Fundamentos Da Sociedade Ocidental
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NEMO, Philippe, Qu’est-ce que l’Occident?, Paris, Quadrige/PUF, 2004, Introduction
A INVENÇÃO DO DIREITO E DA PROPRIEDADE
PRIVADA, DA “PESSOA” E DO HUMANISMO POR ROMA
Os gregos tinham inventado o “governo da lei”, mas não tinha muito
elaborado o direito porque nas pequenas cidades gregas, etnicamente
homogêneas, o direito permanecia não escrito. Todavia, se o direito deve
tornar possível a cooperação pacífica e fecunda entre os homens pela
delimitação das fronteiras entre o que é meu e o que é teu, ele conseguirá
preencher melhor esse papel na medida em que ele saberá definir mais
precisamente essas fronteiras. É esse aperfeiçoamento que será realizado
pelos magistrados e os juristas romanos, que constituíram um sistema de
direito privado. Fazendo isso, os Romanos mudaram completamente a
concepção do homem e da pessoa humana. A figura do praetor peregrinus,
encarregado de resolver os problemas não cobertos pelo direito tradicional nos
territórios conquistados foi a ocasião de inovações fundamentais: esse
magistrado foi autorizado a qualificar crimes e delitos com palavras e conceitos
que não figuravam literalmente no direito civil existente e escolhidos de modo
que fossem entendidos pelos interessados sem ambigüidade. Isso exerceu
uma forte pressão a favor da criação de uma linguagem jurídica cada vez mais
abstrata. Esse trabalho foi acelerado e reorientado quando Roma entrou em
contato mais estreito com a cultura grega, principalmente com o estoicismo. Os
estóicos tinham elaborado a teoria do cosmopolitismo: consideravam a
humanidade como uma comunidade única compartilhando uma idêntica
natureza humana; assim, as regras das relações sociais, no seio dessa
comunidade única, se referem a uma única “lei natural”, da qual as leis
positivas de cada cidade são apenas um decalque e uma aproximação. Se esta
lei for mesmo inscrita no coração de cada ser humano, a conseqüência é clara:
quando homens de uma cidade diferente se encontram, se eles não entrar em
acordo a partir dos códigos positivos de suas cidades respectivas, eles poderão
ser colocados em acordo pela referência a uma lei natural que é comum a
todos eles. Assim, a fonte do direito não devia ser encontrada no mito, no
costume ou numa revelação religiosa: devia ser encontrada na natureza
humana objetiva, universal, conhecível pela razão e pela consciência e a
formula do praetor tinha vocação a ser universalmente admitida. Esse direito
romano universalmente admitido fornecia um meio extremamente eficaz de
defender a propriedade privada porque permitia que o que é meu e o que é teu,
bens constituídos no decorrer dos acontecimentos da vida, fossem
precisamente delimitados. Ora, se o patrimônio próprio de cada um é assim
definido e garantido no tempo (incluindo, pelo direito de herança, além da vida
humana individual), é o próprio eu que toma uma dimensão diferente de
qualquer uma que tenha tido em outras civilizações. O que alguém é depende
em alguma medida do que ele tem. Se o que alguém tem é e permanece
distinto do que o outro tem, o que se é permanece distinto do que é o outro. As
vidas individuais deixam de se fundir no oceano do coletivo, inclusive no
sentido da solidariedade ainda muito estreita na Cidade Grega. Assim o direito
romano adquire uma dimensão moral inesperada. Pode se sustentar que,
tendo inventado o direito privado, os Romanos inventaram a pessoa humana
individual, livre, tendo uma vida interior, um destino absolutamente singular, um
ego. O direito romano é, portanto, fonte do humanismo ocidental. Cícero
parece ter tido a idéia de aplicar ao ser humano em geral a palavra persona
que designava, na origem, as personagens de teatro: se todo homem possui a
natureza humana que é comum a todos, cada homem possui uma natureza
própria que lhe permite desempenhar um papel singular na vida. Por isso, o
homem individual pode ser chamado de pessoa. E, assim como uma peça de
teatro deixa de ter sentido sem a articulação das ações e dos sentimentos das
várias personagens, assim a República deixaria de existir se os vários cidadãos
deixassem de ser si mesmos.
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Ver LE GOFF, Jacques La naissance du purgatoire, Paris, Gallimard 1991
cooperação social, pacífica e eficiente que permita agir sobre esse mundo,
quer dizer respectivamente uma ciência e um direito. Usar a razão na ciência e
no direito tornar-se-á, para o homem ocidental, um dever sagrado. Já existem
duas ferramentas racionais, a ciência grega e o direito romano, que é somente
preciso reaprender a usar. O direito romano adquire uma dimensão
transcendente quando se pensa que a salvação depende da exata medida em
que se cumpre a justiça humana. O método escolástico praticado nas
universidades da Idade Média, procedendo por questões, distinções, exame e
resolução metódica das objeções, do pro e do contra, terá despertado o
espírito cientifico da Antiguidade e preparado diretamente os pesquisadores
para a caminhada hipotético-dedutiva característica da ciência moderna. Assim
a idéia de base da Revolução Papal que era sendo realizada era desenvolver
todos os poderes e meios da natureza e da razão humana para trabalhar na
realização dos ideais éticos e escatológicos da Bíblia. Mas como a razão é
medida, grau, construção e paciência, essa escolha não podia coincidir com
um fanatismo milenarista. A civilização será daqui para frente uma síntese
entre Atenas, Roma e Jerusalém. A Antiguidade clássica será completamente
integrada no imaginário e na identidade dos povos cristãos da Europa e é essa
síntese, pela qual se elabora um espírito ou uma Forma cultural sem
equivalente em outra parte, que pode ser designada pelo termo Ocidente.
O liberalismo intelectual
Antes de poder entender completamente e analiticamente o
interesse positivo do pluralismo crítico no que diz respeito a idéias e
conhecimentos, os europeus começaram primeiro uma longa caminhada em
direção à tolerância, principalmente a partir da Reforma que criava pela
primeira vez na Europa uma situação de pluralismo religioso. Essa caminhada
tinha começado na Idade Média com Abelardo e outros, continuando no século
XVI, por exemplo com Pico da Mirandola, Erasmo e outros e chegando nos
século XVII-XVIII com Grotius, Locke e Voltaire. Será preciso um novo esforço
para passar do conceito de tolerância para o conceito de pluralismo crítico,
quer dizer a tese segundo a qual proibir o pluralismo produz mais mal do que
bem, para a tese segundo a qual o pluralismo produz por si sempre um bem,
ou, melhor dizendo, que a verdade só é acessível pelo pluralismo crítico. A tese
do laço direto entre verdade e pluralismo tem como corolário de que todo
cidadão deve ser livre para expressar seus pensamentos, e que é preciso
garantir constitucionalmente a liberdade de todas as instituições culturais. Os
teóricos (Milton, Bayle, Kant, Benjamin Constant e, nos nossos dias, Karl
Popper ou Thomas S. Kuhn) colocaram progressivamente em evidência o fato
de que o pluralismo crítico, em termos de idéias e de conhecimentos, é fecundo
e não destruidor, que ele serve melhor a verdade do que sua defesa dogmática
ou autoritária e que, portanto, é criador de ordem e não de desordem. Eles
partiram da constatação de que a razão e o conhecimento humanos são
fundamentalmente limitados e falíveis. Portanto, se for empregada a força
coercitiva do Estado ou da multidão mimética e perseguidora para apoiar uma
certa versão da verdade, proíbe se que suas outras faces possam aparecer e
se bloqueia o processo de progresso do conhecimento. Pelo contrário, a
liberdade de pensamento e de crítica permite remediar a limitação intrínseca
da razão humana. Esse pluralismo crítico não desemboca no ceticismo nem no
relativismo. Existem idéias, teses, conhecimentos que, mesmo expostos à
crítica, resistem no sentido de que ninguém pode refutá-los colocando em
evidência uma falha no raciocínio, opondo fatos contrários. A caminhada do
racionalismo crítico consiste em separar os conceitos de verdade e de certeza:
se progride em direção da primeira muitas vezes abrindo mão da segunda.
Assim foi estabelecida e integrada nos costumes a liberdade de pensamento
no Ocidente.
A democracia
A democracia é o nome especial dado ao liberalismo político, quer
dizer à liberdade e ao pluralismo nos procedimentos de nomeação dos
governantes e na tomada de decisão política. A democracia começou na
Grécia e em Roma mas não conseguiu sustentar-se. Na Itália foram recriadas
república urbanas e as tradições democráticas da Antiguidade foram
preservadas nas ordens monásticas e nos cabides episcopais. As novas
instituições testemunham que as elites sociais, aos poucos, entenderam que,
no campo constitucional como no da vida intelectual e cientifica, uma “ordem
pelo pluralismo” respeitosa das opiniões individuais e concebido para que elas
possam desempenhar formalmente um papel é preferível a uma outra ordem
absolutista ou instaurada por oligarquias fechadas, sem falar das ditaduras
produzidas pelo cesarismo ou pelas explosões de massas populares.
A experiência dos tempos modernos mostra que uma coerência
maior pode ser trazida pelo constitucionalismo. Quando existe um consenso
em relação a regras constitucionais precisas e impositivas, o Estado é uno, e
todos podem beneficiar-se dos frutos específicos trazidos pelo pluralismo
político sem ser expostos à anarquia.
A democracia, como a liberdade de pensamento pressupunha as
conquistas já citadas: o valor da pessoa, o valor do direito e, principalmente, a
convicção do caráter essencialmente falível da razão humana. Para que a
solução democrática pudesse impor-se aos espíritos mais conscientes, era
preciso que desaparecesse o resto de cultura monárquica e, mais geralmente,
qualquer idéia de que alguns homens são feitos de um material diferente dos
outros que os dispensa das limitações da razão humana ordinária. Essa
dessacralização do poder foi o fruto do judeu-cristianismo e o conceito de
laicidade vem da Bíblia. Os profetas hebreus inauguram a divisão e a luta entre
o poder espiritual e o poder temporal. O profeta não se submete ao poder do
rei e os livros históricos mostram a impossibilidade desses dois poderes
fusionar numa figura de uma monarquia sagrada. O Estado faz a gestão do que
existe enquanto os profetas e os santos preparam o futuro. Todas as filosofias
políticas que se declararam hostis à herança bíblica defenderam um estatismo
não democrático que leva a uma nova sacralizaçao do Estado (Maquiavel,
Hobbes, Rousseau, Hegel, Maurras...). A democracia nasceu no solo cultural
onde figuravam a convicção e a doutrina da falibilidade humana, do direito da
humanidade a aspirar a um futuro melhor, da não legitimidade do poder político
a assumir por si mesmo esse futuro e a constituir o horizonte último da vida
humana.
O liberalismo econômico
A reflexão sobre os mecanismos de base da economia de mercado
foi obra coletiva de muitos teóricos de muitos países europeus. Ela começou na
Idade Média: São Tomás de Aquino já contestava a idéia aristotélica do preço
natural, reconhecendo que o preço podia variar em função da oferta e da
procura. A escola francesa dos fisiocratas e a escola austríaca, enraizada na
Escola de Salamanca, nos séculos XVI e XVII trouxeram uma contribuição cuja
importância não pode ser esquecida, junto com os teóricos clássicos, Smith,
Ricardo ou Malthus. Todos descobriam que a “riqueza das nações” depende do
desenvolvimento da livre troca, da livre empresa, do livre comercio e da livre
circulação dos capitais. Conseguindo criar riqueza, a vida de todos melhora e a
violência é curada. Assim, para esses autores, a economia de mercado é
essencialmente moral. Mesmo quando os agentes econômicos são dispersos,
longe uns dos outros, seus comportamentos são assim mesmo coordenados
por um duplo sistema de comunicação: o direito delimita precisamente as
fronteiras das propriedades privadas e é um guia negativo, dizendo o que não
pode nem deve ser feito para não prejudicar os outros. Os preços são o guia
positivo que diz o que deve ser feito se quisermos estar em condições de
responder precisamente às necessidades e aos desejos dos outros. A
economia é um sistema auto-organizado capaz de consertar ele mesmo os
desequilíbrios provocados pelas mudanças de necessidades, de recursos e de
técnicas. Nenhuma autoridade central precisa intervir a não ser para verificar
que tudo mundo cumpre as regras do jogo.
Mais uma vez, é o mesmo paradigma que age assim como no caso
da liberdade intelectual e da liberdade política: o do pluralismo criador de
ordem ou de ordem auto-organizada. Assim as instituições da democracia
liberal não têm outra finalidade a não ser permitir a emergência das ordens
auto-organizadas nos três registros da vida intelectual, política e econômica.