O Crime Do Padre Amaro - Eca de Queiros
O Crime Do Padre Amaro - Eca de Queiros
O Crime Do Padre Amaro - Eca de Queiros
QUEIRS, Ea de. O Crime do Padre Amaro. 12a ed., So Paulo: tica, 1998.
Texto proveniente de:
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A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo
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PREFCIO DA SEGUNDA EDIO
A designao inscrita no frontispcio deste livro - Edio Definitiva - necessita
uma explicao.
O Crime do Padre Amaro foi escrito h quatro ou cinco anos, e desde essa poca
esteve esquecido entre os meus papis - como um esboo informe e pouco
aproveitvel.
Por circunstncias que no so bastante interessantes para serem impressas este esboo de romance, em que a ao, os caracteres e o estilo eram uma
improvisao desleixada, foi publicado em 1875 nos primeiros fascculos da
Revista Ocidental, sem alteraes, sem correes, conservando toda a sua feio
de esboo, e de um improviso
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PREFCIO DA TERCEIRA EDIO
O Crime do Padre Amaro recebeu no Brasil e em Portugal alguma ateno da
Crtica, quando foi publicado ulteriormente um romance intitulado - O Primo
Baslio. E no Brasil e em Portugal escreveu- se (sem todavia se aduzir nenhuma
prova efetiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitao do romance do Sr.
homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovdio - que
falava fazendo sempre boquinhas, e com aluses mitolgicas.
O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hrcules.
- Hrcules pela fora - explicava sorrindo, Frei pela gula.
No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecerlhe todos os dias
rap da sua caixa de ouro, disse aos outros cnegos, baixinho, ao deixar-lhe cair
sobre o caixo, segundo o ritual, o primeiro torro de terra:
- a ltima pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graa do senhor governador do bispado; o
cnego Campos contou-o noite ao ch em casa do deputado Novais; foi
celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e
afirmou-se com respeito - que sua excelncia tinha muita pilhria!
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praa, o co do proco, o Joli. A
criada entrara com sezes no hospital; a casa fora fechada; o co, abandonado,
gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, que tinha vagas semelhanas com o proco. Com o hbito das batinas, vido dum
dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum
queria o infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sis; o co,
repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manh
apareceu morto ao p da Misericrdia; a carroa do estrume levou-o e, como
ningum tomou a ver o co, na Praa, o proco Jos Miguis foi definitivamente
esquecido.
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro proco. Diziase que era um homem muito novo, sado apenas do seminrio. O seu nome era
Amaro Vieira. Atribua-se a sua escolha a influncias polticas, e o jornal de
Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposio, falou com amargura, citando o
Glgota, no favoritismo da corte e na reao clerical. Alguns padres tinham-se
tenha! Agora, pela matana do porco, o melhor do animal para o padre santo,
voc sabe? como ela me chama.
Falava com os olhos luzidos, uma satisfao babosa.
- Ah, Mendes! acrescentou, uma rica mulher!
- E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
- L isso! exclamou o cnego parando outra vez. L isso! Bem conservada at ali!
Pois olhe que
no uma criana! Mas nem um cabelo branco, nem um, nem um s! E ento que
cor de pele! - E mais baixo, com um sorriso guloso: - E isto aqui! Mendes, e isto
aqui! - Indicava o lado do pescoo debaixo do queixo, passando-lhe devagar por
cima a sua mo papuda: - uma perfeio! E depois mulher de asseio,
muitssimo asseio! E que lembranazinhas! No h dia que me no mande o seu
presente! o covilhete de gelia, o pratinho de arroz-doce, a bela morcela de
Arouca! Ontem me mandou ela uma torta de ma. Ora havia de voc ver aquilo!
A ma parecia um creme! At a mana Josefa disse: "Est to boa que parece que
foi cozida em gua benta!" - E pondo a mo espalmada sobre o peito: - So coisas
que tocam a gente c por dentro, Mendes! No, no l por dizer, mas no h
outra.
O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.
- Eu bem sei, disse o cnego parando de novo e tirando lentamente as palavras,
eu bem sei que por ai rosnam, rosnam... Pois uma grandssima calnia! O que ,
que eu tenho muito apego quela gente. J o tinha em tempo do marido. Voc
bem o sabe, Mendes.
O coadjutor teve um gesto afirmativo.
- A S. Joaneira uma pessoa de bem! olhe que uma pessoa de bem, Mendes!
exclamava o cnego batendo no cho fortemente com a ponteira do guarda. sol.
- Muita honra em receber o senhor proco! muita honra! H-de vir muito
cansado! por fora! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrauzinho.
Levou-o para uma sala pequena, pintada de amarelo, com um vasto canap de
palhinha encostado parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta
verde.
- a sua sala, senhor proco, disse a S. Joaneira. Para receber, para espairecer...
Aqui - acrescentou abrindo uma porta - o seu quarto de dormir. Tem a sua
cmoda, o seu guarda-roupa... - Abriu os gavetes, gabou a cama batendo a
elasticidade dos colches. - Uma campainha para chamar sempre que queira... As
chavinhas da cmoda esto aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto... Tem
um cobertor s, mas querendo...
- Est bem, est tudo muito bem, minha senhora, - disse o proco com a sua voz
baixa e suave. - pedir! O que h, da melhor vontade...
- Oh criatura de Deus! interrompeu o cnego jovialmente, o que ele quer agora
cear!
- Tambm tem a ceiazinha pronta. Desde as seis que est o caldo a apurar...
E saiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:
- V, Rua, mexe-te, mexe-te!...
O cnego sentou-se pesadamente no canap, e sorvendo a sua pitada:
- contentar, meu rico. Foi o que se pde arranjar.
- Eu estou bem em toda parte, padre-mestre, disse o proco, caando os seus
chinelos de ourelo.
Olha o seminrio!... E em Feiro! Caa- me a chuva na cama.
Para o lado da Praa, ento, sentiu-se o toque de cometas.
- Que aquilo? perguntou Amaro, indo janela.
- As nove e meia, o toque de recolher.
Amaro abriu a vidraa. Ao fim da rua um candeeiro esmorecia. A noite estava
muito negra. E
O proco desceu, cingido ao corrimo, para a deixar passar, murmurando boasnoites! com a cabea baixa. O cnego, que descia atrs, pesadamente, tomou o
meio da escada, diante de Amlia:
- Ento isto so horas, sua brejeira?
Ela teve um risinho, encolheu-se.
- Ora v-se encomendar a Deus, v! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com
a sua mo
grossa e cabeluda.
Ela subiu a correr, enquanto o cnego, depois de ir buscar o guarda- sol saleta,
saa, dizendo
criada, que erguia o candeeiro sobre a escada:
- Est bem, eu vejo, no apanhes frio, rapariga. Ento s oito, Amaro! Esteja a p!
Vai-te,
rapariga, adeus! Reza Senhora da Piedade que te seque essa catarreira.
O proco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um
bom cheiro de
linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga dum Cristo
crucificado. Amaro abriu o seu Brevirio, ajoelhou aos ps da cama, persignouse; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e ento por cima, sobre o
teto, atravs das oraes rituais que maquinalmente ia lendo, comeou a sentir o
tique-tique das botinas de Amlia e o rudo das saias engomadas que ela sacudia
ao despir-se.
.
III
Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marquesa de Alegros. Seu
pai era criado do marqus; a me era criada de quarto; quase uma amiga da
senhora marquesa. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das Selvas, com
brbaras imagens coloridas que tinha escrito na primeira pgina branca: minha
muito estimada criada Joana Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido, Marquesa de Alegros. Possua tambm um dagtterretipo de sua me: era uma
mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e
uma cor ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a me, que fora
sempre to s, sucumbiu, da a um ano, a uma tsica de laringe. Amaro
completara ento seis anos. Tinha uma irm mais velha que desde pequena vivia
com a av em Coimbra, e um tio,
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merceeiro abastado do bairro da Estrela. Mas a senhora marquesa ganhara
amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adoo tcita: e comeou,
com grandes escrpulos, a vigiar a sua educao.
A marquesa de Alegros ficara viva aos quarenta e trs anos, e passava a maior
parte do ano retirada na sua quinta de Carcavelos. Era uma pessoa passiva, de
bondade indolente, com capela em casa, um respeito devoto pelos padres de S.
Lus, sempre preocupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas
no receio do cu e nas preocupaes da Moda, eram beatas e faziam o chique
falando com igual fervor da humildade crist e do ltimo figurino de Bruxelas.
Um jornalista de ento dissera delas: - Pensam todos os dias na toalete com que
ho-de entrar no Paraso.
No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocrticas onde os
paves gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religio, a Caridade eram
ento ocupaes avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da
freguesia, bordavam frontais para os altares da igreja. De Maio a Outubro
estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os
livros beatos e doces; como no tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os
padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de Vero.
A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesistica.
A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido: era j afeioado
s coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado ao p das mulheres, no
calor das saias unidas, ouvindo falar de santas. A senhora marquesa no o quis
Sabia j que aos quinze anos devia entrar no seminrio. O tio todos os dias lho
lembrava:
- No penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro. Em tendo quinze
anos, para o seminrio. No tenho obrigao de carregar contigo! Besta na
argola, no est nos meus princpios!
E o rapaz desejava o seminrio, como um libertamento.
Nunca ningum consultara as suas tendncias ou a sua vocao. Impunham-lhe
uma sobrepeliz; a sua natureza passiva, facilmente dominvel, aceitava-a, como
aceitaria uma farda. De resto no lhe desagradava ser padre. Desde que sara das
rezas perptuas de Carcavelos conservara o seu medo do Inferno, mas perdera o
fervor pelos santos; lembravam-lhe porm os padres que vira em casa da
senhora marquesa, pessoas brancas e bem tratadas, que comiam ao lado das
fidalgas, e tomavam rap em caixas de ouro; e convinha-lhe aquela profisso em
que se cantam bonitas missas, se comem doces finos, se fala baixo com as
mulheres, - vivendo entre elas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,
- e se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um
anel de rubi no dedo mnimo; monsenhor Saavedra com os seus belos culos de
ouro, bebendo aos goles o seu copo de Madeira. As filhas da senhora marquesa
bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fora padre na Baia,
viajara, estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mos ungidas
que cheiravam a gua- de-colnia, apoiadas ao casto de ouro da bengala, todo
rodeado de senhoras em xtase e cheias dum riso beato, cantava, para as
entreter, com a sua bela voz:
Mulatinha da Baia, Nascida no Capuj...
Um ano antes de entrar para o seminrio, o tio f-lo ir a um mestre para se
afirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balco. Pela primeira vez na sua
existncia, Amaro possuiu liberdade. Ia s escola, passeava pelas ruas. Viu a
cidade, o exrcito de infantaria, espreitou s portas dos cafs, leu os cartazes dos
teatros. Sobretudo comeara a reparar muito nas mulheres - e vinham-lhe, de
tudo o que via, grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando
voltava da escola, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao
jardim da Estrela. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janelinha
num vo sobre os telhados. Encostava-se ali olhando, e via parte da cidade baixa,
que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gs: parecia-lhe perceber, vindo de
l, um rumor indefinido: era a vida que no conhecia e que julgava maravilhosa,
com cafs abrasados de luz, e mulheres que arrastam ruge- ruges de sedas pelos
peristilos dos teatros; perdia-se em imaginaes vagas, e de repente apareciamlhe no fundo negro da noite formas femininas, por fragmentos, uma perna com
botinas de duraque e a meia muito branca, ou um brao rolio arregaado at ao
ombro... Mas embaixo, na cozinha, a criada comeava a lavar a loua, cantando:
era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe ento desejos de descer, ir
roar-se por ela, ou estar a um canto a v-la escaldar os pratos; lembravam-lhe
outras mulheres que vira nas vielas, de saias engomadas e ruidosas, passeando
em cabelo, com botinas cambadas: e, da profundidade do seu ser, subia-lhe uma
preguia, como que a vontade de abraar algum, de no se sentir s. Julgava-se
infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo:
- Ento tu no estudas, mariola?
E da a pouco, sobre o Tito Lvio cabeceando de sono, sentindo-se desgraado,
roando os joelhos um contra o outro, torturava o dicionrio.
Por esse tempo comeava a sentir um certo afastamento pela vida de padre,
porque no poderia casar. J as convivncias da escola tinham introduzido na sua
natureza efeminada curiosidades, corrupes. s escondidas fumava cigarros:
emagrecia e andava mais amarelo.
escola, com os livros numa correia, quando parava encostado vitrina das lojas a
contemplar a nudez das bonecas!
Lentamente, porm, com a sua natureza incaracterstica, foi entrando como uma
ovelha indolente na regra do seminrio. Decorava com regularidade os seus
compndios; tinha uma exatido prudente nos servios eclesisticos; e calado,
encolhido, curvando-se muito baixo diante dos lentes - chegou a ter boas notas.
Nunca pudera compreender os que pareciam gozar o seminrio com beatitude e
maceravam os joelhos, ruminando, com a cabea baixa, textos da Imitao ou de
Santo Incio; na capela, com os olhos em alvo, empalideciam de xtase; mesmo
no recreio, ou nos passeios, iam lendo algum volumezinho de Louvores a Maria;
e cumpriam com delcia as regras mais midas - at subir s um degrau de cada
vez, como recomenda S. Boaventura. A esses o seminrio dava um antegosto do
Cu: a ele s lhe oferecia as humilhaes duma priso, com os tdios duma
escola.
No compreendia tambm os ambiciosos; os que queriam ser caudatrios dum
bispo, e nas altas salas dos paos episcopais erguer os reposteiros de velho
damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados, servir uma
Igreja aristocrtica, e, diante das devotas ricas que se acumulam no frufru das
sedas sobre o tapete do altar-mor, cantar com voz sonora. Outros sonhavam at
destinos fora da Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lajeadas o
tlintlim dum sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um
chapu desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas largas
eiras cheias de medas, apear porta das adegas! E, a no ser alguns devotos,
todos, ou aspirando ao sacerdcio ou aos destinos seculares, queriam deixar a
estreiteza do seminrio para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as
mulheres.
Amaro no desejava nada:
- Eu nem sei, dizia ele melancolicamente.
No entretanto, escutando por simpatia aqueles para quem o seminrio era o
"tempo das gals",
At nos compndios encontrava a preocupao da Mulher! Que ser era esse, pois,
que atravs de toda a teologia ora era colocada sobre o altar como a Rainha da
Graa, ora amaldioada com apstrofes brbaras? Que poder era o seu, que a
legio dos santos ora se arremessa ao seu encontro, numa paixo exttica,
dando-lhe por aclamao o profundo reino dos Cus, - ora vai fugindo diante
dela como do Universal Inimigo, com soluos de terror e gritos de dio, e
escondendo-se, para a no ver, nas tebaidas e nos claustros, vai ali morrendo do
mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbaes: elas renasciam,
desmoralizavam-no perpetuamente: e j antes de fazer os seus votos desfalecia
no desejo de os quebrar.
E em redor dele, sentia iguais rebelies da natureza: os estudos, os jejuns, as
penitncias podiam domar o corpo, dar-lhe hbitos maquinais, mas dentro os
desejos moviam-se silenciosamente, como num ninho serpentes imperturbadas.
Os que mais sofriam eram os sangneos, to doloridamente apertados na Regra
como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando
estavam ss, o temperamento irrompia: lutavam, faziam foras, provocavam
desordens. Nos linfticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas,
os silncios moles: desforravam-se ento no amor dos pequenos vcios: jogar
com um velho baralho, ler um romance, obter de intrigas demoradas um mao de
cigarros - quantos encantos do pecado!
Amaro por fim quase invejava os estudiosos; ao menos esses estavamcontentes,
estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silncio da alta livraria,
eram respeitados, usavam culos, tomavam rap. Ele mesmo tinha s vezes
ambies repentinas de cincia; mas diante dos vastos infolios vinha-lhe um
tdio insupervel. Era no entanto devoto: rezava, tinha f ilimitada em certos
santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminrio! A
capela, os chores do ptio, as comidas montonas do longo refeitrio lajeado, os
cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria
bom, puro, crente, se estivesse na liberdade duma rua ou na paz dum quintal,
fora daquelas negras paredes. Emagrecia, tinha suores ticos: e mesmo no ltimo
ano, depois do servio pesado da Semana Santa, como comeavam os calores,
entrou na enfermaria com uma febre nervosa.
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"P.S. - O apelido do marido de sua irm Trigoso. " Liset.
Dois meses depois Amaro foi nomeado proco de Feiro, na Gralheira, serra da
Beira Alta. Esteve ali desde Outubro at o fim das neves.
Feiro uma parquia pobre de pastores e naquela poca quase desabitada.
Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tdio lareira, ouvindo
fora o Inverno bramir na serra. Pela Primavera vagaram nos distritos de
Santarm e de Leiria parquias populosas, com boas cngruas. Amaro escreveu
logo irm contando a sua pobreza em Feiro; ela mandou- lhe, com
recomendaes de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro
partiu imediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham- lhe fortificado o
sangue; voltava robusto, direito, simptico, com uma boa cor na pele trigueira.
Logo que chegou a Lisboa foi Rua dos Calafates no 53, a casa da tia: achou-a
velha, com laos vermelhos numa cuia enorme, toda coberta de p-de-arroz.
Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros
braos a Amaro.
- Como ests bonito! Ora no h! Quem te viu? Ih, Jesus! Que mudana!
Admirava-lhe a batina, a coroa: e contando-lhe as suas desgraas, com
exclamaes sobre a salvao da sua alma e sobre a carestia dos gneros, foi-o
levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguo.
- Ficas aqui como um abade, disse-lhe ela. E baratinho!... Ai! ter- te de graa
queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joozinho!... Ai! desculpa, Amaro!
Estou sempre com Joozinho na cabea...
Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Lus. Tinha ido para Frana.
Lembrou-se ento da filha mais nova da senhora marquesa de Alegros, a Sra. D.
Lusa, que estava casada com o conde de Ribamar, conselheiro de Estado, com
influncia, regenerador fiel desde cinqenta e um, duas vezes ministro do reino.
E, por conselho da tia, Amaro, logo que meteu o seu requerimento, foi uma
manh a casa da Sra. condessa de Ribamar, a Buenos Aires. porta um coup
esperava.
- A senhora condessa vai sair, disse um criado de gravata branca e quinzena de
alpaca, encostado ombreira do ptio, de cigarro na boca.
Nesse momento, duma porta de batentes de baeta verde, sobre um degrau de
pedra, ao fundo do ptio lajeado, uma senhora saa, vestida de claro. Era alta,
magra, loura, com pequeninos cabelos frisados sobre a testa, lunetas de ouro
num nariz comprido e agudo, e no queixo um sinalzinho de cabelos claros.
- A senhora condessa j me no conhece? disse Amaro com o chapu na mo,
adiantando-se curvado. Sou o Amaro.
- O Amaro? - disse ela, como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem ele ! Ora
no h! Est um homem. Quem diria!
Amaro sorria-se.
- Eu podia l esperar! continuou ela admirada. E est agora em Lisboa?
Amaro contou a sua nomeao para Feiro, a pobreza da parquia...
- De maneira que vim requerer, senhora condessa.
Ela escutava-o com as mos apoiadas numa alta sombrinha de seda clara, e
Amaro sentia vir dela
um perfume de p-de-arroz e uma frescura de cambraias.
- Pois deixe estar, disse ela, fique descansado. Meu marido h-de falar. Eu me
encarrego disso.
Olhe, venha por c. - E com o dedo sobre o canto da boca: - Espere, amanh vou
para Sintra. Domingo, no. O melhor daqui a quinze dias. Daqui a quinze dias
pela manh, sou certa. - E rindo com os seus largos dentes frescos: - Parece que
o estou a ver traduzir Chateaubriand com a mana Lusa! Como o tempo passa!
- Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
- Sim, bem. Est numa quinta em Santarm.
Deu-lhe a mo, calada de peau de sude, num aperto sacudido que fez tilintar os
seus braceletes
de ouro, e saltou para o coup, magra e ligeira, com um movimento que levantou
brancuras de saias. Amaro comeou ento a esperar. Era em Julho, no pleno
calor. Dizia missa pela manh em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e
casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. s vezes ia conversar com a
tia para a sala de jantar; as janelas estavam cerradas, na penumbra zumbia a
montona sussurrao das moscas; a tia a um canto do velho canap de palhinha
fazia croch, com a luneta encavalada na ponta do nariz; Amaro, bocejando,
folheava um antigo volume do Panorama.
noitinha saa, a dar duas voltas no Rossio. Abafava-se, no ar pesado e imvel: a
todos os cantos se apregoava monotonamente gua fresca! Pelos bancos, debaixo
das rvores, vadios remendados dormitavam; em redor da Praa, sem cessar,
caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as
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claridades dos cafs reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia,
bocejando, a sua preguia pelos passeios das ruas.
Amaro ento recolhia, e no seu quarto, com a janela aberta ao calor da noite,
estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros,
ruminava as suas esperanas. A cada momento lhe acudiam, com rebates de
alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido h- de
falar! E via-se j proco numa bonita vila, numa casa com quintal cheio de couves
e de saladas frescas, tranqilo e importante, recebendo bandejas de doce das
devotas ricas.
Vivia ento num estado de espirito muito repousado. As exaltaes, que no
seminrio lhe causava a continncia, tinham-se acalmado com as satisfaes que
lhe dera em Feiro uma grossa pastora, que ele gostava de ver ao domingo tocar
missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoa, e a face a
- verdade, disse o ministro, mas essas colocaes nas boas parquias devem
naturalmente ser recompensas dos bons servios. necessrio o estmulo...
- Perfeitamente, replicou o conde; mas servios religiosos, profissionais,
servios Igreja, no servios aos governos.
O homem das soberbas suas negras teve um gesto de objeo. - No acha?
perguntou-lhe o conde.
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- Respeito muito a opinio de vossa excelncia, mas se me permite... Sim, digo
eu, os procos na cidade so-nos dum grande servio nas crises eleitorais. Dum
grande servio!
- Pois sim. Mas...
- Olhe vossa excelncia, continuou ele, sfrego da palavra. Olhe vossa excelncia
em Tomar. Por que perdemos? Pela atitude dos procos. Nada mais.
O conde acudiu:
- Mas perdo, no deve ser assim; a religio, o clero no so agentes eleitorais.
- Perdo.., queria interromper o outro.
O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras
pausadas, cheias da
autoridade dum vasto entendimento:
- A religio, disse ele, pode, deve mesmo auxiliar os governos no seu
estabelecimento, operando,
por assim dizer, como freio...
- Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo pelculas mascadas
de charuto.
- Mas descer s intrigas, continuou o conde devagar, aos imbrglios... Perdoeme meu caro
regao uma cadelinha, e com a sua mo seca e fina cheia de veias, acamava-lhe o
plo branco como algodo.
- Como est, Sr. Amaro? - A cadela rosnou. - Quieta, Jia. Sabe que j falei no seu
negcio? Quieta, Jia... O ministro est ali.
- Sim, minha senhora, disse Amaro, de p.
- Sente-se aqui, Sr. padre Amaro.
Amaro pousou-se beira dum fauteuil, com o seu guarda-sol na mo, - e reparou
ento numa
senhora alta que estava de p, junto do piano, falando com um rapaz louro.
- Que tem feito estes dias, Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua
irm?
- Est em Coimbra, casou.
- Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anis.
Houve um silncio. Amaro, de olhos baixos, passava, com um gesto embaraado
e errante, os
dedos pelos beios.
- O Sr. padre Liset est para fora? perguntou.
- Est em Nantes. Tinha uma irm a morrer, disse a condessa. - Est o mesmo
sempre: muito
amvel, muito doce. a alma mais virtuosa!...
- Eu prefiro o padre Flix, disse o rapaz gordo, estirando as pemas.
- No diga isso, primo! Jesus, brada aos Cus! Pois ento, o padre Liset, to
respeitvel!... E
depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... V-se que um
corao delicado... ' - Pois sim, mas o padre Flix...
- Ai, nem diga isso! Que o padre Flix uma pessoa de muita virtude, decerto;
mas o padre Liset tem uma religio mais... - e com um gesto delicado procurava a
palavra: - mais fina, mais distinta... Enfim, vive com outra gente. - E sorrindo
para Amaro: - Pois no acha?
Amaro no conhecia o padre Flix, no se recordava do padre Liset. - J velho o
Sr. padre Liset, observou ao acaso.
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- Cr? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que
entusiasmo!... Ai, outra coisa! - E voltando-se para a senhora que estava junto
do piano: - Pois no achas, Teresa?
- J vou, respondeu Teresa, toda absorvida.
Amaro afirmou-se ento nela. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua
alta e forte estatura, uma linha de ombros e de seio magnfica; os cabelos pretos
um pouco ondeados destacavam sobre a palidez do rosto aquilino semelhante ao
perfil dominador de Maria Antonieta; o seu vestido preto, de mangas curtas e
decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada
de rendas negras, o tom montono das alvuras da sala; o colo, os braos estavam
cobertos por uma gaze preta, que fazia aparecer atravs da brancura da carne; e
sentia-se nas suas formas a firmeza dos mrmores antigos, com o calor dum
sangue rico.
Falava baixo, sorrindo, numa lngua spera que Amaro no compreendia,
cerrando e abrindo o seu leque preto - e o rapaz louro, bonito, escutava-a
retorcendo a ponta de um bigode fino, com um quadrado de vidro entalado no
olho.
- Havia muita devoo na sua parquia, Sr. Amaro? perguntava, no entanto, a
condessa.
- Muita, muito boa gente.
- onde ainda se encontra alguma f, nas aldeias, considerou ela com um tom
piedoso. -
sentou-se ao piano.
- Sabe msica? perguntou, voltando-se para Amaro.
- A gente aprende no seminrio, minha senhora.
Ela correu a mo, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e
tocou a frase do
Rigoleto, parecida com o Minuete de Mozart, que diz Francisco I, despedindo-se,
no sarau do primeiro ato, da senhora de Crcy, - e cujo ritmo desolado tem a
abandonada tristeza de amores que findam, e de braos que se desenlaam em
despedidas supremas.
Amaro estava enlevado. Aquela sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano
apaixonado, o colo de Teresa que ele via sob a negra transparncia da gaze, as
suas tranas de deusa, os tranqilos arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe
vagamente a idia duma existncia superior, de romance, passada sobre alcatifas
preciosas, em coups acolchoados, com rias de peras, melancolias de bom
gosto e amores dum gozo raro. Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a
msica chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu
cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e,
assustado, demora o seu prazer - pensando que vai voltar dureza das cdeas
secas e poeira dos caminhos.
No entanto Teresa, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga ria
inglesa de Haydn, que diz to finamente as melancolias da separao:
The village seems dead and asleep When Lubin is away!...
- Bravo! bravo! exclamou o ministro da Justia, aparecendo porta, batendo
docemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
- Tenho um pedido a fazer-lhe, Sr. Correia, disse Teresa erguendo- se logo. O
ministro veio, com uma pressa galante:
- Que , minha senhora? que ?
O conde e o sujeito de magnficas suas tinham entrado discutindo ainda. - A
Joana e eu temos que lhe pedir, disse Teresa ao ministro.
- Bem, bem, sucumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas uma tirania!
- Thank you, fez Teresa, estendendo-lhe a mo.
- Mas, minha senhora, estou a estranh-la, disse o ministro, fixando-a.
- Estou contente hoje, disse ela. Olhou um momento para o cho, distrada,
dando pequeninas
pancadas no vestido de seda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e
recomeou a doce ria inglesa:
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The village seems dead and asleep When Lubin is away!...
Entretanto, o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.
- negcio feito, disse-lhe ele. O Correia entende-se com o bispo. Daqui a uma
semana est nomeado. Pode ir descansado.
Amaro fez uma cortesia, e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:
- Senhor ministro, eu agradeo...
- senhora condessa, senhora condessa, disse o ministro sorrindo.
- Minha senhora, eu agradeo, veio ele dizer condessa, todo curvado.
- Ai, agradea a Teresa. Ela quer ganhar indulgncias, parece.
- Lembre-me nas suas oraes, Sr. padre Amaro, disse ela. E continuou, com a
sua voz magoada, dizendo ao piano - as tristezas da aldeia quando Lubin est
ausente!
Amaro da a uma semana soube o seu despacho. Mas no tomara a esquecer
aquela manh em casa da Sra. condessa de Ribamar, - o ministro de calas muito
curtas, enterrado na poltrona, prometendo o seu despacho; a luz clara e calma do
jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes... Cantava-lhe sempre no
crebro aquela ria triste do Rigoleto: e perseguia-o a brancura dos braos de
Teresa, sob a gaze negra! Instintivamente via-os enlaarem-se devagar, devagar,
em torno do pescoo airoso do rapaz louro: detestava-o ento, e a lngua brbara
Amaro fora visitar o chantre com o cnego Dias, e tinha-lhe entregado uma carta
de recomendao do Sr. conde de Ribamar.
- Conheci muito o Sr, conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis, no
Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: h que anos isso vai!
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mudo que descobria os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas
como cunhas. Era viva e rica, e sofria dum catarro crnico.
- Aqui tem o senhor proco novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joaneira.
Ela ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, comovida.
- Estas so as senhoras Gansosos, h-de ter ouvido... disse a S. Joaneira ao
proco.
Amaro cumprimentou timidamente. Eram duas irms. Passavam por ter algum
dinheiro, mas
costumavam receber hspedes. A mais velha, a Sra. D. Joaquina Gansoso, era
uma pessoa seca, com uma testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz
arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no seu xale, direita, com os
braos cruzados, falava perpetuamente, numa voz dominante e aguda, cheia de
opinies. Dizia mal dos homens e dava-se toda Igreja.
A irm, a Sra. D. Ana, era extremamente surda. Nunca falava, e com os dedos
cruzados sobre o regao, os olhos baixos, fazia girar tranqilamente os dois
polegares. Nutrida, com o seu perptuo vestido preto de riscas amarelas, um rolo
de arminho ao pescoo, dormitava toda a noite, e s acentuava a sua presena de
vez em quando por suspiros agudos; dizia- se que tinha uma paixo funesta pelo
recebedor do correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em
recortar papis para caixas de doce.
Estava tambm a Sra. D. Josefa, a irm do cnego Dias. Tinha a alcunha de
castanha pilada. Era uma criaturinha mirrada, de linhas aduncas, pele engelhada
e cor de cidra, voz sibilante; vivia num perptuo estado de irritao, os olhinhos
sempre assanhados, contraes nervosas de birra, toda saturada de fel. Era
temida. O maligno doutor Godinho chamava-lhe a estao central das intrigas de
Leiria.
- Ento passeou muito, senhor proco? perguntou ela logo empertigando-se.
senhor reparado!
- Por qu, minha senhora? disse ele erguendo-se e chegando-se ao grupo das
velhas.
Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pele branca, regular, um pouco
fatigado,
destacava bem um bigode pequeno muito negro, cado aos cantos, que ele
costumava mordicar com os dentes.
- Ainda ele o pergunta! exclamou a Sra. D. Josefa Dias. O senhor, que nem lhe tira
o chapu!
- Eu?
- Disse-mo ele, afirmou ela com uma voz cortante. E acrescentou:
Ai, senhor proco, bem pode chamar o Sr. Joo Eduardo para o bom caminho. - E
teve um
risinho maligno.
- Mas eu parece-me que no ando no mau caminho, disse ele rindo, com as mos
nos bolsos. E a
cada momento os seus olhos se voltavam para Amlia.
- uma graa! exclamou a Sra. D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o senhor
disse hoje l em
casa, de tarde, da Santa da Arregassa, no h-de ganhar o Cu!
- Ora essa! gritou a irm do cnego, voltando-se bruscamente para Joo Eduardo.
Ento o que
tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que uma impostora?
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- Credo, Jesus! disse a Sra. D. Maria da Assuno, apertando as mos e fitando
Joo Eduardo, com um terror piedoso. Pois ele havia de dizer isso? Cruzes!
tudo; pessoa por quem ela pea tem a graa do Senhor; a gente apegar-se com
ela e cura-se de toda a molstia. E depois, quando comunga, comea a erguer-se,
e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o Cu, que at chega a
fazer terror.
Mas neste momento uma voz disse porta da sala:
- Ora viva a sociedade! Isto hoje est de truz!
Era um rapaz extremamente alto, amarelo, com as faces cavadas, uma grenha
riada, um bigode
a D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quase
todos os dentes de diante; e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras,
errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra na mo.
- Ento como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
- Mal, respondeu ele com voz triste, sentando-se. Sempre as dores no peito, a
tossezita. - Ento no se dava bem com o leo de fgados de bacalhau?
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- Qual! fez ele desconsoladamente.
- Uma viagem Madeira, isso que era, isso que era! disse a Sra. D. Joaquina
Gansoso com autoridade.
Ele riu, com uma jovialidade sbita:
- Uma viagem Madeira! No est m! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um
pobre amanuense de administrao com dezoito vintns por dia, mulher e quatro
filhos! Para a Madeira!
- E como vai ela, a Joanita?
- Coitadita, l vai! Tem sade, graas a Deus! Gorda, sempre com bom apetite. Os
pequenos, os dois mais velhos que esto doentes; demais a mais agora a criada
tambm caiu de cama! o diacho! Pacincia! Pacincia! - E encolhia os ombros.
trinta e seis.
Em roda repararam.
- Ora vamos a ver se quinam ambos, disse a Sra. D. Maria da Assuno,
envolvendo-os no mesmo olhar baboso.
Mas o trinta e seis no saa; havia outras quadras nos cartes alheios; Amlia
receava que quinasse a Sra. D. Joaquina Gansoso, que se mexia muito na cadeira,
pedindo o quarenta e oito. Amaro ria, involuntariamente interessado.
O cnego tirava os nmeros com uma pachorra maliciosa. - V! v! Ande com
isso, senhor cnego! diziam-lhe. Amlia, debruada, os olhos vivos, murmurou:
- Dava tudo para que sasse o trinta e seis!
- Sim? A o tem... Trinta e seis! disse o cnego.
- Quinamos! gritou ela, triunfante; e, tomando o carto do proco e o seu
mostrava-os, para conferirem, orgulhosa, muito corada.
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- Ora Deus os abenoe, disse o cnego, jovial, entornando-lhes diante o pires
cheio de moedas de dez ris.
- Parece milagre! considerou a Sra. D. Maria da Assuno, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas comearam a
agasalhar-se. Amlia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polca. Joo
Eduardo aproximou-se dela, e baixando a voz:
- Muitos parabns por ter quinado com o senhor proco. Que entusiasmo! - E
como ela ia responder: - Boa noite! disse ele secamente, embrulhando-se no seu
xale-manta com despeito.
A Rua alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo
adeusinhos. O Sr. Artur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.
Amaro foi para o seu quarto, comeou a rezar no Brevirio; mas distraia-se,
lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes podres de Artur, sobretudo o
perfil de Amlia. Sentado beira da cama, com o Brevirio aberto, fitando a luz,
via o seu penteado, as suas mos pequenas com os dedos um pouco trigueiros
picados da agulha, o seu buozinho gracioso...
Sentia a cabea pesada do jantar do cnego e da monotonia do quino, com uma
grande sede alm disso das lulas e do vinhito do Porto. Quis beber, mas no tinha
gua no quarto. Lembrou-se ento que na sala de jantar havia uma bilha de
Extremoz com gua fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calou as
chinelas, tomou o castial, subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o
reposteiro corrido; ergueu-o e recuou com um ah! Vira num relance Amlia, em
saia branca a desfazer o atacador do colete; estava junto do candeeiro e as
mangas curtas, o decote da camisa deixavam ver os seus braos brancos, o seio
delicioso. Ela deu um pequeno grito, correu para o quarto.
Amaro ficou imvel, com um suor raiz dos cabelos. Poderiam suspeitar uma
ofensa! Palavras indignadas iam sair decerto atravs do reposteiro do quarto, que
ainda se balouava agitado!
Mas a voz de Amlia, serena, perguntou de dentro:
- Que queria, senhor proco?
- Vinha buscar gua, balbuciou ele.
- Aquela Rua! aquela desleixada! Desculpe, senhor proco, desculpe. Olhe a ao
p da mesa, a
bilha. Achou?
- Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mo tremia-lhe, a gua escorria- lhe pelos
dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amlia sentiu por baixo passos nervosos pisarem
o soalho: era Amaro que, com o capote aos ombros e em chinelas, fumava,
excitado, pelo quarto.
V
Ela, em cima, no dormia tambm. Sobre a cmoda, dentro de uma bacia, a
lamparina extinguia- se, com um mau cheiro de morro de azeite; brancuras de
saias cadas no cho destacavam; e os olhos do gato, que no sossegava, reluziam
pela escurido do quarto com uma claridade fosfrica e verde.
Na casa vizinha, uma criana chorava sem cessar. Amlia sentia a me embalarlhe o bero, cantar-lhe baixo:
Dorme, dorme, meu menino, Que a tua me foi fonte!
Era a pobre Catarina engomadeira, que o tenente Sousa deixara com um filho no
bero, e grvida de outro - para ir casar a Extremoz! To bonita era, to loura - e
mirrada agora, to chupada!
Dorme, dorme, meu menino, Que a tua me foi fonte!
Como ela conhecia aquela cantiga! Quando tinha sete anos sua me dizia-a, nas
longas noites de Inverno, ao irmozinho que morrera!
Lembrava-se bem! moravam ento noutra casa, ao p da estrada de Lisboa;
janela do seu
quarto havia um limoeiro e a me punha, na sua ramagem luzidia, os cueiros do
Joozinho, a secarem ao
sol. No conhecera o pap. Fora militar, morrera novo; e a me ainda suspirava
ao falar da sua bela figura
com o uniforme de cavalaria. Aos oito anos ela foi para a mestra. Como se
lembrava! A mestra era uma
velhita rolia e branca, que fora tacho das freiras de Santa Joana de Aveiro; com
os seus culos redondos, 25
junto janela, empurrando a agulha, morria-se por contar histrias do convento:
as perrices da escriv, sempre a escabichar os dentes furados; a madre rodeira,
preguiosa e pacata, com uma pronncia minhota; a mestra de cantocho,
admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Tvoras; e a legenda de
uma freira que morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os
corredores, soltando gemidos dolorosos e clamando: - Augusto! Augusto!
Amlia ouvia aquelas histrias, encantada. Gostava ento tanto de festas de
igreja e da convivncia dos santos, que desejava ser uma "freirinha, muito
bonita, com um veuzinho muito branco". A mam era muito visitada por padres.
O chantre Carvalhosa, um homem velho e robusto, que soprava de asma ao subir
a escada e tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa.
Amlia chamava-lhe padrinho. Quando ela voltava da mestra, tarde,
encontrava-o sempre a palestrar com a me, na sala, de batina desabotoada,
deixando ver o longo colete de veludo preto com raminhos bordados a amarelo. O
senhor chantre perguntava-lhe pelas lies e fazia-a dizer a tabuada.
noite havia reunies: vinha o padre Valente; o cnego Cruz; e um velhito calvo,
de perfil de pssaro, com culos azuis, que fora frade franciscano e a quem
chamavam frei Andr. Vinham as amigas da me, com as suas meias; e um
capito Couceiro, de caadores, que tinha os dedos negros do cigarro e trazia
sempre a sua viola. Mas s nove horas mandavam-na deitar; pela frincha do
quarto ela via a luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silncio, e o capito,
repenicando a guitarra, cantava o lundum da Figueira.
Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipticos: sobretudo o
padre Valente, to gordo, to suado, com umas mos papudas e moles, de unhas
pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe devagarinho a orelha, e
ela sentia o seu hlito impregnado de cebola e de cigarro. O seu amiguinho era o
cnego Cruz, magro, com o cabelo todo branco, a volta sempre asseada, as fivelas
luzidias; entrava devagarinho, cumprimentando com a mo sobre o peito, e uma
voz suave cheia de ss. J ento sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em
casa, por qualquer "bagatela", falavam-lhe sempre dos castigos do Cu; de tal
sorte que Deus aparecia-lhe como um ser que s sabe dar o sofrimento e a morte,
e que necessrio abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, animando os
padres. Por isso, se s vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia
penitncia no outro dia, porque temia que Deus lhe mandasse sezes ou a fizesse
cair na escada.
Mas o seu melhor tempo foi quando comeou a tomar lies de msica. A me
tinha na sala de jantar, ao canto, um velho piano, coberto com um pano verde,
to desafinado, que servia de aparador. Amlia costumava cantarolar pela casa; e
a sua voz fina e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas da me diziamlhe:
- Tu tens a um piano, por que no mandas ensinar a rapariga? Sempre uma
prenda! olha que lhe pode servir de muito!
O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da S de vora,
extremamente infeliz: a filha nica, muito linda, fugira-lhe com um alferes para
Lisboa; e, passados dois anos, o Silvestre da Praa, que ia muito capital, vira-a
descer a Rua do Norte, de garibaldi escarlate e alvaiade num olho, com um
marinheiro ingls. O velho cara em grande melancolia e grande misria; e por
piedade tinham- lhe dado um emprego no cartrio da cmara eclesistica. Era
uma figura triste de romance picaresco. Muito magro, alto como um pinheiro,
deixava crescer at os ombros os seus cabelos brancos e finos; os olhos,
cansados, lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom
enternecia: e parecia muito transido, no seu capote cor de vinho que s lhe
chegava cintura e que tinha uma gola de astrac. Chamavam-lhe o Tio
Cegonha, pela sua alta magreza e o seu ar solitrio. Amlia um dia tinha-lhe
chamado Tio Cegonha; mas mordeu logo o beio, toda envergonhada.
O velho ps-se a sorrir:
- Ai, chame, minha rica menina, chame! Tio Cegonha?... ora, que tem? Cegonha
sou eu, e bem cegonha!
Era ento no Inverno. As grandes chuvas com os sudoestes no cessavam; a
spera estao oprimia os pobres. Viam-se naquele ano famlias esfomeadas indo
cmara pedir po. O Tio Cegonha vinha sempre ao meio-dia dar a lio; o seu
guarda-chuva azul deixava um ribeiro na escada; tiritava; e quando se sentava
escondia, na sua vergonha de velho, as botas encharcadas com a sola aberta.
Queixava- se sobretudo do frio das mos, que o impedia de ferir com justeza o
teclado, e no o deixava escrever no cartrio. '
- No, no, Tio Cegonha, disse ela, toque alguma coisa para eu me entreter.
Ele tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas
extremamente melanclica.
- Que lindo! que lindo! dizia Amlia, de p junto ao piano.
E quando o velho deu as ltimas notas:
- O que ? perguntou ela.
O Tio Cegonha contou-lhe que era o comeo de uma Meditao feita por um frade
seu amigo.
- Coitado, disse, teve bem o seu tormento!
Amlia quis logo saber a histria; e sentando-se no mocho do piano,
embrulhando-se no seu
xale:
- Diga, Tio Cegonha, diga!
Era um homem que tivera em novo uma grande paixo por uma freira; ela
morrera no convento daquele amor infeliz; e ele, de dor e de saudade, fizera-se
frade franciscano...
- Parece que o estou a ver...
- Era bonito?
- Se era! Um rapaz na flor da vida, rico... Um dia veio ter comigo ao rgo: "Olha
o que eu fiz",
disse-me ele. Era um papel de msica. Abria em r menor. Ps-se a tocar, a
tocar... Ai, minha rica menina, que msica! Mas no me lembra o resto!
E o velho, comovido, repetiu no piano as notas plangentes da Meditao em r
menor.
Amlia todo o dia pensou naquela histria. De noite veio-lhe uma grande febre,
com sonhos espessos, em que dominava a figura do frade franciscano, na sombra
do rgo da S de vora. Via os
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seus olhos profundos reluzirem numa face encovada: e, longe, a freira plida, nos
seus hbitos brancos, encostada s grades negras do mosteiro, sacudida pelos
prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades franciscanos
caminhava para o coro: ele ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre o
rosto, arrastando as sandlias, enquanto um grande sino, no ar nublado, tocava o
dobre dos finados. Ento o sonho mudava: era um vasto cu negro, onde duas
almas enlaadas e amantes, com hbitos de convento e um rudo inefvel de
beijos insaciveis, giravam, levadas por um vento mstico; mas desvaneciam-se
como nvoas, e na vasta escurido ela via aparecer um grande corao em carne
viva, todo traspassado de espadas, e as gotas de sangue que caam dele enchiam o
cu duma chuva escarlate. Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouveia
tranqilizou a S. Joaneira com uma simples palavra:
- Nada de sustos, minha rica senhora, so os quinze anos da rapariga. Ho-delhe vir amanh as vertigens e os enjos... Depois acabou-se. Temo-la mulher.
A S. Joaneira compreendeu.
- Esta rapariga tem o sangue vivo e h-de ter as paixes fortes! acrescentou o
velho prtico, sorrindo e sorvendo a sua pitada.
Por esse tempo o senhor chantre, uma manh, depois do seu almoo de aorda,
caiu de repente morto com uma apoplexia. Que consternaoinesperada, para a
S. Joaneira! Durante dois dias, esguedelhada, em saiasbrancas chorou, gemeu
pelos quartos. D. Maria da Assuno, as senhoras Gansosos vieram acalmar,
amansar a sua dor: e a Sra. D. Josefa Dias resumiu as consolaes de todos,
dizendo:
- Deixa, filha, que te no h-de faltar quem te ampare!
Era ento no comeo de Setembro; a Sra. D. Maria da Assuno, que tinha uma
casa na praia da Vieira, props levar a S. Joaneira e Amlia para a estao dos
banhos, para ela espalhar, nos bons ares saudveis, em lugar diferente, aquela
dor.
- uma esmola que me fazes, dissera a S. Joaneira. Sempre me lembra que era ali
que ele punha o guarda-chuva... Ali que ele se sentava a ver-me costurar!
- Est bom, est bom, deixa-te disso. Come e bebe, toma os teus banhos, e o que
l vai l vai. Olha que ele tinha bem os seus sessenta.
- Ah, minha rica! a gente pela amizade que lhes ganha.
Amlia tinha ento quinze anos, mas era j alta e de bonitas formas. Foi uma
alegria para ela a estao na Vieira! Nunca vira o mar; e no se fartava de estar
sentada na areia, fascinada pela vasta gua azul, muito mansa, cheia de sol; s
vezes no horizonte passava um fumo delgado de paquete; a montona e gemente
cadncia da vaga adormentava-a; e em redor o areal faiscava, a perder de vista,
sob o cu azul- ferrete.
Como se lembrava bem! Logo pela manh estava a p! Era a hora do banho: as
barracas de lona alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras, sentadas em
cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar, palrando; os
homens, de sapatos brancos estendidos em esteiras, chupavam o cigarro,
riscavam emblemas na areia; enquanto o poeta Carlos Alcoforado, muito fatal,
muito olhado, passeava s, soturno, junto da vaga, seguido do seu Terra-Nova.
Ela saa ento da barraca com o seu vestido de flanela azul, a toalha no brao,
tiritando de susto e de frio: tinha- se persignado s escondidas e toda trmula,
agarrada mo do banheiro, escorregando na areia, entrava na gua, rompendo a
custo a maresia esverdeada que fervia em redor. A onda vinha espumando, ela
mergulhava, e ficava aos saltos, sufocada e nervosa, cuspindo a gua salgada.
Mas, quando saa do mar, como vinha satisfeita! Arfava, com a toalha pela
cabea, arrastando-se para a barraca, mal podendo com o peso do vestido
encharcado, risonha, cheia de reao; e em redor vozes amigas perguntavam:
- Ento que tal, que tal? Mais fresquinha, hem?
Depois, de tarde, eram os passeios beira-mar, a apanhar conchinhas; o recolher
das redes, onde a sardinha toda viva ferve aos milheiros, luzidia sobre a areia
- J.
- Estava frio hoje?
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- Estava.
As palavras de Agostinho eram agora muito secas.
- Zangou-se? disse ela docemente, pondo-lhe de leve a mo no ombro.
Agostinho ergueu os
olhos, e vendo o bonito rosto trigueiro, todo risonho, - exclamou com
veemncia: - Estou mesmo doido por si!
- Chut!... disse ela.
A me de Amlia, levantando o pano da barraca, saa, muito abafada, de leno
amarrado na cabea.
- Mais fresquinha, hem? perguntou logo Agostinho, tirando o chapu de palha. Estava por aqui?
- Vim dar uma vista de olhos. E agora toca ao almocinho, hem?
- Se servido... disse a S. Joaneira.
Agostinho, muito galante, ofereceu o brao mam.
E desde ento seguia sempre Amlia, de manh no banho, de tarde beira-mar;
apanhava-lhe conchas; e tinha-lhe feito outros versos - o Sonho. Uma estrofe
era violenta:
Senti-te contra o meu peito Tremer, palpitar, ceder...
Ela murmurava-os com grande comoo, de noite, suspirando, abraando o
travesseiro.
Outubro findava, as frias tinham acabado. Uma noite o alegre rancho da Sra. D.
Maria da Assuno e das amigas fora dar um passeio ao luar. volta, porm,
erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram o cu, caram gotas de gua.
- Cspite! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os seus trinta
contos! Olha o meco!
E diante de todos Amlia rompeu a chorar.
Amava Agostinho; e no podia esquecer aqueles beijos de noite no pinheiral
cerrado. Pareceu- lhe ento que no tornaria a ter alegria! Ainda lembrada
daquele moo da histria do Tio Cegonha, que por amor se escondera na solido
de um convento, comeou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte devoo,
manifestao exagerada das tendncias que desde pequenina as convivncias de
padres tinham lentamente criado na sua natureza sensvel; lia todo o dia livros
de rezas; encheu as paredes do quarto de litografias coloridas de santos; passava
longas horas na igreja, acumulando Salve-Rainhas Senhora da Encarnao.
Ouvia todos os dias missa, quis comungar todas as semanas - e as amigas da me
achavam- na "um modelo, de dar virtude a incrdulos" !
30
Foi por esse tempo que o cnego Dias e sua irm, a Sra. D. Josefa Dias,
comearam a freqentar a casa da S. Joaneira. Dentro em pouco o cnego tornouse o "amigo da famlia". Depois do almoo era certo com a sua cadelinha, como
outrora o chantre com o seu guarda-chuva.
- Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joaneira. Mas o senhor
chantre no h dia nenhum que me no lembre dele!
A irm do cnego tinha ento organizado com a S. Joaneira a Associao das
Servas da Senhora da Piedade. A Sra. D. Maria da Assuno, as Gansosos
"filiaram-se"; e a casa da S. Joaneira tornou-se um centro eclesistico. Foi esse o
momento melhor da vida da S. Joaneira; "a S, como dizia com tdio o Carlos da
botica, era agora na Rua da Misericrdia". Parte dos cnegos, o novo chantre,
vinham todas as sextas-feiras. Havia imagens de santos na sala de jantar e na
cozinha. As criadas, por escrpulo, eram examinadas em doutrina antes de
serem aceitas. Ali muito tempo fizeram-se as reputaes: se se dizia de um
homem: no temente a Deus, havia o dever de o desacreditar santamente. As
- Deixe l a mam!
E Joo Eduardo, ento, falando-lhe junto do rosto, disse-lhe "a sua grande
paixo". Tomou-lhe a mo, repetia todo perturbado:
- Gosto tanto de si! Gosto tanto de si!
Amlia estava nervosa da msica, do teatro; a noite quente de Vero, com a sua
vasta cintilao de estrelas tomava-a toda lnguida. Abandonou a mo, suspirou
baixinho.
- Gosta de mim, no verdade? perguntou ele.
- Sim, respondeu ela, e apertou os dedos de Joo Eduardo com paixo.
Mas, como ela pensou, "fora decerto um fogacho" - porque, dias depois, quando
conheceu mais
Joo Eduardo, quando pde falar livremente com ele, reconheceu que ''no tinha
nenhuma inclinao pelo rapaz''. Estimava-o, achava-o simptico, bom moo;
poderia ser um bom marido; mas sentia dentro em si o corao adormecido.
O escrevente porm comeou a ir Rua da Misericrdia quase todas as noites. A
S. Joaneira estimava-o pelo seu "propsito" e pela sua honradez. Mas Amlia iase mostrando "fria": esperava-o janela pela manh quando ele passava para o
cartrio, fazia-lhe olhos doces noite, - mas s para o no descontentar, para ter
na sua existncia desocupada um interessezinho amoroso.
Joo Eduardo um dia falou me em casamento:
- Como a Amlia quiser, eu por mim... disse a S. Joaneira. E Amlia, consultada,
respondeu ambiguamente:
- Mais tarde, por ora no me parece, veremos.
Enfim acordou-se tacitamente em esperar, at que ele obtivesse o lugar de
amanuense do governo civil, rasgadamente prometido pelo doutor Godinho - o
temido doutor Godinho!
Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia sala de jantar, onde a S. Joaneira
e Amlia costuravam. "Estava aborrecido embaixo, vinha um bocado para o
cavaco", dizia. A S. Joaneira, numa cadeira pequena, ao p da janela, com o gato
aninhado na roda do vestido de merino, cosia de luneta na ponta do nariz.
Amlia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado; a cabea
inclinada sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, ntida, um pouco afogada na
abundncia do cabelo; os seus grandes brincos de ouro, em forma de pingos de
cera, oscilavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoo uma
pequenina sombra; as olheiras leves cor de bistre esbatiam-se delicadamente
sobre a pele de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu
peito cheio respirava devagar. s vezes, cravando a agulha na fazenda,
espreguiava-se devagarinho, sorria, cansada. Ento Amare gracejava:
- Ah preguiosa, preguiosa! Olha que mulher de casa!
33
Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia: o major
despedira a criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco do Carlos do
correio. De vez em quando a Rua vinha ao armrio buscar um prato ou uma
colher; ento falava-se do preo dos gneros, do que havia para o jantar. A S.
Joaneira tirava as lunetas, traava a perna, e balouando o p calado numa
chinela de ourelo, punha-se a dizer os pratos.
- Hoje temos gro-de-bico. No sei se o senhor proco gostar, foi para variar...
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria afinidade de
gostos com Amlia.
Depois, animando-se, bulia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrara uma
carta; perguntou-lhe pelo derrio; ela respondeu, picando vivamente o
pesponto:
- Ai! a mim ningum me quer, senhor proco...
- No tanto assim, acudiu ele. Mas suspendeu-se, muito vermelho, afetando
tossir.
Amlia s vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo, pediu-lhe para
sustentar nas mos uma
meadinha de retrs que ela ia dobar.
- Deixe falar, senhor proco! exclamou a S. Joaneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe
dando
confiana!...
Mas Amaro prontificou-se, rindo, todo contente: - ele estava ali para o que
quisessem, at para
dobadoura! Era mandarem, era mandarem!... E as duas mulheres riam, dum riso
clido, enlevadas naquelas maneiras do senhor proco, "que at tocavam o
corao" ! s vezes Amlia pousava a costura e tomava o gato no colo; Amaro
chegava-se, corria a mo pela espinha do malts que se arredondava, fazendo um
ronrom de gozo.
- Gostas? dizia ela ao gato, um pouco corada, com os olhos muito ternos.
E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
- Bichaninho gato! bichaninho gato!
botinas batia o soalho... Adeus! a devoo caia como uma vela a que falta o vento;
as boas resolues fugiam, e l voltavam as tentaes em bando a apoderar-se do
seu crebro, frementes, arrulhando, roando-se umas pelas outras como um
bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, sofria. E
lamentava ento a sua liberdade perdida: como desejaria no a ver, estar longe de
Leiria, numa aldeia solitria, entre gente pacifica, com uma criada velha cheia de
provrbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e
os galos cacarejam ao sol! Mas Amlia, de cima, chamava-o - e o encanto
recomeava, mais penetrante.
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S.
Joaneira trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo oscaroos das
azeitonas na palma da mo e enfileirando-os sobre a toalha. A Rua, cada dia
mais tica, servia mal, sempre a tossir; Amlia s vezes erguia-se para ir buscar
uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, atencioso.
- Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor proco! dizia ela. E punha- lhe a mo no
ombro, e os seus olhos encontravam-se.
34
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estmago, sentia-se
regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada
tornava-se expansivo, tinha gracinhas; s vezes mesmo, com um brilho terno no
olho, tocava fugitivamente o p de Amlia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar
sentido, dizia "que muito lhe pesava no ter uma irmzinha assim" !
Amlia gostava de ensopar o miolo do po no molho do guisado: a me dizia-lhe
sempre: - Embirro que faas isso diante do senhor proco.
E ele ento rindo:
- Pois olhe, tambm eu gosto. Simpatia! magnetismo!
E molhavam ambos o po, e sem razo davam grandes risadas. Mas o crepsculo
crescia, a Rua trazia o candeeiro. O brilho dos copos e das louas alegrava
Amaro, enternecia-o mais; chamava S. Joaneira mam; Amlia sorria, de olhos
baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. Da a pouco vinha
o caf; e o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca,
e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
quela hora aparecia sempre o cnego Dias; sentiam-no subir pesadamente,
dizendo da escada: - Licena para dois!
Era ele e a cadela, a Trigueira.
- Ora Nosso Senhor vos d muito boas-noites! dizia assomando porta.
- Vai a gotinha de caf, senhor cnego? perguntava logo a S. Joaneira.
Ele sentava-se, exalando um profundo uff! V l a gotinha do caf! E batendo no
ombro do proco, olhando para a S. Joaneira:
- Ento, como vai c o seu menino?
Riam; vinham as histrias do dia. O cnego costumava trazer no bolso o Dirio
Popular; Amlia interessava-se pelo romance, a S. Joaneira pelas
correspondncias amorosas nos anncios.
- Ora vejam que pouca-vergonha!... dizia ela, deliciando-se.
Amaro ento falava de Lisboa, de escndalos que lhe contara a tia: dos fidalgos
que conhecera "em casa do Sr, conde de Ribamar". Amlia, enlevada, escutava-o
com os cotovelos sobre a mesa, roendo vagarosamente a ponta do palito.
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia cabeceira da
cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava
mais lvida a sua carinha engelhada como uma ma reineta, fazendo debaixo da
roupa uma salincia quase imperceptvel, fixava em todos, com susto, os seus
olhinhos cncavos e chorosos.
- o senhor proco, tia Gertrudes! gritava-lhe Amlia ao ouvido. Vem ver como
est. A velha fazia um esforo, e com uma voz gemida:
- Ah! o menino!
- o menino, , diziam rindo.
A chuva caa, grossa. Quando entrou havia j luz na sala de jantar. Subiu.
- lh, como vem frio! disse-lhe Amlia sentindo, ao apertar-lhe a mo, a umidade
da nvoa. Sentada mesa, costurava com um xale-manta pelos ombros: Joo
Eduardo, ao p, jogava a
bisca com a S. Joaneira.
Amaro sentou-se um pouco embaraado; a presena do escrevente dera-lhe de
repente, sem saber
por qu, o duro choque duma realidade antiptica: e todas as esperanas, que lhe
tinham vindo a danar uma sarabanda na imaginao, encolhiam-se uma a uma,
murchavam - vendo ali Amlia ao p do noivo, curvada sobre uma costura
honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candeeiro de famlia!
E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de
ramagens verdes, o armrio cheio de loua luzidia da Vista Alegre, o simptico e
bojudo pote de gua, o velho piano mal firme nos seus trs ps torneados; o
paliteiro to querido de todos - um Cupido rechonchudo com um guarda-chuva
aberto eriado de palitos, e aquela tranqila bisca jogada com os dichotes
clssicos. Tudo to decente!
Afirmava-se ento nas grossas roscas do pescoo da S. Joaneira, como para
descobrir nelas as marcas das beijocas do cnego: ah! tu, no h dvida, s "uma
barreg de clrigo". Mas Amlia! com aquelas longas pestanas descidas, o beio
to fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da me; ou, experiente, estava
bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurana dum amor legal! - E
Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez
do seu rosto, da virgindade do seu passado.
- Cansadinho, senhor proco, hem? disse a S. Joaneira. E para Joo Eduardo: Trunfo, faz favor, seu cabea no ar!
O escrevente, namorado, distraa-se.
- o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joaneira a cada momento.
Depois ele esquecia-se de comprar cartas.
- Ah menino, menino! dizia ela com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas
orelhas!
Amlia ia cosendo com a cabea baixa: tinha um pequeno casabeque preto com
botes de vidro,
que lhe disfarava a forma do seio.
37
E Amaro irritava-se daqueles olhos fixos na costura, daquele casaco amplo
escondendo a beleza que mais apetecia nela! E nada a esperar. Nada dela lhe
pertenceria, nem a luz daquelas pupilas, nem a brancura daqueles peitos! Queria
casar - e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus!
Odiou-o ento, dum dio complicado de inveja ao seu bigode negro e ao seu
direito de amar...
- Est incomodado, senhor proco? perguntou Amlia, vendo-omexer-se
bruscamente na cadeira.
- No, disse ele secamente.
- Ah! fez ela, com um leve suspiro, picando rapidamente o pesponto.
O escrevente, baralhando as cartas, comeara a falar de uma casa que queria
alugar; a conversa caiu sobre arranjos domsticos.
- Traz-me luz! gritou Amaro Rua.
Desceu para o seu quarto, desesperado. Ps a vela sobre a cmoda; o espelho
estava defronte, e a sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridculo com a sua
cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e por trs a coroa hedionda.
Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabelo
todo, a sua liberdade! Para que hei-de eu estar a ralar- me? pensou. O outro era
um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; ele s poderia
dar-lhe sensaes criminosas, depois os terrores do pecado! Ela simpatizava
talvez com ele, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar;
nada mais natural! Via-se pobre, bonita, s: cobiava uma situao legitima e
Sentiu ento os passos de Joo Eduardo que descia, e o rumor das saias de
Amlia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no beio, de
cime. A cancela bateu, Amlia subiu cantarolando baixo.
- Mas a sensao do amor mstico que o penetrara um momento, olhando a
noite, passara; e deitou-se, com um desejo furioso dela e dos seus beijos.
VII
Dias depois o padre Amaro e o cnego Dias tinham ido jantar com o abade da
Cortegassa. - Era
um velho jovial, muito caridoso, que vivia h trinta anos naquela freguesia e
passava por ser o melhor cozinheiro da diocese. Todo o clero das vizinhanas
conhecia a sua famosa cabidela de caa. O abade
fazia anos, havia outros convidados - o padre Natrio e o padre Brito: o padre
Natrio era uma criaturinha
biliosa, seca, com doisolhos encovados, muito malignos, a pele picada das
bexigas e extremamente irritvel. Chamavam-lhe o Furo. Era esperto e
questionador; tinha fama de ser grande latinista, e ter uma lgica de ferro; e
dizia-se dele: uma lngua de vbora! Vivia com duas sobrinhas
rfs, declarava-se extremoso por elas, gabava-lhes sempre a virtude, e
costumava chamar-lhes as 38
duas rosas do seu canteiro. O padre Brito era o padre mais estpido e mais forte
da diocese; tinha o aspecto, os modos, a forte vida de um robusto beiro que
maneja bem o cajado, emborca um almude de vinho, pega alegremente rabia
do arado, serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e nas sestas quentes de
Junho atira brutalmente as raparigas para cima das medas de milho. O senhor
chantre, sempre correto nas suas comparaes mitolgicas, chamava-lhe - o
leo de Nemeia.
A sua cabea era enorme, de cabelo langero que lhe descia at as . sobrancelhas:
a pele curtida tinha um tom azulado, do esforo da navalha de barba; e, nas suas
tambm, com o seu quintal de ricos legumes, sentindo uma s ambio na vida ter um dia a jantar o bispo!
- Oh senhor proco! dizia ele a Amaro, por quem ! mais um bocadinho de
cabidela, faa favor! Essas codeazinhas de po ensopadas no molho! Isso! isso!
Que tal, hem? - E com um aspecto modesto: - No l por dizer, mas a cabidela
hoje saiu-me boa!
Estava com efeito, como disse o cnego Dias, de tentar Santo Anto no deserto!
Todos tinham tirado as capas, e, s com as batinas, as voltas alargadas, comiam
devagar, falando pouco. Como no dia seguinte era a festa da Senhora da Alegria,
os sinos na capela, ao lado, repicavam; e o bom sol do meio- dia dava tons muito
alegres loua, s bojudas canecas azuis com vinho da Bairrada, aos pires de
pimentes escarlates, s frescasmalgas de azeitonas pretas - enquanto o bom
abade, de olho arregalado, mordendo o beio, ia cortando com cuidado nacos
brancos do peito do capo recheado.
As janelas abriam para o quintal. Viam-se dois largos ps de camlias vermelhas
crescendo junto ao peitoril, e para alm das copas das macieiras um pedao muito
vivo de cu azul-ferrete. Uma nora chiava ao longe, lavadeiras batiam a roupa.
Sobre a cmoda, entre in-folios, na sua peanha, um Cristo perfilava tristemente
contra a parede o seu corpo amarelo, coberto de chagas escarlates: e, aos lados,
simpticos santos sob redomas de vidro, lembravam legendas mais doces de
religio amvel: o bom gigante S. Cristvo atravessando o rio com o divino
pequerrucho que sorri, e faz saltar o mundo sobre a sua mozinha como uma
pla; o doce pastor S. Joozinho coberto com uma pele de ovelha, e guardando os
seus rebanhos, no com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro S. Pedro,
tendo na sua mo de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do
Cu! Nas paredes, em litografias de coloridos cruis, o patriarca S. Jos apoiavase ao seu cajado onde florescem lrios brancos; o cavalo empinado do bravo S.
Jorge pisava o ventre dum drago surpreendido; e o bom Santo Antnio, beira
dum regato, sorria, falando a um tubaro. O tlintlim dos copos, o rudo das facas
- Ento que diabo querias tu que eles comessem? exclamou o cnego Dias
lambendo os dedos depois de ter esburgado a asa do capo. Querias que
comessem peru? Cada um como quem !
O bom abade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estmago, e disse
com afeto:
- A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
- Ai filhos! acudiu o Libaninho num tom choroso, se houvesse s pobrezinhos
isto era o reininho
dos Cus!
O padre Amaro considerou com gravidade:
- bom que haja quem tenha cabedais para legados pios, edificaes de capelas...
- A propriedade devia estar na mo da Igreja, interrompeu Natrio com
autoridade.
O cnego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
- Para o esplendor do culto e propagao da f.
- Mas a grande causa da misria, dizia Natrio com uma voz pedante, era a
grande imoralidade. - Ah! l isso no falemos! exclamou o abade com desgosto.
Neste momento h s aqui na
freguesia mais de doze raparigas solteiras grvidas! Pois senhores, se as chamo,
se as repreendo, pem-se a fungar de riso!
- L nos meus stios, disse o padre Brito, quando foi pela apanha da azeitona,
como h falta de braos, vieram as maltas trabalhar. Pois agora o vers! Que
desaforo! - Contou a histria das maltas, trabalhadores errantes, homens e
mulheres, que andam oferecendo os braos pelas fazendas, vivem na
promiscuidade e morrem na misria. - Era necessrio andar sempre de cajado em
cima deles!
- Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mos na cabea. Ai, o pecado
que vai pelo mundo! At se me esto a eriar os cabelos!
Mas a freguesia de Santa Catarina era a pior! As mulheres casadas tinham perdido
todo o escrpulo.
- Piores que cabras, dizia o padre Natrio alargando a fivela do colete.
E o padre Brito falou dum caso na freguesia de Amor: raparigas de dezesseis e
dezoito anos que costumavam reunir-se num palheiro - o palheiro do Silvrio - e
passavam l a noite com um bando de marmanjos!
Ento o padre Natrio, que j tinha os olhos luzidios, a lngua solta, disse
repoltreando-se na cadeira e espaando as palavras:
- Eu no sei o que se passa l na tua freguesia, Brito; mas se h alguma coisa, o
exemplo vem de alto... A mim tm-me dito que tu e a mulher do regedor...
- mentira! exclamou o Brito, fazendo-se todo escarlate.
- Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, repreendendo-o com bondade.
- mentira! berrou ele.
- E aqui para ns, meus ricos, disse o cnego Dias baixando a voz, com o olhinho
aceso numa
malcia confidencial, sempre lhes digo que uma mulher de mo-cheia!
- mentira! clamou o Brito. E falando de um jato: - Quem anda a espalhar isso
o morgado da
Cumiada, porque o regedor no votou com ele na eleio... Mas to certo como eu
estar aqui, quebro-lhe os ossos! - Tinha os olhos injetados, brandia o punho: Quebro-lhe os ossos!
- O caso no para tanto, homem, considerou Natrio.
- Quebro-lhe os ossos! No lhe deixo um inteiro!
- Ai, sossega, leozinho! disse o Libaninho com ternura. No te percas, filhinho!
Mas recordando a influncia do morgado da Cumiada, que era ento oposio e
que levava
duzentos votos uma, os padres falaram de eleies e dos seus episdios. Todos
ali, a no ser o padre Amaro, sabiam, como disse Natrio, "cozinhar um
deputadozinho". Vieram anedotas; cada um celebrou as suas faanhas.
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O padre Natrio na ltima eleio tinha arranjado oitenta votos! - Cspite!
disseram.
- Imaginem vocs como? Com um milagre!
- Com um milagre? repetiram espantados.
- Sim, senhores.
Tinha-se entendido com um missionrio, e na vspera da eleio receberam-se
na freguesia cartas vindas do Cu e assinadas pela Virgem Maria, pedindo, com
promessas de salvao e ameaas do Inferno, votos para o candidato do governo.
De chupeta, hem?
- De mo-cheia! disseram todos.
S Amaro parecia surpreendido.
- Homem! disse o abade com ingenuidade, disso que eu c precisava. Eu ento
tenho de andar
a a estafar-me de porta em porta. - E sorrindo bondosamente: - Com o que se
faz ainda alguma coisita com o relaxe da cngrua!
- E com a confisso, disse o padre Natrio. A coisa ento vai pelas mulheres, mas
vai segura! Da confisso tira-se grande partido.
O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:
- Mas enfim a confisso um ato muito srio, e servir, assim para eleies...
O padre Natrio, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos excitados,
soltou uma palavra
imprudente:
- Pois o senhor toma a confisso a srio?
- Oh filhos! oh filhos, acudiu o bom abade aflito. Deixem a sabatina, que at nem
lhes sabe o arrozinho!
Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com as
precaues clssicas:
- Mil oitocentos e quinze! dizia. Disto no se bebe todos os dias.
Para o saborear, depois de o fazer reluzir luz na transparncia dos copos,
repoltreavam-se nas velhas cadeiras de couro; comearam as sades! A primeira
foi ao abade, que murmurava: - Muita honra... muita honra... Tinha os olhos
chorosos de satisfao.
- A Sua Santidade Pio IX! gritou ento o Libaninho brandindo o clice. Ao mrtir!
Todos beberam comovidos. Libaninho entoou em voz de falsete o hino de Pio IX:
o abade, prudente, f-lo calar por causa do hortelo que no quintal aparava o
buxo.
A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natrio tornara-se terno, falava das
suas sobrinhas, "as suas duas rosas", e citava Virglio, molhando as castanhas em
vinho. Amaro, todo deitado para trs na cadeira, as mos nos bolsos, olhava
maquinalmente as rvores do jardim, pensando vagamente em Amlia, nas suas
formas; suspirou mesmo com um desejo dela - enquanto o padre Brito, rubro,
queria convencer os republicanos a marmeleiro.
- Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou entusiasmado o Libaninho.
Mas Natrio comeara a discutir com o cnego histria eclesistica: e, muito
questionador, voltou aos seus argumentos vagos sobre a doutrina da Graa:
afirmava que um assassino, um parricida poderia ser canonizado - se se tivesse
revelado o estado de Graa! Divagava, com frases de escola em que se lhe pegava
a lngua. Citou santos que tinham sido escandalosos; outros que pela sua
profisso deviam ter conhecido, praticado, amado o vcio. Exclamou com as
mos na cinta:
- Est, fez ela. - Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava fechada! Que
pena! E abalava, impaciente, as grades estreitas, entre as duas fortes ombreiras
de madeira encravadas na espessura do
silvado.
- Foi o caseiro que levou a chave!
Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a voz: Antnio! Antnio! Ningum respondeu.
- Anda l para o fundo da quinta! disse ela. Que seca! Se o senhor proco
quisesse, aqui adiante
pode-se passar. H uma abertura no valado, chamam-lhe o salto da cabra. Pode a
gente saltar para o outro lado.
E caminhando rente ao silvado, chapinhando a lama, toda alegre:
- Quando eu era pequena nunca passava pela cancela! Saltava sempre por ali. E
cada trambolho, quando o cho estava resvaladio com a chuva! Era um vivo
demnio, aqui onde me v! Ningum h-de dizer, senhor proco, hem? Ai! voume a fazer velha! - E voltando-se para ele, com um risinho onde luzia o esmalte
dos dentes:
- No verdade? Estou-me a fazer velha, hem?
Ele sorria. Custava-lhe falar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois do vinho do
abade, amolecia- o: e a figura dela, os seus ombros, os seus encontros davam-lhe
um desejo contnuo e intenso.
- Aqui est o salto da cabra, disse Amlia parando.
Era uma abertura estreita no valado: a terra do outro lado, mais baixa, estava
toda lamacenta. Via-se dali a fazenda da S. Joaneira: o campo plano estendia-se
at um olival, com a erva fina muito estrelada de pequenos malmequeres
brancos; uma vaca preta, de grandes malhas, pastava; e para alm viam-se tetos
aguados dos casais, onde voavam revoadas de pardais.
desprendia uma fascinao. Desejou t-lo por confessor: como seria estar
ajoelhada aos ps dele, no confessionrio, vendo de perto os seus olhos negros,
sentindo a sua voz suave falar do Paraso! Gostava muito da frescura da sua boca;
fazia-se plida idia de o poder abraar na sua longa batina preta! Quando
Amaro saa, ia ao quarto dele, beijava a travesseirinha, guardava os cabelos
curtos que tinham ficado nos dentes do pente. As faces abrasavam-se-lhe
quando o ouvia tocar a campainha.
Se Amaro jantava fora com o cnego Dias, estava todo o dia impertinente,
ralhava com a Rua, s vezes mesmo dizia mal dele, "que era casmurro, que era
to novo que nem inspirava respeito". Quando ele falava de alguma nova
confessada, amuava, com cime pueril. A sua antiga devoo renascia, cheia de
um fervor sentimental: sentia um vago amor fsico pela Igreja; desejaria abraar,
com pequeninos beijos demorados, o altar, o rgo, o missal, os santos, o Cu,
porque no os distinguia bem de Amaro, e pareciam-lhe dependncias da sua
pessoa. Lia o seu livro de missa pensando nele como no seu Deus particular. E
Amaro no sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ela em cima o
escutava, regulando as palpitaes do seu corao pelas passadas dele, abraando
o travesseiro, toda desfalecida de desejos, dando beijos no ar, onde se lhe
representavam os lbios do proco!
A tarde caa quando D. Maria e Amlia voltaram para a cidade. Amlia adiante,
calada, chibatava a sua burrinha, enquanto D. Maria da Assuno vinha palrando
com o moo da quinta, que segurava a arreata. Ao passarem junto S tocou a
Ave-Maria. E Amlia, rezando, no podia destacar os olhos das cantarias da igreja
to grandiosamente erguidas, decerto para que ele ali celebrasse! Lembravamlhe ento domingos em que o vira, ao repicar dos sinos, dar a bno dos degraus
do altar- mor: e todos se curvavam, mesmo as senhoras do morgado Carreiro,
mesmo a Sra. baronesa da Via-Clara e a mulher do governador civil, to
orgulhosa com o seu nariz de cavalete! Dobravam-se sob os seus dedos erguidos,
e achavam decerto tambm bonitos os seus olhos negros! E era ele que a tinha
apertado nos braos, ao p do valado! Sentia ainda no pescoo a presso clida
dos seus beios: uma paixo flamejou como uma chama por todo o seu ser: largou
a arreata do burrinho, apertou as mos contra o peito, e cerrando os olhos,
lanando toda a sua alma numa devoo:
- Oh, Nossa Senhora das Dores, minha madrinha, faz que ele goste de mim!
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No adro lajeado cnegos passeavam, conversando. A botica defronte j tinha luz,
os bocais reluziam; e por detrs da balana a figura do farmacutico Carlos, com o
seu bon bordado a mianga, movia-se majestosamente.
VIII
O padre Amaro voltara para casa aterrado.
- E agora? e agora? dizia ele, encostado ao canto da janela, sentindo o corao
encolhido.
Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! No podia continuar ali, na
mesma
familiaridade, depois de ter tido "aquele atrevimento com a pequena".
Que ela no ficara muito indignada -. apenas atordoada; contivera-atalvez o
respeito
eclesistico, a delicadeza para com o hspede, a ateno para com o amigo do
cnego. Mas podia contar me, ao escrevente... Que escndalo! E via o senhor
chantre, traando a perna e fitando-o, - que era a sua atitude de repreenso dizer-lhe com pompa: - "So esses desregramentos que desonram o sacerdcio.
No se comportaria de outro modo um Stiro no monte Olimpo!" - Poderiam
desterr-lo outra vez para alguma freguesia da serra!... Que diria a Sra. condessa
de Ribamar?
E depois, se persistisse em v-la na intimidade, ter constantemente presentes
aqueles olhos negros, o sorriso clido que lhe fazia uma covinha no queixo, a
curva daquele peito - a sua paixo, crescendo surdamente, irritada a toda a hora,
recalcada para dentro, torn-lo-ia doido, "podia fazer alguma asneira"!
nos seus prazeres regulares e higinicos as dificuldades dum colegial que ama a
senhora professora. Ora se Amaro sasse, a S. Joaneiradescia ao seu quarto, no
primeiro andar; vinham as antigas comodidades, as tranqilas sestas. verdade
que tinha de dar a antiga mesada... Daria a mesada!
- Que diabo! ao menos est um homem sua vontade, resumiu ele.
- Que est para a o mano a falar s? perguntou a Sra. D. Josefa, despertando do
quebranto em que ia caindo, ao p do lume.
- Estava c a ma1ucar como hei-de castigar a carne na quaresma - disse o cnego
com um riso grosso.
A essa hora a Rua chamava o padre Amaro para o ch: e ele subia devagar, com o
corao pequenino, receando encontrar a S. Joaneira muito carrancuda, j
informada do insulto. Achou s Amlia - que tendo-lhe sentido os passos na
escada tomara rapidamente a costura, e, com a cabea muito baixa, dava grandes
agulhadas, vermelha como o leno que abainhava para o cnego.
- Muito boa noite, menina Amlia.
- Muito boa noite, senhor proco.
Amlia costumava sempre ter um ol! ou um ora viva! muito amvel; aquela
secura aterrou-o;
disse-lhe logo muito perturbado:
- Menina Amlia, eu peo-lhe que me perdoe... Foi um atrevimento... Eu nem
soube o que fiz...
Mas acredite... Estou resolvido a sair daqui. At j pedi ao Sr, cnego Dias que me
arranjasse casa... Falava com o rosto baixo - e no via Amlia erguer os olhos
para ele, surpreendida e toda
desconsolada.
Neste momento a S. Joaneira entrou, e logo da porta, abrindo os braos:
- Viva! Ento j sei, j sei! Disse-me o Sr. padre Natrio: grande jantar! Conte l,
conte l! Amaro teve de dizer os pratos, as pilhrias do Libaninho, a discusso
teolgica; depois falaram
da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer S. Joaneira que ia deixar
a casa, - o que era, coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostes por
dial
47
Na manh seguinte o cnego foi a casa de Amaro, pela manh, antes de ir ao
coro. O proco fazia a barba janela:
- O1, padre-mestre! Que h de novo?
- Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manh... H uma casita
l para os meus lados, que um achado. Era do major Nunes, que vai mudado
para o 5.
Aquela precipitao desagradou a Amaro: perguntou, dando desconsoladamente
o fio navalha: - Tem moblia?
- Tem moblia, tem louas, tem roupas, tem tudo.
- Ento...
- Ento entrar e comear a gozar. E aqui para ns, Amaro, voc tem razo.
Estive a pensar no caso... melhor para voc viver s. De modo que vista-se, e
vamos ver a casita.
Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
A casa era na Rua das Sousas, de um andar, muito velha, com a madeira
carunchosa: a moblia, como disse o cnego, "podia passar a veteranos"; algumas
litografias desbotadas pendiam lugubremente de grandes pregos negros; e o
imundo major Nunes deixara os vidros quebrados, os soalhos todos escarrados,
as paredes riscadas de fsforos, e at sobre um poial da janela duas pegas quase
negras. Amaro aceitou a casa. E nessa mesma manh o cnego ajustou-lhe uma
criada, a Sra. Maria Vicncia, pessoa muito devota, alta e magra como um
pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como considerou o cnego
Dias) era a prpria irm da famosa Dionsia!
A Dionsia fora outrora a Dama das Camlias, a Ninon de Lenclos, a Manon de
Leiria: gozara a honra de ser concubina de dois governadores civis e do terrvel
morgado da Sertejeira; e as paixes frenticas que inspirara tinham sido para
quase todas as mes de famlia de Leiria causa de lgrimas e de fanicos. Agora
engomava para fora, encarregava-se de empenhar objetos, entendia muito de
partos, protegia "o rico adulteriozinho" segundo a singular expresso do velho D.
Lus da Barrosa, cognominado o infame, fornecia lavradeirinhas aos senhores
empregados pblicos, sabia toda a histria amorosa do distrito. E via-se sempre
na rua a Dionsia com o seu xale de xadrez traado, o pesado seio tremendo
dentro dum chambre sujo, o passinho discreto e os antigos sorrisos - mas a que
faltavam j os dois dentes de diante.
O cnego logo nessa tarde deu parte S. Joaneira da resoluo de Amaro. Foi um
grande espanto para a excelente senhora! Queixou-se, com amargura, da
ingratido do senhor proco.
O cnego tossiu grosso e disse:
- Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo por qu: que este
arranjo do quarto em cima, etc., est-me a arrasar a sade.
Deu outras razes de prudncia higinica, e acrescentou passando-lhe com
bondade os dedos pelo pescoo:
- E o que perder a convenincia, no se aflija a senhora! Eu darei para a panela
como dantes; e como a colheita foi boa porei mais meia moeda para os arrebiques
da pequena. Ora venha de l uma beijoca, Augustinha, sua brejeira! E oua,
como-lhe c as sopas.
Amaro no entanto embaixo ia emalando a sua roupa. Mas a cada momento
parava, dava um ai triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama fofa, a mesa
com a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de chita onde ele lia o Brevirio,
ouvindo, por cima, cantarolar Amlia.
- Nunca mais! pensava. Nunca mais!
Adeus as boas manhs passadas ao p dela, vendo-a costurar! Adeus as alegres
sobremesas, que se prolongavam luz do candeeiro! Adeus os chs, ao p da
braseira, quando o vento uivava fora e cantavam as frias goteiras! Tudo tinha
acabado!
A S. Joaneira e o cnego apareceram ento porta do quarto. O cnego
resplandecia; e a S. Joaneira disse, muito magoada:
- J sei, j sei, seu ingrato!
- verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os ombros tristemente. Mas
h razes... Eu sinto...
- Olhe, senhor proco, disse a S. Joaneira, no se ofenda com o que lhe vou dizer,
mas eu j lhe queria como filho... e levou o leno aos olhos.
- Tolices, exclamou o cnego. Pois ento ele no pode vir aqui em amizade,
passar as noites para o cavaco, tomar o seu caf?... O homem no vai para o
Brasil, senhora!
- Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era t-lo
de portas adentro!
Enfim, ela bem sabia que a gente na sua casa est muito melhor... Fez-lhe ento
grandes recomendaes sobre a lavadeira, que mandasse buscar o que quisesse,
louas, lenis...
- E veja l, no lhe esquea alguma coisa, senhor proco! - Muito obrigado,
minha senhora, muito obrigado.
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Enfim Amaro desceu: e o Joo Ruo, que na sua chegada a Leiria lhe trouxera o
ba para a Rua
da Misericrdia, muito bbedo, cantarolando o Bendito, - levava-lho agora para a
Rua das Sousas, bbedo tambm, mas trauteando o Rei-chegou.
Quando Amaro, nessa noite, se viu s naquela casa tristonha, sentiu uma
melancolia to pungente e um tdio to negro da vida, que, com a sua natureza
lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar ali a morrer!
Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro,
pequena, com um colcho duro e uma coberta vermelha; o espelho com o ao
gasto luzia sobre a mesa; como no havia lavatrio, a bacia e o jarro, com um
bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janela; tudo ali cheirava a mofo;
e fora, na rua negra, caia sem cessar a chuva triste. Que existncia! E seria
sempre assim!...
Desesperou-se ento contra Amlia: acusou-a, com o punho fechado, das
comodidades que perdera, da falta de moblia, da despesa que ia ter, da solido
que o regelava! Se fosse mulher de corao devia ter vindo ao seu quarto, dizerlhe: Sr. padre Amaro, para que sai de casa? Eu no estou zangada! - Porque enfim
quem irritara o seu desejo? Ela, com as suas maneirinhas temas, os seus olhinhos
adocicados! Mas no, deixara-o ema. lar a roupa, descer a escada, sem uma
palavra amiga, indo tocar com estrondo a valsa do Beijo!
Jurou ento no voltar a casa da S. Joaneira. E, a grandes passadas pelo quarto,
pensava - no que havia de fazer para humilhar Amlia. Q qu? Desprez-la como
uma cadela! Ganhar influncia na sociedade devota de Leiria, ser muito do
senhor chantre: afastar da Rua da Misericrdia o cnego e as Gansosos; intrigar
com as senhoras da boa roda para que se afastassem dela, com secura, no altarmor, missa do domingo; dar a entender que a me era uma prostituta...
Enterr-la! cobri-la de lama! E na S, ao sair da missa, regalar-se de a ver passar
encolhida no seu mantelete preto, escorraada de todos, enquanto ele, porta,
lhe dava sobre os homens. Aquele miservel escrevente podia casar e possuir a
rapariga - mas que era ele em comparao dum proco a quem Deus conferia o
poder supremo de distribuir o Cu e o Inferno?... - E repastava-se deste
sentimento, enchendo o esprito de orgulhos sacerdotais. Mas vinha-lhe bem
depressa a desconsoladora idia que esse domnio s era vlido na regio abstrata
das almas; nunca o poderia manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade.
Era um Deus dentro da S - mas apenas saia para o largo, era apenas um plebeu
obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a ao sacerdotal a uma mesquinha
influncia sobre almas de beatas... E era isto que lamentava, esta diminuio
social da Igreja, esta mutilao do poder eclesistico, limitado ao espiritual, sem
direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a
autoridade dos tempos em que a Igreja era a nao e o proco dono temporal do
rebanho. Que lhe importava, no seu caso, o direito mstico de abrir ou fechar as
portas do Cu? O que ele queria era o velho direito de abrir ou fechar a porta das
masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amlias tremessem da sombra
da sua batina... Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das vantagens
que d a denncia e dos terrores que inspira o carrasco, e ali naquela vila, sob a
jurisdio da sua S, fazer estremecer, idia de castigos torturantes, aqueles
que aspirassem a realizar felicidades - que lhe eram a ele interditas; e pensando
em Joo Eduardo e em Amlia; lamentava no poder acender as fogueiras da
Inquisio! - Assim aquele inofensivo moo tinha durante horas, sob a excitao
colrica duma paixo contrariada, ambies grandiosas de tirania catlica: porque todo o padre, o mais boal, tem um momento em que penetrado pelo
espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento mstico ou nas suas
ambies de dominao universal: todo o subdicono se julga uma hora capaz de
ser santo ou de ser papa: no h seminarista que no tenha, durante um instante,
aspirado com ternura caverna no deserto em que S. Jernimo, olhando o cu
estrelado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graa, como um abundante rio de
leite: e o abade panudo que tardinha, varanda, palita o dente furado
saboreando o seu caf com um ar paterno, traz dentro em si os indistintos restos
dum Torquemada.
IX
Joo Eduardo rangiam na escada, ou ela conhecia os passos fofos das galochas das
Gansosos: apoiava-se ento s costas da cadeira, cerrando os olhos, como na
fadiga duma desesperana repetida. Esperava o padre Amaro; e s vezes, pelas
dez horas, quando j no era possvel que ele viesse, a sua melancolia era to
pungente que se lhe intumescia a garganta de soluos, tinha de pousar a costura,
dizer:
- Vou-me deitar, estou com umas dores de cabea que no paro!
Atirava-se para a cama de bruos, murmurava numa agonia:
- Oh Senhora das Dores, minha madrinha! Por que no vem ele, por que no vem
ele?
Nos primeiros dias, apenas ele se fora embora, toda a casa lhe pareceu desabitada
e lgubre!
Quando vira no quarto dele os cabides sem a sua roupa, a cmoda sem os seus
livros, rompeu a chorar. Foi beijar a travesseirinha onde ele dormia, apertou ao
peito com delrio a ltima toalha a que ele limpara as mos! Tinha
constantemente o seu rosto presente, ele entrara sempre nos seus sonhos. E
com a separao o seu amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que
se isola.
Uma tarde, que fora visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao chegar
Ponte gente parada, embasbacada com gozo para uma rapariga de cuia banda e
garibaldi escarlate, que, de punho no ar, j rouca, praguejava contra um soldado:
o rapazola, um beiro de cara redonda e lorpa coberta de penugem loura, viravalhe as costas, encolhendo os ombros, as mos muito enterradas nos bolsos,
rosnando:
- No lhe fez mal, no lhe fez mal...
O Sr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parara a olhar, descontente daquela
"falta de ordem pblica".
- Algum barulho? perguntou-lhe Amlia.
51
- O1, menina Amlia! No, uma brincadeira do soldado. Atirou- lhe um rato
morto cara, e a mulher est a fazer aquele espalhafato. Bbedas!
Mas a rapariga de garibaldi vermelho voltara-se - e Amlia aterrada reconheceu a
Joaninha Gomes, sua amiga da mestra, que fora amante do padre Ablio! O padre
fora suspenso, deixara-a; ela partira para Pombal, depois para o Porto; de misria
em misria voltara a Leiria, e a vivia nalguma viela ao p do quartel, entisicando,
gasta por todo um regimento! - Que exemplo, Santo Deus, que exemplo!...
E tambm ela gostava dum padre! Tambm ela, como outrora a Joaninha,
chorava sobre a sua costura quando o Sr, padre Amaro no vinha! Onde a levava
aquela paixo! sorte da Joaninha! A ser a amiga do proco! E via-se j apontada
a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por ele, com um filho nas
entranhas, sem um pedao de po!... E, como uma rajada de vento que limpa
num momento um cu enevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de
Joaninha varreu-lhe do esprito as nvoas amorosas e mrbidas, em que ela se ia
perdendo. Decidiu aproveitar a separao, esquecer Amaro; lembrou-se mesmo
de apressar o seu casamento com Joo Eduardo, para se refugiar num dever
dominante; durante alguns dias forou-se a interessar-se por ele; comeou
mesmo a bordar-lhe umas chinelas...
Mas pouco a pouco a idia m que, atacada, se encolhera e se fingira morta, principiou lentamente a desenroscar-se, a subir, a invadi-la! De dia, de noite,
costurando e rezando, a idia do padre Amaro, os seus olhos, a sua voz
apareciam-lhe, tentaes teimosas! com um encanto crescente. Que faria ele?
por que no vinha? gostava de outra? Tinha cimes indefinidos, mas mordentes,
que a queimavam. E aquela paixo ia-a envolvendo como uma atmosfera de onde
no podia sair, que a seguia se ela fugia, e que a fazia viver! As suas resolues
honestas ressequiam-se, morriam como dbeis florinhas naquele fogo que a
percorria. Se s vezes a lembrana de Joaninha ainda voltava, repelia-a com
irritao; e acolhia alvoroadamente todas as razes insensatas que lhe vinham
Amlia enfim melhorou - com grande alegria de Joo Eduardo, que enquanto ela
estivera doente vivera numa aflio, lamentando no poder ser seu enfermeiro, e
derramando s vezes no cartrio uma lgrima triste sobre os papis selados do
severo Nunes Ferral.
No domingo seguinte, missa das nove horas na S, Amaro, ao subir para o altar,
entre as devotas que se arredavam, viu de relance Amlia ao p da me, com o
seu vestido de seda preta de largos folhos. Cerrou um momento os olhos; e mal
podia sustentar o clix com as mos trmulas.
Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o missal,
se persignou e se voltou para a igreja dizendo Dominus vobiscum - a mulher do
Carlos da botica disse baixo a Amlia "que o senhor proco estava to amarelo,
que devia ter alguma dor". Amlia no respondeu, curvada sobre o livro com todo
o sangue nas faces. E durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a
face banhada num xtase baboso, gozou a sua presena, as suas mos magras
erguendo a hstia, a sua cabea bem-feita curvando-se na adorao ritual; uma
doura corria- lhe na pele quando a voz dele, apressada, dizia mais alto algum
latim; e quando Amaro, tendo a mo esquerda no peito e a direita estendida,
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disse para a igreja o Benedicat vos, ela, com os olhos muito abertos, arremessou
toda a sua alma para o altar, como se ele fosse o prprio Deus a cuja bno as
cabeas se curvavam ao comprido da S, at ao fundo, onde os homens do campo
com os seus varapaus pasmavam para os dourados do sacrrio.
sada da missa comeara a chover; e Amlia e a me, porta com outras
senhoras, esperavam uma "aberta".
- Ol! por aqui? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.
- Estamos espera que passe a chuva, senhor proco, disse a S. Joaneira
voltando-se. E imediatamente, muito repreensiva: - E por que no tem
aparecido, senhor proco? Realmente! Que lhe fizemos ns? Credo, at d que
falar...
- Muito ocupado, muito ocupado... balbuciou o proco.
- Mas um bocadinho noite. Olhe, pode crer, tem-me causado desgosto... E
todos tm reparado. No, l isso, senhor proco, tem sido ingratido!
Amaro disse, corando:
- Pois acabou-se. Hoje noite l apareo, e esto as pazes feitas...
Amlia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbao olhava para todos os
pontos o cu
carregado, como assustada do temporal.
Amaro ento ofereceu-lhe o seu guarda-chuva. E enquanto a S. Joaneira o abria,
apanhando com
cuidado o vestido de seda, Amlia disse ao proco:
- At noite, sim? - e mais baixo, olhando em redor, com medo: - Oh, v! Tenho
estado to
triste! tenho estado como doida! V, peo- lhe eu!
Amaro, voltando para casa, continha-se para no correr pelas ruas de batina.
Entrou no quarto,
sentou-se aos ps da cama, e ali ficou saturado de felicidade, como um pardal
muito farto num raio de sol muito quente: recordava o rosto de Amlia, a
redondeza dos seus ombros, a beleza dos encontros, as palavras que lhe dissera:
- Tenho estado como doida! A certeza de que "a rapariga gostava dele" entroulhe ento na alma com a violncia de uma rajada, e ficou a sussurrar por todos os
recantos do seu ser com um murmrio melodioso de felicidades agitadas. E
passeava pelo quarto com passadas de cvado, estendendo os braos, desejando a
posse imediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte ao
espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que
s o sustentasse a ele! Mal pde jantar. Com que impacincia desejava a noite! A
tarde clareava; a cada momento tirava o seu ''cebolo'' de prata, indo olhar
janela, com irritao, a claridade do dia que se arrastava devagar no horizonte.
Engraxou ele mesmo os seus sapatos, lustrou o cabelo de banha. E antes de sair
rezou cuidadosamente o seu Brevirio - porque, em presena daquele amor
adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos
escandalizados o viessem perturbar; e no queria, com desleixos de devoo,
dar-lhes razo de queixa.
Ao entrar na rua de Amlia o corao bateu-lhe to forte que teve de parar,
sufocado; pareceu- lhe melodioso o piar das corujas na velha Misericrdia, que
h tantas semanas no ouvia.
Que admirao quando ela apareceu na sala de jantar!
- Ditosos olhos que o vem! Pensvamos que tinha morrido! Grande milagre!
Estavam a Sra. D. Maria da Assuno, e as Gansosos. Arredaram as cadeiras com
entusiasmo
para lhe dar lugar, admir-lo.
- Ento que tem feito, que tem feito? E olhe que est mais magro!
O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O Sr. Artur
Couceiro improvisoulhe um fadinho viola:
Ora j c temos o senhor proco Nos chs da S. Joaneira.
Isto j parece outra coisa,
Volta a bela cavaqueira!
Houve palmas. E a S. Joaneira, toda banhada de riso.
- Ai, tem sido uma ingratido dele!
- Uma ingratido, diz a senhora? rosnou o cnego. Uma casmurrice, digo eu!
Amlia no falava, com as faces abrasadas, os olhos midos pasmados para o
padre Amaro - a
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Assim recomeou a intimidade de Amaro na Rua da Misericrdia. Jantava cedo,
depois lia o seu Brevirio; e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhavase no seu capote e dava volta pela Praa passando rente da botica, onde os
freqentadores caturravam, com as mos moles apoiadas ao cabo dos guardachuvas. Mal avistava a janela da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se
erguiam; mas ao toque agudo da campainha sentia s vezes um susto indefinido
de achar a me j desconfiada ou Amlia mais fria!... Mesmo por superstio
entrava sempre com o p direito.
Encontrava j as Gansosos, a D. Josefa Dias; e o cnego, que jantava agora muito
com a S. Joaneira e que quela hora, estirado na poltrona, findava a sua soneca,
dizia-lhe bocejando:
- Ora viva o menino bonito!
Amaro ia sentar-se ao p de Amlia, que costurava mesa; o olhar penetrante
que se trocavam era todos os dias como o mtuo juramento mudo que o seu amor
crescera desde a vspera; e s vezes mesmo, debaixo da mesa, roavam os
joelhos com furor. Comeava ento a cavaqueira. Eram sempre os mesmos
interessezinhos, as questes que iam na Misericrdia, o que dissera o senhor
chantre, o cnego Campos que despedira a criada, o que se rosnava da mulher do
Novais...
- Mais amor do prximo! resmungava o cnego mexendo-se na poltrona. E com
um arroto curto tornava a cerrar as plpebras.
Mas Amaro amava sobretudo a outra estrofe, quando Amlia, com os dedos
frouxos no teclado, o busto deitado para trs, rolando os olhos ternos, em
movimentos doces de cabea, dizia, toda voluptuosa, silabando o espanhol:
Si tua ventana llega Una paloma,
Trata-la com cario Que es mi persona.
E como a achava graciosa, crioula, quando ela gorjeava:
Ay chiquita que si,
Ay chiquita que no-o-o-o!
Mas as velhas reclamavam-no para continuar a manilha, e ele ia sentar-se,
cantarolando as ltimas notas, com o cigarro ao canto da boca, os olhos midos
de felicidade.
s sextas-feiras era a grande partida. A Sra. D. Maria da Assuno aparecia
sempre com o seu belo vestido de seda preta: e como era rica e tinha parentela
fidalga, davam-lhe com deferncia o melhor lugar ao p da mesa - que ela ia
ocupar, meneando pretensiosamente os quadris, com ruge-ruges de seda. Antes
do ch, a S. Joaneira levava-a sempre ao seu quarto, onde guardava para ela uma
garrafa de jeropiga velha: e ali as duas amigas tagarelavam muito tempo,
sentadas em cadeirinhas baixas. Depois
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Artur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tsico, cantava o fado novo que
compusera, chamado o Fado da Confisso; eram quadras feitas para regalar
aquela piedosa reunio de saias e de batinas:
Na capelinha do amor, No fundo da sacristia,
Ao senhor padre Cupido Confessei-me noutro dia...
Vinha depois a confisso de pecadinhos doces, um ato de contrio de amor, uma
penitncia terna:
Mas na sua paixo havia s vezes grandes impacincias. Quando tinha estado,
durante trs horas da noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade
que se exalava de todos os seus movimentos, - ficava to carregado de desejos
que necessitava conter-se "para no fazer um disparate ali mesmo na sala, ao p
da me". Mas depois, em casa, s torcia os braos de desespero: queria-a ali de
repente, oferecendo-se ao seu desejo; fazia ento combinaes - escrever-lheia, arranjariam uma casinha discreta para se amarem, planeariam um passeio a
alguma quinta! Mas todos aqueles meios lhe pareciam incompletos e perigosos,
ao recordar o olho finrio da irm do cnego, as Gansosos to mexeriqueiras! E
diante daquelas dificuldades que se erguiam como as muralhas sucessivas duma
cidadela, voltavam as antigas lamentaes: no ser livre! no poder entrar
claramente naquela casa, pedi-la me, possu-la sem pecado, comodamente!
Por que o tinham feito padre? Fora "a velha pega" da marquesa de Alegros! Ele
no abdicava voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-no impelido
para o sacerdcio como um boi para o curral!
Ento, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusaes mais longe,
contra o Celibato e a Igreja: por que proibia ela aos seus sacerdotes, homens
vivendo entre homens, a satisfao mais natural, que at tm os animais? Quem
imagina que desde que um velho bispo diz - sers casto - a um homem novo e
forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina - accedo
- dita a tremer pelo seminarista assustado, ser o bastante para conter para
sempre a rebelio formidvel do corpo? E quem inventou isto? Um conclio de
bispos decrpitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das
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suas escolas, mirrados como pergaminhos, inteis como eunucos! Que sabiam
eles da Natureza e das suas tentaes? Que viessem ali duas, trs horas para o p
da Ameliazinha, e veriam, sob a sua capa de santidade, comear a revoltar-selhe o desejo! Tudo se ilude e se evita, menos o amor! E se ele fatal, por que
impediram ento que o padre o sinta, o realize com pureza e com dignidade?
melhor talvez que o v procurar pelas vielas obscenas! - Porque a carne fraca!
A carne! Punha-se ento a pensar nos trs inimigos da alma - MUNDO, DIABO e
CARNE. E apareciam sua imaginao em trs figuras vivas: uma mulher muito
formosa; uma figura negra de olho de brasa e p de cabra; e o mundo, coisa vaga
e maravilhosa (riquezas, cavalos, palacetes) - de que lhe parecia uma
personificao suficiente o Sr, conde de Ribamar! Mas que mal tinham eles feito
sua alma? O diabo nunca o vira; a mulher formosa amava-o e era a nica
consolao da sua existncia; e do mundo, do senhor conde, s recebera
proteo, benevolncia, tocantes apertos de mo... E como poderia ele evitar as
influncias da Carne e do Mundo? A no ser que fugisse, como os santos de
outrora, para os areais do deserto e para a companhia das feras! Mas no lhe
diziam os seus mestres no seminrio que ele pertencia a uma Igreja militante? O
ascetismo era culpado, sendo a desero dum servio santo. - No compreendia,
no compreendia!
Procurava ento justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A Bblia
est cheia de npcias! Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos
recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro, com a cabea coberta de
faixas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro branco; os levitas
batem em discos de prata, gritam o nome de Deus; abrem-se as portas de ferro
da cidade para deixar passar a caravana que leva os bem esposados; e as arcas de
sndalo onde vo os tesouros do dote rangem, amarradas com cordas de prpura,
sobre o dorso dos camelos! Os mrtires no circo casam- se num beijo, sob o bafo
dos lees, s aclamaes da plebe! Jesus mesmo no vivera sempre na sua
santidade inumana; era frio e abstrato nas ruas de Jerusalm, nos mercados do
bairro de Davi; mas l tinha o seu lugar de ternura e de abandono em Betnia, sob
os sicmoros do Jardim de Lzaro; ali, enquanto os magros nazarenos seus
amigos bebem o leite e conspiram parte, ele olha defronte os tetos dourados do
templo, os soldados romanos que jogam o disco ao p da Porta de Ouro, os pares
amorosos que passam sob os arvoredos de Getsmani - e pousa a mo sobre os
cabelos louros de Marta, que ama e fia a seus ps!
O seu amor era pois uma infrao cannica, no um pecado da alma: podia
desagradar ao senhor chantre, no a Deus; seria legitimo num sacerdcio de
regra mais humana. Lembrava-se de se fazer protestante: mas onde, como?
Parecia-lhe mais extraordinariamente impossvel que transportar a velha S para
cima do monte do Castelo.
Encolhia ento os ombros, escarnecendo toda aquela vaga argumentao
interior. "Filosofia e palhada!" Estava doido pela rapariga, - era o positivo.
Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma... E o senhor bispo se
no fosse velho faria o mesmo, e o papa faria o mesmo!
Eram s vezes trs horas da manh, e ainda passeava no quarto, falando s.
Quantas vezes Joo Eduardo, passando alta noite pela Rua das Sousas, tinha visto
na janela do proco uma luz amortecida! Porque ultimamente Joo Eduardo,
como todos que tm um desgosto amoroso, tomara o hbito triste de andar at
tarde pelas ruas.
O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebera a simpatia de Amlia
pelo proco. Mas conhecendo a sua educao e os hbitos devotos da casa,
atribua aquelas atenes quase humildes com Amaro ao respeito beato pela sua
batina de padre, pelos seus privilgios de confessor.
Instintivamente porm comeou a detestar Amaro. Sempre fora inimigo de
padres! Achava-os um "perigo para a civilizao e para a liberdade"; supunha-os
intrigantes, com hbitos de luxria, e conspirando sempre para restabelecer "as
trevas da Meia-Idade"; odiava a confisso que julgava uma arma terrvel contra a
paz do lar; e tinha uma religio vaga - hostil ao culto, s rezas, aos jejuns, cheia
de admirao pelo Jesus potico, revolucionrio, amigo dos pobres, e "pelo
sublime espirito de Deus que enche todo o Universo"! S desde que amava
Amlia que ouvia missa, para agradar S. Joaneira.
- Quem reparou?
- Ningum. Eu que tenho medo. preciso disfarar.
57
Desde ento cessaram as olhadelas doces, os lugares chegadinhos mesa, os
segredos; e sentiam um gozo picante em afetar maneiras frias, tendo a certeza
vaidosa da paixo que os inflamava. Era para Amlia delicioso - enquanto o padre
Amaro afastado tagarelava com as senhoras - adorar a sua presena, a sua voz, as
suas graas, com os olhos castamente aplicados s chinelas de Joo Eduardo que
muito astutamente recomeara a bordar.
Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o proco
instalado ali todas as noites, com a face prspera, a pema traada, gozando a
venerao das velhas. "A Ameliazinha, sim, agora portava-se bem, e era-lhe fiel,
era-lhe fiel...": mas ele sabia que o proco a desejava, a "cocava"; e apesar do
juramento dela pela sua salvao, da certeza que no havia nada - temia que ela
fosse lentamente penetrada por aquela admirao caturra das velhas, para quem
o senhor proco era um anjo: s se contentaria em arrancar Amlia (j
empregado no governo civil) quela casa beata: mas essa felicidade tardava a
chegar - e saa todas as noites da Rua da Misericrdia mais apaixonado, com a
vida estragada de cimes, odiando os padres, sem coragem para desistir. Era
ento que se punha a andar pelas ruas at tarde; s vezes voltava ainda ver as
janelas fechadas da casa dela; ia depois alameda ao p do rio, mas o frio
ramaIhar das rvores sobre a gua negra entristecia-o mais; vinha ento ao
bilhar, olhava um momento os parceiros carambolando, o marcador, muito
esguedelhado, que bocejava encostado ao reste. Um cheiro de mau petrleo
sufocava. Saa; e dirigia-se, devagar, redao da Voz do Distrito.
X
O redator da Voz do Distrito, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente.
Chamavam-lhe geralmente o Raqutico, por ter uma forte corcunda no ombro, e
uma figurinha enfezada de tico. Era extremamente sujo; e a sua carita de fmea,
amarelada, de olhos depravados, revelava vcios antigos, muito torpes. Tinha
Joo Eduardo, que ficara um momento calado, disse ento, levantando as suas
expresses em harmonia com a prosa sonora do Agostinho:
- O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!
Uma frase to literria surpreendeu o jornalista: fitou Joo Eduardo, disse:
- Por que no escreves tu alguma coisa, tambm?
O escrevente respondeu, sorrindo:
- E eu, Agostinho, eu que te escrevia uma desanda aos padres... E eu tocavalhes os podres. Eu
que os conheo!...
Agostinho instou logo com ele para que escrevesse a desanda.
- Vem a calhar, menino!
O doutor Godinho ainda na vspera lhe recomendara: - "Em tudo que cheirar a
padre, para baixo!
Havendo escndalo, conta-se! no havendo, inventa-se!"
E Agostinho acrescentou, com benevolncia:
- E no te d cuidado o estilo, que eu c o florearei!
- Veremos, veremos, murmurou Joo Eduardo.
Mas da por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:
- E o artigo, homem? Traz-me o artigo.
Tinha avidez dele, porque sabendo como Joo Eduardo vivia na intimidade da
"panelinha
cannica da S. Joaneira", supunha-o no segredo de infmias especiais.
Joo Eduardo, porm, hesitava. Se se viesse a saber?
- Qual! afirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. artigo da redao.
Quem diabo
vai saber?
59
puro como a tua a/ma, que um dia se unir minha, entre os coros celestes, na
bem-aventurana. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliazinha, que
at s vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos! Responde pois e dize
se no te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morena/, pela tarde.
Pois eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como
60
falar-te de coisas importantes, e sentir na minha mo a tua que eu desejo que me
guie pelo caminho do amor, at aos xtases duma felicidade celestial. Adeus,
anjo feiticeiro, recebe a oferta do corao do teu amante e pai espiritual,
Amaro."
Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ela bem dobrada no bolso da
batina foi Rua da Misericrdia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de
Natrio, discutindo.
- Quem est por c? - perguntou Rua, que alumiava, encolhida no seu xale.
-.As senhoras todas. Est o Sr, padre Brito.
- Ol! Bela sociedade!
Galgou os degraus, e porta da sala, com o seu capote ainda pelos ombros,
tirando alto o
chapu:
- Muito boas noites a todos, comeando pelas senhoras.
Natrio, imediatamente, plantou-se diante dele e exclamou:
- Ento que lhe parece?
- O qu? perguntou Amaro. E reparando no silncio, nos olhos cravados nele: - O
que ? Alguma
coisa de novo?
- Pois no leu, senhor proco? exclamaram. No leu o Distrito!?
Era papel em que ele no pusera os olhos, disse. Ento as senhoras indignadas
romperam:
- Ai! um desaforo!
- Ai! um escndalo, senhor proco!
Natrio com as mos enterradas nas algibeiras contemplava o proco com um
sorrizinho
sarcstico, saltando dentre os dentes:
- No leu! No leu! Ento que fez?
Amaro reparava, j aterrado, na palidez de Amlia, nos seus olhos muito
vermelhos. E enfim o cnego erguendo-se pesadamente:
- Amigo proco, do-nos uma desanda...
- Ora essa! exclamou Amaro.
- Tesa!
O senhor cnego, que trouxera o jornal, devia ler alto - lembraram. - Leia, Dias,
leia, acudiu Natrio. Leia, para saborearmos!
A S. Joaneira deu mais luz ao candeeiro: o cnego Dias acomodou- se mesa,
desdobrou o jornal, ps os culos cuidadosamente, e, com o leno do rap nos
joelhos, comeou a leitura do Comunicado na sua voz pachorrenta.
O princpio no interessava: eram perodos enternecidos em que o liberal
exprobrava aos fariseus a crucificao de Jesus: - "Por que o matsteis?
(exclamava ele). Respondei!" E os fariseus respondiam: - "Matamo-lo porque ele
era a liberdade, a emancipao, a aurora de uma nova era", etc. O liberal ento
esboava, a largos traos, a noite do Calvrio: - "Ei-lo pendente da cruz,
traspassado de lanas, a sua tnica jogada aos dados, a plebe infrene", etc. E,
voltando a dirigir-se aos fariseus infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia: "Contemplai a vossa bela obra!" Depois, por uma gradao hbil, o liberal descia
de Jerusalm a Leiria: - "Mas pensam os leitores que os fariseus morreram?
Como se enganam! Vivem! conhecemo-los ns; Leiria est cheia deles, e vamos
apresent-los aos leitores..."
- Agora que elas comeam, disse o cnego olhando para todos em redor, por
cima dos culos.
Com efeito "elas comeavam"; era, numa forma brutal, uma galeria de
fotografias eclesisticas: a primeira era a do padre Brito: - "Vede-o, (exclamava o
liberal) grosso como um touro, montado na sua gua castanha..."
- At a cor da gua! murmurou com uma indignao piedosa a Sra. D. Maria da
Assuno.
"... Estpido como um melo, sem sequer saber latim..."
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se
na cadeira,
esfregando devagar os joelhos.
"... Espcie de caceteiro", continuava o cnego, que lia aquelas frases cruis com
uma
tranqilidade doce, "desabrido de maneiras, mas que no desgosta de se dar
ternura, e, segundo dizem os bem informados, escolheu para Dulcinia a prpria
e legtima esposa do seu regedor..."
O padre Brito no se dominou:
- Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recaindo pesadamente na
cadeira. - Escute, homem, disse Natrio.
- Qual escute! O que , que o racho!
Mas se ele no sabia quem era o liberal!
61
- Qual liberal! Quem eu racho o doutor Godinho. O doutor Godinho que o
dono do jornal. O doutor Godinho que eu racho!
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas coxa.
Lembraram-lhe o dever cristo de perdoar as injrias! A S. Joaneira com uno
citou a bofetada que Jesus Cristo suportou. Devia imitar Cristo.
- Qual Cristo, qual cabaa! gritou Brito apopltico.
Aquela impiedade criou um terror.
- Credo! Sr, padre Brito, credo! exclamou a irm do cnego, recuando a cadeira.
O Libaninho, com as mos na cabea, vergado sob o desastre, murmurava:
- Nossa Senhora das Dores, que at pode cair um raio!
E, vendo mesmo Amlia indignada, o padre Amaro disse gravemente:
- Brito, realmente voc excedeu-se.
- Pois se esto a puxar por mim!...
- Homem, ningum puxou por voc, disse severamente Amaro. E com um tom
pedagogo: Apenas lhe lembrarei, como devo, que em tais casos, quando se diz a blasfmia
m, o reverendo padre Scomelli recomenda confisso geral e dois dias de
recolhimento a po e gua.
O padre Brito resmungava.
- Bem, bem, resumiu Natrio. O Brito cometeu uma grande falta, mas saber
pedir perdo a Deus, e a misericrdia de Deus infinita!
Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assuno
murmurar "que ficara sem pinga de sangue": e o cnego, que durante a
catstrofe pousara os culos sobre a mesa, retomou-os, e continuou
serenamente a leitura:
"...Conheceis um outro com cara de furo?..."
Olhares de lado fixaram o padre Natrio.
"...Desconfiai dele: se puder trair-vos, no hesita; se puder prejudicar-vos,
folga; as suas intrigas
trazem o cabido numa confuso porque a vbora mais daninha da diocese, mas
com tudo isso muito dado jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas
do seu canteiro."
- Homem, essa! exclamou Amaro.
- para que voc veja, disse Natrio erguendo-se lvido. Que lhe parece? Voc
sabe que eu, quando falo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do
horroroso futuro de lgrimas. E tudo para qu? Para saciares os torpes impulsos
da tua criminosa lascvia..."
- Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
"...Mas acautela-te, presbtero perverso!" E a voz do cnego tinha tons cavos ao
soltar aquelas apstrofes. "J o arcanjo levanta a espada da justia. E sobre ti, e
teus cmplices, j a opinio da ilustrada Leiria fita seu olho imparcial. E ns c
estamos, ns, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infmia.
Tremei, sectrios do Syllabus! cuidado, sotainas negras!"
- De escacha! fez o cnego suado, dobrando a Voz do Distrito.
O padre Amaro tinha os olhos enevoados de duas lgrimas de raiva: passou
devagar o leno pela testa, soprou, disse com os beios a tremer:
1
- Eu, colegas, nem sei o que hei-de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto a
calnia das calnias.
63
O secretrio-geral, o Sr. Gouveia Ledesma, antigo jornalista, e, em anos mais
expansivos, autor do livro sentimental Devaneios de um Sonhador, estava ento
dirigindo o distrito na ausncia do governador civil.
Era um moo bacharel que passava por ter talento. Representara de gal no teatro
acadmico, em Coimbra, com muito aplauso; e tomara a esse tempo o hbito de
passear tarde na Sofia, com o ar fatal com que no palco arrepelava os cabelos,
ou levava, nos transes de amor, o leno aos olhos. Depois em Lisboa arruinara
um pequeno patrimnio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Mata, muita
caa no Xafredo e perniciosas convivncias literrias: aos trinta anos estava
pobre, saturado de mercrio e autor de vinte folhetins romnticos na Civilizao:
mas tornara- se to popular, que era conhecido nos lupanares e nos cafs por um
cognome carinhoso - era o Bibi. Julgando ento que conhecia a fundo a
existncia, deixou crescer as suas, comeou a citar Bastiat, freqentou as
cmaras e entrou na carreira administrativa; chamava agora repblica que tanto
exaltara em Coimbra uma absurda quimera; e Bibi era um pilar das instituies.
Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia s senhoras, nas soires
do deputado Novais - "que estava cansado da vida". Rosnava- se que a esposa do
bom Novais andava doida por ele: e em verdade Bibi escrevera a um amigo da
capital: - "enquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a
Novaisitos".
Levantava-se tarde; e nessa manh, de robe-de-chambre mesa do almoo,
partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narrao apaixonada
duma pateada em S. Carlos, quando o criado, - um galego que trouxera de Lisboa
- veio dizer que "estava ali um cura".
- Um cura? Que entre para aqui! - E murmurou para sua satisfao pessoal: - o
Estado no deve fazer esperar a Igreja.
- Perfeitamente. Mas ento quando pelas eleies, a autoridade nos vier pedir o
nosso auxilio, ns vendo que no encontramos nela proteo, diremos
simplesmente: "Non possumus!"
- E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que do os senhores
abades, ns vamos trair a civilizao?
E o antigo Bibi, tomando uma grande atitude, soltou esta frase:
- Somos filhos da liberdade, no renegaremos nossa me!
- Mas o doutor Godinho, que a alma do jornal, oposio, observou ento
Natrio; protegerlhe o jornal implicitamente proteger-lhe as manobras... O secretrio-geral teve
um sorriso:
- Meu caro senhor cura, V. St no est no segredo da poltica. Entre o doutor
Godinho e o governo civil no h inimizade, h apenas um arrufo... O doutor
Godinho uma inteligncia... Vai reconhecendo que o grupo da Maia no produz
nada... O doutor Godinho aprecia a poltica do governo, e o governo aprecia o
doutor Godinho.
E, rebuando-se todo num mistrio de Estado, acrescentou: - Coisas de alta
poltica, meu caro senhor.
Natrio ergueu-se:
- De modo que...
- Impossibilis est, disse o secretrio. De resto acredite, senhor cura, que, como
particular, revolto-me contra o Comunicado; mas como autoridade devo
respeitar a expresso do pensamento... Mas creia, e pode diz-lo a todo o clero
diocesano, a Igreja catlica no tem um filho mais fervente que eu, Gouveia
Ledesma... Quero porm uma religio liberal, de harmonia com o progresso, com
a cincia... Foram sempre as minhas idias; preguei-as bem alto, na imprensa,
na universidade e no grmio... Assim, por exemplo, no acho que haja poesia
maior que a poesia do cristianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Somente
lamento que ele no arvore a bandeira da civilizao! - E o antigo Bibi, contente
- Eu nunca lhe quis falar disso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliazinha tratava
o proco com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo
sem quererem, a coisa ia-se sabendo, ia- se rosnando... Eu bem sei que ela,
coitada, no via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que Leiria. Que lnguas, hem!
A S. Joaneira ento declarou que lhe ia falar como a um filho: o artigo afligira-a,
sobretudo por causa dele, Joo Eduardo. Porque enfim ele podia acreditar
tambm, desfazer o casamento, e que desgosto! E ela podia dizer-lhe como
mulher de bem, como me, que no havia entre a pequena e o senhor proco,
nada, nada, nada! Era a rapariga que tinha aquele gnio comunicativo! E o proco
tinha boas palavras, sempre muito delicado... Que ela sempre o dissera, o Sr.
padre Amaro tinha maneiras que tocavam o corao...
- Decerto, disse Joo Eduardo mordendo o bigode, com a cabea baixa.
A S. Joaneira ento ps a mo de leve sobre o joelho do escrevente, e fitando-o:
- E olhe, no sei se me fica mal dizer-lho, mas a rapariga quer-lhe deveras, Joo
Eduardo.
O corao do escrevente teve uma palpitao comovida.
- E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixo que eu tenho por ela... E l do artigo que
me importa a
mim?
Ento a S. Joaneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para
ela! Ela sempre
o dissera, como rapaz de bem, no havia outro na cidade de Leiria! . - Voc sabe,
quero-lhe como filho!
O escrevente enterneceu-se:
- Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo... E erguendo- se, com uma
solenidade engraada:
- Sra. D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mo...
Ela riu-se, - e na sua alegria Joo Eduardo beijou-a na testa, filialmente.
fazia, para calar toda essa gente, era casar-me j. Eu bem sei que tu no morres
por ele, bem sei. Deixa l! Isso vem depois. O Joo bom rapaz, vai ter o
emprego...
- Vai ter o emprego!?
- Pois foi o que ele me veio dizer tambm... Esteve com o doutor Godinho, diz
que l para o fim do ms est empregado... Enfim tu fazes o que entenderes...
Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te dum momento para o outro!...
Amlia no respondeu, olhando de frente no telhado voarem os pardais - menos
desassossegados, naquele instante, que os seus pensamentos.
Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente a que
aludia o Comunicado era ela, Amlia, e torturava-a o vexame de ver assim o seu
amor publicado no jornal. Depois (como ela pensava, mordendo o beio numa
raiva muda, com os olhos afogados de lgrimas), aquilo vinha estragar tudo! Na
Praa, na Arcada j se diria com risinhos perversos: - "Ento a Ameliazita da S.
Joaneira metida com o proco,hem?" Decerto o senhor chantre, to severo em
"coisas de mulheres", repreenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns
apertos de mo, a estava a sua reputao estragada, estragado o seu amor!
Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a
escarnec-la; no aceno que lhe fez da porta da botica o respeitvel Carlos julgou
ver uma secura repreensvel; volta encontrara o Marques da loja de ferragens,
que no lhe tirou o chapu, e ao entrar em casa julgava-se desacreditada esquecendo que o bom Marques era to curto de vista que usava na loja duas
lunetas sobrepostas.
- Que hei-de eu fazer? que hei-de eu fazer? murmurava, s vezes, com as mos
apertadas na cabea. O seu crebro de devota apenas lhe fornecia solues
devotas - entrar num recolhimento, fazer uma promessa a Nossa Senhora das
Dores "para que a livrasse daquele apuro", ir confessar-se ao padre Silvrio... E
E Amlia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza que o
proco, aterrado
com o escndalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos, zelosos "do bom
nome do clero" - tratava de se descartar dela! Mas, cautelosa, diante das amigas
da me, escondeu o seu desespero: foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou
mazurcas to estrondosas - que o cnego, tomando a mexer-se na poltrona,
grunhiu:
- Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixo pelo proco flamejava
mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma aluso num
jornal o picara, ficara a tremer na sua batina, apavorado, no se atrevendo sequer
a visit-la - sem se lembrar que tambm ela se via diminuda na sua reputao,
sem ser satisfeita no seu amor! E fora ele que a tentara com as suas palavrinhas
doces, as suas denguices! Infame!... Desejava violentamente apert-lo ao corao
- e esbofete-lo. Teve a idia insensata de ir ao outro dia Rua das Sousas atirarse-lhe aos braos, instalar-se-lhe no quarto, fazer um escndalo que o obrigasse
a fugir da diocese... Por que no? Eram novos, eram robustos, poderiam viver
longe, noutra cidade, - e a sua imaginao comeou a repastar-se logo
histericamente nas perspectivas deliciosas dessa existncia, em que se figurava
constantemente a dar-lhe beijos! Atravs da sua intensa excitao, aquele plano
parecia-lhe muito prtico, muito fcil: fugiriam para o Algarve; l, ele deixaria
crescer o cabelo (que mais bonito seria ento!) e ningum saberia que era um
padre; poderia ensinar latim, ela coseria para fora; e viveriam numa casinha onde o que mais a atraia era o leito com as duas travesseirinhas chegadas... E a
nica dificuldade que via em todo este plano radiante, era fazer sair de casa, s
escondidas da me, o ba com a sua roupa! - Mas quando acordou, essas
resolues mrbidas, luz clara do dia, desfizeram-se como sombras: tudo
aquilo que parecia agora to impraticvel, e ele to separado dela, como se entre
a Rua da Misericrdia e a Rua das Sousas se erguessem inacessivelmente todas as
montanhas da Terra. Ai, o senhor proco abandonara-a, era certo! No queria
perder os lucros da sua parquia nem a estima dos seus superiores!... Pobre dela!
Por isso nessa tarde janela, calada, olhando no telhado defronte voarem os
pardais - depois de saber que Joo Eduardo certo do emprego, viera falar enfim a
me - pensava com satisfao no desespero do proco ao ver publicados na S os
banhos do seu casamento. Depois as palavras muito prticas da S. Joaneira
trabalhavam-lhe silenciosamente na alma: o emprego do governo civil rendia
25$000 ris mensais; casando, reentrava logo na sua respeitabilidade de
senhora; e se a me morresse, com o ordenado do homem e com o rendimento
do Morenal, podia viver com decncia, ir mesmo no Vero aos banhos... E via-se
j na Vieira, muito cumprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do
governador civil.
- Que lhe parece, minha me? - perguntou bruscamente. Estava decidida pelas
vantagens que entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava ser persuadida e
forada.
- Eu ia pelo seguro, filha - foi a resposta da S. Joaneira.
- Pois a coisa, a fazer-se, filha, deve ser j... Era comear o enxoval, e se fosse
possvel casar-te para o fim do ms.
Ela no respondeu - mas a sua imaginao alvoroou-se quelas palavras. Casada
da a um ms, ela! Apesar de Joo Eduardo lhe ser indiferente, a idia daquele
rapaz, novo e apaixonado, que ia viver com ela, dormir com ela, deu uma
perturbao a todo o seu ser.
E quando a me ia descer ao quarto, disse-lhe:
- Que lhe parece, minha me? Eu est-me a custar entrar em explicaes com o
Joo Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
- Tambm acho, filha, escreve-lhe... A Rua leva a carta pela manh... Uma carta
bonita, e que agrade ao rapaz.
Amlia ficou na sala de jantar at tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:
"SR. JOO EDUARDO.
A mam c me ps ao fato da conversao que teve consigo. E se a sua afeio
verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se
decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus sentimentos. E a respeito
de enxoval e papis, amanh se falar, pois que o esperamos para o ch. A mam
est muito contente e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero
h-de ser, com a ajuda de Deus. A mam recomenda-se e eu sou
a que muito lhe quer, Amlia Caminha".
Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante dela deramlhe o desejo de escrever ao padre Amaro. Mas o qu? Confessar-lhe o seu amor,
com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com que aceitava por marido o
outro?... Acus-lo da sua cobardia, mostrar o seu desgosto - era humilhar-se! E
apesar de no ter motivo para lhe escrever, a sua mo ia traando com gozo as
primeiras palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que no
tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silncio,
para sempre!... Separarem-se por qu? - pensou. Depois de casada podia bem ver
o Sr, padre Amaro. E a mesma idia voltava, sutilmente, mas numa forma to
honesta agora, que a no repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu
confessor; era em toda a cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a
sua vontade, a sua conscincia; haveria ento entre eles uma troca deliciosa e
constante de confidncias, de doces admoestaes; todos os sbados iria receber
ao confessionrio, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma
proviso de felicidade; e aquilo seria casto, muito picante, e para a glria de Deus.
Sentiu-se quase satisfeita com a impresso, que no definia bem, duma
existncia em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria
os encantos duma devoo amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E da a
pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido,
e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda
a S, sentada nosjoelhosdosenhor proco.
69
Ao outro dia a Rua levou a carta a Joo Eduardo, e toda a manh as duas
senhoras, costurando janela, falaram do casamento. Amlia no se queria
separar da me, e, como a casa tinha acomodaes, os noivos viveriam no
primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor
cnego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua-de-mel para a fazenda da
D. Maria. E Amlia quelas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o
olhar da me que, de luneta na ponta do nariz, a admirava, babosa.
s Ave-Marias a S. Joaneira fechou-se embaixo no seu quarto a rezar a sua coroa,
e deixou Amlia s "para se entender com o rapaz". - Dai a pouco, com efeito,
Joo Eduardo bateu campainha. Vinha muito nervoso, de luvas pretas,
enfrascado em gua-de-colnia. Quando chegou porta da sala de jantar no
havia luz, e a bonita forma de Amlia destacava de p, junto claridade da
vidraa. Ele ps o xale-manta a um canto como costumava, e vindo para ela que
ficara imvel, disse-lhe, esfregando muito as mos:
- L recebi a cartinha, menina Amlia.
- Eu mandei-a pela Rua logo pela manh para o pilhar em casa - disse ela
imediatamente com as faces a arder.
- Eu ia para o cartrio, at j ia na escada... Haviam de ser nove horas...
- Haviam de ser... - disse ela.
Calaram-se, muito perturbados. Ele ento tomou-lhe delicadamente os pulsos, e
baixo:
- Ento sempre quer?
- Quero, murmurou Amlia.
- E o mais depressa possvel, hem?
- Pois sim...
Ele suspirou, muito feliz.
- Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem, dizia. E as
suas mos, com
presses temas, iam-se apoderando dos braos dela, dos pulsos aos cotovelos.
- A mam diz que podemos viver juntos, disse ela, esforando-se por falar
tranqilamente.
- Est claro, e eu vou mandar fazer lenis, acudiu ele, todo alterado.
Atraiu-a ento a si, subitamente, beijou-lhe os lbios; ela teve um soluozinho,
abandonou-se-lhe
entre os braos, toda fraca, toda lnguida.
- Oh filha! murmurava o escrevente.
Mas os sapatos da me rangeram na escada, e Amlia foi vivamente para o
aparador acender o
candeeiro.
A S. Joaneira parou porta; e para dar a sua primeira aprovao maternal, disse,
com bonomia: - Ento vocs esto aqui s escuras, filhos?
Foi o cnego Dias que participou ao padre Amaro o casamento de Amlia, uma
manh na S.
Falou no ''a propsito do enlace'', e acrescentou:
- Eu estimo, porque a contento da rapariga, e um descanso para a pobre
velha...
- Est claro, est claro... - murmurou Amaro, que se fizera muito branco.
O cnego pigarreou grosso, e ajuntou:
- E voc agora aparea por l, agora est tudo na ordem... A patifaria do jornal
isso pertence
histria... O que l vai, l vai!
- Est claro, est claro... - rosnou Amaro. Traou bruscamente a capa, saiu da
igreja.
Ia indignado; e continha-se, para no praguejar alto, pelas ruas. esquina da
viela das Sousas
quase esbarrou com Natrio, que o agarrou, logo, pela manga, para lhe soprar ao
ouvido: - Ainda no sei nada!
- De qu?
- Do liberal, do Comunicado. Mas trabalho, trabalho!
Amaro, que ansiava por desabafar, disse logo:
- Ento ouviu a novidade? O casamento de Amlia... Que lhe parece?
- Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego... Foi o
doutor
Godinho... E outro que tal!... Veja voc esta corja. O doutor Godinho do jornal s
bulhas com o governo civil, e o governo civil a atirar postas aos afilhados do
doutor Godinho. V l entend-los! Isto um pas de biltres!
- Diz que h grande alegro na casa da S. Joaneira! - disse o proco, com um
azedume negro.
- Que se divirtam! Eu no tenho tempo de l ir... Eu no tenho tempo para
nada!... Eu c ando no meu fito, saber quem o liberal e escach-lo! No posso
ver esta gente que leva a chicotada, coa-se, e curva a orelha. Eu c no! eu
guardo-as! - E, com uma contrao de rancor, que lhe curvou os dedos em garra,
e lhe encolheu o peito magro, disse por entre os dentes cerrados: - Eu, quando
odeio, odeio bem!
prateleira, com o ltimo cobertor empenhado, ressequidos de fome, injuriandose, - e ele a rir-se, ele a regalar-se!...
- Quem entrou, Rua? gritou ela, sentindo os passos da rapariga nas escadas.
- O Sr. padre Amaro.
Um fluxo de sangue abrasou-lhe o rosto - e o corao batia-lhe to forte, que
ficou um momento
com os dedos imveis sobre e teclado.
- No se precisava c do Sr. padre Amaro, rosnou Joo Eduardo por entre dentes.
Amlia mordeu o beio. Teve dio ao escrevente: num instante repugnou-lhe a
sua voz, os seus
modos, a sua figura de p junto dela: pensou com deleite, como depois de casada
( que tinha de casar) se confessaria toda ao padre Amaro, e no deixaria de o
desalentada.
Mas a S. Joaneira no consentiu. Credo, estavam todos monos como se
estivessem de psames!...
Que fizessem um quino para espairecer... - O cnego porm, saindo do seu
torpor, disse com severidade: - Est a senhora muito enganada, ningum est
mono. No h razes seno para estar alegre.
Pois no verdade, senhor noivo?
Joo Eduardo mexeu-se, sorriu:
- Eu c por mim, senhor cnego, no tenho razo seno para estar feliz.
- Pois est claro, disse o cnego. E agora Deus lhes d boas-noites a todos, que
eu vou quinar para vale de lenis. E o Amaro tambm.
Amaro foi apertar silenciosamente a mo de Amlia, - e os trs padres desceram
calados.
Na saleta a vela ainda ardia com um morro. O cnego entrou a buscar o seu
guarda-chuva; e ento, chamando os outros, cerrando devagarinho a porta,
disse-lhes baixo:
- Eu, colegas, no quis assustar h pouco a pobre senhora, mas essas coisas do
chantre, esses falatrios... o diabo!
- ter cautelinha, meninos! aconselhou Natrio, abafando a voz.
- srio, srio, murmurou lugubremente o padre Amaro.
Estavam de p no meio da saleta. Fora o vento uivava: a luz da vela agitada fazia
alternadamente
destacar e reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira: e em cima
Amlia cantarolava a Chiquita.
73
Amaro recordava outras noites felizes em que ele, triunfante e sem cuidados,
fazia rir as senhoras, - e Amlia, gorjeando Ai chiquita que si, revirava-lhe
olhares rendidos...
- Eu, disse o cnego, os colegas sabem, tenho que comer e beber, no me
importa... Mas necessrio manter a honra da classe!
- E no carece dvida, acrescentou Natrio, que se h outro artigo e mais
falatrios, estala com certeza o raio...
- Olha o padre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!
Em cima decerto houve alguma graa, porque sentiram as risadas do escrevente.
Amaro rosnou com rancor:
- Grande galhofa l em cima!...
Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natrio duma
chuva miudinha. - Olha que noite! exclamou furioso.
S o cnego tinha guarda-chuva: e abrindo-o devagar:
- Pois meninos, no h que ver, estamos em calas pardas...
Da janela de cima alumiada, saiam os sons do piano, nos acompanhamentos da
Chiquita. O
cnego soprava, agarrando fortemente o guarda- chuva contra o vento; ao lado
Natrio, cheio de fel, rilhava os dentes, encolhido no seu casaco; Amaro
caminhava de cabea cada, num abatimento de derrota; e enquanto os trs
padres, assim agachados sob o guarda-chuva do cnego, iam chapinhando as
poas pela rua tenebrosa, por trs a chuva penetrante e sonora ia-os
ironicamente fustigando!
XI
Da a dias, os freqentadores da botica, na Praa, viram com espanto o padre
Natrio e o doutor Godinho conversando em harmonia, porta da loja de
ferragens do Guedes. O recebedor, - que era escutado com deferncia em
questes de poltica estrangeira, - observou-os com ateno atravs da porta
lgrimas, o reteve pela batina, gritando: "Oh colega, que a perdio da religio!
". Desde ento, Natrio e Silvrio no falavam - com desgosto de Silvrio, um
bonacheiro, duma obesidade hidrpica, que, segundo diziam as suas
confessadas, "era todo afeio e perdo". Mas Natrio, seco e pequeno, tinha
tenacidade no rancor. Quando o Sr. chantre Valadares comeou a governar o
bispado, chamou-os, e, depois de lhes lembrar com eloqncia a necessidade "de
manter a paz na Igreja", de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e Plux,
empurrou Natrio com uma brandura grave para os braos do padre Silvrio - que
o teve um momento sepultado na vastido do peito e do estmago, murmurando
todo comovido:
- Todos somos irmos, todos somos irmos! 74
Mas Natrio, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o papelo, as
dobras que tomava, conservou com o padre Silvrio um tom amuado; na S ou na
rua, resvalando junto dele, com um jeito brusco do pescoo, rosnava apenas: "Sr.
padre Silvrio, s ordens!"
Havia porm duas semanas, uma tarde de chuva Natrio fizera repentinamente
uma visita ao padre Silvrio - sob pretexto que "o pilhara ali uma pancada de
gua, e que se vinha recolher um instante".
- E tambm, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dor de ouvidos, que
uma das minhas sobrinhas, coitada, est como doida, colega!
O bom Silvrio, esquecendo decerto que ainda nessa manh vira as duas
sobrinhas de Natrio ss e satisfeitas como dois pardais, apressou-se a escrever a
receita, todo feliz de utilizar os seus queridos estudos de medicina caseira; e
murmurava, banhado de riso:
- Ora que alegria, colega, v-lo aqui de novo nesta sua casa!
A reconciliao foi to pblica - que o cunhado do Sr. baro de Via Clara, bacharel
de grandes dotes poticos, lhe dedicou uma daquelas stiras que ele intitulava
Ferres, que iam manuscritas de casa em casa, muito saboreadas e muito
Comunicado; disse-o ele em casa da S. Joaneira... E a coisa pelo Silvrio vai bem,
que o confessor da mulher do Godinho.
- Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou pachorrentamente o ofcio que
compunha, remetendo para Alcobaa um preso - que ao fundo da saleta, entre
dois soldados, esperava sobre um banco, prostrado e embrutecido, com uma face
de fome e as mos em ferros.
Dai a dias tinha havido na S o Ofcio de corpo presente pelo rico proprietrio
Morais, que morrera dum aneurisma, e a quem sua esposa (em penitncia
decerto dos desgostos que lhe dera com a sua afeio desordenada por tenentes
de infantaria), estava fazendo, como se disse, "exquias de pessoa real". - Amaro
desvestira-se, e na sacristia, luz dum velho candeeiro de lato, escrevia
assentos atrasados, quando a porta de carvalho rangeu, e a voz agitada de Natrio
disse:
- Amaro, voc est a?
- Que temos?
O padre Natrio fechou a porta, e atirando os braos para o ar:
- Grande novidade, o escrevente!
- Que escrevente?
- O Joo Eduardo! ele! o liberal! Foi ele que escreveu o Comunicado! - Que me
diz voc? fez Amaro atnito.
75
- Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escrito pela letra dele. O que se chama
ver! Cinco tiras de papel!
Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natrio.
- Custou, exclamou Natrio. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de papel! E
quer escrever outro! O Sr. Joo Eduardo! O nosso rico amigo Sr. Joo Eduardo!
- Caro colega, uma questo de conscincia... Para mim era uma questo de
dever! No se pode
deixar casar a pobre pequena com um brejeiro, um pedreiro-livre, um ateu...
- Com efeito! com efeito! murmurava Amaro.
- Vem a calhar, hem? fez Natrio; e sorveu com gozo a pitada. Mas o sacristo
entrou; eram as
horas de fechar a igreja; vinha perguntar a suas senhorias se demoravam. - Um
instante, Sr. Domingos.
E, enquanto o sacristo corria os pesados ferrolhos da porta interior do ptio, os
dois padres muito chegados falavam baixo.
- Voc vai ter com a S. Joaneira, dizia Natrio. No, escute, melhor que lhe fale
o Dias; o Dias que deve falar S. Joaneira. Vamos pelo seguro. Voc fale
pequena e diga-lhe simplesmente que o ponha fora de casa! - E ao ouvido de
Amaro: - Diga rapariga que ele vive ai de casa e pucarinho com uma
desavergonhada!
- Homem! disse Amaro recuando, no sei se isso verdade!
- H-de ser. Ele capaz de tudo. E depois um meio de levar a pequena.
E foram descendo a igreja atrs do sacristo, que fazia tilintar o seu molho de
chaves,
pigarreando grosso.
Nas capelas pendiam as armaes de paninho negro agaloadas de prata; ao
centro, entre quatro
fortes tocheiras de grosso morro, estava a essa, com o largo pano de veludilho
cobrindo o caixo do Morais, recaindo em pregas franjadas; cabeceira tinha
uma larga coroa de perptuas; e aos ps pendia, dum grande lao de fita
escarlate, o seu hbito de cavaleiro de Cristo.
O padre Natrio ento parou; e tomando o brao de Amaro, com satisfao: - E
depois, meu caro amigo, tenho outra preparada ao cavalheiro...
- O qu?
- Cortar-lhe os vveres!
- Cortar-lhe os vveres?
- O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro amanuense,
hem? Pois vou-lhe desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que dos meus,
homem de boas idias, vai p-lo fora do cartrio... E que escreva ento
Comunicados!
Amaro teve horror quela intriga rancorosa:
- Deus me perdoe, Natrio, mas isso perder o rapaz.
76
- Enquanto o no vir por essas ruas a pedir um bocado de po, no o largo, padre
Amaro, no o largo!
- Oh, Natrio! oh, colega! isso de pouca caridade... Isso no de cristo... E
ento aqui que Deus est a ouvi-lo...
- No lhe d isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, no a
resmungar Padre- Nossos. Para mpios no h caridade! A Inquisio atacava-os
pelo fogo, no me parece mau atac-los pela fome. Tudo permitido a quem
serve uma causa santa... Que se no metesse comigo!
Iam a sair; mas Natrio deitou um olhar para o caixo do morto, e apontando com
o guarda-chuva:
- Quem est ali?
- O Morais, disse Amaro.
- O gordo, picado das bexigas?
- Sim.
- Boa besta!
E depois de um silncio:
- Foram os Ofcios do Morais... Eu nem dei por isso, ocupado c na minha
campanha... E a viva
Amaro entrou em casa ainda um pouco trmulo, mas muito decidido, muito feliz:
tinha um dever delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos graves pela casa,
para se compenetrar bem dessa responsabilidade estimada:
- do meu dever! do meu dever!
Como cristo, como proco, como amigo da S. Joaneira, o seu dever era procurar
Amlia, e, com simplicidade, sem paixo interessada, contar- lhe que fora Joo
Eduardo, o seu noivo, que escrevera o Comunicado.
Foi ele! Difamou os ntimos da casa, sacerdotes de cincia e de posio;
desacreditou-a a ela; passa as noites em deboche na pocilga do Agostinho;
insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligio; h seis anos que se no
confessa! Como diz o colega Natrio, uma fera! Pobre menina! No, no podia
casar com um homem que lhe impediria a vida perfeita, lhe achincalharia as boas
perguntava ele a anjos de cabeleiras de ouro que passavam, num doce rumor de
asas, levando almas nos braos. E todos lhe respondiam: - "Na Rua da
Misericrdia, na Rua da Misericrdia nmero nove!" Amaro sentia-se perdido;
um vasto ter cor de leite, penetrvel e macio como uma penugem de ave,
envolvia-o; e ele procurava debalde uma tabuleta de hospedaria! Por vezes
resvalava junto dele um globo reluzente de onde saa o rumor duma criao; ou
um esquadro de arcanjos, com couraas de diamantes, erguendo alto espadas de
fogo, galopavam num ritmo nobre...
Amlia tinha fome, tinha frio. "Pacincia, pacincia, meu amor!" dizia-lhe ele.
Caminhando, vieram a encontrar uma figura branca, que tinha na mo uma
palma verde. "Onde est Deus, nosso pai?" perguntou-lhe Amaro, com Amlia
conchegada ao peito. A figura disse: - "Eu fui um confessor, e sou um santo: os
sculos passam, e imutavelmente, sempiternamente sustento na mo esta
palma e banha-me um xtase igual! Nenhuma tinta modifica esta luz para
sempre branca; nenhuma sensao sacode o meu ser para sempre imaculado; e
imobilizado na bem-aventurana, sinto a monotonia do Cu pesar-me como
uma capa de bronze. Oh! pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas
diferentes da Terra - ou bracejar, sob as variedades da dor, nas chamas do
purgatrio!"
Amaro murmurou: "Bem fazemos ns em pecar!" - Mas Amliadesfalecia
fatigada... "Durmamos, meu amor!" E, deitados, viam estrelas flutuando numa
poeirada como o joio sacudido vivamente do crivo. Ento nuvens comearam a
dispor-se em torno deles, em pregas de cortinados, dando um perfume de
sachets: Amaro pousou a sua mo sobre o peito de Amlia: um enleio muito doce
enervava-os: enlaaram-se, os seus lbios pegavam-se midos e quentes: - "Oh,
Ameliazinha! " murmurava ele. - "Amo- te, Amaro, amo-te! " suspirava ela. Mas de repente as nuvens afastaram- se como os cortinados dum leito; e Amaro
viu diante o diabo que os alcanara, e que, com as garras na cinta, esgaava a boca
numa risada muda. Com ele estava outro personagem: era velho como a
substncia; nos anis dos seus cabelos vegetavam florestas; a sua pupila tinha a
vastido azul dum oceano; e nos dedos abertos com que cofiava a barba
Nessa noite Joo Eduardo, indo da Praa para casa da S. Joaneira, ficou
assombrado, ao ver aparecer outra boca da rua, do lado da S, o Santssimo em
procisso.
78
E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas de mantu pela cabea, as
tochas faziam destacar opas de paninho escarlate; sob o plio os dourados da
estola do proco reluziam; uma campainha tocava adiante, s vidraas apareciam
luzes; - e na noite escura o sino da S repicava, sem descontinuar.
Joo Eduardo correu aterrado - e soube logo que era a extrema-uno
entrevada.
Tinham posto na escada um candeeiro de petrleo sobre uma cadeira. Os
serventes encostaram parede da rua os varais do plio, e o proco entrou. Joo
Eduardo, muito nervoso, subiu tambm: ia pensando que a morte da entrevada,
o luto retardariam o seu casamento; contrariava-o a presena do proco e a
influncia que ele adquiria naquele momento; e foi quase quezilado que
perguntou Rua na saleta:
- Ento como foi isto?
- Foi a pobre de Cristo que esta tarde comeou a esmorecer, o senhor doutor
veio, diz que estava a acabar e a senhora mandou pelos sacramentos.
Joo Eduardo, ento, julgou delicado ir assistir " cerimnia".
O quarto da velha era junto cozinha; e tinha naquele momento uma solenidade
lgubre. Sobre uma mesa coberta de toalha de folhos, estava um prato com cinco
bolinhas de algodo entre duas velas de cera. A cabea da entrevada, toda branca,
a sua face cor de cera mal se distinguiam do linho do travesseiro; tinha os olhos
estupidamente dilatados; e ia apanhando incessantemente com um gesto lento a
dobra do lenol bordado.
Amaro prometera voltar mais tarde, para "as acompanhar, como amigo, naquele
transe". E o cnego (que chegara, quando a procisso como o plio dobrava a
esquina para o lado da S), informado desta delicadeza do senhor proco,
declarou logo que visto que o colega Amaro vinha fazer a noitada, ele ia descansar
o corpo porque, Deus bem o sabia, aquelas comoes arrasavam-lhe a sade.
- E a senhora no havia de querer que eu apanhasse alguma, e me visse nos
mesmos assados... - Credo, senhor cnego! exclamou a S. Joaneira, nem diga
isso!...
79
- E comeou a choramingar, muito abalada.
- Pois ento boas noites, disse o cnego, e nada de afligir. Olhe, a pobre criatura,
alegria no a tinha: e como no tem pecados no lhe importa achar-se na
presena de Deus. Tudo bem considerado, senhora, uma pechincha! E
adeusinho, que me no estou a sentir bem...
Tambm a S. Joaneira no se sentia bem. O choque, logo depois do jantar, deralhe ameaas de enxaqueca: - e quando Amaro voltou, s onze, Amlia que fora
abrir a porta, disse-lhe, ao subir sala de jantar:
- O senhor proco desculpe... A mam veio-lhe a enxaqueca, coitada... Estava
que nem via... Deitou-se, ps gua sedativa e adormeceu...
- Ah! deix-la dormir!
Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabea virada para a parede; dos seus
beios abertos saa um gemido muito dbil e contnuo. Sobre a mesa agora, uma
grossa vela benta, de morro negro, erguia uma luz triste; e ao canto, transida de
medo, a Rua, segundo as recomendaes da S. Joaneira, ia rezando a coroa.
- O senhor doutor, disse Amlia baixo, diz que morre sem o sentir... Diz que hde gemer, gemer, e de repente acabar como um passarinho...
- Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente o padre Amaro.
Voltaram sala de jantar. Toda a casa estava silenciosa: fora ventava forte. Havia
muitas semanas que no se encontravam assim ss. Muito embaraado, Amaro
aproximou-se da janela: Amlia encostou-se ao aparador.
- Vamos ter uma noite de gua, disse o proco.
- E est frio, disse ela, encolhendo-se no xale. Eu tenho estado passada de
medo...
- Nunca viu morrer ningum?
- Nunca.
Calaram-se - ele imvel ao p da janela, ela encostada ao aparador, de olhos
baixos.
- Pois est frio, disse Amaro, com a voz alterada da perturbao que lhe ia dando
a presena dela
quela hora da noite.
- Na cozinha est a braseira acesa, disse Amlia. melhor irmos para l.
- melhor.
Foram. Amlia levou o candeeiro de lato: e Amaro, indo remexer com as tenazes
o brasido
vermelho, disse:
- H que tempo que eu no entro aqui na cozinha... Ainda tem os vasos com os
raminhos fora da
janela?
- Ainda, um craveiro...
Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da braseira. Amlia, inclinada para o
lume, sentia os olhos do padre Amaro devor-la silenciosamente. Ele ia falarlhe, decerto! Tinha as mos a tremer; no ousava mover- se, erguer as plpebras,
com medo que lhe rompessem as lgrimas; mas ansiava pelas suas palavras, ou
amargas ou doces...
Elas vieram enfim, muito graves.
- Menina Amlia, disse, eu no esperava poder assim falar-lhe a ss. Mas as
coisas arranjaram- se... decerto a vontade de Nosso Senhor! E depois, como as
suas maneiras mudaram tanto...
Ela voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho trmulo:
- Mas bem sabe por qu! exclamou quase chorando.
- Sei. Se no fosse aquele infame Comunicado, e as calnias... nada se tinha
passado, e a nossa
amizade seria a mesma, e tudo iria bem... justamente a esse respeito que eu lhe
quero falar.
Chegou a cadeira mais para junto dela, e muito suave, muito tranqilo:
- Lembra-se desse artigo em que todos os amigos da casa eram insultados? em
que eu era
arrastado pela rua da amargura? em que a menina mesma, a sua honra era
ofendida?... Lembra-se, hem? Sabe quem o escreveu?
- Menina Amlia, o homem que escreveu esse Comunicado! que fez ir o pobre
Brito para a serra de Alcobaa! que me chamou a mim sedutor! que chamou
devasso ao Sr. cnego Dias! Devasso! Que lanou veneno nas relaes de sua
mam com o cnego! e que a acusou menina, em bom portugus, de se deixar
seduzir! Diga, quer casar com esse homem?
Ela no respondeu, com os olhos cravados no lume, duas lgrimas mudas sobre
as faces.
Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando ao p dela, com a voz
abrandada, gestos muito amigos:
- Mas suponhamos que no era ele o autor do Comunicado, que no tinha
insultado em letra redonda a sua mam, o senhor cnego, os seus amigos: resta
ainda a sua impiedade! Veja que destino o seu se casasse com ele! Ou teria de
condescender com opinies do homem, abandonar as suas devoes, romper
com os amigos de sua me, no pr os ps na igreja, dar escndalo a toda a gente
honesta, ou teria de se pr em oposio com ele, e a sua casa seria um inferno!
Por tudo uma questo! Por jejuar sexta- feira, por ir exposio do Santssimo,
por cumprir odomingo... Se se quisesse confessar, que desavenas! Um horror! E
sujeitar-se a ouvi-lo escarnecer os mistrios da f! Ainda me lembro, na primeira
noite que aqui passei, com que desacato ele falou da Santa da Arregaa!... E ainda
me lembro uma noite que o padre Natrio aqui falava dos sofrimentos do nosso
santo padre Pio IX, que seria preso, se os liberais entrassem em Roma... Como
ele tinha risinhos de escrnio, como disse que eram exageraes!... Como se no
fosse perfeitamente certo que por vontade dos liberais veramos o chefe da
Igreja, o vigrio de Cristo, dormir num calabouo em cima dumas poucas de
palhas! So as opinies dele, que ele apregoa por toda parte! O padre Natrio diz
que ele e o Agostinho estavam no caf ao p do Terreiro, a dizer que o batismo
era um abuso, porque cada um devia escolher a religio que quisesse, e no ser
forado, de pequeno, a ser cristo! Hem, que lhe parece? Como seu amigo lho
digo... Para bem da sua alma antes a queria ver morta, do que ligada a esse
homem! Case com ele, e perde para sempre a graa de Deus!
- E o gnio mais dado, senhor proco! Uma santa! E quando a Amlia nasceu, e
que eu estive to mal, que no se tirou de ao p de mim, noite e dia!... E alegre,
no havia outra... Ai Deus da minha alma, Deus da minha alma!
Amlia, encostada vidraa na sombra da janela, olhava entorpecida a noite
negra.
Bateram ento campainha. Amaro desceu, com uma vela. Era Joo Eduardo que,
ao ver o proco quela hora na casa, - ficou petrificado, junto da porta aberta;
enfim balbuciou:
- Eu vinha saber se havia novidade...
- A pobre senhora expirou agora mesmo...
- Ah!
Os dois homens olharam-se um instante fixamente.
- Se eu sou preciso para alguma coisa... - disse Joo Eduardo.
- No, obrigado. As senhoras vo-se deitar.
Joo Eduardo fez-se plido da clera que lhe davam aqueles modos de dono da
casa. Esteve
ainda um momento, hesitando - mas vendo o proco abrigar a luz, com a mo,
contra o vento da rua: - Bem, boa noite, disse.
- Boa noite.
O padre Amaro subiu: e depois de deixar as duas senhoras no quarto da S.
Joaneira (porque, cheias de terror, queriam dormir juntas), voltou ao quarto da
morta, despertou a vela sobre a mesa, acomodou-se numa cadeira, e comeou a
ler o Brevirio.
Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa, o proco, sentindo o sono
entorpec-lo, veio sala de jantar; reconfortou-se com um clice de vinho do
Porto que achara no aparador; e saboreava regaladamente o cigarro, quando
ouviu na rua passos de botas fortes que iam, vinham, por baixo das janelas.
Como a noite estava escura no pde distinguir "o passeante". Era Joo Eduardo
que rondava a casa, furioso.
XII
Ao outro dia cedo, a Sra. D. Josefa Dias que entrara, havia pouco, da missa, ficou
muito surpreendida, ouvindo a criada que lavava as escadas dizer de baixo:
- Est aqui o Sr, padre Amaro, Sra. D. Josefa!
O proco ultimamente raras vezes vinha a casa do cnego; e D. Josefa gritou logo
lisonjeada e j curiosa:
- Que suba para aqui, no de cerimnia! como de famlia. Que suba!
Estava na sala de jantar, arranjando numa travessa ladrilhos de marmelada, com
um vestido de barege preto esgaado na ilharga e arqueado em redor dos
tornozelos por uma crinoline dum s arco; trazia nessa manh culos azuis; e foi
logo ao patamar, arrastando os seus medonhos chinelos de ourelo, e preparando,
por baixo do leno preto repuxado sobre a testa, um ar agradvel para o senhor
proco.
- Ora ditosos olhos, exclamou. Eu entrei h bocadinho, e j c tenho a primeira
missinha. Fui
hoje capela de Nossa Senhora do Rosrio... Disse-a o padre Vicente. Ai! e que
virtude, que me fez hoje, 82
senhor proco! Sente-se. A no, que lhe vem ar da porta... E ento a pobre
entrevada l se foi... Conte l, senhor proco...
O proco teve de descrever a agonia da entrevada, a dor da S. Joaneira; como
depois de morta a face da velha parecera remoar; o que as senhoras tinham
decidido a respeito da mortalha...
- Aqui para ns, D. Josefa, um grande alvio para a S. Joaneira... - E de repente,
puxando-se para a beira da cadeira, assentando as mos nos joelhos: - E que me
diz do Sr. Joo Eduardo? J sabe? Foi ele que escreveu o artigo!
vezes com os maus; como quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado
com um trabalhador de enxada... como se dissssemos: "Eu sou-te superior em
virtude, mas comparado com o que devia ser para entrar na glria, quem sabe se
no sou to pecador como tu!..." E esta humilhao da alma a melhor oferta que
podemos fazer a Jesus.
D. Josefa escutava-o, babosa; e numa admirao:
- Ai, senhor proco, que at d virtude ouvi-lo!
Amaro curvou-se:
- Deus s vezes, na sua bondade, inspira-me justas palavras... Pois, minha
senhora, eu no quero
maar mais. Ficamos entendidos. A senhora fala pequena amanh; e se, como
de crer, ela consentir em escutar os meus conselhos, traz-ma S, no sbado, s
oito horas. E fale-lhe teso, D. Josefa!
- Deixe-a comigo, senhor proco!... Ento no quer provar da minha
marmelada?
- Provarei, disse Amaro, tomando um ladrilho em que cravou os dentes com
dignidade.
- dos marmelos da D. Maria. Saiu-me melhor que a das Gansosinhos...
- Pois adeus, D. Josefa... Ah, verdade, que diz o nosso cnego deste caso do
escrevente?
- O mano?...
Neste momento a campainha embaixo repicou com furor.
- H-de ser ele, disse logo D. Josefa. E vem zangado!
Vinha, com efeito, da fazenda - furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a
perversidade dos
homens. Tinham-lhe roubado uma poro de cebolinho; e, abafado de clera,
aliviava-se repetindo com gozo o nome do Inimigo.
- Credo, mano, que at lhe fica mal! - exclamou D. Josefa tomada de escrpulos.
- Ora, mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co'os diabos! e
repito co'os diabos! Mas eu l disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda,
carregue a espingarda e faa fogo!
- H uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.
- H uma falta de respeito por tudo! exclamou o cnego. Um cebolinho que dava
sade s olhar para ele! Pois senhores, l vai! Isto o que eu chamo um
sacrilgio!... Um desaforado sacrilgio! - acrescentou com convico; porque o
roubo do seu cebolinho, o cebolinho dum cnego, parecia-lhe um ato to negro
de impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da S.
- Falta de temor a Deus, falta de religio, observou D. Josefa.
- Qual falta de religio! replicou o cnego exasperado. Falta de cabos de polcia,
o que ! - E voltando-se para Amaro: - Hoje o enterro da velha, hem? Inda mais
essa! V, mana, mande-me l dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!
O padre Amaro ento, retomado pela sua preocupao:
- Estvamos c a falar do caso do Joo Eduardo: o Comunicado!
- Isso outra maroteira que tal, fez logo o cnego. Vejam essa, tambm! Que
quadrilha vai pelo
mundo, que quadrilha! - e ficou de braos cruzados, com os olhos arregalados,
como contemplando uma legio de monstros, soltos pelo universo, e
arremessando-se com impudncia contra as reputaes, os princpios da Igreja, a
honra das famlias e o cebolinho do clero.
Ao sair, o padre Amaro renovou ainda as suas recomendaes a D. Josefa, que o
acompanhara ao patamar.
- Ento hoje, noite de psames, no se faz nada. Amanh fala rapariga, e l para
o fim da semana leva-ma S. Bem. E convena a rapariga, D. Josefa, trate de
salvar aquela alma! Olhe que Deus tem os olhos em si. Fale-lhe teso, fale-lhe
teso!... E o nosso cnego que se entenda com a S. Joaneira.
- Pode ir descansado, senhor proco. Sou madrinha, e, quer ela queira quer no,
hei-de p-la no caminho da salvao...
- Amm, disse o padre Amaro.
Nessa noite, com efeito, D.Josefa "no fez nada". Eram os psames na Rua da
Misericrdia. Estavam embaixo, na saleta, alumiada lugubremente por uma s
vela com um abajur verde-escuro. A S.
84
Joaneira e Amlia, de luto, ocupavam tristemente o canap ao centro; e em redor,
nas fileiras de cadeiras apoiadas parede, as amigas, cobertas de negro pesado,
conservavam-se funebremente imveis, de faces contristadas, num torpor
mudo: s vezes duas vozes ciciavam, ou dum canto, na sombra, saa um suspiro:
depois o Libaninho, ou Artur Couceiro, ia em bicos de ps espevitar o morro da
vela; a D. Maria da Assuno expectorava o seu catarro com um som choroso: e
no silncio ouviam tamancos bater no lajedo da rua, ou os quartos de hora no
relgio da Misericrdia.
A intervalos a Rua, toda de negro, entrava com o tabuleiro de doces e copos de
chazada; levantava-se ento o abajur; e as velhas, que j iam cerrando as
plpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo os lenos aos olhos, e, com
ais, serviam-se de bolinhos da Encarnao.
Joo Eduardo l estava, a um canto, ignorado, ao p da Gansoso surda que dormia
com a boca aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o olhar de Amlia,
que no se movia, com o rosto sobre o peito, as mos no regao, torcendo e
destorcendo o seu leno de cambraieta. O Sr. padre Amaro e o Sr. cnego Dias
vieram s nove horas: o proco com passos graves foi dizer S. Joaneira:
- Minha senhora, o golpe grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua
excelentssima mana est a esta hora gozando a companhia de Jesus Cristo.
Houve em redor uma murmurao de soluos; e como no restavam cadeiras, os
dois eclesisticos sentaram-se aos dois cantos do canap, tendo no meio a S.
Da a dois dias, s oito horas da manh, a Sra. D. Josefa Dias e Amlia entraram
na S - depois de terem falado no terrao Amparo, mulher do boticrio, que
tinha uma criana com sarampo, e, apesar de no ser coisa de cuidado, "viera
cautela fazer uma promessa".
O dia estava enevoado, a igreja tinha luz parda. Amlia, plida sob a sua mantilha
de renda, parou defronte do altar de Nossa Senhora das Dores, deixou-se cair de
joelhos, e ficou imvel, com o rosto sobre o livro de missa. A Sra. D. Josefa Dias,
com passos fofos, depois de se ter prostrado diante da capela do Santssimo e do
altar-mor, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro l
passeava, com os ombros vergados, as mos atrs das costas:
- Ento? perguntou logo, erguendo para D. Josefa a sua face muito barbeada,
onde os olhos reluziam inquietos.
- Est ali, disse a velha baixinho, numa expresso de triunfo. Fui eu mesma
busc-la! Ai, falei- lhe teso, senhor proco, no lhas poupei! Agora consigo!
- Obrigado, obrigado, D. Josefa! disse o padre, apertando-lhe as mos ambas com
fora. Deus h-de-lho levar em conta.
Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o leno, a carteira dos papis; e,
cerrando devagarinho a porta da sacristia, desceu igreja. Amlia ainda estava
ajoelhada, fazendo um vulto negro imvel contra o pilar branco.
Que a mim o deve, e prudncia do mano e do Sr. padre Amaro. Que havia
motivos para o ferrar na cadeia!
- Mas a pequena gostava dele, ao que parece.
D. Josefa indignou-se. Credo, a Amlia era uma rapariga de juzo, de muita
virtude! Apenas conheceu os desaforos, foi a primeira a dizer que no, e que no!
Ai! detestava-o... - E D. Josefa, baixando a voz em confidncia, contou "que era
positivo que ele vivia com uma desgraada para os lados do quartel".
- Disse-o o Sr. padre Natrio, afirmou. - E aquilo homem que da sua boca
nunca sai seno a verdade pura... Foi muito delicado comigo, devo-lhe esse
favor. Apenas soube veio-me logo dizer a casa, pedir-me conselhos... Enfim,
muito atencioso.
Mas o Carlos apareceu de novo. Tinha a botica desembaraada um momento (que
no o tinham deixado respirar toda a manh!) e vinha fazer companhia s
senhoras.
- Ento j sabe, Sr. Carlos, exclamou logo D. Josefa, o caso do Comunicado e do
Joo Eduardo? O farmacutico arregalou os seus olhos redondos. Que relao
havia entre um artigo to indigno, e esse mancebo que lhe parecia honesto?
- Honesto? ganiu a Sra. D. Josefa Dias. Foi ele que o escreveu, Sr. Carlos!
E vendo o Carlos morder o beio de surpresa, D. Josefa, entusiasmada, repetiu a
histria da "maroteira".
- Que lhe parece, Sr. Carlos, que lhe parece?
O farmacutico deu a sua opinio, numa voz vagarosa, sobrecarregada da
autoridade dum vasto entendimento:
- Nesse caso digo, e todas as pessoas de bem o diro comigo, uma vergonha
para Leiria. Eu j tinha observado, quando li o Comunicado: a religio a base da
sociedade, e min-la , por assim dizer, querer aluir o edifcio... uma desgraa
que haja na cidade desses sectrios do materialismo e da repblica, que, como
Depois ficou ali, fatigando a vista contra a chama da torcida, com uma sensao
arrefecedora de Imobilidade e de Silncio, como se subitamente, sem choque,
toda a vida universal tivesse emudecido e parado. Pensou onde teriam elas ido
passar a noite. Lembranas de seres felizes na Rua da Misericrdia
atravessaram-lhe devagar na memria: Amlia trabalhava, com a cabea baixa, e
entre o cabelo muito preto e o colar muito branco o seu pescoo tinha uma
palidez que a luz amaciava... Ento a idia de que a perdera para sempre varoulhe o corao com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as mos, tonto.
Ao outro dia, cedo, Amlia vinha da Rua da Misericrdia para a Praa, quando ao
p do Arco, Joo Eduardo lhe saiu de emboscada.
- Quero falar-lhe, menina Amlia.
Ela recuou assustada, disse a tremer:
- No tem que me falar...
Mas ele plantara-se diante dela, muito decidido, com os olhos vermelhos como
carves:
- Quero-lhe dizer... L do artigo, verdade, fui eu que o escrevi, foi uma
desgraa; mas a menina
tinha-me ralado de cimes... Mas o que a menina diz de maus costumes uma
calnia. Eu sempre fui um homem de bem...
- O Sr. padre Amaro que o conhece! Faz favor de me deixar passar...
Ao nome do proco, Joo Eduardo fez-se lvido de raiva:
- Ah! o Sr. padre Amaro! o maroto do padre! Pois veremos Oua...
- Faz favor de me deixar passar! disse ela irritada, to alto, que um sujeito gordo
de xale-manta
parou olhando.
Joo Eduardo recuou, tirando o chapu; e ela, imediatamente, refugiou-se na loja
disse-lho... Mas suponhamos que fui eu que o espalhei pelas ruas. De duas uma:
ou o Comunicado era uma calnia, e ento sou eu que devo acus-lo de ter
poludo um jornal honrado com um acervo de difamaes; ou era verdade, e
ento que homem o senhor que se envergonha
89
das verdades que solta e que no se atreve a manter luz do dia as opinies que
redigiu na escurido da noite?
Duas lgrimas enevoaram os olhos de Joo Eduardo. Ento, diantedaquela
expresso esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma argumentao to
lgica e to poderosa, o doutor Godinho abrandou:
- Bem, no nos zanguemos, disse. No se fala mais em pontos de honra... O que
pode acreditar que lamento o seu desgosto.
Deu-lhe conselhos duma solicitude paternal. Que no sucumbisse; havia mais
meninas em Leiria e meninas de bons princpios que no viviam sob a direo da
sotaina. Que fosse forte, e que se consolasse pensando que ele, doutor Godinho e era ele! - tambm tivera em moo desgostos do corao. Que evitasse o
domnio das paixes que lhe seria prejudicial na carreira pblica. E que se o no
fizesse por seu interesse prprio, o fizesse ao menos em ateno a ele, doutor
Godinho!
Joo Eduardo saiu do escritrio, indignado, julgando-se trado pelo doutor.
- Isto sucede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre-diabo, no dou
votos nas eleies, no vou s soires do Novais, no subscrevo para o clube. Ah,
que mundo! Se eu tivesse um par de contos de ris!...
Veio-lhe ento um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e da religio
que os justifica. Voltou muito decidido ao escritrio, e entreabrindo a porta:
- Vossa excelncia ao menos agora d licena que eu desabafe no jornal?... Queria
contar esta maroteira, cascar nessa canalha...
o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada momento a criana rabujava,
ela sacudia-a nos braos: calavam-se depois: o velho arregaava a cala,
contemplava com satisfao uma chaga na canela envolta em trapos: e o outro
homem dava bocejos desconsolados que tomavam mais lgubre a sua longa face
amarela. Aquela demora enervava, amolecia o escrevente; sentia perder
gradualmente o nimo de ocupar o doutor Gouveia; preparava laboriosamente a
sua histria, mas ela parecia-lhe agora bem insuficiente para o interessar.
Vinha-lhe ento umdesalento, que as faces inspidas dos doentes tomavam ainda
mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia s de
misrias, de sentimentos trados, de
91
aflies, de doenas! Erguia-se; e com as mos atrs das costas ia olhar
desconsoladamente a Coroao da Rainha Vitria.
De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas senhoras
ainda l estariam. L estavam; e atravs do batente de baeta verde, que fechava o
gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes pachorrentas palrarem.
- Em caindo aqui, dia perdido! rosnava o velho.
Tambm ele deixara a cavalgadura porta do Fumaa, e a rapariga na Praa... E o
que teria a esperar na botica, depois! Com trs lguas ainda a fazer para voltar
freguesia!... Ser doente bom, mas para quem rico e tem vagares!
A idia da doena, da solido que ela traz, faziam agora parecer a Joo Eduardo
mais amarga a perda de Amlia. Se adoecesse, teria de ir para o hospital. O
malvado do padre tirara-lhe tudo - mulher, felicidade, confortos de famlia,
doces companhias da vida!
Enfim, sentiram no corredor as duas senhoras que saam. A mulher com a
criana apanhou o seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando- se logo do
banco junto da porta, disse com satisfao:
- Agora c o patro!
- Vossemec tem muito que consultar? perguntou-lhe Joo Eduardo.
- No senhor, s receber a receita.
E imediatamente contou a histria da sua chaga: fora uma trave que lhe cara em
cima; no fizera
caso; depois a ferida assanhara-se; e agora ali estava, manco e curtidinho de
dores.
- E vossa senhoria, coisa de cuidado? perguntou ele.
- Eu no estou doente, disse o escrevente. So negcios com o senhor doutor.
Os dois homens olharam-se com inveja.
Enfim foi a vez do velho, depois a do homem amarelo de brao ao peito. Joo
Eduardo, s,
passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difcil ir assim, sem
cerimnia, pedir proteo ao doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se
queixar primeiro de dores do peito ou desarranjos do estmago, e depois,
incidentalmente, contar os seus infortnios...
Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante dele, com sua longa barba grisalha
que lhe caa sobre a quinzena de veludo preto, o largo chapu desabado na
cabea, calando as luvas de fio de Esccia.
- Ol! s tu, rapaz! H novidade na Rua da Misericrdia? Joo Eduardo corou.
- No senhor, senhor doutor, queria falar-lhe em particular.
Seguiu-o ao gabinete - o conhecido gabinete do doutor Gouveia que, com o seu
caos de livros, o
seu tom poeirento, uma panplia de flechas selvagens e duas cegonhas
empalhadas, tinha na cidade a reputao duma "Cela de Alquimista".
O doutor puxou o seu cebolo.
- Um quarto para as duas. S breve.
A face do escrevente exprimiu o embarao de condensar uma narrao to
complicada.
- Est bom, disse o doutor, explica-te como puderes. No h nada mais difcil
que ser claro e
breve; necessrio ter gnio. Que ?
Joo Eduardo ento tartamudeou a sua histria, insistindo sobretudo na perfdia
do padre,
exagerando a inocncia de Amlia...
O doutor escutava-o, cofiando a barba.
- Vejo o que . Tu e o padre, disse ele, quereis ambos a rapariga. Como ele o
mais esperto e o
mais decidido, apanhou-a ele. lei natural: o mais forte despoja, elimina o mais
fraco; a fmea e a presa pertencem-lhe.
Aquilo pareceu a Joo Eduardo um gracejo. Disse, com a voz perturbada:
- Vossa excelncia est a caoar, senhor doutor, mas a mim retalhasse-me o
corao!
- Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a filosofar, no estou a caoar...
Mas enfim, que
queres tu que eu te faa?
Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, tambm, com mais pompa!
- Eu tenho a certeza que se vossa excelncia lhe falasse...
O doutor sorriu:
- Eu posso receitar rapariga este ou aquele xarope, mas no lhe posso impor
este ou aquele
homem! Queres que lhe v dizer: "A menina h-de preferir aqui o Sr. Joo
Eduardo?" Queres que v dizer ao padre, um magano que eu nunca vi: "O senhor
faz favor de no seduzir esta menina?"
- Mas caluniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de
maus costumes, um patife...
- Canalha de padres! Foi raa que sempre detestei! Queria-a ver varrida da face
da Terra, senhor doutor!
- Isso outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escut-lo ainda, e parando
porta do quarto. Ouve l. Tu crs em Deus? No Deus do Cu, no Deus que l est
no alto do Cu, e que l de cima o princpio de toda a justia e de toda a verdade?
Joo Eduardo, surpreendido, disse: - Eu creio, sim senhor.
- E no pecado original?
- Tambm...
- Na vida futura, na redeno, etc.?
- Fui educado nessas crenas...
- Ento para que queres varrer os padres da face da Terra? Deves pelo contrrio
ainda achar que
so poucos. s um liberal racionalista nos limites da Carta, ao que vejo... Mas se
crs no Deus do Cu, que nos dirige l de cima, e no pecado original, e na vida
futura, precisas duma classe de sacerdotes que te expliquem a doutrina e a moral
revelada de Deus, que te ajudem a purificar da mcula original e te preparem o
teu lugar no Paraso! Tu necessitas dos padres. E parece-me mesmo uma terrvel
falta de lgica que os desacredites pela imprensa...
Joo Eduardo, atnito, balbuciou:
- Mas vossa excelncia, senhor doutor... Desculpe-me vossa excelncia, mas...
- Dize, homem. Eu qu?
- Vossa excelncia no precisa dos padres neste mundo...
- Nem no outro. Eu no preciso dos padres no mundo, porque no preciso do
Deus do Cu. Isto
quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro de mim, isto , o princpio
que dirige as minhas aes e os meus juzos. Vulgo Conscincia... Talvez no
compreendas bem... O fato que estou aqui a expor doutrinas subversivas... E
realmente so trs horas...
E mostrou-lhe o cebolo.
porta do ptio, Joo Eduardo disse-lhe ainda:
- Vossa excelncia ento desculpe, senhor doutor...
- No h de qu... Manda a Rua da Misericrdia ao diabo!
Joo Eduardo interrompeu com calor:
- Isso bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixo est a roer c por
dentro!...
- Ah! fez o doutor, uma bela e grande coisa a paixo! O amor uma das grandes
foras da
civilizao. Bem dirigida levanta um mundo e bastava para nos fazer a revoluo
moral... - E mudando de tom: - Mas escuta. Olha que isso s vezes no paixo,
no est no corao... O corao ordinariamente um termo de que nos
servimos, por decncia, para designar outro rgo. precisamente esse rgo o
nico que est interessado, a maior parte das vezes, em questes de sentimento.
E nesses casos o desgosto no dura. Adeus, estimo que seja isso!
XIV
Joo Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado, todo
cansado da noite desesperada que passara, daquela manh cheia de passos
inteis das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouveia.
- Acabou-se, pensava, no posso fazer mais nada! agentar.
Tinha a alma extenuada de tantos esforos de paixo, de esperana e de clera.
Desejaria ir estirar-se ao comprido, num stio isolado, longe de advogados, de
mulheres e de padres, e dormir durante meses. Mas como j passava das trs
horas, apressava-se para o cartrio do Nunes. Teria talvez ainda de ouvir um
sermo por ter chegado to tarde! Triste vida a sua!
94
Dobrava a esquina no Terreiro, quando ao p da casa de pasto do Osrio se
encontrou com um moo de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito
larga, e com um bigodinho to preto que parecia postio sobre as suas feies
extremamente plidas.
- Ol! Que feito, Joo Eduardo?
Era um Gustavo, tipgrafo da Voz do Distrito, que havia dois meses fora para
Lisboa. Segundo dizia o Agostinho, era "rapaz de cabea e instruidote, mas de
idias do diabo". Escrevia s vezes artigos de poltica estrangeira, onde
introduzia frases poticas e retumbantes, amaldioando Napoleo III, o czar e os
opressores do povo, chorando a escravido da Polnia e a misria do proletrio. A
simpatia entre ele e Joo Eduardo proviera de conversas sobre religio, em que
ambos exalavam o seu dio ao clero e a sua admirao por Jesus Cristo. A
revoluo de Espanha entusiasmara-o tanto que aspirara a pertencer
Internacional; e o desejo de viver num centro operrio, onde houvesse
associaes, discursos e fraternidade, levara-o a Lisboa. Encontrara l bom
trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a me, velha e doente, e como
era mais econmico viverem juntos, voltara a Leiria. O Distrito, alm disso, na
perspectiva de eleies, prosperava a ponto de aumentar o salrio aos trs
tipgrafos.
- De modo que l estou outra vez com o raqutico... Vinha jantar, e convidou logo
Joo Eduardo a que lhe fizesse companhia. No havia de acabar o mundo, que
diabo, por ele faltar um dia ao cartrio!
Joo Eduardo ento lembrou-se que desde a vspera no tinha comido. Era talvez
a debilidade que o trouxera assim estonteado, to pronto a desanimar... Decidiuse logo - contente, depois das emoes e das fadigas da manh, de se estirar no
banco da taberna, diante dum prato cheio, na intimidade com um camarada de
dios iguais aos seus. Demais, os repeles que sofrera davam-lhe uma
necessidade, uma avidez de simpatia; e foi com calor que disse:
- Homem, valeu! Cais-me do cu! Este mundo uma choldra. Se no fosse por
alguma hora que se passa em amizade, caramba, no valia a pena andar por c! .
- Ento que h de novo pela capital, Sr. Gustavo? Como vai por l aquilo?
O tipgrafo deu imediatamente seriedade ao rosto: passou a mo pelos cabelos, e
deixou cair algumas frases enigmticas:
Tremidito... Muito pouca-vergonha em poltica... A classe operria comea a
mexer-se... Falta de unio, por ora... Est-se espera de ver como as coisas
correm em Espanha... H-de hav-las bonitas! Tudo depende de Espanha...
Mas o tio Osrio, que juntara alguns vintns e comprara uma fazenda, tinha
horror a tumultos... O que se queria no pas era paz... Sobretudo o que lhe
desagradava era contar-se com espanhis... De Espanha, deviam os cavalheiros
sab-lo, "nem bom vento nem bom casamento"!
- Os povos so todos irmos! exclamou Gustavo. Quando se tratar de atirar
abaixo Bourbons e imperadores, camarilhas e fidalguia, no h portugueses nem
espanhis, todos so irmos! Tudo fraternidade, tio Osrio!
- Pois ento beber-lhe sade, e beber-lhe rijo, que isso que faz andar o
negcio, disse o tio Osrio tranqilamente, rolando a sua obesidade para fora do
cubculo.
95
- Elefante! rosnou o tipgrafo, chocado com aquela indiferena pela Fraternidade
dos Povos. Que se podia esperar, de resto dum proprietrio e dum agente de
eleies?
Trauteou a Marselhesa, enchendo os copos do alto, e quis saber o que tinha feito
o amigo Joo Eduardo... J se no ia pelo Distrito? O raqutico dissera-lhe que no
havia despeg-lo da Rua da Misericrdia.
- E quando esse casamento, por fim? Joo Eduardo corou, disse vagamente:
- Nada decidido... Tem havido dificuldades. E acrescentou com um sorriso
desconsolado: - Temos tidos arrufos.
de clera, alando sobre o bico dos sapatos brancos a sua pessoa gordalhufa, e
gritando na voz de grilo - "Fora daqui, pedreiro-livre, fora daqui!"
- Ficava eu bem arranjado, disse Joo Eduardo muito srio, nem mulher, nem
po!
Isto fez lembrar tambm a Gustavo a clera provvel do doutor Godinho, dono da
tipografia. O doutor Godinho, que depois da reconciliao com a gente da Rua da
Misericrdia, retomara publicamente a sua considervel posio de pilar da Igreja
e esteio da F...
- o diabo, pode-nos sair caro, disse ele.
- impossvel! disse o escrevente.
Ento praguejaram de raiva. Perder uma ocasio daquelas para pr a calva
mostra ao clero!
O plano do folheto, como uma coluna tombada que parece maior, afigurava-selhes, agora que
estava derrubado, duma altura, duma importncia colossal. No era j a
demolio local dum proco celerado, era a runa, ao longe e ao largo, de todo o
clero, dos jesutas, do poder temporal, de outras coisas funestas... - Maldio! se
no fosse o Nunes, se no fosse o Godinho, se no fossem os nove mil-ris do
papel!
98
Aquele perptuo obstculo do pobre, falta de dinheiro e dependncia do patro,
que at para um folheto era estorvo, revoltou-os contra a sociedade.
- Positivamente necessrio uma revoluo, afirmou o tipgrafo. necessrio
arrasar tudo, tudo! - E o seu largo gesto sobre a mesa indicava, num formidvel
nivelamento social, uma demolio de igrejas, palcios, bancos, quartis, e
prdios de Godinhos ! - Outra do tinto, tio Osrio!...
Mas o tio Osrio no aparecia. Gustavo martelou a mesa a toda a fora com o cabo
da faca. E enfim, furioso, saiu fora ao contador "para arrebentar a pana quele
vendido que fazia assim esperar um cidado".
Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando com o baro de Via-Clara,
que, em vsperas de eleies, vinha pelas casas de pasto apertar a mo aos
compadres. E ali na taberna, parecia magnfico o baro, com a sua luneta de ouro,
os botins de verniz sobre o solo trreo, tossicando ao cheiro acre do azeite
fervido e das emanaes das borras de vinho.
Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao cubculo.
- Est com o baro, disse numa surdina respeitosa.
Mas vendo Joo Eduardo aniquilado, com a cabea entre os punhos, o tipgrafo
exortou-o a no
esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de casar com uma beata...
- No me pode vingar daquele maroto! interrompeu Joo Eduardo com um
repelo ao prato.
- No te aflijas, prometeu o tipgrafo com solenidade, que a vingana no vem
longe!
Fez-lhe ento, baixo, a confidncia "das coisas que se preparavam em Lisboa".
Tinham-lhe
afianado que havia um clube republicano a que at pertenciam figures - e que
era para ele uma garantia superior de triunfo. Alm disso, a rapaziada do trabalho
mexia-se... Ele mesmo - e murmurava quase contra a face de Joo Eduardo,
estirado sobre a mesa - fora falado para pertencer a uma seo da Internacional,
que devia organizar um espanhol de Madri; nunca vira o espanhol, que se
disfarava por causa da policia; e a coisa falhara porque o Comit tinha falta de
fundos... Mas era certo haver um homem, que possua um talho, que prometera
cem mil-ris... O exrcito, alm disso, estava na coisa: tinha visto numa reunio
um sujeito barrigudo que lhe tinham dito que era major, e que tinha cara de
major... - De modo que, com todos estes elementos, a opinio dele Gustavo, era
que dentro de meses, governo, rei, fidalgos, capitalistas, bispos, todos esses
monstros iam pelos ares!
a um litro de mais. o que ! Mas dos bons... Voc desculpe, tio Osrio. Que eu
respondo por ele... Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a mo ao tio
Osrio. O taberneiro declarou com nfase que no quisera insultar o cavalheiro.
Os shake-hands ento sucederam-se com veemncia. Para consolidar a
reconciliao, o tipgrafo pagou trs canas brancas. Joo Eduardo, por brio,
ofereceu tambm um giro de conhaque. E com os copos em fila sobre o balco,
trocavam boas palavras, tratavam-se de cavalheiros, - enquanto o borracho,
esquecido ao seu canto, derreado para cima da mesa, a cabea sobre os punhos e
o nariz sobre o litro, se babava silenciosamente, com o cachimbo cravado nos
dentes.
- Disto que eu gosto, dizia o tipgrafo a quem a aguardente aumentara a
ternura. Harmonia! C o meu fraco a harmonia! Harmonia entre a rapaziada e
entre a humanidade... O que eu queria era ver uma grande mesa, e toda a
humanidade sentada num banquete, e fogo preso, e chalaa, e decidirem-se as
questes sociais! E o dia no vem longe em que voc o h-de ver, tio Osrio!...
Em Lisboa as coisas vo- se preparando para isso. E o tio Osrio que h-de
fornecer o vinho... Hem, que negociozinho! Diga que no sou amigo!
- Obrigado, Sr. Gustavo, obrigado...
- Isto aqui entre ns, hem? Que somos todos cavalheiros! E c este - abraava
Joo Eduardo - como se fosse irmo! Entre ns pra vida e pra morte! E
mandar a tristeza ao diabo, rapazo! Toca a escrever o folheto... O Godinho, e o
Nunes...
- O Nunes racho-o! soltou com fora o escrevente, que, depois das sades com
cana, parecia mais sombrio.
Dois soldados entraram ento na taberna - e Gustavo julgou que eram horas de ir
para a tipografia. Seno, no se haviam de separar todo o dia, no se haviam de
separar toda a vida!... Mas o trabalho dever, o trabalho virtude!
Saram, enfim, depois de mais shake-hands com o tio Osrio. porta, Gustavo
jurou ainda ao escrevente uma lealdade de irmo; obrigou-o a aceitar a sua bolsa
Batia ento um quarto na torre, e o padre Silvrio parou a acertar o seu cebolo.
Depois os dois padres observaram maliciosamente a janela da administrao de
vidraas abertas, onde se via, no escuro, o vulto do senhor administrador de
binculo cravado para a casa do Teles alfaiate. E desceram enfim a escadaria da
S, rindo de ombro a ombro, divertidos com aquela paixo que escandalizava
Leiria.
Foi ento que o proco viu Joo Eduardo que estacara no meio do largo. Parou
para voltar S decerto, evitar o encontro; mas viu o porto fechado, e ia seguir
de olhos baixos, ao lado do bom Silvrio que tirava tranqilamente a sua caixa de
rap, - quando Joo Eduardo, arremessando-se, sem uma palavra, atirou a toda a
fora um murro no ombro de Amaro.
O proco, aturdido, ergueu frouxamente o guarda-chuva.
- Acudam! berrou logo o padre Silvrio, recuando de braos no ar. Acudam!
Da porta da administrao um homem correu, agarrou furiosamente o
escrevente pela gola:
- Est preso! rugia. Est preso!
- Acudam, acudam! berrava Silvrio a distncia.
Janelas no largo abriam-se pressa. A Amparo da botica, em saia branca,
apareceu varanda,
espavorida; o Carlos precipitara-se do laboratrio em chinelas; e o senhor
administrador, debruado na sacada, bracejava, com o binculo na mo.
Enfim o escrivo da administrao, o Domingos, compareceu, muito grave, de
mangas de lustrina enfiadas; e com o cabo de polcia levou logo para a
administrao o escrevente, que no resistia, todo plido...
O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor proco para a botica; fez
preparar, com estrpito, flor de laranja e ter; gritou pela esposa, para arranjar
uma cama... Queria examinar o ombro de sua senhoria: haveria intumescncia?
- Obrigado, no nada, dizia o proco muito branco. No nada. Foi um raspo.
Basta-me uma gota de gua...
Mas a Amparo, ainda muito trmula, enchendo outro clice ao senhor proco,
quis saber "os particulares, todos os particulares..."
- No h particulares, minha senhora, eu vinha aqui com o colega... Vnhamos
cavaqueando... O homem chegou-se a mim, e, como eu estava desprevenido,
deu-me um raspo no ombro.
- Mas por qu, por qu? exclamou a boa senhora, apertando as mos, num
assombro.
O Carlos ento deu a sua opinio. Ainda havia dias, ele dissera, diante da
Amparozinho e de D. Josefa, a irm do respeitvel cnego Dias, que estas idias
de materialismo e atesmo estavam levando a mocidade aos mais perniciosos
excessos... E mal sabia ele ento que estava profetizando!
- Vejam vossas senhorias este rapaz! Comea por esquecer todos os deveres de
cristo (assim no- lo afirmou D. Josefa), associa-se com bandidos, achincalha os
dogmas nos botequins... Depois (sigam vossas senhorias a progresso), no
contente com estes extravios, publica nos peridicos ataques abjetos contra a
religio... E enfim, possudo duma vertigem de atesmo, atira-se, diante mesmo
da catedral, sobre um sacerdote exemplar (no por vossa senhoria estar
presente) e tenta assassin-lo! Ora, pergunto eu, o que h no fundo de tudo isto?
dio, puro dio religio de nossos pais!
- Infelizmente assim , suspirou o padre Silvrio.
Mas a Amparo, indiferente s causas filosficas do delito, ardia na curiosidade de
saber o que se passaria na administrao, o que diria o escrevente, se o teriam
posto a ferros... O Carlos prontificou-se logo a ir averiguar.
De resto, disse ele, era o seu dever, como homem de cincia, esclarecer a justia
sobre as conseqncias que podia ter trazido um murro, fora de brao, na
regio delicada da clavcula... (ainda que, louvado Deus, no havia fratura, nem
inchao), e sobretudo queria revelar autoridade, para que ela tomasse as suas
providncias, que aquela tentativa de espancamento no provinha de vingana
Carlos depor... Ia depor, sim, mas no sobre o murro no ombro de sua senhoria.
Que importava o murro? O grave era o que estava por trs do murro - uma
conspirao contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a Propriedade! o que ele provaria
de alto ao senhor administrador. Este murro, ilustrssimo senhor, o primeiro
excesso duma grande revoluo social!
E empurrando o batente de baeta que dava acesso para a administrao do
concelho de Leiria, ficou um momento com a mo no ferrolho, enchendo o vo
da porta da pompa da sua pessoa. No, no havia o aparato judicial que ele
concebera. O ru l estava, sim, o pobre Joo Eduardo, mas sentado beira do
banco, com as orelhas em brasa, olhando estupidamente o soalho. Artur
Couceiro, embaraado
102
com a presena daquele ntimo dos seres da S. Joaneira, ali no assento dos
presos, para o no olhar fixara o nariz sobre o imenso copiador de ofcios, onde
desdobrara o Popular da vspera. O amanuense Pires, de sobrancelhas muito
erguidas e muito srias, embebia-se na ponta da pena de pato que aparava sobre
a unha. O escrivo Domingos, esse sim, vibrava de atividade! O seu lpis
rascunhava com furor; o processo estava-se decerto apressando; era tempo de
trazer a sua idia... E o Carlos ento adiantando-se:
- Meus senhores! O senhor administrador?
Justamente, a voz de sua excelncia chamou de dentro do seu gabinete:
- Sr. Domingos?
O escrivo perfilou-se, puxando os culos para a testa.
- Senhor administrador!
- O senhor tem fsforos?
O Domingos procurou ansiosamente pela algibeira, na gaveta, entre os papis...
- Algum dos senhores tem fsforos?
Houve um rebuscar de mos sobre a mesa... No, no havia fsforos.
- Sr. Carlos, o senhor tem fsforos?
- No tenho, Sr. Domingos. Sinto.
103
c cedilhado! Que se podia de resto esperar duma autoridade que passava as
manhs de binculo a desonrar uma famlia? Pobre Teles, seu vizinho, seu
amigo!... No, realmente devia falar ao Teles!
Mas a sua indignao cresceu, quando viu o Artur Couceiro, um empregado da
repartio, na ausncia do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha, vir
familiarmente junto do ru, dizer-lhe com melancolia:
- Ah, Joo, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja- se, vers!
Joo tinha encolhido tristemente os ombros. Havia meia hora que ali estava,
sentado beira daquele banco, sem se mexer, sem despregar os olhos do soalho,
sentindo-se interiormente to vazio de idias, como se lhe tivessem tirado os
miolos. Todo o vinho, que na taberna do Osrio e no Largo da S lhe acendia na
alma fogachos de clera, lhe retesava os pulsos num desejo de desordem, parecia
subitamente eliminado do seu organismo. Sentia-se agora to inofensivo como
quando no cartrio aparava cautelosamente a sua pena de pato. Um grande
cansao entorpecia-o; e ali esperava, sobre o banco, numa inrcia de todo o seu
ser, pensando estupidamente que ia viver para uma enxovia em S. Francisco,
dormir numa palhoa, comer da Misericrdia... No tornaria a passear na
alameda, no veria mais Amlia... A casita em que vivia seria alugada a outro...
Quem tomaria conta do seu canrio? Pobre animalzinho, ia morrer de fome,
decerto... A no ser que a Eugnia, a vizinha, o recolhesse...
O Domingos de repente saiu do gabinete de sua excelncia, e fechando
vivamente a porta sobre si, em triunfo:
- Que lhes dizia eu? Composio! Arranjou-se tudo!
E para Joo Eduardo:
- Seu felizo! Parabns! parabns!
O Carlos pensou que aquele era o maior escndalo administrativo desde o tempo
dos Cabrais! E
ia retirar-se enojado (como no quadro clssico o Estico que se afasta duma orgia
Patrcia) quando o senhor administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos se
ergueram.
Sua excelncia deu dois passos na repartio, e revestido de gravidade,
destilando as palavras, com as lunetas cravadas no ru:
- O Sr, padre Amaro, que um sacerdote todo caridade e bondade, veio-me
expor... Enfim, veio- me suplicar que no desse mais andamento a este
negcio... Sua senhoria com razo no quer ver o seu nome arrastado nos
tribunais. Alm disso, como sua senhoria disse muito bem, a religio, de que ele
... de que ele , posso diz-lo, a honra e o modelo, impe- lhe o perdo da
ofensa... Sua excelncia reconhece que o ataque foi brutal, mas frustrado... Alm
disso parece que o senhor estava bbedo...
Todos os olhos se fixaram em Joo Eduardo, que se fez escarlate. Aquilo pareceulhe nesse momento pior que a priso.
- Enfim, continuou o administrador, por altas consideraes que eu pesei
devidamente, tomo a responsabilidade de o soltar. Veja agora como se porta. A
autoridade no o perde de olho... Bem, pode ir com Deus!
E sua excelncia recolheu-se ao gabinete. Joo Eduardo ficou imvel, como
parvo.
- Posso ir, hem? balbuciou.
- Para a China, para onde quiser! Liberus, libera, liberum! exclamou o Domingos
que,
interiormente detestando padres, jubilava com aquele final.
Joo Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo Carlos;
duas lgrimas bailavam- lhe nas plpebras; de repente agarrou o chapu e
abalou.
- Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos, esfregando vivamente as
mos.
Imediatamente a papelada foi arrumada, aqui e alm, pressa. que era tarde! O
Pires recolhia as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha de vento. O Artur
enrolou os seus papis de msica. E no vo da janela, amuado, esperando ainda, o
Carlos olhava sombriamente o largo.
Enfim os dois padres saram acompanhados at porta pelo senhor
administrador, que, terminados os deveres pblicos, reaparecia homem de
sociedade. - Ento por que no tinha o amigo Silvrio vindo a casa da baronesa de
Via-Clara? Houvera um voltarete furibundo. O Peixoto levara dois codilhos.
Tinha dito blasfmias medonhas!... Criado de suas excelncias. Estimava bem
que tudo se tivesse harmonizado. Cuidado com o degrau... s ordens de suas
excelncias...
Ao voltar porm ao seu gabinete dignou-se parar diante da mesa do Domingos, e
retomando alguma solenidade:
- A coisa passou-se bem. um bocado irregular, mas sensata! Bem basta j os
ataques que h contra o clero nos jornais... A coisa podia fazer barulho. O rapaz
era capaz de dizer que tinham sido cimes do padre, que queria desinquietar a
rapariga, etc. mais prudente abafar a coisa. Quanto mais que, segundo o proco
me provou, toda a influncia que ele tem exercido. na Rua da Misericrdia ou
onde diabo , tem tido por fim livrar a rapariga de casar com aquele amigo, que,
como se v, um bbedo e uma fera!
104
O Carlos roa-se. Todas aquelas explicaes eram dadas ao Domingos! A ele,
nada! Ali ficava, esquecido no vo da janela!
Mas no! Sua excelncia, de dentro do seu gabinete, chamou-o misteriosamente
com o dedo. Enfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado com a
autoridade.
- Eu estava para passar pela botica - disse-lhe o administrador baixo e sem
transio, dando-lhe
Carlos exclamou:
- um frasco de xarope de Gibert para o senhor administrador! A tem a receita,
Sr. Augusto. Amparo, que, com alguma prtica de farmcia, conhecia os
benefcios do mercrio, fez-se to
escarlate como as fitas flamejantes que lhe enfeitavam a cuia.
Toda essa tarde se falou com excitao pela cidade da "tentativa de assassinato de
que estivera para ser vitima o senhor proco". Algumas pessoas censuravam o
administrador por no ter procedido: os cavalheiros da oposio sobretudo, que
viram na debilidade daquele funcionrio uma prova incontestvel de que o
governo ia, com os seus desperdcios e as suas corrupes, levando o pas a um
abismo!
Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que
mansido! O senhor chantre mandou-o chamar noitinha, recebeu-o
paternalmente com um "viva o meu cordeiro pascal!". E depois de escutar a
histria do insulto, a generosa interveno...
- Filho, exclamou, isso aliar a mocidade de Telmaco prudncia de Mentor!
Padre Amaro, voc era digno de ser sacerdote de Minerva na cidade de Salento!
Quando Amaro entrou noite em casa da S. Joaneira - foi como a apario dum
santo escapo s feras do Circo ou plebe de Diocleciano! Amlia, sem disfarar a
sua exaltao, apertou-lhe ambas as mos, muito tempo, toda trmula, com os
olhos midos. Deram-lhe, como nos grandes dias, a poltrona verde do cnego. A
Sra. D. Maria da Assuno quis mesmo que se lhe pusesse uma almofada para ele
apoiar o ombro dorido. Depois, teve de contar miudamente toda a cena, desde o
momento em que, conversando com o colega Silvrio (que se portara muito
bem), avistara o escrevente no meio do largo, de bengalo alado e ar de matamouros...
E a exultao foi grande quando Artur Couceiro, aparecendo, deu logo da porta a
novidade, a ltima: o Nunes mandara chamar o Joo Eduardo e dissera-lhe
(palavras textuais): "Eu, bandidos e malfeitores no os quero no meu cartrio.
Rua!"
A S. Joaneira ento comoveu-se:
- Pobre rapaz, fica sem ter que comer... ,
- Que beba! que beba! gritou a Sra. D. Maria da Assuno.
Todos riram. S Amlia, curvada sobre a sua costura, se fizera muito plida,
aterrada quela
idia que Joo Eduardo teria talvez fome...
- Pois olhem, no acho caso para rir! disse a S. Joaneira. at coisa que me vai
tirar o sono..,
Pensar que o rapaz h-de querer um bocado de po e no o h-de ter... Credo!
No, isso no! E o Sr. padre Amaro desculpe...
Mas Amaro tambm no desejava que o rapaz casse em misria! No era homem
de rancor, ele! E se o escrevente viesse sua porta, com necessidade, duas ou
trs placas (no era rico, no podia mais), mas trs ou quatro placas dava-lhas...
Dava-lhas de corao.
Tanta santidade fanatizou as velhas. Que anjo! Olhavam-no, babosas, com as
mos vagamente postas. A sua presena, como a dum S. Vicente de Paula,
exalando caridade, dava sala uma suavidade de capela: e a Sra. D, Maria da
Assuno suspirou de gozo devoto.
Mas Natrio apareceu, radiante. Deu grandes apertos de mos em redor, rompeu
em triunfo:
- Ento j sabem? O patife, o assassino, escorraado de toda a parte como um
co! O Nunes expulsou-o do cartrio. O doutor Godinho disse-me agora que no
governo civil no punha ele os ps. Enterrado, demolido! um alvio para a gente
de bem!
Ele ento, tomando logo o ar pedaggico que lhe voltava dos seus antigos hbitos
do seminrio
sempre que se tratava de doutrina, declarou que o colega Natrio tinha razo.
Quem espanca um sacerdote, sabendo que um sacerdote, est ipso facto
excomungado. doutrina assente. o que se chama a excomunho latente; no
necessita a declarao do pontfice ou do bispo, nem o cerimonial, para ser
vlida, e para que todos os fiis considerem o ofensor como excomungado.
Devem-no tratar portanto como tal... Evit-lo a ele, e ao que lhe pertence... E
este caso de pr mos sacrlegas num sacerdote era to especial, continuava o
cnego num tom profundo, que a bula do papa Martinho V, limitando os casos de
excomunho tcita, conserva-a todavia para o que maltrata um sacerdote... Citou ainda mais bulas, as constituies de Inocncio IX e de Alexandre VII, a
Constituio Apostlica, outras legislaes temerosas; rosnou latins, aterrou as
senhoras.
- Esta a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor no se fazer
disso espalhafato...
D. Josefa Dias acudiu logo:
- Mas ns que no podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das
mesas coisas excomungadas.
- destruir! exclamou D. Maria da Assuno. queimar, queimar!
D. Joaquina Gansoso arrastara Amlia para o vo da janela, perguntando-lhe se
tinha outros objetos pertencentes ao homem. Amlia, atarantada, confessou que
tinhas algures, no sabia onde, um leno, uma luva desirmanada, e uma
cigarreira de palhinha.
107
- para o fogo, para o fogo! gritava a Gansoso excitada.
A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo.
D. Josefa Dias, D. Maria da Assuno falavam com gozo do fogo, enchendo a boca
A essa hora Joo Eduardo, o mpio, no seu quarto, sentado aos ps da cama,
soluava, com a face banhada em lgrimas, pensando em Amlia, nos bons
seres da Rua da Misericrdia, na cidade para onde iria, na roupa que empenharia
e perguntando em vo a si mesmo por que o tratavam assim, ele que era to
trabalhador, que no queria mal a ningum, e que a adorava tanto, a ela.
XV
No domingo seguinte havia missa cantada na S, e a S. Joaneira e Amlia
atravessaram a Praa para ir buscar D. Maria da Assuno, que em dias de
mercado e de "populacho" nunca saia s, receosa que lhe roubassem as jias ou
lhe insultassem a castidade.
108
Nessa manh, com efeito, a afluncia das freguesias enchia a Praa: os homens
em grupo, atravancando a rua, muito srios, muito barbeados, de jaqueta ao
ombro; as mulheres aos pares, com uma fortuna de grilhes e de coraes de
ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se por trs dos
balces alastrados de lenaria e de chitas; nas tabernas apinhadas gralhava-se
alto; pelo mercado, entre os sacos de farinha, os montes de loua, os cestos de
broa, ia um regatear sem fim; havia multido ao p das tendas onde reluzem os
espelhinhos redondos e trasbordam os molhos de rosrios; velhas faziam prego
por trs dos seus tabuleiros de cavacas; e os pobres, afreguesados cidade,
choramigavam Padre-Nossos pelas esquinas.
J senhoras passavam para a missa, todas em sedas, de rostinho sisudo; e a
Arcada estava cheia de cavalheiros, tesos nos seus fatos de casimira nova,
fumando caro, gozando o domingo.
Amlia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo alto
dum grupo: Ai, que me leva o corao! E as duas senhoras, apressando-se,
dobravam para a Rua do Correio, quando lhes apareceu o Libaninho de luvas
pretas e cravo ao peito. No as tinha visto desde "o desacato do Largo da S", e
rompeu logo em exclamaes. Ai, filhas, que desgosto aquele! O malvado do
escrevente! Ele tinha tido tanto que fazer, que s nessa manh que pudera ir ao
senhor proco dar-lhe os sentimentos; o santinho recebera-o muito bem,
estava-se a vestir; ele quis ver-lhe o brao e felizmente, louvores a Deus, nem
uma pisadura... E se elas vissem, que carnadura to delicada, que pele to
branca... Uma pelinha de arcanjo !
- Mas querem vocs saber, filhas? Encontrei-o numa grande aflio!
As duas senhoras assustaram-se. Por qu, Libaninho?
A criada, a Vicncia, que havia dias se queixava, tinha ido nessa madrugada para
o hospital com
um febro...
- E ali est o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vocs! Para hoje bem, que
vai jantar com
o nosso cnego (tambm l estive, ai, que santo!), mas amanh, mas depois? Que
ele j tem em casa a irm da Vicncia, a Dionsia... Mas, oh, filhas, a Dionsia! Foi
o que eu lhe disse: a Dionsia pode ser uma santa, mas que reputao!... que
no h pior em Leiria... Uma perdida que no pe os ps na igreja... Tenho a
certeza que o senhor chantre at havia de reprovar!
As duas senhoras concordaram logo que a Dionsia (mulher que no cumpria os
preceitos, que representara em teatros de curiosos) no convinha ao senhor
proco...
- Olha, S. Joaneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu l lho disse, l
lhe fiz a proposta. ferrar-se outra vez em sua casa. Que onde est bem, com
gente que o acarinha, que lhe trata da roupa, que lhe sabe os gostos, e onde tudo
virtude! Ele no disse que no, nem que sim. Mas olha que se lhe podia ler na
cara que est a morrer por isso... Tu que lhe devias falar S. Joaneirinha!
Amlia fizera-se to escarlate como a sua gravata de seda da ndia. E a S. Joaneira
disse ambiguamente:
- Falar-lhe, no... Eu nessas coisas sou muito delicada... Bem compreendes...
- Era como teres um santo de portas adentro, filha! disse com calor o Libaninho.
Lembra-te disso! E era um gosto para todos... Tenho a certeza que at Nosso
Senhor se havia de alegrar... E agora adeus, pequenas, que vou de fugida. No vos
demoreis, que est a missinha a cair.
As duas senhoras continuaram caladas at casa de D. Maria da Assuno.
Nenhuma queria arriscar primeiro uma palavra sobre aquela possibilidade to
inesperada, to grave, do senhor proco voltar para a Rua da Misericrdia! Foi s
quando pararam que a S. Joaneira disse, ao puxar a campainha:
- Ai, o senhor proco realmente no pode ter a Dionsia de portas adentro..,
- Credo, at causa horror!
Foi tambm a expresso da Sra. D. Maria da Assuno quando lhe contaram, em
cima, a doena
da Vicncia e a instalao da Dionsia: causava horror!
- Que eu no a conheo, disse a excelente senhora. E tenho at vontade de a
conhecer. Que me
dizem que dos ps cabea uma crosta de pecado!
A S. Joaneira ento falou da "proposta do Libaninho". D. Maria da Assuno
declarou logo com
ardor que era uma inspirao de Nosso Senhor. Que nunca o senhor proco devia
ter sado da Rua da Misericrdia! At parece que mal ele se fora embora, Deus
retirara a sua graa da casa... No houvera seno desgostos - o Comunicado, a dor
de estmago do cnego, a morte da entrevadinha, aquele desgraado casamento
(que estivera por um triz, que horror!), o escndalo do Largo da S... A casa tinha
parecido enguiada!... E era at pecado deixar viver o santinho naquele
desarranjo, com a suja da Vicncia, que nem lhe sabia dar uma passagem nas
meias!
- Em parte nenhuma pode estar melhor que em tua casa... Tem tudo o que
necessita, de portas adentro... E para ti uma honra, estar em graa. Olha,
filha, se eu no fosse s, sempre o digo, quem o hospedava era eu! Que aqui que
ele estava bem... Que salinha para ele, hem?
Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as suas preciosidades.
109
A sala com efeito era toda ela uma imensa armazenagem de santaria e de bric-brac devoto; sobre as duas cmodas de pau-preto com fechaduras de cobre
apinhavam-se, sobre redomas, em peanhas, as Nossas Senhoras vestidas de seda
azul, os Meninos Jesus frisados com o ventrezinho gordo e a mo abenoadora,
os Santos Antnios no seu burel, os S. Sebasties bem frechados, os S. Joss
barbudos. Havia santos exticos, que eram o seu orgulho, que lhe fabricavam em
Alcobaa - S. Pascoal Bailo, S. Didcio, S. Crisolo, S. Gorislano... Depois eram os
bentinhos, os rosrios de metal e de caroos de azeitonas, contas de cores,
rendas amarelas de antigas alvas, coraes de vidro escarlate, almofadinhas com
J. M, entrelaados a mianga, ramos bentos, palmas de mrtires, cartuchinhos de
incenso. As paredes desapareciam forradas de estampas de Virgens de todas as
devoes, - equilibradas sobre o orbe, enrodilhadas aos ps da cruz, traspassadas
de espadas. Coraes de onde gotejava sangue, coraes de onde saia uma
fogueira, coraes de onde dardejavam raios; oraes encaixilhadas para as festas
particularmente amadas - o Casamento de Nossa Senhora, a Inveno da Santa
Cruz, os Estigmas de S. Francisco, sobretudo o Parto da Santa Virgem, a mais
devota, que vem pelas quatro tmporas. Sobre as mesas lamparinas acesas, para
serem colocadas sem demora aos santos especiais, quando a boa senhora tivesse
a sua citica, ou que o catarro se assanhasse, ou lhe viessem as cibras. Ela
mesma, s ela, arrumava, espanejava, lustrava toda aquela santa populao
celeste, aquele arsenal beato, que era apenas suficiente para a salvao da sua
alma e o alvio dos seus achaques. O seu grande cuidado era a colocao dos
santos; alterava-a constantemente, porque s vezes, por exemplo, sentia que
Santo Eleutrio no gostava de estar ao p de S. Justino, e ia ento pendur-lo a
distncia, numa companhia mais simptica ao santo. E distinguia-os (segundo os
preceitos do ritual que o confessor lhe explicava), dando-lhes uma devoo
graduada, e no tendo por S. Jos de segunda classe o respeito que sentia por S.
Jos de primeira classe. Aquela riqueza era a inveja das amigas, a edificao dos
curiosos, e fazia sempre dizer ao Libaninho quando a vinha visitar, abrangendo a
sala num olhar langoroso: - Ai, filha, o reininho dos Cus!
- No verdade, continuava a excelente senhora radiante, que ele aqui que
estava bem, o santinho do proco? como ter o Cu debaixo da mo!
As duas senhoras concordaram. Ela podia ter a sua casa arranjada com devoo,
ela que era rica...
- No o nego, tenho aqui empregadinhos alguns centos de mil-ris. Sem contar o
que est no relicrio...
Ah, o famoso relicrio de sndalo forrado de cetim! Tinha l uma lascazinha da
verdadeira Cruz, um bocado quebrado do espinho da Coroa, um farrapinho do
cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se com azedume, entre as devotas, que
coisas to preciosas, de origem divina, deviam estar no sacrrio da S. D. Maria
da Assuno temendo que o senhor chantre soubesse daquele tesouro serfico,
s o mostrava s ntimas, misteriosamente. E o santo sacerdote, Que lho
obtivera, fizera-a jurar sobre o Evangelho de no revelar a procedncia "para
evitar falatrios".
A S. Joaneira, como sempre, admirou sobretudo o farrapinho do cueiro.
- Que relquia, que relquia! murmurava.
E D. Maria da Assuno muito baixo:
- No h melhor. Trinta mil-ris me custou... Mas dava sessenta, mas dava cem!
mas dava tudo!
- E babando-se toda, diante do trapinho precioso: - O cueirinho! dizia Quase a
chorar. Meu rico Menino, o seu cueirinho...
Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o relicrio no gaveto.
Mas o meio-dia ia bater - e as trs senhoras apressaram-se para a S, para pilhar
lugar no altar- mor.
- Voc no deixa de ter razo... Eu fui para o ouvir... Faz-me honra c o discpulo,
acrescentou piscando o olho a Amlia. Pois beber, beber! E depois salta o
cafezinho bem quente, mana Josefa!
Mas um forte repique campainha sobressaltou-os.
- a S. Joaneira, disse D. Josefa.
A Gertrudes entrou com um xale e uma manta de l:
- Aqui est isto que vem de casa da menina Amlia. A senhora manda muitos
recados, que no
pode vir, que se achou incomodada.
- Ento com quem hei-de eu ir? disse logo Amlia, inquieta.
O cnego estendeu o brao sobre a mesa, e dando-lhe uma palmadinha na mo:
- Em ltimo caso com este seu criado. E essa virtudezinha podia ir sossegada...
- Tem coisas, mano! gritou a velha.
- Deixa l, mana. O que passa pela boca dum santo, santo fica.
O proco aprovou ruidosamente:
- Tem muita razo o senhor cnego Dias! O que passa pela boca de um santo,
santo fica! Para
que viva!
- sua!
E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados da controvrsia. Mas
Amlia ficara assustada.
- Jesus, que ter a mam? Que ser?
- Ora que h-de ser? preguia! disse-lhe o proco, rindo.
- No te agonies, filha, disse D. Josefa. Vou-te eu levar, vamos todos levar-te...
- Vai a menina em charola, rosnou o cnego descascando a sua pra.
Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos em redor, e passando a mo
pelo estmago:
- Pois olhem, disse, no me estou tambm a sentir bem...
- Que ? que ?
- Um ameaozito da dor. Passou, no vale nada.
D. Josefa, j assustada, no queria que ele comesse a pra. Que a ltima vez que
lhe dera fora por
causa da fruta...
Mas ele, obstinado, cravou os dentes na pra. - Passou, passou, rosnava.
113
- Foi simpatia com a mam, disse o proco baixo a Amlia.
De repente o cnego afastou a cadeira, e torcendo-se de lado:
- No estou bem, no estou bem! Jesus! Oh, diabo! Oh, caramba! Ai! ai! morro!
Alvoroaram-se em volta dele. D. Josefa amparou-o pelo brao at o quarto,
gritando criada
que fosse buscar o doutor. Amlia correu cozinha a aquecer uma flanela para lhe
pr no estmago. Mas no aparecia flanela. Gertrudes topava contra as cadeiras,
espavorida, procura do seu xale para sair.
- V sem xale, sua estpida! gritou-lhe Amaro.
A rapariga abalou. Dentro o cnego dava urros.
Amaro ento, realmente assustado, entrou-lhe no quarto. D. Josefa de joelhos
diante da cmoda
gemia oraes a uma grande litografia de Nossa Senhora das Dores; e o pobre
padre-mestre, estirado de barriga sobre a cama, rilhava o travesseiro.
- Mas minha senhora, disse o proco severamente, no se trata agora de rezar.
necessrio fazer- lhe alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
- Ai, senhor proco, no h nada, no h nada, choramigou a velha. uma dor
que vem e vai num momento. No d tempo pra nada! Um ch de tlia alivia-o s
vezes... Mas por desgraa hoje nem tlia tenho! Ai, Jesus!
Amaro correu a casa a buscar tlia. E dai a pouco voltava esbaforido com a
Dionsia, que vinha oferecer a sua atividade e a sua experincia.
Mas o senhor cnego, felizmente, sentira-se de repente aliviado!
- Muito agradecida, senhor proco, dizia D. Josefa. Rica tlia! de muita caridade.
Ele agora naturalmente cai em sonolncia. Vem-lhe sempre depois da dor... Eu
vou para ao p dele, desculpem- me... Esta foi pior que as outras... So estas
frutas mald... - reteve a blasfmia, aterrada. - So as frutas de Nosso Senhor. a
sua divina vontade... Desculpem- me, sim?
Amlia e o proco ficaram ss na sala. Os seus olhares reluziram logo do desejo
de se tocar, de se beijar, mas as portas estavam abertas; e sentiam no quarto ao
lado, as chinelas da velha. O padre Amaro disse ento alto:
- Pobre padre-mestre! uma dor terrvel.
- D-lhe todos os trs meses, disse Amlia. A mam j andava com o
pressentimento. Ainda me tinha dito antes de ontem: o tempo da dor do
senhor cnego, estou com mais cuidado...
O proco suspirou, e baixinho:
- Eu que no tenho quem pense nas minhas dores...
Amlia pousou nele longamente os seus belos olhos umedecidos de ternura.
As suas mos iam apertar-se ardentemente por sobre a mesa; mas D. Josefa
apareceu, encolhida
no seu xale. O mano tinha adormecido. E ela estava que no se podia ter nas
pernas. Ai, aqueles abalos arrasavam-lhe a sade! Acendera duas velas a S.
Joaquim, e fizera uma promessa a Nossa Senhora da Sade. Era a segunda aquele
ano, por causa da dor do mano. E Nossa Senhora no lhe tinha faltado...
- Nunca falta a quem a implora com f, minha senhora, disse com uno o padre
Amaro.
O alto relgio de armrio bateu ento cavamente oito horas. Amlia falou outra
vez no cuidado em que estava pela mam... De mais a mais ia- se a fazer to
tarde...
- E que quando eu sai estava a chuviscar, disse Amaro.
- que agora cai a cntaros, disse Amaro. Realmente parece-me que o melhor
entrar no ptio
de minha casa e esperar um bocado... - No, no! acudiu Amlia.
- Tolices! exclamou ele impaciente. Vai-se-lhe estragar o vestido... um
instante, um aguaceiro. Para aquele lado, v, est a aliviar. Vai passar... uma
tolice... A mam, se a visse aparecer debaixo duma carga de gua, zangava-se, e
com razo!
- No, no!
Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, empurrando Amlia de levei
- um instante, vai passar, entre...
E ali ficaram, calados, no ptio escuro, olhando as cordas de gua que reluziam
luz do
candeeiro defronte. Amlia estava toda atarantada. A negrura do ptio e o
silncio assustavam-na; mas parecia-lhe delicioso estar assim naquela
escurido, ao p dele, ignorada de todos... Insensivelmente atrada, roava-selhe pelo ombro; e recuava logo, inquieta de ouvir a sua respirao to agitada, de
o sentir to junto das saias. Percebia por trs, sem a ver, a escada que levava ao
quarto dele; e tinha um desejo imenso de lhe ir ver, acima, os seus mveis, os
seus arranjos... A presena da Dionsia, encolhida contra a porta e muito calada,
embaraava-a; todavia a cada momento voltava os olhos para ela, receando que
desaparecesse, se sumisse na negrura do ptio ou da noite...
Amaro ento comeou a bater com os ps no cho, a esfregar as mos, arrepiado.
- Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lajes esto regeladas. Realmente era
melhor esperar em cima na sala de jantar...
- No, no! disse ela.
- Pieguices! At a mam se havia de zangar... V, Dionsia, acenda luz em cima.
A matrona imediatamente galgou os degraus.
Ele ento, muito baixo, tomando o brao de Amlia:
- Por que no? Que pensas tu? uma pieguice. enquanto no passa o aguaceiro.
Dize...
Ela no respondia, respirando muito forte. Amaro pousou-lhe a mo sobre o
ombro, sobre o
peito, apertando-lho, acariciando a seda. Toda ela estremeceu. E foi-o enfim
seguindo pela escada, como tonta, com as orelhas a arder, tropeando a cada
degrau na roda do vestido.
- Entra para a, o quarto, disse-lhe ao ouvido.
Correu cozinha. Dionsia acendia a vela.
- Minha Dionsia, tu percebes... Eu fiquei de confessar aqui a menina Amlia.
um caso muito
srio... Volta daqui a meia hora. Toma! meteu-lhe trs placas na mo.
A Dionsia descalou os sapatos, desceu em pontas de ps e fechou- se na loja do
carvo.
Ele voltou ao quarto com a luz. Amlia l estava, imvel, toda plida. O proco
fechou a porta e foi para ela, calado, com os dentes cerrados, soprando como um touro.
Meia hora depois Dionsia tossiu na escada. Amlia desceu logo, muito
embrulhada na manta: ao abrirem a porta do ptio passavam na rua dois
borrachos galrando: Amlia recuou rapidamente para o escuro. Mas Dionsia da a
pouco espreitou; e vendo a rua deserta:
- Est a barra livre, minha rica menina...
Amlia embrulhou mais o rosto e apressaram o passo para a Rua da Misericrdia.
J no chovia; havia estrelas; e uma frialdade seca anunciava o Norte e o bom
tempo.
XVI
Ao outro dia Amaro, vendo no relgio que tinha cabeceira que ia chegando a
hora da missa, saltou alegremente da cama. E, enfiando o velho palet que lhe
servia de robe-de-chambre, pensava nessa outra manh em Feiro em que
acordara aterrado, por ter na vspera, pela primeira vez depois de padre, pecado
brutalmente sobre a palha da estrebaria da residncia com a Joana Vaqueira. E
no se atrevera a
115
dizer missa com aquele crime na alma, que o abafava com um peso de penedo.
Considerara-se contaminado, imundo, maduro para o inferno, segundo todos os
santos padres e o serfico concilio de Trento. Trs vezes chegara porta da igreja,
trs vezes recuara assombrado. Tinha a certeza de que, se ousasse tocar na
Eucaristia com aquelas mos com que repanhara os saiotes da Vaqueira, a capela
se aluiria sobre ele, ou ficaria paralisado vendo erguer-se diante do sacrrio, de
espada alta, a figura rutilante de S. Miguel Vingador! Montara a cavalo e trotara
duas horas, pelos barreiros de D. Joo, para ir Gralheira confessar-se ao bom
abade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de inocncia, de exageraes piedosas
e de terrores novios! Agora tinha aberto os olhos em redor realidade humana.
Abades, cnegos, cardeais e monsenhores no pecavam sobre a palha da
estrebaria, no - era em alcovas cmodas, com a ceia ao lado. E as igrejas no se
aluam, e S. Miguel Vingador no abandonava por to pouco os confortos do Cu!
No era isso o que o inquietava - o que o inquietava era a Dionsia, que ele ouvia
na cozinha, arrumando e tossicando, sem se atrever a pedir- lhe gua para a
barba. Desagradava-lhe sentir aquela matrona introduzida, instalada no seu
segredo. No duvidava decerto da sua discrio, era o seu ofcio; e algumas meias
libras manteriam a sua fidelidade. Mas repugnava ao seu pudor de padre saber
que aquela velha concubina de autoridades civis e militares, que rolara a sua
massa de gordura por todas as torpezas seculares da cidade, conhecia as suas
fragilidades, as concupiscncias que lhe ardiam sob a batina de proco. Preferiria
que fosse o Silvrio ou Natrio que o tivesse visto na vspera, todo inflamado:
era entre sacerdotes, ao menos!... E o que o incomodava era a idia de ser
observado por aqueles olhinhos cnicos, que no se impressionavam nem com
- Bem; e agora, Dionsia, que lhe parece? perguntou ele, recostado na cadeira,
esperando os
conselhos da matrona.
Ela disse, muito naturalmente, sem afetao de mistrio ou de malcia:
- A mim parece-me que para ver a pequena no h como a casa do sineiro!
- A casa do sineiro?
Ela recordou-lhe, muito tranqilamente, a excelente disposio do stio?. Um
dos quartos ao p
da sacristia, como ele sabia, dava para um ptio onde se tinha feito um barraco
no tempo das obras. Pois bem, justamente do outro lado eram as traseiras da casa
do sineiro... A porta , da cozinha do tio Esguelhas abria para o ptio: era sair da
sacristia, atravess-lo, e o senhor proco estava no ninho!
- E ela?
- Ela entra pela porta do sineiro, pela porta da rua que d para o adro. No passa
viva alma, um ermo. E se algum visse, nada mais natural, era a menina Amlia
que ia dar um recado ao sineiro... Isto, j se v, ainda pelo alto, que o plano
pode-se aperfeioar...
- Sim, compreendo, um esboo, disse Amaro que passeava pelo quarto
refletindo.
- Eu conheo bem o stio, senhor proco, e creia o que lhe digo: para um senhor
eclesistico que tem o seu arranjinho, no h melhor que a casa do sineiro!
Amaro parou diante dela, rindo, familiarizando-se:
116
- tia Dionsia, diga l com franqueza: no a primeira vez que voc aconselha a
casa do sineiro, hem?
Ela ento negou, muito decisivamente. Era homem que nem conhecia, o tio
Esguelhas! Mas tinha-lhe vindo aquela idia de noite, a malucar na cama. Pela
manh cedo fora examinar o stio, e reconhecera que estava a calhar.
Tossicou, foi-se aproximando sem rudo da porta: e voltando-se ainda, com um
ltimo conselho: - Tudo est em que vossa senhoria se entenda bem com o
sineiro.
Laudo deum, populum voco, congrego clerum, Defunctum ploro, pestem fugo,
festa decoro...
O que quer dizer, como sabem: Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o clero,
choro os mortos, afugento as pestes, alegro as festas.
117
Citava a glosa com respeito, j revestido de amito e alva, no meio da sacristia; e o
tio Esguelhas empertigava-se sobre a sua muleta quelas palavras que lhe davam
uma autoridade e uma importncia imprevista.
O sacristo tinha-se aproximado com a casula roxa. Mas Amaro no terminara a
glorificao dos sinos; - explicou ainda a sua grande virtude em dissipar as
tempestades (apesar do que dizem alguns sbios presunosos), no s porque
comunicam ao ar a uno que recebem da bno, mas porque dispersam os
demnios que erram entre os vendavais e os troves. O santo conclio de Milo
recomenda que se toquem os sinos sempre que haja tormenta...
- Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou sorrindo com solicitude pelo
sineiro, aconselho-lhe que nesses casos melhor no se arriscar. Sempre estar
no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso, tio Matias.
E recebeu sobre os ombros a casula, murmurando com muita compostura:
- Domine, qui dixisti jugum meum... Aperte mais os cordes por trs, tio Matias.
Suave est, et onus meum leve...
Fez uma cortesia imagem e entrou na igreja, na atitude da rubrica, de olhos
baixos e corpo direito; enquanto o Matias, depois de ter tambm saudado com
um raspo de p o Cristo da sacristia, se apressava com as galhetas, tossindo
forte para clarear a garganta.
Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave, no Ofertrio e ao Orate, fratres, o
padre Amaro dirigia-se sempre (por uma benevolncia que o ritual permite) para
o sineiro, como se o Sacrifcio fosse por sua inteno particular; - e o tio
Esguelhas, com a sua muleta pousada ao lado, abismava-se ento numa devoo
mais respeitosa. Mesmo ao Benedicat, depois de ter comeado a bno voltado
para o altar para recolher do Deus vivo o depsito da Misericrdia, terminou-a,
virando-se devagar para o tio Esguelhas especialmente, como para lhe dar a ele
s as Graas e Dons de Nosso Senhor!
- E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar na sacristia, v-me esperar ao
ptio que temos que conversar.
No tardou a vir ter com ele, com uma face grave que impressionou o sineiro.
- Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho falar-lhe dum caso srio...
Verdadeiramente pedir-lhe um favor...
- Oh, senhor proco!
No, no era um favor... Porque, quando se tratava do servio de Deus, todos
tinham o dever de concorrer na proporo das suas foras... Tratava-se duma
menina que se queria fazer freira. Enfim, para lhe provar a confiana que tinha
nele, ia-lhe dizer o nome...
- a Ameliazinha da S. Joaneira!
- Que me diz, senhor proco?!
- Uma vocao, tio Esguelhas! V-se o dedo de Deus! extraordinrio...
Contou-lhe ento uma histria difusa que ia forjando laboriosamente, segundo
as sensaes que
imaginava ver na face pasmada do sineiro. A rapariga desgostara-se da vida, com
as desavenas que tivera com o noivo. Mas a me que estava velha, que a
necessitava para o governo da casa, no queria consentir, supondo que era uma
veleidade... Mas no, era vocao... Ele sabia-o... Infelizmente, quando havia
oposio, a conduta do sacerdote era muito delicada... Todos os dias os jornais
mpios (e infelizmente era a maioria!) gritavam contra as influncias do clero...
As autoridades, mais mpias que os jornais, punham obstculos... Havia leis
terrveis... Se soubessem que ele andava a instruir a menina para professar,
ou ungido, ou seja por mos puras ou por mos torpes, fica igualmente bem
lavado da mcula original, ou bem preparado para a vida eterna. Isto l-se em
todos os santos padres, estabeleceu-o o serfico conclio de Trento. Os fiis nada
perdem, na sua alma e na sua salvao, com a indignidade do proco. E se o
proco se arrepende hora extrema, tambm se lhe no fecham as portas do
Cu. Logo em definitivo tudo acaba bem, e em paz geral... - E o padre Amaro,
raciocinando assim, sorvia com prazer o seu caf.
A Dionsia, ao fim do almoo, veio saber, muito risonha, se o senhor proco
falara ao tio Esguelhas...
- Falei por alto, disse ele ambiguamente. No h nada decidido... Roma no se
construiu num dia.
119
- Ah! fez ela.
E recolheu-se cozinha, pensando que o senhor proco mentia como um herege.
Tambm, no se importava... Nunca gostara de arranjos com os senhores
eclesisticos; pagavam mal, e suspeitavam sempre...
E mesmo ouvindo Amaro que saa, correu escada, a dizer-lhe - que enfim, ela
tinha a olhar pela sua casa, e quando o senhor proco tivesse arranjado criada. ..
- A Sra. D. Josefa Dias anda-me a tratar disso, Dionsia. Espero ter algum
amanh. Mas voc aparea... Agora que somos amigos...
- Quando o senhor proco quiser chamar-me da janela para o quintal, disse ela
do alto da escada. Para tudo o que precisar. De tudo sei um bocadinho; at de
desarranjos e de partos... E neste ponto posso at dizer...
Mas o padre no a escutava: atirara com a porta de repelo, fugindo, indignado
daquela utilidade torpe assim brutalmente oferecida.
Foi dai a dias que ele falou em casa da S. Joaneira da filha do sineiro.
Na vspera dera o bilhete a Amlia; e nessa noite, enquanto na sala se galrava
alto, aproximara- se do piano, onde Amlia, com os dedos preguiosos, corria
escalas, e abaixando-se para acender o cigarro vela, murmurara.
- Leu?
- timo!
Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde a Gansoso estava contando
uma catstrofe que
lera num jornal, sucedida em Inglaterra: uma mina de carvo que desabara,
sepultando cento e vinte trabalhadores. As velhas arrepiavam-se horrorizadas. A
Gansoso ento, gozando o efeito, acumulou loquazmente os detalhes: a gente
que estava fora esforara-se por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes
embaixo gemidos e os ais; era ao lusco-fusco; havia uma tormenta de neve...
- Desagradvel! rosnou o cnego, aconchegando-se na sua poltrona, gozando o
calor da sala e a segurana dos tetos.
A Sra. D. Maria da Assuno declarou que todas essas minas, essas mquinas
estrangeiras lhe causavam medo. Vira uma fbrica ao p de Alcobaa, e pareceralhe uma imagem do inferno. Estava certa que Nosso Senhor no as via com bons
olhos...
- como os caminhos de ferro, disse D. Josefa. Tenho a certeza que foram
inspirados pelo demnio! No o digo a rir. Mas vejam aqueles uivos, aquele
fogaracho, aquele fragor! Ai, arrepia!
O padre Amaro galhofou, - assegurando Sra. D. Josefa que eram ricamente
cmodos para andar depressa! Mas, tomando-se logo srio, acrescentou:
- Em todo o caso incontestvel que h nessas invenes da cincia moderna
muito do demnio. E por isso que a nossa santa Igreja as abenoa, primeiro com
oraes e depois com gua benta. Ho-de saber que o costume. Com gua
benta, para lhes fazer o exorcismo, expulsar o esprito inimigo: e com oraes
para as resgatar do pecado original que no s existe no homem, mas nas coisas
que ele constri. por isso que se benzem e se purificam as locomotivas... Para
que o demnio no se possa servir delas para seu uso.
D. Maria da Assuno quis imediatamente uma explicao. Como em a maneira
usual do Inimigo se servir dos caminhos de ferro?
O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O Inimigo tinha muitas maneiras,
mas a habitual era esta: fazia descarrilar um trem de modo que morressem
passageiros, e como essas almas no estavam preparadas pela Extrema-Uno, o
demnio ali mesmo, zs, apoderava-se delas!
- de velhaco! rosnou o cnego com uma admirao secreta por aquela manha
to hbil do Inimigo.
Mas D. Maria da Assuno abanou-se langorosamente, com o rosto banhado num
sorriso de beatitude:
- Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados, a ns que no nos sucedia isso...
Que no nos pilhava desprevenidas!
Era verdade; e todas gozaram um momento aquela certeza deliciosa de estarem
preparadas, de poderem lograr a malcia do Tentador!
O padre Amaro ento tossiu como para preparar as vias, e apoiando as duas mos
sobre a mesa, num tom de prtica:
120
- necessrio muita vigilncia para conservar de longe o demnio. Ainda hoje eu
estava a pensar nisso (foi mesmo a minha meditao) a respeito de um caso bem
triste que tenho l ao p da S... a filhita do sineiro.
As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe as palavras, numa
curiosidade subitamente excitada, esperando ouvir a histria picante de alguma
faanha de Satans. E o proco continuou com uma voz a que o silncio em redor
dava solenidade:
- Ali est aquela rapariga, todo o santo dia, pregada na cama! No sabe ler, no
tem devoes habituais, no tem o costume da meditao; por conseqncia,
para empregar a expresso de S. Clemente - uma alma sem defesa. O que sucede?
Que o demnio, que ronda constantemente e no perde dentada, estabelece-se
ali como em sua casa! Por isso, como me dizia hoje o pobre tio Esguelhas, so
frenesis, desesperos, furores sem razo... Enfim o pobre homem tem a vida
estragada.
- E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou D. Maria da Assuno, indignada
daquela impudncia de Satans, instalando-se num corpo, num leito, que apenas
a estreiteza do ptio separava dos contrafortes da S.
Amaro acudiu:
- Tem a D. Maria razo. O escndalo enorme. Mas ento? Se a rapariga no sabe
ler! Se no sabe uma orao, se no tem quem a instrua, quem lhe leve a palavra
de Deus, quem a fortifique, quem lhe ensine o segredo de frustrar o Inimigo!...
Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala, de ombros vergados, numa
mgoa de pastor a quem uma fora desproporcional arrebata uma ovelha amada.
E, exaltado pelas suas palavras, sentia, com efeito, uma piedade que o invadia,
uma compaixo verdadeira por aquela pobre criatura, a quem a falta de
consolaes devia tornar mais intensa a agonia da imobilidade...
As senhoras olhavam-se, magoadas com aquele caso triste de abandono de alma,
- sobretudo pela dor que ele parecia trazer ao senhor cnego.
A Sra. D. Maria da Assuno, que percorria em imaginao o abundante arsenal
da devoo, lembrara logo que se lhe pusessem alguns santos cabeceira, como
S. Vicente, Nossa Senhora das Sete Chagas... Mas o silncio das amigas exprimiu
bem a insuficincia daquela galeria devota.
- As senhoras dir-me-o, talvez, disse o padre Amaro sentando-se de novo, que
se trata apenas da filha do sineiro. Mas uma alma! uma alma como as nossas!
- Imaginas que no o faria com a mesma devoo? J ests com orgulho da boa
ao... Olha que assim no te aproveita!
Mas Amlia continuava tomada de um riso nervoso, deitada para as costas da
cadeira, sufocando-se para se conter.
Os olhinhos de D. Joaquina chamejavam.
- indecente, indecente! gritava.
Calmaram-na: Amlia teve de lhe jurar sob os Santos Evangelhosque fora uma
idia
extravagante que tivera, que era nervoso...
- Ai, disse D. Maria da Assuno, ela tem razo em se orgulhar. Que uma honra
para a casa!
Em se sabendo...
O proco interrompeu com severidade:
- Mas no se deve saber, Sra. D. Maria da Assuno! De que serve, aos olhos do
Senhor, uma
boa obra de que se tire alarde e vanglria?
D. Maria vergou os ombros, humilhando-se repreenso. E Amaro, com
gravidade:
- Isto no deve sair daqui. entre Deus e ns. Queremos salvar uma alma,
consolar uma
enferma, e no ter elogios nos peridicos. Pois no assim, padre-mestre? O
cnego ergueu-se pesadamente:
- Voc esta noite tem falado com a lngua de ouro de S. Crisstomo. Eu estou
edificado; e no se me dava agora de ver aparecer as torradas.
Foi ento, enquanto a Rua no trazia o ch, que se decidiu que Amlia, todas as
semanas, uma ou duas vezes segundo fosse a sua devoo, iria em segredo, para
que a ao fosse mais valiosa aos olhos de Deus, passar uma hora cabeceira da
paraltica, ler-lhe a Vida dos Santos, ensinar-lhe rezas e insuflar- lhe a virtude.
Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as suas
visitas caridosas paraltica perfizessem ao fim do ms o nmero simblico de
sete, que devia corresponder, na idia das devotas, s Sete Lies de Maria. Na
vspera o padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que deixava a porta da
rua apenas cerrada, depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a
prtica do senhor proco. Amlia nesses dias erguia-se cedo; tinha sempre
alguma saia branca a engomar, algum laarote a compor; a me estranhava-lhe
aqueles arrebiques, o desperdcio de gua-de-colnia de que ela se inundava;
mas Amlia explicava que "era para inspirar Tot idias de asseio e de frescura".
E depois de vestida sentava-se, esperando as onze horas, muito sria,
respondendo distraidamente s conversas da me, com uma cor nas faces, os
olhos cravados nos ponteiros do relgio: enfim a velha matraca gemia cavamente
as onze horas, e ela, depois de uma olhadela ao espelho, saa, dando uma beijoca
mam.
Ia sempre receosa, numa inquietao de ser espreitada. Todas as manhs pedia a
Nossa Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e se via um
pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para lisonjear os gostos de Nosso
Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a assustava era o
122
Largo da S, sobre o qual a Amparo da botica, costurando por trs da janela,
exercia uma vigilncia incessante. Fazia-se ento pequenina no seu mantelete, e
124
arranjara-lhe muito barata uma cozinheira excelente, e que se chamava
Escolstica. Na Rua da Misericrdia tinha a sua corte admiradora e devota; cada
semana, uma ou duas vezes, vinha aquela hora deliciosa e celeste na casa do tio
Esguelhas; e para completar a harmonia at a estao ia to linda, que j no
Morenal comeavam a abrir as rosas.
Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ningum da
sacristia suspeitava os seus rendez-vous com Amlia. Aquelas visitas Tot
tinham entrado nos costumes da casa; chamavam- lhe "as devoes da
pequena"; e no a interrogavam com particularidades, pelo princpio beato que
as devoes so um segredo que se tem com Nosso Senhor. S s vezes alguma
das senhoras perguntava a Amlia - como ia a doente; ela assegurava que estava
muito mudada, que comeava a abrir os olhos lei de Deus; ento, muito
discretamente, falavam de coisas diferentes. Havia apenas o plano vago de irem
um dia, mais tarde, quando a Tot soubesse bem o seu catecismo e pela eficcia
da orao se tivesse tomado boa, admirar em romaria a obra santa de Amlia e a
humilhao do Inimigo.
Amlia mesmo, perante esta confiana to larga na sua virtude, propusera um dia
a Amaro, como muito hbil - dizer s amigas que o senhor proco s vezes vinha
assistir prtica piedosa que ela fazia Tot...
- Assim, se algum te surpreendesse a entrar para a casa do tio Esguelhas, j no
havia suspeitas.
- No me parece necessrio, disse ele. Deus est conosco, filha, claro. No
queiramos intrometer-nos nos seus planos. Ele v mais longe que ns...
Ela concordou logo - como em tudo que saa dos seus lbios. Desde a primeira
manh, na casa do tio Esguelhas, ela abandonara-se-lhe absolutamente, toda
inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: no havia na sua pele um cabelinho,
no corria no seu crebro uma idia a mais pequenina, que no pertencesse ao
senhor proco. Aquela possesso de todo o seu ser no a invadira gradualmente;
fora completa, no momento que os seus fortes braos se tinham fechado sobre
ela. Parecia que os beijos dele lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era
como uma dependncia inerte da sua pessoa. E no lho ocultava; gozava em se
humilhar, oferecer-se sempre, sentir-se toda dele, toda escrava; queria que ele
pensasse por ela e vivessepor ela; descarregara-se nele, com satisfao, daquele
fardo da responsabilidade que sempre lhe pesara na vida; os seus juzos agora
vinham-lhe formados do crebro do proco, to naturalmente como se sasse do
corao dele o sangue que lhe corria nas veias. "O senhor proco queria ou o
senhor proco dizia" era para ela uma razo toda suficiente e toda poderosa. Vivia
com os olhos nele, numa obedincia animal: tinha s a curvar- se quando ele
falava, e quando vinha o momento a desapertar o vestido.
Amaro gozava prodigiosamente esta dominao; ela desforrava-ode todo um
passado de dependncias - a casa do tio, o seminrio, a sala branca do Sr. conde
de Ribamar... A sua existncia de padre era uma curvatura humilde que lhe
fatigava a alma; vivia da obedincia ao senhor bispo, cmara eclesistica, aos
cnones, Regra que nem lhe permitia ter uma vontade prpria nas suas relaes
com o sacristo. E agora, enfim, tinha ali aos seus ps aquele corpo, aquela alma,
aquele ser vivo sobre quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por
profisso, louvando, adorando e incensando Deus, - era ele tambm agora o Deus
duma criatura que o temia e lhe dava uma devoo pontual. Para ela ao menos,
era belo, superior aos condes e aos duques, to digno da mitra como os mais
sbios. Ela mesma, um dia, dissera-lhe, depois de ter estado um momento
pensativa:
- Tu podias chegar a papa!
- Desta massa se fazem, respondeu ele com seriedade.
Ela acreditava-o - com um receio, todavia, que as altas dignidades o afastassem
dela, o levassem
para longe de Leiria. Aquela paixo, em que estava abismada e que a saturava,
tomara-a estpida e obtusa a tudo o que no respeitava ao senhor proco ou ao
seu amor. Amaro de resto no lhe consentia interesses, curiosidades alheias
sua pessoa. Proibia-lhe at que lesse romances e poesias. Para que se havia de
fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ela falara, com
algum apetite, dum baile que iam dar os Vias-Claras, ofendeu-se como duma
traio. Fez- lhe em casa do tio Esguelhas acusaes tremendas: era uma
vaidosa, uma perdida, uma filha de Satans!...
- Mas mato-te! Percebes? Mato-te! exclamou agarrando-lhe os pulsos,
fulminando-a com o olhar aceso.
Tinha um medo, que o pungia, de a ver subtrair-se ao seu imprio, perder-lhe a
adorao muda e absoluta. Pensava s vezes que ela se fatigaria, com o tempo,
dum homem que no lhe satisfazia as vaidades e os gostos de mulher, sempre
metido na sua batina negra, com a cara rapada e a coroa aberta. Imaginava que as
gravatas de cores, os bigodes bem torcidos, um cavalo que trota, um uniforme de
lanceiros exercem sobre as mulheres uma fascinao decisiva. E se a ouvia falar
de algum oficial do destacamento, de algum cavalheiro da cidade, eram cimes
desabridos...
- Gostas dele? Hem! pelos trapos, pelo bigode?... - Gosto dele! Oh, filho, eu
nunca vi o homem!
125
Mas escusava de falar da criatura, ento! Era ter curiosidade, pr o pensamento
noutro! Dessas faltas de vigilncia sobre a alma e a vontade que se aproveitava
o demnio!...
Viera assim a ter um dio a todo o mundo secular - que a poderia atrair, arrastar
para fora da sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos complicados,
toda a comunicao com a cidade. Convenceu mesmo a me que a no deixasse ir
s Arcada e s lojas. E no cessava de lhe representar os homens como
monstros de impiedade, cobertos de pecados como duma crosta, estpidos e
falsos, votados ao Inferno! Contava-lhe horrores de quase todos os rapazes de
Leiria. Ela perguntava-lhe aterrada, mas curiosa:
- Como sabes tu?
- No te posso dizer, respondia com uma reticncia, indicando que lhe fechava os
lbios o segredo da confisso.
E ao mesmo tempo martelava-lhe os ouvidos com a glorificao do sacerdcio.
Desenrolava-lhe com pompa a erudio dos seus antigos compndios, fazendolhe o elogio das funes da superioridade do padre. No Egito, grande nao da
antigidade, o homem s podia ser rei se era sacerdote! Na Prsia, na Etipia, um
simples padre tinha o privilgio de destronar os reis, dispor das coroas! Onde
havia uma autoridade igual sua? Nem mesmo na corte do Cu. O padre era
superior aos anjos e aos serafins - porque a eles no fora dado como ao padre o
poder maravilhoso de perdoar os pecados! Mesmo a Virgem Maria, tinha ela um
poder maior que ele, padre Amaro? No: com todo o respeito devido majestade
de Nossa Senhora, ele podia dizer com S. Bernardino de Sena: "O sacerdote
excede-te, me amada!" - porque, se a Virgem tinha encarnado Deus no seu
castssimo seio, fora s uma vez, e o padre, no santo sacrifcio da missa,
encarnava Deus todos os dias! E isto no era argcia dele, todos os santos padres
o admitiam...
- Hem, que te parece?
- Oh, filho! murmurava ela pasmada, desfalecida de voluptuosidade.
Ento deslumbrava-se com citaes venerandas: S. Clemente, que chamou ao
padre "o Deus da
Terra"; o eloqente S. Crisstomo, que disse "que o padre o embaixador que
vem dar as ordens de Deus". E Santo Ambrsio que escreveu: "Entre a dignidade
do rei e a dignidade do padre h maior diferena que a que existe entre o chumbo
e o ouro!"
- E o ouro c o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te parece?
Ela atirava-se-lhe aos braos, com beijos vorazes, como para tocar, possuir nele
o "ouro de Santo Ambrsio", o "embaixador de Deus", tudo o que na Terra havia
mais alto e mais nobre, o ser que excede em graa os arcanjos!
Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a
influncia da sua, voz - que a faziam crer na promessa que ele lhe repetia
sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ela o interesse, a amizade
de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tom-la pela mo para a
acompanhar e desfazer todas as dvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do
Cu; e que na sua sepultura, como sucedera emFrana a uma rapariga amada por
um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que
a virgindade no se estraga nos braos santos dum padre...
Isto encantava-a. quela idia da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava
toda pensativa, num antegosto de felicidades msticas, com suspirinhos de gozo.
Afirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.
Amaro galhofava.
- A falar da morte, com essas carnezinhas...
Engordara com efeito. Estava agora duma beleza ampla e toda igual. Perdera
aquela expresso
inquieta que lhe punha nos lbios uma secura e lhe afilava o nariz. Nos seus
beios havia um vermelho quente e mido; o seu olhar tinha risos sob um fluido
sereno; toda a sua pessoa uma aparncia madura de fecundidade. Fizera-se
preguiosa: em casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar
longamente com um sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um
momento, a agulha, o pano que ela costurava, toda a sua pessoa. Estava revendo
o quarto do sineiro, o catre, o senhor proco em mangas de camisa.
Passava os seus dias esperando as oito horas, em que ele aparecia regularmente
com o cnego. Mas os seres agora pesavam-lhe. Ele recomendara-lhe muita
reserva; ela exagerava-a, por um excesso de obedincia, a ponto de nunca se
sentar ao p dele ao ch, e de nem mesmo lhe oferecer bolos. Odiava ento a
presena das velhas, a gralhada das vozes, as pachorras do quino; tudo lhe
parecia intolervel no mundo, exceto estar s com ele... Mas depois, em casa do
sineiro, que desforra! Aquele rosto todo alterado, aquelas sufocaes de delrio,
carcia do ter do Paraso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou mais alto, no
Cu...
Amaro babava-se para ela:
- Oh filhinha, s mais linda que Nossa Senhoras!
Ela deu uma olhadela viva ao espelho. Era, decerto, linda. No tanto como Nossa
Senhora... Mas
cora o seu rosto trigueiro, de lbios rubros, a1umiado por aquele rebrilho dos
olhos negros, se estivesse sobre o altar, com cantos ao rgo e um culto
sussurrando em redor, faria palpitar bem forte o corao dos fiis...
Amaro ento chegou-se por detrs dela, cruzou-lhe os braos sobre o seio,
apertou-a toda - e estendendo os lbios por sobre os dela, deu-lhe um beijo
mudo, muito longo... Os olhos de Amlia cerravam-se, a cabea inclinava-se-lhe
para trs, pesada de desejo. Os beios do padre no se
128
desprendiam, vidos, sorvendo-lhe a alma. A respirao dela apressava-se, os
joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre,
descorada e morta de gozo.
Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as plpebras como acordada
de muito longe; uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:
- Oh! Amaro, que horror, que pecado!...
- Tolice! disse ele.
Mas ela desprendia-se do manto, toda aflita:
- Tira-mo, tira-mo! gritava, como se a seda a queimasse.
Ento Amaro fez-se muito srio. Realmente no se devia brincar com coisas
sagradas... - Mas no est benzida... No tem dvida...
Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lenol branco, colocou-o no
gaveto, sem uma palavra. Amlia olhava-o petrificada; e s os seus lbios
plidos se moviam numa orao.
Quando ele lhe disse, enfim, que eram horas de irem a casa do sineiro - recuou,
como diante do demnio que a chamasse.
- Hoje no! exclamou, implorando-o.
Ele insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ela bem sabia que no
era pecado, quando as coisas no estavam benzidas... Era ser muito pobre de
espirito... Que demnio, s meia hora, ou um quarto de hora!
Ela, sem responder, ia-se aproximando da porta. - Ento no queres?
Ela voltou-se, e com uns olhos suplicantes:
- Hoje no!
Amaro encolheu os ombros. E Amlia atravessou rapidamente a igreja, de cabea
baixa e olhos nas lajes, como se passasse entre as ameaas cruzadas dos santos
indignados.
Era Amlia que passava. Parou logo, contrariada daquele encontro que a ia ainda
retardar mais. E
j o senhor proco devia estar desesperado...
- De modo que, disse o cnego porta abrindo o seu guarda-sol, voc, abade, em
lhe cheirando a
prodgio...
- Suspeito logo escndalo.
O cnego contemplou-o um momento, com respeito:
- Voc, Ferro, capaz de dar quinaus a Salomo em prudncia!
- Oh, colega! oh, colega! exclamou o abade, ofendido com aquela injustia feita
incomparvel
sabedoria de Salomo.
- Ao prprio Salomo! afirmou ainda o cnego da rua.
Tinha preparado uma histria hbil para justificar a sua visita paraltica; mas
durante a sua
conversao com o abade ela escapara-lhe, como tudo o que deixava um
momento nos reservatrios da memria; e foi sem transio que disse
simplesmente a Amlia:
- Vamos l, tambm quero ir ver essa Tot!
Amlia ficou petrificada. E o senhor proco, naturalmente, j l estava! Mas a sua
madrinha Nossa Senhora das Dores, que ela invocou logo naquela aflio, no a
deixou enleada no embarao. - E o cnego, que caminhava ao lado dela, ficou
surpreendido ouvindo-lhe dizer com um risinho:
- Viva, hoje o dia das visitas Tot! O senhor proco disse-me que tambm
talvez hoje aparecesse por l... Talvez l esteja at.
- Ah! O amigo proco tambm? Est bom, est bom. Faremos uma consulta
Tot!
Amlia ento, contente de sua malcia, tagarelou sobre a Tot. O senhor cnego
ia ver... Era uma criatura incompreensvel... Ultimamente, ela no tinha querido
contar em casa, mas a Tot tomara-lhe birra... E dizia coisas, tinha um modo de
falar de ces e de animais, de arrepiar!... Ai, era um encargo que j lhe pesava...
Que a rapariga no lhe escutava as lies, nem as oraes, nem os conselhos...
Era uma fera!
- O cheiro desagradvel! rosnou o cnego, entrando.
Que queria! A rapariga era uma porca, no havia t-la arranjado. O pai, esse, um
desleixado tambm...
- aqui, senhor cnego, disse, abrindo a porta da alcova - que, agora, em
obedincia s ordens do senhor proco, o tio Esguelhas deixava sempre fechada.
Encontraram a Tot meio erguida sobre a cama, com a face acesa numa
curiosidade, quela voz do cnego que no conhecia.
- Ora viva l a Sra. Tot! disse ele da porta, sem se aproximar.
- V, cumprimenta o senhor cnego, disse Amlia, comeando logo, com uma
caridade desacostumada, a compor a roupa da cama, a arrumar a alcova. Dize-lhe
como ests... No te faas amuada!
Mas a Tot permaneceu to muda como a imagem de S. Bento que tinha
cabeceira, examinando muito aquele sacerdote to gordo, to grisalho, to
diferente do senhor proco... E os seus olhos, mais brilhantes todos os dias
medida que se lhe cavavam as faces, iam, como de costume, do homem para
Amlia, numa ansiedade de perceber por que o trazia ela ali, quele velho obeso,
e se ia tambm subir com ele para o quarto.
Amlia agora tremia. Se o senhor proco entrasse, e ali, diante do cnego, a Tot,
tomada do seu frenesi, rompesse aos gritos, tratando-os de ces!... Com o
pretexto de dar uma arrumadela, foi cozinha vigiar o ptio. Faria um sinal da
janela, apenas Amaro aparecesse.
Tomou o Popular de sobre a mesa, e ali ficou, sem se mexer, abismado nas
colunas do peridico. O Carlos tentou falar da poltica do pais, depois dos
negcios de Espanha, depois dos perigos revolucionrios que ameaavam a
Sociedade, depois da deficincia da administrao do concelho de que era agora
um adversrio feroz... Debalde. Sua excelncia grunhia apenas monosslabos
soturnos. E o Carlos, enfim, recolheu-se a um silncio chocado, comparando,
num desdm interior que lhe vincava de sarcasmoos cantos dos beios, a
obtusidade soturna daquele sacerdote palavra inspirada dum Lacordaire e dum
Malho! Por isso o Materialismo em Leiria, em todo o Portugal, erguia a sua
cabea de hidra...
Batia uma hora na torre quando o cnego, que vigiava a Praa pelo canto do olho,
vendo passar Amlia, arremessou o jornal, saiu da botica sem dizer uma palavra e
estugou o seu passo de obeso para a casa do tio Esguelhas. A Tot estremeceu de
medo ao ver de novo aquela figura bojuda aparecer porta da alcova. Mas o
cnego riu-se para ela, chamou-lhe Totozinha, prometeu-lhe um pinto para
bolos; e mesmo sentou-se aos ps da cama com um ah! regalado, dizendo:
- Ora vamos ns agora conversar, amiguinha... Esta que a pernita doente,
hem? Coitadita! Deixa que te hs-de curar... Hei-de pedir a Deus... Fica por
minha conta.
Ela fazia-se ora toda branca ora toda vermelha, olhando aqui e alm, inquieta, na
perturbao que lhe dava aquele homem a ss com ela to perto que lhe sentia o
hlito forte.
- Ento, ouve c, disse ele chegando-se mais para ela, fazendo ranger o catre
com o seu peso. Ouve c, quem o outro? Quem que vem com a Amlia?
Ela respondeu logo, atirando as palavras dum flego:
- o bonito, o magro, vm ambos, sobem para o quarto, fecham- se por
dentro; so como ces! Os olhos do cnego injetaram-se para fora das rbitas:
- Mas quem ele, como se chama? O teu pai que te disse?
- o outro, o proco, o Amaro! fez ela impaciente.
- E vo para o quarto, hem? L para cima? E tu que ouves, tu que ouves? Diz tudo,
pequena, diz
tudo!
A paraltica ento contou, com um furor que dava tons sibilantes sua voz de
tsica, - como
ambos entravam, e a vinham ver, e se roavam um pelo outro, e abalavam para o
quarto em cima, e estavam l uma hora fechados...
Mas o cnego, com uma curiosidade lbrica que lhe punha uma chama nos olhos
mortios, queria saber os detalhes torpes:
- E ouve l, Totozinha, tu que ouves? Ouves ranger a cama?
Ela respondeu com a cabea afirmativamente, toda plida, os dentes cerrados.
- E olha, Totozinha, j os viste beijarem-se, abraarem-se? Anda, diz, que te dou
dois pintos. Ela no descerrava os lbios; e a sua face transtornada parecia ao
cnego selvagem.
- Tu embirras com ela, no verdade?
Ela fez que sim numa afirmao feroz de cabea.
- E viste-os beliscarem-se?
- So como ces! soltou ela por entre os dentes.
O cnego ento endireitou-se; bufou outra vez com o seu grande sopro de
encalmado, e coou
vivamente a coroa.
132
- Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena... Agasalha-te. No te constipes...
Saiu; e ao fechar com fora a porta exclamou alto:
- Isto a infmia das infmias! Eu mato-o! eu perco-me!
Esteve um momento considerando, e partiu para a Rua das Sousas, de guarda-sol
em riste, apressando a sua obesidade, com a face apopltica de furor. No Largo da
- Traste por qu? Diga-me l! Traste por qu? Temos ambos culpas no cartrio,
eis a est. E
olhe que eu no fui perguntar, nem peitar a Tot... Foi muito naturalmente ao
entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral
para a escola e para o sermo. C na vida eu fao isto, o senhor faz aquilo, os
outros fazem o que podem. O padre-mestre que j tem idade agarra-se velha,
eu que sou novoarranjo-me com a pequena. triste, mas que quer? a natureza
que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que
temos fazer costas!
O cnego escutava-o, bamboleando a cabea, na aceitao muda daquelas
verdades. Tinha-se deixado cair numa cadeira, a descansar de tanta clera intil;
e erguendo os olhos para Amaro:
- Mas voc, homem, no comeo da carreira!
133
- E voc, padre-mestre, no fim da carreira!
Ento riram ambos. Imediatamente cada um declarou retirar as palavras
ofensivas que tinham dito; e apertaram-se gravemente a mo. Depois
conversaram.
O cnego, o que o tinha enfurecido era ser l com a pequena da casa. Se fosse
com outra... at estimava! Mas a Ameliazinha!... Se a pobre me viesse a saber,
estourava de desgosto.
- Mas a me escusa de saber! exclamou Amaro. Isto entre ns, padre-mestre!
Isto segredo de morte! Nem a me sabe de nada, nem eu mesmo digo pequena
o que se passou hoje entre ns. As coisas ficam como estavam, e o mundo
continua a rolar... Mas voc, padre-mestre, tenha cuidado!... Nem uma palavra
S. Joaneira... Que no haja agora traio!
estava bem prostrada de febre, sob os lenis midos dos suores constantes. Mas
Amlia, por escrpulo, no deixava de rezar todas as noites uma Salve-Rainha
pelas melhoras da Tot. s vezes mesmo ao despir-se, no quarto do sineiro,
parava de repente, e fazendo um rostinho triste:
- Ai, filho! At me parece pecado, ns aqui a gozarmos, e a pobre pequena l
embaixo a lutar com a morte...
Amaro encolhia os ombros. Que lhe haviam eles de fazer, se era a vontade de
Deus?...
E Amlia, resignando-se vontade de Deus em tudo, ia deixando cair as saias.
Tinha agora daquelas pieguices freqentes que impacientavam o padre Amaro.
Em certos dias aparecia muito murcha; trazia sempre algum sonho lgubre a
contar, que a torturara toda a noite, e em que ela pretendia descobrir avisos de
desgraas...
Perguntava-lhe s vezes:
- Se eu morresse, tinhas muita pena?
Amaro enfurecia-se. Realmente era estpido! Tinham apenas uma hora para se
verem, e haviam
de estar a estrag-la com lamrias?
- que no imaginas, dizia ela, trago o corao negro como a noite.
Com efeito as amigas da me estranhavam-na. s vezes, durante seres inteiros
no descerrava
os lbios, pendia sobre a sua costura, picando molemente a agulha; ou ento,
muito cansada mesmo para trabalhar, ficava junto da mesa fazendo girar devagar
o abajur verde do candeeiro, com o olhar vazio e a alma muito longe.
- rapariga, deixa esse abajur em paz! diziam-lhe as senhoras nervosas.
Ela sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava muito lentamente a saia branca
que havia semanas andava bainhando. A me, vendo-a sempre to plida,
pensara em chamar o doutor Gouveia.
ensinado; tudo o que ela deseja o obtm, como uma recompensa devida aos seus
prantos no Calvrio; seu Filho sorri-lhe sua direita, o Deus Padre fala-lhe
esquerda... E compreendia bem que para ela no havia esperana - e que alguma
coisa medonha se preparava l em cima, no Paraso, que lhe cairia um dia sobre o
corpo e sobre a alma, esmagando-a com um desabamento de catstrofe... Que
seria?
Cessaria as suas relaes com Amaro, se o ousasse: mas receava quase tanto a sua
clera como a de Deus. Que seria dela se tivesse contra si Nossa Senhora e o
senhor proco? Alm disso, amava-o. Nos seus braos, todo o terror do Cu, a
mesma idia do Cu desaparecia; refugiada ali, contra o seu peito, no tinha
medo das iras divinas; o desejo, o furor da carne, como um vinho muito
alcolico, davam-lhe uma coragem colrica; era com um brutal desafio ao Cu
que se enroscava furiosamente ao seu corpo. - Os terrores vinham depois, s no
seu quarto. Era esta luta que a empalidecia, lhe punha pregas de envelhecimento
ao canto dos lbios secos e ardidos, lhe dava aquele ar murcho de fadiga que
irritava o padre Amaro.
- Mas que tens, tu, que parece te espremeram o suco? perguntava- lhe ele
quando aos primeiros beijos a sentia toda fria, toda inerte.
135
- Passei mal a noite... Nervoso.
- Maldito nervoso! rosnava o padre Amaro impaciente.
Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam, repetidas agora todos
os dias. Se tinha
dito a missa com fervor? Se tinha lido o Brevirio? Se tinha feito a orao
mental?...
- Sabes tu que mais? disse ele furioso. Sebo! E esta! Tu pensas que eu sou ainda
seminarista, e
que tu s o padre examinador, que verifica se cumpri a Regra? Ora a tolice!
- que necessrio estar bem com Deus - murmurava ela.
Era com efeito a sua preocupao, agora, que Amaro fosse um bom padre.
Contava, para se
salvar e para se livrar da clera de Nossa Senhora, com a influncia do proco na
corte de Deus: e temia que ele por negligncia de devoo a perdesse, e que,
diminuindo o seu fervor, diminussem os seus mritos aos olhos do Senhor.
Queria-o conservar santo e favorito do Cu para colher os proveitos da sua
proteo mstica.
Amaro chamava a isto "caturrices de freira velha". Detestava-as, por as achar
frvolas - e porque tomavam um tempo precioso, naquelas manhs da casa do
sineiro...
- Ns no viemos aqui para lamrias, dizia ele, muito secamente. Fecha a porta,
se queres.
Ela obedecia, - e ento aos primeiros beijos na penumbra da janela cerrada, ele
reconhecia enfim a sua Amlia, a Amlia dos primeiros dias, o delicioso corpo
que lhe tremia todo nos braos, em espasmos de paixo.
E cada dia a desejava mais, dum desejo contnuo e tirnico, que aquelas horas
escassas no satisfaziam. Ah! positivamente, como mulher no havia outra!...
Desafiava a que houvesse outra, mesmo em Lisboa, mesmo nas fidalgas!... Tinha
pieguices, sim, mas era no as tomar a srio, e gozar enquanto era novo!
E gozava. A sua vida por todos os lados tinha confortos e douras - como uma
destas salas onde tudo acolchoado, no h mveis duros nem ngulos, e o
corpo, onde quer que pouse, encontra a elasticidade mole duma almofada.
Decerto, o melhor era as suas manhs em casa do tio Esguelhas. Mas tinha outros
regalos. Comia bem: fumava caro numa boquilha de espuma: toda a sua roupa
branca era nova e de linho: comprara alguma moblia: e no tinha, como outrora,
embaraos de dinheiro porque a Sra. D. Maria da Assuno, a sua melhor
confessada, l estava com a bolsa pronta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma
pechincha: uma noite em casa da S. Joaneira, a excelente senhora, a propsito
duma famlia de ingleses que vira passar num char--banc para ir visitar a
Batalha, exprimira a opinio que os ingleses eram hereges.
- So batizados como ns, observara D. Joaquina Gansoso.
- Pois sim, filha, mas um batismo para rir. No o nosso rico batismo, no lhes
vale.
O cnego ento, que gostava de a torturar, declarou pausadamente que a Sra. D.
Maria dissera
uma blasfmia. O santo conclio de Trento, no seu cnone IV, sesso VII, l
determinara "que aquele que disser que o batismo dado aos hereges, em nome do
Padre, do Filho e do Esprito, no o verdadeiro batismo, seja excomungado!". E
a D. Maria, segundo o santo conclio, estava desde esse momento
excomungada!...
A excelente senhora teve um flato. Ao outro dia foi lanar-se aos ps de Amaro,
que em penitncia da sua injria feita ao cnone IV, sesso VII do santo concilio
de Trento, lhe ordenou trezentas missas de inteno pelas almas do purgatrio que D. Maria lhe estava pagando a cinco tostes cada uma.
Assim, ele podia s vezes entrar na casa do tio Esguelhas com um ar de satisfao
misteriosa e um embrulhozinho na mo. Era algum presente para Amlia, um
leno de seda, uma gravatinha de cores, um par de luvas. Ela extasiava-se com
aquelas provas da afeio do senhor proco; e era ento no quarto escuro um
delrio de amor, enquanto embaixo a tsica, sobre a Tot, ia fazendo "trs...
trs..."
XIX
- O senhor cnego? Quero-lhe falar. Depressa!
A criada dos Dias indicou ao padre Amaro o escritrio, e correu a cima contar a D.
Josefa que o senhor proco viera procurar o senhor cnego, e com uma cara to
transtornada que decerto tinha sucedido alguma desgraa!
Amaro encolheu os ombros, impaciente com aquela idia insensata.O padremestre, positivamente, estava divagando...
- Mas ento que quer voc? repetia o cnego num tom cavo, arrancando as
palavras ao abismo do trax.
- Que quero! Quero que no haja escndalo! Que hei-de eu querer?
- De quantos meses est ela?
- De quantos meses? Est de agora, est dum ms...
- Ento cas-la! exclamou o cnego com exploso. Ento cas-la com o
escrevente! O padre Amaro deu um pulo:
- Com os diabos, tem voc razo! de mestre!
O cnego afirmou gravemente com a cabea que era "de mestre".
- Cas-la j! Enquanto tempo! Pater est quem nuptiae demonstrant... Quem
marido que
pai.
Mas a porta abriu-se, e apareceram os culos azuis, a touca negra de D. Josefa.
No se pudera
conter em cima, na cozinha, tomada dum frenesi agudo de curiosidade; descera
na ponta das chinelas e colara o ouvido fechadura do escritrio; mas o grosso
reposteiro de baeto estava cerrado por dentro, um rudo de lenha que se
descarregava na rua abafava as vozes. A boa senhora ento decidiu-se a entrar, "a
dar os bons-dias ao senhor proco".
Mas debalde, por detrs dos vidros defumados, os seus olhinhos agudos
esquadrinharam ansiosamente o caro espesso do mano e a face plida de
Amaro. Os dois sacerdotes estavam impenetrveis como duas janelas fechadas. O
proco mesmo falou ligeiramente do reumtico do senhor chantre, da notcia que
corria sobre o casamento do senhor secretrio-geral... Ao fim duma pausa
ergueu- se, contou que tinha nesse dia uma famosa orelheira para o jantar - e a
Sra. D. Josefa, roendo-se, viu-o abalar depois de ter dito j por detrs do
reposteiro ao cnego:
Amaro no sabia.
- Quebrou uma perna! Caiu da gua!
- Quando?
- Esta manh. Eu soube-o agora noitinha. Eu sempre lho disse: homem, esse
animal ferra-lhe
alguma! Pois senhores, ferrou-lha. E tesa! Tem para pras... E eu que me tinha
esquecido! Nem as senhoras l em cima sabem nada.
Foi uma desolao, em cima, quando souberam. Amlia fechou o piano. Todos
lembraram logo remdios que se lhe devia mandar, foi uma gralhada de
oferecimentos - ligaduras, fios, um ungento das freiras de Alcobaa, meia
garrafinha dum licor dos monges do deserto de ao p de Crdova... Era
necessrio tambm assegurar a interveno do Cu: e cada uma se prontificou a
usar do seu valimento com os santos da sua intimidade; D. Maria da Assuno,
que ultimamente praticava com Santo Eleutrio, ofereceu a sua influncia; D.
Josefa Dias encarregava-se de interessar Nossa Senhora da Visitao; D. Joaquina
Gansoso afianou S. Joaquim.
- E l a menina? perguntou o cnego a Amlia.
- Eu?...
E fez-se plida, numa tristeza de toda a sua alma, pensando que ela, com os seus
pecados e os
seus delrios, perdera a til amizade de Nossa Senhora das Dores. - E no poder
ela tambm concorrer com a sua influncia no Cu para restabelecer a perna de
Natrio, foi uma das amarguras maiores, talvez a punio mais viva que sentira
desde que amava o padre Amaro.
- Sabe tudo em segredo de confisso, acrescentou para a sossegar. Alm disso ele
e tua me tm culpas em cartrio... Tudo fica em famlia...
Depois tomou-lhe a mo, e olhando-a com ternura, como compadecendo-se j
das lgrimas aflitas que ela ia chorar:
- E agora, escuta, filha. No te aflijas com o que te vou dizer, mas necessrio,
a nossa salvao...
s primeiras palavras, porm, do casamento com o escrevente, Amlia
indignou-se com espalhafato.
- Nunca, antes morrer!
O qu? Ele punha-a naquele estado e agora queria descartar-se dela e pass-la a
outro? Era ela porventura um trapo que se usa e que se atira a um pobre? Depois
de ter posto fora de casa o homem, havia de humilhar-se, cham-lo e cair-lhe
nos braos?... Ah, no! Tambm ela tinha o seu brio! Os escravos trocavam-se,
vendiam-se, mas era no Brasil!
Enterneceu-se ento. Ah, ele j no a amava, estava farto dela! Ah, que
desgraada, que desgraada que era! - Atirou-se de bruos para a cama e rompeu
num choro estridente.
- Cala-te, mulher, que te podem ouvir na rua! dizia Amaro desesperado,
sacudindo-a pelo brao.
- No me importa! Que ouam! Para a rua vou eu, gritar que estou neste estado,
que foi o Sr. padre Amaro, e que me quer agora deixar!...
Amaro fazia-se lvido de raiva, com desejo furioso de lhe bater. Mas conteve-se;
e com uma voz que tremia sob a sua serenidade:
- Tu ests fora de ti, filha... Dize l, posso eu casar contigo? No! Bem, ento que
queres? Se se percebe que ests assim, se tens o filho em casa, v o escndalo!...
Por ti, ests perdida, perdida para sempre! E eu, se se souber, que me sucede?
segundo certos autores... Ele, Amaro, era dessa opinio... De mais a mais podiam
levantar-lhe a excomunho.
- Tu compreendes... Como disse o santo concilio de Trento, e como sabes, ns
atamos e desatamos. O moo foi excomungado?... Bem, levantamos-lhe a
excomunho. Fica to limpo como dantes. No, isso no te d cuidado.
- Mas de que havemos de viver, se ele perdeu o emprego?
- Tu no me deixaste dizer... Arranja-se-lhe o emprego. Arranja-lho o padremestre. Est tudo combinadinho, filha!
Ela no respondeu, muito quebrada e muito triste, com duas lgrimas
persistentes ao comprido das faces.
- Dize c, tua me no desconfia de nada?
- No, por ora no se percebe, respondeu ela com um grande ai.
Ficaram calados: ela limpando as lgrimas, serenando para sair; ele de cabea
baixa, trilhando
lugubremente o soalho do quarto, pensando nas boas manhs de outrora, quando
s havia ali beijos e risadinhas abafadas; tudo mudara agora, at o tempo que
estava todo nublado, um dia de fim de Vero, ameaando chuva.
- Percebe-se que estive a chorar? perguntou ela, compondo ao espelho o cabelo.
- No. Vais-te?
- A mam est minha espera...
Deram um beijo triste, e ela saiu.
fora para Lisboa; ai, com uma carta de recomendaodo doutor Gouveia,
empregara-se no cartrio dum procurador; mas o procurador, passados dias, por
uma fatalidade, morrera de apoplexia; e desde ento o rasto de Joo Eduardo
perdia-se no vago, no caos da capital. Havia, sim, uma pessoa que lhe devia saber
a morada e os passos: era o tipgrafo, o Gustavo. Mas infelizmente o Gustavo,
depois duma questo com o Agostinho, deixara o Distrito e desaparecera.
Ningum sabia para onde fora; por desgraa, a me do tipgrafo no a podia
informar - porque morrera tambm.
- Oh, senhores! dizia o cnego quando o padre Amaro lhe ia levar estes fios de
informao. Oh, senhores! mas ento nessa histria toda a gente morre! Isso
uma hecatombe!
- Voc graceja, padre-mestre, mas srio. Olhe que um homem em Lisboa
agulha em palheiro. uma fatalidade!
Ento, aflito j, vendo passar os dias, escreveu tia, pedindo-lhe que
esquadrinhasse por toda a Lisboa, a ver se por l aparecera "um tal Joo Eduardo
Barbosa..." Recebeu uma carta da tia em garatujas de trs pginas, queixando-se
do Joozinho, do seu Joozinho, que lhe fizera a vida um inferno, embebedandose com genebra a ponto que no lhe paravam hspedes em casa. Mas estava
agora mais tranqila: o pobre Joozinho havia dias jurara-lhe pela alma da mam
que da por diante no beberia seno gasosa. Enquanto ao tal Joo Eduardo,
perguntara na vizinhana e ao Sr. Palma do Ministrio das
139
Obras Pblicas, que conhecia toda a gente, mas nada averiguara. Havia, sim, um
Joaquim Eduardo que tinha uma loja de quinquilharias no bairro... E se fosse o
negcio com ele bem ia, que era um homem de bem...
- Lrias! lrias! interrompeu o cnego impaciente.
Resolveu-se ele ento a escrever. E instado pelo padre Amaro (queno cessava de
lhe representar o que a S. Joaneira e ele mesmo, cnego Dias, sofreriam com o
Amlia recebia estas notcias com desconsolao. Depois das primeiras lgrimas,
a irremedivel necessidade impusera-se-lhe, muito forte. Por fim que lhe
restava? Da a dois ou trs meses, com aquele seu desgraado corpo de cinta fina
e quadris estreitos, no poderia esconder o seu estado. E que faria ento? Fugir de
casa, ir como a filha do tio Cegonha para Lisboa, ser espancada no Bairro Alto
pelos marujos ingleses, ou como a Joaninha Gomes, que fora a amiga do padre
Ablio, levar pela cara os ratos mortos que lhe atiravam os soldados? No. Ento,
tinha de casar...
Depois vir-lhe-ia um menino ao fim dos sete meses (era to freqente!),
legitimado pelo sacramento, pela lei e por Deus Nosso Senhor... E o seu filho
teria um pap, receberia uma educao, no seria um enjeitado...
Ele calava-se; e havia tanto dio como amor nos beijos que lhe dava - quela
mulher que se
resignava assim to facilmente a ir dormir com outro!
140
Tinha cimes dela - que lhe tinham vindo ultimamente desde que a vira
conformar-se quele casamento odioso! Agora, que ela j no chorava, comeava
a enfurecer-se da falta das suas lgrimas; e secretamente desesperava-se dela
no preferir a vergonha com ele reabilitao com o outro. No lhe custaria tanto
se ela continuasse a barafustar, a fazer um alarido de prantos; isso seria uma
prova sria de amor, em que a sua vaidade se banharia deliciosamente; mas
aquela aceitao do escrevente agora, sem repugnncia e sem gestos de horror,
indignava-o como uma traio. Viera a suspeitar que a ela no fundo no lhe
desagradava a mudana. Joo Eduardo por fim era um homem; tinha a fora dos
vinte e seis anos, os atrativos dum belo bigode. Ela teria nos braos dele o
mesmo delrio que tinha nos seus... Se o escrevente fosse um velho consumido
de reumatismo, ela no mostraria a mesma resignao. Ento, por vingana de
padre, para "lhe desmanchar o arranjo", desejava que Joo Eduardo no
aparecesse: e muitas vezes, quando a Dionsia lhe vinha dar conta dos seus
passos, dizia-lhe com um mau sorriso:
- No se canse. O homem no aparece. Deixe l... No vale a pena ganhar dor de
peito...
Mas a Dionsia tinha o peito forte - e uma noite veio, triunfante, dizer-lhe que
estava na pista do homem! Vira enfim o Gustavo, o tipgrafo, entrar para a casa
de pasto do tio Osrio. Ao outro dia ia-lhe falar, e havia de se saber tudo...
Foi uma hora amargurada para Amaro. Aquele casamento, por que ansiara no
primeiro momento de terror, agora, que o sentia seguro, parecia-lhe a catstrofe
da sua vida.
Perdia Amlia para sempre!... Aquele homem que ele expulsara, que ele
suprimira, ali lhe vinha, por uma destas peripcias malignas em que a
Providncia se compraz, levar-lhe a mulher legitimamente. E a idia que ele ia
t-la nos braos, que ela lhe daria os beijos fogosos que lhe dava a ele, que
balbuciaria oh, Joo! - como agora murmurava oh, Amaro! - enfurecia-o. E no
podia evitar o casamento; todos o queriam, ela, o cnego, at a Dionsia com o
seu zelo venal!
De que lhe servia ser um homem com sangue nas veias e as paixes fortes dum
corpo so? Tinha de dizer adeus rapariga, - v-la partir de brao dado com o
outro, com o marido, irem ambos para casa brincar com o filho, um filho que era
seu! E ele assistiria destruio da sua alegria de braos cruzados, esforando-se
por sorrir, voltaria a viver s, eternamente s, e a reler o Brevirio!... Ah! se
fosse no tempo em que se suprimia um homem com uma denncia de heresia!...
Que o mundo recuasse duzentos anos, e o Sr. Joo Eduardo havia de saber o que
custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amlias...
E esta idia absurda, na exaltao da febre em que estava, apoderou-se to
fortemente da sua imaginao que toda a noite a sonhou - num sonho vvido,
que muitas vezes depois contou rindo s senhoras. Era uma rua estreita batida
dum sol ardente; entre as altas portas chapeadas, uma populaa apinhava-se;
pelos balces, fidalgos muito bordados retorciam o bigode cavalheiresco; olhos
reluziam, entre as pregas das mantilhas, acesos num furor santo. E pela calada,
a procisso do auto-de-f movia-se devagar, num vasto rudo, sob o tremendo
dobre a finados de todos os sinos vizinhos. Adiante os flagelantes seminus, de
capuz branco sobre o rosto, dilaceravam-se, uivando o Miserere, com as costas
empastadas de sangue: sobre um jumento ia Joo Eduardo, idiota de terror, com
as pernas pendentes, a camisa alva sarapintada de diabos cor de fogo, tendo no
peito um rtulo em que estava escrito - POR HEREGE; por trs um medonho
servente do Santo Ofcio espicaava furiosamente o jumento; e ao pi um padre,
erguendo alto o crucifixo, berrava-lhe aos ouvidos os conselhos do
arrependimento. E ele, Amaro, caminhava ao lado cantando o Requiem, de
Brevirio aberto numa mo, com a outra abenoando as velhas, as amigas da Rua
da Misericrdia que se agachavam para lhe beijar a alva. s vezes voltava-se para
gozar aquela pompa lgubre, e via ento a longa fila da confraria dos Nobres: aqui
era um personagem panudo eapopltico, alm uma face de mstico com um
bigode feroz e dois olhos chamejantes; cada um levava uma tocha acesa, e na
outra mo sustentava o chapu cuja pluma negra varria o cho. Os capacetes dos
arcabuzeiros reluziam; uma clera devota contorcia as faces esfomeadas do
populacho; e o prstito ondeava nas tortuosidades da rua, entre o clamor do
cantocho, os gritos dos fanticos, o dobrar aterrador dos sinos, o tlintlim das
armas, num terror que enchia toda a cidade, - aproximando-se da plataforma de
tijolo onde j fumegavam as pilhas de lenha.
E o seu desengano foi grande, depois daquela glria eclesistica do sonho,
quando a criada o veio acordar cedo com gua quente para a barba.
Era pois nesse dia que se ia saber do Sr. Joo Eduardo, e escrever-se-lhe!... Devia
encontrar-se com Amlia s onze horas; e foi a primeira coisa que lhe disse,
atirando a porta do quarto com mau modo: - O homem apareceu... Pelo menos
apareceu o amigo intimo, o tipgrafo, que sabe onde a besta
pra.
Amlia, que estava num dia de desalento e terror, exclamou: - Ainda bem, que se
acaba este tormento!
141
Amaro teve um risinho repassado de fel:
- Ento agrada-te, hem?
- Se te parece, neste susto em que ando...
Amaro teve um gesto desesperado de impacincia. Susto! No estava m
hipocrisia! Susto de
qu? Com uma me que era uma babosa, que lhe consentia tudo... O que era, era
que queria casar... Queria outro! Nolhe agradava aquele divertimento pela
manh, de fugida... Queria a coisa comodamente, em casa. Imaginava a menina
que o iludia a ele, um homem de trinta anos e quatro anos de experincia de
confisso? Via bem atravs dela... Era como as outras, queria mudar de homem.
Ela no respondia, muito plida. E Amaro, furioso com o seu silncio:
- Calas-te, est claro... Que hs-de tu dizer? Se a verdade pura!... Depois dos
meus sacrifcios... Depois do que tenho sofrido por ti... Aparece-te o outro, larga
para o outro!
Ela ergueu-se, e batendo o p, desesperada:
- Foste tu que quiseste, Amaro!
- Pudera! Se imaginas que me havia de perder por tua causal Est claro que
quis!... - E olhando-a
de alto, fazendo-lhe sentir um desprezo de alma muito reta; - Mas nem
vergonha tens de mostrar a alegria, o furor de ir para o homem!... s uma
desavergonhada, o que ...
Ela, sem uma palavra, branca como a cal, agarrou o mantelete para sair.
Amaro, exasperado, segurou-a violentamente pelo brao:
- Para onde vais? Olha bem para mim. s uma desavergonhada... Estou-te a
dizer. Ests morta
por dormir com o outro...
- Pois acabou, estou! disse ela.
Amaro, perdido, atirou-lhe uma bofetada.
- No me mates! gritou ela. o teu filho!
Ele ficou diante dela, enleado e trmulo: quela palavra, quela idia do seu filho,
uma piedade,
um amor desesperado revolveu todo o seu ser: e arremessando-se sobre ela,
num abrao que a esmagava, como querendo sepult-la no peito, absorv-la toda
s para si, atirando-lhe beijos furiosos que a magoavam, pela face e pelos
cabelos:
- Perdoa, murmurava, perdoa, minha Ameliazinha! Perdoa, que estou doido!
Ela soluava, num pranto nervoso, - e toda a manh foi no quarto do sineiro um
delrio de amor a que aquele sentimento da maternidade, ligando-os como um
sacramento, dava uma ternura maior, um renascimento incessante de desejo,
que os lanava cada vez mais vidos nos braos um do outro. Esqueceram as
horas; e Amlia s se decidiu a saltar do leito quando ouviram embaixo na
cozinha a muleta do tio Esguelhas.
Enquanto ela se arranjava pressa diante do bocado de espelho que ornava a
parede, Amaro diante dela contemplava-a com melancolia, vendo-a passar o
pente nos cabelos - nos cabelos que ele dentro em breve no tornaria a ver
pentear; deu um grande suspiro, disse-lhe enternecido:
- Esto a acabar os nossos bons dias, Amlia. s tu que queres... Hs-de-te
lembrar algumas vezes destas boas manhs...
- No diga isso! fez ela com os olhos arrasados de gua.
E atirando-se-lhe de repente ao pescoo, com a antiga paixo dos tempos felizes,
murmurou-lhe: - Hei-de ser sempre a mesma para ti... Mesmo depois de casada.
Amaro agarrou-lhe as mos sofregamente:
- Juras?
- Juro.
- Pela hstia sagrada?
- Juro pela hstia sagrada, juro por Nossa Senhora!
- Sempre que tenhas ocasio?
- Sempre!
- Oh, Ameliazinha! oh, filha! no te trocava por uma rainha!
Ela desceu. O proco, dando uma arranjadela ao leito, ouvia-a embaixo falar
tranqilamente com
o tio Esguelhas; e dizia consigo que era uma grande rapariga, capaz de enganar o
diabo, e que havia de fazer andar numa roda-viva o pateta do escrevente.
Aquele "pacto", como lhe chamava o padre Amaro, tornou-se entre eles to
irrevogvel que j lhe discutiam tranqilamente os detalhes. O casamento com o
escrevente consideravam-no como uma destas necessidades que a sociedade
impe e que sufoca as almas independentes, mas a que a natureza se subtrai pela
menor fenda, como um gs irredutvel. Diante de Nosso Senhor, o verdadeiro
marido de Amlia era o senhor proco; era o marido da alma, para quem seriam
guardados os melhores beijos, a obedincia intima, a vontade: o outro teria
quando muito o cadver... J s vezes mesmo tramavam o plano hbil das
correspondncias secretas, dos lugares ocultos de rendez-vous...
142
Amlia estava de novo, como nos primeiros tempos, em todo o fogo da paixo.
Diante da certeza que em algumas semanas o casamento ia tornar "tudo branco
como a neve", os seus transes tinham desaparecido, o mesmo terror da vingana
do Cu calmara-se. Depois, a bofetada que lhe dera Amaro fora como a chicotada
que esperta um cavalo que preguia e se atrasa: e a sua paixo, sacudindo-se e
relinchando forte, ia-a de novo levando no mpeto duma carreira fogosa.
Amaro, esse regozijava-se. Ainda s vezes, decerto, a idia daquele homem, de
dia e de noite com ela, importunava-o... Mas, no fundo, quecompensaes!
Todos os perigos desapareciam magicamente, e as sensaes requintavam.
Findavam para ele aquelas atrozes responsabilidades da seduo, e ficava-lhe a
mulher mais apetitosa.
Instava agora com a Dionsia para que acabasse enfim aquela fastidiosa
campanha. Mas a boa mulher, decerto para se fazer pagar melhor pela
multiplicidade de esforos, no podia descobrir o tipgrafo - aquele famoso
Gustavo que possua, como os anes de romance de cavalaria, o segredo da torre
maravilhosa onde vive o prncipe encantado.
- Oh, senhor! dizia o cnego, isso at j cheira mal! H quase dois meses busca
dum patife!... Homem, escreventes no faltam. Arranje-se outro!
Mas enfim, uma noite em que ele entrara a descansar em casa do proco, a
Dionsia apareceu; e exclamou logo da porta da sala de jantar, onde os dois padres
tomavam o seu caf;
- At que enfim!
- Ento, Dionsia?
A mulher, porm, no se apressou: sentou-se mesmo, com licena dos senhores,
porque vinha
derreada... No, o senhor cnego no imaginava os passos que se vira obrigada a
dar... O maldito tipgrafo lembrava-lhe a histria que lhe contavam em pequena,
dum veado que estava sempre vista e que os caadores a galope nunca
alcanavam. Uma perseguio assim!... Mas, finalmente, apanhara-o... E
tocadito, por sinal.
- Acabe, mulher! berrou o cnego.
- Pois aqui est, disse ela. Nada!
Os dois sacerdotes olharam-na mistificados.
- Nada qu, criatura?
- Nada. O homem foi para o Brasil!
O Gustavo recebera de Joo Eduardo duas cartas: na primeira, onde lhe dava a
morada, para o
lado do Poo do Borratm, anunciava-lhe a resoluo de ir para o Brasil; na
segunda dizia-lhe que mudara de casa, sem lhe indicar a nova adresse, e
declarava que pelo prximo paquete embarcava para o Rio; no dizia nem com
que dinheiro, nem com que esperanas. Tudo era vago e misterioso. Desde ento,
havia um ms, o rapaz no tornara a escrever, donde o tipgrafo conclua que ia a
essa hora nos altos-mares... - "Mas havemos de ving-lo!" tinha ele dito a
Dionsia.
O cnego remexia pausadamente o seu caf, embatocado.
- E esta, padre-mestre? exclamou Amaro, muito branco.
- Acho-a boa.
- Diabo levem as mulheres, e o inferno as confunda! disse surdamente Amaro. Amm, respondeu gravemente o cnego.
XX
Que lgrimas quando Amlia soube a notcia! A sua honra, a paz da sua vida,
tantas felicidades combinadas, tudo perdido e sumido nas brumas do mar, a
caminho para o Brasil!
Foram as semanas piores da sua vida. Ia para o proco, banhada em lgrimas,
perguntando-lhe todos os dias o que havia de fazer.
Amaro, sucumbido, sem idia, ia para o padre-mestre.
- Fez-se tudo o que se pde, dizia o cnego desolado. agentar. No se metesse
nelas!
E Amaro voltava para Amlia com consolaes muito murchas:
- Tudo se h-de arranjar, esperar em Deus!
Era bom o momento para contar com Deus, quando Ele, indignado, a
acabrunhava de misrias! E
aquela indeciso, num homem e num padre, que devia ter a habilidade e a fora
de a salvar, desesperava- a; a sua ternura por ele sumia-se como a gua que a
areia absorve; e ficava um sentimento confuso em que sob o desejo persistente j
transluzia o dio.
Espaava agora de semana a semana os encontros na casa do sineiro. Amaro no
se queixava;
aquelas boas manhs do quarto do tio Esguelhas, eram sempre estragadas com
queixumes; cada beijo 143
tinha um rastro de soluos; e aquilo enervava-o tanto, que lhe vinham desejos de
se atirar tambm de bruos para a enxerga e chorar toda a sua amargura.
No fundo acusava-se de exagerar os seus embaraos, de lhe comunicar um terror
desproporcionado. Outra mulher, de melhor senso, no faria semelhante
espalhafato... Mas que, uma beata histrica, toda nervos, toda medo, toda
exaltao!... Ah, no havia dvida, fora "urna famosa asneira"!
Tambm Amlia pensava que fora "uma asneira". E no ter nunca imaginado que
aquilo lhe poderia suceder! Qual! Como mulher, correra para o amor, toda tonta,
certa que escaparia, ela, - e agora que sentia nas entranhas o filho, eram as
lgrimas e os espantos e as queixas! A sua vida era lgubre: de dia tinha de se
conter diante da me, aplicar-se sua costura, conversar, afetar felicidade... Era
de noite que a imaginao desencadeada a torturava com uma incessante
fantasmagoria de castigos, deste e do outro mundo, misrias, abandonos,
desprezo da gente honrada e chamas do Purgatrio...
Foi ento que um acontecimento inesperado veio fazer diverso quela ansiedade
que se ia tomando um hbito mrbido do seu esprito. Uma noite a criada do
cnego apareceu, esfalfada de correr, a dizer que a Sra. D. Josefa estava morte.
Na vspera a excelente senhora sentira-se doente com uma pontada no lado,
mas insistira em ir Senhora da Encarnao rezar a sua coroa; voltou transida,
com uma dor maior e uma ponta de febre; e nessa tarde, quando o doutor
Gouveia foi chamado, tinha-se declarado uma pneumonia aguda. '
A S. Joaneira correu logo a instalar-se l como enfermeira. E ento, durante
semanas, na tranqila casa do cnego, foi um alvoroo de dedicaes aflitas: as
amigas, quando se no espalhavam pelas igrejas a fazer promessas e a implorar
os seus santos devotos, estavam l em permanncia, saindo e entrando no
quarto da doente com passos de fantasmas, acendendo aqui e alm lamparinas s
imagens, torturando o doutor Gouveia com perguntas piegas. noite na sala,
com o candeeiro a meia luz, era pelos cantos um cochichar de vozes lgubres; e
ao ch, entre cada mastigadela de torrada, havia suspiros, lgrimas furtivamente
limpadas...
O cnego l estava a um canto, aniquilado, sucumbido com aquela brusca
apario da doena e do seu cenrio melanclico - as garrafadas de botica
enchendo as mesas, as entradas solenes do mdico, as faces compungidas que
vm saber se h melhoras, o hlito febril espalhado em toda a casa, o timbre
funerrio que toma o relgio de parede no abafamento de todo o rudo, as toalhas
sujas que ficam dias no lugar em que caram, o anoitecer de cada dia com a sua
ameaa de treva eterna... De resto, um pesar sincero prostrava-o; havia
cinqenta anos que vivia com a mana e era animado por ela; o longo hbito
sempre alerta, escrutador e maligno, estava hoje como refugiado no fundo das
rbitas, assustado da luz, das sombras e dos contornos das coisas. E o seu corpo,
to teso outrora, duma secura de ramo de sarmento, agora ao cair no fundo da
poltrona, sob a trapalhada dos agasalhos, parecia um trapo tambm.
144
Mas enfim o doutor Gouveia, apesar de anunciar uma convalescena longa e
delicada, dissera rindo ao cnego, diante das amigas (depois de ter visto D. Josefa
manifestar o seu primeiro desejo, o desejo de se chegar janela) que com muita
cautela, tnicos, e as oraes de todas aquelas boas senhoras - a mana estava
ainda para amores...
- Ai doutor, exclamou D. Maria, as nossas oraes no lhe ho-de faltar...
- E eu no lhe hei-de faltar com os tnicos, disse o doutor. De modo que, o que
resta congratularmo-nos.
Aquela jovialidade do doutor era para todos como a certeza da sade prxima.
E dai a dias, o cnego, vendo aproximar-se o fim de agosto, falou de alugar casa
na Vieira, como costumava um ano sim outro no, para ir tomar os seus banhos
de mar. O ano passado no fora. Este era o ano de praia...
- E a mana l, naqueles ares saudveis da beira-mar, que acaba de ganhar
foras e carnes...
Mas o doutor Gouveia desaprovou a jornada. O ar muito picante e muito rico do
mar no convinha fraqueza de D. Josefa. Era prefervel irem para a quinta da
Ricoa, nos Poiais, lugar abrigado e muito temperado.
Foi um desgosto para o pobre cnego, que prodigalizou as lamrias. O qu! ir
enterrar-se todo o Vero, o melhor tempo do ano, na Ricoa! E os seus banhos,
meu Deus, os seus banhos?
- Veja o senhor, - dizia ele a Amaro, uma noite no escritrio, - veja o que eu
tenho sofrido... Durante a doena, que desarranjo, que desordem na casa! Ch
passa. Sua mana goza os ares... A Amlia tem um stio escondido para a coisa...
Ricoa ningum a vai ver... A D. Maria tambm vai pra Vieira. As Gansosos, idem.
A rapariga deve ter o bom sucesso ai pelos princpios de Novembro... Da Vieira, e
isso fica por sua conta, no volta ningum dos nossos at princpios de
Dezembro... E quando nos reunirmos de novo est a rapariga limpa e fresca.
- Pois senhores, por ser a primeira idia que voc tem nestes dois ltimos anos,
uma grande idia!
- Obrigado, padre-mestre.
Mas havia uma dificuldade feia: era o ir D. Josefa, rigorista D. Josefa, to
implacvel s fraquezas do sentimento, D. Josefa que pedia para as mulheres
frgeis as antigas penalidades gticas - as letras marcadas na testa com ferro em
brasa, os aoutes nas praas pblicas, os in pace tenebrosos - ir Josefa e pedirlhe para ser cmplice dum parto!
- A mana vai dar urros! disse o cnego.
- Ns veremos, padre-mestre, replicou Amaro repoltreando-se e balouando a
perna, muito certo do seu prestgio devoto. Ns veremos... Hei-de-lhe eu falar...
E quando lhe tiver contado umas lrias... Quando lhe tiver representado que
para ela um caso de conscincia encobrir a pequena... Quando lhe lembrar que
nas vsperas da morte que se deve fazer alguma boa ao, para no se
apresentar porta do Paraso com as mos vazias... Ns veremos!
- Talvez, talvez, disse o cnego. A ocasio boa, porque a pobre mana est
fraquita do juzo e leva-se como uma criana.
Amaro ergueu-se, esfregando vivamente as mos:
145
- Pois , mos obra! mos obra!
Por isso, logo na manh seguinte, Amaro foi, segundo a expresso do cnego,
"dar a grande abordagem mana".
Antes, porm, explicou embaixo no escritrio ao padre-mestre o seu plano:
primeiro, ia dizer a D. Josefa que o cnego estava na inteira ignorncia do
desastre da Ameliazinha, e que ele, Amaro, o sabia, no em segredo de confisso
(nesse caso no o poderia revelar), mas pelas confidncias secretas dos dois - de
Amlia e do homem casado que a seduzira!... Do homem casado, sim!... Porque
enfim era necessrio provar velha que havia a impossibilidade duma reparao
legtima...
O cnego coava a cabea descontente:
- Isso no vai bem arranjado, disse ele. A mana sabe bem que no iam homens
casados Rua da Misericrdia.
- E o Artur Couceiro? exclamou Amaro, sem escrpulo.
O cnego largou a rir, com gosto. O pobre Artur, sem dentes, cheio de filhos, com
os seus olhos de carneiro triste, acusado de perder virgens!... No, essa era boa!
- No pega, proco amigo, no pega! Outra, outra...
Mas ento subitamente partiu dos lbios de ambos o mesmo nome - o
Femandes, o Femandes da loja de panos! Belo homem, que Amlia admirava
muito! Sempre que saa ia-lhe loja: tinha mesmo havido indignao na Rua da
Misericrdia, havia dois anos, com a ousadia do Femandes que acompanhara
Amlia pela estrada de Marrazes at ao Morenal!
J se sabe, no se dizia explicitamente mana, - mas dava-se-lhe a entender que
fora o Femandes.
E Amaro subiu rapidamente para o quarto da velha, que era por cima do
escritrio. Esteve l meia hora, uma longa, uma pesada meia hora para o cnego,
que apenas podia ouvir em cima, ora rangeres das solas de Amaro, ora tosse
cavernosa da velha... E no seu passeio habitual pelo escritrio, da estante para a
janela, com as mos atrs das costas e a caixa do rap nos dedos, ia considerando
quantos incmodos, quantas despesas lhe traria ainda aquele "divertimento do
senhor proco"! Tinha de ter a rapariga na quinta cinco ou seis meses... Depois o
mdico, a parteira que era ele naturalmente que havia de pagar... Depois algum
enxoval para o pequeno... E que se lhe havia de fazer, ao pequeno?... Na cidade, a
Roda fora suprimida; em Ourm, como os recursos da Misericrdia eram escassos
e a afluncia dos enjeitados escandalosa, tinham posto um homem ao p da
sineta da Roda, para interrogar e pr embaraos; havia indagaes de
paternidade, restituies de crianas; e a autoridade, finria, combatia o excesso
dos enjeitamentos com o terror dos vexames...
Enfim, o pobre padre-mestre via diante de si todo um eriamento de dificuldades
para lhe sacudir a pachorra e estragar-lhe a digesto... - Mas o excelente cnego,
no fundo, no se indignava; sempre tivera uma afeio de velho mestre pelo
proco; para a Amlia sempre o inclinara um fraco meio paternal, meio lbrico; e
mesmo j sentia pelo "pequeno" uma vaga condescendncia de av.
A porta abriu-se, e o proco apareceu triunfante.
- Tudo s mil maravilhas, padre-mestre! Que lhe dizia eu?
- Consentiu?
- Em tudo. No foi sem dificuldade... Ia-se abespinhado. Falei-lhe do homem
casado... Que a
Logo nessa noite ele falou S. Joaneira da ida para a Vieira, embaixo na saleta
onde ela estava arranjando pires de marmelada que andavam a secar para a
convalescena da D. Josefa. Comeou por dizer que lhe alugara a casa do
Ferreiro...
- Mas isso um nicho! exclamou ela logo. Onde hei-de eu meter a pequena?
- Ora ai que est. que justamente a Amlia desta vez no vai Vieira.
- No vai?
Foi s ento que o cnego lhe explicou que a mana no podia ir s para a Ricoa,
que ele tinha
pensado em mandar com ela Amlia... Era uma idia que lhe viera nessa manh.
- Eu no posso ir, tenho de tomar os meus banhos, a senhora bem sabe... A
pobre de Cristo no
h-de estar para l s, com uma criada. Portanto...
A S. Joaneira teve um silenciozinho desconsolado:
- Isso verdade. Mas olhe, para lhe dizer com franqueza, custa-me bem deixar a
pequena... Se eu
pudesse dispensar os banhos, ia eu.
- Qual ia! A senhora vem para a Vieira. Eu tambm no hei-de estar l s... Sua
ingrata, sua
ingrata!... - E tomando um tom muito srio: - A senhora veja bem. A Josefa est
com os ps para a cova. Ela sabe que o que eu tenho para mim chega. Ela tem
afeio pequena, sempre madrinha; se a vir agora a trat-la na doena, a estar
ali s com ela uns meses, fica pelo beio. Olhe que a mana ainda vale um par de
mil cruzados. A pequena pode apanhar um bom dote. No lhe digo mais nada...
E a S. Joaneira concordou logo - uma vez que era vontade do senhor cnego.
Em cima, Amaro estava contando rapidamente a Amlia "o grande plano", a cena
com a velha: que ela se prontificara logo, coitadinha, j cheia de caridade,
desejando at ajudar para o enxoval do pequeno...
- Nela podes ter confiana, uma santa... De modo que est tudo salvo, filha.
estar metida quatro ou cinco meses na Ricoa.
Era isso o que fazia choramigar Amlia: perder a estao da Vieira, o
divertimento dos banhos!... Ir enterrar-se todo um Vero naquele sinistro
casaro da Ricoa! A nica vez que l fora, j ao fim da tarde, ficara estarrecida de
medo. Tudo to escuro, dum eco to cncavo... Tinha a certeza que ia l morrer,
naquele degredo.
- Tolice! fez Amaro. dar graas ao Senhor de me ter inspirado esta idia de
salvao. Demais tens a D. Josefa, tens a Gertrudes, o pomar para passear... E eu
vou-te l ver todos os dias. At hs-de gostar, vers.
- Enfim que lhe hei-de eu fazer? agentar. E com duas grossas lgrimas nas
plpebras, amaldioava intimamente aquela paixo que s amarguras lhe dava, e
que agora, quando toda a Leiria ia para a Vieira, a forava a ela a ir fechar-se na
solido da Ricoa, ouvindo tossir a velha e os ces uivar na quinta... - E a mam,
que diria a mam?
- Que h-de dizer? A D. Josefa no pode ir para a quinta s, sem uma enfermeira
de confiana! No te d cuidado. O padre-mestre est l embaixo a trabalh-la...
E eu vou ter com ela, que j aqui estou s h bocado contido, e nestes ltimos
dias necessrio ter cautelinha...
Desceu. Justamente o cnego subia, e encontraram-se na escada. - Ento?
perguntou Amaro ao ouvido do padre-mestre.
- Tudo arranjado. E por l?
- Idem.
E no escuro da escada os dois padres apertaram-se silenciosamente a mo.
Da a dias, depois duma cena de prantos, Amlia partiu com D. Josefa para a
Ricoa num char- -banc.
Tinham arranjado, com almofadas, um recanto cmodo para a convalescente. O
cnego acompanhava-a, furioso com aquele incmodo. E a Gertrudes ia em cima
na almofada, sombra da montanha que faziam sobre o tope do carro os bas de
couro, os cestos, as latas, as trouxas, os sacos de
147
chita, o aafate onde miava o gato, e um fardo amarrado com cordas contendo os
painis dos santos mais queridos de D. Josefa.
Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S. Joaneira para a Vieira, de noite, por
causa da calma. A Rua da Misericrdia estava atravancada com o carro de bois,
que conduzia as louas, os enxerges, o trem de cozinha; e no mesmo char-banc que fora Cortegassa, ia agora a S. Joaneira e a Rua, que levava tambm no
regao um aafate com o gato.
O cnego fora na vspera, s Amaro assistia partida da S. Joaneira. E depois de
toda uma azfama de galgarem cem vezes de baixo a cima as escadas por um
cestinho que esquecera ou um embrulho que desaparecia, quando a Rua enfim
fechou a porta chave, a S. Joaneira, j no estribo do char--banc, rompeu a
chorar.
- Ento, minha senhora, ento! disse Amaro.
- Ai, senhor proco, deixar a pequena!... Mal sabe o que me custa... Parece que a
no torno a ver. Aparea pela Ricoa, faa-me essa esmola. Veja se ela est
contente...
- V descansada, minha senhora.
- Adeus, senhor proco. Muito obrigada por tudo... Ai, os favores que lhe devo!
- Tolices, minha senhora... Boa jornada, d notcias! Recados ao padre-mestre.
Adeus, minha
senhora! adeus, Rua...
O char--banc partiu. E pelo mesmo caminho por onde ele ia rolando, Amaro foi
andando
devagar at estrada da Figueira. Eram ento nove horas; nascera j o luar duma
noite clida e serena de Agosto. Uma tnue nvoa luminosa suavizava a paisagem
calada. Aqui e alm uma fachada saliente de casa rebrilhava, batida da lua, entre
as sombras do arvoredo. Ao p da Ponte, parou ao olhar melancolicamente o rio
que corria sobre a areia com uma sussurrao montona; nos lugares em que as
rvores se debruavam, havia escurides cerradas; e adiante uma claridade
tremia sobre a gua, como um tecido de filigrana faiscante. Ali esteve, naquele
silncio que o calmava, fumando cigarros e atirando as pontas para o rio,
embebido numa tristeza vaga. Depois, ouvindo as onze, veio voltando para a
cidade, passou pela Rua da Misericrdia num enternecimento de recordaes: a
casa, com as janelas fechadas, sem as cortinas de cassa, parecia abandonada para
sempre; os vasos de alecrim tinham ficado esquecidos aos cantos das janelas...
Quantas vezes Amlia e ele se tinham encostado quela varanda! Havia ento um
craveiro fresco, e conversando, ela cortava uma folha, trincava-a nos dentinhos.
Tudo tinha acabado agora! - E na Misericrdia, ao lado, o piar das corujas no
silncio dava-lhe uma sensao de runa, de solido e de fim eterno.
Foi andando para casa, devagar, com os olhos arrasados de gua.
A criada veio logo escada dizer-lhe que o tio Esguelhas, numa aflio, viera
procur-lo duas vezes, haviam de ser nove horas. A Tot estava a morrer, e s
queria receber os sacramentos da mo do senhor proco.
Amaro, apesar da sua repugnncia supersticiosa em voltar assim nessa noite,
para um fim to triste, no meio das recordaes felizes da sua paixo, foi, para
obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o aquelamorte, coincidindo com a
partida de Amlia, e como completando a sbita disperso de quanto at a o
interessara ou estivera misturado sua vida.
A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e na escurido da entrada topou
com duas mulheres que saam suspirando. Foi logo direito alcova da paraltica:
duas grandes velas de cera, trazidas da igreja, ardiam sobre uma mesa: um lenol
branco cobria o corpo da Tot; e o padre Silvrio, que fora decerto chamado por
estar de semana, lia o Brevirio, com o leno nos joelhos, os seus grandes culos
na ponta do nariz. Ergueu-se apenas viu Amaro:
- Ah, colega, disse muito baixo, andaram a procur-lo por toda a parte... A pobre
de Cristo queria-o a voc... Eu, quando me foram buscar, ia fazer a partida a casa
do Novais. a partida do sbado... Que cena! Morreu na impenitncia, como era
dos livros. Quando me viu, e que voc no vinha, que espetculo! At tive medo
que me cuspisse no crucifixo...
Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta do lenol, mas deixou-o logo
recair sobre a face da morta. Depois subia acima, ao quarto onde o sineiro,
estirado sobre a cama, voltado para a parede soluava desesperadamente; estava
com ele outra mulher, que se conservava a um canto, muda, e imvel, com os
olhos no cho, no vago aborrecimento que lhe dava aquele pesado dever de
vizinha. Amaro tocou no ombro do sineiro, falou-lhe:
- necessrio resignao, tio Esguelhas... So decretos do Senhor... Para ela
at uma felicidade.
O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o proco, por entre o vu das lgrimas
que lhe alagavam os olhos, tomou-lhe a mo, quis beijar-lha. Amaro recuou:
- Ento, tio Esguelhas?... Deus h-de ser misericordioso, h-de-lhe levar em
conta a sua dor...
148
Ele no o escutava, sacudido dum pranto convulsivo, - enquanto a mulher, muito
tranqilamente, limpava ora um ora outro canto do olho.
Amaro desceu; e para aliviar o bom Silvrio daquele servio excepcional, tomou o
seu lugar ao p da vela, com o Brevirio na mo.
Ali ficou at tarde. A vizinha ao sair veio dizer-lhe que o tio Esguelhas tinha
pegado a dormir; e ela prometia voltar com a amortalhadeira, mal rompesse a
manh.
Toda a casa ento ficou naquele silncio, que a vizinhana do vasto edifcio da S
fazia parecer mais soturno; s s vezes um mocho piava debilmente nos
contrafortes, ou o grosso bordo batia os quartos. E Amaro, tomado dum
indefinido terror, mas preso ali por uma fora superior da conscincia
sobressaltada, ia precipitando as oraes... s vezes o livro caia-lhe sobre os
joelhos; e ento, imvel, sentindo por detrs a presena daquele cadver coberto
do lenol, recordava, num contraste amargo, outras horas em que o sol banhava
o ptio, as andorinhas esvoaavam, e ele e Amlia subiam rindo para aquele
quarto onde agora, sobre a mesma cama, o tio Esguelhas dormitava com soluos
mal acalmados...
XXI
O cnego Dias recomendara muito a Amaro que ao menos nas primeiras
semanas, para evitar as suspeitas da mana e da criada, no fosse Ricoa. E a
vida de Amaro tornou-se ento mais triste, mais vazia que outrora, quando pela
primeira vez deixando a casa da S. Joaneira viera para a Rua das Sousas. Todos os
seus conhecidos estavam fora de Leiria: D. Maria da Assuno na Vieira; as
Gansosinhos ao p de Alcobaa com a tia, a famosa tia que havia dez anos estava
para morrer e para lhes deixar uma grande herdade. Depois do servio da S, as
horas, todo o longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo. No estaria mais
separado de toda a comunicao humana, se como Santo Antnio vivesse nos
areais do deserto lbico. S o coadjutor que, coisa singular, nunca lhe aparecia nos
tempos felizes, voltara agora, como o companheiro fatdico das horas tristes, a
visit-lo uma, duas vezes por semana, ao fim do jantar, mais magro, mais
chupado, mais soturno, com o seu eterno guarda-chuva na mo. Amaro odiavao; s vezes, para o impor, fingia-se todo ocupado numa leitura; ou precipitandose para a mesa, mal lhe sentia nos degraus as passadas lentas:
- Amigo coadjutor, desculpe, que estou aqui a rabiscar uma coisa.
Mas o homem instalava-se, com o odioso guarda-chuva entre os joelhos:
- No se prenda, senhor proco, no se prenda.
E Amaro, torturado por aquela figura lgubre que no se mexia na cadeira,
atirava a pena,
furioso, agarrava o chapu:
- No estou hoje para a coisa, vou espairecer.
E primeira esquina descartava-se bruscamente do coadjutor.
s vezes, farto da solido, ia visitar o Silvrio. Mas a felicidade pachorrenta
daquele ser obeso,
ocupado em colecionar receitas de medicina caseira e em observar as
perturbaes fantsticas da sua digesto; os seus constantes louvores do doutor
Godinho, dos pequenos e da senhora; as chalaas obsoletas que ele repetia havia
quarenta anos e a inocente hilaridade, que elas lhe davam, impacientavam
Amaro. Saa, enervado, pensando na sorte inimiga que o fizera to diferente do
Silvrio. Aquilo era a felicidade por fim: por que no havia de ele ser tambm um
bom padre caturra, com uma pequenina mania tirnica, parasita regalado duma
famlia respeitvel, tendo um destes sangues tranqilos que giram sob camadas
de gordura, sem perigo de transbordar e de causar desgraas, como um riacho
que corre por baixo duma montanha?...
Outras vezes ia ao colega Natrio, cuja fratura, mal tratada ao princpio, o retinha
ainda na cama com o aparelho na perna. Mas a, enjoava-o o aspecto do quarto impregnado dum cheiro de arnica e de suor, com uma profuso de trapos
ensopados em malgas vidradas, e esquadres de garrafas sobre a cmoda entre
fileiras de santos. Natrio, mal o via aparecer, rompia em queixas: as
cavalgaduras dos mdicos! A sua m sorte habitual! As torturas a que o foravam!
O atraso em que estava a medicina neste maldito pas!... E ia salpicando o soalho
negro de expectoraes e de pontas de cigarro. Desde que estava doente, a sade
dos outros, sobretudo dos amigos, indignava-o como uma ofensa pessoal.
- E voc sempre rijo, hem? Pudera! - murmurava com rancor.
E pensar que aquela besta do Brito nunca lhe doera a cabea! E que o alarve do
abade se gabava de nunca ter estado na cama depois das sete da manh! Animais!
Amaro ento dava-lhe as novidades: alguma carta que recebera do cnego, da
Vieira, as melhoras da D. Josefa...
149
Mas Natrio no se interessava pelas pessoas a quem apenas o unia a convivncia
e a amizade; interessavam-no s os seus inimigos, com quem tinha ligaes de
dio. Queria saber do escrevente, se j tinha estourado de fome...
- Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cair aqui nesta maldita cama!...
Depois era o rico mausolu do Morais, onde sua esposa que, agora, rica e
quarentona, vivia em concubinagem com o belo capito Trigueiros, fizera gravar
uma piedosa quadra:
Entre os anjos espera, esposo,
A metade do teu corao
Que no mundo ficou, to sozinha, Toda entregue ao dever da orao...
Algumas vezes, ao fundo do cemitrio, junto ao muro, via um homem ajoelhado
ao p duma cruz negra, que um choro assombreava, ao lado da vala dos pobres.
Era o tio Esguelhas, com a sua muleta no cho, rezando sobre a sepultura da Tot.
Ia falar-lhe, e mesmo, numa igualdade que aquele lugar justificava, passeavam
familiarmente, ombro a ombro, conversando. Amaro, com bondade, consolava o
velho: de que servia desgraada rapariga a vida para a passar estirada numa
cama?
- Sempre era viver, senhor proco... E eu, veja agora isto, sozinho de dia e de
noite! - Todos tm as suas solides, tio Esguelhas, dizia melancolicamente
Amaro.
O sineiro ento suspirava, perguntava pela Sr. D. Josefa, pela menina Amlia...
- L est na quinta.
- Coitadita, no est m estopada...
- Cruzes da vida, tio Esguelhas.
E continuavam calados por entre as ruas de buxo que fecham os canteiros cheios
de
negrejamento das cruzes e da brancura das lpides novas. Amaro, s vezes,
reconhecia alguma sepultura que ele mesmo tinha aspergido e consagrado: onde
estariam aquelas almas que ele recomendara a Deus em latim, distrado,
engorolando pressa as oraes para ir ter com Amlia? Eram jazigos de gente da
150
Quando se viu naquele casaro da Ricoa, num quarto regelado, pintado a cor de
canrio, lugubremente mobiliado, com uma cama de dossel e duas cadeiras de
couro, chorou toda a noite com a cabea enterrada no travesseiro - torturada por
um co que debaixo das janelas, estranhando sem dvida as luzes e o movimento
na casa, uivou at de madrugada.
151
Ao outro dia desceu quinta a ver os caseiros. Era talvez boa gente com quem
podia distrair-se. Encontrou uma mulher, alta e lgubre como um cipreste,
carregada de luto: um grande leno negro tingido, muito puxado para a testa,
dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma tristeza de dobre
a finados. O homem pareceu-lhe ainda pior, semelhante a um orangotango, com
duas orelhas enormes muito despegadas do crnio, uma salincia bestial do
queixo, as gengivas deslavadas, um corpo desengonado de tsico, de peito
metido para dentro. Abalou bem depressa, foi ver o pomar: andava maltratado;
as ruazitas estavam invadidas por um ervaal mido; e a sombra das rvores
muito juntas, num terreno baixo, cercado de altos muros, dava uma sensao
doentia.
Era ainda prefervel passar os seus dias metida no casaro; dias infindveis em
que as horas se iam movendo com o vagar fastidioso dum desfilar funerrio.
O seu quarto era na frente; e pelas duas janelas recebia a impresso triste da
paisagem que se estendia defronte; uma ondulao montona de terras estreis
com alguma magra rvore aqui e alm, um ar abafado em que parecia errar
constantemente a exalao de pauis prximos e de baixas midas, e a que nem o
sol de Setembro dissipava o tom sezontico.
Logo pela manh ia ajudar a levantar D. Josefa, acomod-la no canap; depois
vinha costurar para ao p dela - como outrora na Rua da Misericrdia para ao p
da me; mas agora em lugar das boas "cavaqueiras" tinha s o silncio intratvel
da velha e a sua ronqueira incessante. Pensara em fazer vir o seu piano da cidade;
mas, apenas em tal falou, a velha exclamou com azedume:
alto onde as suas oraes no pesavam mais que uma pena de canrio, e o outro
prato cado, de cordas retesadas, sustentando a enxerga da cama do sineiro e as
suas toneladas de pecado.
Caiu ento numa melancolia histrica que a envelhecia; passava os dias suja e
desarranjada, no querendo dar cuidados ao seu corpo pecador; todo o
movimento, todo o esforo lhe repugnava; as mesmas oraes lhe custavam,
como se as julgasse inteis; e tinha atirado para o fundo duma arca o enxoval que
andava a costurar para o filho - porque o odiava, aquele ser que ela sentia mexerse-lhe j nas entranhas e que era a causa da sua perdio. Odiava-o - mas menos
que o outro, o proco que lho fizera, o padre malvado que a tentara, a estragara, a
atirara s chamas do Inferno! Que desespero quando pensava nele! Estava em
Leiria sossegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez - e
ela ali sozinha, com o ventre condenado e enfartado do pecado que ele l
depusera, ia-se afundindo na perdio sempiterna!
Decerto esta excitao a teria matado - se no fosse o abade Ferro que comeara
ento a vir ver muito regularmente a irm do amigo cnego.
Amlia ouvira falar muitas vezes nele na Rua da Misericrdia; dizia- se l que o
Ferro tinha "idias esquisitas"; mas no era possvel recusar-lhe nem a virtude
da vida nem a cincia de sacerdote. Havia muitos anos que era ali abade; os
bispos tinham-se sucedido na diocese, e ele ali ficara esquecido naquela
freguesia pobre, de cngrua atrasada, numa residncia onde chovia pelos
telhados. O ltimo vigrio-geral, que nunca dera um passo para o favorecer,
dizia-lhe todavia, liberal de palavreado:
- Voc um dos bons telogos do reino. Voc est predestinado por Deus para
um bispado. Voc ainda apanha a mitra. Voc h-de ficar na histria da Igreja
portuguesa como um grande bispo, Ferro!
- Bispo, senhor vigrio-geral! Isso era bom! Mas era necessrio que eu tivesse o
arrojo dum Afonso de Albuquerque ou dum D. Joo de Castro, para aceitar aos
olhos de Deus semelhante responsabilidade!
E ali ficara, entre gente pobre, numa aldeia de terra escassa, vivendo de dois
pedaos de po e uma chvena de leite, com uma batina limpa onde os remendos
faziam um mapa, precipitando-se a uma meia lgua por um temporal desfeito se
um paroquiano tinha uma dor de dentes, passando uma hora a consolar uma
velha z quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com
um cruzado no fundo do bolso dos cales para uma necessidade do seu vizinho,
grande amigo de todos os rapazitos a quem fazia botes de cortia, e no
duvidando parar, se encontrava uma rapariga bonita, o que era raro na freguesia,
e exclamar: "Linda moa, Deus a abenoe! "
E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era to clebre, que lhe
chamavam "a donzela".
De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas de estao aos ps do
Santssimo Sacramento; cumprindo com uma felicidade fervente as menores
prticas da vida devota; purificando-se para os trabalhos do dia com uma
profunda orao mental, uma meditao de f, de onde a sua alma saa gil, como
dum banho fortificante; preparando-se para o sono com um destes longos e
piedosos exames de conscincia, to teis, que Santo Agostinho e S. Bernardo
faziam do mesmo modo que Plutarco e Sneca, e que so a correo laboriosa e
sutil dos pequenos defeitos, o aperfeioamento meticuloso da virtude ativa,
empreendido com um fervor de poeta que rev um poema querido... E todo o
tempo que tinha vago abismava-se num caos de livros.
Tinha s um defeito o abade Ferro: gostava de caar! Coibia-se, porque a caa
tira muito tempo, e sanginrio matar uma pobre ave que anda azafamada
pelos campos nos seus negcios domsticos. Mas nas claras manhs de Inverno,
quando ainda h orvalho nas giestas, se via passar um homem de espingarda ao
ombro, o passo vivo, seguido do seu perdigueiro - iam-se-lhe os olhos nele... s
vezes, porm, a tentao vencia; agarrava furtivamente a espingarda, assobiava
Janota, e com as abas do casaco ao vento, l ia o telogo ilustre, o espelho da
piedade, atravs de campos e vales... E da a pouco - pum... pum! Uma codorniz,
uma perdiz em terra! E l voltava o santo homem com a espingarda debaixo do
brao, os dois pssaros na algibeira, cosendo-se com os muros, rezando o seu
- Ai, senhor abade, aqueles santos da cidade, o senhor proco, o Sr. Silvrio, o Sr.
Guedes, todos,
todos nos tiravam sempre de embaraos... E com uma habilidade, com uma
virtude...
O abade Ferro ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando que por
todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente o
rebanho naquelas trevas de alma, mantendo o mundo dos fiis num terror abjeto
do Cu, representando Deus e os seus santos como uma corte que no
menos corrompida, nem melhor, que a de Calgula e dos seus libertos.
Quis ento levar quele noturno crebro de devota, povoado de fantasmagorias,
uma luz mais
alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas inquietaes vinham da imaginao
torturada pelo terror de ofender a Deus... Que o Senhor no era um amo feroz e
furioso, mas um pai indulgente e amigo... Que por amor que necessrio servilo, no por medo... Que todos esses escrpulos, Nossa Senhora a enterrar
alfinetes, o nome de Deus a cair no estmago, eram perturbaes da razo
doente. Aconselhou-lhe confiana em Deus, bom regime para ganhar foras. Que
no se cansasse em oraes exageradas...
- E quando eu voltar, disse enfim erguendo-se e despedindo-se, continuaremos
a conversar sobre isto, e havemos de serenar essa alma.
- Obrigada, senhor abade, respondeu a velha secamente.
E apenas a Gertrudes da a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os ps, D.
Josefa exclamou, toda indignada, quase choramigando:
- Ai, no presta para nada, no presta para nada!... No me percebeu... um
tapado... um pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha num sacerdote do
Senhor...
Desde esse dia no tornou a revelar ao abade os pecados medonhos que
continuava a cometer; e quando ele, por dever, quis recomear a educao da sua
alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se confessava com o Sr, padre
Gusmo, no sabia se seria delicado receber de outro a direo moral...
154
O abade fez-se vermelho, respondeu:
- Tem razo, minha senhora, tem razo, deve-se ter muita delicadeza nessas
coisas...
Saiu. E da por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe da sade, de
ter falado do tempo, da estao, das doenas que iam, de alguma festa na igreja, apressava-se em se despedir e ir para o terrao conversar com Amlia.
Vendo-a sempre to tristonha, interessara-se por ela; para Amlia, as visitas do
abade eram uma distrao, naquela solido da Ricoa; e assim se iam
familiarizando, a ponto que nos dias em que ele regularmente vinha, Amlia
punha um mantelete e ia pelo caminho dos Poiais esper-lo at junto da casa do
ferrador. As conversas do abade, falador incansvel, entretinham-na, to
diferentes dos mexericos da Rua da Misericrdia, - como o espetculo dum largo
vale com rvores, plantaes, guas, pomares e rumor de lavouras, recreia os
olhos habituados s quatro paredes caiadas duma trapeira da cidade. Tinha com
efeito uma destas conversaes semelhantes aos jornais semanais de recreio, o
TESOURO DAS FAMLIAS ou as LEITURAS PARA SERES, em que h de tudo doutrina moral, histrias de viagens, anedotas de grandes homens, dissertaes
sobre a lavoura, citao duma boa chalaa, traos sublimes da vida dum santo,
um verso aqui e alm, e at receitas, como uma muito til que deu a Amlia para
lavar as flanelas sem encolherem. S era montono quando falava da sua famlia
paroquiana, dos casamentos, batizados, doenas, questes, ou quando comeava
as suas histrias de caa.
- Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Crrego das Tristes, quando uma
revoada de perdizes...
Amlia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam faanhas da Janota,
pontarias fabulosas contadas em mmica, com imitaes de vozes de pssaros, e
pum, pum de fuzilaria. Ou ento era descries das caadas selvagens que ele lera
com gula - a caa ao tigre do Nepal, ao leo da Arglia e ao elefante, histrias
ferozes que arrastavam a imaginao da rapariga para longe, para os pases
exticos onde a erva alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em
brasa, e entre cada ramagem reluzem os olhos duma fera... E depois, a propsito
de tigres e de malaios, lembrava- lhe um histria curiosa de S. Francisco Xavier,
e ei-lo lanado, o terrvel palrador, na descrio dos feitos da sia, das armadas
da ndia e das estocadas famosas do cerco de Dio!
Foi mesmo um desses dias, no pomar, em que o abade, tendo comeado por
enumerar as vantagens que o cnego tiraria de transformar o pomar em terra de
lavoura, acabara por contar perigos e valores dos missionrios da ndia e do Japo
- que Amlia, ento em toda a intensidade dos seus terrores noturnos, falou dos
rudos que ouvia na casa e dos sobressaltos que lhe davam.
- Oh, que vergonha! disse o abade rindo; uma senhora da sua idade ter medo de
papes...
Ela ento, atrada por aquela bondade do senhor abade, contou-lhe as vozes que
ouvia de noite por detrs da barra da cama.
O abade ps-se srio:
- Minha senhora, isso so imaginaes que deve a todo o custo dominar...
Decerto tem havido prodgios no mundo, mas Deus no se pe assim a falar a
qualquer, por detrs das barras das camas, nem permite ao demnio que o faa...
Essas vozes, se as ouve, e se os seus pecados so grandes, no vm de detrs da
cama, vm-lhe de si mesma, da sua conscincia... E pode ento fazer dormir ao
p de si a Gertrudes, e sem Gertrudes, e todo o batalho de infantaria, que as hde continuar a ouvir... Havia de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que
necessrio calmar a conscincia que reclama penitncia e purificao...
Tinham subido ao terrao, falando assim: e Amlia sentara-se fatigada num dos
bancos de pedra que ali havia, e ficara a olhar a quinta ao longe, os tetos dos
currais, a longa rua de loureiros, a eira, e a distncia os campos que se sucediam
planos e avivados do tom mido que lhes dera a chuva ligeira da manh: agora a
tarde estava de uma placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que
o sol do poente tocava de vivos cor-de-rosa tenro... Pensava naquelas palavras
to sensatas do abade, no descanso que gozaria se cada pecado que lhe pesava na
alma como um penedo se tomasse ligeiro e se dissipasse sob a ao da penitncia.
E vinham-lhe desejos de paz, dum repouso igual quietao dos campos que se
estendiam diante dela.
Um pssaro cantou, depois calou-se; e recomeou dai a um momento com um
trinado to vibrante, to alegre, que Amlia sorria, escutando-o.
- um rouxinol...
- Os rouxinis no cantam a esta hora, disse o abade. um melro... A est um
que no tem medo de fantasmas, nem ouve vozes... Olhe que entusiasmo, o
magano!
Era com efeito um gorjear triunfante, um delrio de melro feliz, que dera de
repente a todo o pomar uma sonoridade festiva.
E Amlia, diante daquele chilrear glorioso dum pssaro contente, subitamente,
sem razo, num destes abalos nervosos que vm s mulheres histricas, rompeu
a chorar.
155
- Ento, que isso, que isso? fez o abade muito surpreendido.
Tomou-lhe a mo, com uma familiaridade de velho e de amigo, calmando-a.
- Que infeliz que sou!.., murmurou ela aos soluos.
Ele ento muito paternal:
- No tem razo para o ser... Sejam quais forem as aflies, as inquietaes, uma
alma crist tem
sempre a consolao mo... No h pecado que Deus no perdoe, nem dor que
no calme, lembre-se disso... O que no deve guardar em si o seu desgosto...
isso que sufoca, que a faz chorar... Se eu lhe posso valer, sosseg-la, procurarme...
Eduardo!
- Ora essa! exclamou o proco. E eu justamente a falar dele! extraordinrio.
Olha que
coincidncia...
- verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E j estou informada de tudo. O homem
est mestre dos
filhos do Morgadinho.
- Que Morgadinho?
- O Morgadinho dos Poiais... Se vive l, ou se vai pela manh e vem noite, isso
no sei. O que sei que voltou... E janota, fato novo...
Eu entendi que devia avisar, porque pode estar certo que ele, mais dia menos dia,
d pela Ameliazinha l na Ricoa... no caminho para casa do Morgado... Que lhe
parece?...
- Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando no serve que aparece. Ento
por fim no foi para o Brasil?
- Pelos modos, no... Que a sombra dele no era, era ele mesmo em carne e
osso... A sair da loja do Fernandes por sinal, e todo peralta... Sempre bom
avisar a rapariga, senhor proco, que se no v ela plantar de janela...
Amaro deu-lhe as duas placas que ela esperava - e da a um quarto de hora,
desembaraado do coadjutor, ia no caminho da Ricoa.
- Para aqui vou indo... um pouco triste isto. como diz o Sr. abade Ferro,
muito grande para a gente se sentir em famlia.
- Ningum veio para aqui para se divertir, disse a velha sem descerrar as
plpebras, com uma voz seca que perdera toda a fadiga.
Amlia baixou a cabea, fazendo-se plida.
Amaro ento, compreendendo num relance que a velha torturava Amlia, disse
com muita severidade:
- verdade, no foi para se divertirem... Mas tambm no foi para se
entristecerem de propsito... Pr-se uma pessoa de mau humor e fazer aos
outros a vida negra, uma falta horrvel de caridade; no h pecado pior aos
olhos do Senhor... indigno da graa de Deus quem tal pratica...
A velha rompeu a choramigar, muito excitada:
- Ai, o que Deus me guardou para os ltimos anos da vida...
Gertrudes animou-a. Ento, senhora, que at lhe fazia pior estar a afligir-se
assim... Ora o
disparate! Tudo se havia de remediar com a ajuda de Deus. Sade no havia de
faltar, nem alegria...
157
Amlia chegara-se janela, decerto para esconder tambm as lgrimas que lhe
saltavam dos olhos. E o proco, consternado com a cena, comeou a dizer que D.
Josefa no estava suportando com a verdadeira resignao duma crist aqueles
dias de doena... Nada escandalizava mais Nosso Senhor que ver as criaturas
revoltarem-se contra as dores ou os encargos que ele mandava... Era insultar a
justia dos seus decretos...
- Tem razo, senhor proco, tem razo, murmurou a velha muito contrita. Eu s
vezes nem sei o que digo... So coisas da doena.
- Bem, como queira, disse por fim. Em todo o caso, quero preveni- Ia que o Joo
Eduardo voltou,
que passa aqui todos os dias, e que bom no se pr de janela.
- Que me importa a mim o Joo Eduardo e os outros e tudo o que passou?... Ele
acudiu, transbordando dum sarcasmo amargo:
- Est claro, agora o grande homem o Sr. abade Ferro!
- Devo-lhe muito, o que sei...
158
A Gertrudes neste momento entrava com o candeeiro aceso. E Amaro, sem se
despedir de Amlia, abalou, de guarda-chuva em riste, rilhando os dentes de
raiva.
Mas a longa caminhada at cidade calmou-o. Aquilo na rapariga por fim era
apenas um acesso de virtude e de escrpulos! Vira-se ali s naquele casaro,
amargurada pela velha, impressionada pelos palavres do moralista Ferro, longe
dele, e tinha-lhe vindo aquela reao de devota com os seus terrores do outro
mundo e apetites de inocncia... Chalaa! Se ele comeasse a ir Ricoa, numa
semana reganhava todo o seu domnio... Ah, conhecia-a bem! Era s tocar-lhe,
piscar-lhe o olho... Estava logo rendida.
Passou porm uma noite inquieta, desejando-a mais que nunca. E ao outro dia
uma hora marchou para Ricoa, levando-lhe um ramo de rosas.
A velha ficou toda contente ao v-lo. que lhe dava sade a presena do senhor
proco! E se no fosse a distncia, havia de lhe pedir esmola de vir todas as
manhs. At depois daquela visitinha rezava com mais fervor...
Amaro sorria, distrado, com os olhos cravados na porta.
- E a menina Amlia? perguntou por fim.
- Saiu... Isso agora todas as manhs a passeata, disse a velha com azedume. Vai
residncia,
toda do abade...
- Ah! fez Amaro com um sorriso lvido. Nova devoo, hem?... pessoa de
muitos mritos, o
abade.
- Ai, no presta, no presta! exclamou D. Josefa. No me percebe. Tem idias
muito esquisitas.
No d virtude...
- Homem de livros... disse Amaro.
Mas a velha erguera-se sobre o cotovelo, e baixando a voz, com o magro caro
aceso em dio:
- E aqui para ns, a Amlia tem-se portado muito mal! Nunca lho hei-de
perdoar... Confessou-se ao abade... uma indelicadeza, sendo a confessada do
senhor proco, no tendo recebido de vossa senhoria seno favores... uma
ingrata, uma traioeira!...
Amaro fizera-se plido.
- Que me diz a senhora?
- A verdade! Que ela no o nega. At se orgulha! uma perdida, uma perdida!
Depois do favor
que lhe estamos a fazer...
Amaro disfarou a indignao que o revolvia. Riu at. Era necessrio no
exagerar. No havia
ingratido. Era uma questo de f. Se a rapariga pensava que o abade a podia
dirigir melhor, tinha razo em se abrir com ele... O que todos queriam que ela
salvasse a sua alma... Que fosse pela direo de fulano ou sicrano, isso no
importava... E nas mos do abade estava bem.
E chegando vivamente a cadeira para o leito da velha:
- Ento agora, todas as manhs vai residncia?
- Quase todas... Que ela no h-de tardar, vai depois de almoo, volta sempre a
esta hora... Ai,
tem-me causado isto um desgosto!...
Amaro deu um passeiozinho nervoso pelo quarto, e estendendo a mo velha:
- Pois minha senhora, eu no me posso demorar, que vim de fugida... At um dia
cedo.
E sem escutar a velha, que lhe pedia com ansiedade que ficasse para jantar desceu os degraus
como uma pedra que rola, meteu furioso pelo caminho da residncia, ainda com
o seu ramo na mo. Esperava encontrar Amlia na estrada; e no tardou em a
avistar quase ao p da casa do ferreiro,
agachada ao p do valado, apanhando sentimentalmente florinhas silvestres. Que fazes tu aqui? exclamou, chegando junto dela.
Ela ergueu-se, com um gritinho.
- Que fazes tu aqui? repetiu.
quele tu, e quela voz colrica, ela ps rapidamente um dedo na boca,
assustada. O senhor abade estava dentro da casa com o ferreiro...
- Ouve l, disse Amaro com os olhos chamejantes, agarrando-lhe o brao, tu
confessaste-te ao abade?...
- Para que quer saber? Confessei... No vergonha nenhuma...
- Mas confessaste tudo, tudo? perguntou ele com os dentes cerrados de raiva.
Ela perturbou-se, e tratando-o ainda por tu:
- Foste tu que me disseste muitas vezes... Que era o maior pecado neste mundo,
esconder alguma
coisa ao confessor!
159
- Bbeda! rugiu Amaro.
com um saco de lustrina cheio de autos. O destino tornara-o igual a tantos heris
que lera nas novelas sentimentais... E o seu palet coado, os seus jantares a
quatro vintns, os dias em que no tinha dinheiro para tabaco, tudo atribua ao
amor fatal de Amlia e perseguio duma classe poderosa, dando assim, por um
instinto muito humano, uma origem grandiosa s suas misrias triviais...
Quando via passar os que ele chamava felizes - indivduos batendo tipia,
rapazes que encontrava com uma linda mulher pelo brao, gente bem atabafada
que se dirigia aos teatros, sentia-se menos desgraado pensando que tambm ele
possua um grande luxo interior que era aquele amor infeliz. E quando enfim por
um acaso obteve a certeza dum emprego no Brasil, o dinheiro da passagem,
idealizava a sua aventura banal de emigrante, repetindo-se durante todo o dia
que ia passar os mares, exilado do seu pas por uma tirania combinada de padres
e autoridades e por ter amado uma mulher!
Quem lhe diria ento, ao emalar o seu fato no ba de lata, que da a semanas
estaria outra vez a meia lgua desses padres e dessas autoridades, contemplando
de olho temo a janela de Amlia! Fora aquele singular Morgadinho de Poiais - que
no era nem Morgadinho nem de Poiais, e apenas um ricao excntrico de ao p
de Alcobaa que comprara aquela velha propriedade dos fidalgos de Poiais, e que,
com a posse da terra, recebia do povo da freguesia a honra do ttulo: fora esse
santo cavalheiro que o livrara dos enjos no paquete e dos acasos da emigrao.
Encontrara-o casualmente no cartrio onde ele ainda trabalhava nas vsperas da
viagem. O Morgadinho cliente do velho Nunes, conhecia-lhe a histria, a
faanha do Comunicado, o escndalo no Largo da S; e j de h muito concebera
por ele uma simpatia ardente.
O Morgadinho tinha com efeito por padres um dio manaco, a ponto de no ler
no jornal a notcia dum crime, sem decidir (ainda mesmo quando o culpado
estava j sentenciado) que "no fundo
161
devia de haver na histria um sotaina". Dizia-se que este rancor provinha dos
desgostos que lhe dera sua primeira mulher, devota clebre de Alcobaa. Apenas
robe-de-chambre amarelo.
- No fundo um anjo, dizia o abade a Joo Eduardo. Capaz de dar a camisa mesmo
a um padre, se
o soubesse em necessidade... E voc aqui est bem, Joo Eduardo... no lhe
reparar nas manias... Tinha tomado afeio a Joo Eduardo, o abade Ferro: e
sabendo por Amlia a famosa legenda do Comunicado quisera, segundo a sua
expresso querida, "folhear o homem aqui e alm". Conversava com ele tardes
inteiras na rua de loureiros da quinta, na residncia onde Joo Eduardo se ia
fornecer de Iivros; e sob o "exterminador de padres", como dizia o Morgado,
encontrara um pobre moo sensvel, com uma religio sentimental, ambies de
paz domstica, e prezando muito o trabalho. Ento viera-lhe uma idia que,
sobretudo por lhe ter acudido num dia que saia das suas devoes ao Santssimo,
lhe parecia descida de cima, da vontade do Senhor: era o cas-lo com Amlia.
No seria difcil levar aquele corao fraco e terno a perdoar o erro dela; e a pobre
rapariga, depois de tantos transes, extinta aquela paixo que lhe entrara na alma
como um sopro do demnio, levando-lhe a vontade, a paz e o pudor de empurro
para o abismo, encontraria na companhia de Joo Eduardo todo um resto de vida
calmo, e contente, um canto suave de interior, refgio doce e purificao do
passado. No falou nem a um, nem a outro, nesta idia que o enternecia. No era
o momento agora, que ela trazia nas entranhas o filho do outro. Mas ia
preparando com amor aquele resultado, - sobretudo quando estava com Amlia,
contando- lhe as suas conversas com Joo Eduardo, algum dito muito sensato
que ele tivera, os bons cuidados de
preceptor que estava desenvolvendo na educao dos Morgaditos.
162
- um bom rapaz, dizia. Homem de famlia... Destes a quem uma mulher pode
realmente confiar a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse ao mundo, se
tivesse uma filha, dava-lha...
Amlia no respondia, corando.
Fora tambm por esse tempo que o doutor Gouveia comeara a vir Ricoa,
porque D. Josefa tinha piorado com os dias mais frios do Outono. Amlia, ao
princpio, hora da visita, fechava-se no seu quarto, tremendo idia de ver o
seu estado descoberto pelo velho doutor Gouveia, o mdico da casa, aquele
homem duma severidade legendria. Mas enfim fora necessrio aparecer no
quarto da velha, para receber as suas instrues de enfermeira sobre as horas dos
remdios e as dietas. E um dia que acompanhara o doutor at porta, ficou
gelada, vendo-o parar, voltar-se para ela cofiando a sua grande barba branca que
lhe caa sobre o jaqueto de veludo, e dizer-lhe sorrindo:
- Eu bem tinha dito a tua me que te casasse!
Duas lgrimas saltaram-lhe dos olhos.
- Bem, bem, pequena, no te quero mal por isso. Ests na verdade. A natureza
manda conceber,
no manda casar. O casamento uma frmula administrativa...
Amlia olhava-o, sem o compreender, com as duas lgrimas muito redondinhas
a correrem-lhe
devagar pela face. Ele bateu-lhe com os dedos no queixo, muito paternal:
- Quero dizer que, como naturalista, regozijo-me. Acho que te tornaste til
ordem geral das
coisas. Vamos ao que importa...
Deu-lhe ento conselhos sobre a higiene que devia ter.
- E quando chegar a ocasio, se te vires atrapalhada, manda-me chamar...
Ia descer; Amlia deteve-o, e com uma suplicao assustada:
- Mas o senhor doutor no vai dizer nada na cidade...
O doutor Gouveia parou:
- Ento no estpida?... Est bom, tambm to perdo. Est na lgica do teu
temperamento.
No, no digo nada, rapariga. Mas para que diabo, ento, no casaste tu com esse
pobre Joo Eduardo? Fazia-te to feliz como o outro, e j no tinhas de pedir
segredo... Enfim, isso para mim um detalhe secundrio... O essencial o que te
disse... Manda-me chamar. No te fies muito nos teus santos... Eu entendo mais
disso que Santa Brgida ou l quem . Que tu s forte, e hs-de dar um bom
moceto ao Estado.
Todas estas palavras que em parte no compreendera bem, mas em que sentia
uma vaga justificao e uma bondade de av indulgente, sobretudo aquela cincia
que lhe prometia a sade e a que as barbas grisalhasdo doutor, umas barbas de
Padre Eterno, davam um ar de infalibilidade, reconfortaram-na, aumentaram a
serenidade que havia semanas gozava, desde a sua confisso desesperada na
capela dos Poiais.
Ah, fora decerto Nossa Senhora, compadecida enfim dos seus tormentos, que lhe
mandara do Cu aquela inspirao de se ir entregar toda dorida aos cuidados do
abade Ferro! Parecia-lhe que deixara l, no seu confessionrio azul-ferrete,
todas as amarguras, os terrores, a negra farrapagem de remorso que lhe abafava a
alma. A cada uma das suas consolaes to persuasivas sentira desaparecer o
negrume que lhe tapava o Cu; agora via tudo azul; e quando rezava, j Nossa
Senhora no desviava o rosto indignado. que era to diferente aquela maneira
em dois dias. Eram os seus bons amigos, como dois paps que o Cu lhe mandava
- um que lhe prometia a sade, outro a graa.
Refugiada naquelas duas protees, gozou uma paz adorvel nas ltimas
semanas de Outubro. Os dias iam muito serenos e muito tpidos. Era bom estar
no terrao, pelas tardes, naquela serenidade outonal dos campos. O doutor
Gouveia s vezes encontrava-se com o abade Ferro; ambos se estimavam;
depois da visita velha, iam para o terrao, e comeavam logo as suas eternas
questes sobre Religio e sobre Moral.
Amlia, com a costura cada nos joelhos, sentindo os seus dois amigos ao p,
aqueles dois colossos de cincia e de santidade, abandonava-se ao encanto da
hora suave, olhando a quinta onde as rvores j empalideciam. Pensava no
futuro; ele aparecia-lhe agora fcil e seguro; era forte, e o parto, com a presena
do doutor, seria apenas uma hora de dores; depois, livre daquela complicao,
voltaria para a cidade e para a mam... E ento uma outra esperana, que nascera
das conversas constantes do abade sobre Joo Eduardo, vinha bailar-lhe na
imaginao. Por que no?... Se o pobre rapaz a amasse ainda, e perdoasse!... Ele
nunca lhe repugnara como homem, e seria um casamento esplndido agora que
ele tinha a amizade do Morgado. Dizia-se que Joo Eduardo ia ser o
administrador da casa... E entrevia-se vivendo nos Poiais, passeando na caleche
do Morgado, chamada para jantar por uma campainha, servida por um escudeiro
de libr... Ficava muito tempo imvel, banhada na doura desta perspectiva,
enquanto o abade e o doutor ao fundo do terrao pelejavam sobre a doutrina da
Graa e da Conscincia, e monotonamente a gua das regas murmurava no
pomar.
Foi por este tempo que D. Josefa, inquieta de no ver aparecer o senhor proco,
mandara expressamente o caseiro a Leiria, pedir a sua senhoria a esmola duma
visita. O homem voltara com a espantosa notcia de que o senhor proco partira
para a Vieira, e no viria seno da a duas semanas. A velha choramigou de
desgosto. E Amlia, nessa noite, no seu quarto, no pde adormecer - na
irritao que lhe dava aquela idia dosenhor proco a divertir-se na Vieira, sem
sombra e fugir-lhe para ser seguido... - E o resultado delicioso ali estava - trs
pginas de paixo, com manchas de lgrimas no papel.
Na quinta-feira apareceu, com efeito. Amlia esperava-o no terrao, donde
estivera desde manh vigiando a estrada com um binculo de teatro. Correu a
abrir-lhe o portozinho verde no muro do pomar.
- Ento, por aqui! disse-lhe o proco, subindo atrs dela ao terrao.
- verdade, como estou sozinha...
- Sozinha?
- A madrinha est a dormir e a Gertrudes foi cidade... Tenho estado toda a
manh aqui ao sol.
Amaro ia penetrando pela casa, sem responder; diante duma porta aberta parou,
vendo um grande leito de dossel, e em redor cadeiras de couro de convento.
- o seu quarto aqui, hem?
- .
Ele entrou familiarmente, com o chapu na cabea.
- Muito melhor que o da Rua da Misericrdia. E boas vistas... So as terras do
Morgado, alm... Amlia cerrara a porta, e indo direita a ele, com os olhos
chamejantes:
- Por que no respondeste a minha carta?
Ele riu:
- boa! E por que no respondeste tu s minhas? Quem comeou?
Foste tu. Dizes que no queres pecar mais. Tambm eu no quero pecar mais.
Acabou-se...
- Mas no isso! exclamou ela plida de indignao. que h a pensar na criana,
na ama, no
enxoval... No abandonar-me para aqui!...
Ele ps-se srio, e com um tom ressentido:
- Peo perdo... Eu prezo-me de ser um cavalheiro. Tudo isso h-de ficar
arranjado antes de
ladrar de ces - que o senhor proco abalou pela estrada, batendo o queixo de
terror.
XXIII
Amaro nessa manh mandou pressa chamar a Dionsia, apenas recebeu o seu
correio. Mas a matrona que estava no mercado veio tarde, quando ele volta da
missa acabava de almoar.
Amaro queria saber ao certo e imediatamente para quando estava a coisa...
- O bom sucesso da pequena?... Entre quinze a vinte dias... Por qu, h
novidade?
Havia; e o proco leu-lhe ento em confidncia uma carta que tinha ao lado.
Era do cnego, que escrevia da Vieira, dizendo "que a S. Joaneira tinha j trinta
banhos e queria
voltar! Eu, acrescentava, perco quase todas as semanas trs, quatro banhos, de
propsito para os espaar e dar tempo, porque c a minha mulher j sabe que eu
sem os meus cinqenta no vai. Ora j tenho quarenta, veja l voc. Demais por
aqui comea a fazer frio deveras. J se tem retirado muita gente. Mande-me pois
dizer pela volta do correio em que estado esto as coisas". E num post-scriptum
dizia: "Tem voc pensado que destino se h-de dar ao fruto?"
- Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a Dionsia.
E Amaro ali mesmo escreveu a resposta ao cnego, que a Dionsia devia levar ao
correio: "A coisa pode estar pronta daqui a vinte dias. Suspenda por todo o modo
a volta da me! Isso de modo nenhum! Diga-lhe que a pequena no escreve nem
vai, porque a excelentssima mana passa sempre adoentada".
E traando a perna:
- E agora, Dionsia, como diz o nosso cnego, que destino se h-de dar ao fruto?
A matrona arregalou os olhos de surpresa:
- Eu pensei que o senhor proco tinha arranjado tudo... Que se ia dar a criana a
criar fora da
terra...
- Est claro, est claro, interrompeu o proco com impacincia. Se a criana
nascer viva
evidente que se h-de dar a criar, e que h-de ser fora da terra... Mas a que
est! Quem h-de ser a ama? isso que eu quero que voc me arranje. Vai sendo
tempo...
A Dionsia pareceu muito embaraada. Nunca gostara de inculcar amas. Ela
conhecia uma boa, mulher forte e de muito leite, pessoa de confiana; mas
infelizmente entrara no hospital, doente... Sabia de outra tambm, at tivera
negcios com ela. Era uma Joana Carreira. Mas no convinha porque vivia
justamente nos Poiais, ao p da Ricoa.
- Qual no convm! exclamou o proco. Que tem que viva na Ricoa?... Em a
rapariga convalescendo as senhoras vm para a cidade, e no se fala mais na
Ricoa.
Mas a Dionsia procurava ainda, arranhando devagar o queixo. Tambm sabia de
outra. Essa morava para o lado da Barrosa, a boa distncia... Criava em casa, era o
seu ofcio... Mas nessa nem falar!
- Mulher fraca, doente?
A Dionsia chegou-se ao proco, e baixando a voz:
- Ai, menino, eu no gosto de acusar ningum. Mas, est provado, uma
tecedeira de anjos!
- Uma qu?
- Uma tecedeira de anjos!
- O que isso? Que significa isso? perguntou o proco.
A Dionsia gaguejou-lhe uma explicao. Eram mulheres que recebiam crianas a
criar em casa.
E sem exceo as crianas morriam... Como tinha havido uma muito conhecida
que era tecedeira, e as criancinhas iam para o Cu... Da que vinha o nome.
Justamente o marido saa do ptio, - medonho, esse, quase ano, com a cabea
embrulhada num
leno e muito enterrada nos ombros, a face de uma amarelido de cera oleosa e
lustrosa; no queixo anelavam-se os plos raros duma barba negra; e sob as
arcadas fundas sem sobrancelhas, vermelhejavam dois olhos raiados de sangue,
olhos de insnia e de bebedeira.
- Para o seu servio, vossa senhoria quer alguma coisa? disse, muito colado saia
da mulher. Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando uma histria que
ia forjando laboriosamente. Era uma parente que ia ter o seu bom sucesso. O
marido no pudera vir falar-lhes porque estava doente... Queria uma ama para
lhes ir para casa, e tinham-lhe dito...
- No, fora de casa, no. C em casa - disse o ano que no se despegava das saias
da mulher, mirando o proco de lado com o seu medonho olho injetado.
Ah, ento tinham-no informado mal... Sentia; mas o que o parente queria era
uma ama para casa. Veio dirigindo-se para a gua, devagar; parou, e abotoando o
casaco:
- Mas em casa recebem crianas para criao?... - perguntou ainda.
- Convindo o ajuste, disse o ano que o seguia.
Amaro arranjou a espora no p, deu um puxo ao estribo, demorando-se,
rondando em tomo da cavalgadura:
- necessrio trazer-lha c, j se sabe.
O ano voltou-se, trocou um olhar com a mulher que ficara porta da cozinha.
- Tambm se lhe vai buscar, disse.
Amaro batia palmadas no pescoo da gua.
- Mas sendo a coisa de noite, agora com esse frio, matar a criana...
Ento os dois, falando ao mesmo tempo, afirmaram que no lhe fazia mal.
Havendo, j se sabe,
carinho e agasalho...
Amaro cavalgou vivamente a gua, deu as boas-tardes e trotou pelo crrego.
Ele calava-se resignado - muito bom, muito temo agora com ela. Vinha-a ver
quase todas as
manhs, porque no queria pelas tardes encontrar o abade Ferro.
Tranqilizara-a a respeito da ama, dizendo-lhe que falara mulher da Ricoa
inculcada pela
Dionsia. Era uma escolha rica a Sra. Joana Carreira! Mulher forte como um
carvalho, com barricas de leite, e dentes de marfim...
- Fica-me to longe para vir ver depois a criana... - suspirava ela.
Tomavam-na agora pela primeira vez entusiasmos de me. Desesperava-se em
no poder ela mesma costurar o resto do enxoval. Queria que o rapaz - porque
havia de ser um rapaz! - se chamasse Carlos. Cismava-o j homem, e oficial de
cavalaria. Enternecia-se com a esperana de o ver gatinhar...
- Ai, eu que o queria criar, se no fosse a vergonha!...
- Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.
Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os dias era a idia de ele ser um
enjeitadinho!
Um dia veio ao abade com um plano extraordinrio "que Lhe inspirara Nossa
Senhora": ela
casaria j com Joo Eduardo, mas o rapaz devia por uma escritura adotar o
Carlinhos! Que para que o anjinho no fosse um enjeitado, casava at com um
calceteiro da estrada! E apertava as mos do abade, numa suplicao loquaz. Que
convencesse Joo Eduardo, que desse um pap ao Carlinhos! Queria ajoelhar aos
ps dele, do senhor abade, que era o seu pai e o seu protetor.
- Oh, minha senhora, sossegue, sossegue. Esse tambm o meu desejo, como
lhe disse. E h-de arranjar-se, mas mais tarde, disse o bom velho, atarantado
daquela excitao.
Depois, da a dias, foi outra exaltao: descobrira de repente, uma manh, que
no devia trair Amaro, "porque era o pap do seu Carlinhos". E disse-o ao abade;
fez corar os sessenta anos do bom velho, palrando muito convencidamente dos
seus deveres de esposa para com o proco.
O abade, que ignorava as visitas do proco todas as manhs, assombrou-se.
- Minha senhora, que est a dizer? que est a dizer? Caia em si... Que
vergonha!... Imaginei que lhe tinham passado essas loucuras.
- Mas o pai do meu filho, senhor abade, disse ela, olhando-o muito sria.
Fatigou ento Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe
cada meia hora que era o "pap do seu Carlinhos".
- Bem sei, filha, bem sei, dizia ele impaciente. Obrigado. No me gabo da
honra...
Ela chorava, ento, aninhada no sof. Era necessria toda uma complicao de
carcias para a calmar. Fazia-o sentar num banquinho junto dela; tinha-o ali
como um boneco, contemplando-o, coando- lhe devagarinho a coroa; queria
que se tirasse a fotografia ao Carlinhos para a trazerem ambos numa medalha ao
pescoo; e se ela morresse, ele havia de levar o Carlinhos sepultura, ajoelh-lo,
pr-lhe as mozinhas, faz-lo rezar pela mam. Atirava-se ento para a
almofada, tapando o rosto com as mos:
- Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre de mim!
- Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.
Ah, aquelas manhs na Ricoa! Eram para ele como uma penalidade injusta. Ao
entrar tinha de ir
velha escutar-lhe as lamrias. Depois, era aquela hora com Amlia, que o
torturava com as pieguices dum sentimentalismo histrico, - estirada no sof,
grossa como um tonel, com a face intumescida, os olhos papudos...
Numa dessas manhs, Amlia, que se queixava de cibras, quis dar um passeio
pelo quarto apoiada a Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu velho robe-dechambre, quando se sentiram, embaixo no caminho, passos de cavalos;
que tinha chegado enfim o dial Nessa manh viera da Ricoa um moo da
quinta com um bilhete de Amlia quase ininteligvel - Dionsia depressa, a coisa
chegou! Trazia ordem tambm de ir chamar o senhor Gouveia. Amaro foi ele
mesmo avisar a Dionsia.
Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josefa, a prpria D. Josefa, lhe inculcara uma
ama - que ele j ajustara, grande mulher, rija como um castanheiro. E agora
combinaram rapidamente que nessa noite Amaro se postaria com a ama
portinha do pomar, e Dionsia viria dar-lhe a criana bem atabafada.
- s nove da noite, Dionsia. E no nos faa esperar! - recomendou-lhe ainda
Amaro vendo-a abalar num espalhafato.
Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face a face com aquela dificuldade
que ele sentia como uma coisa viva fix-lo e interrog-lo: - Que havia de fazer
criana? Tinha ainda tempo de ir aos
172
Poiais ajustar a outra ama, a boa ama que a Dionsia conhecia; ou podia montar a
cavalo e ir Barrosa falar Carlota... E ali estava, diante daqueles dois caminhos,
hesitando numa agonia. Queria serenar, discutir aquele caso como se fosse um
- Foi o padre Saldanha que mo disse. Diz que o nosso chantre declarara (palavras
do
Saldanhinha) que lhe constava que ia na cidade um escndalo com um senhor
eclesistico... Mas no disse quem nem o qu... O Saldanha qui-lo sondar, mas o
chantre diz que recebera s uma denncia vaga, sem nome... Tenho estado a
pensar: quem ser?
- Pataratas do Saldanha...
- Ai, filho ! Deus queira que sejam. Que quem folga, so os mpios... Quando
fores pela Ricoa d recados quelas santinhas...
E pulou pelos degraus a ir levar "a virtude" ao batalho.
Amaro ficara aterrado. Era ele decerto, eram os seus amores com Amlia que j
iam chegando ao vigrio-geral em denncias tortuosas! E ali vinha agora aquele
filho, criado a meia lgua da cidade, ficar como uma prova viva!... Parecia-lhe
extraordinrio, quase sobrenatural, ter o Libaninho, que em dois anos no lhe
viera a casa duas vezes, ter o Libaninho entrado com aquela nova terrvel,
quando ele estava ali numa batalha com a conscincia. Era como a Providncia,
que sob a forma grotesca do Libaninho, vinha trazer-lhe o seu aviso, murmurarlhe: "No deixes viver quem te pode trazer o escndalo! Olha que j se suspeita
de ti!".
Era decerto Deus apiedado que no queria que houvesse na terra mais um
enjeitado, mais um miservel, - e que reclamava o seu anjo!...
No hesitou: partiu para a estalagem do Cruz, e da a cavalo para a casa de
Carlota. Demorou-se l at s quatro horas.
De volta a casa atirou o chapu para cima da cama, e sentiu enfim um alvio de
todo o seu ser.
Estava acabado! L falara Carlota e ao ano; l lhe pagara um ano adiantado;
agora era esperar pela noite!
Dali, Amaro foi ver D. Maria da Assuno - que j se erguera tambm - que lhe
fez a histria da sua bronquite e a enumerao dos ltimos pecados: o pior era
que, para se distrair um bocado na convalescena, recostava-se por trs da
vidraa, e um carpinteiro que morava defronte embasbacava para ela; e por
influncia do maligno, no tinha foras para se retirar. para dentro, e vinhamlhe pensamentos maus...
- Mas vossa senhoria no est com ateno, senhor proco.
- Ora essa, minha senhora!
E apressou-se a pacificar-lhe os escrpulos - porque a salvao daquela alma
idiota era para ele
um emprego melhor que a mesma parquia.
J escurecia quando entrou em casa. A Escolstica queixou-se da demora que lhe
esturrara o
jantar. Mas Amaro tomou apenas um copo de vinho e uma garfada de arroz, que
engoliu de p, olhando com terror pela janela a noite que impassivelmente caia.
Entrava no quarto a ver se os candeeiros j estavam acesos, quando o coadjutor
apareceu. Vinha falar-lhe sobre o batizado do filho do Guedes, que estava
marcado para o dia seguinte s nove horas.
- Trago luz? - disse de dentro a criada sentindo a visita.
- No! gritou logo Amaro.
Temia que o coadjutor visse a alterao que sentia nas faces, ou que se instalasse
para toda a
noite.
- Diz que vem na Nao de anteontem um artigo muito bom - observou o
coadjutor, grave.
- Ah! fez Amaro.
Passeava no seu trilho costumado, do lavatrio para a janela; parava s vezes a
rufar nos vidros;
- Ol!
Foi um alvio quando a clara voz da Carlota disse na negrura: - C est!
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- Bem, esperar, Sra. Carlota.
Estava contente: parecia-lhe que no tinha nada a temer, se o filho partisse
aninhado contra aquele robusto seio de quarentona fecunda, to fresca e to
lavada.
Foi ento rondar a casa. Estava apagada e muda, como um empastamento mais
denso de sombra naquela lgubre noite de Dezembro. Nem uma fenda de luz saa
da janelas do quarto de Amlia. No ar muito pesado nenhuma folhagem
ramalhava. E a Dionsia no aparecia.
Aquela demora torturava-o. Podia passar gente e v-lo rondar na estrada. Mas
repugnava-lhe ir ocultar-se no casebre em runas ao p de Carlota. Foi andando
ao comprido do muro do pomar, voltou, - e viu ento na porta envidraada do
terrao uma claridade de luz aparecer.
Correu para a portinha verde do pomar que quase imediatamente se abriu; e a
Dionsia, sem uma palavra, ps-lhe nos braos um embrulho.
- Morta? perguntou ele.
- Qual! Vivo! Um rapago!
E fechou a porta devagarinho, quando os ces, farejando rumor, comeavam a
ladrar.
Ento o contato do seu filho, contra o seu peito, desmanchou como um vendaval
todas as idias
de Amaro. O qu! ir d-lo quela mulher, tecedeira de anjos, que na estrada o
atiraria a algum valado, ou em casa o arremessaria latrina? Ah! no, era o seu
filho!
Mas que fazer, ento? No tinha tempo de correr aos Poiais e acordar a outra
ama... A Dionsia no tinha leite... No o podia levar para a cidade... Oh! que
desejo furioso de bater quela porta da quinta, precipitar-se para o quarto de
Amlia, meter-lhe o pequerruchinho na cama, muito agasalhado, e todos trs
ficarem ali como no conchego dum cu! Mas qu, era padre! Maldita fosse a
religio que assim o esmagava!
De dentro do embrulho saiu um gemido. Correu ento para o casebre - quase
esbarrou com a Carlota, que se apoderou logo da criana.
- A est, disse ele. Mas oua l. Isto agora srio. Agora outra coisa. Olhe que o
no quero morto... para o tratar. O que se passou no vale... para o criar!
para viver. Voc tem a sua fortuna... Trate dele!...
- No tem dvida, no tem dvida, dizia a mulher apressada.
- Escute... A criana no vai bem agasalhada. Ponha-lhe o meu capote.
- Vai bem, senhor, vai bem.
- No vai, com mil diabos! o meu filho! H-de levar o capote! No quero que
morra de frio!
Atirou-lho aos ombros com fora, traando-lho sobre o peito, agasalhando a
criana; - e a mulher j enfastiada meteu rapidamente pela estrada.
Amaro ficou ali plantado no meio do caminho, vendo o vulto perder-se na
negrura. Ento todos os seus nervos, depois daquele choque, se relaxaram numa
fraqueza de mulher sensvel - e rompeu a chorar.
Muito tempo rondou a casa. Mas ela permanecia na mesma escurido, naquele
silncio que o aterrava. Depois, triste e fatigado, veio voltando para a cidade,
quando batiam as dez badaladas na S.
sacramentos para o caso de haver perigo. Mas o doutor estava satisfeito; durante
as oito horas de dores a rapariga mostrara- se corajosa; o parto fora feliz, de
resto, e sara um rapago que fazia muita honra ao pap.
O bom abade Ferro baixava castamente os olhos queles detalhes, no seu pudor
de sacerdote.
- E agora, dizia o doutor trinchando o peito do frango, agora que eu introduzi a
criana no mundo, os senhores (e quando digo os senhores, quero dizer a Igreja)
apoderam-se dele e no o largam at a morte. Por outro lado, ainda que menos
sofregamente, o Estado no o perde de vista... E a comea o desgraado a sua
jornada do bero sepultura, entre um padre e um cabo de polcia!
O abade curvou-se, e tomou uma estrondosa pitada preparando-se para a
controvrsia.
- A Igreja, continuava o doutor com serenidade, comea, quando a pobre criatura
ainda nem tem sequer conscincia da vida, por lhe impor uma religio...
O abade interrompeu, meio srio, meio rindo:
- doutor, ainda que no seja seno por caridade com a sua alma, devo advertilo que o sagrado Conclio de Trento, cnon dcimo terceiro, comina a pena de
excomunho contra todo o que disser que o batismo nulo, por ser imposto sem
a aceitao da razo.
175
- Tomo nota, abade. Eu estou acostumado a essas amabilidades do Conclio de
Trento para comigo e outros colegas...
- Era uma assemblia respeitvel! acudiu o abade j escandalizado.
- Sublime, abade. Uma assemblia sublime. O Conclio de Trento e a Conveno
foram as duas mais prodigiosas assemblias de homens que a terra tem
presenciado...
O abade pulou.
- Isso no discutir, exclamou, isso no discutir!... Isso so chalaas Voltaire!
Essas coisas devem-se tratar mais de alto...
- Como chalaas, abade? Tome um exemplo: a formao das lnguas. Como se
formaram? Foi Deus, que descontente com a Torre de Babel...
Mas a porta da sala abriu-se, e apareceu a Dionsia. Havia pouco o doutor tinhalhe dado uma desanda no quarto de Amlia; e agora a matrona falava-lhe sempre
encolhida de terror.
- Senhor doutor, disse ela no silncio que se fez, a menina acordou e diz que quer
o filho. - E ento? A criana levaram-na, no?
- A criana levaram-na... disse a Dionsia.
- Bem, acabou-se...
Dionsia ia fechar a porta, mas o doutor chamou-a.
- Oua l, diga-lhe que a criana vem amanh... Que amanh sem falta lha
trazem. Minta. Minta como um co; aqui o senhor abade d licena... Que durma,
que sossegue.
A Dionsia retirou-se. Mas a controvrsia no recomeou: diante daquela me
que acordava depois da fadiga do parto e reclamava o seu filho, o filho que lhe
tinham levado para longe e para sempre, os dois velhos esqueceram a Torre de
Babel e a formao das lnguas. O abade, sobretudo, parecia comovido. Mas o
doutor no tardou, sem piedade, a lembrar-lhe que eram aquelas as
conseqncias da situao do padre na sociedade...
O abade baixou os olhos, ocupado na sua pitada, sem responder, como ignorando
que houvesse um padre naquela histria infeliz.
O doutor, ento, segundo a sua idia, discursou contra a preparao e educao
eclesistica.
Lanou-se ento com calor numa dissertao sobre a sabedoria da Igreja, os seus
altos estudos gregos e latinos, toda uma filosofia criada pelos santos padres...
- Leia S. Baslio! exclamou. L ver o que ele diz dos estudos dos autores
profanos, que so a melhor preparao para os estudos sagrados! Leia a Histria
dos mosteiros na meia-idade! Era l que estava a cincia, a filosofia...
- Mas que filosofia, senhor, mas que cincia! Por filosofia meia dzia de
concepes dum esprito mitolgico, em que o misticismo posto em lugar dos
instintos sociais... E que cincia! Cincia de comentadores, cincia de
gramticos... Mas vieram outros tempos, nasceram cincias novas que os antigos
tinham ignorado, a que o ensino eclesistico no oferecia nem base nem mtodo,
estabeleceu-se logo o antagonismo entre elas e a doutrina catlica!... Nos
primeiros tempos, a Igreja ainda tentou suprimi-las pela perseguio, a
masmorra, o fogo! Escusa de se torcer, abade... O fogo, sim, o fogo e a masmorra.
Mas agora no o pode fazer e limita-se a vituper-las em mau latim... E no
entanto continua a dar nos seus seminrios e nas suas escolas e ensino do
passado, o ensino anterior a essas cincias, ignorando-as, e desprezando-as,
refugiando-se na escolstica... Escusa de apertar as mos na cabea... Estranha
ao esprito moderno, hostil nos seus princpios e nos seus mtodos ao
desenvolvimento espontneo dos conhecimentos humanos... O senhor no
capaz de negar isso! Veja o Syllabus no seu cnone dcimo terceiro...
A porta abriu-se timidamente; era ainda a Dionsia:
- A pequena est a choramigar, diz que quer a criana.
- Mau, mau! disse o doutor.
E depois dum momento:
- Que tal aspecto tem ela? Est corada? Est inquieta?
- No senhor, est bem. S a choramigar, a falar no pequeno...
Diz que o quer hoje por fora...
- Converse com ela, distraia-a... Veja se ela adormece...
A Dionsia retirou-se; e o abade logo com cuidado:
- doutor, supe que lhe possa fazer mal o afligir-se?
- Pode-lhe fazer mal, abade, pode - disse o doutor que rebuscava na sua farmcia
porttil. Mas eu
vou-a fazer dormir... Pois verdade, a Igreja hoje uma intrusa, abade!
O abade tornou a levar as mos cabea.
- Escusa de ir mais longe, abade. Veja a Igreja em Portugal. grato observar-lhe
o estado de
decadncia...
Pintou-lho a largos traos, de p, com o seu frasco na mo. A Igreja fora a Nao;
hoje era uma
minoria tolerada e protegida pelo Estado. Dominara nos tribunais, nos conselhos
da Coroa, na fazenda, na armada, fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da
maioria tinha mais poder que todo o clero do reino. Fora a cincia no pas; hoje
tudo o que sabia era algum latim macarrnico. Fora rica, tinha possudo no
campo distritos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje dependia para o seu triste
po dirio do ministro da Justia, e pedia esmola porta das capelas. Recrutarase entre a nobreza, entre os melhores do reino; e hoje, para reunir um pessoal,
via-se no embarao e tinha de o ir buscar aos enjeitados da Misericrdia. Fora a
depositria da tradio nacional, do ideal coletivo da ptria; e hoje, sem
comunicao com o pensamento nacional (se que o h) era uma estrangeira,
uma cidad de Roma, recebendo de l a lei e o esprito...
- Pois se est assim to prostrada, mais uma razo para a amar! - disse o abade,
erguendo-se escarlate.
Mas a Dionsia tinha de novo aparecido porta.
- Que temos mais?
- A menina est-se a queixar dum peso na cabea. Diz que sente fascas diante
dos olhos...
177
Ento aquele silncio da casa, onde s o som dos seus passos sobre o soalho da
sala punha uma nota viva, comeou a impressionar o velho. Abriu a porta
devagarinho, escutou; mas o quarto de Amlia era muito afastado, ao fim da
casa, ao p do terrao; no vinha de l nem rumor nem luz. Recomeou o seu
passeio solitrio na sala, numa tristeza indefinida que o ia invadindo. Desejaria
bem ir ver tambm a doente; mas o seu carter, o pudor sacerdotal no lhe
permitiam aproximar-se sequer duma mulher no leito, em trabalho de parto, a
no ser que o perigo reclamasse os sacramentos. Outra hora mais longa, mais
fnebre, passou. Ento, em pontas de ps, corando na escurido daquela audcia,
foi at ao meio do corredor: agora, aterrado, sentia no quarto de Amlia um rudo
confuso e surdo de ps movendo-se vivamente no soalho, como numa luta. Mas
nem um ai, nem um grito. Recolheu sala, e abrindo o seu Brevirio comeou a
rezar. Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem rapidamente, numa carreira.
Ouviu uma porta a distncia bater. Depois o arrastar no soalho duma bacia de
lato. E enfim o doutor apareceu. A sua figura fez empalidecer o abade: vinha
sem gravata, com o colarinho espedaado; os botes do colete tinham saltado; e
os punhos da camisa, voltados para trs, estavam todos manchados de sangue.
- Alguma coisa, doutor?
O doutor no respondeu, procurando rapidamente pela sala o seu estojo, com a
face animada dum calor de batalha. Ia j sair com o estojo, mas lembrando-lhe a
pergunta ansiosa do abade:
- Tem convulses, disse.
O abade ento deteve-o porta, e muito grave, muito digno:
- Doutor, se h perigo, peo-lhe que se lembre... uma alma crist em agonia, e
eu estou aqui.
- Certamente, certamente...
O abade tomou a ficar s, esperando. Tudo dormia na Ricoa, D. Josefa, os
caseiros, a quinta, os
campos em redor. Na sala, um relgio de parede, enorme e sinistro, que tinha no
mostrador a carranca do sol e em cima sobre o caixilho a figura esculpida em pau
de uma coruja pensativa, um mvel de castelo antigo, bateu meia-noite, depois
uma hora. O abade a cada momento ia at ao meio do corredor: era o mesmo
rumor de ps numa luta; outras vezes um silncio tenebroso. Voltava ento para
o seu Brevirio. Meditava naquela pobre rapariga que, alm no quarto, estava
talvez no momento que ia decidir da sua eternidade: no tinha ao p nem a me,
nem as amigas: na memria apavorada devia passar-lhe a viso do pecado:
diante dos olhos turvos aparecia-lhe a face triste do Senhor ofendido: as dores
contorciam o seu corpo miservel: e na escurido em que ia penetrando, sentia j
o hlito ardente da aproximao de Satans. Temeroso fim do tempo e da carne!
- Ento rezava fervorosamente por ela.
Mas depois pensava no outro que fora uma metade do seu pecado, e que agora na
cidade, estirado na cama, ressonava tranqilamente. E rezava ento tambm por
ele.
Tinha sobre o Brevirio um pequeno crucifixo. E contemplava-o com amor,
abismava-se enternecido na certeza da sua fora, contra a qual era bem pouca a
cincia do doutor e todas as vaidades da razo! Filosofias, idias, glrias profanas,
geraes e imprios passam: so como os suspiros efmeros do esforo humano:
s ela permanece e permanecer, a cruz - esperana dos homens, confiana dos
desesperados, amparo dos frgeis, asilo dos vencidos, fora maior da
humanidade: crux triumphus adversus demonios, crux oppugnatorum murus...
Ento o doutor entrou, muito escarlate, vibrante daquela tremenda batalha que
estava dando l dentro morte; vinha buscar outro frasco; mas abriu a janela,
sem uma palavra, para respirar um momento uma golfada de ar fresco.
- Como vai ela? perguntou o abade.
- Mal, disse o doutor, saindo.
pancada de chuva, cortando a escurido da noite com o daro vermelho das suas
lanternas.
XXIV
179
Ao outro dia desde as sete da manh, o padre Amaro esperava a Dionsia em casa,
postado janela, com os olhos cravados na esquina da rua, sem reparar na chuva
miudinha que lhe fustigava a face. Mas a Dionsia no aparecia: e ele teve de
partir para a S, amargurado e doente, a batizar o filho do Guedes.
Foi uma pesada tortura para ele ver aquela gente alegre que punha na gravidade
da S, mais sombria por esse escuro dia de Dezembro, todo um rumor mal
contido de regozijo domstico e de festa paterna; o pap Guedes resplandecente
de casaca e gravata branca, o padrinho compenetrado com uma grande camlia
ao peito, as senhoras de gala, e sobretudo a parteira rechonchuda, passeando
com pompa um monto de rendas engomadas e de laarotes azuis, onde mal se
percebiam duas bochechinhas trigueiras. Ao fundo da igreja, com o pensamento
bem longe da Ricoa e na Barrosa, foi engorolando pressa as cerimnias:
soprando em cruz sobre a face do pequerrucho, para expulsar o Demnio que j
habitava aquelas carninhas tenras; impondo-lhe o sal sobre a boca, para que ele
se desgostasse para sempre do sabor amargo do pecado e tomasse gosto a nutrirse s da verdade divina; tocando-o com saliva nas orelhas e nas narinas, para que
ele no escutasse jamais as solicitaes da carne e jamais respirasse os perfumes
da terra. E em roda, com tochas na mo, os padrinhos, os convidados, na fadiga
que davam tantos latins rosnados pressa, s se ocupavam do pequeno, num
receio que ele no respondesse com algum desacato impudente s tremendas
exortaes que lhe fazia a Igreja sua Me.
Amaro, ento, pondo de leve o dedo sobre a touquinha branca, exigiu do
pequerrucho que ele, ali em plena S, renunciasse para sempre a Satans, s suas
pompas e s suas obras. O sacristo Matias, que dava em latim as respostas
rituais, renunciou por ele - enquanto o pobre pequerrucho abria a boquinha a
procurar o bico da mama. Enfim o proco dirigiu-se pia batismal seguido de
toda a famlia, das velhas devotas que se tinham juntado, de gaiatos que
esperavam uma distribuio de patacos. Mas foi toda uma atrapalhao para fazer
as unes: a parteira comovida no atinava a desapertar os laarotes do chambre,
para pr a nu os ombrozinhos, o peito do pequeno; a madrinha quis ajud-la;
mas deixou escorregar a tocha, alastrou de cera derretida o vestido duma
senhora, uma vizinha dos Guedes, que ficou embezerrada de raiva.
- Franciscus, credis? - perguntava Amaro.
O Matias apressou-se a afirmar, em nome de Francisco:
- Credo.
- Franciscus, vis baptisari?
O Matias:
- Volo.
Ento a gua lustral caiu sobre a cabecinha redonda como um melo tenro: a
criana agora
perneava numa perrice.
- Ego te baptiso, Franciscus, in nomine Patris... et Filiis... et Spiritus Sancti.. .
Enfim, acabara! Amaro correu sacristia a desvestir-se - enquanto a parteira
grave, o pap
Guedes, as senhoras enternecidas, as velhas devotas e os gaiatos saam ao
repique dos sinos; e agachados sob os guarda-chuvas, chapinhando a lama, l
iam levando em triunfo Francisco, o novo cristo.
Amaro galgou os degraus de casa com o pressentimento que ia encontrar a
Dionsia.
L estava, com efeito, sentada no quarto, esperando-o, amarrotada, enxovalhada
da luta da noite e da lama da estrada: e apenas o viu comeou choramigar.
- Que , Dionsia?
Ela rompeu em soluos, sem responder.
- Morta! exclamou Amaro.
- Ai, fez-se-lhe tudo, filho, fez-se-lhe tudo! gritou enfim a matrona.
A mulher tinha justamente visto passar a Sra. Carlota, que at parara a comprar
um quartilho de azeite. Devia estar em casa da Micaela, ao adro. Chamou para
dentro; uma rapariguita vesga apareceu detrs da sombra das pipas.
- Corre, vai Micaela, dize Sra. Carlota que est aqui um senhor da cidade.
Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou sentado numa pedra, com o seu
cavalo pela rdea. Mas aquela casa fechada e muda aterrava-o. Foi pr o ouvido
fechadura, na esperana de ouvir um choro, uma rabugem de criana. Dentro
pesava um silncio de caverna abandonada. Mas tranqilizava-o a idia que a
Carlota teria levado a criana consigo, para a Micaela. Devia realmente ter
perguntado mulher na taberna, se a Carlota trazia uma criana ao colo... E
olhava a casa bem caiada, com a sua janela em cima que tinha uma cortininha de
cassa, um luxo to raro naquelas freguesias pobres; recordava a boa ordem, o
escarolado da loua da cozinha... Decerto, o pequerrucho devia ter tambm um
bero asseado...
Ah, estava doido decerto na vspera, quando pusera ali, na mesa da cozinha,
quatro libras de ouro, preo adiantado dum ano de criao, e dissera cruelmente
ao ano: "Conto consigo!" Pobre pequerruchinho!... Mas a Carlota compreendera
bem, noite na Ricoa, que ele agora queria-o vivo, o seu filho, e criado com
mimo!... Todavia no o deixaria ali, no, sob o olho raiado de sangue do ano...
Lev-lo-ia nessa noite Joana Carreira dos Poiais...
Que as sinistras histrias da Dionsia, a tecedeira de anjos, eram uma legenda
insensata. A criana estava muito regalada em casa da Micaela, chupando aquele
bom peito de quarentona s... E vinha-lhe ento o mesmo desejo de deixar
Leiria, ir enterrar-se em Feiro, levar consigo a Escolstica, educar l a criana
como sobrinho, revivendo nele largamente todas as emoes daquele romance
de dois anos; e ali passaria numa paz triste, na saudade de Amlia, at ir como o
seu antecessor, o abade Gustavo que tambm criara um sobrinho em Feiro,
repousar para sempre no pequeno cemitrio, de Vero sob as flores silvestres, de
Inverno sob a neve branca.
lhe devo, enquanto tiver um sopro de vida. E adeus, que nem sei onde tenho a
cabea. - Seu amigo do C. - Amaro Vieira."
''P.S. - A criana morreu tambm, j se enterrou''.
Fechou a carta com uma obreia preta; e depois de arranjar os seus papis, foi
abrir o grande porto chapeado de ferro, olhar um momento o ptio, o barraco, a
casa do sineiro... As nvoas, as primeiras chuvas j davam quele recanto da S o
seu ar lgubre de Inverno. Adiantou-se devagar, sob o silncio triste dos altos
contrafortes, espreitou vidraa da cozinha do tio Esguelhas: ele l estava,
sentado chamin, com o cachimbo na boca, cuspilhando tristemente para as
cinzas. Amaro bateu de leve nos vidros - e quando o sineiro abriu a porta, aquele
interior conhecido, rapidamente entrevisto, a cortina da alcova da Tot, a escada
que ia para o quarto, agitaram o proco de tantas recordaes e de saudades to
bruscas, que no pde falar um momento, com a garganta tomada de soluos.
- Venho-lhe dizer adeus, tio Esguelhas, murmurou por fim. Vou a Lisboa, tenho
minha irm a morrer...
E acrescentou com os beios trmulos dum choro que ia romper:
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- Todas as desgraas vm juntas. Sabe, a pobre Ameliazinha l morreu de
repente...
O sineiro emudeceu, assombrado.
- Adeus, tio Esguelhas. D c a mo, tio Esguelhas. Adeus...
- Adeus, senhor proco, adeus! disse o velho com os olhos arrasados de gua.
Amaro fugiu para casa, contendo-se para no soluar alto pelas ruas. Disse logo
Escolstica
que ia partir nessa noite para Lisboa. O tio Cruz devia mandar-lhe um cavalo,
para ir tomar o comboio a Cho de Mas.
Ao outro dia, pelas onze horas, o enterro de Amlia saiu da Ricoa. Era uma
manh spera: o cu e os campos estavam afogados numa nvoa pardacenta; e
caia muito mida, uma chuva regelada. Era longe da quinta capela dos Poiais. O
menino do coro adiante, de cruz alada, apressava. se, chapinhando a lama a
grandes pernadas; o abade Ferro, de estola negra, abrigava-se, murmurando o
Exultabunt Domino, sob o guarda-chuva que sustentava ao lado o sacristo com
o hissope; quatro trabalhadores da quinta, abaixando a cabea contra a chuva
oblqua, levavam numa padiola o esquife que tinha dentro o caixo de chumbo; e,
sob o vasto guarda-chuva do caseiro, a Gertrudes de mantu pela cabea ia
desfiando as suas contas. Ao lado do caminho o vale triste dos Poiais cavava-se,
todo pardo na neblina, num grande silncio; e a voz enorme do vigrio, mugindo
o Miserere, rolava pela quebrada mida onde murmuravam os riachos muito
cheios.
Mas s primeiras casas da aldeia os moos do caixo pararam derreados; e ento
um homem, que estava esperando debaixo duma rvore sob o seu guarda-chuva,
O baixito riu:
- Qual veia rebentada! No lhe rebentou coisa nenhuma. O que lhe rebentou foi
um rapago pelo ventre...
- Obra do Sr. Joozinho? perguntou o Serafim, arregalando o olho brejeiro.
- No me parece, disse o outro com importncia. O Sr. Joozinho estava em
Lisboa... Obra de algum cavalheiro da cidade. Sabe vossemec de quem eu
desconfio, Sr. Serafim?
Mas a Gertrudes, esbaforida, rompeu pela taberna gritando que o saimento j ia
ao p do cemitrio, e que no faltavam seno "aqueles senhores"! Os lacaios
abalaram logo, e alcanaram o enterro quando ia passando a pequena grade do
cemitrio, ao ltimo versculo do Miserere. Joo Eduardo agora levava uma vela
na mo, ia logo atrs do caixo de Amlia, tocando-o quase, com os olhos
enevoados de lgrimas fitos no veludilho negro que o cobria. Sem cessar o sino
na capela dobrava desoladamente. A chuva caa mais mida. E todos calados, no
silncio fusco do cemitrio, com passos abafados pela terra mole, iam-se
dirigindo para o canto do muro onde estava cavada de fresco a cova de Amlia,
negra e profunda entre a relva mida. O menino do coro cravou no cho a haste
da cruz prateada, e o abade Ferro, adiantando-se at beira do buraco escuro,
murmurou o Deus cujus miseratione... Ento Joo Eduardo, muito plido, vacilou
de repente, e o guarda-chuva caiu-lhe das mos; um dos criados de farda correu,
segurou-o pela cinta; queriam-no levar, arranc-lo de ao p da cova; mas ele
resistiu, e ali ficou, com os dentes cerrados, segurando-se desesperadamente
manga do criado, vendo o coveiro e os dois
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moos amarrarem as cordas no caixo, fazerem-no resvalar devagar entre a terra
esfarelada que rolava, com um ranger de tbuas mal pregadas.
- Requiem aeternam dona ei, Domine!
- Et lux perpetua luceat ei, mugiu o sacristo.
O caixo bateu no fundo com uma pancada surda: o abade espalhou em cima uma
pouca de terra
em forma de cruz: e sacudindo lentamente o hissope sobre o veludilho, a terra, a
relva em redor: - Requiescat in pace.
- Amm, responderam a voz cava do sacristo e a voz aguda do menino do coro.
- Amm, disseram todos num murmrio, que ciciou, se perdeu entre os
ciprestes, as ervas, os tmulos e as nvoas frias daquele triste dia de Dezembro.
XXV
Nos fins de Maio de 1871 havia grande alvoroo na Casa Havanesa, ao Chiado, em
Lisboa. Pessoas esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos que atulhavam a
porta, e alando-se em bicos de ps esticavam o pescoo, por entre a massa dos
chapus, para a grade do balco, onde numa tabuleta suspensa se colavam os
telegramas da Agncia Havas; sujeitos de faces espantadas saam consternados,
exclamando logo para algum amigo mais pacato que os esperava fora:
- Tudo perdido! Tudo a arder!
Dentro, na multido de grulhas que se apertava contra o balco, questionava-se
forte; e pelo passeio, no Largo do Loreto, defronte ao p do estanco, pelo Chiado
at ao Magalhes, era, por aquele dia j quente docomeo de Vero, toda uma
gralhada de vozes impressionadas onde as palavras - Comunistas! Versalhes!
Petroleiros! Thiers! Crime! Internaciona1! voltavam a cada momento, lanadas
com furor, entre o rudo das tipias e os preges dos garotos gritando
suplementos.
Com efeito, a cada hora, chegavam telegramas anunciando os episdios
sucessivos da insurreio batalhando nas ruas de Paris: telegramas despedidos de
Versalhes num terror dizendo os palcios que ardiam, as ruas que se aluam;
fuzilamentos em massa nos ptios dos quartis e entre os mausolus dos
cemitrios; a vingana que ia saciar-se at escurido dos esgotos; a fatal
demncia que desvairava as fardas e as blusas; e a resistncia que tinha o furor
duma agonia com os mtodos duma cincia, e fazia saltar uma velha sociedade
pelo petrleo, pela dinamite e pela nitroglicerina! Uma convulso, um fim do
mundo - que vinte, trinta palavras de repente mostravam, num relance, a um
claro de fogueira.
O Chiado lamentava com indignao aquela runa de Paris. Recordavam-se com
exclamaes os edifcios ardidos, o Hotel de Ville, "to bonito", a Rua Royale,
"aquela riqueza". Havia indivduos to furiosos com o incndio das Tulherias
como se fosse uma propriedade sua; os que tinham estado em Paris um ou dois
meses abriam-se em invectivas, arrogando-se uma participao de parisienses
na riqueza da cidade, escandalizados por a insurreio no ter respeitado os
monumentos em que eles tinham posto os seus olhos.
- Vejam vocs! exclamava um sujeito gordo. O palcio da Legio de Honra
destrudo! Ainda no h um ms que eu l estive com minha mulher... Que
infmia! Que patifaria!
Mas espalhara-se que o ministrio recebera outro telegrama mais desolador:
toda a linha do boulevard da Bastilha Madalena ardia, e ainda a Praa da
Concrdia, e as avenidas dos Campos Elsios at ao Arco do Triunfo. E assim
tinha a revolta arrasado, numa demncia, todo aquele sistema de restaurantes,
cafs-concertos, bailes pblicos, casas de jogo e ninhos de prostitutas! Ento
houve por todo o Largo do Loreto at ao Magalhes um estremecimento de furor.
Tinham pois as chamas aniquilado toda aquela centralizao to cmoda da
patuscada! Oh que infmia! O mundo acabava! Onde se comeria melhor que em
Paris? Onde se encontrariam mulheres mais experientes? Onde se tornaria a ver
aquele desfilar prodigioso duma volta do Bois, nos dias speros e secos de
Inverno, quando as vitrias das cocottes resplandeciam ao p dos fetons dos
agentes da Bolsa? Que abominao! Esqueciam-se as bibliotecas e os museus:
mas a saudade era sincera pela destruio dos cafs e pelo incndio dos
lupanares. Era o fim de Paris, era o fim da Frana!
Num grupo ao p da Casa Havanesa os questionadores politicavam: pronunciavase o nome de Proudhon que, por esse tempo, se comeava a citar vagamente em
Paris... O meu Paris!... Creiam vossas senhorias que tenho estado doente.
Os dois sacerdotes, com uma expresso consternada, uniram-se do estadista.
E ento o cnego:
- E qual pensa vossa excelncia que ser o resultado?
O Sr. conde de Ribamar, com pausa, em palavras que saam devagar,
sobrecarregadas do peso
das idias, disse:
- O resultado?... No difcil prev-lo. Quando se tem alguma experincia da
Histria e da
Poltica, o resultado de tudo isto v-se distintamente. To distintamente como
os vejo a vossas senhorias. . Os dois sacerdotes pendiam dos lbios profticos do
homem do governo.
- Sufocada a insurreio, continuou o senhor conde olhando a direito de si com o
dedo no ar,
como seguindo, apontando os futuros histricos que a sua pupila, ajudada pelos
culos de ouro, penetrava - sufocada a insurreio, dentro de trs meses temos
de novo o imprio. Se vossas senhorias tivessem visto como eu uma recepo nas
Tulherias ou no Hotel de Ville, nos tempos do imprio, haviam de dizer, como eu,
que a Frana profundamente imperialista e s imperialista... Temos pois
Napoleo III: ou
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talvez ele abdique, e a imperatriz tome a regncia na menoridade do prncipe
imperial... Eu aconselharia antes, e j o fiz saber, que era esta talvez a soluo
mais prudente. Como conseqncia imediata temos o papa em Roma, outra vez
senhor do poder temporal... Eu, a falar a verdade, e j o fiz saber, no aprovo uma
restaurao papal. Mas eu no lhes estou aqui a dizer o que aprovo, ou o que
reprovo. Felizmente no sou o dono da Europa. Seria um encargo superior
minha idade e s minhas enfermidades. Estou a dizer o que a minha experincia
da Poltica e da Histria me aponta como certo. Dizia eu...? Ah! a imperatriz no
trono de Frana, Pio Nono no trono de Roma, a temos a democracia esmagada
entre estas duas foras sublimes, e creiam vossas senhorias um homem que
conhece a sua Europa e os elementos de que se compe a sociedade moderna,
creiam que depois deste exemplo da Comuna no se torna a ouvir falar de
repblica, nem de questo social, nem de povo, nestes cem anos mais
chegados!...
- Deus Nosso Senhor o oua, senhor conde, fez com uno o cnego.
Mas Amaro, radiante de se achar ali, numa praa de Lisboa, em conversao
ntima com um estadista ilustre, perguntou ainda, pondo nas palavras uma
ansiedade de conservador assustado:
- E cr vossa excelncia que essas idias de repblica, de materialismo, se
possam espalhar entre ns?
O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois padres, at quase junto das grades
que cercam a esttua de Lus de Cames:
- No lhes d isso cuidado, meus senhores, no lhes d isso cuidado! possvel
que haja a um ou dois esturrados que se queixem, digam tolices sobre a
decadncia de Portugal, e que estamos num marasmo, e que vamos caindo no
embrutecimento, e que isto assim no pode durar dez anos, etc., etc.
Baboseiras!...
Tinham-se encostado quase s grades da esttua, e tomando uma atitude de
confiana:
- A verdade, meus senhores, que os estrangeiros invejam-nos... E o que vou a
dizer no para lisonjear a vossas senhorias: mas enquanto neste pas houver
sacerdotes respeitveis como vossas senhorias, Portugal h-de manter com
dignidade o seu lugar na Europa! Porque a f, meus senhores, a base da ordem!
- Sem dvida, senhor conde, sem dvida, disseram com fora os dois sacerdotes.
- Seno, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animao, que prosperidade!
E com um grande gesto mostrava-lhes o Largo do Loreto, que quela hora, num
fim de tarde
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