apareciam sua imaginao em trs figuras vivas: uma mulher muito
formosa; uma figura negra de olho de brasa e p de cabra; e o mundo, coisa vaga
e maravilhosa (riquezas, cavalos, palacetes) - de que lhe parecia uma
personificao suficiente o Sr, conde de Ribamar! Mas que mal tinham eles feito
sua alma? O diabo nunca o vira; a mulher formosa amava-o e era a nica
consolao da sua existncia; e do mundo, do senhor conde, s recebera
proteo, benevolncia, tocantes apertos de mo... E como poderia ele evitar as
influncias da Carne e do Mundo? A no ser que fugisse, como os santos de
outrora, para os areais do deserto e para a companhia das feras! Mas no lhe
diziam os seus mestres no seminrio que ele pertencia a uma Igreja militante? O
ascetismo era culpado, sendo a desero dum servio santo. - No compreendia,
no compreendia!
Procurava ento justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A Bblia
est cheia de npcias! Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos
recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro, com a cabea coberta de
faixas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro branco; os levitas
batem em discos de prata, gritam o nome de Deus; abrem-se as portas de ferro
da cidade para deixar passar a caravana que leva os bem esposados; e as arcas de
sndalo onde vo os tesouros do dote rangem, amarradas com cordas de prpura,
sobre o dorso dos camelos! Os mrtires no circo casam- se num beijo, sob o bafo
dos lees, s aclamaes da plebe! Jesus mesmo no vivera sempre na sua
santidade inumana; era frio e abstrato nas ruas de Jerusalm, nos mercados do
bairro de Davi; mas l tinha o seu lugar de ternura e de abandono em Betnia, sob
os sicmoros do Jardim de Lzaro; ali, enquanto os magros nazarenos seus
amigos bebem o leite e conspiram parte, ele olha defronte os tetos dourados do
templo, os soldados romanos que jogam o disco ao p da Porta de Ouro, os pares
amorosos que passam sob os arvoredos de Getsmani - e pousa a mo sobre os
cabelos louros de Marta, que ama e fia a seus ps!

O seu amor era pois uma infrao cannica, no um pecado da alma: podia
desagradar ao senhor chantre, no a Deus; seria legitimo num sacerdcio de
regra mais humana. Lembrava-se de se fazer protestante: mas onde, como?
Parecia-lhe mais extraordinariamente impossvel que transportar a velha S para
cima do monte do Castelo.
Encolhia ento os ombros, escarnecendo toda aquela vaga argumentao
interior. "Filosofia e palhada!" Estava doido pela rapariga, - era o positivo.
Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma... E o senhor bispo se
no fosse velho faria o mesmo, e o papa faria o mesmo!
Eram s vezes trs horas da manh, e ainda passeava no quarto, falando s.

Quantas vezes Joo Eduardo, passando alta noite pela Rua das Sousas, tinha visto
na janela do proco uma luz amortecida! Porque ultimamente Joo Eduardo,
como todos que tm um desgosto amoroso, tomara o hbito triste de andar at
tarde pelas ruas.
O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebera a simpatia de Amlia
pelo proco. Mas conhecendo a sua educao e os hbitos devotos da casa,
atribua aquelas atenes quase humildes com Amaro ao respeito beato pela sua
batina de padre, pelos seus privilgios de confessor.
Instintivamente porm comeou a detestar Amaro. Sempre fora inimigo de
padres! Achava-os um "perigo para a civilizao e para a liberdade"; supunha-os
intrigantes, com hbitos de luxria, e conspirando sempre para restabelecer "as
trevas da Meia-Idade"; odiava a confisso que julgava uma arma terrvel contra a
paz do lar; e tinha uma religio vaga - hostil ao culto, s rezas, aos jejuns, cheia
de admirao pelo Jesus potico, revolucionrio, amigo dos pobres, e "pelo
sublime espirito de Deus que enche todo o Universo"! S desde que amava
Amlia que ouvia missa, para agradar S. Joaneira.

E desejaria sobretudo apressar o casamento, para tirar Amlia daquela sociedade


de beatas e padres, receando ter mais tarde uma mulher que tremesse do
Inferno, passasse horas a rezar estaes na S, e se confessasse aos padres "que
arrancam s confessadas os segredos de alcova"!
Quando Amaro voltara a freqentar a Rua da Misericrdia, ficou contrariado. "C
temos outra vez o marmanjo!", pensou. Mas que desgosto, quando reparou que
Amlia tratava agora o proco com uma familiaridade mais terna, que a presena
dele lhe dava visivelmente uma animao singular, "e que havia uma espcie de
namoro"! Como ela se fazia vermelha, mal ele entrava! Como o escutava, com
uma admirao babosa! Como arranjava sempre a ficar ao p dele nas partidas de
quino!
56
Uma manh, mais inquieto, veio Rua da Misericrdia, - e enquanto a S. Joaneira
tagarelava na cozinha, disse bruscamente a Amlia:
- Menina Amlia, sabe? Est-me a dar um grande desgosto com essas maneiras
com que trata o Sr. padre Amaro.
Ela ergueu os olhos espantados:
- Que maneiras? Ora essa! Ento como quer que o trate? um amigo da casa,
esteve aqui de hspede...
- Pois sim, pois sim...
- Ah! mas sossegue. Se isso o quezila, ver. No me torno a chegar para ao p do
homem.
Joo Eduardo, tranqilizado, raciocinou que "no havia nada". Aqueles modos
eram excessos de
beatrio. Entusiasmo pela padraria!
Amlia decidiu ento disfarar o que lhe ia no corao: sempre considerara o
escrevente um

pouco tapado - e se ele percebera, que fariam as Gansosos to finas, e a irm do


cnego que era curtida em malcia! Por isso mal sentia Amaro na escada, da por
diante, tomava uma atitude distrada, muito artificial; mas, ai! apenas ele lhe
falava com a sua voz suave ou voltava para ela aqueles olhos negros que lhe
faziam correr estremees nos nervos, - como uma ligeira camada de neve que
se derrete a um sol muito forte, a sua atitude fria desaparecia, e toda a sua pessoa
era uma expresso contnua de paixo. s vezes, absorvida no seu enlevo,
esquecia que Joo Eduardo estava ali; e ficava toda surpreendida quando ouvia a
um canto da sala a sua voz melanclica.
Ela sentia de resto que as amigas da me envolviam a sua "inclinao" pelo
proco numa aprovao muda e afvel. Ele era, como dizia o cnego, o menino
bonito: e das maneirinhas e dos olhares das velhas exalava-se uma admirao
por ele que fazia ao desenvolvimento da paixo de Amlia uma atmosfera
favorvel. D. Maria da Assuno dizia-lhe s vezes ao ouvido:
- Olha para ele! de inspirar fervor. a honra do clero. No h outro!...
E todas elas achavam em Joo Eduardo "um presta para nada"! Amlia ento j
no disfarava a sua indiferena por ele: as chinelas que lhe andava a bordar
tinham h muito desaparecido do cesto do trabalho, e j no vinha janela v-lo
passar para o cartrio.
A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de Joo Eduardo - na alma, que
como ele dizia, lhe andava mais negra que a noite.
- A rapariga gosta do padre, tinha ele concludo. E dor da sua felicidade
destruda juntava-se a aflio pela honra dela ameaada.
Uma tarde, tendo-a visto sair da S, esperou-a adiante da botica, e muito
decidido:
- Eu quero-lhe falar, menina Amlia... Isto no pode continuar assim... Eu no
posso... A menina traz namoro com o proco!

Ela mordeu o beio, toda branca:


- O senhor est a insultar-me! - e queria seguir, toda indignada.
Ele reteve-a pela manga do casabeque: '
- Oua, menina Amlia. Eu no a quero insultar, mas que no sabe. Tenho
andado, que at se
me parte o corao. - E perdeu a voz, de comovido.
- No tem razo... No tem razo, balbuciava ela.
- Jure-me ento que no h nada com o padre!
- Pela minha salvao!... No h nada!... Mas tambm lhe digo, se tornar a falar
em tal, ou a
insultar-me, conto tudo mam, e o senhor escusa de nos voltar a casa. - Oh
menina Amlia...
- No podemos continuar aqui a falar... Est ali j a D. Micaela a cocar.
Era uma velha, que levantara a cortina de cassa numa janela baixa, e espreita-la
com olhinhos reluzentes e gulosos, a face toda ressequida encostada
sofregamente vidraa. Separaram-se ento, - e a velha desconsolada deixou
cair a cortina.
Amlia nessa noite - enquanto as senhoras discutiam com algazarra os
missionrios que ento pregavam na Barrosa - disse baixo a Amaro, picando
vivamente a costura:
- Precisamos ter cautela... No olhe tanto para mim nem esteja to chegado... J
houve quem reparasse.
Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assuno; e, apesar da
recomendao de Amlia, os seus olhos no se despregavam dela, numa
interrogao muda e ansiosa, j assustado que as desconfianas da me ou a
malcia das velhas "andassem armando escndalo". Depois do ch, no rumor das
cadeiras que se acomodavam ao quino, perguntou-lhe rapidamente:

- Quem reparou?
- Ningum. Eu que tenho medo. preciso disfarar.
57
Desde ento cessaram as olhadelas doces, os lugares chegadinhos mesa, os
segredos; e sentiam um gozo picante em afetar maneiras frias, tendo a certeza
vaidosa da paixo que os inflamava. Era para Amlia delicioso - enquanto o padre
Amaro afastado tagarelava com as senhoras - adorar a sua presena, a sua voz, as
suas graas, com os olhos castamente aplicados s chinelas de Joo Eduardo que
muito astutamente recomeara a bordar.
Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o proco
instalado ali todas as noites, com a face prspera, a pema traada, gozando a
venerao das velhas. "A Ameliazinha, sim, agora portava-se bem, e era-lhe fiel,
era-lhe fiel...": mas ele sabia que o proco a desejava, a "cocava"; e apesar do
juramento dela pela sua salvao, da certeza que no havia nada - temia que ela
fosse lentamente penetrada por aquela admirao caturra das velhas, para quem
o senhor proco era um anjo: s se contentaria em arrancar Amlia (j
empregado no governo civil) quela casa beata: mas essa felicidade tardava a
chegar - e saa todas as noites da Rua da Misericrdia mais apaixonado, com a
vida estragada de cimes, odiando os padres, sem coragem para desistir. Era
ento que se punha a andar pelas ruas at tarde; s vezes voltava ainda ver as
janelas fechadas da casa dela; ia depois alameda ao p do rio, mas o frio
ramaIhar das rvores sobre a gua negra entristecia-o mais; vinha ento ao
bilhar, olhava um momento os parceiros carambolando, o marcador, muito
esguedelhado, que bocejava encostado ao reste. Um cheiro de mau petrleo
sufocava. Saa; e dirigia-se, devagar, redao da Voz do Distrito.
X
O redator da Voz do Distrito, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente.
Chamavam-lhe geralmente o Raqutico, por ter uma forte corcunda no ombro, e
uma figurinha enfezada de tico. Era extremamente sujo; e a sua carita de fmea,
amarelada, de olhos depravados, revelava vcios antigos, muito torpes. Tinha

feito (dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes


exclamar: ''Se voc no fosse um raqutico, quebrava-lhe os ossos" - que, vendo
na sua corcunda uma proteo suficiente, ganhara um descaro sereno. Era de
Lisboa, o que o tomava mais suspeito aos burgueses srios: atribua-se a sua voz
rouca e acre "a faltar-lhe as campainhas": e os seus dedos queimados
terminavam em unhas muito compridas - porque tocava guitarra.
A Voz do Distrito fora criada por alguns homens, a quem chamavam em Leiria o
grupo da Maia, particularmente hostis ao senhor governador civil. O doutor
Godinho, que era o chefe e o candidato do grupo, tinha encontrado em
Agostinho, como ele dizia, o homem que se precisa: o que o grupo precisava era
um patife com ortografia, sem escrpulos, que redigisse em linguagem sonora os
insultos, as calnias, as aluses que eles traziam informemente redao, em
apontamentos. Agostinho era um estilista de vilezas. Davam-lhe quinze mil-ris
por ms e casa de habitao na redao - um terceiro andar desmantelado numa
viela ao p da Praa.
Agostinho fazia o artigo de fundo, as locais, a Correspondncia de Lisboa; e o
bacharel Prudncio escrevia o folhetim literrio sob o ttulo de Palestras
Leirienses: era um moo muito honrado, a quem o Sr. Agostinho era repulsivo;
mas tinha uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se todos os
sbados fraternalmente mesma banca, a rever as provas da sua prosa - prosa
to florida de imagens, que se murmurava na cidade, ao l-la: "Que opulncia!
Que opulncia, Jesus!"
Joo Eduardo reconhecia tambm que o Agostinho era "um trastezito"; no se
atreveria a passear com ele de dia nas ruas; mas gostava de ir para a redao, alta
noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho falar de Lisboa, do tempo que l vivera
empregado na redao de dois jornais, no teatro da Rua dos Condes, numa casa
de penhores, e em outras instituies. Estas visitas eram segredo!
quela hora da noite a sala da tipografia no primeiro andar estava fechada (o
jornal tirava-se aos sbados); e Joo Eduardo encontrava em cima Agostinho
abancado com uma velha jaqueta de peles cujos colchetes de prata tinham sido

empenhados - ruminando, curvado, luz dum medonho candeeiro de petrleo,


sobre longas tiras de papel: estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor
tinha o aspecto duma caverna. Joo Eduardo estirava-se no canap de palhinha,
ou indo buscar a um canto a velha guitarra de Agostinho, repenicava o fado
corrido. O jornalista, no entanto, com a testa apoiada a um punho, produzia
laboriosamente: "a coisa no lhe saa catita": e como nem o fadinho o inspirava,
erguia- se, ia a um armrio engolir um copinho de genebra que gargarejava nas
fauces estanhadas, espreguiava- se escancaradamente, acendia o cigarro, e
aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:
Ora foi o fado tirano Que me levou m vida,
E a guitarra: dir-lim, dim, dim, dir-lim, dim, dom.
58
Na vida do negro fado
Ai! que me traz assim perdida...
Isto trazia-lhe sempre as recordaes de Lisboa, porque terminava por dizer,
com dio:
- Que pocilga de terra, esta!
No se podia consolar de viver em Leiria, de no poder beber o seu quartilho na
taberna do tio Joo, Mouraria, com a Ana Alfaiata ou com o Bigodinho - ouvindo
o Joo das Biscas de cigarro ao canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo
fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a morte da Sofia!
Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a Joo Eduardo os
seus artigos, muito alto. E Joo interessava-se - porque essas "produes",
sendo ultimamente sempre "desandas ao clero", correspondiam s suas
preocupaes.
Era por esse tempo que, em virtude da famosa questo da Misericrdia, o doutor
Godinho se tomara muito hostil ao cabido e padraria. Sempre detestara padres;

tinha uma m doena de fgado, e como a Igreja o fazia pensar no cemitrio,


odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaa da mortalha. E Agostinho que
tinha um profundo depsito de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho,
exagerava as suas verrinas: mas, com o seu fraco literrio, cobria o vituprio de
to espessas camadas de retrica que, como dizia o cnego Dias, "aquilo era
ladrar, no era morder!"
Uma dessas noites Joo Eduardo encontrou Agostinho todo entusiasmado com
um artigo que compusera de tarde, e que lhe "sara cheio de piadas Vtor Hugo!"
- Tu vers! Coisa de sensao!
Como sempre, era uma declamao contra o clero e o elogio do doutor Godinho.
Depois de celebrar as virtudes do doutor, "esse to respeitvel chefe de famlia" e
a sua eloquncia no tribunal que "arrancara tantos desventurados ao cutelo da
lei", o artigo, tomando um tom roncante, apostrofava Cristo: - "Quem te diria a
ti (bradava Agostinho), imortal Crucificado! quem te diria, quando do alto do
Glgota expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, tua
sombra, seria expulso dum estabelecimento de caridade o doutor Godinho, - a
alma mais pura, o talento mais robusto..." - E as virtudes do doutor Godinho
voltavam, em passo de procisso, solenes e sublimadas, arrastando caudas de
adjetivos nobres.
Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho, Agostinho
dirigia-se diretamente a Roma: - " no sculo XIX que vindes atirar face de
1,eiria liberal os ditames do Syllabus? Pois bem. Quereis a guerra? T-la-eis!"
- Hem, Joo?! dizia. Est forte! Est filosfico!
E retomando a leitura: - "Quereis a guerra? T-la-eis! Levantaremos bem alto o
nosso estandarte, que no o da demagogia, compreendei-o bem! e arvorandoo, com brao firme, no mais alto baluarte das liberdades pblicas, gritaremos
face de Leiria, face da Europa: Filhos do sculo XIX! s armas! s armas, pelo
progresso!"
- Hem? Est de os enterrar!

Joo Eduardo, que ficara um momento calado, disse ento, levantando as suas
expresses em harmonia com a prosa sonora do Agostinho:
- O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!
Uma frase to literria surpreendeu o jornalista: fitou Joo Eduardo, disse:
- Por que no escreves tu alguma coisa, tambm?
O escrevente respondeu, sorrindo:
- E eu, Agostinho, eu que te escrevia uma desanda aos padres... E eu tocavalhes os podres. Eu
que os conheo!...
Agostinho instou logo com ele para que escrevesse a desanda.
- Vem a calhar, menino!
O doutor Godinho ainda na vspera lhe recomendara: - "Em tudo que cheirar a
padre, para baixo!
Havendo escndalo, conta-se! no havendo, inventa-se!"
E Agostinho acrescentou, com benevolncia:
- E no te d cuidado o estilo, que eu c o florearei!
- Veremos, veremos, murmurou Joo Eduardo.
Mas da por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:
- E o artigo, homem? Traz-me o artigo.
Tinha avidez dele, porque sabendo como Joo Eduardo vivia na intimidade da
"panelinha
cannica da S. Joaneira", supunha-o no segredo de infmias especiais.
Joo Eduardo, porm, hesitava. Se se viesse a saber?
- Qual! afirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. artigo da redao.
Quem diabo
vai saber?
59

Sucedeu na noite seguinte que Joo Eduardo surpreendeu o padreAmaro


resvalando sorrateiramente um segredinho a Amlia - e ao outro dia apareceu de
tarde na redao com a palidez de uma noite velada, trazendo cinco largas tiras
de papel, miudamente escritas numa letra de cartrio. Era o artigo, e intitulavase: Os modernos fariseus! - Depois de algumas consideraes, cheias de flores,
sobre Jesus e o Glgota, o artigo de Joo Eduardo era, sob aluses to difanas
como teias de aranha, um vingativo ataque ao cnego Dias, ao padre Brito, ao
padre Amaro e ao padre Natrio!... Todos tinham a sua dose, como exclamou
cheio de jbilo o Agostinho.
- E quando sai? perguntou Joo Eduardo.
O Agostinho esfregou as mos, refletiu, disse:
- que est forte, diabo! como se tivesse os nomes prprios! Mas descansa, eu
arranjarei.
Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho - que o achou "uma
catilinria atroz".
Entre o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo: ele reconhecia, em
geral, a necessidade da religio entre as massas; sua esposa, a bela D. Cndida,
era alm disso de inclinaes devotas, e comeava a dizer que aquela guerra do
jornal ao clero lhe causava grandes escrpulos: e o doutor Godinho no queria
provocar dios desnecessrios entre os padres, prevendo que o seu amor da paz
domstica, os interesses da ordem e o seu dever de cristo o forariam bem cedo
a uma reconciliao, - "muito contra as suas opinies, mas..."
Disse por isso a Agostinho secamente:
- Isto no pode ir como artigo da redao, deve aparecer como comunicado.
Cumpra estas ordens.
E Agostinho declarou ao escrevente - que a coisa publicava-se como um
Comunicado, assinado: Um liberal. Somente Joo Eduardo terminava o artigo
exclamando: - Alerta, mes de famlia! O Agostinho sugeriu que este final alerta
podia dar lugar rplica jocosa - Alerta est! E depois de largas combinaes
decidiram-se por este fecho: - Cuidado, sotainas negras!

No domingo seguinte apareceu o comunicado assinado: Um liberal.


Durante toda essa manh de domingo, o padre Amaro, volta da S, estivera
ocupado em compor laboriosamente uma carta a Amlia. Impaciente, como ele
dizia, "com aquelas relaes que no andavam nem desandavam, que era olhar e
apertos de mo e dali no passava" - tinha-lhe dado uma noite, mesa do quino,
um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a tinta azul; - Desejo encontr-la
s, porque tenho muito que lhe falar. Onde pode ser sem inconveniente? Deus
proteja o nosso afeto. Ela no respondera: - E Amaro despeitado, descontente
tambm por no a ter visto nessa manh missa das nove, resolveu "pr tudo a
claro numa carta de sentimento": e preparava os perodos sentidos que lhe
deviam ir revolver o corao, passeando pela casa, juncando o cho de pontas de
cigarro, a cada momento curvado sobre o Dicionrio de Sinnimos.
"Ameliazinha do meu corao, (escrevia ele) no posso atinar com as razes
maiores que a no deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa da
senhora sua mam; pois que era pela muita necessidade que tinha de lhe falar a
ss, e as minhas intenes eram puras, e na inocncia desta a/ma que tanto lhe
quer e que no medita o pecado.
Deve ter compreendido que lhe voto um fervente afeto, e pela sua parte me
parece, (se no me enganam esses olhos que so os faris da minha vida, e como
a estrela do navegante) que tambmtu, minha Ameliazinha, tens inclinao por
quem tanto te adora; pois que at outro dia, quando o Libano quinou com os seis
primeiros nmeros, e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mo
por baixo da mesa com tanta ternura, que at me pareceu que o Cu se abria e que
eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Por que no respondeste pois? Se pensas
que o nosso afeto pode ser desagradvel aos nossos anjos da guarda, ento te
direi que maior pecado cometes trazendo-me nesta incerteza e tortura, que at
na celebrao da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa elevar
a minha a/ma no divino sacrifcio. Se eu visse que este mtuo afeto era obra do
tentador, eu mesmo te diria: oh, minha bem amada filha, faamos o sacrifcio a
Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou por ns! Mas eu tenho
interrogado a minha a/ma e vejo nela a brancura dos lrios. E o teu amor tambm

puro como a tua a/ma, que um dia se unir minha, entre os coros celestes, na
bem-aventurana. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliazinha, que
at s vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos! Responde pois e dize
se no te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morena/, pela tarde.
Pois eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como
60
falar-te de coisas importantes, e sentir na minha mo a tua que eu desejo que me
guie pelo caminho do amor, at aos xtases duma felicidade celestial. Adeus,
anjo feiticeiro, recebe a oferta do corao do teu amante e pai espiritual,
Amaro."
Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ela bem dobrada no bolso da
batina foi Rua da Misericrdia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de
Natrio, discutindo.
- Quem est por c? - perguntou Rua, que alumiava, encolhida no seu xale.
-.As senhoras todas. Est o Sr, padre Brito.
- Ol! Bela sociedade!
Galgou os degraus, e porta da sala, com o seu capote ainda pelos ombros,
tirando alto o
chapu:
- Muito boas noites a todos, comeando pelas senhoras.
Natrio, imediatamente, plantou-se diante dele e exclamou:
- Ento que lhe parece?
- O qu? perguntou Amaro. E reparando no silncio, nos olhos cravados nele: - O
que ? Alguma
coisa de novo?
- Pois no leu, senhor proco? exclamaram. No leu o Distrito!?
Era papel em que ele no pusera os olhos, disse. Ento as senhoras indignadas
romperam:

- Ai! um desaforo!
- Ai! um escndalo, senhor proco!
Natrio com as mos enterradas nas algibeiras contemplava o proco com um
sorrizinho
sarcstico, saltando dentre os dentes:
- No leu! No leu! Ento que fez?
Amaro reparava, j aterrado, na palidez de Amlia, nos seus olhos muito
vermelhos. E enfim o cnego erguendo-se pesadamente:
- Amigo proco, do-nos uma desanda...
- Ora essa! exclamou Amaro.
- Tesa!
O senhor cnego, que trouxera o jornal, devia ler alto - lembraram. - Leia, Dias,
leia, acudiu Natrio. Leia, para saborearmos!
A S. Joaneira deu mais luz ao candeeiro: o cnego Dias acomodou- se mesa,
desdobrou o jornal, ps os culos cuidadosamente, e, com o leno do rap nos
joelhos, comeou a leitura do Comunicado na sua voz pachorrenta.
O princpio no interessava: eram perodos enternecidos em que o liberal
exprobrava aos fariseus a crucificao de Jesus: - "Por que o matsteis?
(exclamava ele). Respondei!" E os fariseus respondiam: - "Matamo-lo porque ele
era a liberdade, a emancipao, a aurora de uma nova era", etc. O liberal ento
esboava, a largos traos, a noite do Calvrio: - "Ei-lo pendente da cruz,
traspassado de lanas, a sua tnica jogada aos dados, a plebe infrene", etc. E,
voltando a dirigir-se aos fariseus infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia: "Contemplai a vossa bela obra!" Depois, por uma gradao hbil, o liberal descia
de Jerusalm a Leiria: - "Mas pensam os leitores que os fariseus morreram?
Como se enganam! Vivem! conhecemo-los ns; Leiria est cheia deles, e vamos
apresent-los aos leitores..."
- Agora que elas comeam, disse o cnego olhando para todos em redor, por
cima dos culos.

Com efeito "elas comeavam"; era, numa forma brutal, uma galeria de
fotografias eclesisticas: a primeira era a do padre Brito: - "Vede-o, (exclamava o
liberal) grosso como um touro, montado na sua gua castanha..."
- At a cor da gua! murmurou com uma indignao piedosa a Sra. D. Maria da
Assuno.
"... Estpido como um melo, sem sequer saber latim..."
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se
na cadeira,
esfregando devagar os joelhos.
"... Espcie de caceteiro", continuava o cnego, que lia aquelas frases cruis com
uma
tranqilidade doce, "desabrido de maneiras, mas que no desgosta de se dar
ternura, e, segundo dizem os bem informados, escolheu para Dulcinia a prpria
e legtima esposa do seu regedor..."
O padre Brito no se dominou:
- Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recaindo pesadamente na
cadeira. - Escute, homem, disse Natrio.
- Qual escute! O que , que o racho!
Mas se ele no sabia quem era o liberal!
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- Qual liberal! Quem eu racho o doutor Godinho. O doutor Godinho que o
dono do jornal. O doutor Godinho que eu racho!
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas coxa.
Lembraram-lhe o dever cristo de perdoar as injrias! A S. Joaneira com uno
citou a bofetada que Jesus Cristo suportou. Devia imitar Cristo.
- Qual Cristo, qual cabaa! gritou Brito apopltico.
Aquela impiedade criou um terror.

- Credo! Sr, padre Brito, credo! exclamou a irm do cnego, recuando a cadeira.
O Libaninho, com as mos na cabea, vergado sob o desastre, murmurava:
- Nossa Senhora das Dores, que at pode cair um raio!
E, vendo mesmo Amlia indignada, o padre Amaro disse gravemente:
- Brito, realmente voc excedeu-se.
- Pois se esto a puxar por mim!...
- Homem, ningum puxou por voc, disse severamente Amaro. E com um tom
pedagogo: Apenas lhe lembrarei, como devo, que em tais casos, quando se diz a blasfmia
m, o reverendo padre Scomelli recomenda confisso geral e dois dias de
recolhimento a po e gua.
O padre Brito resmungava.
- Bem, bem, resumiu Natrio. O Brito cometeu uma grande falta, mas saber
pedir perdo a Deus, e a misericrdia de Deus infinita!
Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assuno
murmurar "que ficara sem pinga de sangue": e o cnego, que durante a
catstrofe pousara os culos sobre a mesa, retomou-os, e continuou
serenamente a leitura:
"...Conheceis um outro com cara de furo?..."
Olhares de lado fixaram o padre Natrio.
"...Desconfiai dele: se puder trair-vos, no hesita; se puder prejudicar-vos,
folga; as suas intrigas
trazem o cabido numa confuso porque a vbora mais daninha da diocese, mas
com tudo isso muito dado jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas
do seu canteiro."
- Homem, essa! exclamou Amaro.
- para que voc veja, disse Natrio erguendo-se lvido. Que lhe parece? Voc
sabe que eu, quando falo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do

meu canteiro. um gracejo. Pois, senhores, at vem com isto! - E com um


sorriso macilento, de fel: - Mas amanh hei-de saber quem ! Olar! Eu hei-de
saber quem !
- Deite ao desprezo, Sr. padre Natrio, deite ao desprezo, disse a S. Joaneira
pacificadora.
- Obrigado, minha senhora, acudiu Natrio curvando-se com uma ironia
rancorosa, obrigado! C recebi!
Mas a voz imperturbvel do cnego retomara a leitura. Agora era o retrato dele,
traado com dio:
"...Cnego bojudo e gluto, antigo caceteiro do Sr. D. Miguel, que foi expulso da
freguesia de Ourm, outrora mestre de Moral num seminrio e hoje mestre de
imoralidade em Leiria..."
- Isso infame! exclamou Amaro exaltado.
O cnego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
- Voc pensa que me d isto cuidado? disse ele. Boa! Tenho que comer e que
beber, graas a
Deus! Deixar rosnar quem rosna!
- No, mano, interrompeu a irm, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de
brio!
- ora, mana! replicou o cnego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora,
mana! ningum
lhe pede a sua opinio!
- Nem preciso que ma peam, gritou ela empertigando-se. Sei-a dar muito bem
quando quero e
como quero. Se no tem vergonha, tenho-a eu!
- Ento! ento! disseram em roda, acalmando-a.
- Menos lngua, mana, menos lngua! disse o cnego fechando os seus culos.
Olhe, no lhe

caiam os dentes postios! - Seu malcriado!


Ia falar, mas sufocou-se; e comeou subitamente a soltar ais.
Recearam logo que lhe desse o flato; a S. Joaneira e a D. Joaquina Gansoso
levaram-na para o quarto, embaixo, amparando-a, com palavras brandas:
- Ests doida! Por quem s, filha! Olha que escndalo! Nossa Senhora te valha!
Amlia mandava buscar gua de flor de laranja.
- Deixe-a l, rosnou o cnego, deixe-a l! Aquilo passa-lhe. So calores!
62
Amlia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a Sra. D.
Maria da Assuno e a Gansoso surda, que iam tambm "sossegar a D. Josefa,
coitadita!" Os padres agora estavam ss e o cnego voltando-se para Amaro: Oua voc, que a sua vez - disse retomando o jornal.
- E ver que dose! disse Natrio.
O cnego escarrou, aproximou mais o candeeiro, e declamou:
"... Mas o perigo so certos padres novos e ajanotados, procos por influncias de
condes da
capital, vivendo na intimidade das famlias de bem onde h donzelas
inexperientes, e aproveitando-se da influncia do seu sagrado ministrio para
lanar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!"
- Pouca vergonha! murmurou Amaro lvido.
"... Dize, sacerdote de Cristo, onde queres arrastar a impoluta virgem? Queres
arrast-la aos lodaais do vcio? Que vens fazer aqui ao seio desta respeitvel
famlia? Por que rondas em volta da tua presa, como o milhafre em torno da
inocente pomba? Para trs, sacrlego! Murmuras-lhe sedutoras frases, para a
desviares do caminho da honra; condenas desgraa e viuvez algum honrado
moo que lhe queira oferecer a sua mo trabalhadora; e vais-lhe preparando um

horroroso futuro de lgrimas. E tudo para qu? Para saciares os torpes impulsos
da tua criminosa lascvia..."
- Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
"...Mas acautela-te, presbtero perverso!" E a voz do cnego tinha tons cavos ao
soltar aquelas apstrofes. "J o arcanjo levanta a espada da justia. E sobre ti, e
teus cmplices, j a opinio da ilustrada Leiria fita seu olho imparcial. E ns c
estamos, ns, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infmia.
Tremei, sectrios do Syllabus! cuidado, sotainas negras!"
- De escacha! fez o cnego suado, dobrando a Voz do Distrito.
O padre Amaro tinha os olhos enevoados de duas lgrimas de raiva: passou
devagar o leno pela testa, soprou, disse com os beios a tremer:
1

- Eu, colegas, nem sei o que hei-de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto a
calnia das calnias.

- Uma calnia infame... rosnaram.

- E a mim, o que me parece, continuou Amaro, que nos dirijamos


autoridade!

- o que eu tinha dito, acudiu Natrio, necessrio falar ao secretriogeral...

- Um cacete que ! rugiu o padre Brito. Autoridade! O que , rach-lo!


Eu bebia-lhe o sangue!...
O cnego, que meditava coando o queixo, disse ento:
- E voc, Natrio, que deve ir ao secretrio-geral. Voc tem lngua, tem
lgica...
- Se os colegas decidem, disse Natrio curvando-se, vou. E hei-de- lhas
cantar, autoridade!
Amaro ficara junto da mesa com a cabea entre as mos, aniquilado. E o
Libaninho murmurava:

- Ai, filhos, eu no nada comigo, mas s de ouvir todo esse aranzel, at se


me esto a vergar as
pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
Mas sentiram a voz da Sra. Joaquina Gansoso subindo a escada; e o cnego
imediatamente com
uma voz prudente:
- Colegas, o melhor, diante das senhoras, no se falar mais nisto. Bem
basta o que basta.
Da a momentos, apenas Amlia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que
estava com uma forte
dor de cabea, e despediu-se das senhoras.
- E sem tomar ch? acudiu a S. Joaneira.
- Sim, minha senhora, disse ele embrulhando-se no seu capote, no me
estou a sentir bem. Boas
noites... E voc, Natrio, aparea amanh pela S uma hora.
Apertou a mo de Amlia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e
mole, - e saiu com os
ombros vergados.
A S. Joaneira notou, desconsolada:
- O senhor proco ia muito plido...
O cnego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:
- Se ia plido, amanh estar corado. E agora quero dizer uma coisa. Esse
aranzel do jornal a
calnia das calnias! Eu no sei quem o escreveu, nem para que o escreveu.
Mas so tolices e so infmias. pateta e maroto, quem quer que seja. O
que devemos fazer j o sabemos, e como j se tagarelou bastante sobre o
caso, a senhora mande vir o ch. E o que l vai, l vai, no se fala mais na
questo.
As faces em roda continuavam contristadas. - E ento o cnego
acrescentou:
- Ah! e quero dizer outra coisa: como no morreu ningum, no h
necessidade de estar aqui com cara de psames. E tu, pequena, senta- te ao

instrumento e repenica-me essa Chiquita!

63
O secretrio-geral, o Sr. Gouveia Ledesma, antigo jornalista, e, em anos mais
expansivos, autor do livro sentimental Devaneios de um Sonhador, estava ento
dirigindo o distrito na ausncia do governador civil.
Era um moo bacharel que passava por ter talento. Representara de gal no teatro
acadmico, em Coimbra, com muito aplauso; e tomara a esse tempo o hbito de
passear tarde na Sofia, com o ar fatal com que no palco arrepelava os cabelos,
ou levava, nos transes de amor, o leno aos olhos. Depois em Lisboa arruinara
um pequeno patrimnio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Mata, muita
caa no Xafredo e perniciosas convivncias literrias: aos trinta anos estava
pobre, saturado de mercrio e autor de vinte folhetins romnticos na Civilizao:
mas tornara- se to popular, que era conhecido nos lupanares e nos cafs por um
cognome carinhoso - era o Bibi. Julgando ento que conhecia a fundo a
existncia, deixou crescer as suas, comeou a citar Bastiat, freqentou as
cmaras e entrou na carreira administrativa; chamava agora repblica que tanto
exaltara em Coimbra uma absurda quimera; e Bibi era um pilar das instituies.
Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia s senhoras, nas soires
do deputado Novais - "que estava cansado da vida". Rosnava- se que a esposa do
bom Novais andava doida por ele: e em verdade Bibi escrevera a um amigo da
capital: - "enquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a
Novaisitos".
Levantava-se tarde; e nessa manh, de robe-de-chambre mesa do almoo,
partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narrao apaixonada
duma pateada em S. Carlos, quando o criado, - um galego que trouxera de Lisboa
- veio dizer que "estava ali um cura".
- Um cura? Que entre para aqui! - E murmurou para sua satisfao pessoal: - o
Estado no deve fazer esperar a Igreja.

Ergueu-se, e estendeu as duas mos ao padre Natrio que entrava, muito


composto, na sua longa batina de lustrina.
- Uma cadeira, Trindade! Toma uma chvena de ch, senhor cura? Soberba
manh, hem? Estava justamente pensando em si, - isto , estava pensando no
clero em geral... Acabava de ler as peregrinaes que se esto fazendo a Nossa
Senhora de Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da melhor roda...
realmente consolador ver renascer a f... Ainda ontem eu disse em casa do
Novais: "No fim de tudo a f a mola real da sociedade". Tome uma chvena de
ch... Ah! um grande blsamo!...
- No, obrigado, almocei j.
- Mas no! Quando digo um grande blsamo refiro-me f, no ao ch! Ah! ah!
boa, no?
E prolongou a sua risadinha com complacncia. Queria agradar a Natrio, pelo
princpio que repetia muito, com um sorriso astuto - "que quem est metido na
poltica deve ter por si a padraria".
- E depois, acrescentou, como eu dizia ontem em casa do Novais, que vantagem
para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois com a afluncia
dos devotos est uma cidade... Grandes hotis, bulevares, belas lojas... por
assim dizer o desenvolvimento econmico, correndo parelhas com o
renascimento religioso.
E deu com satisfao um puxozinho grave ao colarinho.
- Pois eu vinha aqui falar a V. Ex.a a respeito dum comunicado na Voz do Distrito.
- Ah! interrompeu o secretrio-geral, perfeitamente, li! Uma famosaverrina...
Mas
literariamente, como estilo e como imagens, que misria!
- E que tenciona V. Ex.a fazer, senhor secretrio-geral?
O Sr. Gouveia Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou pasmado:
- Eu?
Natrio disse, destilando as palavras:

- A autoridade tem o dever de proteger a religio do Estado, e implicitamente os


seus
sacerdotes... Que tenha V. Ex.a em vista, eu no venho aqui em nome do clero...
E acrescentou com a mo sobre o peito:
- Sou apenas um pobre padre sem influncia... Venho, como particular,
perguntar ao senhor
secretrio-geral se se pode permitir que caracteres respeitveis da Igreja
diocesana sejam assim difamados...
- certamente lamentvel que um jornal...
Natrio interrompeu, empertigando o busto com indignao:
- Jornal que j devia estar suspenso, senhor secretrio-geral!
- Suspenso! Por quem , senhor cura! Mas V. St decerto no quer que eu volte ao
tempo dos
corredores-mores! - Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa um
princpio sagrado! Nem as leis de imprensa o permitem... Mesmo querelar pelo
ministrio pblico porque um peridico diz duas ou trs pilhrias sobre o cabido,
impossvel! Tnhamos de querelar toda a imprensa de Portugal, com exceo da
Nao e do Bem Pblico! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta anos
de progresso, a prpria
64

idia governamental? Mas ns no somos os Cabrais, meu caro senhor! Ns


queremos luz, muitssima luz! Justamente o que ns queremos luz!
Natrio tossiu devagarinho, disse:

- Perfeitamente. Mas ento quando pelas eleies, a autoridade nos vier pedir o
nosso auxilio, ns vendo que no encontramos nela proteo, diremos
simplesmente: "Non possumus!"
- E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que do os senhores
abades, ns vamos trair a civilizao?
E o antigo Bibi, tomando uma grande atitude, soltou esta frase:
- Somos filhos da liberdade, no renegaremos nossa me!
- Mas o doutor Godinho, que a alma do jornal, oposio, observou ento
Natrio; protegerlhe o jornal implicitamente proteger-lhe as manobras... O secretrio-geral teve
um sorriso:
- Meu caro senhor cura, V. St no est no segredo da poltica. Entre o doutor
Godinho e o governo civil no h inimizade, h apenas um arrufo... O doutor
Godinho uma inteligncia... Vai reconhecendo que o grupo da Maia no produz
nada... O doutor Godinho aprecia a poltica do governo, e o governo aprecia o
doutor Godinho.
E, rebuando-se todo num mistrio de Estado, acrescentou: - Coisas de alta
poltica, meu caro senhor.
Natrio ergueu-se:
- De modo que...
- Impossibilis est, disse o secretrio. De resto acredite, senhor cura, que, como
particular, revolto-me contra o Comunicado; mas como autoridade devo
respeitar a expresso do pensamento... Mas creia, e pode diz-lo a todo o clero
diocesano, a Igreja catlica no tem um filho mais fervente que eu, Gouveia
Ledesma... Quero porm uma religio liberal, de harmonia com o progresso, com
a cincia... Foram sempre as minhas idias; preguei-as bem alto, na imprensa,
na universidade e no grmio... Assim, por exemplo, no acho que haja poesia
maior que a poesia do cristianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Somente
lamento que ele no arvore a bandeira da civilizao! - E o antigo Bibi, contente

da sua frase, repetia-a: - Sim, lamento que ele no arvore a bandeira da


civilizao... O Syllabus impossvel neste sculo de eletricidade, senhor cura! E
a verdade que ns no podemos querelar dum jornal, porque ele diz duas ou
trs pilhrias sobre o sacerdcio, nem nos convm, por altas razes de poltica,
escandalizar o doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
- Senhor secretrio-geral, disse Natrio curvando-se.
- Um criado de V. S.a. Sinto que no tome uma chvena de ch. E como vai o
nosso chantre?
- S. Ex. a nestes ltimos dias, segundo creio, tem tornado a sofrer de tonturas.
- Sinto. Uma negligncia tambm! Grande latinista... Tenha cuidado com o
degrau!...
Natrio correu S, com um passo nervoso, resmungando alto de clera. Amaro
passeava
devagar no terrao, com as mos atrs das costas: tinha as olheiras batidas e a
face envelhecida.
- Ento? disse ele, indo rapidamente ao encontro de Natrio.
- Nada!
Amaro mordeu o beio: e enquanto Natrio lhe contava, excitado, a conversao
com o
secretrio-geral, "e como argumentara com ele, e como o homem tagarelara,
tagarelara", - a face do proco cobria-se duma sombra desconsolada, e ia
arrancando raivosamente, com a ponta do guarda-sol, a erva que crescia nas
fendas do terrao.
- Um patarata! resumiu o padre Natrio com um grande gesto. Pela autoridade
no se faz nada. escusado... Mas a questo agora entre mim e o liberal, padre
Amaro! Eu hei-de saber quem , padre Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre
Amaro, sou eu!...

No entanto, Joo Eduardo desde o domingo triunfava; o artigo fizera escndalo:


tinham-se vendido oitenta nmeros avulsos do jornal, e o Agostinho afirmaralhe que na botica da Praa a opinio era "que o liberal conhecia a padraria a fundo
e tinha cabea" ! _
- s um gnio, rapaz, disse o Agostinho. trazer-me outro, trazer-me outro!
Joo Eduardo gozava prodigiosamente "daquele falatrio que ia pela cidade".
Relia ento o artigo com uma deleitao paternal; se no receasse escandalizar a
S. Joaneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem alto: fui eu, eu que o escrevi! - e j
ruminava outro, mais terrvel, que se deveria intitular: O diabo feito eremita, ou
O sacerdcio de Leiria perante o sculo XIX!
O doutor Godinho encontrara-o na Praa, e parara com condescendncia, para
lhe dizer:
65
- A coisa tem feito barulho. Voc o diabo! E a piada ao Brito bem jogada. Que
eu no sabia... E diz que bonita, a mulher do regedor...
- V. Ex.a no sabia?
- No sabia, e saboreei. Voc o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho que
publicasse a coisa como um comunicado. Voc compreende... Eu no me convm
ter turras de mais com o clero... E depois l minha esposa tem seus escrpulos...
Enfim, melhor e conveniente que as mulheres tenham religio... Mas no meu
foro interior saboreei... Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra
dos diabos na eleio passada... Ah! e outra coisa, o seu negcio arranja-se. L
para o ms que vem tem o seu emprego no governo civil.
- Oh, senhor doutor, V. Ex.a....
- Qual histria, voc um benemrito!
Joo Eduardo foi para o cartrio, trmulo de alegria. O Sr. Nunes Ferral sara: o
escrevente

aparou devagar uma pena, comeou a cpia duma procurao, - e de repente,


agarrando o chapu, correu Rua da Misericrdia.
A S. Joaneira costurava s janela: Amlia fora ao Morenal: e Joo Eduardo, logo
da porta:
- Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que l para o ms
que vem tenho o meu emprego...
A S. Joaneira tirou a luneta, deixou cair as mos no regao:
- Que me diz?...
- verdade, verdade...
E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos nervosos de jbilo.
- Que pechincha! exclamou. De modo que agora, se a Ameliazinha estiver de
acordo...
- Ai! Joo Eduardo! fez a S. Joaneira com um grande suspiro, que me tira um peso
do corao...
Que tenho estado... Olhe, nem tenho dormido!...
Joo Eduardo pressentiu que ela ia falar do Comunicado. Foi pr o chapu numa
cadeira ao
canto; e voltando janela, com as mos nos bolsos: - Ento por qu, por qu?
- Aquela pouca-vergonha no Distrito! Que diz voc? Aquela calnia! Ai! tenhome feito velha!
Joo Eduardo escrevera o artigo sob as solicitaes do cime, s para "enterrar" o
padre Amaro; no previra o desgosto das duas senhoras; e vendo agora a S.
Joaneira com duas lgrimas no branco dos olhos, sentia-se quase arrependido.
Disse ambiguamente:
- Eu li, o diabo...
Mas aproveitando o sentimento da S. Joaneira para servir a sua paixo,
acrescentou sentando-se, chegando a cadeira para ao p dela:

- Eu nunca lhe quis falar disso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliazinha tratava
o proco com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo
sem quererem, a coisa ia-se sabendo, ia- se rosnando... Eu bem sei que ela,
coitada, no via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que Leiria. Que lnguas, hem!
A S. Joaneira ento declarou que lhe ia falar como a um filho: o artigo afligira-a,
sobretudo por causa dele, Joo Eduardo. Porque enfim ele podia acreditar
tambm, desfazer o casamento, e que desgosto! E ela podia dizer-lhe como
mulher de bem, como me, que no havia entre a pequena e o senhor proco,
nada, nada, nada! Era a rapariga que tinha aquele gnio comunicativo! E o proco
tinha boas palavras, sempre muito delicado... Que ela sempre o dissera, o Sr.
padre Amaro tinha maneiras que tocavam o corao...
- Decerto, disse Joo Eduardo mordendo o bigode, com a cabea baixa.
A S. Joaneira ento ps a mo de leve sobre o joelho do escrevente, e fitando-o:
- E olhe, no sei se me fica mal dizer-lho, mas a rapariga quer-lhe deveras, Joo
Eduardo.
O corao do escrevente teve uma palpitao comovida.
- E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixo que eu tenho por ela... E l do artigo que
me importa a
mim?
Ento a S. Joaneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para
ela! Ela sempre
o dissera, como rapaz de bem, no havia outro na cidade de Leiria! . - Voc sabe,
quero-lhe como filho!
O escrevente enterneceu-se:
- Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo... E erguendo- se, com uma
solenidade engraada:
- Sra. D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mo...
Ela riu-se, - e na sua alegria Joo Eduardo beijou-a na testa, filialmente.

- E fale noite Ameliazinha, disse ao sair. Eu venho amanh, e felicidade no


h-de faltar...
66

- Louvado seja Nosso Senhor, acrescentou a S. Joaneira retomando a sua costura,


com um suspiro de muito alivio.
Apenas, nessa tarde, Amlia voltou do Morenal, a S. Joaneira, que estava pondo a
mesa, disse- lhe:
- Esteve ai o Joo Eduardo...
- Ah!...
- Ai esteve a falar, coitado...
Amlia, calada, dobrava a sua manta de l.
- A esteve a queixar-se, continuou a me.
- Mas de qu? perguntou ela muito vermelha.
- Ora de qu! Que se falava muito na cidade do artigo do Distrito; que se
perguntava a quem
aludia o peridico com as donzelas inexperientes, e que a resposta era: "Quem
h-de ser? a Amlia da S. Joaneira, da Rua da Misericrdia!" O pobre Joo diz que
tem andado to desgostoso!... No se atrevia, por delicadeza, a falar-te...
Enfim...
- Mas que hei-de eu fazer, minha me? exclamou Amlia com os olhos
subitamente cheios de lgrimas, quelas palavras que caam sobre os seus
tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
- Eu digo-te isto para seu governo. Faz o que quiseres, filha. Eu bem sei que so
calnias! Mas tu sabes o que so lnguas do mundo... O que te posso dizer que o
rapaz no acreditou no peridico. Que era isso que me dava cuidado!... Credo!
tirou-me o sono... Mas no, diz que no lhe importa o artigo, que te quer da
mesma maneira, e est a arder por que se faa o casamento... E eu por mim o que

fazia, para calar toda essa gente, era casar-me j. Eu bem sei que tu no morres
por ele, bem sei. Deixa l! Isso vem depois. O Joo bom rapaz, vai ter o
emprego...
- Vai ter o emprego!?
- Pois foi o que ele me veio dizer tambm... Esteve com o doutor Godinho, diz
que l para o fim do ms est empregado... Enfim tu fazes o que entenderes...
Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te dum momento para o outro!...
Amlia no respondeu, olhando de frente no telhado voarem os pardais - menos
desassossegados, naquele instante, que os seus pensamentos.

Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente a que
aludia o Comunicado era ela, Amlia, e torturava-a o vexame de ver assim o seu
amor publicado no jornal. Depois (como ela pensava, mordendo o beio numa
raiva muda, com os olhos afogados de lgrimas), aquilo vinha estragar tudo! Na
Praa, na Arcada j se diria com risinhos perversos: - "Ento a Ameliazita da S.
Joaneira metida com o proco,hem?" Decerto o senhor chantre, to severo em
"coisas de mulheres", repreenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns
apertos de mo, a estava a sua reputao estragada, estragado o seu amor!
Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a
escarnec-la; no aceno que lhe fez da porta da botica o respeitvel Carlos julgou
ver uma secura repreensvel; volta encontrara o Marques da loja de ferragens,
que no lhe tirou o chapu, e ao entrar em casa julgava-se desacreditada esquecendo que o bom Marques era to curto de vista que usava na loja duas
lunetas sobrepostas.
- Que hei-de eu fazer? que hei-de eu fazer? murmurava, s vezes, com as mos
apertadas na cabea. O seu crebro de devota apenas lhe fornecia solues
devotas - entrar num recolhimento, fazer uma promessa a Nossa Senhora das
Dores "para que a livrasse daquele apuro", ir confessar-se ao padre Silvrio... E

terminava por se vir sentar resignadamente ao p da me com a sua costura,


considerando, muito enternecida, que desde pequena fora sempre bem infeliz!
A me no lhe falara claramente sobre o Comunicado: tivera apenas palavras
ambguas:
- uma pouca-vergonha... deitar ao desprezo... Quando a gente tem a sua
conscincia sossegada, o mais histrias...
Mas Amlia via-lhe bem o desgosto - na face envelhecida, nos tristes silncios,
nos suspiros repentinos quando fazia meia janela com a luneta na ponta do
nariz: e ento mais se convencia que havia "grande falatrio na cidade", de que a
me, coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D. Josefa Dias - cuja boca
produzia o mexerico mais naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
E ento o seu amor pelo proco, que at ai, naquela reunio de saias e batinas da
Rua da Misericrdia se lhe afigurara natural, agora, julgando-o reprovado pelas
pessoas que desde pequena fora acostumada a respeitar - os Guedes, os Marques,
os Vaz, - aparecia-lhe j monstruoso: assim as cores dum retrato pintado luz de
azeite, e que luz de azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes
67
quando lhes cai em cima a luz do sol. E quase estimava que o padre Amaro no
tivesse voltado Rua da Misericrdia.
No entanto, com que ansiedade esperava todas as noites o seu toque de
campainha! Mas ele no vinha; e aquela ausncia, que a sua razo julgava
prudente, dava ao seu corao o desespero de uma traio. Na quarta- feira
noite no se conteve, disse, corando sobre a sua costura: - Que ser feito do
senhor proco?
O cnego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se,
rosnou:
- Mas que fazer... E escusam de esperar por ele to cedo!...

E Amlia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza que o
proco, aterrado
com o escndalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos, zelosos "do bom
nome do clero" - tratava de se descartar dela! Mas, cautelosa, diante das amigas
da me, escondeu o seu desespero: foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou
mazurcas to estrondosas - que o cnego, tomando a mexer-se na poltrona,
grunhiu:
- Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixo pelo proco flamejava
mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma aluso num
jornal o picara, ficara a tremer na sua batina, apavorado, no se atrevendo sequer
a visit-la - sem se lembrar que tambm ela se via diminuda na sua reputao,
sem ser satisfeita no seu amor! E fora ele que a tentara com as suas palavrinhas
doces, as suas denguices! Infame!... Desejava violentamente apert-lo ao corao
- e esbofete-lo. Teve a idia insensata de ir ao outro dia Rua das Sousas atirarse-lhe aos braos, instalar-se-lhe no quarto, fazer um escndalo que o obrigasse
a fugir da diocese... Por que no? Eram novos, eram robustos, poderiam viver
longe, noutra cidade, - e a sua imaginao comeou a repastar-se logo
histericamente nas perspectivas deliciosas dessa existncia, em que se figurava
constantemente a dar-lhe beijos! Atravs da sua intensa excitao, aquele plano
parecia-lhe muito prtico, muito fcil: fugiriam para o Algarve; l, ele deixaria
crescer o cabelo (que mais bonito seria ento!) e ningum saberia que era um
padre; poderia ensinar latim, ela coseria para fora; e viveriam numa casinha onde o que mais a atraia era o leito com as duas travesseirinhas chegadas... E a
nica dificuldade que via em todo este plano radiante, era fazer sair de casa, s
escondidas da me, o ba com a sua roupa! - Mas quando acordou, essas
resolues mrbidas, luz clara do dia, desfizeram-se como sombras: tudo
aquilo que parecia agora to impraticvel, e ele to separado dela, como se entre
a Rua da Misericrdia e a Rua das Sousas se erguessem inacessivelmente todas as
montanhas da Terra. Ai, o senhor proco abandonara-a, era certo! No queria
perder os lucros da sua parquia nem a estima dos seus superiores!... Pobre dela!

Considerou-se ento para sempre infeliz e desinteressada da vida. Guardou,


todavia, muito intenso, o desejo de se vingar do padre Amaro.
Foi ento que refletiu, pela primeira vez, que Joo Eduardo desde a publicao do
Comunicado no aparecera na Rua da Misericrdia. Tambm me volta as costas pensou com amargura. Mas que lhe importava? No meio da aflio que lhe dava o
abandono do padre Amaro, a perda do amor do escrevente, piegas e pesado, que
lhe no trazia utilidade nem prazer, era uma contrariedade imperceptvel: uma
infelicidade viera que lhe arrebatava bruscamente todas as afeies - a que lhe
enchia a alma, e a que apenas lhe acariciava a vaidadezinha; e irritava-a, sim, no
sentir j o amor do escrevente colado a suas saias, com a docilidade dum co mas todas as suas lgrimas eram para o senhor proco "que j no queria saber
dela"! S lamentava a desero de Joo Eduardo, porque perdia assim um meio
sempre pronto de fazer enraivecer o padre Amaro...

Por isso nessa tarde janela, calada, olhando no telhado defronte voarem os
pardais - depois de saber que Joo Eduardo certo do emprego, viera falar enfim a
me - pensava com satisfao no desespero do proco ao ver publicados na S os
banhos do seu casamento. Depois as palavras muito prticas da S. Joaneira
trabalhavam-lhe silenciosamente na alma: o emprego do governo civil rendia
25$000 ris mensais; casando, reentrava logo na sua respeitabilidade de
senhora; e se a me morresse, com o ordenado do homem e com o rendimento
do Morenal, podia viver com decncia, ir mesmo no Vero aos banhos... E via-se
j na Vieira, muito cumprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do
governador civil.
- Que lhe parece, minha me? - perguntou bruscamente. Estava decidida pelas
vantagens que entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava ser persuadida e
forada.
- Eu ia pelo seguro, filha - foi a resposta da S. Joaneira.

- sempre o melhor - murmurou Amlia entrando no quarto. E sentou-se muito


triste aos ps da cama porque a melancolia que lhe dava o crepsculo tornava-lhe
agora mais pungente a saudade "dos seus bons tempos com o senhor proco".
68
Nessa noite choveu muito, as duas senhoras passaram ss. A S. Joaneira,
repousada agora das suas inquietaes, estava muito sonolenta, a cada momento
cabeceava com a meia cada no regao. Amlia ento pousava a costura, e com o
cotovelo sobre a mesa, fazendo girar o abajur verde do candeeiro, pensava no seu
casamento: o Joo Eduardo era bom rapaz, coitado; realizava o tipo de marido to
estimado na pequena burguesia - no era feio e tinha um emprego; decerto o
oferecimento da sua mo, apesar das infmias do jornal, no lhe parecia, como a
me dissera, "um rasgo de mo-cheia"; mas a sua dedicao lisonjeava-a, depois
do abandono to cobarde de Amaro: e havia dois anos que o pobre Joo gostava
dela... Comeou ento laboriosamente a lembrar tudo o que nele lhe agradava - o
seu ar srio, os seus dentes muito brancos, a sua roupa asseada.
Fora ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraas, dava-lhe
apetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir
no bero - porque seria um rapaz, chamar-se-ia Carlos e teria os olhos negros do
padre Amaro. O padre Amaro... Depois de casada, decerto, tornaria a encontrar o
Sr. padre Amaro... E ento uma idia atravessou todo o seu ser, f-la erguer
bruscamente, ir por instinto procurar a escurido da janela para ocultar a
vermelhido do rosto. Oh! isso no, isso no! Era horrvel!... Mas a idia
implacavelmente apoderara-se dela como um brao muito forte que a sufocava e
lhe dava uma agonia deliciosa. E ento o antigo amor, que o despeito e a
necessidade tinham recalcado no fundo da sua alma, rompeu, inundou-a:
murmurou repetidamente, com paixo, torcendo as mos, o nome de Amaro:
desejou avidamente os seus beijos - oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo
tinha acabado! E devia casar, pobre dela!... Ento janela, com a face contra a
escurido da noite, choramingou baixinho.
Ao ch a S. Joaneira disse-lhe, de repente:

- Pois a coisa, a fazer-se, filha, deve ser j... Era comear o enxoval, e se fosse
possvel casar-te para o fim do ms.
Ela no respondeu - mas a sua imaginao alvoroou-se quelas palavras. Casada
da a um ms, ela! Apesar de Joo Eduardo lhe ser indiferente, a idia daquele
rapaz, novo e apaixonado, que ia viver com ela, dormir com ela, deu uma
perturbao a todo o seu ser.
E quando a me ia descer ao quarto, disse-lhe:
- Que lhe parece, minha me? Eu est-me a custar entrar em explicaes com o
Joo Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
- Tambm acho, filha, escreve-lhe... A Rua leva a carta pela manh... Uma carta
bonita, e que agrade ao rapaz.
Amlia ficou na sala de jantar at tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:
"SR. JOO EDUARDO.
A mam c me ps ao fato da conversao que teve consigo. E se a sua afeio
verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se
decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus sentimentos. E a respeito
de enxoval e papis, amanh se falar, pois que o esperamos para o ch. A mam
est muito contente e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero
h-de ser, com a ajuda de Deus. A mam recomenda-se e eu sou
a que muito lhe quer, Amlia Caminha".
Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante dela deramlhe o desejo de escrever ao padre Amaro. Mas o qu? Confessar-lhe o seu amor,
com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com que aceitava por marido o
outro?... Acus-lo da sua cobardia, mostrar o seu desgosto - era humilhar-se! E
apesar de no ter motivo para lhe escrever, a sua mo ia traando com gozo as
primeiras palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que no
tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silncio,

para sempre!... Separarem-se por qu? - pensou. Depois de casada podia bem ver
o Sr, padre Amaro. E a mesma idia voltava, sutilmente, mas numa forma to
honesta agora, que a no repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu
confessor; era em toda a cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a
sua vontade, a sua conscincia; haveria ento entre eles uma troca deliciosa e
constante de confidncias, de doces admoestaes; todos os sbados iria receber
ao confessionrio, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma
proviso de felicidade; e aquilo seria casto, muito picante, e para a glria de Deus.
Sentiu-se quase satisfeita com a impresso, que no definia bem, duma
existncia em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria
os encantos duma devoo amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E da a
pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido,
e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda
a S, sentada nosjoelhosdosenhor proco.
69
Ao outro dia a Rua levou a carta a Joo Eduardo, e toda a manh as duas
senhoras, costurando janela, falaram do casamento. Amlia no se queria
separar da me, e, como a casa tinha acomodaes, os noivos viveriam no
primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor
cnego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua-de-mel para a fazenda da
D. Maria. E Amlia quelas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o
olhar da me que, de luneta na ponta do nariz, a admirava, babosa.
s Ave-Marias a S. Joaneira fechou-se embaixo no seu quarto a rezar a sua coroa,
e deixou Amlia s "para se entender com o rapaz". - Dai a pouco, com efeito,
Joo Eduardo bateu campainha. Vinha muito nervoso, de luvas pretas,
enfrascado em gua-de-colnia. Quando chegou porta da sala de jantar no
havia luz, e a bonita forma de Amlia destacava de p, junto claridade da
vidraa. Ele ps o xale-manta a um canto como costumava, e vindo para ela que
ficara imvel, disse-lhe, esfregando muito as mos:
- L recebi a cartinha, menina Amlia.

- Eu mandei-a pela Rua logo pela manh para o pilhar em casa - disse ela
imediatamente com as faces a arder.
- Eu ia para o cartrio, at j ia na escada... Haviam de ser nove horas...
- Haviam de ser... - disse ela.
Calaram-se, muito perturbados. Ele ento tomou-lhe delicadamente os pulsos, e
baixo:
- Ento sempre quer?
- Quero, murmurou Amlia.
- E o mais depressa possvel, hem?
- Pois sim...
Ele suspirou, muito feliz.
- Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem, dizia. E as
suas mos, com
presses temas, iam-se apoderando dos braos dela, dos pulsos aos cotovelos.
- A mam diz que podemos viver juntos, disse ela, esforando-se por falar
tranqilamente.
- Est claro, e eu vou mandar fazer lenis, acudiu ele, todo alterado.
Atraiu-a ento a si, subitamente, beijou-lhe os lbios; ela teve um soluozinho,
abandonou-se-lhe
entre os braos, toda fraca, toda lnguida.
- Oh filha! murmurava o escrevente.
Mas os sapatos da me rangeram na escada, e Amlia foi vivamente para o
aparador acender o
candeeiro.
A S. Joaneira parou porta; e para dar a sua primeira aprovao maternal, disse,
com bonomia: - Ento vocs esto aqui s escuras, filhos?
Foi o cnego Dias que participou ao padre Amaro o casamento de Amlia, uma
manh na S.
Falou no ''a propsito do enlace'', e acrescentou:
- Eu estimo, porque a contento da rapariga, e um descanso para a pobre

velha...
- Est claro, est claro... - murmurou Amaro, que se fizera muito branco.
O cnego pigarreou grosso, e ajuntou:
- E voc agora aparea por l, agora est tudo na ordem... A patifaria do jornal
isso pertence
histria... O que l vai, l vai!
- Est claro, est claro... - rosnou Amaro. Traou bruscamente a capa, saiu da
igreja.
Ia indignado; e continha-se, para no praguejar alto, pelas ruas. esquina da
viela das Sousas
quase esbarrou com Natrio, que o agarrou, logo, pela manga, para lhe soprar ao
ouvido: - Ainda no sei nada!
- De qu?
- Do liberal, do Comunicado. Mas trabalho, trabalho!
Amaro, que ansiava por desabafar, disse logo:
- Ento ouviu a novidade? O casamento de Amlia... Que lhe parece?
- Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego... Foi o
doutor
Godinho... E outro que tal!... Veja voc esta corja. O doutor Godinho do jornal s
bulhas com o governo civil, e o governo civil a atirar postas aos afilhados do
doutor Godinho. V l entend-los! Isto um pas de biltres!
- Diz que h grande alegro na casa da S. Joaneira! - disse o proco, com um
azedume negro.
- Que se divirtam! Eu no tenho tempo de l ir... Eu no tenho tempo para
nada!... Eu c ando no meu fito, saber quem o liberal e escach-lo! No posso
ver esta gente que leva a chicotada, coa-se, e curva a orelha. Eu c no! eu
guardo-as! - E, com uma contrao de rancor, que lhe curvou os dedos em garra,
e lhe encolheu o peito magro, disse por entre os dentes cerrados: - Eu, quando
odeio, odeio bem!

Esteve um momento calado, gozando o sabor do seu fel.


70
- Voc se for Rua da Misericrdia d l os parabns a essa gente... - E
acrescentou com os olhinhos em Amaro: - O palerma do escrevente leva a
rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!
- At vista! exclamou bruscamente Amaro, abalando pela rua furioso.
Depois daquele terrvel domingo em que aparecera o Comunicado, o padre
Amaro, ao principio, muito egoistamente, apenas se preocupara com as
conseqncias - "conseqncias fatais, Santo Deus!" - que lhe podia trazer o
escndalo. Hem! se pela cidade se espalhasse que era ele o padre ajanotado que o
liberal apostrofava! Viveu dois dias aterrado, tremendo de ver aparecer o padre
Saldanha, com a sua cara ameninada e voz melflua, a dizer-lhe "que sua
excelncia o senhor chantre reclamava a sua presena"! Passava j o tempo
preparando explicaes, respostas hbeis, lisonjas a sua excelncia. - Mas
quando viu que, apesar da violncia do artigo, sua excelncia parecia disposto "a
fazer a vista grossa", ocupou- se ento, mais tranqilo, dos interesses do seu
amor to violentamente perturbados. O medo tornava-o astucioso; e decidiu no
voltar algum tempo Rua da Misericrdia.
- Deixar passar o aguaceiro, pensou.
Ao fim de quinze dias, trs semanas, quando o artigo estivesse esquecido,
apareceria de novo em casa da S. Joaneira: deixaria ver bem rapariga que a
adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as conversazinhas baixas,
os lugarzinhos chegados ao quino; depois, pela D. Maria da Assuno, pela D.
Josefa Dias, obteria que Amlia deixasse o padre Silvrio e se confessasse a ele:
poderiam ento entender-se, no segredo do confessionrio: combinariam uma
conduta discreta, encontros cautelosos aqui e alm, cartinhas pela criada: e
aquele amor assim conduzido, com prudenciazinha, no teria o perigo de
aparecer uma manh anunciado no peridico! E regozijava-se j da habilidade
desta combinao, quando lhe vinha o grande choque - casava-se a rapariga!

Depois dos primeiros desesperos, desabafos em patadas no soalho e blasfmias


de que pedia logo perdo a Nosso Senhor Jesus Cristo, quis serenar, estabelecer a
razo das coisas. Aonde o levava aquela paixo? Ao escndalo. E assim, casada
ela, cada um entrava no seu destino legitimo e sensato - ela na sua famlia, ele na
sua parquia. Depois, quando se encontrassem, um cumprimento amvel; e ele
poderia passear a cidade com a sua cabea bem direita, sem medo dos apartes da
Arcada, das insinuaes da gazeta, das severidades de sua excelncia e das
picadinhas da conscincia! E a sua vida seria feliz. - No, por Deus! a sua vida no
poderia ser feliz sem ela! Tirado sua existncia aquele interesse das visitas
Rua da Misericrdia, os apertozinhos de mo, a esperana de delicias melhores que lhe restava a ele? Vegetar, como um dos tortulhos nos cantos midos da S! E
ela, ela que o entontecera com os seus olhinhos e as suas maneirinhas, voltavalhe as costas mal lhe aparecia outro, bom para marido, com 25$000 por ms!
Todos aqueles suspiros, aquelas mudanas de cor - chalaa! Mangara com o
senhor proco!
O que a odiava! - menos que ao outro porm, o outro que triunfava porque era
um homem, tinha a sua liberdade, o seu cabelo todo, o seu bigode, um brao livre
para lhe dar na rua! Repastava ento a imaginao rancorosamente nas vises de
felicidade do escrevente: via-o trazendo-ada igreja triunfantemente; via-o
beijando-lhe o pescoo e o peito... E a estas idias dava patadas furiosas no
soalho - que assustavam a Vicncia na cozinha
Depois procurava sossegar, retomar a direo das suas faculdades, aplic-las
todas a achar uma vingana, uma boa vingana! E voltava ento o antigo
desespero de no viver no tempo da Inquisio, e com uma denncia de irreligio
ou de feitiaria, mand-los ambos para um crcere. Ah! nesse tempo um padre
gozava! Mas agora, com os senhores liberais, tinha de ver aquele miservel
escrevente a seis vintns por dia apoderar-se lhe da rapariga - e ele, sacerdote
instrudo, que podia ser bispo, que podia ser papa, tinha de vergar os ombros e
ruminar solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldies de Deus tinham
algum valor - malditos fossem eles! Queria v-los cheios de filhos, sem po na

prateleira, com o ltimo cobertor empenhado, ressequidos de fome, injuriandose, - e ele a rir-se, ele a regalar-se!...

Na segunda-feira no se conteve, foi Rua da Misericrdia. A S. Joaneira estava


embaixo na saleta com o cnego Dias. E apenas viu Amaro:
- Oh! senhor proco, bem aparecido! Estava a falar em V. Sa ! J estranhava no o
vermos, agora que h alegria em casa.
- J sei, j sei, murmurou Amaro plido.
- Alguma vez havia de ser, disse o cnego jovialmente. Deus os faa felizes e lhes
d poucos filhos, que a carne est cara.
Amaro sorriu - escutando em cima o piano.
Era Amlia que tocava como outrora a valsa dos Dois Mundos; e Joo Eduardo,
muito chegado a ela, voltava as folhas da msica.
71

- Quem entrou, Rua? gritou ela, sentindo os passos da rapariga nas escadas.
- O Sr. padre Amaro.
Um fluxo de sangue abrasou-lhe o rosto - e o corao batia-lhe to forte, que
ficou um momento
com os dedos imveis sobre e teclado.
- No se precisava c do Sr. padre Amaro, rosnou Joo Eduardo por entre dentes.
Amlia mordeu o beio. Teve dio ao escrevente: num instante repugnou-lhe a
sua voz, os seus
modos, a sua figura de p junto dela: pensou com deleite, como depois de casada
( que tinha de casar) se confessaria toda ao padre Amaro, e no deixaria de o

amar! No sentia naquele momento escrpulos; e quase desejava que o


escrevente lhe visse no rosto a paixo que a revolvia.
- Credo, criatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para l, que nem me
deixa os braos livres para tocar!
Terminou bruscamente a valsa dos Dois Mundos, comeou a cantar o Adeus: Ai!
adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado!
A sua voz elevava-se, com uma modulao ardente, - dirigindo o canto, atravs
do soalho, ao corao do proco, embaixo.
E o proco, com a sua bengala entre os joelhos, sentado no canap, devorava
todos os tons da voz dela - enquanto a S. Joaneira tagarelava, contando as peas
de algodo que comprara para lenis, os arranjos que ia fazer no quarto dos
noivos, e as vantagens de viverem juntos...
- Uma felicidade por a alm, interrompeu o cnego erguendo-se pesadamente.
E vamos l para cima, que isto de noivos no se querem ss...
- Ah, l nisso, disse a S. Joaneira rindo, fio-me nele, que um homem de bem s
direitas.
Amaro, ao subir a escada, tremia - e, mal entrou na sala, o rosto de Amlia,
alumiado pelas luzes do piano, deu-lhe um deslumbramento, como se as
vsperas do noivado a tivessem embelezado, e a separao lha tornasse mais
apetitosa. Foi dar-lhe gravemente um aperto de mo, outro ao escrevente, disse
baixo, sem os olhar:
- Os meus parabns... Os meus parabns...
Voltou as costas, e foi conversar com o cnego que se enterrara na sua poltrona,
queixando-se de enfastiamento e reclamando o ch.

Amlia ficara como abstrata, correndo inconscientemente os dedos pelo teclado.


Aquele modo do padre Amaro confirmava a sua idia: queria a todo o custo
descartar-se dela, o ingrato! fazia "como se nada tivesse havido", o vilo! Na sua
cobardia de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal, da Arcada, de tudo
- sacudia-a da sua imaginao, do seu corao, da sua vida como se sacode um
inseto que tem peonha!... Ento, para o enraivecer, comeou a cochichar
ternamente com o escrevente; roava-se lhe pelo ombro, rendida, com risinhos,
segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma pea a quatro mos; depois
ela beliscou-o, eledeu um gritinho exagerado. - E a S. Joaneira contemplava-os
babosa, enquanto o cnego dormitava j, e o padre Amaro, abandonado a um
canto como outrora o escrevente, ia folheando o velho lbum.
Mas um brusco repique da campainha veio sobressalt-los todos: passos rpidos
galgaram a escada, pararam embaixo na saleta; e a Rua apareceu dizendo "que
era o Sr, padre Natrio, que no desejava subir, e queria dar uma palavra ao
senhor cnego".
- Fracas horas para embaixadas, rosnou o cnego, arrancando-se com custo ao
fundo confortvel da poltrona.
Amlia fechou logo o piano - e a S. Joaneira pousando a meia foi em bicos de ps
escutar ao alto da escada: fora ventava forte, e para os lados da Praa afastava-se
o toque de retreta.
Enfim a voz do cnego chamou, de baixo, da porta da saleta:
- Amaro?
- Padre-mestre?
- Venha c, homem. E diga senhora que pode vir tambm.
A S. Joaneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre Natrio
enfim
descobrira o liberal!
A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e na parede,
num velho

painel muito escuro - que ultimamente o cnego dera S. Joaneira - destacava


uma face lvida de monge e um osso frontal de caveira.
O cnego Dias acomodara-se ao canto do canap, sorvendo refletidamente a
pitada: e Natrio, que se agitava pela sala, exclamou logo:
72
- Boas noites, senhora! Ol, Amaro! Trago novidades!... No quis subir porque
imaginei que estaria o escrevente, e estas coisas so c para ns. Estava a
comear a dizer ao colega Dias... Tive l em casa o padre Saldanha. Temo-las
boas!
O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, j
inquieto, perguntou: - Coisa que nos toca?
Natrio comeou com solenidade erguendo alto o brao:
- Primo: o colega Brito mudado da freguesia de Amor para ao p de Alcobaa,
para a serra, para
o inferno...
- Que me diz? exclamou a S. Joaneira.
- Obras do liberal, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe tempo a
meditar o
Comunicado do Distrito, mas por fim saiu-se! O pobre Brito l vai
esfogueteado!...
- Sempre o que se dizia da mulher do regedor, murmurou a boa senhora.
- Ol! interrompeu severamente o cnego. Ento, senhora, ento! Isto aqui no
casa de
murmurao!... Siga com o seu recado, colega Natrio.
- Secundo, continuou Natrio: o que eu ia dizer ao colega Dias... O senhor
chantre, em vista do
Comunicado e de outros ataques da imprensa, est decidido a "reformar os
costumes do clero diocesano", palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam

sumamente os concilibulos de eclesisticos e de senhoras... Que quer saber o


que isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Enfim, palavras
textuais de sua excelncia - est decidido a limpar as cavalarias de Augias!... - o
que quer dizer em bom portugus, minha senhora, que vai andar tudo numa
roda-viva.
Houve uma pausa consternada. E Natrio, plantado no meio da saleta com as
mos enterradas nas algibeiras, exclamou:
- Que lhes parece esta ltima hora, hem?
O cnego ergueu-se pachorrentamente:
- Olhe, colega, disse, entre mortos e feridos h-de escapar algum. E a senhora
no se fique ai
com essa cara de Mater dolorosa, e mande servir o ch, que o importante.
- Eu l disse ao padre Saldanha... - comeou Natrio perorando.
Mas o cnego interrompeu-o com fora:
- O padre Saldanha um patarata!... Vamos ns s torradinhas, e l em cima,
diante dos rapazes,
caluda.
O ch foi silencioso. O cnego, a cada bocado de torrada, respirava afrontado,
franzia muito o
sobrolho: a S. Joaneira, depois de falar da D. Maria da Assuno que estava mal do
catarro, ficou toda murcha, com a testa sobre o punho. Natrio, a grandes
passadas, fazia uma ventania na sala com as abas do casaco.
- E quando vem essa boda? exclamou ele, estacando subitamente diante de
Amlia e do escrevente, que tomavam o ch sobre o piano,
- Um dia cedo, respondeu ela sorrindo.
Amaro ento ergueu-se devagar, e tirando o seu cebolo:
- So horas de me ir chegando Rua das Sousas, minhas senhoras, disse com
uma voz

desalentada.
Mas a S. Joaneira no consentiu. Credo, estavam todos monos como se
estivessem de psames!...
Que fizessem um quino para espairecer... - O cnego porm, saindo do seu
torpor, disse com severidade: - Est a senhora muito enganada, ningum est
mono. No h razes seno para estar alegre.
Pois no verdade, senhor noivo?
Joo Eduardo mexeu-se, sorriu:
- Eu c por mim, senhor cnego, no tenho razo seno para estar feliz.
- Pois est claro, disse o cnego. E agora Deus lhes d boas-noites a todos, que
eu vou quinar para vale de lenis. E o Amaro tambm.
Amaro foi apertar silenciosamente a mo de Amlia, - e os trs padres desceram
calados.
Na saleta a vela ainda ardia com um morro. O cnego entrou a buscar o seu
guarda-chuva; e ento, chamando os outros, cerrando devagarinho a porta,
disse-lhes baixo:
- Eu, colegas, no quis assustar h pouco a pobre senhora, mas essas coisas do
chantre, esses falatrios... o diabo!
- ter cautelinha, meninos! aconselhou Natrio, abafando a voz.
- srio, srio, murmurou lugubremente o padre Amaro.
Estavam de p no meio da saleta. Fora o vento uivava: a luz da vela agitada fazia
alternadamente
destacar e reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira: e em cima
Amlia cantarolava a Chiquita.
73

Amaro recordava outras noites felizes em que ele, triunfante e sem cuidados,
fazia rir as senhoras, - e Amlia, gorjeando Ai chiquita que si, revirava-lhe
olhares rendidos...
- Eu, disse o cnego, os colegas sabem, tenho que comer e beber, no me
importa... Mas necessrio manter a honra da classe!
- E no carece dvida, acrescentou Natrio, que se h outro artigo e mais
falatrios, estala com certeza o raio...
- Olha o padre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!
Em cima decerto houve alguma graa, porque sentiram as risadas do escrevente.
Amaro rosnou com rancor:
- Grande galhofa l em cima!...
Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natrio duma
chuva miudinha. - Olha que noite! exclamou furioso.
S o cnego tinha guarda-chuva: e abrindo-o devagar:
- Pois meninos, no h que ver, estamos em calas pardas...
Da janela de cima alumiada, saiam os sons do piano, nos acompanhamentos da
Chiquita. O
cnego soprava, agarrando fortemente o guarda- chuva contra o vento; ao lado
Natrio, cheio de fel, rilhava os dentes, encolhido no seu casaco; Amaro
caminhava de cabea cada, num abatimento de derrota; e enquanto os trs
padres, assim agachados sob o guarda-chuva do cnego, iam chapinhando as
poas pela rua tenebrosa, por trs a chuva penetrante e sonora ia-os
ironicamente fustigando!
XI
Da a dias, os freqentadores da botica, na Praa, viram com espanto o padre
Natrio e o doutor Godinho conversando em harmonia, porta da loja de
ferragens do Guedes. O recebedor, - que era escutado com deferncia em
questes de poltica estrangeira, - observou-os com ateno atravs da porta

vidrada da farmcia, e declarou com um tom profundo "que no se admiraria


mais se visse Vtor Manuel e Pio IX passearem de brao dado"!
O cirurgio da Cmara porm no estranhava aquele "comrcio de amizade". Segundo ele, o ltimo artigo da Voz do Distrito, evidentemente escrito pelo
doutor Godinho (era o seu estilo incisivo, cheio de lgica, atulhado de erudio!),
mostrava que a gente da Maia se queria ir aproximando da gente da Misericrdia.
O doutor Godinho (na expresso do cirurgio da Cmara) fazia tagats ao governo
civil e ao clero diocesano: a ltima frase do artigo era significativa - "No
seremos ns que regatearemos ao clero os meios de exercer proficuamente a sua
divina misso"!
A verdade era (como observou um indivduo obeso, o amigo Pimenta), que se
no havia ainda paz j havia negociaes - porque, na vspera ele vira com
aqueles seus olhos que a terra tinha de comer, o padre Natrio saindo de manh
muito cedo da redao da Voz do Distrito!
- Oh amigo Pimenta, essa fabricada!
O amigo Pimenta ergueu-se com majestade, deu um puxo grave aos cs das
calas, e ia indignar-se - quando o recebedor acudiu:
- No, no, o amigo Pimenta tem razo. A verdade que eu noutro dia vi o patife
do Agostinho fazer grande barretada ao padre Natrio. E que o Natrio traz
intriga na mo, isso seguro! Eu gosto de observar as pessoas... Pois senhores, o
Natrio que nunca aparecia aqui na Arcada, agora vejo-o sempre a com o nariz
pelas lojas... Depois a grande amizade com o padre Silvrio... Ho-de reparar que
so ambos certos a na Praa s Ave-Marias... E negcio com a gente do doutor
Godinho... O padre Silvrio o confessor da mulher do Godinho... Umas coisas
pegam com as outras!
Era muito comentada, com efeito, a nova amizade do padre Natrio com o padre
Silvrio. Havia cinco anos, tinha ocorrido na sacristia da S, entre os dois
eclesisticos, uma questo escandalosa: Natrio correra at de guarda-chuva
erguido para o padre Silvrio, quando o bom cnego Sarmento, banhado em

lgrimas, o reteve pela batina, gritando: "Oh colega, que a perdio da religio!
". Desde ento, Natrio e Silvrio no falavam - com desgosto de Silvrio, um
bonacheiro, duma obesidade hidrpica, que, segundo diziam as suas
confessadas, "era todo afeio e perdo". Mas Natrio, seco e pequeno, tinha
tenacidade no rancor. Quando o Sr. chantre Valadares comeou a governar o
bispado, chamou-os, e, depois de lhes lembrar com eloqncia a necessidade "de
manter a paz na Igreja", de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e Plux,
empurrou Natrio com uma brandura grave para os braos do padre Silvrio - que
o teve um momento sepultado na vastido do peito e do estmago, murmurando
todo comovido:
- Todos somos irmos, todos somos irmos! 74
Mas Natrio, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o papelo, as
dobras que tomava, conservou com o padre Silvrio um tom amuado; na S ou na
rua, resvalando junto dele, com um jeito brusco do pescoo, rosnava apenas: "Sr.
padre Silvrio, s ordens!"
Havia porm duas semanas, uma tarde de chuva Natrio fizera repentinamente
uma visita ao padre Silvrio - sob pretexto que "o pilhara ali uma pancada de
gua, e que se vinha recolher um instante".
- E tambm, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dor de ouvidos, que
uma das minhas sobrinhas, coitada, est como doida, colega!
O bom Silvrio, esquecendo decerto que ainda nessa manh vira as duas
sobrinhas de Natrio ss e satisfeitas como dois pardais, apressou-se a escrever a
receita, todo feliz de utilizar os seus queridos estudos de medicina caseira; e
murmurava, banhado de riso:
- Ora que alegria, colega, v-lo aqui de novo nesta sua casa!
A reconciliao foi to pblica - que o cunhado do Sr. baro de Via Clara, bacharel
de grandes dotes poticos, lhe dedicou uma daquelas stiras que ele intitulava
Ferres, que iam manuscritas de casa em casa, muito saboreadas e muito

temidas; e chamara composio, tendo presente decerto a figura dos dois


sacerdotes: Famosa Reconciliao do Macaco e da Baleia! Era com efeito
freqente, agora, ver a pequena figura de Natrio gesticulando e saltitando ao
lado do vulto enorme e pachorrento do padre Silvrio.
Uma manh mesmo os empregados da administrao (que era ento no Largo da
S) gozaram muito, observando da sacada os dois padres que passeavam no
terrao ao tpido sol de Maio. O senhor administrador, - que passava as horas da
repartio namorando com um binculo, por trs da vidraa do seu gabinete, a
esposa do Teles, alfaiate - comeara subitamente a dar gargalhadas janela: o
escrivo Borges correu logo, de pena na mo, varanda, a ver de que ria sua
senhoria, e, muito divertido, a fungar, chamou pressa o Artur Couceiro que
estava copiando, para estudar guitarra, uma cano da Grinalda; o amanuense
Pires, severo e digno, aproximou-se, carregando para a orelha o seu barretinho
de seda, com horror s correntes de ar; e em grupo, de olho arregalado,
observavam os dois padres, que tinham parado esquina da igreja. Natrio
parecia excitado; procurava decerto persuadir, abalar o padre Silvrio; e em bicos
de ps, plantado diante dele, agitava freneticamente as mos muito magras.
Depois, subitamente, apoderou-se-lhe do brao, arrastou-o ao comprido do
terrao lajeado: ao fundo parou, recuou, fez um gesto largo e desolado, como
atestando a perdio possvel dele, da S ao lado, da cidade, do universo em
redor; o bom Silvrio, com os olhos muito abertos, parecia apavorado. E
recomearam a passear. Mas Natrio exaltava-se; dava recues bruscos, atirava
estocadas com um longo dedo ao vasto estmago de Silvrio, batia patadas
furiosas nas lajes polidas; e de repente, de braos pendentes, mostrava-se
acabrunhado. Ento o bom Silvrio falou um momento com amo espalmada
sobre o peito; imediatamente, a face biliosa de Natrio iluminou-se; pulou, bateu
no ombro do colega palmadinhas de muito jbilo, - e os dois sacerdotes entraram
na S, chegados e rindo baixinho.
- Que patuscos! disse o escrivo Borges, que detestava sotainas.
- Aquilo tudo a respeito do jornal, disse Artur Couceiro, vindo retomar o seu
trabalho lrico. O Natrio no sossega enquanto no souber quem escreveu o

Comunicado; disse-o ele em casa da S. Joaneira... E a coisa pelo Silvrio vai bem,
que o confessor da mulher do Godinho.
- Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou pachorrentamente o ofcio que
compunha, remetendo para Alcobaa um preso - que ao fundo da saleta, entre
dois soldados, esperava sobre um banco, prostrado e embrutecido, com uma face
de fome e as mos em ferros.

Dai a dias tinha havido na S o Ofcio de corpo presente pelo rico proprietrio
Morais, que morrera dum aneurisma, e a quem sua esposa (em penitncia
decerto dos desgostos que lhe dera com a sua afeio desordenada por tenentes
de infantaria), estava fazendo, como se disse, "exquias de pessoa real". - Amaro
desvestira-se, e na sacristia, luz dum velho candeeiro de lato, escrevia
assentos atrasados, quando a porta de carvalho rangeu, e a voz agitada de Natrio
disse:
- Amaro, voc est a?
- Que temos?
O padre Natrio fechou a porta, e atirando os braos para o ar:
- Grande novidade, o escrevente!
- Que escrevente?
- O Joo Eduardo! ele! o liberal! Foi ele que escreveu o Comunicado! - Que me
diz voc? fez Amaro atnito.
75
- Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escrito pela letra dele. O que se chama
ver! Cinco tiras de papel!
Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natrio.
- Custou, exclamou Natrio. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de papel! E
quer escrever outro! O Sr. Joo Eduardo! O nosso rico amigo Sr. Joo Eduardo!

- Voc est certo disso?


- Se estou certo! Estou a dizer-lhe que vi, homem!
- E como soube voc, Natrio?
Natrio dobrou-se; e com a cabea enterrada nos ombros, arrastando as palavras:
- Ah, colega, l isso... Os comos e os porqus... Voc compreende... Sigillus
magnus!
E com uma voz aguda de triunfo, a largos passos pela sacristia:
- Mas ainda isto no nada! o Sr. Eduardo, que ns vamos ali na casa da S.
Joaneira, to bom
mocinho, um patife antigo. o intimo do Agostinho, o bandido da Voz do
Distrito! Est metido na redao at altas horas da noite... Uma orgia, vinhaa,
mulheres... E gaba-se de ser ateu... H seis anos que se no confessa... Chamanos a canalha cannica... republicano... Uma fera, meu caro senhor, uma fera!
Amaro, escutando Natrio, arrumava atarantadamente, com as mos trmulas,
papis no gaveto da escrivaninha.
- E agora?... perguntou.
- Agora? exclamou Natrio. Agora esmag-lo!
Amaro fechou o gaveto, e, muito nervoso, passando o leno pelos lbios secos:
- Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga, coitada... Casar agora com um
homem desses... Um
perdido!
Os dois padres, ento, olharam-se fixamente. No silncio, o velho relgio da
sacristia punha o
seu tiquetaque plangente. Natrio tirou da algibeira dos cales a caixa do rap, e
com os olhos ainda fixos em Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo
friamente:
- Desmanchar-lhe o casamentozinho, hem?
- Voc acha? perguntou sofregamente Amaro.

- Caro colega, uma questo de conscincia... Para mim era uma questo de
dever! No se pode
deixar casar a pobre pequena com um brejeiro, um pedreiro-livre, um ateu...
- Com efeito! com efeito! murmurava Amaro.
- Vem a calhar, hem? fez Natrio; e sorveu com gozo a pitada. Mas o sacristo
entrou; eram as
horas de fechar a igreja; vinha perguntar a suas senhorias se demoravam. - Um
instante, Sr. Domingos.
E, enquanto o sacristo corria os pesados ferrolhos da porta interior do ptio, os
dois padres muito chegados falavam baixo.
- Voc vai ter com a S. Joaneira, dizia Natrio. No, escute, melhor que lhe fale
o Dias; o Dias que deve falar S. Joaneira. Vamos pelo seguro. Voc fale
pequena e diga-lhe simplesmente que o ponha fora de casa! - E ao ouvido de
Amaro: - Diga rapariga que ele vive ai de casa e pucarinho com uma
desavergonhada!
- Homem! disse Amaro recuando, no sei se isso verdade!
- H-de ser. Ele capaz de tudo. E depois um meio de levar a pequena.
E foram descendo a igreja atrs do sacristo, que fazia tilintar o seu molho de
chaves,
pigarreando grosso.
Nas capelas pendiam as armaes de paninho negro agaloadas de prata; ao
centro, entre quatro
fortes tocheiras de grosso morro, estava a essa, com o largo pano de veludilho
cobrindo o caixo do Morais, recaindo em pregas franjadas; cabeceira tinha
uma larga coroa de perptuas; e aos ps pendia, dum grande lao de fita
escarlate, o seu hbito de cavaleiro de Cristo.
O padre Natrio ento parou; e tomando o brao de Amaro, com satisfao: - E
depois, meu caro amigo, tenho outra preparada ao cavalheiro...

- O qu?
- Cortar-lhe os vveres!
- Cortar-lhe os vveres?
- O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro amanuense,
hem? Pois vou-lhe desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que dos meus,
homem de boas idias, vai p-lo fora do cartrio... E que escreva ento
Comunicados!
Amaro teve horror quela intriga rancorosa:
- Deus me perdoe, Natrio, mas isso perder o rapaz.
76
- Enquanto o no vir por essas ruas a pedir um bocado de po, no o largo, padre
Amaro, no o largo!
- Oh, Natrio! oh, colega! isso de pouca caridade... Isso no de cristo... E
ento aqui que Deus est a ouvi-lo...
- No lhe d isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, no a
resmungar Padre- Nossos. Para mpios no h caridade! A Inquisio atacava-os
pelo fogo, no me parece mau atac-los pela fome. Tudo permitido a quem
serve uma causa santa... Que se no metesse comigo!
Iam a sair; mas Natrio deitou um olhar para o caixo do morto, e apontando com
o guarda-chuva:
- Quem est ali?
- O Morais, disse Amaro.
- O gordo, picado das bexigas?
- Sim.
- Boa besta!
E depois de um silncio:
- Foram os Ofcios do Morais... Eu nem dei por isso, ocupado c na minha
campanha... E a viva

fica rica. generosa, presenteadora... Quem a confessa o Silvrio, hem? Tem


as melhores pechinchas de Leiria, aquele elefante!
Saram. A botica do Carlos estava fechada, o cu muito escuro.
No largo, Natrio parou:
- Resumindo: o Dias fala S. Joaneira, e voc fala pequena. Eu por mim me
entenderei com a
gente do governo civil e com o Nunes Ferral. Encarreguem-se vocs do
casamento, que eu me encarrego do emprego! - E batendo no ombro do proco
jovialmente: - o que se pode dizer atac-lo pelo corao e pelo estmago! E
adeusinho, que as pequenas esto espera para a ceia! Coitadita, a Rosa tem
estado com um defluxo!... fraquita, aquela rapariga, d-me muito cuidado...
Que eu em a vendo murcha at perco logo o sono. Que quer voc? Quando se tem
bom corao... At amanh, Amaro.
- At amanh, Natrio.
E os dois padres separaram-se, quando davam nove horas na S.

Amaro entrou em casa ainda um pouco trmulo, mas muito decidido, muito feliz:
tinha um dever delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos graves pela casa,
para se compenetrar bem dessa responsabilidade estimada:
- do meu dever! do meu dever!
Como cristo, como proco, como amigo da S. Joaneira, o seu dever era procurar
Amlia, e, com simplicidade, sem paixo interessada, contar- lhe que fora Joo
Eduardo, o seu noivo, que escrevera o Comunicado.
Foi ele! Difamou os ntimos da casa, sacerdotes de cincia e de posio;
desacreditou-a a ela; passa as noites em deboche na pocilga do Agostinho;
insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligio; h seis anos que se no
confessa! Como diz o colega Natrio, uma fera! Pobre menina! No, no podia
casar com um homem que lhe impediria a vida perfeita, lhe achincalharia as boas

crenas! No a deixaria rezar, nem jejuar, nem procurar no confessor a direo


salutar, e, como diz o santo padre Crisstomo, "amadureceria a sua alma para o
inferno"! Ele no era seu pai, nem seu tutor; mas era proco, era pastor: - e se a
no subtrasse quele destino hertico pelos seus conselhos graves, pela
influncia da me e das amigas, - seria como aquele que tem a guarda dum
rebanho numa herdade, e abre indignamente a cancela ao lobo! No, a
Ameliazinha no havia de casar com o ateu!
E o seu corao ento batia forte sob a efuso daquela esperana. No, o outro
no a possuiria! Quando viesse a apoderar-se legalmentedaquela cinta, daqueles
peitos, daqueles olhos, daquela Ameliazinha - ele, proco, l estava para dizer
alto: Para trs, seu canalha! isto aqui de Deus!
E tomaria ento bem cuidado em guiar a pequena salvao! Agora o
Comunicado estava esquecido, o senhor chantre tranqilizado: da a dias poderia
voltar sem susto Rua da Misericrdia, recomear os deliciosos seres apoderar-se de novo daquela alma, form-la para o Paraso...
E aquilo, Jesus! no era uma intriga para a arrancar ao noivo: os seus motivos (e
dizia-o alto, para se convencer melhor) eram muito retos, muito puros: aquilo
era um trabalho santo para a arrancar ao Inferno: ele no a queira para si, queriaa para Deus!... Casualmente, sim, os seus interesses de amante coincidiam com
os seus deveres de sacerdote. Mas se ela fosse vesga e feia e tola, ele iria
igualmente Rua da Misericrdia, em servio do Cu, desmascarar o Sr. Joo
Eduardo, difamador e ateu!
E, sossegado por esta argumentao, deitou-se tranqilamente.
77
Mas toda a noite sonhou com Amlia. Tinha fugido com ela: e ia-a levando por
uma estrada que conduzia ao Cu! O diabo perseguia-o; ele via-o, com as feies
de Joo Eduardo, soprando e rasgando com os cornos os delicados seios das
nuvens. E ele escondia Amlia no seu capote de padre, devorando-a por baixo de
beijos! Mas a estrada do Cu no findava. - "Onde a porta do paraso?"

perguntava ele a anjos de cabeleiras de ouro que passavam, num doce rumor de
asas, levando almas nos braos. E todos lhe respondiam: - "Na Rua da
Misericrdia, na Rua da Misericrdia nmero nove!" Amaro sentia-se perdido;
um vasto ter cor de leite, penetrvel e macio como uma penugem de ave,
envolvia-o; e ele procurava debalde uma tabuleta de hospedaria! Por vezes
resvalava junto dele um globo reluzente de onde saa o rumor duma criao; ou
um esquadro de arcanjos, com couraas de diamantes, erguendo alto espadas de
fogo, galopavam num ritmo nobre...
Amlia tinha fome, tinha frio. "Pacincia, pacincia, meu amor!" dizia-lhe ele.
Caminhando, vieram a encontrar uma figura branca, que tinha na mo uma
palma verde. "Onde est Deus, nosso pai?" perguntou-lhe Amaro, com Amlia
conchegada ao peito. A figura disse: - "Eu fui um confessor, e sou um santo: os
sculos passam, e imutavelmente, sempiternamente sustento na mo esta
palma e banha-me um xtase igual! Nenhuma tinta modifica esta luz para
sempre branca; nenhuma sensao sacode o meu ser para sempre imaculado; e
imobilizado na bem-aventurana, sinto a monotonia do Cu pesar-me como
uma capa de bronze. Oh! pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas
diferentes da Terra - ou bracejar, sob as variedades da dor, nas chamas do
purgatrio!"
Amaro murmurou: "Bem fazemos ns em pecar!" - Mas Amliadesfalecia
fatigada... "Durmamos, meu amor!" E, deitados, viam estrelas flutuando numa
poeirada como o joio sacudido vivamente do crivo. Ento nuvens comearam a
dispor-se em torno deles, em pregas de cortinados, dando um perfume de
sachets: Amaro pousou a sua mo sobre o peito de Amlia: um enleio muito doce
enervava-os: enlaaram-se, os seus lbios pegavam-se midos e quentes: - "Oh,
Ameliazinha! " murmurava ele. - "Amo- te, Amaro, amo-te! " suspirava ela. Mas de repente as nuvens afastaram- se como os cortinados dum leito; e Amaro
viu diante o diabo que os alcanara, e que, com as garras na cinta, esgaava a boca
numa risada muda. Com ele estava outro personagem: era velho como a
substncia; nos anis dos seus cabelos vegetavam florestas; a sua pupila tinha a
vastido azul dum oceano; e nos dedos abertos com que cofiava a barba

infindvel, caminhavam, como em estradas, filas de raas humanas. - "Aqui


esto os dois sujeitos", dizia-lhe o diabo retorcendo a cauda. E por trs Amaro via
aglomerarem-se legies de santos e de santas. Reconheceu S. Sebastio com as
suas setas cravadas; Santa Ceclia trazendo na mo o seu rgo; por entre eles
sentia balarem os rebanhos de S. Joo; e no meio erguia-se o bom gigante S.
Cristvo apoiado ao seu pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro no se
podia desenlaar de Amlia, que chorava muito baixo; os seus corpos estavam
sobrenaturalmente colados; e Amaro, aflito, via que as saias dela levantadas
descobriam os seus joelhos brancos. - "Aqui estio os dois sujeitos", dizia o diabo
ao velho personagem "e repare o meu prezado amigo, porque todos aqui somos
apreciadores, que a pequena tem bonitas pernas! " Santos vetustos alaram-se
sofregamente em bicos de ps, estendendo pescoos onde se viam cicatrizes de
martrios: e as onze mil virgens bateram o vo como pombas espavoridas! Ento
o personagem, esfregando as mos de onde se esfarelavam universos, disse
grave: "Fico inteirado, meu caro amigo, fico inteirado! Com que, senhor proco,
vai-se Rua da Misericrdia, arruina-se a felicidade do Sr. Joo Eduardo (um
cavalheiro), arranca-se a Ameliazinha mam, e vem-se saciar concupiscncias
reprimidas a um cantinho da Eternidade? Eu estou velho - e est rouca esta voz
que outrora to sabiamente discursava pelos vales. Mas pensa que me assombra
o Sr. conde de Ribamar, seu protetor, apesar de ser um pilar da Igreja e uma
coluna da Ordem? Fara era um grande rei - e eu afoguei-o, e os seus prncipes
cativos, os seus tesouros, os seus carros de guerra, e as manadas dos seus
escravos! Eu c sou assim! E se os senhores eclesisticos continuarem a
escandalizar Leiria - eu ainda sei queimar uma cidade como um papel intil, e
ainda me resta gua para dilvios!" E voltando-se para dois anjos armados de
espadas e lanas, o personagem bradou: "Chumbem uma grilheta aos ps do
padre, e levem-no ao abismo nmero sete!". E o diabo gania: "A esto as
conseqncias, Sr. padre Amaro!" Ele sentiu-se arrebatado de sobre o seio de
Amlia por mos de brasa; e ia lutar, bradar contra o juiz que o julgava - quando
um sol prodigioso que vinha nascendo do Oriente bateu no rosto do personagem,
e Amaro, com um grito, reconheceu o Padre Eterno!
Acordou banhado em suor. Um raio de sol entrava pela janela.


Nessa noite Joo Eduardo, indo da Praa para casa da S. Joaneira, ficou
assombrado, ao ver aparecer outra boca da rua, do lado da S, o Santssimo em
procisso.
78
E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas de mantu pela cabea, as
tochas faziam destacar opas de paninho escarlate; sob o plio os dourados da
estola do proco reluziam; uma campainha tocava adiante, s vidraas apareciam
luzes; - e na noite escura o sino da S repicava, sem descontinuar.
Joo Eduardo correu aterrado - e soube logo que era a extrema-uno
entrevada.
Tinham posto na escada um candeeiro de petrleo sobre uma cadeira. Os
serventes encostaram parede da rua os varais do plio, e o proco entrou. Joo
Eduardo, muito nervoso, subiu tambm: ia pensando que a morte da entrevada,
o luto retardariam o seu casamento; contrariava-o a presena do proco e a
influncia que ele adquiria naquele momento; e foi quase quezilado que
perguntou Rua na saleta:
- Ento como foi isto?
- Foi a pobre de Cristo que esta tarde comeou a esmorecer, o senhor doutor
veio, diz que estava a acabar e a senhora mandou pelos sacramentos.
Joo Eduardo, ento, julgou delicado ir assistir " cerimnia".
O quarto da velha era junto cozinha; e tinha naquele momento uma solenidade
lgubre. Sobre uma mesa coberta de toalha de folhos, estava um prato com cinco
bolinhas de algodo entre duas velas de cera. A cabea da entrevada, toda branca,
a sua face cor de cera mal se distinguiam do linho do travesseiro; tinha os olhos
estupidamente dilatados; e ia apanhando incessantemente com um gesto lento a
dobra do lenol bordado.

A S. Joaneira e Amlia rezavam ajoelhadas beira da cama; a Sra. D. Maria da


Assuno (que casualmente entrara, ao voltar da fazenda) ficara porta do
quarto aterrada, agachada sobre os calcanhares, murmurando Salve-Rainhas.
Joo Eduardo, sem rudo, dobrou o joelho junto dela.
O padre Amaro, curvado quase ao ouvido da entrevada, exortava-a a que se
abandonasse Misericrdia divina; mas vendo que ela no compreendia,
ajoelhou, recitou rapidamente o Misereatur; e no silncio, a sua voz erguendo-se
nas slabas latinas mais agudas, dava uma sensao de enterro que enternecia,
fazia soluar as duas senhoras. Depois ergueu-se, molhou o dedo nos santos
leos; murmurando as expresses penitentes do ritual ungiu os olhos, o peito, a
boca, as mos - que h dez anos s se moviam para chegar a escarradeira, e as
plantas dos ps que h dez anos s se aplicavam a buscar o calor da botija. E
depois de queimar as bolinhas de algodo midas de leo, ajoelhou-se, ficou
imvel, com os olhos postos no Brevirio.
Joo Eduardo voltou em pontas de ps sala, sentou-se no mocho do piano:
agora decerto, durante quatro ou cinco semanas, Amlia no tornaria a tocar... E
uma melancolia amoleceu-o, vendo no doce progresso do seu amor aquela brusca
interrupo da morte e dos seus cerimoniais.
A Sra. D. Maria entrou ento, toda transtornada daquela cena - e seguida de
Amlia que trazia os olhos muito vermelhos.
- Ah! ainda bem que aqui est, Joo Eduardo! disse logo a velha. Que quero que
me faa um favor, que acompanhar-me a casa... Estou toda a tremer... Estava
desprevenida, e com perdo de Deus seja dito, no posso ver gente na agonia...
Que ela, coitadinha, vai-se como um passarinho... E pecados no os tem... Olhe,
vamos pela Praa que mais perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas no
posso ficar... que me dava a dor... Ai! que desgosto... Que para ela at
melhor... Pois olhem, sinto- me a desfalecer...
Foi mesmo necessrio que Amlia a levasse a baixo, ao quarto da S. Joaneira, a
reconfort-la caridosamente com um clice de jeropiga.

- Ameliazinha, disse ento Joo Eduardo, se eu sou c necessrio para alguma


coisa...
- No, obrigada. Ela est por instantes, coitadinha...
- No te esqueas, filha, recomendou descendo a Sra. D. Maria da Assuno, pelhe as duas
velas bentas cabeceira... Alivia muito na agonia... E se tiver muitos arrancos,
pe outras duas apagadas, em cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!
porta, mal viu o plio, os homens com as tochas, apoderou-se do brao de Joo
Eduardo, colou-se toda a ele com terror - um pouco tambm com o acesso de
ternura que lhe dava sempre a jeropiga.

Amaro prometera voltar mais tarde, para "as acompanhar, como amigo, naquele
transe". E o cnego (que chegara, quando a procisso como o plio dobrava a
esquina para o lado da S), informado desta delicadeza do senhor proco,
declarou logo que visto que o colega Amaro vinha fazer a noitada, ele ia descansar
o corpo porque, Deus bem o sabia, aquelas comoes arrasavam-lhe a sade.
- E a senhora no havia de querer que eu apanhasse alguma, e me visse nos
mesmos assados... - Credo, senhor cnego! exclamou a S. Joaneira, nem diga
isso!...
79
- E comeou a choramingar, muito abalada.
- Pois ento boas noites, disse o cnego, e nada de afligir. Olhe, a pobre criatura,
alegria no a tinha: e como no tem pecados no lhe importa achar-se na
presena de Deus. Tudo bem considerado, senhora, uma pechincha! E
adeusinho, que me no estou a sentir bem...

Tambm a S. Joaneira no se sentia bem. O choque, logo depois do jantar, deralhe ameaas de enxaqueca: - e quando Amaro voltou, s onze, Amlia que fora
abrir a porta, disse-lhe, ao subir sala de jantar:
- O senhor proco desculpe... A mam veio-lhe a enxaqueca, coitada... Estava
que nem via... Deitou-se, ps gua sedativa e adormeceu...
- Ah! deix-la dormir!
Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabea virada para a parede; dos seus
beios abertos saa um gemido muito dbil e contnuo. Sobre a mesa agora, uma
grossa vela benta, de morro negro, erguia uma luz triste; e ao canto, transida de
medo, a Rua, segundo as recomendaes da S. Joaneira, ia rezando a coroa.
- O senhor doutor, disse Amlia baixo, diz que morre sem o sentir... Diz que hde gemer, gemer, e de repente acabar como um passarinho...
- Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente o padre Amaro.
Voltaram sala de jantar. Toda a casa estava silenciosa: fora ventava forte. Havia
muitas semanas que no se encontravam assim ss. Muito embaraado, Amaro
aproximou-se da janela: Amlia encostou-se ao aparador.
- Vamos ter uma noite de gua, disse o proco.
- E est frio, disse ela, encolhendo-se no xale. Eu tenho estado passada de
medo...
- Nunca viu morrer ningum?
- Nunca.
Calaram-se - ele imvel ao p da janela, ela encostada ao aparador, de olhos
baixos.
- Pois est frio, disse Amaro, com a voz alterada da perturbao que lhe ia dando
a presena dela
quela hora da noite.
- Na cozinha est a braseira acesa, disse Amlia. melhor irmos para l.
- melhor.

Foram. Amlia levou o candeeiro de lato: e Amaro, indo remexer com as tenazes
o brasido
vermelho, disse:
- H que tempo que eu no entro aqui na cozinha... Ainda tem os vasos com os
raminhos fora da
janela?
- Ainda, um craveiro...
Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da braseira. Amlia, inclinada para o
lume, sentia os olhos do padre Amaro devor-la silenciosamente. Ele ia falarlhe, decerto! Tinha as mos a tremer; no ousava mover- se, erguer as plpebras,
com medo que lhe rompessem as lgrimas; mas ansiava pelas suas palavras, ou
amargas ou doces...
Elas vieram enfim, muito graves.
- Menina Amlia, disse, eu no esperava poder assim falar-lhe a ss. Mas as
coisas arranjaram- se... decerto a vontade de Nosso Senhor! E depois, como as
suas maneiras mudaram tanto...
Ela voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho trmulo:
- Mas bem sabe por qu! exclamou quase chorando.
- Sei. Se no fosse aquele infame Comunicado, e as calnias... nada se tinha
passado, e a nossa
amizade seria a mesma, e tudo iria bem... justamente a esse respeito que eu lhe
quero falar.
Chegou a cadeira mais para junto dela, e muito suave, muito tranqilo:
- Lembra-se desse artigo em que todos os amigos da casa eram insultados? em
que eu era
arrastado pela rua da amargura? em que a menina mesma, a sua honra era
ofendida?... Lembra-se, hem? Sabe quem o escreveu?

- Quem? perguntou Amlia toda surpreendida.


- O Sr. Joo Eduardo! disse o proco muito tranqilamente cruzando os braos
diante dela.
- No pode ser!
Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho pelas saias para a fazer sentar;
e a sua voz
continuou paciente e suave:
- Oua. Sente-se. Foi ele que o escreveu. Soube ontem tudo. O Natrio viu o
original escrito pela
letra dele. Foi ele que descobriu. Por meios dignos decerto,.. e porque era a
vontade de Deus que a verdade aparecesse. Agora escute. A menina no conhece
esse homem. - Ento, baixo, contou-lhe o que sabia de Joo Eduardo, por
Natrio: as suas noitadas com o Agostinho, as suas injrias contra os padres, a
sua irreligio...
80
- Pergunte-lhe se ele se confessa h seis anos, e pea-lhe os bilhetes da
confisso!
Ela murmurava, com as mos cadas no regao:
- Jesus, Jesus...
- Eu ento entendi que como ntimo da casa, como proco, como cristo, como
seu amigo,
menina Amlia... porque acredite que lhe quero... enfim, entendi que era o meu
dever avis-la! Se eu fosse seu irmo, dizia-lhe simplesmente: "Amlia, esse
homem fora de casa!". No o sou, infelizmente. Mas venho, com dedicao de
alma, dizer-lhe: "O homem com quem quer casar surpreendeu a sua boa-f e de
sua mam; vem aqui, sim senhor, com aparncias de bom moo, e no fundo ..."
Ergueu-se, como ferido duma indignao irreprimvel:

- Menina Amlia, o homem que escreveu esse Comunicado! que fez ir o pobre
Brito para a serra de Alcobaa! que me chamou a mim sedutor! que chamou
devasso ao Sr. cnego Dias! Devasso! Que lanou veneno nas relaes de sua
mam com o cnego! e que a acusou menina, em bom portugus, de se deixar
seduzir! Diga, quer casar com esse homem?
Ela no respondeu, com os olhos cravados no lume, duas lgrimas mudas sobre
as faces.
Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando ao p dela, com a voz
abrandada, gestos muito amigos:
- Mas suponhamos que no era ele o autor do Comunicado, que no tinha
insultado em letra redonda a sua mam, o senhor cnego, os seus amigos: resta
ainda a sua impiedade! Veja que destino o seu se casasse com ele! Ou teria de
condescender com opinies do homem, abandonar as suas devoes, romper
com os amigos de sua me, no pr os ps na igreja, dar escndalo a toda a gente
honesta, ou teria de se pr em oposio com ele, e a sua casa seria um inferno!
Por tudo uma questo! Por jejuar sexta- feira, por ir exposio do Santssimo,
por cumprir odomingo... Se se quisesse confessar, que desavenas! Um horror! E
sujeitar-se a ouvi-lo escarnecer os mistrios da f! Ainda me lembro, na primeira
noite que aqui passei, com que desacato ele falou da Santa da Arregaa!... E ainda
me lembro uma noite que o padre Natrio aqui falava dos sofrimentos do nosso
santo padre Pio IX, que seria preso, se os liberais entrassem em Roma... Como
ele tinha risinhos de escrnio, como disse que eram exageraes!... Como se no
fosse perfeitamente certo que por vontade dos liberais veramos o chefe da
Igreja, o vigrio de Cristo, dormir num calabouo em cima dumas poucas de
palhas! So as opinies dele, que ele apregoa por toda parte! O padre Natrio diz
que ele e o Agostinho estavam no caf ao p do Terreiro, a dizer que o batismo
era um abuso, porque cada um devia escolher a religio que quisesse, e no ser
forado, de pequeno, a ser cristo! Hem, que lhe parece? Como seu amigo lho
digo... Para bem da sua alma antes a queria ver morta, do que ligada a esse
homem! Case com ele, e perde para sempre a graa de Deus!

Amlia levou as mos s fontes, e deixando-se cair para as costas da cadeira,


murmurou, muito desgraada:
- Oh meu Deus, meu Deus!
Amaro ento sentou-se ao p dela, tocando-lhe quase o vestido com o joelho,
pondo na voz uma bondade paternal:
- E depois, minha filha, pensa que um homem assim pode ter bom corao,
apreciar a sua virtude, querer-lhe como um marido cristo? Quem no tem
religio no tem moral. Quem no cr no ama, diz um dos nossos santos padres.
Depois de lhe passar o fogacho da paixo, comearia a ser duro consigo, malhumorado, voltaria a freqentar o Agostinho e as mulheres da vida e maltratla-ia talvez... E que susto constante para si! Quem no respeita a religio no tem
escrpulos: mente, rouba, calunia... Veja o Comunicado. Vir aqui apertar a mo
ao senhor cnego, e ir para o jornal chamar-lhe devasso! Que remorsos no
sentiria a menina, mas tarde, hora da morte! muito bom enquanto se tem
sade e se nova; mas quando chegasse a sua ltima hora, quando se achasse,
como aquela pobre criatura que est ali, nos ltimos arrancos, que terror no
sentiria de ter de aparecer diante de Jesus Cristo, depois de ter vivido em pecado
ao lado desse homem! Quem sabe se ele no recusaria que lhe dessem a extremauno! Morrer sem sacramentos, morrer como um animal!
- Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, senhor proco! exclamou Amlia
rompendo num choro nervoso.
- No chore, disse ele tomando-lhe suavemente a mo entre as suas, muito
trmulas. Escute, abra-se comigo... V, esteja sossegada, tudo se remedeia. No
h banhos publicados... Diga-lhe que no quer casar, que sabe tudo, que o
odeia...
Esfregava, apertava devagarinho a mo de Amlia. E subitamente, com voz dum
ardor brusco: - No se importa com ele, no verdade?
Ela respondeu muito baixo, com a cabea cada sobre o peito:
- No.

- Ento, ai tem! fez excitado. E diga-me, gosta de outro?


81
Ela no respondeu, com o peito a arfar fortemente, os olhos dilatados para o
lume.
- Gosta? Diga, diga!
Passou-lhe o brao sobre o ombro, atraindo-a docemente. Ela tinha as mos
abandonadas no
regao; sem se mover voltou devagar para ele os olhos resplandecentes sob uma
nvoa de lgrimas; e entreabriu devagar os lbios, plida, toda desfalecida. Ele
estendeu os beios a tremer - e ficaram imveis, colados num s beijo, muito
longo, profundo, os dentes contra os dentes.
- Minha senhora! minha senhora! gritou de repente, num terror, a voz da Rua,
dentro.
Amaro ergueu-se dum salto, correu ao quarto da entrevada. Amlia estava to
trmula, que precisou encostar-se porta da cozinha um momento, com as
pernas vergadas, a mo sobre o corao. Recuperou-se, desceu a acordar a me.
Quando entraram no quarto da idiota, Amaro ajoelhado, com a face quase sobre o
leito, rezava: as duas senhoras rojaram-se no cho: uma respirao acelerada
sacudia o peito, as ilhargas da velha: e medida que o arquejo se tornava mais
rouco, o proco precipitava as suas oraes. Subitamente o som agonizante
cessou: ergueram-se: a velha estava imvel, com os bugalhos dos olhos sados e
baos. Expirara.
O padre Amaro trouxe logo as senhoras para a sala; - e a a S. Joaneira, curada,
pelo choque, da sua enxaqueca, desabafou, em acessos de choro, recordando o
tempo em que a pobre mana era nova, e que bonita era! e que bom casamento
estivera para fazer com o morgado da Vigareira!...

- E o gnio mais dado, senhor proco! Uma santa! E quando a Amlia nasceu, e
que eu estive to mal, que no se tirou de ao p de mim, noite e dia!... E alegre,
no havia outra... Ai Deus da minha alma, Deus da minha alma!
Amlia, encostada vidraa na sombra da janela, olhava entorpecida a noite
negra.
Bateram ento campainha. Amaro desceu, com uma vela. Era Joo Eduardo que,
ao ver o proco quela hora na casa, - ficou petrificado, junto da porta aberta;
enfim balbuciou:
- Eu vinha saber se havia novidade...
- A pobre senhora expirou agora mesmo...
- Ah!
Os dois homens olharam-se um instante fixamente.
- Se eu sou preciso para alguma coisa... - disse Joo Eduardo.
- No, obrigado. As senhoras vo-se deitar.
Joo Eduardo fez-se plido da clera que lhe davam aqueles modos de dono da
casa. Esteve
ainda um momento, hesitando - mas vendo o proco abrigar a luz, com a mo,
contra o vento da rua: - Bem, boa noite, disse.
- Boa noite.
O padre Amaro subiu: e depois de deixar as duas senhoras no quarto da S.
Joaneira (porque, cheias de terror, queriam dormir juntas), voltou ao quarto da
morta, despertou a vela sobre a mesa, acomodou-se numa cadeira, e comeou a
ler o Brevirio.
Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa, o proco, sentindo o sono
entorpec-lo, veio sala de jantar; reconfortou-se com um clice de vinho do
Porto que achara no aparador; e saboreava regaladamente o cigarro, quando
ouviu na rua passos de botas fortes que iam, vinham, por baixo das janelas.

Como a noite estava escura no pde distinguir "o passeante". Era Joo Eduardo
que rondava a casa, furioso.
XII
Ao outro dia cedo, a Sra. D. Josefa Dias que entrara, havia pouco, da missa, ficou
muito surpreendida, ouvindo a criada que lavava as escadas dizer de baixo:
- Est aqui o Sr, padre Amaro, Sra. D. Josefa!
O proco ultimamente raras vezes vinha a casa do cnego; e D. Josefa gritou logo
lisonjeada e j curiosa:
- Que suba para aqui, no de cerimnia! como de famlia. Que suba!
Estava na sala de jantar, arranjando numa travessa ladrilhos de marmelada, com
um vestido de barege preto esgaado na ilharga e arqueado em redor dos
tornozelos por uma crinoline dum s arco; trazia nessa manh culos azuis; e foi
logo ao patamar, arrastando os seus medonhos chinelos de ourelo, e preparando,
por baixo do leno preto repuxado sobre a testa, um ar agradvel para o senhor
proco.
- Ora ditosos olhos, exclamou. Eu entrei h bocadinho, e j c tenho a primeira
missinha. Fui
hoje capela de Nossa Senhora do Rosrio... Disse-a o padre Vicente. Ai! e que
virtude, que me fez hoje, 82
senhor proco! Sente-se. A no, que lhe vem ar da porta... E ento a pobre
entrevada l se foi... Conte l, senhor proco...
O proco teve de descrever a agonia da entrevada, a dor da S. Joaneira; como
depois de morta a face da velha parecera remoar; o que as senhoras tinham
decidido a respeito da mortalha...
- Aqui para ns, D. Josefa, um grande alvio para a S. Joaneira... - E de repente,
puxando-se para a beira da cadeira, assentando as mos nos joelhos: - E que me
diz do Sr. Joo Eduardo? J sabe? Foi ele que escreveu o artigo!

A velha exclamou, levando as mos cabea:


- Ai! nem me fale nisso, senhor proco! Nem me fale nisso, que at tenho estado
doente!
- Ah, j sabe?
- E mais que sei, senhor proco! O Sr. padre Natrio, devo-lhe esse favor, esteve
aqui ontem e
contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma perdida!
- E sabe que o ntimo do Agostinho, que so bebedeiras na redao at de
madrugada, que vai
para o bilhar do Terreiro achincalhar a religio...
- Ai, por quem , senhor proco, nem me diga, nem mo diga! Que ontem, quando
o Sr. padre
Natrio esteve ai, at tive escrpulos de ouvir tanto pecado... Que lhe devo esse
favor, ao Sr. padre Natrio, logo que soube veio-me contar... de muito
delicado... E olhe, senhor proco, a mim sempre me quis parecer isso mesmo do
homem. Eu nunca o disse, nunca o disse! Que l isso, esta boquinha nunca se ps
em vidas alheias... Mas tinha c dentro um palpite. Ele ia missa, cumpria o
jejum; mas eu c tinha a desconfiana que aquilo era para enganar a S. Joaneira e
a pequena. Agora se v! Ele foi criatura que nunca me caiu em graa! Nunca,
senhor proco! - E de repente, com os olhinhos luzidios duma alegria perversa: E agora, j se sabe, o casamento desmancha-se?
O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito pausadamente:
- Ora, minha senhora, seria notrio que uma rapariga de bons princpios fosse
casar com um pedreiro-livre, que no se confessa h seis anos!
- Credo, senhor proco! antes v-la morta! necessrio dizer tudo rapariga.
O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente a cadeira para ao p dela:
- Pois foi justamente para isso mesmo que eu a vim procurar, minha senhora. Eu
ontem j falei

com a pequena... Mas compreende, no meio daquele desgosto, com a pobre


senhora a expirar ao lado, no pude insistir muito. Enfim disse-lhe o que havia,
aconselhei-a por bons modos, expus-lhe que ia perder a sua alma, ter uma vida
desgraada, etc. Fiz o que pude, minha senhora, como amigo e como proco. E
como era o meu dever (ainda que me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe
que, como crist e como senhora, tinha obrigao de romper com o escrevente.
- E ela?
O padre Amaro fez uma visagem descontente:
- No disse que sim nem que no. Ps-se a fazer biquinho, a choramingar.
verdade que estava
muito alterada com a morte em casa. Que a rapariga no morre por ele, isso
claro; mas quer casar, tem medo que a me morra, que se veja s... Enfim sabe o
que so raparigas! Que as minhas palavras fizeram- lhe efeito, ficou muito
indignada, etc. ... Mas enfim, eu pensei que o melhor era a senhora falar-lhe. A
senhora a amiga da casa, madrinha, conheceu-a de pequena... Estou certo
que no seu testamento havia de lhe deixar uma boa lembrana... Tudo isto so
consideraes...
- Ai, fica por minha conta, senhor proco, exclamou a velha, hei- de-lhas contar!
- A rapariga o que precisa quem a dirija. Aqui para ns, precisa quem a
confesse! Ela confessa- se ao padre Silvrio; mas, sem querer dizer mal, o padre
Silvrio, coitado, pouco vale. Muito caridoso, muita virtude; mas o que se chama
jeito, no tem. Para ele a confisso a desobriga. Pergunta doutrina, depois faz o
exame pelos mandamentos da lei de Deus... Veja a senhora!... Est claro que a
rapariga no furta, nem mata, nem deseja a mulher do seu prximo! A confisso
assim no lhe aproveita: o que ela precisa um confessor teso, que lhe diga para ali! e sem rplica. A rapariga um esprito fraco; como a maior parte das
mulheres no se sabe dirigir por si; necessita por isso um confessor que a
governe com uma vara de ferro, a quem ela obedea, a quem conte tudo, a quem
tenha medo... como deve ser um confessor.

- O senhor proco que lhe servia...


Amaro sorriu modestamente:
- No digo que no. Havia de aconselh-la bem; sou amigo da me, acho que ela
boa rapariga e
digna da graa de Deus. Que eu, sempre que converso com ela, todos os
conselhos que posso, em tudo, dou- lhos... Mas a senhora compreende, h coisas
em que se no pode estar a falar na sala, com gente volta... S se est vontade
no confessionrio. E o que me falta, so as ocasies de lhe falar s. Mas enfim
eu no posso ir dizer-lhe: "a menina agora h-de confessar-se comigo"! Eu nisso
sou muito escrupuloso...
83
- Mas digo-lhe eu, senhor proco! Ah, digo-lhe eu!...
- Ora isso que era um grande favor! Era um bem que fazia quela alma! Porque
se a rapariga me entrega a direo da sua alma, ento podemos dizer que lhe
acabaram as dificuldades, e temo-la no caminho da graa... E quando lhe vai
falar, D. Josefa?
D. Josefa, "como julgava pecado adiar", estava decidida a falar-lhe essa mesma
noite.
- No me parece, D. Josefa. Hoje noite de psames... O escrevente
naturalmente est l...
- Credo, senhor proco! Pois eu e as outras pequenas havemos de passar a noite
debaixo das
mesmas telhas com o herege?
- Tem de ser. Enfim, o rapaz por ora considerado da famlia... Alm disso, D.
Josefa, a senhora,
a D. Maria e as Gansosinhos so pessoas da maior virtude... Mas ns no
devemos ter orgulho da nossa virtude... Arriscamo-nos a perder-lhe todos os
frutos. E um ato de humildade, que agrada muito a Deus, o misturar-nos s

vezes com os maus; como quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado
com um trabalhador de enxada... como se dissssemos: "Eu sou-te superior em
virtude, mas comparado com o que devia ser para entrar na glria, quem sabe se
no sou to pecador como tu!..." E esta humilhao da alma a melhor oferta que
podemos fazer a Jesus.
D. Josefa escutava-o, babosa; e numa admirao:
- Ai, senhor proco, que at d virtude ouvi-lo!
Amaro curvou-se:
- Deus s vezes, na sua bondade, inspira-me justas palavras... Pois, minha
senhora, eu no quero
maar mais. Ficamos entendidos. A senhora fala pequena amanh; e se, como
de crer, ela consentir em escutar os meus conselhos, traz-ma S, no sbado, s
oito horas. E fale-lhe teso, D. Josefa!
- Deixe-a comigo, senhor proco!... Ento no quer provar da minha
marmelada?
- Provarei, disse Amaro, tomando um ladrilho em que cravou os dentes com
dignidade.
- dos marmelos da D. Maria. Saiu-me melhor que a das Gansosinhos...
- Pois adeus, D. Josefa... Ah, verdade, que diz o nosso cnego deste caso do
escrevente?
- O mano?...
Neste momento a campainha embaixo repicou com furor.
- H-de ser ele, disse logo D. Josefa. E vem zangado!
Vinha, com efeito, da fazenda - furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a
perversidade dos
homens. Tinham-lhe roubado uma poro de cebolinho; e, abafado de clera,
aliviava-se repetindo com gozo o nome do Inimigo.
- Credo, mano, que at lhe fica mal! - exclamou D. Josefa tomada de escrpulos.

- Ora, mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co'os diabos! e
repito co'os diabos! Mas eu l disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda,
carregue a espingarda e faa fogo!
- H uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.
- H uma falta de respeito por tudo! exclamou o cnego. Um cebolinho que dava
sade s olhar para ele! Pois senhores, l vai! Isto o que eu chamo um
sacrilgio!... Um desaforado sacrilgio! - acrescentou com convico; porque o
roubo do seu cebolinho, o cebolinho dum cnego, parecia-lhe um ato to negro
de impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da S.
- Falta de temor a Deus, falta de religio, observou D. Josefa.
- Qual falta de religio! replicou o cnego exasperado. Falta de cabos de polcia,
o que ! - E voltando-se para Amaro: - Hoje o enterro da velha, hem? Inda mais
essa! V, mana, mande-me l dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!
O padre Amaro ento, retomado pela sua preocupao:
- Estvamos c a falar do caso do Joo Eduardo: o Comunicado!
- Isso outra maroteira que tal, fez logo o cnego. Vejam essa, tambm! Que
quadrilha vai pelo
mundo, que quadrilha! - e ficou de braos cruzados, com os olhos arregalados,
como contemplando uma legio de monstros, soltos pelo universo, e
arremessando-se com impudncia contra as reputaes, os princpios da Igreja, a
honra das famlias e o cebolinho do clero.
Ao sair, o padre Amaro renovou ainda as suas recomendaes a D. Josefa, que o
acompanhara ao patamar.
- Ento hoje, noite de psames, no se faz nada. Amanh fala rapariga, e l para
o fim da semana leva-ma S. Bem. E convena a rapariga, D. Josefa, trate de
salvar aquela alma! Olhe que Deus tem os olhos em si. Fale-lhe teso, fale-lhe
teso!... E o nosso cnego que se entenda com a S. Joaneira.

- Pode ir descansado, senhor proco. Sou madrinha, e, quer ela queira quer no,
hei-de p-la no caminho da salvao...
- Amm, disse o padre Amaro.
Nessa noite, com efeito, D.Josefa "no fez nada". Eram os psames na Rua da
Misericrdia. Estavam embaixo, na saleta, alumiada lugubremente por uma s
vela com um abajur verde-escuro. A S.
84
Joaneira e Amlia, de luto, ocupavam tristemente o canap ao centro; e em redor,
nas fileiras de cadeiras apoiadas parede, as amigas, cobertas de negro pesado,
conservavam-se funebremente imveis, de faces contristadas, num torpor
mudo: s vezes duas vozes ciciavam, ou dum canto, na sombra, saa um suspiro:
depois o Libaninho, ou Artur Couceiro, ia em bicos de ps espevitar o morro da
vela; a D. Maria da Assuno expectorava o seu catarro com um som choroso: e
no silncio ouviam tamancos bater no lajedo da rua, ou os quartos de hora no
relgio da Misericrdia.
A intervalos a Rua, toda de negro, entrava com o tabuleiro de doces e copos de
chazada; levantava-se ento o abajur; e as velhas, que j iam cerrando as
plpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo os lenos aos olhos, e, com
ais, serviam-se de bolinhos da Encarnao.
Joo Eduardo l estava, a um canto, ignorado, ao p da Gansoso surda que dormia
com a boca aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o olhar de Amlia,
que no se movia, com o rosto sobre o peito, as mos no regao, torcendo e
destorcendo o seu leno de cambraieta. O Sr. padre Amaro e o Sr. cnego Dias
vieram s nove horas: o proco com passos graves foi dizer S. Joaneira:
- Minha senhora, o golpe grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua
excelentssima mana est a esta hora gozando a companhia de Jesus Cristo.
Houve em redor uma murmurao de soluos; e como no restavam cadeiras, os
dois eclesisticos sentaram-se aos dois cantos do canap, tendo no meio a S.

Joaneira e Amlia em lgrimas. Eram assim reconhecidos pessoas de famlia; a


Sra. D. Maria da Assuno notou baixinho a D. Joaquina Gansoso:
- Ai, at d gosto v-los assim todos quatro!
E at s dez horas a noite de psames continuou soturna e sonolenta, perturbada
apenas pela tosse constante de Joo Eduardo que estava constipado, e que (na
opinio da Sra. D. Josefa Dias que o disse a todos, depois), "tossia s para fazer
troa e para achincalhar o respeito aos mortos".

Da a dois dias, s oito horas da manh, a Sra. D. Josefa Dias e Amlia entraram
na S - depois de terem falado no terrao Amparo, mulher do boticrio, que
tinha uma criana com sarampo, e, apesar de no ser coisa de cuidado, "viera
cautela fazer uma promessa".
O dia estava enevoado, a igreja tinha luz parda. Amlia, plida sob a sua mantilha
de renda, parou defronte do altar de Nossa Senhora das Dores, deixou-se cair de
joelhos, e ficou imvel, com o rosto sobre o livro de missa. A Sra. D. Josefa Dias,
com passos fofos, depois de se ter prostrado diante da capela do Santssimo e do
altar-mor, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro l
passeava, com os ombros vergados, as mos atrs das costas:
- Ento? perguntou logo, erguendo para D. Josefa a sua face muito barbeada,
onde os olhos reluziam inquietos.
- Est ali, disse a velha baixinho, numa expresso de triunfo. Fui eu mesma
busc-la! Ai, falei- lhe teso, senhor proco, no lhas poupei! Agora consigo!
- Obrigado, obrigado, D. Josefa! disse o padre, apertando-lhe as mos ambas com
fora. Deus h-de-lho levar em conta.
Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o leno, a carteira dos papis; e,
cerrando devagarinho a porta da sacristia, desceu igreja. Amlia ainda estava
ajoelhada, fazendo um vulto negro imvel contra o pilar branco.

- Pst, fez-lhe D. Josefa.


Ela ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as mos
as pregas da mantilha em roda do pescoo.
- Aqui lha deixo, senhor proco, disse a velha. Vou Amparo da botica, e venho
depois por ela. Ora vai filha, vai, Deus te alumie essa alma!
E saiu com mesuras a todos os altares.
O Carlos da botica - que era inquilino do cnego e um pouco ronceiro na renda desbarretou-se com espalhafato apenas D. Josefa apareceu porta, e conduziu-a
logo acima, sala de cortinas de cassa, onde a Amparo costurava janela.
- Ai, no se prenda, Sr. Carlos, dizia-lhe a velha. No largue os seus afazeres. Eu
deixei a afilhada na S, e venho aqui descansar um bocadinho.
- Ento, se me d licena... E como vai o nosso cnego?
- No tornou a ter a dor. Mas tem sofrido de tonturas.
- Comeos de Primavera, disse o Carlos que retomara o seu ar majestoso, de p
no meio da sala,
com os dedos nas aberturas do colete. Tambm eu me tenho sentido
perturbado... Ns, as pessoas sangneas, sofremos sempre disto que se pode
chamar o renascimento da seiva... H uma abundncia de
85
humores no sangue, que, no sendo eliminados pelos canais prprios, vo, por
assim dizer, abrir caminho, aqui e alm, pelo corpo, sob a forma de furnculo,
espinha, nascida, s vezes, em lugares bem incmodos, e, ainda que em si
insignificantes, acompanhados sempre, por assim dizer, dum cortejo... Perdo,
sinto o praticante a palrar... Se me d licena... Respeitos ao nosso cnego. Que
use a magnsia de James!
D. Josefa ento quis ver a menina com o sarampo. Mas no passou da porta do
quarto, recomendando pequena, que arregalava uns olhos de febre, muito

abafada na roupa, "no se descuidasse das suas oraezinhas de manh e


noite". Aconselhou Amparo alguns remdios, que eram milagrosos no
sarampo; mas se a promessa fora feita com f, a menina podia considerar-se
curada... Ai, todos os dias dava graas a Deus de se no ter casado! Que filhos
eram s para dar trabalho e canseiras; e com as quezlias que traziam e o tempo
que tomavam, eram at causa duma mulher se descuidar das suas prticas e
meter a alma no Inferno.
- Tem razo, D. Josefa, disse a Amparo, um castigo... E eu com cinco! s vezes
fazem-me to doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me a chorar s
comigo...
Tinham voltado para junto da janela, e gozaram muito, espreitando o senhor
administrador do conselho, que, por trs da vidraa da repartio, namorava de
binculo a do Teles alfaiate. - Ai, era um escndalo! Que nunca houvera em Leiria
autoridades assim! O secretrio-geral era um desaforo com a Novais... Que se
podia esperar de homens sem religio, educados em Lisboa, que, segundo D.
Josefa, estava predestinada a perecer como Gomorra pelo fogo do Cu! - A
Amparo cosia com a cabea baixa, envergonhada talvez diante daquela
indignao piedosa, dos desejos culpados que a roam de ver o Passeio Pblico e
de ouvir os cantores em S. Carlos.
Mas bem depressa a Sra. D. Josefa comeou a falar do escrevente. A Amparo no
sabia nada; e a velha teve a satisfao de contar prolixamente, "tintim por
tintim", a histria do Comunicado, o desgosto na Rua da Misericrdia, e a
campanha de Natrio para descobrir o liberal. Alargou-se principalmente sobre o
carter de Joo Eduardo, a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um
dever de crist aniquilar o ateu, deu mesmo a entender que alguns roubos
ultimamente cometidos em Leiria, eram "obra de Joo Eduardo".
A Amparo declarou-se "banzada". O casamento ento, com a Ameliazinha...
- Isso pertence histria, declarou com jbilo D. Josefa Dias. Vo p-lo fora de
casa! E por muito feliz se deve o homem dar em no ir parar ao banco dos rus...

Que a mim o deve, e prudncia do mano e do Sr. padre Amaro. Que havia
motivos para o ferrar na cadeia!
- Mas a pequena gostava dele, ao que parece.
D. Josefa indignou-se. Credo, a Amlia era uma rapariga de juzo, de muita
virtude! Apenas conheceu os desaforos, foi a primeira a dizer que no, e que no!
Ai! detestava-o... - E D. Josefa, baixando a voz em confidncia, contou "que era
positivo que ele vivia com uma desgraada para os lados do quartel".
- Disse-o o Sr. padre Natrio, afirmou. - E aquilo homem que da sua boca
nunca sai seno a verdade pura... Foi muito delicado comigo, devo-lhe esse
favor. Apenas soube veio-me logo dizer a casa, pedir-me conselhos... Enfim,
muito atencioso.
Mas o Carlos apareceu de novo. Tinha a botica desembaraada um momento (que
no o tinham deixado respirar toda a manh!) e vinha fazer companhia s
senhoras.
- Ento j sabe, Sr. Carlos, exclamou logo D. Josefa, o caso do Comunicado e do
Joo Eduardo? O farmacutico arregalou os seus olhos redondos. Que relao
havia entre um artigo to indigno, e esse mancebo que lhe parecia honesto?
- Honesto? ganiu a Sra. D. Josefa Dias. Foi ele que o escreveu, Sr. Carlos!
E vendo o Carlos morder o beio de surpresa, D. Josefa, entusiasmada, repetiu a
histria da "maroteira".
- Que lhe parece, Sr. Carlos, que lhe parece?
O farmacutico deu a sua opinio, numa voz vagarosa, sobrecarregada da
autoridade dum vasto entendimento:
- Nesse caso digo, e todas as pessoas de bem o diro comigo, uma vergonha
para Leiria. Eu j tinha observado, quando li o Comunicado: a religio a base da
sociedade, e min-la , por assim dizer, querer aluir o edifcio... uma desgraa
que haja na cidade desses sectrios do materialismo e da repblica, que, como

sabido, querem destruir tudo o que existe; proclamam que os homens e as


mulheres se devem unir com a promiscuidade de ces e cadelas... (Desculpem
exprimir-me assim, mas a cincia a cincia.) Querem ter o direito de entrar em
minha casa, levar- me as pratas e o suor do meu rosto; no admitem que haja
autoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada hstia... D.
Josefa encolheu-se com um gritinho, muito arrepiada.
- E ousa esta seita falar em liberdade! Eu tambm sou liberal... Que, francamente
o digo, eu no sou fantico... Nem pelo fato dum homem pertencer ao
sacerdcio, o julgo um santo, no... Por exemplo,
86
sempre embirrei com o proco Miguis... Era uma jibia! Desculpe-me a
senhora, mas era uma jibia. Disse-lho na cara, porque a lei das rolhas j l vai...
Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto, justamente para no haver
lei das rolhas... Disse-lho na cara: "Vossa senhoria uma jibia!" Mas, enfim,
quando um homem veste uma batina deve ser respeitado... E o Comunicado,
repito, uma vergonha para Leiria... E tambm lhe digo, com esses ateus, esses
republicanos, no deve haver considerao!... Eu sou um homem pacfico, aqui a
Amparozinho conhece-me bem; pois se eu tivesse de aviar uma receita para um
republicano declarado, no tinha dvida, em lugar de lhe dar uma dessas
composies benficas que so o orgulho da nossa cincia, de lhe mandar uma
dose de cido prssico... No, no direi que lhe mandasse cido prssico... mas se
estivesse no banco dos jurados, havia de lhe fazer cair em cima todo o peso da lei!
E balanou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lanando um grande
gesto em redor, como se esperasse os aplausos dum conselho de distrito ou duma
municipalidade em sesso.
Mas na S bateram ento devagar as onze; e D. Josefa embrulhou- se pressa no
seu mantelete para ir buscar a pequena, coitada, que havia de estar farta de
esperar.

O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que


remetia ao seu senhorio):
- Repita ao nosso cnego quais so as minhas opinies... Que nessa questo do
Comunicado e de ataques ao clero, estou de alma e corao com suas senhorias...
Criado seu, minha senhora... O tempo vai- se a embrulhar.
Quando D. Josefa entrou na igreja, Amlia estava ainda no confessionrio. A
velha tossiu alto, ajoelhou, e, com as mos sobre a face, abismou-se numa
devoo Senhora do Rosrio. A igreja ficou numa imobilidade e num silncio.
Depois D. Josefa, voltando-se para o confessionrio, espreitou por entre os
dedos; Amlia conservava-se imvel, com a mantilha muito puxada para o rosto,
a roda do vestido negro espalhada em redor; e D. Josefa recaiu na sua reza. Uma
chuva fina fustigava agora os vidros duma janela, ao lado. Enfim, houve no
confessionrio um rangido de madeira, um frufru de vestidos nas lajes, - e D.
Josefa, voltando-se, viu de p diante dela Amlia com a face escarlate e o olhar
reluzindo muito.
- Est h muito tempo espera, madrinha?
- Um bocadinho. Ests prontinha, hem?
Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras saram da S. Ainda caa uma chuva
fina; mas o Sr.
Artur Couceiro, que passava no largo com ofcios para o governo civil, foi lev-las
Rua da Misericrdia debaixo do seu guarda-chuva.
XIII
Joo Eduardo, noitinha, ia sair de casa para a Rua da Misericrdia, levando
debaixo do brao um rolo de amostras de papel de parede para Amlia escolher,
quando porta encontrou a Rua que ia puxar a campainha.
- Que , Rua?
- As senhoras foram passar a noite fora de casa, e aqui est esta carta que manda

a senhora. Joo Eduardo sentiu apertar-se-lhe o corao, e seguia com o olhar


pasmado a Rua, que descia a
rua, batendo os tamancos. Foi ao p do candeeiro, defronte, abriu a carta:
"SR. JOO EDUARDO.
O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuaso que era V.
Sa. uma pessoa de bem e que me poderia fazer feliz,' mas como se sabe tudo, e
que foi o senhor que escreveu o artigo do Distrito, e caluniou os amigos da casa e
me insultou a mim, e como os seus costumes no me do garantia de felicidade
na vida de casada, deve desde hoje, considerar tudo acabado entre ns, pois no
h banhos publicados nem despesas feitas. E eu espero, bem como a mam, que
o senhor seja bastante delicado para no nos voltar a casa, nem perseguir-nos na
rua. O que tudo lhe comunico por ordem da mam, e sou
criada de V. Sa. Amlia Caminha'' .
Joo Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a
claridade do candeeiro,
imvel como uma pedra, com o seu rolo de papis pintados debaixo do brao.
Maquinalmente, voltou a
casa. As mos tremiam-lhe tanto, que mal podia acender o candeeiro. De p,
junto da mesa, releu a carta. 87

Depois ficou ali, fatigando a vista contra a chama da torcida, com uma sensao
arrefecedora de Imobilidade e de Silncio, como se subitamente, sem choque,
toda a vida universal tivesse emudecido e parado. Pensou onde teriam elas ido
passar a noite. Lembranas de seres felizes na Rua da Misericrdia
atravessaram-lhe devagar na memria: Amlia trabalhava, com a cabea baixa, e
entre o cabelo muito preto e o colar muito branco o seu pescoo tinha uma
palidez que a luz amaciava... Ento a idia de que a perdera para sempre varoulhe o corao com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as mos, tonto.

Que havia de fazer? que havia de fazer? Resolues bruscas relampejavam-lhe


um momento no esprito, esvaam-se. Queria escrever-lhe! Tir-la por justia! Ir
para o Brasil! Saber quem descobrira que ele era o autor do artigo! - E como isto
era o mais praticvel quela hora, correu redao da Voz do Distrito.
Agostinho, estirado no canap, com a vela ao p sobre uma cadeira, saboreava os
jornais de Lisboa. A face descomposta de Joo Eduardo assustou-o.
- Que ?
- que me perdeste, maroto!
E de um s flego acusou furiosamente o corcunda de o ter trado.
Agostinho erguera-se devagar, procurando sem perturbao a bolsa do tabaco na
algibeira da
jaqueta.
- Homem, disse, nada de espalhafatos... Eu dou-te a minha palavra de honra que
no disse a
ningum do Comunicado. verdade que ningum me perguntou...
- Mas quem foi, ento? gritou o escrevente.
Agostinho enterrou a cabea nos ombros.
- Eu o que sei que os padres andavam numa azfama para saber quem era. O
Natrio esteve a
uma manh, por causa do anncio de uma viva que recorre caridade pblica,
mas do Comunicado no se disse nem palavra... O doutor Godinho que sabia,
entende-te com ele! Mas ento fizeram-te alguma?
- Mataram-me! disse Joo Eduardo lugubremente.
Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e saiu arremessando a porta.
Passeou na Praa; foi ao acaso pelas ruas; depois, atrado pela obscuridade,
estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma intolervel palpitao surda latejarlhe interiormente contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos, parecialhe seguir um silncio universal; por vezes a idia da sua desgraa rasgava-lhe

subitamente o corao, e ento imaginava ver toda a paisagem oscilar e o cho da


estrada afigurava-se-lhe mole como um lamaal. Voltou pela S quando batiam
onze horas; e achou-se na Rua da Misericrdia, com o olhar cravado para a janela
da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraa do quarto de Amlia alumiou-se
tambm; ela ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um desejo furioso da sua beleza, do
seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para casa; uma fadiga intolervel prostrou-o
sobre a cama; depois uma saudade indefinida, profunda, foi-o amolecendo, e
chorou muito tempo, enternecendo-se mais com o som dos seus prprios
soluos, - at que ficou adormecido, de bruos, numa massa inerte.

Ao outro dia, cedo, Amlia vinha da Rua da Misericrdia para a Praa, quando ao
p do Arco, Joo Eduardo lhe saiu de emboscada.
- Quero falar-lhe, menina Amlia.
Ela recuou assustada, disse a tremer:
- No tem que me falar...
Mas ele plantara-se diante dela, muito decidido, com os olhos vermelhos como
carves:
- Quero-lhe dizer... L do artigo, verdade, fui eu que o escrevi, foi uma
desgraa; mas a menina
tinha-me ralado de cimes... Mas o que a menina diz de maus costumes uma
calnia. Eu sempre fui um homem de bem...
- O Sr. padre Amaro que o conhece! Faz favor de me deixar passar...
Ao nome do proco, Joo Eduardo fez-se lvido de raiva:
- Ah! o Sr. padre Amaro! o maroto do padre! Pois veremos Oua...
- Faz favor de me deixar passar! disse ela irritada, to alto, que um sujeito gordo
de xale-manta
parou olhando.
Joo Eduardo recuou, tirando o chapu; e ela, imediatamente, refugiou-se na loja

do Fernandes. Ento, num desespero, correu a casa do doutor Godinho. J na


vspera, por entre os seus acessos
de choro, sentindo-se to abandonado, se lembrara do doutor Godinho. Fora
outrora seu escrevente; e como por pedido dele entrara no cartrio do Nunes
Ferral, e por sua influncia ia ser acomodado no governo civil, julgava-o uma
Providncia prdiga e inesgotvel! Demais, desde que escrevera o Comunicado
considerava-se da redao da Voz do Distrito, do grupo da Maia; agora, que era
atacado
88
pelos padres, devia claramente ir acolher-se forte proteo do seu chefe, do
doutor Godinho, do inimigo da reao, o "Cavour de Leiria", como dizia,
arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, autor dos Ferres! - E Joo Eduardo,
dirigindo-se ao casaro amarelo, ao p do Terreiro onde o doutor vivia, ia num
alvoroo de esperanas, contente em se refugiar, como um co escorraado,
entre as pernas daquele colosso!
O doutor Godinho descera j ao escritrio, e repoltreado na sua poltrona abacial
de pregos amarelos, com os olhos no teto de carvalho escuro, acabava com
beatitude o charuto do almoo. Recebeu com majestade os "bons-dias" de Joo
Eduardo.
- E ento que temos, amigo?
As altas estantes de in-flios graves, as resmas de autos, o aparatoso painel
representando o marqus de Pombal, de p num terrao sobre o Tejo, expulsando
com o dedo a esquadra inglesa - acanharam como sempre Joo Eduardo; e foi
com voz embaraada que disse vinha ali para que sua excelncia lhe desse
remdio numa desgraa que lhe sucedia.
- Desordens, bordoada?
- No, senhor, negcios de famlia.

Contou ento, prolixamente, a sua histria desde a publicao do Comunicado;


leu, muito
comovido, a carta de Amlia; descreveu a cena ao p do Arco... Ali estava agora,
escorraado da Rua da Misericrdia por obras do senhor proco! E parecia-lhe a
ele, apesar de no ser formado em Coimbra, que contra um padre que se
introduzia numa famlia, desinquietava uma menina simples, levava por intrigas
a romper com o noivo e ficava de portas adentro senhor dela - devia haver leis!
- Eu no sei, senhor doutor, mas deve haver leis!
O doutor Godinho parecia contrariado.
- Leis! exclamou traando vivamente a perna. Que leis quer voc que haja? Quer
querelar do
proco?... Por qu? Ele bateu-lhe? Roubou- lhe o relgio? Insultou-o pela
imprensa? No. Ento?...
- Oh, senhor doutor, mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem de
maus costumes,
senhor doutor! Caluniou-me! - Tem testemunhas?
- No, senhor.
- Ento?
E o doutor Godinho, assentando os cotovelos sobre a banca, declarou que, como
advogado, no
tinha nada a fazer. Os tribunais no tomavam conhecimento dessas questes,
desses dramas morais por assim dizer, que se passavam nas alcovas
domsticas... Como homem, como particular, como Alpio de Vasconcelos
Godinho, tambm no podia intervir porque no conhecia o Sr. padre Amaro,
nem essas senhoras da Rua da Misericrdia... Lamentava o fato, porque enfim
fora novo, sentira a poesia da mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o que eram
esses transes do corao... E ai est tudo o que ele podia fazer - lamentar!
Tambm para que tinha ele dado a sua afeio a uma beata?...

Joo Eduardo interrompeu-o:


- A culpa no dela, senhor doutor! A culpa do padre que a anda a
desencaminhar! A culpa
dessa canalha do cabido!
O doutor Godinho estendeu com severidade a mo, e aconselhou o Sr. Joo
Eduardo que tivesse
cuidado com semelhantes asseres! Nada provava que o senhor proco
possusse nessa casa outra influncia, que no fosse a dum hbil diretor
espiritual... E recomendava ao Sr. Joo Eduardo, com a autoridade que lhe davam
os anos e a sua posio no pais, que no fosse espalhar, por despeito, acusaes
que s serviam para destruir o prestigio do sacerdcio, indispensvel numa
sociedade bem constituda! - Sem ele, tudo seria anarquia e orgia!
E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava nessa manh com "o dom da
palavra".
Mas a face consternada do escrevente, que no se movia, de p junto da banca,
impacientava-o; e disse com secura, puxando para diante de si um volume de
autos:
- Enfim, acabemos, que quer o amigo? J v, eu no lhe posso dar remdio.
Joo Eduardo replicou, com um movimento de coragem desesperada:
- Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer alguma coisa por mim... Porque
enfim eu fui uma
vitima... Tudo isto vem de se saber que eu escrevi o Comunicado. E tinha-se
combinado que havia de ser segredo. O Agostinho no disse, s o senhor doutor o
sabia...
O doutor pulou de indignao na sua cadeira abacial:
- Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o disse?
No disse... Isto , disse; disse-o a minha mulher, porque numa famlia bem
constituda no deve haver segredos entre esposo e esposa. Ela perguntou-me,

disse-lho... Mas suponhamos que fui eu que o espalhei pelas ruas. De duas uma:
ou o Comunicado era uma calnia, e ento sou eu que devo acus-lo de ter
poludo um jornal honrado com um acervo de difamaes; ou era verdade, e
ento que homem o senhor que se envergonha
89
das verdades que solta e que no se atreve a manter luz do dia as opinies que
redigiu na escurido da noite?
Duas lgrimas enevoaram os olhos de Joo Eduardo. Ento, diantedaquela
expresso esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma argumentao to
lgica e to poderosa, o doutor Godinho abrandou:
- Bem, no nos zanguemos, disse. No se fala mais em pontos de honra... O que
pode acreditar que lamento o seu desgosto.
Deu-lhe conselhos duma solicitude paternal. Que no sucumbisse; havia mais
meninas em Leiria e meninas de bons princpios que no viviam sob a direo da
sotaina. Que fosse forte, e que se consolasse pensando que ele, doutor Godinho e era ele! - tambm tivera em moo desgostos do corao. Que evitasse o
domnio das paixes que lhe seria prejudicial na carreira pblica. E que se o no
fizesse por seu interesse prprio, o fizesse ao menos em ateno a ele, doutor
Godinho!
Joo Eduardo saiu do escritrio, indignado, julgando-se trado pelo doutor.
- Isto sucede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre-diabo, no dou
votos nas eleies, no vou s soires do Novais, no subscrevo para o clube. Ah,
que mundo! Se eu tivesse um par de contos de ris!...
Veio-lhe ento um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e da religio
que os justifica. Voltou muito decidido ao escritrio, e entreabrindo a porta:
- Vossa excelncia ao menos agora d licena que eu desabafe no jornal?... Queria
contar esta maroteira, cascar nessa canalha...

Esta audcia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com severidade na


poltrona, e cruzando terrivelmente os braos:
- O Sr. Joo Eduardo est realmente a abusar! Pois o senhor vem- me pedir que
transforme um jornal de idias num jornal de difamaes? V, no se prenda!
Pede-me que insulte os princpios da religio, que achincalhe o Redentor, que
repita as baboseiras de Renan, que ataque as leis fundamentais do Estado, que
injurie o rei, que vitupere a instituio da famlia! O senhor est brio.
- Oh, senhor doutor!
- O senhor est brio! Cuidado, meu caro amigo, cuidado, olhe que vai por um
declive! por esse caminho que se chega a perder o respeito da autoridade, da
lei, das coisas santas e do lar. por esse caminho que se vai ao crime! Escusa de
arregalar os olhos... Ao crime, digo-lho eu! Tenho a experincia de vinte anos de
foro. Homem, detenha-se! Refreie essas paixes. Safa! Que idade tem o senhor?
- Vinte e seis anos.
- Pois no h desculpa para um homem de vinte e seis anos ter essas idias
subversivas. Adeus, feche a porta. E escute. Escusa de pensar em mandar outro
Comunicado para outro qualquer jornal. No lho consinto, eu que o tenho
protegido sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa de negar, estoulho a ler nos olhos. Pois no lho consinto! para seu bem, para lhe poupar uma
m ao social!
Tomou uma grande atitude na poltrona, repetiu com fora:
- Uma pssima ao social! Aonde nos querem os senhores levar com os seus
materialismo, os seus atesmos? Quando tiverem dado cabo da religio de nossos
pais, que tm os senhores para a substituir? Que tm? Mostre l!
A expresso embaraada de Joo Eduardo (que no tinha ali, para a mostrar, um
religio que substitusse a de nossos pais) fez triunfar o doutor.

- No tm nada! Tm lama, quando muito tm palavreado! Mas enquanto eu for


vivo, pelo menos em Leiria, h-de ser respeitada a F e o principio da Ordem!
Podem pr a Europa a fogo e sangue, em Leiria no ho-de erguer cabea. Em
Leiria estou eu alerta, e juro que lhes hei-de ser funesto!
Joo Eduardo recebia de ombros vergados estas ameaas, sem as compreender.
Como podia o seu Comunicado e as intrigas da Rua da Misericrdia produzirem
assim catstrofes sociais e revolues religiosas? Tanta severidade aniquilava-o.
Ia perder decerto a amizade do doutor, o emprego no governo civil... Quis
abrand-lo:
- Oh, senhor doutor, mas vossa excelncia bem v...
O doutor interrompeu-o com um grande gesto:
- Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixes, a vingana o vo levando por um
caminho fatal...
O que espero que os meus conselhos o detenham. Bem, adeus. Feche a porta.
Feche a porta, homem! Joo Eduardo saiu acabrunhado. Que havia de fazer agora?
O doutor Godinho, aquele colosso, repelia-o com palavras tremendas! E que
podia ele, pobre escrevente de cartrio, contra o padre Amaro que tinha por si o
clero, o chantre, o cabido, os bispos, o papa, classe solidria e compacta que lhe
aparecia como uma medonha cidadela de bronze erguendo- se at ao cu! Eram
eles que tinham causado a resoluo de Amlia, a sua carta, a dureza das suas
palavras. Era uma intriga de procos, cnegos e beatas. Se ele pudesse arranc-la
quela influncia, ela tomaria a ser bem depressa a sua Ameliazinha
90
que lhe bordava chinelas, e que vinha toda corada v-lo passar janela! As
suspeitas que outrora tivera tinham-se desvanecido naqueles seres felizes,
depois de decidido o casamento, quando ela, costurando junto do candeeiro,
falava da moblia que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha. Ela amavao, decerto... Mas qu, tinham- lhe dito que ele era o autor do Comunicado, que
era herege, que tinha costumes devassos; o proco, na sua voz pedante,
ameaara-a com o Inferno; o cnego, furioso, e todo- poderoso na Rua da

Misericrdia porque dava para a panela, falara teso - e a pobre menina,


assustada, dominada, com aquele bando tenebroso de padres e de beatas a
cochicharem-lhe ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida, de boa-f,
que ele era uma fera! E quela hora, enquanto ele ali andava pelas ruas,
escorraado e desgraado, o padre Amaro, na saleta da Rua da Misericrdia,
enterrado na poltrona, senhor da casa e senhor da rapariga, de pema traada,
palrava de alto! Canalha! E no haver leis que o vingassem! E no poder sequer
"fazer escndalo", agora que a Voz do Distrito se lhe tomava inacessvel!
Vinham-lhe ento desejos furiosos de demolir o proco aos murros, com a fora
do padre Brito. Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos num jornal,
que revelassem as intrigas da Rua da Misericrdia, amotinassem a opinio,
cassem sobre o padre como catstrofes, o forassem a ele, ao cnego e aos
outros a desaparecerem corridos da casa da S. Joaneira! Ah! estava certo que a
Ameliazinha, livre daqueles galfarros, correria logo aos seus braos, com
lgrimas de reconciliao...
Procurava assim fora convencer-se que "a culpa no era dela"; recordava os
meses de felicidade antes da chegada do proco; arranjava explicaes naturais
para aquelas maneirinhas ternas que ela outrora tinha para o padre Amaro, e que
lhe tinham dado cimes desesperados: era o desejo, coitada, de ser agradvel ao
hspede, ao amigo do senhor cnego, de o reter para vantagem da me e da casa!
E alm disso, como ela andava contente depois de resolvido o casamento! A sua
indignao contra o Comunicado, estava certo, no era natural dela - vinha-lhe
soprada pelo proco e belas beatas. E achava uma consolao nesta idia que no
era repelido como namorado, como marido - mas que era uma vtima das intrigas
do torpe padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto
acumulava- lhe na alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua
procurava ansiosamente uma vingana, atirando a imaginao, aqui e alm - mas
vinha-lhe sempre a mesma idia, o artigo do jornal, a verrina, a imprensa! A
certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se tivesse por si um
figuro!

Um homem do campo, amarelo como uma cidra, que ia caminhando devagar,


com o brao ao peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor Gouveia.
- Na primeira rua, esquerda, o porto verde ao p do lampio, disse Joo
Eduardo.
E uma esperana imensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouveia
que o podia salvar! O doutor era seu amigo; tratava-o por tu desde que o curara
havia trs anos da pneumonia; aprovava muito o seu casamento com Amlia;
havia ainda semanas perguntara-lhe ao p da Praa: - "Ento, quando se faz essa
rapariga feliz?" E que respeitado, que temido na Rua da Misericrdia! Era mdico
de todas as amigas da casa que, apesar de se escandalizarem com a sua irreligio,
dependiam humildemente da sua cincia para os achaques, os flatos, os xaropes.
Alm disso, o doutor Gouveia, inimigo decidido da padraria, decerto se ia
indignar com aquela intriga beata: e Joo Eduardo via-se j entrando na Rua da
Misericrdia atrs do doutor Gouveia, que repreendia a S. Joaneira, arrasava o
padre Amaro, convencia as velhas, - e a sua felicidade recomeava, inabalvel
agora!
- O senhor doutor est? perguntou ele quase alegre, criada que no ptio
estendia a roupa ao sol. - Est na consulta, Sr. Joozinho, faa favor de entrar.
Em dias de mercado os doentes do campo afluam sempre. Mas quela hora quando os vizinhos
das freguesias se renem nas tabernas - havia s um velho, uma mulher com
uma criana ao colo e o homem do brao ao peito, esperando numa saleta baixa
com bancos, dois manjerices na janela e uma grande gravura da Coroao da
Rainha Vitria. Apesar do sol claro que entrava no ptio, e de uma fresca
folhagem de tlia que roava o peitoril da janela, a saleta dava tristeza, como se as
paredes, os bancos, os mesmos manjerices estivessem saturados da melancolia
das doenas que ali tinham passado. Joo Eduardo entrou e sentou-se a um
canto.
Tinha batido meio-dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado tanto:
era de uma freguesia distante; deixara no mercado a irm, e havia uma hora que

o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada momento a criana rabujava,
ela sacudia-a nos braos: calavam-se depois: o velho arregaava a cala,
contemplava com satisfao uma chaga na canela envolta em trapos: e o outro
homem dava bocejos desconsolados que tomavam mais lgubre a sua longa face
amarela. Aquela demora enervava, amolecia o escrevente; sentia perder
gradualmente o nimo de ocupar o doutor Gouveia; preparava laboriosamente a
sua histria, mas ela parecia-lhe agora bem insuficiente para o interessar.
Vinha-lhe ento umdesalento, que as faces inspidas dos doentes tomavam ainda
mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia s de
misrias, de sentimentos trados, de
91
aflies, de doenas! Erguia-se; e com as mos atrs das costas ia olhar
desconsoladamente a Coroao da Rainha Vitria.
De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas senhoras
ainda l estariam. L estavam; e atravs do batente de baeta verde, que fechava o
gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes pachorrentas palrarem.
- Em caindo aqui, dia perdido! rosnava o velho.
Tambm ele deixara a cavalgadura porta do Fumaa, e a rapariga na Praa... E o
que teria a esperar na botica, depois! Com trs lguas ainda a fazer para voltar
freguesia!... Ser doente bom, mas para quem rico e tem vagares!
A idia da doena, da solido que ela traz, faziam agora parecer a Joo Eduardo
mais amarga a perda de Amlia. Se adoecesse, teria de ir para o hospital. O
malvado do padre tirara-lhe tudo - mulher, felicidade, confortos de famlia,
doces companhias da vida!
Enfim, sentiram no corredor as duas senhoras que saam. A mulher com a
criana apanhou o seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando- se logo do
banco junto da porta, disse com satisfao:

- Agora c o patro!
- Vossemec tem muito que consultar? perguntou-lhe Joo Eduardo.
- No senhor, s receber a receita.
E imediatamente contou a histria da sua chaga: fora uma trave que lhe cara em
cima; no fizera
caso; depois a ferida assanhara-se; e agora ali estava, manco e curtidinho de
dores.
- E vossa senhoria, coisa de cuidado? perguntou ele.
- Eu no estou doente, disse o escrevente. So negcios com o senhor doutor.
Os dois homens olharam-se com inveja.
Enfim foi a vez do velho, depois a do homem amarelo de brao ao peito. Joo
Eduardo, s,
passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difcil ir assim, sem
cerimnia, pedir proteo ao doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se
queixar primeiro de dores do peito ou desarranjos do estmago, e depois,
incidentalmente, contar os seus infortnios...
Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante dele, com sua longa barba grisalha
que lhe caa sobre a quinzena de veludo preto, o largo chapu desabado na
cabea, calando as luvas de fio de Esccia.
- Ol! s tu, rapaz! H novidade na Rua da Misericrdia? Joo Eduardo corou.
- No senhor, senhor doutor, queria falar-lhe em particular.
Seguiu-o ao gabinete - o conhecido gabinete do doutor Gouveia que, com o seu
caos de livros, o
seu tom poeirento, uma panplia de flechas selvagens e duas cegonhas
empalhadas, tinha na cidade a reputao duma "Cela de Alquimista".
O doutor puxou o seu cebolo.
- Um quarto para as duas. S breve.
A face do escrevente exprimiu o embarao de condensar uma narrao to
complicada.

- Est bom, disse o doutor, explica-te como puderes. No h nada mais difcil
que ser claro e
breve; necessrio ter gnio. Que ?
Joo Eduardo ento tartamudeou a sua histria, insistindo sobretudo na perfdia
do padre,
exagerando a inocncia de Amlia...
O doutor escutava-o, cofiando a barba.
- Vejo o que . Tu e o padre, disse ele, quereis ambos a rapariga. Como ele o
mais esperto e o
mais decidido, apanhou-a ele. lei natural: o mais forte despoja, elimina o mais
fraco; a fmea e a presa pertencem-lhe.
Aquilo pareceu a Joo Eduardo um gracejo. Disse, com a voz perturbada:
- Vossa excelncia est a caoar, senhor doutor, mas a mim retalhasse-me o
corao!
- Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a filosofar, no estou a caoar...
Mas enfim, que
queres tu que eu te faa?
Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, tambm, com mais pompa!
- Eu tenho a certeza que se vossa excelncia lhe falasse...
O doutor sorriu:
- Eu posso receitar rapariga este ou aquele xarope, mas no lhe posso impor
este ou aquele
homem! Queres que lhe v dizer: "A menina h-de preferir aqui o Sr. Joo
Eduardo?" Queres que v dizer ao padre, um magano que eu nunca vi: "O senhor
faz favor de no seduzir esta menina?"
- Mas caluniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de
maus costumes, um patife...

- No, no te caluniaram. Sob o ponto de vista do padre e daquelas senhoras que


jogam a noite o quino na Rua da Misericrdia, tu s um patife: um cristo que nos
peridicos vitupera abades, cnegos,
92
curas, personagens to importantes para se comunicar com Deus e para se salvar
a alma, um patife. No te caluniaram, amigo!
- Mas, senhor doutor...
- Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obedincias s instrues do
senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como uma boa catlica. o que te
digo. Toda a vida do bom catlico, os seus pensamentos, as sua idias, os seus
sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as sua
relaes de famlia e de vizinhana, os pratos do seu jantar, o seu vesturio e os
seus divertimentos - tudo isto regulado pela autoridade eclesistica (abade,
bispo ou cnego), aprovado ou censurado pelo confessor, aconselhado e
ordenado pelo diretor da conscincia. O bom catlico, como a tua pequena, no
se pertence; no tem razo, nem vontade, nem arbtrio, nem sentir prprio; o
seu cura pensa, quer, determina, sente por ela. O seu nico trabalho neste
mundo, que ao mesmo tempo o seu nico direito e o seu nico dever, aceitar
esta direo; aceit-la sem a discutir; obedecer-lhe, d por onde der; se ela
contraria as suas idias, deve pensar que as suas idias so falsas; se ela fere as
suas afeies, deve pensar que as suas afeies so culpadas. Dado isto, se o
padre disse pequena que no devia nem casar, nem sequer falar contigo, a
criatura prova, obedecendo-lhe, que uma boa catlica, uma devota
conseqente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral que escolheu. Aqui
est, e desculpa o sermo.
Joo Eduardo ouvia com respeito, com espanto estas frases, a que a face plcida, a
bela barba grisalha do doutor davam uma autoridade maior. Parecia-lhe agora
quase impossvel recuperar Amlia, se ela pertencia assim to absolutamente,
alma e sentidos, ao padre que a confessava. Mas enfim, por que era ele
considerado um marido prejudicial?

- Eu compreenderia, disse ele, se fosse um homem de maus costumes, senhor


doutor. Mas eu porto-me bem. Eu no fao seno trabalhar. Eu no freqento
tabernas, nem troas. Eu no bebo, eu no jogo. As minhas noites passo-as na
Rua da Misericrdia, ou em casa a fazer sero para o cartrio...
- Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religio
de nossos pais, todas as virtudes que no so catlicas so inteis e perniciosas.
Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, so grandes virtudes; mas
para os padres e para a Igreja no contam. Se tu fores um modelo de bondade mas
no fores missa, no jejuares, no te confessares, no te desbarretares para o
senhor cura - s simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu,
cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecvel, tm sido julgados
verdadeiros canalhas, porque no foram batizados antes de terem sido perfeitos.
Hs-de ter ouvido falar de Scrates, dum outro chamado Plato, de Cato, etc...
Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que o
grande chavo da doutrina, disse que das virtudes desses homens estava cheio o
Inferno... Isto prova que a moral catlica diferente da moral natural e da moral
social... Mas so coisas que tu compreendes mal... Queres tu um exemplo? Eu
sou, segundo a doutrina catlica, um dos grandes desavergonhados que passeiam
as ruas da cidade; e o meu vizinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas e
que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma filhita de dez anos, entre o
clero um homem excelente, porque cumpre os seus deveres de devoto e toca
figle nas missas cantadas. Enfim, amigo, estas coisas so assim. E parece que so
boas, porque h milhares de pessoas respeitveis que as consideram boas, o
Estado mantm-nas, gasta at um dinheiro para as manter, obriga-nos mesmo
a respeit-las, - e eu, que estou aqui a falar, pago todos os anos um quartinho
para que elas continuem a ser assim. Tu naturalmente pagas menos...
- Pago sete vintns, senhor doutor.
- Mas enfim vais s festas, ouves msica, sermo, desforras-te dos teus sete
vintns. Eu, o meu quartinho perco-o; consolo-me apenas com a idia de que vai
ajudar a manter o esplendor da Igreja - da Igreja que em vida me considera um

bandido, e que para depois de morto me tem preparado um inferno de primeira


classe. Enfim, parece-me que temos cavaqueado bastante... Que queres mais?
Joo Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava o doutor, parecia-lhe,
mais que nunca, que se um homem de palavras to sbias, de tantas idias, se
interessasse por ele, toda a intriga seria facilmente desfeita e a sua felicidade, o
seu lugar na Rua da Misericrdia recobrados para sempre.
- Ento vossa excelncia no pode fazer nada por mim? disse muito
desconsolado.
- Eu posso talvez curar-te de outra pneumonia. Tens outra pneumonia a curar?
No? Ento... Joo Eduardo suspirou:
- Sou uma vtima, senhor doutor!
- Fazes mal. No deve haver vtimas, quando no seja seno para impedir que
haja tiranos - disse
o doutor, pondo o seu largo chapu desabado.
- Porque no fim de tudo, exclamou ainda Joo Eduardo que se prendia ao doutor
com uma
sofreguido de afogado, no fim de tudo o que o patife do proco quer, com todos
os seus pretextos, a rapariga! Se ela fosse um camafeu, bem se importava o
maroto que eu fosse um mpio ou no! O que ele quer a rapariga!
93
O doutor encolheu os ombros.
- natural, coitado - disse, j com a mo no fecho da porta. Que queres tu? Ele
tem para as mulheres, como homem, paixes e rgos; como confessor, a
importncia dum Deus. evidente que h- de utilizar essa importncia para
satisfazer essas paixes; e que h de cobrir essa satisfao natural com as
aparncias e com os pretextos do servio divino... natural.
Joo Eduardo ento, vendo-o abrir a porta, desvanecer-se a esperana que o
trouxera ali, furioso, vergastando o ar com o chapu:

- Canalha de padres! Foi raa que sempre detestei! Queria-a ver varrida da face
da Terra, senhor doutor!
- Isso outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escut-lo ainda, e parando
porta do quarto. Ouve l. Tu crs em Deus? No Deus do Cu, no Deus que l est
no alto do Cu, e que l de cima o princpio de toda a justia e de toda a verdade?
Joo Eduardo, surpreendido, disse: - Eu creio, sim senhor.
- E no pecado original?
- Tambm...
- Na vida futura, na redeno, etc.?
- Fui educado nessas crenas...
- Ento para que queres varrer os padres da face da Terra? Deves pelo contrrio
ainda achar que
so poucos. s um liberal racionalista nos limites da Carta, ao que vejo... Mas se
crs no Deus do Cu, que nos dirige l de cima, e no pecado original, e na vida
futura, precisas duma classe de sacerdotes que te expliquem a doutrina e a moral
revelada de Deus, que te ajudem a purificar da mcula original e te preparem o
teu lugar no Paraso! Tu necessitas dos padres. E parece-me mesmo uma terrvel
falta de lgica que os desacredites pela imprensa...
Joo Eduardo, atnito, balbuciou:
- Mas vossa excelncia, senhor doutor... Desculpe-me vossa excelncia, mas...
- Dize, homem. Eu qu?
- Vossa excelncia no precisa dos padres neste mundo...
- Nem no outro. Eu no preciso dos padres no mundo, porque no preciso do
Deus do Cu. Isto
quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro de mim, isto , o princpio
que dirige as minhas aes e os meus juzos. Vulgo Conscincia... Talvez no
compreendas bem... O fato que estou aqui a expor doutrinas subversivas... E
realmente so trs horas...

E mostrou-lhe o cebolo.
porta do ptio, Joo Eduardo disse-lhe ainda:
- Vossa excelncia ento desculpe, senhor doutor...
- No h de qu... Manda a Rua da Misericrdia ao diabo!
Joo Eduardo interrompeu com calor:
- Isso bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixo est a roer c por
dentro!...
- Ah! fez o doutor, uma bela e grande coisa a paixo! O amor uma das grandes
foras da
civilizao. Bem dirigida levanta um mundo e bastava para nos fazer a revoluo
moral... - E mudando de tom: - Mas escuta. Olha que isso s vezes no paixo,
no est no corao... O corao ordinariamente um termo de que nos
servimos, por decncia, para designar outro rgo. precisamente esse rgo o
nico que est interessado, a maior parte das vezes, em questes de sentimento.
E nesses casos o desgosto no dura. Adeus, estimo que seja isso!
XIV
Joo Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado, todo
cansado da noite desesperada que passara, daquela manh cheia de passos
inteis das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouveia.
- Acabou-se, pensava, no posso fazer mais nada! agentar.
Tinha a alma extenuada de tantos esforos de paixo, de esperana e de clera.
Desejaria ir estirar-se ao comprido, num stio isolado, longe de advogados, de
mulheres e de padres, e dormir durante meses. Mas como j passava das trs
horas, apressava-se para o cartrio do Nunes. Teria talvez ainda de ouvir um
sermo por ter chegado to tarde! Triste vida a sua!
94
Dobrava a esquina no Terreiro, quando ao p da casa de pasto do Osrio se
encontrou com um moo de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito

larga, e com um bigodinho to preto que parecia postio sobre as suas feies
extremamente plidas.
- Ol! Que feito, Joo Eduardo?
Era um Gustavo, tipgrafo da Voz do Distrito, que havia dois meses fora para
Lisboa. Segundo dizia o Agostinho, era "rapaz de cabea e instruidote, mas de
idias do diabo". Escrevia s vezes artigos de poltica estrangeira, onde
introduzia frases poticas e retumbantes, amaldioando Napoleo III, o czar e os
opressores do povo, chorando a escravido da Polnia e a misria do proletrio. A
simpatia entre ele e Joo Eduardo proviera de conversas sobre religio, em que
ambos exalavam o seu dio ao clero e a sua admirao por Jesus Cristo. A
revoluo de Espanha entusiasmara-o tanto que aspirara a pertencer
Internacional; e o desejo de viver num centro operrio, onde houvesse
associaes, discursos e fraternidade, levara-o a Lisboa. Encontrara l bom
trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a me, velha e doente, e como
era mais econmico viverem juntos, voltara a Leiria. O Distrito, alm disso, na
perspectiva de eleies, prosperava a ponto de aumentar o salrio aos trs
tipgrafos.
- De modo que l estou outra vez com o raqutico... Vinha jantar, e convidou logo
Joo Eduardo a que lhe fizesse companhia. No havia de acabar o mundo, que
diabo, por ele faltar um dia ao cartrio!
Joo Eduardo ento lembrou-se que desde a vspera no tinha comido. Era talvez
a debilidade que o trouxera assim estonteado, to pronto a desanimar... Decidiuse logo - contente, depois das emoes e das fadigas da manh, de se estirar no
banco da taberna, diante dum prato cheio, na intimidade com um camarada de
dios iguais aos seus. Demais, os repeles que sofrera davam-lhe uma
necessidade, uma avidez de simpatia; e foi com calor que disse:
- Homem, valeu! Cais-me do cu! Este mundo uma choldra. Se no fosse por
alguma hora que se passa em amizade, caramba, no valia a pena andar por c! .

Este modo, to novo no Joo Eduardo, no Pacatinho, espantou Gustavo.


- Por qu? As coisas no correm bem? Turras com a besta do Nunes, hem?
perguntou-lhe.
- No, um bocado de spleen.
- Isso de spleen de ingls! Oh menino, havias de ver o Taborda no Amor
londrino!... Deixa l o
spleen. deitar lastro para dentro e carregar no lquido!
Travou-lhe do brao, meteu-o pela porta da taberna.
- Viva o tio Osrio! Sade e fraternidade!
O dono da casa de pasto, o tio Osrio, personagem obeso e contente da vida, com
as mangas da
camisa arregaadas at aos ombros, os braos nus muito brancos apoiados sobre
o balco, a face balofa e finria, felicitou logo Gustavo de o ver de novo em Leiria.
Achava-o mais magrito... Havia de ser das ms guas de Lisboa e do muito
paucampeche nos vinhos... E que havia dele servir aos cavalheiros?
Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapu para nuca, apressou-se a
soltar o gracejo, que tanto o entusiasmara em Lisboa:
- Tio Osrio, sirva-nos fgado de rei, com rim grelhado de padre! O tio Osrio,
pronto rplica, disse logo, dando um raspo de rodilha sobre o zinco do
contador:
- No temos c disso, Sr. Gustavo. Isso petisco da capital.
- Ento esto vocs muito atrasados! Em Lisboa era todos os dias o meu almoo...
Bem, acabou- se, d-nos duas iscas com batatas... E bem saltadinho, isso!
- Ho-de ser servidos como amigos.
Acomodaram-se "mesa dos envergonhados", entre dois tabiques de pinho
fechados por uma cortina de chita. O tio Osrio, que apreciava Gustavo, "moo
instrudo e de pouca troa", veio ele mesmo trazer a garrafa do tinto e as
azeitonas; e limpando os copos ao avental enxovalhado:

- Ento que h de novo pela capital, Sr. Gustavo? Como vai por l aquilo?
O tipgrafo deu imediatamente seriedade ao rosto: passou a mo pelos cabelos, e
deixou cair algumas frases enigmticas:
Tremidito... Muito pouca-vergonha em poltica... A classe operria comea a
mexer-se... Falta de unio, por ora... Est-se espera de ver como as coisas
correm em Espanha... H-de hav-las bonitas! Tudo depende de Espanha...
Mas o tio Osrio, que juntara alguns vintns e comprara uma fazenda, tinha
horror a tumultos... O que se queria no pas era paz... Sobretudo o que lhe
desagradava era contar-se com espanhis... De Espanha, deviam os cavalheiros
sab-lo, "nem bom vento nem bom casamento"!
- Os povos so todos irmos! exclamou Gustavo. Quando se tratar de atirar
abaixo Bourbons e imperadores, camarilhas e fidalguia, no h portugueses nem
espanhis, todos so irmos! Tudo fraternidade, tio Osrio!
- Pois ento beber-lhe sade, e beber-lhe rijo, que isso que faz andar o
negcio, disse o tio Osrio tranqilamente, rolando a sua obesidade para fora do
cubculo.
95
- Elefante! rosnou o tipgrafo, chocado com aquela indiferena pela Fraternidade
dos Povos. Que se podia esperar, de resto dum proprietrio e dum agente de
eleies?
Trauteou a Marselhesa, enchendo os copos do alto, e quis saber o que tinha feito
o amigo Joo Eduardo... J se no ia pelo Distrito? O raqutico dissera-lhe que no
havia despeg-lo da Rua da Misericrdia.
- E quando esse casamento, por fim? Joo Eduardo corou, disse vagamente:
- Nada decidido... Tem havido dificuldades. E acrescentou com um sorriso
desconsolado: - Temos tidos arrufos.

- Pieguices! soltou o tipgrafo, com um movimento de ombros, que exprimia um


desdm de revolucionrio pelas frivolidades do sentimento.
- Pieguices... No sei se so pieguices, disse Joo Eduardo. O que sei que do
desgostos... Arrasam um homem, Gustavo...
Calou-se, mordendo o beio, para recalcar a emoo que o revolvia.
Mas o tipgrafo achava todas essas histrias de mulheres ridculas. O tempo no
estava para amores... O homem do povo, o operrio que se agarrava a uma saia
para no despegar era um intil... era um vendido! Em que se devia pensar no
era em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar o trabalho das garras do
capital, acabar com os monoplios, trabalhar para a repblica! No se queria
lamria, queria-se ao, queria- se a fora! - E carregava furiosamente no r da
palavra - a forrra! agitando os seus pulsos magrssimos de tsico sobre o grande prato de iscas que o
moo trouxera.
Joo Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o tipgrafo, doido
pela Jlia padeira, aparecia sempre com os olhos vermelhos como carves, e
atroava a tipografia com suspiros medonhos. A cada ai os camaradas, troando,
davam uma tossezinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo e o
Medeiros tinham-se esmurrado no ptio...
- Olha quem fala! disse por fim. s como os outros... Ests a a palrar, e quando te
chega s
como os outros.
O tipgrafo ento - que, desde que em Lisboa freqentara um clube democrtico
de Alcntara e
ajudara a redigir um manifesto aos irmos cigarreiros em greve, se considerava
exclusivamente votado ao servio do Proletariado e da Repblica - escandalizouse. Ele? Ele como os outros? Perder o seu tempo com saias?...

- Est vossa senhoria muito enganado! - e recolheu-se a um silncio chocado,


partindo com furor a sua isca.
Joo Eduardo receou t-lo ofendido.
- Gustavo, sejamos razoveis! um homem pode ter os seus princpios,
trabalhar pela sua causa, mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma famlia.
- Nunca! exclamou o tipgrafo exaltado. O homem que casa est perdido! Da por
diante ganhar a papa, no se mexer do buraco, no ter um momento para os
amigos, passear de noite os marmanjos quando eles berram com os dentes. um
intil! um vendido! As mulheres no entendem nada de poltica. Tm medo
que o homem se meta em barulhos, tenha turras com a polcia. Est um patriota
atado de ps e mos! E quando h um segredo a guardar? O homem casado no
pode guardar um segredo?... E ai est s vezes uma revoluo comprometida...
Sebo para a famlia! Outra de azeitonas, tio Osrio!
A pana do tio Osrio apareceu entre os tabiques.
- Ento que esto os senhores aqui a questionar, que parece que entraram os da
Maia no concelho de distrito?
Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de pema estirada, e interpelando-o de
alto:
- O tio Osrio que vai dizer. Diga l o amigo. Vossemec era homem de mudar
as suas opinies polticas para fazer a vontade sua patroa?
O tio Osrio acariciou o cachao e disse com um tom finrio:
- Eu lhe respondo, Sr. Gustavo. Mulheres so mais espertas que ns... E em
poltica, como em negcio, quem for com o que elas dizem vai pelo seguro... Eu
sempre consulto a minha, e se quer que lhe diga, j vai em vinte anos e no me
tenho achado mal.
Gustavo pulou no banco:
- Voc um vendido! gritou.

O tio Osrio, acostumado quela expresso querida do tipgrafo, no se


escandalizou: gracejou
at com o seu amor s boas rplicas:
- Vendido no direi, mas vendedor pro que quiser... Pois o que lhe digo, Sr.
Gustavo. O senhor
casar, e depois mas contar.
- O que hei-de contar, , quando houver uma revoluo, entrar-lhe por aqui de
espingarda ao
ombro, e met-lo em conselho de guerra, seu capitalista!
96
- Pois enquanto isso no chega, beber-lhe e beber-lhe rijo, disse o tio Osrio
retirando-se com pachorra.
- Hipoptamo - resmungou o tipgrafo.
E, como adorava discusses, recomeou logo - sustentando que o homem,
embeiado por uma saia, no tem firmeza nas suas convices polticas...
Joo Eduardo sorria tristemente, numa negao muda, pensando consigo que,
apesar da sua paixo por Amlia, no se tinha confessado nos dois ltimos anos!
- Tem provas! berrava Gustavo.
Citou um livre-pensador das suas relaes que, para manter a paz domstica, se
sujeitava a jejuar s sextas-feiras, e palmilhar aos domingos o caminho da capela
de ripano debaixo do brao...
- E o que te h-de suceder!... Tu tens idias menos ms a respeito da religio,
mas ainda te hei- de ver de opa vermelha e crio na procisso do Senhor dos
Passos... Filosofia e atesmo no custam nada quando se conversa no bilhar entre
rapazes... Mas pratic-los em famlia, quando se tem uma mulher bonita e
devota, o diabo! o que te h-de suceder, se que te no vai sucedendo j hs-

de atirar as tuas convices liberais para o caixo do cisco, e fazer barretadas ao


confessor da casa!
Joo Eduardo fazia-se escarlate de indignao. Mesmo nos tempos da sua
felicidade, quando tinha Amlia certa, aquela acusao (que o tipgrafo fazia s
para questionar, para palrar) t-lo-ia escandalizado. Mas hoje! Justamente
quando ele perdera Amlia por ter dito de alto, num jornal, o seu horror a beatos!
Hoje que se achava ali, com o corao partido, roubado de toda a alegria,
exatamente pelas suas opinies liberais!...
- Isso dito a mim tem graa! disse com uma amargura sombria.
O tipgrafo galhofou:
- Homem, no me constou ainda que fosses um mrtir da liberdade!
- Por quem s no apoquentes, Gustavo, disse o escrevente muito chocado. Tu
no sabes o que se
tem passado. Se soubesses no me dizias isso!
Contou-lhe ento a histria do Comunicado - calando todavia que o escrevera
num fogo de
cimes, e apresentando-o como uma pura afirmao de princpios... E que
notasse esta circunstncia, ia ento casar com uma rapariga devota, numa casa
que era mais freqentada por padres que a sacristia da S...
- E assinaste? perguntou Gustavo, espantado da revelao.
- O doutor Godinho no quis, disse o escrevente corando um pouco.
- E deste-lhes uma desanda, hem?
- A todos, de rachar!
O tipgrafo, entusiasmado, berrou por "outra de tinto"!
Encheu os copos com transporte, bebeu uma grande sade a Joo Eduardo.
- Caramba, quero ver isso! Quero mand-lo rapaziada em Lisboa!... E que efeito
fez?
- Um escndalo, mestre.
- E os padrecas?
- Em brasa!

- Mas como souberam que eras tu?


Joo Eduardo encolheu os ombros. O Agostinho no o dissera. Desconfiava da
mulher do
Godinho, que o sabia pelo marido, e que o fora meter no bico do padre Silvrio,
seu confessor, o padre Silvrio da Rua das Teresas...
- Um gordo, que parece hidrpico?
- Sim.
- Que besta! rugiu o tipgrafo com rancor.
Olhava agora Joo Eduardo com respeito, aquele Joo Eduardo quese lhe revelara
inesperadamente um paladino do livre pensamento.
- Bebe, amigo, bebe! dizia-lhe, enchendo-lhe o copo com afeto, como se aquele
esforo herico
de liberalismo necessitasse ainda, depois de tantos dias, reconfortos
excepcionais.
E que se tinha passado? Que tinha dito a gente da Rua da Misericrdia?
Tanto interesse comoveu Joo Eduardo: e dum flego fez a sua confidncia.
Mostrou-lhe mesmo
a carta de Amlia que ela decerto, coitada, fora levada a escrever num terror do
Inferno, sob a presso dos padres furiosos...
- E aqui tens a vtima que eu sou, Gustavo!
Era-o com efeito; e o tipgrafo considerava-o com uma admirao crescente. J
no era o Pacatinho, o escrevente do Nunes, o chichisbu da Rua da Misericrdia
- era uma vtima das perseguies religiosas. Era a primeira que o tipgrafo via;
e, apesar de no lhe aparecer na atitude tradicional das estampas de propaganda,
amarrado a um poste de fogueira ou fugindo com a famlia
97

espavorida a soldados que galopam da sombra do ltimo plano, achava-o


interessante. Invejava-lhe secretamente aquela honra social. Que chique que lhe
daria a ele entre a rapaziada de Alcntara! Famosa pechincha, ser uma vtima da
reao, sem perder o conforto das iscas do tio Osrio e os salrios inteiros ao
sbado! - Mas sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o! Para se
vingarem dum liberal, intrigarem-no, tirarem-lhe a noiva! - Oh, que canalha!...
E esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e Famlia, trovejou de alto
contra o clero, que quem sempre destri essa instituio social, perfeita, de
origem divina!
- Isso precisa uma vingana medonha, menino! necessrio arras-los! Uma
vingana? Joo Eduardo desejava-a, vorazmente! Mas qual?
- Qual? Contar tudo no Distrito, num artigo tremendo!
Joo Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho: dali por diante o Distrito
estava fechado aos senhores livres-pensadores!
- Cavalgadura! rugiu o tipgrafo.
Mas tinha uma idia, caramba! Publicar um folheto! Um folheto de vinte pginas,
o que se chama no Brasil uma mofina, mas num estilo floreado (ele se
encarregava disso), caindo sobre o clero com um desabamento de verdades
mortais!
Joo Eduardo entusiasmou-se. E diante daquela simpatia ativa de Gustavo, vendo
nele um irmo, soltou as ltimas confidncias, as mais dolorosas. O que havia no
fundo da intriga era a paixo do padre Amaro pela pequena, e era para se
apoderar dela que o escorraava a ele... O inimigo, o malvado, o carrasco - era o
proco!
O tipgrafo apertou as mos na cabea: semelhante caso (que todavia era para ele
trivial, nas locais que compunha) sucedido a um amigo seu que estava ali
bebendo com ele, a um democrata, parecia- lhe monstruoso, alguma coisa

semelhante aos furores de Tibrio na velhice, violando, em banhos perfumados,


as carnes delicadas de mancebos patrcios.
No queria acreditar. Joo Eduardo acumulou as provas. E ento Gustavo, que
tinha molhado vastamente de tinto as iscas de fgado, ergueu os punhos
fechados, e com a face intumescida, dente rilhado, berrou em rouco:
- Abaixo a religio!
Do outro lado do tabique uma voz trocista grasnou em rplica:
- Viva Pio Nono!
Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremetido. Mas Joo Eduardosossegouo. E o
tipgrafo, sentando-se tranqilamente, rechupou o fundo do copo.
Ento, com os cotovelos sobre a mesa, a garrafa entre eles, conversaram baixo,
de rosto a rosto,
sobre o plano do folheto. A coisa era fcil: escrev-lo-iam ambos. Joo Eduardo
queria-o em forma de romance, de enredo negro, dando ao personagem do
proco os vcios e as perversidades de Calgula e de Heliogbalo. O tipgrafo
porm queria um livro filosfico, de estilo e de princpios, que demolisse de uma
vez para sempre oUltramontanismo! Ele mesmo se encarregava de imprimir a
obra aos seres, grtis, j se sabe. - Mas apareceu-lhes ento, bruscamente, uma
dificuldade.
- O papel? Como se h-de arranjar o papel?
Era uma despesa de nove ou dez mil-ris; nenhum os tinha - nem um amigo
que, por dedicao aos princpios, lhos adiantasse.
- Pede-os ao Nunes por conta do teu ordenado! lembrou vivamente o tipgrafo.
Joo Eduardo coou desconsoladamente a cabea. Estava justamente pensando
no Nunes e na sua indignao de devoto, de membro da junta de parquia, amigo
do chantre, apenas lesse o panfleto! E se soubesse que era o seu escrevente que o
compusera, com as penas do cartrio, no papel almao do cartrio... Via-o j roxo

de clera, alando sobre o bico dos sapatos brancos a sua pessoa gordalhufa, e
gritando na voz de grilo - "Fora daqui, pedreiro-livre, fora daqui!"
- Ficava eu bem arranjado, disse Joo Eduardo muito srio, nem mulher, nem
po!
Isto fez lembrar tambm a Gustavo a clera provvel do doutor Godinho, dono da
tipografia. O doutor Godinho, que depois da reconciliao com a gente da Rua da
Misericrdia, retomara publicamente a sua considervel posio de pilar da Igreja
e esteio da F...
- o diabo, pode-nos sair caro, disse ele.
- impossvel! disse o escrevente.
Ento praguejaram de raiva. Perder uma ocasio daquelas para pr a calva
mostra ao clero!
O plano do folheto, como uma coluna tombada que parece maior, afigurava-selhes, agora que
estava derrubado, duma altura, duma importncia colossal. No era j a
demolio local dum proco celerado, era a runa, ao longe e ao largo, de todo o
clero, dos jesutas, do poder temporal, de outras coisas funestas... - Maldio! se
no fosse o Nunes, se no fosse o Godinho, se no fossem os nove mil-ris do
papel!
98
Aquele perptuo obstculo do pobre, falta de dinheiro e dependncia do patro,
que at para um folheto era estorvo, revoltou-os contra a sociedade.
- Positivamente necessrio uma revoluo, afirmou o tipgrafo. necessrio
arrasar tudo, tudo! - E o seu largo gesto sobre a mesa indicava, num formidvel
nivelamento social, uma demolio de igrejas, palcios, bancos, quartis, e
prdios de Godinhos ! - Outra do tinto, tio Osrio!...
Mas o tio Osrio no aparecia. Gustavo martelou a mesa a toda a fora com o cabo

da faca. E enfim, furioso, saiu fora ao contador "para arrebentar a pana quele
vendido que fazia assim esperar um cidado".
Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando com o baro de Via-Clara,
que, em vsperas de eleies, vinha pelas casas de pasto apertar a mo aos
compadres. E ali na taberna, parecia magnfico o baro, com a sua luneta de ouro,
os botins de verniz sobre o solo trreo, tossicando ao cheiro acre do azeite
fervido e das emanaes das borras de vinho.
Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao cubculo.
- Est com o baro, disse numa surdina respeitosa.
Mas vendo Joo Eduardo aniquilado, com a cabea entre os punhos, o tipgrafo
exortou-o a no
esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de casar com uma beata...
- No me pode vingar daquele maroto! interrompeu Joo Eduardo com um
repelo ao prato.
- No te aflijas, prometeu o tipgrafo com solenidade, que a vingana no vem
longe!
Fez-lhe ento, baixo, a confidncia "das coisas que se preparavam em Lisboa".
Tinham-lhe
afianado que havia um clube republicano a que at pertenciam figures - e que
era para ele uma garantia superior de triunfo. Alm disso, a rapaziada do trabalho
mexia-se... Ele mesmo - e murmurava quase contra a face de Joo Eduardo,
estirado sobre a mesa - fora falado para pertencer a uma seo da Internacional,
que devia organizar um espanhol de Madri; nunca vira o espanhol, que se
disfarava por causa da policia; e a coisa falhara porque o Comit tinha falta de
fundos... Mas era certo haver um homem, que possua um talho, que prometera
cem mil-ris... O exrcito, alm disso, estava na coisa: tinha visto numa reunio
um sujeito barrigudo que lhe tinham dito que era major, e que tinha cara de
major... - De modo que, com todos estes elementos, a opinio dele Gustavo, era
que dentro de meses, governo, rei, fidalgos, capitalistas, bispos, todos esses
monstros iam pelos ares!

- E ento somos ns os reizinhos, menino! Godinho, Nunes toda a cambada


ferramo-la na enxovia de S. Francisco. Eu a quem me atiro ao Godinho...
Padres, derreamo-los pancada! E o povo respira, enfim!
- Mas daqui at l! suspirou Joo Eduardo, que pensava com amargura que,
quando a revoluo viesse j seria tarde para recuperar a Ameliazinha...
O tio Osrio ento apareceu com a garrafa.
- Ora at que enfim, seu fidalgo! disse o tipgrafo a trasbordar de sarcasmo.
- No se pertence classe, mas -se tratado por ela com considerao, replicou
logo o tio Osrio,
que a satisfao fazia parecer mais panudo.
- Por causa de meia dzia de votos!
- Dezoito na freguesia, e esperanas de dezenove. E que se h-de servir mais aos
cavalheiros?
Nada mais?... Pois pena. Ento beber-lhe, beber-lhe!
E correu a cortina, deixando os dois amigos em frente da garrafa cheia, aspirarem
a uma
Revoluo que lhes permitisse - a um reaver a menina Amlia, a outro espancar o
patro Godinho.
Eram quase cinco horas quando saram enfim do cubculo. O tio Osrio, que se
interessava por eles por serem rapazes de instruo, notou logo, examinando-os
do canto do balco onde saboreava o seu Popular, que vinham tocaditos. Joo
Eduardo, sobretudo, de chapu carregado e beio trombudo: "pessoa de mau
vinho", pensou o tio Osrio, que o conhecia pouco. Mas o Sr. Gustavo, como
sempre, depois dos trs litros, resplandecia de jbilo. Grande rapaz! Era ele que
pagava a conta; e gingando para o balco,
batendo de alto com as suas duas placas:
- Encafua mais essas na burra, Osrio pipa!
- O que pena que sejam s duas, Sr. Gustavo.

- Ah bandido! imaginas que o suor do povo, o dinheiro do trabalho para encher


a pana dos
Filistinos? Mas no as perdes! Que no dia do ajuste de contas quem h-de ter a
honra de te furar esse bandulho h-de ser c o Bibi... E o Bibi sou eu... Eu que
sou o Bibi! No verdade, Joo, quem o Bibi?
Joo Eduardo no escutava; muito carrancudo, olhava com desconfiana um
borracho, que na mesa do fundo, diante do seu litro vazio, com o queixo na
palma da mo e o cachimbo nos dentes, embasbacara, maravilhado, para os dois
amigos.
O tipgrafo puxou-o para o balco:
99
- Diz aqui ao tio Osrio quem o Bibi! Quem o Bibi?... Olhe para isto, tio Osrio!
Rapaz de talento, e dos bons! Veja-me isto! Com duas penadas d cabo do
Ultramontanismo! c dos meus! Tambm entre ns para a vida e para a
morte. Deixa l a conta, Osrio barrigudo, ouve o que te digo! Este dos bons... E
se ele aqui voltar e quiser dois litros a crdito, dar-lhos... C o Bibi responde
por tudo.
- Temos pois, comeou o tio Osrio, iscas a dois, salada a dois...
Mas o borracho arrancara-se com esforo ao seu banco: de cachimbo espetado,
arrotando forte, veio plantar-se diante do tipgrafo, e, tremeleando nas pernas,
estendeu-lhe a mo aberta.
Gustavo considerou-o de alto, com nojo:
- Que quer voc? Aposto que foi voc que berrou h pouco: Viva Pio Nono! Seu
vendido... Tire para l a pata!
O borracho, repelido, grunhiu; e, embicando contra Joo Eduardo,ofereceu-lhe a
mo espalmada.

- Arrede para l, seu animal! disse-lhe o escrevente desabrido.


- Tudo amizade... Tudo amizade... resmungava o borracho.
E no se arredava, com os cinco dedos muito espetados, despedindo um hlito
ftido.
Joo Eduardo, furioso, atirou-o de repelo contra o contador.
- Brincadeiras de mos, no! exclamou logo severamente o tio Osrio.
Brutalidades, no!
- Que se no metesse comigo, rosnou o escrevente. E a voc fao- lhe o mesmo...
- Quem no tem decncia vai para a rua, disse muito grave o tio Osrio.
- Quem vai para a rua, quem vai para a rua? rugiu o escrevente, empinando-se,
de punho
fechado. Repita l isso de ir para a rua! Com quem est voc a falar?
O tio Osrio no replicava, apoiado sobre as mos ao balco, patenteando os seus
enormes
braos que lhe faziam o estabelecimento respeitado.
Mas Gustavo, com autoridade, ps-se entre os dois, e declarou que era necessrio
ser-se
cavalheiro! Questes e ms palavras, no! Podia-se chalacear e troar os amigos,
mas como cavalheiros! E ali s havia cavalheiros.
Arrastou para um canto o escrevente, que resmungava muito ressentido.
- Oh, Joo! oh, Joo! dizia-lhe com grandes gestos, isso no dum homem
ilustrado!
Que diabo! Era necessrio ter-se boas maneiras! Com repentes, com vinho
desordeiro, no havia
pndega, nem sociedade, nem fraternidade!
Voltou ao tio Osrio, falando-lhe sobre o ombro, excitado:
- Eu respondo por ele, Osrio! um cavalheiro! Mas tem tido desgostos, e no
est acostumado

a um litro de mais. o que ! Mas dos bons... Voc desculpe, tio Osrio. Que eu
respondo por ele... Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a mo ao tio
Osrio. O taberneiro declarou com nfase que no quisera insultar o cavalheiro.
Os shake-hands ento sucederam-se com veemncia. Para consolidar a
reconciliao, o tipgrafo pagou trs canas brancas. Joo Eduardo, por brio,
ofereceu tambm um giro de conhaque. E com os copos em fila sobre o balco,
trocavam boas palavras, tratavam-se de cavalheiros, - enquanto o borracho,
esquecido ao seu canto, derreado para cima da mesa, a cabea sobre os punhos e
o nariz sobre o litro, se babava silenciosamente, com o cachimbo cravado nos
dentes.
- Disto que eu gosto, dizia o tipgrafo a quem a aguardente aumentara a
ternura. Harmonia! C o meu fraco a harmonia! Harmonia entre a rapaziada e
entre a humanidade... O que eu queria era ver uma grande mesa, e toda a
humanidade sentada num banquete, e fogo preso, e chalaa, e decidirem-se as
questes sociais! E o dia no vem longe em que voc o h-de ver, tio Osrio!...
Em Lisboa as coisas vo- se preparando para isso. E o tio Osrio que h-de
fornecer o vinho... Hem, que negociozinho! Diga que no sou amigo!
- Obrigado, Sr. Gustavo, obrigado...
- Isto aqui entre ns, hem? Que somos todos cavalheiros! E c este - abraava
Joo Eduardo - como se fosse irmo! Entre ns pra vida e pra morte! E
mandar a tristeza ao diabo, rapazo! Toca a escrever o folheto... O Godinho, e o
Nunes...
- O Nunes racho-o! soltou com fora o escrevente, que, depois das sades com
cana, parecia mais sombrio.
Dois soldados entraram ento na taberna - e Gustavo julgou que eram horas de ir
para a tipografia. Seno, no se haviam de separar todo o dia, no se haviam de
separar toda a vida!... Mas o trabalho dever, o trabalho virtude!
Saram, enfim, depois de mais shake-hands com o tio Osrio. porta, Gustavo
jurou ainda ao escrevente uma lealdade de irmo; obrigou-o a aceitar a sua bolsa

de tabaco; e desapareceu esquina da rua, de chapu para a nuca, trauteando o


Hino do Trabalho.
100

Joo Eduardo, s, abalou logo para a Rua da Misericrdia. Ao chegar porta da S.


Joaneira, apagou com cuidado o cigarro na sola do sapato, e deu um puxo
tremendo ao cordo da campainha.
A Rua veio, correndo.
- A Ameliazinha? Quero-lhe falar!
- As senhoras saram, disse a Rua espantada do modo do Sr. Joozinho.
- Mente, sua bbeda! berrou o escrevente.
A rapariga, aterrada, fechou a porta de estalo.
Joo Eduardo foi-se encostar parede defronte, e ficou ali, de braos cruzados,
observando a
casa: as janelas estavam fechadas, as cortinas de cassa corridas; dois lenos de
rap do cnego secavam embaixo na varanda.
Aproximou-se de novo e bateu devagarinho a aldrava. Depois repicou com furor
a campainha. Ningum apareceu: ento, indignado, partiu para os lados da S.
Ao desembocar no largo, diante da fachada da igreja, parou, procurando em redor
com o sobrolho carregado: mas o largo parecia deserto; porta da farmcia do
Carlos um rapazito, sentado no degrau, guardava pela arreata um burro carregado
de erva; aqui e alm, galinhas iam picando o cho vorazmente; o porto da igreja
estava fechando; e apenas se ouvia o rudo de marteladas numa casa ao p em
que havia obras.
E Joo Eduardo ia seguir para os lados da alameda - quando apareceram no
terrao da igreja, da banda da sacristia, o padre Silvrio e o padre Amaro,
conversando, devagar.

Batia ento um quarto na torre, e o padre Silvrio parou a acertar o seu cebolo.
Depois os dois padres observaram maliciosamente a janela da administrao de
vidraas abertas, onde se via, no escuro, o vulto do senhor administrador de
binculo cravado para a casa do Teles alfaiate. E desceram enfim a escadaria da
S, rindo de ombro a ombro, divertidos com aquela paixo que escandalizava
Leiria.
Foi ento que o proco viu Joo Eduardo que estacara no meio do largo. Parou
para voltar S decerto, evitar o encontro; mas viu o porto fechado, e ia seguir
de olhos baixos, ao lado do bom Silvrio que tirava tranqilamente a sua caixa de
rap, - quando Joo Eduardo, arremessando-se, sem uma palavra, atirou a toda a
fora um murro no ombro de Amaro.
O proco, aturdido, ergueu frouxamente o guarda-chuva.
- Acudam! berrou logo o padre Silvrio, recuando de braos no ar. Acudam!
Da porta da administrao um homem correu, agarrou furiosamente o
escrevente pela gola:
- Est preso! rugia. Est preso!
- Acudam, acudam! berrava Silvrio a distncia.
Janelas no largo abriam-se pressa. A Amparo da botica, em saia branca,
apareceu varanda,
espavorida; o Carlos precipitara-se do laboratrio em chinelas; e o senhor
administrador, debruado na sacada, bracejava, com o binculo na mo.
Enfim o escrivo da administrao, o Domingos, compareceu, muito grave, de
mangas de lustrina enfiadas; e com o cabo de polcia levou logo para a
administrao o escrevente, que no resistia, todo plido...
O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor proco para a botica; fez
preparar, com estrpito, flor de laranja e ter; gritou pela esposa, para arranjar
uma cama... Queria examinar o ombro de sua senhoria: haveria intumescncia?
- Obrigado, no nada, dizia o proco muito branco. No nada. Foi um raspo.
Basta-me uma gota de gua...

Mas a Amparo achava melhor um clice de vinho do Porto; e correu acima a


buscar-lho, tropeando nos pequenos que se lhe despenduravam das saias,
dando ais, explicando pela escada criada que tinham querido matar o senhor
proco!
porta da botica juntara-se gente, que embasbacava para dentro; um dos
carpinteiros que trabalhavam nas obras afirmava que "fora uma facada"; e uma
velha por trs debatia-se, de pescoo esticado, para ver osangue. Enfim, a pedido
do proco, que receava escndalo, o Carlos veio majestosamente declarar que no
queria motim porta! O senhor proco estava melhor. Fora apenas um soco, um
raspo de mo... Ele respondia por sua senhoria.
E como o burro ao lado comeara a ornear, o farmacutico voltando- se
indignado para o rapazito que o segurava pela arreata:
- E tu no tens vergonha, no meio dum desgosto destes, um desgosto para toda a
cidade, de ficar aqui com esse animal, que no faz seno zurrar? Para longe,
insolente, para longe!
101
Aconselhou ento os dois sacerdotes a que subissem para a sala, para evitar a
"curiosidade da populaa". E a boa Amparo apareceu logo com dois clices do
Porto, um para o senhor proco, outro para o Sr. padre Silvrio que se deixara cair
a um canto do canap apavorado ainda, extenuado de emoo.
- Tenho cinqenta e cinco anos, disse ele depois de ter chupado a ltima gota de
Porto, e a primeira vez que me vejo num barulho!
O padre Amaro, mais sossegado agora, afetando bravura, chasqueou o padre
Silvrio:
- Voc tomou o caso muito ao trgico, colega... E l ser a primeira, vamos l...
Todos sabem que o colega esteve pegado com o Natrio...
- Ah, sim, exclamou o Silvrio, mas isso era entre sacerdotes, amigo!

Mas a Amparo, ainda muito trmula, enchendo outro clice ao senhor proco,
quis saber "os particulares, todos os particulares..."
- No h particulares, minha senhora, eu vinha aqui com o colega... Vnhamos
cavaqueando... O homem chegou-se a mim, e, como eu estava desprevenido,
deu-me um raspo no ombro.
- Mas por qu, por qu? exclamou a boa senhora, apertando as mos, num
assombro.
O Carlos ento deu a sua opinio. Ainda havia dias, ele dissera, diante da
Amparozinho e de D. Josefa, a irm do respeitvel cnego Dias, que estas idias
de materialismo e atesmo estavam levando a mocidade aos mais perniciosos
excessos... E mal sabia ele ento que estava profetizando!
- Vejam vossas senhorias este rapaz! Comea por esquecer todos os deveres de
cristo (assim no- lo afirmou D. Josefa), associa-se com bandidos, achincalha os
dogmas nos botequins... Depois (sigam vossas senhorias a progresso), no
contente com estes extravios, publica nos peridicos ataques abjetos contra a
religio... E enfim, possudo duma vertigem de atesmo, atira-se, diante mesmo
da catedral, sobre um sacerdote exemplar (no por vossa senhoria estar
presente) e tenta assassin-lo! Ora, pergunto eu, o que h no fundo de tudo isto?
dio, puro dio religio de nossos pais!
- Infelizmente assim , suspirou o padre Silvrio.
Mas a Amparo, indiferente s causas filosficas do delito, ardia na curiosidade de
saber o que se passaria na administrao, o que diria o escrevente, se o teriam
posto a ferros... O Carlos prontificou-se logo a ir averiguar.
De resto, disse ele, era o seu dever, como homem de cincia, esclarecer a justia
sobre as conseqncias que podia ter trazido um murro, fora de brao, na
regio delicada da clavcula... (ainda que, louvado Deus, no havia fratura, nem
inchao), e sobretudo queria revelar autoridade, para que ela tomasse as suas
providncias, que aquela tentativa de espancamento no provinha de vingana

pessoal. Que podia ter feito o senhor proco da S ao escrevente do Nunes?


Provinha duma vasta conspirao de ateus e republicanos contra o sacerdcio de
Cristo!
- Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes gravemente.
- E o que eu vou provar cabalmente ao senhor administrador do concelho!
Na sua precipitao zelosa de conservador indignado, ia mesmo de chinelas e
quinzena de
laboratrio: mas Amparo alcanou-os no corredor:
- Oh filho, a sobrecasaca, pe a sobrecasaca ao menos, que o administrador de
cerimnias!
Ela mesmo lha ajudou a enfiar, enquanto o Carlos, com a imaginao trabalhando
viva (aquela
desgraada imaginao que, como ele dizia, at s vezes lhe dava dores de
cabea), ia preparando o seu depoimento, que faria rudo na cidade. Falaria de p.
Na saleta da administrao seria um aparato judicial; sua mesa, o senhor
administrador, grave como a personificao da Ordem; em redor os amanuenses,
ativos sobre o seu papel selado; e o ru, defronte, na atitude tradicional dos
criminosos polticos, os braos cruzados sobre o peito, a fronte alta desafiando a
morte. Ele, Carlos, ento, entraria e diria: "Senhor administrador, aqui venho
espontaneamente pr-me ao servio da vindita social!"
- Hei-de-lhes mostrar, com uma lgica de ferro, que tudo resultado duma
conspirao do racionalismo. Podes estar certa, Amparozinho, uma conspirao
do racionalismo! disse, puxando, com um gemido de esforo, as presilhas dos
botins de cano.
- E repara se ele fala da pequena, da S. Joaneira...
- Hei-de tomar notas. Mas no se trata da S. Joaneira. Isto um processo
poltico!
Atravessou o largo majestosamente, certo que os vizinhos, pelas portas,
murmuravam: L vai o

Carlos depor... Ia depor, sim, mas no sobre o murro no ombro de sua senhoria.
Que importava o murro? O grave era o que estava por trs do murro - uma
conspirao contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a Propriedade! o que ele provaria
de alto ao senhor administrador. Este murro, ilustrssimo senhor, o primeiro
excesso duma grande revoluo social!
E empurrando o batente de baeta que dava acesso para a administrao do
concelho de Leiria, ficou um momento com a mo no ferrolho, enchendo o vo
da porta da pompa da sua pessoa. No, no havia o aparato judicial que ele
concebera. O ru l estava, sim, o pobre Joo Eduardo, mas sentado beira do
banco, com as orelhas em brasa, olhando estupidamente o soalho. Artur
Couceiro, embaraado
102
com a presena daquele ntimo dos seres da S. Joaneira, ali no assento dos
presos, para o no olhar fixara o nariz sobre o imenso copiador de ofcios, onde
desdobrara o Popular da vspera. O amanuense Pires, de sobrancelhas muito
erguidas e muito srias, embebia-se na ponta da pena de pato que aparava sobre
a unha. O escrivo Domingos, esse sim, vibrava de atividade! O seu lpis
rascunhava com furor; o processo estava-se decerto apressando; era tempo de
trazer a sua idia... E o Carlos ento adiantando-se:
- Meus senhores! O senhor administrador?
Justamente, a voz de sua excelncia chamou de dentro do seu gabinete:
- Sr. Domingos?
O escrivo perfilou-se, puxando os culos para a testa.
- Senhor administrador!
- O senhor tem fsforos?
O Domingos procurou ansiosamente pela algibeira, na gaveta, entre os papis...
- Algum dos senhores tem fsforos?
Houve um rebuscar de mos sobre a mesa... No, no havia fsforos.
- Sr. Carlos, o senhor tem fsforos?
- No tenho, Sr. Domingos. Sinto.

O senhor administrador apareceu ento, ajeitando as suas lunetas de tartaruga:


- Ningum tem fsforos, hem? extraordinrio que no haja aqui nunca
fsforos! Uma
repartio destas sem um fsforo... Que fazem os senhores aos fsforos? Mande
buscar por uma vez meia dzia de caixas!
Os empregados olhavam-se consternados dessa falta flagrante nomaterial do
servio administrativo. E o Carlos, apoderando-se logo da presena e da ateno
de sua excelncia:
- Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui venho solicito e espontneo, por
assim dizer...
- Diga-me uma coisa, Sr. Carlos, interrompeu a autoridade. O proco e o outro
ainda esto l na botica?
- O senhor proco e o Sr. padre Silvrio ficaram com minha esposa a repousar da
comoo que... - Tem a bondade de lhes dizer que so c precisos...
- Eu estou disposio da lei.
- Que venham quanto antes... So cinco horas e meia, queremo-nos ir embora!
Vejam que
maada tem sido esta aqui, todo o dia! A repartio fecha-se s trs!
E sua excelncia, rodando, sobre os taces, foi debruar-se sacada do seu
gabinete - quela
sacada de onde ele diariamente, das onze s trs, retorcendo o bigode louro e
entesando o plastro azul, depravava a mulher do Teles.
O Carlos abria j o batente verde, quanto um pst do Domingos o deteve.
- amigo Carlos .- e o sorrisinho do escrivo tinha uma suplicao tocante desculpe, hem? Mas... Traz-me de l uma caixita de fsforos?
Neste momento porta aparecia o padre Amaro; e por trs a massa enorme do
Silvrio.

- Eu desejava falar ao senhor administrador em particular, disse Amaro.


Todos os empregados se ergueram; Joo Eduardo tambm, branco como a cal do
muro. O
proco, com as sua passadas sutis de eclesistico, atravessou a repartio,
seguido do bom Silvrio que ao passar diante do escrevente descreveu de
esguelha um semicrculo cauteloso, com terror ao ru; o senhor administrador
acudira a receber suas senhorias; e a porta do gabinete fechou-se discretamente.
- Temos composio, rosnou o experiente Domingos, piscando o olho aos
colegas.
O Carlos sentara-se descontente. Viera ali para esclarecer a autoridade sobre os
perigos sociais que ameaavam Leiria, o Distrito e a Sociedade, para ter o seu
papel naquele processo, que, segundo ele, era um processo poltico - e ali estava
calado, esquecido, no mesmo banco ao lado do ru! Nem lhe tinham oferecido
uma cadeira! Seria realmente intolervel que as coisas se arranjassem entre o
proco e o administrador sem o consultarem a ele! Ele, o nico que percebera
naquele murro dado no ombro do padre - no o punho do escrevente, mas a mo
do Racionalismo! Aquele desdm pelas suas luzes parecia- lhe um erro funesto
da administrao do Estado. Positivamente o administrador no tinha a
capacidade necessria para salvar Leiria dos perigos da revoluo! Bem se dizia na
Arcada - era uma bambocha!
A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas do administrador reluziram.
- Sr. Domingos, faz favor, vem-nos falar? disse sua excelncia.
O escrivo apressou-se com importncia; e a porta cerrou-se de novo,
confidencialmente. Ah!
aquela porta, fechada diante dele, deixando-o de fora, indignava o Carlos. Ali
ficava, com o Pires, com o Artur, entre as inteligncias subalternas, ele que
prometera Amparozinho falar de alto ao administrador! E quem era ouvido, e
quem era chamado? O Domingos, um animal notrio, que comeava satisfao
com

103
c cedilhado! Que se podia de resto esperar duma autoridade que passava as
manhs de binculo a desonrar uma famlia? Pobre Teles, seu vizinho, seu
amigo!... No, realmente devia falar ao Teles!
Mas a sua indignao cresceu, quando viu o Artur Couceiro, um empregado da
repartio, na ausncia do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha, vir
familiarmente junto do ru, dizer-lhe com melancolia:
- Ah, Joo, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja- se, vers!
Joo tinha encolhido tristemente os ombros. Havia meia hora que ali estava,
sentado beira daquele banco, sem se mexer, sem despregar os olhos do soalho,
sentindo-se interiormente to vazio de idias, como se lhe tivessem tirado os
miolos. Todo o vinho, que na taberna do Osrio e no Largo da S lhe acendia na
alma fogachos de clera, lhe retesava os pulsos num desejo de desordem, parecia
subitamente eliminado do seu organismo. Sentia-se agora to inofensivo como
quando no cartrio aparava cautelosamente a sua pena de pato. Um grande
cansao entorpecia-o; e ali esperava, sobre o banco, numa inrcia de todo o seu
ser, pensando estupidamente que ia viver para uma enxovia em S. Francisco,
dormir numa palhoa, comer da Misericrdia... No tornaria a passear na
alameda, no veria mais Amlia... A casita em que vivia seria alugada a outro...
Quem tomaria conta do seu canrio? Pobre animalzinho, ia morrer de fome,
decerto... A no ser que a Eugnia, a vizinha, o recolhesse...
O Domingos de repente saiu do gabinete de sua excelncia, e fechando
vivamente a porta sobre si, em triunfo:
- Que lhes dizia eu? Composio! Arranjou-se tudo!
E para Joo Eduardo:
- Seu felizo! Parabns! parabns!
O Carlos pensou que aquele era o maior escndalo administrativo desde o tempo
dos Cabrais! E

ia retirar-se enojado (como no quadro clssico o Estico que se afasta duma orgia
Patrcia) quando o senhor administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos se
ergueram.
Sua excelncia deu dois passos na repartio, e revestido de gravidade,
destilando as palavras, com as lunetas cravadas no ru:
- O Sr, padre Amaro, que um sacerdote todo caridade e bondade, veio-me
expor... Enfim, veio- me suplicar que no desse mais andamento a este
negcio... Sua senhoria com razo no quer ver o seu nome arrastado nos
tribunais. Alm disso, como sua senhoria disse muito bem, a religio, de que ele
... de que ele , posso diz-lo, a honra e o modelo, impe- lhe o perdo da
ofensa... Sua excelncia reconhece que o ataque foi brutal, mas frustrado... Alm
disso parece que o senhor estava bbedo...
Todos os olhos se fixaram em Joo Eduardo, que se fez escarlate. Aquilo pareceulhe nesse momento pior que a priso.
- Enfim, continuou o administrador, por altas consideraes que eu pesei
devidamente, tomo a responsabilidade de o soltar. Veja agora como se porta. A
autoridade no o perde de olho... Bem, pode ir com Deus!
E sua excelncia recolheu-se ao gabinete. Joo Eduardo ficou imvel, como
parvo.
- Posso ir, hem? balbuciou.
- Para a China, para onde quiser! Liberus, libera, liberum! exclamou o Domingos
que,
interiormente detestando padres, jubilava com aquele final.
Joo Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo Carlos;
duas lgrimas bailavam- lhe nas plpebras; de repente agarrou o chapu e
abalou.
- Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos, esfregando vivamente as
mos.

Imediatamente a papelada foi arrumada, aqui e alm, pressa. que era tarde! O
Pires recolhia as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha de vento. O Artur
enrolou os seus papis de msica. E no vo da janela, amuado, esperando ainda, o
Carlos olhava sombriamente o largo.
Enfim os dois padres saram acompanhados at porta pelo senhor
administrador, que, terminados os deveres pblicos, reaparecia homem de
sociedade. - Ento por que no tinha o amigo Silvrio vindo a casa da baronesa de
Via-Clara? Houvera um voltarete furibundo. O Peixoto levara dois codilhos.
Tinha dito blasfmias medonhas!... Criado de suas excelncias. Estimava bem
que tudo se tivesse harmonizado. Cuidado com o degrau... s ordens de suas
excelncias...
Ao voltar porm ao seu gabinete dignou-se parar diante da mesa do Domingos, e
retomando alguma solenidade:
- A coisa passou-se bem. um bocado irregular, mas sensata! Bem basta j os
ataques que h contra o clero nos jornais... A coisa podia fazer barulho. O rapaz
era capaz de dizer que tinham sido cimes do padre, que queria desinquietar a
rapariga, etc. mais prudente abafar a coisa. Quanto mais que, segundo o proco
me provou, toda a influncia que ele tem exercido. na Rua da Misericrdia ou
onde diabo , tem tido por fim livrar a rapariga de casar com aquele amigo, que,
como se v, um bbedo e uma fera!
104
O Carlos roa-se. Todas aquelas explicaes eram dadas ao Domingos! A ele,
nada! Ali ficava, esquecido no vo da janela!
Mas no! Sua excelncia, de dentro do seu gabinete, chamou-o misteriosamente
com o dedo. Enfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado com a
autoridade.
- Eu estava para passar pela botica - disse-lhe o administrador baixo e sem
transio, dando-lhe

um papel dobrado - para que me mandasse isto a casa, hoje. um receita do


doutor Gouveia... Mas j que o amigo aqui est...
- Eu tinha vindo para me pr disposio da vindita...
- Isso est acabado! interrompeu vivamente sua excelncia. No se esquea,
mande-me isso antes das seis. para tomar ainda esta noite. Adeus. No se
esquea!
- No faltarei, disse secamente o Carlos.
Ao entrar na botica, a sua clera flamejava. Ou ele no se chamava Carlos, ou
havia de mandar uma correspondncia tremenda ao Popular!... Mas a Amparo,
que lhe espreitara a volta da varanda, correu, atirando-lhe as perguntas:
- Ento? Que se passou? O rapaz foi para a rua? Que disse ele? Como foi? O Carlos
fixava-a, com as pupilas chamejantes.
- No foi culpa minha, mas triunfou o materialismo1 Eles o pagaro!
- Mas tu que disseste?
Ento, vendo os olhos da Amparo e os do praticante abertos para devorar a
citao do seu depoimento - o Carlos, tendo de ressalvar a dignidade de esposo e
a superioridade de patro, disse laconicamente:
- Dei a minha opinio, com firmeza!
- E ele que disse, o administrador?
Foi ento que o Carlos, recordando-se, leu a receita que amarrotara na mo. A
indignao
emudeceu-o - vendo que era aquele todo o resultado da sua grande entrevista
com a autoridade!
- Que ? perguntou sofregamente a Amparo.
O que era? e no seu furor, desdenhando o segredo profissional e o bom renome
da autoridade, o

Carlos exclamou:
- um frasco de xarope de Gibert para o senhor administrador! A tem a receita,
Sr. Augusto. Amparo, que, com alguma prtica de farmcia, conhecia os
benefcios do mercrio, fez-se to
escarlate como as fitas flamejantes que lhe enfeitavam a cuia.

Toda essa tarde se falou com excitao pela cidade da "tentativa de assassinato de
que estivera para ser vitima o senhor proco". Algumas pessoas censuravam o
administrador por no ter procedido: os cavalheiros da oposio sobretudo, que
viram na debilidade daquele funcionrio uma prova incontestvel de que o
governo ia, com os seus desperdcios e as suas corrupes, levando o pas a um
abismo!
Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que
mansido! O senhor chantre mandou-o chamar noitinha, recebeu-o
paternalmente com um "viva o meu cordeiro pascal!". E depois de escutar a
histria do insulto, a generosa interveno...
- Filho, exclamou, isso aliar a mocidade de Telmaco prudncia de Mentor!
Padre Amaro, voc era digno de ser sacerdote de Minerva na cidade de Salento!
Quando Amaro entrou noite em casa da S. Joaneira - foi como a apario dum
santo escapo s feras do Circo ou plebe de Diocleciano! Amlia, sem disfarar a
sua exaltao, apertou-lhe ambas as mos, muito tempo, toda trmula, com os
olhos midos. Deram-lhe, como nos grandes dias, a poltrona verde do cnego. A
Sra. D. Maria da Assuno quis mesmo que se lhe pusesse uma almofada para ele
apoiar o ombro dorido. Depois, teve de contar miudamente toda a cena, desde o
momento em que, conversando com o colega Silvrio (que se portara muito
bem), avistara o escrevente no meio do largo, de bengalo alado e ar de matamouros...

Aqueles detalhes indignavam as senhoras. O escrevente aparecia-lhes pior que


Longuinhos e que Pilatos. Que malvado! O senhor proco devia-o ter calcado aos
ps! Ah! era dum santo, ter perdoado!
- Fiz o que me inspirou o corao, disse ele baixando os olhos. Lembrei-me das
palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo: ele manda oferecer a face esquerda depois
de ter sido esbofeteado na face direita...
O cnego, a isto, escarrou grosso e observou:
- Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofeto face direita... Enfim, so ordens
de Nosso Senhor Jesus Cristo, ofereo a face esquerda. So ordens de cima!... Mas
depois de ter cumprido esse dever de sacerdotes, oh, senhoras, desanco o patife!
105
- E doeu-lhe muito, senhor proco? perguntou do canto uma vozinha expirante e
desconhecida.
Acontecimento extraordinrio! Era a Sra. D. Ana Gansoso que falara depois de
dez longos anos de taciturnidade sonolenta! Aquele torpor que nada sacudira,
nem festas, nem lutos, tinha enfim, sob um impulso de simpatia pelo senhor
proco, uma vibrao humana! - Todas as senhoras lhe sorriram, agradecidas: e
Amaro, lisonjeado, respondeu com bondade:
- Quase nada, Sra. D. Ana, quase nada, minha senhora... Que ele deu de rijo! Mas
eu sou de boa carnadura.
- Ai, que monstro! exclamou D. Josefa Dias, furiosa idia dopunho do
escrevente descarregado sobre aquele ombro santo. Que monstro! Eu queria-o
ver com uma grilheta a trabalhar na estrada ! Que eu que o conhecia! A mim
nunca ele me enganou... Sempre lhe achei cara de assassino!
- Estava embriagado, homens com vinho... arriscou timidamente a S. Joaneira.
Foi um clamor. Ai, que o no desculpasse! Parecia at sacrilgio! Era uma fera, era
uma fera!

E a exultao foi grande quando Artur Couceiro, aparecendo, deu logo da porta a
novidade, a ltima: o Nunes mandara chamar o Joo Eduardo e dissera-lhe
(palavras textuais): "Eu, bandidos e malfeitores no os quero no meu cartrio.
Rua!"
A S. Joaneira ento comoveu-se:
- Pobre rapaz, fica sem ter que comer... ,
- Que beba! que beba! gritou a Sra. D. Maria da Assuno.
Todos riram. S Amlia, curvada sobre a sua costura, se fizera muito plida,
aterrada quela
idia que Joo Eduardo teria talvez fome...
- Pois olhem, no acho caso para rir! disse a S. Joaneira. at coisa que me vai
tirar o sono..,
Pensar que o rapaz h-de querer um bocado de po e no o h-de ter... Credo!
No, isso no! E o Sr. padre Amaro desculpe...
Mas Amaro tambm no desejava que o rapaz casse em misria! No era homem
de rancor, ele! E se o escrevente viesse sua porta, com necessidade, duas ou
trs placas (no era rico, no podia mais), mas trs ou quatro placas dava-lhas...
Dava-lhas de corao.
Tanta santidade fanatizou as velhas. Que anjo! Olhavam-no, babosas, com as
mos vagamente postas. A sua presena, como a dum S. Vicente de Paula,
exalando caridade, dava sala uma suavidade de capela: e a Sra. D, Maria da
Assuno suspirou de gozo devoto.
Mas Natrio apareceu, radiante. Deu grandes apertos de mos em redor, rompeu
em triunfo:
- Ento j sabem? O patife, o assassino, escorraado de toda a parte como um
co! O Nunes expulsou-o do cartrio. O doutor Godinho disse-me agora que no
governo civil no punha ele os ps. Enterrado, demolido! um alvio para a gente
de bem!

- E ao Sr. padre Natrio se deve! exclamou D. Josefa Dias.


Todos o reconheciam. Fora ele, com a sua habilidade, a sua lbia, que descobrira a
perfdia de Joo Eduardo, salvara a Ameliazinha, Leiria, a Sociedade.
- E em tudo o que pretender, o maroto, h-de encontrar-me pela frente.
Enquanto ele estiver em Leiria no o largo! Que lhes disse eu, minha senhoras?.,,
"Eu que o esmago!" Pois a o tm esmagado!
A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona, regaladamente, no
repouso merecido de uma vitria difci1. E voltando-se para Amlia;
- E agora, o que l vai, l vai! Livrou-se de uma fera, o que lhe posso dizer!
Ento os louvores - que j lhe tinham repetido prolixamente desde que ela
rompera com a fera - recomearam, mais vivos:
- Foi a coisa de mais virtude que tens feito em toda a tua, vida!
- a graa de Deus que te tocou!
- Ests em graa, filha!
- Enfim Santa Amlia, disse o cnego erguendo-se, enfastiado daquelas
glorificaes. Pois
parece-me que temos falado bastante do patife... Mande agora a senhora vir o
ch, hem?
Amlia permanecia calada, cosendo pressa; erguia s vezes rapidamente para
Amaro um olhar desassossegado; pensava em Joo Eduardo, nas ameaas de
Natrio; e imaginava o escrevente com as faces encovadas de fome, foragido,
dormindo pelas portas dos casais... E enquanto as senhoras se acomodavam,
palrando, mesa do ch, ela pde dizer baixo a Amaro:
- No posso sossegar com a idia que o rapaz sofra necessidades... Eu bem sei
que um malvado, mas... como um espinho c por dentro. Tira-me toda a
alegria.

O padre Amaro disse-lhe ento, com muita bondade, mostrando-se superior


injria, num alto espirito de caridade crist:
- Minha rica filha, so tolices... O homem no morre de fome. Ningum morre de
fome em Portugal. novo, tem sade, no tolo, h-de- se arranjar... No pense
nisso... Aquilo palavreado do
106
padre Natrio... O rapaz naturalmente sai de Leiria, no tomamos a ouvir falar
dele... E em toda a parte h-de ganhar a vida... Eu por mim perdoei-lhe, e Deus
h-de tomar isso em conta...
Estas palavras to generosas, ditas baixo, com um olhar amante, tranqilizaramna inteiramente. A clemncia, a caridade do senhor proco pareceram-lhe
melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos e de monges piedosos.
Depois do ch, ao quino, ficou junto dele. Uma alegria plena e suave penetrava-a
deliciosamente. Tudo o que at a a importunara e a assustara, Joo Eduardo, o
casamento, os deveres, desaparecera enfim da sua vida: o rapaz iria para longe,
empregar-se - e o senhor proco ali estava, todo dela, todo apaixonado! Por
vezes, por baixo da mesa, os seus joelhos tocavam-se, a tremer; num momento
em que todos faziam um alarido indignado contra Artur Couceiro que pela
terceira vez quinara e brandia o carto triunfante, foram as mos que se
encontraram, se acariciaram; um pequeno suspiro simultneo, perdido na
gralhada das velhas, ergueu o peito de ambos; e at ao fim da noite foram
marcando os seus cartes, muitos calados, com as faces acesas, sob a presso
brutal do mesmo desejo.
Enquanto as senhoras se agasalhavam, Amlia aproximou-se do piano para
correr uma escala, e Amaro pde murmurar-lhe ao ouvido:
- Oh filhinha, que te quero tanto! E no podermos estar ss...
Ela ia responder - quando a voz de Natrio, que se embrulhava no seu capote ao
p do aparador, exclamou, muito severa:

- Ento as senhoras deixam andar por aqui semelhante livro?


Todos se voltaram, na surpresa que dava aquela indignao, a olhar o largo
volume encadernado que Natrio indicava com a ponta do guarda- chuva, como
um objeto abominvel. D. Maria da Assuno aproximou-se logo de olho
reluzente, imaginando que seria alguma dessas novelas, to famosas, em que se
passam coisas imorais. E Amlia chegando-se tambm, disse, admirada de tal
reprovao: .
- Mas o Panorama... um volume do Panorama...
- Que o Panorama vejo eu, disse Natrio, com secura. Mas tambm veio isto. Abriu o volume na primeira pgina branca, e leu alto: - "Pertence-me este
volume a mim, Joo Eduardo Barbosa, e serve- me de recreio nos meus cios".
No compreende, hem? Pois muito simples... Parece incrvel que as senhoras
no saibam que esse homem, desde queps as mos num sacerdote, est ipso
facto excomungado, e excomunga- dos todos os objetos que lhe pertencem!
Todas as senhoras, instintivamente, afastaram-se do aparador onde jazia aberto
o Panorama fatal, arrebanhando-se, num arrepiamento de medo, quela idia da
Excomunho que se lhes representava com um desabamento de catstrofes, um
aguaceiro de raios despedidos das mos do Deus Vingador: e ali ficaram mudas,
num semicrculo apavorado, em torno de Natrio, que, de capoto pelos ombros
e braos cruzados, gozava o efeito da sua revelao.
Ento a S. Joaneira, no seu assombro, arriscou-se a perguntar:
- O Sr. padre Natrio est a falar srio?
Natrio indignou-se:
- Se estou a falar srio!? Essa forte! Pois eu havia de gracejar sobre um caso de
excomunho,
minha senhora? Pergunte a ao senhor cnego se eu estou a gracejar!
Todos os olhos se voltaram para o cnego, essa inesgotvel fonte de saber
eclesistico.

Ele ento, tomando logo o ar pedaggico que lhe voltava dos seus antigos hbitos
do seminrio
sempre que se tratava de doutrina, declarou que o colega Natrio tinha razo.
Quem espanca um sacerdote, sabendo que um sacerdote, est ipso facto
excomungado. doutrina assente. o que se chama a excomunho latente; no
necessita a declarao do pontfice ou do bispo, nem o cerimonial, para ser
vlida, e para que todos os fiis considerem o ofensor como excomungado.
Devem-no tratar portanto como tal... Evit-lo a ele, e ao que lhe pertence... E
este caso de pr mos sacrlegas num sacerdote era to especial, continuava o
cnego num tom profundo, que a bula do papa Martinho V, limitando os casos de
excomunho tcita, conserva-a todavia para o que maltrata um sacerdote... Citou ainda mais bulas, as constituies de Inocncio IX e de Alexandre VII, a
Constituio Apostlica, outras legislaes temerosas; rosnou latins, aterrou as
senhoras.
- Esta a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor no se fazer
disso espalhafato...
D. Josefa Dias acudiu logo:
- Mas ns que no podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das
mesas coisas excomungadas.
- destruir! exclamou D. Maria da Assuno. queimar, queimar!
D. Joaquina Gansoso arrastara Amlia para o vo da janela, perguntando-lhe se
tinha outros objetos pertencentes ao homem. Amlia, atarantada, confessou que
tinhas algures, no sabia onde, um leno, uma luva desirmanada, e uma
cigarreira de palhinha.
107
- para o fogo, para o fogo! gritava a Gansoso excitada.
A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo.
D. Josefa Dias, D. Maria da Assuno falavam com gozo do fogo, enchendo a boca

com a palavra, numa delcia inquisitorial de exterminao devota. Amlia e a


Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre a roupa branca, as fitas
e as calcinhas, caa dos "objetos excomungados". E a S. Joaneira assistia,
atnita e assustada, quele alarido de auto-de-f que atravessava bruscamente a
sua pacata, refugiada ao p do cnego, que depois de ter rosnado algumas
palavras sobre "a Inquisio em casas particulares", se enterrara comodamente
na poltrona.
- para lhes fazer sentir que se no perde impunemente o respeito batina,
dizia Natrio baixo a Amaro.
O proco assentiu, com um gesto mudo de cabea, contente daquelas cleras
beatas que eram como a afirmao ruidosa do amor que lhe tinham as senhoras.
Mas D. Josefa impacientava-se. Agarrara j o Panorama com as pontas do xale,
para evitar o contgio, e gritava para dentro, para o quarto, onde continuava
pelos gavetes uma rebusca furiosa:
- Ento apareceu?
- C est, c est!
Era a Gansoso que entrava triunfante com a cigarreira, a velha luva e o leno de
algodo.
E as senhoras, com alarido, arremeteram para a cozinha. A mesmas S. Joaneira as
seguiu, como
boa dona de casa, para fiscalizar a fogueira.
- Os trs padres ento, ss, olharam-se - e riram.
- As mulheres tm o diabo no corpo, disse o cnego filosoficamente.
- No senhor, padre-mestre, no senhor, acudiu logo Natrio fazendo-se srio.
Eu rio, porque a
coisa, assim vista, parece patusca. Mas o sentimento bom. Para a verdadeira
devoo ao sacerdcio, horror impiedade... enfim o sentimento excelente.

- O sentimento excelente, confirmou Amaro, tambm srio.


O cnego ergueu-se:
- E que se pilhassem o homem eram capazes de o queimar... No lho digo a
brincar, que a
mana tem fgados para isso... um Torquemada de saias...
- Est na verdade, est na verdade, afirmou Natrio.
- Eu no resisto a ir ver a execuo! exclamou o cnego. Eu quero ver com os
meus olhos!
E os trs padres ento foram at porta da cozinha. As senhoras l estavam, em
p diante da lareira, batidas da luz violenta da fogueira que fazia destacar
estranhamente as mantas de agasalho de que j se tinham coberto. A Rua, de
joelhos, soprava esfalfada. Tinham cortado com o faco a encadernao do
Panorama; e as folhas retorcidas e negras, com um faiscar de fagulhas, voavam
pela chamin nas lnguas de fogo claro. S a luva de pelica no se consumia.
Debalde com as tenazes a punham no vivo da chama: tisnava, reduzida a um
caroo engorolado; mas no ardia. E z sua resistncia aterrava as senhoras.
- que da mo direita com que cometeu o desacato! dizia furiosa D. Maria da
Assuno.
- Bufa-lhe, rapariga, bufa-lhe, aconselhava da porta o cnego muito divertido.
- O mano faz favor de no troar com coisas srias! gritou D. Josefa.
- Oh, mana! A senhora quer saber melhor que um sacerdote como que se
queima um mpio? A
pretenso no est m! bufar-lhe, bufar-lhe!
Ento, confiadas na cincia do senhor cnego, a Gansoso e D. Maria da Assuno,
acocoradas,
bufaram tambm. As outras olhavam, num sorriso mudo, o olho brilhante e
cruel, no gozo daquela exterminao grata a Nosso Senhor. O fogo estalava,
pulando com uma fora galharda, na glria da sua antiga funo de purificador
dos pecados. - E por fim sobre as achas em brasa, nada restou do Panorama, do
leno e da luva do mpio.

A essa hora Joo Eduardo, o mpio, no seu quarto, sentado aos ps da cama,
soluava, com a face banhada em lgrimas, pensando em Amlia, nos bons
seres da Rua da Misericrdia, na cidade para onde iria, na roupa que empenharia
e perguntando em vo a si mesmo por que o tratavam assim, ele que era to
trabalhador, que no queria mal a ningum, e que a adorava tanto, a ela.
XV
No domingo seguinte havia missa cantada na S, e a S. Joaneira e Amlia
atravessaram a Praa para ir buscar D. Maria da Assuno, que em dias de
mercado e de "populacho" nunca saia s, receosa que lhe roubassem as jias ou
lhe insultassem a castidade.
108
Nessa manh, com efeito, a afluncia das freguesias enchia a Praa: os homens
em grupo, atravancando a rua, muito srios, muito barbeados, de jaqueta ao
ombro; as mulheres aos pares, com uma fortuna de grilhes e de coraes de
ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se por trs dos
balces alastrados de lenaria e de chitas; nas tabernas apinhadas gralhava-se
alto; pelo mercado, entre os sacos de farinha, os montes de loua, os cestos de
broa, ia um regatear sem fim; havia multido ao p das tendas onde reluzem os
espelhinhos redondos e trasbordam os molhos de rosrios; velhas faziam prego
por trs dos seus tabuleiros de cavacas; e os pobres, afreguesados cidade,
choramigavam Padre-Nossos pelas esquinas.
J senhoras passavam para a missa, todas em sedas, de rostinho sisudo; e a
Arcada estava cheia de cavalheiros, tesos nos seus fatos de casimira nova,
fumando caro, gozando o domingo.
Amlia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo alto
dum grupo: Ai, que me leva o corao! E as duas senhoras, apressando-se,
dobravam para a Rua do Correio, quando lhes apareceu o Libaninho de luvas
pretas e cravo ao peito. No as tinha visto desde "o desacato do Largo da S", e
rompeu logo em exclamaes. Ai, filhas, que desgosto aquele! O malvado do

escrevente! Ele tinha tido tanto que fazer, que s nessa manh que pudera ir ao
senhor proco dar-lhe os sentimentos; o santinho recebera-o muito bem,
estava-se a vestir; ele quis ver-lhe o brao e felizmente, louvores a Deus, nem
uma pisadura... E se elas vissem, que carnadura to delicada, que pele to
branca... Uma pelinha de arcanjo !
- Mas querem vocs saber, filhas? Encontrei-o numa grande aflio!
As duas senhoras assustaram-se. Por qu, Libaninho?
A criada, a Vicncia, que havia dias se queixava, tinha ido nessa madrugada para
o hospital com
um febro...
- E ali est o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vocs! Para hoje bem, que
vai jantar com
o nosso cnego (tambm l estive, ai, que santo!), mas amanh, mas depois? Que
ele j tem em casa a irm da Vicncia, a Dionsia... Mas, oh, filhas, a Dionsia! Foi
o que eu lhe disse: a Dionsia pode ser uma santa, mas que reputao!... que
no h pior em Leiria... Uma perdida que no pe os ps na igreja... Tenho a
certeza que o senhor chantre at havia de reprovar!
As duas senhoras concordaram logo que a Dionsia (mulher que no cumpria os
preceitos, que representara em teatros de curiosos) no convinha ao senhor
proco...
- Olha, S. Joaneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu l lho disse, l
lhe fiz a proposta. ferrar-se outra vez em sua casa. Que onde est bem, com
gente que o acarinha, que lhe trata da roupa, que lhe sabe os gostos, e onde tudo
virtude! Ele no disse que no, nem que sim. Mas olha que se lhe podia ler na
cara que est a morrer por isso... Tu que lhe devias falar S. Joaneirinha!
Amlia fizera-se to escarlate como a sua gravata de seda da ndia. E a S. Joaneira
disse ambiguamente:
- Falar-lhe, no... Eu nessas coisas sou muito delicada... Bem compreendes...

- Era como teres um santo de portas adentro, filha! disse com calor o Libaninho.
Lembra-te disso! E era um gosto para todos... Tenho a certeza que at Nosso
Senhor se havia de alegrar... E agora adeus, pequenas, que vou de fugida. No vos
demoreis, que est a missinha a cair.
As duas senhoras continuaram caladas at casa de D. Maria da Assuno.
Nenhuma queria arriscar primeiro uma palavra sobre aquela possibilidade to
inesperada, to grave, do senhor proco voltar para a Rua da Misericrdia! Foi s
quando pararam que a S. Joaneira disse, ao puxar a campainha:
- Ai, o senhor proco realmente no pode ter a Dionsia de portas adentro..,
- Credo, at causa horror!
Foi tambm a expresso da Sra. D. Maria da Assuno quando lhe contaram, em
cima, a doena
da Vicncia e a instalao da Dionsia: causava horror!
- Que eu no a conheo, disse a excelente senhora. E tenho at vontade de a
conhecer. Que me
dizem que dos ps cabea uma crosta de pecado!
A S. Joaneira ento falou da "proposta do Libaninho". D. Maria da Assuno
declarou logo com
ardor que era uma inspirao de Nosso Senhor. Que nunca o senhor proco devia
ter sado da Rua da Misericrdia! At parece que mal ele se fora embora, Deus
retirara a sua graa da casa... No houvera seno desgostos - o Comunicado, a dor
de estmago do cnego, a morte da entrevadinha, aquele desgraado casamento
(que estivera por um triz, que horror!), o escndalo do Largo da S... A casa tinha
parecido enguiada!... E era at pecado deixar viver o santinho naquele
desarranjo, com a suja da Vicncia, que nem lhe sabia dar uma passagem nas
meias!
- Em parte nenhuma pode estar melhor que em tua casa... Tem tudo o que
necessita, de portas adentro... E para ti uma honra, estar em graa. Olha,

filha, se eu no fosse s, sempre o digo, quem o hospedava era eu! Que aqui que
ele estava bem... Que salinha para ele, hem?
Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as suas preciosidades.
109
A sala com efeito era toda ela uma imensa armazenagem de santaria e de bric-brac devoto; sobre as duas cmodas de pau-preto com fechaduras de cobre
apinhavam-se, sobre redomas, em peanhas, as Nossas Senhoras vestidas de seda
azul, os Meninos Jesus frisados com o ventrezinho gordo e a mo abenoadora,
os Santos Antnios no seu burel, os S. Sebasties bem frechados, os S. Joss
barbudos. Havia santos exticos, que eram o seu orgulho, que lhe fabricavam em
Alcobaa - S. Pascoal Bailo, S. Didcio, S. Crisolo, S. Gorislano... Depois eram os
bentinhos, os rosrios de metal e de caroos de azeitonas, contas de cores,
rendas amarelas de antigas alvas, coraes de vidro escarlate, almofadinhas com
J. M, entrelaados a mianga, ramos bentos, palmas de mrtires, cartuchinhos de
incenso. As paredes desapareciam forradas de estampas de Virgens de todas as
devoes, - equilibradas sobre o orbe, enrodilhadas aos ps da cruz, traspassadas
de espadas. Coraes de onde gotejava sangue, coraes de onde saia uma
fogueira, coraes de onde dardejavam raios; oraes encaixilhadas para as festas
particularmente amadas - o Casamento de Nossa Senhora, a Inveno da Santa
Cruz, os Estigmas de S. Francisco, sobretudo o Parto da Santa Virgem, a mais
devota, que vem pelas quatro tmporas. Sobre as mesas lamparinas acesas, para
serem colocadas sem demora aos santos especiais, quando a boa senhora tivesse
a sua citica, ou que o catarro se assanhasse, ou lhe viessem as cibras. Ela
mesma, s ela, arrumava, espanejava, lustrava toda aquela santa populao
celeste, aquele arsenal beato, que era apenas suficiente para a salvao da sua
alma e o alvio dos seus achaques. O seu grande cuidado era a colocao dos
santos; alterava-a constantemente, porque s vezes, por exemplo, sentia que
Santo Eleutrio no gostava de estar ao p de S. Justino, e ia ento pendur-lo a
distncia, numa companhia mais simptica ao santo. E distinguia-os (segundo os
preceitos do ritual que o confessor lhe explicava), dando-lhes uma devoo
graduada, e no tendo por S. Jos de segunda classe o respeito que sentia por S.

Jos de primeira classe. Aquela riqueza era a inveja das amigas, a edificao dos
curiosos, e fazia sempre dizer ao Libaninho quando a vinha visitar, abrangendo a
sala num olhar langoroso: - Ai, filha, o reininho dos Cus!
- No verdade, continuava a excelente senhora radiante, que ele aqui que
estava bem, o santinho do proco? como ter o Cu debaixo da mo!
As duas senhoras concordaram. Ela podia ter a sua casa arranjada com devoo,
ela que era rica...
- No o nego, tenho aqui empregadinhos alguns centos de mil-ris. Sem contar o
que est no relicrio...
Ah, o famoso relicrio de sndalo forrado de cetim! Tinha l uma lascazinha da
verdadeira Cruz, um bocado quebrado do espinho da Coroa, um farrapinho do
cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se com azedume, entre as devotas, que
coisas to preciosas, de origem divina, deviam estar no sacrrio da S. D. Maria
da Assuno temendo que o senhor chantre soubesse daquele tesouro serfico,
s o mostrava s ntimas, misteriosamente. E o santo sacerdote, Que lho
obtivera, fizera-a jurar sobre o Evangelho de no revelar a procedncia "para
evitar falatrios".
A S. Joaneira, como sempre, admirou sobretudo o farrapinho do cueiro.
- Que relquia, que relquia! murmurava.
E D. Maria da Assuno muito baixo:
- No h melhor. Trinta mil-ris me custou... Mas dava sessenta, mas dava cem!
mas dava tudo!
- E babando-se toda, diante do trapinho precioso: - O cueirinho! dizia Quase a
chorar. Meu rico Menino, o seu cueirinho...
Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o relicrio no gaveto.
Mas o meio-dia ia bater - e as trs senhoras apressaram-se para a S, para pilhar
lugar no altar- mor.

J no largo encontraram D. Josefa Dias, que se precipitava para a igreja, sfrega


da missa, com o mantelete descado sobre o ombro e uma pluma do chapu a
despregar-se. Tinha estado toda a manh num frenesi com a criada! Fora
necessrio fazer ela todos os preparos para o jantar... Ai, tinha medo que nem a
missinha lhe desse virtude, de nervosa que estava...
- Que temos l o senhor proco hoje... Vocs sabem que adoeceu a criada... Ah, j
me esquecia, o mano quer que tu l vs jantar tambm, Amlia. Diz Que para
haverem duas damas e dois cavalheiros... Amlia riu de alegria.
- E tu vai depois busc-la, S. Joaneira, noitinha... Credo, vesti- me tanto
pressa, que at parece que me est a cair o saiote!
Quando as Quatro senhoras entraram, a igreja estava j cheia. Era uma missa
cantada ao Santssimo. E apesar de contrrio ao rigor do ritual, por um costume
diocesano (Que o bom Silvrio, muito estrito na liturgia, nunca cessava de
reprovar) havia, estando presente a Eucaristia, msica de rabeca, violoncelo e
flauta. O altar, muito ornado, com as relquias expostas, destacava numa alvura
festiva; dossel, frontal, paramentos dos missas eram brancos, com relevos de
ouro desmaiado; nos vasos
110
erguiam- se ramos piramidais de flores e folhagens brancas; os veludilhos
decorativos, dispostos como velrios, punham dos dois lados do tabernculo a
brancura de duas vastas asas desdobradas, lembrando a Pomba Espiritual; e os
vinte castiais erguiam a suas chamas amarelas em trono at ao sacrrio aberto,
que mostrava de alto, engastada num rebrilhar de ouros vivos, a hstia redonda e
baa. Por toda a igreja apinhada corria uma sussurrao lenta; aqui e alm um
catarro expectorava, uma criana choramingava; o ar adensava-se j dos hlitos
juntos e de um cheiro de incenso; e do coro, onde as figuras dos msicos se
moviam por trs dos braos dos rabeces e das estantes, vinha a cada momento
um afinar gemido de rabeca, ou um pio de flautim. As quatro amigas tinham-se
apenas acomodado junto ao altar-mor, quando os dois aclitos, um teso como
um pinheiro, o outro gordalhufo e enxovalhado, entraram do lado da sacristia,

sustentando alto e direito nas mos os dois castiais consagrados; atrs o


Pimenta vesgo, com uma sobrepeliz muito vasta para ele, lanando os seus
sapates em passadas pomposas, trazia o incensador de prata; depois
sucessivamente, durante o rumor do ajoelhar pela nave e do folhear ds
livrinhos, apareceram os dois diconos; e enfim, paramentado de branco, de
olhos baixos e mos postas, com aquele recolhimento humilde que pede o ritual
e que exprime a mansido de Jesus marchando ao Calvrio, entrou o padre Amaro
- ainda vermelho da questo furiosa que tivera na sacristia, antes de se revestir,
por causa da lavagem das alvas.
E o coro imediatamente atacou o Intrito.
Amlia passou a sua missa embevecida, pasmada para o proco - que era, como
dizia o cnego, "um grande artista para missas cantadas"; todo o cabido, todas as
senhoras o reconheciam. Que dignidade, que cavalheirismo nas saudaes
cerimoniosas aos diconos! Como se prostrava bem diante do altar, aniquilado e
escravizado, sentindo-se cinza, sentindo-se p diante de Deus, que assiste de
perto, cercado da sua corte e da sua famlia celeste! Mas era sobretudo admirvel
nas bnos; passava devagar as mos sobre o altar como para apanhar, recolher
a graa que ali caa do Cristo presente, e atirava-a depois com um gesto largo de
caridade por toda a nave, por sobre o estendal de lenos brancos de cabea, at ao
fundo onde os homens do campo muito apertados, de varapau na mo,
pasmavam para a cintilao do sacrrio! Era ento que Amlia o amava mais,
pensando que aquelas mos abenoadoras lhas apertava ela core paixo por baixo
da mesa do quino: aquela voz, com que ele lhe chamava filhinha, recitava agora
as oraes inefveis, e parecia-lhe melhor que o gemer das rabecas, revolvia-a
mais que os graves do rgo! Imaginava com orgulho que todas as senhoras
decerto o admiravam tambm; mas s tinha cimes, um cime de devota que
sente os encantos do Cu, quando ele ficava diante do altar, na posio esttica
que manda o ritual, to imvel como se a sua alma se tivesse remontado longe,
para as alturas, para o Eterno e para o Insensvel. Preferia-o, por o sentir mais
humano e mais acessvel, quando, durante o Kyrie ou a leitura da Epistola, ele se
sentava com os diconos no banco de damasco vermelho; ela queria ento atrair-

lhe um olhar; mas o senhor proco permanecia de olhos baixos, numa


compostura modesta.
Amlia, sentada sobre os calcanhares, com a face banhada num sorriso,
admirava-lhe o perfil, a cabea bem-feita, os paramentos dourados - e
lembrava-se quando o vira a primeira vez descendo a escada da Rua da
Misericrdia, com o seu cigarro na mo. Que romance se passara desde essa
noite! Recordava o Morenal, o salto do valado, a cena da morte da titi, aquele
beijo ao p da lareira... Ai, como acabaria tudo aquilo? Queria ento rezar;
folheava o livro, mas vinha-lhe idia o que o Libaninho nessa manh dissera:
"O senhor proco tinha uma pelezinha to branca como um arcanjo..." Devia-a
ter decerto muito delicada, muito tenra... Um desejo intenso queimava-a:
imaginava que era uma tentadora visitao do demnio, - e para a repelir
arregalava os olhos para o sacrrio e para o trono que o padre Amaro, cercado dos
diconos, incensava em semicrculos significando a Eternidade dos Louvores,
enquanto o coro berrava o Ofertrio... Depois ele mesmo, de p, no segundo
degrau do altar, de mos postas, foi incensado; o Pimenta vesgo fazia ranger
galhardamente as correntes de prata do turbulo; um perfume de incenso
derramava-se, como uma anunciao celeste; enevoava-se o sacrrio sob os
rolos alvos de fumo; e o proco aparecia a Amlia transfigurado, quase
divinizado!... Oh, adorava-o ento!
A igreja tremia ao clamor do rgo em pleno; de bocas abertas, os coristas
solfejavam a toda a fora; em cima, alando-se entre os braos dos rabeces, o
mestre da capela, no fogo da execuo, brandia desesperadamente a sua batuta
feita dum rolo de cantocho.

Amlia saiu da igreja muito fatigada, muito plida.


Ao jantar, em casa do cnego, a Sra. D. Josefa censurou-a repetidamente de "no
dar palavra".
111

No falava, mas debaixo da mesa o seu pezinho no cessava de roar, pisar o do


padre Amaro. Como escurecera cedo tinham acendido as velas; o cnego abrira
uma garrafa, no do seu famoso duque de 1815, mas do "1847", para acompanhar
a travessa de aletria que enchia o centro da mesa, com as iniciais do proco
desenhadas a canela; era, como explicara o cnego, "uma galantaria da mana ao
convidado". Amaro fizera logo uma sade com o 1847 " digna dona da casa". Ela
resplandecia, medonha no seu vestido de barege verde. O que sentia que o
jantar fosse to mau... Que aquela Gertrudes estava-se a fazer uma desleixada...
Ia-lhe deixando esturrar o pato com macarro!
- Oh, minha senhora, estava delicioso! protestou o proco.
- So favores do senhor proco. porque eu lhe acudi a tempo... Mais uma
colherzinha de aletria, senhor proco.
- Nada mais, minha senhora, tenho a minha conta.
- Ento para desgastar, v mais esse copito do 47, disse o cnego.
Ele mesmo bebeu pausadamente um bom gole, deu um ah de satisfao, e
repoltreando-se:
- Boa gota! assim pode-se viver!
Estava j rubro, e parecia mais obeso, com o seu grosso jaqueto de flanela e o
guardanapo atado
ao pescoo.
- Boa gota, repetiu, deste no provou hoje voc nas galhetas.
- Credo, mano! exclamou D. Josefa com a boca cheia de fios de aletria, muito
escandalizada da
irreverncia.
O cnego encolheu os ombros com desprezo.
- O credo para a missa! Esta pretenso de se meter sempre em questes que
no percebe! Pois
fique sabendo que duma grande importncia a questo da qualidade do vinho,
na missa. que necessrio que o vinho seja bom...

- Concorre para a dignidade do santo sacrifcio, disse o proco muito srio,


fazendo uma carcia de joelho a Amlia.
- E no s isso, disse o cnego tomando logo o tom de pedagogo. que o vinho,
quando no bom ou tem ingredientes, deixa um depsito nas galhetas; e, se o
sacristo no cuidadoso e no as limpa, as galhetas ganham um cheiro pssimo.
E sabe a senhora o que acontece? Acontece que o sacerdote, quando vai a beber o
sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, no est prevenido e faz-lhe uma careta.
Ora a tem a senhora!
E deu um forte chupo ao clice. Mas estava falador nessa noite, e depois de
arrotar devagar, interpelou de novo D. Josefa, assombrada de tanta cincia.
- E diga-me l ento a senhora, j que to doutora. O vinho, no divino
sacrifcio, deve ser branco ou tinto?
D. Josefa parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o sangue de
Nosso Senhor. - Emende a menina, mugiu o cnego de dedo em riste para
Amlia.
Ela recusou-se, com um risinho. Como no era sacristo, no sabia...
- Emende o senhor proco!
Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, ento devia ser branco...
- E por qu?
Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.
- E por qu? continuava o cnego, pedante e ronco. No sabia.
- Porque Nosso Senhor Jesus Cristo, quando pela primeira vez consagrou, f-lo
com vinho
branco. E a razo muito simples: porque na Judia nesse tempo, como
notrio, no se fabricava vinho tinto... Repita- me a senhora a aletria, faa favor.
Ento, a propsito do vinho e da limpeza das galhetas, o padre Amaro queixou-se
do Bento sacristo. Nessa manh antes de se paramentar - justamente quando
entrara o senhor cnego na sacristia - acabava de lhe dar uma desanda a respeito
das alvas. Em primeiro lugar dava-as a lavar a uma Antnia que vivia

amancebada com um carpinteiro, em grande escndalo, e que era indigna de


tocar os paramentos santos. Esta era a primeira. Depois, a mulher trazia-as to
enxovalhadas que era um desacato us-las no divino sacrifcio...
- Ai, mande-mas a mim, senhor proco, mande-mas a mim, acudiu D. Josefa.
Dou-as minha lavadeira, que pessoa de muita virtude e traz a roupa
escarolada. Ai, at era uma honra para mim! Eu mesmo as passava a ferro, e at
se podia benzer o ferro...
Mas o cnego (que positivamente estava naquela noite duma loquacidade
copiosa) interrompeu- a, e voltando-se para o padre Amaro, fixando-o
profundamente:
- Ora a propsito de eu entrar na sacristia, sempre lhe quero dizer, amigo e
colega, que cometeu hoje um erro de palmatria.
Amaro pareceu inquieto.
112
- Que erro, padre-mestre?
- Depois de se revestir, continuou o cnego pausadamente, j com os diconos ao
lado, quando fez a cortesia imagem da sacristia, em lugar de fazer a cortesia
profunda, fez s a meia cortesia.
- Alto l, padre-mestre! exclamou o padre Amaro. o texto da rubrica. Facta
reverentia cruci, feita a reverncia cruz; isto , a reverncia simples, abaixar
ligeiramente a cabea...
E, para exemplificar, fez uma cortesia a D. Josefa que lhe sorriu toda, torcendose.
- Nego! exclamou formidavelmente o cnego que em sua casa, sua mesa,
punha de alto as suas opinies. E nego com os meus autores. Eles a vo! - e
deixou-lhe cair em cima, como penedos de autoridade, os nomes venerados de
Laboranti, Baldeschi, Merati, Turrino e Pavnio.

Amaro afastara a cadeira, pusera-se em atitude de controvrsia, contente de


poder, diante de Amlia, "enterrar" o cnego, mestre de teologia moral e um
colosso de liturgia prtica.
- Sustento, exclamou, sustento com Castaldus...
- Alto, ladro, bramiu o cnego. Castaldus meu!
- Castaldus meu, padre-mestre!
E encarniaram-se, puxando cada um para si o venervel Castaldus e a
autoridade da sua
facndia. D. Josefa pulava de gozo na cadeira, murmurando para Amlia com a
cara franzida de riso:
- Ai, que gostinho v-los! Ai, que santos!
Amaro continuava, com gesto alto:
- E alm disso, tenho por mim o bom senso, padre-mestre. Primo, a rubrica,
como expus.
Segundo, o sacerdote, tendo na sacristia o barrete na cabea, no deve fazer
cortesia inteira, porque lhe pode cair o barrete e temos desacato maior. Tertio,
seguir-se-ia um absurdo, porque ento a cortesia antes da missa cruz da
sacristia seria maior que a que se faz depois da missa cruz do altar!
- Mas a cortesia cruz do altar... bradou o cnego.
- meia cortesia. Leia a rubrica: Caput inclinat. Leia Gavantus, leia Garriffaldi. E
nem podia deixar de ser assim! Sabe por qu? Porque depois da missa o sacerdote
est no auge da dignidade, uma vez que tem dentro em si o corpo e sangue de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Logo, o ponto meu!
E de p, esfregou vivamente as mos, triunfando.
O cnego abatera a papeira sobre as pregas do guardanapo, como um boi
atordoado. E depois dum momento:

- Voc no deixa de ter razo... Eu fui para o ouvir... Faz-me honra c o discpulo,
acrescentou piscando o olho a Amlia. Pois beber, beber! E depois salta o
cafezinho bem quente, mana Josefa!
Mas um forte repique campainha sobressaltou-os.
- a S. Joaneira, disse D. Josefa.
A Gertrudes entrou com um xale e uma manta de l:
- Aqui est isto que vem de casa da menina Amlia. A senhora manda muitos
recados, que no
pode vir, que se achou incomodada.
- Ento com quem hei-de eu ir? disse logo Amlia, inquieta.
O cnego estendeu o brao sobre a mesa, e dando-lhe uma palmadinha na mo:
- Em ltimo caso com este seu criado. E essa virtudezinha podia ir sossegada...
- Tem coisas, mano! gritou a velha.
- Deixa l, mana. O que passa pela boca dum santo, santo fica.
O proco aprovou ruidosamente:
- Tem muita razo o senhor cnego Dias! O que passa pela boca de um santo,
santo fica! Para
que viva!
- sua!
E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados da controvrsia. Mas
Amlia ficara assustada.
- Jesus, que ter a mam? Que ser?
- Ora que h-de ser? preguia! disse-lhe o proco, rindo.
- No te agonies, filha, disse D. Josefa. Vou-te eu levar, vamos todos levar-te...
- Vai a menina em charola, rosnou o cnego descascando a sua pra.
Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos em redor, e passando a mo
pelo estmago:
- Pois olhem, disse, no me estou tambm a sentir bem...
- Que ? que ?
- Um ameaozito da dor. Passou, no vale nada.

D. Josefa, j assustada, no queria que ele comesse a pra. Que a ltima vez que
lhe dera fora por
causa da fruta...
Mas ele, obstinado, cravou os dentes na pra. - Passou, passou, rosnava.
113
- Foi simpatia com a mam, disse o proco baixo a Amlia.
De repente o cnego afastou a cadeira, e torcendo-se de lado:
- No estou bem, no estou bem! Jesus! Oh, diabo! Oh, caramba! Ai! ai! morro!
Alvoroaram-se em volta dele. D. Josefa amparou-o pelo brao at o quarto,
gritando criada
que fosse buscar o doutor. Amlia correu cozinha a aquecer uma flanela para lhe
pr no estmago. Mas no aparecia flanela. Gertrudes topava contra as cadeiras,
espavorida, procura do seu xale para sair.
- V sem xale, sua estpida! gritou-lhe Amaro.
A rapariga abalou. Dentro o cnego dava urros.
Amaro ento, realmente assustado, entrou-lhe no quarto. D. Josefa de joelhos
diante da cmoda
gemia oraes a uma grande litografia de Nossa Senhora das Dores; e o pobre
padre-mestre, estirado de barriga sobre a cama, rilhava o travesseiro.
- Mas minha senhora, disse o proco severamente, no se trata agora de rezar.
necessrio fazer- lhe alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
- Ai, senhor proco, no h nada, no h nada, choramigou a velha. uma dor
que vem e vai num momento. No d tempo pra nada! Um ch de tlia alivia-o s
vezes... Mas por desgraa hoje nem tlia tenho! Ai, Jesus!
Amaro correu a casa a buscar tlia. E dai a pouco voltava esbaforido com a
Dionsia, que vinha oferecer a sua atividade e a sua experincia.
Mas o senhor cnego, felizmente, sentira-se de repente aliviado!

- Muito agradecida, senhor proco, dizia D. Josefa. Rica tlia! de muita caridade.
Ele agora naturalmente cai em sonolncia. Vem-lhe sempre depois da dor... Eu
vou para ao p dele, desculpem- me... Esta foi pior que as outras... So estas
frutas mald... - reteve a blasfmia, aterrada. - So as frutas de Nosso Senhor. a
sua divina vontade... Desculpem- me, sim?
Amlia e o proco ficaram ss na sala. Os seus olhares reluziram logo do desejo
de se tocar, de se beijar, mas as portas estavam abertas; e sentiam no quarto ao
lado, as chinelas da velha. O padre Amaro disse ento alto:
- Pobre padre-mestre! uma dor terrvel.
- D-lhe todos os trs meses, disse Amlia. A mam j andava com o
pressentimento. Ainda me tinha dito antes de ontem: o tempo da dor do
senhor cnego, estou com mais cuidado...
O proco suspirou, e baixinho:
- Eu que no tenho quem pense nas minhas dores...
Amlia pousou nele longamente os seus belos olhos umedecidos de ternura.
As suas mos iam apertar-se ardentemente por sobre a mesa; mas D. Josefa
apareceu, encolhida
no seu xale. O mano tinha adormecido. E ela estava que no se podia ter nas
pernas. Ai, aqueles abalos arrasavam-lhe a sade! Acendera duas velas a S.
Joaquim, e fizera uma promessa a Nossa Senhora da Sade. Era a segunda aquele
ano, por causa da dor do mano. E Nossa Senhora no lhe tinha faltado...
- Nunca falta a quem a implora com f, minha senhora, disse com uno o padre
Amaro.
O alto relgio de armrio bateu ento cavamente oito horas. Amlia falou outra
vez no cuidado em que estava pela mam... De mais a mais ia- se a fazer to
tarde...
- E que quando eu sai estava a chuviscar, disse Amaro.

Amlia correu janela, inquieta. O lajedo defronte, debaixo do candeeiro, reluzia


muito molhado. O cu estava tenebroso.
- Jesus, vamos ter uma noite de gua!
D. Josefa estava aflita com o contratempo; mas a Amlia bem via, ela agora no
podia despegar de casa; a Gertrudes fora ao doutor; naturalmente no o
encontrara; andava a procur-lo de casa em casa, quem sabe quando viria...
O proco ento lembrou que a Dionsia (que viera com ele e esperava na cozinha)
podia ir acompanhar a Sra. D. Amlia. Eram dois passos, no havia ningum
pelas ruas. Ele mesmo iria com elas at esquina da Praa... Mas deviam
apressar-se que ia cair gua!
D. Josefa foi logo buscar um guarda-chuva para Amlia. Recomendou-lhe muito
que contasse mam o que tinha sucedido. Mas que no se afligisse ela, que o
mano estava melhor...
- E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada. Diz-lhe que se fez tudo o que se
pde, mas que a dor no deu tempo para nada!
- Sim, l direi. Boa noite.
Ao abrirem a porta a chuva caa grossa. Amlia ento quis esperar. Mas o proco,
apressado, puxou-a pelo brao:
- No vale nada, no vale nada!
114
Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo do guarda-chuva, com a Dionsia
ao lado, muito calada, de xale pela cabea. Todas as janelas estavam apagadas; no
silncio as goteiras cantavam de enxurro.
- Jesus, que noite! disse Amlia. Vai-se-me a perder o vestido.
Estavam ento na Rua das Sousas.

- que agora cai a cntaros, disse Amaro. Realmente parece-me que o melhor
entrar no ptio
de minha casa e esperar um bocado... - No, no! acudiu Amlia.
- Tolices! exclamou ele impaciente. Vai-se-lhe estragar o vestido... um
instante, um aguaceiro. Para aquele lado, v, est a aliviar. Vai passar... uma
tolice... A mam, se a visse aparecer debaixo duma carga de gua, zangava-se, e
com razo!
- No, no!
Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, empurrando Amlia de levei
- um instante, vai passar, entre...
E ali ficaram, calados, no ptio escuro, olhando as cordas de gua que reluziam
luz do
candeeiro defronte. Amlia estava toda atarantada. A negrura do ptio e o
silncio assustavam-na; mas parecia-lhe delicioso estar assim naquela
escurido, ao p dele, ignorada de todos... Insensivelmente atrada, roava-selhe pelo ombro; e recuava logo, inquieta de ouvir a sua respirao to agitada, de
o sentir to junto das saias. Percebia por trs, sem a ver, a escada que levava ao
quarto dele; e tinha um desejo imenso de lhe ir ver, acima, os seus mveis, os
seus arranjos... A presena da Dionsia, encolhida contra a porta e muito calada,
embaraava-a; todavia a cada momento voltava os olhos para ela, receando que
desaparecesse, se sumisse na negrura do ptio ou da noite...
Amaro ento comeou a bater com os ps no cho, a esfregar as mos, arrepiado.
- Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lajes esto regeladas. Realmente era
melhor esperar em cima na sala de jantar...
- No, no! disse ela.
- Pieguices! At a mam se havia de zangar... V, Dionsia, acenda luz em cima.
A matrona imediatamente galgou os degraus.
Ele ento, muito baixo, tomando o brao de Amlia:

- Por que no? Que pensas tu? uma pieguice. enquanto no passa o aguaceiro.
Dize...
Ela no respondia, respirando muito forte. Amaro pousou-lhe a mo sobre o
ombro, sobre o
peito, apertando-lho, acariciando a seda. Toda ela estremeceu. E foi-o enfim
seguindo pela escada, como tonta, com as orelhas a arder, tropeando a cada
degrau na roda do vestido.
- Entra para a, o quarto, disse-lhe ao ouvido.
Correu cozinha. Dionsia acendia a vela.
- Minha Dionsia, tu percebes... Eu fiquei de confessar aqui a menina Amlia.
um caso muito
srio... Volta daqui a meia hora. Toma! meteu-lhe trs placas na mo.
A Dionsia descalou os sapatos, desceu em pontas de ps e fechou- se na loja do
carvo.
Ele voltou ao quarto com a luz. Amlia l estava, imvel, toda plida. O proco
fechou a porta e foi para ela, calado, com os dentes cerrados, soprando como um touro.

Meia hora depois Dionsia tossiu na escada. Amlia desceu logo, muito
embrulhada na manta: ao abrirem a porta do ptio passavam na rua dois
borrachos galrando: Amlia recuou rapidamente para o escuro. Mas Dionsia da a
pouco espreitou; e vendo a rua deserta:
- Est a barra livre, minha rica menina...
Amlia embrulhou mais o rosto e apressaram o passo para a Rua da Misericrdia.
J no chovia; havia estrelas; e uma frialdade seca anunciava o Norte e o bom
tempo.
XVI

Ao outro dia Amaro, vendo no relgio que tinha cabeceira que ia chegando a
hora da missa, saltou alegremente da cama. E, enfiando o velho palet que lhe
servia de robe-de-chambre, pensava nessa outra manh em Feiro em que
acordara aterrado, por ter na vspera, pela primeira vez depois de padre, pecado
brutalmente sobre a palha da estrebaria da residncia com a Joana Vaqueira. E
no se atrevera a
115
dizer missa com aquele crime na alma, que o abafava com um peso de penedo.
Considerara-se contaminado, imundo, maduro para o inferno, segundo todos os
santos padres e o serfico concilio de Trento. Trs vezes chegara porta da igreja,
trs vezes recuara assombrado. Tinha a certeza de que, se ousasse tocar na
Eucaristia com aquelas mos com que repanhara os saiotes da Vaqueira, a capela
se aluiria sobre ele, ou ficaria paralisado vendo erguer-se diante do sacrrio, de
espada alta, a figura rutilante de S. Miguel Vingador! Montara a cavalo e trotara
duas horas, pelos barreiros de D. Joo, para ir Gralheira confessar-se ao bom
abade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de inocncia, de exageraes piedosas
e de terrores novios! Agora tinha aberto os olhos em redor realidade humana.
Abades, cnegos, cardeais e monsenhores no pecavam sobre a palha da
estrebaria, no - era em alcovas cmodas, com a ceia ao lado. E as igrejas no se
aluam, e S. Miguel Vingador no abandonava por to pouco os confortos do Cu!
No era isso o que o inquietava - o que o inquietava era a Dionsia, que ele ouvia
na cozinha, arrumando e tossicando, sem se atrever a pedir- lhe gua para a
barba. Desagradava-lhe sentir aquela matrona introduzida, instalada no seu
segredo. No duvidava decerto da sua discrio, era o seu ofcio; e algumas meias
libras manteriam a sua fidelidade. Mas repugnava ao seu pudor de padre saber
que aquela velha concubina de autoridades civis e militares, que rolara a sua
massa de gordura por todas as torpezas seculares da cidade, conhecia as suas
fragilidades, as concupiscncias que lhe ardiam sob a batina de proco. Preferiria
que fosse o Silvrio ou Natrio que o tivesse visto na vspera, todo inflamado:
era entre sacerdotes, ao menos!... E o que o incomodava era a idia de ser
observado por aqueles olhinhos cnicos, que no se impressionavam nem com

austeridade das batinas nem com a responsabilidade dos uniformes, porque


sabiam que por baixo estava igualmente a mesma misria bestial da carne...
- Acabou-se, pensou, dou-lhe uma libra e imponho-a.
Ns de dedos bateram discretamente porta do quarto.
- Entre! disse Amaro sentando-se logo, curvando-se vivamente sobre a mesa,
como absorvido,
abismado nos seus papis.
A Dionsia entrou, pousou o pcaro da gua sobre o lavatrio, tossiu, e falando
sobre as costas
de Amaro:
- senhor proco, olhe que isto assim no tem jeito. Ontem iam vendo sair
daqui a pequena.
muito srio, menino... Para bem de todos necessrio segredo!
No, no a podia impor! A mulher estabelecia-se, fora, na sua confidncia.
Aquelas palavras
mesmo, murmuradas com medo das paredes, revelando uma prudncia de ofcio,
mostravam-lhe a vantagem duma cumplicidade to experiente.
Voltou-se na cadeira, muito vermelho.
- Iam vendo, hem?
- Iam vendo. Eram dois bbedos... Mas podiam ser dois cavalheiros.
- verdade.
- E na sua posio, senhor proco, na posio da pequena!... Tudo se deve fazer
pelo calado...
Nem os mveis do quarto devem saber! Em coisas que eu protejo, exijo tanta
cautela como se se tratasse da morte!
Amaro ento decidiu-se bruscamente a aceitar a proteo da Dionsia.
Rebuscou num canto da gaveta, meteu-lhe meia libra na mo.
- Seja pelo amor de Deus, filho, murmurou ela.

- Bem; e agora, Dionsia, que lhe parece? perguntou ele, recostado na cadeira,
esperando os
conselhos da matrona.
Ela disse, muito naturalmente, sem afetao de mistrio ou de malcia:
- A mim parece-me que para ver a pequena no h como a casa do sineiro!
- A casa do sineiro?
Ela recordou-lhe, muito tranqilamente, a excelente disposio do stio?. Um
dos quartos ao p
da sacristia, como ele sabia, dava para um ptio onde se tinha feito um barraco
no tempo das obras. Pois bem, justamente do outro lado eram as traseiras da casa
do sineiro... A porta , da cozinha do tio Esguelhas abria para o ptio: era sair da
sacristia, atravess-lo, e o senhor proco estava no ninho!
- E ela?
- Ela entra pela porta do sineiro, pela porta da rua que d para o adro. No passa
viva alma, um ermo. E se algum visse, nada mais natural, era a menina Amlia
que ia dar um recado ao sineiro... Isto, j se v, ainda pelo alto, que o plano
pode-se aperfeioar...
- Sim, compreendo, um esboo, disse Amaro que passeava pelo quarto
refletindo.
- Eu conheo bem o stio, senhor proco, e creia o que lhe digo: para um senhor
eclesistico que tem o seu arranjinho, no h melhor que a casa do sineiro!
Amaro parou diante dela, rindo, familiarizando-se:
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- tia Dionsia, diga l com franqueza: no a primeira vez que voc aconselha a
casa do sineiro, hem?

Ela ento negou, muito decisivamente. Era homem que nem conhecia, o tio
Esguelhas! Mas tinha-lhe vindo aquela idia de noite, a malucar na cama. Pela
manh cedo fora examinar o stio, e reconhecera que estava a calhar.
Tossicou, foi-se aproximando sem rudo da porta: e voltando-se ainda, com um
ltimo conselho: - Tudo est em que vossa senhoria se entenda bem com o
sineiro.

Era isso agora o que preocupava o padre Amaro.


O tio Esguelhas passava na S, entre os serventes e os sacristes, por um
macambzio. Tinha uma perna cortada e usava muleta: e alguns sacerdotes, que
desejariam o emprego para os seus protegidos, sustentavam mesmo que aquele
defeito o tornava, segundo a Regra, imprprio para o servio da Igreja. Mas o
antigo proco Jos Miguis, em obedincia ao senhor bispo, conservara-o na S,
argumentando que o trambolho desastroso que motivara a amputao fora na
torre, numa ocasio de festa, colaborando no culto: ergo estava claramente
indicada a inteno de Nosso Senhor em no prescindir do tio Esguelhas. E
quando Amaro tomara conta da parquia, o coxo valera-se da influncia da S.
Joaneira e de Amlia para conservar, como ele dizia, a corda do sino. Era alm
disso (e fora a opinio da Rua da Misericrdia) uma obra de caridade. O tio
Esguelhas, vivo, tinha uma filha de quinze anos paraltica, desde pequena, das
pernas. "O diabo embirrou com as pernas da famlia", costumava dizer o tio
Esguelhas. Era decerto esta desgraa que lhe dava uma tristeza taciturna.
Contava-se que a rapariga (cujo nome era Antnia, e que o pai chamava Tot) o
torturava com perrices, frenesis, caprichos abominveis. O doutor Gouveia
declarara-a histrica: mas era uma certeza, para as pessoas de bons princpios,
que a Tot estava possuda do Demnio. Houvera mesmo o plano de a
exorcismar; o senhor vigrio-geral, porm, sempre assustado com a imprensa,
hesitara em conceder a permisso ritual, e tinham-lhe feito apenas, sem
resultado, as asperses simples de gua benta. De resto no se sabia a natureza
do endemoninhamento da paraltica: a Sra. D. Maria da Assuno ouvira dizer

que consistia em uivar como um lobo; a Gansosinho, em outra verso,


assegurava que a desgraada se dilacerava com as unhas... O tio Esguelhas, esse,
quando lhe perguntavam pela rapariga, respondia secamente:
- L est.
Os intervalos do seu servio da igreja passava-os todos com a filha no casebre. S
atravessava o largo para ir botica por algum remdio, ou comprar bolos
confeitaria da Teresa. Todo o dia aquele recanto da S, o ptio, o barraco, o alto
muro ao lado coberto de parietrias, a casa ao fundo com a sua janela de portada
negra numa parede lazeirenta, permaneciam num silncio, numa sombra mida:
e os meninos do coro, que s vezes se arriscavam a ir p ante p, pelo ptio,
espreitar o tio Esguelhas, viam-no invariavelmente curvado lareira, com o
cachimbo na mo, cuspilhando tristemente para as cinzas.
Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a missa do senhor proco. E
Amaro, nessa manh, ao revestir-se, sentindo-lhe nas ljeas do ptio a muleta,
ia j ruminando a sua histria - porque no podia pedir ao tio Esguelhas o uso do
seu casebre sem explicar, de algum modo, que o desejava para um servio
religioso... E que servio, a no ser preparar, em segredo e longe das oposies
mundanas, alguma alma terna para o convento e para a santidade?
Ao v-lo entrar na sacristia, deu-lhe logo um "bons-dias" amveis. Achou-lhe
uma bela cara de sade! Tambm no admirava - porque, segundo todos os
santos padres, a freqentao dos sinos, pela virtude particular que lhes
comunica a consagrao, d uma alegria e um bem-estar especiais. Contou ento
com bonomia ao tio Esguelhas e aos dois sacristes que, quando era pequeno, em
casa da Sra. marquesa de Alegros, o seu grande desejo era ser um dia sineiro...
Riram muito, extasiando-se com a pilhria de sua senhoria.
- No se riam, verdade. E no me ficava mal... Noutros tempos eram clrigos de
ordens menores que tocavam os sinos. Os nossos padres consideravam-nos um
dos meios mais eficazes da piedade. L disse a glosa, pondo o verso na boca do
sino:

Laudo deum, populum voco, congrego clerum, Defunctum ploro, pestem fugo,
festa decoro...
O que quer dizer, como sabem: Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o clero,
choro os mortos, afugento as pestes, alegro as festas.
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Citava a glosa com respeito, j revestido de amito e alva, no meio da sacristia; e o
tio Esguelhas empertigava-se sobre a sua muleta quelas palavras que lhe davam
uma autoridade e uma importncia imprevista.
O sacristo tinha-se aproximado com a casula roxa. Mas Amaro no terminara a
glorificao dos sinos; - explicou ainda a sua grande virtude em dissipar as
tempestades (apesar do que dizem alguns sbios presunosos), no s porque
comunicam ao ar a uno que recebem da bno, mas porque dispersam os
demnios que erram entre os vendavais e os troves. O santo conclio de Milo
recomenda que se toquem os sinos sempre que haja tormenta...
- Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou sorrindo com solicitude pelo
sineiro, aconselho-lhe que nesses casos melhor no se arriscar. Sempre estar
no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso, tio Matias.
E recebeu sobre os ombros a casula, murmurando com muita compostura:
- Domine, qui dixisti jugum meum... Aperte mais os cordes por trs, tio Matias.
Suave est, et onus meum leve...
Fez uma cortesia imagem e entrou na igreja, na atitude da rubrica, de olhos
baixos e corpo direito; enquanto o Matias, depois de ter tambm saudado com
um raspo de p o Cristo da sacristia, se apressava com as galhetas, tossindo
forte para clarear a garganta.
Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave, no Ofertrio e ao Orate, fratres, o
padre Amaro dirigia-se sempre (por uma benevolncia que o ritual permite) para
o sineiro, como se o Sacrifcio fosse por sua inteno particular; - e o tio

Esguelhas, com a sua muleta pousada ao lado, abismava-se ento numa devoo
mais respeitosa. Mesmo ao Benedicat, depois de ter comeado a bno voltado
para o altar para recolher do Deus vivo o depsito da Misericrdia, terminou-a,
virando-se devagar para o tio Esguelhas especialmente, como para lhe dar a ele
s as Graas e Dons de Nosso Senhor!
- E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar na sacristia, v-me esperar ao
ptio que temos que conversar.
No tardou a vir ter com ele, com uma face grave que impressionou o sineiro.
- Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho falar-lhe dum caso srio...
Verdadeiramente pedir-lhe um favor...
- Oh, senhor proco!
No, no era um favor... Porque, quando se tratava do servio de Deus, todos
tinham o dever de concorrer na proporo das suas foras... Tratava-se duma
menina que se queria fazer freira. Enfim, para lhe provar a confiana que tinha
nele, ia-lhe dizer o nome...
- a Ameliazinha da S. Joaneira!
- Que me diz, senhor proco?!
- Uma vocao, tio Esguelhas! V-se o dedo de Deus! extraordinrio...
Contou-lhe ento uma histria difusa que ia forjando laboriosamente, segundo
as sensaes que
imaginava ver na face pasmada do sineiro. A rapariga desgostara-se da vida, com
as desavenas que tivera com o noivo. Mas a me que estava velha, que a
necessitava para o governo da casa, no queria consentir, supondo que era uma
veleidade... Mas no, era vocao... Ele sabia-o... Infelizmente, quando havia
oposio, a conduta do sacerdote era muito delicada... Todos os dias os jornais
mpios (e infelizmente era a maioria!) gritavam contra as influncias do clero...
As autoridades, mais mpias que os jornais, punham obstculos... Havia leis
terrveis... Se soubessem que ele andava a instruir a menina para professar,

ferravam-no na cadeia! Que queria o tio Esguelhas?... Impiedade, atesmo do


tempo!
Ora, ele necessitava ter com a pequena muitas e muitas conferncias: para a
experimentar, para conhecer as suas disposies, ver bem se para a Solido que
ela tem jeito, ou para a Penitncia, ou para o servio dos enfermos, ou para a
Adorao Perptua, ou para o Ensino... Enfim, estuda-la por dentro e por fora.
- Mas onde? exclamou, abrindo os braos como na desolao de um santo dever
contrariado. Onde? Em casa da me no pode ser, j andam desconfiados. Na
igreja impossvel, era o mesmo que na rua. Em minha casa, j v, menina nova...
- Est claro.
- De modo que, tio Esguelhas... E estou certo que voc mo h-de agradecer...
pensei na sua casa...
- Oh, senhor proco, acudiu o sineiro, eu, a casa, os trastes, est tudo s ordens!
- Bem v, no interesse daquela alma, um regozijo para Nosso Senhor...
- E para mim, senhor proco, e para mim!
O que o tio Esguelhas receava que a casa no fosse decente e no tivesse as
comodidades...
- Oral fez o padre sorrindo, num renunciamento de todos os confortos humanos.
Contanto que
haja duas cadeiras e uma mesa para pr o livro da orao...
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De resto, por outro lado, dizia o sineiro, l como stio retirado e casa sossegada
estava a preceito. Ficavam ali, ele e a menina, como os monges no deserto. Nos
dias em que o senhor proco viesse, ele saa a dar o seu giro. Na cozinha no
poderiam acomodar-se, porque o quartito da pobre Tot era ao p... Mas tinham
o quarto dele, em cima.

O padre Amaro bateu com a mo na testa. No se lembrara da paraltica!


- Isso estraga-nos o arranjinho, tio Esguelhas! exclamou.
Mas o sineiro tranqilizou-o, vivamente. Estava agora todo interessado naquela
conquista de
uma noiva para Nosso Senhor; queria por fora que o seu telhado abrigasse a
santa preparao da alma da menina... Talvez lhe atrasse a ele a piedade de
Deus! Mostrou com calor as vantagens, as facilidades da casa. A Tot no
embaraava. No se mexia da cama. O senhor proco entrava pela cozinha do
lado da sacristia, a menina vinha pela porta da rua: subiam, fechavam-se no
quarto...
- E ela que faz, a Tot? perguntou o padre Amaro, hesitando ainda.
Coitadita, para ali estava... Tinha manias: ora fazia bonecas e apaixonava-se por
elas a ponto de ter febre; outros dias passava-os num silncio medonho com os
olhos cravados na parede. Mas s vezes estava alegre, palrava, chalaceava... Uma
desgraa!
- Devia-se entreter, devia ler, disse o padre Amaro para mostrar interesse.
O sineiro suspirou. No sabia ler, a pequena, nunca quisera aprender. Era o que
ele lhe dizia - se pudesses ler, j te no pesava tanto a vida! Mas ento? Tinha
horror a aplicar-se... O Sr. padre Amaro devia ter a caridade de a persuadir,
quando viesse a casa...
Mas o proco no o escutava, todo abismado numa idia que lhe alumiara a face
dum sorriso. Achara subitamente a explicao natural a dar S. Joaneira e s
amigas das visitas de Amlia a casa do sineiro: era a ensinar a ler a paraltica! A
educ-la! A abrir-lhe a alma s belezas dos livros santos, da histria dos mrtires
e da orao!...
- Est decidido, tio Esguelhas, exclamou, esfregando as mos de jbilo. em sua
casa que se h- de fazer da rapariga uma santa. E disto - e a sua voz deu um grave
profundo - um segredo inviolvel!

- Oh, senhor proco! fez o sineiro, quase ofendido.


- Conto consigo! disse Amaro.
Veio logo sacristia escrever um bilhete, que devia passar em segredo a Amlia,
em que lhe
explicava detalhadamente o "arranjinho que fizera para gozarem novas e divinas
felicidades". Prevenia-a que o pretexto para ela vir todas as semanas a casa do
sineiro devia ser a educao da paraltica: ele mesmo o proporia noite, em casa
da mam. "Que nisto, dizia, h alguma verdade, pois seria grato a Deus que se
alumiasse com uma boa instruo religiosa as trevas daquela alma. E matamos
assim, querido anjo, dois coelhos com uma s cacheirada!"
Depois, entrou em casa. Como se sentou regaladamente mesa doalmoo, com
um contentamento pleno de si, da vida e das doces facilidades que nela
encontrava! Cimes, dvidas, torturas do desejo, solido da carne, tudo o que o
consumira meses e meses, alm na Rua da Misericrdia e ali na Rua das Sousas,
passara. Estava enfim instalado larga na felicidade! E recordava, abismado num
gozo mudo, com o garfo esquecido namo, toda aquela meia hora da vspera,
prazer por prazer, ressaboreando-os mentalmente um a um, saturando-se da
deliciosa certeza da posse - como o lavrador que percorre a leira de terra
adquirida que os seus olhos invejaram muitos anos. Ah, no tomaria a olhar de
lado, com azedume, os cavalheiros que passeavam na Alameda com as suas
mulheres pelo brao! Tambm ele agora tinha uma, toda sua, alma e carne, linda,
que o adorava, que usava boas roupas brancas, e trazia no peito um cheirinho de
gua-de-colnia! Era padre, verdade... Mas para isso tinha o seu grande
argumento: que o comportamento do padre, logo que no d escndalo entre os
fiis, em nada prejudica a eficcia, a utilidade, a grandeza da religio. Todos os
telogos ensinam que a ordem dos sacerdotes foi instituda para administrar os
sacramentos; o essencial que os homens recebam a santidade interior e
sobrenatural que os sacramentos contm; e contanto que eles sejam dispensados
segundo as frmulas consagradas, que importa que o sacerdote seja santo ou
pecador? O sacramento comunica a mesma virtude. No pelos mritos do
sacerdote que eles operam, mas pelos mritos de Jesus Cristo. O que batizado

ou ungido, ou seja por mos puras ou por mos torpes, fica igualmente bem
lavado da mcula original, ou bem preparado para a vida eterna. Isto l-se em
todos os santos padres, estabeleceu-o o serfico conclio de Trento. Os fiis nada
perdem, na sua alma e na sua salvao, com a indignidade do proco. E se o
proco se arrepende hora extrema, tambm se lhe no fecham as portas do
Cu. Logo em definitivo tudo acaba bem, e em paz geral... - E o padre Amaro,
raciocinando assim, sorvia com prazer o seu caf.
A Dionsia, ao fim do almoo, veio saber, muito risonha, se o senhor proco
falara ao tio Esguelhas...
- Falei por alto, disse ele ambiguamente. No h nada decidido... Roma no se
construiu num dia.
119
- Ah! fez ela.
E recolheu-se cozinha, pensando que o senhor proco mentia como um herege.
Tambm, no se importava... Nunca gostara de arranjos com os senhores
eclesisticos; pagavam mal, e suspeitavam sempre...
E mesmo ouvindo Amaro que saa, correu escada, a dizer-lhe - que enfim, ela
tinha a olhar pela sua casa, e quando o senhor proco tivesse arranjado criada. ..
- A Sra. D. Josefa Dias anda-me a tratar disso, Dionsia. Espero ter algum
amanh. Mas voc aparea... Agora que somos amigos...
- Quando o senhor proco quiser chamar-me da janela para o quintal, disse ela
do alto da escada. Para tudo o que precisar. De tudo sei um bocadinho; at de
desarranjos e de partos... E neste ponto posso at dizer...
Mas o padre no a escutava: atirara com a porta de repelo, fugindo, indignado
daquela utilidade torpe assim brutalmente oferecida.

Foi dai a dias que ele falou em casa da S. Joaneira da filha do sineiro.
Na vspera dera o bilhete a Amlia; e nessa noite, enquanto na sala se galrava
alto, aproximara- se do piano, onde Amlia, com os dedos preguiosos, corria
escalas, e abaixando-se para acender o cigarro vela, murmurara.
- Leu?
- timo!
Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde a Gansoso estava contando
uma catstrofe que
lera num jornal, sucedida em Inglaterra: uma mina de carvo que desabara,
sepultando cento e vinte trabalhadores. As velhas arrepiavam-se horrorizadas. A
Gansoso ento, gozando o efeito, acumulou loquazmente os detalhes: a gente
que estava fora esforara-se por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes
embaixo gemidos e os ais; era ao lusco-fusco; havia uma tormenta de neve...
- Desagradvel! rosnou o cnego, aconchegando-se na sua poltrona, gozando o
calor da sala e a segurana dos tetos.
A Sra. D. Maria da Assuno declarou que todas essas minas, essas mquinas
estrangeiras lhe causavam medo. Vira uma fbrica ao p de Alcobaa, e pareceralhe uma imagem do inferno. Estava certa que Nosso Senhor no as via com bons
olhos...
- como os caminhos de ferro, disse D. Josefa. Tenho a certeza que foram
inspirados pelo demnio! No o digo a rir. Mas vejam aqueles uivos, aquele
fogaracho, aquele fragor! Ai, arrepia!
O padre Amaro galhofou, - assegurando Sra. D. Josefa que eram ricamente
cmodos para andar depressa! Mas, tomando-se logo srio, acrescentou:
- Em todo o caso incontestvel que h nessas invenes da cincia moderna
muito do demnio. E por isso que a nossa santa Igreja as abenoa, primeiro com
oraes e depois com gua benta. Ho-de saber que o costume. Com gua
benta, para lhes fazer o exorcismo, expulsar o esprito inimigo: e com oraes

para as resgatar do pecado original que no s existe no homem, mas nas coisas
que ele constri. por isso que se benzem e se purificam as locomotivas... Para
que o demnio no se possa servir delas para seu uso.
D. Maria da Assuno quis imediatamente uma explicao. Como em a maneira
usual do Inimigo se servir dos caminhos de ferro?
O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O Inimigo tinha muitas maneiras,
mas a habitual era esta: fazia descarrilar um trem de modo que morressem
passageiros, e como essas almas no estavam preparadas pela Extrema-Uno, o
demnio ali mesmo, zs, apoderava-se delas!
- de velhaco! rosnou o cnego com uma admirao secreta por aquela manha
to hbil do Inimigo.
Mas D. Maria da Assuno abanou-se langorosamente, com o rosto banhado num
sorriso de beatitude:
- Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados, a ns que no nos sucedia isso...
Que no nos pilhava desprevenidas!
Era verdade; e todas gozaram um momento aquela certeza deliciosa de estarem
preparadas, de poderem lograr a malcia do Tentador!
O padre Amaro ento tossiu como para preparar as vias, e apoiando as duas mos
sobre a mesa, num tom de prtica:
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- necessrio muita vigilncia para conservar de longe o demnio. Ainda hoje eu
estava a pensar nisso (foi mesmo a minha meditao) a respeito de um caso bem
triste que tenho l ao p da S... a filhita do sineiro.
As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe as palavras, numa
curiosidade subitamente excitada, esperando ouvir a histria picante de alguma
faanha de Satans. E o proco continuou com uma voz a que o silncio em redor
dava solenidade:

- Ali est aquela rapariga, todo o santo dia, pregada na cama! No sabe ler, no
tem devoes habituais, no tem o costume da meditao; por conseqncia,
para empregar a expresso de S. Clemente - uma alma sem defesa. O que sucede?
Que o demnio, que ronda constantemente e no perde dentada, estabelece-se
ali como em sua casa! Por isso, como me dizia hoje o pobre tio Esguelhas, so
frenesis, desesperos, furores sem razo... Enfim o pobre homem tem a vida
estragada.
- E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou D. Maria da Assuno, indignada
daquela impudncia de Satans, instalando-se num corpo, num leito, que apenas
a estreiteza do ptio separava dos contrafortes da S.
Amaro acudiu:
- Tem a D. Maria razo. O escndalo enorme. Mas ento? Se a rapariga no sabe
ler! Se no sabe uma orao, se no tem quem a instrua, quem lhe leve a palavra
de Deus, quem a fortifique, quem lhe ensine o segredo de frustrar o Inimigo!...
Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala, de ombros vergados, numa
mgoa de pastor a quem uma fora desproporcional arrebata uma ovelha amada.
E, exaltado pelas suas palavras, sentia, com efeito, uma piedade que o invadia,
uma compaixo verdadeira por aquela pobre criatura, a quem a falta de
consolaes devia tornar mais intensa a agonia da imobilidade...
As senhoras olhavam-se, magoadas com aquele caso triste de abandono de alma,
- sobretudo pela dor que ele parecia trazer ao senhor cnego.
A Sra. D. Maria da Assuno, que percorria em imaginao o abundante arsenal
da devoo, lembrara logo que se lhe pusessem alguns santos cabeceira, como
S. Vicente, Nossa Senhora das Sete Chagas... Mas o silncio das amigas exprimiu
bem a insuficincia daquela galeria devota.
- As senhoras dir-me-o, talvez, disse o padre Amaro sentando-se de novo, que
se trata apenas da filha do sineiro. Mas uma alma! uma alma como as nossas!

- Todos tm direito graa do Senhor, disse o cnego gravemente, num


sentimento de imparcialidade, admitindo a igualdade das classes logo que no se
tratava de bens materiais e apenas dos confortos do Cu.
- Para Deus no h pobre nem rico, suspirou a S. Joaneira. Antes pobre, que dos
pobres o reino do Cu.
- No, antes rico, acudiu o cnego, estendendo a mo para deter aquela falsa
interpretao da lei divina. Que o Cu tambm para os ricos. A senhora no
compreende o preceito Beati pauperes, benditos os pobres, quer dizer que os
pobres devem-se achar felizes na pobreza; no desejarem os bens dos ricos; no
quererem mais que o bocado de po que tm; no aspirarem a participar das
riquezas dos outros, sob pena de no serem benditos. por isso, saiba a senhora,
que essa canalha que prega que os trabalhadores e as classes baixas devem viver
melhor do que vivem, vai de encontro expressa vontade da Igreja e de Nosso
Senhor, e no merece seno chicote, como excomungados que so! Ouf!
E estirou-se, extenuado de ter falado tanto. O padre Amaro, esse, permanecia
calado, com o cotovelo sobre a mesa, esfregando devagar a testa. Ia lanar a sua
idia, como vinda de uma inspirao divina, proporque fosse Amlia levar uma
educao devota triste paraltica... E hesitava supersticiosamente diante do seu
motivo todo carnal, todo de concupiscncia. A filha do sineiro aparecia- lhe
agora, exageradamente, abismada numa treva de agonia. Sentia toda a caridade
que haveria em consol-la, entret-la, fazer-lhe os dias menos amargos... Esta
ao redimiria decerto muitas culpas, encantaria Deus, se fosse feita num puro
esprito de fraternidade crist! Vinha-lhe uma compaixo sentimental de bom
rapaz por aquele miservel corpo pregado numa cama sem nunca ver o sol nem a
rua... E ali estava embaraado, naquela piedade que o invadia, sem se decidir,
coando a nuca, arrependido quase de ter falado s senhoras da Tot... Mas D.
Joaquina Gansoso tivera uma idia:
- Sr. padre Amaro, se se lhe mandasse aquele livro com pinturas de vidas dos
santos? Eram pinturas que edificavam. A mim tocavam-me a alma... No s tu
que o tens, Amlia?

- No, disse ela, sem erguer os olhos da costura.


Amaro ento olhou-a. Tinha-a quase esquecido. Estava agora do outro lado da
mesa, abainhando um esfrego: a risca muito fina desaparecia na abundncia
espessa do cabelo, onde a luz do candeeiro ao lado punha um trao lustroso; as
pestanas pareciam mais longas, mais negras sobre a pele da face, dum trigueiro
clido, que uma tinta rosada aquecia; o vestido justo, que se franzia numa prega
sobre o ombro, elevava-se amplamente sobre a forma dos peitos, que ele via
arfar no ritmo da respirao igual... Era
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aquela a beleza que mais apetecia nela; imaginava-os duma cor de neve,
redondos e cheios; tivera-a nos braos, sim, mas vestida, e as suas mos
sfregas tinham encontrado s a seda fria... Mas na casa do sineiro seriam dele,
sem obstculo, sem vestido, disposio dos seus lbios. Por Deus! e nada
impedia que ao mesmo tempo consolassem a alma da Tot! No hesitou mais. E
erguendo a voz, no meio do palratrio das velhas que discutiam agora a
desapario da Vida dos Santos:
- No, minhas senhoras, no com livros que se vale rapariga. Sabem a idia
que me veio? Era um de ns, o que estiver menos ocupado, levar-lhe a palavra de
Deus e educar aquela alma! - E acrescentou, sorrindo: - E a falar a verdade, a
pessoa mais desocupada aqui de todos ns a menina Amlia...
Ento foi uma surpresa! Pareceu a mesma vontade de Nosso Senhor vinda numa
revelao. Os olhos de todas acenderam-se numa excitao devota, idia
daquela misso de caridade, que partia ali delas, da Rua da Misericrdia...
Extasiavam-se, no antegosto guloso dos elogios do senhor chantre e do cabido!
Cada uma dava o seu conselho, numa assiduidade de participar da santa obra, de
partilharem as recompensas que o Cu certamente prodigalizaria. D. Joaquina
Gansoso declarou com calor que invejava Amlia; e chocou-se muito vendo-a de
repente rir.

- Imaginas que no o faria com a mesma devoo? J ests com orgulho da boa
ao... Olha que assim no te aproveita!
Mas Amlia continuava tomada de um riso nervoso, deitada para as costas da
cadeira, sufocando-se para se conter.
Os olhinhos de D. Joaquina chamejavam.
- indecente, indecente! gritava.
Calmaram-na: Amlia teve de lhe jurar sob os Santos Evangelhosque fora uma
idia
extravagante que tivera, que era nervoso...
- Ai, disse D. Maria da Assuno, ela tem razo em se orgulhar. Que uma honra
para a casa!
Em se sabendo...
O proco interrompeu com severidade:
- Mas no se deve saber, Sra. D. Maria da Assuno! De que serve, aos olhos do
Senhor, uma
boa obra de que se tire alarde e vanglria?
D. Maria vergou os ombros, humilhando-se repreenso. E Amaro, com
gravidade:
- Isto no deve sair daqui. entre Deus e ns. Queremos salvar uma alma,
consolar uma
enferma, e no ter elogios nos peridicos. Pois no assim, padre-mestre? O
cnego ergueu-se pesadamente:
- Voc esta noite tem falado com a lngua de ouro de S. Crisstomo. Eu estou
edificado; e no se me dava agora de ver aparecer as torradas.
Foi ento, enquanto a Rua no trazia o ch, que se decidiu que Amlia, todas as
semanas, uma ou duas vezes segundo fosse a sua devoo, iria em segredo, para
que a ao fosse mais valiosa aos olhos de Deus, passar uma hora cabeceira da
paraltica, ler-lhe a Vida dos Santos, ensinar-lhe rezas e insuflar- lhe a virtude.

- Enfim, resumiu a Sra. D. Maria da Assuno voltando-se para Amlia, no te


digo seno uma coisa: abichaste!
A Rua entrou com o tabuleiro, no meio dos risos que provocara a "tolice de D.
Maria", como disse Amlia, que se fizera escarlate. - E foi assim que ela e o padre
Amaro se puderam ver livremente, para glria do Senhor e humilhao do
Inimigo.

Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as suas
visitas caridosas paraltica perfizessem ao fim do ms o nmero simblico de
sete, que devia corresponder, na idia das devotas, s Sete Lies de Maria. Na
vspera o padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que deixava a porta da
rua apenas cerrada, depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a
prtica do senhor proco. Amlia nesses dias erguia-se cedo; tinha sempre
alguma saia branca a engomar, algum laarote a compor; a me estranhava-lhe
aqueles arrebiques, o desperdcio de gua-de-colnia de que ela se inundava;
mas Amlia explicava que "era para inspirar Tot idias de asseio e de frescura".
E depois de vestida sentava-se, esperando as onze horas, muito sria,
respondendo distraidamente s conversas da me, com uma cor nas faces, os
olhos cravados nos ponteiros do relgio: enfim a velha matraca gemia cavamente
as onze horas, e ela, depois de uma olhadela ao espelho, saa, dando uma beijoca
mam.
Ia sempre receosa, numa inquietao de ser espreitada. Todas as manhs pedia a
Nossa Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e se via um
pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para lisonjear os gostos de Nosso
Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a assustava era o
122
Largo da S, sobre o qual a Amparo da botica, costurando por trs da janela,
exercia uma vigilncia incessante. Fazia-se ento pequenina no seu mantelete, e

abaixando o guarda-sol sobre o rosto, entrava enfim na S, sempre com o p


direito.
Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida numa luz fosca, amedrontava-a;
parecia-lhe sentir, na taciturnidade dos santos e das cruzes, uma repreenso ao
seu pecado; imaginava que os olhos de vidro das imagens, as pupilas pintadas dos
painis se fixavam nela, com uma insistncia cruel, e percebiam o arfar que ao
seu seio dava a esperana do prazer. s vezes mesmo, atravessada duma
superstio, para dissipar o descontentamento dos santos, prometia dar-se
nessa manh toda Tot, ocupar-se caridosamente s dela, e no se deixar tocar
sequer no vestido pelo Sr. padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro o no
encontrava, ia logo, sem se deter ao p da cama da Tot, postar-se janela da
cozinha, vigiando a porta macia da sacristia, de que ela conhecia uma por uma as
chapas negras de ferro.
Ele aparecia, enfim. Era ento nos comeos de maro; j tinham chegado as
andorinhas; ouviam- nas chilrear, naquele silncio melanclico, esvoaando
entre os contrafortes da S. Aqui e alm, plantas dos lugares midos cobriam os
cantos de uma verdura escura. Amaro, s vezes muito galante, ia procurar uma
florzinha. Amlia impacientava-se, rufava na vidraa da cozinha. Ele apressavase; ficavam um momento porta, apertando-se as mos, com olhos brilhantes
que se devoravam; e iam enfim ver a Tot - e dar-lhe os bolos que o proco lhe
trazia no bolso da batina.
A cama da Tot era na alcova, ao lado da cozinha; o seu corpinho de tsica quase
no fazia salincia enterrado na cova da enxerga, sob os cobertores enxovalhados
que ela se entretinha a esfiar. Nesses dias tinha vestido um chambre branco, os
cabelos reluziam-lhe de leo; porque ultimamente, desde as visitas de Amaro,
viera-lhe "uma birra de parecer algum", como dizia encantado o tio Esguelhas,
a ponto de se no querer separar dum espelho e dum pente que escondia debaixo
do travesseiro e obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as
bonecas que agora desprezava.

Amlia sentava-se um instante aos ps do catre, perguntando-lhe se estudara o


ABC, obrigando-a a dizer aqui e alm o nome duma letra. Depois queria que ela
repetisse sem errar a orao que lhe andava ensinando; - enquanto o padre, sem
passar da porta, esperava, com as mos no bolsos, enfastiado, embaraado com
os olhos reluzentes da paraltica que o no deixavam, penetrando-o,
percorrendo-lhe o corpo com pasmo e com ardor, e que pareciam maiores e mais
brilhantes no seu rosto trigueiro to chupado que se lhe via a salincia das
maxilas. No sentia agora nem compaixo nem caridade pela Tot; detestava
aquela demora; achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amlia tambm
pesavam aqueles momentos em que, para no escandalizar muito Nosso Senhor,
se resignava a falar paraltica. A Tot parecia odi-la; respondia-lhe muito
carrancuda; outras vezes persistia num silncio rancoroso, voltada para a parede;
um dia despedaara o alfabeto; e encolhia-se toda encruada se Amlia lhe queria
compor o xale sobre os ombros ou conchegar-lhe a roupa...
Enfim Amaro, impaciente, fazia um sinal a Amlia; ela punha logo diante da Tot
o livro com estampas da Vida dos Santos.
- V, ficas agora a ver as figuras... Olha, este S. Mateus, esta Santa Virgnia...
Adeus, eu vou l acima com o senhor proco rezarmos para que Deus te d sade
e te deixe ir passear... No estragues o livro, que pecado.
E subiam a escada, enquanto a paraltica, estendendo o pescoo sofregamente, os
seguia, escutando o ranger dos degraus, com os olhos chamejantes que lgrimas
de raiva enevoavam. O quarto, em cima, era muito baixo, sem forro, com um teto
de vigas negras sobre que assentavam as telhas. Ao lado da cama pendia a
candeia que pusera sobre a parede um penacho negro d fumo. E Amaro ria
sempre dos preparativos que fizera o tio Esguelhas - a mesa ao canto com o Novo
Testamento, uma caneca de gua, e duas cadeiras dispostas ao lado...
- para a nossa conferncia, para te ensinar os deveres de freira, dizia ele,
galhofando.

- Ensina, ento! murmurava ela, de braos abertos, pondo-se diante do padre,


com um sorriso clido onde brilhava um branquinho dos dentes, num abandono
que se oferecia.
Ele atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoo, pelos cabelos; s vezes mordia-lhe a
orelha; ela dava um gritinho; e ficavam ento muito quedos, escutando, com
medo da paraltica embaixo. O proco depois fechava as portadas da janela e a
porta muito perra que tinha de empurrar com o joelho. Amlia ia-se despindo
devagar; e com as saias cadas aos ps ficava um momento imvel, como uma
forma branca na escurido do quarto. Em redor o padre, preparando-se,
respirava forte. Ela ento persignava-se depressa, e sempre ao subir para o leito
dava um suspirozinho triste.
Amlia s podia demorar-se at ao meio-dia. O padre Amaro por isso pendurava
o seu cebolo no prego da candeia. Mas quando no ouviam as badaladas da torre,
Amlia conhecia a hora pelo cantar dum galo vizinho.
- Devo ir, filho, murmurava toda cansada. - Deixa l... Ests sempre com a
pressa...
123
Ficavam ainda uns momentos calados, numa lassido doce, muito chegados um
ao outro. Pelas vigas separadas do telhado mal junto viam aqui e alm fendas de
luz: s vezes sentiam um gato, com as suas passadas fofas, vadiar, fazendo bulir
alguma telha solta; ou um pssaro, pousando, chilreava e ouviam-lhe o frmito
das asas.
- Ai, so horas, dizia Amlia.
O padre queria det-la; no se fartava de lhe beijar a orelhinha.
- Lambo! murmurava ela. Deixe-me!
Vestia-se pressa no escuro do quarto; depois ia abrir a janela, vinha ainda
abraar o pescoo de

Amaro, que ficara estatelado sobre o leito; e ia enfim arrastar a mesa e as


cadeiras, para a paraltica sentir embaixo, saber que tinham acabado a
conferncia.
Amaro no findava ainda de a beijocar: ela ento, para acabar, fugia- lhe, ia
escancarar a porta do quarto; o padre descia, atravessava em duas passadas a
cozinha sem olhar para a Tot, e entrava na sacristia.
Amlia, essa, antes de sair, vinha ver a paraltica, saber se gostara das estampas.
Encontrava-a s vezes com a cabea debaixo dos cobertores, que entalava e
prendia com as mos para se esconder; outras vezes, sentada na cama,
examinava Amlia com olhos em que se acendia uma curiosidade viciosa;
chegava o rosto para ela, com as narinas dilatadas que pareciam cheir-la;
Amlia recuava, inquieta, corando tambm; queixava-seento de ser tarde,
recolhia a Vida dos Santos, - e saa, amaldioando aquela criatura to maliciosa
na sua mudez.

Ao passar no largo, quela hora, via sempre a Amparo janela. Ultimamente


mesmo julgara prudente contar-lhe em segredo a sua caridade com a Tot. A
Amparo, mal a via, chamava-a; e debruando-se toda na varanda:
- Ento como vai a Tot? - L vai.
- J l?
- J soletra.
- E a orao a Nossa Senhora?
- J a diz.
- Ai, que devoo a tua, filha!
Amlia baixava os olhos, modesta. E o Carlos, que estava tambm no segredo,
deixava o balco

para vir porta admirar Amlia.


- Vem da sua grande misso de caridade, hem? dizia, de olho arregalado,
balanceando-se na
ponta das chinelas.
- Estive um bocado com a pequena, a entret-la...
- Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado! Pois v, minha santa menina,
recados
mam.
Voltava-se ento para dentro, para o praticante:
- Veja o Sr. Augusto aquilo... Em lugar de passar o seu tempo, como as outras, em
namoros, fazse anjo da guarda! Passa a flor dos anos com uma entrevada! Veja o senhor se a
filosofia, o materialismo, e essas porcarias so capazes de inspirar aes deste
jaez... S a religio, meu caro senhor! Eu queria que os Renans e essa cambada de
filsofos vissem isto! Que eu, tenha o senhor em vista, admiro a filosofia, mas
quando ela, por assim dizer, vai de mos dadas com a religio... Sou homem de
cincia e admiro um Newton, um Guizot... Mas (e grave o senhor estas palavras)
se a filosofia se afasta da religio... (grave bem estas palavras) dentro de dez
anos, Sr. Augusto, est a filosofia enterrada!
E continuava a mexer-se pela farmcia a passos lentos, de mos atrs das costas,
ruminando o fim da filosofia.
XVII
Foi aquele o perodo mais feliz da vida de Amaro.
"Ando na graa de Deus", pensava ele s vezes noite, ao despir- se, quando por
um hbito eclesistico, fazendo o exame dos seus dias, via que eles se seguiam
fceis, to confortveis, to regularmente gozados. No houvera, nos ltimos
dois meses, nem atritos nem dificuldades no servio da parquia; todo o mundo,
como dizia o padre Saldanha, andava dum humor de santo. D. Josefa Dias

124
arranjara-lhe muito barata uma cozinheira excelente, e que se chamava
Escolstica. Na Rua da Misericrdia tinha a sua corte admiradora e devota; cada
semana, uma ou duas vezes, vinha aquela hora deliciosa e celeste na casa do tio
Esguelhas; e para completar a harmonia at a estao ia to linda, que j no
Morenal comeavam a abrir as rosas.
Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ningum da
sacristia suspeitava os seus rendez-vous com Amlia. Aquelas visitas Tot
tinham entrado nos costumes da casa; chamavam- lhe "as devoes da
pequena"; e no a interrogavam com particularidades, pelo princpio beato que
as devoes so um segredo que se tem com Nosso Senhor. S s vezes alguma
das senhoras perguntava a Amlia - como ia a doente; ela assegurava que estava
muito mudada, que comeava a abrir os olhos lei de Deus; ento, muito
discretamente, falavam de coisas diferentes. Havia apenas o plano vago de irem
um dia, mais tarde, quando a Tot soubesse bem o seu catecismo e pela eficcia
da orao se tivesse tomado boa, admirar em romaria a obra santa de Amlia e a
humilhao do Inimigo.
Amlia mesmo, perante esta confiana to larga na sua virtude, propusera um dia
a Amaro, como muito hbil - dizer s amigas que o senhor proco s vezes vinha
assistir prtica piedosa que ela fazia Tot...
- Assim, se algum te surpreendesse a entrar para a casa do tio Esguelhas, j no
havia suspeitas.
- No me parece necessrio, disse ele. Deus est conosco, filha, claro. No
queiramos intrometer-nos nos seus planos. Ele v mais longe que ns...
Ela concordou logo - como em tudo que saa dos seus lbios. Desde a primeira
manh, na casa do tio Esguelhas, ela abandonara-se-lhe absolutamente, toda
inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: no havia na sua pele um cabelinho,
no corria no seu crebro uma idia a mais pequenina, que no pertencesse ao
senhor proco. Aquela possesso de todo o seu ser no a invadira gradualmente;

fora completa, no momento que os seus fortes braos se tinham fechado sobre
ela. Parecia que os beijos dele lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era
como uma dependncia inerte da sua pessoa. E no lho ocultava; gozava em se
humilhar, oferecer-se sempre, sentir-se toda dele, toda escrava; queria que ele
pensasse por ela e vivessepor ela; descarregara-se nele, com satisfao, daquele
fardo da responsabilidade que sempre lhe pesara na vida; os seus juzos agora
vinham-lhe formados do crebro do proco, to naturalmente como se sasse do
corao dele o sangue que lhe corria nas veias. "O senhor proco queria ou o
senhor proco dizia" era para ela uma razo toda suficiente e toda poderosa. Vivia
com os olhos nele, numa obedincia animal: tinha s a curvar- se quando ele
falava, e quando vinha o momento a desapertar o vestido.
Amaro gozava prodigiosamente esta dominao; ela desforrava-ode todo um
passado de dependncias - a casa do tio, o seminrio, a sala branca do Sr. conde
de Ribamar... A sua existncia de padre era uma curvatura humilde que lhe
fatigava a alma; vivia da obedincia ao senhor bispo, cmara eclesistica, aos
cnones, Regra que nem lhe permitia ter uma vontade prpria nas suas relaes
com o sacristo. E agora, enfim, tinha ali aos seus ps aquele corpo, aquela alma,
aquele ser vivo sobre quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por
profisso, louvando, adorando e incensando Deus, - era ele tambm agora o Deus
duma criatura que o temia e lhe dava uma devoo pontual. Para ela ao menos,
era belo, superior aos condes e aos duques, to digno da mitra como os mais
sbios. Ela mesma, um dia, dissera-lhe, depois de ter estado um momento
pensativa:
- Tu podias chegar a papa!
- Desta massa se fazem, respondeu ele com seriedade.
Ela acreditava-o - com um receio, todavia, que as altas dignidades o afastassem
dela, o levassem
para longe de Leiria. Aquela paixo, em que estava abismada e que a saturava,
tomara-a estpida e obtusa a tudo o que no respeitava ao senhor proco ou ao
seu amor. Amaro de resto no lhe consentia interesses, curiosidades alheias
sua pessoa. Proibia-lhe at que lesse romances e poesias. Para que se havia de

fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ela falara, com
algum apetite, dum baile que iam dar os Vias-Claras, ofendeu-se como duma
traio. Fez- lhe em casa do tio Esguelhas acusaes tremendas: era uma
vaidosa, uma perdida, uma filha de Satans!...
- Mas mato-te! Percebes? Mato-te! exclamou agarrando-lhe os pulsos,
fulminando-a com o olhar aceso.
Tinha um medo, que o pungia, de a ver subtrair-se ao seu imprio, perder-lhe a
adorao muda e absoluta. Pensava s vezes que ela se fatigaria, com o tempo,
dum homem que no lhe satisfazia as vaidades e os gostos de mulher, sempre
metido na sua batina negra, com a cara rapada e a coroa aberta. Imaginava que as
gravatas de cores, os bigodes bem torcidos, um cavalo que trota, um uniforme de
lanceiros exercem sobre as mulheres uma fascinao decisiva. E se a ouvia falar
de algum oficial do destacamento, de algum cavalheiro da cidade, eram cimes
desabridos...
- Gostas dele? Hem! pelos trapos, pelo bigode?... - Gosto dele! Oh, filho, eu
nunca vi o homem!
125
Mas escusava de falar da criatura, ento! Era ter curiosidade, pr o pensamento
noutro! Dessas faltas de vigilncia sobre a alma e a vontade que se aproveitava
o demnio!...
Viera assim a ter um dio a todo o mundo secular - que a poderia atrair, arrastar
para fora da sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos complicados,
toda a comunicao com a cidade. Convenceu mesmo a me que a no deixasse ir
s Arcada e s lojas. E no cessava de lhe representar os homens como
monstros de impiedade, cobertos de pecados como duma crosta, estpidos e
falsos, votados ao Inferno! Contava-lhe horrores de quase todos os rapazes de
Leiria. Ela perguntava-lhe aterrada, mas curiosa:
- Como sabes tu?

- No te posso dizer, respondia com uma reticncia, indicando que lhe fechava os
lbios o segredo da confisso.
E ao mesmo tempo martelava-lhe os ouvidos com a glorificao do sacerdcio.
Desenrolava-lhe com pompa a erudio dos seus antigos compndios, fazendolhe o elogio das funes da superioridade do padre. No Egito, grande nao da
antigidade, o homem s podia ser rei se era sacerdote! Na Prsia, na Etipia, um
simples padre tinha o privilgio de destronar os reis, dispor das coroas! Onde
havia uma autoridade igual sua? Nem mesmo na corte do Cu. O padre era
superior aos anjos e aos serafins - porque a eles no fora dado como ao padre o
poder maravilhoso de perdoar os pecados! Mesmo a Virgem Maria, tinha ela um
poder maior que ele, padre Amaro? No: com todo o respeito devido majestade
de Nossa Senhora, ele podia dizer com S. Bernardino de Sena: "O sacerdote
excede-te, me amada!" - porque, se a Virgem tinha encarnado Deus no seu
castssimo seio, fora s uma vez, e o padre, no santo sacrifcio da missa,
encarnava Deus todos os dias! E isto no era argcia dele, todos os santos padres
o admitiam...
- Hem, que te parece?
- Oh, filho! murmurava ela pasmada, desfalecida de voluptuosidade.
Ento deslumbrava-se com citaes venerandas: S. Clemente, que chamou ao
padre "o Deus da
Terra"; o eloqente S. Crisstomo, que disse "que o padre o embaixador que
vem dar as ordens de Deus". E Santo Ambrsio que escreveu: "Entre a dignidade
do rei e a dignidade do padre h maior diferena que a que existe entre o chumbo
e o ouro!"
- E o ouro c o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te parece?
Ela atirava-se-lhe aos braos, com beijos vorazes, como para tocar, possuir nele
o "ouro de Santo Ambrsio", o "embaixador de Deus", tudo o que na Terra havia
mais alto e mais nobre, o ser que excede em graa os arcanjos!

Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a
influncia da sua, voz - que a faziam crer na promessa que ele lhe repetia
sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ela o interesse, a amizade
de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tom-la pela mo para a
acompanhar e desfazer todas as dvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do
Cu; e que na sua sepultura, como sucedera emFrana a uma rapariga amada por
um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que
a virgindade no se estraga nos braos santos dum padre...
Isto encantava-a. quela idia da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava
toda pensativa, num antegosto de felicidades msticas, com suspirinhos de gozo.
Afirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.
Amaro galhofava.
- A falar da morte, com essas carnezinhas...
Engordara com efeito. Estava agora duma beleza ampla e toda igual. Perdera
aquela expresso
inquieta que lhe punha nos lbios uma secura e lhe afilava o nariz. Nos seus
beios havia um vermelho quente e mido; o seu olhar tinha risos sob um fluido
sereno; toda a sua pessoa uma aparncia madura de fecundidade. Fizera-se
preguiosa: em casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar
longamente com um sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um
momento, a agulha, o pano que ela costurava, toda a sua pessoa. Estava revendo
o quarto do sineiro, o catre, o senhor proco em mangas de camisa.
Passava os seus dias esperando as oito horas, em que ele aparecia regularmente
com o cnego. Mas os seres agora pesavam-lhe. Ele recomendara-lhe muita
reserva; ela exagerava-a, por um excesso de obedincia, a ponto de nunca se
sentar ao p dele ao ch, e de nem mesmo lhe oferecer bolos. Odiava ento a
presena das velhas, a gralhada das vozes, as pachorras do quino; tudo lhe
parecia intolervel no mundo, exceto estar s com ele... Mas depois, em casa do
sineiro, que desforra! Aquele rosto todo alterado, aquelas sufocaes de delrio,

aqueles ais agonizantes, depois a imobilidade da morte, assustavam s vezes o


padre. Erguia-se no cotovelo, inquieto:
- Ests incomodada?
126
Ela abria os olhos espantados, como ressurgindo de muito longe; e era realmente
bela, cruzando os braos nus sobre o peito descoberto, dizendo lentamente com a
cabea que no...
XVIII
Uma circunstncia inesperada veio estragar aquelas manhs em casa do sineiro.
Foi a extravagncia da Tot. Como disse o padre Amaro, "a rapariga saia-lhes um
monstro"!
Tinha agora por Amlia uma averso desabrida. Apenas ela se aproximava da
cama, atirava a cabea para debaixo dos cobertores, torcendo- se com frenesi se
lhe sentia a mo ou a voz. Amlia fugia, impressionada com a idia de que o diabo
que habitava a Tot, recebendo o cheiro que ela trazia da igreja nos vestidos,
impregnados de incenso e salpicados de gua benta, se espolinhava de terror
dentro do corpo da rapariga...
Amaro quis repreender a Tot, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas, a sua
ingratido demonaca para com a menina Amlia que vinha entret-la, ensin-la
a conversar com Nosso Senhor... Mas a paraltica rompeu num choro histrico;
depois, de repente, ficou imvel, hirta, esbugalhando os olhos em alvo, com uma
escuma branca na boca. Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama de gua;
Amaro, por prudncia, recitou os exorcismos... E Amlia desde ento resolveu
"deixar a fera em paz". No tentou mais ensinar-lhe o alfabeto, nem oraes a
Santa Ana.
Mas, por escrpulo, iam sempre ao entrar v-la um instante. No passavam da
porta da alcova, perguntando-lhe de alto "como ia". Nunca respondia. E eles
retiravam-se logo aterrados com aqueles olhos selvagens e brilhantes, que os

devoravam, indo de um a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando-se com uma


faiscao metlica nos vestidos de Amlia e na batina do padre, como para lhe
adivinhar o que estava por baixo, numa curiosidade vida que lhe dilatava
desesperadamente as narinas e lhe arreganhava os beios lvidos. Mas era a
mudez, obstinada e rancorosa, que os incomodava sobretudo. Amaro, que no
acreditava muito em possessos e endemoninhados, via ali os sintomas de loucura
furiosa. Os sustos de Amlia aumentaram. - Felizmente que as pernas inertes
cravavam a Tot ali na enxerga! Seno, Jesus, era capaz de lhes entrar no quarto e
mord-los num acesso!
Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer da manh, "depois daquele
espetculo"; e decidiu ento, da por diante, subir para o quarto sem falar Tot.
Foi pior. Quando a via atravessar da porta da rua para a escada, a Tot debruavase para fora do leito, agarrada s bordas da enxerga, num esforo ansioso para a
seguir, para a ver, com a face toda descomposta do desespero da sua imobilidade.
E Amlia ao entrar no quarto sentia vir debaixo uma risadinha seca, ou um ui!
prolongado e uivado que a gelava...
Andava agora aterrada: viera-lhe a idia que Deus estabelecera ali, ao lado do seu
amor com o proco, um demnio implacvel para a escarnecer e apupar. Amaro,
querendo-a tranqilizar, dizia-lhe que o nosso santo padre Pio IX, ultimamente,
declarara pecado crer em pessoas possessas...
- Mas para que h rezas, ento, e exorcismos?
- Isso da religio velha. Agora vai-se mudar tudo isso... Enfim a cincia a
cincia...
Ela pressentia que Amaro a enganava - e a Tot estragava a sua felicidade. Enfim
Amaro achou
o meio de escaparem "maldita rapariga": era entrarem ambos pela sacristia:
tinham apenas a atravessar a cozinha para subir a escada, e a posio da cama da
Tot, na alcova, no lhe permitia v-los, quando eles cautelosamente passassem
p ante p. Era fcil, de resto, porque hora do rendez-vous, entre as onze e o
meio-dia, nos dias da semana, a sacristia estava deserta.

Mas sucedia que, quando eles entravam em pontas de ps e mordendo a


respirao, os seus passos, por mais sutis, faziam ranger os velhos degraus da
escada. E ento a voz da Tot saa da alcova, uma voz rouca e spera, berrando:
- Passa fora, co! passa fora, co!
Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a paraltica. Amlia tremia, toda
branca.
E a criatura uivava de dentro:
- L vo os ces! l vo os ces!
Eles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se por dentro. Mas aquela voz de
um desolamento
lgubre, que lhes parecia vir dos infernos, chegava-lhes ainda, perseguia-os:
- Esto a pegar-se os ces! Esto a pegar-se os ces!
Amlia caa sobre o catre, quase desmaiada de terror. Jurava no voltar quela
casa maldita...
- Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre furioso. Onde nos havemos de ver
ento? Queres
que nos deitemos nos bancos da sacristia?
- Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava Amlia, apertando as mos.
- Nada! doida... E o pobre tio Esguelhas tem tido um desgosto... Enfim, que
queres que lhe
faa?
127
Ela no respondia. Mas em casa, quando se ia aproximando o dia do rendez-vous,
comeava a tremer idia daquela voz que lhe atroava sempre nos ouvidos e que
sentia em sonhos. E este terror ia-a despertando lentamente do adormecimento
de todo o ser, em que cara nos braos do proco. Interrogava- se agora: no
andaria cometendo um pecado irremissvel? As afirmaes de Amaro,
assegurando-lhe o perdo do Senhor, j no a tranqilizavam. Ela bem via,
quando a Tot uivava, uma palidez cobrir o rosto do proco, como correr-lhe no

corpo um calafrio do inferno entrevisto. E se Deus os desculpava - por que


deixava assim o demnio atirar- lhes, pela voz da paraltica, a injria e o
escrnio?
Ajoelhava ento aos ps da cama, arremessava oraes sem fim para Nossa
Senhora das Dores, pedindo-lhe que a alumiasse, que lhe dissesse o que era
aquela perseguio da Tot, e se era sua inteno divina mandar- lhe assim um
aviso medonho. Mas Nossa Senhora no lhe respondia. No a sentia como
outrora descer do Cu s suas oraes, entrar-lhe na alma aquela tranqilidade
suave como uma onda de leite que era uma visitaoda Senhora. Ficava toda
murcha, torcendo as mos, abandonada da graa. Prometia ento no voltar a
casa do sineiro; - mas quando o dia chegava, idia de Amaro, do leito, daqueles
beijos que lhe levavam a alma; daquele fogo que a penetrava, sentia-se toda fraca
contra a tentao; vestia-se, jurando que era a ltima vez; e ao toque das onze
partia, com as orelhas a arder, o corao tremendo da voz da Tot que ia ouvir, as
entranhas abrasando-se no desejo do homem que a ia atirar para cima da
enxerga.
Ao entrar na igreja no rezava, com medo dos santos.
Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se autoridade sagrada
da sua batina. Ele ento, vendo-a chegar to plida e to transtornada, galhofava
para a tranqilizar. No, era uma tolice, se iam agora estragar o regalozinho
daquelas manhs, porque havia uma doida na casa! Prometera-lhe de resto
procurar outro stio para se verem; e mesmo com o fim de a distrair,
aproveitando a solido da sacristia, mostrava-lhe s vezes os paramentos, os
clices, as vestimentas, procurando interess-la por um frontal novo ou por uma
antiga renda de sobrepeliz, provando-lhe, pela familiaridade com que tocava nas
relquias, que era ainda o senhor proco e no perdera o seu crdito no Cu.
Foi assim que uma manh lhe fez ver uma capa de Nossa Senhora, que havia dias
chegara de presente duma devota rica de Ourm. Amlia admirou-a muito. Era
de cetim azul, representando um firmamento, com estrelas bordadas, e um

centro, de lavor rico, onde flamejava um corao de ouro cercado de rosas de


ouro. Amaro desdobrara-a, fazendo cintilar junto da janela os bordados espessos.
- Rica obra, hem? centos de mil-ris... Experimentamo-la ontem na imagem...
Vai-lhe como um brinco. Um bocadito comprida, talvez... - E olhando Amlia,
numa comparao da sua alta estatura com a figura atarracada da imagem da
Senhora: - A ti que te havia de ficar bem. Deixa ver...
Ela recuou:
- No, credo, que pecado!
- Tolice! disse ele adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro de cetim
branco, duma
alvura de nuvem matutina. No esta benzida... como se viesse da modista.
- No, no, dizia ela frouxamente, com os olhos j1uzidios de desejo. Ele ento
zangou-se.
Queria talvez saber melhor do que ele o que era pecado, no? Vinha agora a
menina ensinar-lhe o respeito que se deve aos vesturios dos santos?
- Ora no seja tola. Deixe ver.
Ps-lha aos ombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata lavrada. E
afastou-se para a contemplar toda envolvida no manto, assustada e imvel, com
um sorriso clido de gozo devoto.
- Oh filhinha, que linda que ficas!
Ela ento, movendo-se com uma cautela solene, chegou-se ao espelho da
sacristia - um antigo espelho de reflexo esverdeado, com um caixilho negro de
carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz. Mirou-se um momento, naquela seda
azul-celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo das estrelas, com uma
magnificncia sideral. Sentia-lhe o peso rico. A santidade que o manto adquirira
no contato com os ombros da imagem penetrava-a duma vo1uptuosidade beata.
Um fluido mais doce que o ar da terra envolvia-a, fazia-lhe passar no corpo a

carcia do ter do Paraso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou mais alto, no
Cu...
Amaro babava-se para ela:
- Oh filhinha, s mais linda que Nossa Senhoras!
Ela deu uma olhadela viva ao espelho. Era, decerto, linda. No tanto como Nossa
Senhora... Mas
cora o seu rosto trigueiro, de lbios rubros, a1umiado por aquele rebrilho dos
olhos negros, se estivesse sobre o altar, com cantos ao rgo e um culto
sussurrando em redor, faria palpitar bem forte o corao dos fiis...
Amaro ento chegou-se por detrs dela, cruzou-lhe os braos sobre o seio,
apertou-a toda - e estendendo os lbios por sobre os dela, deu-lhe um beijo
mudo, muito longo... Os olhos de Amlia cerravam-se, a cabea inclinava-se-lhe
para trs, pesada de desejo. Os beios do padre no se
128
desprendiam, vidos, sorvendo-lhe a alma. A respirao dela apressava-se, os
joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre,
descorada e morta de gozo.
Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as plpebras como acordada
de muito longe; uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:
- Oh! Amaro, que horror, que pecado!...
- Tolice! disse ele.
Mas ela desprendia-se do manto, toda aflita:
- Tira-mo, tira-mo! gritava, como se a seda a queimasse.
Ento Amaro fez-se muito srio. Realmente no se devia brincar com coisas
sagradas... - Mas no est benzida... No tem dvida...
Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lenol branco, colocou-o no
gaveto, sem uma palavra. Amlia olhava-o petrificada; e s os seus lbios
plidos se moviam numa orao.

Quando ele lhe disse, enfim, que eram horas de irem a casa do sineiro - recuou,
como diante do demnio que a chamasse.
- Hoje no! exclamou, implorando-o.
Ele insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ela bem sabia que no
era pecado, quando as coisas no estavam benzidas... Era ser muito pobre de
espirito... Que demnio, s meia hora, ou um quarto de hora!
Ela, sem responder, ia-se aproximando da porta. - Ento no queres?
Ela voltou-se, e com uns olhos suplicantes:
- Hoje no!
Amaro encolheu os ombros. E Amlia atravessou rapidamente a igreja, de cabea
baixa e olhos nas lajes, como se passasse entre as ameaas cruzadas dos santos
indignados.

No dia seguinte de manh, a S. Joaneira, que estava na sala de jantar, sentindo o


senhor cnego subir soprando forte, veio encontr-lo escada e fechou-se com
ele na saleta.
Queria contar-lhe a aflio que tivera de madrugada. A Amlia acordara de
repente aos gritos, que Nossa Senhora lhe estava a pousar o p no pescoo! que
sufocava! que a Tot a queimava por detrs! e que as labaredas do Inferno subiam
mais alto que as torres da S!... Enfim um horror!... Viera encontr-la em camisa
a correr pelo quarto, como doida. Da a pouco cara para o lado com um ataque de
nervos. Toda a casa estivera em alvoroo... A pobre pequena l estava de cama, e
em toda a manh apenas tocara numa colher de caldo.
- Pesadelos, disse o cnego. Indigesto!
- Ai, senhor cnego, no! exclamou a S. Joaneira, que parecia acabrunhada,
sentada diante dele na borda duma cadeira. outra coisa: so aquelas
desgraadas visitas filha do sineiro!
E ento desabafou, com a efuso labial de quem abre os diques a um

descontentamento acumulado. Nunca quisera dizer nada, porque enfim


reconhecia que era uma grande obra de caridade. Mas, desde que aquilo
comeara, a rapariga parecia transtornada. Ultimamente, ento, andava de todo.
Ora alegrias sem razo, ora umas trombas de dar melancolia aos mveis. De noite
sentia-a passear pela casa at tarde, abrir as janelas... s vezes tinha at medo de
lhe ver o olhar to esquisito: quando vinha de casa do sineiro era sempre branca
como a cal, a cair de fraqueza. Tinha de tomar logo um caldo... Enfim, dizia-se
que a Tot tinha o demnio no corpo. E o senhor chantre, o outro que tinha
morrido (Deus lhe fale na alma), costumava dizer que, neste mundo, as duas
coisas que se pegavam mais s mulheres eram tsicas e demnio no corpo.
Parecia-lhe, pois, que no devia consentir que a pequena fosse a casa do sineiro,
sem estar certa que aquilo nem lhe prejudicava a sade, nem lhe prejudicava a
alma. Enfim, queria que uma pessoa de juzo, de experincia, fosse examinar a
Tot...
- Numa palavra, disse o cnego, que escutara de olhos cerrados aquela
verbosidade repassada de lamria; o que a senhora quer que eu v ver a
paraltica, e saber justa o que se passa...
- Era um alvio para mim, riquinho!
Aquela palavra, que a S. Joaneira, na sua gravidade de matrona, reservava para a
intimidade das sestas, enterneceu o cnego. Fez uma carcia ao pescoo gordo da
sua velhota, e prometeu com bondade ir estudar o caso...
- Amanh, que a Tot est s, lembrou logo a S. Joaneira.
Mas o cnego preferia que Amlia estivesse presente. Podia assim ver como as
duas se davam, se havia influncia do esprito maligno...
129
- Que isto que eu fao de agradecer... por ser para quem ... Que bem me
bastam os meus achaques, sem me ocupar dos negcios de Satans.

A S. Joaneira recompensou-o com uma beijoca sonora.


- Ah, sereias, sereias!... murmurou o cnego filosoficamente.
No fundo aquele encargo desagradava-lhe: era uma perturbao nos seus
hbitos, toda uma
manh desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo de exercitar a sua sagacidade;
alm disso odiava o espetculo de doenas e de todas as circunstncias humanas
relacionadas com a morte. Mas, enfim, fiel sua promessa, da a dias, na manh
em que fora prevenido que Amlia ia Tot, arrastou-se contrariado para a botica
do Carlos; e instalou- se, com um olho no Popular e outro na porta, espera que
a rapariga atravessasse para a S. O amigo Carlos estava ausente; o Sr. Augusto
ocupava os seus vagares sentado escrivaninha, de testa sobre o punho, relendo
o seu Soares de Passos; fora, o sol j quente dos fins de abril fazia rebrilhar o
lajeado do largo; no passava ningum; e s quebravam o silncio as marteladas
nas obras do doutor Pereira. Amlia tardava. E o cnego, depois de ter
considerado longo tempo, com o Popular cado nos joelhos, o medonho sacrifcio
que fazia pela sua velhota, ia cerrando as plpebras, j tomado da quebreira,
naquele repouso calado do meio-dia prximo - quando entrou na botica um
eclesistico.
- Oh, abade Ferro, voc pela cidade! exclamou o cnego Dias despertando do seu
quebranto.
- De fugida, colega, de fugida, disse o outro colocando cuidadosamente sobre
uma cadeira dois grossos volumes que trazia, amarrados num barbante.
Depois voltou-se e tirou, com respeito, o seu chapu ao praticante.
Tinha o cabelo todo branco; devia passar j dos sessenta anos; mas era robusto,
uma alegria bailava sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha dentes magnficos a
que uma sade de granito conservava o esmalte; o que o desfigurava era um nariz
enorme.
Informou-se logo com bondade se o amigo Dias estava ali de visita ou
infelizmente por motivo de doena.

- No, estou aqui espera. Uma embaixada de truz, amigo Ferro!


- Ah, fez o velho discretamente. - E enquanto tirava com mtodo duma carteira
atulhada de papis a receita para o praticante, deu ao cnego notcias da
freguesia. Era l, nos Poiais, que o cnego tinha a fazenda, a Ricoa. O abade
Ferro passara de manh diante da casa e ficara surpreendido vendo que lhe
andavam a pintar a fachada. O amigo Dias tinha algumas idias de ir l passar o
Vero?
No, no tinha. Mas como trouxera obras dentro e a fachada estava uma
vergonha, mandara-lhe dar uma mo de ocre. Enfim, era necessrio alguma
aparncia, sobretudo numa casa que estava beira da estrada, onde passava
todos os dias o morgadelho dos Poiais, um parlapato que imaginava que s ele
tinha um palacete decente em dez lguas roda... S para meter ferro, quele
ateu! Pois no lhe parecia, amigo Ferro?
O abade estava justamente lamentando consigo aquele sentimento de vaidade
num sacerdote; mas, por caridade crist, para no contrariar o colega, apressouse a dizer:
- Est claro, est claro. A limpeza a alegria das coisas...
O cnego ento, vendo passar no largo uma saia e um mantelete, foi porta
afirmar-se se era Amlia. No era. E voltando, retomado agora da sua
preocupao, vendo que o praticante fora dentro ao laboratrio, disse ao ouvido
do Ferro:
- Uma embaixada da fortuna! Vou ver uma endemoniada!
- Ah, fez o abade, todo srio idia daquela responsabilidade.
- Quer voc vir comigo, abade? aqui perto...
O abade desculpou-se polidamente. Viera falar ao senhor vigrio-geral, fora
depois ao Silvrio
para lhe pedir aqueles dois volumes, vinha ali aviar uma receita para um velho da
freguesia, e tinha de estar de volta aos Poiais ao toque das duas horas.

O cnego insistiu; era um instante, e o caso parecia curioso...


O abade ento confessou ao caro colega que eram coisas que no gostava de
examinar. Aproximava-se sempre delas com um esprito rebelde crena, com
desconfianas e suspeitas que lhe diminuram a imparcialidade.
- Mas enfim h prodgios! disse o cnego. - Apesar das suas prprias dvidas,
no gostava daquela hesitao do abade, a propsito dum fenmeno
sobrenatural, em que ele, cnego Dias, estava interessado. Repetiu com secura: Tenho alguma experincia, e sei que h prodgios.
- Decerto, decerto h prodgios, disse o abade. Negar que Deus ou a Rainha do
Cu possa aparecer a uma criatura, contra a doutrina da Igreja... Negar que o
demnio possa habitar o corpo de um homem, seria estabelecer um erro
funesto... Aconteceu a J, sem ir mais longe, e famlia de Sara. Est claro, h
prodgios. Mas que rarssimos que so, cnego Dias!
130
Calou-se um momento olhando o cnego, que tapava o nariz com rap em
silncio - e continuou mais baixo, com o olho brilhante e fino:
- E depois no tem o colega notado que uma coisa que s sucede s mulheres?
s a elas, cuja malcia to grande que o prprio Salomo no lhes pde resistir,
cujo temperamento to nervoso, to contraditrio, que os mdicos no as
compreendem. s a elas que sucedem prodgios!... O colega j ouviu de ter
aparecido a nossa Santa Virgem a um respeitvel tabelio? J ouviu dum digno
juiz de direito possudo do esprito maligno? No. Isto faz refletir... E eu concluo
que malcia nelas, iluso, imaginao, doena, etc... No lhe parece? A minha
regra nesses casos ver tudo isso de alto e com muita indiferena.
Mas o cnego, que vigiava a porta, brandiu subitamente o guarda-sol, fazendo
pari o largo:
- Pst, pst! Eh l!

Era Amlia que passava. Parou logo, contrariada daquele encontro que a ia ainda
retardar mais. E
j o senhor proco devia estar desesperado...
- De modo que, disse o cnego porta abrindo o seu guarda-sol, voc, abade, em
lhe cheirando a
prodgio...
- Suspeito logo escndalo.
O cnego contemplou-o um momento, com respeito:
- Voc, Ferro, capaz de dar quinaus a Salomo em prudncia!
- Oh, colega! oh, colega! exclamou o abade, ofendido com aquela injustia feita
incomparvel
sabedoria de Salomo.
- Ao prprio Salomo! afirmou ainda o cnego da rua.
Tinha preparado uma histria hbil para justificar a sua visita paraltica; mas
durante a sua
conversao com o abade ela escapara-lhe, como tudo o que deixava um
momento nos reservatrios da memria; e foi sem transio que disse
simplesmente a Amlia:
- Vamos l, tambm quero ir ver essa Tot!
Amlia ficou petrificada. E o senhor proco, naturalmente, j l estava! Mas a sua
madrinha Nossa Senhora das Dores, que ela invocou logo naquela aflio, no a
deixou enleada no embarao. - E o cnego, que caminhava ao lado dela, ficou
surpreendido ouvindo-lhe dizer com um risinho:
- Viva, hoje o dia das visitas Tot! O senhor proco disse-me que tambm
talvez hoje aparecesse por l... Talvez l esteja at.
- Ah! O amigo proco tambm? Est bom, est bom. Faremos uma consulta
Tot!

Amlia ento, contente de sua malcia, tagarelou sobre a Tot. O senhor cnego
ia ver... Era uma criatura incompreensvel... Ultimamente, ela no tinha querido
contar em casa, mas a Tot tomara-lhe birra... E dizia coisas, tinha um modo de
falar de ces e de animais, de arrepiar!... Ai, era um encargo que j lhe pesava...
Que a rapariga no lhe escutava as lies, nem as oraes, nem os conselhos...
Era uma fera!
- O cheiro desagradvel! rosnou o cnego, entrando.
Que queria! A rapariga era uma porca, no havia t-la arranjado. O pai, esse, um
desleixado tambm...
- aqui, senhor cnego, disse, abrindo a porta da alcova - que, agora, em
obedincia s ordens do senhor proco, o tio Esguelhas deixava sempre fechada.
Encontraram a Tot meio erguida sobre a cama, com a face acesa numa
curiosidade, quela voz do cnego que no conhecia.
- Ora viva l a Sra. Tot! disse ele da porta, sem se aproximar.
- V, cumprimenta o senhor cnego, disse Amlia, comeando logo, com uma
caridade desacostumada, a compor a roupa da cama, a arrumar a alcova. Dize-lhe
como ests... No te faas amuada!
Mas a Tot permaneceu to muda como a imagem de S. Bento que tinha
cabeceira, examinando muito aquele sacerdote to gordo, to grisalho, to
diferente do senhor proco... E os seus olhos, mais brilhantes todos os dias
medida que se lhe cavavam as faces, iam, como de costume, do homem para
Amlia, numa ansiedade de perceber por que o trazia ela ali, quele velho obeso,
e se ia tambm subir com ele para o quarto.
Amlia agora tremia. Se o senhor proco entrasse, e ali, diante do cnego, a Tot,
tomada do seu frenesi, rompesse aos gritos, tratando-os de ces!... Com o
pretexto de dar uma arrumadela, foi cozinha vigiar o ptio. Faria um sinal da
janela, apenas Amaro aparecesse.

E o cnego, s na alcova da Tot, preparando-se para comear as suas


observaes, ia perguntar- lhe quantas eram as pessoas da Santssima Trindade,
- quando ela, adiantando a face, lhe disse numa voz sutil como um sopro:
- E o outro?
131
O cnego no compreendeu. Que falasse alto! Que era?
- O outro, o que vem com ela!
O cnego chegou-se, com a orelha dilatada de curiosidade:
- Que outro?
- O bonito. O que vai com ela para o quarto. O que a belisca...
Mas Amlia entrava; e a paraltica calou-se logo, repousada, com os olhos
cerrados e respirando
regaladamente, como num alvio repentino de todo o seu sofrimento. O cnego,
esse, imobilizado de assombro, permanecia na mesma postura, dobrado sobre a
cama como para auscultar a Tot. Ergueu-se por fim, soprou como numa calma
de agosto, sorveu de espao uma pitada forte; e ficou com a caixa aberta entre os
dedos, os olhos muito vermelhos cravados na colcha da Tot.
- Ento, senhor cnego, que lhe parece c a minha doente? perguntou Amlia.
Ele respondeu, sem a olhar:
- Sim senhor, muito bem... Vai bem... esquisita... Pois andar, andar...
Adeus...
Saiu, resmungando que tinha negcios, - e voltou imediatamente botica.
- Um copo de gua! exclamou, caindo em cheio sobre a cadeira.
O Carlos, que voltara, apressou-se, oferecendo flor de laranja, perguntando se
sua excelncia
estava incomodado...
- Cansadote, disse.

Tomou o Popular de sobre a mesa, e ali ficou, sem se mexer, abismado nas
colunas do peridico. O Carlos tentou falar da poltica do pais, depois dos
negcios de Espanha, depois dos perigos revolucionrios que ameaavam a
Sociedade, depois da deficincia da administrao do concelho de que era agora
um adversrio feroz... Debalde. Sua excelncia grunhia apenas monosslabos
soturnos. E o Carlos, enfim, recolheu-se a um silncio chocado, comparando,
num desdm interior que lhe vincava de sarcasmoos cantos dos beios, a
obtusidade soturna daquele sacerdote palavra inspirada dum Lacordaire e dum
Malho! Por isso o Materialismo em Leiria, em todo o Portugal, erguia a sua
cabea de hidra...
Batia uma hora na torre quando o cnego, que vigiava a Praa pelo canto do olho,
vendo passar Amlia, arremessou o jornal, saiu da botica sem dizer uma palavra e
estugou o seu passo de obeso para a casa do tio Esguelhas. A Tot estremeceu de
medo ao ver de novo aquela figura bojuda aparecer porta da alcova. Mas o
cnego riu-se para ela, chamou-lhe Totozinha, prometeu-lhe um pinto para
bolos; e mesmo sentou-se aos ps da cama com um ah! regalado, dizendo:
- Ora vamos ns agora conversar, amiguinha... Esta que a pernita doente,
hem? Coitadita! Deixa que te hs-de curar... Hei-de pedir a Deus... Fica por
minha conta.
Ela fazia-se ora toda branca ora toda vermelha, olhando aqui e alm, inquieta, na
perturbao que lhe dava aquele homem a ss com ela to perto que lhe sentia o
hlito forte.
- Ento, ouve c, disse ele chegando-se mais para ela, fazendo ranger o catre
com o seu peso. Ouve c, quem o outro? Quem que vem com a Amlia?
Ela respondeu logo, atirando as palavras dum flego:
- o bonito, o magro, vm ambos, sobem para o quarto, fecham- se por
dentro; so como ces! Os olhos do cnego injetaram-se para fora das rbitas:
- Mas quem ele, como se chama? O teu pai que te disse?
- o outro, o proco, o Amaro! fez ela impaciente.

- E vo para o quarto, hem? L para cima? E tu que ouves, tu que ouves? Diz tudo,
pequena, diz
tudo!
A paraltica ento contou, com um furor que dava tons sibilantes sua voz de
tsica, - como
ambos entravam, e a vinham ver, e se roavam um pelo outro, e abalavam para o
quarto em cima, e estavam l uma hora fechados...
Mas o cnego, com uma curiosidade lbrica que lhe punha uma chama nos olhos
mortios, queria saber os detalhes torpes:
- E ouve l, Totozinha, tu que ouves? Ouves ranger a cama?
Ela respondeu com a cabea afirmativamente, toda plida, os dentes cerrados.
- E olha, Totozinha, j os viste beijarem-se, abraarem-se? Anda, diz, que te dou
dois pintos. Ela no descerrava os lbios; e a sua face transtornada parecia ao
cnego selvagem.
- Tu embirras com ela, no verdade?
Ela fez que sim numa afirmao feroz de cabea.
- E viste-os beliscarem-se?
- So como ces! soltou ela por entre os dentes.
O cnego ento endireitou-se; bufou outra vez com o seu grande sopro de
encalmado, e coou
vivamente a coroa.
132
- Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena... Agasalha-te. No te constipes...
Saiu; e ao fechar com fora a porta exclamou alto:
- Isto a infmia das infmias! Eu mato-o! eu perco-me!
Esteve um momento considerando, e partiu para a Rua das Sousas, de guarda-sol
em riste, apressando a sua obesidade, com a face apopltica de furor. No Largo da

S, porm, parou a refletir ainda; e rodando sobre os taces, entrou na igreja. Ia


to levado que, esquecendo um hbito de quarenta anos, no dobrou o joelho ao
Santssimo. E arremessou-se para a sacristia - justamente quando o padre Amaro
saa, calando cuidadosamente as luvas pretas que usava agora sempre para
agradar Ameliazinha.
O aspecto descomposto do cnego assombrou-o.
- Que isso, padre-mestre?
- O que , exclamou o cnego de golpe, a maroteira das maroteiras! a sua
infmia! a sua
infmia!...
E emudeceu, sufocado de clera.
Amaro, que se fizera muito plido, balbuciou:
- Que est voc a dizer, padre-mestre?
O cnego tomara flego:
- No h padre-mestre! O senhor desencaminhou a rapariga! Isso que uma
canalhice mestra! O padre Amaro, ento, franziu a testa como descontente dum
gracejo:
- Que rapariga!? O senhor est a brincar?
Sorriu mesmo, afetando segurana; e os seus beios brancos tremiam.
- Homem, eu vi! berrou o cnego.
O proco, subitamente aterrado, recuou:
- Viu?
Imaginara, num relance, uma traio, o cnego escondido num recantoda casa do
tio
Esguelhas...
- No vi, mas como se visse! - continuou o cnego num tom tremendo. - Sei
tudo. Venha de l.
Disse-mo a Tot. Fecham-se no quarto horas e horas! At se ouve embaixo
ranger a cama! uma ignomnia!

O proco, vendo-se pilhado, teve, como um animal acossado e entalado a um


canto, uma resistncia de desespero.
- Diga-me uma coisa. O que que o senhor tem com isso?
O cnego pulou.
- O que tenho? o que tenho? Pois o senhor ainda me fala nesse tom? O que tenho
que vou daqui
imediatamente dar parte de tudo ao senhor vigrio-geral!
O padre Amaro, lvido, foi para ele com o punho fechado:
- Ah, seu maroto!
- Que l? que l? exclamou o cnego de guarda-sol erguido. Voc quer-me pr
as mos?
O padre Amaro conteve-se; passou a mo sobre a testa em suor, com os olhos
cerrados; e depois
de um momento, falando com uma serenidade forada:
- Oua l, Sr. cnego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na cama com a S.
Joaneira...
- Mente! mugiu o cnego.
- Vi, vi, vi! afirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa... O senhor
estava em
mangas de camisa, ela tinha-se erguido, estava a apertar o colete. At o senhor
perguntou: "Quem est a?". Vi, como estou a v-lo agora. O senhor a dizer uma
palavra, e eu a provar-lhe que o senhor vive h dez anos amigado com a S.
Joaneira( face de todo o clero! Ora a tem!
O cnego, j antes esfalfado dos excessos do seu furor, ficou agora, quelas
palavras, como um boi atordoado. S pde dizer da a pouco, muito murcho:
- Que traste voc me sai!
O padre Amaro ento, quase tranqilo, certo do silncio do cnego, disse com
bonomia:

- Traste por qu? Diga-me l! Traste por qu? Temos ambos culpas no cartrio,
eis a est. E
olhe que eu no fui perguntar, nem peitar a Tot... Foi muito naturalmente ao
entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral
para a escola e para o sermo. C na vida eu fao isto, o senhor faz aquilo, os
outros fazem o que podem. O padre-mestre que j tem idade agarra-se velha,
eu que sou novoarranjo-me com a pequena. triste, mas que quer? a natureza
que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que
temos fazer costas!
O cnego escutava-o, bamboleando a cabea, na aceitao muda daquelas
verdades. Tinha-se deixado cair numa cadeira, a descansar de tanta clera intil;
e erguendo os olhos para Amaro:
- Mas voc, homem, no comeo da carreira!
133
- E voc, padre-mestre, no fim da carreira!
Ento riram ambos. Imediatamente cada um declarou retirar as palavras
ofensivas que tinham dito; e apertaram-se gravemente a mo. Depois
conversaram.
O cnego, o que o tinha enfurecido era ser l com a pequena da casa. Se fosse
com outra... at estimava! Mas a Ameliazinha!... Se a pobre me viesse a saber,
estourava de desgosto.
- Mas a me escusa de saber! exclamou Amaro. Isto entre ns, padre-mestre!
Isto segredo de morte! Nem a me sabe de nada, nem eu mesmo digo pequena
o que se passou hoje entre ns. As coisas ficam como estavam, e o mundo
continua a rolar... Mas voc, padre-mestre, tenha cuidado!... Nem uma palavra
S. Joaneira... Que no haja agora traio!

O cnego, com a mo sobre o peito, deu gravemente a sua palavra de honra de


cavalheiro e de sacerdote que aquele segredo ficava para sempre sepultado no seu
corao.
Ento apertaram ainda uma outra vez afetuosamente a mo.
Mas a torre gemeu as trs badaladas. Era a hora de jantar do cnego.
E ao sair, batendo nas costas de Amaro, fazendo luzir um olho de entendedor:
- Pois seu velhaco, tem dedo!
- Que quer voc? Que diabo... Comea-se por brincadeira...
- Homem! disse o cnego sentenciosamente, o que a gente leva de melhor
deste mundo. - verdade, padre-mestre, verdade! o que a gente leva de
melhor deste mundo.

Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranqilidade de alma. At a


incomodava-o, por vezes, a idia de que correspondera ingratamente
confiana, aos carinhos que lhe tinham prodigalizado na Rua da Misericrdia.
Mas a tcita aprovao do cnego viera tirar-lhe, como ele dizia, aquele espinho
da conscincia. Porque enfim, o chefe de famlia, o cavalheiro respeitvel, o
cabea - era o cnego. A S. Joaneira era apenas uma concubina... E Amaro
mesmo, s vezes agora, em tom de galhofa, tratava o Dias de seu caro sogro.
Outra circunstncia viera alegr-lo: a Tot adoecera de repente: o dia seguinte ao
da visita do cnego, passara-o soltando golfadas de sangue: o doutor Cardoso,
chamado pressa, falara de tsica galopante, questo de semanas, caso
decidido...
- destas, meu amigo, tinha ele dito, que trs... trs... - era a sua maneira de
pintar a morte, que, quando tem pressa, conclui o seu trabalho com uma fouada
aqui, outra alm.
As manhs na casa do tio Esguelhas eram agora tranqilas. Amlia e o proco j
no entravam em pontas de ps, tentando esgueirar-se para o prazer,
despercebidos da Tot. Batiam com as portas, palravam forte, certos que a Tot

estava bem prostrada de febre, sob os lenis midos dos suores constantes. Mas
Amlia, por escrpulo, no deixava de rezar todas as noites uma Salve-Rainha
pelas melhoras da Tot. s vezes mesmo ao despir-se, no quarto do sineiro,
parava de repente, e fazendo um rostinho triste:
- Ai, filho! At me parece pecado, ns aqui a gozarmos, e a pobre pequena l
embaixo a lutar com a morte...
Amaro encolhia os ombros. Que lhe haviam eles de fazer, se era a vontade de
Deus?...
E Amlia, resignando-se vontade de Deus em tudo, ia deixando cair as saias.
Tinha agora daquelas pieguices freqentes que impacientavam o padre Amaro.
Em certos dias aparecia muito murcha; trazia sempre algum sonho lgubre a
contar, que a torturara toda a noite, e em que ela pretendia descobrir avisos de
desgraas...
Perguntava-lhe s vezes:
- Se eu morresse, tinhas muita pena?
Amaro enfurecia-se. Realmente era estpido! Tinham apenas uma hora para se
verem, e haviam
de estar a estrag-la com lamrias?
- que no imaginas, dizia ela, trago o corao negro como a noite.
Com efeito as amigas da me estranhavam-na. s vezes, durante seres inteiros
no descerrava
os lbios, pendia sobre a sua costura, picando molemente a agulha; ou ento,
muito cansada mesmo para trabalhar, ficava junto da mesa fazendo girar devagar
o abajur verde do candeeiro, com o olhar vazio e a alma muito longe.
- rapariga, deixa esse abajur em paz! diziam-lhe as senhoras nervosas.
Ela sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava muito lentamente a saia branca
que havia semanas andava bainhando. A me, vendo-a sempre to plida,
pensara em chamar o doutor Gouveia.

- No nada, minha me, nervoso, passa...


134
O que provava a todos que era nervoso eram os sustos sbitos que a tomavam - a
ponto de dar um grito, quase desmaiar, se de repente uma porta batia. Certas
noites mesmo, exigia que a me viesse dormir ao p dela, com medo de
pesadelos e de vises.
- o que diz sempre o Sr. doutor Gouveia, observava a me ao cnego, uma
rapariga que necessita casar...
O cnego pigarreava grosso.
- No lhe falta nada, resmungava. Tem tudo o que precisa. Tem de mais, ao que
parece...
Era com efeito a idia do cnego, que a rapariga (como ele dizia s consigo)
"andava-se a arrasar
de felicidade". Nos dias em que sabia que ela fora ver a Tot, no se fartava de a
estudar, cocando-a do fundo da poltrona com um olho pesado e lbrico.
Prodigalizava-lhe agora as familiaridades paternais. Nunca a encontrava na
escada sem a deter, com coceguinhas aqui e ali, palmadinhas na face muito
prolongadas. Queria-a em casa repetidas vezes pela manh; e enquanto Amlia
palrava com D. Josefa, o cnego no cessava de rondar em torno dela, arrastando
as chinelas com um ar de velho galo. E eram entre Amlia e a me conversas sem
fim sobre esta amizade do senhor cnego, que decerto lhe deixaria um bom dote.
- Seu magano, tem dedo! - dizia sempre o cnego quando estava s com Amaro,
arregalando os olhos redondos. Aquilo um bocado de rei!
Amaro entufava-se:
- No mau bocado, padre-mestre, um bom bocado.
Era este um dos grandes gozos de Amaro - ouvir gabar aos colegas a beleza de
Amlia, que era chamada entre o clero "a flor das devotas". Todos lhe invejavam
aquela confessada. Por isso insistia muito com ela em que se ajanotasse aos

domingos, missa; zangara-se mesmo ultimamente de a ver quase sempre


entrouxada num vestido de merino escuro, que lhe dava um ar de velha
penitente.
Mas Amlia, agora, j no tinha aquela necessidade amorosa de contentar em
tudo o senhor proco. Acordara quase inteiramente daquele adormecimento
estpido da alma e do corpo, em que a lanara o primeiro abrao de Amaro.
Vinha-lhe aparecendo distintamente a conscincia pungente da sua culpa.
Naqueles negrumes dum esprito beato e escravo, fazia- se um amanhecimento
de razo. - O que era ela no fim? A concubina do senhor proco. E esta idia,
posta assim descarnadamente, parecia- lhe terrvel. No que lamentasse a sua
virgindade, a sua honra, o seu bom nome perdido. Sacrificaria mais ainda por ele,
pelos delrios que ele lhe dava. Mas havia alguma coisa pior a temer que as
reprovaes do mundo: eram as vinganas de Nosso Senhor. Era da perda
possvel do Paraso que ela gemia baixo; ou de mais medonho ainda, de algum
castigo de Deus, no das punies transcendentes que acabrunham a alma alm
da tumba, mas dos tormentos que vm durante a vida, que a feririam na sua
sade, no seu bem-estar e no seu corpo. Eram vagos medos de doenas, de
lepras, de paralisias ou de pobrezas, de dias de fome - de todas essas penalidades
de que ela supunha prdigo o Deus do seu catecismo. Como em pequena, nos dias
em que se esquecia de pagar Virgem o seu tributo regular de Salve-Rainhas,
temia que ela a fizesse cair na escada ou levar palmatoadas da mestra, arrefecia
de medo agora, idia de que Deus, em castigo dela se deitar na cama com um
padre, lhe mandasse um mal que a desfigurasse ou a reduzisse a pedir esmola
pelas vielas. Estas idias no a deixavam, desde o dia em que na sacristia pecara
de concupiscncia dentro do manto de Nossa Senhora. Tinha a certeza que a
Santa Virgem a odiava, e que no cessava de reclamar contra ela; debalde
procurava abrand-la, com um fluxo incessante de oraes humilhadas; sentia
bem Nossa Senhora, inacessvel e desdenhosa, de costas voltadas. Nunca mais
aquele divino rosto lhe sorrira; nunca mais aquelas mos se tinham aberto para
receber com agrado as suas oraes, como ramos congratulatrios. Era um
silncio seco, uma hostilidade gelada de divindade ofendida. Ela conhecia o
crdito que Nossa Senhora tem nos conclios do Cu; desde pequena lho tinham

ensinado; tudo o que ela deseja o obtm, como uma recompensa devida aos seus
prantos no Calvrio; seu Filho sorri-lhe sua direita, o Deus Padre fala-lhe
esquerda... E compreendia bem que para ela no havia esperana - e que alguma
coisa medonha se preparava l em cima, no Paraso, que lhe cairia um dia sobre o
corpo e sobre a alma, esmagando-a com um desabamento de catstrofe... Que
seria?
Cessaria as suas relaes com Amaro, se o ousasse: mas receava quase tanto a sua
clera como a de Deus. Que seria dela se tivesse contra si Nossa Senhora e o
senhor proco? Alm disso, amava-o. Nos seus braos, todo o terror do Cu, a
mesma idia do Cu desaparecia; refugiada ali, contra o seu peito, no tinha
medo das iras divinas; o desejo, o furor da carne, como um vinho muito
alcolico, davam-lhe uma coragem colrica; era com um brutal desafio ao Cu
que se enroscava furiosamente ao seu corpo. - Os terrores vinham depois, s no
seu quarto. Era esta luta que a empalidecia, lhe punha pregas de envelhecimento
ao canto dos lbios secos e ardidos, lhe dava aquele ar murcho de fadiga que
irritava o padre Amaro.
- Mas que tens, tu, que parece te espremeram o suco? perguntava- lhe ele
quando aos primeiros beijos a sentia toda fria, toda inerte.
135
- Passei mal a noite... Nervoso.
- Maldito nervoso! rosnava o padre Amaro impaciente.
Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam, repetidas agora todos
os dias. Se tinha
dito a missa com fervor? Se tinha lido o Brevirio? Se tinha feito a orao
mental?...
- Sabes tu que mais? disse ele furioso. Sebo! E esta! Tu pensas que eu sou ainda
seminarista, e
que tu s o padre examinador, que verifica se cumpri a Regra? Ora a tolice!
- que necessrio estar bem com Deus - murmurava ela.

Era com efeito a sua preocupao, agora, que Amaro fosse um bom padre.
Contava, para se
salvar e para se livrar da clera de Nossa Senhora, com a influncia do proco na
corte de Deus: e temia que ele por negligncia de devoo a perdesse, e que,
diminuindo o seu fervor, diminussem os seus mritos aos olhos do Senhor.
Queria-o conservar santo e favorito do Cu para colher os proveitos da sua
proteo mstica.
Amaro chamava a isto "caturrices de freira velha". Detestava-as, por as achar
frvolas - e porque tomavam um tempo precioso, naquelas manhs da casa do
sineiro...
- Ns no viemos aqui para lamrias, dizia ele, muito secamente. Fecha a porta,
se queres.
Ela obedecia, - e ento aos primeiros beijos na penumbra da janela cerrada, ele
reconhecia enfim a sua Amlia, a Amlia dos primeiros dias, o delicioso corpo
que lhe tremia todo nos braos, em espasmos de paixo.
E cada dia a desejava mais, dum desejo contnuo e tirnico, que aquelas horas
escassas no satisfaziam. Ah! positivamente, como mulher no havia outra!...
Desafiava a que houvesse outra, mesmo em Lisboa, mesmo nas fidalgas!... Tinha
pieguices, sim, mas era no as tomar a srio, e gozar enquanto era novo!
E gozava. A sua vida por todos os lados tinha confortos e douras - como uma
destas salas onde tudo acolchoado, no h mveis duros nem ngulos, e o
corpo, onde quer que pouse, encontra a elasticidade mole duma almofada.
Decerto, o melhor era as suas manhs em casa do tio Esguelhas. Mas tinha outros
regalos. Comia bem: fumava caro numa boquilha de espuma: toda a sua roupa
branca era nova e de linho: comprara alguma moblia: e no tinha, como outrora,
embaraos de dinheiro porque a Sra. D. Maria da Assuno, a sua melhor
confessada, l estava com a bolsa pronta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma
pechincha: uma noite em casa da S. Joaneira, a excelente senhora, a propsito

duma famlia de ingleses que vira passar num char--banc para ir visitar a
Batalha, exprimira a opinio que os ingleses eram hereges.
- So batizados como ns, observara D. Joaquina Gansoso.
- Pois sim, filha, mas um batismo para rir. No o nosso rico batismo, no lhes
vale.
O cnego ento, que gostava de a torturar, declarou pausadamente que a Sra. D.
Maria dissera
uma blasfmia. O santo conclio de Trento, no seu cnone IV, sesso VII, l
determinara "que aquele que disser que o batismo dado aos hereges, em nome do
Padre, do Filho e do Esprito, no o verdadeiro batismo, seja excomungado!". E
a D. Maria, segundo o santo conclio, estava desde esse momento
excomungada!...
A excelente senhora teve um flato. Ao outro dia foi lanar-se aos ps de Amaro,
que em penitncia da sua injria feita ao cnone IV, sesso VII do santo concilio
de Trento, lhe ordenou trezentas missas de inteno pelas almas do purgatrio que D. Maria lhe estava pagando a cinco tostes cada uma.
Assim, ele podia s vezes entrar na casa do tio Esguelhas com um ar de satisfao
misteriosa e um embrulhozinho na mo. Era algum presente para Amlia, um
leno de seda, uma gravatinha de cores, um par de luvas. Ela extasiava-se com
aquelas provas da afeio do senhor proco; e era ento no quarto escuro um
delrio de amor, enquanto embaixo a tsica, sobre a Tot, ia fazendo "trs...
trs..."
XIX
- O senhor cnego? Quero-lhe falar. Depressa!
A criada dos Dias indicou ao padre Amaro o escritrio, e correu a cima contar a D.
Josefa que o senhor proco viera procurar o senhor cnego, e com uma cara to
transtornada que decerto tinha sucedido alguma desgraa!

Amaro abrira abruptamente a porta do escritrio, fechou-a de repelo, e sem


mesmo dar os bons- dias ao colega, exclamou:
- A rapariga est grvida!
O cnego, que estava escrevendo, caiu como uma massa fulminada para as costas
da cadeira:
- Que me diz voc? 136
- Grvida!
E no silncio que se fez o soalho gemia sob os passeios furiosos do proco da
janela para a estante.
- Est voc certo disso? perguntou enfim o cnego com pavor.
- Certssimo! A mulher j h dias andava desconfiada. J no fazia seno chorar...
Mas agora certo... As mulheres conhecem, no se enganam. H todas as
provas... Que hei-de eu fazer, padre-mestre?
- Olha que espiga! ponderou o cnego atordoado.
- Imagine voc o escndalo! A me, a vizinhana... E se suspeitam de mim?...
Estou perdido... Eu no quero saber, eu fujo!
O cnego coava estupidamente o cachao, com o beio cado comouma tromba.
Representavam-se-lhe j os gritos em casa, a noite do parto, a S. Joaneira
eternamente em lgrimas, toda a sua tranqilidade extinta para sempre...
- Mas diga alguma coisa! gritou-lhe Amaro desesperado. Que pensa voc? Veja se
tem alguma idia... Eu no sei, eu estou idiota, estou de todo!
- A esto as conseqncias, meu caro colega.
- V para o inferno, homem! No se trata de moral... Est claro que foi uma
asneira... Adeus, est feita!
- Mas ento que quer voc? disse o cnego. No quer decerto que se d uma
droga rapariga, que a arrase...

Amaro encolheu os ombros, impaciente com aquela idia insensata.O padremestre, positivamente, estava divagando...
- Mas ento que quer voc? repetia o cnego num tom cavo, arrancando as
palavras ao abismo do trax.
- Que quero! Quero que no haja escndalo! Que hei-de eu querer?
- De quantos meses est ela?
- De quantos meses? Est de agora, est dum ms...
- Ento cas-la! exclamou o cnego com exploso. Ento cas-la com o
escrevente! O padre Amaro deu um pulo:
- Com os diabos, tem voc razo! de mestre!
O cnego afirmou gravemente com a cabea que era "de mestre".
- Cas-la j! Enquanto tempo! Pater est quem nuptiae demonstrant... Quem
marido que
pai.
Mas a porta abriu-se, e apareceram os culos azuis, a touca negra de D. Josefa.
No se pudera
conter em cima, na cozinha, tomada dum frenesi agudo de curiosidade; descera
na ponta das chinelas e colara o ouvido fechadura do escritrio; mas o grosso
reposteiro de baeto estava cerrado por dentro, um rudo de lenha que se
descarregava na rua abafava as vozes. A boa senhora ento decidiu-se a entrar, "a
dar os bons-dias ao senhor proco".
Mas debalde, por detrs dos vidros defumados, os seus olhinhos agudos
esquadrinharam ansiosamente o caro espesso do mano e a face plida de
Amaro. Os dois sacerdotes estavam impenetrveis como duas janelas fechadas. O
proco mesmo falou ligeiramente do reumtico do senhor chantre, da notcia que
corria sobre o casamento do senhor secretrio-geral... Ao fim duma pausa
ergueu- se, contou que tinha nesse dia uma famosa orelheira para o jantar - e a
Sra. D. Josefa, roendo-se, viu-o abalar depois de ter dito j por detrs do
reposteiro ao cnego:

- Ento at noite em casa da S. Joaneira, padre-mestre, hem?


- At noite.
E o cnego, muito grave, continuou a escrever. D. Josefa ento no se conteve; e
depois de
arrastar um momento as chinelas em tomo do banco do mano: - H novidade?
- Grande novidade, mana! disse-lhe o cnego, sacudindo os bicos da pena.
Morreu o senhor D. Joo VI!
- Malcriado! rugiu ela rodando sobre os sapates, cruelmente perseguida por uma
risadinha do mano.
Foi noite, embaixo, na saleta da S. Joaneira, enquanto Amlia em cima, com a
morte na alma, martelava a Valsa dos Dois Mundos, que os dois padres, muito
chegados no canap, de cigarro nos dentes, por debaixo do tenebroso painel onde
a vaga mo do cenobita se estendia em garra sobre a caveira, cochicharam o seu
plano: - antes de tudo era necessrio achar Joo Eduardo, que desaparecera de
Leiria; a Dionsia, mulher de faro, ia bater todos os recantos da cidade para
descobrir a toca em que a fera se acoutava; depois, imediatamente, porque o
tempo urgia, Amlia escrever-lhe-ia... S quatro palavras simples: que soubera
que ele fora vtima duma intriga; que nunca perdera nada da amizade que lhe
tinha;
137
que lhe devia uma reparao; e que viesse v-la... Se o rapaz hesitasse agora, o
que no era provvel (o cnego afirmava-o), fazia-se-lhe reluzir a esperana do
emprego no governo civil, fcil de obter pelo Godinho, inteiramente governado
pela mulher, que era uma escravazinha do pobre Natrio?...
- Mas o Natrio, disse Amaro, o Natrio que detesta o escrevente, que dir ele a
esta revoluo?
- Homem, exclamou o cnego com uma grande palmada na coxa, que me tinha
esquecido! Pois voc no sabe o que aconteceu ao pobre Natrio?...

Amaro no sabia.
- Quebrou uma perna! Caiu da gua!
- Quando?
- Esta manh. Eu soube-o agora noitinha. Eu sempre lho disse: homem, esse
animal ferra-lhe
alguma! Pois senhores, ferrou-lha. E tesa! Tem para pras... E eu que me tinha
esquecido! Nem as senhoras l em cima sabem nada.
Foi uma desolao, em cima, quando souberam. Amlia fechou o piano. Todos
lembraram logo remdios que se lhe devia mandar, foi uma gralhada de
oferecimentos - ligaduras, fios, um ungento das freiras de Alcobaa, meia
garrafinha dum licor dos monges do deserto de ao p de Crdova... Era
necessrio tambm assegurar a interveno do Cu: e cada uma se prontificou a
usar do seu valimento com os santos da sua intimidade; D. Maria da Assuno,
que ultimamente praticava com Santo Eleutrio, ofereceu a sua influncia; D.
Josefa Dias encarregava-se de interessar Nossa Senhora da Visitao; D. Joaquina
Gansoso afianou S. Joaquim.
- E l a menina? perguntou o cnego a Amlia.
- Eu?...
E fez-se plida, numa tristeza de toda a sua alma, pensando que ela, com os seus
pecados e os
seus delrios, perdera a til amizade de Nossa Senhora das Dores. - E no poder
ela tambm concorrer com a sua influncia no Cu para restabelecer a perna de
Natrio, foi uma das amarguras maiores, talvez a punio mais viva que sentira
desde que amava o padre Amaro.

Foi em casa do sineiro, da a dias, que Amaro participou a Amlia o plano do


padre-mestre. Preparou-a, revelando-lhe primeiro que o cnego sabia tudo...

- Sabe tudo em segredo de confisso, acrescentou para a sossegar. Alm disso ele
e tua me tm culpas em cartrio... Tudo fica em famlia...
Depois tomou-lhe a mo, e olhando-a com ternura, como compadecendo-se j
das lgrimas aflitas que ela ia chorar:
- E agora, escuta, filha. No te aflijas com o que te vou dizer, mas necessrio,
a nossa salvao...
s primeiras palavras, porm, do casamento com o escrevente, Amlia
indignou-se com espalhafato.
- Nunca, antes morrer!
O qu? Ele punha-a naquele estado e agora queria descartar-se dela e pass-la a
outro? Era ela porventura um trapo que se usa e que se atira a um pobre? Depois
de ter posto fora de casa o homem, havia de humilhar-se, cham-lo e cair-lhe
nos braos?... Ah, no! Tambm ela tinha o seu brio! Os escravos trocavam-se,
vendiam-se, mas era no Brasil!
Enterneceu-se ento. Ah, ele j no a amava, estava farto dela! Ah, que
desgraada, que desgraada que era! - Atirou-se de bruos para a cama e rompeu
num choro estridente.
- Cala-te, mulher, que te podem ouvir na rua! dizia Amaro desesperado,
sacudindo-a pelo brao.
- No me importa! Que ouam! Para a rua vou eu, gritar que estou neste estado,
que foi o Sr. padre Amaro, e que me quer agora deixar!...
Amaro fazia-se lvido de raiva, com desejo furioso de lhe bater. Mas conteve-se;
e com uma voz que tremia sob a sua serenidade:
- Tu ests fora de ti, filha... Dize l, posso eu casar contigo? No! Bem, ento que
queres? Se se percebe que ests assim, se tens o filho em casa, v o escndalo!...
Por ti, ests perdida, perdida para sempre! E eu, se se souber, que me sucede?

Perdido tambm, suspenso, metido em processo talvez... De que queres tu que


eu viva? Queres que morra de fome?
Enterneceu-se tambm quela idia das privaes e das misrias do padre
interdito. - Ah, era ela, era ela que o no amava, e que depois dele ter sido to
carinhoso e to dedicado, lhe queria pagar com o escndalo e com a desgraa...
- No, no, exclamou Amlia em soluos, lanando-se-lhe ao pescoo.
138
E ficaram abraados, tremendo no mesmo enternecimento, - ela molhando de
pranto o ombro do proco, ele mordendo o beio com os olhos todos turvos de
gua.
Desprendeu-se brandamente, enfim, e limpando as lgrimas:
- No, filha, uma desgraa que nos sucede, mas tem de ser. Se tu sofres,
imagina eu! Ver-te casada, a viver com outro... Nem falemos nisso... Mas ento,
a fatalidade, Deus que a manda!
Ela ficara aniquilada, beira do leito, tomada ainda de grandes soluos. Tinha
chegado enfim o castigo, a vingana de Nossa Senhora, que ela sentia prepararse h tempos no fundo dos cus, como uma tormenta complicada. A estava,
agora, pior que os fogos do Purgatrio! Tinha de se separar de Amaro que
imaginava amar mais, e ir viver com o outro, com o excomungado! Como poderia
ela nunca reentrar na graa de Deus, depois de ter dormido e vivido com um
homem que os cnones, o papa, toda a terra, todo o Cu consideravam
maldito?... E devia ser esse seu marido, talvez o pai de outros filhos... Ah, Nossa
Senhora vingava-se demais!
- E como posso eu casar com ele, Amaro, se o homem est excomungado?!
Amaro ento apressou-se a tranqiliz-la, prodigalizando os argumentos. Era
necessrio no exagerar... O rapaz, verdadeiramente, excomungado no estava...
Natrio e o cnego tinham interpretado mal os cnones e as bulas... Bater num
sacerdote que no estava revestido no era motivo de excomunho ipso facto,

segundo certos autores... Ele, Amaro, era dessa opinio... De mais a mais podiam
levantar-lhe a excomunho.
- Tu compreendes... Como disse o santo concilio de Trento, e como sabes, ns
atamos e desatamos. O moo foi excomungado?... Bem, levantamos-lhe a
excomunho. Fica to limpo como dantes. No, isso no te d cuidado.
- Mas de que havemos de viver, se ele perdeu o emprego?
- Tu no me deixaste dizer... Arranja-se-lhe o emprego. Arranja-lho o padremestre. Est tudo combinadinho, filha!
Ela no respondeu, muito quebrada e muito triste, com duas lgrimas
persistentes ao comprido das faces.
- Dize c, tua me no desconfia de nada?
- No, por ora no se percebe, respondeu ela com um grande ai.
Ficaram calados: ela limpando as lgrimas, serenando para sair; ele de cabea
baixa, trilhando
lugubremente o soalho do quarto, pensando nas boas manhs de outrora, quando
s havia ali beijos e risadinhas abafadas; tudo mudara agora, at o tempo que
estava todo nublado, um dia de fim de Vero, ameaando chuva.
- Percebe-se que estive a chorar? perguntou ela, compondo ao espelho o cabelo.
- No. Vais-te?
- A mam est minha espera...
Deram um beijo triste, e ela saiu.

No entanto a Dionsia farejava pela cidade na pista de Joo Eduardo. A sua


atividade desenvolvera-se, sobretudo, mal soubera que o cnego Dias, o ricao,
estava interessado na pesquisa. E todos os dias, noitinha, esgueirava-se
cautelosamente pelo porto de Amaro a dar-lhe as novidades: j sabia que o
escrevente estivera ao princpio em Alcobaa com um primo boticrio; depois

fora para Lisboa; ai, com uma carta de recomendaodo doutor Gouveia,
empregara-se no cartrio dum procurador; mas o procurador, passados dias, por
uma fatalidade, morrera de apoplexia; e desde ento o rasto de Joo Eduardo
perdia-se no vago, no caos da capital. Havia, sim, uma pessoa que lhe devia saber
a morada e os passos: era o tipgrafo, o Gustavo. Mas infelizmente o Gustavo,
depois duma questo com o Agostinho, deixara o Distrito e desaparecera.
Ningum sabia para onde fora; por desgraa, a me do tipgrafo no a podia
informar - porque morrera tambm.
- Oh, senhores! dizia o cnego quando o padre Amaro lhe ia levar estes fios de
informao. Oh, senhores! mas ento nessa histria toda a gente morre! Isso
uma hecatombe!
- Voc graceja, padre-mestre, mas srio. Olhe que um homem em Lisboa
agulha em palheiro. uma fatalidade!
Ento, aflito j, vendo passar os dias, escreveu tia, pedindo-lhe que
esquadrinhasse por toda a Lisboa, a ver se por l aparecera "um tal Joo Eduardo
Barbosa..." Recebeu uma carta da tia em garatujas de trs pginas, queixando-se
do Joozinho, do seu Joozinho, que lhe fizera a vida um inferno, embebedandose com genebra a ponto que no lhe paravam hspedes em casa. Mas estava
agora mais tranqila: o pobre Joozinho havia dias jurara-lhe pela alma da mam
que da por diante no beberia seno gasosa. Enquanto ao tal Joo Eduardo,
perguntara na vizinhana e ao Sr. Palma do Ministrio das
139
Obras Pblicas, que conhecia toda a gente, mas nada averiguara. Havia, sim, um
Joaquim Eduardo que tinha uma loja de quinquilharias no bairro... E se fosse o
negcio com ele bem ia, que era um homem de bem...
- Lrias! lrias! interrompeu o cnego impaciente.
Resolveu-se ele ento a escrever. E instado pelo padre Amaro (queno cessava de
lhe representar o que a S. Joaneira e ele mesmo, cnego Dias, sofreriam com o

escndalo) chegou a autorizar ao seu amigo da capital as despesas necessrias


para empregar a polcia. A resposta demorou- se, mas veio enfim, prometedora e
magnifica! O hbil polcia Mendes descobrira Joo Eduardo! Somente no lhe
sabia ainda a morada, avistara-o apenas num caf; mas em dois ou trs dias o
amigo Mendes prometia informaes precisas.
O desespero dos dois sacerdotes, porm, foi grande quando, da a dias, o amigo
do cnego escreveu que o indivduo, que o hbil polcia Mendes tomara por Joo
Eduardo, num caf da Baixa, sobre sinais incompletos, era um moo de Santo
Tirso que estava na capital a fazer concurso para delegado... E havia trs libras e
dezessete tostes de despesa.
- Dezessete demnios! rugiu o cnego, voltando-se para Amaro furioso. E no fim
de contas foi o senhor que gozou, que se refocilou, e sou eu que estou aqui a
arrasar a minha sade com estas andadas, e a fazer desembolsos desta ordem!
Amaro, dependente do padre-mestre, vergou os ombros injria.
Mas no estava nada perdido, graas a Deus. A Dionsia l andava no faro!

Amlia recebia estas notcias com desconsolao. Depois das primeiras lgrimas,
a irremedivel necessidade impusera-se-lhe, muito forte. Por fim que lhe
restava? Da a dois ou trs meses, com aquele seu desgraado corpo de cinta fina
e quadris estreitos, no poderia esconder o seu estado. E que faria ento? Fugir de
casa, ir como a filha do tio Cegonha para Lisboa, ser espancada no Bairro Alto
pelos marujos ingleses, ou como a Joaninha Gomes, que fora a amiga do padre
Ablio, levar pela cara os ratos mortos que lhe atiravam os soldados? No. Ento,
tinha de casar...
Depois vir-lhe-ia um menino ao fim dos sete meses (era to freqente!),
legitimado pelo sacramento, pela lei e por Deus Nosso Senhor... E o seu filho
teria um pap, receberia uma educao, no seria um enjeitado...

Desde que o senhor proco lhe afirmara, em juramento, que o escrevente no


estava realmente excomungado, que com algumas oraes se lhe levantaria a
excomunho, os seus escrpulos devotos esmoreciam como brasas que se
apagam. No fim, em todos os erros do escrevente, ela s podia descobrir a
incitao do cime e do amor: fora num despeito de namorado que escrevera o
Comunicado, fora num furor de paixo trada que espancara o senhor proco...
Ah! No lhe perdoava esta brutalidade! Mas que castigado fora! Sem emprego,
sem casa, sem mulher, to perdido na misria annima de Lisboa que nem a
polcia achava! E tudo por ela. Pobre rapaz! No fim no era feio... Falavam da sua
impiedade; mas vira-o sempre muito atento missa, rezava todas as noites uma
orao especial a S. Joo que ela lhe dera impressa num carto bordado...
Com o emprego no governo civil podiam ter uma casinha e uma criada... Por que
no seria feliz, por fim? Ele no era rapaz de botequins, nem de vadiagem. Tinha
a certeza de o dominar, de lhe impor os seus gostos e as suas devoes. E seria
agradvel sair aos domingos de manh para a missa, arranjada, de marido ao
lado, cumprimentada de todos, podendo, face da cidade, passear o seu filho
muito vistoso na sua touca de rendas e na sua grande capa franjada! Quem sabe
se, ento, pelos carinhos que desse ao pequerrucho e pelos confortos de que
cercasse o homem, o Cu e Nossa Senhora se no abrandariam! Ah! para isso
faria tudo, para ter outra vez no Cu aquela amiga, a sua querida Nossa Senhora,
amvel e confidente, sempre pronta a curar-lhe as dores, a livr-la de
infortnios, ocupada a preparar-lhe no Paraso um luminoso conchego!
Pensava assim horas inteiras, sobre a sua costura; pensava assim, mesmo no
caminho para casa do sineiro; e depois de ter estado um momento com a Tot,
muito quieta agora, extenuada da febre lenta, quando subia ao quarto, a primeira
pergunta a Amaro era:
- Ento, h alguma novidade?
Ele franzia a testa, rosnava:
- A Dionsia l anda... Por qu, tens muita pressa?
- Tenho muita pressa, tenho, respondia ela muito sria, que a vergonha para
mim.

Ele calava-se; e havia tanto dio como amor nos beijos que lhe dava - quela
mulher que se
resignava assim to facilmente a ir dormir com outro!
140

Tinha cimes dela - que lhe tinham vindo ultimamente desde que a vira
conformar-se quele casamento odioso! Agora, que ela j no chorava, comeava
a enfurecer-se da falta das suas lgrimas; e secretamente desesperava-se dela
no preferir a vergonha com ele reabilitao com o outro. No lhe custaria tanto
se ela continuasse a barafustar, a fazer um alarido de prantos; isso seria uma
prova sria de amor, em que a sua vaidade se banharia deliciosamente; mas
aquela aceitao do escrevente agora, sem repugnncia e sem gestos de horror,
indignava-o como uma traio. Viera a suspeitar que a ela no fundo no lhe
desagradava a mudana. Joo Eduardo por fim era um homem; tinha a fora dos
vinte e seis anos, os atrativos dum belo bigode. Ela teria nos braos dele o
mesmo delrio que tinha nos seus... Se o escrevente fosse um velho consumido
de reumatismo, ela no mostraria a mesma resignao. Ento, por vingana de
padre, para "lhe desmanchar o arranjo", desejava que Joo Eduardo no
aparecesse: e muitas vezes, quando a Dionsia lhe vinha dar conta dos seus
passos, dizia-lhe com um mau sorriso:
- No se canse. O homem no aparece. Deixe l... No vale a pena ganhar dor de
peito...
Mas a Dionsia tinha o peito forte - e uma noite veio, triunfante, dizer-lhe que
estava na pista do homem! Vira enfim o Gustavo, o tipgrafo, entrar para a casa
de pasto do tio Osrio. Ao outro dia ia-lhe falar, e havia de se saber tudo...
Foi uma hora amargurada para Amaro. Aquele casamento, por que ansiara no
primeiro momento de terror, agora, que o sentia seguro, parecia-lhe a catstrofe
da sua vida.

Perdia Amlia para sempre!... Aquele homem que ele expulsara, que ele
suprimira, ali lhe vinha, por uma destas peripcias malignas em que a
Providncia se compraz, levar-lhe a mulher legitimamente. E a idia que ele ia
t-la nos braos, que ela lhe daria os beijos fogosos que lhe dava a ele, que
balbuciaria oh, Joo! - como agora murmurava oh, Amaro! - enfurecia-o. E no
podia evitar o casamento; todos o queriam, ela, o cnego, at a Dionsia com o
seu zelo venal!
De que lhe servia ser um homem com sangue nas veias e as paixes fortes dum
corpo so? Tinha de dizer adeus rapariga, - v-la partir de brao dado com o
outro, com o marido, irem ambos para casa brincar com o filho, um filho que era
seu! E ele assistiria destruio da sua alegria de braos cruzados, esforando-se
por sorrir, voltaria a viver s, eternamente s, e a reler o Brevirio!... Ah! se
fosse no tempo em que se suprimia um homem com uma denncia de heresia!...
Que o mundo recuasse duzentos anos, e o Sr. Joo Eduardo havia de saber o que
custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amlias...
E esta idia absurda, na exaltao da febre em que estava, apoderou-se to
fortemente da sua imaginao que toda a noite a sonhou - num sonho vvido,
que muitas vezes depois contou rindo s senhoras. Era uma rua estreita batida
dum sol ardente; entre as altas portas chapeadas, uma populaa apinhava-se;
pelos balces, fidalgos muito bordados retorciam o bigode cavalheiresco; olhos
reluziam, entre as pregas das mantilhas, acesos num furor santo. E pela calada,
a procisso do auto-de-f movia-se devagar, num vasto rudo, sob o tremendo
dobre a finados de todos os sinos vizinhos. Adiante os flagelantes seminus, de
capuz branco sobre o rosto, dilaceravam-se, uivando o Miserere, com as costas
empastadas de sangue: sobre um jumento ia Joo Eduardo, idiota de terror, com
as pernas pendentes, a camisa alva sarapintada de diabos cor de fogo, tendo no
peito um rtulo em que estava escrito - POR HEREGE; por trs um medonho
servente do Santo Ofcio espicaava furiosamente o jumento; e ao pi um padre,
erguendo alto o crucifixo, berrava-lhe aos ouvidos os conselhos do
arrependimento. E ele, Amaro, caminhava ao lado cantando o Requiem, de
Brevirio aberto numa mo, com a outra abenoando as velhas, as amigas da Rua

da Misericrdia que se agachavam para lhe beijar a alva. s vezes voltava-se para
gozar aquela pompa lgubre, e via ento a longa fila da confraria dos Nobres: aqui
era um personagem panudo eapopltico, alm uma face de mstico com um
bigode feroz e dois olhos chamejantes; cada um levava uma tocha acesa, e na
outra mo sustentava o chapu cuja pluma negra varria o cho. Os capacetes dos
arcabuzeiros reluziam; uma clera devota contorcia as faces esfomeadas do
populacho; e o prstito ondeava nas tortuosidades da rua, entre o clamor do
cantocho, os gritos dos fanticos, o dobrar aterrador dos sinos, o tlintlim das
armas, num terror que enchia toda a cidade, - aproximando-se da plataforma de
tijolo onde j fumegavam as pilhas de lenha.
E o seu desengano foi grande, depois daquela glria eclesistica do sonho,
quando a criada o veio acordar cedo com gua quente para a barba.
Era pois nesse dia que se ia saber do Sr. Joo Eduardo, e escrever-se-lhe!... Devia
encontrar-se com Amlia s onze horas; e foi a primeira coisa que lhe disse,
atirando a porta do quarto com mau modo: - O homem apareceu... Pelo menos
apareceu o amigo intimo, o tipgrafo, que sabe onde a besta
pra.
Amlia, que estava num dia de desalento e terror, exclamou: - Ainda bem, que se
acaba este tormento!
141
Amaro teve um risinho repassado de fel:
- Ento agrada-te, hem?
- Se te parece, neste susto em que ando...
Amaro teve um gesto desesperado de impacincia. Susto! No estava m
hipocrisia! Susto de
qu? Com uma me que era uma babosa, que lhe consentia tudo... O que era, era
que queria casar... Queria outro! Nolhe agradava aquele divertimento pela
manh, de fugida... Queria a coisa comodamente, em casa. Imaginava a menina
que o iludia a ele, um homem de trinta anos e quatro anos de experincia de

confisso? Via bem atravs dela... Era como as outras, queria mudar de homem.
Ela no respondia, muito plida. E Amaro, furioso com o seu silncio:
- Calas-te, est claro... Que hs-de tu dizer? Se a verdade pura!... Depois dos
meus sacrifcios... Depois do que tenho sofrido por ti... Aparece-te o outro, larga
para o outro!
Ela ergueu-se, e batendo o p, desesperada:
- Foste tu que quiseste, Amaro!
- Pudera! Se imaginas que me havia de perder por tua causal Est claro que
quis!... - E olhando-a
de alto, fazendo-lhe sentir um desprezo de alma muito reta; - Mas nem
vergonha tens de mostrar a alegria, o furor de ir para o homem!... s uma
desavergonhada, o que ...
Ela, sem uma palavra, branca como a cal, agarrou o mantelete para sair.
Amaro, exasperado, segurou-a violentamente pelo brao:
- Para onde vais? Olha bem para mim. s uma desavergonhada... Estou-te a
dizer. Ests morta
por dormir com o outro...
- Pois acabou, estou! disse ela.
Amaro, perdido, atirou-lhe uma bofetada.
- No me mates! gritou ela. o teu filho!
Ele ficou diante dela, enleado e trmulo: quela palavra, quela idia do seu filho,
uma piedade,
um amor desesperado revolveu todo o seu ser: e arremessando-se sobre ela,
num abrao que a esmagava, como querendo sepult-la no peito, absorv-la toda
s para si, atirando-lhe beijos furiosos que a magoavam, pela face e pelos
cabelos:
- Perdoa, murmurava, perdoa, minha Ameliazinha! Perdoa, que estou doido!

Ela soluava, num pranto nervoso, - e toda a manh foi no quarto do sineiro um
delrio de amor a que aquele sentimento da maternidade, ligando-os como um
sacramento, dava uma ternura maior, um renascimento incessante de desejo,
que os lanava cada vez mais vidos nos braos um do outro. Esqueceram as
horas; e Amlia s se decidiu a saltar do leito quando ouviram embaixo na
cozinha a muleta do tio Esguelhas.
Enquanto ela se arranjava pressa diante do bocado de espelho que ornava a
parede, Amaro diante dela contemplava-a com melancolia, vendo-a passar o
pente nos cabelos - nos cabelos que ele dentro em breve no tornaria a ver
pentear; deu um grande suspiro, disse-lhe enternecido:
- Esto a acabar os nossos bons dias, Amlia. s tu que queres... Hs-de-te
lembrar algumas vezes destas boas manhs...
- No diga isso! fez ela com os olhos arrasados de gua.
E atirando-se-lhe de repente ao pescoo, com a antiga paixo dos tempos felizes,
murmurou-lhe: - Hei-de ser sempre a mesma para ti... Mesmo depois de casada.
Amaro agarrou-lhe as mos sofregamente:
- Juras?
- Juro.
- Pela hstia sagrada?
- Juro pela hstia sagrada, juro por Nossa Senhora!
- Sempre que tenhas ocasio?
- Sempre!
- Oh, Ameliazinha! oh, filha! no te trocava por uma rainha!
Ela desceu. O proco, dando uma arranjadela ao leito, ouvia-a embaixo falar
tranqilamente com
o tio Esguelhas; e dizia consigo que era uma grande rapariga, capaz de enganar o
diabo, e que havia de fazer andar numa roda-viva o pateta do escrevente.
Aquele "pacto", como lhe chamava o padre Amaro, tornou-se entre eles to
irrevogvel que j lhe discutiam tranqilamente os detalhes. O casamento com o
escrevente consideravam-no como uma destas necessidades que a sociedade

impe e que sufoca as almas independentes, mas a que a natureza se subtrai pela
menor fenda, como um gs irredutvel. Diante de Nosso Senhor, o verdadeiro
marido de Amlia era o senhor proco; era o marido da alma, para quem seriam
guardados os melhores beijos, a obedincia intima, a vontade: o outro teria
quando muito o cadver... J s vezes mesmo tramavam o plano hbil das
correspondncias secretas, dos lugares ocultos de rendez-vous...
142
Amlia estava de novo, como nos primeiros tempos, em todo o fogo da paixo.
Diante da certeza que em algumas semanas o casamento ia tornar "tudo branco
como a neve", os seus transes tinham desaparecido, o mesmo terror da vingana
do Cu calmara-se. Depois, a bofetada que lhe dera Amaro fora como a chicotada
que esperta um cavalo que preguia e se atrasa: e a sua paixo, sacudindo-se e
relinchando forte, ia-a de novo levando no mpeto duma carreira fogosa.
Amaro, esse regozijava-se. Ainda s vezes, decerto, a idia daquele homem, de
dia e de noite com ela, importunava-o... Mas, no fundo, quecompensaes!
Todos os perigos desapareciam magicamente, e as sensaes requintavam.
Findavam para ele aquelas atrozes responsabilidades da seduo, e ficava-lhe a
mulher mais apetitosa.
Instava agora com a Dionsia para que acabasse enfim aquela fastidiosa
campanha. Mas a boa mulher, decerto para se fazer pagar melhor pela
multiplicidade de esforos, no podia descobrir o tipgrafo - aquele famoso
Gustavo que possua, como os anes de romance de cavalaria, o segredo da torre
maravilhosa onde vive o prncipe encantado.
- Oh, senhor! dizia o cnego, isso at j cheira mal! H quase dois meses busca
dum patife!... Homem, escreventes no faltam. Arranje-se outro!
Mas enfim, uma noite em que ele entrara a descansar em casa do proco, a
Dionsia apareceu; e exclamou logo da porta da sala de jantar, onde os dois padres
tomavam o seu caf;

- At que enfim!
- Ento, Dionsia?
A mulher, porm, no se apressou: sentou-se mesmo, com licena dos senhores,
porque vinha
derreada... No, o senhor cnego no imaginava os passos que se vira obrigada a
dar... O maldito tipgrafo lembrava-lhe a histria que lhe contavam em pequena,
dum veado que estava sempre vista e que os caadores a galope nunca
alcanavam. Uma perseguio assim!... Mas, finalmente, apanhara-o... E
tocadito, por sinal.
- Acabe, mulher! berrou o cnego.
- Pois aqui est, disse ela. Nada!
Os dois sacerdotes olharam-na mistificados.
- Nada qu, criatura?
- Nada. O homem foi para o Brasil!
O Gustavo recebera de Joo Eduardo duas cartas: na primeira, onde lhe dava a
morada, para o
lado do Poo do Borratm, anunciava-lhe a resoluo de ir para o Brasil; na
segunda dizia-lhe que mudara de casa, sem lhe indicar a nova adresse, e
declarava que pelo prximo paquete embarcava para o Rio; no dizia nem com
que dinheiro, nem com que esperanas. Tudo era vago e misterioso. Desde ento,
havia um ms, o rapaz no tornara a escrever, donde o tipgrafo conclua que ia a
essa hora nos altos-mares... - "Mas havemos de ving-lo!" tinha ele dito a
Dionsia.
O cnego remexia pausadamente o seu caf, embatocado.
- E esta, padre-mestre? exclamou Amaro, muito branco.
- Acho-a boa.
- Diabo levem as mulheres, e o inferno as confunda! disse surdamente Amaro. Amm, respondeu gravemente o cnego.
XX

Que lgrimas quando Amlia soube a notcia! A sua honra, a paz da sua vida,
tantas felicidades combinadas, tudo perdido e sumido nas brumas do mar, a
caminho para o Brasil!
Foram as semanas piores da sua vida. Ia para o proco, banhada em lgrimas,
perguntando-lhe todos os dias o que havia de fazer.
Amaro, sucumbido, sem idia, ia para o padre-mestre.
- Fez-se tudo o que se pde, dizia o cnego desolado. agentar. No se metesse
nelas!
E Amaro voltava para Amlia com consolaes muito murchas:
- Tudo se h-de arranjar, esperar em Deus!
Era bom o momento para contar com Deus, quando Ele, indignado, a
acabrunhava de misrias! E
aquela indeciso, num homem e num padre, que devia ter a habilidade e a fora
de a salvar, desesperava- a; a sua ternura por ele sumia-se como a gua que a
areia absorve; e ficava um sentimento confuso em que sob o desejo persistente j
transluzia o dio.
Espaava agora de semana a semana os encontros na casa do sineiro. Amaro no
se queixava;
aquelas boas manhs do quarto do tio Esguelhas, eram sempre estragadas com
queixumes; cada beijo 143
tinha um rastro de soluos; e aquilo enervava-o tanto, que lhe vinham desejos de
se atirar tambm de bruos para a enxerga e chorar toda a sua amargura.
No fundo acusava-se de exagerar os seus embaraos, de lhe comunicar um terror
desproporcionado. Outra mulher, de melhor senso, no faria semelhante
espalhafato... Mas que, uma beata histrica, toda nervos, toda medo, toda
exaltao!... Ah, no havia dvida, fora "urna famosa asneira"!
Tambm Amlia pensava que fora "uma asneira". E no ter nunca imaginado que
aquilo lhe poderia suceder! Qual! Como mulher, correra para o amor, toda tonta,

certa que escaparia, ela, - e agora que sentia nas entranhas o filho, eram as
lgrimas e os espantos e as queixas! A sua vida era lgubre: de dia tinha de se
conter diante da me, aplicar-se sua costura, conversar, afetar felicidade... Era
de noite que a imaginao desencadeada a torturava com uma incessante
fantasmagoria de castigos, deste e do outro mundo, misrias, abandonos,
desprezo da gente honrada e chamas do Purgatrio...
Foi ento que um acontecimento inesperado veio fazer diverso quela ansiedade
que se ia tomando um hbito mrbido do seu esprito. Uma noite a criada do
cnego apareceu, esfalfada de correr, a dizer que a Sra. D. Josefa estava morte.
Na vspera a excelente senhora sentira-se doente com uma pontada no lado,
mas insistira em ir Senhora da Encarnao rezar a sua coroa; voltou transida,
com uma dor maior e uma ponta de febre; e nessa tarde, quando o doutor
Gouveia foi chamado, tinha-se declarado uma pneumonia aguda. '
A S. Joaneira correu logo a instalar-se l como enfermeira. E ento, durante
semanas, na tranqila casa do cnego, foi um alvoroo de dedicaes aflitas: as
amigas, quando se no espalhavam pelas igrejas a fazer promessas e a implorar
os seus santos devotos, estavam l em permanncia, saindo e entrando no
quarto da doente com passos de fantasmas, acendendo aqui e alm lamparinas s
imagens, torturando o doutor Gouveia com perguntas piegas. noite na sala,
com o candeeiro a meia luz, era pelos cantos um cochichar de vozes lgubres; e
ao ch, entre cada mastigadela de torrada, havia suspiros, lgrimas furtivamente
limpadas...
O cnego l estava a um canto, aniquilado, sucumbido com aquela brusca
apario da doena e do seu cenrio melanclico - as garrafadas de botica
enchendo as mesas, as entradas solenes do mdico, as faces compungidas que
vm saber se h melhoras, o hlito febril espalhado em toda a casa, o timbre
funerrio que toma o relgio de parede no abafamento de todo o rudo, as toalhas
sujas que ficam dias no lugar em que caram, o anoitecer de cada dia com a sua
ameaa de treva eterna... De resto, um pesar sincero prostrava-o; havia
cinqenta anos que vivia com a mana e era animado por ela; o longo hbito

tomara-lha cara; e as suas caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato


pela casa faziam como uma parte mesma do seu ser... Alm disso, quem sabe se a
morte, entrando-lhe em casa, para poupar passos, o no levaria tambm!...
Para Amlia aquele tempo foi um alvio; ao menos ningum pensava, ningum
reparava nela; nem a sua face triste e os vestgios de lgrimas pareceriam
estranhos, naquele perigo em que estava a madrinha. Demais, os servios de
enfermeira ocupavam-na: como era a mais forte e a mais nova, agora que a S.
Joaneira estava estafada de viglias, era ela que passava as longas noites beira
de D. Josefa: e no havia ento desvelos que no tivesse, para abrandar Nossa
Senhora e o Cu com aquela caridade pela doente, para merecer igual piedade
quando o seu dia viesse de estar tambm prostrada num leito... Vinha-lhe agora,
sob a impresso fnebre que se exalava da casa, o pressentimento repetido que
morreria de parto: s vezes s, embrulhada no seu xale aos ps da doente,
ouvindo-lhe o gemer montono, enternecia-se sobre a sua prpria morte que
julgava certa, e molhavam-se-lhe os olhos de lgrimas, numa saudade vaga de si
mesma, da sua mocidade e dos seus amores... l ento ajoelhar-se junto da
cmoda, onde uma lamparina bruxuleava diante dum Cristo projetando sobre o
papel claro da parede a sua sombra disforme que se quebrava no teto; e ali ficava
rezando, pedindo a Nossa Senhora que no lhe recusasse o Paraso... Mas a velha
mexia-se com um ai doloroso; ia ento aconchegar-lhe a roupa, falar- lhe baixo.
Vinha depois sala ver no relgio se era o momento do remdio; e estremecia s
vezes, sentindo vir do quarto prximo um pio de flautim ou um som rouco de
trombone; era o cnego a ressonar.
Enfim, uma manh, o doutor Gouveia declarou D. Josefa livre de perigo. Foi um
vivo regozijo para as senhoras - certa, cada uma, que aquilo era devido
interveno particular do seu santo devoto. E dai a duas semanas houve uma
festa na casa, quando D. Josefa, pela primeira vez, amparada nos braos de todas
as amigas, deu dois passos trmulos no quarto. Pobre D. Josefa, o que dela fizera
a doena! Aquela vozinha irritada em que as palavras eram despedidas como
setas envenenadas, assemelhava-se agora apenas a um som expirante, quando,
num esforo ansioso da vontade, pedia a escarradeira ou o xarope. Aquele olhar

sempre alerta, escrutador e maligno, estava hoje como refugiado no fundo das
rbitas, assustado da luz, das sombras e dos contornos das coisas. E o seu corpo,
to teso outrora, duma secura de ramo de sarmento, agora ao cair no fundo da
poltrona, sob a trapalhada dos agasalhos, parecia um trapo tambm.
144
Mas enfim o doutor Gouveia, apesar de anunciar uma convalescena longa e
delicada, dissera rindo ao cnego, diante das amigas (depois de ter visto D. Josefa
manifestar o seu primeiro desejo, o desejo de se chegar janela) que com muita
cautela, tnicos, e as oraes de todas aquelas boas senhoras - a mana estava
ainda para amores...
- Ai doutor, exclamou D. Maria, as nossas oraes no lhe ho-de faltar...
- E eu no lhe hei-de faltar com os tnicos, disse o doutor. De modo que, o que
resta congratularmo-nos.
Aquela jovialidade do doutor era para todos como a certeza da sade prxima.
E dai a dias, o cnego, vendo aproximar-se o fim de agosto, falou de alugar casa
na Vieira, como costumava um ano sim outro no, para ir tomar os seus banhos
de mar. O ano passado no fora. Este era o ano de praia...
- E a mana l, naqueles ares saudveis da beira-mar, que acaba de ganhar
foras e carnes...
Mas o doutor Gouveia desaprovou a jornada. O ar muito picante e muito rico do
mar no convinha fraqueza de D. Josefa. Era prefervel irem para a quinta da
Ricoa, nos Poiais, lugar abrigado e muito temperado.
Foi um desgosto para o pobre cnego, que prodigalizou as lamrias. O qu! ir
enterrar-se todo o Vero, o melhor tempo do ano, na Ricoa! E os seus banhos,
meu Deus, os seus banhos?
- Veja o senhor, - dizia ele a Amaro, uma noite no escritrio, - veja o que eu
tenho sofrido... Durante a doena, que desarranjo, que desordem na casa! Ch

fora de horas, jantar esturrado! E os cuidados que tive, que me emagreceram... E


agora, quando eu pensava poder ir refazer- me para a praia, no senhor, vai para
a Ricoa, dispensa os teus banhos... Isto o que eu chamo sofrer! E no fim de
tudo no fui eu que estive doente. Mas sou eu que as agento... Perder dois anos
a fio os meus banhos!
Amaro, ento, deu de repente uma punhada na mesa, e exclamou:
- Homem, veio-me uma boa idia!
O cnego olhou-o com dvida, como se no achasse possvel a uma inteligncia
humana
descobrir o fim dos seus males.
- Quando digo uma boa idia, padre-mestre, devia dizer uma idia sublime!
- Acabe, criatura...
- Escute. O senhor vai para a Vieira, e a S. Joaneira, est claro, vai tambm.
Naturalmente
alugam casa um ao p do outro, como ela me disse que tinham feito h dois
anos... - Adiante...
- Bem. Aqui temos a S. Joaneira na Vieira. Agora, a senhora sua mana parte para a
Ricoa.
- E ento a criatura h-de ir s?
- No! exclamou Amaro em triunfo. Vai com a Amlia! A Amlia vai-lhe servir de
enfermeira!
Vo ambas ss! E l na Ricoa, naquele buraco onde no vai viva alma, naquele
casaro onde pode uma pessoa viver sem que ningum em roda suspeite, l que
a rapariga tem o filho! Hem, que lhe parece?
O cnego erguera-se com os olhos redondos de admirao.
- Homem, famosa idia!
- que concilia tudo! O senhor toma os seus banhos. A S. Joaneira, longe, no
sabe o que se

passa. Sua mana goza os ares... A Amlia tem um stio escondido para a coisa...
Ricoa ningum a vai ver... A D. Maria tambm vai pra Vieira. As Gansosos, idem.
A rapariga deve ter o bom sucesso ai pelos princpios de Novembro... Da Vieira, e
isso fica por sua conta, no volta ningum dos nossos at princpios de
Dezembro... E quando nos reunirmos de novo est a rapariga limpa e fresca.
- Pois senhores, por ser a primeira idia que voc tem nestes dois ltimos anos,
uma grande idia!
- Obrigado, padre-mestre.
Mas havia uma dificuldade feia: era o ir D. Josefa, rigorista D. Josefa, to
implacvel s fraquezas do sentimento, D. Josefa que pedia para as mulheres
frgeis as antigas penalidades gticas - as letras marcadas na testa com ferro em
brasa, os aoutes nas praas pblicas, os in pace tenebrosos - ir Josefa e pedirlhe para ser cmplice dum parto!
- A mana vai dar urros! disse o cnego.
- Ns veremos, padre-mestre, replicou Amaro repoltreando-se e balouando a
perna, muito certo do seu prestgio devoto. Ns veremos... Hei-de-lhe eu falar...
E quando lhe tiver contado umas lrias... Quando lhe tiver representado que
para ela um caso de conscincia encobrir a pequena... Quando lhe lembrar que
nas vsperas da morte que se deve fazer alguma boa ao, para no se
apresentar porta do Paraso com as mos vazias... Ns veremos!
- Talvez, talvez, disse o cnego. A ocasio boa, porque a pobre mana est
fraquita do juzo e leva-se como uma criana.
Amaro ergueu-se, esfregando vivamente as mos:
145
- Pois , mos obra! mos obra!

- E necessrio no perder tempo, porque o escndalo estala. Olhe que esta


manh, l em casa, a besta do Libaninho ps-se a gracejar com a rapariga, a
dizer-lhe que tinha a cinta grossa...
- Oh, que patife! rugiu o proco.
- No, no seria por mal. Mas que a rapariga tem engrossado, fato... Com esta
atarantao da doena ningum tem tido olhos para nada... Mas agora pode-se
reparar... srio, amigo, srio!

Por isso, logo na manh seguinte, Amaro foi, segundo a expresso do cnego,
"dar a grande abordagem mana".
Antes, porm, explicou embaixo no escritrio ao padre-mestre o seu plano:
primeiro, ia dizer a D. Josefa que o cnego estava na inteira ignorncia do
desastre da Ameliazinha, e que ele, Amaro, o sabia, no em segredo de confisso
(nesse caso no o poderia revelar), mas pelas confidncias secretas dos dois - de
Amlia e do homem casado que a seduzira!... Do homem casado, sim!... Porque
enfim era necessrio provar velha que havia a impossibilidade duma reparao
legtima...
O cnego coava a cabea descontente:
- Isso no vai bem arranjado, disse ele. A mana sabe bem que no iam homens
casados Rua da Misericrdia.
- E o Artur Couceiro? exclamou Amaro, sem escrpulo.
O cnego largou a rir, com gosto. O pobre Artur, sem dentes, cheio de filhos, com
os seus olhos de carneiro triste, acusado de perder virgens!... No, essa era boa!
- No pega, proco amigo, no pega! Outra, outra...
Mas ento subitamente partiu dos lbios de ambos o mesmo nome - o
Femandes, o Femandes da loja de panos! Belo homem, que Amlia admirava

muito! Sempre que saa ia-lhe loja: tinha mesmo havido indignao na Rua da
Misericrdia, havia dois anos, com a ousadia do Femandes que acompanhara
Amlia pela estrada de Marrazes at ao Morenal!
J se sabe, no se dizia explicitamente mana, - mas dava-se-lhe a entender que
fora o Femandes.
E Amaro subiu rapidamente para o quarto da velha, que era por cima do
escritrio. Esteve l meia hora, uma longa, uma pesada meia hora para o cnego,
que apenas podia ouvir em cima, ora rangeres das solas de Amaro, ora tosse
cavernosa da velha... E no seu passeio habitual pelo escritrio, da estante para a
janela, com as mos atrs das costas e a caixa do rap nos dedos, ia considerando
quantos incmodos, quantas despesas lhe traria ainda aquele "divertimento do
senhor proco"! Tinha de ter a rapariga na quinta cinco ou seis meses... Depois o
mdico, a parteira que era ele naturalmente que havia de pagar... Depois algum
enxoval para o pequeno... E que se lhe havia de fazer, ao pequeno?... Na cidade, a
Roda fora suprimida; em Ourm, como os recursos da Misericrdia eram escassos
e a afluncia dos enjeitados escandalosa, tinham posto um homem ao p da
sineta da Roda, para interrogar e pr embaraos; havia indagaes de
paternidade, restituies de crianas; e a autoridade, finria, combatia o excesso
dos enjeitamentos com o terror dos vexames...
Enfim, o pobre padre-mestre via diante de si todo um eriamento de dificuldades
para lhe sacudir a pachorra e estragar-lhe a digesto... - Mas o excelente cnego,
no fundo, no se indignava; sempre tivera uma afeio de velho mestre pelo
proco; para a Amlia sempre o inclinara um fraco meio paternal, meio lbrico; e
mesmo j sentia pelo "pequeno" uma vaga condescendncia de av.
A porta abriu-se, e o proco apareceu triunfante.
- Tudo s mil maravilhas, padre-mestre! Que lhe dizia eu?
- Consentiu?
- Em tudo. No foi sem dificuldade... Ia-se abespinhado. Falei-lhe do homem
casado... Que a

rapariga estava com a cabea perdida, queria-se matar... Que se ela no


consentisse em encobrir a coisa era responsvel por uma desgraa... Lembre-se a
senhora que est agora com os ps pra cova, que Deus pode cham-la dum
momento a outro, e que se tiver na conscincia este peso, no h padre que lhe
d a absolvio!... Lembre-se que morre para a como um co!...
- Enfim, disse o cnego aprovando, falou-lhe com prudncia...
- Disse-lhe a verdade. Agora trata-se de falar S. Joaneira, e de a levar para a
Vieira quanto antes...
- Outra coisa, amigo, interrompeu o cnego. Tem voc pensado no destino que se
h-de dar ao fruto?
O proco coou desconsoladamente a cabea:
146
- Ah, padre-mestre... Isso outra dificuldade... Tem-me apoquentado muito...
Naturalmente d-lo a criar a alguma mulher, longe, l pra Alcobaa ou para
Pombal... A felicidade, padre-mestre, era que a criana nascesse morta!
- Era um anjinho mais... rosnou o cnego sorvendo a sua pitada.

Logo nessa noite ele falou S. Joaneira da ida para a Vieira, embaixo na saleta
onde ela estava arranjando pires de marmelada que andavam a secar para a
convalescena da D. Josefa. Comeou por dizer que lhe alugara a casa do
Ferreiro...
- Mas isso um nicho! exclamou ela logo. Onde hei-de eu meter a pequena?
- Ora ai que est. que justamente a Amlia desta vez no vai Vieira.
- No vai?
Foi s ento que o cnego lhe explicou que a mana no podia ir s para a Ricoa,
que ele tinha

pensado em mandar com ela Amlia... Era uma idia que lhe viera nessa manh.
- Eu no posso ir, tenho de tomar os meus banhos, a senhora bem sabe... A
pobre de Cristo no
h-de estar para l s, com uma criada. Portanto...
A S. Joaneira teve um silenciozinho desconsolado:
- Isso verdade. Mas olhe, para lhe dizer com franqueza, custa-me bem deixar a
pequena... Se eu
pudesse dispensar os banhos, ia eu.
- Qual ia! A senhora vem para a Vieira. Eu tambm no hei-de estar l s... Sua
ingrata, sua
ingrata!... - E tomando um tom muito srio: - A senhora veja bem. A Josefa est
com os ps para a cova. Ela sabe que o que eu tenho para mim chega. Ela tem
afeio pequena, sempre madrinha; se a vir agora a trat-la na doena, a estar
ali s com ela uns meses, fica pelo beio. Olhe que a mana ainda vale um par de
mil cruzados. A pequena pode apanhar um bom dote. No lhe digo mais nada...
E a S. Joaneira concordou logo - uma vez que era vontade do senhor cnego.
Em cima, Amaro estava contando rapidamente a Amlia "o grande plano", a cena
com a velha: que ela se prontificara logo, coitadinha, j cheia de caridade,
desejando at ajudar para o enxoval do pequeno...
- Nela podes ter confiana, uma santa... De modo que est tudo salvo, filha.
estar metida quatro ou cinco meses na Ricoa.
Era isso o que fazia choramigar Amlia: perder a estao da Vieira, o
divertimento dos banhos!... Ir enterrar-se todo um Vero naquele sinistro
casaro da Ricoa! A nica vez que l fora, j ao fim da tarde, ficara estarrecida de
medo. Tudo to escuro, dum eco to cncavo... Tinha a certeza que ia l morrer,
naquele degredo.

- Tolice! fez Amaro. dar graas ao Senhor de me ter inspirado esta idia de
salvao. Demais tens a D. Josefa, tens a Gertrudes, o pomar para passear... E eu
vou-te l ver todos os dias. At hs-de gostar, vers.
- Enfim que lhe hei-de eu fazer? agentar. E com duas grossas lgrimas nas
plpebras, amaldioava intimamente aquela paixo que s amarguras lhe dava, e
que agora, quando toda a Leiria ia para a Vieira, a forava a ela a ir fechar-se na
solido da Ricoa, ouvindo tossir a velha e os ces uivar na quinta... - E a mam,
que diria a mam?
- Que h-de dizer? A D. Josefa no pode ir para a quinta s, sem uma enfermeira
de confiana! No te d cuidado. O padre-mestre est l embaixo a trabalh-la...
E eu vou ter com ela, que j aqui estou s h bocado contido, e nestes ltimos
dias necessrio ter cautelinha...
Desceu. Justamente o cnego subia, e encontraram-se na escada. - Ento?
perguntou Amaro ao ouvido do padre-mestre.
- Tudo arranjado. E por l?
- Idem.
E no escuro da escada os dois padres apertaram-se silenciosamente a mo.

Da a dias, depois duma cena de prantos, Amlia partiu com D. Josefa para a
Ricoa num char- -banc.
Tinham arranjado, com almofadas, um recanto cmodo para a convalescente. O
cnego acompanhava-a, furioso com aquele incmodo. E a Gertrudes ia em cima
na almofada, sombra da montanha que faziam sobre o tope do carro os bas de
couro, os cestos, as latas, as trouxas, os sacos de
147
chita, o aafate onde miava o gato, e um fardo amarrado com cordas contendo os
painis dos santos mais queridos de D. Josefa.

Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S. Joaneira para a Vieira, de noite, por
causa da calma. A Rua da Misericrdia estava atravancada com o carro de bois,
que conduzia as louas, os enxerges, o trem de cozinha; e no mesmo char-banc que fora Cortegassa, ia agora a S. Joaneira e a Rua, que levava tambm no
regao um aafate com o gato.
O cnego fora na vspera, s Amaro assistia partida da S. Joaneira. E depois de
toda uma azfama de galgarem cem vezes de baixo a cima as escadas por um
cestinho que esquecera ou um embrulho que desaparecia, quando a Rua enfim
fechou a porta chave, a S. Joaneira, j no estribo do char--banc, rompeu a
chorar.
- Ento, minha senhora, ento! disse Amaro.
- Ai, senhor proco, deixar a pequena!... Mal sabe o que me custa... Parece que a
no torno a ver. Aparea pela Ricoa, faa-me essa esmola. Veja se ela est
contente...
- V descansada, minha senhora.
- Adeus, senhor proco. Muito obrigada por tudo... Ai, os favores que lhe devo!
- Tolices, minha senhora... Boa jornada, d notcias! Recados ao padre-mestre.
Adeus, minha
senhora! adeus, Rua...
O char--banc partiu. E pelo mesmo caminho por onde ele ia rolando, Amaro foi
andando
devagar at estrada da Figueira. Eram ento nove horas; nascera j o luar duma
noite clida e serena de Agosto. Uma tnue nvoa luminosa suavizava a paisagem
calada. Aqui e alm uma fachada saliente de casa rebrilhava, batida da lua, entre
as sombras do arvoredo. Ao p da Ponte, parou ao olhar melancolicamente o rio
que corria sobre a areia com uma sussurrao montona; nos lugares em que as
rvores se debruavam, havia escurides cerradas; e adiante uma claridade
tremia sobre a gua, como um tecido de filigrana faiscante. Ali esteve, naquele
silncio que o calmava, fumando cigarros e atirando as pontas para o rio,

embebido numa tristeza vaga. Depois, ouvindo as onze, veio voltando para a
cidade, passou pela Rua da Misericrdia num enternecimento de recordaes: a
casa, com as janelas fechadas, sem as cortinas de cassa, parecia abandonada para
sempre; os vasos de alecrim tinham ficado esquecidos aos cantos das janelas...
Quantas vezes Amlia e ele se tinham encostado quela varanda! Havia ento um
craveiro fresco, e conversando, ela cortava uma folha, trincava-a nos dentinhos.
Tudo tinha acabado agora! - E na Misericrdia, ao lado, o piar das corujas no
silncio dava-lhe uma sensao de runa, de solido e de fim eterno.
Foi andando para casa, devagar, com os olhos arrasados de gua.
A criada veio logo escada dizer-lhe que o tio Esguelhas, numa aflio, viera
procur-lo duas vezes, haviam de ser nove horas. A Tot estava a morrer, e s
queria receber os sacramentos da mo do senhor proco.
Amaro, apesar da sua repugnncia supersticiosa em voltar assim nessa noite,
para um fim to triste, no meio das recordaes felizes da sua paixo, foi, para
obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o aquelamorte, coincidindo com a
partida de Amlia, e como completando a sbita disperso de quanto at a o
interessara ou estivera misturado sua vida.
A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e na escurido da entrada topou
com duas mulheres que saam suspirando. Foi logo direito alcova da paraltica:
duas grandes velas de cera, trazidas da igreja, ardiam sobre uma mesa: um lenol
branco cobria o corpo da Tot; e o padre Silvrio, que fora decerto chamado por
estar de semana, lia o Brevirio, com o leno nos joelhos, os seus grandes culos
na ponta do nariz. Ergueu-se apenas viu Amaro:
- Ah, colega, disse muito baixo, andaram a procur-lo por toda a parte... A pobre
de Cristo queria-o a voc... Eu, quando me foram buscar, ia fazer a partida a casa
do Novais. a partida do sbado... Que cena! Morreu na impenitncia, como era
dos livros. Quando me viu, e que voc no vinha, que espetculo! At tive medo
que me cuspisse no crucifixo...

Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta do lenol, mas deixou-o logo
recair sobre a face da morta. Depois subia acima, ao quarto onde o sineiro,
estirado sobre a cama, voltado para a parede soluava desesperadamente; estava
com ele outra mulher, que se conservava a um canto, muda, e imvel, com os
olhos no cho, no vago aborrecimento que lhe dava aquele pesado dever de
vizinha. Amaro tocou no ombro do sineiro, falou-lhe:
- necessrio resignao, tio Esguelhas... So decretos do Senhor... Para ela
at uma felicidade.
O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o proco, por entre o vu das lgrimas
que lhe alagavam os olhos, tomou-lhe a mo, quis beijar-lha. Amaro recuou:
- Ento, tio Esguelhas?... Deus h-de ser misericordioso, h-de-lhe levar em
conta a sua dor...
148
Ele no o escutava, sacudido dum pranto convulsivo, - enquanto a mulher, muito
tranqilamente, limpava ora um ora outro canto do olho.
Amaro desceu; e para aliviar o bom Silvrio daquele servio excepcional, tomou o
seu lugar ao p da vela, com o Brevirio na mo.
Ali ficou at tarde. A vizinha ao sair veio dizer-lhe que o tio Esguelhas tinha
pegado a dormir; e ela prometia voltar com a amortalhadeira, mal rompesse a
manh.
Toda a casa ento ficou naquele silncio, que a vizinhana do vasto edifcio da S
fazia parecer mais soturno; s s vezes um mocho piava debilmente nos
contrafortes, ou o grosso bordo batia os quartos. E Amaro, tomado dum
indefinido terror, mas preso ali por uma fora superior da conscincia
sobressaltada, ia precipitando as oraes... s vezes o livro caia-lhe sobre os
joelhos; e ento, imvel, sentindo por detrs a presena daquele cadver coberto
do lenol, recordava, num contraste amargo, outras horas em que o sol banhava
o ptio, as andorinhas esvoaavam, e ele e Amlia subiam rindo para aquele

quarto onde agora, sobre a mesma cama, o tio Esguelhas dormitava com soluos
mal acalmados...
XXI
O cnego Dias recomendara muito a Amaro que ao menos nas primeiras
semanas, para evitar as suspeitas da mana e da criada, no fosse Ricoa. E a
vida de Amaro tornou-se ento mais triste, mais vazia que outrora, quando pela
primeira vez deixando a casa da S. Joaneira viera para a Rua das Sousas. Todos os
seus conhecidos estavam fora de Leiria: D. Maria da Assuno na Vieira; as
Gansosinhos ao p de Alcobaa com a tia, a famosa tia que havia dez anos estava
para morrer e para lhes deixar uma grande herdade. Depois do servio da S, as
horas, todo o longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo. No estaria mais
separado de toda a comunicao humana, se como Santo Antnio vivesse nos
areais do deserto lbico. S o coadjutor que, coisa singular, nunca lhe aparecia nos
tempos felizes, voltara agora, como o companheiro fatdico das horas tristes, a
visit-lo uma, duas vezes por semana, ao fim do jantar, mais magro, mais
chupado, mais soturno, com o seu eterno guarda-chuva na mo. Amaro odiavao; s vezes, para o impor, fingia-se todo ocupado numa leitura; ou precipitandose para a mesa, mal lhe sentia nos degraus as passadas lentas:
- Amigo coadjutor, desculpe, que estou aqui a rabiscar uma coisa.
Mas o homem instalava-se, com o odioso guarda-chuva entre os joelhos:
- No se prenda, senhor proco, no se prenda.
E Amaro, torturado por aquela figura lgubre que no se mexia na cadeira,
atirava a pena,
furioso, agarrava o chapu:
- No estou hoje para a coisa, vou espairecer.
E primeira esquina descartava-se bruscamente do coadjutor.
s vezes, farto da solido, ia visitar o Silvrio. Mas a felicidade pachorrenta
daquele ser obeso,
ocupado em colecionar receitas de medicina caseira e em observar as
perturbaes fantsticas da sua digesto; os seus constantes louvores do doutor

Godinho, dos pequenos e da senhora; as chalaas obsoletas que ele repetia havia
quarenta anos e a inocente hilaridade, que elas lhe davam, impacientavam
Amaro. Saa, enervado, pensando na sorte inimiga que o fizera to diferente do
Silvrio. Aquilo era a felicidade por fim: por que no havia de ele ser tambm um
bom padre caturra, com uma pequenina mania tirnica, parasita regalado duma
famlia respeitvel, tendo um destes sangues tranqilos que giram sob camadas
de gordura, sem perigo de transbordar e de causar desgraas, como um riacho
que corre por baixo duma montanha?...
Outras vezes ia ao colega Natrio, cuja fratura, mal tratada ao princpio, o retinha
ainda na cama com o aparelho na perna. Mas a, enjoava-o o aspecto do quarto impregnado dum cheiro de arnica e de suor, com uma profuso de trapos
ensopados em malgas vidradas, e esquadres de garrafas sobre a cmoda entre
fileiras de santos. Natrio, mal o via aparecer, rompia em queixas: as
cavalgaduras dos mdicos! A sua m sorte habitual! As torturas a que o foravam!
O atraso em que estava a medicina neste maldito pas!... E ia salpicando o soalho
negro de expectoraes e de pontas de cigarro. Desde que estava doente, a sade
dos outros, sobretudo dos amigos, indignava-o como uma ofensa pessoal.
- E voc sempre rijo, hem? Pudera! - murmurava com rancor.
E pensar que aquela besta do Brito nunca lhe doera a cabea! E que o alarve do
abade se gabava de nunca ter estado na cama depois das sete da manh! Animais!
Amaro ento dava-lhe as novidades: alguma carta que recebera do cnego, da
Vieira, as melhoras da D. Josefa...
149
Mas Natrio no se interessava pelas pessoas a quem apenas o unia a convivncia
e a amizade; interessavam-no s os seus inimigos, com quem tinha ligaes de
dio. Queria saber do escrevente, se j tinha estourado de fome...
- Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cair aqui nesta maldita cama!...

As sobrinhas apareciam ento - duas criaturinhas sardentas, de olhos muito


pisados. O seu grande desgosto era que o titi no mandasse vir a benzedeira prlhe virtude na perna: era o que tinha curado o morgadinho da Barrosa, e o
Pimentel de Ourm...
Natrio, na presena das duas rosas do seu canteiro, calmava-se.
- Coitaditas, no por falta de cuidados delas que eu ainda no arribei... Mas
tenho sofrido, caramba!
E as duas rosas, com o mesmo movimento simultneo, voltavam-se para o lado
limpando os olhos aos lenos.
Amaro saa dali, mais enfastiado.
Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela estrada de Lisboa. Mas apenas
se afastava do movimento da cidade, a sua tristeza tornava-se mais intensa,
concordando com aquela paisagem de colinas tristes e rvores enfezadas: e a sua
vida aparecia-lhe como essa mesma estrada montona e longa, sem um
incidente que a alegrasse, estirando-se desoladamente at se perder nas brumas
do crepsculo. s vezes, ao voltar, entrava no cemitrio, ia passeando entre os
renques de ciprestes, sentindo quela hora do fim da tarde a emanao adocicada
das moutas de goivos; lia os epitfios; encostava-se grade dourada do jazigo da
famlia Gouveia, contemplando os emblemas em relevo, um chapu armado e
um espadm, seguindo as negras letras da famosa ode que lhe adorna a lpide:
Caminhante, detm-te a contemplar Estes restos mortais;
E, se sentires a mgoa a trasbordar, Detm teus ais.
Que Joo Cabral da Silva Maldonado
Mendona de Gouveia,
Moo fidalgo, bacharel formado, Filho da ilustre Ceia,
Ex-administrador deste concelho. Comendador de Cristo,
Foi de virtudes singular espelho. Caminhante, cr nisto.

Depois era o rico mausolu do Morais, onde sua esposa que, agora, rica e
quarentona, vivia em concubinagem com o belo capito Trigueiros, fizera gravar
uma piedosa quadra:
Entre os anjos espera, esposo,
A metade do teu corao
Que no mundo ficou, to sozinha, Toda entregue ao dever da orao...
Algumas vezes, ao fundo do cemitrio, junto ao muro, via um homem ajoelhado
ao p duma cruz negra, que um choro assombreava, ao lado da vala dos pobres.
Era o tio Esguelhas, com a sua muleta no cho, rezando sobre a sepultura da Tot.
Ia falar-lhe, e mesmo, numa igualdade que aquele lugar justificava, passeavam
familiarmente, ombro a ombro, conversando. Amaro, com bondade, consolava o
velho: de que servia desgraada rapariga a vida para a passar estirada numa
cama?
- Sempre era viver, senhor proco... E eu, veja agora isto, sozinho de dia e de
noite! - Todos tm as suas solides, tio Esguelhas, dizia melancolicamente
Amaro.
O sineiro ento suspirava, perguntava pela Sr. D. Josefa, pela menina Amlia...
- L est na quinta.
- Coitadita, no est m estopada...
- Cruzes da vida, tio Esguelhas.
E continuavam calados por entre as ruas de buxo que fecham os canteiros cheios
de
negrejamento das cruzes e da brancura das lpides novas. Amaro, s vezes,
reconhecia alguma sepultura que ele mesmo tinha aspergido e consagrado: onde
estariam aquelas almas que ele recomendara a Deus em latim, distrado,
engorolando pressa as oraes para ir ter com Amlia? Eram jazigos de gente da
150

cidade; ele conhecia de vista as pessoas da famlia; vira-as ento lavadas em


lgrimas, e agora passeavam em rancho pela alameda ou chalaceavam ao balco
das lojas...
Voltava para casa mais triste, - e a sua longa noite comeava, infindvel. Tentava
ler; mas ao fim das dez primeiras linhas bocejava de tdio e de fadiga. s vezes
escrevia ao cnego. s nove horas, tomava ch; e depois era um passear sem fim
pelo quarto fumando maos de cigarros, parando janela a olhar a negrura da
noite, lendo aqui e alm uma notcia ou um anncio do Popular, e recomeando a
passear com bocejos to cavos que a criada os ouvia na cozinha.
Para entreter as noites melanclicas, e por um excesso de sensibilidade ociosa,
tentara fazer versos, pondo o seu amor e a histria dos dias felizes nas frmulas
conhecidas da saudade lrica:
Lembras-te desse tempo de delcias, anjo feiticeiro, Amlia amada, Quando
tudo era risos e ventura
E a vida nos corria sossegada?
Lembras-te dessa noite de poesia Em que a Lua brilhava pelos cus
E ns unindo as almas, Amlia, Erguemos nossa prece para Deus?...
Mas a despeito de todos os esforos nunca passara destas duas quadras - apesar
de as ter produzido com uma facilidade prometedora - como se o seu ser
contivesse apenas estas duas gotas isoladas de poesia, e, soltas elas primeira
presso, nada mais restasse seno a seca prosa do temperamento carnal.
E esta existncia vazia relaxara-lhe to sutilmente todo o maquinismo da
vontade e da ao, que qualquer trabalho que lhe pudesse encher a fastidiosa
concavidade das horas infindveis, era-lhe odioso como o peso dum fardo
injusto. Preferia ainda os tdios da ociosidade aos tdios da ocupao. A no
serem os deveres estritos que ele no podia desleixar sem escndalo e sem
censura - desembaraara-se, pouco a pouco, de todas as prticas do zelo interior:
nem a orao mental, nem as visitas regulares ao Santssimo, nem as meditaes
espirituais, nem o rosrio Virgem, nem a leitura noite do Brevirio, nem o

exame de conscincia - todas estas obras da devoo, estes meios secretos de


santificao progressiva substitua-os pelos infindveis passeios pelo quarto, do
lavatrio janela, e por maos de cigarros fumados at ao negro dos dedos. A
missa, pela manh, era rapidamente engorolada; o servio da parquia feito com
surdas revoltas de impacincia; tomara-se consumadamente o Indignus sacerdos
dos ritualistas; e tinha na sua ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete
meios defeitos que os telogos atribuem ao mau padre.
S lhe restava, atravs da sua sentimentalidade, um apetite tremendo. E como a
cozinheira era excelente, e a Sra. D. Maria da Assuno, antes da sua partida para
a Vieira, lhe deixara um fornecimento de cento e cinqenta missas a cruzado banqueteava-se, tratando-se a galinha e a gelia, regando-se dum vinho picante
da Bairrada que o padre-mestre lhe escolhera. E ali ficava mesa, horas
esquecidas, de pema esticada, fumando sobre o caf, e lamentando no ter mo
a sua Ameliazita...
- Que far ela por l, a pobre Ameliazita? pensava, espreguiando- se com tdio e
com langor.

A pobre Ameliazita, na Ricoa amaldioava a sua vida.


Logo durante a jornada no char--banc D. Josefa lhe fizera tacitamente sentir
que dela no tinha a esperar nem a antiga amizade, nem o perdo do escndalo...
E assim foi, quando se instalaram. A velha tomou- se intratvel; era todo um
modo cruel de abandonar o tu, de a tratar por menina; uma recusa rspida se
Amlia lhe queria arranjar a almofada ou aconcheg-la no xale; um silncio
repreensivo quando ela lhe passava o sero no quarto, costurando; e a todo o
momento aluses suspiradas ao triste encargo que Deus lhe mandava no fim dos
seus dias...
Amlia, consigo, acusava o proco: ele prometera-lhe que a madrinha seria toda
caridade, toda cumplicidade; e entregava-a por fim a uma semelhante ferocidade
de velha virgem devota!...

Quando se viu naquele casaro da Ricoa, num quarto regelado, pintado a cor de
canrio, lugubremente mobiliado, com uma cama de dossel e duas cadeiras de
couro, chorou toda a noite com a cabea enterrada no travesseiro - torturada por
um co que debaixo das janelas, estranhando sem dvida as luzes e o movimento
na casa, uivou at de madrugada.
151
Ao outro dia desceu quinta a ver os caseiros. Era talvez boa gente com quem
podia distrair-se. Encontrou uma mulher, alta e lgubre como um cipreste,
carregada de luto: um grande leno negro tingido, muito puxado para a testa,
dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma tristeza de dobre
a finados. O homem pareceu-lhe ainda pior, semelhante a um orangotango, com
duas orelhas enormes muito despegadas do crnio, uma salincia bestial do
queixo, as gengivas deslavadas, um corpo desengonado de tsico, de peito
metido para dentro. Abalou bem depressa, foi ver o pomar: andava maltratado;
as ruazitas estavam invadidas por um ervaal mido; e a sombra das rvores
muito juntas, num terreno baixo, cercado de altos muros, dava uma sensao
doentia.
Era ainda prefervel passar os seus dias metida no casaro; dias infindveis em
que as horas se iam movendo com o vagar fastidioso dum desfilar funerrio.
O seu quarto era na frente; e pelas duas janelas recebia a impresso triste da
paisagem que se estendia defronte; uma ondulao montona de terras estreis
com alguma magra rvore aqui e alm, um ar abafado em que parecia errar
constantemente a exalao de pauis prximos e de baixas midas, e a que nem o
sol de Setembro dissipava o tom sezontico.
Logo pela manh ia ajudar a levantar D. Josefa, acomod-la no canap; depois
vinha costurar para ao p dela - como outrora na Rua da Misericrdia para ao p
da me; mas agora em lugar das boas "cavaqueiras" tinha s o silncio intratvel
da velha e a sua ronqueira incessante. Pensara em fazer vir o seu piano da cidade;
mas, apenas em tal falou, a velha exclamou com azedume:

- A menina est doida... No tenho sade para tocatas! Ora o despropsito!


A Gertrudes tambm no lhe fazia companhia; nas horas em que no estava ao p
da velha, ou na cozinha, desaparecia; era justamente daquela freguesia, e passava
o seu tempo pelos casais, palrando com as antigas vizinhas. .
A pior hora era ao anoitecer. Depois de rezar o seu rosrio, ficava junto janela
olhando estupidamente as gradaes da luz poente; todos os campos pouco a
pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um silncio parecia descer, pousar sobre
a Terra; depois uma primeira estrelinha treme. luzia e brilhava: e diante dela era
ento s uma massa inerte de sombra muda at ao horizonte, aonde ainda ficava
um momento uma delgada tira cor de laranja desbotada. O seu pensamento, sem
nenhum tom de luz ou contorno de objeto em redor que o prendesse, ia muito
saudoso para longe, para a Vieira; quela hora a me e as amigas recolhiam do
passeio na praia; j todas as redes estavam apanhadas; j pelos palheiros
comeam a aparecer as luzes; a hora do ch, dos quinos alegres, quando os
rapazes da cidade vo em rancho pelas casas amigas, com uma viola e uma flauta,
improvisando soires. E ela ali, s!...
Era ento necessrio deitar a velha, rezar com ela e com a Gertrudes o tero.
Acendiam depois o candeeiro de lato, pondo-lhe diante uma velha chapeleira
para dar sombra ao rosto da doente; e todo o sero, no silncio lgubre, apenas se
ouvia o rumor do fuso da Gertrudes que fiava agachada a um canto.
Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas, num medo constante de
ladres; e ento comeava para Amlia a hora dos terrores supersticiosos. No
podia adormecer, sentindo ao p a negrura daquelas antigassalas desabitadas e
em redor o tenebroso silncio dos campos. Ouvia rudos inexplicveis: era o
soalho do corredor que estalava, sob passadas multiplicadas; era a luz da vela que
de repente se dobrava como sob um hlito invisvel: ou a distncia, para os lados
da cozinha, o baque surdo dum corpo. Acumulava ento as oraes, encolhida
debaixo da roupa; mas, se adormecia, as vises do pesadelo continuavam-lhe os
terrores da viglia. Uma vez acordara de repente, a uma voz que dizia, gemendo,
por trs da alta barra da cama: - Amlia, prepara-te, o teu fim chegou!

Espavorida, em camisa, atravessou correndo a casa, foi refugiar-se na cama da


Gertrudes.
Mas na noite seguinte a voz sepulcral voltou quando ela ia adormecer: Amlia,
lembra-te dos teus pecados! Prepara-te, Amlia! Deu um grito, desmaiou.
Felizmente a Gertrudes, que ainda se no deitara, correu quele ai agudo que
cortara o silncio do casaro. Achou-a estirada ao travs do leito, com os cabelos
soltos da rede rojando no cho, as mos geladas e como mortas. Desceu a acordar
a mulher do caseiro, e at de madrugada foi uma azfama para a chamar vida.
Desde esse dia a Gertrudes dormia ao p dela - e a voz no tornou a amea-la
por trs da barra.
Mas, de noite e de dia, no a deixou mais a idia da morte e o pavor do Inferno.
Por esse tempo, um vendedor ambulante de estampas passou pela Ricoa; e a
Sra. D. Josefa comprou-lhe duas litografias - a Morte do Justo e a Morte do
Pecador.
- Que bom que cada um tenha o exemplo vivo diante dos olhos, disse ela.
Amlia no duvidou ao princpio que a velha, que contava morrer no mesmo
aparato de glria com que expirava o Justo da estampa, lhe quisera mostrar a ela,
a pecadora, a cena pavorosa que a esperava. Odiou-a por aquela "picardia". Mas a
sua imaginao aterrada no tardou a dar compra da estampa outra explicao:
era Nossa Senhora que ali mandara o vendedor de pinturas, para lhe mostrar ao
vivo na litografia da Morte do Pecador o espetculo da sua agonia: e estava ento
certa que tudo seria assim, trao por trao - o seu anjo da guarda fugindo aos
soluos; Deus Padre desviando o rosto dela
152
com repugnncia; o esqueleto da morte rindo s gargalhadas; e demnios de
cores rutilantes, com todo um arsenal de torturas, apoderando-se dela, uns pelas
pernas, outros pelos cabelos, arrastando-a com uivos de jbilo para a caverna
chamejante toda abalada da tormenta de rugidos que solta a Eterna Dor... E ela
podia ver ainda, no fundo dos Cus, a grande balana - com um dos pratos muito

alto onde as suas oraes no pesavam mais que uma pena de canrio, e o outro
prato cado, de cordas retesadas, sustentando a enxerga da cama do sineiro e as
suas toneladas de pecado.
Caiu ento numa melancolia histrica que a envelhecia; passava os dias suja e
desarranjada, no querendo dar cuidados ao seu corpo pecador; todo o
movimento, todo o esforo lhe repugnava; as mesmas oraes lhe custavam,
como se as julgasse inteis; e tinha atirado para o fundo duma arca o enxoval que
andava a costurar para o filho - porque o odiava, aquele ser que ela sentia mexerse-lhe j nas entranhas e que era a causa da sua perdio. Odiava-o - mas menos
que o outro, o proco que lho fizera, o padre malvado que a tentara, a estragara, a
atirara s chamas do Inferno! Que desespero quando pensava nele! Estava em
Leiria sossegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez - e
ela ali sozinha, com o ventre condenado e enfartado do pecado que ele l
depusera, ia-se afundindo na perdio sempiterna!
Decerto esta excitao a teria matado - se no fosse o abade Ferro que comeara
ento a vir ver muito regularmente a irm do amigo cnego.
Amlia ouvira falar muitas vezes nele na Rua da Misericrdia; dizia- se l que o
Ferro tinha "idias esquisitas"; mas no era possvel recusar-lhe nem a virtude
da vida nem a cincia de sacerdote. Havia muitos anos que era ali abade; os
bispos tinham-se sucedido na diocese, e ele ali ficara esquecido naquela
freguesia pobre, de cngrua atrasada, numa residncia onde chovia pelos
telhados. O ltimo vigrio-geral, que nunca dera um passo para o favorecer,
dizia-lhe todavia, liberal de palavreado:
- Voc um dos bons telogos do reino. Voc est predestinado por Deus para
um bispado. Voc ainda apanha a mitra. Voc h-de ficar na histria da Igreja
portuguesa como um grande bispo, Ferro!
- Bispo, senhor vigrio-geral! Isso era bom! Mas era necessrio que eu tivesse o
arrojo dum Afonso de Albuquerque ou dum D. Joo de Castro, para aceitar aos
olhos de Deus semelhante responsabilidade!

E ali ficara, entre gente pobre, numa aldeia de terra escassa, vivendo de dois
pedaos de po e uma chvena de leite, com uma batina limpa onde os remendos
faziam um mapa, precipitando-se a uma meia lgua por um temporal desfeito se
um paroquiano tinha uma dor de dentes, passando uma hora a consolar uma
velha z quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com
um cruzado no fundo do bolso dos cales para uma necessidade do seu vizinho,
grande amigo de todos os rapazitos a quem fazia botes de cortia, e no
duvidando parar, se encontrava uma rapariga bonita, o que era raro na freguesia,
e exclamar: "Linda moa, Deus a abenoe! "
E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era to clebre, que lhe
chamavam "a donzela".
De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas de estao aos ps do
Santssimo Sacramento; cumprindo com uma felicidade fervente as menores
prticas da vida devota; purificando-se para os trabalhos do dia com uma
profunda orao mental, uma meditao de f, de onde a sua alma saa gil, como
dum banho fortificante; preparando-se para o sono com um destes longos e
piedosos exames de conscincia, to teis, que Santo Agostinho e S. Bernardo
faziam do mesmo modo que Plutarco e Sneca, e que so a correo laboriosa e
sutil dos pequenos defeitos, o aperfeioamento meticuloso da virtude ativa,
empreendido com um fervor de poeta que rev um poema querido... E todo o
tempo que tinha vago abismava-se num caos de livros.
Tinha s um defeito o abade Ferro: gostava de caar! Coibia-se, porque a caa
tira muito tempo, e sanginrio matar uma pobre ave que anda azafamada
pelos campos nos seus negcios domsticos. Mas nas claras manhs de Inverno,
quando ainda h orvalho nas giestas, se via passar um homem de espingarda ao
ombro, o passo vivo, seguido do seu perdigueiro - iam-se-lhe os olhos nele... s
vezes, porm, a tentao vencia; agarrava furtivamente a espingarda, assobiava
Janota, e com as abas do casaco ao vento, l ia o telogo ilustre, o espelho da
piedade, atravs de campos e vales... E da a pouco - pum... pum! Uma codorniz,
uma perdiz em terra! E l voltava o santo homem com a espingarda debaixo do
brao, os dois pssaros na algibeira, cosendo-se com os muros, rezando o seu

rosrio Virgem, e respondendo aos bons-dias da gente pelo caminho com os


olhos baixos e o ar muito criminoso. O abade Ferro, apesar do seu aspecto
"gebo" e do seu grande nariz, agradou a Amlia, logo desde a primeira visita
Ricoa; e a sua simpatia cresceu, quando viu que D. Josefa o recebia com pouco
alvoroo, apesar do respeito que o mano cnego tinha pela cincia do abade.
A velha, com efeito, depois de ter estado s com ele numa prtica de horas,
condenara-o com uma nica palavra, na sua autoridade de velha devota
experiente:
- relaxado!
153
No se tinham realmente compreendido. O bom Ferro, tendo vivido tantos anos
naquela parquia de quinhentas almas, as quais caam todas, de mes e filhas, no
mesmo molde de devoo simples a Nosso Senhor, Nossa Senhora e S. Vicente,
patrono da freguesia, tendo pouca experincia de confisso, encontrava-se,
subitamente, diante duma alma complicada de devota da cidade, dum beatrio
caturra e atormentado; e ao ouvir aquela extraordinria lista de pecados mortais,
murmurava espantado:
- estranho, estranho...
Percebera bem ao princpio que tinha diante de si uma dessas degeneraes
mrbidas do sentimento religioso, que a teologia chama Doena dos escrpulos e de que na sua generalidade esto afetadas hoje todas as almas catlicas; mas
depois, a certas revelaes da velha, receou estar realmente em presena duma
manaca perigosa; e instintivamente, com o singular horror que os sacerdotes
tm pelos doidos, recuou a cadeira.
Pobre D. Josefa! Logo na primeira noite em que chegara Ricoa (contava ela), ao
comear o rosrio a Nossa Senhora, lembra-lhe de repente que lhe esquecera o
saiote de flanela escarlate, que era to eficaz nas dores das pemas... Trinta e oito
vezes de seguida recomeara o rosrio, e sempre o saiote escarlate se interpunha

entre ela e Nossa Senhora!... Ento desistira, de exausta, de esfalfada. E


imediatamente sentira dores vivas nas pernas, e tivera como uma voz de dentro
a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingana a espetar-lhe alfinetes nas
pemas...
O abade pulou:
- Oh minha senhora!...
- Ai, no tudo, senhor abade!
Havia outro pecado que a torturava: quando rezava, s vezes, sentia vir
expectorao; e, tendo
ainda o nome de Deus ou da Virgem na boca, tinha de escarrar; ultimamente
engolia o escarro, mas estivera pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe
descia de embrulhada para o estmago e se ia misturar com. as fezes! Que havia
de fazer?
O abade, de olhar esgazeado, limpava o suor da testa.
Mas isto no era o pior: o grave era, que na noite antecedente, estava toda
sossegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier - e de repente, nem ela
soube como, ps-se a pensar como seria S. Francisco Xavier nu em plo!
O bom Ferro no se moveu, atordoado. Enfim, vendo-a olhar ansiosa para ele
espera das suas palavras e dos seus conselhos, disse:
- E h muito que sente esses terrores, essas dvidas...?
- Sempre, senhor abade, sempre!
- E tem convivido com pessoas que, como a senhora, so sujeitas a essas
inquietaes?
- Todas as pessoas que conheo, dzias de amigas, todo o mundo... O inimigo
no me escolheu
s a mim... A todos se atira...
- E que remdio dava a essas ansiedades de alma...?

- Ai, senhor abade, aqueles santos da cidade, o senhor proco, o Sr. Silvrio, o Sr.
Guedes, todos,
todos nos tiravam sempre de embaraos... E com uma habilidade, com uma
virtude...
O abade Ferro ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando que por
todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente o
rebanho naquelas trevas de alma, mantendo o mundo dos fiis num terror abjeto
do Cu, representando Deus e os seus santos como uma corte que no
menos corrompida, nem melhor, que a de Calgula e dos seus libertos.
Quis ento levar quele noturno crebro de devota, povoado de fantasmagorias,
uma luz mais
alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas inquietaes vinham da imaginao
torturada pelo terror de ofender a Deus... Que o Senhor no era um amo feroz e
furioso, mas um pai indulgente e amigo... Que por amor que necessrio servilo, no por medo... Que todos esses escrpulos, Nossa Senhora a enterrar
alfinetes, o nome de Deus a cair no estmago, eram perturbaes da razo
doente. Aconselhou-lhe confiana em Deus, bom regime para ganhar foras. Que
no se cansasse em oraes exageradas...
- E quando eu voltar, disse enfim erguendo-se e despedindo-se, continuaremos
a conversar sobre isto, e havemos de serenar essa alma.
- Obrigada, senhor abade, respondeu a velha secamente.
E apenas a Gertrudes da a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os ps, D.
Josefa exclamou, toda indignada, quase choramigando:
- Ai, no presta para nada, no presta para nada!... No me percebeu... um
tapado... um pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha num sacerdote do
Senhor...
Desde esse dia no tornou a revelar ao abade os pecados medonhos que
continuava a cometer; e quando ele, por dever, quis recomear a educao da sua

alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se confessava com o Sr, padre
Gusmo, no sabia se seria delicado receber de outro a direo moral...
154
O abade fez-se vermelho, respondeu:
- Tem razo, minha senhora, tem razo, deve-se ter muita delicadeza nessas
coisas...
Saiu. E da por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe da sade, de
ter falado do tempo, da estao, das doenas que iam, de alguma festa na igreja, apressava-se em se despedir e ir para o terrao conversar com Amlia.
Vendo-a sempre to tristonha, interessara-se por ela; para Amlia, as visitas do
abade eram uma distrao, naquela solido da Ricoa; e assim se iam
familiarizando, a ponto que nos dias em que ele regularmente vinha, Amlia
punha um mantelete e ia pelo caminho dos Poiais esper-lo at junto da casa do
ferrador. As conversas do abade, falador incansvel, entretinham-na, to
diferentes dos mexericos da Rua da Misericrdia, - como o espetculo dum largo
vale com rvores, plantaes, guas, pomares e rumor de lavouras, recreia os
olhos habituados s quatro paredes caiadas duma trapeira da cidade. Tinha com
efeito uma destas conversaes semelhantes aos jornais semanais de recreio, o
TESOURO DAS FAMLIAS ou as LEITURAS PARA SERES, em que h de tudo doutrina moral, histrias de viagens, anedotas de grandes homens, dissertaes
sobre a lavoura, citao duma boa chalaa, traos sublimes da vida dum santo,
um verso aqui e alm, e at receitas, como uma muito til que deu a Amlia para
lavar as flanelas sem encolherem. S era montono quando falava da sua famlia
paroquiana, dos casamentos, batizados, doenas, questes, ou quando comeava
as suas histrias de caa.
- Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Crrego das Tristes, quando uma
revoada de perdizes...
Amlia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam faanhas da Janota,
pontarias fabulosas contadas em mmica, com imitaes de vozes de pssaros, e

pum, pum de fuzilaria. Ou ento era descries das caadas selvagens que ele lera
com gula - a caa ao tigre do Nepal, ao leo da Arglia e ao elefante, histrias
ferozes que arrastavam a imaginao da rapariga para longe, para os pases
exticos onde a erva alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em
brasa, e entre cada ramagem reluzem os olhos duma fera... E depois, a propsito
de tigres e de malaios, lembrava- lhe um histria curiosa de S. Francisco Xavier,
e ei-lo lanado, o terrvel palrador, na descrio dos feitos da sia, das armadas
da ndia e das estocadas famosas do cerco de Dio!
Foi mesmo um desses dias, no pomar, em que o abade, tendo comeado por
enumerar as vantagens que o cnego tiraria de transformar o pomar em terra de
lavoura, acabara por contar perigos e valores dos missionrios da ndia e do Japo
- que Amlia, ento em toda a intensidade dos seus terrores noturnos, falou dos
rudos que ouvia na casa e dos sobressaltos que lhe davam.
- Oh, que vergonha! disse o abade rindo; uma senhora da sua idade ter medo de
papes...
Ela ento, atrada por aquela bondade do senhor abade, contou-lhe as vozes que
ouvia de noite por detrs da barra da cama.
O abade ps-se srio:
- Minha senhora, isso so imaginaes que deve a todo o custo dominar...
Decerto tem havido prodgios no mundo, mas Deus no se pe assim a falar a
qualquer, por detrs das barras das camas, nem permite ao demnio que o faa...
Essas vozes, se as ouve, e se os seus pecados so grandes, no vm de detrs da
cama, vm-lhe de si mesma, da sua conscincia... E pode ento fazer dormir ao
p de si a Gertrudes, e sem Gertrudes, e todo o batalho de infantaria, que as hde continuar a ouvir... Havia de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que
necessrio calmar a conscincia que reclama penitncia e purificao...
Tinham subido ao terrao, falando assim: e Amlia sentara-se fatigada num dos
bancos de pedra que ali havia, e ficara a olhar a quinta ao longe, os tetos dos
currais, a longa rua de loureiros, a eira, e a distncia os campos que se sucediam
planos e avivados do tom mido que lhes dera a chuva ligeira da manh: agora a

tarde estava de uma placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que
o sol do poente tocava de vivos cor-de-rosa tenro... Pensava naquelas palavras
to sensatas do abade, no descanso que gozaria se cada pecado que lhe pesava na
alma como um penedo se tomasse ligeiro e se dissipasse sob a ao da penitncia.
E vinham-lhe desejos de paz, dum repouso igual quietao dos campos que se
estendiam diante dela.
Um pssaro cantou, depois calou-se; e recomeou dai a um momento com um
trinado to vibrante, to alegre, que Amlia sorria, escutando-o.
- um rouxinol...
- Os rouxinis no cantam a esta hora, disse o abade. um melro... A est um
que no tem medo de fantasmas, nem ouve vozes... Olhe que entusiasmo, o
magano!
Era com efeito um gorjear triunfante, um delrio de melro feliz, que dera de
repente a todo o pomar uma sonoridade festiva.
E Amlia, diante daquele chilrear glorioso dum pssaro contente, subitamente,
sem razo, num destes abalos nervosos que vm s mulheres histricas, rompeu
a chorar.
155
- Ento, que isso, que isso? fez o abade muito surpreendido.
Tomou-lhe a mo, com uma familiaridade de velho e de amigo, calmando-a.
- Que infeliz que sou!.., murmurou ela aos soluos.
Ele ento muito paternal:
- No tem razo para o ser... Sejam quais forem as aflies, as inquietaes, uma
alma crist tem
sempre a consolao mo... No h pecado que Deus no perdoe, nem dor que
no calme, lembre-se disso... O que no deve guardar em si o seu desgosto...
isso que sufoca, que a faz chorar... Se eu lhe posso valer, sosseg-la, procurarme...

- Quando? disse ela toda desejosa j de se refugiar na proteo daquele santo


homem.
- Quando quiser, disse ele rindo. Eu no tenho horas para consolar... A igreja est
sempre aberta, Deus est sempre presente...
Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha se erguia, Amlia foi
residncia; e durante duas horas esteve prostrada diante do pequeno
confessionrio de pinho - que o bom abade por suas mos pintara de azulescuro, com extraordinrias cabecinhas de anjos que em lugar de orelhas tinham
asas, uma obra de alta arte de que ele falava com uma secreta vaidade.
XXII
O padre Amaro acabara de jantar, e fumava, com os olhos no teto, para no ver o
caro chupado do coadjutor que havia meia hora ali estava, imvel e espectral,
fazendo cada dez minutos uma pergunta que caa no silncio da sala como os
quartos melanclicos que d de noite um relgio de catedral.
- O senhor proco j no assinante da Nao?
- No. senhor, leio o Popular.
O coadjutor recaiu num silncio, comeando logo a coligir laboriosamente as
palavras para uma
nova pergunta. Soltou-a enfim, com lentido:
- No se tornou a saber daquele infame que escreveu o Comunicado?
- No senhor, foi para o Brasil.
A criada entrou, neste momento, dizendo que "estava ali uma pessoa que queria
falar ao senhor
proco". Era a sua maneira de anunciar a presena de Dionsia na cozinha.
Havia semanas que ela no aparecia - e Amaro, curioso, saiu logo da sala
fechando a porta sobre
si, e chamou a matrona ao patamar.
- Grande novidade, senhor proco! E vim a correr, que srio. Est c o Joo

Eduardo!
- Ora essa! exclamou o proco. E eu justamente a falar dele! extraordinrio.
Olha que
coincidncia...
- verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E j estou informada de tudo. O homem
est mestre dos
filhos do Morgadinho.
- Que Morgadinho?
- O Morgadinho dos Poiais... Se vive l, ou se vai pela manh e vem noite, isso
no sei. O que sei que voltou... E janota, fato novo...
Eu entendi que devia avisar, porque pode estar certo que ele, mais dia menos dia,
d pela Ameliazinha l na Ricoa... no caminho para casa do Morgado... Que lhe
parece?...
- Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando no serve que aparece. Ento
por fim no foi para o Brasil?
- Pelos modos, no... Que a sombra dele no era, era ele mesmo em carne e
osso... A sair da loja do Fernandes por sinal, e todo peralta... Sempre bom
avisar a rapariga, senhor proco, que se no v ela plantar de janela...
Amaro deu-lhe as duas placas que ela esperava - e da a um quarto de hora,
desembaraado do coadjutor, ia no caminho da Ricoa.

Batia-lhe forte o corao quando avistou o casaro amarelo, pintado de novo, o


largo terrao lateral em linha com o muro do pomar, ornado de espao a espao
no parapeito de vasos nobres de pedra. Ia enfim, depois de to longas semanas,
ver a sua Ameliazinha! E j se alvoroava idia das exclamaes apaixonadas
com que ela lhe cairia nos braos.
156

Ao rs-do-cho eram as cavalarias, do tempo da famlia morgada que outrora ali


habitara, agora abandonadas s ratazanas e aos tortulhos, recebendo a luz por
estreitas janelas gradeadas que quase desapareciam sob camadas de teias de
aranha; entrava-se por um imenso ptio escuro, onde havia longos anos se
acastelava a um canto toda uma montanha de pipas vazias; e o lance de escadaria
nobre, que levava aos aposentos, era direita, flanqueado de dois leezinhos de
pedra, benignos e sonolentos. Amaro subiu at um salo de teto de carvalho
apainelado, sem moblia, com a metade do soalho coberta de feijo seco.
E, embaraado, bateu as palmas.
Uma porta abriu-se. Amlia apareceu um instante, toda despenteada e em saia
branca; deu um gritinho, bateu com a porta - e o proco sentiu-a fugir para o
interior do casaro. Ficou muito desconsolado no meio do salo, com o seu
guarda-sol debaixo do brao, pensando na boa familiaridade com que entrava na
Rua da Misericrdia - que at pareciam as portas abrir-se de si mesmo e o papel
das paredes clarear-se de alegria.
Ia bater as palmas outra vez, j quezilado, quando a Gertrudes apareceu.
- Oh, senhor proco! Entre, senhor proco! Ora at que enfim! Minha senhora,
o senhor proco! - gritava, na alegria de ver enfim uma visita querida, um amigo
da cidade, naquele desterro da Ricoa.
Levou-o logo para o quarto de D. Josefa, ao fundo da casa, um quarto enorme,
onde, num pequeno canap perdido a um canto, a velha passava os dias
encolhida no seu xale, com os ps embrulhados num cobertor.
- Oh, D. Josefa! Como est? Como est?
Ela no pde responder, tomada dum acesso de tosse que lhe dera a comoo da
visita.
- Como v, senhor proco, murmurou enfim muito fraco. Para aqui vou,
arrastando esta velhice.

E vossa senhoria? Por que no tem aparecido?


Amaro desculpou-se vagamente com os afazeres da S. E compreendia agora, ao
ver aquela face
amarela e cavada, com uma medonha touca de rendas negras, que tristes horas
Amlia ali devia passar. Perguntou por ela; avistara-a de longe, mas ela deitara a
fugir...
- que no estava decente para aparecer, disse a velha. Hoje foi dia da barrela.
Amaro quis ento saber em que se entretinham, como passavam os dias naquela
solido...
- Eu para aqui estou. A pequena para a anda.
Depois de cada palavra, parecia abater-se numa fadiga e a sua ronqueira crescia.
- Ento no se tem dado bem com a mudana, minha senhora?
Ela disse que no, num movimento de cabea.
- Deixe falar, senhor proco, acudiu a Gertrudes que ficara de p, ao lado do
canap, gozando a
presena do senhor proco. - Deixe falar... que a senhora exagera tambm...
Levanta-se todos os dias, d o seu passeinho at sala, come a sua asita de
frango... Temo-la aqui, temo-la arribada... o que diz o Sr. abade Ferro, a sade
foge a toda a brida e para voltar vem a passo.
A porta abriu-se. Amlia apareceu, muito escarlate, com o seu antigo robe-dechambre de merino roxo, o cabelo arranjado pressa.
- Desculpe, senhor proco, balbuciou, mas hoje tem sido um dia de balbrdia...
Ele apertou-lhe a mo gravemente; e ficaram calados, como se estivessem
separados pela distncia dum deserto. Ela no tirava os olhos do cho, enrolando
com a mo trmula uma ponta da manta de l que trazia solta pelos ombros.
Amaro achava-a mudada, um pouco inchada das faces, com uma ruga de velhice
aos cantos da boca. Para romper aquele silncio estranho, perguntou-lhe
tambm se se dava bem...

- Para aqui vou indo... um pouco triste isto. como diz o Sr. abade Ferro,
muito grande para a gente se sentir em famlia.
- Ningum veio para aqui para se divertir, disse a velha sem descerrar as
plpebras, com uma voz seca que perdera toda a fadiga.
Amlia baixou a cabea, fazendo-se plida.
Amaro ento, compreendendo num relance que a velha torturava Amlia, disse
com muita severidade:
- verdade, no foi para se divertirem... Mas tambm no foi para se
entristecerem de propsito... Pr-se uma pessoa de mau humor e fazer aos
outros a vida negra, uma falta horrvel de caridade; no h pecado pior aos
olhos do Senhor... indigno da graa de Deus quem tal pratica...
A velha rompeu a choramigar, muito excitada:
- Ai, o que Deus me guardou para os ltimos anos da vida...
Gertrudes animou-a. Ento, senhora, que at lhe fazia pior estar a afligir-se
assim... Ora o
disparate! Tudo se havia de remediar com a ajuda de Deus. Sade no havia de
faltar, nem alegria...
157
Amlia chegara-se janela, decerto para esconder tambm as lgrimas que lhe
saltavam dos olhos. E o proco, consternado com a cena, comeou a dizer que D.
Josefa no estava suportando com a verdadeira resignao duma crist aqueles
dias de doena... Nada escandalizava mais Nosso Senhor que ver as criaturas
revoltarem-se contra as dores ou os encargos que ele mandava... Era insultar a
justia dos seus decretos...
- Tem razo, senhor proco, tem razo, murmurou a velha muito contrita. Eu s
vezes nem sei o que digo... So coisas da doena.

- Bem, bem, minha senhora, resignar-se e tratar de ver tudo cor-de-rosa. o


sentimento que Deus mais aprecia. Eu compreendo que duro estar para aqui
enterrada...
- o que diz o Sr. abade Ferro, acudiu Amlia voltando da janela, a madrinha
estranha... Assim arrancada aos hbitos de tantos anos...
Notando ento a citao repetida das palavras do abade Ferro, Amaro perguntou
se ele costumava vir v- las.
- Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amlia. Vem quase todos os dias.
- um santo! exclamou a Gertrudes.
- Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente dum entusiasmo to vivo.
Pessoa de muita
virtude...
- De muita virtude, suspirou a velha. Mas... - calou-se, no ousando decerto
exprimir as suas
reservas de devota. E exclamou numa splica: Ai, o senhor proco que devia vir
por aqui, ajudar-me a levar esta cruz da doena...
- Hei-de vir, minha senhora, hei-de vir. bom para a distrair, para lhe dar as
noticias... E a propsito, tive ontem carta do nosso cnego.
Rebuscou na algibeira, leu alguns perodos da carta. O padre-mestre j tinha
quinze banhos. A praia estava cheia de gente. A D. Maria passara doente com um
furnculo. O tempo famoso. Todas as tardes grandes passeatas a ver recolher as
redes. A S. Joaneira, boa, mas falando sempre na filha...
- Pobre mam... choramigou Amlia.
Mas a velha no se interessava com as novidades, gemendo a sua ronqueira. Foi
Amlia que perguntou pelos amigos de Leiria, pelo Sr, padre Natrio, pelo Sr,
padre Silvrio...

Ia escurecendo j: a Gertrudes fora preparar o candeeiro. Amaro enfim ergueuse:


- Pois, minha senhora, at outro dia. Esteja certa que hei-de aparecer de vez em
quando. E nada de afligir... Agasalho, boa dieta, e a misericrdia de Deus no a
h-de abandonar...
- No nos falte, senhor proco, no nos falte!...
Amlia estendera-lhe a mo, para se despedir ali no quarto; mas Amaro
gracejando:
- Se no lhe causa incmodo, menina Amlia, sempre bom vir mostrar-me o
caminho, que eu
perco-me neste casaro.
Saram ambos. E apenas no salo, a que as trs largas vidraas davam ainda uma
claridade:
- A velha faz-te a vida negra, filha, disse Amaro parando.
- Que mereo eu mais? respondeu ela baixando os olhos.
- Desavergonhada, eu lhas cantarei!... Minha Ameliazinha, se soubesses o que
me tem custado... E falando, ia abra-la pelo pescoo.
Mas ela recuou, toda perturbada.
- Que isso? fez Amaro assombrado.
- O qu?
- Esse modo! Tu no me queres dar um beijo, Amlia? Tu ests doida?
Ela ergueu as mos para ele, numa suplicao ansiosa, falando toda trmula:
- No, senhor proco, deixe-me! Isso acabou. Bem basta o que pecamos... Quero
morrer na graa
de Deus... Que nunca mais se fale em semelhante coisa!... Foi uma desgraa...
Acabou-se... Agora o que quero o sossego da minha alma...
- Tu ests tola? Quem te meteu isso na cabea? Ouve c...
Foi para ela outra vez, com os abraos abertos.
- No me toque, pelo amor de Deus, - e vivamente recuou at porta.
Ele olhou-a um momento, numa clera muda.

- Bem, como queira, disse por fim. Em todo o caso, quero preveni- Ia que o Joo
Eduardo voltou,
que passa aqui todos os dias, e que bom no se pr de janela.
- Que me importa a mim o Joo Eduardo e os outros e tudo o que passou?... Ele
acudiu, transbordando dum sarcasmo amargo:
- Est claro, agora o grande homem o Sr. abade Ferro!
- Devo-lhe muito, o que sei...
158
A Gertrudes neste momento entrava com o candeeiro aceso. E Amaro, sem se
despedir de Amlia, abalou, de guarda-chuva em riste, rilhando os dentes de
raiva.

Mas a longa caminhada at cidade calmou-o. Aquilo na rapariga por fim era
apenas um acesso de virtude e de escrpulos! Vira-se ali s naquele casaro,
amargurada pela velha, impressionada pelos palavres do moralista Ferro, longe
dele, e tinha-lhe vindo aquela reao de devota com os seus terrores do outro
mundo e apetites de inocncia... Chalaa! Se ele comeasse a ir Ricoa, numa
semana reganhava todo o seu domnio... Ah, conhecia-a bem! Era s tocar-lhe,
piscar-lhe o olho... Estava logo rendida.
Passou porm uma noite inquieta, desejando-a mais que nunca. E ao outro dia
uma hora marchou para Ricoa, levando-lhe um ramo de rosas.
A velha ficou toda contente ao v-lo. que lhe dava sade a presena do senhor
proco! E se no fosse a distncia, havia de lhe pedir esmola de vir todas as
manhs. At depois daquela visitinha rezava com mais fervor...
Amaro sorria, distrado, com os olhos cravados na porta.
- E a menina Amlia? perguntou por fim.
- Saiu... Isso agora todas as manhs a passeata, disse a velha com azedume. Vai
residncia,

toda do abade...
- Ah! fez Amaro com um sorriso lvido. Nova devoo, hem?... pessoa de
muitos mritos, o
abade.
- Ai, no presta, no presta! exclamou D. Josefa. No me percebe. Tem idias
muito esquisitas.
No d virtude...
- Homem de livros... disse Amaro.
Mas a velha erguera-se sobre o cotovelo, e baixando a voz, com o magro caro
aceso em dio:
- E aqui para ns, a Amlia tem-se portado muito mal! Nunca lho hei-de
perdoar... Confessou-se ao abade... uma indelicadeza, sendo a confessada do
senhor proco, no tendo recebido de vossa senhoria seno favores... uma
ingrata, uma traioeira!...
Amaro fizera-se plido.
- Que me diz a senhora?
- A verdade! Que ela no o nega. At se orgulha! uma perdida, uma perdida!
Depois do favor
que lhe estamos a fazer...
Amaro disfarou a indignao que o revolvia. Riu at. Era necessrio no
exagerar. No havia
ingratido. Era uma questo de f. Se a rapariga pensava que o abade a podia
dirigir melhor, tinha razo em se abrir com ele... O que todos queriam que ela
salvasse a sua alma... Que fosse pela direo de fulano ou sicrano, isso no
importava... E nas mos do abade estava bem.
E chegando vivamente a cadeira para o leito da velha:
- Ento agora, todas as manhs vai residncia?

- Quase todas... Que ela no h-de tardar, vai depois de almoo, volta sempre a
esta hora... Ai,
tem-me causado isto um desgosto!...
Amaro deu um passeiozinho nervoso pelo quarto, e estendendo a mo velha:
- Pois minha senhora, eu no me posso demorar, que vim de fugida... At um dia
cedo.
E sem escutar a velha, que lhe pedia com ansiedade que ficasse para jantar desceu os degraus
como uma pedra que rola, meteu furioso pelo caminho da residncia, ainda com
o seu ramo na mo. Esperava encontrar Amlia na estrada; e no tardou em a
avistar quase ao p da casa do ferreiro,
agachada ao p do valado, apanhando sentimentalmente florinhas silvestres. Que fazes tu aqui? exclamou, chegando junto dela.
Ela ergueu-se, com um gritinho.
- Que fazes tu aqui? repetiu.
quele tu, e quela voz colrica, ela ps rapidamente um dedo na boca,
assustada. O senhor abade estava dentro da casa com o ferreiro...
- Ouve l, disse Amaro com os olhos chamejantes, agarrando-lhe o brao, tu
confessaste-te ao abade?...
- Para que quer saber? Confessei... No vergonha nenhuma...
- Mas confessaste tudo, tudo? perguntou ele com os dentes cerrados de raiva.
Ela perturbou-se, e tratando-o ainda por tu:
- Foste tu que me disseste muitas vezes... Que era o maior pecado neste mundo,
esconder alguma
coisa ao confessor!
159
- Bbeda! rugiu Amaro.

Os seus olhos devoravam-na. E, atravs da nvoa de clera que lhe enchia o


crebro e lhe fazia latejar as veias na fronte, achava-a mais bonita, com umas
redondezas em todo o corpo que ardia por abraar, com uns lbios vermelhos
avivados pelo largo ar do campo que ele queria morder at ao sangue.
- Ouve, disse-lhe cedendo a uma invaso brutal do desejo. Ouve... Acabou-se,
no me importa. Confessa-te ao diabo se te agrada... Mas hs-de ser a mesma
para mim!
- No, no! disse ela com fora, desprendendo-se, pronta a fugir para casa do
ferreiro.
- Tu mas pagars, maldita! rosnou o padre por entre dentes, voltando as costas,
descendo o caminho com passadas de desesperado.
E no abrandou o passo at cidade, levado dum impulso de indignao que, sob
aquela doce paz dum meio de Outono, lhe sugeria planos de vinganas ferozes.
Chegou a casa esfalfado, ainda com o ramo na mo. Mas a, na solido do quarto,
veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua impotncia. Que lhe podia fazer por
fim? Ir pela cidade dizer que ela estava grvida? Seria denunciar-se a si. Espalhar
que estava amigada com o abade Ferro? Era absurdo: um velho de quase setenta
anos, de uma fealdade de caricatura, com todo um passado de virtude santa!...
Mas perd-la, no tornar a ter no braos aquele corpo de neve, no ouvir mais
aquelas ternuras balbuciadas que lhe arrebatavam a alma para alguma coisa de
melhor que o Cu... Isso no!
E era possvel que ela, em seis ou sete semanas, tivesse assim esquecido tudo?
Naquelas longas noites na Ricoa, s na cama, no lhe viria uma recordao das
manhs no quarto do tio Esguelhas?... Decerto: ele sabia-o da experincia de
tantas confessadas que lhe tinham revelado aflitas a tentao muda e teimosa
que no deixa a carne que uma vez pecou...
No: devia persegui-la, e por todos os modos soprar-lhe aquele desejo que agora
ardia nele mais alto e mais ruidoso.

Passou a noite a escrever-lhe uma carta de seis pginas, absurda, cheia de


imploraes apaixonadas, de argcias msticas, de pontos de exclamao e de
ameaas de suicdio...
Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionsia. A resposta veio s noite, por um
rapazito da quinta. Com que sofreguido rasgou o sobrescrito! Eram apenas estas
palavras: "Peo-lhe que me deixe em paz com os meus pecados".
No desistiu: ao outro dia l estava na Ricoa a visitar a velha. Amlia achava-se
no quarto de D. Josefa, quando ele apareceu. Fez-se muito plida; mas os seus
olhos no deixaram a costura - durante a meia hora que ele ali ficou, ora num
silncio sombrio acabrunhado para o fundo da poltrona, ora respondendo
distraidamente tagarelice da velha, muito faladora essa manh.
E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia entrar fechava-se rapidamente no
quarto: s vinha se a velha mandava a Gertrudes dizer-lhe ''que estava ali o
senhor proco que a queria ver''. Ia, ento, estendia-lhe a mo, que ele achava
sempre a escaldar - e tomando a sua eterna costura, junto da janela, ia picando o
posponto com uma taciturnidade que desesperava o padre.
Tinha-lhe escrito outra carta. Ela no respondera.
Ento jurava no voltar Ricoa, desprez-la, - mas depois de ter passado a
noite, rolando-se pela cama sem poder dormir, com a mesma viso da nudez
dela cravada intoleravelmente no crebro, l partia de manh para a Ricoa,
corando quando o apontador das obras na estrada, que o via passar todos os dias,
lhe tirava o seu bon de oleado.
Numa tarde que chuviscava, ao entrar no casaro, dera com o abade Ferro que
porta abria o seu guarda-chuva.
- Ol, por aqui, senhor abade? disse ele.
O abade respondeu naturalmente:
- Em vossa senhoria que no h que estranhar, que vem por aqui todos os
dias...

Amaro no se conteve; e tremendo de clera:


- E que lhe importa ao senhor abade se eu venho ou no? A casa sua?
Aquela brutalidade to injustificvel ofendeu o abade:
- Pois era melhor para todos que no viesse...
- E por qu, senhor abade? e por qu? gritou Amaro, perdido.
Ento, o bom homem estremeceu. Cometera, ali, a culpa mais grave do sacerdote
catlico: o que
sabia de Amaro, dos seus amores, era em segredo de confisso; e era trair o
mistrio do sacramento, mostrar quedesaprovava aquela insistncia no pecado.
Tirou muito baixo o seu chapue disse humildemente:
- Tem vossa senhoria razo. Peo perdo do que disse sem refletir. Muito boastardes, senhor proco.
- Muito boas-tardes, senhor abade.
160
Amaro no entrou na Ricoa. Voltou para a cidade sob a chuva que batia forte
agora. E, apenas em casa, escreveu uma longa carta a Amlia, em que lhe contava
a cena com o abade, acabrunhando-o de acusaes - sobretudo de lhe trair
indiretamente o segredo da confisso. Como das outras, desta carta no veio
resposta da Ricoa.
Amaro ento comeou a acreditar que tanta resistncia no podia vir s do
arrependimento e do terror do inferno... "Ali h homem", pensou. E devorado
dum cime negro principiou a rondar de noite a Ricoa: mas no viu nada; o
casaro permanecia adormecido e apagado. Uma ocasio, porm, ao aproximarse do muro do pomar, sentiu adiante no caminho que desce dos Poiais uma voz
cantarolar sentimentalmente a valsa dos Dois mundos, e um ponto brilhante de
charuto aceso adiantar-se na escurido. Assustado, refugiou-se num casebre que
desmantelava em runas do outro lado da estrada. A voz calou-se; e Amaro,
espreitando, viu ento um vulto que parecia embrulhado num xalemanta claro,
parado, contemplando as janelas da Ricoa. Um furor de cime apossou-se dele,

e ia saltar e atacar o homem - quando o viu seguir tranqilamente ao comprido


da estrada, de charuto alto, trauteando:
Ouves ao longe retumbar na serra
O som do bronze que nos causa horror...
Pela voz, pelo xalemanta, pelo andar tinha reconhecido Joo Eduardo. Mas teve a
certeza que se um homem falava de noite a Amlia ou entrava na quinta - no era
decerto o escrevente. Todavia, receoso de ser descoberto, no tornou a rondar o
casaro.
Era com efeito Joo Eduardo, que sempre que passava pela Ricoa, de dia ou de
noite, parava um momento a olhar melancolicamente as paredes que ela
habitava. Porque apesar de tantas desiluses, Amlia permanecera para o pobre
rapaz a ela, a bem-amada, a coisa mais preciosa da terra. Nem em Ourm, nem
em Alcobaa, nem pelas estalagens onde errara, nem em Lisboa, onde chegara
como vem praia uma quilha de barco naufragado, deixara um momento de a ter
presente na alma e de se enternecer com as saudades dela. Durante esses dias to
amargos de Lisboa, os piores da sua vida, em que fora fiel de feitos dum cartrio
obscuro, perdido naquela cidade que lhe parecia ter a vastido duma Roma ou
duma Babilnia e em que sentia o duro egosmo das multides azafamadas,
esforava- se mesmo por desenvolver mais esse amor que lhe dava como a
doura duma companhia. Achava-se menos isolado, tendo sempre no esprito
aquela imagem com quem travava dilogos imaginados, nos seus infindveis
passeios ao longo do Cais do Sodr, acusando-a das tristezas que o envelheciam.
E esta paixo, sendo para ele como a indefinida justificao das suas misrias,
tomava-o aos seus prprios olhos interessante. Era "um mrtir de amor"; isto
consolava-o, como o consolara nas suas primeiras desesperaes considerar-se
"uma vtima das perseguies religiosas". No era um pobre-diabo banal a quem
o acaso, a preguia, a falta de amigos, a sorte e os remendos do casaco mantm
fatalmente nas privaes da dependncia: era um homem de grande corao, a
quem uma catstrofe em parte amorosa e em parte poltica, um drama domstico
e social, forara assim, depois de lutas hericas, a viajar de um a outro cartrio

com um saco de lustrina cheio de autos. O destino tornara-o igual a tantos heris
que lera nas novelas sentimentais... E o seu palet coado, os seus jantares a
quatro vintns, os dias em que no tinha dinheiro para tabaco, tudo atribua ao
amor fatal de Amlia e perseguio duma classe poderosa, dando assim, por um
instinto muito humano, uma origem grandiosa s suas misrias triviais...
Quando via passar os que ele chamava felizes - indivduos batendo tipia,
rapazes que encontrava com uma linda mulher pelo brao, gente bem atabafada
que se dirigia aos teatros, sentia-se menos desgraado pensando que tambm ele
possua um grande luxo interior que era aquele amor infeliz. E quando enfim por
um acaso obteve a certeza dum emprego no Brasil, o dinheiro da passagem,
idealizava a sua aventura banal de emigrante, repetindo-se durante todo o dia
que ia passar os mares, exilado do seu pas por uma tirania combinada de padres
e autoridades e por ter amado uma mulher!
Quem lhe diria ento, ao emalar o seu fato no ba de lata, que da a semanas
estaria outra vez a meia lgua desses padres e dessas autoridades, contemplando
de olho temo a janela de Amlia! Fora aquele singular Morgadinho de Poiais - que
no era nem Morgadinho nem de Poiais, e apenas um ricao excntrico de ao p
de Alcobaa que comprara aquela velha propriedade dos fidalgos de Poiais, e que,
com a posse da terra, recebia do povo da freguesia a honra do ttulo: fora esse
santo cavalheiro que o livrara dos enjos no paquete e dos acasos da emigrao.
Encontrara-o casualmente no cartrio onde ele ainda trabalhava nas vsperas da
viagem. O Morgadinho cliente do velho Nunes, conhecia-lhe a histria, a
faanha do Comunicado, o escndalo no Largo da S; e j de h muito concebera
por ele uma simpatia ardente.
O Morgadinho tinha com efeito por padres um dio manaco, a ponto de no ler
no jornal a notcia dum crime, sem decidir (ainda mesmo quando o culpado
estava j sentenciado) que "no fundo
161
devia de haver na histria um sotaina". Dizia-se que este rancor provinha dos
desgostos que lhe dera sua primeira mulher, devota clebre de Alcobaa. Apenas

viu Joo Eduardo em Lisboa e soube da viagem prxima, teve imediatamente a


idia de o trazer para Leiria, instal-lo nos Poiais, e entregar-lhe a educao das
primeiras letras dos seus dois pequenos como um insulto estridente feito a todo
o clero diocesano. Imaginava de resto Joo Eduardo um mpio; e isto convinha ao
seu plano filosfico de educar os rapazitos num "atesmo desbragado". Joo
Eduardo aceitou, com as lgrimas nos olhos: era um salrio magnfico que lhe
vinha, uma posio, uma famlia, uma reabilitao estrondosa...
- Oh, senhor Morgado, nunca hei-de esquecer o que faz por mim!...
- para meu gosto prprio!... para arreliar a canalha! E partimos amanh!
Em Cho de Mas, apenas desceu do vago, exclamou logo para o chefe da
estao que no
conhecia Joo Eduardo, nem a sua histria:
- C o trago, c o trago um triunfo! Vem para quebrar a cara a toda a padraria... E
se houver
custas a pagar, sou eu que as pago!
O chefe da estao no estranhou - porque o Morgadinho passava no distrito por
maluco.
Foi a, nos Poiais, logo ao outro dia da sua chegada, que Joo Eduardo soube que
Amlia e D.
Josefa estavam na Ricoa. Soube-o pelo bom abade Ferro, o nico sacerdote a
quem o Morgado falava, e que recebia em casa, no como padre, mas como
cavalheiro.
- Eu como cavalheiro estimo-o, Sr. Ferro, costumava ele dizer, mas como padre
abomino-o!
E o bom Ferro sorria, sabendo que, sob aquela ferocidade de mpio obtuso, havia
um santo corao, um pai de pobres na freguesia...
O Morgado era tambm grande amador de alfarrbios, questionador incansvel;
s vezes os dois tinham pelejas tremendas sobre histria, botnica, sistemas de

caa... Quando o abade, no fogo da controvrsia, punha de alto alguma opinio


contrria:
- O senhor apresenta-me isso como padre ou como cavalheiro? exclamava,
empinando-se, o Morgado.
- Como cavalheiro, Sr. Morgado.
- Ento aceito a objeo. sensata. Mas se fosse como padre, quebrava-lhe os
ossos.
s vezes pensando irritar o abade, mostrava-lhe Joo Eduardo, batendo de alto
no ombro do
rapaz, numa carcia de amador, como a um cavalo favorito:
- Veja-me isto! J ia dando cabo de mim. E ainda h-de matar dois ou trs... E se
o prenderem eu
hei-de livr-lo da forca!
- Isso no difcil, Sr. Morgado, dizia o abade tomando tranqilamente a sua
pitada. Que j no
h forca em Portugal...
Ento era uma indignao do Morgado. No havia forcas? E por que no? Porque
tnhamos um
governo livre e um rei constitucional! Que se se seguisse a vontade dos padres,
havia uma forca em cada praa e uma fogueira em cada esquina!
- Diga-me uma coisa, Sr. Ferro, o senhor vem defender aqui em minha casa a
Inquisio?
- Oh, Sr. Morgado, eu nem sequer falei da Inquisio...
- No falou por medo! Porque sabe perfeitamente que lhe enterrava uma faca no
estmago!
E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala, fazendo um vendaval com as abas
prodigiosas do seu

robe-de-chambre amarelo.
- No fundo um anjo, dizia o abade a Joo Eduardo. Capaz de dar a camisa mesmo
a um padre, se
o soubesse em necessidade... E voc aqui est bem, Joo Eduardo... no lhe
reparar nas manias... Tinha tomado afeio a Joo Eduardo, o abade Ferro: e
sabendo por Amlia a famosa legenda do Comunicado quisera, segundo a sua
expresso querida, "folhear o homem aqui e alm". Conversava com ele tardes
inteiras na rua de loureiros da quinta, na residncia onde Joo Eduardo se ia
fornecer de Iivros; e sob o "exterminador de padres", como dizia o Morgado,
encontrara um pobre moo sensvel, com uma religio sentimental, ambies de
paz domstica, e prezando muito o trabalho. Ento viera-lhe uma idia que,
sobretudo por lhe ter acudido num dia que saia das suas devoes ao Santssimo,
lhe parecia descida de cima, da vontade do Senhor: era o cas-lo com Amlia.
No seria difcil levar aquele corao fraco e terno a perdoar o erro dela; e a pobre
rapariga, depois de tantos transes, extinta aquela paixo que lhe entrara na alma
como um sopro do demnio, levando-lhe a vontade, a paz e o pudor de empurro
para o abismo, encontraria na companhia de Joo Eduardo todo um resto de vida
calmo, e contente, um canto suave de interior, refgio doce e purificao do
passado. No falou nem a um, nem a outro, nesta idia que o enternecia. No era
o momento agora, que ela trazia nas entranhas o filho do outro. Mas ia
preparando com amor aquele resultado, - sobretudo quando estava com Amlia,
contando- lhe as suas conversas com Joo Eduardo, algum dito muito sensato
que ele tivera, os bons cuidados de
preceptor que estava desenvolvendo na educao dos Morgaditos.
162
- um bom rapaz, dizia. Homem de famlia... Destes a quem uma mulher pode
realmente confiar a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse ao mundo, se
tivesse uma filha, dava-lha...
Amlia no respondia, corando.

J no podia objetar queles elogios persuasivos a antiga, a grande objeo - o


Comunicado, a impiedade! O abade Ferro destrura-lha um dia, com uma
palavra:
- Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz no escreveu contra os sacerdotes,
escreveu contra os fariseus!
E para atenuar este julgamento severo, o menos caridoso que tivera havia muitos
anos, acrescentou:
- Enfim, foi uma falta grave... Mas est muito arrependido. Pagou-o com
lgrimas, e com fome. E isto enternecia Amlia.

Fora tambm por esse tempo que o doutor Gouveia comeara a vir Ricoa,
porque D. Josefa tinha piorado com os dias mais frios do Outono. Amlia, ao
princpio, hora da visita, fechava-se no seu quarto, tremendo idia de ver o
seu estado descoberto pelo velho doutor Gouveia, o mdico da casa, aquele
homem duma severidade legendria. Mas enfim fora necessrio aparecer no
quarto da velha, para receber as suas instrues de enfermeira sobre as horas dos
remdios e as dietas. E um dia que acompanhara o doutor at porta, ficou
gelada, vendo-o parar, voltar-se para ela cofiando a sua grande barba branca que
lhe caa sobre o jaqueto de veludo, e dizer-lhe sorrindo:
- Eu bem tinha dito a tua me que te casasse!
Duas lgrimas saltaram-lhe dos olhos.
- Bem, bem, pequena, no te quero mal por isso. Ests na verdade. A natureza
manda conceber,
no manda casar. O casamento uma frmula administrativa...
Amlia olhava-o, sem o compreender, com as duas lgrimas muito redondinhas
a correrem-lhe

devagar pela face. Ele bateu-lhe com os dedos no queixo, muito paternal:
- Quero dizer que, como naturalista, regozijo-me. Acho que te tornaste til
ordem geral das
coisas. Vamos ao que importa...
Deu-lhe ento conselhos sobre a higiene que devia ter.
- E quando chegar a ocasio, se te vires atrapalhada, manda-me chamar...
Ia descer; Amlia deteve-o, e com uma suplicao assustada:
- Mas o senhor doutor no vai dizer nada na cidade...
O doutor Gouveia parou:
- Ento no estpida?... Est bom, tambm to perdo. Est na lgica do teu
temperamento.
No, no digo nada, rapariga. Mas para que diabo, ento, no casaste tu com esse
pobre Joo Eduardo? Fazia-te to feliz como o outro, e j no tinhas de pedir
segredo... Enfim, isso para mim um detalhe secundrio... O essencial o que te
disse... Manda-me chamar. No te fies muito nos teus santos... Eu entendo mais
disso que Santa Brgida ou l quem . Que tu s forte, e hs-de dar um bom
moceto ao Estado.
Todas estas palavras que em parte no compreendera bem, mas em que sentia
uma vaga justificao e uma bondade de av indulgente, sobretudo aquela cincia
que lhe prometia a sade e a que as barbas grisalhasdo doutor, umas barbas de
Padre Eterno, davam um ar de infalibilidade, reconfortaram-na, aumentaram a
serenidade que havia semanas gozava, desde a sua confisso desesperada na
capela dos Poiais.
Ah, fora decerto Nossa Senhora, compadecida enfim dos seus tormentos, que lhe
mandara do Cu aquela inspirao de se ir entregar toda dorida aos cuidados do
abade Ferro! Parecia-lhe que deixara l, no seu confessionrio azul-ferrete,
todas as amarguras, os terrores, a negra farrapagem de remorso que lhe abafava a
alma. A cada uma das suas consolaes to persuasivas sentira desaparecer o
negrume que lhe tapava o Cu; agora via tudo azul; e quando rezava, j Nossa
Senhora no desviava o rosto indignado. que era to diferente aquela maneira

de confessar do abade! Os seus modos no eram os do representante rgido dum


Deus carrancudo; havia nele alguma coisa de feminino e de maternal que passava
na alma como uma carcia; em lugar de lhe erguer diante dos olhos o sinistro
cenrio das chamas do Inferno, mostrara-lhe um vasto Cu misericordioso com
as portas largamente abertas, e os caminhos multiplicados que l conduzem, to
fceis e to doces de trilhar que s a obstinao dos rebeldes se recusa a tentlos. Deus aparecia, naquela suave interpretao da outra vida, como um bom
bisav risonho; Nossa Senhora era uma irm de caridade; os santos, camaradas
hospitaleiros! Era uma religio amvel, toda banhada de graa, em que uma
lgrima pura basta para remir uma existncia de pecado. Que diferente da
soturna doutrina que desde pequena a trazia aterrada e trmula! To diferente como aquela
163
pequena capela de aldeia da vasta massa de cantaria da S. L, na velha S,
muralhas da espessura de cvados separavam da vida humana e natural: tudo era
escurido, melancolia, penitncia, faces severas de imagens; nada do que faz a
alegria do mundo ali entrava, nem o alto azul, nem os pssaros, nem o ar largo
dos prados, nem os risos dos lbios vivos; alguma flor que havia era artificial; o
enxota-ces l se postava ao portal para no deixar passar as criancinhas; at o
sol estava exilado, e toda a luz que havia vinha dos lampadrios fnebres. E ali,
na capelita dos Poiais, que familiaridade da natureza com o bom Deus! Pelas
portas abertas penetrava a aragem perfumada das madressilvas; pequerruchos
brincando faziam sonoras as paredes caiadas; o altar era como um jardinete e um
pomar; pardais atrevidos vinham chilrear at junto aos pedestais das cruzes; s
vezes um boi grave metia o focinho pela porta com a antiga familiaridade do
curral de Belm, ou umaovelha tresmalhada vinha regozijar-se de ver uma da sua
raa, o Cordeiro Pascal, dormir regaladamente ao fundo do altar com a santa cruz
entre as patas.
Alm disso o bom abade, como ele lhe dissera, "no queria impossveis". Sabia
bem que ela no podia arrancar num momento aquele amor culpado, que ganhara
razes at s profundezas do seu ser. Queria apenas que, quando a assaltasse a

idia de Amaro se abrigasse logo na idia de Jesus. Com a fora colossal de


Satans, que tem o poder dum Hrcules, uma pobre rapariga no pode lutar brao
a brao; pode somente refugiar- se na orao quando o sente, e deix-lo fatigarse de rugir e espumar em tomo desse asilo impenetrvel. Ele mesmo cada dia a ia
ajudando naquela repurificao da alma, com uma solicitude de enfermeiro: fora
ele que lhe marcara, como um ensaiador num teatro, a atitude que devia ter na
primeira visita de Amaro Ricoa; era ele que chegava, com alguma breve
palavra reconfortante como um cordial, se a via vacilar naquela lenta reconquista
da virtude; se a noite fora agitada das lembranas clidas dos prazeres passados,
era durante toda a manh uma boa palestra, sem tom pedaggico, em que lhe
mostrava familiarmente que o Cu lhe daria alegrias maiores que o quarto
enxovalhado do sineiro. Chegara, com uma sutileza de telogo, a demonstrarlhe que no amor do proco no havia seno brutalidade e furor bestial; que, doce
como era o amor do homem, o amor do padre s podia ser uma exploso
momentnea do desejo comprimido; quando tinham comeado as cartas do
proco, analisara- lhas frase a frase, revelando-lhe o que elas continham de
hipocrisia, de egosmo, de retrica, e de desejo torpe...
Ia-a assim lentamente desgostando do proco. Mas no a desgostava do amor
legtimo, purificado pelo sacramento; conhecia bem que ela era toda de carne e
de desejos, e que lan-la violentamente no misticismo seria apenas torcer-lhe
um momento o instinto natural e no criar-lhe uma paz duradoura. No tentava
arranc-la bruscamente realidade humana; ele no a queria para freira; s
desejava que aquela fora amante que sentia nela servisse alegria dum esposo e
til harmonia duma famlia, e no se gastasse erradamente em concubinagens
casuais... No fundo o bom Ferro preferiria decerto na sua alma de sacerdote que
a rapariga se separasse absolutamente de todos os interesses egostas do amor
individual, e se desse, como irm de caridade, como enfermeira dum
recolhimento, ao amor mais largo de toda a humanidade. Mas a pobre Ameliazita
tinha a carne muito bonita e muito fraca; no seria prudente assust-la com
sacrifcios to altos; era toda mulher - toda mulher devia ficar; limitar- lhe a ao
era estragar- lhe a utilidade. Cristo no lhe bastava com os seus membros ideais
pregados na cruz: era-lhe necessrio um homem como todos, de bigode e chapu

alto. Pacincia! Que ao menos ele fosse um esposo sob a legitimao


sacramental...
Assim a ia curando daquela paixo mrbida com uma direo de todos os dias,
uma destas persistncias de missionrio que s d a f sincera, pondo a sutileza
dum casusta ao servio da moralidade de um filsofo, paternal e hbil - uma
cura maravilhosa de que o bom abade em segredo tirava alguma vaidade.
E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu que enfim z paixo por Amaro j
no era na alma dela um sentimento vivo; mas estava morto, embalsamado,
arrumado no fundo da sua memria como num jazigo, escondido j sob a delicada
florescncia duma virtude nova. Assim julgava pelo menos o bom Ferro vendo-a agora aludir ao passado com o olhar tranqilo, sem aqueles rubores que
outrora lhe escaldavam a face ao simples nome de Amaro.
Ela, com efeito, j no pensava no senhor proco com a comoo de outrora: o
terror do pecado, a influncia penetrante do abade, aquela brusca separao do
meio devoto em que o seu amor se desenvolvera, o gozo que sentia numa
serenidade maior, sem sustos noturnos e sem a inimizade de Nossa Senhora,
tudo concorrera para que o fogo ruidoso daquele sentimento se fosse reduzindo a
alguma brasa que ainda rebrilhava surdamente. O proco estivera ao princpio na
sua alma com o prestgio dum dolo coberto de ouro; mas tantas vezes, desde a
sua gravidez, sacudira, nas horas de terror religioso ou de arrependimento
histrico, aquele dolo, que todo o dourado lhe ficara nas mos, e a forma trivial e
escura que aparecia por baixo j a no deslumbrava; viu por isso o abade
derrubar-lho inteiramente, sem chorar e sem lutar. Se ainda pensava em Amaro,
porque no podia deixar de pensar na casa do sineiro; mas o que a tentava ainda
era o prazer e no o proco.
164
E com a sua natureza de boa rapariga tinha um reconhecimento sincero pelo
abade. Como dissera a Amaro naquela tarde, "devia-lhe tudo". Era o que sentia
agora tambm pelo doutor Gouveia, que vinha regularmente ver a velha de dois

em dois dias. Eram os seus bons amigos, como dois paps que o Cu lhe mandava
- um que lhe prometia a sade, outro a graa.
Refugiada naquelas duas protees, gozou uma paz adorvel nas ltimas
semanas de Outubro. Os dias iam muito serenos e muito tpidos. Era bom estar
no terrao, pelas tardes, naquela serenidade outonal dos campos. O doutor
Gouveia s vezes encontrava-se com o abade Ferro; ambos se estimavam;
depois da visita velha, iam para o terrao, e comeavam logo as suas eternas
questes sobre Religio e sobre Moral.
Amlia, com a costura cada nos joelhos, sentindo os seus dois amigos ao p,
aqueles dois colossos de cincia e de santidade, abandonava-se ao encanto da
hora suave, olhando a quinta onde as rvores j empalideciam. Pensava no
futuro; ele aparecia-lhe agora fcil e seguro; era forte, e o parto, com a presena
do doutor, seria apenas uma hora de dores; depois, livre daquela complicao,
voltaria para a cidade e para a mam... E ento uma outra esperana, que nascera
das conversas constantes do abade sobre Joo Eduardo, vinha bailar-lhe na
imaginao. Por que no?... Se o pobre rapaz a amasse ainda, e perdoasse!... Ele
nunca lhe repugnara como homem, e seria um casamento esplndido agora que
ele tinha a amizade do Morgado. Dizia-se que Joo Eduardo ia ser o
administrador da casa... E entrevia-se vivendo nos Poiais, passeando na caleche
do Morgado, chamada para jantar por uma campainha, servida por um escudeiro
de libr... Ficava muito tempo imvel, banhada na doura desta perspectiva,
enquanto o abade e o doutor ao fundo do terrao pelejavam sobre a doutrina da
Graa e da Conscincia, e monotonamente a gua das regas murmurava no
pomar.
Foi por este tempo que D. Josefa, inquieta de no ver aparecer o senhor proco,
mandara expressamente o caseiro a Leiria, pedir a sua senhoria a esmola duma
visita. O homem voltara com a espantosa notcia de que o senhor proco partira
para a Vieira, e no viria seno da a duas semanas. A velha choramigou de
desgosto. E Amlia, nessa noite, no seu quarto, no pde adormecer - na
irritao que lhe dava aquela idia dosenhor proco a divertir-se na Vieira, sem

pensar nela decerto, chalaceando com as senhoras na praia, e andando de sero


em sero...

Com a primeira semana de Novembro vieram as chuvas. A Ricoa parecia agora


mais lgubre naqueles dias curtos, banhados de gua, sob um cu de tempestade.
O abade Ferro, tolhido de reumatismo, j no aparecia na quinta. O doutor
Gouveia, depois da visita de meia hora, abalava no seu velho cabriol. A nica
distrao de Amlia era estar janela por dentro dos vidros: trs vezes vira passar
Joo Eduardo na estrada; mas ele ao avist-la baixava os olhos ou refugiava-se
mais sob o guarda-chuva.
A Dionsia vinha tambm freqentemente: devia ser a parteira, apesar do doutor
Gouveia ter aconselhado a Micaela, matrona duma experincia de trinta anos.
Mas Amlia "no queria mais gente no segredo", e alm disso Dionsia trazia-lhe
as notcias de Amaro, que ela sabia pela cozinheira. O senhor proco tinha-se
achado to bem na Vieira que se ia demorar at Dezembro. Aquele
"procedimento infame" indignava-a: no duvidava que o proco queria estar
longe quando chegassem os transes, os perigos do parto. Alm disso era decidido
de h muito que a criana havia de ser entregue a uma ama de ao p de Ourm,
que a criaria na aldeia: c agora o tempo chegava, c a ama no estava falada, e o
senhor proco apanhava conchinhas beira-mar!...
- indecente, Dionsia, exclama Amlia furiosa.
- Ah! no me parece bem, no. Que eu podia falar ama... Mas bem v, so coisas
muito srias... O senhor proco que se encarregou de tudo...
- infame!
Alm disso ela descuidara-se do enxoval - e ali estava na vspera de ter a criana,
sem um trapo para a cobrir, sem dinheiro para lho comprar! A Dionsia tinha-lhe
mesmo oferecido algumas peas de enxoval, que uma mulher que ela tivera em
casa lhe deixara empenhadas. Mas Amlia recusara-se a que o seu filho usasse

cueiros alheios, trazendo-lhe talvez um contgio de doena ou uma sorte infeliz.


E por orgulho no queria escrever a Amaro.
Alm disso as impertinncias da velha tornavam-se odiosas. A pobre D. Josefa,
privada dos auxlios devotos dum padre, um verdadeiro padre (no um abade
Ferro), sentia a sua velha alma indefesa exposta a todas as audcias de Satans:
a viso singular que tivera de S. Francisco Xavier nu, repetia-se agora com uma
insistncia pavorosa a respeito de todos os santos: era toda uma corte do Cu,
arrojando tnicas e hbitos, e bailando-lhe na imaginao sarabandas em plo: e
a velha estava morrendo da perseguio destes espetculos dispostos pelo
demnio. Reclamara o padre Silvrio, mas parecia que um reumatismo geral
tolhia todo o clero diocesano; desde o princpio do Inverno o Silvrio estava
tambm de
165
cama. O abade da Cortegassa, chamado urgentemente, veio - mas para lhe
comunicar a receita nova que descobrira de fazer bacalhau biscainha... Esta
falta dum padre virtuoso dava-lhe um humor feroz, que recaia sobre Amlia
numa chuva de impertinncias.
E a boa senhora estava pensando seriamente em mandar a Amor pelo padre Brito
- quando uma tarde, ao fim do jantar, inesperadamente, o senhor proco
apareceu!
Vinha magnfico, trigueiro do sol e do ar do mar, de casaco novo e botins de
verniz. E palrando longamente acerca da Vieira, dos conhecidos que estavam, da
pesca que fizera, dos soberbos quinos, fazia passar naquele triste quarto de
doente velha todo um sopro vivificante da vida divertida beira-mar. D. Josefa
tinha duas lgrimas nas plpebras do gozo de ver o senhor proco, de o ouvir.
- E a mam passa bem, disse ele a Amlia. J tem os seus trinta banhos. Ganhou
outro dia quinze tostes a uma batotinha que se arranjou... E por c que tm
feito?

Ento a velha rompeu em queixumes amargos: Uma solido! Um tempo de


chuva! Uma falta de amizades! Ai! ela estava ali a perder a sua alma naquela
quinta fatal...
- Pois eu, disse o padre Amaro traando a perna, dei-me to bem que estou com
idias de voltar para a semana.
Amlia, sem se conter, exclamou:
- Ora essa! outra vez!
- Sim, disse ele. Se o senhor chantre me der uma licena de um ms, vou l
pass-lo... Fazem-me
uma cama na sala de jantar do padre-mestre, e tomo um par de banhos... Estava
farto de Leiria, e daquele aborrecimento... '
A velha parecia desolada. O qu, voltar! Deix-las ali a estarrecer de tristeza!
Ele galhofou:
- Ora, as senhoras no precisam c de mim. Esto bem acompanhadas...
- Eu no sei, disse a velha com azedume, se os outros - acentuou com rancor a
palavra - se os
outros no precisam do senhor proco... Eu que no estou bem acompanhada,
estou aqui a perder a minha alma... Que as companhias que ai vm no do honra
nem proveito.
Mas Amlia acudiu para contrariar a velha:
- E de mais a mais o Sr. abade Ferro tem estado doente... Est com reumatismo.
Sem ele a casa parece uma priso.
D. Josefa deu um risinho de escrnio. E o padre Amaro, erguendo- se para sair,
lamentou o bom abade.
- Coitado! Santo homem... Hei-de ir v-lo em tendo vagar. Pois amanh c
apareo, D. Josefa, e havemos de pr essa alma em paz... No se incomode, Sra.
D. Amlia, eu sei agora o caminho.

Mas ela insistiu em o acompanhar. Atravessaram o salo sem uma palavra.


Amaro calava as suas luvas novas de pelica preta. E no alto da escada, muito
cerimoniosamente, tirando o chapu:
- Minha senhora...
E Amlia ficou petrificada vendo-o descer muito tranqilo - como se ela lhe
fosse mais indiferente que os dois lees de pedra, que embaixo dormiam com o
focinho nas patas.
Foi para o quarto chorar de bruos sobre a cama, de raiva e de humilhao. O
infame! E nem uma palavra sobre o filho, sobre a ama, sobre o enxoval! Nem um
olhar de interesse para o seu corpo desfigurado por aquela prenhez que ele lhe
dera! Nenhuma queixa irritada por todos os desprezos que ela lhe mostrara!
Nada! Calava as luvas, com o chapu do lado. Que indigno!
Ao outro dia o padre voltou mais cedo. Esteve muito tempo fechado no quarto
com a velha.
Amlia, impaciente, rondava no salo com os olhos como carves. Ele apareceu
enfim, como na vspera, calando as suas luvas com um ar prspero.
- Ento j? disse ela numa voz que tremia.
- J, sim, minha senhora. Estive numa praticazinha com a D. Josefa.
Tirou o chapu, cumprimentando muito profundamente:
- Minha senhora...
Amlia, lvida, murmurou:
- Infame!
Ele olhou-a, como assombrado:
- Minha senhora... - repetiu.
E, como na vspera, desceu vagarosamente a larga escadaria de pedra.
O primeiro pensamento de Amlia foi denunci-lo ao vigrio-geral. Depois
passou a noite

escrevendo-lhe uma carta - trs pginas de acusaes e de lstimas. Mas toda a


resposta de Amaro, ao outro dia, mandada verbalmente pelo Joozito da quinta,
foi "que talvez aparecesse por l na quinta- feira".
166
Teve outra noite de lgrimas - enquanto na Rua das Sousas o padre Amaro
esfregava as mos, no regozijo do seu "famoso estratagema". E todavia no o
concebera ele mesmo; tinha-lhe sido sugerido na Vieira, onde fora para
desabafar com o padre-mestre e espalhar a mgoa nos ares da praia; fora l que
ele o aprendera, "o famoso estratagema", numa soire, ouvindo dissertar sobre o
amor o brilhante Pinheiro, premiado em direito e glria de Alcobaa.
- Eu nisso, minhas senhoras, dizia o Pinheiro, passando a mo pela cabeleira de
poeta, ao semicrculo de damas que pendiam dos seus lbios de ouro - eu nisso
sou da opinio de Lamartine (era alternadamente da opinio de Lamartine ou de
Pelletan). Digo como Lamartine: a mulher igual sombra: se correis atrs dela,
foge-vos; se fugis dela, corre atrs de vs!
Houve um muito bem, exclamado com convico: mas uma senhora de grandes
propores, me de quatro deliciosos anjos todos Marias (como dizia o Pinheiro),
quis explicaes, porque nunca tinha visto fugir uma sombra.
O Pinheiro deu-as, cientificamente:
- muito fcil de observar, Sra. D. Catarina. Coloque-se vossa excelncia na
praia, quando o sol comea a declinar, com as costas para o astro. Se vossa
excelncia caminha em frente, perseguindo a sombra, ela vai-lhe adiante,
fugindo...
- Fsica recreativa, muito interessante! murmurou o escrivo de direito ao ouvido
de Amaro.
Mas o proco no o escutava; bailava-lhe j na imaginao "o famoso
estratagema". Ah! mal voltasse a Leiria, havia de tratar Amlia como uma

sombra e fugir-lhe para ser seguido... - E o resultado delicioso ali estava - trs
pginas de paixo, com manchas de lgrimas no papel.
Na quinta-feira apareceu, com efeito. Amlia esperava-o no terrao, donde
estivera desde manh vigiando a estrada com um binculo de teatro. Correu a
abrir-lhe o portozinho verde no muro do pomar.
- Ento, por aqui! disse-lhe o proco, subindo atrs dela ao terrao.
- verdade, como estou sozinha...
- Sozinha?
- A madrinha est a dormir e a Gertrudes foi cidade... Tenho estado toda a
manh aqui ao sol.
Amaro ia penetrando pela casa, sem responder; diante duma porta aberta parou,
vendo um grande leito de dossel, e em redor cadeiras de couro de convento.
- o seu quarto aqui, hem?
- .
Ele entrou familiarmente, com o chapu na cabea.
- Muito melhor que o da Rua da Misericrdia. E boas vistas... So as terras do
Morgado, alm... Amlia cerrara a porta, e indo direita a ele, com os olhos
chamejantes:
- Por que no respondeste a minha carta?
Ele riu:
- boa! E por que no respondeste tu s minhas? Quem comeou?
Foste tu. Dizes que no queres pecar mais. Tambm eu no quero pecar mais.
Acabou-se...
- Mas no isso! exclamou ela plida de indignao. que h a pensar na criana,
na ama, no
enxoval... No abandonar-me para aqui!...
Ele ps-se srio, e com um tom ressentido:
- Peo perdo... Eu prezo-me de ser um cavalheiro. Tudo isso h-de ficar
arranjado antes de

voltar para a Vieira...


- Tu no voltas pra Vieira!
- Quem que diz isso?
- Eu, que no quero que vs!
Pusera-lhe fortemente as mos nos ombros, retendo-o, apoderando-se dele: e
ali mesmo, sem
reparar na porta apenas cerrada, abandonou-se-lhe como outrora.

Dai a dois dias o abade Ferro apareceu restabelecido do seu ataque de


reumatismo. Contou a Amlia a bondade do Morgado, que chegara a mandar-lhe
todas as tardes, num aparelho de lata com gua quente, uma galinha cozida em
arroz. Mas era sobretudo a Joo Eduardo que devia a caridade melhor; todas as
suas horas vagas as passava ao p da cama, lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar,
ficando com ele at uma hora da noite num zelo de enfermeiro. Que rapaz! Que
rapaz!
E de repente, tomando as mos ambas de Amlia, exclamou:
- Diga-me, d licena que eu lhe conte tudo, que lhe explique?... Que arranje que
ele perdoe, e esquea... E que se faa este casamento, se faa esta felicidade?
Ela balbuciou espantada, toda escarlate:
167
- Assim de repente... No sei... Hei-de pensar...
- Pense. E Deus a alumie! disse o velho com fervor.
Era nessa noite que Amaro devia entrar pelo portalzinho do pomar de que Amlia
lhe dera a
chave. Infelizmente tinham esquecido a matilha do caseiro. E apenas Amaro ps
o p dentro do pomar rompeu pelo silncio da noite escura um to desabrido

ladrar de ces - que o senhor proco abalou pela estrada, batendo o queixo de
terror.
XXIII
Amaro nessa manh mandou pressa chamar a Dionsia, apenas recebeu o seu
correio. Mas a matrona que estava no mercado veio tarde, quando ele volta da
missa acabava de almoar.
Amaro queria saber ao certo e imediatamente para quando estava a coisa...
- O bom sucesso da pequena?... Entre quinze a vinte dias... Por qu, h
novidade?
Havia; e o proco leu-lhe ento em confidncia uma carta que tinha ao lado.
Era do cnego, que escrevia da Vieira, dizendo "que a S. Joaneira tinha j trinta
banhos e queria
voltar! Eu, acrescentava, perco quase todas as semanas trs, quatro banhos, de
propsito para os espaar e dar tempo, porque c a minha mulher j sabe que eu
sem os meus cinqenta no vai. Ora j tenho quarenta, veja l voc. Demais por
aqui comea a fazer frio deveras. J se tem retirado muita gente. Mande-me pois
dizer pela volta do correio em que estado esto as coisas". E num post-scriptum
dizia: "Tem voc pensado que destino se h-de dar ao fruto?"
- Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a Dionsia.
E Amaro ali mesmo escreveu a resposta ao cnego, que a Dionsia devia levar ao
correio: "A coisa pode estar pronta daqui a vinte dias. Suspenda por todo o modo
a volta da me! Isso de modo nenhum! Diga-lhe que a pequena no escreve nem
vai, porque a excelentssima mana passa sempre adoentada".
E traando a perna:
- E agora, Dionsia, como diz o nosso cnego, que destino se h-de dar ao fruto?
A matrona arregalou os olhos de surpresa:
- Eu pensei que o senhor proco tinha arranjado tudo... Que se ia dar a criana a
criar fora da

terra...
- Est claro, est claro, interrompeu o proco com impacincia. Se a criana
nascer viva
evidente que se h-de dar a criar, e que h-de ser fora da terra... Mas a que
est! Quem h-de ser a ama? isso que eu quero que voc me arranje. Vai sendo
tempo...
A Dionsia pareceu muito embaraada. Nunca gostara de inculcar amas. Ela
conhecia uma boa, mulher forte e de muito leite, pessoa de confiana; mas
infelizmente entrara no hospital, doente... Sabia de outra tambm, at tivera
negcios com ela. Era uma Joana Carreira. Mas no convinha porque vivia
justamente nos Poiais, ao p da Ricoa.
- Qual no convm! exclamou o proco. Que tem que viva na Ricoa?... Em a
rapariga convalescendo as senhoras vm para a cidade, e no se fala mais na
Ricoa.
Mas a Dionsia procurava ainda, arranhando devagar o queixo. Tambm sabia de
outra. Essa morava para o lado da Barrosa, a boa distncia... Criava em casa, era o
seu ofcio... Mas nessa nem falar!
- Mulher fraca, doente?
A Dionsia chegou-se ao proco, e baixando a voz:
- Ai, menino, eu no gosto de acusar ningum. Mas, est provado, uma
tecedeira de anjos!
- Uma qu?
- Uma tecedeira de anjos!
- O que isso? Que significa isso? perguntou o proco.
A Dionsia gaguejou-lhe uma explicao. Eram mulheres que recebiam crianas a
criar em casa.
E sem exceo as crianas morriam... Como tinha havido uma muito conhecida
que era tecedeira, e as criancinhas iam para o Cu... Da que vinha o nome.

- Ento as crianas morrem sempre?


- Sem falhar.
O proco passeava devagar pelo quarto, enrolando o seu cigarro.
- Diga l tudo, Dionsia. As mulheres matam-nas?
Ento a excelente matrona declarou que no queria acusar ningum! Ela no fora
espreitar. No
sabia o que se passava nas casas alheias. Mas as crianas morriam todas...
- Mas quem vai ento entregar uma criana a uma mulher dessas? 168
A Dionsia sorriu, apiedada daquela inocncia de homem.
- Entregam, sim senhor, s dzias!
Houve um silncio. O proco continuava o seu passeio do lavatrio para a janela,
de cabea
baixa.
- Mas que proveito tira a mulher, se as crianas morrem? perguntou de repente.
Perde as
soldadas...
- que se lhe paga um ano de criao adiantado, senhor proco. A dez tostes ao
ms, ou
quartinho, segundo as posses...
O proco, agora encostado janela, rufava devagar nos vidros.
- Mas que fazem as autoridades, Dionsia?
A boa Dionsia encolheu silenciosamente os ombros.
O proco ento sentou-se, bocejou, e estirando as pernas disse:
- Bem, Dionsia, vejo que a nica coisa a fazer falar tal ama que vive ao p da
Ricoa,
Joana Carreira. Eu arranjarei isso...
A Dionsia falou ainda nas peas de enxoval que j tinha comprado por conta do
proco, dum

bero muito barato em segunda mo que vira no Z Carpinteiro - e ia sair com a


carta para o correio, quando o proco erguendo-se e galhofando:
- tia Dionsia, essa coisa da tecedeira de anjos uma histria, hem?
Ento a Dionsia escandalizou-se. O senhor proco sabia que ela no era mulher
de intrigas. Conhecia a tecedeira de anjos h mais de oito anos, de lhe falar e de a
ver na cidade quase todas as semanas. Ainda no sbado passado a vira sair da
taberna do Grego... O senhor proco j tinha ido Barrosa?
Esperou a resposta do proco, e continuou:
- Pois bem, sabe o comeo da freguesia. H um muro cado. Depois um
caminho que desce. Ao fundo desse corregozito encontra um poo atulhado.
Adiante, retirada, h uma casita que tem um alpendre. l que ela vive...
Chama-se Carlota... Isto para lhe mostrar que sei, amiguinho!
O proco ficou toda a manh em casa, passeando pelo quarto, alastrando o cho
de pontas de cigarros. Ali estava agora diante daquele episdio fatal, que at a
fora apenas um cuidado distante - dispor do filho!
Era bem grave entreg-lo assim a uma ama desconhecida, na aldeia. A me,
naturalmente, havia de querer ir a todo o momento v-lo, a ama poderia falar aos
vizinhos. O rapaz viria a ser, na freguesia, o filho do proco... Algum invejoso,
que lhe cobiasse a parquia, poderia denunci-lo ao senhor vigrio- geral.
Escndalo, sermo, devassa: e, se no fosse suspenso, poderia como o pobre
Brito ser mandado para longe, para a serra, outra vez para os pastores... Ah! se o
fruto nascesse morto! Que soluo natural e perptua! E para a criana, uma
felicidade! Que destino podia ele ter neste duro mundo? Era o enjeitado, era o
filho do padre. Ele era pobre, a me pobre... O rapaz cresceria na misria,
vadiando, apanhando o estrume das bestas, remeloso e tosco... De necessidade
em necessidade iria conhecendo todas as formas do inferno humano: os dias sem
po, as noites regeladas, a brutalidade da taberna, a cadeia por fim. Uma enxerga
na vida, uma vala na morte... E se morresse - era um anjinho que Deus recolhia
ao Paraso...

E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem


posto, tecedeira de anjos... Com razo. Quem prepara uma criana para a vida
com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos e para as lgrimas... Mais
vale torcer-lhe o pescoo, e mand-la direita para a eternidade bem- aventurada!
Olha ele! Que vida a sua, nesses trinta anos atrs! Uma infncia melanclica, com
aquela pega da marquesa de Alegros; depois a casa na Estrela, com o alarve do tio
toucinheiro; e da as clausuras do seminrio, a neve constante de Feiro, e ali em
Leiria tantos transes, tantas amarguras... Se lhe tivessem esmagado o crnio ao
nascer, estava agora com duas asas brancas, cantando nos coros eternos. Mas
enfim no havia que filosofar: era partir para Poiais e falar ama, Sra. Joana
Carreira.
Saiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa. Ao p da ponte veio-lhe porm de
repente a idia, a curiosidade de ir Barrosa ver a tecedeira... No lhe falaria:
examinaria apenas a casa, a figura da mulher, os aspectos sinistros do stio...
Demais como proco, como autoridade eclesistica, devia observar aquele pecado
organizado num recanto de estrada, impune e rendoso. Podia mesmo denuncilo ao senhor vigrio-geral ou ao secretrio do governo civil...
Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas. Por aquela tarde suave e lustrosa
fazia-lhe bem um passeio a cavalo. No hesitou, ento; foi alugar uma gua
estalagem do Cruz; e da a pouco, de espora no p esquerdo, choutava a direito
pelo caminho da Barrosa.
Ao chegar ao crrego, de que lhe falara a Dionsia, apeou, foi andando com a gua
pela arreata. A tarde estava admirvel; muito alto no azul, uma grande ave fazia
semicrculos vagarosos.
Encontrou enfim o poo atulhado ao p de dois castanheiros onde pssaros ainda
chilreavam; adiante, num terreno plano, muito isolada, l estava a casa com o
seu alpendre; o sol declinando batia-lhe
169

na nica janela do lado, acendendo-a num resplendor de ouro e brasa; e, muito


delgado, elevava-se da chamin um fumo claro no ar sereno.
Uma grande paz estendia-se em redor; no monte, escuro da rama dos pinheiros
baixos, a capelinha da Barrosa punha a alvura alegre da sua parede muito caiada.
Amaro ia imaginando ento a figura da tecedeira; sem saber por qu, supunha-a
muito alta, com um caro trigueiro onde dois olhos de bruxa refulgiam.
Defronte da casa prendeu a gua cancela, e olhou pela porta aberta: era uma
cozinha trrea, de grande lareira, com sada para o ptio estradado de mato onde
dois bacorinhos fossavam. Na prateleira da chamin rebrilhava a loua branca.
Dos lados pendiam grandes caarolas de cobre, dum lustro de casa rica. Num
velho armrio meio aberto branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem
que uma claridade parecia sair do asseio e do arranjo das coisas.
Amaro ento bateu forte as palmas. Uma rola pulou assustada, dentro da sua
gaiola de vime pendurada da parede. Depois chamou alto:
- Sra. Carlota!
Imediatamente do lado do ptio uma mulher apareceu, com um crivo na mo. E
Amaro, surpreendido, viu uma agradvel criatura de quase quarenta anos, forte
de peitos, ampla de encontros, muito branca no pescoo, com duas ricas
arrecadas, e uns olhos negros que lhe lembraram os de Amlia ou antes o brilho
mais repousado dos da S. Joaneira.
Assombrado, balbuciou:
- Creio que me enganei... Aqui que mora a Sra. Carlota?
No se enganara, era ela; mas com a idia que a figura medonha "que tecia os
anjos" devia estar
algures, agachada num vo tenebroso da casa, perguntou ainda: - Vossemec
vive aqui s?
A mulher olhou-o desconfiada:
- No senhor, disse por fim, vivo com o meu marido...

Justamente o marido saa do ptio, - medonho, esse, quase ano, com a cabea
embrulhada num
leno e muito enterrada nos ombros, a face de uma amarelido de cera oleosa e
lustrosa; no queixo anelavam-se os plos raros duma barba negra; e sob as
arcadas fundas sem sobrancelhas, vermelhejavam dois olhos raiados de sangue,
olhos de insnia e de bebedeira.
- Para o seu servio, vossa senhoria quer alguma coisa? disse, muito colado saia
da mulher. Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando uma histria que
ia forjando laboriosamente. Era uma parente que ia ter o seu bom sucesso. O
marido no pudera vir falar-lhes porque estava doente... Queria uma ama para
lhes ir para casa, e tinham-lhe dito...
- No, fora de casa, no. C em casa - disse o ano que no se despegava das saias
da mulher, mirando o proco de lado com o seu medonho olho injetado.
Ah, ento tinham-no informado mal... Sentia; mas o que o parente queria era
uma ama para casa. Veio dirigindo-se para a gua, devagar; parou, e abotoando o
casaco:
- Mas em casa recebem crianas para criao?... - perguntou ainda.
- Convindo o ajuste, disse o ano que o seguia.
Amaro arranjou a espora no p, deu um puxo ao estribo, demorando-se,
rondando em tomo da cavalgadura:
- necessrio trazer-lha c, j se sabe.
O ano voltou-se, trocou um olhar com a mulher que ficara porta da cozinha.
- Tambm se lhe vai buscar, disse.
Amaro batia palmadas no pescoo da gua.
- Mas sendo a coisa de noite, agora com esse frio, matar a criana...
Ento os dois, falando ao mesmo tempo, afirmaram que no lhe fazia mal.
Havendo, j se sabe,

carinho e agasalho...
Amaro cavalgou vivamente a gua, deu as boas-tardes e trotou pelo crrego.

Amlia agora comeava a andar assustada. De dia e de noite s pensava naquelas


horas, que se avizinhavam, em que devia sentir chegarem as dores. Sofria mais
que durante os primeiros meses; tinha tonturas, perverses de gosto - que o
doutor Gouveia observava, franzindo a testa descontente. As noites eram ms,
numa turbao de pesadelos. J no eram as alucinaes religiosas: isso cessara
numa sbita aplacao de todo o terror devoto: no sentiria menos temor de
Deus, se j fosse uma santa canonizada. Eram outros medos, sonhos em que o
parto se lhe representava de modos monstruosos: ora era um ser medonho que
lhe saltava das entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era uma cobra
infindvel que
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lhe saa de dentro, durante horas, como uma fita de lguas, enrolando-se no
quarto em roscas sucessivas que ganhavam a altura do teto; e acordava em
tremuras nervosas que a deixavam prostrada.
Mas ansiava por ter a criana. Estremecia idia de ver um dia inesperadamente
a me aparecer na Ricoa. Ela escrevera-lhe, queixando-se do senhor cnego que
a retinha na Vieira, dos temporais que j reinavam, da solido que se ia fazendo
na praia. Alm disso D. Maria da Assuno voltara; felizmente, uma noite
providencialmente gelada dera-lhe durante a jornada uma inflamao dos
brnquios - e estava de cama para semanas, segundo dizia o doutor Gouveia. O
Libaninho, esse, tambm viera Ricoa; e sara lastimando-se de no ter visto a
Amelinha "que tinha nesse dia enxaqueca".
- Se isto demora mais quinze dias, vem-se a descobrir tudo, dizia ela,
choramigando, a Amaro.
- Pacincia, filha. No se pode forar a natureza...
- O que tu me tens feito sofrer! suspirava ela, o que tu me tens feito sofrer!

Ele calava-se resignado - muito bom, muito temo agora com ela. Vinha-a ver
quase todas as
manhs, porque no queria pelas tardes encontrar o abade Ferro.
Tranqilizara-a a respeito da ama, dizendo-lhe que falara mulher da Ricoa
inculcada pela
Dionsia. Era uma escolha rica a Sra. Joana Carreira! Mulher forte como um
carvalho, com barricas de leite, e dentes de marfim...
- Fica-me to longe para vir ver depois a criana... - suspirava ela.
Tomavam-na agora pela primeira vez entusiasmos de me. Desesperava-se em
no poder ela mesma costurar o resto do enxoval. Queria que o rapaz - porque
havia de ser um rapaz! - se chamasse Carlos. Cismava-o j homem, e oficial de
cavalaria. Enternecia-se com a esperana de o ver gatinhar...
- Ai, eu que o queria criar, se no fosse a vergonha!...
- Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.
Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os dias era a idia de ele ser um
enjeitadinho!
Um dia veio ao abade com um plano extraordinrio "que Lhe inspirara Nossa
Senhora": ela
casaria j com Joo Eduardo, mas o rapaz devia por uma escritura adotar o
Carlinhos! Que para que o anjinho no fosse um enjeitado, casava at com um
calceteiro da estrada! E apertava as mos do abade, numa suplicao loquaz. Que
convencesse Joo Eduardo, que desse um pap ao Carlinhos! Queria ajoelhar aos
ps dele, do senhor abade, que era o seu pai e o seu protetor.
- Oh, minha senhora, sossegue, sossegue. Esse tambm o meu desejo, como
lhe disse. E h-de arranjar-se, mas mais tarde, disse o bom velho, atarantado
daquela excitao.
Depois, da a dias, foi outra exaltao: descobrira de repente, uma manh, que
no devia trair Amaro, "porque era o pap do seu Carlinhos". E disse-o ao abade;

fez corar os sessenta anos do bom velho, palrando muito convencidamente dos
seus deveres de esposa para com o proco.
O abade, que ignorava as visitas do proco todas as manhs, assombrou-se.
- Minha senhora, que est a dizer? que est a dizer? Caia em si... Que
vergonha!... Imaginei que lhe tinham passado essas loucuras.
- Mas o pai do meu filho, senhor abade, disse ela, olhando-o muito sria.
Fatigou ento Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe
cada meia hora que era o "pap do seu Carlinhos".
- Bem sei, filha, bem sei, dizia ele impaciente. Obrigado. No me gabo da
honra...
Ela chorava, ento, aninhada no sof. Era necessria toda uma complicao de
carcias para a calmar. Fazia-o sentar num banquinho junto dela; tinha-o ali
como um boneco, contemplando-o, coando- lhe devagarinho a coroa; queria
que se tirasse a fotografia ao Carlinhos para a trazerem ambos numa medalha ao
pescoo; e se ela morresse, ele havia de levar o Carlinhos sepultura, ajoelh-lo,
pr-lhe as mozinhas, faz-lo rezar pela mam. Atirava-se ento para a
almofada, tapando o rosto com as mos:
- Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre de mim!
- Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.
Ah, aquelas manhs na Ricoa! Eram para ele como uma penalidade injusta. Ao
entrar tinha de ir
velha escutar-lhe as lamrias. Depois, era aquela hora com Amlia, que o
torturava com as pieguices dum sentimentalismo histrico, - estirada no sof,
grossa como um tonel, com a face intumescida, os olhos papudos...
Numa dessas manhs, Amlia, que se queixava de cibras, quis dar um passeio
pelo quarto apoiada a Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu velho robe-dechambre, quando se sentiram, embaixo no caminho, passos de cavalos;

chegaram janela - mas Amaro recuou vivamente, deixando Amlia que


embasbacara com a face contra a vidraa. Na estrada galhardamente montado
numa gua baia, passava Joo Eduardo de palet branco e chapu alto; ao lado
trotavam os dois Morgaditos, um num pnei, outro acorreado num burro; e atrs,
a distncia, num passo de respeito e de cortejo, um criado de farda, de bota de
cano e espores enormes, com uma libr muito larga que lhe fazia na ilharga
rugas grotescas, e no chapu a roseta escarlate. Ela ficara assombrada, seguindoos at que as costas do lacaio desapareceram
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esquina da casa. Sem uma palavra, veio sentar- se no sof. Amaro, que
continuava passeando pelo quarto, teve ento um risinho sarcstico:
- O idiota, de lacaio retaguarda!
Ela no respondeu, muito escarlate. E Amaro, chocado, saiu atirando com a
porta, foi para o quarto de D. Josefa contar-lhe a cavalgada, e vituperar o
Morgado.
- Um excomungado de criado de farda! exclamava a boa senhora, com as mos
apertadas na cabea. Que vergonha, senhor proco, que vergonha para a nobreza
destes reinos!
Desde esse dia Amlia no tornou a choramigar, se pela manh o senhor proco
no vinha. Quem esperava agora com impacincia era o Sr. abade Ferro, pela
tarde. Apoderava-se dele, queria-o numa cadeira junto ao canap: e depois de
rodeios demorados de ave que tenteia a presa, caa sobre a pergunta fatal - se
tinha visto o Sr. Joo Eduardo?
Queria saber o que ele dissera, se falara nela, se a avistara janela. Torturava-o
com curiosidades sobre a casa do Morgado, a moblia da sala, o nmero de lacaios
e de cavalos, se o criado de farda servia mesa...
E o bom abade respondia com pacincia - contente de a ver esquecida do proco,
ocupada de Joo Eduardo: tinha agora a certeza que aquele casamento se faria: ela

evitava, de resto, pronunciar sequer o nome de Amaro, e uma vez mesmo


respondeu ao abade que lhe perguntava se o senhor proco voltara Ricoa:
- Ai, vem pela manh ver a madrinha... Mas eu no lhe apareo, que nem estou
decente...
Todo o tempo que podia estar de p, passava-o agora janela, muito arranjada da
cinta para cima que era o que se podia ver da estrada - enxovalhada das saias para
baixo. Estava esperando Joo Eduardo, os Morgados e o lacaio; e tinha de vez em
quando, com efeito, o gozo de os ver passar, naquele passo bem lanado de
cavalos de preo, sobretudo o da gua baia de Joo Eduardo, que ele defronte da
Ricoa fazia sempre ladear, de chicote atravessado e perna Marialva, como lhe
ensinara o Morgado. Mas era o lacaio, sobretudo, que a encantava: e com o nariz
nos vidros seguia-o num olhar guloso, at que volta da estrada via desaparecer
o pobre velho, de dorso corcovado, com a gola da farda at nuca e as pernas
bamboleantes.
E para Joo Eduardo que delcia aqueles passeios com os Morgaditos, na gua
baia! Nunca deixava de ir cidade: fazia-lhe bater o corao o som das ferraduras
sobre o lajedo: ia passar diante da Amparo da botica, diante do cartrio do Nunes,
que tinha a sua banca ao p da janela, diante da Arcada, diante do senhor
administrador que l estava na varanda de binculo para a Teles - e o seu
desgosto era no poder entrar com a gua, os Morgaditos e o lacaio pelo escritrio
do doutor Godinho que era no interior da casa.
Foi um dia, depois dum desses passeios triunfais, que voltando s duas horas da
Barrosa, ao chegar ao Poo das Bentas e ao subir para o caminho de carros, viu de
repente o Sr. padre Amaro que descia montado num garrano. Imediatamente
Joo Eduardo fez caracolar a gua. O caminho era to estreito, que apesar de se
chegarem s sebes quase roaram os joelhos - e Joo Eduardo pde ento, do alto
da sua gua de cinqenta moedas, agitando ameaadoramente o chicote,
esmagar com um olhar o padre Amaro que se encolhia muito plido, com a barba
por fazer, a face biliosa, esporeando ferozmente o garrano ronceiro. No alto do
caminho Joo Eduardo ainda parou, voltou-se sobre a sela, e viu o proco que

apeava porta do casebre isolado onde h pouco, ao passar, os Morgaditos


tinham rido "do ano".
- Quem vive ali? perguntou Joo Eduardo ao lacaio.
- Uma Carlota... M gente, Sr. Joozinho!
Ao passar na Ricoa, Joo Eduardo, como sempre, ps a passo a gua baia. Mas
no viu por trs
dos vidros a costumada face plida sob o leno escarlate. As portadas da janela
estavam meio cerradas; e ao porto, desatrelado com os vares em terra, o
cabriol do doutor Gouveia.

que tinha chegado enfim o dial Nessa manh viera da Ricoa um moo da
quinta com um bilhete de Amlia quase ininteligvel - Dionsia depressa, a coisa
chegou! Trazia ordem tambm de ir chamar o senhor Gouveia. Amaro foi ele
mesmo avisar a Dionsia.
Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josefa, a prpria D. Josefa, lhe inculcara uma
ama - que ele j ajustara, grande mulher, rija como um castanheiro. E agora
combinaram rapidamente que nessa noite Amaro se postaria com a ama
portinha do pomar, e Dionsia viria dar-lhe a criana bem atabafada.
- s nove da noite, Dionsia. E no nos faa esperar! - recomendou-lhe ainda
Amaro vendo-a abalar num espalhafato.
Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face a face com aquela dificuldade
que ele sentia como uma coisa viva fix-lo e interrog-lo: - Que havia de fazer
criana? Tinha ainda tempo de ir aos
172
Poiais ajustar a outra ama, a boa ama que a Dionsia conhecia; ou podia montar a
cavalo e ir Barrosa falar Carlota... E ali estava, diante daqueles dois caminhos,
hesitando numa agonia. Queria serenar, discutir aquele caso como se fosse um

ponto de teologia, pesando-lhe os prs e os contras: mas tinha temerariamente


diante de si, em lugar de dois argumentos, duas vises: - a criana a crescer e a
viver nos Poiais, ou a criana esganada pela Carlota a um canto da estrada da
Barrosa... - E, passeando pelo quarto, suava de angstia, quando no patamar a
voz inesperada do Libaninho gritou:
- Abre; parocozinho, que sei que ests em casa!
Foi necessrio abrir ao Libaninho, apertar-lhe a mo, oferecer-lhe uma cadeira.
Mas o Libaninho felizmente no se podia demorar. Passara na rua, e subira a
saber se o amigo proco tinha noticia daquelas santinhas da Ricoa.
- Vo bem, vo bem, disse Amaro que obrigava a face a sorrir, a prazentear.
- Eu no tenho podido ir l, que tenho andado mais ocupado!... Estou de servio
no quartel... No te rias, parocozinho, que estou l fazendo muita virtude...
Meto-me com os soldadinhos, falo-lhes das chagas de Cristo...
- Andas a converter o regimento, disse Amaro que mexia nos papis da mesa,
passeava, numa inquietao de animal preso.
- No para as minhas foras, proco, que se eu pudesse!... Olha, agora vou eu
levar a um sargento uns bentinhos... Foram benzidos pelo Saldanhinha, vo
cheios de virtude. Ontem dei outros iguais a um anspeada, perfeito rapaz, um
amor de rapaz. Pus-lhos eu mesmo por baixo da camisola. Perfeito rapaz!...
- Devias deixar esses cuidados pelo regimento ao coronel, disse Amaro abrindo a
janela, abafando de impacincia.
- Credo, olha o mpio! Se o deixassem desbatizava o regimento. Pois adeus,
parocozinho. Ests amarelinho, filho... Precisas purga, eu sei o que isso .
Ia a sair, mas porta, parando:
- Ai, dize c, parocozinho, dize c: tu ouviste alguma coisa?
- De qu?

- Foi o padre Saldanha que mo disse. Diz que o nosso chantre declarara (palavras
do
Saldanhinha) que lhe constava que ia na cidade um escndalo com um senhor
eclesistico... Mas no disse quem nem o qu... O Saldanha qui-lo sondar, mas o
chantre diz que recebera s uma denncia vaga, sem nome... Tenho estado a
pensar: quem ser?
- Pataratas do Saldanha...
- Ai, filho ! Deus queira que sejam. Que quem folga, so os mpios... Quando
fores pela Ricoa d recados quelas santinhas...
E pulou pelos degraus a ir levar "a virtude" ao batalho.
Amaro ficara aterrado. Era ele decerto, eram os seus amores com Amlia que j
iam chegando ao vigrio-geral em denncias tortuosas! E ali vinha agora aquele
filho, criado a meia lgua da cidade, ficar como uma prova viva!... Parecia-lhe
extraordinrio, quase sobrenatural, ter o Libaninho, que em dois anos no lhe
viera a casa duas vezes, ter o Libaninho entrado com aquela nova terrvel,
quando ele estava ali numa batalha com a conscincia. Era como a Providncia,
que sob a forma grotesca do Libaninho, vinha trazer-lhe o seu aviso, murmurarlhe: "No deixes viver quem te pode trazer o escndalo! Olha que j se suspeita
de ti!".
Era decerto Deus apiedado que no queria que houvesse na terra mais um
enjeitado, mais um miservel, - e que reclamava o seu anjo!...
No hesitou: partiu para a estalagem do Cruz, e da a cavalo para a casa de
Carlota. Demorou-se l at s quatro horas.
De volta a casa atirou o chapu para cima da cama, e sentiu enfim um alvio de
todo o seu ser.
Estava acabado! L falara Carlota e ao ano; l lhe pagara um ano adiantado;
agora era esperar pela noite!

Mas na solido do quarto toda a sorte de imaginaes mrbidas o assaltavam: via


a Carlota a esganar a criancinha roxa; via os cabos de polcia mais tarde a
desenterrar o cadver, o Domingos da administrao redigindo sobre um joelho o
auto de corpo de delito, e ele, de batina, arrastado para cadeia de S. Francisco, em
ferros, ao lado do ano! Tinha quase vontade de montar a cavalo, voltar Barrosa
desfazer o ajuste. Mas uma inrcia retinha-o. Depois, nada o forava noite a
entregar a criana Carlota... Podia lev-la bem agasalhada Joana Carreira, a
boa ama dos Poiais...
Para escapar quelas idias que lhe faziam sob o crnio um rudo de tormenta,
saiu, foi ver Natrio que j se erguia - e que lhe gritou imediatamente do fundo
da poltrona:
- Ento voc viu, Amaro? O idiota, de lacaio atrs!
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Joo Eduardo passara-lhe na rua, na gua baia, com os Morgadinhos; e Natrio
desde ento rugia de impacincia de estar ali amarrado cadeira e no poder
recomear a campanha, expuls-lo por uma boa intriga da casa do Morgado,
arrancar-lhe a gua e o lacaio.
- Mas no as perde, em Deus me dando pemas...
- Deixe l o homem, Natrio, disse Amaro.
Deix-lo! quando tinha uma idia prodigiosa - que era provar ao Morgado, com
documentos, que
o Joo Eduardo era um beato! Que lhe parecia, ao amigo Amaro?
Era engraado, com efeito. O homem no deixava de o merecer, s pela maneira
como olhava
para a gente de bem, do alto da gua... - E Amaro fazia-se vermelho, ainda
indignado do encontro, de manh, no caminho de carros da Barrosa.
- Est claro! exclamou Natrio. Para que somos ns sacerdotes de Cristo? Para
exaltar os humildes e derrubar os soberbos.

Dali, Amaro foi ver D. Maria da Assuno - que j se erguera tambm - que lhe
fez a histria da sua bronquite e a enumerao dos ltimos pecados: o pior era
que, para se distrair um bocado na convalescena, recostava-se por trs da
vidraa, e um carpinteiro que morava defronte embasbacava para ela; e por
influncia do maligno, no tinha foras para se retirar. para dentro, e vinhamlhe pensamentos maus...
- Mas vossa senhoria no est com ateno, senhor proco.
- Ora essa, minha senhora!
E apressou-se a pacificar-lhe os escrpulos - porque a salvao daquela alma
idiota era para ele
um emprego melhor que a mesma parquia.
J escurecia quando entrou em casa. A Escolstica queixou-se da demora que lhe
esturrara o
jantar. Mas Amaro tomou apenas um copo de vinho e uma garfada de arroz, que
engoliu de p, olhando com terror pela janela a noite que impassivelmente caia.
Entrava no quarto a ver se os candeeiros j estavam acesos, quando o coadjutor
apareceu. Vinha falar-lhe sobre o batizado do filho do Guedes, que estava
marcado para o dia seguinte s nove horas.
- Trago luz? - disse de dentro a criada sentindo a visita.
- No! gritou logo Amaro.
Temia que o coadjutor visse a alterao que sentia nas faces, ou que se instalasse
para toda a
noite.
- Diz que vem na Nao de anteontem um artigo muito bom - observou o
coadjutor, grave.
- Ah! fez Amaro.
Passeava no seu trilho costumado, do lavatrio para a janela; parava s vezes a
rufar nos vidros;

j se tinham acendido os candeeiros.


Ento o coadjutor, chocado com aquela treva do quarto e aquele passear de fera
numa jaula,
ergueu-se, e com dignidade:
- Estou a incomodar talvez...
- No!
E o coadjutor satisfeito sentou-se, com o seu guarda-chuva entre os joelhos.
- Agora anoitece mais cedo, disse.
- Anoitece...
Enfim Amaro desesperado declarou-lhe que tinha uma enxaqueca odiosa, que se
ia encostar: e o
homem saiu, depois de lhe lembrar ainda o batizado do menino do seu amigo
Guedes.
Amaro partiu logo para a Ricoa. Felizmente a noite estava tenebrosa e quente,
anunciando chuva. Ia agora tomado duma esperana que lhe fazia bater o
corao: era que a criana nascesse mortal E era bem possvel. A S. Joaneira em
nova tivera duas crianas mortas; a ansiedade em que vivera Amlia devia ter
perturbado a gestao. E se ela morresse tambm? Ento a esta idia, que nunca
lhe acudira, invadiu-o bruscamente uma piedade, uma ternura por aquela boa
rapariga que o amava tanto, e que agora, por obra dele, gritava dilacerada de
dores. E todavia, se ambos morressem, ela e a criana, era o seu pecado e o seu
erro que caam para sempre nos escuros abismos da eternidade... Ele ficava,
como antes da sua vinda a Leiria, um homem tranqilo, ocupado da sua igreja,
duma vida limpa e lavada como uma
pgina branca!
Parou junto ao casebre em runas beira da estrada, onde devia estar a pessoa
que da Barrosa
vinha buscar a criana: no se tinha decidido se seria o homem ou a Carlota: e
Amaro receava encontrar o ano, para lhe levar o filho, com aqueles olhos
raiados dum sangue mau. Falou para dentro, para as trevas do casebre.

- Ol!
Foi um alvio quando a clara voz da Carlota disse na negrura: - C est!
174
- Bem, esperar, Sra. Carlota.
Estava contente: parecia-lhe que no tinha nada a temer, se o filho partisse
aninhado contra aquele robusto seio de quarentona fecunda, to fresca e to
lavada.
Foi ento rondar a casa. Estava apagada e muda, como um empastamento mais
denso de sombra naquela lgubre noite de Dezembro. Nem uma fenda de luz saa
da janelas do quarto de Amlia. No ar muito pesado nenhuma folhagem
ramalhava. E a Dionsia no aparecia.
Aquela demora torturava-o. Podia passar gente e v-lo rondar na estrada. Mas
repugnava-lhe ir ocultar-se no casebre em runas ao p de Carlota. Foi andando
ao comprido do muro do pomar, voltou, - e viu ento na porta envidraada do
terrao uma claridade de luz aparecer.
Correu para a portinha verde do pomar que quase imediatamente se abriu; e a
Dionsia, sem uma palavra, ps-lhe nos braos um embrulho.
- Morta? perguntou ele.
- Qual! Vivo! Um rapago!
E fechou a porta devagarinho, quando os ces, farejando rumor, comeavam a
ladrar.
Ento o contato do seu filho, contra o seu peito, desmanchou como um vendaval
todas as idias
de Amaro. O qu! ir d-lo quela mulher, tecedeira de anjos, que na estrada o
atiraria a algum valado, ou em casa o arremessaria latrina? Ah! no, era o seu
filho!

Mas que fazer, ento? No tinha tempo de correr aos Poiais e acordar a outra
ama... A Dionsia no tinha leite... No o podia levar para a cidade... Oh! que
desejo furioso de bater quela porta da quinta, precipitar-se para o quarto de
Amlia, meter-lhe o pequerruchinho na cama, muito agasalhado, e todos trs
ficarem ali como no conchego dum cu! Mas qu, era padre! Maldita fosse a
religio que assim o esmagava!
De dentro do embrulho saiu um gemido. Correu ento para o casebre - quase
esbarrou com a Carlota, que se apoderou logo da criana.
- A est, disse ele. Mas oua l. Isto agora srio. Agora outra coisa. Olhe que o
no quero morto... para o tratar. O que se passou no vale... para o criar!
para viver. Voc tem a sua fortuna... Trate dele!...
- No tem dvida, no tem dvida, dizia a mulher apressada.
- Escute... A criana no vai bem agasalhada. Ponha-lhe o meu capote.
- Vai bem, senhor, vai bem.
- No vai, com mil diabos! o meu filho! H-de levar o capote! No quero que
morra de frio!
Atirou-lho aos ombros com fora, traando-lho sobre o peito, agasalhando a
criana; - e a mulher j enfastiada meteu rapidamente pela estrada.
Amaro ficou ali plantado no meio do caminho, vendo o vulto perder-se na
negrura. Ento todos os seus nervos, depois daquele choque, se relaxaram numa
fraqueza de mulher sensvel - e rompeu a chorar.
Muito tempo rondou a casa. Mas ela permanecia na mesma escurido, naquele
silncio que o aterrava. Depois, triste e fatigado, veio voltando para a cidade,
quando batiam as dez badaladas na S.

A essa hora, na sala de jantar da Ricoa, o doutor Gouveia ceava tranqilamente o


frango assado que lhe preparara a Gertrudes, para depois das canseiras do dia. O
abade Ferro, sentado junto da mesa, assistia-lhe ceia; viera munido dos

sacramentos para o caso de haver perigo. Mas o doutor estava satisfeito; durante
as oito horas de dores a rapariga mostrara- se corajosa; o parto fora feliz, de
resto, e sara um rapago que fazia muita honra ao pap.
O bom abade Ferro baixava castamente os olhos queles detalhes, no seu pudor
de sacerdote.
- E agora, dizia o doutor trinchando o peito do frango, agora que eu introduzi a
criana no mundo, os senhores (e quando digo os senhores, quero dizer a Igreja)
apoderam-se dele e no o largam at a morte. Por outro lado, ainda que menos
sofregamente, o Estado no o perde de vista... E a comea o desgraado a sua
jornada do bero sepultura, entre um padre e um cabo de polcia!
O abade curvou-se, e tomou uma estrondosa pitada preparando-se para a
controvrsia.
- A Igreja, continuava o doutor com serenidade, comea, quando a pobre criatura
ainda nem tem sequer conscincia da vida, por lhe impor uma religio...
O abade interrompeu, meio srio, meio rindo:
- doutor, ainda que no seja seno por caridade com a sua alma, devo advertilo que o sagrado Conclio de Trento, cnon dcimo terceiro, comina a pena de
excomunho contra todo o que disser que o batismo nulo, por ser imposto sem
a aceitao da razo.
175
- Tomo nota, abade. Eu estou acostumado a essas amabilidades do Conclio de
Trento para comigo e outros colegas...
- Era uma assemblia respeitvel! acudiu o abade j escandalizado.
- Sublime, abade. Uma assemblia sublime. O Conclio de Trento e a Conveno
foram as duas mais prodigiosas assemblias de homens que a terra tem
presenciado...

O abade fez uma visagem de repugnncia quele cotejo irreverente entre os


santos autores da doutrina e os assassinos do bom rei Lus XVI.
Mas o doutor prosseguiu:
- Depois, a Igreja deixa a criana em paz algum tempo enquanto ela faz a sua
dentio e tem o seu ataque de lombrigas...
- V, v, doutor! murmurava o abade, escutando-o pacientemente, de olhos
cerrados - como significando "anda, anda, enterra bem essa alma no abismo de
fogo e pez"!
- Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros sintomas de razo,
continuava o doutor, quando se torna necessrio que ele tenha, para o distinguir
dos animais, uma noo de si mesmo e do Universo, ento entra-lhe a Igreja em
casa e explica-lhe tudo! Tudo! To completamente, que um gaiato de seis anos
que no sabe ainda o b-a-b tem uma cincia mais vasta, mais certa, que as
reais academias combinadas de Londres, Berlim e Paris! O velhaco no hesita um
momento para dizer como se fez o Universo e os seus sistemas planetrios; como
apareceu na Terra a criao; como se sucederam as raas; como passaram as
revolues geolgicas do globo; como se formaram as lnguas; como se inventou
a escrita... Sabe tudo: possui completa e imutvel a regra para dirigir todas as
aes e formar todos os juzos; tem mesmo a certeza de todos os mistrios; ainda
que seja mope como uma toupeira v o que se passa na profundidade dos cus e
no interior do globo; conhece, como se no tivesse feito seno assistir a esse
espetculo, o que lhe h-de suceder depois de morrer... No h problema que
no decida... E quando a Igreja tem feito deste marmanjo uma tal maravilha de
saber, manda-o ento aprender a ler... O que eu pergunto : para qu?
A indignao tinha emudecido o abade.
- Diga l, abade, para que os mandam os senhores ensinar a ler? Toda a cincia
universal, o res scibilis, est no Catecismo: meter-lho na memria, e o rapaz
possui logo a cincia e conscincia de tudo... Sabe tanto como Deus... De fato,
Deus mesmo.

O abade pulou.
- Isso no discutir, exclamou, isso no discutir!... Isso so chalaas Voltaire!
Essas coisas devem-se tratar mais de alto...
- Como chalaas, abade? Tome um exemplo: a formao das lnguas. Como se
formaram? Foi Deus, que descontente com a Torre de Babel...
Mas a porta da sala abriu-se, e apareceu a Dionsia. Havia pouco o doutor tinhalhe dado uma desanda no quarto de Amlia; e agora a matrona falava-lhe sempre
encolhida de terror.
- Senhor doutor, disse ela no silncio que se fez, a menina acordou e diz que quer
o filho. - E ento? A criana levaram-na, no?
- A criana levaram-na... disse a Dionsia.
- Bem, acabou-se...
Dionsia ia fechar a porta, mas o doutor chamou-a.
- Oua l, diga-lhe que a criana vem amanh... Que amanh sem falta lha
trazem. Minta. Minta como um co; aqui o senhor abade d licena... Que durma,
que sossegue.
A Dionsia retirou-se. Mas a controvrsia no recomeou: diante daquela me
que acordava depois da fadiga do parto e reclamava o seu filho, o filho que lhe
tinham levado para longe e para sempre, os dois velhos esqueceram a Torre de
Babel e a formao das lnguas. O abade, sobretudo, parecia comovido. Mas o
doutor no tardou, sem piedade, a lembrar-lhe que eram aquelas as
conseqncias da situao do padre na sociedade...
O abade baixou os olhos, ocupado na sua pitada, sem responder, como ignorando
que houvesse um padre naquela histria infeliz.
O doutor, ento, segundo a sua idia, discursou contra a preparao e educao
eclesistica.

- A tem o abade uma educao dominada inteiramente pelo absurdo: resistncia


s mais justas solicitaes da natureza, e resistncia aos mais elevados
movimentos da razo. Preparar um padre criar um monstro que h-de passar a
sua desgraada existncia numa batalha desesperada contra os dois fatos
irresistveis do Universo - a fora da Matria e a fora da Razo!
- Que est o senhor a dizer? exclamou assombrado o abade.
- Estou a dizer a verdade. Em que consiste a educao dum sacerdote? Primo: em
o preparar para o celibato e para a virgindade; isto , para a supresso violenta
dos sentimentos mais naturais. Secundo:
176
em evitar todo o conhecimento e toda a idia que seja capaz de abalar a f
catlica; isto , a supresso forada do esprito de indagao e de exame,
portanto de toda a cincia real e humana...
O abade erguera-se, ferido duma piedosa indignao:
- Pois o senhor nega Igreja a cincia?
- Jesus, meu caro abade, continuou tranqilamente o doutor, Jesus, os seus
primeiros discpulos,
o ilustre S. Paulo representaram em parbolas, em epstolas, num prodigioso
fluxo labial, que as produes do esprito humano eram inteis, pueris, e
sobretudo perniciosas...
O abade passeava pela sala, indo contra um e outro mvel como um boi
espicaado, apertando as mos na cabea na desolao daquelas blasfmias: no
se conteve, gritou:
- O senhor no sabe o que diz!... Perdo, doutor, peo-lhe humildemente
perdo... O senhor faz- me cair em pecado mortal... Mas isso no discutir... Isso
falar com a leviandade dum jornalista...

Lanou-se ento com calor numa dissertao sobre a sabedoria da Igreja, os seus
altos estudos gregos e latinos, toda uma filosofia criada pelos santos padres...
- Leia S. Baslio! exclamou. L ver o que ele diz dos estudos dos autores
profanos, que so a melhor preparao para os estudos sagrados! Leia a Histria
dos mosteiros na meia-idade! Era l que estava a cincia, a filosofia...
- Mas que filosofia, senhor, mas que cincia! Por filosofia meia dzia de
concepes dum esprito mitolgico, em que o misticismo posto em lugar dos
instintos sociais... E que cincia! Cincia de comentadores, cincia de
gramticos... Mas vieram outros tempos, nasceram cincias novas que os antigos
tinham ignorado, a que o ensino eclesistico no oferecia nem base nem mtodo,
estabeleceu-se logo o antagonismo entre elas e a doutrina catlica!... Nos
primeiros tempos, a Igreja ainda tentou suprimi-las pela perseguio, a
masmorra, o fogo! Escusa de se torcer, abade... O fogo, sim, o fogo e a masmorra.
Mas agora no o pode fazer e limita-se a vituper-las em mau latim... E no
entanto continua a dar nos seus seminrios e nas suas escolas e ensino do
passado, o ensino anterior a essas cincias, ignorando-as, e desprezando-as,
refugiando-se na escolstica... Escusa de apertar as mos na cabea... Estranha
ao esprito moderno, hostil nos seus princpios e nos seus mtodos ao
desenvolvimento espontneo dos conhecimentos humanos... O senhor no
capaz de negar isso! Veja o Syllabus no seu cnone dcimo terceiro...
A porta abriu-se timidamente; era ainda a Dionsia:
- A pequena est a choramigar, diz que quer a criana.
- Mau, mau! disse o doutor.
E depois dum momento:
- Que tal aspecto tem ela? Est corada? Est inquieta?
- No senhor, est bem. S a choramigar, a falar no pequeno...
Diz que o quer hoje por fora...
- Converse com ela, distraia-a... Veja se ela adormece...
A Dionsia retirou-se; e o abade logo com cuidado:
- doutor, supe que lhe possa fazer mal o afligir-se?

- Pode-lhe fazer mal, abade, pode - disse o doutor que rebuscava na sua farmcia
porttil. Mas eu
vou-a fazer dormir... Pois verdade, a Igreja hoje uma intrusa, abade!
O abade tornou a levar as mos cabea.
- Escusa de ir mais longe, abade. Veja a Igreja em Portugal. grato observar-lhe
o estado de
decadncia...
Pintou-lho a largos traos, de p, com o seu frasco na mo. A Igreja fora a Nao;
hoje era uma
minoria tolerada e protegida pelo Estado. Dominara nos tribunais, nos conselhos
da Coroa, na fazenda, na armada, fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da
maioria tinha mais poder que todo o clero do reino. Fora a cincia no pas; hoje
tudo o que sabia era algum latim macarrnico. Fora rica, tinha possudo no
campo distritos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje dependia para o seu triste
po dirio do ministro da Justia, e pedia esmola porta das capelas. Recrutarase entre a nobreza, entre os melhores do reino; e hoje, para reunir um pessoal,
via-se no embarao e tinha de o ir buscar aos enjeitados da Misericrdia. Fora a
depositria da tradio nacional, do ideal coletivo da ptria; e hoje, sem
comunicao com o pensamento nacional (se que o h) era uma estrangeira,
uma cidad de Roma, recebendo de l a lei e o esprito...
- Pois se est assim to prostrada, mais uma razo para a amar! - disse o abade,
erguendo-se escarlate.
Mas a Dionsia tinha de novo aparecido porta.
- Que temos mais?
- A menina est-se a queixar dum peso na cabea. Diz que sente fascas diante
dos olhos...
177

O doutor ento imediatamente, sem uma palavra, seguiu a Dionsia. O abade, s,


passeava pela sala ruminando toda uma argumentao erriada de textos, de
nomes formidveis de telogos, que ia fazer desabar sobre o doutor Gouveia.
Mas, meia hora passou, a luz do candeeiro ia esmorecendo, e o doutor no voltou.

Ento aquele silncio da casa, onde s o som dos seus passos sobre o soalho da
sala punha uma nota viva, comeou a impressionar o velho. Abriu a porta
devagarinho, escutou; mas o quarto de Amlia era muito afastado, ao fim da
casa, ao p do terrao; no vinha de l nem rumor nem luz. Recomeou o seu
passeio solitrio na sala, numa tristeza indefinida que o ia invadindo. Desejaria
bem ir ver tambm a doente; mas o seu carter, o pudor sacerdotal no lhe
permitiam aproximar-se sequer duma mulher no leito, em trabalho de parto, a
no ser que o perigo reclamasse os sacramentos. Outra hora mais longa, mais
fnebre, passou. Ento, em pontas de ps, corando na escurido daquela audcia,
foi at ao meio do corredor: agora, aterrado, sentia no quarto de Amlia um rudo
confuso e surdo de ps movendo-se vivamente no soalho, como numa luta. Mas
nem um ai, nem um grito. Recolheu sala, e abrindo o seu Brevirio comeou a
rezar. Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem rapidamente, numa carreira.
Ouviu uma porta a distncia bater. Depois o arrastar no soalho duma bacia de
lato. E enfim o doutor apareceu. A sua figura fez empalidecer o abade: vinha
sem gravata, com o colarinho espedaado; os botes do colete tinham saltado; e
os punhos da camisa, voltados para trs, estavam todos manchados de sangue.
- Alguma coisa, doutor?
O doutor no respondeu, procurando rapidamente pela sala o seu estojo, com a
face animada dum calor de batalha. Ia j sair com o estojo, mas lembrando-lhe a
pergunta ansiosa do abade:
- Tem convulses, disse.
O abade ento deteve-o porta, e muito grave, muito digno:
- Doutor, se h perigo, peo-lhe que se lembre... uma alma crist em agonia, e
eu estou aqui.

- Certamente, certamente...
O abade tomou a ficar s, esperando. Tudo dormia na Ricoa, D. Josefa, os
caseiros, a quinta, os
campos em redor. Na sala, um relgio de parede, enorme e sinistro, que tinha no
mostrador a carranca do sol e em cima sobre o caixilho a figura esculpida em pau
de uma coruja pensativa, um mvel de castelo antigo, bateu meia-noite, depois
uma hora. O abade a cada momento ia at ao meio do corredor: era o mesmo
rumor de ps numa luta; outras vezes um silncio tenebroso. Voltava ento para
o seu Brevirio. Meditava naquela pobre rapariga que, alm no quarto, estava
talvez no momento que ia decidir da sua eternidade: no tinha ao p nem a me,
nem as amigas: na memria apavorada devia passar-lhe a viso do pecado:
diante dos olhos turvos aparecia-lhe a face triste do Senhor ofendido: as dores
contorciam o seu corpo miservel: e na escurido em que ia penetrando, sentia j
o hlito ardente da aproximao de Satans. Temeroso fim do tempo e da carne!
- Ento rezava fervorosamente por ela.
Mas depois pensava no outro que fora uma metade do seu pecado, e que agora na
cidade, estirado na cama, ressonava tranqilamente. E rezava ento tambm por
ele.
Tinha sobre o Brevirio um pequeno crucifixo. E contemplava-o com amor,
abismava-se enternecido na certeza da sua fora, contra a qual era bem pouca a
cincia do doutor e todas as vaidades da razo! Filosofias, idias, glrias profanas,
geraes e imprios passam: so como os suspiros efmeros do esforo humano:
s ela permanece e permanecer, a cruz - esperana dos homens, confiana dos
desesperados, amparo dos frgeis, asilo dos vencidos, fora maior da
humanidade: crux triumphus adversus demonios, crux oppugnatorum murus...
Ento o doutor entrou, muito escarlate, vibrante daquela tremenda batalha que
estava dando l dentro morte; vinha buscar outro frasco; mas abriu a janela,
sem uma palavra, para respirar um momento uma golfada de ar fresco.
- Como vai ela? perguntou o abade.
- Mal, disse o doutor, saindo.

O abade, ento, ajoelhou, balbuciou a orao de S. Fulgncio:


- Senhor, d-lhe primeiro a pacincia, d-lhe depois a misericrdia...
E ali ficou, com a face nas mos, apoiado beira da mesa.
A um rumor de passos na sala ergueu a cabea. Era a Dionsia, que suspirava,
recolhendo todos
os guardanapos que encontrava nas gavetas do aparador.
- Ento, senhora, ento? perguntou-lhe o abade.
- Ai, senhor abade, est perdidinha... Depois das convulses que foram de
arrepiar, caiu naquele
sono, que o sono da morte...
E olhando para todos os cantos como para se assegurar da solido, disse muito
excitada:
178
- Eu no quis dizer nada... Que o senhor doutor tem um gnio!... Mas sangrar a
rapariga naquele estado querer mat-la... Que ela tinha perdido pouco sangue,
verdade... Mas nunca se sangra ningum em semelhante momento. Nunca,
nunca!
- O senhor doutor homem de muita cincia...
- Pode ter a cincia que quiser... Eu tambm no sou nenhuma tola... Tenho
vinte anos de experincia... Nunca me morreu nenhuma nas mos, senhor
abade... Sangrar em convulses? At causa horror!...
Estava indignada. O senhor doutor tinha torturado a criaturinha. At lhe quisera
administrar clorofrmio...
Mas a voz do doutor Gouveia berrou por ela do fundo do corredor - e a matrona
abalou, com o seu molho de guardanapos.
O medonho relgio, com a sua coruja pensativa, bateu as duas horas, depois as
trs... O abade, agora, cedia a espaos a uma fadiga de velho, cerrando um

momento as plpebras. Mas resistia bruscamente: ia respirar o ar pesado da


noite, olhar aquela treva de toda a aldeia; e voltava a sentar-se, a murmurar, com
a cabea baixa, as mos postas sobre o Brevirio:
- Senhor, volta os teus olhos misericordiosos para aquele leito de agonia...
Foi ento Gertrudes que apareceu comovida. O senhor doutor mandara-a abaixo
acordar o moo para pr a gua ao cabriol.
- Ai, senhor abade, pobre criaturinha! Ia to bem, e de repente isto... Que foi por
lhe tirarem o filho... Eu no sei quem o pai, mas o que sei que nisto tudo anda
um pecado e um crime!...
O abade no respondeu, orando baixo pelo padre Amaro.
O doutor ento entrou com o seu estojo na mo:
- Se quiser, abade, pode ir, disse.
Mas o abade no se apressava, olhando o doutor, com uma pergunta a bailar-lhe
nos lbios
entreabertos, e retendo-a por timidez: enfim, no se conteve, e num tom de
medo:
- Fez-se tudo, no h remdio, doutor?
- No.
- que ns, doutor, no devemos aproximar-nos duma mulher em parto
ilegtimo seno num
caso extremo...
- Est num caso extremo, senhor abade, disse o doutor, vestindo j o seu grande
casaco.
O abade ento recolheu o Brevirio, a cruz - mas antes de sair, julgando do seu
dever de
sacerdote pr diante do mdico racionalista a certeza da eternidade mstica que
se desprende do momento da morte, murmurou ainda:

- neste instante que se sente o terror de Deus, o vo do orgulho humano...


O doutor no respondeu, ocupado a afivelar o seu estojo.
O abade saiu - mas, j no meio do corredor, voltou ainda, e falando com
inquietao:
- O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois dos socorros da religio, os
moribundos voltarem
a si de repente, por uma graa especial... A presena do mdico ento pode ser
til...
- Eu ainda no vou, ainda no vou, disse o doutor, sorrindo involuntariamente de
ver a presena
da Medicina reclamada para auxiliar a eficcia da Graa.
Desceu, a ver se estava pronto o cabriol.
Quando voltou ao quarto de Amlia, a Dionsia e a Gertrudes, de rojos ao lado da
cama,
rezavam. O leito, todo o quarto estava revolvido como um campo de batalha. As
duas velas consumidas extinguiam-se. Amlia estava imvel, com os braos
hirtos, as mos crispadas duma dor de prpura escura - e a mesma cor mais
arroxeada cobria-lhe a face rgida.
E debruado sobre ela, com o crucifixo na mo, o abade dizia ainda, numa voz de
angstia:
- Jesu, Jesu, Jesu! Lembra-te da graa de Deus! Tem f na misericrdia divina!
Arrepende-te no seio do Senhor! Jesu, Jesu, Jesu!
Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando o Miserere. O doutor que
ficara porta retirou-se devagarinho, atravessou em bicos de ps o corredor, e
desceu rua, onde o moo segurava a gua atrelada.
- Vamos ter gua, senhor doutor, disse o rapaz bocejando de sono.
O doutor Gouveia ergueu a gola do palet, acomodou o seu estojo no assento - e
da a um momento o cabriol rodava surdamente pela estrada, sob a primeira

pancada de chuva, cortando a escurido da noite com o daro vermelho das suas
lanternas.
XXIV
179
Ao outro dia desde as sete da manh, o padre Amaro esperava a Dionsia em casa,
postado janela, com os olhos cravados na esquina da rua, sem reparar na chuva
miudinha que lhe fustigava a face. Mas a Dionsia no aparecia: e ele teve de
partir para a S, amargurado e doente, a batizar o filho do Guedes.
Foi uma pesada tortura para ele ver aquela gente alegre que punha na gravidade
da S, mais sombria por esse escuro dia de Dezembro, todo um rumor mal
contido de regozijo domstico e de festa paterna; o pap Guedes resplandecente
de casaca e gravata branca, o padrinho compenetrado com uma grande camlia
ao peito, as senhoras de gala, e sobretudo a parteira rechonchuda, passeando
com pompa um monto de rendas engomadas e de laarotes azuis, onde mal se
percebiam duas bochechinhas trigueiras. Ao fundo da igreja, com o pensamento
bem longe da Ricoa e na Barrosa, foi engorolando pressa as cerimnias:
soprando em cruz sobre a face do pequerrucho, para expulsar o Demnio que j
habitava aquelas carninhas tenras; impondo-lhe o sal sobre a boca, para que ele
se desgostasse para sempre do sabor amargo do pecado e tomasse gosto a nutrirse s da verdade divina; tocando-o com saliva nas orelhas e nas narinas, para que
ele no escutasse jamais as solicitaes da carne e jamais respirasse os perfumes
da terra. E em roda, com tochas na mo, os padrinhos, os convidados, na fadiga
que davam tantos latins rosnados pressa, s se ocupavam do pequeno, num
receio que ele no respondesse com algum desacato impudente s tremendas
exortaes que lhe fazia a Igreja sua Me.
Amaro, ento, pondo de leve o dedo sobre a touquinha branca, exigiu do
pequerrucho que ele, ali em plena S, renunciasse para sempre a Satans, s suas
pompas e s suas obras. O sacristo Matias, que dava em latim as respostas
rituais, renunciou por ele - enquanto o pobre pequerrucho abria a boquinha a
procurar o bico da mama. Enfim o proco dirigiu-se pia batismal seguido de

toda a famlia, das velhas devotas que se tinham juntado, de gaiatos que
esperavam uma distribuio de patacos. Mas foi toda uma atrapalhao para fazer
as unes: a parteira comovida no atinava a desapertar os laarotes do chambre,
para pr a nu os ombrozinhos, o peito do pequeno; a madrinha quis ajud-la;
mas deixou escorregar a tocha, alastrou de cera derretida o vestido duma
senhora, uma vizinha dos Guedes, que ficou embezerrada de raiva.
- Franciscus, credis? - perguntava Amaro.
O Matias apressou-se a afirmar, em nome de Francisco:
- Credo.
- Franciscus, vis baptisari?
O Matias:
- Volo.
Ento a gua lustral caiu sobre a cabecinha redonda como um melo tenro: a
criana agora
perneava numa perrice.
- Ego te baptiso, Franciscus, in nomine Patris... et Filiis... et Spiritus Sancti.. .
Enfim, acabara! Amaro correu sacristia a desvestir-se - enquanto a parteira
grave, o pap
Guedes, as senhoras enternecidas, as velhas devotas e os gaiatos saam ao
repique dos sinos; e agachados sob os guarda-chuvas, chapinhando a lama, l
iam levando em triunfo Francisco, o novo cristo.
Amaro galgou os degraus de casa com o pressentimento que ia encontrar a
Dionsia.
L estava, com efeito, sentada no quarto, esperando-o, amarrotada, enxovalhada
da luta da noite e da lama da estrada: e apenas o viu comeou choramigar.
- Que , Dionsia?
Ela rompeu em soluos, sem responder.
- Morta! exclamou Amaro.
- Ai, fez-se-lhe tudo, filho, fez-se-lhe tudo! gritou enfim a matrona.

Amaro tombou para os ps da cama como morto tambm.


A Dionsia berrou pela criada. Inundaram-lhe a face de gua, de vinagre. Ele
recuperou-se um
pouco, muito plido; afastou-as com a mo, sem falar; e atirou-se de bruos para
sobre o travesseiro, num choro desesperado, - enquanto as duas mulheres
consternadas iam recolhendo cozinha.
- Parece que tinha muita amizade menina, comeou a Escolstica, falando
baixo como na casa dum moribundo.
- Costume de ir por l. Foi hspede tanto tempo... Ai, eram como irmos... disse a Dionsia, ainda chorosa.
Falaram ento de doenas de corao - porque a Dionsia contara Escolstica
que a pobre menina tinha morrido dum aneurisma rebentado. A Escolstica
tambm sofria do corao; mas nela eram flatos, dos maus tratos que lhe dera o
marido... Ah, tinha sido bem infeliz tambm!
- Vossemec toma uma gotinha de caf, Sra. Dionsia?
- Olhe, a falar a verdade, Sra. Escolstica, tomava uma gotinha de jeropiga...
180
A Escolstica correu taberna ao fim da rua, trouxe a jeropiga num copo de
quartilho debaixo do avental; e ambas mesa, uma molhando sopas no caf,
outra escorropichando o copo, concordavam, com suspiros, que neste mundo
tudo eram sustos e lgrimas.
Deram onze horas; e a Escolstica pensava em levar um caldo ao senhor proco,
quando ele chamou de dentro. Estava de chapu alto, com o casaco abotoado, os
olhos vermelhos como carves...
- Escolstica, v a correr ao Cruz que me mande um cavalo... Mas depressa.
Chamou ento a Dionsia: e sentado ao p dela, quase contra os joelhos da
mulher, com a face rgida e lvida como um mrmore, escutou em silncio a

histria da noite - as convulses de repente, to fortes que ela, a Gertrudes e o


senhor doutor mal a podiam segurar! o sangue, as prostraes em que caa!
depois a ansiedade da asfixia que a fazia to roxa como a tnica duma imagem...
Mas o moo do Cruz chegara com o cavalo. Amaro tirou duma gaveta, de entre
roupa branca, um pequeno crucifixo, e deu-o Dionsia que ia voltar Ricoa
para ajudar a amortalhar a menina.
- Que lhe ponham este crucifixo no peito, tinha-mo ela dado...
Desceu, montou; e apenas na estrada da Barrosa despediu a galope. No chovia,
agora; e entre as nuvens pardas algum raio fraco do sol de Dezembro fazia brilhar
a relva, as pedras molhadas.
Quando chegou ao p do poo entulhado, donde se avistava a casa da Carlota,
teve de parar, para deixar passar um longo rebanho de ovelhas que tomavam o
caminho; e o pastor, com uma pele de cobra ao ombro e a borracha a tiracolo,
fez-lhe lembrar de repente Feiro, toda a vida passada, que lhe voltava por
fragmentos bruscos - aquelas paisagens afogadas nos vapores pardacentos da
serra; a Joana rindo estupidamente dependurada da corda do sino; as suas ceias
de cabrito assado na Gralheira, com o abade, defronte da chamin, onde a lenha
verde estalava; os longos dias em que se desesperava na tristeza da residncia,
vendo fora sem cessar cair a neve... E veio-lhe um desejo ansioso dessas solides
da serra, dessa existncia de lobo, longe dos homens e das cidades, sepultado l
com a sua paixo.
A porta de Carlota estava fechada. Bateu, foi de roda chamar, atirando a voz por
cima do telhado dos currais, para o ptio, onde sentia cacarejar os galos.
Ningum respondeu. Seguiu ento pelo caminho da aldeia, levando a gua pela
arreata; parou na taberna, onde uma mulher obesa fazia meia, sentada porta.
Dentro, no escuro da baica, dois homens com os seus quartilhos ao lado, batiam
as cartas numa bisca renhida; e um rapazola duma amarelido de sezes, com um
leno amarrado na cabea, olhava-lhes o jogo tristemente.

A mulher tinha justamente visto passar a Sra. Carlota, que at parara a comprar
um quartilho de azeite. Devia estar em casa da Micaela, ao adro. Chamou para
dentro; uma rapariguita vesga apareceu detrs da sombra das pipas.
- Corre, vai Micaela, dize Sra. Carlota que est aqui um senhor da cidade.
Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou sentado numa pedra, com o seu
cavalo pela rdea. Mas aquela casa fechada e muda aterrava-o. Foi pr o ouvido
fechadura, na esperana de ouvir um choro, uma rabugem de criana. Dentro
pesava um silncio de caverna abandonada. Mas tranqilizava-o a idia que a
Carlota teria levado a criana consigo, para a Micaela. Devia realmente ter
perguntado mulher na taberna, se a Carlota trazia uma criana ao colo... E
olhava a casa bem caiada, com a sua janela em cima que tinha uma cortininha de
cassa, um luxo to raro naquelas freguesias pobres; recordava a boa ordem, o
escarolado da loua da cozinha... Decerto, o pequerrucho devia ter tambm um
bero asseado...
Ah, estava doido decerto na vspera, quando pusera ali, na mesa da cozinha,
quatro libras de ouro, preo adiantado dum ano de criao, e dissera cruelmente
ao ano: "Conto consigo!" Pobre pequerruchinho!... Mas a Carlota compreendera
bem, noite na Ricoa, que ele agora queria-o vivo, o seu filho, e criado com
mimo!... Todavia no o deixaria ali, no, sob o olho raiado de sangue do ano...
Lev-lo-ia nessa noite Joana Carreira dos Poiais...
Que as sinistras histrias da Dionsia, a tecedeira de anjos, eram uma legenda
insensata. A criana estava muito regalada em casa da Micaela, chupando aquele
bom peito de quarentona s... E vinha-lhe ento o mesmo desejo de deixar
Leiria, ir enterrar-se em Feiro, levar consigo a Escolstica, educar l a criana
como sobrinho, revivendo nele largamente todas as emoes daquele romance
de dois anos; e ali passaria numa paz triste, na saudade de Amlia, at ir como o
seu antecessor, o abade Gustavo que tambm criara um sobrinho em Feiro,
repousar para sempre no pequeno cemitrio, de Vero sob as flores silvestres, de
Inverno sob a neve branca.

Ento a Carlota apareceu; e ficou atnita ao reconhecer Amaro, sem passar da


cancela, com a testa franzida, a sua bela face muito grave.
- A criana? exclamou Amaro.
Depois dum momento, ela respondeu, sem perturbao:
- Nem me fale nisso, que me tem dado um desgosto... Ontem mesmo, duas
horas depois de ter
chegado... O pobre anjinho comea a fazer-se roxo, e ali me morreu debaixo dos
olhos... - Mente! gritou Amaro. Quero ver.
181
- Entre, senhor, se quer ver.
- Mas que lhe disse eu ontem, mulher?
- Que quer, senhor? Morreu. Veja...
Tinha aberto a porta, muito simplesmente, sem clera nem receio. Amaro
entreviu num relance,
ao p da chamin, um bero coberto com um saiote escarlate.
Sem uma palavra voltou as costas, atirou-se para cima do cavalo. Mas a mulher,
muito loquaz
subitamente, rompeu a dizer que tinha ido justamente aldeia para encomendar
um caixozinho decente... Como vira que era filho de pessoa de bem, no o
quisera enterrar embrulhado num trapo. Mas enfim, como o senhor ali estava,
parecia-lhe razovel que desse algum dinheiro para a despesa... Uns dois milris que fossem.
Amaro considerou-a um momento com um desejo brutal de a esganar; por fim
meteu-lhe o dinheiro na mo. E ia trotando no carreiro, quando a sentiu ainda
correndo, gritando pst! pst! A Carlota queria-lhe restituir o capote que ele
emprestara na vspera: tinha feito muito bom servio, que a criana chegara
quente como um rojozinho... Infelizmente...
Amaro j a no escutava, esporeando furiosamente a ilharga da cavalgadura.

Na cidade, depois de apear porta do Cruz, no entrou em casa. Foi direito ao


pao do bispo. Tinha agora uma idia s: era deixar aquela cidade maldita, no
ver mais as faces das devotas, nem a fachada odiosa da S...
Foi s ao subir a larga escadaria de pedra do pao, que lhe lembrou com
inquietao o que o Libaninho dissera na vspera da indignao do senhor
vigrio-geral, da denncia obscura... Mas a afabilidade do padre Saldanha, o
confidente do pao, que o introduziu logo na livraria de sua excelncia,
tranqilizou-o. O senhor vigrio-geral foi muito amvel. Estranhou o ar plido e
perturbado do senhor proco!...
- que tenho um grande desgosto, senhor vigrio-geral. Minha irm est a
morrer em Lisboa. E venho pedir a vossa excelncia licena para l ir, por uns
dias...
O senhor vigrio-geral consternou-se com bondade.
- Decerto, consinto... Ah! somos todos passageiros forados da barca de Caronte.
Ipse ratem conto subigit, velisque ministrat Et ferruginea subvectat corpora
cymba.
Ningum lhe escapa... Sinto, sinto... No me esquecerei de a recomendar nas
minhas oraes... E muito metdico, sua excelncia tomou uma nota a lpis.
Amaro, ao sair do pao, foi direito S. Fechou-se na sacristia, a essa hora
deserta: e depois de pensar muito tempo com a cabea entre os punhos, escreveu
ao cnego Dias:
"Meu caro padre-mestre. - Treme-me a mo ao escrever estas linhas. A infeliz
morreu. Eu no posso, bem v, e vou-me embora, porque, se aqui ficasse,
estalava-me o corao. Sua excelentssima irm l estar tratando do enterro...
Eu, como compreende, no posso. Muito lhe agradeo tudo... At um dia, se Deus
quiser que nos tomemos a ver. Por mim conto ir para longe, para alguma pobre
parquia de pastores, acabar meus dias nas lgrimas, na meditao e na
penitncia. Console como puder a desgraada me. Nunca me esquecerei do que

lhe devo, enquanto tiver um sopro de vida. E adeus, que nem sei onde tenho a
cabea. - Seu amigo do C. - Amaro Vieira."
''P.S. - A criana morreu tambm, j se enterrou''.

Fechou a carta com uma obreia preta; e depois de arranjar os seus papis, foi
abrir o grande porto chapeado de ferro, olhar um momento o ptio, o barraco, a
casa do sineiro... As nvoas, as primeiras chuvas j davam quele recanto da S o
seu ar lgubre de Inverno. Adiantou-se devagar, sob o silncio triste dos altos
contrafortes, espreitou vidraa da cozinha do tio Esguelhas: ele l estava,
sentado chamin, com o cachimbo na boca, cuspilhando tristemente para as
cinzas. Amaro bateu de leve nos vidros - e quando o sineiro abriu a porta, aquele
interior conhecido, rapidamente entrevisto, a cortina da alcova da Tot, a escada
que ia para o quarto, agitaram o proco de tantas recordaes e de saudades to
bruscas, que no pde falar um momento, com a garganta tomada de soluos.
- Venho-lhe dizer adeus, tio Esguelhas, murmurou por fim. Vou a Lisboa, tenho
minha irm a morrer...
E acrescentou com os beios trmulos dum choro que ia romper:
182
- Todas as desgraas vm juntas. Sabe, a pobre Ameliazinha l morreu de
repente...
O sineiro emudeceu, assombrado.
- Adeus, tio Esguelhas. D c a mo, tio Esguelhas. Adeus...
- Adeus, senhor proco, adeus! disse o velho com os olhos arrasados de gua.
Amaro fugiu para casa, contendo-se para no soluar alto pelas ruas. Disse logo
Escolstica
que ia partir nessa noite para Lisboa. O tio Cruz devia mandar-lhe um cavalo,
para ir tomar o comboio a Cho de Mas.

- Eu no tenho seno o dinheiro que necessrio para a jornada. Mas o que a me


fica em lenis e toalhas para voc...
A Escolstica, chorando de perder o senhor proco, quis beijar-lhe a mo por
tanta generosidade: ofereceu-se para fazer a mala...
- Eu mesmo a arranjo, Escolstica, no se incomode.
Fechou-se no quarto. A Escolstica, ainda choramigando, foi logo recolher,
examinar as poucas roupas que estavam pelos armrios. Mas Amaro da a pouco
gritou por ela: diante da janela uma harpa e uma rabeca, em desafinao,
tocavam a valsa dos Dois mundos.
- D um tosto a esses homens, disse o padre furioso. E diga-lhes que vo pro
inferno... Que est aqui gente doente!
E at s cinco horas a Escolstica no tomou a sentir rumor no quarto.
Quando o moo do Cruz veio com o cavalo, pensando que o senhor proco
adormecera, ela foi- lhe bater devagarinho porta do quarto, choramigando j da
despedida prxima. Ele abriu logo. Estava de capote aos ombros; no meio do
quarto pronta e acorreada a mala de lona que devia ir garupa da gua. Deu-lhe
um mao de cartas para ir entregar nessa noite Sra. D. Maria da Assuno, ao
padre Silvrio e a Natrio: e ia descer, entre os prantos da mulher, quando sentiu
na escada um rudo conhecido de muleta, e o tio Esguelhas apareceu muito
comovido.
- Entre, tio Esguelhas, entre.
O sineiro cerrou a porta, e depois de hesitar um momento:
- Vossa senhoria h-de desculpar, mas... Tinha-me esquecido de todo, com os
desgostos que
tenho passado. J h tempo que achei no quarto isto, e pensei que...
E meteu na mo de Amaro um brinco de ouro. Ele reconheceu-o logo: era de
Amlia. Muito tempo ela o procurara debalde; soltara-se decerto nalguma manh

de amor, sobre a enxerga do sineiro. Amaro ento, sufocado, abraou o tio


Esguelhas.
- Adeus! adeus, Escolstica. Lembrem-se por c de mim. D lembranas ao
Matias, tio Esguelhas...
O moo afivelou a maleta ao selim, e Amaro partiu, deixando a Escolstica e o tio
Esguelhas a chorar, ambos porta.
Mas depois de ter passado os audes, ao p duma volta da estrada, teve de apear
para compor o estribo: e ia montar, quando apareceram dobrando o muro o
doutor Godinho, o secretrio-geral e o senhor administrador do concelho, muito
amigos agora, e que vinham, depois do passeio, recolhendo para a cidade.
Pararam logo a falar ao senhor proco - admirando-se de o ver ali, de maleta na
garupa, com ares de jornada...
- verdade, disse, vou para Lisboa!
O antigo Bibi e o administrador suspiraram invejando-lhe a felicidade. - Mas
quando o proco falou da irm moribunda, afligiram-se com polidez: e o senhor
administrador disse:
- Deve estar muito sentido, compreendo... De mais a mais essa outra desgraa na
casa daquelas senhoras suas amigas... A pobre Ameliazinha, morta assim de
repente...
O antigo Bibi exclamou:
- O qu? A Ameliazinha, aquela bonita que morava na Rua da Misericrdia?
Morreu?
O doutor Godinho tambm o ignorava, e pareceu consternado.
O senhor administrador soubera-o pela sua criada, que o ouvira da Dionsia.
Dizia-se que fora
um aneurisma.
- Pois senhor proco, exclamou Bibi, desculpe se aflijo as suas crenas
respeitveis, que so as

minhas de resto... Mas Deus cometeu um verdadeiro crime... Levar-nos a


rapariga mais bonita da cidade! Que olhos, senhores! E depois com aquele
picantezinho da virtude...
Ento, num tom de psames, todos lamentaram aquele golpe que devia ter
afetado tanto o senhor proco.
Ele disse muito grave:
- Senti-o deveras... Conhecia-a bem... E com as suas boas qualidades, devia
fazer, sem dvida, uma esposa modelo... Senti-o muito!
183
Apertou silenciosamente as mos em redor - e enquanto os cavalheiros
recolhiam cidade, o padre Amaro foi trotando pela estrada, que j escurecia,
para a estao de Cho de Mas.

Ao outro dia, pelas onze horas, o enterro de Amlia saiu da Ricoa. Era uma
manh spera: o cu e os campos estavam afogados numa nvoa pardacenta; e
caia muito mida, uma chuva regelada. Era longe da quinta capela dos Poiais. O
menino do coro adiante, de cruz alada, apressava. se, chapinhando a lama a
grandes pernadas; o abade Ferro, de estola negra, abrigava-se, murmurando o
Exultabunt Domino, sob o guarda-chuva que sustentava ao lado o sacristo com
o hissope; quatro trabalhadores da quinta, abaixando a cabea contra a chuva
oblqua, levavam numa padiola o esquife que tinha dentro o caixo de chumbo; e,
sob o vasto guarda-chuva do caseiro, a Gertrudes de mantu pela cabea ia
desfiando as suas contas. Ao lado do caminho o vale triste dos Poiais cavava-se,
todo pardo na neblina, num grande silncio; e a voz enorme do vigrio, mugindo
o Miserere, rolava pela quebrada mida onde murmuravam os riachos muito
cheios.
Mas s primeiras casas da aldeia os moos do caixo pararam derreados; e ento
um homem, que estava esperando debaixo duma rvore sob o seu guarda-chuva,

veio juntar-se silenciosamente ao enterro. Era Joo Eduardo, de luvas pretas,


carregado de luto, com as olheiras cavadas em dois sulcos negros, grossas
lgrimas a correrem-lhe nas faces. E imediatamente, por trs dele, vieram
colocar-se dois criados de farda, com as calas muito arregaadas e tochas na
mo - dois lacaios que mandara o Morgado, para honrar o enterro duma dessas
senhoras da Ricoa, amigas do abade.
Ento, vendo estas duas librs que vinham afidalgar o prstito, o menino do coro
rompeu logo, erguendo mais alto a cruz; os quatro homens, j sem fadiga,
empertigaram-se s varas da padiola: o sacristo bramiu um Requiem tremendo.
E pelas lamas do ngreme caminho da aldeia foi subindo o enterro, enquanto s
portas as mulheres se ficavam persignando, olhando as sobrepelizes brancas e o
caixo de gales de ouro, que se iam afastando seguidos do grupo de guardachuvas abertos, sob a chuva triste.
A capela era no alto, num adro de carvalheiras: o sino dobrava: e o enterro
sumiu-se para o interior da igreja escura, ao canto do Subvenite sancti que o
sacristo entoou em ronco. - Mas os dois criados de farda no entraram porque o
Sr. Morgado assim o tinha ordenado.
Ficaram porta, sob o guarda-chuva, escutando, batendo os ps regelados.
Dentro seguia o cantocho; depois era um ciciar de oraes que se amortecia; e
de repente latins fnebres lanados pela voz grossa do vigrio.
Ento os dois homens, enfastiados, desceram do adro, entraram um momento
na taberna do tio Serafim. Dois moos de gado da quinta do Morgado, que bebiam
em silncio o seu quartilho, ergueram-se logo vendo aparecer os dois criados de
farda.
- vontade, rapazes, sentar e beber, disse o velho baixito que acompanhava
Joo Eduardo a cavalo. Ns l estamos, na maada do enterro... Boas-tardes, Sr.
Serafim.
Apertaram a mo ao Serafim, que lhes mediu duas aguardentes - e informou-se
se a defunta era a noiva do Sr. Joozinho. Tinham-lhe dito que morrera duma
veia rebentada.

O baixito riu:
- Qual veia rebentada! No lhe rebentou coisa nenhuma. O que lhe rebentou foi
um rapago pelo ventre...
- Obra do Sr. Joozinho? perguntou o Serafim, arregalando o olho brejeiro.
- No me parece, disse o outro com importncia. O Sr. Joozinho estava em
Lisboa... Obra de algum cavalheiro da cidade. Sabe vossemec de quem eu
desconfio, Sr. Serafim?
Mas a Gertrudes, esbaforida, rompeu pela taberna gritando que o saimento j ia
ao p do cemitrio, e que no faltavam seno "aqueles senhores"! Os lacaios
abalaram logo, e alcanaram o enterro quando ia passando a pequena grade do
cemitrio, ao ltimo versculo do Miserere. Joo Eduardo agora levava uma vela
na mo, ia logo atrs do caixo de Amlia, tocando-o quase, com os olhos
enevoados de lgrimas fitos no veludilho negro que o cobria. Sem cessar o sino
na capela dobrava desoladamente. A chuva caa mais mida. E todos calados, no
silncio fusco do cemitrio, com passos abafados pela terra mole, iam-se
dirigindo para o canto do muro onde estava cavada de fresco a cova de Amlia,
negra e profunda entre a relva mida. O menino do coro cravou no cho a haste
da cruz prateada, e o abade Ferro, adiantando-se at beira do buraco escuro,
murmurou o Deus cujus miseratione... Ento Joo Eduardo, muito plido, vacilou
de repente, e o guarda-chuva caiu-lhe das mos; um dos criados de farda correu,
segurou-o pela cinta; queriam-no levar, arranc-lo de ao p da cova; mas ele
resistiu, e ali ficou, com os dentes cerrados, segurando-se desesperadamente
manga do criado, vendo o coveiro e os dois
184
moos amarrarem as cordas no caixo, fazerem-no resvalar devagar entre a terra
esfarelada que rolava, com um ranger de tbuas mal pregadas.
- Requiem aeternam dona ei, Domine!
- Et lux perpetua luceat ei, mugiu o sacristo.

O caixo bateu no fundo com uma pancada surda: o abade espalhou em cima uma
pouca de terra
em forma de cruz: e sacudindo lentamente o hissope sobre o veludilho, a terra, a
relva em redor: - Requiescat in pace.
- Amm, responderam a voz cava do sacristo e a voz aguda do menino do coro.
- Amm, disseram todos num murmrio, que ciciou, se perdeu entre os
ciprestes, as ervas, os tmulos e as nvoas frias daquele triste dia de Dezembro.
XXV
Nos fins de Maio de 1871 havia grande alvoroo na Casa Havanesa, ao Chiado, em
Lisboa. Pessoas esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos que atulhavam a
porta, e alando-se em bicos de ps esticavam o pescoo, por entre a massa dos
chapus, para a grade do balco, onde numa tabuleta suspensa se colavam os
telegramas da Agncia Havas; sujeitos de faces espantadas saam consternados,
exclamando logo para algum amigo mais pacato que os esperava fora:
- Tudo perdido! Tudo a arder!
Dentro, na multido de grulhas que se apertava contra o balco, questionava-se
forte; e pelo passeio, no Largo do Loreto, defronte ao p do estanco, pelo Chiado
at ao Magalhes, era, por aquele dia j quente docomeo de Vero, toda uma
gralhada de vozes impressionadas onde as palavras - Comunistas! Versalhes!
Petroleiros! Thiers! Crime! Internaciona1! voltavam a cada momento, lanadas
com furor, entre o rudo das tipias e os preges dos garotos gritando
suplementos.
Com efeito, a cada hora, chegavam telegramas anunciando os episdios
sucessivos da insurreio batalhando nas ruas de Paris: telegramas despedidos de
Versalhes num terror dizendo os palcios que ardiam, as ruas que se aluam;
fuzilamentos em massa nos ptios dos quartis e entre os mausolus dos
cemitrios; a vingana que ia saciar-se at escurido dos esgotos; a fatal
demncia que desvairava as fardas e as blusas; e a resistncia que tinha o furor

duma agonia com os mtodos duma cincia, e fazia saltar uma velha sociedade
pelo petrleo, pela dinamite e pela nitroglicerina! Uma convulso, um fim do
mundo - que vinte, trinta palavras de repente mostravam, num relance, a um
claro de fogueira.
O Chiado lamentava com indignao aquela runa de Paris. Recordavam-se com
exclamaes os edifcios ardidos, o Hotel de Ville, "to bonito", a Rua Royale,
"aquela riqueza". Havia indivduos to furiosos com o incndio das Tulherias
como se fosse uma propriedade sua; os que tinham estado em Paris um ou dois
meses abriam-se em invectivas, arrogando-se uma participao de parisienses
na riqueza da cidade, escandalizados por a insurreio no ter respeitado os
monumentos em que eles tinham posto os seus olhos.
- Vejam vocs! exclamava um sujeito gordo. O palcio da Legio de Honra
destrudo! Ainda no h um ms que eu l estive com minha mulher... Que
infmia! Que patifaria!
Mas espalhara-se que o ministrio recebera outro telegrama mais desolador:
toda a linha do boulevard da Bastilha Madalena ardia, e ainda a Praa da
Concrdia, e as avenidas dos Campos Elsios at ao Arco do Triunfo. E assim
tinha a revolta arrasado, numa demncia, todo aquele sistema de restaurantes,
cafs-concertos, bailes pblicos, casas de jogo e ninhos de prostitutas! Ento
houve por todo o Largo do Loreto at ao Magalhes um estremecimento de furor.
Tinham pois as chamas aniquilado toda aquela centralizao to cmoda da
patuscada! Oh que infmia! O mundo acabava! Onde se comeria melhor que em
Paris? Onde se encontrariam mulheres mais experientes? Onde se tornaria a ver
aquele desfilar prodigioso duma volta do Bois, nos dias speros e secos de
Inverno, quando as vitrias das cocottes resplandeciam ao p dos fetons dos
agentes da Bolsa? Que abominao! Esqueciam-se as bibliotecas e os museus:
mas a saudade era sincera pela destruio dos cafs e pelo incndio dos
lupanares. Era o fim de Paris, era o fim da Frana!
Num grupo ao p da Casa Havanesa os questionadores politicavam: pronunciavase o nome de Proudhon que, por esse tempo, se comeava a citar vagamente em

Lisboa como um monstro sanguinolento; e as invectivas rompiam contra


Proudhon. A maior parte imaginava que era ele que tinha incendiado. Mas o
poeta estimado das Flores e Ais acudiu dizendo "que, parte as asneiras que
Proudhon dizia, era ainda assim um estilista bastante ameno". Ento o jogador
Frana berrou:
- Qual estilo, qual cabaa! Se aqui o pilhasse no Chiado rachava-lhe os ossos! 185
E rachava. Depois do conhaque o Frana era uma fera.
Alguns moos, porm, a quem o elemento dramtico da catstrofe revolvia o
instinto romntico, aplaudiam a heroicidade da Comuna - Vermorel abrindo os
braos como o Crucificado, e sob as balas que o traspassavam gritando: Viva a
humanidade! O velho Delecluze, com um fanatismo de santo, ditando do seu
leito de agonia as violncias da resistncia...
- So grandes homens! exclamava um rapaz exaltado.
Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se plidas, vendo j as
suas casas na Baixa a escorrer de petrleo e a mesma Casa Havanesa presa de
chamas socialistas. Ento era em todos os grupos um furor de autoridade e
represso: era necessrio que a sociedade, atacada pela Internacional, se
refugiasse na fora dos seus prncipes conservadores e religiosos, cercando-os
bem de baionetas! Burgueses com tendas de capelistas falavam da "canalha" com
o desdm imponente dum La Tremouille ou dum Ossuna. Sujeitos, palitando os
dentes, decretavam a vingana. Vadios pareciam furiosos "contra o operrio que
quer viver como prncipe". Falava-se com devoo na propriedade, no capital!
Doutro lado eram moos verbosos, localistas excitados que declaravam contra o
velho mundo, a velha idia, ameaando-os de alto, propondo-se a derru-los em
artigos tremendos.
E assim uma burguesia entorpecida esperava deter, com alguns polcias, uma
evoluo social: e uma mocidade, envernizada de literatura, decidia destruir num
folhetim uma sociedade de dezoito sculos. Mas ningum se mostrava mais

exaltado que um guarda-livros de hotel, que do alto do degrau da Casa Havanesa


brandia a bengala, aconselhando Frana a restaurao dos Bourbons.
Ento um homem vestido de preto, que sara do estanco e atravessava por entre
os grupos, parou, sentindo uma voz espantada que exclamava ao lado:
- padre Amaro! magano!
Voltou-se: era o cnego Dias. Abraaram-se com veemncia, e paraconversarem
mais tranqilamente foram andando at ao Largo de Cames, e ali pararam,
junto esttua:
- Ento voc quando chegou, padre-mestre?
Tinha chegado na vspera. Trazia uma demanda com os Pimentas da Pojeira por
causa duma servido na quinta, tinha apelado para a Relao, e vinha seguir de
perto a questo na capital.
- E voc, Amaro? Na ltima carta dizia-me que tinha vontade de sair de Santo
Tirso.
Era verdade. A parquia tinha vantagens; mas vagara Vila Franca, e ele, para
estar mais perto da capital, viera falar com o Sr. conde de Ribamar, o seu conde,
que l andava obtendo a transferncia. Devia-lhe tudo, sobretudo senhora
condessa!
- E de Leiria? A S. Joaneira, vai melhor?
- No, coitada... Voc sabe; ao princpio tivemos um susto dos diabos...
Pensvamos que lhe ia suceder como Amlia. Mas no, era hidropisia... E ali o
que h anasarca...
- Coitada, santa senhora! E o Natrio?
- Avelhado! Tem tido os seus desgostos. Muita lngua.
- E diga l, padre-mestre, o Libaninho?
- Eu escrevi-lhe a esse respeito, disse o cnego rindo.

O padre Amaro riu tambm: e durante um momento os dois sacerdotes pararam,


apertando as
ilhargas.
- Pois verdade, disse o cnego. A coisa tinha sido realmente escandalosa...
Porque enfim,
repare o amigo que o pilharam com o sargento, de tal modo que no havia a
duvidar... E s dez horas da noite, na alameda! J imprudncia... Mas enfim a
coisa esqueceu, e quando o Matias morreu, l lhe demos o lugar de sacristo, que
bem boa posta... Muito melhor que o que ele tinha no cartrio... E h-de
cumprir com zelo!
- H-de cumprir com zelo, concordou muito srio o padre Amaro. E a propsito,
a D. Maria da Assuno?
- Homem, rosnam-se coisas... Criado novo. Um carpinteiro que morava
defronte... O rapaz anda no trinque.
- Palavra?
- No trinque. Charuto, relgio, luva! Tem pilhria, hem?
- divino!
- As Gansosos na mesma, continuou o cnego. Tm agora a sua criada, a
Escolstica.
- E da besta do Joo Eduardo?
- Eu mandei-lhe dizer, no? L est ainda nos Poiais. O Morgado est mal do
fgado! E o Joo
Eduardo diz que est tsico... que eu no sei, nunca mais o vi... Quem mo disse foi
o Ferro. - Como vai ele, o Ferro?
- Bem. Sabe quem eu vi h dias? A Dionsia. - E ento?
186

O cnego disse uma palavra baixo ao ouvido do padre Amaro.


- Deveras, padre-mestre?
- Na Rua das Sousas, a dois passos da sua antiga casa. O D. Lus da Barrosa que
lhe deu o
dinheiro para montar o estabelecimento. Pois aqui esto as novidades. E voc
est mais forte, homem! Fez-lhe bem a mudana...
E pondo-se diante, galhofando:
- Amaro, e voc a escrever-me que queria retirar-se para a serra, ir para um
convento, passar a vida em penitncia.
O padre Amaro encolheu os ombros:
- Que quer voc, padre-mestre?... Naqueles primeiros momentos... Olhe que me
custou! Mas tudo passa...
- Tudo passa, disse o cnego. E depois de uma pausa: - Ah! Mas Leiria j no
Leiria!
Passearam ento um momento em silncio, numa recordao que lhes vinha do
passado, os quinos divertidos da S. Joaneira, as palestras ao ch, as passeatas ao
Morenal, o Adeus e o Descrido cantados pelo Artur Couceiro e acompanhados
pela pobre Amlia que, agora, l dormia no cemitrio dos Poiais, sob as flores
silvestres...
- E que me diz voc a estas coisas da Frana, Amaro? - exclamou de repente o
cnego.
- Um horror, padre-mestre... O arcebispo, uma scia de padres fuzilados!... Que
brincadeira!
- M brincadeira, rosnou o cnego.
E o padre Amaro:
- E c pelo nosso canto parece que comeam tambm essas idias...
O cnego assim o ouvira. Ento indignaram-se contra essa turba de maes, de
republicanos, de

socialistas, gente que quer a destruio de tudo o que respeitvel - o clero, a


instruo religiosa, a famlia, o exrcito e a riqueza... Ah! a sociedade estava
ameaada por monstros desencadeados! Eram necessrias as antigas represses,
a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar aos homens a f e o respeito pelo
sacerdote.
- A que est o mal, disse Amaro, que nos no respeitam! No fazem seno
desacreditar-nos... Destroem no povo a venerao pelo sacerdcio...
- Caluniam-nos infamemente, disse num tom profundo o cnego.
Ento junto deles passaram duas senhoras, uma j de cabelos brancos, o ar muito
nobre; a outra, uma criaturinha delgada e plida, de olheiras batidas, os cotovelos
agudos colados a uma cinta de esterilidade, pouff enorme no vestido, cuia forte,
taces de palmo.
- Cspite! disse o cnego baixo, tocando o cotovelo do colega. Hem, seu padre
Amaro?... Aquilo que voc queria confessar.
- J l vai o tempo, padre-mestre, disse e proco rindo, j as no confesso seno
casadas!
O cnego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade; mas retomou o
seu ar poderoso de padre obeso, vendo Amaro tirar profundamente o chapu a
um cavalheiro de bigode grisalho e culos de ouro, que entrava na praa, do lado
do Loreto, com o charuto cravado nos dentes e o guarda-sol debaixo do brao.
Era o Sr. conde de Ribamar. Adiantou-se com bonomia para os dois sacerdotes; e
Amaro, descoberto e perfilado, apresentou "o seu amigo, o Sr. cnego Dias, da S
de Leiria". Conversaram um momento da estao, que j ia quente. Depois o
padre Amaro falou dos ltimos telegramas.
- Que diz vossa excelncia a estas coisas de Frana, senhor conde?
O estadista agitou as mos, numa desolao que lhe assombreava a face:
- Nem me fale nisso, Sr. padre Amaro, nem me fale nisso... Ver meia dzia de
bandidos destruir

Paris... O meu Paris!... Creiam vossas senhorias que tenho estado doente.
Os dois sacerdotes, com uma expresso consternada, uniram-se do estadista.
E ento o cnego:
- E qual pensa vossa excelncia que ser o resultado?
O Sr. conde de Ribamar, com pausa, em palavras que saam devagar,
sobrecarregadas do peso
das idias, disse:
- O resultado?... No difcil prev-lo. Quando se tem alguma experincia da
Histria e da
Poltica, o resultado de tudo isto v-se distintamente. To distintamente como
os vejo a vossas senhorias. . Os dois sacerdotes pendiam dos lbios profticos do
homem do governo.
- Sufocada a insurreio, continuou o senhor conde olhando a direito de si com o
dedo no ar,
como seguindo, apontando os futuros histricos que a sua pupila, ajudada pelos
culos de ouro, penetrava - sufocada a insurreio, dentro de trs meses temos
de novo o imprio. Se vossas senhorias tivessem visto como eu uma recepo nas
Tulherias ou no Hotel de Ville, nos tempos do imprio, haviam de dizer, como eu,
que a Frana profundamente imperialista e s imperialista... Temos pois
Napoleo III: ou
187
talvez ele abdique, e a imperatriz tome a regncia na menoridade do prncipe
imperial... Eu aconselharia antes, e j o fiz saber, que era esta talvez a soluo
mais prudente. Como conseqncia imediata temos o papa em Roma, outra vez
senhor do poder temporal... Eu, a falar a verdade, e j o fiz saber, no aprovo uma
restaurao papal. Mas eu no lhes estou aqui a dizer o que aprovo, ou o que
reprovo. Felizmente no sou o dono da Europa. Seria um encargo superior
minha idade e s minhas enfermidades. Estou a dizer o que a minha experincia
da Poltica e da Histria me aponta como certo. Dizia eu...? Ah! a imperatriz no
trono de Frana, Pio Nono no trono de Roma, a temos a democracia esmagada

entre estas duas foras sublimes, e creiam vossas senhorias um homem que
conhece a sua Europa e os elementos de que se compe a sociedade moderna,
creiam que depois deste exemplo da Comuna no se torna a ouvir falar de
repblica, nem de questo social, nem de povo, nestes cem anos mais
chegados!...
- Deus Nosso Senhor o oua, senhor conde, fez com uno o cnego.
Mas Amaro, radiante de se achar ali, numa praa de Lisboa, em conversao
ntima com um estadista ilustre, perguntou ainda, pondo nas palavras uma
ansiedade de conservador assustado:
- E cr vossa excelncia que essas idias de repblica, de materialismo, se
possam espalhar entre ns?
O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois padres, at quase junto das grades
que cercam a esttua de Lus de Cames:
- No lhes d isso cuidado, meus senhores, no lhes d isso cuidado! possvel
que haja a um ou dois esturrados que se queixem, digam tolices sobre a
decadncia de Portugal, e que estamos num marasmo, e que vamos caindo no
embrutecimento, e que isto assim no pode durar dez anos, etc., etc.
Baboseiras!...
Tinham-se encostado quase s grades da esttua, e tomando uma atitude de
confiana:
- A verdade, meus senhores, que os estrangeiros invejam-nos... E o que vou a
dizer no para lisonjear a vossas senhorias: mas enquanto neste pas houver
sacerdotes respeitveis como vossas senhorias, Portugal h-de manter com
dignidade o seu lugar na Europa! Porque a f, meus senhores, a base da ordem!
- Sem dvida, senhor conde, sem dvida, disseram com fora os dois sacerdotes.
- Seno, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animao, que prosperidade!
E com um grande gesto mostrava-lhes o Largo do Loreto, que quela hora, num
fim de tarde

serena, concentrava a vida da cidade. Tipias vazias rodavam devagar; pares de


senhoras passavam, de cuia cheia e taco alto, com os movimentos derreados, a
palidez clortica duma degenerao de raa; nalguma magra pileca, ia trotando
algum moo de nome histrico, com a face ainda esverdeada da noitada de
vinho; pelos bancos de praa gente estirava-se num torpor de vadiagem; um
carro de bois, aos solavancos sobre as suas altas rodas, era como o smbolo de
agriculturas atrasadas de sculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes;
algum burgus enfastiado lia nos cartazes o anncio de operetas obsoletas; nas
faces enfezadas de operrios havia como a personificao das indstrias
moribundas... E todo este mundo decrpito se movia lentamente, sob um cu
lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a lotaria e a batota pblica, e
rapazitos de voz plangente oferecendo o Jornal das pequenas novidades: e iam,
num vagar madrao. Entre o largo onde se erguiam duas fachadas tristes de
igreja, e o renque comprido das casarias da praa onde brilhavam trs tabuletas
de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam,
com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de prostituio e
de crime.
- Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este
contentamento... Meus senhores, no admira realmente que sejamos a inveja da
Europa!
E o homem de Estado, os dois homens de religio, todos trs em linha, junto s
grades do monumento, gozavam de cabea alta esta certeza gloriosa da grandeza
do seu pas, - ali ao p daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho
poeta, ereto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopia
sobre o corao, a espada firme, cercado dos cronistas e dos poetas hericos da
antiga ptria - ptria para sempre passada, memria quase perdida!
Outubro 1878 - Outubro 1879.

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