Rudolf Steiner - Verdade e Ciencia
Rudolf Steiner - Verdade e Ciencia
Rudolf Steiner - Verdade e Ciencia
VERDADE E CIÊNCIA
tradução de
RUDOLF LANZ
Título do original.
1
PREFÁCIO À EDIÇÃO ALEMÃ................................................................................... 2
INTRODUÇÃO.................................................................................................... 4
I.OBSERVAÇÕES PRELIMINARES............................................................................... 5
V.CONHECIMENTO E REALIDADE............................................................................. 16
A filosofia da nossa época sofre de uma fé malsã em Kant. Este livro pretende contribuir para
superá-la. Seria um sacrilégio diminuir os méritos imperecíveis desse homem em prol do
desenvolvimento da ciência na Alemanha. Mas devemos, afinal, dar-nos conta de que só podemos
lançar as bases de uma visão realmente satisfatória do mundo e da vida se nos colocarmos
decididamente em oposição a esse espírito. Qual foi o resultado alcançado por Kant? Ele mostrou
que a nossa capacidade cognitiva não pode penetrar no fundamento das coisas situado além do
nosso mundo sensorial e racional, fundamento que seus precursores tinham procurado por meio de
moldes conceituais mal compreendidos. Disso ele concluiu que nosso pendor científico devia
permanecer dentro do que pode ser alcançado pela experiência, não podendo chegar a conhecer o
fundamento primordial supra-sensível, a “coisa em si”. Mas o que seria se essa “coisa em si”, com
todo o fundamento transcendente dos objetos, fosse apenas um fantasma? É fácil perceber que a
realidade é mesmo essa. Pesquisar o âmago mais profundo das coisas, desvendar os seus princípios
primordiais, é um impulso inseparável da natureza humana. É o fundamento de toda atividade
científica.
Mas não existe a menor causa para se procurar esse fundamento primordial fora do mundo
sensorial e espiritual que nos é dado, enquanto uma pesquisa deste mundo, realizada em todos os
sentidos, não produz elementos a ele imanentes que apontem claramente para uma influência de
fora.
O nosso livro procura demonstrar que por meio do nosso pensar se pode captar tudo que deve
ser aduzido para a explicaçao do mundo e a elucidação de suas causas. A suposição de que existam
princípios do nosso mundo situados fora dele revela-se como preconceito de uma filosofia que vive
ilusoriamente em dogmas vãos. Kant deveria ter chegado a esse resultado se realmente houvesse
investigado para que fins o nosso pensar está disposto. Em vez disso demonstrou, pelos caminhos
mais complicados, que não podemos chegar aos últimos princípios situados além da nossa
experiência, devido à configuração do nosso poder cognitivo. Mas se obedecessemos à razão, nem
2
deveríamos deslocá-los para tal além. Kant bem refutou a filosofia “dogmática”, mas sem nada
colocar em seu lugar. A filosofia alemã imediatamente posterior desenvolveu-se portanto, de modo
geral, em oposição a Kant. Fichte, Schelling e Hegel nem se preocuparam com os limites do nosso
conhecimento abalizados pelo seu precursor, e procuraram os princípios primordiais das coisas
dentro do aquém da razão humana. Mesmo Schopenhauer, não obstante sua afirmação de que os
resultados da critica da razão de Kant seriam verdades para sempre inabaláveis, não deixa de en-
veredar por caminhos diversos dos de seu mestre, para atingir o conhecimento das últimas causas
do Universo. Foi a desdita desses pensadores terem eles procurado o conhecimento das verdades
supremas sem haver lançado o fundamento para tal empreendimento através de investigação da
própria natureza da cognição. Os imponentes edifícios das idéias de Fichte, Schelling e Hegel
carecem, pois, de fundações. A falta destas teve, por sua vez, um efeito nocivo sobre os raciocínios
dos filósofos. Desconhecendo a importância do mundo das idéias puras e sua relação com a área da
percepção sensorial, eles amontoaram erros sobre erros, uma sobre outra unilateralidade. Não é de
admirar que seus sistemas demasiadamente audaciosos não hajam conseguido resistir às
tempestades de uma era hostil à Filosofia, e muito do que continham de bom haja sido
impiedosamente varrido junto com o mau.
As investigações que seguem pretendem remediar uma falha aludida no texto precedente. Não
desejamos, como fez Kant, expor o que o poder cognitivo não é capaz de realizar, mas, sim,
mostrar o que é realmente habilitado a fazer.
O resultado destas investigações é que, contrariamente à suposição geralmente aceita, a
verdade não é uma reflexão imaterial de algo real, mas um produto livre do espírito humano, não
podendo existir de forma alguma e em nenhum lugar se nós mesmos não o produzíssemos. A tarefa
da cognição não é repetir, sob forma conceitual, algo que já exista alhures, mas, sim, criar um
campo inteiramente novo que apenas constitua a plena realização em combinação com o mundo
sensorial dado. Com isso a atividade suprema do homem, seu ato criador espiritual, acha-se
organicamente integrado ao decurso geral dos fatos no mundo. Sem essa atividade nem poderíamos
pensar nesse decurso dos acontecimentos como uma totalidade definida em si. Frente à seqüência
dos fatos, o homem não é um espectador ocioso que reproduz em sua mente, sob forma de
imagens, aquilo que ocorre no cosmo sem a sua intervenção, mas sim o co-criador ativo do processo
cósmico; e a cognição é o membro mais perfeito no organismo do Universo.
Desta concepção é conseqüência importante, para as normas do nosso agir e para os nossos
ideais morais, o fato de estes tampouco poderem ser considerados como a imagem de algo exterior
a nós, mas como algo existente somente dentro de nós. Com isto é igualmente negada a existência
de uma potência cujos mandamentos deveriam ser as nossas leis morais. Desconhecemos um
“imperativo categorico como que uma voz do Além a nos prescrever o que deveríamos ou não fazer.
Os nossos ideais morais são livremente produzidos por nós próprios. Só devemos executar o que nós
mesmos nos impomos como norma para a nossa atuação. A visão da verdade como sendo um ato de
liberdade fundamenta, pois, também uma ética cuja base é a personalidade totalmente livre.
Essas sentenças só se aplicam, obviamente, àquela parte do nosso atuar cujas leis
compreendemos em seu conteúdo ideal, através de um conhecimento perfeito. Enquanto essas leis
não passam de motivos naturais ou conceitualmente confusos, alguém espiritualmente superior a
nós reconheceria em que medida tais leis do nosso agir têm seu fundamento dentro da nossa
individualidade; nós próprios, porém, temos a sensação de que atuam sobre nós a partir de fora,
coagindo-nos. Cada vez que conseguimos penetrar tal motivo reconhecendo-o claramente
realizamos uma conquista no campo da liberdade.
No que se refere ao problema do conhecimento, o leitor verá, pelo próprio conteúdo deste
livro, a posição das nossas idéias em relação à figura filosófica mais significativa do nosso tempo,
isto é, a cosmovisão de Eduard von Hartmann.
É para uma Filosofia da Liberdade que este livro constitui um prelúdio. A mesma deverá
seguir brevemente, de forma pormenorizada 1 .
Elevar o valor da existência da personalidade humana é a meta final de toda ciência. Quem
não se dedica a esta última intenção, só trabalhando porque viu seu mestre fazê-lo, só “pesquisa”
por havê-lo casualmente aprendido. Não poderá ser chamado de ‘pensador livre”.
O que confere às ciências o verdadeiro valor é somente a exposição filosófica do significado
humano de seus resultados. Pretendi fazer uma contribuição para essa exposição. Mas talvez a
ciência atual nem esteja procurando sua justificação filosófica! Neste caso, ficam patentes dois
1
N. Dos. Edit.: A Filosofia da Liberdade, Editora Antroposófica, 1983
3
fatos: primeiro, o de haver eu escrito um livro desnecessário; e segundo, o de estar a erudição
moderna pescando em águas turvas, ignorando o que quer.
Ao terminar este prefácio, não posso omitir uma observação de natureza pessoal. Até esta
altura sempre expus minhas idéias filosóficas relacionando-as com a cosmovisão de Goethe, à qual
fui introduzido por meu venerável mestre Karl Julius Schröer, que ocupa, a meu ver, uma posição
de destaque na pesquisa de Göethe, por voltar seu olhar sempre para as idéias, elevando-se acima
dos detalhes.
Espero mostrar, com esta obra, que o edifício de meus pensamentos constitui um todo
fundamentado em si mesmo, não necessitando ser deduzido da cosmovisão goethiana. Minhas
idéias, tais como são apresentadas nesta obra e como serão expostas mais tarde como Filosofia da
Liberdade, surgiram no decorrer de muitos anos. Desejo acrescentar, com um sentimento de
profunda gratidão, que a elaboração das minhas idéias teve por ambiente ideal e único o
acolhimento carinhoso que tive em Viena por parte da família Specht, durante o tempo em que
estive incumbido da educação dos filhos; desejo ainda acrescentar que devo a atmosfera em que
foi dado burilar definitivamente certas idéias da minha “filosofia da liberdade”, às conversas
estimulantes com minha estimada amiga Rosa Mayreder em Viena, cujos trabalhos literários, obra
de uma personalidade artística delicada e distinta, serão provavelmente publicados den tio em
breve.
INTRODUÇÃO
2
Erfahrung und Denken. Kritische Grundlegung der Erkenntnistheorie (Experiência e Pensar. Fundamento Crítico da Teoria
do Conhecimento). Hamburg e Leipzig, 1886.
4
I. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
A Teoria do Conhecimento deve ser uma investigação científica daquilo que todas as outras
ciências pressupõem sem examiná-lo: o próprio conhecer. Com isso lhe é atribuído liminarmente o
caráter de ciência filosófica fundamental. Pois só por seu intermédio é que podemos discernir qual
o valor e o significado dos juízos obtídos através das outras ciências. Sob esse aspecto, constitui a
base para qualquer aspiração científica. Evidentemente, só pode fazer jus a esta sua tarefa quando
ela própria independe de pressuposições, na medida em que isso seja compatível com a natureza
do poder cognitivo humano. Sobre esse ponto provavelmente haverá consenso geral. Apesar disso
descobrimos, ao examinar os sistemas gnosiológicos mais conhecidos, que nos pontos de partida das
investigações faz-se logo toda uma série de pressuposições que diminuem substancialmente diante
da força persuasiva das explanações posteriores. Nota-se, em particular, que geralmente logo na
colocação dos problemas gnosiológicos fundamentais são formuladas certas premissas ocultas. Ora,
quando os questionamentos de uma ciência são falhos, convém duvidar, desde o início, de uma
solução correta. A própria história da ciência nos ensina que inúmeros erros dos quais épocas
inteiras vinham sofrendo podem ser atribuídos exclusivamente a uma colocação errônea dos
problemas. Não precisamos remontar até à Física de Aristóteles ou à Ars Magna Lulliana para
corroborar esta afirmação, pois encontramos exemplos suficientes em épocas mais recentes. As
numerosas perguntas relativas à significação de órgãos rudimentares em certos organismos só pude-
ram ser formulados corretamente quando a descoberta da lei biogenética fundamental criou as
condições para tal. Enquanto a Biologia esteve sob a influência de concepções teológicas, era
impossível dar aos problemas correspondentes uma forma adequada para conduzir a uma resposta
satisfatória. Como eram fantásticas as idéias que se tinham, por exemplo, acerca da tarefa da
chamada glândula pineal no cérebro humano, enquanto a própria tarefa era objeto de uma
questãol Chegou-se a uma resposta satisfatória apenas quando a explicação foi procurada pelo
caminho da anatomia compararada, perguntando se esse órgão não seria, no homem, apenas um
remanescente inalterado de formas evolutivas inferiores. Ou, para citar mais um exemplo, que se
pense nas modificações sofridas por certos questionamentos na Física, quando foram descobertas a
equivalência termomecânica e a lei da conservação da energia! Numa palavra, o sucesso de muitas
pesquisas científicas depende essencialmente da capacidade de se colocarem problemas
corretamente. Embora a Teoria do Conhecimento ocupe, como premissa de todas as demais
ciências, uma posição especial, é de se prever que, também nela, um estudo analítico só chegará a
bom termo se as perguntas básicas forem adequadamente formuladas.
As considerações que se seguem almejam, em primeiro lugar, uma tal formulação do
problema do conhecimento que faça jus ao caráter da Gnosiologia como ciência totalmente isenta
de pressuposições. Pretendem, outrossim, focalizar a relação entre a teoria da ciência de J.G.
Fichte e tal ciência filosófica fundamental. A nossa razão em relacionar justamente a tentativa de
Fichte de proporcionar às ciências um fundamento absolutamente seguro com a presente tarefa
tornar-se-á evidente no decorrer da nossa investigação.
5
reencontram, seja no próprio Kant, seja em seus epígonos. Quando, portanto, se trata de um
estudo puramente objetivo e não histórico da Teoria do Conhecimento, passa-se apenas ao lado de
uma autêntica manifestação, caso se leve em conta simplesmente o tempo desde o aparecimento
da Crítica da razcTo pura de Kant. Tudo que foi anteriormente realizado nesse campo repete-se na
referida época.
A pergunta gnosiológica fundamental de Kant é a seguinte: Como são possíveis julgamentos
sintéticos a priori? Examinemos essa pergunta sob o prisma da sua isenção de premissas! Kant a
formula por opinar que só poderemos alcançar uma ciência absolutamente segura se conseguirmos
comprovar a justificação de julgamentos sintéticos a priori. Diz ele o seguinte :“A resolução da
referida tarefa inclui ao mesmo tempo a possibilidade do uso da razão pura para fundamentar e
desenvolver todas as ciências que implicam num conhecimento a priori dos objetos” 3 , e “Da
resolução dessa tarefa depende a posição ou a queda, isto é, a própria existência da metafísica”. 4
Será que esta pergunta, tal como a formula Kant, é realmente isenta de premissas? De modo algum,
pois faz a possibilidade de um sistema absolutamente seguro do saber depender do fato de ser esse
sistema constituído exclusivamente de julgamentos sintéticos e de julgamentos obtidos indepen-
dentemente de qualquer experiência. Kant chama de sintéticos os julgamentos nos quais o conceito
predicativo acrescenta ao conceito do sujeito algo totalmente exterior a este, “embora lhe esteja
relacionado” 5 , enquanto o predicado se refira, nos julgamentos analíticos, apenas a algo que
esteja contido (de forma escondida) no sujeito. Não nos cabe aqui estender-nos sobre as objeções
perspicazes de Johannes Rehmke 6 contra essa classificação dos julgamentos. Para a nossa
finalidade atual basta compreender que só podemos alcançar um autêntico saber por meio de
julgamentos tais que acrescentem a um conceito um segundo, cujo conteúdo, pelo menos para nós,
não esteja implícito naquele primeiro. Se concordarmos com Kant em chamar essa categoria de
julgamentos de sintéticos, poderemos admitir que conhecimentos sob forma de julgamentos só
podem ser conseguidos quando a relação entre sujeito e predicado tem esse caráter sintético. Mas
a situação é diferente com referência à segunda parte da pergunta, que exige sejam os
julgamentos obtidos a priori, isto é, independentemente de toda experiência. É perfeitamente
possível (com isso apontamos para uma mera possibilidade do pensar) que tais julgamentos nem
existam. Para o início da Teoria do Conhecimento, deve-se admitir que não existe nenhuma
determinação quanto à possibilidade de se chegar a julgamentos por caminhos diferentes da
experiência, ou só através desta. Na realidade, a uma reflexão isenta de preconceitos tal
independência 7 parece liminarmente impossível. Pois seja qual for a coisa que se possa tornar
objeto do nosso conhecimento, - deve chegar-nos como vivência imediata e individual, isto é, passar
a ser uma experiência. Tampouco julgamentos matemáticos são obtidos de outra maneira senão
pela experiência que deles temos em determinados casos individuais. A situação não muda se
admitimos que tenham seu fundamento numa determinada organização da nossa consciência, como
faz, por exemplo, Otto Liebmann 8 . Nesse caso pode-se dizer o seguinte: tal sentença é
necessariamente válida, pois se fosse anulada sua veracidade, com esta seria anulada a
consciência; mas só podemos alcançar seu conteúdo como conhecimento quando este se nos torna
uma vivência, da mesma maneira como o faz um acontecimento da natureza exterior. Talvez o
conteúdo de tal sentença contenha elementos que garantam sua validade absoluta, ou que esta
seja assegurada por outras causas: de qualquer modo, não posso captá-lo a não ser que se me
defronte como experiência. Esse é um aspecto.
A segunda dúvida consiste no seguinte: não é lícito afirmar, no início de análises
gnosiológicas, que conhecimentos absolutamente válidos não possam provir da experiência. Pode-se
perfeitamente admitir que a própria experiência apresente uma característica que garanta a
certeza dos ‘conhecimentos conseguidos por seu intermédio.
Há, portanto, duas premissas na maneira kantiana de formular a pergunta: primeiro, a
necessidade de termos, além da experiência, mais um caminho para conseguir conhecimentos;
segundo, o fato de todo saber obtido através da experiência ter apenas uma validade relativa. Kant
3
Kritik der reinen Vernunft (Crítica da razão pura), págs. 61 e ss. segundo a edição de Kirchmann, à qual devem ser
relacionados também todos os demais números de páginas nas citações dessa obra e dos Prolegomena (Prolegômenos).
4
Prolegomena, parágr. 5.
5
Kritik der reinen Vernunft, págs. 53 e s.
6
Die Welt als Wahrnehmung und Begriff (O mundo como percepção e conceito), Berlim 1880, págs. 161 e ss.
7
N. do Trad.: de qualquer experiência anterior.
8
Zur Anaiysis der Wirklichkeit. Gedanken und Tatsachen (Da análise da realidade. Pensamentos e fatos), Estrasburgo 1880.
6
nem tem consciência de que essas sentenças carecem de uma verificação e poderiam ser postas em
dúvida. Aceita-as simplesmente da filosofia dogmática como pré-julgamentos e constrói sobre elas
suas investigações críticas. A filosofia dogmática pressupõe serem válidas, e aplica-as para chegar a
um conhecimento que lhes corresponda; Kant as pressupõe como válidas limitando-se a perguntar
sob quais condições podem elas ser válidas. Mas que aconteceria se nem fossem válidas? Neste
caso, todo o edifício doutrinário de Kant careceria de base.
Tudo que Kant afirma, nos cinco parágrafos que precedem sua formulação da pergunta
fundamental, é a tentativa de demonstrar que os julgamentos matemáticos seriam sintéticos 9 . Mas
as duas pressuposições por nós mencionadas permanecem como preconceitos científicos. Na
Introdução I1 da Crítica da razão pura lemos o seguinte: “A experiência nos ensina que algo tem
esta ou aquela qualidade, mas não que poderia ser diferente”, e “A experiência nunca atribui a
seus julgamentos uma generalidade real e rígida, mas apenas hipotética e comparativa (por meio
da indução).” Nos Prolegômenos, parágrafo 1, se lê: “Em primeiro lugar, no que se refere às fontes
de um conhecimento metafísico, já consta do seu conceito que não podem ser empíricos. Os
princípios desse conhecimento (que não abrangem apenas proposições básicas, mas também
conceitos básicos) nunca devem, portanto, ser tirados da experiência, pois o conhecimento não
deve ser físico, mas metafísico, isto é, transcendente à experiência.” Finalmente Kant diz, na
Crítica da razão pura (pág. 58): “De início devemos observar que proposições matemáticas
autênticas são sempre julgamentos a priori, e não empíricos, pois contêm um caráter de
necessidade não decorrente da experiência. Se isso não for aceito, limito minha asserção à
Matemática pura, cujo conceito já implica em não conter um conhecimento empírico, mas apenas
um conhecimento puro a priori.” Podemos abrir a Crítica da razão pura em qualquer parte e
sempre constataremos que suas investigações são realizadas sobre a premissa dessas proposições
dogmáticas. Cohen 10 e Stadler 11 procuram demonstrar que Kant teria provado a natureza apriorís-
tica das proposições da Matemática e das Ciências Naturais puras. Ocorre, porém, que se pode
resumir da forma seguinte tudo que se procura fazer na Crítica: pelo fato de a Matemática e as
Ciências Naturais puras serem ciências apriorísticas, a forma de toda experiência deve ser fundada
no sujeito. Resta, portanto, apenas o material das sensações, empiricamente dado. Este é
estruturado em sistema através das formas que se encontram na mente 12 . As verdades formais das
teorias apriorísticas têm sentido e significado apenas como princípios ordenadores para o material
das sensações; tornam a experiência possível, mas não a transcendem. Mas essas verdades formais
são os julgamentos sintéticos a priorí que devem, pois, estender-se até os limites desta. A Crítica
da razão pura não demonstra, de maneira alguma, o apriorismo da Matemática e da Ciência Natural
pura, mas apenas determina a área da sua validade, sob a premissa de que suas verdades devem
ser obtidas independentemente da experiência. Kant se preocupa tão pouco com uma prova deste
apriorismo que simplesmente exclui aquela parte da Matemática 13 na qual eventualmente, e até
mesmo em sua própria opinião, ele possa ser posto em dúvida, limitando-se àquela parte na qual
acredita poder deduzi-la do próprio conceito. Também Johannes Volkelt julga que Kant parte de
“premissas expressas” de que “existiria um conhecimento geral e necessário”. A esse respeito ainda
acrescenta: “Esta premissa, nunca expressamente sujeita a exame por Kant, está de tal maneira
em contradição com a teoria crítica do conhecimento, que convém perguntar seriamente se a
Crítica da razão pura pode ser considerada como teoria crítica do conhecimento.” É verdade que
Volkelt conclui haver boas razões para se responder a essa pergunta pela afirmativa; mas “a atitude
crítica da teoria kantiana do conhecimento é seriamente abalada por aquela premissa dogmática.”
Isso basta: tampouco Volkelt acha que a Crítica da razcTo pura seja uma teoria do conhecimento
livre de premissas.
Com a nossa interpretaç~o tambëm concordam, no fundo, as de O. Liebmann, Holder,
Windelband, Überweg, Ed. von Hartmann 14 e Kuno Fischer 15 no que se refere ao fato de ter Kant
9
Uma tentativa que, se não totalmente refutada por Robert Zimmermann, (Über Kants mathematisches Vorurteil und
dessen Folgen — Sobre o juízo matemático de Kant e suas conseqüências), foi no mínimo colocada seriamente em dúvida
10
H. Cohen, Kants Theorie der Erfahrung (A teoria da experiência de Kant), Berlim 1871,págs. 90 e ss.
11
A. Stadler, Die Grundsätze der reinen Erkenntnistheorie in der Kantschen Philosophie (Os princípios da gnosiologia pura
na filosofia kantiana), Leipzig 1876, págs. 76 e s.
12
N. do Tr.: A palavra alemã Gemüt, aqui representada por mente, é intraduzível. Significa a totalidade duradoura dos
sentimentos, estados d’alma, etc. Não possui um sentido filosófico definido. Refere-se mais à vida sentimental do que à vida
intelectual.
13
Veja-se, na Crítica, pdg. 127, linha 20 e s.
14
O. Liebmann, loco cit. págs. 211 e ss; A. Holder, Darstellung der Kantischen Erkenntnistheorie (Exposição da teoria do
conhecimento de Kant), Tübingen 1874, págs. 14 e ss.; W. Windelband, Die verschiedenen Phasen der Kantschen Lehre von
7
colocado a validade apriorística da Matemática pura e da Teoria da Natureza como premissa no
princípio das suas discussões.
Poderíamos admitir apenas como proprosições de outros julgamentos a circunstância de
possuirmos realmente conhecimentos independentes de toda experiência, e a de esta última
proporcionar apenas discernimentos caracterizados por uma generalizaçâfo comparativa. A tais
afirmações deveria preceder obrigatoriamente uma investigação sobre a essência da experiência e
outra sobre a natureza da nossa capacidade de conhecer. As duas proposições acima poderiam
decorrer destas duas investigações, respectivamente.
Às nossas objeções à Crítica da razão poderia ainda ser replicado o seguinte:
Poder-se-ia dizer que toda teoria do conhecimento deveria primeiro conduzir o leitor até onde
pudesse ser encontrado o ponto de partida livre de premissas. Pois os conhecimentos que
possuímos, a qualquer instante da nossa vida, muito se afastaram desse ponto de partida, e
devemos primeiro reconduzir-nos artificialmente ao mesmo. De fato, para todo estudioso da Teoria
do Conhecimento, um entendimento puramente didático sobre o princípio da sua ciência constitui
uma necessidade. De qualquer forma, porém, esse entendimento deve limitar-se a mostrar que o
início da cogniçao em pauta realmente constitui um início; deveria desenrolar-se sob forma de
proposições óbvias e analíticas, sem fazer quaisquer afirmações, carregadas de conteúdos que
influenciem o conteúdo das considerações subseqüentes, tal como ocorre em Kant. Cabe também, a
quem emite uma teoria do conhecimento, demonstrar que o início por ele aceito está realmente
isento de premissas. Mas tudo isso nada tem a ver com a própria essência desse início; acha-se fora
dele, e nada declara a seu respeito. Também no início do ensino da Matemática preciso esforçar-
me para convencer o aluno do caráter axiomático de certas verdades. Contudo, ninguém irá afirmar
que se faz o conteúdo dos axiomas depender dessas considerações preliminares 16 . O autor de uma
teoria do conhecimento deveria apontar, de maneira idêntica, em suas observações preliminares, o
caminho pelo qual se pode chegar a um início livre de premissas; mas o próprio conteúdo do mesmo
tem de independer de tais considerações. Mas de qualquer forma, quem faz de início afirmações de
caráter bem definido e dogmático, como ocorre com Kant, está longe de tal introdução à Teoria do
Conhecimento.
“Ding an sich’ (As diversas fases da doutrina kantiana da “coisa em si”), Periódico Trimestral de Filosofia Científica,
Leipzig, Ano 1 (1877), págs. 224 e ss.; F.Überweg, System der Logik (Sistema da Lógica), Bonn 1882, pdgs. 380 e s.; E. v.
Hartmann, Kritische Grundlegung des transzendentalen Realismus (Fundamentaçáo crítica do realismo transcendental),
Berlim 1875, págs. 142-172.
15
Geschichte der neueren Philosophie (História da filosofia mais recente), Manheim 1860, tomo V, pág. 60. A respeito de
Kuno Fischer, Volkelt se engana ao dizer (Kants Erkenntnistheoríe, Hamburgo 1879, págs. 190 e s., nota) que “não fica
claro, na exposição de K. Fischer, se sua concepção de Kant pressupõe somente a efetividade psicológica dos juízos gerais e
necessários ou igualmente a validade e a regularidade objetivas dos mesmos”. Pois nos mesmos trechos Fischer diz que a
dificuldade principal da Crítica da razão pura consiste no fato de que seus “fundamentos dependem de certas premissas que
se devem providenciar para fazer valer o que vem a seguir”. Essas premissas são, também para Fischer, a condição para que
“só o objeto do conhecimento” venha a ser averiguado, sendo então encontradas, através da análise, as possibilidades
cognitivas “a partir das quais aquele objeto venha a ser esclarecido”.
16
Mostraremos no capítulo IV: “Os pontos de partida da Teoria do Conhecimento” que procedemos de forma idêntica com
nossas próprias considerações gnosiológicas.
8
presentação”; E. von Hartmann julga essa proposição tão intangível que admite em sua obra
Kritische Grundlegung des tranzendentalen Realismus (Fundamentação crítica do realismo
transcendental) apenas leitores que se desprenderam, por meio de um raciocínio crítico, da
identificação ingênua da imagem da sua percepção com a “coisa em si”, e que consideram como
óbvia a absoluta heterogeneidade entre um objeto da percepção dado, por meio do ato de
representação, como conteúdo subjetivo e ideal da consciência, e uma coisa independente do ato
da representação e da forma da consciência, e que existiria por si — leitores, portanto, que seriam
convencidos de constituírem as representações mentais a totalidade do que nos é imediatamente
dado 17 . É verdade que, em sua última publicação gnosiológica, Hartmann procura fundamentar essa
sua opinião. Mostraremos a seguir qual deve ser, diante de tal fundamentação, a atitude de uma
teoria do conhecimento isenta de premissas. Otto Liebmann erige em princípio supremo e sa-
crossanto de toda gnosiologia que “a consciência não pode saltar por cima de si própria” 18 . Volkelt
chamou de princípio positivista do conhecimento o julgamento segundo o qual a primeira e mais
imediata verdade seria a seguinte: “Todo o nosso saber só tem por objeto as nossas
representações” ; e ele só considera como “eminentemente crítica” aquela teoria do conhecimento
que “coloca como princípio essa proposição que é a única coisa assegurada quando se começa a
filosofar, para depois analisá-la conseqüentemente pelo pensar” 19 . Em outros filósofos encontramos
outras afirmações como ponto inicial da Teoria do Conhecimento, como, por exemplo, aquela
segundo a qual o seu verdadeiro problema consistiria na indagação sobre a relação entre o pensar e
o ser, e sobre a possibilidade de uma mediação entre ambos 20 ; ou na seguinte: como é que aquilo
que existe se torna consciente? (Rehmke), etc. Kirchmann parte de dois axiomas gnosiológicos: “o
que é percebido existe” e “a contradição não existe” 21 . Segundo E. L. Fischer, o conhecer consiste
num saber de algo factual e real 22 , e ele deixa de submeter esse dogma a exame, da mesma forma
como Goring, que afirma coisa semelhante: “Conhecer significa sempre conhecer algo existente; eis
um fato que nem o ceticismo nem o criticismo kantiano podem negar.” 23 Nestes dois últimos
autores decreta-se simplesmente: isto é o conhecer, sempre que se pergunte com que direito tal
pode ocorrer.
Mesmo se essas diferentes afirmações estivessem certas ou conduzissem as colocações
corretas dos problemas, não poderiam ser ventiladas no início da Teoria do Conhecimento. Pois
todas já se acham, como juízos definidos, dentro do campo do conhecimento. Quando digo que
meu saber só abrange, de início, minhas representações, isso já constitui um julgamento bem
definido da minha cognição. Por meio dessa proposição acrescento, ao mundo que me é dado, um
predicado, ou seja, a existência sob forma de representação. Mas de onde posso saber, antes de
qualquer cognição, que os objetos que me são dados são representações?
A melhor maneira de nos convencermos de ser correto afirmarmos que essa proposição não
pode ser colocada no início da Teoria do Conhecimento consistirá em retraçarmos o caminho que a
mente humana deve seguir para chegar a ela. Essa proposição veio fazer parte de toda a
consciência científica modema. As ponderações que nela convergiram estão compiladas, de forma
bastante completa, na primeira parte do livro de E.v.Hartmann Das Grundproblem der
Erkenntnistheorie (O problema fundamental da Teoria do Conhecimento). O que aí se acha exposto
pode servir-nos de uma espécie de fio condutor ao procurarmos debater as razões que podem
conduzir àquela hipótese.
Essas razões são físicas, psicofísicas, fisiológicas e propriamente filosóficas.
Ao observar os fenômenos que se desenrolam ao nosso derredor quando temos, por exemplo,
uma sensação acústica, o físico chega à conclusão de não existir nesses fenômenos nada que tenha
a mais remota semelhança com o que percebemos diretamente como som. Lá fora, no espaço
circundante, só podem ser encontradas vibrações longitudinais dos corpos e do ar. Disso resulta o
que costumamos chamar de som ou tom ser apenas uma reação subjetiva do nosso organismo
àquele movimento ondulatório. Descobre-se, da mesma forma, serem a luz e a cor ou o calor algo
17
Loco cit., Prólogo, pág. 10.
18
Loco cit. págs. 28 e ss.
19
Kants Erkenntnistheorie, parágr. 1.
20
A. Dorner, Das menschliche Erkennen usw. (O conhecer humano etc.) Berlim 1887.
21
J. H. v. Kirchmann, Die Lelzre vom Wissen als Einleitung in das Studium philosofischer Werk (A doutrina do saber como
introdução ao estudo de obras filosóficas), Berlim 1868.
22
Die Grundfragen der Erkenntnistheorie (As questões fundamentais da Teoria do Conhecimento), Mainz 1887. pág. 385.
23
C. Goring, System der kritischen Phiiosophie (Sistema da filosofia crítica), Leipzig 1874,pág. 257
9
meramente subjetivo. Os fenômenos da difração das cores, da refração, da interferência e da
polarização ensinam-nos que a estas qualidades existentes no espaço exterior e reveladas pela
sensação correspondem certas vibrações transversais que julgamos conveniente atribuir em parte
aos corpos, em parte a um fluido elástico e imensuravelmente fino, o éter. Outrossim, o físico se vê
obrigado, devido a certos fenômenos, no mundo dos corpos, a abandonar a sua crença na
continuidade dos objetos no espaço, reduzindo-os a sistemas de pequeníssimas partículas
(moléculas, átomos), cujo tamanho seria ínfimo em relação às distâncias entre as mesmas. Daí se
conclui que toda ação mútua entre os corpos se exerce através do espaço vazio, constituindo,
portanto, uma autêntica actio in distans. A Física se julga justificada quando admite não haver
atuação dos corpos sobre nossos sentidos do tato e do calor através de um contato direto, já que
sempre deve haver uma distância, por pequena que seja, entre a porção da pele que toca o corpo e
este último. Daí resultaria que aquilo que sentimos, por exemplo, como dureza ou calor dos corpos
consistiria apenas em reações dos terminais dos nervos de tato ou de calor às forças moleculares
dos corpos, forças que atuariam através do espaço vazio.
A tais ponderações do físico se juntam, como complemento, as do psicofísico, as quais
encontram sua expressão na doutrina das energias sensórias específicas. J. Müller mostrou que todo
sentido só pode ser afetado de maneira característica determinada pela organização; e que sempre
reage do mesmo modo, seja qual for a impressão exterior sobre ele exercida. Quando o nervo ótico
se excita, percebemos luz, seja uma pressão, uma corrente elétrica ou uma luz o que atue sobre o
nervo. De outro lado, os mesmos acontecimentos exteriores produzem sensações totalmente
diversas conforme são percebidos por este ou aquele sentido. Desse fato foi tirada a conclusão de
só existir no mundo exterior uma espécie de acontecimento, ou seja, movimentos; a diversidade do
mundo por nós percebido seria essencialmente uma reação dos nossos sentidos a esses
acontecimentos. De acordo com essa opinião, não percebemos o mundo exterior como tal, mas
apenas as sensações subjetivas por ele induzidas.
Às ponderações da Física vêm juntar-se as da Fisiologia. Aquela analisa os fenômenos que se
produzem fora do nosso organismo; esta procura pesquisar as ocorrências, dentro do próprio corpo
humano, que se desenrolam enquanto determinada ação sensorial é induzida. A Fisiologia ensina
que a epiderme está totalmente insensível a estímulos do mundo exterior; quando, por exemplo, os
terminais dos nossos nervos táteis, localizados na periferia do nosso corpo, devem ser afetados por
influências vindas do mundo exterior, o processo oscilatório situado fora do nosso corpo deve
primeiro ser transmitido através da epiderme. Nos sentidos da audição e da visão, o processo
dinâmico exterior sofre, além disso, várias transformações, devido a uma série de órgãos nos
instrumentos sensórios, antes de chegar ao nervo. Essa afetação dos terminais deve então ser
transmitida pelo nervo até o órgão central, e só neste pode realizar-se o que produz no cérebro a
sensação, com base em processos puramente mecânicos. Claro está que o estímulo exercido sobre
os órgãos sensoriais sofre, nesse caminho, transformações tais que se apaga toda semelhança entre
o primeiro efeito sobre o nervo e a sensação final que surge na consciência. Hartmann exprime o
resultado desse raciocínio com as seguintes palavras: “Esse conteúdo da consciência consiste
originalmente de sensações mediante as quais a alma reage reflexivamente aos estados dinâmicos
do seu centro cerebral mais elevado, estados que não têm a menor semelhança com os estados
dinâmicos moleculares que os produzem.”
Quem perfaz esse raciocínio até o fim deve concordar que, se estiver correto, nem o menor
resíduo do que se pode chamar realidade exterior poderá estar contido em nossa consciência.
Às objeções físicas e fisiológicas contra o chamado “realismo ingênuo” Hartmann acrescenta
outras que considera estritamente filosóficas. Analisando as duas primeiras objeções, notamos que
só podemos chegar ao resultado postulado se partimos da existência e da conjuntura dos objetos
exteriores tais como as admite a consciência ingênua comum, investigando em seguida como esse
mundo exterior pode entrar em nossa consciência, dada a nossa organização. Vimos que toda pista
de tal mundo exterior se perde durante o caminho entre a impressão sensorial e a entrada na
consciência, não restando, nesta última, senão nossas representações. Devemos, portanto, supor
que a imagem do mundo exterior, que indiscutivelmente possuímos, seja composta pela alma com
base no material sensório. Constrói-se primeiro uma imagem espacial do mundo a partir das
sensações dos sentidos da visão e do tato, sendo que, em seguida, as sensações dos outros sentidos
são inseridas nessa imagem. Quando somos forçados a pensar determinado complexo de sensações
em seu inter-relacionamento, chegamos ao conceito da substância, considerada como suporte das
mesmas. Ao vermos certas qualidades sensoriais desaparecerem numa substância enquanto outras
aparecem, atribuímos tal fato a uma mudança no mundo dos fenômenos, regulada pela lei da
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casualidade. De acordo com essa opinião, toda a nossa imagem do mundo se constitui de um
conteúdo subjetivo de sensações, ordenado pela atividade anímica do próprio indivíduo. Hartmann
diz: “O que o sujeito percebe nunca passa, portanto, de modificações dos seus próprios estados
psíquicos”. 24
Nesta altura perguntemos: Como é que chegamos a semelhante convicção? O essencial do
raciocínio é o seguinte: se é que existe um mundo exterior, não é como tal que o percebemos, mas
sim transformado pela nossa organização em um mundo de representações mentais. Esta premissa,
conseqüentemente pensada até o fim, anula a si própria. Mas acaso esse raciocínio é apropriado
para fundamentar qualquer convicção? Porventura somos justificados por considerar a imagem dada
do mundo como conteúdo subjetivo de representações, porque a suposição da consciência ingênua,
vigorosamente pensada até o fim, nos levaria a essa opinião? É nossa meta provar que essa própria
suposição é inválida. Nesse caso, deveria ser possível que uma afirmação se revelasse errada,
embora o resultado ao qual conduz fosse correto. Isso pode, a rigor, acontecer; mas nunca o
resultado, nesse caso, pode ser considerado demonstrado a partir daquela afirmação.
A cosmovisão que aceita a realidade da imagem do mundo diretamente dada como algo óbvio
e indubitável é chamada realismo ingênuo; a cosmovisão oposta, porém, que considera essa
imagem apenas como o conteúdo da nossa consciência é denominada idealismo transcendental. Po-
demos, pois, resumir o resultado das considerações acima com as seguintes palavras: O idealismo
transcendental demonstra sua veracidade recorrendo aos meios do realismo ingênuo ao qual
procura refutar. Está correto desde que se prove estar o realismo ingênuo errado; mas a falsidade
só pode ser provada por meio da própria doutrina errada. A quem tem um claro discernimento disto
só resta abandonar o caminho trilhado até esse ponto com a intenção de se chegar a uma
cosmovisão, tentando seguir por outro. Mas será que isto deve ser feito à toa, qual uma
experiência, até que se encontre casualmente a solução correta? Ed. v. Hartmann compartilha
dessa opinião quando pensa ter demonstrado a validade do seu ponto de vista gnosiológico, pelo
fato de este explicar os fenômenos do mundo enquanto os outros não o fazem. De acordo com a
opinião desse pensador, as diferentes cosmovisões travam uma espécie de luta pela existência, e
aquela que melhor resiste é finalmente proclamada vencedora. Mas tal processo nos parece lícito
pelo simples fato de que poderia haver várias hipóteses capazes de conduzir a uma explicação dos
fenômenos do mundo proporcionando o mesmo grau de satisfação. Por isso preferimos examinar
melhor o raciocínio acima exposto, destinado a refutar o realismo ingênuo, e ver onde está seu
defeito. Não há dúvida quanto ao fato de o realismo ingênuo ser a concepção de que partem todos
os homens. Isso já é um motivo para se iniciar com ele a correção. Uma vez descoberta a causa
pela qual necessariamente tem defeitos, seremos conduzidos para o caminho certo com segurança
bem maior do que no caso de simplesmente tentarmos a nossa sorte.
O subjetivismo acima esboçado repousa num processamento de certos fatos por meio do
pensar. Pressupõe que se possam obter convicções corretas a partir de um ponto factual, por meio
de um pensar conseqüente (combinação lógica de determinadas observações). Contudo, não se
investiga, nesse ponto de vista, se é lícito usar o pensar dessa maneira. E eis justamente a sua
fraqueza. Enquanto o realismo ingênuo parte da premissa improvada de que o conteúdo da
experiência por nós percebida possui realidade objetiva, o ponto de vista caracterizado parte da
suposição — igualmente carente de qualquer investigação — de que a aplicação do pensar permite
chegar-se a teorias cientificamente justificadas. Esse ponto de vista pode ser chamado de
racionalismo ingênuo, em contraste com o realismo ingênuo. Para justificarmos essa terminologia,
gostaríamos de inserir nesta altura uma breve observação sobre o conceito do “ingênuo”. A. Doring
procura definir melhor esse conceito em seu ensaio Über den Begriff des naiven Realismus (Sobre o
conceito do realismo ingênuo) 25 . Diz a esse respeito: “O conceito de ingenuidade pode ser
designado como ponto zero na escala da reflexão sobre o próprio comportamento. Pode ser que a
ingenuidade acerte quanto ao conteúdo, pois carece de reflexão e, portanto, de crítica, sendo
acrítica, mas essa falta exclui a certeza objetiva de estar correta; contém a possibilidade e a
ameaça de haver erro, mas não a necessidade de que este ocorra. Existe uma ingenuidade do sentir
e do querer, e do representar e do pensar, no sentido mais amplo deste último termo, e, além
disso, uma ingenuidade das manifestações exteriores desses estados íntimos, em oposição à re-
pressão ou modificação dos mesmos provocadas por considerações especiais ou pela reflexão.
Conscientemente, pelo menos, a ingenuidade não é influenciada por tradições e regras, nem pelo
24
E. v. Hartmann, Das Grundprohlem der Erkenntnistheorie, usw., Leipzig 1889.
25
Philosophische Monatshefte (Cadernos filosóficos mensais), tomo XXVI,pág.390. Heidelberg 1890.
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que se aprendeu no passado; ela é, em todos os domínios, o inconsciente, o impulsivo, o instintivo,
o demoníaco, conforme expressa o radical nativus”. 26 Tentemos definir melhor o conceito de
“ingênuo”, partindo dessas proposições. Duas coisas entram em jogo cada vez que realizamos um
ato: a própria atividade e o nosso conhecimento da sua regularidade. Podemos dedicar-nos
totalmente à atividade sem fazer perguntas a respeito da regularidade. Acha-se nessa situação o
artista que pratica as leis da sua criatividade de acordo com as suas sensações e sentimentos, mas
sem conhecê-las por via de reflexão. Chamamo-lo de ingênuo. Mas existe uma espécie de auto-
observação que indaga as leis da própria atividade, trocando a referida ingenuidade pela
consciência que possui do significado e da justificação do que realiza. Chamemos essa auto-
observação de crítica. Acreditamos acertarmos, dessa forma, mais corretamente o sentido desse
conceito tal como se tem firmado desde Kant na Filosofia, com uma maior ou menor consciência. A
circunspecção crítica é, portanto, o oposto da ingenuidade. Chamamos de crítica uma atitude que
capta as leis da própria atividade para conhecer-lhes a certeza e os limites. Mas a Teoria do
Conhecimento só pode ser uma ciência crítica, pois seu objetivo é o conhecer, isto é, um ato
eminentemente subjetivo do homem; o que procura expor é a regularidade da cognição. Dessa
ciência deve ser banida toda ingenuidade. Ela deve encontrar sua força na realização daquilo que
muitos espíritos caracterizados por um pensar prático se vangloriam de nunca haverem realizado,
ou seja, o “pensar sobre o pensar”.
No início das investigações gnosiológícas é preciso, depois de tudo que já vimos, rejeitar tudo
que já faz parte da área da cognição. A cognição é algo realizado pelo homem, algo que nasceu de
uma atividade. Se a Teoria do Conhecimento deve abranger, com seus esclarecimentos, todo o
campo do conhecer, deve tomar como ponto de partida algo que tenha permanecido alheio a essa
atividade, algo que dê a esta o seu primeiro impulso. Aquilo que deve constituir o início situa-se
fora da cognição, e não pode constituir conhecimento. Todavia deve preceder imediatamente o
conhecer, de modo que o primeiro passo dado pelo homem, a partir desse ponto, já seja uma ati-
vidade cognitiva. A maneira pela qual esse princípio absoluto deve ser determinado precisa ser tal
que não se intrometa nada que já seja decorrente de um ato de cognição.
Tal início só poderá ser feito com a imagem do mundo imediatamente dada, ou seja, aquela
que o homem tem diante de si antes de submetê-la, de qualquer modo, ao processo cognitivo —
antes, portanto, que tenha emitido a seu respeito a menor declaração, ou a tenha submetido à
mais ínfima determinação por meio do pensar. Aquilo que passa diante de nós, e diante do qual nós
passamos, essa imagem do mundo desconexa e não dividida em detalhes individuais 27 — imagem em
que nada é ainda separado nem relacionado com outra parte, nem determinado por outro detalhe
— é o imediatamente dado. Nesse grau da existência — seja-nos permitido usar essa expressão —
nenhum objeto, nenhum evento é mais importante ou mais significativo que outro. O órgão
rudimentar de um animal, que carece de qualquer importância para sua evolução ou sua existência,
merece, na opinião de um grau de consciência mais esclarecida, a mesma consideração que a parte
mais nobre e imprescindível de um organismo. Antes de qualquer atividade cognitiva nada se nos
apresenta, na imagem do mundo, como substância ou acidente, como causa ou efeito; ainda
inexistem os contrastes entre matéria e espírito, entre corpo e alma. Mas qualquer outro predicado
deve igualmente ser mantido afastado da imagem do mundo fixada nessa altura; esta não pode ser
considerada como realidade ou como aparência, como subjetiva nem objetiva, como contingente
ou necessária; não se pode averiguar, nesta altura, se constitui o “objeto em si” ou uma mera
representação mental. Pois já vimos que as noções da Física e da Fisiologia, que tendem a subor
dinar o que é dado a uma das categorias acima enumeradas, não podem ser colocadas na vanguarda
da Teoria do Conhecimento.
Se um ser possuidor de uma inteligência humana plenamente desenvolvida fosse de repente
criado do nada e enfrentasse o mundo, a primeira irnpressão causada por este sobre os sentidos e
26
N. do Trad.: Do qual deriva a palavra alemã naiv (ingênuo).
27
A separação de pormenores individuais, da imagem indistinta que o mundo nos oferece, já é um ato do pensamento.
12
sobre o pensamento daquele ser corresponderia, mais ou menos, aquilo que chamamos de imagem
do mundo imediatamente dada. É verdade que o homem nunca o enfrenta dessa forma, em nenhum
momento da sua vida; não existe em seu desenvolvimento nenhum limite entre a percepção pura e
passiva do imediatamente dado e o conhecimento deste último por meio do pensar. Essa
circunstância poderia suscitar objeções à nossa determinação de um início da Teoria do
Conhecimento. E. v. Hartmann, por exemplo, diz a esse respeito o seguinte: “Não perguntamos
qual seria o conteúdo consciente de uma criança desperta para a consciência, ou de um animal que
se acha no degrau mais baixo dos seres vivos, pois disso o homem que filosofa não tem experiência,
e as conclusões mediante as quais tenta reconstituir tal conteúdo de consciência em níveis
biogenética ou ontogeneticamente primitivos baseiam-se necessariamente em sua própria
experiência pessoal. Temos, portanto, de início, qual o conteúdo da consciência encontrado pelo
homem-filósofo no começo de sua reflexão filosófica.” 28 A isso devemos objetar que a imagem do
mundo com a qual nos defrontamos, no começo da reflexão filosófica, já acarreta predicados que
só o conhecimento nos proporciona. Estes não podem ser aceitos sem crítica, mas devem ser
cuidadosamente estirpados da imagem geral para que esta apareça pura e livre de qualquer
acréscimo feito pelo processo cognitivo. O limite entre o que é dado e o que é conhecido nunca
coincidirá com qualquer instante do desenvolvimento humano; terá de ser traçado artificialmente.
Mas isso pode acontecer em qualquer fase do desenvolvimento, desde que saibamos fazer
corretamente o corte entre o que se nos apresenta sem qualquer determinação pelo pensar, antes
da cognição, e aquilo que resultou desta última.
Alguém poderia objetar-nós o fato de já termos acumulado uma série de determinações
intelectuais a fim de isolar a imagem pretensamente imediata do mundo daquela completada pelo
próprio homem através da sua atividade cognitiva. Esse reparo merece a seguinte resposta: os
pensamentos por nós produzidos não têm a finalidade de caracterizar aquela imagem do mundo,
apontar qualquer qualidade sua ou, de maneira geral, dizer algo a seu respeito, mas apenas dirigir
a nossa consideração até o limite em que a cognição se sente em seu ponto de partida. Não se trata
da verdade ou do erro, da justificação ou da falsidade das ponderações que, a nosso ver, precedem
o momento em que estamos no início da Teoria do Conhecimento. As nossas ponderações apenas
visam a conduzir-nos, de forma apropriada, até esse início. Ninguém, disposto a estudar problemas
gnosiológicos, acha-se ao mesmo tempo diante do assim chamado, com razão, início da cognição —
pois já possui, até certo grau, conhecimentos desenvolvidos. É só por meio de ponderações
conceituais que deles se pode eliminar tudo que foi adquirido através da atividade cognitiva e
determinar o ponto de partida anterior a esta última. Mas os conceitos não possuem, nesta altura,
nenhum valor cognitivo, pois têm a função puramente negativa de afastar do campo cognitivo tudo
que pertence ao conhecimento e dirigir-nos ao ponto em que este se inicia. Estas ponderações são
setas indicadoras apontando para o ponto inicial onde começa o ato cognitivo, mas dele não fazem
parte. Em tudo que o autor de uma teoria do conhecimento afirma, antes de determinar o início,
existe conveniência ou inconveniência, mas nunca verdade ou erro. No próprio ponto inicial não
pode haver erro, pois este só pode ter início com o processo cognitivo — nunca antes dele.
Nenhuma teoria do conhecimento pode fazer sua esta última proposição, a não ser baseando-
se em nossas considerações. Quando uma determinação, realizada por meio do pensar, se acha no
início de um objeto (ou sujeito), há possibilidade de ocorrer o erro logo no início, ou seja, na
própria determinação. Pois a legitimidade desta última depende das leis que o ato cognitivo
estabelece; todavia, aparecerá apenas no decorrer das investigações gnosiológicas. Todo erro é
excluído apenas quando elimino da minha imagem do mundo todas as determinações intelectuais,
isto é, obtidas através do conhecimento, conservando apenas o que entra no horizonte da minha
observação sem qualquer atividade minha. Não posso cometer erro quando me abstenho, por
princípio, de qualquer predicação.
Todo erro relevante do ponto de vista gnosiológico só pode estar inerente ao ato cognitivo. O
engano não é erro. Se a lua, ao nascer, parece-nos maior que no zênite, não se trata de um erro,
mas de um fato baseado em leis naturais. Só surgiria um erro na cognição se déssemos a essa
qualidade de “maior”, ou “menor” uma interpretação errônea ao combinarmos as observações
dadas por meio do pensar. Tal interpretação, porém, estava dentro do ato cognitivo.
Se quisermos entender o ato da cognição em sua essência total, teremos indubitavelmente de
captá-lo lá onde se inicia. É igualmente óbvio que não podemos incluir na explicação da cognição
aquilo que se situa antes desse começo; temos de pressupô-lo. Cabe ao conhecimento científico,
28
Grundproblem, pág. 1.
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nas suas várias áreas, penetrar na essência do que pressupomos. Contudo não pretendemos adquirir
conhecimentos específicos disso ou daquilo, mas sim examinar o próprio conhecimento. Só depois
de termos compreendido o ato cognitivo é que poderemos formar um juízo sobre o significado das
predicações acerca do conteúdo do mundo, que são feitas a seu respeito na própria cognição.
Abstemo-nos, portanto, de toda determinação a respeito do que é imediatamente dado,
enquanto ignoramos a relação que possa existir entre a determinação e aquilo que é determinado.
Mesmo usando o conceito de “imediatamente dado”, não dizemos nada a respeito do que se
ofereça à cognição. Esse conceito só tem a finalidade de apontar para o que assim se oferece,
dirigindo seu olhar ao mesmo. A forma conceitual é apenas, neste ponto inicial da Teoria do
Conhecimento, a primeira relação que a cognição assume para com o conteúdo do mundo. Essa
designação se aplica mesmo ao caso de ser todo o conteúdo do mundo apenas uma fantasia do
nosso eu, ou seja, ao caso de haver um fundamento para um subjetivismo exclusivo; pois aí não
seria possível afirmar-se que o fato seja dado. Poderia apenas resultar de uma ponderação visando
à cognição, isto é, ser confirmado pela Teoria do Conhecimento, mas não servir-lhe de premissa.
Nesse conteúdo imediatamente dado do mundo inclui-se tudo que, no sentido mais lato, possa
surgir dentro do horizonte das nossas vivências: sensações, percepções, sentimentos, atos de
vontade, visões de sonhos e de fantasia, representações, conceitos e idéias. Também as ilusões e
alucinações estão num pé de igualdade com as demais partes do conteúdo do mundo, pois só a
contemplação cognitiva nos dirá qual a sua relação com as outras percepções.
Se tudo isso, de acordo com a Teoria do Conhecimento, constitui o conteúdo da nossa
consciência, a seguinte pergunta surge como que naturalmente: como é que passamos da nossa
consciência para a cognição do que (realmente — N. do Tr.) existe, onde está o trampolim que nos
faz chegar do subjetivo ao transubjetivo? Para nós a coisa se apresenta de forma diferente. Para
nós, tanto a consciência como a noção de “eu”, são, de início, a penas partes do que nos é dado
imediatamente, e só resultará da cognição a relação que possa existir entre esta e aquela. Não
desejamos determinar a cognição partindo da consciência, mas vice-versa: definir a consciência e a
relação entre subjetividade e objetividade, partindo da cognição. Já que deixamos o que nos é
dado, sem quaisquer predicados, temos de perguntar: como podemos chegar a uma determinação
do mesmo, como é possível começar, em um ponto qualquer, com a cognição? Como podemos
qualificar uma parte da imagem do mundo, por exemplo, de percepção, outra de conceito, uma
como ilusão, esta como causa, aquela como efeito; como é que podemos distanciar-nos do
objetivo, considerando-nos como “eu” em oposição ao “nao-eu”?
Precisamos encontrar uma ponte que ligue a imagem dada do mundo com aquela que
desenvolvemos por meio da nossa cognição. Mas aí enfrentamos a seguinte dificuldade: enquanto
apenas fitamos passivamente o que nos é dado, não podemos encontrar em nenhum lugar um ponto
de apoio que nos permita desenvolver o processo cognitivo. É no que é dado que devemos
encontrar o ponto inicial da nossa atividade, é nele que deve existir algo homogêneo com a
cognição. Se tudo nos fosse apenas dado, nunca passaríamos do estado em que fitamos o mundo de
fora e, de forma análoga, o mundo interior da nossa individualidade. Poderíamos, nesse caso,
apenas descrever as coisas de fora, mas nunca compreendê-las. Nossos conceitos teriam apenas
uma relação exterior com aquilo a que se referem, mas nenhuma interior. Para que possa haver
verdadeiro conhecimento, tudo depende da possibilidade de encontrarmos em qualquer parte do
mundo dado uma região em que a nossa atividade não apenas pressuponha algo dado, mas seja
ativa em meio a ele. Em outras palavras: não obstante a nossa procura de nos limitarmos ao que
apenas é dado, devemos ter a revelação de que tudo se resume a isso. A exigência por nós feita
deve ser tal que sua estrita observação faça com que ela mesma se invalide em parte. Fizemos tal
exigência para não determinar arbitrariamente qualquer início da nossa teoria do conhecimento,
mas para realmente descobri-lo. Pode estar dado — no sentido que atribuímos à palavra — mesmo
aquilo que, por sua natureza mais íntima, não é dado. Formalmente se nos apresenta como dado,
revelando-se, quando examinado mais criteriosamente, como aquilo que realmente é.
Toda dificuldade na compreensão do conhecimento reside no fato de não produzirmos o
conteúdo do mundo a partir de nós mesmos. Se tal fosse o caso, nem haveria conhecimento. Um
objeto só poderá fazer surgir em mim uma pergunta se me for “dado”. Quando eu produzo algo, só
eu lhe atribuo suas determinações; não preciso, portanto, inquirir se são justificadas.
Este é o segundo ponto da nossa gnosiologia. Consiste no postulado de que deve existir, na
área do que é dado, algo onde nossa atividade não plane no vazio, mas onde o conteúdo do mundo
coincida com essa atividade.
Determinamos o início da Teoria do Conhecímento colocando-o inteiramente antes da atividade
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cognitiva, a fim de não turvar a cognição por qualquer preconceito que lhe seja inerente; da
mesma forma determinamos o primeiro passo que damos em nosso desenvolvimento de modo a
impedir qualquer engano ou erro. Pois não emitimos um juízo a respeito de qualquer coisa, mas
apenas apontamos para a exigência que deverá ser satisfeita se qualquer cognição vier a ocorrer. O
que importa é estarmos crítica e lucidamente conscientes do seguinte: nós mesmos estabelecemos
como postulado o aspecto característico que deve caber àquela parte do conteúdo do mundo na
qual podemos dar início à nossa atividade cognitiva.
Qualquer outra atitude seria totalmente impossível. Com efeito, o conteúdo do mundo,
apenas dado, carace inteiramente de determinação. Nenhuma parte dele pode espontaneamente
dar um impulso que possa redundar num princípio de ordem em meio a esse caos. Aí a atividade
cognitiva deve invocar o direito de estatuir: tal parte deve ter tais e tais atributos. Semelhante
decisão não atinge o mundo dado em nenhuma das suas qualidades; não introduz na ciência
nenhuma asserção arbitrária; a rigor não afirma nada, limitando-se a dizer: se a cognição é possível
e suscetível de explicação, então se deve procurar uma área tal como foi acima descrita. Se tal
área existe, a cognição pode ser explicada; caso contrário, não! Enquanto colocamos no início da
Teoria do Conhecimento o “dado” em geral, limitamos nesta altura a nossa exigência à escolha de
um determinado ponto do mesmo.
Vejamos a nossa exigência mais de perto. Onde existirá, na imagem do mundo, algo que não
seja apenas dado, mas que seja dado apenas na medida em que for produzido durante o ato
cognitivo?
Devemos estar perfeitamente conscientes de que esse “produzir” deve ser algo dado com
todas as características da imediação. Não deve, de modo algum, haver necessidade de conclusões
lógicas para conhecê-lo. Daí resulta que as qualidades sensoríais não satisfazem nossa exigência.
Pois a circunstância de estas não nascerem sem a nossa atividade, não a conhecemos de modo
imediato, mas apenas mediante considerações da Física ou da Fisiologia. O que, porém, sabemos é
que conceitos e idéias só penetram na esfera do que é imediatamente dado durante o ato cognitivo
e por meio dele. Por isso ninguém se engana a respeito desse caráter dos conceitos e pensamentos.
Podemos tomar uma alucinação por algo dado de fora, mas nunca pensaremos dos nossos conceitos
que nos sejam dados sem a nossa própria atividade de pensar. Um louco considerará como reais os
objetos e situações que possuem predicados da “realidade”, embora não o sejam em verdade; mas
nunca dirá dos seus conceitos e idéias que estes entram no universo do que é dado sem que haja
uma atividade sua. Todo o resto da nossa imagem do mundo deve ser dado para que o possamos
vivenciar; só nos conceitos e idéias ocorre ainda o inverso: temos de produzi-los para poder viven-
ciá-los. Só os conceitos e idéias nos são dados da forma que foi denominada contemplação
intelectual. Kant e os filósofos mais recentes que a ele se prendem negam que o homem, de forma
absoluta, possua essa faculdade, pois o pensar, segundo eles, referir-se-ia apenas a objetos e não
produziria nada espontaneamente. Na contemplação intelectual o conteúdo deve ser dado
simultaneamente à forma do pensamento. Mas será que isso não acontece, realmente, com os
conceitos e idéias puras? (Entendo por “conceito” uma regra segundo a qual os elementos
desconexos da percepção são unidos numa unidade. “Causalidade”, por exemplo, é um conceito. A
idéia é apenas um conceito possuindo um conteúdo mais amplo. “Organismo”, em sua acepção
abstrata, é uma idéia.) Basta considerá-los na forma em que ainda são isentos de todo conteúdo
empírico. Se quisermos, por exemplo, captar o puro conceito de causalidade, não poderemos ater-
nos a qualquer causalidade definida ou à soma de todas as causalidades, mas ao mero conceito da
mesma. Causas e efeitos devem ser procurados no mundo; a causalidade como forma de
pensamento deve ser produzida por nós mesmos, antes que aqueles possam ser encontrados no
mundo. Se quiséssemos apegar-nos à afirmação de Kant segundo a qual conceitos sem percepções
seriam vazios, seria impensável demonstrar-se a possibilidade de uma determinação do mundo dado
por meio de conceitos. Admitamos, com efeito, que sejam dados dois elementos do conteúdo do
mundo, a e b. Se me incumbo de procurar uma relação entre eles, tenho de fazê-lo por meio de
uma regra definida quanto ao seu conteúdo; esta, porém, só posso produzi-la no próprio ato
cognitivo, não podendo tirá-la do objeto, pois as determinações deste último devem justamente ser
obtidas com o auxílio da regra. Tal regra destinada a determinar o mundo real enquadra-se,
portanto, perfeitamente na entidade puramente conceitual.
Antes de continuar cabe-nos eliminar uma objeção possível. Parece que a representação do
“eu”, do “sujeito pessoal”, tem inconscientemente uma função em nosso raciocínio, e que a
usamos no desenvolvimento dos nossos pensamentos sem termos trazido uma justificação para tal.
Isso acontece ao dizermos, por exemplo, que “produzimos conceitos” ou que “formulamos esta ou
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aquela exigência”. Mas em nossas explanações, nada justifica que se veja em tais fórmulas algo
mais do que figuras de estilo. Que o ato cognitivo pertença a um “eu” e dele emane, isso só pode
ser constatado, conforme já dissemos, na fase de ponderações que já implicam em conhecimento.
A rigor, só deveríamos falar por enquanto do ato cognitivo, sem mesmo mencionar um portador.
Pois tudo que consta até esta altura limita-se à existência de algo “dado” e ao fato de surgir o
postulado acima referido, num ponto desse todo dado; por fim são os conceitos e idéias que
constituem a área correspondente a esse postulado. Com isso não queremos negar que o ponto do
qual nasce o postulado seja o “eu”. Mas, por enquanto, limitamo-nos a expor aqueles dois passos da
Teoria do Conhecimento em sua pureza.
V. CONHECIMENTO E REALIDADE
Os conceitos e idéias são, portanto, o que nos é dado e que, ao mesmo tempo, nos conduz
para além do que é dado. Com isso temos a possibilidade de determinar a essência daquilo que
resta da atividade cognitíva.
O nosso postulado nos fez isolar uma parte da imagem dada do mundo, porque a natureza do
conhecer consiste em partir dessa parte tal como está configurada. Mas essa separação só foi feita
para tornar a cognição compreensível. Devemos ter consciência de que rasgamos artificialmente a
unidade da imagem do mundo. Precisamos convencer-nos de que o segmento, por nós separado, do
mundo dado está numa interdependência necessária com o conteúdo do mundo, salvo no que se
refere à nossa exigência e fora dela. Com isso é dado o passo seguinte na Teoria do Conhecimento.
Consistirá em restabelecer a unidade rompida para possibilitar a cognição. Esse restabelecimento
efetua-se por meio do pensar sobre o mundo dado. É na contemplação pensante do mundo que se
realiza, de fato, a reunião das duas partes do seu conteúdo: daquela que avistamos como dada, no
horizonte das nossas vivências; e daquela que, para igualmente ser dada tem de ser produzida no
ato cognitivo. O ato cognitivo é a síntese desses dois elementos. Em cada ato cognitivo um desses
elementos é produzido no próprio ato e acrescentado, por meio dele, àquilo que foi meramente
dado. Só no início da própria Teoria do Conhecimento aquilo que em outras ocasiões é sempre
produzido aparece como dado.
Ora, permear o mundo dado com conceitos e idéias é a contemplação pensante das coisas. O
pensar é, portanto, realmente o ato pelo qual é proporcionada a cognição. Só quando o pensar
ordena, por iniciativa própria, o conteúdo da imagem do mundo é que pode efetivar-se a cognição.
O pensar é uma atividade que produz seu próprio conteúdo no momento da cognição. Na medida
em que o conteúdo conhecido flui apenas do pensar, não oferece dificuldade à cognição. Aqui
precisamos apenas observar, e a essência nos é dada de forma imed ta. A descrição do pensar é, ao
mesmo tempo, a ciência do pensar. De fato, a Lógica nunca foi outra coisa senão uma descrição das
formas do pensamento, e nunca uma ciência demonstradora. A demonstração só aparece ao ocorrer
uma síntese do pensado com outras partes do conteúdo do mundo. É, portanto, o que Gideon
Spicker diz em seu livro Lessings Weltanschauung (A cosmovisão de Lessing), pág. 5 29 :
“Nunca podemos saber por experiência, nem empírica nem logicamente, que o pensar em si
seja correto.” Podemos acrescentar: Toda demonstração cessa em se tratando do pensar. Pois a
demonstração pressupõe o pensar. Pode-se demonstrar um fato isolado, mas não o próprio
demonstrar. Podemos apenas descrever aquilo que é uma demonstração. Na Lógica, toda teoria é
apenas empirismo; nessa ciência só existe observação. Mas se queremos conhecer algo além do
nosso pensar, só o podemos com o auxfiio do pensar, ou seja, o pensar tem de abordar algo dado e
transformar a relação caótica deste com a imagem do mundo numa relação sistemática. O pensar
aborda, pois, o conteúdo dado do mundo como princípio formador. O que aí ocorre é o seguinte: —
Por meio do pensar, alguns detalhes são inicialmente isolados da totalidade do mundo, pois no
mundo dado não existem detalhes isolados, já que tudo está interligado de forma contínua. O
pensar estabelece então, de acordo com as formas por ele produzidas, uma relação entre esses
detalhes isolados, acabando por determinar o resultado dessa relação. Pelo fato de estabelecer
29
N. dos Edit.: O original não indica local e ano de edição.
16
uma ligação entre duas partes isoladas do conteúdo do mundo, o pensar não fez nada para
determiná-las. Aguarda o que vai resultar da criação dessa relação. É esse resultado que constituirá
um conhecimento das respectivas partes do conteúdo do mundo. Se a natureza deste conteúdo
fosse tal que não revelasse nada sobre si através do estabelecimento da referida relação, a
tentativa do pensar teria de malograr e ser substituída por outra. Toda cognição repousa na
capacidade humana de ligar corretamente dois ou mais elementos da realidade e inteirar-se do que
daí resulta.
É indubitável que fazemos muitas dessas tentativas de pensar frustradas, não só nas ciências
cuja história nos é ensinada, mas também na vida comum; só que, nos casos simples que
geralmente enfrentamos, a tentativa certa substitui as erradas tão rapidamente que estas últimas
nunca, ou apenas raras vezes, nos chegam à consciência. Kant, ao postular a “unidade sintética da
percepção”, tinha uma vaga idéia dessa atividade do pensar, derivada de nós e destinada a
conseguir a ordenação sistemática do conteúdo do mundo - Mas quão pouca consciência Kant teve da
autêntica tarefa do pensar resultante da sua crença em que as leis a priori da ciência pura pu-
dessem ser derivadas das regras segundo as quais essa síntese se efetua! Não levou em conta que a
atividade sintética do pensar apenas prepara a obtenção das verdadeiras leis da natureza.
Imaginemos que destacamos da imagem do mundo um conteúdo a qualquer, e mais um outro b. Se
a meta é conhecer um nexo de regularidade existente entre a e b, o pensar tem de, primeiro, pôr a
numa tal relação com b que a dependência existente se nos manifeste como dada. O verdadeiro
conteúdo de uma lei da natureza resulta, pois, do que é dado, e o pensar tem apenas a função de
produzir a oportunidade que faz as partes da imagem do mundo entrar em relações tais que sua
regularidade se tome visível. Da atividade meramente sintética do pensar não decorrem leis
objetivas.
Cabe nesta altura a pergunta: qual é a parte que cabe ao pensar, na formação da nossa
imagem científica do mundo, em contraste com a imagem meramente dada? Resulta da nossa
exposição que o pensar proporciona a forma da regularidade. Admitamos que em nosso esquema
anterior a seja a causa e b o efeito. A relação causal entre a e b nunca poderia constituir um
conhecimento se o pensar não tivesse a capacidade de formar o conceito da causalidade. Para que
se conheça, no caso concreto, a como causa e b como efeito, os dois devem corresponder ao que
entendo por causa e efeito. O mesmo se dá com as outras categorias do pensar.
Convém lembrar brevemente, nesta altura, as idéias de Hume a respeito do conceito da
causalidade. Segundo ele, os conceitos de causa e efeito têm sua origem exclusivamente em nosso
hábito. Observamos, várias vezes, que um acontecimento segue o outro e acostumamo-nos a pensar
em ambos unidos por um laço de causalidade; esperamos, pois, que o segundo se realize quando
notamos o primeiro. Essa opinião, porém, parte de uma noção totalmente errada do nexo causal.
Se, ao sair da minha casa, eu encontrar durante uma série de dias a mesma pessoa, acostumar-me-
ei, pouco a pouco, a aguardar a seqüência temporal dos acontecimentos, mas me virá à mente
constatar nesse caso um nexo causal entre a minha presença e a da outra pessoa, no mesmo lugar.
Procurarei partes essencialmente outras do contexto do mundo para explicar a seqüência dos
aludidos fatos. Não determinamos o nexo causal de acordo com a seqüência no tempo, mas confor-
me o significado, com respeito ao conteúdo, das partes da imagem do mundo designadas como
causa e efeito.
Do fato de o pensar exercer apenas uma atividade formal na formação da nossa imagem
científlca do mundo resulta o seguinte: o conteúdo de um conhecimento qualquer não pode existir
a priori, antes da observação (que é a percepçao impregnada pelo pensar), mas deve resultar
inteiramente desta última. Nesse sentido, todos os nossos conhecimentos são empíricos. Nem se
poderia imaginar que pudesse ser diferente. Pois os julgamentos a priori de Kant não são, no fundo,
conhecimentos, mas sim postulados. Em sentido kantiano só podemos dizer: para que uma coisa
possa tornar-se objeto de um possível conhecimento, tem de obedecer a essas leis. São, portanto,
prescrições que o sujeito faz ao objeto. Ora, o certo seria que, em nossa busca de conhecimentos
do que é dado, estes decorressem não da subjetividade, mas sim da objetividade.
O pensar nao diz nada, a priori, sobre o que é dado; mas estabelece as formas cuja adoção
faz aparecer a posteriori a regularidade dos fenômenos.
Esta nossa interpretação não pode, evidentemente, nada descobrir, a priori, a respeito dos
graus de certeza que um julgamento cognitivo possa ter. Pois tampouco a certeza pode ser obtida
senão do que é dado. A isso se pode objetar que a observação apenas diz existir uma relação entre
os fenômenos, mas não que deva existir ou que sempre deva existir em condições iguais. Mas essa
opinião também é errônea. Pois quando descubro uma certa relação entre partes da imagem do
17
mundo, ela nada é, conforme nosso ponto de vista, senão algo que resulta das próprias partes; não
é algo que meu pensamento acrescenta às partes, mas algo que essencialmente lhes pertence,
tendo portanto de estar necessariamente presente cada vez que elas mesmas estão.
A idéia de que a e b podem ser ligadas hoje por esta lei e amanhã por aquela (J. St.Mill) só
pode resultar de uma opinião que supõe consistir toda atividade científica em relacionar os fatos da
experiência conforme máximas subjetivas alheias a esta. Mas quem compreendeu que as leis da
natureza têm sua origem no que é dado, sendo portanto o que determina as relações entre os
fenômenos, não cogitará em falar numa generalidade apenas comparativa das leis obtidas por meio
da observação. Com isso, naturalmente, não queremos afirmar que as leis da natureza, por nós
aceitas como corretas, devem ter uma validade absoluta. Mas se um caso posterior contradiz uma
lei estabelecida, isso não resulta de esta só poder ser deduzida, da primeira vez, com uma
generalidade comparativa, mas sim do fato de não o ter sido corretamente naquele tampo. Uma
autêntica lei da natureza nada é senão a expressão de uma relação na imagem dada do mundo, e
não existe sem os fatos que regula, assim como estes não existem sem ela.
Definimos como a natureza do ato cognitivo o fato de a imagem dada do mundo ser
impregnada pelo pensar com conceitos e idéias. O que resulta deste fato? Se o imediatamente dado
contivesse uma totalidade fechada em si, tal permeação pelo conhecimento seria impossível e
também desnecessária. Aceitaríamos nesse caso simplesmente o mundo dado tal como é, e fica-
ríamos satisfeitos com sua forma. O ato cognitivo só se toma possível quando o “dado” abarca algo
que ainda não aparece quando o consideramos em sua imediação, mas sim quando introduzimos
certa ordem por meio do pensar. O que se encontra no mundo dado, antes da sua transformação
pelo pensar, não constitui sua plena totalidade.
Isso logo se tomará mais claro quando analisarmos melhor os fatores que constituem o ato
cognitivo. O primeiro deles é o mundo dado. O fato de nos ser dado não é nenhuma qualidade
intrínseca do que é dado, mas apenas uma expressao da sua relação para com o segundo fator do
ato cognitivo. Aquilo que o dado é, de acordo com sua essência, permanece totalmente no escuro
por força dessa determinação. O segundo fator, o conteúdo conceitual do dado, o pensar encontra,
ao realizar o ato cognitivo, como necessariamente unido ao dado. Fazemos então as perguntas: 1)
Onde existe a separação entre o elemento dado e o conceito? 2) Onde está a união entre ambos? A
resposta a essas duas perguntas foi indubitavelmente dada em nossas investigações anteriores. A
separação existe apenas no ato cognitivo; a união se encontra no mundo dado. Donde resulta
necessariamente que o conteúdo conceitual é apenas uma parte do elemento dado, e que o ato
cognitivo consiste em reunir as partes da imagem do mundo que de início lhe são dadas separadas.
A imagem dada do mundo torna-se completa apenas por aquela maneira mediata de ser dada, a
qual é produzida pelo pensar. Através da forma da imediação a imagem do mundo se nos apresenta
de uma maneira totalmente incompleta.
Não existiria cognição se, de início, o conteúdo conceitual estivesse reunido com o elemento
dado. Pois não surgiria a necessidade de ultrapassar o dado. Mas tampouco existiria cognição se
todo o conteúdo do mundo fosse produzido por nós através do pensar e enquanto ele se realiza.
Pois não sentimos necessidade de conhecer o que nós mesmos produzimos. A cognição repousa,
portanto, no fato de nos ser dado o conteúdo do mundo de uma forma incompleta por não o conter
em sua totalidade, apresentando--nos uma segunda face essencial além do que nos aparenta de
imediato. Essa segunda faceta do conteúdo do mundo, que não é dada no início, é nos revelada
pelo conhecimento. O que no pensar nos parece isolado não são formas vazias, mas uma soma de
determinações (categorias) constituindo a forma para o resto do conteúdo. Só pode ser chamada
realidade a configuração, captada pela cognição, do conteúdo do mundo, configuraçãío na qual os
dois lados descritos se acham unidos.
18
opinião teórica sobre a natureza da consciência, usando-o apenas como abreviação estilística para a
fisionomia global da consciência). O eu sente o impulso de encontrar no mundo algo além do que é
imediatamente dado. Em face do mundo dado surge-lhe o segundo, aquele do pensar, e ele os reú-
ne pela realização espontânea do que determinamos como idéia da cognição. Nisso reside uma
diferença fundamental entre a maneira como o conceito e o imediatamente dado se acham unidos
no objeto da própria consciência humana, e aquela que prevalece em relação a todo o resto do
cónteúdo do mundo. Em se tratando de qualquer outra parte deste conteúdo, temos de admitir que
a união é o estado primordial e liminarmente necessário, tendo ocorrido apenas no começo do
conhecer, para a cognição, uma separação artificial a qual, porém, acaba por ser anulada pelo
conhecer, de acordo com a essência original do objetivo. A situação é diferente ao tratar-se da
consciência humana. Aí a separação só existe quando é realizada por uma atividade efetiva da
consciência. Em qualquer outro objeto, a separação não tem importância para o objeto, mas
apenas para a cognição. Então a união é o fato primário, e a separação o fato derivado. A cognição
efetiva a separação porque não pode, por natureza própria, apoderar-se da união sem ter
previamente realizado a separação. Mas o conceito e a realidade dada da consciência são
originalmente separados; a separação é o fato derivado, e por isso a cognição tem as características
acima expostas. Como a idéia e o dado se apresentam na consciência necessariamente separados,
para esta toda a realidade se cinde nessas duas partes; e como a consciência efetua a união dos
referidos dois elementos apenas por meio de uma atividade própria, é só pela realização do ato
cognitivo que alcança a plena realidade. As demais categorias (idéias) estariam necessariamente
unidas com as respectivas formas do mundo dado, mesmo se não fossem acolhidas para fazer parte
do conhecimento; a idéia da cognição só pode ser unida com o seu respectivo dado através da
atividade da consciência. Uma autêntica consciência só existe quando se realiza a si própria. Com
isso julgamo-nos suficientemente preparados para expor o erro básico da Doutrina da Ciência, de
Fichte, e ao mesmo tempo proporcionar a chave para sua compreensão. Entre os seguidores de
Kant, foi Fichte quem mais intensamente sentiu que uma fundamentação de todas as ciências só
podia consistir numa teoria da consciência; nunca, porém, conseguiu discernir as razões do fato.
Sentiu que o “eu” devia realmente efetuar o que chamamos de segundo passo da Teoria do
Conhecimento, e ao qual demos a forma de um postulado. Isso resulta das suas próprias palavras,
por exemplo: “Destinada a ser uma ciência sistemática, a Doutrina da Ciência nasce, portanto,
como qualquer outra ciência chamada a ser sistemática, de uma determinação da liberdade,
destinada em particular a tornar consciente a maneira de agir da inteligência; (. . .) Por meio desse
ato livre, algo que, em si, é forma, ou seja, a ação necessária da inteligência, acolhida como
conteúdo numa forma do saber ou da consciência . . . 30 . O que devemos entender por maneira de
agir da “inteligência”, se desejamos vazar em conceitos claros o que apenas obscuramente é senti-
do? Nada sento a realização da idéia da cogniçao, que se efetua na consciência. Se Fichte estivesse
consciente disso, teria formulado a proposição acima da seguinte maneira: — A ciência tem de
elevar a cognição à consciência enquanto ainda é uma atividade inconsciente do “eu”; deve
demonstrar que a objetivação da idéia da cognição deve ser realizada, como ato necessário, no
“eu”.
Fichte pretende determinar a atividade do “eu”: “Aquilo cujo ser (essência) apenas consiste em
fixar a si próprio como existente é o eu, como sujeito absoluto.” 31 Esta fixaçao do eu é, para
Fichte, a primeira ação incondicionada que “fundamenta qualquer outra consciência” 32 . O eu
pode, portanto, iniciar toda a sua atividade, conforme Fichte, também só por meio de uma decisão
absoluta. Para Fichte, porém, é impossível proporcionar qualquer conteúdo a essa sua atividade
fixada de forma absoluta pelo eu. Pois ele nada possui ao qual se direcione essa atividade ou que
possa determiná-la. Seu eu é chamado a realizar uma ação; mas o que deve fazer? Não tendo
proposto o conceito da cognição a ser realizada pelo eu, Fichte esforçou-se em vão para realizar o
passo da sua ação absoluta para as determinações subseqüentes do eu. Ele até declara, por fim,
com relação a tal progresso, que a investigação a seu respeito está fora dos limites da sua teoria.
Quando deduz a representação mental, ele não parte nem de uma atividade do eu nem do não eu
nem do não-eu, mas de um “estar determinado” que é, ao mesmo tempo, um determinar — porque
nada, além dele, está nem pode estar contido na consciência de uma forma imediata. Na teoria,
aquilo que determina essa determinação permanece totalmente indeciso; e é devido a essa
30
Sobre o conceito da Doutrina da Ciência ou da chamada Filosofia. Obras Completas, Berlim 1845, tomo 1, págs. 71 e s.
31
Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre (Fundamentos da Doutrina Geral da Ciência). Obras Completas 1, pág. 97.
32
Obras Completas 1, pág. 91.
19
indecisão que somos conduzidos para além da teoria, até a parte prática da Doutrina da Ciência 33 .
Mas com essa explicação, Fichte destrói toda cognição. Pois a atividade prática do eu pertence a
uma área totalmente diferente. Está claro que o postulado acima formulado por nós só pode ser
realizado através de uma ação livre do eu; mas se o eu está para assumir uma atitude cognitiva, o
importante é que se decida a realizar a idéia do conhecimento. Não há dúvida de que o eu possa
ainda executar muitas outras coisas por uma resolução livre. Mas o que importa numa
fundamentação gnosiológica de todas as ciências não é uma caracterização do eu livre, mas do eu
que conhece. Mas Fichte deixou-se influenciar em demasia por seu pendor subjetivo de dar a maior
ênfase à liberdade da personalidade humana. É com razão que Harms observa, em seu discurso
Sobre a Filosofia de Fichte, à pág. 15: “Sua cosmovisão é preponderante, senão exclusivamente
ética, e sua teoria do conhecimento não tem outro caráter.” Nenhuma tarefa caberia à cognição se
todas as áreas da realidade fossem dadas em sua totalidade. Como o eu, enquanto não está
integrado pelo pensar no todo sistemático da imagem do mundo, não passa de algo imediatamente
dado, uma mera indicação da sua atividade não é, de maneira alguma, suficiente. Fichte, porém,
acha que, em se tratando do eu, a mera procura já o seja. “Temos de procurar o princípio
absolutamente primeiro, incondicionado de todo saber humano. Não pode ser demonstrado nem
determinado, já que pretende ser princípio absolutamente primeiro.” 34 Vimos que as
demonstrações e determinações só não têm cabimento em se tratando do conteúdo da Lógica pura.
Mas o eu faz parte da realidade, e aí toma-se mister constatar a existência desta ou daquela
categoria no universo dado. É isso que Fichte deixou de fazer, e é nesse fato que devemos buscar a
causa pela qual deu à sua teoria da ciência uma expresão tão falha. Zeller observa 35 que as
fórmulas lógicas, mediante as quais Fichte quer chegar ao conceito do eu, mal escondem a sua
intenção de alcançar a qualquer preço a meta prefixada de atingir esse ponto de partida. Essas
palavras referem-se à primeira versão que Fichte dera à sua Doutrina da Ciência, em 1794. Lem-
brando que Fichte não podia, de acordo com toda a índole da sua filosofia, desejar outra coisa
senão fazer com que a ciência principiasse por uma sentença apodítica absoluta, só existem dois
caminhos para elucidar tal empreendimento. O primeiro consistia em tomar a consciência em
qualquer uma das suas atividades empíricas e isolar o puro conceito do eu, descartando
paulatinamente tudo que dela não resulte originalmente. O segundo caminho consistia em partir da
atividade primordial do eu, desvendando sua natureza por meio da auto-reflexão e da auto-
observação. No início da sua filosofia, Fichte seguiu o primeiro caminho, passando para o segundo
durante o desenvolvimento posterior da mesma.
Prendendo-se á síntese da “apercepção transcendental”, de Kant, Fichte julgou que toda
atividade do eu consistisse na estruturação da matéria da experiência de acordo com as formas do
julgamento. O julgamento é a união do predicado com o sujeito, expressa formalmente pela
proposição a = a. Essa proposição seria impossível se o x que liga os dois a não repousasse na
capacidade de pura e simplesmente pôr. Pois a proposição x não significa a existe, mas sim: se a
existe, a existe. Não se trata, portanto, de uma colocação absoluta do a. Para se chegar a algo pura
e simplesmente válido e absoluto, não há outro recurso senão declarar que o próprio “pôr” seja
absoluto. Enquanto a é condicionado, pôr o a é algo incondicionado. Mas esse “pôr” é uma ação do
eu. A este compete, portanto, a capacidade de pura e simplesmente pôr. Na proposição a = a, um a
é posto apenas enquanto o outro é pressuposto, e quem o põe é o eu. “Se a é posto no eu, é mesmo
posto.” 36 Essa relação só é possível sob a condição de permanecer no eu algo sempre igual a si,
algo que conduz de um a ao outro. E o x acima aludido baseia-se nessa igualdade permanente. O eu
que põe um dos a é idêntico àquele que põe o outro. Mas isso implica em eu = eu. Essa proposição,
expressa no julgamento: Se o eu existe, então existe — não tem sentido. Pois o eu não é posto sob
pressuposição de algo outro, mas pressupõe a si próprio. Mesmo isso significa: existe pura e
simplesmente e de forma incondicionada. A forma hipotética do julgamento que cabe a todo julgar,
quando não há pressuposição do eu absoluto, transforma-se aqui na forma da proposição existencial
absoluta. Eu sou, sem mais nem menos. Fichte formula esse fato ainda da maneira seguinte 37 : “O
eu põe originalmente, pura e simplesmente, seu próprio existir.” Vemos que toda essa dedução de
33
Obras Completas 1, pág. 178.
34
Id.ibid.,pág.91.
35
Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz (História da Filosofia alemã desde Leibniz). Munique 1871-1 875, pág.
605.
36
Obras Completas 1, pág. 94.
37
Id. ibid., píg. 98.
20
Fichte não passa de uma disputa pedagógica para conduzir seus leitores até o ponto em que se lhes
abre o conhecimento não condicionado da atividade do eu. Eles devem ter uma visão clara daquela
ação do eu sem cuja realização nenhum eu existe.
Olhemos mais uma vez para o raciocínio de Fichte. Observando melhor, constataremos haver
nele um salto, e mesmo um salto tal que põe em questão a veracidade da noção original da ação. O
que há de realmente absoluto em pôr o eu? Emite-se o julgamento: se a existe, a existe. O a é
posto pelo eu. Não pode pairar dúvida a respeito desse “pôr”. Mas mesmo sendo incondicionado
como atividade, o eu não pode senão por algo qualquer. Nao pode pôr a “atividade em si e por si”,
mas apenas uma atividade determinada. Numa palavra: o pôr deve ter um conteúdo. Mas não pode
tirá-lo de si próprio, do contrário jamais poderia fazer outra coisa senão pôr o pôr. Para o pôr deve,
portanto, haver a atividade absoluta do eu, algo que seja realizado por meio dela. Sem tocar em
algo dado ao qual põe, o eu não pode pôr nada, isto é, ele não pode pôr. Isso também é revelado
por esta proposição de Fichte: o eu põe o seu existir. Esse existir é uma categoria. Estamos de volta
à nossa proposição. A atividade do eu consiste no fato de o eu pôr, por uma decisão própria livre,
os conceitos e idéias do dado. Fichte só alcança seu resultado procurando inconscientemente
comprovar o eu como “existente”. Tivesse ele desenvolvido o conceito do conhecer, teria chegado
ao verdadeiro ponto de partida da Teoria do Conhecimento: O eu põe o conhecer. Como Fichte não
tinha uma noção clara do que determina a atividade do eu, designou o pôr da existência como
característica dessa atividade. Mas, com isso, limitou também a atividade absoluta do eu. Pois se
apenas o pôr da existência, efetuado pelo eu, é incondicionado, todo o resto que emana do eu é
condicionado. Mas nesse caso também está cortado todo caminho para se chegar do incondicionado
ao condicionado. Se o eu é incondicionado apenas nesse sentido, logo cessa para ele toda
possibilidade de pôr, mediante um ato original, algo que não seja sua própria existência. Daí surge
a necessidade de se apontar a causa para qualquer outra atividade do eu. Como já vimos, Fichte a
procurou em vão.
Por isso ele se virou para o outro dos dois caminhos acima indicados, a fim de deduzir o eu. Já
em 1797, em sua Erste Einleitung in die Wissenschaftslehre (Primeira introdução à Doutrina da
Ciência), ele recomenda a auto-observação como meio certo para se conhecer o eu em seu caráter
mais íntimo. “Presta atenção a ti mesmo; desvia o teu olhar de tudo que te rodeia, dirigindo-o ao
teu próprio interior — eis a primeira exigência que a Filosofia faz ao seu aprendiz. Não se trata de
nada fora de ti, mas apenas de ti mesmo.” 38 Essa maneira de abrir a Doutrina da Ciência tem sobre
a outra uma grande vantagem. Com efeito, a auto-observação não revela a atividade do eu
desenvolvendo-se unilateralmente numa direção definida, não o mostra apenas pondo a existência,
mas desenvolvendo-se para todos os lados, procurando compreender por meio do pensar o conteúdo
do universo imediatamente dado, O eu se mostra à auto-observação construindo a imagem do
mundo pela junçao do dado e do conceito. Mas para quem não nos acompanhou em nossas
considerações precedentes — e não sabe que o eu só chega ao conteúdo inteiro da realidade
quando aborda com suas formas de pensamento o universo dado — o processo cognitivo parece ser
uma secreção do mundo, a partir do eu. Para Fichte, a imagem do mundo vem a, ser, cada vez
mais, uma construção do eu. Por isso ele afirma com ênfase cada vez maior que a meta principal da
Doutrina da Ciência consiste em despertar o sentido capaz de espreitar o eu enquanto constrói o
mundo. Aquele que sabe fazer isso parece-lhe haver galgado um grau de conhecimento mais alto do
que aquele que apenas enxerga o construído, aquilo que está acabado. Quem apenas contempla o
mundo dos objetos não reconhece terem eles apenas sido criados pelo eu. Mas quem observa o eu
enquanto constrói, enxerga o fundamento da imagem completa do mundo, sabe de que maneira
nasceu, já que lhe aparece como uma conseqüência da qual lhe foram dadas as causas. A
consciência comum só vê o que é posto, o que, de uma ou de outra maneira, é determinado. Falta-
lhe o discemimento das proposições preliminares, das causas: por que são as coisas postas de um
certo modo, e n5o de outro. Proporcionar o conhecimento dessas proposições, preliminares é a
tarefa de um sentido totalmente novo. Essa tese parece-me mais nitidamente exposta nos
Einleitungsvorlesungen in die Wissenschaftslehre, Vorgelesen im Herbst 1813 auf der Universität zu
Berlin (Aulas de introdução à Doutrina da Ciência, proferidas no outono de 1813 na Universidade de
Berlim): “Essa teoria pressupõe um órgão sensorial interior inteiramente novo, por meio do qual é
dado um novô mundo que inexiste para o homem comum”, ou “O mundo do novo sentido e
portanto, ele próprio, estão por enquanto nitidamente definidos: é a visão das sentenças
preliminares, fundamento do julgamento: algo existe; é a causa da existência, a qual, por ser
38
Obras Completas I, pág. 422.
21
isto,por sua vez, não existe e não é uma existência.” 39
Mas também nesse raciocínio falta a Fichte um discernimento claro do conteúdo da atividade
exercida pelo eu. Ele nunca o alcançou, e é por isso que sua doutrina da ciência nunca veio a ser o
que deveria, conforme sua conceituação: uma doutrina do conhecimento como ciência filosófica
fundamental. Desde que Fichte reconheceu ser a atividade do eu posta por este mesmo, pareceu
evidente a idéia de que também recebe dele a sua determinação. Mas como é que isso pode
realizar-se senão dando um conteúdo à atividade puramente formal do eu? Mas se é realmente o eu
quem deve dá-lo à sua atividade ainda inteiramente indeterminada, esse conteúdo também deve
ser determinado quanto à sua natureza. Caso contrário, poderia, no máximo, ser realizado por um
“objeto em si”, sito no eu e do qual o eu seria o instrumento, mas nunca por este mesmo. Se Fichte
houvesse tentado esta determinação, teria chegado ao conceito da cognição, que deve ser
realizado pelo eu. A Doutrina da Ciência de Fichte é uma prova de que mesmo o pensar mais
perspicaz não consegue atuar em qualquer campo de forma fecunda quando não chega à forma de
pensamento correta (categoria, idéia) a qual, completada pelo universo dado, conduz à realidade.
Acontece a tal pensador como a um indivíduo a quem se oferecem as mais belas melodias mas que
nem as ouve, por não ter sensibilidade para a melodia. Só pode dar uma caracterização da
consciência como um dado, quem sabe captar a “idéia da consciência”.
Uma vez, Fichte até chegou bem perto da idéia certa. Em 1797, em suas Eínleitungen zur
Wissenschaftslehre (Introduções à Doutrina da Ciência), ele acha que existem dois sistemas — o
dogmatismo, que estatui ser o eu determinado pelas coisas, e o idealismo, que postula serem os
objetos determinados pelo eu. Ambos se apresentam, segundo ele, como possíveis cosmovisões.
Tanto um como outro permitem uma sistematização conseqüente. Mas quando nos abandonamos ao
dogmatismo, temos de renunciar à autonomia do eu e fazê-lo depender da “coisa em si”. Caso
contrário, somos adeptos do idealismo. Fichte deixa à livre vontade do eu qual dos dois sistemas
deve ser escolhido por um ou outro filósofo. Mas se o eu quisesse manter sua autonomia, acabaria
com a crença nas coisas fora de nós, entregando-se ao idealismo.
Fichte deveria ainda ter considerado que o eu nem pode chegar a uma verdadeira decisão e
determinação fundamentada se não pressupõe algo que o ajude a efetuá-la. Toda determinação,
partindo do eu, ficaria vazia e sem conteúdo, se o eu não encontrasse algo cheio de conteúdo,
inteiramente determinado, que lhe facultasse a determinaçáb do universo dado e lhe permitisse
escolher entre o idealismo e o dogrnatismo. Esse algo totalmente cheio de conteúdo, porém, é o
mundo do pensar. Ora, determinar o dado pelo pensar significa conhecer. Seja qual for a nossa
abordagem de Fichte, sempre constatamos que seu raciocínio adquire pé e cabeça quando
imaginamos que a atividade do eu, tão vazia e cinzenta em seu sistema, se enche e se ordena com
aquilo que chamamos de processo cognitivo.
Por ter a capacidade de entrar livremente em atividade, o eu pode realizar a categoria da
cognição a partir de si mesmo, através de uma autodeterminação, enquanto no resto do mundo as
categorias se revelam ligadas ao dado que lhes corresponde, por uma necessidade objetiva.
Investigar a essência da autodeterminação livre constituirá a tarefa de uma ética e de uma
metafísica baseadas em nossa teoria do conhecimento. Estas também terão de discutir a pergunta
que indaga se o eu é apto a realizar outras idéias, além da cognição. Mas já resulta das
considerações anteriores que a realização da cognição se efetua em liberdade. Pois se o
imediatamente dado, e a forma do pensar que lhe corresponde, são unidos pelo eu por meio do
processo cognitivo, a junção dos dois elementos da realidade, normalmente separados na
consciência, só pode ser efetivada por um ato de liberdade.
Mas as nossas ponderações fizeram aparecer o idealismo crítico numa nova luz, ainda de outra
forma. A quem estuda a fundo o sistema de Fichte, esse filósofo parece ater-se com carinho
especial em manter vigente o princípio de que nada possa entrar de fora no eu e de que nele nada
surja que não haja originalmente sido posto pelo mesmo. Ora, não pode haver dúvida de que
nenhum idealismo jamais consiga deduzir do eu aquela forma do conteúdo do mundo que
chamamos de imediatamente dado. Essa forma só pode ser dada, e nunca construída por meio do
pensar. Basta considerar que nunca conseguiríamos, mesmo se toda a escala de cores menos uma
nos fosse dada, completar nem uma apenas por meio de uma atividade do eu. Podemos elaborar
uma imagem das regiões mais longínquas e nunca vistas por nós, desde que tenhamos vivenciado
individualmente uma vez no passado os vários elementos que a compõem. Fazemos então uma
composição da imagem, conforme instruções recebidas, a partir de fatos isolados que já viven-
39
Obras póstumas de J.G.Fichte. Editadas por I.H.Fichte, tomo 1, Bonn 1834, págs. 4 e 16.
22
ciamos no passado. Mas procuraremos em vão produzir espontaneamente mesmo um único
elemento da percepção que antes nunca esteve no campo do nosso mundo dado. Uma coisa é
apenas conhecer o mundo dado; outra, inteirar-se da sua essência. Esta última, não obstante sua
ligação com o conteúdo do Universo, não se nos evidencia sem que nós próprios construamos a
realidade juntando o que nos é dado e o nosso pensar. O verdadeiro “o quê” do mundo dado só é
posto para o eu por este mesmo. Mas o eu não teria o menor motivo para pôr dentro de si a
essência de algo dado se não o tivesse à sua frente, de início, de uma forma desprovida de qualquer
estruturação. A essência do Universo posta pelo eu não é posta sem o eu, mas por ele.
A primeira forma com a qual a realidade aborda o eu não é verdadeira, mas o é a última, que
o eu realiza por si mesmo. Aquela primeira forma não tem nenhum significado para o mundo
objetivo; só tem importância como fundamento para o processo cognitivo. Subjetiva não é aquela
forma do Universo que lhe é dada pela teoria, mas aquela que é imediatamente dada ao eu. Se esse
mundo dado, de acordo com Volkelt e outros, é chamado de experiência, mister é acrescentar: a
ciência completa a imagem do Universo que se nos apresenta de forma subjetiva, de acordo com a
organização da nossa consciência, e transforma-a no que essencialmente é.
A nossa teoria do conhecimento proporciona a base para um idealismo que se compreende a si
próprio, no verdadeiro sentido da palavra. Fundamenta a convicção de que o pensar transmite a
essência do Universo. Nada, senão o pensar, revela a relação entre as partes do conteúdo do
mundo, seja entre o calor do Sol e a pedra aquecida, ou aquela entre o eu e o mundo exterior.
O kantismo ainda poderia objetar que a referida determinação da essência do mundo dado só
teria validade para o eu. A isso temos de responder, de acordo, com o nosso conceito básico, que
também a cisão do eu e do mundo exterior só existe dentro do dado, donde resulta não ter esse
“para o eu” relevância alguma diante da contemplação pensante que reúne todos os opostos. O eu,
como algo separado do mundo exterior, deixa de existir na contemplação pensante do mundo; por
isso não faz sentido falar em determinações que existiriam simplesmente para o eu.
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representada por A.E.Biedermann 40 . Mas esse autor recorre, para fundamentar seu ponto de vista,
a constatações que, de maneira alguma, cabem na Teoria do Conhecimento. Ele opera, por exem-
plo, com conceitos de existência, substância, espaço, tempo, etc., sem antes ter analisado o
processo cognitivo como tal. Em vez de constatar que só existem no processo cognitivo os dois
elementos, o dado e o pensar, fala em modos de existência da realidade. Diz, por exemplo, no
parágr. 15: “Em todo conteúdo da consciência são contidos dois fatos básicos: 1) são-nos dadas
duas formas de existência, sendo que denominamos esse contraste existencial como existência
sensual e espiritual, real e imaterial.” E no parágr. 19: “O que possui existência temporo-espacial
existe como algo material; o que constitui o fundamento de todo processo existencial e o sujeito da
vida existe imaterialmente, possuindo a realidade de algo existente não-fisicamente.” Tais
ponderações não cabem na Teoria do Conhecimento, mas na Metafísica, a qual só pode ser
fundamentada com o auxilio da Gnosiologia. Temos de admitir, porém, que as afirmações se
parecem com as nossas em muitos aspectos; mas o nosso método nada tem em comum com o seu.
Por esse motivo não sentimos, em nenhuma situação, a conveniência de entrar diretamente numa
discussão com ele. Biedermann procura obter um ponto de vista gnosiológico recorrendo a alguns
axiomas metafísicos, enquanto nós procuramos chegar a uma opinião acerca da realidade pela
análise do processo cognitivo.
Acreditamos de fato termos mostrado que toda discussão das cosmovisões se deve ao fato de
se pretender adquirir um conhecimento de algo objetivo (coisa, eu, consciência, etc.) sem
previamente conhecer exatamente a única coisa que pode esclarecer qualquer outra forma de
conhecer: a própria natureza do conhecimento.
40
Christliche Dogmatik (Dogmática cristã) Berlim, 1 884-85. “As investigações gnosiológicas”, no tomo 1. Eduard von
Hartmann conduziu uma criativa polêmica sobre esse ponto de vista — veja-se Kritische Wanderungen durch die Philosophie
der Gegenwart (Transformações críticas pela filosofia da atualidade). Leipzig 1889, pdgs. 200 e ss.
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Se dessa essência estranha transformam-se em atuação do nosso próprio eu, tal coação cessa. O
que coagia passou a ser nossa própria natureza. A lei não nos domina mais de fora, mas de dentro,
por intermédio dos atos que emanam do nosso eu. A realização de uma ação em conseqüência de
uma regularidade exterior a quem a realiza é um ato sem liberdade; quando emana do realizador é
um ato livre. Conhecer as leis das próprias açãés significa estar cônscio da própria liberdade. O
processo cognitivo é, de acordo com nossas considerações, o processo que evolui em direção à
liberdade.
Nem todo agir humano possui esse caráter. Em muitos casos, não conhecemos as leis que
regem as nossas ações. A essa parte do nosso agir falta a liberdade. A ela se opõe a parte em cujas
leis nos integramos. Este é o domínio livre. Nossa vida só pode ser qualificada de moral na medida
em que lhe pertence. Transformar a primeira área até que tenha o caráter da segunda — eis a
tarefa da evolução de todo indivíduo, como também da Humanidade em geral.
O problema mais importante de todo pensar humano consiste, portanto, em compreender o
homem como personalidade livre que tem seu fundamento em si mesmo.
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