Questão Palestina
Questão Palestina
Questão Palestina
Questo Palestina
Os primeiros onze captulos deste texto foram publicados em 2004 pela Editora Achiam, no
livro Questo Palestina da Dispora ao Mapa do Caminho. As atualizaes nasceram de
estudos posteriores. Ao reproduzir este material, total ou parcialmente, cite a fonte.
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ndice
Apresentao 03
Introduo 04
1. Da dispora aos primeiros passos do movimento sionista 05
2. rabes e judeus na Palestina 12
3. Da segunda guerra mundial ao primeiro conflito rabe-israelense 20
4. Do fim da guerra aos novos passos da resistncia palestina 29
5. A guerra dos seis dias 38
6. Da estratgia do terror guerra do Yom Kippur 47
7. Lbano: da guerra civil ocupao israelense 58
8. A resistncia palestina: da derrota do Lbano Intifada 68
9. A paz de Oslo 79
10. O governo Barak e a segunda Intifada 89
11. Do massacre de Jenin ao Mapa do Caminho 101
Bibliografia 114
Atualizaes 117
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Apresentao.
Com certeza, voc j deve ter percebido que os enfrentamentos entre palestinos e israelenses
marcam presena constante nos meios de comunicao. Fotos, entrevistas e reportagens trazem
detalhes que parecem pintar um retrato fiel dos conflitos que, h mais de um sculo, marcam as
relaes entre os dois povos.
O problema que, na maioria das vezes, as notcias acabam ocultando o que, supostamente,
se propem a revelar. Sei que parece um paradoxo, mas basta resgatar alguns momentos do passado,
para perceber que elas se comportam como as imagens de um espelho. Os traos precisos garantem
se tratar de um retrato perfeito quando, na verdade, podem no passar de um reflexo que inverte a
realidade diante dos nossos olhos.
Apressados, no percebemos que corremos o risco de comprar gato por lebre justamente
quando nos damos por satisfeitos em conhecer os ltimos acontecimentos. A sensao de estar por
dentro nos impede de ver que, para entender os fatos, necessrio fazer um esforo que vai alm
das nossas atenes com o desenrolar do presente. Neste sentido, reconstruir os passos pelos quais o
quotidiano da histria foi ganhando as dimenses atuais, averiguar como os atores sociais
responderam s contradies do seu tempo e trazer tona o contexto em que suas opes foram
viabilizadas so etapas essenciais para superar o cmodo nvel das aparncias.
Consciente deste desafio, o estudo que aqui inicia se prope a resgatar os dados que
permitem mergulhar no conflito palestino-israelense, desvendar o jogo de interesses e entender as
relaes que se ocultam nos reflexos que esto ao nosso alcance.
Para dar conta desta tarefa, lanamos mo de um recurso literrio inslito num trabalho deste
tipo. Desde as primeiras linhas, os momentos que marcam a histria da Questo Palestina so
resgatados atravs de um dilogo franco e aberto com uma coruja.
Sim, voc entendeu bem. Trata-se de uma conversa entre um ser humano e uma
representante do mundo das aves que, por contar com uma viso capaz de enxergar nas noites mais
escuras, traz luz o que as sombras das aparncias impediam de ver.
Apesar do estilo descontrado, todos os dados foram pesquisados e comparados durante dois
anos de intensos estudos cuja abrangncia supera abundantemente as citaes bibliogrficas
colocadas no fim do texto.
Como no queremos prolongar a espera, vamos ceder logo a palavra Ndia, a coruja, para
que, ao iluminar os caminhos do passado nos ajude a entender melhor o presente e, sobretudo, a
transform-lo.
Boa leitura.
Emilio Gennari.
Brasil, setembro de 2003.
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Introduo.
Os primeiros raios de sol comeam a penetrar o vu escuro da noite.
Deitado na cama, o corpo saboreia os instantes que precedem a hora de levantar. A cabea
flutua docemente entre o sonho e a realidade enquanto os ouvidos captam os movimentos da vida
que desperta.
Na bizarra mistura de vozes e rudos, o corao identifica um gemido de cansao e de dor.
Incitadas pela curiosidade, as pernas deixam o abrigo dos lenis. Os olhos tateiam entre as
sombras tentando guiar os ps rumo quele sinal de sofrimento que se torna cada vez mais prximo.
Com a ajuda dos culos, a viso comea a identificar o contorno da figura que parece familiar.
Sentindo-se observada, ela vira vagarosamente o corpo.
Ainda sonolenta, a voz expressa a surpresa do reencontro:
- Ndia voc?, pergunta a lngua incrdula.
- Em carne e osso!, responde a coruja com voz cansada enquanto ajeita sob a asa um graveto em
forma de forquilha que lhe serve de muleta.
Preocupados, os olhos percorrem o corpo da ave salpicado de poeira, queimaduras e
pequenos cortes. Sem esperar maiores comentrios, Ndia dirige o olhar a seus ferimentos e comea
a responder s interrogaes silenciosas presas na garganta.
- Estes foram por causa de um mssil que, por pouco, no me derrubou em pleno vo; aquela a
marca deixada por uma pedra arremessada da rua; e o machucado na perna obra de uma bala que
passou de raspo enquanto estava em cima de um telhado.
- Vai ver que voc foi enfiar o bico onde no devia!, comento em tom de preocupada reprovao.
A coruja me lana um olhar penetrante, apia uma asa no encosto do sof enquanto com a
outra aponta a muleta em minha direo. Segurando-a com a frieza de quem faz pontaria antes de
disparar um tiro certeiro, Ndia aperta o gatilho das palavras: O maior problema da sua cabea no
o fato dela servir para separar as orelhas e carregar um nariz no qual voc apia estes culos
inteis, e sim dela ser incapaz de perceber que as injustias cometidas contra qualquer ser humano
so uma sria ameaa a todos os demais.
O fato de ningum revelar as razes pelas quais elas ocorrem fortalece os poderosos que,
protegidos pelo silncio, levaro a outros pases os ventos de morte que empurram suas aes. A
indiferena e a apatia so as condies que garantem a sua impunidade, ajudam a ocultar seus
verdadeiros interesses e o combustvel que alimentar seus prximos passos.
Fui Palestina no para xeretar no que no devia e sim para penetrar com meus olhos a noite
daquelas terras e desvendar o que poucos conhecem.
Atingido e envergonhado, procuro me recompor sentando no sof.
A coruja baixa o graveto em direo almofada e, disfaradamente, coloca as condies
para a trgua: Eu sei que no fcil tirar os olhos do prprio umbigo quando tudo ao seu redor diz
o contrrio. Mas seria um bom comeo se, no lugar de ficar me olhando com ar de peixe morto,
voc me ajudasse a pr no papel a histria dos povos que hoje se enfrentam numa luta que parece
no ter fim.
Com a obedincia de quem pede perdo pelo prprio erro, sento mesa e me apresso a
resgatar da baguna um velho caderno de anotaes e uma caneta que se esconde entre duas pilhas
de livros.
Ndia acompanha cada movimento e, ao me ver pronto, ensaia, pensativa, o comeo do seu
relato: Vejamos... bom... talvez... no... isso. Sim. Isso sim! melhor comearmos por descrever a
situao do povo judeu...
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1. Da dispora aos primeiros passos do movimento sionista.
- Pelo amor de Deus, Ndia, de que diabo voc est falando?, pergunto sem fazer cerimnias.
A coruja coa a cabea, olha para o alto, respira profundamente e com voz pausada
responde: Pra incio de conversa, voc precisa saber que, dois mil anos atrs, a Palestina estava sob
o domnio do imprio romano. contra ele que se dirigem as rebelies pela independncia
conhecidas pelo nome de 1 e 2 guerra judaica ocorridas, respectivamente, nos anos entre 66-73 e
132-135 depois de Cristo.
Durante a primeira, e precisamente no ano 70, os romanos derrubam o Templo de Salomo,
um dos principais smbolos da f e da identidade dos hebreus. Na segunda, em 135 depois de Cristo,
a represso do imprio termina com a sua expulso da cidade de Jerusalm. Impossibilitada de
continuar vivendo em seu pas de origem, a maior parte deles se dispersa pelo mundo num
movimento desorganizado conhecido pelo nome de dispora, que quer dizer disperso.
Por sua vez, a palavra sionista vem de Sion, que o nome da colina de Jerusalm onde
estava o templo destrudo pelos romanos. Como vou explicar mais adiante, trata-se de um
movimento que se forma no mbito das perseguies contra os judeus da Europa, ocorridas nas
ltimas dcadas do sculo XIX. Sua proposta central a criao de uma ptria judaica em terras
palestinas para a qual parte dos hebreus da dispora se dirige num movimento de retorno aos lugares
que marcaram a histria dos antepassados.
- Mas, Ndia, por que voc comea de um perodo to distante se o que interessa entender o que
est acontecendo hoje?, questiono assustado pelo trabalho que me espera.
Sem perder a pose, a coruja pisca os olhos e com a calma tpica de quem no se impacienta
em relatar o resultado de suas pesquisas repele a investida da minha preguia: Simples, meu caro
secretrio. Como dizia um velho conhecido, o presente o tmulo do passado e o bero do futuro.
Sem resgatar a histria que nos trouxe at aqui, dificilmente podemos entender os acontecimentos e,
menos ainda, delinear o que pode ocorrer de agora em diante.
No caso dos judeus, a necessidade de percorrer os sculos ainda maior. Sem este rpido
passeio, no possvel entender porque este povo perseguido e nem as verdadeiras razes que vo
dar origem ao movimento sionista.
Resignada a mo aproxima a caneta do papel, enquanto a coruja saboreia satisfeita o
gostinho de mais uma vitria. Sem perder tempo, limpa a garganta e continua: Vejamos... onde
que estvamos? Ah! Sim. Isso mesmo. Estava dizendo que depois da poderosa mquina de guerra
do imprio romano ter esmagado o movimento de independncia judaico, o povo hebreu se dispersa
pelo mundo. Encontramos traos da sua presena no Egito, no Ir, na Tunsia, em Marrocos, na
Espanha, na Itlia e em outros pases da Europa.
Via de regra, ao longo de toda a idade mdia, os hebreus participam ativamente da vida
cultural, poltica e econmica das regies onde moram. O comrcio e a agiotagem so as principais
atividades que identificam os judeus na sociedade feudal e que alimentam junto ao povo simples a
fama de indivduos avaros e exploradores.
A bem da verdade, necessrio dizer que, de uma forma ou de outra, todos os setores da
sociedade se relacionam com eles e tm razes para hostiliz-los.
De um lado, confiando em seu desempenho, reis e nobres entregam aos judeus a tarefa de
cobrar os impostos e de fornecer-lhes os produtos finos que suas cortes almejam. Porm, de outro,
no faltam ocasies em que se vem na necessidade de contrair emprstimos junto aos usurrios
hebreus, ora para financiar as expedies comerciais, ora para ampliar o exrcito e, com ele, o
controle sobre as prprias atividades do reino, ou, ainda, para bancar as compras de bens de luxo.
Artesos e camponeses vem o judeu como representante do senhor feudal e nutrem por ele
um dio ainda maior por ser o explorador imediato. Se isso no bastasse, como o aumento dos
impostos ocorre, sobretudo, em pocas de ms colheitas e poucos negcios, comum eles terem que
recorrer aos emprstimos extorsivos dos agiotas hebreus para quitarem suas obrigaes em relao
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ao poder ou financiar suas atividades. Quanto maior o peso de suas dvidas, maior o dio em relao
a eles.
Por sua vez, a nascente burguesia local, tanto comercial como financeira, v neles um
concorrente indesejado e um obstculo consolidao de suas atividades. Alm de marcar presena
no lucrativo comrcio dos produtos para a corte, a relao dos judeus com a nobreza e a casa
reinante acaba sustentando a dominao destas e colocando empecilhos expanso dos bancos que
esto se formando.
Neste contexto, no difcil perceber que o dio em relao aos hebreus tem como base o
papel por eles desempenhado na sociedade e cuidadosamente alimentado pela imagem de
explorador e parasita veiculada pela prpria elite em suas relaes com o povo simples. Ao agir
desta forma, a corte e a nobreza utilizam a perseguio aos judeus como uma vlvula de escape para
canalizar e esvaziar o descontentamento social. E como artesos e camponeses tm razes de sobra
para manter azeitado seu sentimento de vingana, s a classe dominante dar o sinal verde para que
verdadeiras matanas sejam rapidamente organizadas.
Com estas medidas, os poderosos retomam tambm o controle das atividades econmicas e
administrativas confiadas aos sditos de origem judaica e, em meio s hostilidades, no hesitam em
apropriar-se de seus bens.
- Mas, Ndia, eu sempre ouvi dizer que tudo isso ocorria em funo de diferentes crenas religiosas
ou de atitude moralistas?, pergunto incrdulo e desconcertado.
A coruja sorri, sacode a cabea e com a ponta das asas na cintura responde: Engraado.
Apesar de limpas, as lentes de seus culos no lhe permitem enxergar alm da cortina de fumaa
alimentada ao longo dos sculos.
Os motivos religiosos, bem como a suposta natureza perversa dos judeus, que constituem a
essncia do anti-semitismo desta poca, so o biombo atrs do qual as elites ocultam os objetivos de
suas hostilidades. Em nome da religio, o povo simples apia a matana e a expulso que acabam
atingindo os hebreus independentemente da funo por eles exercida na sociedade. Ao fazer isso,
porm, ele no est se libertando de um sistema opressor, mas to somente de alguns de seus
incmodos representantes. O gostinho da vingana realizada desafoga o descontentamento popular
ao mesmo tempo em que permite a seus algozes reciclarem suas formas de dominao e se
fortalecerem para uma nova rodada de explorao.
Em 1215, as perseguies que ocorrem em algumas regies da Europa ocidental obrigam as
pessoas de origem judaica a morarem em determinados bairros da cidade. Esta espcie de
confinamento acaba fortalecendo sua identidade coletiva. assim que os judeus passam a vestir-se
de forma diferente, a criar laos comunitrios e a falar uma lngua prpria, o idiche.
Mas isso no tudo. Perseguidas na Europa ocidental boa parte das comunidades se dirige
para a Polnia em fluxos migratrios que se intensificam nos sculos XIV e XV.
Chegados na nova ptria, os judeus no demoram a conquistar a proteo do rei graas sua
competncia nos negcios e fidelidade que lhe demonstram. Em pouco tempo, recebem dele a
permisso de atuar nos setores que antes eram monoplio da corte: extrao mineral, caa, pesca,
criao e explorao das feiras, comrcio do sal, administrao das tabernas e cunhagem das
moedas.
bom lembrar que administrar estas concesses significa tambm poder decidir o conjunto
de taxas e impostos a serem cobrados de todos aqueles que, direta ou indiretamente, dependem
delas para viver. Some a isso, as j consagradas habilidades nos ramos do comrcio e da agiotagem,
agora plenamente utilizadas para desenvolver e expandir a exportao e a importao de produtos
com o ocidente, e no ter nenhuma dificuldade em entender porque esta considerada a poca de
ouro da migrao judaica.
Esta ampliao do papel dos hebreus na Polnia deve-se, basicamente, ausncia de uma
burguesia local organizada e preparada. Ainda assim, a corte no deixa de manter os judeus a rdeas
curtas e no titubeia em usar o anti-semitismo para restabelecer o seu domnio sobre as atividades
por eles desempenhadas. Em breves palavras, o dio dos camponeses em relao queles que lhe
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cobram tributos, cujo dinheiro tomam emprestado a altas taxas de juros e em cuja taberna bebem ,
mais uma vez, um ingrediente indispensvel a ser aproveitado pelos poderosos no controle das
relaes scias, econmicas e polticas do reino.
- Ndia, explica uma coisa pra mim. Com certeza, nem todos os judeus eram ricos ou
desempenhavam funes outorgadas pelo poder. Como que eles se relacionavam entre si?
- Uhm! Fico feliz em ver que est querendo enxergar um pouco mais longe, diz a coruja satisfeita
com a pergunta. E segurando a muleta como uma maestrina que se prepara para dar incio a um
concerto continua: Meu pequeno humano de culos, voc precisa saber que no incio do sculo
XVI, h judeus espalhados por todo o reino polons.
O fato de participarem da sociedade e serem por ela rejeitados leva a um aprimoramento de
sua organizao comunitria. Em geral, esta se baseia na keil, ou seja, numa associao de judeus
que moram na mesma cidade, tm sua sinagoga, seus rabinos, seu cemitrio e cuidam dos demais
servios. Toda keil tem uma direo formada por um comit executivo e um conselho, alm de
vrias comisses que se encarregam da educao, do ensino religioso, da assistncia, das questes
jurdicas, etc. Via de regra, os membros destes rgos so escolhidos no interior de um seleto grupo
composto pelos mais ricos e mais cultos da comunidade.
As contradies entre ricos e pobres, consideradas parte da vontade divina, so
escamoteadas pela assistncia social prestada aos mais necessitados ou recm-chegados, pelo fato
dos mais abastados serem os nicos a pagarem as contribuies comunitrias e a auxiliarem as
famlias de menor poder aquisitivo na hora de quitar os impostos reais. assim que o paternalismo
e a ausncia de uma relao direta de explorao no interior da comunidade judaica no permitem o
surgimento de grupos de oposio. As poucas vozes discordantes no passam de protestos
individuais que se diluem com o passar do tempo.
Ao longo do sculo XVI, a educao passa a ser um requisito necessrio para a educao do
bom judeu. No interior da keil, a anlise e a discusso dos temas religiosos, bem como a prtica
dos mandamentos divinos, so elementos importantes para manter a coeso da comunidade. Neste
contexto, os sofrimentos provocados pelas perseguies levam a aprimorar um sentimento
messinico. A espera de um redentor, de um salvador do povo de Israel, e, atravs dele, de toda a
humanidade, conduzem idealizao de um passado feliz e de uma soluo sobrenatural para as
humilhaes do presente.
Ainda assim, enquanto a sociedade feudal proporciona condies de vida relativamente
boas, os judeus no pensam em criar um estado para eles. Alm disso, entre os hebreus da Europa
ocidental que no haviam migrado em funo das perseguies, j h vrios ricos que tendem a se
integrar aos costumes dos pases onde moram. At o final do sculo XIX, as ligaes com a cidade
santa de Jerusalm, na Palestina, so meramente religiosas, de peregrinao aos lugares sagrados.
- Pelo que voc acaba de dizer, ento, esta situao de equilbrio das contradies no interior da
comunidade judaica deve ter durado por sculos?
Ndia fecha os olhos. Suspira. Levanta a asa em minha direo e com a ponta chamuscada
de suas penas faz um gesto que adianta a resposta negativa minha interrogao. As relaes entre
os hebreus comeam a mudar em 1648, quando Bohdan Chmielnitski lidera uma revolta dos
cossacos apoiada pelos camponeses ucranianos, dos quais os nobres poloneses vinham cobrando
impostos absurdos atravs dos judeus. A revolta marca o incio de uma srie de ataques que atingem
a economia das principais cidades da Polnia. Estes destroem as propriedades dos hebreus e levam
uma parte significativa das comunidades a procurar refgio no interior.
Na impossibilidade de levar adiante os velhos ofcios, os judeus procuram novas atividades.
A principal delas a fabricao e distribuio de bebidas alcolicas, mas a maioria dos migrantes
tenta sobreviver como msico, arteso, vendedor ambulante, dono de albergue ou atravs de
qualquer biscate capaz de garantir a comida diria. Aqueles que mantm as velhas funes de
cobradores de impostos ou agiotas passam a ser odiados pelos prprios judeus que so por eles
explorados. Diante da situao de empobrecimento, a vida comunitria da keil se desestrutura
ainda que seus antigos membros mantenham os sinais externos que os identificam como hebreus.
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Se isso no bastasse, entre 1772 e 1795, Rssia, ustria e Prssia se encarregam de eliminar
a Polnia do mapa europeu. Desta forma, o imprio czarista, que at ento se recusava a aceitar a
entrada dos judeus em seu territrio, acaba herdando alguns milhes deles. De incio, a elite russa,
preocupada com a colonizao das reas recm-conquistadas, autoriza os hebreus a adquirir terras
para a lavoura e garante a eles 5 anos de iseno de impostos. Aos que no tm recursos entregue
uma pequena propriedade acompanhada da promessa de no pagar tributos por 10 anos e de ter
direito a um emprstimo.
Mas a falta de tradio agrcola da comunidade judaica somada no concesso dos
benefcios prometidos criam uma situao insustentvel para a maioria do povo judeu. Somente sob
o czar Nicolau I (1825-1855), em alguns distritos, as colnias judaicas que se dispem ao trabalho
agrcola recebem pequenas vantagens, entre as quais a dispensa do temido servio militar.
Na metade do sculo XIX, as indstrias russas precisam de uma boa quantidade de fora de
trabalho para compor o quadro de funcionrios e, sobretudo, como massa de desempregados cujo
papel de manter baixos os salrios a serem pagos. assim que, no governo de Alexandre I (1855-
1881), os judeus perdem todas as regalias j conseguidas e no podem mais se cadastrar como
agricultores. Anos depois, s tm direito posse de reas que se encontram em regies remotas e,
em 1892, so proibidos de viverem fora das aldeias ou das cidades.
- Ndia, pelo que sei, o processo de industrializao costuma levar consigo mudanas sociais
profundas. O que acontece com as relaes entre os hebreus e destes com a Rssia da poca?.
- Bom querido secretrio, vamos por partes. Em primeiro lugar, eu j disse que o avano da
industrializao leva consigo a formao de um grande exrcito de desempregados desejosos de
assumir um lugar na produo. Nesta situao, que atinge a prpria comunidade judaica, parte
significativa dos hebreus, deixado o trabalho nas roas, est empregada nas fbricas ou disputa uma
vaga. Ao mesmo tempo, porm, setores da elite judaica se tornam proprietrios de pequenas
manufaturas, levam adiante atividades
comerciais ou vivem da velha agiotagem.
Sabendo que desemprego sinnimo
de misria, descontentamento e revolta, no
difcil imaginar a postura do czar para sair
dos apuros causados por esta realidade:
culpar os judeus pelo fato deles ocuparem o
lugar dos russos na produo, explor-los
nas manufaturas ou atravs do comrcio e da
usura. E o culpado apontado pela elite
czarista facilmente identificado: tem uma
religio diferente, fala outra lngua, segue
tradies suspeitas, vive em grupo, usa
barbas cumpridas, chapus e longos capotes
pretos. Graas a esta interveno do poder
central e dos governantes locais, as massas
so levadas a perseguir os judeus como verdadeiros inimigos do povo.
Por outro lado, a diviso no interior da comunidade judaica russa vai aumentando com o
passar do tempo. Diante das greves, no faltam rabinos que, comprometidos com os hebreus ricos
dos quais dependem economicamente, condenam o proletariado judeu alegando que sua atitude, por
ser ilegal, atrai a ira do governo contra toda a comunidade. Por sua vez, a elite empresarial judaica,
alm de colocar as foras policiais contra os lderes operrios, no titubeia em contratar cristos
para furar as greves promovidas pelos judeus. Sabia, de fato, que ningum iria impedir o trabalho
deles atravs de aes violentas, pois as mesmas poderiam desencadear a represso orquestrada
pelas autoridades.
Apesar destas atitudes hostis, em algumas regies, o operariado hebreu tece relaes com o
movimento socialista, chega a usar as sinagogas como locais de reunio, no hesita em lanar mo
Judeus mortos durante as perseguies
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da ao clandestina para organizar seus movimentos e subtra-los represso policial. No poucas
vezes, seus panfletos e materiais impressos acusam as lideranas da comunidade judaica de
apoiarem a luta dos capitalistas contra os trabalhadores no interior da prpria comunidade e no
hesitam em afirmar que o povo judeu est dividido em duas classes que se opem de forma
inconcilivel.
- Tudo bem, Ndia, mas o que eu ainda no consegui entender a relao entre o movimento
sionista e a realidade dos judeus na Rssia. Ser que voc poderia ser um pouco mais clara?.
A coruja faz um gesto com a asa pedindo que me aproxime. Alegre por ganhar alguns
instantes de descanso, a mo solta a caneta como se estivesse se livrando de uma pesada ferramenta.
O corpo se espreguia vagarosamente fazendo o sangue correr livre pelas veias. Sem impacientar-se,
Ndia introduz suas palavras com um sorriso: Agora que est devidamente acordado, tenho certeza
que vai entender o que vou dizer.
Pra comear, necessrio lembrar que, na segunda metade do sculo XIX, o judeu russo
Leo Pinsker, integrante da Sociedade para a Difuso da Cultura entre os Judeus da Rssia, um
dos que debatem temas relativos ao judasmo. Atravs de suas intervenes, ele prega inicialmente
um processo de assimilao da lngua e da cultura russas por parte das massas judaicas.
Suas idias, porm, so abaladas pelas perseguies de 1871, em Odessa, e totalmente
revistas a partir de 1881 quando estas se espalham por toda a Rssia. Diante do anti-semitismo e da
situao de inferioridade em que se encontra a maioria dos hebreus, Pinsker comea a divulgar a
necessidade desta constituir-se enquanto nao. Para viabilizar a idia, ele prope a fundao de
uma espcie de diretrio, liderado pela elite hebraica, cujo objetivo seria o de criar um lar seguro e
inviolvel para o excedente de judeus que vivem como proletrios nos diversos pases e so um
fardo para os cidados nativos.
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Em outras palavras, o primeiro passo seria o de separar a elite judaica do proletariado
hebreu. Na viso de Pinsker, caberia a ela organizar-se para criar um refgio seguro no para si, e
sim para os judeus pobres cujo excedente vem trazendo problemas srios prpria elite judaica em
processo de integrao na sociedade russa. Pouco importa onde este lar est localizado ou se nele j
esto morando outros povos. O essencial produzir uma dupla soluo para a questo judaica: de
um lado, a emancipao das camadas mais altas no interior de cada pas e, de outro, a criao de
uma ptria para o grande contingente de pobres, desempregados, artesos e operrios judeus que
representam um fardo tanto para os russos, como, sobretudo, para os que buscam se emancipar. Se o
problema o excedente de proletrios e proletrias do povo hebreu, a sada , literalmente, export-
lo pra bem longe. Com Pinsker, o sionismo ensaia os primeiros passos.
Os atritos no interior da comunidade judaica, porm, no se limitam realidade criada pelo
desenrolar da situao na Rssia. As violentas perseguies levam milhares de hebreus a migrarem
para a Europa ocidental. Transformados em fora de trabalho abundante e disponvel, se dirigem
para os pases mais desenvolvidos procura de algo que garanta o seu sustento. No entanto, a sua
vinda inquieta os judeus destas naes que, h dcadas, haviam se integrado na sociedade burguesa
e lutavam pela manuteno dos direitos de cidadania.
O fato que a chegada dos barbudos, incultos e maltrapilhos membros do proletariado
hebreu russo, procura de trabalho num mercado saturado, poderia oferecer o pretexto para reavivar
o anti-semitismo, nunca efetivamente superado, e reativar o vendaval de hostilidades do qual
haviam sido vtimas no passado. neste contexto que surge e ganha consistncia o movimento
sionista impulsionado pelo intelectual, advogado e jornalista Theodor Herzl.
- Bom, diante da situao que voc acaba de descrever, deve ter sido fcil para ele viabilizar a
aceitao do Estado Judeu junto elite hebraica..., comento para mostrar que estou vislumbrando
as prximas etapas da narrao.
Ndia pisca os olhos e espetando o meu ombro com o graveto-muleta solta um
surpreendente: No. Por incrvel que parea!, que me deixa desorientado. E continua: Pelo que
1
Jaime Pinski, Origens do Nacionalismo Judaico, pg. 109.
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lembro, em 1894 que Herzl levanta, pela primeira vez, a bandeira do Estado Nacional Judaico. Em
seguida, ele procura alguns membros da elite hebraica da Europa ocidental para transformar seu
sonho em realidade. Mas, apesar de seus esforos, no consegue obter adeses significativas. Nem
mesmo o Baro Hirch, que trs anos antes havia fundado a Associao
para a Colonizao Judaica com a finalidade de despachar o excedente
do proletariado hebreu da Rssia para a Argentina e a Palestina, se
interessa pelo seu projeto.
Ao perceber as razes do mal-estar dos judeus emancipados das
naes europias, Herzl comea a dialogar com eles. Em fevereiro de
1896, publica a primeira edio de O Estado Judeu na qual escreve: A
questo judaica existe. Seria tolice neg-lo. um pedao da idade
mdia desgarrado em nossos tempos e do qual os povos civilizados,
ainda que com a melhor boa vontade, no podem se desembaraar.
Apesar de tudo, deram prova de generosidade, emancipando-nos. A
questo judaica persiste onde quer que vivam os judeus em nmero
aprecivel. Onde no existia foi levada pelos imigrantes judeus.
Procuramos, naturalmente, aqueles lugares onde no nos
perseguem e a, todavia, a perseguio a conseqncia do nosso
aparecimento. Isto verdade e permanecer verdade por toda parte,
mesmo nos pases de civilizao adiantada a Frana uma prova por tanto tempo quanto a
questo no for resolvida politicamente. Os judeus pobres levam agora consigo o anti-semitismo
Inglaterra, depois de j o haverem levado Amrica.
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Voc entende que se a culpa da existncia da questo judaica dos hebreus pobres, j que a
mdia e alta burguesia deste povo haviam se emancipado com sucesso, a soluo s poderia ser a
que Pinsker havia apontado: exportar o problema pra bem longe. Alm de ocultar que a presena do
proletariado judaico poderia ser o pretexto, mas no a razo, do anti-semitismo, cujas explicaes
deitam razes no papel da prpria burguesia judaica no interior das naes, o texto no deixa
dvidas quanto ao fato de que a questo religiosa da volta terra santa no o motivo inspirador do
sionismo.
Diante dos passos dados por Herzl nesta direo, a elite hebraica rejeita a idia de criar um
Estado Nacional Judaico alegando que, como cidados de diferentes pases, seus membros devem
lealdade aos povos que os hospedam. O interesse em defender o status de cidado leal tem como
base o temor de que a idia do nacionalismo judaico acrescente a pecha de Traidor da Ptria ao
sentimento anti-semita europeu.
nesta situao que, em 29 de
agosto de 1897, Herzl funda a Organizao
Sionista Mundial como resultado do
Congresso que se desenvolve em Basilia,
Sua, e do qual participam entre 200 e 250
delegados de 24 pases. Aps duras
polmicas, a Palestina definida como
morada do povo hebreu e objetivo do
sionismo. Para acalmar os membros da
elite judaica, Herzl garante que um Estado
Judeu na Palestina no iria solicitar que
eles se mudassem para l, j que eles so
ingleses, franceses, alemes, etc., de f
mosaica. Alm disso, a existncia deste Estado facilitaria o seu processo de integrao na realidade
europia e americana e acabaria com o problema do proletariado judaico migrante.
2
Jaime Pinski, texto citado, pg. 129.
Theodor Herzl
Foto do Congresso de Basilia
11
Entendido o recado, a burguesia hebraica muda de posio sem perder a chance de reafirmar
suas convices. assim que, por exemplo, em setembro de 1897, a Liga dos Judeus Britnicos faz
questo de esclarecer que seus objetivos so:
2. Preservar o status de sditos britnicos que professam a religio judaica;
3. Resistir alegao de que os judeus constituem-se em nacionalidade poltica separada;
4. Facilitar o estabelecimento na Palestina dos judeus que desejam fazer dela o seu lar.
E continua: A Liga dos Judeus Britnicos foi fundada para preservar os princpios pelos
quais nossos pais lutaram e pelos quais conseguiram para ns a emancipao e a completa
igualdade de direitos. (...) Os sditos britnicos que professam a religio judaica no tm e no
podem ter nenhuma outra nacionalidade poltica a no ser a do Imprio Britnico, que eles
ajudaram a construir e para o qual esto orgulhosos em ter oferecido suas vidas.
3
Vencendo as resistncias da elite, o movimento sionista comea a crescer. Seu maior
impulso, porm, no vem da atividade de convencimento junto burguesia hebraica, mas sim da
onda migratria de Leste para Oeste que percorre a Europa aps as perseguies promovidas pelo
governo czarista entre 1903 e 1906, bem mais graves e violentas das anteriores.
- Ndia, agora fiquei curioso. Como possvel levar milhares de pessoas a migrarem para uma
terra distante? Alm do sentimento de insegurana, trata-se de algo que no pode ser feito da noite
para o dia.
A coruja mexe a cabea em sinal de afirmao e, aps alguns instantes, retoma o relato:
Voc tem razo. difcil. Mas o que voc ainda no conhece so os passos que Herzl daria para
viabilizar sua empreitada. A ao dele se desenvolve em duas frentes simultneas. A primeira busca
mostrar pequena burguesia, aos artesos e aos migrantes desempregados que o retorno Palestina
prev uma possibilidade real de ascenso social.
Ao descrever o sonho sionista, ele no titubeia em dizer: Para isto preciso, antes de tudo,
fazer tabula rasa de muitas idias antiquadas, passadistas, atrasadas, confusas e estreitas. Assim,
espritos limitados pretendero, antes de mais nada, que a migrao, saindo da civilizao, dever
dirigir-se ao deserto. Absolutamente! Ela se efetuar em plena civilizao. No desceremos a graus
inferiores; ao contrrio, elevar-nos-emos. No ocuparemos choas de barro e palha, mas belas
casas modernas que podero ser habitadas sem perigo. No perderemos os bens adquiridos, mas
os valorizaremos. Cederemos os nossos direitos apenas para outros melhores. No nos
separaremos de caros hbitos, mas os levaremos juntos. No abandonaremos a nossa velha casa
antes que a nova esteja acabada. S partiro aqueles que tm certeza de assim melhorar a sua
sorte. Primeiro os desesperados, depois os pobres, depois os remediados e, por fim, os ricos. Os
que partirem na vanguarda, ascendero s camadas mais altas que ento enviaro os seus
membros. A migrao ser ao mesmo tempo um movimento de ascenso de classe.
4
Com este anseio de ascenso social, em seguida colocado em segundo plano, o movimento
sionista incorpora tambm as idias messinicas e a viso do retorno terra dos antepassados que se
mantinham vivas ao longo dos sculos. assim que o ideal abstrato da volta Jerusalm, celebrado
nos rituais religiosos, adquire vida e impulsiona a realizao do sionismo entre as camadas mais
pobres da comunidade judaica.
A segunda frente diz respeito a como conseguir terra para dar incio colonizao hebraica.
Nesta poca, a Palestina integra o Imprio Turco (Otomano) e no terra de ningum. Por
importantes que fossem, os financiamentos vindos dos magnatas judeus para comprar terrenos dos
proprietrios rabes conseguem apenas dar origem a um processo de ocupao vagaroso e
extremamente limitado. No mximo, eles ajudam a abrigar com dificuldade os proletrios hebreus
que saem da Rssia direto para a Palestina. Mas, dificilmente, podem sustentar, por si s, a
formao de um Estado Judeu. O jeito, ento, tentar amolecer o corao das grandes potncias, ora
3
Idem, pg. 127.
4
Idem, pg 134-135.
12
apelando ao seu desejo de expanso colonial, ora aos possveis benefcios que elas teriam ao
proporcionar uma ptria aos hebreus da dispora.
De incio, Herzl procura o kaiser alemo Guilherme II que no se entusiasma pela idia. Em
seguida, a vez do sulto turco Abdul-Hamid ao qual tenta mostrar, sem sucesso, que a chegada de
judeus dedicados ao trabalho e com bons recursos financeiros traria vantagens e bem-estar ao seu
imprio.
Diante do fracasso, a sada abrir caminhos em direo Frana e Inglaterra. neste
sentido que o prprio Herzl escreve: Para a Europa constituiramos a um pedao de fortaleza
contra a sia, seramos a sentinela avanada da civilizao contra a barbrie. Ficaramos como
Estado Neutro, em relao constante com toda a Europa, que deveria garantir a nossa existncia.
5
Anos depois, quando a Palestina passa a integrar os domnios da Inglaterra, a perspectiva
sionista de um Estado Judeu protegido por uma grande potncia colonial comea a ganhar
consistncia. Mas este um assunto que vou tratar melhor no prximo captulo que voc pode
chamar de...
2. rabes e judeus na Palestina.
- Bom, Ndia, ao falar das relaes entre os dois povos, gostaria que contasse como a vida nesta
terra antes da chegada das migraes sionistas. Ao que me consta, so os judeus a trazerem a
civilizao para uma regio rida e bem pouco povoada, pergunto para dar mostras dos meus
conhecimentos.
A coruja ouve atentamente o meu pedido. Suspira. Sacode a cabea e, mancando, comea a
andar de um lado a outro do sof. Sem cruzar o meu olhar, levanta a ponta da asa para o alto
sinalizando que quer o mximo de ateno para as palavras que est prestes a pronunciar. Os
humanos so um caso srio. Vivem dizendo que so seres inteligentes e superiores aos demais, mas
tm uma capacidade surpreendente de comprar gato por lebre. Isso acontece porque no lugar de ir
alm das aparncias estufam o peito com o que todos repetem. Crentes de que j possuem uma
explicao para os acontecimentos, os bpedes da sua espcie no percebem que aceitam como
verdades o que ns corujas sabemos no passar de velhas mentiras.
Ndia v que o rubor toma conta do meu rosto. De rabo de olho, acompanha os gestos
silenciosos com os quais o corpo anuncia a retirada estratgica atrs da mesa sobre a qual esto os
papeis com o seu relato. E desenhando crculos no ar com o graveto que, at poucos instantes, lhe
servia de muleta, continua: Voltando ao nosso assunto, voc precisa saber que a palavra de ordem
uma terra sem povo para um povo sem terra, assumida pelos sionistas em 1901, no passa de
propaganda enganosa. E a dizer isso no sou eu, pobre representante do reino das aves, e sim Achad
Ham, um judeu originrio da Ucrnia. Ao narrar suas impresses aps uma viagem Palestina
realizada em 1891-92, ele assinala: Do exterior somos inclinados a acreditar que a Palestina hoje
um pas quase completamente vazio; um deserto onde cada um pode comprar tantas terras quanto
desejar. A realidade bem outra. difcil encontrar neste pas terras arveis que no sejam
cultivadas... No so apenas os camponeses, mas tambm os grandes proprietrios que hesitam em
vender sua boa terra. Numerosos de nossos irmos vieram aqui para comprar terras e tiveram que
permanecer no pas durante meses, percorrendo-o de cima a baixo, sem contudo encontrar o que
procuravam.
6
Na poca em que Achad faz a sua viagem, a populao palestina de, aproximadamente,
700 mil pessoas, 35% das quais mora nas cidades. Quase inteiramente construdas pelos rabes
palestinos, Jerusalm, Nablus, Nazar, Acre, Jaffa, Jeric, Ramallah, Hebron e Haifa esto entre os
principais centros da vida urbana onde uma indstria pouco expressiva convive com o artesanato e
intensas atividades comerciais.
5
Idem, pg. 137.
6
Helena Salem, Palestinos os novos judeus, pg. 20.
13
A agricultura , sem dvida, um setor de fundamental importncia para a economia da
regio. Na primeira metade do sculo XIX, a terra pertence aos moradores dos cerca de 500
vilarejos que, mesmo sem poder contar com sistemas de irrigao, cultivam cereais verduras e
frutas, sobretudo na faixa mida da planura costeira.
As formas de propriedade j existentes se mantm praticamente inalteradas at pouco depois
de 1850, quando o aumento dos impostos por parte do governo turco provoca um progressivo
empobrecimento dos vilarejos. Pressionados pelas dvidas, os agricultores se vem obrigados a
venderem seus terrenos aos notveis da cidade cujas riquezas vm da cobrana de tributos e das
atividades comerciais com o Ocidente. Mas, como esta elite mora nos grandes centros, ou at
mesmo fora do pas, os camponeses acabam ficando na mesma terra na condio de arrendatrios.
Com a formao dos pomares de frutas ctricas destinadas ao mercado europeu, o preo dos
terrenos agrcolas aumenta dando a seus distantes proprietrios uma boa razo para vend-los. A
chegada dos migrantes sionistas eleva o nmero de compradores e, com ele, o valor a ser pago, o
que torna os negcios ainda mais lucrativos. Incentivados pelas boas ofertas, entre 1878 e 1908, os
grandes proprietrios cedem aos judeus cerca de 400 dos 27 mil quilmetros quadrados do territrio
palestino.
Apesar de se instalar numa parte extremamente pequena das terras dos vilarejos, a
colonizao sionista comea a alterar as relaes amigveis entre rabes e judeus que existiam antes
de 1882, ano em que chega um bom nmero de migrantes vindos da Rssia.
- Ndia, voc poderia dizer de quantas pessoas est falando e o que isso representa para os
camponeses rabes?, me atrevo a sugerir na tentativa de ganhar tempo para esticar os dedos.
Sem ceder razo da minha investida, a coruja coloca uma asa atrs das costas e fingindo
no ouvir os estalos, continua: Os dados que voc pede so poucos e imprecisos. Mas alguns
historiadores calculam que, de 1882 a 1914, devem ter entrado na Palestina cerca de 65 mil judeus,
boa parte dos quais se instala nas 44 colnias agrcolas que se formam neste perodo. Dos relatos
que chegam at ns, sabemos que os colonos sionistas organizam a vida da nova comunidade
judaica sem levar em considerao as regras e os costumes j existentes, numa forma que os rabes
consideram ofensiva.
Mas o que vai minar a relao entre rabes e hebreus algo bem mais srio. Acontece que,
em geral, quando um territrio colonizado por um outro povo, alm das riquezas naturais, este
costuma explorar a fora de trabalho local. Na Palestina, aps um primeiro momento em que os
nativos so empregados nas colnias judaicas ou nas demais atividades dirigidas pelos sionistas,
eles passam a ser progressivamente substitudos pelos hebreus recm-chegados do exterior. assim
que, caados das terras onde sempre viveram e tiraram o seu sustento, empobrecidos,
marginalizados e sem ter pra onde ir, aos palestinos no resta outra escolha a no ser a de tentar
garantir a sobrevivncia saqueando os assentamentos dos judeus.
De incio, os sionistas no apelam para o uso das armas por temer que esta opo faa
precipitar a situao. Mas em setembro de 1907, um grupo de ativistas hebreus funda uma
organizao armada e semiclandestina com o objetivo de zelar pela defesa dos assentamentos: a
HaShomer. Seus membros, pagos pelos colonos, passam por um treinamento militar, aprendem a
lngua e os costumes dos rabes alm de se vestir como eles para melhor realizar as tarefas de
infiltrao nos vilarejos.
Paralelamente a isso, alguns intelectuais hebreus buscam promover relaes de amizade
entre rabes e judeus. Boa parte deles, porm, no esconde que mantm esta postura com a
preocupao de buscar solues capazes de garantir um mnimo de convivncia pelo menos at que
a presena sionista se torne irreversvel.
Em ritmo mais lento, com poucos recursos e sem contar com o apoio da elite que se delicia
com o dinheiro da venda das terras, os palestinos ensaiam as primeiras respostas. Em julho de 1914,
um panfleto annimo convoca os rabes a defenderem a ptria com unhas e dentes. Ao resgatar as
razes deste apelo prossegue: Tenham piedade de sua terra e no a vendam como mercadoria (...).
Faam pelo menos com que seus filhos herdem o pas como vocs o herdaram de seus pais.
14
Homens! Quereis acabar como escravos e servos de um povo famigerado no mundo e na
histria?Quereis ser escravos dos sionistas vindos para expulsar-nos do nosso pas, afirmando que
a eles pertence?
7
Marginalizado, o povo comea a trilhar o caminho da resistncia.
- O que eu ainda no consegui entender como a Inglaterra apia o tal lar judeu na Palestina?,
questiono para retomar um assunto que ficou pendente no final do captulo anterior.
Ndia coa a cabea, olha para o alto e segurando o queixo com a ponta da asa fica
pensativa. Depois de alguns Vejamos..., bem...., sim..., talvez seja melhor ir por a... retoma o
relato com a serenidade de um violinista que conhece cada nota da partitura: Pra comear bom
lembrar que o imprio turco governa a Palestina entre 1517 e 1918. Na segunda metade do sculo
XIX, quando ocorrem as primeiras migraes, o territrio palestino integra a provncia da Grande
Sria que incorpora os atuais estados da Sria, Lbano, Jordnia, Israel e, obviamente, a Cisjordnia.
Ao longo da administrao otomana, algumas provncias do imprio manifestam seu
descontentamento em relao ao poder central, mas no chegam a criar um verdadeiro movimento
de independncia.
No incio do sculo XX, o imprio turco perde uma ampla regio dos Blcs, cede o controle
do Egito e do Canal de Suez Gr Bretanha e, em 1912, forado a entregar a Lbia Itlia. Com a
1 Guerra Mundial, em 1914, a Turquia sente que pode vir a perder as provncias rabes devido s
novas investidas imperialistas dos exrcitos franceses, italianos e britnicos. Sob o impulso das
hostilidades em relao Rssia e convencido de que a Alemanha sairia vitoriosa do conflito, o
imprio otomano se alia a ela. Ao mesmo tempo, porm, setores nacionalistas dos atuais estados da
Arbia Saudita, Imen, Om e Emirados rabes Unidos, cujos territrios vinham gozando de uma
relativa autonomia, vem a possibilidade de caminhar rumo sua independncia caso a Turquia
venha a ser derrotada.
Ameaada pelas ambies de Frana, Rssia, Alemanha e ustria-Hungria, a Gr Bretanha
teme perder suas posses na frica e, sobretudo, o controle do Canal de Suez por onde passam as
rotas comerciais para a sia. Neste contexto, pr as mos na Palestina, porta de acesso para o Canal
de Suez, passa a ser de importncia crucial para o governo de Londres. Mas para dar conta desta
empreitada, o dinheiro e as armas britnicas teriam que alimentar a rebelio rabe nos territrios
controlados pela Turquia. Com uma revolta interna
enfraquecendo o imprio otomano, obter o controle
da Palestina seria como tirar um doce da boca de
uma criana. Os territrios rabes ficariam
independentes da Turquia e, longe de se constituir
imediatamente em Estados soberanos,
permaneceriam sob a proteo britnica
interessada em viabilizar melhores condies de
acesso s jazidas de petrleo da regio.
O problema que a Frana, aliada da
Inglaterra no conflito mundial, tambm est
querendo ampliar seu domnio sobre estas terras.
assim que, para evitar uma situao desgastante,
em janeiro de 1916, ingleses e franceses assinam
um acordo secreto conhecido pelo nome de Sykes-
Picot. Pelos termos do tratado que leva o nome dos
principais negociadores, uma vez derrotada a
Turquia, os britnicos estenderiam o seu controle sobre Iraque, Palestina e Jordnia, enquanto a
Frana ficaria com o Lbano e a Sria. Os demais pases da pennsula rabe manteriam suas
autonomias ainda que sombra do imprio britnico.
7
Benny Morris, Vittime, pg. 89.
15
Mas nem tudo funciona de acordo com o previsto. Em 1917, Alemanha e ustria parecem
estar a ponto de impor uma derrota aos adversrios e o movimento insurrecional dos povos rabes
lento e pouco significativo. A Gr Bretanha, ento, no tem outra escolha a no ser a de encontrar
no sionismo um aliado confivel para executar as tarefas que considera indispensveis. Em
novembro do mesmo ano, o governo de Londres oficializa o seu apoio ao Movimento Sionista
atravs da Declarao Balfour, do nome do Lorde que havia negociado com a Frana e os Estados
Unidos a sua viabilizao. Nela se expressa que O Governo de Sua Majestade favorvel ao
estabelecimento em Palestina de um lar nacional do povo hebreu e dar o melhor de si para fazer
com que este objetivo seja alcanado, ficando claro que no ser dado nenhum passo que venha a
prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades no judaicas da Palestina, ou os direitos e
o status poltico que os hebreus gozam em qualquer outro pas.
8
Com esta redao, a Inglaterra trata
de ganhar os judeus sem atiar a desconfiana dos rabes.
Em terras palestinas a resposta imediata. O recrutamento no interior da comunidade
judaica garante aos britnicos a formao de trs batalhes. Se, de um lado, isso proporciona a fora
que faltava, de outro, ao se tornarem soldados e oficiais, os colonos judeus recebem armas e
treinamento blico, elementos escassos em suas fileiras.
Enquanto isso, a Turquia continua mantendo as duras medidas repressivas implementadas
desde o incio do conflito mundial. Em territrio palestino ela confisca tudo aquilo que pode ser
usado no esforo de guerra. Milhares de rabes so recrutados para integrar as mal-equipadas tropas
otomanas ao mesmo tempo em que o imprio lana mo da tortura, das prises arbitrrias e do
exlio para sufocar possveis focos insurrecionais. Os mais atingidos so os intelectuais e os setores
mdios da sociedade, ou seja, aqueles que teriam condies de articular uma fora de oposio
administrao turca. Ainda assim, na medida em que a represso se torna mais pesada e os fatos
evidenciam a possvel derrota da Turquia na guerra, um pequeno grupo de palestinos abraa a causa
da rebelio rabe como meio para obter a independncia.
Com o fim da primeira guerra mundial, policiais e soldados britnicos marcam presena na
Palestina. As condies de vida dos camponeses rabes pioram e no demoram em reacender as
hostilidades com os judeus. neste contexto que a Associao Islmica-Crist de Jaffa expressa
com palavras duras o antagonismo de interesses que permeia a realidade: Jogaremos os sionistas no
mar, ou sero eles a expulsar-nos para o deserto.
9
- Ndia, confesso que estou assustado. Estas ltimas palavras soam como uma verdadeira
declarao de guerra. Mas, ser que havia razo para isso?
A coruja ouve atentamente e, com a ponta das asas na cintura, se prepara para dar uma de
suas sacudidas. Meu pequeno humano de culos, voc precisa entender que quando os propsitos
de convivncia pacfica so negados pelo agravar-se das contradies, no h como esperar dias de
paz. Enquanto no se resolvem as razes que do origem aos conflitos, estes vo continuar
revelando que os discursos de fraternidade entre os povos no passam de uma miragem que
desaparece na medida em que caminhamos em direo a ela. Se tiver pacincia em me ouvir, vai
entender o que acabo de dizer.
Pra incio de conversa, voc precisa saber que, com a chegada de gordos recursos em libras
esterlinas, os sionistas ampliam a compra de terras daquela elite rabe que vive bem distante delas e
das condies de vida dos camponeses seus arrendatrios. Entre 1920 e 1929, a comunidade judaica
dobra o tamanho das reas destinadas colonizao. Isso significa que a quantidade de agricultores
palestinos privados dos meios de subsistncia no pra de aumentar.
Sabendo que isso vai complicar as relaes entre os assentamentos e as comunidades rabes,
os sionistas dissolvem a HaShomer e, no incio de 1920, criam a Haganah, uma fora militar que,
pouco a pouco, ganha consistncia e treinamento suficientes para passar da defesa dos
8
Benny Morris, idem, pg. 101.
9
Idem, pg. 120.
16
assentamentos judaicos ao ataque dos palestinos. E em 1930-31, alguns oficiais da Haganah criam o
Irgun, um grupo clandestino treinado para realizar aes de represlia.
No fim dos anos vinte, a Palestina atingida por uma seca prolongada que perdura at 1934
reduzindo substancialmente a produo agrcola. Os vilarejos rabes e as pequenas cidades do
interior conhecem um progressivo empobrecimento e uma forte migrao dos palestinos rumo a
Jaffa e Haifa cujos arredores se enchem de favelas.
Em 1935, diante da substancial reduo dos recursos que vm do exterior e da necessidade
de dar emprego aos judeus recm-chegados, os sionistas passam a demitir os rabes que trabalham
como assalariados em seus empreendimentos. nesta situao que o secretrio da federao
sindical judaica de Jaffa declara: Pouco importa quantos rabes estejam desempregados, eles no
tm direito a nenhum emprego que poderia ser ocupado por um hebreu. Nenhum rabe pode ter
direito a vagas nas empresas judaicas. E, melhor ainda, se os rabes puderem ser expulsos tambm
dos demais empregos.
10
O sentimento de revolta palestino aumenta ainda mais em outubro de 1935 quando se
descobre que um suposto carregamento de cimento destinado a um importador judeu composto de
800 fuzis e 400 mil projeteis. Some a isso o sucesso da revolta contra o domnio ingls na cidade do
Cairo, no Egito, e no ter nenhuma dificuldade em entender o acirrar-se da insatisfao e do
radicalismo rabes.
Suas primeiras manifestaes ganham corpo em 25 de novembro de 1935 quando as
organizaes polticas palestinas enviam um protesto ao Alto Comissariado britnico reivindicando
o fim da imigrao e da venda de terras aos hebreus, alm da instalao de um governo democrtico
que seja expresso da maioria rabe. Na tentativa de contornar a situao, os ingleses tentam montar
um Conselho Legislativo no qual Londres se reserva o direito a dizer a ltima palavra.
- Isso parece mais uma provocao do que uma tentativa de acordo pacfico..., sugiro ao
vislumbrar assustado o desenrolar dos novos acontecimentos.
De p, apoiada no graveto que lhe serve de muleta, Ndia atende solene minha inquietao.
verdade. A sada encontrada pelos britnicos s boa para eles mesmos. E ainda que por razes
diferentes, tanto os palestinos quanto os sionistas acabam rejeitando-a e suspendendo as
improdutivas negociaes que se arrastam at abril de 1936 quando uma greve geral marca o incio
da primeira rebelio palestina.
Impulsionado por jovens nacionalistas, o movimento organizado e dirigido pelo Alto
Comit rabe composto de 8 membros representantes das principais faces polticas locais. Suas
reivindicaes centrais so o fim da imigrao e da compra de terras por parte dos sionistas e a
implantao de uma assemblia legislativa eleita pelo povo. A greve tem uma adeso limitada, mas
consegue provocar escassez de produtos agrcolas na cidade e atrasos na construo civil onde os
palestinos constituem a maior parte da fora de trabalho. Ao mesmo tempo, grupos rabes atacam as
hortas e os pomares dos assentamentos judaicos derrubando rvores frutferas e causando srios
prejuzos.
A administrao britnica na Palestina percebe logo que seus dois batalhes de infantaria e
as foras policiais no conseguem conter os ataques dos rebeldes, cada vez mais freqentes e
imprevisveis. Diante do agravar-se da situao, Londres envia cerca de 20 mil soldados para a
regio, recruta 2 mil e 700 policiais hebreus e distribui farto armamento aos colonos judeus.
Os sionistas sabem que as razes da insatisfao rabe convergem para a disputa de uma
terra onde no h lugar para os dois povos. Nas primeiras semanas, procuram garantir apenas a
defesa dos assentamentos por temer que eventuais aes de represlia possam ampliar a extenso do
conflito. E com a chegada dos contingentes britnicos, deixam a eles a tarefa de assumir o nus de
esmagar a resistncia dos rebeldes.
Na metade de maio, as tropas impem o toque de recolher, invadem repentinamente bairros
e residncias palestinas, realizam emboscadas e aes de patrulhamento contando com o apoio dos
10
Idem, pg. 159.
17
sionistas. Encurralados pela represso, os militantes rabes se refugiam nos vilarejos mais distantes.
Neles a adeso ao movimento no imediata. O fato de a rebelio ocorrer nas semanas que
antecedem a colheita, o receio de enfrentar as tropas britnicas e o esvaziamento dos vilarejos em
funo das migraes internas rumo aos principais centros do pas so elementos que, inicialmente,
freiam o envolvimento dos camponeses palestinos.
Mas, em agosto de 1936, boa parte das regies rurais se rebela. O repdio dominao
estrangeira, a averso e o medo em relao aos sionistas que ameaam sua sobrevivncia fazem com
que at mesmo as tradicionais rivalidades entre os cls sejam deixadas de lado. Alm de atacar
postos policiais e assentamentos, grupos guerrilheiros levam adiante aes de sabotagem contra
linhas telefnicas, pontes e ferrovias.
Em resposta, a administrao britnica passa de medidas de conteno da revolta a
verdadeiras aes de contra-insurreio. As casas dos camponeses palestinos, acusados de dar
abrigo aos rebeldes, so derrubadas e seus pertences confiscados ou destrudos. Vilarejos inteiros
so arrasados e uma violenta represso se abate sobre todos os suspeitos de integrar o movimento.
Nestas condies, o prolongar-se da luta esgota rapidamente os poucos recursos dos
militantes e a perspectiva da derrota leva o Alto Comando rabe a abrir negociaes com os
britnicos. Ao mesmo tempo, os governos autnomos da Arbia, Iraque, Imen e Jordnia
pressionam os palestinos a pr fim greve e s aes guerrilheiras. Isolados, sem recursos e com as
tropas britnicas prontas para desfechar o ataque definitivo, no resta aos rebeldes outra sada a no
ser a de suspender a luta.
Os britnicos restabelecem a ordem e garantem a continuidade da imigrao judaica. Em
novembro de 1936, a Comisso Peel, do nome do seu presidente Lorde William Robert Peel,
comea os trabalhos de avaliao dos acontecimentos e apresentao de possveis solues.
O relatrio final, em julho de 1937, no surpreende quem conhece o desenrolar das relaes
entre a Gr Bretanha e o movimento sionista. Depois de puxar as orelhas dos administradores locais
pela fraqueza demonstrada na hora de encarar o incio da revolta, recomenda a diviso da Palestina
em dois territrios. Aos judeus seria destinado pouco menos de um quinto do pas. A Gr Bretanha
manteria o controle sobre Jerusalm, Belm, Haifa e outras trs cidades menores. Os palestinos
ficariam com o deserto do Negev, a Faixa de Gaza e a atual Cisjordnia. Juntos, estes trs territrios
formariam com a Jordnia um estado rabe independente.
A Comisso recomenda ainda que haja uma troca de populao pela qual 225 mil palestinos
sairiam da rea destinada aos judeus, enquanto mil 250 hebreus em terras rabes fariam a mesma
coisa. A razo que justifica esta medida muito simples: sem a transferncia, o estado sionista teria
uma populao rabe quatro vezes maior do que a judaica, e isso representaria uma ameaa
constante tranqilidade da ordem interna. Os sionistas que haviam sugerido a exportao da
Europa dos hebreus pobres como forma de resolver o problema das perseguies, agora encontram
no governo de Londres um aliado de peso para defender a mesma medida em relao aos palestinos,
legtimos moradores daquelas terras.
- Ndia, agora fiquei curioso. Como que as partes envolvidas no enfrentamento reagem ao
relatrio da Comisso Peel?, pergunto na tentativa de apressar o relato.
A coruja sorri. E depois de um Voc no consegue mesmo imaginar as reaes?, que deixa
no ar uma mistura de ironia e suspense, comea a dar a resposta. Os judeus, obviamente, no tm
outra coisa a fazer a no ser comemorar um resultado to favorvel aos seus projetos. Numa carta ao
filho, Ben Gurion, um dos lderes mais importantes e respeitados da comunidade judaica, escreve:
Um Estado hebreu numa parte da Palestina no o ponto de chegada, mas sim de partida. A posse
de uma regio seria importante no s pelo que representa, mas ela nos tornaria mais fortes, e
tudo aquilo que nos fortalece destinado a facilitar a conquista do pas inteiro. Fundar um
[pequeno] Estado ser como fornecer uma alavanca nossa histrica tentativa de resgatar toda a
regio.
11
11
Idem, pg. 179-180.
18
Do outro lado, em julho de 1937, o Alto Comit rabe rechaa categoricamente o relatrio
da Comisso Peel, cujas concluses entregam aos hebreus as melhores terras e 87% dos pomares
palestinos. Em outras palavras, alm de condenar a populao rabe a um nvel de vida bem
inferior, a posio britnica possibilita as condies materiais para ampliar a chegada dos migrantes
judeus e, de conseqncia, as futuras lutas de conquista do territrio. Mescle isso ao fato dos
palestinos se sentirem legtimos habitantes de uma terra que sua religio considera sagrada e o
resultado que, em 14 de outubro do mesmo ano, a revolta rabe explode mais uma vez.
Alm dos assentamentos judaicos, policiais e soldados britnicos se tornam alvo dos grupos
guerrilheiros que atingem, inclusive, as residncias dos rabes que se opem ao movimento. Os
enfrentamentos se intensificam em 1938 e se encerram definitivamente em setembro de 1939.
- Ao longo deste perodo de quase dois anos, qual o comportamento dos grupos armados
judaicos?.
- Parte deles se dedica ao mais puro terrorismo, responde a coruja com voz seca e firme.
- Mas, Ndia, ser que voc no est se enganando? Desde que me conheo por gente, eu sempre
ouvi dizer que atentado terrorista coisa de palestino..., murmuro perplexo e de queixo cado pela
resposta inesperada.
A coruja sacode a cabea. Em seguida, senta no sof e com a calma de quem se prepara para
contar uma histria que espera seja ouvida e entendida, aponta o graveto-muleta em minha direo.
Depois de um Preste muita ateno ao que vou dizer que cutuca os neurnios mais preguiosos,
Ndia pisca os olhos e acrescenta: Quem no conhece a histria cai facilmente nas armadilhas dos
poderosos que levam a associar o termo palestino ao de terrorista. Eles fazem isso para que, ao
desqualificar toda forma de luta e de resistncia deste povo, sejam esquecidas as razes histricas
que lhe do origem. A reconstruo dos acontecimentos mostra que o terrorismo, no verdadeiro
sentido da palavra, assumido pelos judeus como forma de enfrentamento bem antes de se tornar
uma arma nas mos dos palestinos.
Entre 1937 e 1938, grupos do Irgun se encarregam de semear o terror entre a populao
rabe. O primeiro atentado ocorre em 11 de novembro de 1937 num posto rodovirio de Jerusalm:
dois palestinos so mortos e outros cinco feridos. Trs dias depois, bombas explodem
simultaneamente em vrias regies rurais. O Irgun passa a comemorar o 14 de novembro como o
dia do fim da abstinncia da violncia.
As aes se sucedem. Em 6 de julho de 1938, um militante deste grupo judaico detona
grandes quantidades de explosivo num mercado rabe de Haifa. Resultado: 21 mortos e 52 feridos,
todos palestinos. Passados nove dias, outro atentado mata 10 rabes e fere mais de 30 na cidade
velha de Jerusalm. Em 25 de julho, o mercado de Haifa novamente sacudido por uma exploso.
Desta vez, o saldo de 39 palestinos mortos e mais de 70 feridos. Estes que acabo de listar so os
resultados das principais aes terroristas do Irgun. Houve outras que foram menores, mas no
menos eficientes na tarefa de espalhar o terror entre a populao rabe.
Neste contexto, a Haganah muda de papel. Alm da defesa dos assentamentos, passa a
realizar patrulhamentos e ataques preventivos. No incio de 1939, por ordem de Ben Gurion,
criada uma unidade secreta de operaes especiais para executar represlias contra vilarejos e
militantes rabes, eliminar informantes e atacar instalaes britnicas com o intuito de desencadear
a represso contra alvos palestinos. Quem desempenha um papel importante nesta transio da
Haganah da autodefesa a uma postura agressiva o jovem oficial escocs Charles Orde Wingate, da
Quinta Diviso britnica.
Alm do corpo de operaes especiais, em junho de 1938, mais de 60 soldados ingleses e
uma centena de hebreus formam os Esquadres Especiais Noturnos. De acordo com o prprio
Wingate, eles so parte de um plano mais amplo para espalhar o terror entre os palestinos: Os
rabes acham que a noite deles porque durante a noite a polcia e as tropas britnicas se fecham
nos quartis, mas ns hebreus [sic] lhes mostraremos que podemos acabar com seus planos. No
19
desistiremos at que tiverem medo da noite assim como agora eles tm do dia.
12
No primeiro ms
de atividade, os Esquadres interceptam e matam mais de 60 rabes, parte dos quais em aes de
represlia contra os vilarejos usados como bases de operao dos rebeldes palestinos. Terminada a
rebelio, a estratgia e razo de ser destes grupos so incorporadas por destacamentos da Haganah.
tambm nesta poca que os judeus aprimoram seus servios de inteligncia que se ocupam
tanto de questes polticas como militares. Seus membros so recrutados entre comerciantes,
agricultores, carteiros, entregadores, encanadores, garons, pastores, policiais e vendedores de gado.
Trata-se de pessoas que entram em contato com um grande nmero de cidados e que, por sua vez,
arregimentam outros informantes, muitos dos quais so rabes atrados pelas recompensas em
dinheiro ou pela possibilidade de prejudicar o cl adversrio.
O clima de terror alimentado tambm pelas tropas britnicas que, sem fazer cerimnias,
destroem casas, pomares e vinhedos das famlias suspeitas de protegerem os rebeldes. Se isso no
bastasse, entre 1937 e 1939, so enforcados mais de cem rabes e no so poucos os palestinos que
acabam amarrados nas locomotivas como escudo humano contra possveis ataques. Se isso no
bastasse, imitando o que Hitler faz com os hebreus na Alemanha, a populao rabe obrigada a
usar sinais de identificao e seus deslocamentos so controlados com rigor. Alm disso, os
britnicos limitam as exportaes palestinas de frutas ctricas para impedir que parte dos recursos
seja usada no financiamento da guerrilha.
O saldo de mortos entre o incio de 1938 e setembro de 1939, quando se encerra a rebelio,
revela o peso da aliana anglo-judaica em relao s foras rebeldes. Ao todo so 114 britnicos,
349 hebreus e cerca de mil e 500 rabes.
Com os principais lderes mortos, presos ou no exlio, com os suprimentos cortados, com
centenas de simpatizantes e militantes assassinados e com o apoio popular destrudo pelo terror, a
rebelio no tem como se sustentar.
- Confesso que agora estou meio atordoado. Voc se importaria de delinear o desenrolar desta
chuva de acontecimentos?, peo na tentativa de vislumbrar os passos que as foras em jogo esto
prestes a dar para garantir seus interesses na regio.
Animada pela pergunta inesperada, a coruja se apia no graveto com uma asa enquanto com
a outra usa o encosto do sof para se levantar. De p, com o olhar atento do capito que acompanha
cada momento da navegao, Ndia se prepara para alinhavar as concluses que, como sempre,
devem ser tambm o ponto de partida da prxima etapa desta viagem pela histria da questo
palestina. Ajeitadas as plumas do peito, com voz solene, solta um Muito bem, vejamos que
sinaliza o incio do relato. Em primeiro lugar, necessrio dizer que, j em 1938, a Gr Bretanha
volta atrs quanto diviso da Palestina. Apesar de reapresent-la como soluo para o conflito no
relatrio da Comisso Woodhead, criada para examinar esta questo, o imprio sabe que suas
concluses no tm a menor possibilidade de serem aplicadas e, por isso, no se esfora para
viabiliz-las.
Acontece que diante das ameaas de uma nova guerra mundial, o Oriente Mdio, rico em
petrleo, ponto de passagem das rotas comerciais para a sia e sede de importantes bases militares
britnicas, uma rea estrategicamente crucial para o governo de Londres que v a necessidade de
trabalhar para no alimentar os conflitos existentes. Neste contexto, a situao da Palestina
preocupa na medida em que pode atrair sobre o imprio britnico a inimizade de dezenas de milhes
de rabes e de centenas de milhes de muulmanos. E a nvel econmico e militar os povos rabes
pesam muito mais do que a comunidade judaica e seus aliados internacionais. Apoiar os hebreus
significa correr o risco de atiar o sentimento antiimperialista rabe e empurr-lo para uma possvel
aliana com as foras de Hitler e Mussolini. Isso quando aos sionistas no resta outra opo a no
ser a de permanecer do lado da Gr Bretanha.
Mas, ao agir desta forma, Londres acaba alimentando tanto a desconfiana dos palestinos
como dos judeus.
12
Idem, pg. 192.
20
E no pra menos. Diante das presses pelo fim da imigrao e da venda das terras, a
administrao britnica aceita limitar a 80 mil o nmero de hebreus que podem entrar na Palestina
nos dez anos seguintes, estabelece regras para reduzir a compra de terras e prope a criao de um
Estado palestino independente cuja implantao se daria no prazo de uma dcada.
Estas medidas, alm de no satisfazer a comunidade rabe, elevam o descontentamento dos
sionistas para os quais a Gr Bretanha parece decidida a abandonar a Declarao Balfour e a ceder
s presses locais justo no momento em que os hebreus da Europa comeam a sofrer a perseguio
nazista. assim que, semanas depois, os protestos dos judeus conseguem garantir a entrada de 75
mil migrantes num prazo de 5 anos (isso sem contar os que chegariam clandestinamente com
Londres fazendo vista grossa na tentativa de evitar atritos com os sionistas). Quanto s compras de
terras, se nos anos da rebelio palestina haviam nascido cerca de 36 novos assentamentos, no seria
agora que o imprio iria pr fim a esta realidade.
Graas ao trabalho de fortalecimento da infra-estrutura e aos recursos vindos do exterior, a
economia judaica na Palestina se desenvolve. Alm de conseguir ampliar a produo dos
assentamentos, os hebreus montam oficinas especializadas na blindagem de veculos e empresas
para a produo de material blico. Podendo contar com uma estrutura prpria de suprimentos, a
Haganah cresce e se fortalece.
Do lado rabe, a represso anglo-judaica e as lutas internas haviam destrudo centenas de
casas, plantios e pomares. Entre civis e rebeldes estima-se que os dois momentos de revolta tenham
custado entre 3 e 6 mil mortos enquanto pelo menos outros 6 mil palestinos haviam sido presos.
Com a economia destruda, a misria e o desemprego aumentando a olhos vistos, com a maior parte
de suas lideranas na cadeia, mortas ou no exlio, a possibilidade de rearticular imediatamente uma
resistncia altura das necessidades , praticamente, nula.
O incio da segunda guerra mundial traz novos ingredientes que elevam o grau de hostilidade
entre rabes e judeus e deterioram o controle do imprio britnico sobre a Palestina. Sabendo que
vm mais coisas, bom voc tomar um caf enquanto me preparo para falar do perodo que vai de
1939 a 1949, ou seja...
3. Da segunda guerra mundial ao primeiro conflito rabe-israelense.
Renovadas as energias, o corpo se aproxima vagarosamente da mesa sobre a qual Ndia
espera impaciente a sua volta. Sem desgrudar o olhar do relgio de parede, a coruja bate
repetidamente o graveto-muleta no livro debaixo de suas patas na que parece ser uma frentica
cronometragem da sua ausncia. E dirigindo a ponta da asa para a cadeira vazia expressa toda a sua
ansiedade: Vinte e trs minutos e quarenta e oito segundos para esquentar meio litro dgua, coar o
caf e tomar dois dedos de lquido quente misturado com um pingo de leite frio! Francamente! Este
no um intervalo, e sim um monumento preguia!.
- Mas, Ndia...
- Nada de mas, porm, tente entender ou outras solenes introdues para desculpas esfarrapadas. J
conheo todas e voc bem sabe que no adianta apelar a elas para justificar esta demora, diz a
coruja para apressar a minha volta.
Ao ver que a mo j segura descansada o instrumento de trabalho, a ave pisca os olhos e
aponta a muleta para a caneta parada no incio da folha. Limpada a garganta com um sonoro Hem!
Hem!, a voz pausada revela que, apesar do atraso, Ndia no perdeu o fio da meada: Escreva:
como a Gr Bretanha havia previsto, a comunidade judaica no hesita em declarar o seu apoio ao
governo de Londres logo no incio da segunda guerra mundial. Com este gesto, os sionistas esperam
que sua lealdade seja compensada com o fim dos limites imigrao e com a defesa aberta da
necessidade de criar um Estado judaico na Palestina.
Para os rabes, a escolha mais difcil. Os britnicos controlam o Oriente Mdio e tm
fortes contingentes armados no Egito, Iraque e Palestina. Neste contexto, uma atitude abertamente
21
hostil significaria correr o risco de reviver a dura represso sofrida ao longo da revolta recm-
esmagada pelas foras anglo-judaicas. Do ponto de vista emotivo, o desejo de vingana levaria a
apoiar a Alemanha e seus aliados, mesmo porque Hitler promete garantir a independncia dos pases
rabes no amanh da derrota do exrcito ingls.
Ao mesmo tempo, porm, a poltica de discriminao racial do nazismo assusta e ofende os
povos do Oriente Mdio. Entre as expresses que retratam este clima de indefinio est a anotao
que Khalil Sakakini faz em seu dirio na metade de 1941, ao dizer que os palestinos festejaram
quando o enclave britnico de Tobruk se rendeu aos alemes. E no foram s os palestinos a
festejar, mas o inteiro mundo rabe, tanto no Egito, como na Palestina, Sria, Lbano e Iraque, e
no porque ame os alemes, mas sim porque no suporta os ingleses por causa de sua poltica na
Palestina.
13
A ecloso da segunda guerra mundial vai congelar o enfrentamento entre ingleses, judeus e
palestinos.
- Bom, acredito que, por parte dos hebreus, isso se deve tambm s preocupaes humanitrias
com as vtimas do holocausto, me atrevo a sugerir na tentativa de esclarecer esta questo.
Ndia pra. Imvel sobre a pilha de livros parece reunir os elementos que respondem
minha indagao. Depois de breves instantes de silncio, a ave abre um sorriso desconcertante.
Voc fala em preocupaes humanitrias como se estas constitussem a nova razo de ser do
sionismo. Pois fique sabendo que, diante da perseguio dos hebreus nos campos de extermnio, a
reao inicial da comunidade judaica na Palestina permeada pela avaliao dos possveis efeitos
negativos sobre o projeto sionista.
Em dezembro de 1938, dois anos antes do holocausto, Ben Gurion observa: Se soubesse que
posso salvar todas as crianas [dos hebreus] alemes transferindo-as para a Inglaterra, ou somente
metade delas levando-as para a comunidade de Israel, escolheria salvar a metade porque o clculo
no pode limitar-se quelas crianas, mas sim deve incluir o destino histrico de todo o povo
hebreu.
Quatro anos depois, quando o holocausto j uma realidade, o mesmo Ben Gurion declara:
A catstrofe dos hebreus europeus no uma questo que me diz respeito de forma direta. E, ainda:
A destruio dos hebreus europeus o dobrar dos sinos que anunciam a morte do sionismo.
14
Trocado em midos, isso significa que o projeto de construir o Estado judaico na Palestina
est acima de tudo, orientando as aes e as preocupaes da comunidade hebraica local. De fato,
sem um fluxo migratrio constante, a concentrao de judeus em territrio palestino no atinge um
nvel suficientemente elevado para justificar o seu reconhecimento como Estado independente.
por isso que, com o incio da guerra, a organizao de uma rede para a imigrao clandestina torna-
se uma prioridade. Para os judeus imprescindvel desafiar abertamente as limitaes impostas pelo
governo de Londres que, preocupado em no alimentar reaes adversas dos povos rabes, toma
algumas medidas para deportar parte dos judeus que entram ilegalmente em territrio palestino.
Para forar o imprio a abrir mo das restries, em novembro de 1940, a Haganah detona
um velho navio ancorado no porto de Haifa com 1700 imigrantes clandestinos espera de sua
deportao. Mas o que devia soar como um ato de protesto se transforma em tragdia. A quantidade
excessiva de explosivo utilizada na ao acaba matando 252 hebreus.
As aes de convencimento no param por a. Um ms depois, um grupo de operaes
especiais da Haganah coloca uma bomba no Centro de Imigrao de Haifa, enquanto grupos
semiclandestinos se preparam para garantir o aumento do fluxo de imigrantes.
Ainda assim, no so muitos os judeus que conseguem escapar da represso nazista.
Calcula-se que, de 1939 a 1945, cerca de 92 mil conseguem entrar na Palestina. Menos da metade
dos 217 mil que a chegam para construir o seu lar entre 1932 e 1938.
13
Idem, pg. 208.
14
Idem, pg. 209.
22
Com as notcias do holocausto se espalhando pelo mundo, a Gr Bretanha teme ser acusada
publicamente de agir contra o respeito pessoa humana e, pouco a pouco, comea a fazer vista
grossa diante das imigraes clandestinas.
Paralelamente a isso, os prprios Estados Unidos comeam a simpatizar cada vez mais com
a idia de garantir um refgio aos hebreus perseguidos. Aproveitando a fragilidade do governo de
Londres, Tio Sam ensaia as primeiras paqueras com a comunidade judaica na Palestina.
- Ento, pelo que acaba de dizer, de agora em diante, a relao entre sionistas e britnicos s vai
conhecer momentos de tenso?, questiono sorrindo na certeza de pegar a coruja em aberta
contradio com o esfriamento do conflito entre judeus, ingleses e palestinos que ela apontava no
incio do captulo.
Ndia sacode a cabea e percebendo as minhas intenes desce dos livros, se aproxima e
apoiando a asa no meu ombro diz: O fato dos humanos darem uma de espertinhos apenas denuncia
sua vontade de usar a ironia para ocultar a falta de conhecimento. No mundo das corujas as coisas
no so assim. A nossa tarefa a de desvendar a realidade, constantemente ambgua e contraditria,
que est sob os nossos olhos. Por isso, limpe seu veneno, ajeite os culos e abra os ouvidos para
entender direitinho cada elemento desta histria to complexa.
De cabea baixa, tento amenizar a dor do tiro que saiu pela culatra evitando o olhar de
Ndia, fixo no rubor que pinta o meu rosto.
- Bom, onde que eu estava?, pergunta a coruja com jeito de quem sabe que acertou no alvo.
Ah! Sim. Na relao entre os sionistas e o governo britnico. Voc precisa saber que se, de um
lado, h atritos quanto questo da imigrao, de outro a comunidade hebraica pressiona a Gr
Bretanha para que ela organize e treine um exrcito de judeus da Palestina.
Voc no pode esquecer que outro elemento capaz de garantir a existncia de um futuro
Estado independente a organizao de um contingente de foras armadas capazes de assegurar
tanto a defesa como sua possvel expanso.
A idia de criar um exrcito de judeus conta com o apoio do primeiro ministro ingls
Winston Churchill que, em outubro de 1939, prope o recrutamento de milhares de hebreus da
Palestina com a finalidade de manter a ordem na regio e transferir parte das tropas britnicas para
os campos de batalha da Europa.
As resistncias iniciais, fruto dos protestos rabes, so vencidas pelo avano das tropas
alems e italianas que, em 1940-41, esto a um passo de conquistar o Egito. At o fim do conflito, a
Gr Bretanha vai alistar, treinar e armar de 25 a 28 mil judeus, alm de alguns milhares deles como
policiais destinados a servios especiais.
Aproveitando-se da situao, a Haganah compra ou subtrai muito material blico dos
arsenais britnicos do Egito e da Palestina. Com a ajuda dos ingleses, cria as Palmah, companhias
de assalto integradas por cerca de 2 mil soldados de elite. Ao terminar a guerra, suas fileiras contam
com cerca de 36 mil homens fortemente armados, um verdadeiro exrcito.
Aos palestinos o conflito mundial traz poucas mudanas. A situao econmica conhece
alguma melhora em funo dos gastos e dos investimentos dos aliados, mas, nada muda do ponto de
vista militar e poltico. Os cerca de 5 mil combatentes que se unem s tropas anglo-americanas
representam bem pouco diante do contingente judaico treinado e armado por Londres.
- Sabendo que diferenas de tratamento to evidentes alimentam a desconfiana da parte mais
prejudicada, como que a Gr Bretanha consegue manter o controle da regio?
- Para entender o desenrolar das relaes do imprio ingls com os pases do Oriente Mdio,
necessrio levar em considerao alguns dos principais acontecimentos que marcam o conflito
mundial.
No segundo semestre de 1942, a Alemanha derrotada pelas tropas britnicas no norte da
frica ao mesmo tempo em que os soviticos lhe impem severas perdas em Stalingrado e no
Cucaso. Tirada a Hitler qualquer possibilidade de almejar o controle dos povos rabes, Londres
comea a agir para agrad-los na tentativa de evitar que sua hegemonia seja substituda pela dos
Estados Unidos e da Unio Sovitica.
23
Paralelamente a isso, o extermnio dos hebreus nos campos de concentrao nazistas cria
centenas de milhares de refugiados. Os pases ocidentais e os EUA se recusam a aceit-los. Esta
atitude fortalece a presso sionista para que eles migrem para a Palestina e, com ela, a opinio
pblica internacional, horrorizada diante do holocausto, comea a ser marcada pela necessidade de
criar um Estado para os judeus em territrio rabe.
Para obter alguma concesso, os palestinos teriam que aprimorar sua organizao poltica e
social, mas, com os principais dirigentes no exlio, o ritmo das atividades no est altura das
necessidades.
neste contexto que a Gr Bretanha decide incentivar a unidade dos povos rabes como
forma de tentar garantir o seu apoio. De 25 de setembro a 7 de outubro de 1944, delegados de sete
pases se renem em Alexandria, Egito, para fundar a Liga rabe. Os palestinos conseguem enviar
um observador ao qual, em seguida, reconhecido o status de delegado.
Nos documentos finais do encontro h uma parte que reza: qualquer violao dos direitos
dos rabes [da Palestina] prejudicaria a estabilidade e a paz do inteiro mundo rabe. Os Estados
da Liga declaram no estar depois de ningum em lastimar os sofrimentos impostos aos hebreus
europeus. (...) Mas o problema daqueles hebreus no deve ser confundido com o sionismo, porque
no poderia ter injustia e violncia pior do que resolver o problema dos hebreus europeus (...)
cometendo uma injustia em relao aos rabes da Palestina.
15
Os Estados da Liga rabe apiam as principais reivindicaes dos palestinos, mas se
reservam o direito de decidir quem deve represent-los nas reunies da Liga at eles serem
independentes. Em outras palavras, as decises em relao ao avano sionista seriam tomadas no
Egito e no na Palestina.
Enquanto isso, na Conferncia de Yalta, em fevereiro de 1945, Roosevelt, presidente dos
Estados Unidos, declara que ele mesmo se sente sionista. Um ms depois, na tentativa de no atrair
a desconfiana da Liga rabe, declara que no aprovar nenhuma iniciativa que possa prejudicar os
povos que ela representa. O jogo pela disputa da hegemonia sobre a regio acaba de dar mais um
passo.
O fim da segunda guerra mundial anuncia a retomada das lutas pela independncia em
territrio palestino. Os sionistas retiram sua solidariedade Gr Bretanha, que tenta se equilibrar
entre rabes e judeus, e pressionam para aumentar os fluxos migratrios.
- No sei dizer porque, mas isso me cheira mal..., digo pressentindo o teor dos prximos
acontecimentos.
- Pe mal nisso!, responde Ndia em tom nada animador. Com o cessar das hostilidades na
Europa, as tenses na Palestina aumentam a olhos vistos. Entre maio e junho de 1945, a revolta da
comunidade hebraica contra a poltica britnica de conter as imigraes est prestes a explodir.
Grupos armados judaicos inauguram uma srie de atentados contra postos policiais, linhas
telefnicas, pontes, estradas atingindo at mesmo o oleoduto da Companhia de Petrleo do Iraque,
controlada pelo governo de Londres. No comeo de outubro, a Haganah lana o Movimento da
Rebelio Hebraica e, na noite do dia 9, comandos da Palmah atacam o campo de Atlit, libertando os
208 judeus imigrantes ilegais a confinados. Em novembro, membros desta mesma fora de elite
sabotam as ferrovias palestinas em 153 localidades.
Os britnicos ensaiam uma reao. Penetram em alguns assentamentos judaicos acusados de
esconderem os soldados da Haganah e abrem fogo matando 9 civis e ferindo outros 63. A
hostilidade sionista em relao a Londres aumenta. Em 17 de junho de 1946, onze pontes que ligam
a Palestina Jordnia, Sria, Lbano e Egito explodem simultaneamente.
Apesar do acirrar-se das hostilidades, a imigrao clandestina no pra. Calcula-se que, entre
agosto de 1945 e maio de 1947 chegam ao territrio palestino cerca de 71 mil hebreus.
Diante desta situao, os rabes no demoram em manifestar seu descontentamento. Em 2 de
novembro de 1945, aniversrio da Declarao Balfour, manifestaes anti-sionistas ocorrem no
15
Idem, pg. 221.
24
Egito, Lbano, Sria e Iraque. Em Alexandria, o povo saqueia lojas, casas e sinagogas dos hebreus.
Na Lbia, governada pelos britnicos, uma centena de judeus massacrada.
Presa entre o prego e o martelo, Londres vive um dilema: aceitar a entrada em massa dos
judeus significa acirrar e estender a revolta rabe a outros pases do Oriente Mdio. Recusar-se a
fazer isso, implica em sofrer o aumento da presso judaica e empurrar os sionistas para os braos
dos Estados Unidos, cuja posio clara: garantir a imigrao imediata de 100 mil hebreus, pr fim
s restries sobre a compra de terras, apoiar a diviso do pas e a criao de um Estado judaico.
Para ganhar tempo e tentar esfriar os nimos, a Gr Bretanha cria uma comisso para avaliar
o destino dos hebreus refugiados, desta vez com a participao de representantes dos EUA. A
Haganah decide dar uma trgua.
Instrudos pela Agncia de Emprego Hebraica e por membros da prpria Haganah, os judeus
dos campos de refugiados da Polnia expressam comisso o desejo unnime de migrar para a
Palestina. Diante deste pedido e do persistir do anti-semitismo naquele pas, o relatrio final,
apresentado em 1 de maio de 1946, sublinha a necessidade de apressar ao mximo a livre entrada
na Palestina dos sobreviventes do holocausto. Alm disso, descarta a diviso do pas e sugere a
criao de um Estado nico com duas nacionalidades. A administrao britnica permaneceria na
regio, mas, por sua vez, estaria submetida Organizao das Naes Unidas.
Frente a estas concluses, o governo de Londres prope excluir a imigrao em massa at
que as milcias e as comunidades judaicas sejam desarmadas, pois, sem esta medida, seria
impossvel enfrentar ao mesmo tempo a inimizade de hebreus e palestinos.
Estes ltimos rejeitam as concluses da comisso e promovem protestos e manifestaes em
vrios pases. A Liga rabe promete recursos e armamentos resistncia palestina.
Os hebreus, que esperavam algo mais, apiam timidamente as concluses do relatrio e, em
junho, retomam os ataques a alvos britnicos. No ms seguinte, os corpos de elite da Haganah
promovem uma srie de atentados terroristas. O mais grave atinge uma ala do Hotel King David, em
Jerusalm, que hospeda o quartel geral militar e administrativo da Gr Bretanha. A exploso deixa
um saldo de 91 mortos.
Diante do agravar-se da tenso e de seu desgaste na regio, em 14 de fevereiro de 1947, o
governo de Londres decide afastar-se da Palestina e deixar s Naes Unidas a tarefa de dar uma
soluo para o caso.
- Pelo visto, trata-se de um belo abacaxi..., comento espontaneamente ao perceber o avolumar-se
de contradies e acontecimentos que agravam a tenso na regio.
Em silncio e de olhos fechados, Ndia balana a cabea para confirmar a constatao que os
lbios acabam de emitir. Um longo suspiro parece anunciar que este s o comeo das dores. E
recostando o corpo numa das pilhas de livros, a coruja se prepara para retomar o seu relato. Em voz
baixa e compenetrada, introduz o que aparenta ser mais um complicador desta intricada histria:
Incumbida da tarefa de encontrar uma sada, a ONU cria uma comisso especial que, em 1 de
setembro de 1947, recomenda, por voto majoritrio, a entrada de 150 mil migrantes judeus no prazo
de dois anos, a diviso da Palestina em dois Estados e a administrao internacional das cidades de
Belm e Jerusalm.
Ciente da importncia dos resultados, o lobby sionista pressiona os pases membros a
votarem pela criao do Estado de Israel. E, em 29 de novembro de 1947, a plenria da ONU aprova
a Resoluo 181. A toque de caixa, e sem consultar o povo palestino, os judeus que representam
37% da populao assentada em 7% do territrio acabam de receber das Naes Unidas 55% de
toda a Palestina.
- Mas isso jogar gasolina no fogo!
- Bingo!, responde Ndia sem alterar o tom de voz. E continua: Logo aps a sua aprovao, os
pases da Liga rejeitam a Resoluo da ONU e declaram que qualquer tentativa de aplic-la iria
desencadear uma guerra.
Os sionistas tm conscincia de que a transformao de uma resoluo em realidade concreta
significa preparar-se para o enfrentamento. Alm de contar com grandes quantias de dinheiro vindas
25
do exterior, em 1945, os representantes da Haganah nos Estados Unidos j haviam conseguido
comprar mquinas para a fabricao de armas e, meses depois, a Tcheco-Eslovquia comearia a
fornecer equipamentos blicos.
No final de 1947, as oficinas judaicas produzem a todo vapor grandes quantidades de
morteiros, granadas e munies de todos os tipos, alm de adaptar armas em avies civis para que
os mesmos possam auxiliar nos combates. A Haganah est pronta para colocar nos campos de
batalha cerca de 20 mil soldados bem equipados e treinados e conta com mais de 40 mil reservistas.
Frente a esta realidade, em setembro de 1947, a Liga rabe cria um exrcito de cerca de 20
mil palestinos voluntrios vindos de todo o Oriente Mdio. Mal-armadas e pouco treinadas, as
foras rabes so o smbolo de uma realidade que no demora a aparecer: os apelos inflamados dos
governantes a libertar a Palestina dos sionistas carecem de aes capazes de coloc-los em prtica.
A bloquear as atitudes que os prprios palestinos gostariam de ver realizadas, est o receio que cada
pas rabe alimenta em relao aos demais quanto aos desejos destes de se aproveitarem da situao
para ampliar o prprio territrio.
Os discursos radicais, seguidos de tmidas realizaes, no passam de retrica, cada vez mais
necessria para conter as presses populares favorveis a uma interveno armada contra a
implantao do Estado de Israel e capazes de desestabilizar seus regimes que, por sinal, no gozam
de legitimidade junto ao povo.
Um dia aps a aprovao da Resoluo 181, grupos rabes do vida a reaes espontneas.
Ataques a nibus, depredaes e saques so realizados em regies que iriam integrar o Estado
judaico e onde h uma maior concentrao de hebreus.
Teoricamente, Londres ainda governa a Palestina e suas tropas esto em todo o territrio. De
incio, palestinos e sionistas temem que elas possam intervir para reprimir suas aes. Mas a
realidade revela que, at maro de 1948, a presena dos soldados apenas impede a interveno dos
exrcitos rabes e d proteo aos comboios e assentamentos judaicos.
Desorganizadas e contando apenas com 10 mil fuzis e 3 mil voluntrios enviados pela Liga
rabe, as foras palestinas no demoram em constatar sua situao de inferioridade. Ainda assim,
no deixam de atacar as vias de comunicao pelas quais trafegam os comboios.
- Ao que tudo indica, a Resoluo da ONU que cria o Estado de Israel marca tambm o incio da
que parece ser uma guerra civil...
- Sim, voc tem razo. Os enfrentamentos desta guerra vo de dezembro de 1947 a abril de 1948.
- E, ao longo deste perodo, qual o comportamento das foras armadas a servio da comunidade
judaica?.
- De incio, a Haganah adota uma postura defensiva por temer a represso britnica. Mas, aps a
anlise das foras em jogo, se dedica a atacar vilarejos e centros palestinos, quase sempre em aes
de represlia ou atravs de atos terroristas. Esta postura faz com que se passe de desordens
espordicas a uma verdadeira situao de conflito.
Enfrentamentos e atentados, promovidos por ambos os lados, se multiplicam. Mas, devido
falta de recursos, os palestinos levam a pior. Uma vitria esmagadora das armas da comunidade
judaica vista como necessria no s para desmoralizar as foras palestinas como para demonstrar
ao mundo que os hebreus detm elementos polticos, econmicos e militares suficientes para bancar
a criao do seu Estado. E para isso as milcias judaicas no hesitam em agir com requintes de
crueldade.
Entre os exemplos mais tristemente famosos, est o ataque ao vilarejo palestino de Deir
Yassin, nas proximidades de Jerusalm, em 9 de abril de 1948. Vencida a resistncia local, famlias
inteiras so metralhadas e sepultadas debaixo dos escombros de suas prprias casas. Dos homens,
mulheres, crianas e ancios que no conseguem fugir, ningum escapa do massacre. Soldados
sionistas, observadores e jornalistas relatam que em Deir Yassin so assassinadas a sangue frio no
menos de 254 pessoas. Objetivo do massacre: aterrorizar os palestinos e obrig-los a deixar o pas.
Sempre em abril de 1948, a Haganah conquista uma srie de vilarejos a leste de Jaffa e os
bairros rabes de Safed, centro poltico e comercial da Galilia ocidental. Em seu rastro de
26
destruio, seus soldados repetem uma frase que dispensa comentrios: Se vocs no fugirem logo,
sero massacrados e suas filhas violentadas.
16
O balano dos enfrentamentos amplamente favorvel aos hebreus. A estrutura social e a
fora militar dos palestinos sofrem golpes mortais. reas importantes que a Resoluo 181 havia
destinado a eles, ou ao controle internacional, so ocupadas pelos hebreus. Centenas de milhares de
rabes, vtimas do terror judaico que arrasa vilarejos
inteiros, so obrigados a fugir e a se refugiar nos
pases vizinhos.
Ganha a guerra civil e demonstrada ao mundo
a sua fora militar, em 14 de maio de 1948, a
comunidade hebraica ouve Ben Gurion ler a
Declarao de Independncia e o anncio do
nascimento do Estado de Israel.
- Mas, Ndia, notei que ao longo desta ltima parte
do seu relato, as naes da Liga rabe quase no
aparecem. Significa que elas esto dispostas a aceitar
isso como fato consumado?, pergunto na tentativa
de entender o que ocorreu com um ator que, de
repente, parece ter assumido o papel de espectador.
Vagarosamente, a coruja se levanta e,
demonstrando satisfao em relao ao meu sbito
interesse pelo assunto, solta um A elas no resta
outra opo a no ser a de preparar-se para invadir o
Estado vizinho recm-criado que aumenta a minha
curiosidade, mas, tambm, os meus temores.
- Quer dizer que terminada uma guerra vai comear
logo outra?
- Infelizmente, sim. Mas antes de entrar na
cronologia deste novo conflito, importante resgatar
alguns elementos sem os quais impossvel entender
o que est pra ocorrer.
Em primeiro lugar, vale a pena ressaltar que,
ao longo da guerra civil, a Haganah deixa de ser uma
milcia integrada por corpos independentes para
tornar-se um exrcito que obedece a um comando nico capaz de coordenar e tirar o melhor
proveito possvel de cada um dos seus setores. Em julho de 1948, as Foras de Defesa Israelenses
somam cerca de 65 mil homens (que chegaro a 115 mil sete meses depois), dispem de muitas
armas leves, mas s de um punhado de tanques, blindados, canhes e avies de combate.
No fim de maio do mesmo ano, as milcias rabes na Palestina no contam com mais de 28
mil soldados e, no papel, a inferioridade no nmero de tropas compensada por 75 avies de
guerra, 40 tanques, 500 blindados e 360 canhes. O detalhe que boa parte deste equipamento no
tem plenas condies de uso. E o que ainda funciona est prestes a virar sucata em funo do
embargo internacional (imposto pelo Conselho de Segurana da ONU em 29 de maio de 1948)
importao de armas por parte dos pases envolvidos no que seria chamado de primeiro conflito
rabe-israelense.
Mas esta medida que deixa o exrcito da Liga rabe sem armas pesadas, munies e peas
de reposio, acaba no atingindo as foras israelenses. Alm de contar com a produo das
prprias indstrias blicas, elas se beneficiam de uma ampla rede secreta de fornecedores tanto nas
Amricas como na Europa. Com os milhes de dlares vindos dos hebreus no exterior, no difcil
16
Idem, pg. 271.
Localizao dos principais vilarejos
palestinos arrasados por Israel em 1948.
27
para o exrcito judaico negociar suas compras diretamente com as empresas ou atravs do governo
da Tcheco-Eslovquia.
Se isso no bastasse, o nico consenso no interior da coalizo rabe em relao aos
discursos que vaticinam a eliminao do Estado de Israel. Fora isso, as naes no se entendem
sobre os objetivos da guerra e nem tm um comando militar unificado capaz de coordenar e
uniformizar procedimentos e estratgias de ataque. Esta situao faz com que setores das foras
rabes mudem de plano de acordo com os interesses imediatos e a influncia que seus governantes
exercem sobre as tropas por eles enviadas.
A falta de coeso tem explicao numa realidade que anunciei agora h pouco: em nome da
Palestina, cada regime oculta interesses expansionistas. A Jordnia, por exemplo, h tempo vinha
negociando secretamente com a comunidade judaica o reconhecimento do seu Estado em troca do
controle da Cisjordnia. Por sua vez, o Egito, temendo que isso pudesse realmente acontecer, opta
por ocupar militarmente a Faixa de Gaza e o deserto do Negev e criar instituies de um futuro
governo palestino dirigido pelo Cairo.
O fato de que o drama vivido pelo povo palestino s interessa aos pases vizinhos na medida
em que atende aos desejos nem sempre confessveis de seus governantes se torna ainda mais
evidente ao analisar o comportamento das tropas da Liga rabe em relao aos pequenos grupos da
resistncia palestina. Longe de fortalecer o que restava de suas milcias aps as investidas das foras
anglo-judaicas nos anos anteriores, os dirigentes rabes optam por neutralizar os militantes
confiscando suas armas.
Ao lembrar deste momento, o prprio Arafat comenta: Quando os exrcitos rabes entraram
na Palestina, eu estava no territrio de Gaza. O oficial egpcio se aproximou do meu grupo e exigiu
que entregssemos as armas. De incio no podia acreditar no que os meus olhos viam.
Perguntamos a ele o porqu. O oficial respondeu que eram ordens da Liga rabe. Protestamos,
mas no adiantou. O oficial me deu um recibo pelo meu fuzil. Disse-me que poderia recuper-lo
quando a guerra tivesse terminado. Naquele momento, soube que aqueles governantes haviam nos
trado. Eu mesmo fui vtima de sua traio.
17
- Ndia, para ser sincero, tenho a impresso de que o seu relato se assemelha quele ditado que diz
quanto mais eu rezo, mais assombrao me aparece..., murmuro para expressar a surpresa diante
dos novos acontecimentos.
A coruja levanta o graveto-muleta e o balana acompanhando os movimentos da cabea que
indicam uma resposta negativa minha constatao: No, no nada disso. J dizia um velho
conhecido que a histria s surpreende quem da histria nada entende. Nela no h nenhuma
assombrao, truque, passe de mgica ou intervenes de almas penadas, mas somente um
movimento ininterrupto de atores cujos verdadeiros interesses raramente so visveis.
A tarefa de uma coruja justamente a de desvend-los, de traz-los luz, de desmascarar os
mitos pelos quais a repetio de velhas mentiras os transforma na mais pura verdade. Vocs,
humanos, deveriam aprender a fazer isso; ou, pelo menos, a analisar e juntar as peas do quebra-
cabea da realidade sem se limitar ao mero conhecimento de um punhado delas. Bom, mas onde
que eu estava?
- Se no me engano, est na hora de voc falar do conflito entre Israel e as naes da Liga rabe.
- Sim, isso mesmo!, diz Ndia levantando a ponta da asa para o alto. Acontece que, de 15 de
maio a 11 de junho de 1948, o exrcito do Egito ataca o sul da Palestina invadindo a Faixa de Gaza
e parte do Negev. A Sria entra pelo norte, enquanto Jordnia e Iraque ocupam a regio leste que,
grosso modo, corresponde atual Cisjordnia.
Em 11 de junho, h uma trgua e os combates param por um ms. O balano dos primeiros
25 dias de enfrentamento aponta as maiores perdas entre os exrcitos rabes, mal-treinados,
desorganizados, com dificuldade de garantir os suprimentos e com pouco conhecimento do campo
de batalha. Apesar do elevado nmero de mortos, Israel consegue bloquear a ofensiva conservando
17
Alan Hart, Arafat biografia poltica, pg. 66.
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para si quase todas as regies da Palestina ( exceo do Negev) destinadas pela ONU criao do
seu Estado.
Diante dos fatos, no fim de junho, o mediador do conflito enviado pelas Naes Unidas,
Folke Bernadotte, prope que a Palestina seja dividida em 2 Estados: o Estado judaico incluiria
todas as reas designadas pela ONU (menos o Negev, mas com uma grande parte da Galilia
ocidental); e o outro que incorporaria as regies rabes da Palestina Jordnia. Os Estados assim
definidos formariam uma federao. Durante os dois primeiros anos, a imigrao judaica ficaria sob
o controle da ONU enquanto os refugiados palestinos poderiam voltar sem restries aos seus
lugares de origem. Jerusalm integraria a zona rabe enquanto os bairros judaicos da cidade teriam
autonomia administrativa.
- Parece uma proposta sensata.
- S para quem no entende o peso das foras em jogo, retruca Ndia mostrando que no gostou
da interrupo. Um plano assim, s pode ser rejeitado tanto pelos rabes como pelos judeus. Os
primeiros alegam que ele se limita a reafirmar a diviso da Palestina contra a qual haviam se oposto
desde o incio. Os segundos por avaliar que suas foras armadas tm condies de garantir mais
territrio do que aquele que est sendo estipulado pela ONU.
assim que, no dia 8 de julho, os rabes rompem a trgua, mas os enfrentamentos acabam
com vrias vitrias israelenses. Onze dias depois, os exrcitos da Liga aceitam uma nova trgua que
se estende at 15 de outubro, quando os combates comeam com Israel centrando fogo nas tropas do
Egito no deserto do Negev.
As razes desta opo esto no fato de que o exrcito egpcio o mais numeroso, sua
presena representa uma ameaa potencial, tanto para a regio de Tel Aviv, como pelos
assentamentos judaicos a norte do Negev, e por acreditar que esta rea poderia absorver milhes de
migrantes judeus vindos do exterior.
Israel ataca em vrias frentes e suas tropas se dirigem para a pennsula do Sinai, Mas, ao
fazer isso, acaba entrando numa regio onde a Gr Bretanha zela pelos seus interesses ligados ao
controle do Canal de Suez, graas a um acordo de defesa recproca assinado com o Egito em 1936.
Diante do avano dos soldados israelenses, Londres avisa os Estados Unidos de que pode
intervir no conflito e levantar o embargo de material blico aos exrcitos da Liga. O presidente dos
EUA, Harry Truman, entende o recado e envia um protesto oficial ao governo judaico. Com a
oposio das grandes potncias, cuja mudana de postura poderia ser fatal para Israel, Ben Gurion
se v obrigado a retirar suas tropas.
Em maro de 1949, ocorrem os ltimos combates. Israel amplia seus territrios em relao
ao que havia sido estabelecido pela ONU. A Jordnia incorpora a Cisjordnia, ocupada pelas suas
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tropas desde o incio do conflito, e o Egito fica com a Faixa de Gaza. A parte da Palestina destinada
pelas Naes Unidas a seus legtimos habitantes simplesmente varrida do mapa.
A derrota dos exrcitos rabes traumatiza as populaes de seus pases e abala seus regimes.
Os ganhos territoriais obtidos por Egito e Jordnia no compensam o esforo de guerra despendido
e servem apenas para mostrar ao povo que os sacrifcios no foram totalmente inteis. As
economias das naes da Liga saem da guerra enfraquecidas pelo endividamento externo. O elevado
nmero de refugiados palestinos em seus territrios uma espcie de bomba-relgio que aumenta a
fragilidade das estruturas de poder locais.
Para Israel, os prejuzos econmicos no so grandes e acabam sendo rapidamente
compensados graas s ajudas vindas dos hebreus no exterior e aos emprstimos internacionais. Se
a agricultura o setor mais prejudicado pela guerra, a indstria d sinais que para ela o conflito
funcionou mais como um estmulo do que como um obstculo.
- Ndia, acho que em seu relato voc no falou da situao em que se encontram os refugiados
palestinos, peo desejoso de conhecer o que aconteceu com esta massa enorme de pessoas que o
terror israelense havia obrigado a deixar suas terras.
A coruja me olha, levanta a asa em minha direo como quem procura deter um pedido
impaciente e diz: Tenha calma. Deixa s eu molhar a garganta que, j, j, vou falar deles ao tratar
dos anos que vo...
4. Do fim da guerra aos novos passos da resistncia palestina.
Atendendo ao pedido da minha chefa vou at cozinha. Os gestos lentos tentam prolongar
ao mximo este intervalo inesperado. Mas enquanto as mos mal acabam de pegar o copo, Ndia
lana um Voc foi buscar gua na vizinha ou ser que ainda tinha na torneira da cozinha que
acelera cada movimento.
Trs goles, um rpido passar da asa no bico e a coruja me olha radiante, totalmente
recuperada e pronta para mergulhar novamente nas suas reflexes.
- Fora, pegue logo papel e caneta que agora vou tratar com mais detalhes da situao dos
refugiados. Como dizia no final do captulo anterior, a Palestina destinada pela ONU a seus
legtimos habitantes simplesmente varrida do mapa. Se isso no bastasse, ao longo da guerra, as
foras israelenses haviam destrudo no menos de 250 dos 863 vilarejos rabes que nela se
encontravam.
O terror provocado pelos ataques militares e pelos massacres obriga cerca de 800 mil
palestinos a deixarem suas terras e a procurarem abrigo nos campos de refugiados que se formam na
Cisjordnia, Jordnia, Faixa de Gaza, Sria e Lbano, sendo que comunidades mais reduzidas se
dirigem para o Egito, Iraque e demais pases da pennsula rabe.
Em 16 de junho de 1948, o governo judaico decide bloquear a qualquer preo a volta dos
refugiados e ordena ao seu exrcito que complete a destruio dos vilarejos e dos bairros rabes das
cidades conquistadas. Ao mesmo tempo, corta as vias de acesso e zela para impedir que os
palestinos cruzem as fronteiras. Aqueles que teimam em permanecer nas proximidades de setores
estratgicos recm-ocupados pelas tropas so ameaados e forados a venderem suas terras
engrossando, assim, o nmero de exilados. Sobre os escombros das regies rabes, comeam a
nascer os novos assentamentos israelenses.
Esta situao assombrosa ganha o respaldo de uma srie de leis criadas a toque de caixa. De
acordo com estas normas, as terras dos proprietrios rabes so declaradas abandonadas e passveis
de serem expropriadas pelo Fundo Nacional Judaico que, do ponto de vista legal, quem possui a
terra de Israel para todo o povo hebreu.
Diante da gritante violao do direito universal de poder voltar aos prprios lugares de
origem, em 11 de dezembro de 1948, a Assemblia Geral das Naes Unidas aprova a Resoluo
194. Por ela os refugiados que desejarem devem ser permitidos de retornar a seus lares o mais
rapidamente possvel e de viverem em paz com seus vizinhos e devem ser pagas indenizaes a
30
ttulo de compensao pelos bens daqueles que decidirem no regressar a seus lares e por todo
bem perdido ou danificado, uma vez que, em virtude dos princpios do Direito Internacional, tal
perda ou dano deve ser reparado pelos governos ou autoridades responsveis.
- Com certeza, a ONU deve ter dobrado a vontade israelense de colocar obstculo volta dos
refugiados?, pergunto esperando uma resposta afirmativa.
- a que voc se engana!, responde seca Ndia enquanto espeta o meu ombro com a muleta.
Sob a alegao de que a entrada no pas de um grande nmero de rabes hostis seria um suicdio
para o Estado hebraico, o governo de Tel Aviv se nega a cumprir a Resoluo 194.
Diante das fortes presses internacionais, Israel chega a formular duas propostas de retorno
parcial dos refugiados no mbito de um amplo acordo de paz com os pases vizinhos. Em julho de
1949, o Estado judaico se declara pronto a acolher 100 mil deles em troca da paz com as naes de
fronteira e do compromisso destas arcarem com os outros 700 mil. A segunda proposta, no menos
indecente, a incorporao da Faixa de Gaza ao territrio israelense que, em seguida, abrigaria 200
mil refugiados.
A resposta dos governos rabes s pode ser negativa. E no porque a integrao dos
palestinos populao local seria impossvel. O que ocorre que a aceitao dos refugiados implica
em admitir a tragdia palestina como fato consumado e, ao legitimar a ocupao israelense, se
chancelaria tambm a perda definitiva dos direitos nacionais palestinos. Esta postura por parte das
naes da regio no definida s pelo fato delas quererem usar esta questo como uma arma
contra Israel, mas, sobretudo, porque refugiados e exilados se recusam a abrir mo de sua histria na
Palestina, do seu direito a terra na qual viveram durante sculos. Apesar das diferentes
possibilidades de insero legal e de obteno de outra cidadania, um palestino nunca deixa de ser e
de reafirmar sua identidade palestina.
- Sendo assim, pelo menos os povos rabes devem ter prestado todo tipo de ajuda aos campos de
refugiados que se encontram em seu territrio?
- Nada disso!, retruca Ndia sacudindo a cabea. O que voc sempre esquece a distncia entre o
discurso e a prtica dos governos da regio. Tanto na Faixa de Gaza, controlada pelo Egito, como
em Jordnia, Iraque, Sria e Lbano, os campos de refugiados funcionam, inicialmente, como uma
verdadeira priso. Sabendo que as precrias condies de vida seriam um bom caldo de cultura para
Foto de um campo de refugiados palestinos no Lbano, em 1952.
31
eventuais movimentos de resistncia, as elites locais querem evitar qualquer possibilidade de um
movimento independente dar vida a aes que atraiam as represlias israelenses. Por isso, os
refugiados so impedidos de dar declaraes, ler ou escrever sobre o conflito e de consolidar
qualquer tipo de organizao. Infringir as regras implica em correr o risco de ser preso e torturado.
nestas condies extremamente adversas que a resistncia palestina comea a dar os
primeiros passos.
Exilado no Egito, Arafat se afirma como liderana estudantil na Universidade do Cairo, onde
freqenta o curso de engenharia civil, e obtm das autoridades a permisso de lanar uma revista: A
Voz da Palestina. Dirigida dispora da guerra rabe-israelense, ela comea a ser distribuda
clandestinamente em Gaza, Jordnia, Sria, Iraque e Lbano com o objetivo de ser um instrumento
de contato e debate rumo formao de clulas militantes palestinas.
Ao mesmo tempo, setores da intelectualidade comeam a agir nos pases onde se encontram
exilados com o objetivo de convencer os governos rabes de que o retorno dos refugiados a seus
territrios de origem deve se tornar um elemento prioritrio da poltica da regio. E para isso, diante
da postura do governo de Tel Aviv, seria necessria uma interveno blica conjunta contra Israel.
Cientes das reaes das elites, os palestinos optam pelo ataque a posies israelenses a partir
dos territrios onde esto sediados. Agindo assim, esperam que Israel responda com retaliaes que
forariam os governos rabes a iniciar uma guerra contra o Estado judaico ainda que esta viesse a
ser s uma questo de honra.
- De honra?, pergunto para ter certeza de que ouvi direito.
- Sim. De honra, responde Ndia como se estivesse falando da coisa mais normal do mundo. E
percebendo a minha dificuldade em entender as razes desta colocao acrescenta: Lembra da
questo dos refugiados? Pois ento, dos 800 mil palestinos que se encontram nestas condies quase
a metade est na Jordnia, mais de 200 mil se apinham na Faixa de Gaza, outros 100 mil no Lbano
e cerca de 60 mil na Sria, isso sem contar os que moram em outros pases. A sua presena na regio
como uma ferida aberta cuja dor aumenta o ressentimento rabe na medida em que representa a
memria viva da humilhante derrota imposta por Israel.
Neste contexto, os campos de refugiados se tornam uma pedra no sapato das prprias elites
da regio na medida em que seu drama passa a ser ponto de referncia e razo de descontentamento
da prpria populao gerando presses que desestabilizam os regimes locais. A estratgia palestina
de provocar a represlia israelense, levaria o ressentimento dos povos rabes a forar uma resposta
armada por parte de seus governos nem que fosse apenas para vingar os ataques sofridos.
Mas a deciso da guerrilha de criar esta situao tem que acertar as contas com a falta de
recursos. Convencidos ou obrigados pelo desenrolar de sua ordem interna, nos primeiros anos da
dcada de 50, alguns pases rabes se dispem a fornecer armas e treinamento aos comandos
guerrilheiros na Faixa de Gaza com a condio de que a escolha dos alvos e o controle das
operaes sejam submetidos aos oficiais dos seus servios de inteligncia. O nmero de aes dos
fedayn (nome dado aos integrantes da guerrilha que significa aqueles que se sacrificam por uma
causa) aumenta entre 1954 e 1956. Boa parte de seus atos, porm, mais do que uma provocao,
acaba sendo uma resposta s incurses israelenses na Faixa de Gaza.
Controlada fundamentalmente pelo Egito, a resistncia palestina no consegue viabilizar
seus propsitos e permanece refm dos acontecimentos que se avolumam ao seu redor.
- Agora fiquei curioso. Como se comporta o governo israelense depois de sua vitria em 1948?
- Boa perguntam querido secretrio, responde Ndia com um indisfarvel sorriso de satisfao.
Pois saiba que justamente a resposta a esta sua indagao que vai me permitir descrever os
caminhos que levam ao prximo conflito armado.
- Mais um?!?
- Sim. Mais um. Mas vamos por partes.
Em primeiro lugar, necessrio reconhecer que Israel sai fortalecido do seu primeiro
enfrentamento contra as naes rabes. A prioridade do governo judaico do ps-guerra a
consolidao da economia e a rpida imigrao do maior nmero possvel de hebreus para ocupar as
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terras que, at pouco tempo atrs, eram dos palestinos. Graas forte ajuda financeira das
comunidades americanas, entre 1949 e 1952, Israel recebe e assenta cerca de 700 mil judeus.
Nos territrios ocupados, o Estado judaico chamado a lidar com uma minoria palestina de
no mais de 150 mil pessoas numa populao total de 900 mil. Na melhor das hipteses, ela
tratada como uma incgnita, e, na pior, como uma constante ameaa ordem existente. Em relao
a este grupo, o governo vai adotar medidas que criam uma situao de marginalizao e submisso
da qual vou falar mais adiante.
Entre os problemas a serem enfrentados, est o fato de que as novas fronteiras israelenses
no acompanham nenhum relevo ou outro tipo de separao natural entre os pases. Isso sem contar
que, em alguns casos, elas chegam a cortar em dois o mesmo vilarejo ou a separar grupos rabes de
seus lugares de origem ou dos familiares que, agora, esto no interior do territrio por elas
delimitado. Isso faz com que as tentativas dos povos da regio de entrarem clandestinamente no
Estado judaico sejam algo corriqueiro e um dos elementos que contribuem para elevar a tenso nas
reas de fronteira.
Entre o final de 1948 e 1949, as principais ocorrncias dizem respeito a colonos palestinos
que tentam voltar a seus locais de origem. Eles fazem isso ora para ter uma idia da situao de suas
antigas propriedades, ora para tentar recuperar parte das lavouras ou das ferramentas abandonadas
na fuga, ou, ainda, para visitar parentes e procurar reconstruir suas vidas em outra cidade dos
territrios ocupados. Tambm no so poucos os casos dos que atravessam a fronteira em busca de
pastagens para o gado ou para subtrair utenslios, cereais, animais domsticos e outros bens dos
colonos judeus recm-instalados em suas antigas terras.
- Pelo que acaba de dizer, a guerra trouxe srios problemas sociais aos palestinos. Sabendo disso,
ser que no h um mnimo de compreenso por parte de Israel?
Ndia pisca os olhos e, sorrindo, comea a sacudir a cabea. Poucos instantes depois, seus
gestos so acompanhados por um No, mas no mesmo!, que chega a dar arrepios. Acontece que
Israel s enxerga os seus interesses e ao redor deles constri e justifica todas as aes que garantem
a implantao dos mesmos ainda que a custos humanitrios altssimos. Todo o perodo aps o
conflito rabe-israelense , literalmente, aproveitado para limpar o terreno do maior nmero
possvel de palestinos. Por isso, todo rabe que tenta atravessar clandestinamente as fronteiras
recebido bala. Pouco importa se estiver se tratando de um soldado inimigo, de um pastor, de um
possvel guerrilheiro ou de um refugiado que procura voltar sua terra. O que o governo de Tel
Aviv quer evitar por todos os meios que os rabes comecem a ocupar as regies de fronteira do
lado israelense elevando novamente a sua presena em territrio judaico. A coisa to escancarada
que, de acordo com algumas estimativas, entre 1949 e 1956, os soldados encarregados desta tarefa
matam mais de 4 mil palestinos, a maior parte deles desarmados.
Se isso no bastasse, Israel comea a expulsar todos os rabes suspeitos de ter entrado
ilegalmente no pas. E aqui o show de arbitrariedades no diz respeito somente escolha de quem
deve ser deportado, mas tambm ao tratamento que lhe reservado. E a reconhecer isso so os
prprios hebreus.
Por exemplo, em 1950, um morador de um assentamento judaico presencia a passagem de
um comboio que se dirige fronteira sul do pas. Assustado pelo tratamento dispensado aos
supostos clandestinos, descreve a cena com palavras que no deixam dvidas: Espervamos um
meio de transporte perto de um dos grandes campos militares (...). De repente, aparecem dois
grandes caminhes carregados de rabes com os olhos vendados, (homens, mulheres e crianas).
Alguns dos soldados que os vigiavam desceram para beber e comer alguma coisa enquanto os
demais ficavam vigiando. Quem so aqueles rabes?, perguntamos. Clandestinos, nos
responderam que esto indo para a fronteira. Em cima dos caminhes, os rabes eram
pisoteados de forma desumana. Em seguida, um soldado chamou um colega, especialista no
assunto, para pr ordem. Aqueles de ns que estavam perto do caminho no tinham visto nenhum
gesto agressivo por parte dos rabes, que estavam sentados cheios de medo, quase que amontoados
uns sobre os outros. Descobrimos logo o que aqueles militares entendiam por pr ordem. O
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especialista subiu num caminho e comeou a bater nos olhos vendados dos rabes; terminado o
servio, comeou a caminhar sobre eles e deu tudo por encerrado com uma sonora gargalhada,
satisfeito com o seu gesto de herosmo. Aquele espetculo vergonhoso foi um trauma para todos
ns.
18
Situaes como esta se repetem inmeras vezes entre 1949 e 1956 quando mais de 10 mil
rabes so expulsos do territrio israelense.
- Mas, Ndia, ser que isso no se deve tambm as aes dos fedayn ao longo da fronteira do
Estado judaico?, questiono na tentativa de encontrar uma explicao racional para tamanhos
absurdos.
- A desculpa boa, mas no cola, diz a coruja apontando a muleta em minha direo. Acontece
que, entre 1949 e 1953, so muitas as infiltraes em territrio israelense vindas da Jordnia e da
Faixa de Gaza, mas raramente tm a finalidade de realizar atentados. A idia pela qual clandestino
sinnimo de terrorista contribui para legitimar a ascenso das atrocidades e justificar as represlias
contra os vilarejos rabes mais prximos das linhas de fronteira. Os ataques dos fedayn apenas
acirram esta situao. Em 14 de outubro de 1959, por exemplo, Ariel Sharon, na poca major de
uma unidade encarregada de realizar represlias noturnas, ordena a seus homens de mandar pelos
ares um certo nmero de casas do vilarejo de Qibya. Resultado da ao: pelo menos 60 pessoas
assassinadas a sangue frio.
Ao desvendar as conturbadas linhas desta histria, os elementos do clima de rancor
alimentado por Israel aparecem em toda a sua crueldade. O fato de privar os rabes nativos de
qualquer meio legal para fazer valer os seus direitos histricos, faz com que as aes do Estado
judaico joguem cada vez mais lenha na fogueira da guerra e do terror.
- Se bem me lembro, voc mesma disse que a estratgia da resistncia palestina a de provocar
uma guerra entre Israel e os pases rabes. Como possvel relacionar isso ao que acaba de dizer?.
- Bom, vamos retomar algumas idias. Aps o conflito de 48, os palestinos esto sem um nico
metro quadrado da terra destinada pela ONU ao seu Estado, boa parte de seus vilarejos est arrasada
e ocupada pelos hebreus, contam com 800 mil refugiados e no tm recursos para enfrentar as
foras judaicas. Ao mesmo tempo, a reao israelense no deixa a eles outro caminho a no ser o de
apostar numa guerra de libertao do seu territrio. Graas a ela, os lderes rabes, que no
reconhecem a existncia de Israel, e no param de amea-lo verbalmente, se encarregariam de dar
passos para resolver a questo palestina atravs do uso da fora.
assim que, aps as primeiras tentativas de dilogo entre Israel e o Egito nos primrdios
dos anos 50, as relaes entre os dois pases se complicam quando JamalAbd Al-Nasser se afirma
como chefe supremo do governo egpcio. Suas ambies de tornar-se uma liderana no mundo
rabe e muulmano repousam na necessidade de pr fim hegemonia britnica no Egito e em
afirmar-se como ameaa concreta para os hebreus, posio esta que aumenta as esperanas
palestinas.
Neste contexto, aps uma intensa campanha poltica e de guerrilha contra a presena das
tropas britnicas no Egito, entre 1952-1954, Londres chega a um acordo com o governo do Cairo,
pelo qual se compromete a retirar suas bases militares da regio de Suez.
Israel teme que, com as sada dos soldados ingleses, cuja presena poderia representar um
obstculo em caso de ataque egpcio ao seu territrio, o prximo item da agenda de Nasser seja a
questo palestina.
A partir da segunda metade de 1955, a relao entre os dois pases se torna cada vez mais
tensa com incurses e provocaes de pequenos grupos armados tanto do lado egpcio como
israelense. Inicialmente, as tropas judaicas no tm grandes dificuldades em contra-arrestar e retaliar
as aes dos comandos fedayn e do exrcito do Cairo. Mas as coisas se complicam quando, em 27
de setembro de 1955, o Egito anuncia um acordo com a Theco-Eslovquia (na verdade com a
18
Benny Morris, Vittime, pg. 347-348.
34
URSS) pelo qual, em menos de um ano, o pas receberia equipamento blico suficiente para alterar
o equilbrio militar da regio.
Temendo o pior, o governo de Tel Aviv prepara sua resposta planejando a compra de
grandes quantidades de armas e estudando a possibilidade de uma guerra preventiva enquanto o
Egito encontra-se relativamente fraco. Mas o primeiro obstculo a este plano colocado pela
resposta estadunidense. Decididos a no atrair a inimizade do mundo rabe e a reconduzir o Egito
para a rea de influncia ocidental, os americanos procuram ganhar tempo e s em maro de 1956
informam o governo israelense de que no lhe venderiam o material blico solicitado.
Pressentindo este desfecho, Ben Gurion e Shimon Peres comeam a negociar com a Frana
e, em novembro de 1955, assinam com ela um contrato de fornecimento de tanques, blindados e
avies de combate. O acordo s possvel porque Nasser, ao proteger e abastecer de armas os
rebeldes da Frente de Libertao Nacional que lutam pelo fim da colonizao francesa na Arglia,
acaba de ganhar a inimizade do governo de Paris, interessado em impor-lhe uma derrota.
Entre junho e outubro de 1956, h uma srie de encontros secretos entre representantes da
Frana e de Israel aos quais se une a Gr Bretanha, contrariada pela nacionalizao unilateral de
Canal de Suez, promovida pelo Egito no final de julho do mesmo ano. Em 24 de outubro, o acordo
final est pronto: Paris e Londres se encarregariam de retomar o controle do Canal e reativar os
quartis abandonados pelos britnicos 4 meses antes. A Tel Aviv caberia a tarefa de aniquilar as
foras egpcias no Sinai e as bases dos fedayn na Faixa de Gaza, anexando os territrios
conquistados. Alm disso, Israel se compromete a no atacar a Jordnia e a Gro Bretanha a no
apoiar militarmente o Estado rabe caso ele resolva intervir ao lado dos egpcios.
A estratgia de ataque simples: Israel iria invadir o Egito pela pennsula do Sinai
ameaando a regio do canal. Britnicos e franceses interviriam num segundo momento para separar
os combatentes e proteger o Canal de Suez.
Em 29 de outubro de 1956, 400 pra-quedistas israelenses so lanados na regio do canal
enquanto o exrcito judaico invade o Sinai isolando as tropas egpcias na Faixa de Gaza. No dia
seguinte, Frana e Inglaterra lanam um ultimato ao Egito e, aps a recusa de Nasser em aceitar seus
termos, entram em ao aniquilando a fora area do Cairo em menos de 48 horas.
Entre os dias 2 e 3 de novembro, a Faixa de Gaza ocupada pelos soldados israelenses
enquanto os destacamentos egpcios no Sinai recuam na tentativa de escapar da destruio, dada
como certa. Os dias que seguem so caracterizados por um banho e sangue. Alm de executarem os
soldados egpcios capturados na retirada, as foras armadas dos hebreus massacram cerca de 500
civis palestinos durante as operaes em Gaza.
A invaso da regio do canal pelas tropas anglo-francesas comea em 5 de novembro, mas
dois dias depois bloqueada por uma srie de fatores: as presses da ONU, as ameaas de retaliao
econmica vindas dos Estados Unidos e o fato de egpcios e israelenses terem assinado o cessar-
fogo.
A crise de Suez acaba com o prestigio de Frana e Inglaterra no Oriente Mdio e levanta a
suspeita de que as duas naes cultivam novas ambies imperialistas sobre a pennsula rabe. Os
EUA aproveitam do clima de desconfiana e trabalham para ampliar sua influncia na regio. Ao
mesmo tempo, a Unio Sovitica, que havia fornecido armas ao Egito, se ergue a protetora dos
estados rabes progressistas aos quais disponibiliza linhas de crdito, equipamento blico e
assessores militares.
Cessados os enfrentamentos, a retirada do exrcito israelense dos territrios ocupados lenta
e s ocorre devido s fortssimas presses internacionais. Ao deixar o Sinai na ltima semana de
novembro, as tropas judaicas adotam a poltica de terra arrasada. Instalaes militares egpcias so
completamente destrudas, as ferrovias so desmanteladas e o material levado para Israel; algumas
estradas so dinamitadas e inutilizadas enquanto outras so transformadas num verdadeiro campo
minado.
Em maro de 1957, a Faixa de Gaza devolvida ao Egito com a condio de que este
deixaria os navios israelenses transitar pelo golfo de caba e pelo Canal de Suez.
35
- At que, desta vez, os estragos no foram to graves, comento na tentativa de fazer um primeiro
balano do conflito.
Ndia pra. Seu rosto assume uma expresso sria. Em silncio, a asa levanta a muleta
enquanto, aos pulos, a ave se aproxima da mo esquerda. A coruja permanece imvel por alguns
instantes. Um clima de suspense se estabelece entre ns dois, quando...
- Ai! Esta doeu!, grito a ter a ponta dos dedos atingida pelo graveto que acaba de servir de
palmatria.
- Lentes de mais de cinco graus em cada olho, crebro de humano que pousa de animal inteligente,
ttulo de estudo superior e total incapacidade de enxergar a um palmo do prprio nariz. Esta sim que
uma maravilha da natureza!, comenta a coruja colocando a outra asa atrs das costas e se
distanciando sem dar bola s minhas reclamaes.
A vontade de mand-la praquele lugar grande. Mas os lbios ainda esto ensaiando uma
resposta altura quando um Agora preste muita ateno!, pronunciado em alto e bom som, corta
qualquer possibilidade de revide. Sem virar o corpo em minha direo, Ndia respira fundo e
indicando o nmero um com a ponta da asa d incio a que parece ser uma lista das conseqncias
da crise de Suez. Em primeiro lugar, a ao levada adiante por Frana, Gr Bretanha e Israel
levanta uma onda de radicalismo em todos os pases rabes que recoloca na ordem do dia a
necessidade dos governos unificarem suas foras sob a direo de Nasser.
Segundo: depois da crise, as polticas pr-ocidente de Iraque, Jordnia e Lbano se tornam
um fator que alimenta a desconfiana da populao nas elites locais e, de conseqncia, a
desestabilizao da ordem interna. assim que, em 14 de julho de 1958, as foras armadas do
Iraque do um golpe de estado e assumem o poder. Pouco mais de um ano antes, na Jordnia, o rei
Hussein havia conseguido driblar o descontentamento dos militares golpistas que contavam com o
apoio do Egito. Mas, agora, sob o efeito das notcias que vm do Iraque se v obrigado a pedir ajuda
s tropas britnicas para conter os ventos de desestabilizao do regime que sopram no pas.
Ainda em 1958, aps a criao da Repblica rabe Unida (unio poltica de Egito e Sria), o
Lbano, tradicional aliado da Frana, comea a sentir os efeitos das mudanas que percorrem a
regio. Contando com o financiamento egpcio, as foras radicais libanesas se fortalecem. Com elas,
as lideranas muulmanas e de esquerda pedem que o pas integre a Repblica rabe Unida (RAU),
mas encontram a oposio dos cristos. Os enfrentamentos entre os dois grupos se agravam e
arrastam o pas beira de uma guerra civil.
Assustado, o governo libans, dominado pelos cristos, acusa a RAU de fomentar as
desordens e, aps o golpe no Iraque, no hesita em pedir a interveno estadunidense para garantir a
manuteno do regime. De julho a outubro de 1958, a presena dos marines americanos em Beirute
permite a superao da fase mais aguda da crise institucional. Nas eleies que ocorrem em seguida,
o general Fuad Shihab assume a presidncia e forma um governo que, para acalmar os nimos
tende a apoiar as posies de Nasser.
Na linha de fronteira entre Egito e Israel a aparente calmaria mantida pela presena das
foras das Naes Unidas. Temendo a retaliao do exrcito judaico, o governo do Cairo retira o
apoio resistncia palestina.
Ndia abaixa a cabea. Em silncio, ajeita as plumas do peito com ar de quem espera uma
reao por parte do seu ouvinte. Decidido a me recuperar da desastrada interveno anterior cutuco
com a caneta o graveto e, em voz baixa, comento: Voc esqueceu de dizer o que vai acontecer com
a resistncia palestina....
- Fiz isso s pra ver se est acordado, retruca Ndia sem parar de se ajeitar. Desafiada pela caneta,
a muleta responde com trs batidas que parecem anunciar uma nova investida da coruja. Depois de
um solene Muito bem... vejamos... a ave suspira profundamente e retoma o seu relato: Acontece
que aps a crise de Suez, as aes dos guerrilheiros palestinos tendem a desaparecer. O fracasso da
estratgia de provocar uma guerra capaz de unir os povos rabes contra Israel, a retirada dos
recursos fornecidos pelo Egito e a determinao de Nasser de impedir suas aes foram os lderes
fedayn a reverem seus planos.
36
Entre 1956 e 1959, este processo leva criao de Al Fatah (vitria, em rabe).
19
Seus
militantes definem a violncia revolucionria das massas populares como o nico caminho para
libertar a ptria da ocupao sionista. Isso significa que a ao de Al Fatah deve ser independente
dos partidos e das naes rabes da regio.
- Voc est querendo dizer que eles querem massacrar os judeus?, pergunto desconcertado.
- No seu bobo. No se trata de responder aos absurdos do passado com novos massacres. Adu
Salam, membro da direo de Al Fatah, deixa isso bem claro ao explicitar o que o seu grupo quer
dizer quando prope a destruio do Estado sionista: Por favor, preste ateno, eu disse eliminar o
Estado sionista e no o povo judeu. muito diferente. Queremos a criao de um Estado
democrtico na Palestina, onde judeus, cristos e muulmanos tenham o direito de viver em paz.
20
Esta formulao permite integrar no interior da organizao uma ampla frente de tendncias
e posies da resistncia palestina que flutuam entre o marxismo e o nacionalismo.
Ainda em 1959, Al Fatah cria a revista Nossa Palestina. Atravs dela, procura alertar o
maior nmero possvel de compatriotas quanto ao erro em que incorrem ao esperar de Nasser e dos
governos rabes um compromisso srio com a luta pela libertao do pas. Ao mesmo tempo, tenta
convenc-los de que a nica alternativa possvel consiste em fazer com que os prprios palestinos
assumam a luta por sua libertao.
Divulgada na clandestinidade, a revista considerada altamente subversiva pelas naes da
regio. Preocupados com a possibilidade de perder o controle da situao, Egito e Sria ordenam a
seus servios secretos que tomem todas as medidas necessrias para impedir sua distribuio. Na
caa s bruxas que se desenvolve a partir desta deciso, no so poucos os refugiados palestinos a
serem presos e torturados pelo simples fato de terem sido encontrados lendo a revista.
Mas o que poderia ser um obstculo para o avano de Al Fatah, acaba arranhando o clima de
confiana gerado pela criao da RAU. As prises, os interrogatrios e as torturas comprovam as
teses da revista e mostram que j existe uma organizao palestina clandestina e independente, o
que facilita a criao de novos ncleos no interior dos campos de refugiados.
Em 1961, a Repblica rabe Unida se desfaz. A diviso de Sria e Egito questiona ainda
mais a posio dominante pela qual a unidade rabe o elemento central para a libertao da
Palestina.
Apesar das inmeras dificuldades, a ao clandestina de Al Fatah no perodo que vai de
1956 a 1967 consegue evitar que a prpria questo palestina seja varrida debaixo do tapete e acabe
sendo esquecida tanto pelos governos rabes como pelos demais pases. Ao mesmo tempo, seus
lderes viabilizam a criao de instituies democrticas, incluindo uma espcie de parlamento
clandestino no exlio.
- Ser que agora os governos rabes vo oferecer um apoio mais consistente?
- Nada disso. Em janeiro de 1964, temendo que a ao da resistncia leve o Egito a uma nova
guerra contra Israel, Nasser procura minar as bases de Al Fatah criando a Organizao para a
Libertao da Palestina (OLP). Com ela, os palestinos ganham um frum oficial no qual expressar
seus anseios e formular propostas, sendo que a ltima palavra, de qualquer forma, cabe a Nasser.
As naes rabes apiam a proposta do Cairo. E, para mostrar que a coisa seria,
estabelecem que a OLP deve ter seu prprio brao armado, o Exrcito Palestino de Libertao
(EPL), a ser criado em Egito, Sria, Jordnia e Lbano e cujas unidades estariam submetidas s suas
foras armadas.
Parece contraditrio, mas o fato que, para alm dos discursos inflamados, as elites destes
pases j aceitam a criao do Estado de Israel como fato consumado. O problema que a paz com
os judeus e a manuteno da ordem interna dependem, entre outras coisas de sua capacidade de
evitar o ressurgimento do nacionalismo palestino. A aposta numa OLP facilmente manipulvel,
19
A palavra Al Fatah composta pelas iniciais invertidas de Haramet Al Tahrir Al Falestin (Movimento para a
Libertao da Palestina).
20
Helena Salem, Palestinos os novos judeus, pg. 61-62.
37
portanto, vista como a sada possvel para, de um lado, esfriar os nimos da resistncia e, de outro,
aparentar um compromisso srio com a causa palestina.
A falta de razes profundas na vida dos campos de refugiados faz com que a criao da OLP
leve ao desmonte de boa parte das clulas de Al Fatah. Animados pelo renovado esprito da unidade
rabe, seus comandantes militares migram para o EPL por acreditar que, graas a ele, a misso de
libertar a Palestina seria realizada em tempos bem menores.
Com a desintegrao de sua rede clandestina, Arafat percebe que ou Al Fatah comea a
realizar aes armadas como forma de restabelecer a identidade palestina e questionar o imobilismo
da OLP ou estaria perdida para sempre. Neste sentido, a nica sada possvel a de fortalecer suas
bases na Sria e atacar Israel a partir deste territrio. assim que, no incio de 1965, a guerrilha
realiza algumas operaes usando o nome de Al Assifa (a tormenta) como disfarce para proteger os
seus membros.
Diante dos acontecimentos, Israel responsabiliza os pases rabes pelas atividades terroristas
dos palestinos. Surpresos, Egito, Jordnia e Lbano ordenam a seus servios secretos que procurem
as clulas guerrilheiras e prendam seus lderes.
O aspecto mais curioso desta histria que a salvar Al Fatah so justamente as ameaas de
Israel e a caada promovida pelos pases rabes. Ao falar deste momento, Abu Yihad, um dos
principais lderes da organizao, diz: Se os dirigentes israelenses tivessem se mantido em silncio
diante das nossas primeiras aes militares, os governos rabes e seus servios de inteligncia
teriam acabado conosco em pouco tempo. De incio, os jornais rabes eram proibidos de publicar
nossos comunicados militares. Editores e jornalistas tinham instrues neste sentido, e, alm do
mais, no acreditavam no que dizamos. Para eles, a idia de que um punhado de palestinos
estivesse atacando Israel sem o apoio dos governos rabes era tamanha loucura que no podia ser
expressa com palavras. Assim, ningum sabia de ns. No h dvidas de que estvamos metidos
numa bela confuso. Sem propaganda, no podamos atrair a ateno do nosso povo e, menos
ainda, do povo rabe. Sem propaganda, no teramos conseguido sobreviver tentativa rabe de
acabar conosco. Mas o Primeiro Ministro e Israel, Levi Eshkol, fez um discurso no qual ameaava
os governos rabes e confirmava nossas atividades. Foi a que as coisas mudaram para ns. Israel
nos salvou.
21
A confirmao israelense de que algo est acontecendo e a perseguio do mundo rabe,
levam um crescente nmero de pessoas a se colocar questes incmodas: Quem so estes palestinos
que se atrevem a atacar Israel? Ser que eles contam com o apoio secreto de Nasser e de outros
dirigentes rabes, ou esto sozinhos? Seja como for, estes no falam, fazem.
- desta vez que os lderes rabes mudam de postura?, pergunto cada vez mais intrigado com os
inesperados desdobramentos do relato.
- Errou, de novo!, responde Ndia me deixando ainda mais desconcertado. As elites rabes
percebem que estas interrogaes podem fazer com que a situao fuja do seu controle. Alm de
apertar o cerco em torno de Al Fatah, comeam uma ampla campanha para desqualificar o
movimento palestino acusando-o de ser financiado pelos servios secretos ocidentais, interessados
em levar os rabes a uma guerra da qual sairiam destroados.
Ao ver que sua propaganda no alcana os objetivos desejados, Egito e Lbano apressam o
passo no caminho da represso e da tortura prendendo e interrogando inmeros suspeitos. O
problema que ningum conhece Al Assifa e isso acaba dificultando a ao policial.
Na Jordnia, a mo de ferro do rei faz sentir todo o seu peso somente aps as represlias
israelenses em Qalqilya, Jenin e Chuna. E isso no porque a elite se negasse a fazer o dever de casa
junto aos colegas, mas to somente devido ao receio de que uma onda de represso aberta e
injustificada transformasse em inimigos os numerosos palestinos presentes em seu territrio.
21
Alan Hart, Arafat biografia poltica, pg. 151.
38
Em setembro de 1965, os servios secretos rabes esto prestes a pr as mos no grupo
dirigente de Al Fatah e, em novembro, a organizao j no tem recursos para manter suas
atividades.
Se isso no bastasse, em fevereiro de 1966, a Sria sofre um golpe de estado. Para alm dos
discursos inflamados dos novos governantes, a realidade mostra claramente que o governo est
decidido a evitar uma guerra contra Israel e quer que Al Fatah se torne seu instrumento para tirar o
Egito da liderana dos povos rabes. Ao recusar este papel, a guerrilha palestina se torna alvo fcil
do governo de Damasco. Em seu lugar, o partido Baath, agora no poder, cria o grupo chamado Al
Saika (o raio) cujo programa prope a criao de um Estado rabe, unitrio e democrtico na
Palestina, rumo formao de uma grande nao rabe socialista (no estilo da Sria) em todo o
Oriente Mdio.
Fortemente nacionalista, Al Saika comea a agir abertamente em 1967 a partir do territrio
jordaniano. At 1970, o grupo influencia a poltica da prpria Jordnia e a resistncia que se
desenvolve nos campos de refugiados de El Ouahdah, Zizya e El Hussein. Em seguida, vai perdendo
espao e fica mais limitado Sria. Em 1968, seus quadros dirigentes passam a integrar a OLP.
- Pelo visto, isso vai acalmar as relaes com Israel....
- No se iluda com esta possibilidade. Ao mesmo tempo em que a elite rabe no titubeia em
reprimir Al Fatah, ela tem plena conscincia de que precisa continuar hostilizando Israel para
garantir um mnimo de apoio por parte de seus povos. assim que, nos anos 60, o antagonismo
entre as naes da regio e o governo de Tel Aviv passa por uma nova fase de radicalizao.
Apontado pelos rabes como brao armado do imperialismo no Oriente Mdio, Israel volta a
ser objeto de discursos e intervenes que propem sua aniquilao. Some isso s tenses nas
regies de fronteira e no ter nenhuma dificuldade em ver que estamos indo a passos rpidos rumo
a um novo enfrentamento.
Por isso, pare de me olhar com esta cara de peixe morto, arrume seu queixo cado e sacuda
seu espanto porque, daqui a pouco, vou falar da...
5. A guerra dos seis dias.
Cansado, o corpo d sinais de que precisa de uma trgua e, vagarosamente, comea a afastar
a cadeira da mesa. Percebendo seus inslitos movimentos, Ndia arregala os olhos e lana um
Aonde voc pensa que vai?que paralisa seus msculos.
Inconformado, o rosto assume uma expresso de revolta e o silncio sublinha a necessidade
de uma pausa nos trabalhos. De olhos entreabertos, a coruja assume um ar de severa compreenso:
J sei, j sei, est pedindo um tempo para uma rpida espreguiada. Dois minutos e quero v-lo de
novo ao seu lugar!, diz ao dirigir o olhar para o relgio de parede.
- Voc no est levando em considerao os meus direitos de secretrio!, afirmo categrico na
esperana de conseguir algo melhor.
Ndia comea a rir, balana a cabea e acompanhando meus gestos de rabo de olho, no
deixa por menos: Como se eu no conhecesse cada uma de suas artimanhas para sair de fininho e
deixar tudo pra depois.... Em seguida, sobe num livro e, passados alguns instantes, comea uma
irritante contagem regressiva: 10, 9, 8, 7....
- Entendi, estou indo....
- Tempo esgotado!, diz a coruja com ar de satisfao. Depois aponta a muleta para a cadeira onde
o corpo, sem pressa, se acomoda. Ao perceber que j pode dar incio ao relato, Ndia levanta a
cabea, limpa a garganta e, com voz solene, proclama: Antecedentes da Guerra dos Seis Dias. E,
concentrada no novo assunto, continua: No final de 1963, Israel avisa Sria e Jordnia que, em
breve, vai bombear parte da gua do chamado Mar da Galilia para o centro e o sul do pas.
Temendo que a construo do sistema de irrigao possa dar vida a novos assentamentos e
reduza a j escassa quantidade do precioso lquido disposio dos dois pases, a cpula rabe,
reunida no Cairo em janeiro de 1964, recebe o recado como uma declarao de guerra. Em resposta,
39
a Sria apresenta um estudo para desviar o curso do rio Jordo a norte do Mar da Galilia, rumo ao
interior do seu territrio. Com esta medida, a Jordnia continuaria tende acesso gua, mas Israel s
poderia contar com um volume bem menor, comprometendo o abastecimento de suas cidades e a
produo dos assentamentos que dele dependem.
O projeto aumenta a tenso entre os dois pases e o governo de Tel Aviv eleva a
concentrao de tropas ao longo da fronteira com a Sria. Enfrentamentos de pequeno porte
comeam a se tornar corriqueiros e aumentam nos primeiros meses de 1967 quando, ao lavrarem
seus campos, os colonos judeus ultrapassam a linha de fronteira para expandir o tamanho de suas
propriedades.
Diante dos acontecimentos, Nasser aumenta a presena do exrcito egpcio no Sinai como
forma de dissuadir o Estado judaico quanto a uma possvel invaso do aliado rabe. Entre 15 e 18
de maio de 1967, o governo do Cairo tenta forar a barra e pede o afastamento dos 3 mil e 400
homens das foras de segurana da ONU destacados para as posies do Sinai e da Faixa de Gaza.
Em seguida, fecha o acesso dos petroleiros e demais navios judaicos a Elat, um dos principais
portos de Israel.
O que havia sido pensado como um gesto de ostentao do poder de fogo das foras egpcias
acaba provocando uma crise poltico-militar.
Sentindo-se ameaado, Israel comea a reagir. At o final de maio, suas tropas j esto
prontas para a guerra. Informado dos preparativos, o governo dos Estados Unidos comunica a Tel
Aviv que, mesmo condenando a ao dos egpcios como ilegal e desastrosa para a paz, ele se ope
a qualquer iniciativa unilateral.
Nos dias seguintes, o clima de tenso j no permite discernir a encenao dos reais
preparativos para a guerra. Em 30 de maio, Egito e Jordnia assinam um tratado de defesa recproca
e, pouco depois, a vez do Iraque fazer o mesmo. A crise parece concretizar o antigo sonho da
unidade rabe que, por sua vez, alimenta a euforia popular, convencida de que chegou a hora da
vingana. Os noticirios de rdio Damasco divulgam repetidamente uma mensagem que dispensa
qualquer comentrio: Povos rabes, chegou o seu dia. Corram aos campos de batalha. (...) Digam a
eles que enforcaremos o ltimo soldado imperialista com as tripas do ltimo sionista.
22
Com as sadas diplomticas se fechando uma aps a outra, Washington d carta branca a
Israel.
- Se eu entendi como andam as coisas por aquelas bandas, a guerra deve estar prxima, expresso
sem medo de errar.
- Na mosca!
- Viu como estou ficando bom em prever a evoluo dos acontecimentos?, me aventuro a dizer
com ar de superioridade.
Sem perder a pose, Ndia me devolve um Tambm, em situaes como esta, difcil errar
o alvo!, que faz meu ego baixar as orelhas e voltar necessria humildade dos aprendizes. Em
seguida, a coruja pisca os olhos e segurando o graveto-muleta como uma espada pronta para o
combate diz: Sabendo da inferioridade dos prprios equipamentos blicos, Israel opta por no
deixar ao Egito a chance de dar o primeiro golpe.
Na manh do dia 5 de junho de 1967, a fora area judaica ataca de surpresa as bases
militares egpcias inutilizando as pistas de pouso e destruindo 304 avies de combate estacionados
em suas proximidades. Na parte da tarde, os ataques da aviao israelense atingem alvos na Sria,
Jordnia e Iraque. At o fim do dia sero mais 91 caas destrudos.
Anulada qualquer possibilidade dos pases rabes poderem contar com seus avies militares
e com sua fora area praticamente intacta, Israel comea o ataque por terra. Suas tropas avanam
pelo Sinai rumo a Canal de Suez, ocupam a Faixa de Gaza, as colinas de Golan (na fronteira com a
Sria) e entram na Cisjordnia.
No dia 10, a vitria israelense fato consumado.
22
Benny Morris, Vittime, pg. 392.
40
Devido poltica de terra arrasada do exrcito judaico, a guerra deixa um pesado rastro de
destruio em territrio rabe.
A cidade de Qalqilya e vrios vilarejos da Cisjordnia so arrasados. Jeric atingida pelos
combates que obrigam 70 mil pessoas a deixarem suas casas. Aproveitando da situao, as foras
hebraicas transformam Mughabi, bairro muulmano de Jerusalm, num amontoado de escombros.
A contas feitas, cerca de 250 mil palestinos so expulsos da Cisjordnia e da Faixa de Gaza.
A eles se somam outros 90 mil moradores da Sria obrigados a deixarem as colinas de Golan. Estes
contingentes vo tornar ainda mais precria a j difcil situao dos campos de refugiados.
- E quanto a Israel?
- A Guerra dos Seis Dias coloca o pas no centro das atenes mundiais. Os Estados Unidos
comeam a tratar o Estado judaico como potncia regional e precioso aliado na disputa com a Unio
Sovitica pela hegemonia poltico-militar no Oriente Mdio.
Em termos de ganhos territoriais, os
israelenses ocupam toda a pennsula do Sinai at o
Canal de Suez, a Faixa de Gaza, a Cisjordnia, e
as colinas de Golan que ampliam as possibilidades
de controle do rio Jordo.
O verdadeiro desafio agora transformar o
triunfo militar em sucesso poltico, negociando a
paz e o reconhecimento oficial do seu Estado por
parte dos pases rabes em troca da concesso de
territrios recm-ocupados.
Mas esta postura sugerida por alguns
ministros no unnime nem no interior do
prprio governo nem da sociedade israelense. Em
setembro de 1967, setores importantes ligados a
tendncias nacionalistas, fundam o Movimento da
Terra de Israel cujo objetivo promover a rpida
instalao de novos assentamentos onde o exrcito
havia varrido os sinais da presena rabe. Sob o impacto de renovados sentimentos messinicos e
nacionalistas, inmeros hebreus se dirigem s regies recm-ocupadas em busca de terras para as
novas colnias.
No pense que este processo casual ou fruto de uma reao popular espontnea. Na
verdade, ele conta com o apoio explcito de instncias governamentais. Em quase todos os casos,
alm da autorizao legal, o governo fornece todo o apoio necessrio para o sucesso dos novos
assentamentos: soldados para proteger construes e lavouras, geradores de energia eltrica,
caminhes-pipa para o abastecimento de gua, emprstimos com baixas taxas de juro, ou a fundo
perdido, e todos os recursos capazes de garantir o processo de auto-sustentao das novas colnias.
assim que, motivados pela construo do Grande Israel, milhares de hebreus se transferem
para as regies ocupadas durante a guerra.
- Pelo visto, a vida dos palestinos vai virar um inferno.
- Se no for isso, falta pouco, comenta Ndia em tom nada animador. Acontece que ao lado de
medidas que garantem a liberdade de acesso aos lugares sagrados da cidade de Jerusalm, Israel
impe uma administrao militar nas reas sob o seu controle. Nelas implementa e mantm uma
forte estrutura repressiva que busca impossibilitar o surgimento de qualquer reao adversa.
Para piorar as coisas, no segundo semestre de 1967, muitas terras so confiscadas a seus
antigos donos e milhares de palestinos, vtimas do desemprego, da insegurana e da piora
sistemtica de suas condies de vida, se vem obrigados a migrar. Aos que ficam, a administrao
judaica nega o acesso aos financiamentos e gua, cria obstculos implantao de novas
indstrias e no perde a chance de dificultar ao mximo a vida dos antigos moradores. assim que,
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entre 100 e 150 mil palestinos, no tm outra opo a no ser a de se tornar fora de trabalho barata
e duramente explorada nos empreendimentos judaicos.
Ao lado destas medidas, Israel adota outras que visam apagar a memria e a identidade do
povo. O pouco ensino destinado aos palestinos reestruturado e expurgado dos contedos
considerados contrrios poltica do Estado judaico. Uma censura eficiente submete qualquer
publicao e meio de comunicao a um rgido controle das autoridades. Centenas de obras
literrias so feitas desaparecer e nem mesmo o Mercador de Veneza de Shakespeare escapa da
acusao de anti-semitismo.
A implantao destas medidas aumenta o dio dos palestinos. Suas primeiras manifestaes
de descontentamento ocorrem em julho de 1967 atravs de pequenos protestos e pichaes. Entre
agosto e setembro, so realizadas vrias greves dos setores de transporte e comrcio varejista nas
quais manifestantes armados de pedras enfrentam soldados israelenses.
A reao do governo judaico dura: imposio do toque de recolher, suspenso dos
transportes pblicos, fechamento das lojas que haviam aderido aos protestos, bloqueios nas estradas,
mandatos de busca realizados a qualquer hora do dia e da noite e toda espcie de ao intimidatria.
Some isso delao, tortura, s sentenas sumrias e desinformao e no ter nenhuma
dificuldade em perceber que a aparente situao de normalidade nas regies ocupadas se mantm s
custas da aplicao quotidiana de medidas repressivas.
Alm disso, a manuteno de um nvel relativamente baixo de resistncia civil se baseia
tambm na cooptao de setores da sociedade palestina. Licenas comerciais, alvars de construo,
permisses para atravessar os postos de controle e at mesmo os poucos empregos disponveis so
distribudos de forma seletiva a quantos se dispem a colaborar com Israel.
- Ndia, confesso que este captulo est me deixando perplexo e desconcertado. Mas agora eu
queria que voc falasse alguma coisa sobre os palestinos que j moravam em territrio israelense
antes de 1967. Ser que eles recebem o mesmo tratamento reservado aos compatriotas dos
territrios recm-ocupados?
- Com eles as coisas so um pouco diferentes..., responde enigmtica a coruja.
- Ainda bem..., murmuro satisfeito em ver que nem tudo parece estar to ruim assim.
Mas a breve sensao de alvio bruscamente interrompida por um Se eu fosse voc no
ficaria to animado..., que traz de volta o gosto amargo da realidade.
- Como assim? Ser que nem em Israel os palestinos conseguem ter sossego?
- Se voc lembra da histria que nos trouxe at aqui, no vai ter nenhuma dificuldade em entender
que o governo de Tel Aviv mantm estes palestinos numa situao de apartheid. Com a
proclamao do Estado de Israel, em 1948, os no-hebreus que vivem em seu territrio vem seus
direitos serem sistematicamente reduzidos em relao aos que detm a cidadania plena. Explorados
como fora de trabalho barata pelos judeus, moram em bairros dormitrio onde, em geral, partilham
uma crescente situao de pobreza. J antes de 1967, os rabes de Israel so submetidos s regras de
um regime de ocupao militar criado para controlar, dobrar, manipular, aterrorizar e interferir em
cada aspecto de suas vidas, do nascimento at a morte.
Alm de serem objeto de constante desconfiana, as autoridades os consideram indivduos
aos quais necessrio impedir o desenvolvimento de toda forma de conscincia nacional que
represente uma ameaa ordem existente. Mesmo parecendo exagero de minha parte, d pra dizer
que todo palestino tratado como filhote de cobra: til, mas extremamente perigoso. Por isso, o
Estado no hesita em implantar todas as medidas que possam lev-lo a conformar-se com sua
situao de inferioridade e de humilhante dependncia de suas instituies.
Para ter uma idia do que isso significa, basta pensar que no final dos anos 60, o territrio de
Israel conta com uma populao de 400 mil rabes dos quais s 500 tm graduao universitria.
Este nmero estarrecedor se voc pensa que nos campos de refugiados fora do Estado judaico,
onde as condies de vida so piores, h, em mdia, 11 estudantes universitrios para cada mil
palestinos.
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A situao de discriminao no melhora quando analisamos o nmero de diplomados nas
escolas profissionais. Do lado rabe, h 19 escolas profissionalizantes com um total de 1048
estudantes. Enquanto isso, os hebreus contam com 250 institutos onde esto matriculados 53 mil
847 alunos judeus.
Se isso no bastasse, outra grande preocupao do governo israelense que a escola sirva
para incutir nos rabes um sentimento de lealdade em relao a Israel e a conscincia oprimente do
seu isolamento no interior deste Estado. E a dizer isso no so os palestinos, mas sim as prprias
concluses da comisso governamental para as mudanas dos cursos no setor rabe, citadas numa
matria publicada em 19 de maro de 1971 pelo jornal israelense Haretz. Nela, Sabri Jiryis
escreve: Os programas de histria, de lngua rabe e hebraica so ricos de importantes temas
polticos. At mesmo uma anlise apressada do programa ir mostrar que isso visa celebrar a
histria dos hebreus e a apresent-la na melhor roupagem possvel, enquanto a rabe deformada
a ponto de beirar a falsidade: esta explicada como uma srie de revolues, matanas e seguidas
intrigas de forma a diminuir completamente as conquistas. Alm do mais, tambm o tempo
dedicado ao estudo da histria rabe bem pequeno. Na quinta srie, por exemplo, os estudantes
de 10 anos passam dez horas aprendendo noes sobre os hebreus e somente cinco sobre a
pennsula rabe. E tambm no estudo desta ltima a ateno centrada, conforme estabelecido
pelo programa, sobre as comunidades hebraicas da regio. Na sexta srie, trinta em sessenta e
quatro horas so dedicadas ao estudo da Histria Islmica, do comeo at o fim do sculo XIII,
includo o estudo de Moiss, dos Maimnidas e do poeta hebreu espanhol Irn Gabirol. No h
referncia histria rabe em stima, mas um sexto das horas de histria so dedicadas ao estudo
das relaes entre os hebreus da dispora e Israel. Em oitava srie, passa-se a estudar por trinta
horas O Estado de Israel e s dez so dedicadas histria dos rabes do sculo XIX at hoje,
deixando assim uma lacuna de cinco sculos.
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- Estou perplexo..., reconheo ao deixar cair a caneta sobre as folhas.
Insensvel minha situao e temendo se tratar de um pedido de descanso, Ndia me encara
com um Ento bom voc se refazer logo do susto, que faz a mo agarrar novamente o
instrumento de trabalho. Com a muleta apontada em direo ao dedo ainda dodo, lana um
Prepare-se, pois chegou a hora de falar das repercusses internacionais da Guerra dos Seis Dias,
que sinaliza mais uma passagem importante do seu relato. E continua: Entre as naes envolvidas
no conflito, o Egito a que paga o preo mais alto. Seu exrcito est praticamente destrudo, o
Canal de Suez (boa fonte de renda) est fechado por tempo indeterminado em funo da tenso que
se instala entre o lado egpcio e israelense, o petrleo do Sinai est nas mos dos judeus, o turismo
despenca e h uma perda de prestgio junto aos demais pases rabes. O regime de Nasser est
beira do abismo. Sua precria sustentao se deve ajuda blica e alimentar fornecida pelo bloco
sovitico e manipulao da mdia.
Na Sria, o partido Baath exerce um controle ferrenho sobre os meios de comunicao e os
ambientes militares. Apesar de alguns percalos, o regime se mantm e adota como prioridade o
fortalecimento das foras armadas rumo reconquista das colinas de Golan e a um mais amplo
acerto de contas com Israel.
A Unio Sovitica aproveita do apoio americano a Israel e das necessidades de assistncia
dos pases derrotados para facilitar a penetrao no mundo rabe, onde suas armas, assessores e
diplomatas comeam a integrar o cenrio quotidiano das relaes de poder na regio.
Longe de fazer uma avaliao profunda de sua fragilidade, os governos rabes repetem seus
discursos em relao a Israel. Em agosto-setembro de 1967, a cpula de Cartum (Sudo) delibera
que estes devem se unir para varrer as conseqncias da agresso judaica e forar a sua retirada dos
territrios ocupados durante a guerra. Os lderes aderem tambm a uma srie de princpios: 1.
Nenhuma paz com Israel; 2. nenhum tipo de reconhecimento do Estado judaico; 3. nenhum acordo
com Israel em futuras negociaes; 4. o direito do povo palestino de construir um Estado prprio.
23
Em Edward W. Said, La questione palestinese, pg. 131-132.
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Diante do clima de tenso, em 22 de novembro de 1967, o Conselho de Segurana da ONU
aprova a Resoluo 242. De acordo com o seu contedo, a paz justa e duradoura prev, de um lado,
a devoluo dos territrios ocupados por Israel em junho de 1967 e, de outro, a renncia das naes
rabes sua beligerncia, o reconhecimento da integridade territorial e da independncia poltica de
cada Estado e do seu direito de viver em paz no interior de fronteiras seguras e reconhecidas. A 242
afirma tambm a liberdade de navegao nas guas internacionais da regio e a necessidade de
resolver o problema dos refugiados.
- Ao que tudo indica, a ONU parece ter encontrado uma soluo honrosa para a crise!, afirmo
animado pela esperana de ver terminada a longa sucesso de guerras que aflige o Oriente Mdio.
- O que voc no consegue perceber que a Resoluo 242, que quer servir de base para uma
soluo justa e duradoura, ignora exatamente a essncia do problema que est na base do conflito.
Pela sua redao, o centro das preocupaes a necessidade de evitar uma nova guerra entre Israel e
os pases rabes. Isso no pelas mortes que ela traria, mas sim pela alta dos preos dos
combustveis, promovida pelas naes da pennsula rabe, que causaria srios prejuzos economia
mundial.
A questo palestina, que est na origem dos enfrentamentos, tratada apenas como um
problema de refugiados. Em outras palavras, a resoluo 242 nega que os palestinos tenham direito
autodeterminao e representa um retrocesso em relao s anteriores que chegavam a prever a
volta dos refugiados a seus locais de origem com direito a indenizaes pelos danos sofridos. Com a
242, Israel se v livre desta obrigao incmoda e os pases rabes so convidados a enterrarem pra
sempre a questo palestina. Uma coisa acreditar nas aparncias, outra, bem diferente, fuar no
emaranhado de interesses que se escondem atrs delas.
- Bom, Ndia, mas ser que pelo menos o Egito vai aderir ao esforo de paz das Naes Unidas?
- Nada disso. O que voc no entende que sem o desejo de reconquistar o Sinai e a Faixa de
Gaza, perdidos na guerra, o povo no perdoaria a humilhante derrota sofrida em junho de 1967.
Nasser tem conscincia desta realidade e no hesita em pressionar os soviticos para que
recomponham rapidamente o seu arsenal com armas mais modernas.
As tentativas de chegar a um acordo de paz com Israel fracassam. Em setembro de 1968, as
tropas do Cairo iniciam uma guerra de desgaste com disparos de artilharia e aes de comandos
egpcios contra as posies israelenses na margem oriental do Canal de Suez.
Provocaes e enfrentamentos se multiplicam de ambos os lados at que, em junho de 1969,
os Estados Unidos aprovam o uso da aviao de guerra judaica. Nos combates areos, as foras do
Cairo (bem equipadas, mas pouco treinadas) sofrem as maiores perdas. Diante do agravar-se da
situao, em dezembro do mesmo ano, soviticos e americanos tentam levar Egito e Israel a um
acordo de paz. As negociaes no chegam a nenhum resultado positivo e Nasser obtm da Unio
Sovitica a entrega de novos e mais sofisticados equipamentos militares, alm de um esquadro de
assessores e especialistas que cuidariam de sua instalao e do treinamento dos soldados egpcios. O
clima de tenso esquenta e, entre novembro de 1969 e fevereiro de 1970, ocorrem mil 754
incidentes ao longo do Canal de Suez. A guerra de atrito ameaa entrar numa nova fase.
Diante da crescente possibilidade de conflito e de envolvimento direto da URSS, o governo
de Washington tenta colocar gua na fervura atrasando a entrega a Israel de novos avies Phanton e
Skyhawk. Mas voc no pense que ele vai deixar seus pupilos desprotegidos, j que Tio Sam cuida
de repor imediatamente todos os equipamentos perdidos ou danificados.
Com a instalao das baterias de msseis ao longo do Canal de Suez, as foras egpcias
fortalecem suas defesas e aceleram os preparativos para a que chamam de guerra de libertao.
Porm, em 27 de setembro de 1970, Nasser morre vtima de um infarto e Hanwar Sadat passa a ser
o novo homem forte do Egito.
- Nesta confuso toda, voc tem alguma informao sobre a resistncia palestina?, pergunto
temendo o pior.
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- Acontece que, ao deixar clara sua inteno de permanecer nos territrios ocupados e ao fechar
qualquer possibilidade de dilogo, Israel leva os palestinos a escolherem entre a resignao e a luta
armada.
Em 12 de junho de 1967, dois dias aps o fim do conflito, os dirigentes de Al Fatah se
renem em Damasco. Entre as decises do encontro, est a de retomar a guerrilha s a partir dos
territrios ocupados por Israel e de iniciar uma campanha de arrecadao de fundos. Com eles a
organizao compraria armamentos, criaria novas clulas na Cisjordnia e na Faixa de Gaza e
prepararia suas bases ao longo das fronteiras com o Lbano e a Jordnia.
Os recursos afluem dos campos de refugiados, da Sria e do Iraque. Em 31 de agosto de
1967, Al Fatah realiza um congresso clandestino que aponta a retomada das aes militares como
meio para suscitar uma guerra popular de libertao na qual os palestinos se levantariam contra
Israel. Na primeira semana de setembro, os fedayn comeam suas operaes nas cidades de Nablus,
Ramallah e Jerusalm.
A reao do Estado judaico dura: prises em massa, interrogatrios, torturas e destruio
das casas dos suspeitos de abrigarem os guerrilheiros. As represlias visam distanciar a populao
dos grupos fedayn no intuito de subtrair-lhes importantes bases de apoio. At dezembro de 1967,
200 membros da guerrilha palestina so mortos e mais de mil esto presos.
No dia 11 do mesmo ms, faz seu aparecimento a Frente Popular para a Libertao da
Palestina (FPLP) fundada e liderada por George Habashe, mdico cuja famlia havia se refugiado no
Lbano aps a guerra de 1948. De carter marxista, a FPLP reconhece o povo palestino como o
principal responsvel pela sua causa, em funo da qual deve manter a independncia em relao s
exigncias dos pases rabes. Pregando a luta armada revolucionria contra o sionismo, em 1970,
quando adere OLP, o grupo j tem cerca de 2 mil integrantes.
Em abril de 1968, Ahmed Djibril rompe com a FPLP e funda a Frente Popular para a
Libertao da Palestina Comando Geral (FPLP-CG). Acusando Habashe de sacrificar a luta
armada ao embate poltico, seus integrantes vem a ao militar como o nico caminho para
derrotar o sionismo. Embora integrando a OLP, a FPLP-CG no vai passar de um pequeno grupo
com pouca insero na massa palestina. Ao longo dos anos 70 e 80, seus integrantes realizaro
vrios atentados terroristas contra alvos israelenses e ocidentais.
Longe de formar um bloco homogneo, a resistncia palestina vai dar origem a outros
grupos sendo que Al Fatah, de Yasser Arafat, se mantm majoritrio no interior da OLP.
- Mas, Ndia, se eu entendi direito, os fedayn devem ter sofrido um duro revs entre setembro e
dezembro de 1967. Os que restam so impossibilitados de permanecerem nos territrios ocupados.
Estou errado, ou nesta altura a causa palestina parece estar mais morta do que viva?
A coruja coa a cabea. Pe a asa debaixo do queixo e por alguns instantes rene pensativa
os dados que permitem responder minha indagao. E, desenhando crculos no ar com o graveto-
muleta que at poucos instantes segurava o peso do seu corpo, d incio a uma resposta que, pelo
jeito, no ser to breve quanto desejo.
- Realmente, em janeiro de 1968, a situao de Al Fatah extremamente difcil. Contando com no
mais de 400 militantes, o centro de suas discusses no como ganhar, mas sim como manter viva a
idia da luta. A esperana de uma insurreio popular nos territrios ocupados havia se revelado um
erro e aos guerrilheiros no resta outra opo a no ser a de atacar Israel a partir de bases situadas
fora dos territrios ocupados.
Em Damasco, o governo da Sria deixa claro que no vai permitir que os fedayn usem o seu
territrio para este fim. Arafat e seus homens s poderiam ter como bases o Lbano e a Jordnia.
Israel no d moleza e pune cada ao guerrilheira com uma dura represlia. Mas,
ironicamente, o que poderia destruir a resistncia palestina exatamente o que lhe d novo alento.
- Como assim?
- Em maro de 1968, uma mina colocada pelos fedayn faz explodir um nibus escolar israelense
nas proximidades do assentamento de Beer Ora, matando 2 adultos e ferindo 10 crianas. A
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represlia judaica se dirige ao vilarejo jordaniano de Karama, sede do quartel geral avanado de Al
Fatah. L, centenas de civis convivem com cerca de 900 guerrilheiros dotados de armas leves.
Mesmo contando com equipamento superior, o exrcito israelense sofre graves perdas.
Encurraladas pelos palestinos e por soldados jordanianos, as tropas judaicas so obrigadas a recuar.
Apesar de destruir cerca de 175 casas, a represlia no consegue aniquilar o enclave de Al Fatah.
Ainda que no se possa falar de um triunfo palestino e jordaniano, Karama se torna um
smbolo da possibilidade de vencer as foras armadas israelenses. Atrados por ele, milhares de
jovens palestinos a se integrarem s fileiras de Al Fatah que, em poucos meses, chega a ter entre 10
e 15 mil militantes.
Diante dos acontecimentos, os povos rabes passam a apoiar os fedayn com dinheiro e
armas. A eles se unem os exilados que comeam a remeter regularmente parcelas mensais de seus
ordenados. A resistncia palestina d incio implantao de uma ampla rede de servios. Nas
proximidades dos campos de refugiados nascem escolas, hospitais e orfanatos. Passo a passo, so
criados programas de ajuda aos veteranos, redes de abastecimento, grupos estudantis e grmios
femininos. Com a formao e o treinamento militar caminhando juntos, a cultura renasce e fortalece
a identidade dos refugiados enquanto povo palestino.
Em poucos meses, as bases guerrilheiras e os campos de refugiados na Sria e na Jordnia
assumem as feies de um Estado no interior de outro Estado. Graas ao apoio popular, os fedayn
ganham grande liberdade de ao nos pases rabes. O problema que, com tudo isso, comeam a
chegar tambm a burocracia e os abusos de poder que, em pouco tempo, geram atritos com as foras
armadas locais e no prprio interior do movimento.
Sob o impacto destes acontecimentos, em julho de 1968, se rene no Cairo o 4 Congresso
Nacional Palestino ainda sob a presidncia de Shukeiri, eminncia parda a servio dos interesses
egpcios. Mas o descontentamento em relao OLP (que funciona como uma espcie de direo
executiva do Congresso Nacional Palestino) toma conta de suas bases que vem as aspiraes da
massa palestina serem sistematicamente colocadas em segundo plano.
No calor dos debates, Yehya Hammouda eleito presidente do Comit Executivo da OLP e
encarregado de contatar as organizaes guerrilheiras com as quais deve preparar o 5 Congresso
num prazo mximo de 6 meses. A sua realizao no Cairo, em fevereiro de 1969, marcada pela
eleio de 4 representantes de Al Fatah e de Yasser Arafat na direo da OLP.
No dia 22 do mesmo ms, o grupo de Nayef Hawatmeh rompe com Habashe e funda a
Frente Democrtica para a Libertao da Palestina (FDPLP). Sua principal crtica FPLP a
ausncia de um programa poltico que seja realmente marxista e capaz de definir as etapas da luta
palestina contra o sionismo. Para Hawatmeh, o objetivo estratgico final a construo de um
Estado democrtico na Palestina, onde israelenses e palestinos possam viver em paz e com os
mesmos direitos. O longo caminho nesta direo pressuporia etapas que prevem a recuperao de
direitos nacionais, a criao de uma autoridade nacional palestina independente nos territrios da
Cisjordnia e Gaza, o retorno dos refugiados a seus lugares de origem. Num segundo momento, a
luta seria pela volta partilha estabelecida pela ONU, em 1947, com a criao de um Estado rabe
palestino e, finalmente, a construo de um Estado democrtico em toda a antiga Palestina.
Pequena quando do seu nascimento, a discusso poltica introduzida pela FDPLP ganha
espao no interior da OLP a partir do final de 1972.
- Pelo visto, o fortalecimento dos grupos guerrilheiros anuncia uma nova onda de ataques contra
Israel..., comento ao fazer um gesto que parece unir passado, presente e futuro.
- Mmmh!, murmura Ndia numa expresso de surpresa. bom constatar que seus olhos
humanos esto comeando a enxergar nas entrelinhas da histria. S espero que o crebro, que em
tamanho perde feio pela barriga, no esquea de uma realidade j constatada em inmeras ocasies:
para cada ao palestina, h uma reao israelense e uma resposta do mundo rabe que, volta e
meia, est em rota de coliso com os grupos guerrilheiros.
- No entendo o que voc quer dizer com isso?
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- Espere e ver, responde a coruja em tom de mistrio. Aps instantes de silncio, a ave pisca os
olhos e com um sorriso desafiador diz: Vamos comear pela Faixa de Gaza. Em 1969, nesta
pequena lngua de terra, ocorrem quase 700 enfrentamentos entre os fedayn e as foras israelenses.
No ano seguinte, a FPLP assume o controle de um bom nmero de campos de refugiados. s
aes contra alvos israelenses se somam agora os assassinatos de dezenas de palestinos suspeitos de
colaborarem com os servios secretos judaicos.
Em 2 de maro de 1971, uma granada mata duas crianas e fere seus pais, todos hebreus. a
gota dgua para uma ampla represlia liderada pelo general Ariel Sharon. A antiga fronteira entre
Israel e a Faixa de Gaza fechada com arame farpado e vrias ruas so abertas no meio dos campos
de refugiados para facilitar a ao das patrulhas. Os soldados israelenses tm ordens de abrir fogo ao
primeiro sinal de provocao enquanto uma unidade secreta, chamada Rimon, se encarrega dos
trabalhos de inteligncia e da execuo sumria do maior nmero possvel de supostos terroristas.
Dezenas de suspeitos presos so assassinados nas cadeias com um tiro nas costas sob a alegao de
infundadas tentativas de fuga.
Em novembro de 1971, com mais de 100 guerrilheiros mortos e outros 700 presos, o
movimento de resistncia em Gaza completamente neutralizado.
- Meu Deus!?!
- Espere, voc ainda no sabe da metade das coisas. Outra frente da luta palestina a que tem
como base os campos de refugiados do sul do Lbano. Em 1969, os fedayn lanam os primeiros
msseis contra a cidade israelense de Qiryat Shmona. Temendo retaliaes, o exrcito libans
investe contra as bases guerrilheiras que, alm de receber apoio da Sria, contam com a ajuda de
grupos muulmanos locais interessados em desgastar o poder da elite crist.
Aps vrios enfrentamentos com os palestinos, chega-se a um acordo pelo qual a regio de
Arkoub, prxima fronteira com Israel, seria uma espcie de territrio autnomo fedayn. Em troca,
a guerrilha aceitaria as restries do governo de Beirute no sentido de limitar ao mximo as
investidas contra o territrio judaico a partir da fronteira libanesa.
Alguns comandantes de Al fatah se rebelam aos acordos assinados por Arafat, ao mesmo
tempo em que aumentam as represlias israelenses e as tenses com o exrcito libans. O agravar-se
da crise nas fileiras palestinas evitado graas interveno da Arglia, cujo embaixador abre as
portas para que o principal lder rebelde Abu Yusef Al Mayed possa se exilar no seu pas.
Para compensar as restries impostas pelo Lbano, ao longo de 1972, Al Fatah concentra
mais soldados nas regies de fronteira entre Israel e a Sria de onde sai a maior parte das aes. Em
outubro-novembro de 1972, as foras armadas judaicas lanam pesados ataques contra as bases
palestinas neste pas. Estes no poupam os povoados da Sria num claro recado de que a ajuda
prestada aos fedayn tem um alto preo a ser pago. No demora muito para que o governo de
Damasco negue aos guerrilheiros o acesso a Israel atravs de seus territrios.
- S falta voc dizer que a Jordnia tambm...
- Falou e disse! Paralelamente situao que acabo de descrever, o crescimento das bases
guerrilheiras na Jordnia eleva o atrito entre fedayn e foras armadas locais e as presses sobre a
monarquia, encurralada pelo descontentamento do exrcito, dos fedayn e do povo, atingido pelas
represlias israelenses.
Para evitar uma possvel queda do regime, em 9 de julho de 1970, as tropas jordanianas
aproveitam de uma tentativa guerrilheira de libertar alguns fedayn presos para abrir fogo contra os
campos de refugiados nas proximidades de Am. Quatro dias de enfrentamento deixam cerca de 400
mortos e 750 feridos. Nas semanas seguintes, a caravana do rei sofre um atentado e a FPLP realiza
um ataque aps o qual mantm como refns 33 estrangeiros hospedados em Am.
Com a assinatura do cessar-fogo entre Egito e Israel em 7 de agosto de 1970, a Jordnia se
sente fortalecida em sua ao para conter os guerrilheiros e o rei avisa a OLP de que no vai tolerar
qualquer desafio sua autoridade.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos suspendem os recursos regularmente enviados corte
jordaniana para pagar seus gastos e os soldos do Exrcito e que, na verdade, eram uma forma de
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vincular a casa reinante aos interesses estadunidenses. Trata-se, portanto, de um aviso dirigido a
Hussein de que os EUA podem abandon-lo, e at mesmo provocar sua queda, caso no se decida a
agir contra a OLP.
Em resposta, no dia 30 de agosto, o exrcito da Jordnia investe contra as posies da
resistncia palestina. Ao ataque seguem duas tentativas de assassinato do rei e o seqestro de dois
avies por parte da FPLP. Mas, diante das crescentes presses internas e externas, no dia 17 de
setembro, Hussein ordena uma ampla ofensiva contra os campos de refugiados e as bases da OLP
em Am. De acordo com fontes palestinas, no ataque morrem 900 guerrilheiros e 350 civis.
Perdidas as bases em Am, os fedayn mantm alguns comandos nas proximidades da fronteira com
Israel que, nos meses seguintes, tero vrios enfrentamentos com as tropas regulares jordanianas.
Em 13 de julho de 1971, o rei ordena que seja varrida do mapa toda posio guerrilheira
presente em seu territrio. Aps seis dias de combates, o governo de Am anuncia a priso de 2 mil
e 300 fedayn. Os que conseguem fugir se refugiam antes na Sria e, em seguida, no sul do Lbano
que se torna a maior base de operaes da OLP. Mais uma vez, os palestinos esto sozinhos na linha
de frente da luta contra Israel.
- Reconheo que esta parte do relato est me deixando sem palavras. Ainda assim, tenho mais uma
pergunta. Sabe, Ndia, lembro que l pelo incio da dcada de 70 eu ouvia falar muito de ataques
terroristas palestinos no s no Oriente Mdio, como tambm na Europa e em regies da frica.
Voc esqueceu de falar disso, ou est escondendo o peixe?, pergunto em tom indagador.
A coruja sorri e sem dar sinais de intimidao prepara uma resposta que parece ter gosto de
convite: No h porque esconder o que a histria j revelou. O importante explicar o porqu dos
acontecimentos para entend-los no interior do emaranhado de relaes que trazem em seu bojo. Por
isso, prepare seus ouvidos porque vem a o captulo sobre o perodo que vai...
6. Da estratgia do terror guerra do Yom Kippur.
Ajeitada a muleta, Ndia comea um vaivm silencioso. Cada passo parece recuperar uma
idia, um acontecimento, enfim, uma pea do quebra-cabea da questo palestina.
Aproveitando da concentrao da coruja, o corpo afasta a cadeira enquanto os ps se
apressam no caminho da cozinha. O trabalho de redigir os relatos estimula aquela fominha cuja
fronteira com a gula dificilmente pode ser demarcada. Em outras palavras, est na hora de assaltar a
barra de chocolate escondida atrs das compras do ms.
Ansiosas, as mos afastam pacotes e latinhas at chegar ao precioso tesouro. A boca se
enche dgua. Faltam poucos instantes para a lngua se deliciar com este manjar dos deuses quando
os ouvidos so atingidos por uma frase capaz de amargar qualquer doura:
- Depois se queixa porque fica gordo..., comenta Ndia em tom irnico.
- Ah, no! Agora voc tambm resolveu pegar no meu p?.
- S quero poup-lo da bronca do mdico na hora dele ver o resultado do prximo exame de
colesterol. Por isso, sugiro que largue o chocolate e volte ao trabalho.
Sentado ao meu posto, coloco num canto da mesa alguns pedacinhos do tablete. As mos
mal-acabam de pegar a caneta quando Ndia devora em rpidas bicadas o precioso botim.
- Se o chocolate faz mal, por que voc come?, questiono raivoso e frustrado.
- Ora, porque aquilo que em voc vira banha, para mim energia necessria para continuar nesta
longa jornada, querido secretrio.
- Era s o que me faltava. Agora que a danada desta coruja acaba de abastecer no vai ter quem a
segure..., murmuro entre os dentes.
- Pare de resmungar e vamos ao que interessa! No final do captulo anterior voc pedia que falasse
da estratgia do terror palestino. Pois, aqui esto as minhas concluses.
Aps sofrer a violenta represso da Jordnia e com os espaos se fechando na Sria, a mdia
internacional no titubeia em afirmar que a OLP est acabada.
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No calor das discusses que ocorrem em seu interior, um setor da militncia de Al Fatah
funda uma organizao que, nas palavras de Abu Iyad, tem o objetivo de fazer com que o mundo
perceba a existncia do povo [palestino].
24
assim que, entre agosto e setembro de 1971, nasce o
que seria conhecido como Setembro Negro, cuja estrutura e comando so, desde o incio,
independentes da OLP.
De 1970 a 1976, as foras da FPLP e de Setembro Negro vo realizar seqestros de avies e
atentados terroristas no s em territrio judaico, mas tambm contra alvos israelenses no exterior.
Entre 1971 e 1973, h um aumento significativo destas aes numa seqncia que no d
trgua a Israel e opinio pblica internacional. Entre elas, a que vai deixar marcas profundas
ocorre durante as olimpadas de Munique com o seqestro de 9 atletas da delegao de Israel, em 5
de setembro de 1972.
Os olhos do mundo inteiro acompanham e condenam o trgico desenrolar da ao terrorista.
Mas, como sempre, no vem a resposta do Estado judaico que cobra com juros altssimos a conta
da chacina: um pesado ataque areo e terrestre contra as bases da OLP no Lbano que destri
povoados inteiros matando cerca de 400 palestinos, a maior parte deles, civis. A imprensa se cala ou
limita-se a descrever esta retaliao com palavras que justificam a atitude israelense.
Diante da escalada de violncia, em maio de 1972, o governo de Tel Aviv cria uma
organizao antiterror conhecida pelo nome de Ha Mossad, ou Instituto para Misses Especiais. A
idia de seus fundadores de recorrer aos mtodos terroristas para acabar com os grupos terroristas.
Ou seja, trata-se de assassinar lderes guerrilheiros em regies do Oriente Mdio, ou fora delas, com
boa parte das autoridades governamentais fazendo vista grossa diante dos acontecimentos.
A espiral de violncia, alimentada pela situao desesperadora em que se encontram os
palestinos e pelas aes israelenses, faz com que, em vrios casos, o terrorismo de Setembro Negro
e das demais frentes de resistncia no tenha s a tarefa de atrair os holofotes sobre a questo
Palestina, mas tambm de responder s incurses das foras armadas hebraicas numa assustadora
seqncia de golpes e contragolpes.
- Desse jeito, o olho por olho, dente por dente ganha uma verso palatvel..., sugiro em tom de
aberta provocao.
Compenetrada, Ndia suspira profundamente e, em seguida, aponta a asa em minha direo
na atitude de quem pretende dirimir qualquer dvida em relao s suas posies: Pois, fique
sabendo que no nada disso! Ao colocar frente a frente as causas e conseqncias do terror
palestino e israelense no pretendo justificar um pelo outro. Fao isso apenas para levantar os
elementos que permitem entender o caldo de cultura que d origem a ambos e apontar as
contradies e as responsabilidades que os governos, direta ou indiretamente envolvidos, tm nos
fatos que a histria registra.
Um pesado silncio de reflexo se estabelece entre ns. Constrangida pelo gosto amargo por
ele deixado, a lngua resolve romp-lo com uma pergunta que no tem outra pretenso a no ser a de
retomar a conversa: Mas... as aes de Setembro Negro vo durar at que ano?
- Pelo que se sabe, elas comeam a diminuir sua intensidade quando os lderes da OLP percebem
seu efeito contraditrio: ao mesmo tempo em que atrai a ateno do mundo sobre a situao dos
palestinos, o terror desgasta a simpatia das pessoas para com a sua causa e isso acaba prejudicando
as relaes diplomticas dos prprios dirigentes da OLP a nvel internacional.
Mas nem todos os grupos aceitam suspender suas atividades e uma parte deles vai realizar
uma srie de atentados que se mantm at 1976.
De acordo com alguns historiadores, outro elemento que vai pesar na deciso de deter a
estratgia do terror seria o plano de Sadat, presidente do Egito, de levar os rabes a uma nova guerra
contra Israel. Neste contexto, os guerrilheiros palestinos teriam sido convidados a reduzir suas aes
para no correr o risco de atrair a represlia judaica sobre Sria e Egito, enquanto estes pases se
preparam para o conflito.
24
Benny Morris, Vittime, pg. 477.
49
- Voc est querendo dizer que, em 1973, o Oriente Mdio est no limiar de uma nova guerra?,
pergunto entre a surpresa e o espanto.
- Acertou em cheio!
- Eu achava que...
- Sim. J sei, voc achava que, com o cessar-fogo entre Israel e o Egito em agosto de 1970, as
naes rabes teriam encontrado o caminho da paz. O problema que a suspenso das hostilidades
no impede que o Egito leve adiante os preparativos para uma nova guerra ao ver que suas
demandas so barradas pelo governo de Tel Aviv.
- Como assim?
- Em 28 de dezembro de 1970, Sadat fala explicitamente de um acordo de paz com Israel em troca
da retirada de suas tropas dos territrios egpcios ocupados em 1967. Na verdade, a sua iniciativa
tem como base a proposta que o prprio Ministro da Defesa israelense, Moshe Dayan, havia
delineado Primeira Ministra, Golda Meir, trs meses antes: afastar em 30 quilmetros as tropas
judaicas para permitir a reabertura do Canal de Suez e a reconstruo de cidades e povoados ao
longo de sua extenso como primeiro passo rumo a um acordo de paz.
Semanas depois, em 4 de fevereiro de 1971, o presidente do Egito formaliza a sua proposta
junto ao parlamento: a retirada israelense do Canal de Suez em troca de um cessar-fogo duradouro.
Aps algumas consultas, o governo judaico rechaa a proposta de Sadat e, em 13 de maro,
Golda Meir declara enftica que Jerusalm, as colinas de Golan e o Sinai (desmilitarizado) devem
continuar sob controle israelense.
O Egito responde pedindo um acordo que caminhe rumo a uma completa retirada de Israel
do Sinai. Apostando na boa vontade do Cairo e diante da necessidade de reduzir os gastos militares,
Dayan reapresenta a sua proposta. Em resposta, os membros do governo sugerem que as tropas
judaicas se distanciem, no mximo, 10 quilmetros a leste do Canal de forma a mant-lo no raio de
ao de suas unidades militares. Alm disso, deixam clara sua recusa de vincular um acordo interino
a uma paz futura que implique a completa retirada do Sinai, por entender que esta medida colocaria
em risco o acesso dos navios israelenses ao golfo de caba e ao porto de Eilat.
Diante dos acontecimentos, em maio de 1971, o governo do Cairo est convencido de que a
guerra a nica opo que lhe resta. No para invadir o territrio israelense, pois Tel Aviv poderia
responder agresso usando as armas nucleares fornecidas pelos EUA, mas to somente para
recuperar uma faixa de terra que possibilite a reabertura do Canal, lave a humilhao sofrida na
Guerra dos Seis Dias e sacuda o imobilismo diplomtico de Israel e da comunidade internacional.
- Ser que, depois do desastre da Guerra dos Seis Dias, a URSS vai apoiar o Egito nesta
empreitada?, questiono incrdulo.
Ndia pisca os olhos, levanta a muleta e desenhando crculos no ar d a impresso de que a
resposta seja um sim, porm no: O interesse dos soviticos em manter sua influncia na regio
leva o governo de Moscou a aumentar o fornecimento de material blico ao Cairo ao mesmo tempo
em que se mostra arredio quanto necessidade de uma nova guerra. Temendo a repetio do
desastre de 1967 e a possibilidade do conflito descambar numa queda-de-brao com os Estados
Unidos, os militares soviticos no Egito comeam a semear nas tropas locais opinies contrrias a
um novo enfrentamento com Israel.
Esta atitude vai esfriando as relaes entre os dois pases. O ressentimento de Sadat aumenta
quando, aps a visita do presidente norte-americano, Richard Nixon, a Moscou, em maio de 1972,
as duas potncias divulgam um comunicado conjunto que parece congelar a situao do Oriente
Mdio em nome da reduo da tenso entre elas.
Decidido a ir para o tudo ou nada, Sadat fora a barra com a Unio Sovitica. Em julho de
1972, expulsa milhares de assessores militares do Exrcito Vermelho e exige o fornecimento de
armas de ltima gerao. Sabendo que os egpcios tm dificuldade de manusear os equipamentos
blicos j instalados, Israel e os EUA se convencem de que o Egito est renunciando idia de uma
nova guerra. Isso ao mesmo tempo em que, temendo perder terreno no Oriente Mdio, Moscou
comea a fornecer a contragosto as armas pedidas por Sadat.
50
Alm de preparar o prprio exrcito para o confronto, em abril de 1973, o Egito chega a um
acordo com a Sria para que os dois pases ataquem simultaneamente os territrios ocupados por
Israel em 1967. O incio das hostilidades seria na noite entre o dia 6 e 7 de outubro, data na qual
coincidiriam trs elementos importantes para o ataque: 1. o fato de ser uma noite sem lua ajudaria a
ocultar as manobras das tropas egpcias; 2. a diferena entre a mar baixa e alta seria mnima
facilitando as operaes de construo das pontes de barcos pelas quais as tropas atravessariam o
Canal; 3. muitos soldados israelenses estariam com suas famlias para os rituais da festa do Yom
Kippur, que, alm do jejum de 27 horas, prev a suspenso de todos os servios pblicos e de
qualquer programa de rdio e televiso, meios atravs dos quais Israel mobilizaria a populao para
a guerra. Em outras palavras, o sistema defensivo judaico reduzido ao mnimo indispensvel, a
escurido e a mar favorvel potencializariam o efeito surpresa, ponto forte do plano rabe.
- Voc esta querendo dizer que as foras armadas judaicas no conseguem perceber as manobras e
a movimentao de tropas que esto acontecendo debaixo de seus olhos?
- O problema no este. Ver, elas esto vendo, mas o sentimento de superioridade que permeia
seus contingentes faz com que o alto comando seja incapaz de interpretar a realidade.
Os servios de inteligncia, por exemplo, h tempo vinham dando por certo que, aps
dcadas de derrotas, os rabes estariam convencidos da impossibilidade de ganhar do exrcito
judaico. Logo, nenhuma nao arriscaria seus homens num novo enfrentamento.
O prprio governo de Tel Aviv considera Sadat um presidente medocre, superficial e
indeciso. Por isso, as ameaas de guerra, seguidamente reafirmadas at setembro de 1973, so
recebidas em Israel como um mero esforo de propaganda pessoal com poucos efeitos prticos.
Tambm necessrio dizer que, nos meses que antecedem seus ataques, Sria e Egito
realizam movimentaes polticas e militares capazes de enganar os observadores mais atentos. At
setembro de 1973, Sadat mantm vrios contatos oficiais com numerosos representantes americanos
e das Naes Unidas a respeito de algumas propostas de paz para a regio. Os dois pases fazem
amplo uso da mdia para divulgar a idia de que, em termos polticos e militares, as duas naes
vm agindo de forma rotineira sendo que, entre o final de setembro e o incio de outubro, os
noticirios falam de grandes discordncias entre os dois presidentes.
Para desviar ainda mais a ateno dos servios de inteligncia israelenses, h pouco mais de
uma semana do incio dos combates, os guerrilheiros da Al Saika atacam um trem que transporta
judeus soviticos da Tcheco-Eslovquia a Israel. Temendo pela vida dos refns, o governo da
ustria aceita o pedido dos seqestradores de fechar as instalaes de Schnen, na periferia de
Viena, usadas como ponto de apoio pelos migrantes que se dirigem ao Estado judaico. Esta postura
leva Golda Meir a voar para a capital austraca na tentativa de convencer o governo local a voltar
atrs em sua deciso. A situao dos refns, as negociaes e as investigaes em relao ao
ocorrido acabam tirando a ateno dos israelenses dos preparativos de guerra rabes.
Quanto ao treinamento dos soldados, s os altos comandos do Egito e da Sria sabem da
realizao do ataque. Por meses, os oficiais das linhas de defesa na margem ocidental do Canal de
Suez realizam exerccios militares de atravessamento do Canal. Como, desde 1968, esse tipo de
manobra havia se tornado corriqueiro, a movimentao de homens e equipamentos blicos no
chega a levantar suspeita. Para confundir ainda mais os servios secretos judaicos, algumas
unidades do exrcito egpcio so mantidas em alerta sob a alegao pblica de que Israel poderia
aproveitar do cansao dos treinamentos para atacar as linhas de defesa do Cairo.
Some estes elementos e ver que, apesar de Dayan acreditar na possibilidade dos rabes se
vingarem, no difcil entender porque o governo de Tel Aviv pegue de cala curta.
assim que, s trs da tarde do dia 6 de outubro de 1973, a Sria ataca as posies
israelenses nas colinas de Golan e noite a vez do Egito fazer o mesmo ao longo do Canal de
Suez.
- Isso deve ter levado derrota das foras armadas hebraicas..., comento diante do que parece ser
o bvio desfecho de uma ao meticulosamente preparada.
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- Eu, no seu lugar, no teria tanta certeza..., retruca Ndia desafiando o final apontado pelas
aparncias.
- Voc no est querendo dizer que...
- Sim, querido secretrio, a histria revela que, apesar dos duros golpes lanados pelos adversrios,
Israel consegue reorganizar suas defesas e, no dia 8 de outubro, comea a reverter a situao. Seis
dias depois, suas tropas entram na Sria e chegam a apenas 30 quilmetros de Damasco.
Na frente de batalha do Sinai, as coisas no so diferentes. Obrigado a enviar a maior parte
dos contingentes para a Sria com o objetivo de proteger os numerosos assentamentos judaicos ao
longo de sua fronteira, Israel deixa que o Egito conquiste facilmente uma faixa de territrio de 10
quilmetro a partir da margem oriental do Canal. Mas, uma vez ganha a batalha pelas colinas de
Golan, em 20 de outubro, a vez do exrcito judaico comear a ofensiva que, em poucos dias, o
levar a reconquistar o territrio ocupado pelos soldados egpcios e a dirigir seu contingente rumo
ao Cairo.
Conscientes de que a derrota do Egito est prxima, Estados Unidos e Unio Sovitica se
renem para formular um acordo de cessar-fogo que seja aceito pelos pases em conflito e pelos
governos das duas superpotncias. Em 21 de outubro, o Cairo abre mo da retirada de Israel de
todos os territrios ocupados durante a Guerra dos Seis Dias e pede URSS que apresse os tempos
da negociao, pois as foras judaicas esto a um passo da capital. No dia seguinte, o Conselho de
Segurana da ONU aprova a Resoluo 338 que prev o fim das hostilidades no prazo mximo de
12 horas e o incio das negociaes para um acordo duradouro que tenha por base a troca de terra
por paz prevista pela Resoluo 242.
Mas, por vrias razes, os enfrentamentos continuam e, nos dias 23 e 25, a ONU emite mais
duas resolues no mesmo tom. S que desta vez o apelo trgua sustentado pela ameaa de uma
interveno sovitica que leva os dois lados a deporem as armas.
Alm dos danos materiais, a guerra se encerra com um saldo de 2 mil e 300 mortos, 5 mil e
500 feridos e 294 presos do lado israelense. A Sria amarga a perda de 3 mil soldados, alm de 5 mil
e 600 feridos e 411 presos. Mas o Egito a pagar a conta maior: 12 mil mortos, 35 mil feridos e 8
mil e 400 presos.
- Ao que tudo indica, o conflito acaba em tragdia para o governo do Cairo. Diante desta realidade,
as relaes entre Sadat e Israel anunciam tempos de paz ou o renovar-se das antigas ameaas?,
pergunto receoso de me deparar com a notcia da preparao de um futuro enfrentamento.
Ajeitada a muleta, Ndia desce vagarosamente do livro e se aproxima. Apoiando a asa no
meu ombro e, apontando o graveto para as folhas do relato, com voz pausada, diz: Sei que est
ansioso por um anncio de paz de minha parte, mas j deve ter percebido que diante das profundas
contradies presentes na histria das naes do Oriente Mdio, a linha divisria entre a paz e a
guerra muito tnue. Pacificar os povos sem resolver as questes de fundo que os levaram a um
enfrentamento armado como pr panos quentes na realidade. De imediato, parece que as coisas se
acalmam, mas, em seguida, as velhas contradies voltam a produzir novas ameaas.
- Isso quer dizer que...
- Que pra incio de conversa, terminada a guerra, as negociaes mediadas pelo secretrio de
Estado norte-americano, Henry Kissinger, conhecem uma longa srie de encontros e desencontros.
Aps dois anos de idas e vindas, em 4 de setembro de 1975, Egito e Israel assinam em Genebra,
Sua, um pacto pelo qual se comprometem a no recorrer s ameaas ou ao uso da fora e a
resolver eventuais conflitos atravs de meios pacficos.
O texto prev tambm a retirada do exrcito judaico do Sinai e a presena das foras de
segurana da ONU ao longo de uma faixa de 30 a 40 quilmetros de largura entre a fronteira
israelense e o territrio egpcio. O governo do Cairo obtm tambm a possibilidade de explorar as
jazidas de petrleo na regio controlada pela ONU e permite que os navios de Israel utilizem o
Canal de Suez.
Com o passar do tempo, a base deste compromisso consolidada por outros entendimentos
entre israelenses e estadunidenses e destes ltimos com os egpcios. O governo de Washington se
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compromete a satisfazer as necessidades judaicas de suprimentos blicos, de abastecimento de
combustveis, de financiamentos e a no reconhecer a OLP at que esta aceite a criao do Estado
judaico e as resolues 242 e 338 das Naes Unidas.
Encerrado o conflito, Tel Aviv instala uma comisso destinada a apurar as responsabilidades
pelo desgaste sofrido com a guerra do Yom Kippur. Os trabalhos, que duram cerca de 2 anos,
acabam minando as bases do Partido Trabalhista de Golda Meir e abrem caminhos para que o
direitista Likud, de Menachen Begin, vena as eleies de 17 de maio de 1977. Defensor
intransigente da manuteno da Cisjordnia e da Faixa de Gaza como partes integrantes do territrio
israelense, o governo Begin se nega a congelar o avano dos assentamentos judaicos nos territrios
ocupados e a reconhecer aos palestinos qualquer direito autodeterminao. Esta postura esfria as
relaes com os EUA e dificulta o j complexo processo de paz.
Na tentativa de desbloquear a situao, em 1 de outubro de 1977, Estados Unidos e Unio
Sovitica emitem um comunicado conjunto que reafirma a necessidade de Israel retirar suas foras
armadas dos territrios ocupados durante a Guerra dos Seis Dias e de respeitar os legtimos direitos
dos palestinos.
Mesmo no incorporando as reivindicaes dos povos rabes, aceitando implicitamente a
interpretao israelense da Resoluo 242 (que restringe a devoluo a alguns dos territrios
ocupados em 1967) e no mencionando nem a OLP, nem uma eventual ptria palestina, o texto
duramente atacado pela comunidade hebraica dos EUA e pelos polticos israelenses que acusam o
presidente norte-americano, Jimmy Carter, de ceder s presses rabes e soviticas. A presso do
lobby judaico nos Estados Unidos to forte que, dias depois, Carter obrigado a divulgar outro
comunicado no qual recua em relao s posies anteriores.
- Bom, diante deste intenso vaivm de acontecimentos, o acordo de paz devia estar por um fio...,
pondero sem levantar os olhos do papel.
- E teria naufragado se Sadat no quisesse se aproveitar dele para ampliar suas relaes com
Washington realizando um gesto inesperado: ir ao encontro do governo israelense em Jerusalm.
- Quer dizer, ento, que isso no foi por amor paz?!?
- Meu caro bpede de culos, voc precisa enfiar nesta sua cabea dura diz Ndia enquanto
aponta o graveto-muleta em direo minha testa que a viagem de Sadat, realizada em 19 de
novembro de 1977 no pretende viabilizar apenas o que voc imagina ser um pio desejo de paz. Na
verdade, o presidente egpcio v a continuidade das negociaes como a possibilidade de alcanar
objetivos econmicos bem precisos.
Acontece que, apesar dos financiamentos recebidos da Arbia Saudita, a guerra do Yom
Kippur havia esvaziado os cofres da nao e o pas no tinha como dirigir os poucos recursos
disponveis para a continuidade da luta contra Israel. Se isso no bastasse, em janeiro de 1977, as
manifestaes populares e os violentos enfrentamentos com a polcia quando do corte dos subsdios
aos gneros de primeira necessidade haviam alertado a elite do Cairo de que a ordem interna e a
prpria estabilidade do governo corriam perigo.
Neste contexto, a manuteno do processo de paz com Israel no significa s poupar as
fatias do oramento antes gastas em equipamentos blicos, mas, sobretudo, poder contar com a
ajuda econmico-financeira dos EUA e abrir o pas aos investimentos do capital externo. De acordo
com o general Kamal Hasan Ali, entre 1978 e 1982, os Estados Unidos fornecem ao Egito um
montante de 6 bilhes e 600 milhes de dlares, sendo que, aps a melhora das relaes entre os
dois pases, esta quantia vai girar em torno dos 2 bilhes de dlares ao ano.
- S no entendo como que Sadat vai fazer engolir um sapo desse tamanho OLP e ao mundo
rabe, comento entre a dvida e o desconcerto.
- Digamos que, por muito que tente, os resultados no so animadores. Vislumbrando o rumo dos
acontecimentos, a Sria rompe as relaes com o Egito e no Iraque ocorrem imponentes
manifestaes contra Sadat. Nos demais pases, a visita a Israel recebida como uma traio.
Com certeza, os mais decepcionados so os palestinos que vem sua causa ir pro vinagre.
Em 22 de novembro de 1977, a OLP divulga um comunicado no qual condena a iniciativa do
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presidente egpcio e, anunciando estar pronta para anular os resultados da visita, convida o povo do
Egito a opor-se traio da nao rabe. Em resposta, no dia seguinte, Sadat ordena que os
escritrios da OLP e sua emissora de rdio, a Voz da Palestina, sejam fechados.
A partir da viagem a Jerusalm, tanto Israel, como o mundo rabe e os prprios Estados
Unidos no tm dvidas de que o Egito caminha rumo a um acordo de paz definitivo. Mas a
seqncia de encontros secretos e oficiais esbarra em no poucos obstculos e a delegao egpcia
chega at mesmo a abandonar a mesa de negociao. As presses internas e externas aos dois pases
se multiplicam e, em fevereiro de 1978, Begin e Sadat voltam a se encontrar em Camp David, nos
EUA, a convite de Carter.
Enquanto o presidente do Egito enfrenta um crescente isolamento em relao ao mundo
rabe, o Primeiro Ministro de Israel tem que lidar com as aes dos integrantes do movimento
pacifista Paz Agora e dos membros do comando das foras armadas que vem com bons olhos a
devoluo de todo o Sinai em troca da paz.
As negociaes so tensas, mas ningum abandona Camp David no entendimento de que o
primeiro a jogar a toalha seria acusado de fazer naufragar o processo de paz perdendo assim
prestigio e poder tanto a nvel internacional como no interior do prprio pas.
Um dos elementos-chave para a superao dos impasses a oferta final do presidente norte-
americano: a garantia de emprstimo de 3 bilhes de dlares para Israel compensar os prejuzos
oriundos do desmantelamento dos assentamentos erguidos naquela regio e construir duas modernas
bases areas no deserto do Negev em substituio daquelas que o Estado judaico deveria deixar ao
sair do Sinai.
Na noite de 17 de setembro de 1978, Carter, Begin e Sadat assinam os primeiros documentos
do compromisso de paz. Israel aceita se retirar de toda a pennsula do Sinai em troca do
reconhecimento diplomtico por parte do Egito, da paz e da normalizao das relaes entre os dois
pases. Os navios israelenses podem transitar livremente pelo Canal de Suez, pelo estreito de Tiran e
pelo golfo de caba. O Sinai vai ser amplamente desmilitarizado sendo que o Egito autorizado a
manter um limitado nmero de tropas a no mais de 50 quilmetros da margem oriental do Canal de
Suez. O acordo restringe tambm a presena das foras armadas judaicas ao longo da linha de
fronteira sendo que o territrio entre ela e as posies dos contingentes egpcios no Sinai s pode ser
patrulhado pela polcia do Egito e por unidades das Naes Unidas.
- Que voc lembre, os documentos chegam pelo menos a citar a questo palestina?, indago
apressado e temeroso.
Ndia suspira, pe a asa atrs das costas e com voz preocupada retoma o seu relato: Falar,
falam, mas o que dizem a este respeito est longe de representar um compromisso srio com a sua
soluo. Os textos do acordo abordam a possibilidade de uma futura negociao da questo
palestina que envolveria representantes do Egito, Israel, Jordnia e do povo palestino.
Os encontros se desenvolveriam em trs fases. Na primeira, se trataria de garantir uma
transferncia pacfica e ordenada da autoridade na Cisjordnia e na Faixa de Gaza mediante a
adoo de solues transitrias. A populao rabe destes territrios teria autonomia plena e Israel
desmantelaria progressivamente suas estruturas de governo civil e militar que seriam substitudas
por uma autoridade rabe livremente eleita.
Cumprida esta etapa, iniciaria a segunda, durante a qual Egito, Israel e Jordnia negociariam
as formas pelas quais tal autoridade seria constituda, seus poderes e responsabilidades e caberia s
delegaes egpcia e jordaniana a escolha de incluir, ou no, em sua composio palestinos da
Cisjordnia e Gaza, ou outros representantes deste povo, de comum acordo com os governantes
israelenses. A progressiva retirada das tropas judaicas seria acompanhada pela criao de uma
polcia local formada por habitantes das duas reas a serem colocadas disposio dos palestinos.
O ltimo passo iniciaria com um perodo de transio de 5 anos contado a partir do
nascimento da autoridade para o auto-governo dos territrios cedidos ou da criao de um conselho
para a administrao dos mesmos. As negociaes entre os representantes de Egito, Israel e Jordnia
(e os palestinos por estes indicados e aprovados) iniciariam no mximo 3 anos aps a criao da tal
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autoridade, definiriam o status final de Cisjordnia e Gaza, alm de suas relaes com os pases
vizinhos podendo chegar, inclusive, a um tratado de paz entre o Estado judaico e o governo de Am.
Os dilogos teriam tambm a tarefa de demarcar as fronteiras, estabelecer normas de segurana e
reconhecer os novos direitos do povo palestino.
No que diz respeito questo dos refugiados, o documento se limita a uma meno
extremamente vaga que em nada altera a situao de calamidade em que se encontram
- Bom, Ndia, no me parece to ruim.
- Para Israel timo!...
- Como assim?
- Vejo que suas lentes inteis no conseguiram a proeza de faz-lo enxergar que as decises
bsicas sobre os procedimentos que viabilizariam uma soluo para a questo palestina so tomadas
sem a presena de representantes palestinos e ignorando seus anseios. Alm disso, enquanto os
documentos tratam com clareza a relao entre Egito e Israel, os itens que se referem aos palestinos
so vagos e sujeitos s mais variadas interpretaes. Quer ver?
Por exemplo, qual seria o papel da OLP nas negociaes? De onde se retiraria o exrcito
israelense e que posies manteria nos territrios ocupados? Qual o status da cidade de Jerusalm?
Quem seria escolhido para integrar a polcia palestina? Quem definiria o futuro da terra e dos
recursos hdricos da Cisjordnia e da Faixa de Gaza, elementos essenciais para os assentamentos
judaicos nas duas regies e para o prprio abastecimento das cidades israelenses? O que aconteceria
com os assentamentos dos hebreus nas reas a serem cedidas?
Nenhuma destas questes respondida pelos acordos!
- Sim, eu sei, mas ainda assim acho que voc est sendo radical demais j que tudo isso pode ser
objeto de futuras negociaes que extrapolam as possibilidades de resposta de Camp David!,
afirmo em tom de desafio e provocao.
A coruja se aproxima vagarosamente e, com voz impaciente, no deixa por menos: O que
no entendo como um bpede da sua espcie, dotado de crebro inteligente e olhos equipados com
instrumentos de viso cientificamente aprovados e regularmente aumentados, to mope a ponto
de no perceber que est na frente de um jogo de cartas marcadas.
Se voc tivesse prestado ateno ao meu relato j teria percebido, pelo menos dois
problemas. O primeiro diz respeito ao fato de que, apesar dos acordos preverem a retirada do
governo militar israelense e sua substituio por instituies palestinas autnomas, os poderes reais
destas instituies ainda seriam definidos por Egito, Israel e Jordnia. Ora, considerando que as trs
partes devem chegar a um consenso, evidente que Israel vai vetar tudo aquilo que no o favorece.
Isso significa que a completa autonomia da qual fala o texto s pode se realizar no interior dos
estreitos limites traados pelo consenso entre as trs naes.
O outro problema que a participao palestina no processo de negociao apontado pelos
acordos no passa de uma farsa. Pelos documentos, Egito e Jordnia podem incluir palestinos em
suas delegaes desde que cada um deles receba a aprovao de Israel. As implicaes deste
pequeno detalhe no so poucas. Entre elas vale a pena destacar que a escolha dos representantes
palestinos fica a critrio dos dois governos rabes e no do povo cujo futuro vai ser decidido. E
como cada nome deve passar pelo crivo de Israel, os lderes da OLP e dos movimentos de
resistncia que a integram, com certeza, ficariam de fora.
Se isso no bastasse, toda proposta vinda dos palestinos deve contar com a aprovao de
Egito e Jordnia. Com esta medida, o que os representantes palestinos consideram necessrio pode
no ser encaminhado pelas delegaes rabes, ao mesmo tempo em que tudo aquilo que acharem
inaceitvel pode ser colocado na mesa de negociao pelos governos egpcio e jordaniano.
Acrescente a isso o fato de que cada uma das propostas deste meio ainda deve ser submetida
aprovao israelense e no ter dificuldade em perceber o abismo que se estabelece entre os
interesses palestinos e a real possibilidade deles serem viabilizados.
Pelo contedo dos acordos, as eleies para o autogoverno da Cisjordnia e Gaza vo
acontecer sob a ocupao militar israelense. No se prev sequer a suspenso da legislao militar
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durante o processo eleitoral o que, no mnimo, vai cercear a liberdade de expresso das foras que
vo disputar o pleito.
Uma vez criado o autogoverno palestino, iniciar o perodo de transio programado para
durar 5 anos. Isso significa que esta autoridade autnoma vai governar um territrio sob ocupao
militar estrangeira e no tem sequer a liberdade de apontar as regies das quais as tropas judaicas
devem se retirar. E tem mais. Esta parte do acordo acaba legitimando uma ocupao militar que a
nvel internacional considerada ilegal.
- Tudo bem, Ndia, voc venceu. Mas se esta a dura realidade, como que o mundo reagiu ao
acordo de paz assinado pelo Egito?, pergunto enquanto a coruja parece secar com a asa as gotas de
veneno sadas do bico ao longo de sua investida anterior.
J recomposta, a ave deixa que alguns instantes de silncio se estabeleam entre ns para
que o relato possa ser recebido com clareza e objetividade. Depois de alguns Muito bem,...
vejamos.... Sim.... isso mesmo..., Ndia fecha os olhos e com expresso compenetrada continua:
Em maior ou menor grau, os pases do Ocidente sadam os acordos de Camp David como um
passo rumo pacificao do Oriente Mdio.
A Unio Sovitica, deixada margem das negociaes e substituda pelos EUA no papel de
aliado do Egito, critica o acordo de paz dizendo que favorece Israel em prejuzo dos povos rabes.
Sria e Iraque expressam duras crticas, enquanto Jordnia, Arbia Saudita e Kuwait, cuja
poltica externa mais prxima s posies ocidentais, assumem uma atitude de espera, ainda que
no deixem de sublinhar que o governo do Cairo escolheu o caminho da paz em separado com Israel
em prejuzo dos palestinos.
No Egito, as reaes vo do entusiasmo e da sensao de alvio pelas perspectivas de uma
paz duradoura a vozes discordantes que falam em traio. Boa parte das crticas vem do ambiente
universitrio, enquanto nas mesquitas so duros os sermes contra os acordos.
O Comit Executivo da OLP condena Sadat e os textos de Camp David como conspirao
antipalestina e convida a populao dos territrios ocupados a realizar uma greve geral de protesto
contra os acordos.
Na primeira semana de novembro de 1978, a Liga rabe decide aplicar uma srie de sanes
ao Egito, caso este venha a assinar o documento final dos acordos, transfere sua sede do Cairo para
Tunis e destina 3 bilhes e meio de dlares para financiar atividades de resistncia contra o Estado
judaico.
Em Israel, a grande maioria da populao apia o tratado de paz e os debates no parlamento
se concluem com o voto favorvel de 84 dos 120 legisladores.
At a assinatura dos documentos finais, em 26 de maro de 1979, os acordos de Camp David
passam por momentos crticos tanto em funo da ascenso, no Ir, do regime fundamentalista
islmico liderado pelo Aiatollah Khomeini (que aumenta as presses sobre Sadat e Carter), como
pela ampliao do nmero de assentamentos judaicos na Cisjordnia e na Faixa de Gaza. Ainda
assim, o texto final reafirma o esprito e o resultado das negociaes j realizadas.
Na mesma poca, Israel e Estados Unidos assinam um memorando no qual delineiam os
passos do governo norte-americano em caso de violao do tratado por parte do Egito e garantem o
fornecimento de petrleo e derivados nao judaica por um prazo de 15 anos.
A paz com o Egito no s deixa Israel com um inimigo a menos, como torna remota a
possibilidade dos demais pases rabes atacarem o seu territrio. Sem o apoio do exrcito do Cairo,
qualquer tentativa de enfrentar os judeus em campo aberto seria fadada ao fracasso.
A determinao de no fazer concesses aos palestinos no est presente apenas na redao
dos textos de Camp David, mas se torna palpvel no esforo de criar novos assentamentos nos
territrios ocupados. Em maio de 1977, os judeus assentados na Cisjordnia e na Faixa de Gaza no
passam de 4 mil. Um ano depois chegam a 7 mil e 500, em 1979 este nmero sobe para 10 mil, at
alcanar os 16 mil em 1981.
Considerando que se trata de uma pequena regio densamente povoada pelos rabes, a
criao de novas colnias judaicas eleva o grau de tenso na regio. Diante desta flagrante violao
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das convenes internacionais sobre territrios ocupados (j que a colonizao permite a posse de
territrios sem ter que anex-los e sem reconhecer os direitos dos rabes que moram neles), em 20
de junho de 1979, o Conselho de Segurana da ONU aprova a Resoluo 452 condenando a poltica
israelense de ampliao destes assentamentos.
Dois anos depois, Sadat e Begin voltam a se encontrar em Alexandria para discutir o
progredir das relaes entre os dois pases e agendar a retomada das negociaes sobre a questo da
autonomia palestina. Mas, em 6 de outubro de 1981, Sadat assassinado por membros de uma
organizao fundamentalista islmica que se ope paz com Israel e considera o presidente do
Egito um tirano. A elite do Cairo teme que o atentado seja parte de um amplo compl para
desestabilizar o pas. Mas, apesar de algumas manifestaes isoladas, a populao continua
apoiando o tratado com Israel. Dias depois, Hosni Mubarak assume o comando do Egito.
- Ndia, agora que voc fechou a parte relativa ao acordo de paz entre egpcios e israelenses, estou
curioso de saber a quantas andam as relaes e as principais posies dos grupos que integram a
resistncia palestina. No comeo, ficou evidente a passagem de uma estratgia baseada em aes
terroristas para uma posio de espera diante do aproximar-se da guerra do Yom Kippur. E, depois,
o que aconteceu com os palestinos?
A coruja abre um sorriso que, se no fosse pelas pequenas dimenses do bico, diria que de
orelha a orelha. Em seguida, a ave volta a assumir uma expresso preocupada como se, ao delinear
os rumos da resistncia, estivesse apontando tambm para um momento de angstia e de dor. Pra
incio de conversa, devemos lembrar que no comeo da guerra do Yom Kippur difcil vislumbrar
algum futuro promissor para a OLP. Desgastada internacionalmente pela ampla utilizao das aes
terroristas, a organizao liderada por Yasser Arafat vai enveredar nos caminhos da luta poltica.
Neste processo, em agosto de 1973, surge a Frente Nacional Palestina dos Territrios
Ocupados (FNP). Baseando-se no fato de que o tratamento dispensado pela ocupao israelense na
Cisjordnia e na Faixa de Gaza no diferencia operrios, camponeses, comerciantes, proprietrios
de terras, empresrios e religiosos, a FNP nasce para responder s tentativas sionistas de romper a
identidade e a unidade do povo palestino. Reunindo tendncias que vo do marxismo ao
nacionalismo liberal, o programa desta Frente reconhece a OLP como legtima representante dos
palestinos e aponta como objetivo de sua luta a instalao de uma autoridade nacional palestina nas
reas libertadas da ocupao israelense.
No incio de 1974, FNP, FDPLP, Al Fatah e Al Saika chegam a concordar com o fato de que
preciso lutar com todas as foras para obrigar o governo de Tel Aviv a deixar a Cisjordnia e
Gaza, territrios onde se instalaria uma espcie de mini-Estado palestino. O problema que esta
postura assumida pela direo majoritria da OLP implica em direcionar a luta para conquistar o
reconhecimento de somente 30% da antiga Palestina, objetivo que, naquele momento, seria
rejeitado pela maioria dos militantes da OLP.
Na anlise de Arafat, e do seu grupo, com o caminhar das negociaes de paz entre Egito e
Israel, outros pases rabes seriam incentivados a fazer o mesmo sem levar em considerao os
palestinos. Da a urgncia de consolidar um programa poltico que as naes do Oriente Mdio
pudessem apoiar. Sem ele, a possibilidade dos palestinos voltarem a ter uma ptria, ainda que numa
pequena poro da antiga terra natal, seria cada vez mais remota.
neste sentido que, entre 1974 e 1975, Al Fatah realiza um amplo trabalho de
convencimento com cada um dos 300 delegados do Conselho Nacional Palestino. Um por um, e
sempre que as circunstancias o permitem, Arafat os convoca para uma conversa particular no seu
quartel geral de Beirute, no Lbano. Quando a proposta apresentada ao Conselho, em 1979, os
votos a favor do mini-Estado so 296. Entre as foras que se opem ao trabalho deste grupo de
faces esto a FPLP e a FPLP-CG que, com a Frente rabe de Libertao, rejeitam a idia de um
poder palestino em Gaza e na Cisjordnia e criam a chamada Frente da Recusa, contrria a qualquer
negociao com o governo de Tel Aviv.
- Sabendo disso, qual a postura da ONU e da Liga rabe em relao OLP?
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- Bom, entre os acontecimentos que respondem sua pergunta est a realizao da cpula rabe de
26 de outubro de 1974 na qual a OLP reconhecida como nica representante do povo palestino e
onde seu grupo dirigente ratifica a proposta de criar o mini-Estado.
Pouco menos de um ms depois, em 22 de novembro, a comunidade internacional, exceo
dos Estados Unidos e Israel, aprova a Resoluo 3236 na qual a ONU reconhece o direito dos
palestinos autodeterminao, independncia e soberania. Pouco depois, outra Resoluo, a
3237, concede OLP a condio de observador na plenria das Naes Unidas.
Diante destas medidas, o embaixador de Israel na ONU pronuncia um duro discurso no qual
acusa as Naes Unidas de convidar o lder de uma organizao assassina (Arafat) a dirigir a
palavra comunidade internacional e, quanto ao futuro, o representante de Tel Aviv no deixa
margem a dvidas: No permitiremos o estabelecimento de uma autoridade da OLP em parte
alguma da Palestina.
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Em 13 de dezembro de 1974, Arafat fala pela primeira vez na Assemblia Geral das Naes
Unidas. Em seu discurso, convida os judeus a sarem do isolamento moral em que se encontram e
renova a proposta de uma convivncia pacfica numa Palestina democrtica: Propomos o
estabelecimento na Palestina de um Estado democrtico no qual cristos, judeus e muulmanos
vivam em justia, igualdade e fraternidade. Recordamos que os judeus da Europa e dos Estados
Unidos so conhecidos por terem conduzido as lutas do secularismo e da separao da igreja do
Estado. Tambm so conhecidos por combaterem a discriminao baseada na religio. Ento,
como podem negar este paradigma humano para a Terra Santa? Como continuar, ento, a apoiar
a mais fantica e fechada das naes em sua poltica?
Anuncio aqui que no desejamos o derramamento de uma s gota de sangue, seja rabe ou
judeu. Tampouco nos alegramos com a continuao de matanas que devem cessar de uma vez por
todas logo que seja restabelecida uma paz justa, baseada nos direitos, nas esperanas e nas
aspiraes do nosso povo. Aqueles que lutam contra as causas justas, os que entram em guerra
para ocupar, colonizar e oprimir outro povo, esses so terroristas. So suas aes que devem ser
condenadas, so eles que devem ser chamados de criminosos de guerra.
A justia da causa determina o direito da luta. Sou um rebelde e minha causa a liberdade.
Sei muito bem que muitos dos que hoje esto aqui estiveram uma vez na nossa mesma posio de
adversidade em que me encontro agora e contra a qual devo lutar.
Vim trazendo um ramo de oliveira e o fuzil de um lutador pela liberdade. No deixem que o
ramo de oliveira caia da minha mo.
26
Seis dias depois, 4 civis israelenses morrem num atentado terrorista promovido pela Frente
Democrtica Popular (FDP), um pequeno grupo que, quinze anos antes, havia se separado da Frente
Popular para a Libertao da Palestina. Ao assumir a autoria do atentado, a FDP diz que o ato para
mostrar ao mundo que o fato de Arafat ter em mos um galho de oliveira no significa que os
palestinos abandonaram a luta armada e que esto dispostos a dialogar por no terem outras sadas,
mas sim que vo negociar partindo de uma posio de poder.
O atentado faz com que Arafat e a OLP fiquem desacreditados ao mesmo tempo em que
revela a impossibilidade da prpria OLP controlar as aes dos vrios grupos que compem a
resistncia palestina.
Diante dos acontecimentos e do desenrolar das negociaes de paz com o Egito, Israel se
depara com a questo de como lidar com a OLP. A possibilidade de reconhec-la e aceit-la como
representante dos palestinos descartada ao mesmo tempo em que ganha espao a idia de liquid-
la atravs de uma interveno militar.
- Voc no vai me dizer que, j, j, vai falar de outra guerra? Vai?
25
Alan Hart, Arafat biografia poltica, pg. 345.
26
Helena Salem, Palestinos os novos judeus, pg. 93-94.
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- De uma no, de duas!, Responde Ndia com expresso preocupada. Mas este assunto
complexo demais para ser resolvido em poucas linhas. Por isso, passe uma gua no rosto para tirar
essa cara de espanto que, daqui a pouco, vou falar do...
7. Lbano: da guerra civil ocupao israelense.
A necessidade de aliviar a angstia diante do anncio de novos conflitos faz com que as
pernas se apressem a levar o corpo at a pia do banheiro. Lavar o rosto no altera a histria, mas
ajuda a espantar o cansao e a devolver aos neurnios a capacidade de raciocnio que decifra seus
enigmas.
Enquanto as mos se projetam para o alto numa gostosa espreguiada, Ndia abre o Atlas na
pgina do Oriente Mdio. A ponta da asa direita acompanha linhas de fronteira, relevos, rios e se
detm sobre o nome de algumas cidades. Os murmrios que saem do seu bico so acompanhados
pelo frentico movimentar-se das plumas dos ouvidos que, como antenas, parecem empenhados em
rastrear cada movimento destes povos em luta.
Devagarzinho, reassumo o posto de secretrio curioso de saber o que a coruja est
enxergando neste mapa que examina com o cuidado tpico dos que procuram um tesouro.
- J est pronto?, indaga Ndia com voz firme e impaciente.
- s suas ordens, Senhora Dona Coruja!.
- Dispense as gozaes que o assunto srio e exige uma atenta retrospectiva histrica!, retruca a
ave levantando o graveto-muleta como uma maestrina que se prepara para dar incio ao concerto. E
aps ferir o ar com movimentos que parecem marcar o ritmo da histria, continua: Pra incio de
conversa, devemos lembrar que, desde a sua independncia da Frana em 1947, o Lbano se torna o
principal centro financeiro e comercial do Oriente Mdio. O fato de ser uma espcie de base
avanada para a penetrao dos investimentos capitalistas no mundo rabe d origem a negcios
lucrativos que enriquecem uma parcela bem pequena da populao crist maronita e muulmana.
- Por que voc faz questo de citar a religio destes setores da sociedade? No bastaria chamar isso
de burguesia ou elite?, pergunto interrompendo bruscamente o relato.
Sem perder a pose e balanando o graveto debaixo do meu nariz, Ndia comea a responder
com a calma de quem sabe que nem sempre os detalhes podem ser omitidos: Acontece que, desde
1943, o Lbano definido como um Estado Confessional, e, por isso, as religies presentes em seu
territrio no podem ser desconsideradas na hora de analisar a sociedade local. O que voc ainda
no sabe que neste pas o poder distribudo de forma proporcional ao nmero de integrantes das
comunidades cuja identidade vem da crena religiosa por eles professada, sendo que a porcentagem
de adeptos tem como base as concluses do censo demogrfico de 1932. assim que aos cristos
maronitas so entregues a Presidncia da Repblica e os postos mais importantes do Exrcito. A
funo de Primeiro Ministro cabe a um muulmano sunita enquanto os xiitas presidem o
Parlamento. As comunidades menores, como os drusos, tm sua representao poltica assegurada
em cargos menos significativos ou de segundo escalo.
- Maronitas? Sunitas? Xiitas?...Drusos? ser que d pra falar alguma coisa de todos estes
sujeitos?, peo intrigado por no entender o que est por trs de cada nome.
- Muito bem, vejamos..., responde Ndia com voz calma e pausada. S para delinear quem
quem, vale a pena lembrar que os maronitas so integrantes de um grupo cristo de rito oriental cuja
origem deita razes no sculo IV e que se estabelece no Lbano cerca de trezentos anos depois.
Chamam-se assim em funo do nome do seu lder, S. Marone, cujo grupo se torna independente da
igreja de Roma por volta do incio do sculo VIII.
Nos anos aos quais o relato se refere, os maronitas esto entre os principais integrantes da
elite libanesa, do Partido Nacional Liberal, de direita, e da organizao paramilitar conhecida como
Falange, cujos vnculos com os grandes monoplios permitem que ela tenha uma fora armada
estimada em 20 mil combatentes.
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Por sua vez, sunitas e xiitas so as duas principais correntes do islamismo sendo que a
segunda tem contornos que apontam para um maior grau de liberdade e igualdade em relao aos
adeptos da primeira. Os membros de suas elites esto representados no parlamento por partidos
cujas posies flutuam da direita moderada para o centro.
Os drusos pertencem a uma corrente religiosa, fundada por Ismail Al-Darazi, que nasce no
interior da linha xiita durante o sculo XI e, apesar das perseguies sofridas, conseguem sobreviver
no Lbano numa regio prxima fronteira com a Sria. A classe mdia drusa integra posies de
centro-direita, enquanto os trabalhadores, com os setores empobrecidos dos grupos sunita e xiita,
vo compor as diferentes organizaes da esquerda libanesa. ao lado destas ltimas que iro
combater as foras da OLP presentes em territrio libans.
- S quero ver como que vai juntar tudo isso com a situao do pas..., comento desconfiado.
- Tenha pacincia, e ver que no to difcil como parece, diz Ndia apoiando-se na muleta para
ir de um lado pra outro da mesa. E continua: O fato do Lbano parecer um osis ocidental no
mundo rabe no significa que a maior parte da populao tenha deixado de experimentar o peso da
pobreza e de uma pesada explorao.
neste pas de contradies profundas, escondidas pela aparente tranqilidade das relaes
sociais, que os guerrilheiros palestinos comeam a se concentrar aps o revs sofrido em funo dos
ataques do exrcito da Jordnia em setembro de 1970. Passo a passo, seus comandos se estabelecem
no sul do Lbano sem que as foras armadas locais tenham a menor condio de bloquear o avano
de suas bases. Em seguida, a vez da direo da OLP montar seu quartel geral em Beirute.
Contando com a ajuda financeira dos pases rabes, a Organizao para a Libertao da
Palestina consegue ampliar sua fora militar e a insero entre os refugiados. assim que, nos
primeiros anos da dcada de 70, a maior parte do sul do Lbano, setores da capital e, praticamente,
todos os campos de refugiados se tornam uma espcie de Estado no Estado sobre o qual o governo
central libans no tem poder.
Esta realidade irrita e preocupa a elite local, sobretudo a de origem maronita. E no pra
menos. Do outro lado da pirmide social, a maior parte da populao muulmana (cujo crescimento
demogrfico se revela bem superior ao dos cristos) encontra na resistncia palestina um novo
alento para a perspectiva de transformao revolucionria do pas. E, como voc bem pode
imaginar, os conflitos internos no tardam a aparecer.
Em janeiro de 1975, o lder da Falange, Pierre Gemayel, e o seu aliado do Partido Nacional
Liberal, Camile Chamoun, desencadeiam uma campanha pela redefinio do status da guerrilha
palestina no Lbano e exigem o fim do livre trnsito da OLP no pas. neste clima de tenso que,
trs meses depois, uma srie de pequenos conflitos ganha as feies de uma sangrenta guerra civil.
A propaganda da direita anuncia a necessidade de reconquistar o pas para os libaneses, j
que este estaria sendo usurpado pelos palestinos, e os cristos maronitas levantam a bandeira da
prpria sobrevivncia. Em resposta, os muulmanos reivindicam o fim do pacto de 1943 em funo
do qual so colocados em situao de inferioridade apesar de serem numericamente superiores aos
cristos.
Os contornos religiosos que marcam a guerra civil escondem que a Falange e o Partido
Nacional Liberal lutam para conservar seus privilgios, seriamente ameaados pelo
descontentamento popular. Do outro lado, os setores progressistas e de esquerda, liderados pelo
druso Kamal Jumblatt, evidenciam que o conflito no tem um carter confessional, mas sim que ele
apenas o resultado da exploso das tenses sociais historicamente acumuladas.
De incio, a resistncia palestina faz o possvel para no meter a colher nesta disputa. Mas
esta posio se torna insustentvel quando, no dia 13 de abril, os milicianos da Falange metralham
um nibus de militantes palestinos matando 26 pessoas. OLP no resta outra escolha a no ser a
de combater ao lado da Frente Progressista.
Ao longo de 1975, os enfrentamentos se intensificam devastando o pas e, sobretudo, a
capital, Beirute. No incio de 1976, nenhuma das foras em jogo consegue se afirmar como
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hegemnica e pr um ponto final guerra. Ainda assim, palestinos e progressistas conseguem
alguns avanos em relao s foras da Falange.
- Voc quer dizer que, mais cedo ou mais tarde, eles vo levar a melhor...
- Talvez iriam..., retruca Ndia deixando pairar a dvida no ar. Acontece que, em abril de 1976,
aps um ano de violentos combates, a Sria intervm militarmente no Lbano.
- J sei! O governo de Damasco entra em cena, separa os rivais e pacifica as foras em luta,
comento na certeza de acertar em cheio o desenrolar dos acontecimentos.
A coruja se cala, balana a cabea e, suspirando, emite um Seria bom se fosse verdade...
que apaga o fogo da empolgao recm-manifestada. Na verdade continua Ndia com olhar triste
e angustiado -, os 30 mil soldados enviados pela Sria se dirigem contra a Frente Progressista e a
OLP justo no momento em que a elite maronita encontra-se numa situao difcil.
- Mas por que eles fazem isso?
- A razo simples. O governo de Damasco teme que a guerra civil libanesa acabe respingando em
seu territrio, alimentando o descontentamento popular e colocando em perigo a ordem interna.
por isso que seus soldados no hesitam em abrir fogo justamente contra as milcias progressistas e
da prpria OLP.
Vendo isso, Israel reduz o tom dos seus protestos contra a invaso at se calar
completamente aps perceber que ela conta com o apoio tcito dos Estados Unidos. Na verdade, o
governo de Washington no est preocupado com o aumento da violncia e do nmero de mortos,
mas to somente com o temor de um possvel avano da esquerda no Lbano e com uma melhora
significativa das possibilidades de ao dos guerrilheiros palestinos. Neste contexto, a Sria acaba
sendo o nico ator capaz de deter estas foras e acabar com a guerra civil dispensando qualquer
interveno ocidental. assim que, apesar dos apelos do mundo rabe, as tropas de Damasco
penetram cada vez mais no Lbano centrando fogo nas foras progressistas.
No incio de junho de 1976, a Sria intima a esquerda a abandonar suas posio entre a
plancie do Bekaa e o centro do pas. A Frente Progressista resiste e os enfrentamentos prosseguem
deixando um rastro de milhares de mortos.
Aps 15 meses de luta, o Lbano est dividido: os cristos maronitas dominam cerca de mil e
300 quilmetros quadrados ao longo do litoral do Mar Mediterrneo, partindo de Beirute at o sul
de Trpoli, a maior cidade do norte; os muulmanos progressistas e os palestinos controlam Trpoli,
uma pequena rea costeira prxima a ela e quase todo o sul do pas; a Sria mantm em seu poder o
centro e toda a plancie do Bekaa, o que equivale a dois teros do territrio libans. Beirute
encontra-se fracionada em dois: o lado oeste controlado pelos progressistas enquanto os maronitas
dominam o leste.
Os combates continuam e, em agosto de 1976, os palestinos sofrem uma de suas mais duras
derrotas: a queda do campo de refugiados de Tall El Zaatar, encravado na regio leste da capital.
Durante 52 dias, a rea por ele ocupada submetida ao cerco das milcias do Partido Nacional
Liberal e dos Guardies do Cedro, uma organizao maronita de extrema direita cujo objetivo pode
ser resumido em sua prpria palavra de ordem: Cabe a cada libans matar um palestino.
27
Sentindo o aproximar-se da carnificina, a OLP lana apelos desesperados aos pases rabes,
mas o silncio a nica resposta. O campo de refugiados no qual vivem entre 20 e 30 mil palestinos
devastado deixando um saldo de milhares de mortos.
Em outubro, a Arbia Saudita hospeda uma reunio de lderes rabes da qual participam,
inclusive, representantes de Damasco, Beirute e da prpria OLP. No dia 18, anunciado um acordo
para pr fim guerra que dura h mais de um ano e meio. O cessar-fogo respeitado em todo o
pas, mas, na regio prxima fronteira com Israel, os combates entre maronitas e palestinos
continuam.
27
Helena Salem, Palestinos, os novos judeus, pg. 102.
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Com dois teros do territrio destrudos, cerca de um milho e meio de desabrigados, 60 mil
mortos e 250 mil feridos (de acordo com estimativas difceis de serem confirmadas) o Lbano
comea o trabalho de reconstruo.
Apesar dos golpes sofridos pela interveno da Sria, a OLP sai fortalecida da guerra civil.
Em relao ao perodo anterior a 1975, a guerrilha palestina controla agora uma regio mais ampla
do sul do pas, os campos de refugiados de Beirute e Trpoli e algumas reas que antes estavam sob
a influncia maronita. Alm disso, conta com cerca de 30 mil combatentes bem armados, uma fora
policial prpria, um sistema judicirio e uma rede de escolas e hospitais. Ao falar deste perodo, o
historiador palestino Rachid Khalidi faz reparar que a guerra civil libanesa marca o auge da
reconstruo da identidade nacional palestina e acaba sendo um estmulo de primeira grandeza
expanso da OLP no Lbano.
- Bom, pelo visto, Israel at agora no se meteu nesta histria..., comento na tentativa de descobrir
o que aconteceu com um dos atores sempre presente em todas as etapas do relato.
De rabo de olho, Ndia acompanha silenciosamente cada um dos meus gestos. Como
professora que acredita na capacidade do aluno de perceber seus prprios erros, a coruja retoma a
conversa com um Tem certeza?, que convida a uma reflexo mais profunda.
- que voc no disse quase nada a este respeito..., respondo para justificar a que agora desconfio
que tenha sido uma bobagem.
Com a ponta das asas na cintura, a ave espera que os olhares se cruzem e de boca cheia
pronuncia um Santa ingenuidade! que faz estremecer a alma. S porque eu concentrei as
atenes na Sria e nas foras que agem no interior do Lbano, no significa que Israel tenha ficado
completamente alheio a toda esta histria.
Pois fique sabendo que o interesse judaico pelo Lbano j visvel at mesmo nos mapas que
os membros da Organizao Sionista Mundial apresentam, em 1919, na Conferncia de paz de
Versailles, aps o fim da primeira guerra mundial. Neles, o futuro Estado de Israel incluiria o
territrio libans at o rio Litani, visto como mais uma fonte essencial de recursos hdricos para o
desenvolvimento da comunidade hebraica.
Se isso no bastasse, a idia de que a linha de fronteira pudesse dividir a regio crist
maronita do Estado judaico apresentada como sada vivel para evitar que o sul do Lbano,
muulmano em sua grande maioria, viesse a ser motivo de preocupao para os hebreus, assim
como j era para os cristos. Sufocados pela presena sionista, os fiis de Maom tenderiam a sair
dele devolvendo ao futuro Estado o territrio correspondente ao perodo anterior dispora ocorrida
ainda sob a ocupao romana.
Mas, apesar deste projeto no vingar, os judeus fazem inmeras tentativas de aliana com os
maronitas, todas elas frustradas e enterradas pelo pacto de 1943 com o qual o Lbano define a
diviso do poder entre os vrios representantes das confisses religiosas presentes em seu territrio.
Mesmo assim, os vrios governos israelenses no desistem da idia de estabelecer melhores
relaes com os maronitas.
Chegando mais perto do perodo que estamos estudando, bom lembrar que, em 1967, o
governo de Beirute no se envolve na Guerra dos Seis Dias e, nos dois anos que seguem, a guerrilha
palestina monta bases avanadas ao longo da fronteira libanesa com Israel. a partir delas que, na
primeira metade da dcada de 70, os fedayn intensificam seus ataques contra as cidades e os
assentamentos judaicos da Galilia. Entre 1975 e 76, a guerra civil e a ao do exrcito israelense na
linha de fronteira conseguem deter os comandos palestinos. Mas, no ano seguinte, a OLP j tem
condies de voltar a intensificar suas incurses.
As foras armadas judaicas no deixam por menos. Bombardeios areos, navais, fogo de
artilharia e as costumeiras represlias comeam a integrar a quotidiana situao de tenso que aflige
a regio da fronteira norte de Israel. O ponto mais alto atingido aps o seqestro de um nibus
israelense nas proximidades de Haifa, em 1978. Em resposta, no dia 15 de maro, trs brigadas do
exrcito de Tel Aviv invadem o sul do Lbano com o apoio da artilharia e da aviao militar.
62
Objetivo declarado da operao: impor aos guerrilheiros as maiores perdas possveis e ampliar o
territrio sob controle das foras maronitas.
Na ao, 300 palestinos so mortos, centenas de casas destrudas e dezenas de milhares de
moradores so obrigados a procurarem abrigo em outras regies. O sucesso da misso permite a
Israel criar uma rea de segurana de cerca de 10 quilmetros de profundidade a partir da linha de
fronteira.
Temendo um novo conflito, em 19 de maro, o Conselho de Segurana da ONU aprova a
Resoluo 425. Nela se determina que um contingente armado das Naes Unidas vai se estabelecer
na regio ocupada pelos israelenses garantindo a retirada das tropas judaicas e a desmilitarizao da
rea. Mesmo contendo a penetrao dos comandos fedayn em territrio israelense, as patrulhas das
foras internacionais no conseguem impedir que o disparo de foguetes e a artilharia palestina
atinjam a Galilia a partir das bases situadas acima da rea de segurana.
A represlia judaica dura e, em 1979, ataca, sistemtica e indiscriminadamente, tanto a
populao civil libanesa como a palestina. Para Arafat, o objetivo destas aes no era s
aterrorizar e matar; seu alvo principal era jogar o povo do Lbano, muulmanos e cristos, contra
o povo palestino. Atravs de cada bomba lanada e de cada projtil disparado, os israelenses
estavam dizendo aos libaneses: no teramos que estar fazendo isso com vocs e no teramos que
estar destruindo este pas bonito se os palestinos no estivessem entre vocs. Realmente, vocs no
devem nos culpar pelo que est acontecendo, mas sim os palestinos. Na verdade, vocs devem odiar
os palestinos.
Desta forma, Begin, Sharon e os demais estavam preparando o terreno para a sua invaso,
a soluo final judaica ao problema palestino.
28
- Se a memria no me engana, agora a pouco, voc acabou de dizer que Israel ocupa uma faixa de
territrio ao longo de sua fronteira com o Lbano o que ajudaria a garantir sua segurana e a
viabilizar o desejo de ampliar o espao sob controle dos cristos maronitas. s isso ou Tel Aviv
vai procurar aprimorar as relaes com a Falange e o Partido Nacional Liberal?.
- Boa pergunta, querido secretrio!, diz Ndia satisfeita ao levantar a ponta de asa para o alto. Na
verdade, necessrio reconhecer que Israel j est fazendo isso ao longo de 1975, quando explode a
guerra civil libanesa. neste momento que alguns vilarejos cristos perto da fronteira israelense
criam milcias locais para resistirem aos ataques das foras muulmanas e palestinas enquanto o
grosso da Falange trava seus combates no norte do Lbano e no tem a menor condio de enviar
contingentes aos povoados do sul.
Sabendo da importncia de estabelecer relaes com este setor para transform-lo em
elemento de conteno do avano das bases guerrilheiras, Israel comea a fornecer assistncia
militar, financeira e mdica aos maronitas. Em setembro de 1977, o pas intervm no conflito com
tropas terrestres, brigadas de pra-quedistas, tanques e peas de artilharia para ajud-los a
defenderem suas posies contra as investidas da OLP.
Pouco a pouco, graas ao dinheiro, ao treinamento e ao apoio tcnico israelense, as unidades
destes vilarejos criam uma brigada da milcia crist que passar a se chamar Exrcito do Sul do
Lbano que, no incio dos anos 80, chega a contar com cerca de mil e 500 soldados.
Paralelamente a isso, em junho de 1976, a elite maronita busca tambm um acordo com o
governo de Damasco, cujas tropas esto combatendo tanto as foras da Frente Progressista como os
palestinos. Mas, ao perceber que o golpe definitivo contra a OLP acaba no acontecendo e que, em
1977, h uma reaproximao da Sria resistncia palestina, o comando da Falange e os membros
do Partido Nacional Liberal vem dissolver-se o que restava da pouca esperana de entendimento
com Damasco.
J em 1977, os enfrentamentos entre a Falange e o exrcito da Sria se tornam mais
freqentes e, em pouco tempo, levam o alto comando maronita a constatar a impossibilidade de uma
vitria militar capaz de obrigar as foras de ocupao a deixarem o territrio libans.
28
Alan Hart, Arafat biografia poltica, pg. 369.
63
Preocupados com o desenrolar dos acontecimentos e com a mudana na correlao de foras
no interior do pas, os maronitas procuram a ajuda de Israel. Mas convencer o governo de Tel Aviv
e a opinio pblica judaica a uma ao militar de amplas propores no tarefa fcil. assim que,
entre 1977 e 79, as milcias maronitas provocam seguidos incidentes com as tropas srias
costumeiramente respondidos com ataques brutais que no tm a menor preocupao de poupar a
vida dos civis. A estratgia do lder da Falange, Beshir Gemayel, simples: obrigar Damasco a um
comportamento cada vez mais agressivo capaz de suscitar a indignao da opinio pblica
israelense. Este sentimento acabaria abrindo as portas para uma possvel interveno direta das
foras judaicas, preocupadas com o novo fortalecimento da OLP.
O envolvimento de Tel Aviv com os acontecimentos do Lbano aumenta sensivelmente em
1979, quando centenas de oficiais da Falange so treinados nos quartis israelenses e os
contingentes maronitas recebem grandes quantidades de armas acompanhadas de assessores
militares e especialistas em servios de inteligncia. Pouco a pouco, a ajuda blica ganha as feies
de uma aliana poltico-estratgica que inclui a coordenao dos comandos militares em vista de
futuras operaes conjuntas.
- Do jeito que a coisa vem vindo, isso no cheira nada bem..., murmuro na tentativa de ter alguns
instantes de descanso para a mo que j faz a caneta produzir garranchos piores que os de costume.
Mas a minha esperana de ganhar uma folga dura muito pouco. Ndia pra, sada a minha
suspeita com um At que desta vez o seu faro est certo!, e, sem ligar para o frentico abrir e
fechar dos dedos, vai mancando rumo a uma pilha de livros desordenadamente amontoados num
canto da mesa. Recostado o corpo, lana um disfarado Onde que ns estvamos?, que sinaliza
a retomada do trabalho.
- Que eu saiba, na crescente perspectiva de um novo conflito em territrio libans.
- Bem lembrado! Pois , como estava dizendo, as relaes poltico-militares entre a Falange e o
governo de Tel Aviv vo aumentando.
Em setembro de 1980, Begin faz a Gemayel a promessa que h tempo estava esperando: Se
os cristos forem atacados pela aviao da Sria, a nossa intervir em sua defesa.
29
Aps esta declarao, o lder da Falange volta a desafiar o exrcito de Damasco que, por sua
vez, manda um recado ao governo judaico: o seu envolvimento direto no conflito o levaria a instalar
baterias de msseis no vale do Bekaa alterando significativamente o equilbrio militar na regio.
Alegando que Israel no iria permitir um genocdio dos cristos libaneses, em 28 de abril de
1981, Begin responde ao desafio da Sria com um ataque areo que atinge algumas de suas posies
no Lbano. Damasco cumpre a sua ameaa instalando os msseis e apontando boa parte deles contra
as principais cidades do territrio judaico. A tenso entre os dois pases aumenta e, um ms depois,
as foras israelenses atacam as bases da OLP no sul do Lbano. Temendo uma nova operao
terrestre do exrcito israelense, a OLP evita responder s agresses.
Diante do aumento do conflito entre a Sria e a Falange e da crescente tenso nas relaes
com o governo de Damasco, Begin prepara o terreno para levar o parlamento a aprovar a
interveno das tropas judaicas no Lbano. Em 3 de junho de 1981, o Primeiro Ministro faz um
discurso no qual defende perante os parlamentares que a segurana e a sobrevivncia dos cristos do
Lbano uma questo de importncia vital para o prprio Estado de Israel.
Ganhas as eleies realizadas em 30 de junho, Begin d prosseguimento ao seu plano
retomando os ataques contra alvos palestinos no sul do Lbano. Desta vez, a OLP responde com o
lanamento de foguetes que atingem a cidade de Qiryat Shmonah, no norte da Galilia. Furioso, no
dia 16 de julho, o Primeiro Ministro judaico ordena novos ataques contra as bases palestinas
deixando um saldo de, pelo menos 300 mortos e 800 feridos, civis em sua maioria. A OLP no se
intimida e nos dias seguintes seus foguetes obrigam cerca de 40% dos moradores de Qiryat a
deixarem a cidade. Apesar da superioridade blica, Israel no consegue derrotar o fogo inimigo.
29
Benny Morris, Vittime, pg. 633.
64
Temendo que a situao fuja do controle, os Estados Unidos intervm e, em poucos dias,
foram Tel Aviv a aceitar um acordo de cessar-fogo. O documento, assinado em 24 de julho de
1981, probe toda agresso armada por mar, terra e ar do territrio libans contra Israel e a rea de
Segurana e destes contra alvos no Lbano.
O governo judaico recebe a interveno estadunidense como uma derrota. A trgua, alm de
permitir OLP a recomposio de sua estrutura militar, interpretada como o primeiro passo de
Washington rumo ao reconhecimento oficial desta organizao.
- Bom, com a guia metendo o bico no conflito, Israel deve ter sossegado o prprio facho.
- Eu no teria tanta certeza..., retruca Ndia deixando um clima de suspense no ar. Aposto que
vai mudar de idia logo que souber o nome da criatura que, em agosto de 1981, vai assumir o
Ministrio da Defesa, acrescenta a coruja aumentando a expectativa.
- Pois, ento, diga!, cobro impaciente.
- Ariel Sharon!.
- Minha nossa..., mas este cara....
- isso mesmo, esta figura conhecida pela crueldade de suas ordens nas guerras passadas vai
trabalhar por quase um ano a procura de um pretexto para invadir o Lbano e dar uma lio Sria e
prpria OLP. Desde as primeiras semanas do seu mandato, Sharon revela uma verdadeira obsesso
em relao a trs objetivos: destruir as posies guerrilheiras, fazer recuar o exrcito de Damasco e
reconstruir as bases do poder maronita. A questo ter uma boa razo para convencer o Parlamento,
o governo dos EUA e a desconfiada opinio pblica internacional quanto necessidade de uma ao
de grande envergadura.
Provocaes e incidentes no faltam, mas como os fedayn farejam a presena desta arapuca
e suas aes no chegam a ameaar os assentamentos judaicos da Galilia, as pequenas escaramuas
de todos os dias no so suficientes para justificar uma investida deste porte.
A to esperada boa razo para o ataque vem na noite de 3 de julho de 1982. Um terrorista
ligado ao grupo de Abu Nidal deixa gravemente ferido o embaixador israelense em Londres,
Shlomo Argov.
30
Apesar de estar claro que o atentado no obra da OLP, Begin e Sharon no perdem tempo
diante da que consideram ser uma provocao suficientemente grave para justificar a invaso do
Lbano, pacientemente esperada h mais de dez meses. As palavras dirigidas aos ministros do seu
governo dispensam comentrios: Nossos embaixadores representam Israel. Atac-los equivale a
atacar o nosso pas. O fato de o atentado ter sido obra de adversrios da OLP, e ser por ela
publicamente condenado, no motivo de inquietao: So todos da OLP. E a OLP que devemos
golpear.
31
No dia 4 de junho, Begin autoriza um pesado ataque areo contra 16 posies da resistncia
palestina, nove das quais no centro de Beirute. Duas horas depois do incio dos bombardeios, a
artilharia fedayn dispara contra os assentamentos israelenses prximos fronteira libanesa. As
incurses da fora area judaica no do trgua e, no dia seguinte, Tel Aviv aprova a invaso do
Lbano.
Graas ao tratado de paz com o Egito, Israel sabe que o governo do Cairo no vai ameaar
suas fronteiras ao longo da pennsula do Sinai e, sem a sua interveno, Jordnia e Sria no tm
condies de arriscar um ataque. Isso d ao Estado judaico a possibilidade de lanar mo de quase
todas as unidades militares disponveis e aproveitar de sua superioridade para chegar em Beirute
apenas seis dias depois.
Diante do fogo israelense, a OLP abandonada sua prpria sorte. Como previsto, os pases
rabes no intervm no conflito e sequer se dignam de enviar algum tipo de ajuda. Cansadas de
30
Abu Nidal um ex-integrante da resistncia palestina que, em 1977, entra em rota de coliso com a orientao
majoritria de Al fatah e assume progressivamente posies pr-iraquianas dispondo-se a atender s necessidades e
interesses dos servios secretos deste pas. Mesmo atacando alvos israelenses, o seu objetivo , em vrias ocasies, o
enfraquecimento indireto de Al Fatah e da prpria OLP.
31
Ambas as citaes foram extradas de Benny Morris, Vittime, pg. 643.
65
sofrerem os ataques indiscriminados do exrcito de Tel Aviv, as milcias da Frente Progressista,
aliadas da OLP no Lbano, no entram na luta. A Sria, a mais radical das naes rabes em rejeitar
qualquer acordo de paz com Israel faz o possvel para no ter que enfrentar o exrcito judaico e, de
conseqncia, se nega a fornecer qualquer apoio resistncia palestina.
- S falta voc dizer que o mundo inteiro vai ficar assistindo isso de camarote!.
- De camarote no, mas quase, j que os interesses em jogo falam mais alto.
- Como assim?.
- Diante do desenrolar dos acontecimentos, na noite do dia 6 de junho, o Conselho de Segurana da
ONU aprova a Resoluo 509 que exige a retirada imediata e incondicional das tropas israelenses.
Os EUA esto entre os pases que assinam o documento, mas o seu gesto no pra valer. De fato, a
poltica do governo Reagan no Lbano visa colocar obstculos s ambies soviticas, por isso, a
ampliao da antiga rea de Segurana de 10 para at 40 quilmetros a partir da linha de fronteira
no vista como razo suficiente para barrar o avano das tropas israelenses.
O problema que estas superam as expectativas e, no dia 8, abrem fogo contra os soldados
da Sria no Bekaa. Begin, convocado pelo Parlamento a prestar esclarecimentos, nega que isso
esteja acontecendo. Porm, diante das evidncias e da possvel ampliao do conflito com o
envolvimento direto da Unio Sovitica, no dia 10 de junho, o governo de Washington solicita aos
chefes de ambos os pases que suspendam as hostilidades. Com a guia mostrando novamente as
garras, a batalha de Bekaa se encerra com um cessar-fogo assinado no dia seguinte.
Aps uma semana de ofensiva israelense, o Lbano encontra-se dividido em quatro partes: a
Sria controla o leste e o norte do Bekaa; Israel o sul at Beirute; os maronitas tomam conta do setor
leste da capital; foras da OLP e da Sria esto na regio oeste de Beirute, enquanto os campos de
refugiado a sul da capital esto isolados e a merc do exrcito de Tel Aviv.
Apesar dos protestos e da indignao internacional, Israel e a Falange apertam o cerco ao
redor das foras da OLP e da Sria posicionadas em Beirute. Alm dos progressivos cortes no
abastecimento de gua, comida, combustveis e eletricidade, a aviao judaica realiza bombardeios
quase que dirios do setor oeste da capital provocando um altssimo nmero de vtimas civis.
Diante dos acontecimentos e temendo pela sorte dos campos de refugiados, a OLP tenta
resistir na esperana de que as reaes internacionais contrrias ao israelense possam deter o
que se anuncia como um massacre iminente. Paralelamente a isso, com o agravar-se da situao,
agora a prpria populao local a pressionar para que a OLP deixe o Lbano.
Em 3 de julho, o embaixador norte-americano em Israel, Samuel Lewis, comunica a Begin
que Estados Unidos e Frana se dispem a enviar tropas a Beirute para proteger a sada dos
guerrilheiros da OLP e os civis palestinos que desejem permanecer no Lbano. O problema
convencer os pases do Oriente Mdio e do norte da frica a aceitar refugiados to incmodos como
os membros da direo palestina.
Oito dias depois, diante da demora nas negociaes e apesar das garantias de que a OLP est
preste a deixar o pas, Ariel Sharon comunica ao alto comando do exrcito o plano de atacar os
bairros da regio sul de Beirute onde esto vrios campos de refugiados e parte da direo da OLP
com o objetivo de destruir os campos e apressar a sada dos dirigentes palestinos. Diante da possvel
escalada do conflito, pacifistas israelenses e governos de vrias partes do mundo intensificam suas
presses e o gabinete judaico sente que no pode prolongar o assdio capital libanesa. Em votao
bem apertada, a ao encomendada por Sharon suspensa.
Ainda assim, no final de julho, com o apoio dos membros da Falange, as tropas judaicas
intensificam seus ataques na tentativa de eliminar a cpula palestina e provocar um colapso de suas
defesas em Beirute oeste. Centenas de civis so mortos, mas a grande maioria dos lderes palestinos
consegue escapar da caada.
Em 21 de agosto de 1982, uma fora internacional de 800 americanos, 800 franceses, 400
italianos e cerca de 300 soldados do exrcito libans protegem o incio da retirada palestina. As
foras da OLP e o que resta das brigadas da Sria partem levando apenas armas leves. Ao todo, 14
mil 348 palestinos e srios deixam Beirute. Parte deles se dirige Bekaa e ao norte do Lbano,
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enquanto os membros da OLP e suas famlias se refugiam na Sria, Arglia, Imen, Iraque, Jordnia,
Sudo e Tunsia. Terminada a sua tarefa, as tropas da fora internacional deixam o Lbano entre 11
e 13 de setembro.
- Pela lgica, agora que a direo da OLP est longe e h uma Resoluo da ONU ordenando a
retirada de Israel dos territrios libaneses ocupados, est na hora do exrcito judaico voltar pra
casa, afirmo esperanoso de que a pacificao das foras em conflito esteja prxima.
Sem alterar o tom de voz e com a muleta pontada em minha direo, Ndia deixa escapar um
Doce iluso!, to intrigante quanto assustador.
- Iluso... por que?, questiono na tentativa de afugentar os maus pressgios.
- s voc lembrar que um dos objetivos da ocupao israelense o de liquidar a resistncia
palestina no sul do Lbano para perceber que, dificilmente, a dupla Begin-Sharon vai largar o osso
sem aprontar outro... outro...
- Outro massacre...?!?, pergunto desconcertado.
- Infelizmente sim, responde a coruja com expresso de pesar. E continua: Voc deve saber que,
aps a sada da OLP de Beirute, o alto comando das foras armadas judaicas discute com os
membros da Falange libanesa o incio de uma operao de limpeza dos bairros do setor oeste da
capital. Beshir Gemayel, lder maronita candidato presidncia, est convencido de que a situao
favorvel expulso dos palestinos do territrio libans. As operaes para dar conta desta tarefa
seriam executadas aps a posse de Gemayel e pelo prprio exrcito libans. Os servios secretos
israelenses dariam as orientaes necessrias e seu vice-diretor, Nahum Admoni, deixa claro que o
princpio de agir com clemncia em relao aos vencidos no deve ser aplicado no caso dos
palestinos.
Dias depois, em 14 de setembro, uma poderosa carga de explosivos derruba o prdio onde
Gemayel est realizando uma palestra para jovens ativistas da Falange. Antes mesmo de encontrar e
efetuar o reconhecimento do seu cadver, Sharon discute com Begin a possibilidade de ocupar
Beirute oeste, onde supe que a OLP deve ter deixado cerca de 2 mil militantes.
Na manh seguinte, o exrcito judaico comea a ocupao enquanto as foras maronitas se
preparam para entrar nos campos de refugiados e executar a tal limpeza decidida de comum
acordo com o alto comando israelense. assim que, por volta das 18.00 horas do dia 16 de
setembro, cerca de 150 homens da Falange entram nos campos de refugiados de Sabra e Shatilla.
Sem encontrar resistncia, a milcia libanesa d incio carnificina que se encerra na manh do dia
18 com um saldo que os prprios servios secretos judaicos estimam no ser inferior aos 800
mortos entre homens, mulheres e crianas.
Trs dias depois, o Parlamento libans elege Amin Gemayel Presidente da Repblica. No
lugar dele, Israel teria preferido Elias Sorkis, mais malevel e mais prximo aos interesses judaicos.
O fato de no respeitar o desejo dos responsveis polticos das foras de ocupao interpretado
como um sinal de que os seguidos massacres haviam desgastado sua influncia sobre as instituies
e a elite libanesas.
Com as imagens da matana de Sabra e Shatilla percorrendo o mundo e abalando a prpria
opinio pblica israelense, os EUA pressionam Tel Aviv a deixar Beirute o quanto antes. Em 26 de
setembro, o exrcito judaico sai da capital libanesa e, nos trs dias que seguem, uma fora
multinacional assume o seu lugar com a tarefa de ajudar o governo a restabelecer a ordem e a dar
proteo ao que resta dos campos de refugiados.
- Ento dessa vez que Israel vai ter que enfiar a viola no saco, j que at seus aliados mais
prximos, os EUA, esto condenando sua ocupao.
Ndia sorri, e com a ponta da asa em minha direo espeta o ar com gestos que parecem
cutucar os neurnios cansados do crebro. No lugar de tentar adivinhar, pare e pense. Voc acha
mesmo que, com os Estados Unidos concordando com a ampliao da dita rea se Segurana para
40 quilmetros e interessados em reduzir a influncia da Sria, o exrcito judaico vai deixar o
Lbano sem mais nem menos?.
67
Tendo o silncio como resposta, a coruja percebe que est na hora de reunir e desvendar
outras peas do quebra-cabea libans: No querido secretrio. O intricado jogo de interesses que
define cada acontecimento vai levar Tel Aviv a manter a presena de suas tropas por um longo
perodo.
De novembro de 1982 a maio de 83, os governos libans e judaico negociam as bases para
um acordo de paz entre os dois pases deixando a Sria fora das conversaes. A relao que se
estabelece durante os encontros diplomticos tpica da situao na qual o pas invasor dialoga de
cima pra baixo com a nao invadida, que, por sua vez, assiste a um novo acirrar-se das tenses
sociais internas.
Aprovado pelo Parlamento, o acordo de paz revogado em 1984 pelo presidente Amin
Gemayel devido s fortes presses do governo de Damasco, cujo exrcito ainda ocupa quase metade
do pas. A to almejada aliana entre Israel e os maronitas naufraga mais uma vez.
Se isso no bastasse, a campanha da Sria contra o acordo aumenta as hostilidades entre
cristos e drusos e, contando com o apoio das faces muulmanas locais, o exrcito srio pe de
joelhos o regime de Gemayel, expulsando de Beirute tanto americanos como israelenses.
neste contexto que fazem sua estria os comandos suicidas do Hezbollah, o Partido de
Deus. Nascido entre 1982 e 83 de famlias ultra-religiosas de muulmanos xiitas, s quais o Ir dar
a ajuda econmica e financeira de que precisam, seus integrantes assumem a tarefa de expulsar do
Lbano todos os estrangeiros e de transformar o pas numa repblica islmica nos moldes criados
pela revoluo iraniana. Em longo prazo, o Hezbollah se prope tambm a desencadear uma guerra
santa para devolver Jerusalm e a Palestina ao islamismo e apagar a influncia do Ocidente cristo
no mundo muulmano.
Alm de seus laos com o Ir, entre 1982 e 84, o Partido de Deus vai estreitar relaes com a
Sria da qual recebe dinheiro, armas e treinamento blico. Pronto para o combate e temendo que a
ocupao israelense se prolongue por tempo indeterminado, j em 1983, o brao armado desta
organizao d incio aos seus ataques. A ao dos guerrilheiros assume formas que vo das
emboscadas aos ataques com explosivos amarrados ao prprio corpo.
assim que, por dois anos seguidos, as foras judaicas e estadunidenses presentes no Lbano
so atingidas por uma crescente espiral de violncia que mata centenas de pessoas e, pouco a pouco,
questiona a deciso de Tel Aviv de manter as posies ocupadas.
Apesar das duras represlias, das torturas, da guerra psicolgica e das milhares de prises
efetuadas, nada parece debilitar as foras do Hezbollah que, em meados de 1984, j est em
condies de realizar uma centena de ataques por ms.
Sob o peso das seguidas investidas e com a opinio pblica interna se manifestando pelo fim
da guerra, em junho de 1985, o exrcito israelense se retira para uma estreita faixa de Segurana de
onde tenta impedir que os assentamentos da Galilia sejam atingidos pelos ataques da guerrilha.
Paralelamente s aes armadas, o Hezbollah prepara sua representao parlamentar e cuida
da administrao de escolas, hospitais e da prestao de servios sociais que lhe permitem uma
insero e uma visibilidade cada vez maiores na vida da populao local. Seus ataques contra as
posies israelenses em territrio libans e os assentamentos judaicos prximos linha de fronteira
varrem assim a segunda metade da dcada de 80, entram pela de 90, e se intensificam a partir de
1995.
Diante de uma situao cada vez mais insustentvel, em maro do ano 2000, Tel Aviv
aprova a retirada de suas tropas do sul do Lbano. A guerrilha xiita no reduz seus ataques at que
em 24 de maio o ltimo soldado israelense deixa o territrio libans. A opinio pblica judaica vive,
ao mesmo tempo, uma sensao de alvio e um profundo sentimento de derrota.
- Pelo visto, voc agora voou da dcada de 80 at o ano 2000 num pulo s. Chegou to longe que
j no consigo fazer a menor idia de por onde andam os palestinos forados a deixar Beirute,
comento em tom de provocao.
Apoiada no graveto-muleta, Ndia se levanta, limpa a garganta e com ar irnico se prepara
para pagar o feito com a mesma moeda. Muito bem, querido secretrio, j que est to interessado
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em no perder o fio da meada vou dispensar o intervalo que estava preste a conceder e iniciar sem
mais delongas o novo captulo onde vou tratar da...
8. A resistncia palestina: da derrota do Lbano Intifada.
Firme em seu propsito de no perder um nico minuto, Ndia no tira os olhos dos papis
sobre os quais a mo direita deita suavemente o instrumento de trabalho. Disfaradamente, a
esquerda se une a ela para estalar os dedos e ensaiar uma gostosa espreguiada.
Apoiada na muleta, a coruja pe a ponta das asas na cintura e observa atentamente cada
movimento. Sentindo-se desafiada, comea a bater ritmicamente a pata para sinalizar que a vontade
de apressar os trabalhos est preste a ultrapassar a fronteira entre a pacincia e a irritao. Mais
alguns instantes e...
- Voc tem trs segundos para agarrar a caneta e coloc-la no incio da folha!, intima Ndia
apontando o graveto em minha direo.
- Mas s uma inocente espreguiada!, suplica a lngua na tentativa de ganhar tempo.
- O problema exatamente este s que lhe serve de biombo. Como se eu no soubesse que a
espreguiada vira levantada, conversa, preguia, enfim, enterro da disciplina de estudo. E tambm
no venha me dizer que um marmanjo de mais de 40 anos ainda faz coisas inocentes..., acrescenta
Ndia com a perspiccia de quem acaba de desmascarar as segundas intenes ocultas na
simplicidade dos gestos.
Fingindo no dar o brao a torcer, os dedos se posicionam vagarosamente enquanto a ave
levanta o graveto para sinalizar o incio do relato. Aps um Como voc mesmo dizia no final do
captulo anterior..., que pretende recolocar nos trilhos a relao com o secretrio s suas ordens,
Ndia esclarece que para recuperar o caminhar da resistncia palestina necessrio voltar no
tempo. Em primeiro lugar, devemos lembrar que, com a destruio de sua infra-estrutura militar
pelas foras armadas judaicas em 1982, a direo e a maior parte dos quadros da Organizao para a
Libertao da Palestina so obrigados a deixarem Beirute e a transferirem seu quartel geral para a
longnqua Tunsia.
Com a perda de muitos combatentes e das armas pesadas, o que resta de suas unidades se
dispersa pelos pases do Oriente Mdio e do Norte da frica deixando assim de representar uma
ameaa para as regies da Galilia. Tanto a OLP, como Arafat, saem do Lbano consideravelmente
enfraquecidos, mas no mortalmente feridos.
Aproveitando desta fragilidade, em setembro de 1982, Ronald Reagan, presidente dos
Estados Unidos, divulga seu plano de paz para o conflito palestino-israelense cujas diretrizes podem
ser resumidas nos pontos que seguem: 1. Apoiar o autogoverno dos palestinos nos territrios
ocupados, a ser viabilizado em associao com a Jordnia; 2. Rechaar a criao de um Estado
Palestino independente; 3. Convencer Israel a retirar suas tropas da Cisjordnia e da Faixa de Gaza.
Por este caminho, os EUA procuram criar as condies para realizar seu objetivo principal: alijar a
OLP dos futuros desdobramentos nos territrios ocupados e garantir que as negociaes ocorram
com lderes palestinos sensveis aos interesses judaicos e norte-americanos.
O plano Reagan provoca fortes discusses no interior da OLP que, alm da dispora de seus
militantes, enfrenta grandes dificuldades para costurar apoios entre os governos rabes, sendo que a
Sria absolutamente contrria a qualquer acordo de paz com Israel e a Jordnia est disposta a
trabalhar para remover Arafat da liderana da Organizao.
Aps escapar de vrios atentados e efetuar inmeros contatos com os delegados do Conselho
Nacional Palestino e com os governantes rabes, no dia 11 de fevereiro de 1985, Arafat e o rei
Hussein da Jordnia assinam em Am um acordo pelo qual se comprometem a trabalharem juntos
pela paz. Hani Hassan, membro da OLP encarregado de coordenar as negociaes com os
jordanianos, assim resume o resultado deste processo: Por razes que o mundo deve compreender, a
OLP no pode aceitar a Resoluo 242, reconhecendo o Estado de Israel, at que Israel reconhea
o direito palestino autodeterminao... Apesar disso, estamos dispostos a tornar concreta a
69
Resoluo 242, e a negociar sobre sua base no contexto de uma conferncia internacional de paz,
sempre que se reconheam como objetivos das negociaes os pontos que seguem: 1. A retirada
israelense dos territrios rabes ocupados em 1967, como exige a resoluo 242; 2. A criao na
Cisjordnia e Gaza de um Estado Palestino em confederao com a Jordnia; 3. O reconhecimento
por todos os Estados, includo o Estado Palestino confederado com a Jordnia, da existncia de
Israel no interior de fronteiras estveis e garantidas; 4. O compromisso de todas as partes
envolvidas de continuar discutindo todos os problemas fundamentais e de resolv-los por meios
pacficos e democrticos.
32
Com o acordo, Jordnia e OLP abrem as portas ao dilogo com Israel enquanto os governos
rabes pressionam Reagan para que convena o Estado judaico a responder positivamente a esta
iniciativa.
Mas as mensagens de Washington no deixam dvidas quanto ao fato de que este ser um
caminho difcil e cheio de percalos. O primeiro passo sugerido a realizao de um encontro entre
um membro da Secretaria de Estado norte-americana e uma delegao composta por jordanianos e
palestinos. No caso dos resultados serem satisfatrios, Arafat deve declarar publicamente que
reconhece as fronteiras israelenses de 1967 e aceita as Resolues 242 e 338 como base para as
negociaes. Em seguida, outro representante da Casa Branca vai receber instrues para se
encontrar em ele em Am, na Jordnia.
Sem escolha, Arafat aceita esta condies.
- Bom, agora que os palestinos acatam as Resolues da ONU como base para as negociaes com
Israel, no vejo razes para Tel Aviv se recusar a aceitar a OLP como interlocutor... comento na
esperana de que uma resposta afirmativa apresse o desenrolar do relato.
Ndia me olha silenciosa e, em seguida, balana a cabea acompanhando seu gesto com uma
frase que acaba com qualquer iluso: Sinto muito, mas a sua preguia vai se frustrar mais uma
vez!, diz em voz firme enquanto dirige a ponta da asa em minha direo. Voc est esquecendo de
que negociar com os palestinos significa, implicitamente, se dispor a colocar em jogo a ocupao
israelense na Cisjordnia e na Faixa de Gaza. Territrios estes dos quais o governo de Tel Aviv no
quer abrir mo.
- Voc no est querendo dizer que....
- Sim, querido secretrio, que o plano de paz estadunidense vai naufragar devido s presses
exercidas tanto pelo gabinete judaico como pelo lobby sionista norte-americano. Ambos criticam o
plano e reafirmam que, para todos os efeitos, a Organizao para a Libertao da Palestina e o CNP
so parte de uma mesma estrutura terrorista e que, ao apoiar o envolvimento de Arafat nas
negociaes, os EUA esto rompendo os seus compromissos com Israel.
Fechado o caminho do dilogo e levados ao desespero pela represso e as humilhaes
quotidianas, fruto da ocupao israelense, grupos palestinos do origem a atos de violncia na
Cisjordnia. Em resposta, Israel ameaa a Jordnia acusando-a de dar abrigo e sustentao a
comandos terroristas. Mas a pagar a conta no ser o rei Hussein, mas sim a direo da OLP. Em 1
de setembro de 1985, contando com a tcita aprovao estadunidense, avies militares israelenses
bombardeiam e destroem o quartel geral de Arafat em Tunis matando 45 membros da sua equipe, 20
civis e ferindo mais de cem pessoas.
Paralelamente a isso, a OLP mantm conversaes com o governo de Londres onde a
Primeira Ministra, Margareth Thatcher, oferece a sua mediao para criar um canal de negociao
entre palestinos e israelenses. Mas esta possibilidade se encerra antes mesmo de sua concretizao
quando, quinze dias aps o ataque areo judaico, um grupo de guerrilheiros da Frente de Libertao
da Palestina seqestra o navio italiano Achille Lauro.
As razes deste gesto, e o prprio seqestro dos seqestradores por parte das foras
estadunidenses, mereceriam um captulo parte. Mas, por sua sorte, vou me limitar a dizer que este
acontecimento cai como uma luva na poltica israelense.
32
Alan Hart, Arafat biografia poltica, pg. 404.
70
Canceladas as negociaes em Londres, Arafat teme que a perda de credibilidade sofrida
pela OLP seja usada por Reagan para no admitir os representantes palestinos junto delegao da
Jordnia. Como primeiro passo para sair desta situao desconfortvel, em 10 de novembro de
1985, Arafat declara no Cairo que renuncia a qualquer forma de terrorismo e que a OLP est
disposta a castigar severamente aqueles que lanarem mo deste meio. Ao mesmo tempo, para
evitar que outros setores da resistncia palestina possam ampliar seu crescimento s custas de Al
Fatah, o lder palestino completa o seu discurso fazendo uma distino entre terrorismo e luta
armada legtima que a prpria Carta das Naes Unidas define como um dos direitos dos povos que
se encontram sob ocupao militar.
Israel reage desqualificando as palavras de Arafat, enquanto grupos de presso judaicos
pedem aos governos de Tel Aviv e Washington que no aceitem a OLP como integrante das
negociaes de paz. Ainda assim, aps uma intensa e atormentada atividade diplomtica, a
administrao Reagan confirma ao rei da Jordnia que est disposta a convocar uma conferncia
internacional na qual a OLP seria convidada a participar caso aceite publicamente as Resolues
242 e 338 das Naes Unidas.
Em nome da Organizao, Arafat acata o pedido norte americano, mas a uma condio: os
EUA devem declarar por escrito que apiam o direito palestino autodeterminao e divulgar esta
posio para o mundo.
- Mas, ao agir assim, ele corre o risco de perder uma chance de ouro!?!
- No, meu secretrio apressado, o problema que, apesar de ter a cor e o brilho do precioso metal,
trata-se de ouro de tolo.
- Srio...?
- A postura da OLP motivada pela descoberta de que a oferta norte-americana no o que parece
ser. De fato, em caso de fracasso das negociaes ou do no comparecimento da delegao
israelense, os palestinos teriam jogado o seu nico trunfo, o reconhecimento de Israel, a troco de
nada. Neste caso, os lderes da OLP ficariam completamente desacreditados e a prpria Organizao
acabaria implodindo.
Os fatos do razo desconfiana dos palestinos. Em 19 de fevereiro de 1986, os Estados
Unidos se negam a atender o pedido de Arafat e a Jordnia anuncia imediatamente que abandona a
OLP como companheira no processo de paz. Em seguida, o rei Hussein fecha os escritrios da OLP
e expulsa do pas at mesmo os dirigentes que tm passaporte jordaniano. Estas reaes provam que
a proposta de Reagan, no passava de uma armadilha preparada de comum acordo com o governo
de Am.
- Pela lgica, toda vez que a porta do dilogo se fecha, se abre a do enfrentamento, certo...?,
pergunto temendo uma resposta afirmativa.
- Por incrvel que parea... sim!, responde Ndia com uma pitada de ironia. E continua: O peso
da dominao israelense e o profundo sentimento de frustrao dos palestinos fazem explodir a
revolta na Faixa de Gaza e na Cisjordnia. Inicia assim um movimento de amplas propores que o
mundo vai conhecer com o nome de Intifada.
- Inti... o que?
- In-ti-fa-da!, silaba a coruja. Trata-se de uma palavra rabe que significa sacudir, chacoalhar
para tirar o que est em cima, enfim, algo parecido ao movimento do cachorro que aps ter sido
molhado sacode o corpo para se livrar da gua. Entendeu?.
- Bom, j sei o que a palavra significa, mas ainda no fao idia de como que um povo submetido
ocupao militar pode fazer isso, questiono intrigado.
- Tenha pacincia que j vou explicar tudo, tintim por tintim, retruca Ndia freando com um gesto
a investida da curiosidade. Em primeiro lugar, necessrio deixar claro que a Intifada no uma
rebelio armada, mas sim uma massiva e persistente campanha de resistncia civil baseada em
greves, fechamento de lojas, enfrentamentos e protestos contra as foras de ocupao. o povo
transformando em arma o que est facilmente ao seu alcance: pedras, pedaos de tijolos, facas e,
excepcionalmente, garrafas incendirias. Trata-se de uma batalha levada adiante por pessoas que
71
querem ser cidads de um Estado palestino e no mais uma massa de sem-ptria que h 20 anos
submetida ocupao de um exrcito estrangeiro.
- Ser que voc pode visualizar melhor as causas desta revolta?.
Ndia olha para o alto e aps alguns instantes de silncio d mostras de ter conseguido
ordenar as idias. Vejamos. Sim isso mesmo diz aps um longo suspiro. So muitos os
elementos que alimentam a raiva e o desespero que do origem a Intifada.
De um lado, temos um profundo sentimento de frustrao diante do fracasso das vrias
estratgias adotadas pela OLP e do imobilismo dos governos rabes que, na hora da verdade, no
titubeiam em abandonar os palestinos sua prpria sorte. A isso deve-se acrescentar que os Estados
Unidos se mantm firmes ao lado de Tel Aviv, enquanto a Unio Sovitica, sob o comando de
Michail Gorbachev, reduz a passos largos o seu envolvimento com o mundo rabe e a ONU
permanece impotente diante dos impasses criados pelo sistemtico descumprimento de suas
Resolues por parte de Israel.
Do outro, encontramos a que parece ser a principal causa da Intifada: a relao quotidiana
que se estabelece entre palestinos e israelenses nos territrios ocupados. Dados divulgados em 1987
revelam que, por exemplo, na Faixa de Gaza, cuja densidade demogrfica est entre as maiores do
mundo, cerca de metade dos moradores de origem rabe vive em condies desumanas tanto dentro
como fora dos campos de refugiados. Enquanto os palestinos encontram-se, literalmente,
amontoados, no mais de 2 mil e 500 colonos judeus controlam cerca de 28% deste territrio e a
maior parte de seus recursos hdricos. Ao mesmo tempo em que falta gua para irrigar as lavouras e
garantir o atendimento das necessidades bsicas palestinas, os assentamentos judaicos so
verdadeiros jardins com direito a piscina.
Se isso no bastasse, a poltica israelense nos territrios ocupados procura dificultar o
desenvolvimento da economia local, subordinando-a aos interesses judaicos. Para proteger suas
indstrias, o governo de Tel Aviv impede que os rabes instalem novas empresas. Uma ampla rede
de normas criada para dificultar as viagens e o deslocamento das mercadorias, para importar
matrias-primas do exterior e at mesmo para construir prdios e galpes. O objetivo disso tudo
transformar a Cisjordnia e a Faixa de Gaza em mercado cativo dos produtos israelenses.
Ao mesmo tempo em que se impede aos palestinos de cultivar os vegetais exportados por
Israel, as autoridades judaicas dirigem a agricultura rabe produo de hortalias destinadas a
satisfazer a demanda da populao israelense ( o caso, por exemplo, da produo de tomates e
pepinos). Desta forma, seus colonos podem usar maiores extenses de terra para plantios cuja
exportao rende polpudas quantias em moedas fortes.
Diante dos limites colocados expanso agrcola e industrial palestina, a fora de trabalho
dos territrios ocupados no tem outra sada a no ser a de procurar emprego em Israel. Em 1987,
so cerca de 120 mil os palestinos da Cisjordnia e Gaza que trabalham no Estado judaico. A maior
parte deles em profisses humildes, mal-remuneradas, sem direitos trabalhistas e, em geral, com
salrios inferiores aos de seus colegas israelenses.
Acrescente a isso o fato de que o impulso colonizao dos territrios ocupados
acompanhado pela poltica de mo-de-ferro do governo de Tel Aviv e no ter a menor dificuldade
em chegar mesma concluso de uma pesquisa israelense realizada na Faixa de Gaza poucos meses
antes da Intifada: a soma de misria, desemprego, explorao, represso, humilhaes constantes,
toques de recolher, irrupes noturnas do exrcito nos campos de refugiados, prises arbitrrias,
torturas, demolies das casas de supostos militantes da resistncia e demais etceteras transformam
a aparente submisso do povo dos territrios ocupados numa verdadeira bomba-relgio.
- Com o vaso j cheio, basta uma nica gota dgua para faz-lo transbordar....
- Voc tem razo. Na segunda metade de 1987, as relaes entre palestinos e israelenses se tornam
cada vez mais tensas. As desordens aumentam em freqncia e intensidade e, no incio de
dezembro, as autoridades judaicas tm a clara sensao de estar perdendo o controle da situao na
Faixa de Gaza. As repercusses dos enfrentamentos atingem tambm Jerusalm e a Cisjordnia
72
onde os colonos judeus no hesitam em atirar nos palestinos e em atacar seus vilarejos toda vez que
se tornam alvo das pedras por eles lanadas.
O governo de Israel se distancia repetidamente da atitude dos colonos, mas faz bem pouco
para coibi-la. rabes e israelenses interpretam esta postura como incapacidade das foras armadas
judaicas de proteger os colonos diante de uma revolta popular. A situao se torna to explosiva que
a provocar sua detonao ser um acidentes de trnsito.
- Um acidente?.
- Isso mesmo! Na manh de 8 de dezembro de 1987, ao norte da Faixa de Gaza, um veculo
utilizado no transporte de tanques do exrcito bate numa perua que leva operrios palestinos do
campo de refugiados de Jibalya aos canteiros de obra em territrio israelense. No choque, quatro
trabalhadores morrem e outros seis so feridos.
Algumas horas depois, espalha-se nos territrios ocupados a informao de que a coliso foi
proposital sendo que o motorista do caminho teria provocado o acidente para vingar a morte de um
israelense assassinado no dia anterior.
Durante os funerais das vtimas, milhares de palestinos ocupam os becos e as vielas de
Jibalya e de outros campos de refugiados da Faixa de Gaza. O destacamento do exrcito
encarregado de controlar as manifestaes que acompanham o enterro alvo de uma verdadeira
chuva de pedras. A Intifada d assim seus primeiros passos.
As notcias dos enfrentamentos colocam em polvorosa os territrios ocupados. Milhares de
palestinos vo s ruas, atiram pedras, queimam pneus e constroem barricadas. As tentativas do
exrcito de dispersar os manifestantes conseguem exatamente o oposto. Em vrias ocasies, os
soldados atiram na multido matando e
ferindo dezenas de pessoas. Mas os
funerais dos mortos, tidos como mrtires,
alimentam novos e violentos protestos que
mostram, na prtica, como nenhuma das
velhas regras impostas pelas foras de
ocupao tem a menor chance de ser
respeitada. Todo o esforo dos vrios
grupos de resistncia destina-se a
enfraquecer o controle judaico sobre
Cisjordnia e Gaza, provocar um desgaste
poltico do governo israelense no exterior
e recolocar a questo palestina entre as
prioridades da agenda internacional.
Isso s possvel na medida em
que a exploso isolada da revolta ganha
consistncia e continuidade com o passar dos dias. As manifestaes quotidianas revelam que sua
aparente espontaneidade conta com bases organizadas durante longos anos. Ao esconderem o rosto
com o keffiyeh, seus lderes no pretendem apenas ocultar sua identidade ou se proteger do gs
lacrimogneo, mas visualizam atravs das cores as organizaes que sustentam a rebelio: branco e
vermelho para os grupos de esquerda, branco e preto para Al Fatah, branco e verde para os
fundamentalistas muulmanos palestinos.
33
- Fundamentalistas muulmanos palestinos? De onde que eles vm?, pergunto para esclarecer a
origem dos que, volta e meia, so citados pelos meios de comunicao.
Ndia se mantm em silncio por alguns instantes. Em seguida, limpa a garganta e,
apontando o graveto-muleta para as folhas do relato, solta um Ento no me resta outra opo a
33
Keffiyeh o vu com o qual os palestinos cobrem a cabea e que, desde a dcada de 30, um dos smbolos de sua
resistncia.
Palestinos da cidade de Gaza atiram pedras contra
tanques israelenses
73
no ser falar um pouco mais sobre eles que me deixa entre a curiosidade e o arrependimento pelo
trabalho adicional que isso vai dar.
Seja como for, a coruja respira fundo e, aps o costumeiro Muito bem, vejamos... com o
qual rene as idias, abre o bico para dar incio quele que aparenta ser um parntese necessrio no
relato da Intifada: Pois fique sabendo que, desde 1967, o grupo fundamentalista islmico
conhecido pelo nome de Fraternidade Muulmana vem intensificando sua presena nos territrios
ocupados tanto nos meios universitrios como na organizao de comits populares e associaes
assistenciais que, pouco a pouco, vo fincando suas razes no dia-a-dia da vida nos territrios
ocupados.
Sem fazer alarde e consideradas irrelevantes pelos servios de segurana israelenses, as
aes da Fraternidade criam sindicatos, associaes profissionais, comits estudantis, instituies de
caridade, jornais, centros de pesquisa e agremiaes destinadas organizao das mulheres. No
final dos anos 70, este grupo fundamentalista coloca disposio dos fiis e de suas famlias no s
os recursos de uma entidade religiosa, mas tambm creches, escolas de 1 e 2 graus, bibliotecas,
postos de sade, clnicas e quadras de esportes.
Tendo como mentor intelectual o sheikh Ahmad Ismail Hasa Yassin, o avano do
fundamentalismo entre os palestinos pode ser medido pela quantidade de mesquitas que so
construdas nos territrios ocupados. Na Faixa de Gaza, elas so 77 em 1967 e chegam a 160 vinte
anos depois, enquanto na Cisjordnia h uma mdia de 40 novas mesquitas por ano ao longo da
dcada de 80.
Atingindo dezenas de milhares de pessoas, a Fraternidade comea a viabilizar-se como uma
alternativa OLP na representao dos muulmanos palestinos. Ao longo dos anos 70 e no incio
dos 80, os membros deste grupo fundamentalista evitam o uso da violncia, razo pela qual o
governo militar israelense no interfere na sua ampliao por entender que as atividades
assistenciais vo minar as bases de apoio da OLP e reorientar os objetivos da resistncia palestina.
Mas as coisas comeam a mudar aps a revoluo iraniana. A partir de 1979, Khomeini e os
xiitas do sul do Lbano introduzem no Oriente Mdio a viso de um islamismo combativo. Isso faz
com que, em 1983, o ncleo central das atividades da Fraternidade Muulmana comece a superar o
carter assistencialistas de suas aes. Um nmero crescente de seus integrantes fala em objetivos
polticos dos palestinos e Yassin coloca a seus seguidores a necessidade de criar uma associao
secreta de carter militar para enfrentar a ocupao israelense. Porm, em junho de 1984, o exrcito
judaico descobre um depsito de armas na mesquita onde Yassin costuma fazer suas pregaes. O
sheikh preso e condenado a 13 anos de recluso, mas doze meses depois, libertado graas a um
acordo de troca de prisioneiros entre o exrcito judaico e a resistncia palestina.
Fora da cadeia, Yassin volta a pregar a no-violncia, mas, em junho de 1987, organiza um
novo brao armado da Fraternidade e cria uma polcia secreta com a finalidade de procurar e
eliminar os palestinos que aceitam colaborar com Israel.
Diante da exploso da Intifada, a Fraternidade Muulmana comea a priorizar as atividades
poltico-militares. Pressionado por sua base e disposto a ganhar terreno em relao aos demais
grupos de resistncia, no dia 10 de dezembro de 1987, o seu lder religioso funda o grupo Hams
que, em maro do ano seguinte j uma fora importante da Intifada na Faixa de Gaza e, em menor
medida, na Cisjordnia.
34
Quase desde o incio, simpatizantes e militantes de Hams so autorizados por Yassin a usar
armas de fogo contra tropas israelenses, mas a falta de treinamento e a pouca disponibilidade de
equipamentos fazem com que a primeira ao militar seja realizada s meses depois.
Em 14 de dezembro de 1987, a Fraternidade Muulmana divulga um panfleto que no deixa
dvidas quanto aos objetivos deste grupo: lutar contra o inimigo sionista, opor-se aos esforos de
pacificao e trazer os pases rabes de volta ao caminho do isl envolvendo-os na luta. O boletim
34
Hams uma palavra rabe que significa fervor e coragem ao mesmo tempo em que as letras que compem o
nome deste grupo so as iniciais de Haramat Al-Muqawma Al-Islamiya, ou seja, Movimento de Resistncia Islmica.
74
descreve o perfeito jovem muulmano como aquele que est pronto para conquistar o paraso com o
martrio lutando contra Israel. Nos documentos divulgados oito meses depois, Hams define a
realizao das aspiraes nacionais dos palestinos como um marco no processo que visa islamizar o
pas e a destruio do Estado judaico como seu objetivo principal. A intransigncia em relao sua
meta apresentada como uma questo religiosa: sendo a Palestina um territrio sagrado do isl,
nenhum muulmano tem o direito de ceder uma parte qualquer.
Neste sentido, a luta contra o sionismo vista como uma obrigao pessoal de cada
muulmano. Compromissos e negociaes com os israelenses so proibidos e a guerra santa (jihad)
apresentada como o nico caminho possvel.
Enquanto os hebreus so chamados de instrumentos do mal, os integrantes das faces da
OLP so comparados a um pai, um irmo, parente e amigo ao qual Hams no pode virar as costas
por se tratar de algum que professa a mesma religio.
- Que voc saiba, nesta poca Hams o nico grupo fundamentalista palestino ou h outros?,
peo instigado pela impresso de ter ouvido algo mais a este respeito.
- Alm dele, h o Jihad Islmico Palestino, mais conhecido como Jihad, responde Ndia satisfeita
em ver que o cansao ainda no tomou o lugar do interesse. Para falar a verdade, este grupo nasce
bem antes de Hams. Jihad tem sua origem no final de 1979, quando, sob a influncia da revoluo
iraniana e desapontados com o carter assistencialista da Fraternidade Muulmana, Fathi Shqaqi,
Abd AlAzizOdah e Bashir Musa preparam um programa de ao que se tornar a base para a
formao do grupo.
Reunindo vrias faces fundamentalistas, Jihad afirma que a unidade do mundo islmico
no uma pr-condio para a libertao da Palestina e sim que a libertao da Palestina pelos
movimentos islmicos a chave para a unificao do mundo rabe muulmano. Em outras palavras,
a guerra santa para livrar as terras palestinas de seus invasores seria a ante-sala de outra que
conduziria construo de um Estado islmico maior.
Ao longo da dcada de 80, a rede clandestina criada pelos militantes de Jihad vai realizar
vrios ataques contra alvos israelenses na tentativa de fazer com que o aumento da represso nos
territrios ocupados crie as premissas de uma ampla insurreio popular. No incio da Intifada,
porm, dois de seus principais lderes esto presos e o nmero menor de adeptos em relao ao
quadro de militantes de Hams vai reduzir sua importncia para o sucesso do levante. Ainda assim,
j nos primeiros dias da revolta, Jihad defende a necessidade da luta armada e em junho de 1988 vai
retomar a propaganda a favor dos atentados suicidas.
At o incio dos anos 90, os membros deste grupo agem em sintonia com os integrantes de
Al Fatah. Apesar da distncia dos seus projetos para a futura Palestina Jihad defende a
implantao de uma repblica islmica fundamentalista enquanto o grupo de Arafat quer a
construo de um estado leigo e democrtico as duas organizaes convergem quanto ao
propsito de pr fim ocupao israelense.
- Ndia, voc j acenou s relaes entre os fundamentalistas e a OLP, mas agora fiquei intrigado.
Se a Organizao para a Libertao da Palestina est Tunis, como que ela faz para coordenar as
aes da Intifada?
- Bom, que durante o primeiro ms do levante, em cada vilarejo, campo de refugiado ou cidade,
os principais lderes locais da resistncia esto envolvidos na construo de comits populares que
organizam os protestos e as greves, coletam fundos, punem os que colaboram com os servios
secretos israelenses e dirigem os ataques contra as foras de ocupao.
Na Cisjordnia, acima dos comits locais, emerge uma coordenao integrada por
representantes de Al Fatah, FPLP, FDLP e do Partido Comunista cuja estrutura bsica j existia
antes da Intifada. Trata-se da Direo Nacional Unitria da Revolta (UNLU, pela sigla em ingls),
chamada tambm de Comando Nacional Unificado.
35
Seus membros se mantm em contato com a
sede da OLP em Tunis tanto para discutir as tticas e as estratgias do movimento como para
35
UNLU: United National Leadership of the Uprising.
75
receber recursos financeiros a serem entregues a dirigentes, ativistas e s famlias dos palestinos
assassinados, feridos ou detidos, ou cujas casas so destrudas pelos israelenses.
- Hams e Jihad participam desta coordenao?
- Apesar de seus militantes estarem na linha de frente dos protestos e dos enfrentamentos, no h
lugar para eles na UNLU em funo da disputa de espao que ocorre no interior da prpria
resistncia palestina. Com a OLP mais forte na Cisjordnia, admitir Hams e Jihad na coordenao
da Intifada significaria dar asas a dois grupos numa regio em que suas foras so mais frgeis. Ao
mesmo tempo em que, na Faixa de Gaza, onde ambos so hegemnicos na conduo das atividades
do levante, as demais faces tentam tirar as rdeas do movimento das mos dos fundamentalistas.
Apesar da distncia de sua sede em relao aos territrios ocupados, todo o trabalho dos
dirigentes da OLP procura recuperar o controle da situao e levar os rabes da Cisjordnia e Gaza a
aceitar sua autoridade. Ganhar a confiana e a representatividade deles visto como um dos passos
necessrios para transformar uma revolta de desfecho incerto num sucesso poltico e diplomtico
que d vida nova prpria OLP.
- Se no me engano, voc falou da criao de Hams como brao armado da Fraternidade
Muulmana e da defesa que Jihad faz da necessidade da luta armada desde o comeo do levante.
Como explicar ento o que o uso das armas na Intifada restrito a casos isolados?, questiono
acreditando ter encontrado uma contradio no relato da coruja.
Sem perder a pose, Ndia comea a andar de um lado pra outro. De repente pra e virando o
corpo em minha direo diz: Acontece que, apesar das declaraes e posturas que integram sua
histria, desde o incio da rebelio, os militantes dos grupos de resistncia percebem a necessidade
de evitar o uso de armas de fogo por entender que esta opo levaria a Intifada a se colocar num
terreno onde o inimigo estaria em clara vantagem. Por isso, a deciso da ampla maioria de
enfrent-lo com instrumentos aos quais no est acostumado e que todos podem encontrar em
qualquer lugar: pedras, tijolos, estilingues, pedaos de pau, facas, machados, etc. Armas no faltam
j que, de acordo com os servios secretos judaicos, h milhares de fuzis e revlveres nos territrios
ocupados, mas sua utilizao ao longo do levante no passa de uma exceo. Tanto a UNLU, como
as lideranas locais, resolvem banir o seu uso para preservar a imagem de revolta popular da
Intifada com os palestinos no papel de Davi e Israel no de Golias.
Longe de diminuir seu impacto, a audcia dos rebeldes aumenta com o desenrolar da
rebelio tanto em funo de algumas limitaes impostas ao exrcito israelense quanto ao uso do
seu arsenal blico, como pela sensao de que a vitria est cada dia mais prxima. Cidades e
vilarejos que nas duas ltimas dcadas vinham mantendo boas relaes com os judeus se tornam
basties de resistncia. De acordo com as foras armadas judaicas, nos primeiros 18 meses da
revolta, registram-se, ao todo, cerca de 41 mil incidentes e 3 mil 585 incndios de roas e pomares.
A estes enfrentamentos se deve acrescentar o no pagamento dos impostos por parte dos
comerciantes de Cisjordnia e Gaza (que leva Israel a perder 40% da arrecadao destas regies), o
boicote aos produtos judaicos e a demisso em massa dos palestinos que atuam como policiais nos
territrios ocupados.
- Pelo visto, a situao est mesmo fora de controle. S no entendo porque o exrcito de Tel Aviv,
sempre to rpido em responder s agresses, parece no estar altura da situao.
- As razes so vrias. De antemo, necessrio reconhecer que tanto o governo como os servios
secretos judaicos so incapazes de prever o levante e de perceber que a Intifada no uma seqncia
de desordens passageiras destinadas a se esgotar com o simples passar dos dias. Isso explica porque
Israel leva cerca de um ms para entender que est diante de uma rebelio popular de grandes
propores e no de fatos isolados.
As primeiras medidas mostram claramente que o governo judaico no titubeia em lanar
mo de toda forma de represso. O exrcito atira na multido e investe violentamente contra os
manifestantes. Do uso de cassetetes s torturas, das prises em massa s sanes pecunirias e da
para os inmeros processos judiciais, toques de recolher, demolies das casas dos militantes,
76
expulso dos lderes dos protestos, fechamento de lojas e ameaas, tudo isso abundantemente
usado no dia-a-dia do enfrentamento da revolta palestina. Resultado: tudo intil.
A dificultar ainda mais a vida dos comandos militares judaicos est o completo despreparo
das foras de ocupao cujo treinamento, eficiente na hora de enfrentar exrcitos regulares ou foras
guerrilheiras, se revela ineficaz diante de um levante popular.
No incio de junho de 1988, o balano dos primeiros seis meses de revolta assustador: 358
palestinos assassinados pelo exrcito israelense, 9 mil e 800 feridos, mais de 20 mil manifestantes
presos e 3 mil 470 aleijados pelas torturas e os maus tratos sofridos nos presdios.
As imagens veiculadas pela mdia so chocantes e as vozes de condenao que se levantam
toda vez que os soldados atiram na massa desarmada fazem com que a estratgia de combate
Intifada seja criticada tanto pela esquerda como pela direita judaicas. A primeira por denunciar sua
brutalidade e a segunda por acus-la de ser fraca e ineficiente.
O problema que, de um lado, a represso consegue deter temporariamente as desordens nos
territrios ocupados, mas, de outro, ao matar, ferir, prender, impedir os deslocamentos e dificultar o
acesso aos servios bsicos, Israel agrava as j precrias condies de vida do povo palestino,
alimentando o ressentimento e o dio popular, combustveis da Intifada. O governo de Tel Aviv vai
sofrer um amplo processo de desgaste at que os fatos o convencem de que a sada no militar e
sim poltica.
- O que voc quer dizer com isso?, pergunto irrompendo repentinamente no relato da coruja.
- Simples. Enquanto a represso israelense o nico instrumento para enfrentar a Intifada, a
revolta se mantm viva entre a populao dos territrios ocupados. As coisas comeam a mudar a
partir de outubro de 1991 com a realizao da Conferncia para a Paz no Oriente Mdio em Madri,
na Espanha. Deste momento em diante, a ao das massas comea a diminuir at ser totalmente
suspensa em setembro de 1993 quando a OLP e Israel assinam os primeiros acordos. Mas sobre este
assunto vou falar mais aps cuidar dos problemas e das conseqncias que a Intifada coloca na
ordem do dia, comenta Ndia enquanto ajeita a muleta debaixo da asa.
Pra comear, bom voc saber que, alm do elevado nmero de mortos, feridos e presos
entre as fileiras palestinas, o levante mergulha os territrios ocupados numa grave crise econmica
que faz a renda mdia, j bastante ruim, cair 35%. Ainda que a dependncia econmica em relao a
Israel comece a se enfraquecer em funo do boicote dos seus produtos, milhares de moradores da
Cisjordnia e Gaza so impedidos de vender sua fora de trabalho no Estado judaico ou nas colnias
israelenses construdas nestes territrios. Alm dos toques de recolher, os seguidos fechamentos das
fronteiras e dos acessos aos assentamentos, impostos pelo exrcito de Tel Aviv, cortam esta
possibilidade dos palestinos garantirem a prpria sobrevivncia.
O desemprego aumenta ainda mais na medida em que Israel suspende os j escassos
investimentos destinados infra-estrutura dos territrios ocupados e, temendo os ataques dos grupos
fundamentalistas, comea a substituir os palestinos por imigrantes vindos do Leste Europeu e por
centenas de milhares de hebreus soviticos que chegam no pas entre 1988 e 1994.
No campo das relaes entre as vrias camadas sociais, a Intifada leva afirmao de uma
nova classe dirigente e a uma melhora significativa da posio das mulheres na sociedade. A
participao ativa nos protestos e manifestaes fortalece tambm a identidade coletiva dos
palestinos, tradicionalmente ameaada pelas diferenas polticas, regionais, religiosas e de classe.
Entre os presos durante a Intifada, muitos militantes aproveitam a recluso para aprender
hebraico e desenvolver contatos com os membros das demais organizaes de resistncia. Esta
relao vai permitir uma reconstruo bastante rpida das clulas guerrilheiras e terroristas no
amanh de sua libertao.
Do lado israelense, estima-se que a queda da produo, das exportaes e do turismo tenha
custado ao Estado entre um e meio e dois bilhes de dlares s no primeiro ano do levante. Mas os
reflexos mais importantes ocorrem no campo poltico. Desde as primeiras semanas, a Intifada abre
os olhos de muitos israelenses quanto ao fato de que seu pas responsvel por uma violenta
ocupao militar e que, para viver em paz, necessrio resolver a questo palestina.
77
O impacto das imagens, dos relatos, das crticas internacionais e do desejo de paz que se
fortalece entre a populao leva a uma radicalizao das discusses entre o Partido Trabalhista e os
conservadores do Likud. Os primeiros comeam a defender que necessrio sair dos territrios
ocupados o mais rapidamente possvel, que indispensvel negociar com a OLP a criao de um
Estado palestino e chegam a considerar os assentamentos judaicos em Cisjordnia e Gaza como um
obstculo para a paz e um risco para a segurana de Israel.
No campo da direita, os discursos ganham tons mais dramticos. Ao ver-se assediados pelos
palestinos e subestimados por uma parte dos parlamentares, os colonos dos assentamentos chamam
os trabalhistas de traidores e assassinos, toda vez que um deles morto por um rabe. Neste
contexto, a expulso em massa dos palestinos se torna uma proposta poltica que chega a ganhar o
apoio de quase metade dos eleitores entrevistados antes das eleies gerais de 1988.
Entre as razes que a sustentam, est a preocupao de Israel com a possibilidade dos 800
mil rabes que moram em seu territrio se unirem ao levante. De fato, no so poucos os que se
sentem fortalecidos em sua identidade palestina e no desejo de pleitear a igualdade econmica,
poltica e social com os israelenses. Nos primeiros meses da Intifada, as aes deste contingente vo
da coleta de fundos a protestos em apoio aos palestinos dos territrios ocupados passando por casos
isolados de enfrentamento e queima de propriedades judaicas. Mas a ao de seus lderes pr-
israelenses acaba condenando abertamente a violncia rabe e contendo sua possvel expanso.
- Agora que voc acaba de apresentar as reaes e as conseqncias da Intifada, ser que d pra
falar alguma coisa sobre como reage o mundo diante das notcias do levante?.
- Foi bom voc me lembrar disso!, diz Ndia com uma expresso que faz o ego se sentir
recompensado. E continua: Ao longo da rebelio a mdia internacional questiona o Estado judaico
sobre as razes pelas quais insiste em no conceder aos palestinos as liberdades por eles
reivindicadas. As crticas neste sentido vm, sobretudo, dos pases europeus, da Unio Sovitica e
de importantes personalidades s quais se somam as condenaes oficiais emitidas pelas Naes
Unidas.
No mundo rabe, a primeira iniciativa diplomtica para enfrentar tanto os problemas criados
pela Intifada, como aqueles que a haviam provocado, vem do Egito. Em 1987, as relaes entre os
governos do Cairo e de Tel Aviv no so das melhores. Ainda assim, em janeiro do ano seguinte, o
presidente egpcio Hosni Mubarak prope a convocao de uma conferncia de paz cujas premissas
prevem a renncia violncia por parte de Israel e dos palestinos por um prazo de seis meses e o
congelamento de todos os projetos de ampliao dos assentamentos judaicos nos territrios
ocupados. Israel rejeita a proposta o plano egpcio cai no vazio.
Em junho de 1988, os participantes da cpula rabe reunida na capital da Arglia se
solidarizam com a Intifada, mas as divises internas provocadas pelo conflito entre Ir e Iraque no
viabilizam nenhum tipo de apoio concreto aos palestinos.
Por sua vez, os Estados Unidos se limitam a criticar determinadas aes repressivas do
governo judaico sem esconder sua averso poltica expansionista e rigidez diplomtica de Tel
Aviv. Mesmo assim, Washington no suspende nem os bilhes de dlares da ajuda financeira nem o
fornecimento de armas a Israel.
Dadas estas premissas, em fevereiro de 1988, o Secretrio de Estado norte-americano,
George Shultz, prope a realizao de uma conferncia internacional no mbito da qual ocorreriam
as negociaes diretas entre Tel Aviv e uma delegao jordaniano-palestina (de acordo com as
exigncias apresentadas por Israel). Mas judeus e palestinos se recusam a participar devido s
discordncias sobre quem vai representar os segundos. As naes rabes insistem no fato de que a
OLP deve participar das negociaes enquanto os israelenses rejeitam tanto a idia de uma
delegao palestina autnoma, como a de negociar diretamente com os dirigentes da OLP.
A recusa de Tel Aviv apoiada pelos Estados Unidos j que a organizao liderada por
Arafat no reconhece o Estado e Israel e no abre mo do terrorismo. Alm disso, o Primeiro
Ministro judaico, Yitzhak Shamir, se ope idia de tratar da questo palestina no interior de uma
78
conferncia internacional na medida em que esta poderia levar formao de uma coalizo
diplomtica contrria aos interesses do Estado por ele representado.
- Pelo visto, estamos num beco sem sada..., murmuro desconcertado diante das razes que levam
ao impasse nas relaes entre os dois povos.
- E seria isso mesmo se novos acontecimentos no contribussem a desbloquear esta situao! -
afirma Ndia levantando a muleta para o alto. O prolongar-se da Intifada preocupa o governo da
Jordnia, pois o clima entre os refugiados palestinos, que constituem cerca de 60% da populao do
seu Estado, de intensa agitao. Temendo que o levante possa ultrapassar as fronteiras e ameaar o
seu governo, em 31 de julho de 1988, o rei Hussein decide cortar todos os remanescentes vnculos
legais e administrativos que h dcadas uniam o seu pas Cisjordnia. Com esta medida, o governo
de Am sinaliza que no quer se comprometer com o futuro deste territrio e, em seguida, corta o
direito cidadania jordaniana de seus moradores.
Estas decises acirram as discusses no interior da OLP quanto postura em relao a Israel
e criao de um Estado palestino nos territrios ocupados. Entre as questes centrais est a
necessidade de avaliar estrategicamente se esse Estado representa uma soluo definitiva ou to
somente uma etapa para a conquista de toda a Palestina.
Em novembro de 1988, representantes da populao da Cisjordnia e Gaza comeam a
pressionar a direo da OLP no sentido dela demonstrar flexibilidade para garantir a simpatia da
comunidade internacional em relao causa palestina usando-a para pressionar Israel a fazer
concesses. Um primeiro sinal de aceitao desta recomendao vem da declarao do Conselho
Nacional Palestino realizado em meados do mesmo ms. Nela os delegados do CNP sadam a
Intifada e conclamam a criao de um Estado palestino com base na Resoluo 181 das Naes
Unidas que, em 1947, havia definido a primeira diviso da Palestina entre rabes e israelenses.
Alm disso, a declarao reconhece a necessidade de chegar a acordos com Israel com base nas
Resolues 242 e 338, repudia explicitamente todas as formas de terrorismo, mas defende o direito
de lutar pela independncia e contra a ocupao estrangeira do prprio territrio.
- Agora fiquei curioso. Como que Israel reage diante disso tudo?.
- O governo de Tel Aviv recebe a declarao com uma boa dose de desconfiana pelas
ambigidades presentes em vrios pontos do texto. De fato, o CNP apela a Resolues da ONU
contrastantes e apia implicitamente os mtodos utilizados pela Intifada. Esta posio se fortalece
na medida em que o Departamento de Estado estadunidense continua considerando Arafat um
terrorista e lhe nega o visto de ingresso para participar da iminente plenria da Assemblia Geral das
Naes Unidas.
Ao mesmo tempo, porm, Washington percebe uma mudana de tom nas declaraes do
Conselho Nacional Palestino e, atravs de contatos informais pede OLP que esclarea suas
posies como condio para os Estados Unidos pensarem em rever sua prpria postura.
Avaliando que o nico caminho para arrancar concesses do governo judaico atravs da
presso norte-americana, Arafat d o primeiro passo para aproximar palestinos e estadunidenses.
Em 15 de dezembro de 1988, em Genebra, Sua, o lder da OLP declara que sua organizao
renuncia completamente a todo tipo de terrorismo e que o CNP aceita as resolues 242 e 338 da
ONU como base para a negociao com Israel no mbito de uma conferncia internacional.
Obtido o que queria, o governo de Washington agenda uma srie de encontros com os
representantes da OLP em Tunis. O reconhecimento estadunidense de que sem o envolvimento
desta organizao seria impossvel construir a paz no Oriente Mdio pago pela OLP com uma
longa lista de concesses.
A aproximao dos Estados Unidos direo palestina recebida como um trauma nos
meios israelenses. Para o governo Shamir, a posio assumida pela OLP no passa de um
movimento ttico j que seus integrantes mantm a destruio de Israel como objetivo estratgico.
Na verdade, a elite judaica se recusa a considerar a hiptese de ceder a Cisjordnia e a Faixa de
Gaza (tidas como partes inalienveis da herana hebraica) soberania rabe.
79
Com a Intifada que no d sinais de esgotamento, Yitzhak Rabin, antes, e Shamir, depois,
formulam propostas para uma futura administrao dos territrios ocupados. Seu contedo, porm,
inferior ao que havia sido estabelecido no acordo de paz com o Egito e acaba sendo rejeitado.
Em maro de 1990, os trabalhistas saem do governo de unidade nacional e, em junho,
Shamir monta o seu gabinete com setores da extrema direita. Diante dos acontecimentos, o
Secretrio de Estado norte-americano, James Baker, manda um recado ao governo judaico: O
nmero de telefone da Casa Branca 202.456.1414; quando tiverem intenes srias a respeito da
paz, chamem-nos.
36
A Intifada continua e o processo de paz vai ficar congelado por mais de um ano. Ser
retomado em 1991 tendo as conseqncias da Guerra do Golfo como pano de fundo.
- Isso quer dizer que...
- Que est na hora de ficar de olhos bem abertos porque vem a o relato sobre...
9. A paz de Oslo.
Animada pela perspectiva de ver o fim do conflito entre palestinos e israelenses, a esquerda
segura a caneta como se estivesse preste a soltar um rojo: longe do corpo e com a ponta
direcionada para o alto.
Intrigada pela postura inusitada, Ndia arregala os olhos, apia uma asa na cintura enquanto
a outra aponta o graveto-muleta para a mo levantada. Desconfiada, a coruja detona um O que
isso?!? que faz o instrumento de trabalho voltar voando para o papel. Instantes de profundo
silncio marcam a espera na qual cansao e curiosidade se materializam em sorrisos e gestos
severos. Ave e homem trocam olhares penetrantes, tpicos dos que, ao se aventurarem pelos
caminhos da histria, trazem em si as mudanas produzidas pelo aprendizado.
Observadora atenta, Ndia sabe que chegou a hora de redobrar os cuidados. Ao apoiar a asa
sobre o ombro, pisca os olhos para introduzir o que aparenta ser um convite: Voc deve ter
percebido que o relato se aproxima cada vez mais dos nossos dias. De um lado, isso facilita o acesso
aos fatos, mas, de outro, a anlise objetiva dos mesmos se torna cada vez mais complexa. Temos
que prestar muita ateno ao terreno onde vamos pisar, seno a rpida sucesso dos acontecimentos
e o enxame de interpretaes que a acompanham podem nos fazer comprar gato por lebre.
Sem emitir palavra, a cabea balana em sinal de afirmao.
Compenetrada, a coruja pe a ponta da asa debaixo do queixo e, silenciosa, parece ordenar o
turbilho de elementos encontrados em seus vos. Aps um isso!, que ilumina o seu rosto,
Ndia usa o graveto para empurrar a caneta como quem pe em movimento o veiculo com o qual
vai dar cor e forma a mais uma etapa de sua viagem: Como vimos no captulo anterior, o persistir
do levante palestino e o aumento da tenso no Oriente Mdio levam os Estados Unidos a tentarem
viabilizar vrias iniciativas de conciliao. Mas as contradies nelas presentes fazem com que seus
apelos caiam no vazio.
Em maro de 1990, as divergncias sobre o contedo de um possvel plano de paz levam
ruptura do governo de unidade nacional israelense que, trs meses depois, substitudo por uma
aliana de direita liderada pelo Likud.
Paralelamente a isso, a Intifada no revela uma estratgia clara de conduo da luta. A
postura mais moderada da OLP no obtm do governo de Tel Aviv as respostas desejadas e a
prpria combatividade da populao palestina comea a sentir o peso de dois anos de dura represso
e das crescentes dificuldades econmicas. Um sintoma de que h um sentimento de frustrao se
instalando nos territrios ocupados , sem dvida, o aumento dos atritos entre as prprias faces da
resistncia.
36
Benny Morris, Vittime, pg. 757.
80
Esta situao ganha novos contornos com a invaso do Kuwait por parte de Saddam Hussein
em 2 de agosto de 1990. Diante deste acontecimento, os EUA organizam uma coalizo de naes
rabes e ocidentais destinada a libertar o pas das tropas iraquianas.
Antes e durante a operao militar, o governo de Bagd vincula o seu gesto questo
palestina na tentativa de dividir as foras adversrias. Ao lanar seus msseis contra algumas cidades
israelenses, Saddam procura envolver o governo de Tel Aviv no conflito na esperana de que a
interveno de suas foras armadas leve os pases do Oriente Mdio a julgarem intolervel o fato de
combater ao lado de Israel contra um pas rabe. Mas as fortes presses estadunidenses convencem
o Estado judaico a desistir de qualquer resposta que possa ser interpretada como uma retaliao.
- Neste cenrio que v o mundo rabe dividido diante da invaso do Kuwait, qual a posio da
Organizao para a Libertao da Palestina?
- Como voc bem pode imaginar diz a coruja enquanto pe a asa atrs das cosas e comea a
andar de um lado pra outro , o fato de ter Israel atravessado na garganta, leva a OLP a apoiar as
aes de Saddam Hussein. A simpatia pelo ditador tem como base vrios elementos. De um lado,
alm de desafiar os Estados Unidos, o governo de Bagd havia desferido um duro golpe contra o
Kuwait e ameaado a Arbia Saudita com o mesmo tratamento. Apesar dos financiamentos
destinados por estas duas naes resistncia palestina, os seus regimes vinham sendo considerados
como as vigas mestras da parte rica, reacionria e pr-ocidente do mundo rabe. Do outro, a OLP v
o Iraque como um possvel novo protetor num momento em que Egito, Sria e Jordnia no
manifestam grande preocupao por sua sorte, e ao mesmo tempo em que o Ocidente, pronto para
desencadear uma guerra contra Saddam Hussein, se mostra sem ao diante dos 24 anos de
ocupao judaica da Cisjordnia e da Faixa de Gaza.
Ganha a guerra, os EUA percebem a urgncia de pacificar o Oriente Mdio como condio
para no desgastar o apoio rabe obtido na campanha para a libertao do Kuwait e reduzir a
possibilidade de conflitos devastadores na regio mais rica em petrleo do planeta.
Tendo apostado no cavalo errado, a OLP est extremamente desgastada. Arbia Saudita e
Emirados rabes cortam qualquer apoio poltico e financeiro causa palestina ao mesmo tempo em
que o Kuwait expulsa cerca de 300 mil refugiados do seu territrio.
Some o efeito destas decises queda na renda dos trabalhadores da Cisjordnia e Gaza, s
dificuldades criadas pela represso israelense e pela deteriorao das condies de vida aps quase
trs anos de Intifada e no ter dificuldade em imaginar as presses internas e externas sobre a
liderana da OLP para que esta negocie um acordo com Israel.
O quadro se torna ainda mais grave aps a chegada de dezenas de milhares de hebreus
soviticos que o governo Likud pretende assentar nos territrios ocupados. S em 1991, o
Ministrio da Habitao, chefiado por Ariel Sharon, inicia a construo de 13 mil novos conjuntos
habitacionais em Cisjordnia e Gaza contra os 20 mil levantados nos 22 anos anteriores.
Este processo acompanhado pela implantao de uma ampla rede de estradas e rodovias de
uso exclusivo das comunidades judaicas. A nova malha viria permite a movimentao de pessoas e
mercadorias sem atravessar os centros palestinos, facilita os deslocamentos entre os assentamentos e
o Estado de Israel e faz com que as foras de ocupao ganhem rapidez e eficincia na hora de
posicionar os efetivos destinados ao controle dos territrios ocupados.
Trocado em midos, os palestinos no podem mais contar com o apoio de alguns pases
rabes, a chegada dos imigrantes judeus reduz as vagas por eles ocupadas no mercado de trabalho
israelense e as demais medidas levam a uma ulterior expropriao de suas terras.
- Pelo visto, a resistncia palestina est realmente em maus lenis..., pondero ao avaliar o
desfecho dos novos acontecimentos.
A coruja pra, vira o corpo e com um leve menear da cabea sinaliza o acerto das minhas
suspeitas. Em seguida, com voz grave, traduz em palavras o que os gestos acabam de anunciar:
exatamente desta situao desfavorvel que o governo Bush quer se aproveitar para levar os
palestinos mesa de negociao na certeza de encontrar uma OLP bem mais flexvel em relao s
suas reivindicaes histricas. assim que, em junho de 1991, os EUA consultam os lderes rabes
81
quanto possibilidade de convocar uma conferncia de paz no Oriente Mdio. A aprovao
recebida, por sua vez, reduz o espao de manobra do governo israelense levando-o a aceitar a
proposta norte-americana.
Em agosto, elaborada uma lista de delegados palestinos considerados aceitveis (ou seja,
residentes nos territrios ocupados, mas no membros da OLP) para integrar a delegao da
Jordnia. Fraca demais para colocar obstculos ou apresentar exigncias, a Organizao para a
Libertao da Palestina aprova os nomes dos que, em 30 de outubro de 1991, esto em Madri,
Espanha, para a conferncia de paz presidida por Estados Unidos e Unio Sovitica com a
participao de Israel, Egito, Sria, Lbano e da delegao jordaniano-palestina, cujos integrantes
vo atuar separadamente.
Durante os trabalhos, que se prolongam at o dia 4 de novembro, os palestinos se mantm
em contato direto com a direo da OLP em Tunis, atendendo s suas diretrizes. A importncia
deste encontro no est nas discusses que nele se desenvolvem, mas em quebrar o gelo da relao
rabe-israelense viabilizando uma agenda de encontros bilaterais.
Em relao questo palestina, porm, no h nenhum avano. Aps uma srie de reunies,
o porta-voz palestino Hana Hashrawi, diz que as mesmas so caracterizadas pela paralisia e a
inrcia. A delegao israelense no tem tido a vontade e nem as instrues necessrias para fazer
progredir as negociaes... tem salvado a aparncia da participao, sem enfrentar os problemas
reais.
37
Dias depois, o Primeiro Ministro judaico, Yitzhac Shamir, deixa escapar numa entrevista
que os avanos nas negociaes no constam dos seus planos e que no veria problemas se os
encontros com os palestinos se arrastassem assim por uma dcada.
Mesmo sem avanos, as reunies provocam reaes adversas tanto em Israel como nos
territrios ocupados. Hams, Jihad Islmica e FPLP apresentam-nas como um caminho para liquidar
o que resta da antiga Palestina. Isso faz com que, de setembro de 1991 a maro de 92, ocorram
vrios enfrentamentos entre as foras dos que se opem conferncia de paz e os militantes das
demais faces da OLP. Durante meses, Cisjordnia e Gaza esto beira de uma guerra civil.
No Estado judaico, o futuro do processo de paz e a situao dos territrios ocupados so os
temas centrais das eleies gerais realizadas em 23 de junho de 1992. O direitista Likud sai do
pleito derrotado e os trabalhistas, liderados por Yizchaq Rabin, compem o novo gabinete contando
com o apoio dos partidos de esquerda e de cinco deputados rabes.
- Boas notcias para a paz?, pergunto sem fazer cerimnias.
Incomodada pela tentativa de apressar o relato, Ndia se aproxima e, espetando o meu
ombro com o graveto-muleta no perde a chance de recriminar a interveno inoportuna: Querido
bpede da espcie humana, me assusta o fato de voc ainda no ter percebido que para analisar os
acontecimentos preciso ter cuca e no pressa! Sem avaliar como seus atores respondem s
contradies presentes na sociedade impossvel entender o desenrolar da histria e vislumbrar os
caminhos do futuro que se abrem diante dela!, afirma a coruja com ar de quem no aceita presses.
Tendo o silncio como resposta, Ndia se aproxima da pasta sobre a qual repousa o
dicionrio formando o que parece ser um assento improvisado. Apoiada a muleta, a coruja acomoda
o corpo no estranho trono cuja combinao de cores ressalta a sua figura em meio desordem que
toma conta da mesa.
- Onde que ns estvamos?, pergunta como quem j conhece a resposta.
- Nas eleies israelenses que se encerram com a derrota do Likud, responde a lngua em tom de
pedido de desculpas.
- Muito bem. Em primeiro lugar, necessrio sublinhar que a vitria dos trabalhistas muda o clima
poltico em Israel. Apesar de ser contrrio criao de um Estado palestino e participao da OLP
no processo de paz, o novo gabinete reconhece que a questo palestina est no centro do
37
Idem, pg. 762.
82
antagonismo rabe-israelense e no descarta a possibilidade de ceder parte dos territrios ocupados
em troca da paz.
Alm disso, Rabin teme que os grupos fundamentalistas se aproveitem da fragilidade de
Arafat para aumentar sua influncia nos territrios ocupados, o que poderia agravar os
enfrentamentos. Sendo assim, o Primeiro Ministro judaico percebe que, com a credibilidade abalada
pelo apoio dado a Saddam Hussein, a OLP est numa posio difcil enquanto a no interveno no
conflito confere a Israel um maior poder de barganha, inclusive no que diz respeito s relaes com
os vizinhos rabes.
Consciente do desafio oferecido pelas oposies internas quanto s possibilidades de acordo
com os palestinos, o novo gabinete dedica o segundo semestre de 1992 construo de uma maioria
parlamentar mais slida. Em dezembro do mesmo ano, palestinos e israelenses ensaiam os
primeiros passos atravs de encontros secretos que ocorrem em Londres. Em seguida, o parlamento
judaico revoga a legislao que probe os contatos com a OLP e, em 21 de janeiro de 1993, Yair
Hirschfeld e Abu Alaa se renem nas proximidades de Oslo, na Noruega. Durante o encontro, os
representantes dos dois povos chegam a um acordo sobre trs questes: 1. A retirada israelense da
Faixa de Gaza; 2. A transferncia gradual do poder econmico aos palestinos; 3. A ajuda financeira
internacional futura autoridade palestina em Gaza.
Entre fevereiro e maio do mesmo ano, as negociaes levam formulao de um documento
chamado Declarao de Princpios. Nele se prev: a realizao de eleies livres na Faixa de Gaza e
numa pequena rea na qual est includa a cidade de Jeric, na Cisjordnia, a autonomia palestina
(mas no a soberania) sobre estes territrios, a retirada gradual das foras israelenses acompanhada
da progressiva transmisso de poderes aos palestinos e a necessidade de um plano de recuperao
econmica abrangente das reas que passariam ao seu controle.
Ao mesmo tempo em que as negociaes secretas com a OLP chegam a posies mais
consistentes, Rabin no hesita em reprimir os militantes de Hams e Jihad que mantm seus ataques
contra as foras de ocupao. Em maro de 1993, o gabinete trabalhista reage a uma srie de
agresses em Jerusalm e Tel Aviv impedindo o trnsito dos palestinos atravs da antiga fronteira
entre Israel e a Faixa de Gaza. Com esta medida, alm de mergulhar no desemprego dezenas de
milhares de trabalhadores, Rabin viabiliza a idia de separar israelenses e palestinos como o melhor
caminho para garantir a segurana dos primeiros.
Diante deste projeto, tanto a direita, que quer anexar a Cisjordnia e Gaza ao Estado judaico,
como os colonos dos assentamentos instalados nestas regies acreditam que a separao de Israel
dos territrios ocupados vai levar retirada das tropas a presentes e ao conseqente fechamento das
colnias judaicas, razo suficiente para aprimorar sua oposio poltica governamental.
Enquanto isso, em Oslo, as reunies entre palestinos e israelenses correm no mais absoluto
segredo e, no dia 20 de agosto, os negociadores assinam o texto final da Declarao de Princpios
numa cerimnia reservada na qual o Ministro das Relaes Exteriores noruegus, Johan Jorgen
Holst cumpre o papel de testemunha do evento.
A notcia do acordo chega imprensa israelense 10 dias depois, quando o documento
submetido apreciao do gabinete judaico que o aprova por ampla maioria.
A situao de Arafat bem mais complexa. Muitos lderes palestinos vem o acordo como
uma verdadeira liquidao na qual se oferece muito em troca de bem pouco. Neste cenrio o
presidente da OLP usa toda a sua habilidade para enfrentar a oposio no s dos grupos marxistas e
fundamentalistas como tambm de muitos membros de Al Fatah.
Conseguido o apoio da maioria, no dia 9 de setembro de 1993, Arafat, atravs de Holst,
envia uma carta ao governo de Tel Aviv. Nela afirma que a OLP reconhece o direito do Estado de
Israel de existir em paz e segurana, aceita as resolues 242 e 338 do Conselho de Segurana das
Naes Unidas, se compromete com o processo de paz rumo a uma soluo pacfica do conflito,
renuncia ao uso do terrorismo e de qualquer outra forma de violncia, e procurar impedir a todas
as foras integrantes da OLP de recorrer a aes armadas. Alm disso, afirma que os artigos da
legislao palestina que negam ao Estado de Israel o direito de existir so inoperantes e no tm
83
mais valor, e que se compromete a propor ao Conselho Nacional Palestino (...) as necessrias
alteraes da Conveno Palestina.
No dia seguinte, Rabin envia uma breve resposta na qual declara que o governo de Israel
decidiu reconhecer a OLP como representante do povo palestino e negociar a paz com esta
organizao.
38
Em 14 de setembro, nos Estados Unidos, Shimon Peres e Mahmoud Abbas assinam o texto
final da Declarao de Princpios na presena de Bill Clinton, Rabin, Arafat e uma centena de
personalidades israelenses, palestinas e estadunidenses. No documento, que passar a ser conhecido
com o nome de Acordos de Oslo, as partes se comprometem a dar continuidade s negociaes e a
viabilizar: 1. A criao de uma Autoridade de Autogoverno Palestino e de um Conselho
democraticamente eleito pelo povo sob a superviso de uma comisso de observao internacional;
as duas instncias vo administrar a Faixa de Gaza e os territrios da Cisjordnia prximos a Jeric
por um perodo de transio no superior a 5 anos, ao longo do qual, palestinos e israelenses, devem
chegar a um acordo permanente baseado nas Resolues 242 e 338 da ONU. 2. A passagem do
governo militar e civil israelense em Gaza e na rea de Jeric para a Autoridade Palestina se dar
nas seguintes esferas: educao, cultura, sade, bem-estar social, impostos e turismo. 3. A ordem
pblica e a segurana interna dos territrios sob a Autoridade Nacional Palestina (ANP) deve ser
garantida por uma fora policial a ser criada pelo Conselho; por sua vez, Israel continua a assumir a
defesa contra ameaas externas, bem como a responsabilidade pela segurana geral dos israelenses e
pela ordem pblica. 4. As instituies judaicas e palestinas se comprometem tambm a cooperar no
aproveitamento dos recursos hdricos, da gerao e distribuio de energia, nas reas de finanas,
desenvolvimento, transporte, comunicao, comrcio, indstria, meio-ambiente, relaes
trabalhistas e bem-estar social; 5. Aps no mais de 3 anos de governo da Autoridade Palestina,
devem ser iniciadas as negociaes sobre os temas mais complexos: o status da cidade de
Jerusalm, a questo dos refugiados, as colnias nos territrios ocupados, o controle das fronteiras,
as relaes com os pases vizinhos e todos os aspectos que forem de interesse comum.
- Deixa ver se eu entendi direito. Pelo que voc acaba de dizer, os assentamentos judaicos ficam
onde esto e nada impede que outros sejam criados. As futuras negociaes vo ter como base as
Resolues 242 e 338 que no contm uma palavra sobre os direitos e as aspiraes dos palestinos.
A volta dos refugiados e as eventuais indenizaes a serem pagas por Israel so deixadas para um
futuro incerto no qual vai ser discutido tambm o status de Jerusalm. O exrcito israelense, de
imediato, vai manter o controle de grande parte da Cisjordnia e da Faixa de Gaza includas as
fronteiras destes territrios com o Egito e a Jordnia. A represso de quem se recusar a cumprir o
acordo e o fim da Intifada vo ficar por conta da polcia palestina, ao mesmo tempo em que nada
garante o fim das incurses militares israelenses nos territrios controlados pela ANP e a renncia
do governo judaico a fazer uso da violncia contra os palestinos. S estou curioso para ver qual a
reao dos dois povos diante do contedo deste acordo negociado s escondidas, comento
pressentindo a chegada da chuva no que se anuncia como um lindo dia de sol.
Surpresa pelo inesperado resumo, Ndia arregala os olhos, cruza as pernas e ajeita as plumas
como quem se prepara para colocar cada coisa em seu devido lugar. Mais alguns instantes de
silncio e a ave comea a fazer um balano da situao: Se voc somar o desejo de paz da
populao israelense com o avanado desgaste das condies de vida dos palestinos aps anos de
Intifada, no vai ficar surpreso diante do fato de que cerca de dois teros deles aprovam o contedo
dos Acordos de Oslo. Os problemas, ento, vo vir justamente desta consistente minoria que, em
ambos os lados, se ope ao processo de paz.
Antes mesmo da assinatura do documento, Hams e Jihad organizam uma seqncia de
atentados terroristas que tem o objetivo declarado de fazer naufragar as relaes com o governo
judaico. Com suas aes, os grupos fundamentalistas pretendem fortalecer a oposio da direita
israelense que se ope ao acordo aumentando as possibilidades desta vir a reduzir as concesses a
38
Idem, pg. 771.
84
serem implementadas por Rabin. Diante de um Estado judaico cada vez mais intransigente, Arafat
no teria fora suficiente para fazer progredir a paz recm-assinada.
Ao mesmo tempo, decididos a evitar uma guerra civil entre os palestinos, Hams, Jihad e o
prprio Al Fatah agem para impedir que suas foras se enfrentem em choques violentos. O fato de
Arafat no tentar frear as aes terroristas parece ter como base duas razes. Alm da fragilidade e
da total falta de recursos da OLP, est o desejo de no dar argumentos capazes de fortalecer a
ampliao de um setor organizado da resistncia palestina com fora suficiente para minar sua
liderana. A segunda est na convico de que os ataques levariam Israel a acelerar a sua retirada
dos territrios definidos pelos Acordos deixando OLP a possibilidade de desenvolver a sua prpria
iniciativa diplomtica e de reafirmar o repdio ao terrorismo.
Diante das ambguas relaes criadas por esta postura, dos seguidos imprevistos, dos
atentados e das agresses vindas de ambos os lados, os detalhes dos Acordos de Oslo levam no
dois, mas sim sete meses para serem negociados.
O incidente mais grave ocorre em 25 de janeiro de 1994 quando 29 muulmanos so
massacrados e cerca de 60 feridos durante a orao matinal na mesquita de Ibrahimiya, em Hebron
por parte de Baruch Goldstein, um mdico israelense que, em seguida, linchado pelos
sobreviventes. Nas desordens que marcam os dias seguintes, as tropas judaicas matam cerca de 30
rabes e ferem outros cem. Cisjordnia e Gaza entram em ebulio e o toque de recolher , vrias
vezes, decretado pelo exrcito. A extrema direita israelense transforma Goldstein em heri e o seu
tmulo em lugar de peregrinao dos muitos colonos que, apavorados com a possvel retirada de
Israel dos territrios ocupados, se opem ativamente ao processo de paz.
Apesar dos pesares, o detalhamento dos Acordos de Oslo assinado no Cairo, Egito, no dia
4 de maio de 1994. Nele se estabelece que: 1. Israel transfere Autoridade Palestina a maior parte
da Faixa de Gaza e uma rea de 65 quilmetros quadrados que inclui a cidade de Jeric; 2. O Estado
judaico continua responsvel pelo controle das fronteiras entre estas reas autnomas e o mundo
externo; 3. O governo de Tel Aviv vai manter a responsabilidade de cuidar da segurana nas
estradas que ligam as colnias ao territrio de Israel e as reas cedidas aos palestinos; 4. A polcia a
servio da ANP vai ter, no mximo, 9 mil integrantes aos quais permitido o uso de armas leves e
de 45 veculos blindados sobre rodas; sua tarefa de impedir que as reas sob controle palestino
sirvam de base para ataques terroristas contra Israel; 5. A marinha israelense vai vigiar o mar que
banha a Faixa de Gaza, mas permite que a Autoridade Palestina disponha de embarcaes para fazer
o mesmo; 6. ANP concedido fazer uso de dois helicpteros e quatro avies para os
deslocamentos entre Jeric e a Faixa de Gaza, mas as aeronaves vo ficar sujeitas s normas de
controle do trfico areo israelense; 7. O governo de Tel Aviv promete libertar 5 mil presos
palestinos no envolvidos em aes terroristas que tenham provocado vtimas, mas se nega a soltar
os prisioneiros dos grupos que, como Hams e Jihad, so contrrios ao processo de paz.
- H avanos em relao aos assentamentos judaicos na Faixa de Gaza?.
- Infelizmente, nenhum, responde Ndia sacudindo a cabea com a expresso de quem lamenta
que um dos principais obstculos ao processo de paz continuar provocando muita dor e sofrimento.
E aps um longo suspiro continua: Em 13 de maio de 1994, o exrcito israelense se retira de Jeric
e, cinco dias depois, o mesmo acontece nas cidades palestinas da Faixa de Gaza. Em 1 de junho,
Arafat chega em Gaza acompanhado pela maior parte da burocracia da OLP e por milhares de seus
combatentes transformados agora em policiais palestinos. A cidade de Gaza nomeada capital da
Autoridade Nacional Palestina e nela se instalam as foras de segurana e o aparato
governamental.
- Bom, pelo menos, espero que agora as coisas melhorem para os palestinos... murmuro
desconfiado diante do tom de voz nada animador com o qual a coruja conduz o seu relato.
- Eu, se fosse voc, no me animaria - retruca Ndia piscando os olhos e apontando a muleta em
minha direo. Acontece que a OLP est com o caixa praticamente vazio e, sem dinheiro, no tem
como agir. Dos 3 bilhes e 200 milhes de dlares oferecidos pelos governos de 35 pases aps a
assinatura dos Acordos de Oslo, s uma pequena parte chega a ser liberada. A ausncia de controles
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confiveis e capazes de garantir a utilizao dos recursos para os fins aos quais se destinam somada
s denncias de corrupo contra os membros da burocracia palestina levam a maior parte das
naes a reter o dinheiro destinado ANP.
Sem ter como pagar salrios, garantir os servios bsicos e desenvolver a infra-estrutura da
regio sob o seu controle, Arafat v sua popularidade cair enquanto cresce a de seus adversrios
fundamentalistas. O sentimento de decepo aumenta tambm diante da questo da segurana dos
territrios sob controle palestino, j que papel da ANP impedir que estes sirvam de base para
atentados em solo israelense. Mas acabar com as atividades de Hams e Jihad significa prender
pessoas que, para muitos palestinos, esto lutando pela liberdade e pela vitria do isl. Em outras
palavras, para proteger Israel, Arafat corre o risco de ganhar a inimizade de um nmero crescente de
seus cidados, ao mesmo tempo em que, entre 1994 e 1996, o Estado judaico continua travando a
sua luta contra o terrorismo com prises, toques de recolher, fechamento de fronteiras e demais
modalidades j utilizadas nos perodos anteriores.
Diante deste quadro, as crticas palestinas ao acordo no demoram a aparecer: as reas
recebidas so muito pequenas, pobres em sua maioria, densamente povoadas e, ainda por cima, a
ANP a frear as atividades dos militantes da resistncia sem que o seu esboo de Estado seja capaz
de oferecer as melhorias econmicas esperadas.
Esta situao cria um dilema tanto para as autoridades palestinas como israelenses. Na
medida em que Arafat perde a sustentao de sua base popular, aumentam as dificuldades de
atender s exigncias dos Acordos. Por sua vez, Begin sabe que o processo de paz s vai progredir
se o seu governo ceder mais territrios, mas tem srias dificuldades em fazer isso devido s
investidas da direita israelense diante dos ataques dos grupos islmicos palestinos.
At maro de 1996, Arafat decide agir para controlar o terrorismo ao mesmo tempo em que
deixa a Hams e Jihad espao suficiente para a realizao de algumas aes de grande repercusso.
A polcia palestina prende os executores materiais dos atentados, mas, uma vez baixada a poeira,
volta a solt-los sem que sua interveno atinja a infra-estrutura e os dirigentes fundamentalistas.
Em meados de 1995, os ataques de Hams e Jihad se tornam cada vez mais freqentes, e para um
crescente nmero de judeus a promessa de que os Acordos de Oslo reduziriam o terrorismo
palestino soa como uma piada de mau gosto.
Mas voc no ache que os palestinos so os nicos a violarem o esprito dos Acordos. Se, de
um lado, Arafat faz vista grossa diante das aes fundamentalistas, de outro, alm da represso e da
no libertao dos prisioneiros, o governo Begin continua expandindo os assentamentos judaicos
nos territrios ocupados e acelerando a construo de moradias no setor leste de Jerusalm. Com
estas medidas, o gabinete trabalhista no s tenta conter o avano da direita israelense como cria
uma srie de fatos consumados com base nos quais vai respaldar a posio judaica nas futuras
negociaes sobre os problemas centrais da questo palestina.
- Nesta altura do campeonato, imagino que as negociaes entre palestinos e israelenses devem
progredir num ritmo bem inferior ao esperado...
- verdade, mas isso no impede que no dia 28 de setembro de 1995 elas cheguem a um novo
acordo provisrio, chamado de Oslo II. Nele se prev que nos territrios da ANP sejam realizadas as
eleies de um Conselho formado por 82 membros e de uma autoridade executiva a serem
empossados 22 dias aps o reposicionamento do exrcito judaico fora dos centros mais povoados da
Cisjordnia, entre eles a cidade de Hebron. Alm disso, no prazo de um ano e meio da sua
assinatura, as foras armadas israelenses devem deslocar seus efetivos para o interior dos
assentamentos ou das bases militares judaicas nos territrios ocupados at que as negociaes
estabeleam o seu destino final. Tel Aviv continua responsvel pelo controle das fronteiras da Faixa
de Gaza e da Cisjordnia e pela segurana dos prprios assentamentos.
Oslo II divide os territrios ocupados em trs tipos de regies: na rea A, que inclui as
reas desocupadas pelo exrcito, a Autoridade Palestina responsvel pela segurana, pela ordem
pblica e pelo controle administrativo, mas no detm a soberania; na rea B, que incorpora
cerca de 68% da populao rabe-palestina, a ANP vai exercer a autoridade civil e tem o dever de
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garantir a ordem pblica, sendo que a ltima palavra em questes de segurana vai ser dos
israelenses; na rea C, na qual entra toda a faixa de terra ao longo da fronteira com a Cisjordnia,
os assentamentos judaicos e as instalaes militares, Israel se encarrega da segurana, da ordem
pblica e da administrao civil sendo que Autoridade Nacional Palestina entregue a
responsabilidade de garantir os servios bsicos populao rabe daquela regio.
O acordo inclui tambm medidas destinadas a fortalecer a confiana recproca, entre as quais
a libertao dos presos palestinos no
envolvidos em atentados que deixaram
mortos ou pessoas gravemente feridas, a no
punio dos que tm colaborado com os
servios secretos judaicos, o combate ao
terrorismo e, at o dia 4 de maio de 1996, o
incio das negociaes sobre a questo dos
refugiados, dos assentamentos nos territrios
ocupados, do status de Jerusalm, das
fronteiras e das relaes internacionais.
O acesso aos recursos hdricos
permanece sob controle israelense e o
governo de Tel Aviv aceita aumentar a
quantidade colocada disposio dos
palestinos. Por sua vez, estes prometem no
fazer nada que possa comprometer as linhas
de abastecimento de gua que atravessam a
Cisjordnia e a Faixa de Gaza com as quais
Israel satisfaz grande parte de suas
necessidades.
Entre novembro de dezembro de
1995, o exrcito judaico se retira das
principais cidades da Cisjordnia (mas no de Hebron) e o seu lugar assumido pela polcia da
ANP.
Em 20 de janeiro do ano seguinte, os palestinos vo s urnas. Arafat, fortalecido pelas
condies criadas por Oslo II, eleito presidente da Autoridade Nacional Palestina com 87,1% dos
votos. Homens de sua confiana, boa parte deles integrantes histricos de Al Fatah, conquistam a
maior parte das vagas do Conselho Nacional Palestino (CNP).
Pouco mais de trs meses aps a sua eleio, o CNP altera a Conveno Palestina revogando
os itens que se opunham existncia de Israel.
- Pelo jeito, o andar da carruagem parece estar normalizando as relaes entre judeus e palestinos.
Mas ser que o mesmo est acontecendo entre Israel, Jordnia e Sria, pases que tm fronteiras
comuns e que ainda no chegaram a um acordo de paz?
Ndia sorri, levanta os ombros e com as asas levemente abertas responde ao meu otimismo
com um Entre judeus e palestinos as coisas no so to simples como voc imagina..., que produz
estranhos arrepios. E, aps alguns instantes de silncio, a coruja acata a segunda parte do pedido ao
expressar que De qualquer forma vale a pena abrir um parntese para falar da Jordnia e da Sria.
Aps a assinatura dos Acordos de Oslo, em setembro de 1993, o rei da Jordnia percebe que
j no h razes para se opor a um tratado de paz com Israel. Para alm da colaborao j
viabilizada ao longo dos anos anteriores, a poltica do Partido Trabalhista israelense abre a
possibilidade de estreitar as relaes econmicas e comerciais com o governo de Am rumo
explorao mais eficiente dos recursos naturais das regies de fronteira e implantao de projetos
que trariam benefcios aos dois pases. Enquanto nas dcadas de 70 e 80 importantes personalidades
da poltica judaica, entre as quais o prprio Ariel Sharon, vinham defendendo a necessidade de
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derrubar o regime jordaniano para transformar o pas num Estado palestino, o gabinete de Rabin
traa com o rei um esboo de acordo a partir do qual possvel dar incio s negociaes oficiais.
Mas h um outro motivo a levar o governo de Am a querer um tratado de paz com Israel.
Em 1991, a Jordnia apia Saddam Hussein quando suas tropas invadem o Kuwait. Esta escolha
leva o rei ao isolamento poltico e econmico tanto por parte dos Estados Unidos como das naes
da pennsula rabe. Por isso, um dos caminhos viveis para restabelecer as relaes est na
demonstrao de que a Jordnia se dispe a contribuir com a pacificao do Oriente Mdio. assim
que, em maio de 1994, os governos de Tel Aviv e de Am iniciam uma srie de encontros
reservados e, diante dos progressos obtidos, os Estados Unidos prometem ao rei o cancelamento de
700 milhes de dlares do que a Jordnia deve s instituies norte-americanas e autorizam a venda
imediata de armas e equipamentos agrcolas ao pas.
Em 25 de junho de 1994, Rabin e Hussein se encontram em Washington onde, em
declarao conjunta, anunciam publicamente o fim do estado de guerra entre as duas naes e os
primeiros passos para reatar as relaes diplomticas. Trs meses depois, os dois pases assinam um
tratado pelo qual se comprometem a viver em paz, a no formar, apoiar ou ajudar qualquer
organizao ou coalizo hostil outra nao e preparam a normalizao das relaes diplomticas,
econmicas e culturais. Israel devolve Jordnia a rea prxima ao rio Araba, ocupada nos anos 60,
e permite que o pas retire dos recursos hdricos ao norte daquela regio 50 milhes de metros
cbicos de gua a mais em relao quantidade disponvel nos anos anteriores. Por sua vez, o
governo de Am eleva em 16-20 milhes de metros cbicos o acesso de Israel ao Araba.
No que diz respeito Sria, a partir da Conferncia de Madri, em 1991, as delegaes de Tel
Aviv e de Damasco se encontram periodicamente em Washington, mas sem nenhum resultado
concreto. As coisas parecem mudar quando os trabalhistas assumem o governo, mas aps algumas
rodadas, as negociaes atolam justamente ao enfrentar as questes mais crticas: a devoluo das
colinas de Golan e as medidas de segurana na fronteira entre os dois pases.
Em dezembro de 1995, as possibilidades de chegar a um tratado de paz ganham consistncia
e Shimon Peres pressiona para que o acordo seja assinado antes das eleies gerais israelenses de
maio de 1996. A Sria no aceita apressar os tempos e deixa clara a sua inteno de retomar os
dilogos aps a posse do novo gabinete.
Mas, com a vitria do Likud, o tratado de paz se torna um sonho distante. Ao divulgar as
linhas mestras da nova administrao, o Primeiro Ministro, Benjamin Netanyahu, declara que Israel
no vai negociar a devoluo das colinas de Golan por consider-las indispensveis segurana do
Estado judaico. Diante da postura intransigente de Tel Aviv, a Sria suspende o dilogo com Israel.
- Sobressaltos parte, pelo menos o processo de paz entre israelenses e palestinos deve estar
caminhando..., comento aliviado.
- Eu no teria tanta certeza..., diz a coruja trazendo de volta as preocupaes que pareciam ter
desanuviado o horizonte do futuro.
- L vem voc com o seu pessimismo! Afinal de contas no se pode negar que os acordos
assinados em 1995 do mais alguns passos adiante em relao ao documento de setembro de 1993 e
que a questo palestina no algo que se pode resolver de uma hora pra outra, afirmo levado pela
vontade de fazer vingar minhas esperanas.
Ndia balana a cabea, levanta e se aproxima. Apoiando a muleta na mo que segura a
caneta assume uma pose na qual sabedoria e conhecimento se mesclam dando origem a uma
repreenso ao mesmo tempo amiga e severa: Quantas vezes devo dizer a voc, bpede de tamanho
grande e crebro preguioso, que o resultado da anlise histrica no uma questo de otimismo ou
pessimismo, mas sim de uma avaliao cuidadosa das aes que seus atores realizam para garantir
interesses polticos e econmicos bem precisos?!?.
- Mas eu achava que...
- J sei, voc acreditava que um punhado de assinaturas fosse suficiente para resolver contradies
que se arrastam e vm se agigantando h mais de um sculo! - afirma sria a coruja ao ver o rosto
corar. Alm dos rancores histricos, voc est esquecendo de que h um setor da sociedade
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israelense cujas posies ganham cada vez mais espao justamente por sua oposio aos acordos
assinados com os palestinos: a direita.
A partir de setembro de 1993, os grupos conservadores comeam a manifestar, de forma
cada vez mais agressiva e insistente, sua oposio ao processo de paz. Cada atentado terrorista
palestino seguido por manifestaes nas quais Rabin abertamente chamado de traidor. A este
coro, se une no s a maior parte dos rabinos como das lideranas polticas do Likud e do Partido
Nacional Religioso.
Para ter uma idia do tom usado pelas oposies, em 4 de maio de 1995, um dia antes da
assinatura de Oslo II, Netanyahu declara: Dem-lhe mais uma hora e Rabin anunciar ter fundado
no Cairo o Estado terrorista palestino. Enquanto os novos compromissos de paz esto sendo
assinados, Zevulun Hammer, do Partido Religioso, se une ao coro dos descontentes proclamando
que um Estado est sendo entregue numa bandeja de prata s organizaes terroristas que
brindam com o sangue de nossos filhos e de nossas filhas.
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Em resposta longa seqncia de insultos e ofensas, os pacifistas de Paz Agora se unem ao
gabinete trabalhista e, com a ajuda de vrias organizaes, promovem uma manifestao de apoio
ao processo de paz. No dia 4 de novembro de 1995, cerca de 100 mil pessoas se renem na Praa
Rei de Israel, em Tel Aviv. Encerrados os discursos, o povo comea a se dispersar. neste
momento que Yigal Amir, estudante de direito de 27 anos, atira em Rabin que morre poucos
minutos aps chegar no hospital.
Assassinada a principal liderana do Partido Trabalhista, Shimon Peres se torna Primeiro
Ministro. At s eleies de maio de 1996, o novo chefe do gabinete chamado a lidar tanto com a
preocupao de ganhar o pleito como com o cumprimento dos acordos de paz, ao mesmo tempo em
que o clima de insegurana criado pelos atentados de Hams e Jihad mina a confiana popular no
prprio processo de paz e acaba fortalecendo os conservadores.
assim que, com o lema Paz e Segurana, Benjamin Netanyahu eleito Primeiro Ministro
com uma votao apertada que lhe confere 50.4% dos votos. No parlamento, o Likud obtm 32
vagas e, graas aliana com setores da direita judaica, garante 66 dos 120 votos da casa. Montado
o gabinete, Netanyahu apresenta as linhas mestras do seu mandato nas quais no constam os
compromissos assumidos por Israel em Oslo II. Ao contrrio, ao se referir aos palestinos, o Primeiro
Ministro chega a falar em autonomia da Autoridade Palestina, mas deixa clara sua firme oposio
criao de um Estado palestino independente e ao retorno dos refugiados. Se isso no bastasse,
acrescenta que seu gabinete vai consolidar e desenvolver os assentamentos judaicos nos territrios
ocupados e no ir negociar o status de Jerusalm.
- Mas isso faz as coisas voltarem a estaca zero!?!
- Na mosca! - comenta a coruja com ar de pesar. Agora, some isso represso de Israel em
Cisjordnia e Gaza, ao fechamento dos territrios, no libertao dos presos e entender logo
porque o sentimento de revolta dos palestinos entra novamente em ebulio.
Aps uma srie de manifestaes, enfrentamentos e duras negociaes com a mediao dos
Estados Unidos, o compromisso de retirar o exrcito de 80% da regio de Hebron comea a ser
cumprido no dia 17 de janeiro de 1997.
Ao longo do mesmo ano, o processo de paz no conhece avanos. Em mais de uma ocasio,
os EUA conseguem reunir os negociadores israelenses e palestinos, mas sem nenhum resultado
concreto. Ao que tudo indica, o gabinete judaico a colocar os maiores obstculos j que, pelo
esprito dos Acordos de Oslo, cada passo deveria ser acompanhado pela desocupao de novos
territrios. Em sua defesa, Netanyahu alega que a onda de ataques terroristas de Hams e Jihad
impede a manuteno dos compromissos assumidos anteriormente e isso leva a um seguido
adiamento dos encontros bilaterais.
Entre novembro de 1997 e fevereiro de 1998, a Secretria de Estado norte-americana,
Madaleine Albright, pressiona Netanyahu a fazer novas concesses. Aps um longo vaivm de
39
Idem, pg. 787.
89
encontros e ameaas, em 23 de outubro de 1998, israelenses e palestinos, reunidos na cidade de
Wye River Plantation assinam um acordo pelo qual o governo de Tel Aviv cede 13% do territrio
da Cisjordnia que antes estava sob controle e soberania israelense. Pelo documento final, porm,
3% considerada rea de preservao ambiental, 1% passa diretamente ANP e o 9% restante tem
controle civil palestino, mas a segurana vai ser garantida pelas foras judaicas; uma outra fatia de
14,2% da Cisjordnia deixa de estar submetida autoridade civil palestina e militar israelense e
vai passar sob o total controle da ANP. Judeus e palestinos se comprometem a combater as
organizaes terroristas e suas estruturas organizativas, a confiscar as armas ilegais, a impedir o
contrabando das mesmas nos territrios da ANP, a prender os suspeitos de assassinato, ao mesmo
tempo em que Israel promete libertar 750 palestinos presos. ltimo, mas no menos importante, os
dois lados decidem iniciar imediatamente as negociaes sobre os pontos mais complexos da
questo palestina sendo que as decises finais sobre os mesmos devem ser tomadas at o dia 4 de
maio de 1999.
- Eu posso estar errado, mas alguma coisa me diz que isso vai jogar areia no ventilador do prprio
Likud, j que vai ser difcil para Netanyahu justificar estas concesses quando sua eleio teve
como fio condutor o propsito de no dar mais nada aos palestinos...
Ndia esboa um sorriso plido e, com voz grave, se prepara para confirmar a minha
suspeita: No necessrio ter bola de cristal para imaginar a frieza com a qual os vrios setores da
direita recebem Netanyahu aps ele assinar concesses superiores s que haviam sido acordadas.
Diante das hostilidades, o Primeiro Ministro se defende alegando que a aplicao do acordo
depende dos palestinos honrarem a parte que lhe diz respeito e, como est convencido de que isso
no ir acontecer, no haver nenhuma transferncia adicional do territrio da Cisjordnia sob
controle israelense.
Esta postura, porm, no convence nem os conservadores e nem os trabalhistas. Os
primeiros porque acreditam que, de uma maneira ou de outra, a ANP vai acabar obtendo os
territrios prometidos. Os segundos porque desconfiam de que Netanyahu vai lanar mo de
qualquer pretexto para frear novamente o processo de paz.
Em 20 de novembro de 1998, o exrcito judaico se retira de uma parte dos territrios
prevista nos acordos de Wye River e o gabinete israelense cumpre parcialmente as clusulas que se
referem libertao dos presos e abertura do aeroporto da cidade de Gaza. Mas, com parte da
direita ameaando retirar o apoio ao seu governo, caso faa novas concesses, e com os demais
setores prometendo atitude semelhante em caso de descumprimento, Netanyahu no tem condies
polticas de permanecer no poder. Um ms depois, dissolve o parlamento e marca novas eleies
para maio de 1999.
Os compromissos assinados em Wye River se tornam letra morta. Diante dos fatos, Arafat
envia inmeras queixas ao governo dos Estados Unidos, ameaa proclamar unilateralmente o
Estado palestino no dia 4 de maio (conforme previsto pelos Acordos de Oslo) ao mesmo tempo em
que freia as aes terroristas que poderiam levar gua candidatura de Netanyahu. Com esta mesma
justificativa, Frana, Inglaterra, EUA e Egito convencem o presidente da ANP a no apressar os
tempos e a esperar o resultado das eleies. No dia 17 de maio de 1999, o trabalhista Ehud Barak
eleito Primeiro Ministro com 56% dos votos.
- Ser que agora o processo de paz vai entrar nos trilhos?, pergunto esperanoso.
Ndia coa a cabea e, deixando um clima de suspense no ar, convida a no sair da cadeira,
pois agora vai relatar o que sabe sobre...
10. O governo Barak e a segunda Intifada.
Sabendo que a curiosidade consegue pr em movimento at os mais preguiosos, a coruja se
afasta lentamente das folhas do relato deixando atrs de si um silncio grvido de expectativa.
A vontade de dar rpida seqncia aos trabalhos muda de lado. Levantar da cadeira parece
uma ofensa, se ausentar por um momento deixa o gosto amargo de prolongar a espera. A garganta
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seca j no pede gua e os dedos no sentem o cansao que ameaava vencer sua resistncia. Um
vendaval de possveis desdobramentos da realidade se apodera dos pensamentos enquanto Ndia,
imvel, parece interpretar cada um deles.
Incomodada pelo sossego da ave, a lngua se movimenta nervosa at encontrar a coragem de
cutucar a aparente calma da coruja com um Ser que no d pra comear?, to curioso quanto
consciente de que os captulos finais demandam um esforo adicional.
Com a asa apoiada na pilha de livros e a muleta ferindo o ar com os gestos decididos de
quem se prepara para um combate, Ndia responde solicitao com um sorriso que precede a sua
interrogao:
- Pronto?!?, pergunta na certeza de uma resposta afirmativa.
O simples balanar da cabea mais que suficiente para fazer disparar o relato.
- Sendo assim, l vamos ns continua a coruja apoiando o graveto na mesa. Pra incio de
conversa necessrio dizer que, apesar da vitria de Barak, os trabalhistas caem de 34 para 26
deputados e, com os partidos de centro-esquerda, conseguem reunir apenas 50 do total de 120 votos
do Parlamento judaico. Para dar sustentao ao prprio governo, o Primeiro Ministro se v obrigado
a escolher entre trs possveis aliados: os partidos rabes (que com seus 10 parlamentares, no
permitem alcanar a maioria de que precisa), o Likud (que dispe de 19 vagas) ou os partidos
religiosos de direita.
Das trs alternativas, Barak escolhe a terceira por entender que um acordo com o partido de
Sharon e Netanyahu poderia bloquear toda iniciativa de paz que demandasse novas concesses aos
palestinos. Ao mesmo tempo, os trabalhistas acreditam que a aliana com os grupos religiosos pode
ser garantida com a concesso de favores ou ajudas econmicas s suas escolas ou pela aprovao
de leis que regulem os costumes no interior do Estado judaico.
Empossado o novo gabinete, Barak promete a Arafat que vai cumprir os compromissos
assinados em Wye River e que, alis, pretende ampli-los no contexto de um acordo de paz mais
abrangente e definitivo. Mais do que a um gesto de boa vontade, esta postura deve ser atribuda ao
temor de que as progressivas concesses de territrios ocupados obrigariam Israel a jogar a maior
parte dos seus trunfos sem chegar a um tratado de paz definitivo com a Autoridade Palestina.
Em 4 de setembro de 1999, Barak e Arafat assinam em Sharm El-Sheik, no Egito, um
compromisso pelo qual o governo de Tel Aviv vai transferir ao controle da ANP trs pequenas reas
da Cisjordnia em etapas a serem concretizadas entre novembro de 1999 e janeiro de 2000, a
libertao de dois grupos de 350 presos palestinos e o incio imediato das negociaes do acordo de
paz definitivo tendo como base as Resolues 242 e 338 das Naes Unidas. Alm de se dispor a
discutir as fronteiras do Estado palestino, do status de Jerusalm, dos assentamentos judaicos e da
volta dos refugiados com base nos dois documentos da ONU, Israel aceita a construo de um porto
em Gaza e a criao de uma passagem segura entre os territrios da ANP na Cisjordnia e na Faixa
de Gaza. Por sua vez, a Autoridade Palestina se compromete a cooperar com as instituies
israelenses para bloquear toda atividade terrorista.
- Os propsitos so bons, mas vo ser cumpridos?, pergunto desconfiado.
Ndia sorri e, com a segurana de quem j analisou situaes parecidas, balana a cabea
confirmando a razo de ser da minha incredulidade: Aps libertar a primeira leva de prisioneiros,
surgem discusses sobre quais e quantos territrios devem ser entregues aos palestinos ao mesmo
tempo em que os ataques terroristas no interior de Israel provocam atrasos e endurecimentos. Mas
a progressiva expanso dos assentamentos judaicos na Cisjordnia a levar os palestinos a suspender
as negociaes em dezembro de 1999.
Os dilogos so retomados em maro de 2000 quando Tel Aviv, cumprindo os
compromissos de Sharm El-Sheik, entrega uma rea de 6,1% da Cisjordnia Autoridade Palestina.
Porm, ao mesmo tempo em que este gesto ajuda a reaquecer as relaes com a ANP, as concesses
territoriais desgastam o governo de coalizo e os partidos religiosos ameaam sair do gabinete caso
os trabalhistas se disponham a entregar novas reas aos palestinos.
91
Em 5 de julho de 2000, Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos, anuncia um novo
encontro de cpula entre Arafat e Barak em Camp David. Pouco antes de o Primeiro Ministro
judaico embarcar rumo aos EUA, o parlamento aprova, com 54 votos a favor e 52 contra, uma
moo de desconfiana ao seu governo. Por no atingir os 61 votos necessrios para derrub-lo,
Barak se mantm no comando da poltica israelense, mas tem plena conscincia de que seu mandato
est por um fio.
De 11 a 26 de julho, Bill Clinton e Madeleine Albright atuam como mediadores do encontro
entre os lderes dos dois povos. Resultado: no h acordo sobre a questo do status de Jerusalm,
dos refugiados, dos assentamentos, da utilizao dos recursos hdricos e nem sobre as novas
concesses pelas quais Barak oferece Autoridade Palestina cerca de 90% da Cisjordnia. Judeus e
norte-americanos responsabilizam Arafat pelo fracasso das negociaes.
- Tambm, pudera, dois chefes de Estado lhe entregam o controle sobre um territrio bem maior e
Arafat simplesmente vira as costas a uma proposta que daria uma nova cara ao Estado palestino...,
murmuro em apoio que parece ser uma justa condenao do rechao de uma proposta irrecusvel.
Piscando os olhos, Ndia assume uma expresso sria e dispara um Haja pacincia para
aturar estes humanos!, que deixa no ar um clima de perplexidade e desconcerto.
- Pacincia... por que?, retruco sem esconder a irritao.
- Porque s uma autoridade repetir uma mentira nos meios de comunicao que vocs a abraam
como a mais pura verdade.
- Confesso que no estou entendendo...?
- Seria surpreendente se estivesse responde irnica a coruja enquanto emite um longo suspiro.
Isso acontece porque a sua cabea avantajada no se d ao trabalho de pesquisar os acontecimentos
e superestima as imagens da realidade captadas pelos sentidos.
- Acontece que...
- Sim, grandalho de culos, eu sei que a mdia tem suas artimanhas, mas basta afastar um pouco o
vu das aparncias para perceber que o rechao de Arafat no fruto da sua intransigncia, mas
apenas da constatao de que as concesses so bem menos generosas do que aparentam. E a dizer
isso no esta humilde representante do reino animal, mas um jornal israelense.
No dia 13 de julho, a edio do Yediot Aharanot contraria frontalmente as declaraes
oficiais numa matria cujo ttulo diz tudo: A fraude de Camp David. Nela, a reprter Tanya Reinhart
escreve que, na realidade, os palestinos haviam recebido a oferta de 50% da Cisjordnia distribuda
em regies separadas entre si por assentamentos e reas de segurana sob estrito controle do
exrcito judaico. Do territrio restante, 10% seria anexado a Israel e 40% seria considerado em
discusso, uma maneira elegante para disfarar o fato de que o controle permaneceria em mos
judaicas. Ou seja, a Cisjordnia sob total controle da ANP continuaria sendo uma colcha de retalhes
cujas partes seriam sufocadas pela presena israelense.
40
- Ser que daria para voc ser um pouco mais clara?
- O que os bpedes da sua espcie no percebem que o territrio da Autoridade Nacional
Palestina na Cisjordnia integrado por 227 enclaves separados entre si pela rede de estradas de
acesso reservado aos colonos dos assentamentos judaicos, pelos quartis e postos de controle do
exrcito de Tel Aviv e pela interposio de reas que esto sob administrao parcial da ANP ou
sobre as quais Israel mantm controle total.
Sendo assim, o desenvolvimento de cidades como Nablus e Ramallah completamente
bloqueado pelas colnias judaicas, pelas instalaes do exrcito e pela infra-estrutura construda ao
longo dos mais de 20 anos de ocupao destes territrios.
Acrescente a isso o fato de que a maior parte das reas sobre as quais a ANP exerce sua
autoridade civil e policial composta de terrenos ridos, densamente povoados e sem acesso direto
s maiores fontes de recursos hdricos (j que toda a faixa de terra ao longo do rio Jordo
40
A citao da reportagem e os dados nela contidos encontra-se em Edward W. Said, Fine del processo de pace, pg.
205-206.
92
considerada rea de segurana israelense) e ver que a proposta de Barak representa a legitimao
da impossibilidade material de criar um Estado palestino independente na Cisjordnia e da Faixa de
Gaza.
E tem mais. Enquanto Israel tem plenas condies de garantir e ampliar o desenvolvimento
de suas colnias nos territrios ocupados, cabe a ANP o nus de administrar a pobreza dos
palestinos e de manter a ordem sobre um povo cada vez mais revoltado com a situao de
espoliao em que se encontra, conclui Ndia ao secar com a asa algumas gotas de saliva que
escapam, venenosas, pelo bico. E sem dar sinais de trgua, se apressa em afirmar que Ao mesmo
tempo em que as propostas de Barak representam bem pouco para os palestinos, elas so suficientes
para enfraquecer ainda mais o seu gabinete.
Em 2 de agosto de 2000, o Ministro das Relaes Exteriores, David Levi, deixa o cargo
elevando para cinco o nmero de membros do gabinete que saem do governo em menos de dois
meses.
Enquanto isso, a tenso nos territrios ocupados se agrava com o passar dos dias, e a fasca
que detona a nova rebelio palestina ocorre em 28 de setembro quando Ariel Sharon visita a
esplanada onde est a mesquita de Al-Aqsa, no setor leste de Jerusalm.
- S faltava essa para complicar o que j estava difcil comento ao apoiar a testa sobre a mo
esquerda que acolhe, silenciosa, os meneares de seu desconcerto. Mas ser que ningum se mexe
para evitar o pior?.
Com a muleta apoiada no prprio ombro, Ndia no desgruda os olhos dos papis do relato
e, com voz firme, traz para o presente os fatos que se ocultam sombra do passado: Na verdade,
alguns dias antes, Dennis Ross, desaconselha Barak a permitir a visita. Consciente dos profundos
sentimentos religiosos associados quele lugar, considerado sagrado tanto pelos muulmanos como
pelos judeus, e da hostilidade dos palestinos em relao a Sharon, o enviado de Clinton teme que a
presena do parlamentar do Likud na esplanada de Al-Aqsa seja interpretada como uma provocao
capaz de desencadear desordens de difcil controle.
Arafat se une s preocupaes de Ross e pede a Barak que impea a visita de Sharon. Mas o
Primeiro Ministro receia que, ao fazer isso, a situao de seu gabinete se torne ainda mais
insustentvel. assim que, no dia 28 de setembro de 2000, acompanhado por cerca de mil policiais,
Sharon passeia pela esplanada por exatos 24 minutos sem se aproximar da mesquita.
Recebida como um insulto, a sua presena rejeitada por um movimento espontneo dos
muulmanos a presentes que comeam a jogar pedras nos policias israelenses. No dia seguinte, as
desordens se ampliam e as foras de segurana judaicas atiram matando quatro palestinos e ferindo
mais de cem. Como um rastilho de plvora, o clima de violncia atinge vrias cidades na que o
mundo, estarrecido, chama de a Intifada de Al-Aqsa.
- Pedras, enfrentamentos... ser que ela vai ter as mesmas caractersticas da que ocorreu no final
dos anos 80?, pergunto ao ter a impresso de estar revendo um filme conhecido.
Apoiada no graveto-muleta, a coruja comea a percorrer o estreito corredor formado pelas
pilhas de livros e as folhas do relato que forram a mesa. Com uma asa atrs das costas, Ndia parece
acrescentar autoridade objetividade de suas observaes: Apesar das aparncias, querido
secretrio, estamos diante de algo bem diferente. Acontece que, desde os primeiros embates, parte
da polcia palestina se une aos protestos atirando com armas leves contra as posies das foras
israelenses cujas represlias no dispensam o uso de tanques, avies e helicpteros de combate.
Nas semanas seguintes, os enfrentamentos com armas de fogo e os atentados se tornam
predominantes ao mesmo tempo em que as manifestaes acompanhadas pelo lanamento de pedras
diminuem at assumir um carter secundrio.
Um outro aspecto importante que, desta vez, a revolta pe em movimento a minoria rabe
que mora em Israel. Alm de Jerusalm, h protestos e enfrentamentos em Jaffa, Acri, Nazareth e
em vrios vilarejos da Galilia e do Negev.
93
As causas dos protestos devem ser procuradas nos 52 anos de marginalizao e
discriminao da populao rabe que vive no interior da sociedade judaica e no crescimento dos
movimentos fundamentalistas cujas formas de luta so influenciadas pelos Hezbollah libans.
Este caldo de cultura tem seus ingredientes aquecidos pelo descaso de Barak em relao
minoria rabe. Apesar de receber parte significativa de seus votos nas eleies de 1999, o Primeiro
Ministro no convida os parlamentares de seus partidos a participar da coalizo, no costuma
consult-los e, muito menos, se digna de resolver os problemas da populao por eles representada.
Na Cisjordnia e na Faixa de Gaza, a exploso das desordens no se deve somente s razes
j listadas quando da primeira Intifada, mas tambm frustrao e piora das condies de vida dos
palestinos nos prprios territrios administrados pela ANP. Apesar da autonomia, a sua economia
ainda depende de Israel, o simples deslocamento entre uma rea sob controle palestino e outra
continua sendo dificultado pelo exrcito judaico que no dispensa agresses e humilhaes.
Longe de melhorar, a situao dos campos de refugiados ainda mais precria. A esperana
de voltar s terras das quais suas famlias foram expulsas por Israel em 1948, elemento importante
de sua identidade coletiva e razo de ser de sua existncia poltica, sistematicamente frustrada
pelas negociaes bilaterais que empurram a questo dos refugiados para um futuro cada vez mais
longnquo e incerto.
Se isso no bastasse, os trabalhos de ampliao dos assentamentos judaicos nos territrios
ocupados no param. De acordo com um relatrio da organizao israelense Peace Now, de
setembro de 1993 a dezembro de 2001, o governo de Tel Aviv constri 20 mil e 371 novos
conjuntos habitacionais, ou seja, 62% a mais em relao aos 32 mil 750 j existentes.
41
A esta realidade preocupante, acrescente o confisco de milhares de hectares de terras
palestinas para a expanso do programa de construo de estradas e a degradao dos terrenos
agrcolas provocada pelas incurses do exrcito e dos colonos judeus. Tempere tudo com as
seguidas denncias de corrupo, clientelismo e desvio de recursos que atingem os membros da
Autoridade e do Conselho Nacional Palestino, alm da paralisao, a partir de 1997, do processo
democrtico no interior da ANP que consolida o centralismo de Arafat e de seu estreito crculo de
colaboradores. Agite o todo com as medidas repressivas do exrcito israelense que visam destruir os
focos de resistncia nos territrios ocupados. Resultado: o sonho palestino de que o processo de paz
crie as condies de um futuro melhor progressivamente substitudo pelo pesadelo da perda de
controle sobre a vida e o prprio destino enquanto povo.
Uma das expresses que apontam nesta direo o aumento dos ataques suicidas contra
alvos israelenses no interior da Intifada de Al-Aqsa. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo
Jerusalm Media Communication Center em 9 de janeiro de 2001, esta ao chega a receber a
aprovao de 66,2% dos palestinos. Entre os depoimentos que ajudam a entender as razes de
tamanho apoio est o de um homem-bomba, no identificado, ao jornal israelense Haaretz. Preso
pelos soldados pouco antes de detonar os explosivos amarrados ao prprio corpo, o entrevistado
explica que a deciso de sacrificar a prpria vida foi tomada durante a imposio do primeiro toque
de recolher na sua cidade: Ningum se atrevia a sair. Os soldados atiravam em qualquer pessoa que
sasse de casa, ainda que estivesse no seu prprio quintal. Fiquei espreitando pela janela e logo vi
um cachorro que passeava livremente pela rua e passava perto dos soldados. No o prenderam e
nem atiraram nele. Ento pensei: viver pior que um cachorro ou escolher a morte do mrtir.
42
Da a aderir a um dos movimentos que adota esta forma de luta um pulo.
- Seja como for, sou contra os ataques suicidas, pois matam civis inocentes!, afirmo cortando
bruscamente o relato da coruja.
A ave balana a cabea e, fixando o olhar no meu, pergunta: Se eles fossem mortos com um
tiro, seria diferente?.
- Ndia, pelo amor de Deus, no brinque com coisa sria!, comento em tom de repreenso.
41
Em Edward W. Said, texto citado, pg. 263.
42
Amira Hass, Las motivaciones intimas de los kamikazes palestinos, em Haaretz/Rebellin, edio eletrnica.
94
- Pois fique sabendo que nunca falei to srio retruca a coruja espetando o cotovelo com o
graveto-muleta e engrossando o tom de voz. No relatrio do Fundo das Naes Unidas para a
Infncia (UNICEF), divulgado no dia 1 de dezembro de 2000, se afirma que os primeiros meses da
Intifada de Al-Aqsa conheceram a morte violenta de 310 pessoas: 261 palestinos, 35 israelenses, 13
rabes e um alemo. Do total de palestinos assassinados pelo exrcito judaico, 97 so crianas. A
este clculo tenebroso necessrio acrescentar o nmero dos feridos. Ao todo, so 426 judeus
contra 9 mil 802 palestinos, dos quais 4 mil 116 so crianas. Alm disso, o que voc no sabe
que os ataques suicidas, inicialmente realizados contra posies militares israelenses, comeam a
no fazer distines depois que a prpria populao civil palestina torna-se alvo constante dos
militares e dos colonos judeus nos territrios ocupados.
- Mas eu no...
- J sei, j sei repete Ndia com a ponta da asa para o alto voc no sabia disso. Mas, console-
se, pois no o nico a cair de boca diante da realidade dos fatos. E no pra menos. A maior parte
dos meios de comunicao ignora ou minimiza a violncia quando as vtimas so os palestinos, ao
mesmo tempo em que dedica amplas coberturas e duras condenaes quando a morrer so os
israelenses.
- S espero que voc no justifique a morte de uns pela dos outros...
- Definitivamente no! Pois desta forma a espiral da violncia serviria para ocultar ainda mais as
contradies e os interesses que alimentam os conflitos. Ao citar os nmeros quero chamar a
ateno sobre um aspecto quase sempre esquecido: o terrorismo, suicida ou no, apenas um
sintoma, no a doena. Por isso, no lugar de julgar os acontecimentos como bons ou ruins, devemos
analisar sua dinmica, as foras e as contradies que neles agem. No lugar de um fcil veredicto
moral, faz-se necessria uma avaliao que permite detectar melhor suas origens e vislumbrar seus
possveis desdobramentos.
Entre os estudos que caminham nesta direo, est, sem dvida, o de Gal Luft, um ex-
Tenente Coronel das Foras Armadas Israelenses. Ao pesquisar o primeiro ano da Intifada, ele
conclui que os palestinos passam a usar os ataques suicidas como arma estratgica e bomba
inteligente dos pobres que pode servir de milagroso contrapeso s dotaes blicas israelenses que
so de ltima gerao. Ao que parece, os palestinos tm determinado que os ataques suicidas com
explosivos, utilizados sistematicamente no contexto de uma luta poltica, oferecem algo que
nenhuma outra arma poderia dar: a capacidade de provocar em Israel uma dor devastadora e sem
precedentes.
43
Esta concluso tem uma base histrica. Em maio de 2000, Tel Aviv retira suas tropas do
Lbano aps anos de violentos ataques suicidas do Hezbollah. Diante deste desfecho, no de
estranhar que o mesmo instrumento de luta ganhe relevncia no enfrentamento do exrcito judaico
contra cujos destacamentos os ataques guerrilheiros tradicionais parecem no surtir efeito. A
comprovar esta hiptese so os dados levantados pelo prprio Luft: as foras palestinas travam
mais de mil e 500 tiroteios contra veculos israelenses nos territrios [ocupados] que chegam a
matar 75 pessoas. Atacam posies do exrcito mais de 6 mil vezes, mas matam s 20 soldados.
Fazem explodir mais de 300 minas antitanque contra alvos israelenses sem conseguir matar
ningum. Para desmoralizar os colonos, os palestinos lanam mais de 500 ataques com morteiros e
foguetes contra as comunidades judaicas nos territrios ocupados e, s vezes, dentro de Israel, mas
sua artilharia se revela primitiva e carente de preciso e s morre um israelense.
Enquanto isso, a campanha de terror, realizada por Hams e Jihad, apresenta resultados mais
contundentes. Em 350 ataques com facas e atentados com bombas no interior de Israel, os
movimentos fundamentalistas conseguem matar ou ferir mais israelenses do que as principais
organizaes palestinas em mais de 8 mil aes realizadas na Cisjordnia e na Faixa de Gaza. O
43
Esta e as demais citaes da pesquisa que seguem, foram publicadas em Gal Luft, La Bomba-H palestina, revista
Foreign Affairs edio eletrnica em espanhol.
95
maior impacto, porm, vem dos 39 ataques suicidas que acabam com a vida de 70 israelenses e
ferem outros mil.
Ainda na opinio dele, os ataques suicidas comeam a no fazer distino entre alvos civis e
militares na medida em que Tel Aviv opta pela eliminao seletiva dos lderes dos vrios grupos de
resistncia e pela ocupao militar dos territrios sob controle da ANP cujo rastro de morte e
destruio atinge indiscriminadamente a populao civil palestina.
Neste contexto, quanto maiores as dificuldades enfrentadas pelos homens-bomba na
realizao de seus gestos, mais aumentam o prestgio e o herosmo destes em meio populao dos
territrios ocupados. Enquanto o exrcito israelense drena preciosos recursos das atividades
econmicas essenciais e o clima de guerra afasta turistas e investidores, o nmero de candidatos a
mrtir entre as fileiras palestinas alimentado pela prpria dinmica dos acontecimentos. Diante
destas constataes, Luft conclui que a julgar pela histria, a campanha militar israelense para
erradicar os ataques suicidas tem pouca probabilidade de xito. Outras naes que enfrentaram
adversrios que desejam morrer tm aprendido da pior maneira que, a no ser que se aniquile
completamente o inimigo, no h soluo militar para o problema.
_ Isso assustador e, pelo visto, a situao pode ficar ainda pior. Mas ser que ningum vai fazer
nada para tentar apaziguar os nimos?, pergunto na desesperada tentativa de vislumbrar uma luz no
fim do tnel.
- Diante da gravidade dos acontecimentos, no dia 7 de outubro de 2000, o Conselho de Segurana
da ONU aprova, por 14 votos a zero, uma Resoluo na qual deplora a provocao de Sharon e a
violncia que a ela se segue. Em seguida, o texto convoca Israel, o poder usurpador, a observar
escrupulosamente suas obrigaes e responsabilidades legais de acordo com a 4 Conveno de
Genebra, de 12 de agosto de 1949, no que se refere proteo dos civis em tempo de guerra. Em
outras palavras, as Naes Unidas apelam para o respeito de uma lei internacional que probe, entre
outras coisas, todas as formas de torturas e coero fsica e mental, o castigo coletivo, as represlias
contra pessoas ou propriedades, a transferncia da populao civil da potncia ocupante ao territrio
ocupado, a destruio da infra-estrutura e da propriedade privada. Ou seja, O Conselho de
Segurana condena, mais uma vez, tudo aquilo que Israel vem fazendo sistematicamente desde 1967
sendo que as transgresses desta conveno so ainda mais graves aps o incio da Intifada de Al-
Aqsa.
- Diante de uma condenao to explcita, qual a postura dos Estados Unidos?
- a que se pode esperar de um pas que, h anos, vem apoiando Israel como aliado de primeira
ordem diz Ndia abrindo as asas diante de si num gesto que parece sublinhar o bvio. Washington
se abstm de votar na Resoluo que condena o Estado judaico pelo uso excessivo da fora
alegando que parte das afirmaes da ONU so falsas e que a posio do Conselho de Segurana vai
criar maiores problemas na regio.
Em 12 de outubro de 2000, Richard Holbrooke, embaixador estadunidense nas Naes
Unidas, diz que seu pas est determinado a bloquear a discusso desta crise. No mesmo dia, a
Secretria de Estado, Madeleine Albright, convoca a comunidade internacional para que esta adote
as medidas necessrias para pr fim aos enfrentamentos e pede ao governo de Israel que suspenda as
operaes em curso.
Por sua vez, o diretor da CIA, George Tenet, se rene separadamente com Arafat e Barak
para discutir medidas que podem restabelecer a paz entre os dois povos. Mas, apesar das presses
do governo de Washington, em 20 de outubro, a Assemblia Geral da ONU condena Tel Aviv
com 92 votos a favor, 6 contra e 46 abstenes pelo uso excessivo da fora contra os palestinos,
apia a criao de uma comisso de investigao liderada pelos EUA e considera ilegais tanto os
assentamentos judaicos na Cisjordnia e na Faixa de Gaza como a ocupao israelense do setor leste
de Jerusalm.
Um dia antes, a Comisso de Direitos Humanos, reunida em Genebra, Sua, havia
condenado Israel por crimes contra a humanidade. Diante da ferrenha oposio dos EUA e da Unio
Europia, dos 53 membros que integram esta instncia da ONU, 19 votam a favor desta Resoluo,
96
16 so contrrios, 17 se abstm e um no participa da reunio. O texto proposto pelos pases rabes
aprovado com uma margem extremamente apertada.
- Quer dizer que a Intifada leva as elites rabes a se mexerem...
- No se iluda! afirma Ndia categrica. No bem o levante palestino a colocar em cena estas
naes, mas sim a reao que a Intifada produz entre a populao destes pases.
- Como assim?
- Apesar de serem ricos em petrleo, a maior parte de seus povos sofre os efeitos da pobreza, do
desemprego, da falta de instituies de seguridade social e da mais dura represso. A corrupo
costuma correr solta e, junto aos desmandos da elite, torna ainda mais precria a estabilidade da
ordem interna. Neste contexto, toda manifestao poltica, social e cultural que tenha algumas
pitadas de democracia considerada uma ameaa aos mandatos, hereditrios ou no, de seus
governantes. E, como a maior parte deles se mantm no poder graas ao apoio estadunidense, no
de estranhar que entre o discurso e a prtica haja sempre uma diferena considervel.
Esta discrepncia j visvel no incio da Intifada de Al-Aqsa quando a resposta violenta
provocao de Sharon interpretada como um fenmeno passageiro e de curta durao. Nas duas
primeiras semanas do levante, no h governante rabe que no reitere seu apoio aos palestinos,
mas, apesar de saudar a Intifada como expresso do legtimo direito resistncia contra a ocupao
militar e condenar abertamente a violenta represso desencadeada por Barak, s o sulto de Om
corta as relaes com Israel encerrando os contatos com sua misso comercial em visita capital e
retirando o seu enviado a Tel Aviv. Os demais pases esperneiam, ameaam... mas no cumprem.
Em 21 de outubro, ou seja, um ms aps o incio da Intifada, a cpula rabe se rene no
Cairo, Egito. Desde o incio dos trabalhos, sobram discursos inflamados, mas a Lbia d sinais de
que as coisas no so o que aparentam ser ao retirar sua delegao em protesto pela adoo de
medidas excessivamente brandas contra Israel. No dia seguinte, das naes que integram a Liga
rabe, s a Tunsia decide romper suas relaes com Tel Aviv em protesto pela violncia exercida
contra os palestinos. Na declarao divulgada no final da cpula, pede-se a formao de uma
comisso internacional de investigao patrocinada pela ONU, a criao de uma fora de paz
internacional para proteger os palestinos, a instalao de um Tribunal Penal Internacional para
julgar os criminosos de guerra israelenses, o envio de um bilho de dlares ANP e o apoio
continuidade dos dilogos de paz cujo fracasso eventual levaria suspenso da cooperao
econmica com Israel.
- Pelos rugidos parecia um leo... mas se revelou um gato desafinado miando ao microfone.
- Exatamente! Tanto verdade que Israel recebe a declarao com uma perceptvel sensao de
alvio.
Quanto aos palestinos, a deciso da cpula rabe de condenar verbalmente o Estado judaico
sem tomar nenhuma medida punitiva frustra os lderes da resistncia e o prprio povo.
Ainda assim, na ltima semana de outubro, no so poucas as manifestaes populares em
apoio luta palestina. Na Jordnia, cerca de 120 mil pessoas avanam rumo linha de fronteira
controlada por Israel, mas seu protesto freado pela prpria polcia jordaniana que, ao enfrentar os
manifestantes, deixa quase uma centena de feridos.
Nos meses seguintes, o perdurar da Intifada e as mudanas no governo israelense pem
novamente prova a credibilidade dos regimes rabes. As elites elevam o tom de sua retrica e seus
discursos se tornam mais agressivos, mas, na hora da ao, limitam-se a pressionar os Estados
Unidos para que intervenham ativamente no conflito. Com o jogo se tornando cada vez mais
perigoso, o apoio verbal a Intifada ganha expresses mais moderadas e a prpria ajuda financeira
inicialmente destinada ANP passa a ser entregue s ONGs nacionais e estrangeiras que atuam nos
territrios ocupados.
- Bom, voc falou da ONU, dos EUA e dos pases rabes. Mas como esto as relaes entre o
gabinete judaico e a Autoridade Palestina?
- Aps o incio da Intifada, Estados Unidos e Unio Europia realizam gestes para promoverem
encontros entre os representantes dos dois povos. Nos dias 3 e 4 de outubro de 2000, Arafat e Barak
97
se encontram em Paris, Frana, mas as negociaes chegam a um ponto morto. Em seguida, EUA,
Egito e Jordnia convocam uma reunio de cpula entre o presidente da ANP e o Primeiro Ministro
de Israel. O encontro, realizado em Sharm El-Sheik, Egito, no dia 17 de outubro, se encerra com
trs compromissos: promover o fim das hostilidades, criar uma comisso que investigue as causas
da violncia nos territrios ocupados e reativar o processo de paz. Apesar de aceitar verbalmente
seus termos, Barak e Arafat no assinam o documento final do encontro.
Nos dias que seguem, os enfrentamentos se tornam mais duros. Hams, Jihad, FPLP, FDLP
e Fatah-Intifada, entre outros grupos de resistncia, rechaam os compromissos assumidos pela
Autoridade Palestina e declaram que continuaro em luta contra a ocupao israelense. Em 24 de
outubro, oito organizaes palestinas hostis ao processo de paz se renem em Damasco, Sria, para
discutir um plano que d continuidade a Intifada.
Diante da crescente onda de violncia e sem implantar medidas efetivas para diminuir a
tenso entre os dois povos, Barak tenta salvar o seu mandato propondo ao Likud a formao de um
governo de coalizo, mas este recusa o convite.
Pouco antes da metade de dezembro, temendo que o parlamento aprove uma moo de
desconfiana, o Primeiro Ministro judaico se antecipa aos acontecimentos dissolvendo o gabinete e
marca as eleies gerais para 6 de fevereiro de 2001.
Os ltimos meses do seu governo so vividos em meio a grandes presses. De um lado, os
incessantes enfrentamentos da Intifada e o crescimento do Likud; do outro, o fim do 2 mandato de
Bill Clinton e as incertezas quanto s diretrizes da futura mediao norte-americana.
Na tentativa de reverter a perspectiva de derrota eleitoral, dada como certa pelas pesquisas
de opinio, Barak realiza uma srie de reunies secretas para chegar a um acordo com os palestinos.
Mas as linhas mestras, que retomam as posies apresentadas em Camp David em julho de 2000,
so rejeitadas pela ANP. No vaivm das delegaes, a ltima tentativa de acordo realizada em
Taba, no Egito, entre 21 e 27 de janeiro de 2001, mas, apesar dos discursos otimistas de ambos os
lados, as negociaes fracassam.
O clima de insegurana criado pelos ataques suicidas, pela violncia e pelo envolvimento
dos rabes israelenses na Intifada leva gua ao moinho de Sharon que vence as eleies com 62,4%
dos votos. Em seguida, o Likud negocia com os trabalhistas a formao de um governo de unidade
nacional com o qual pretende dar maior estabilidade ao novo gabinete e realizar a promessa eleitoral
de garantir a segurana do povo israelense.
- Se a memria no me engana, em mais de uma ocasio voc falou de uma Comisso
Internacional que investigaria as causas da violncia nos territrios ocupados. Ela chegou a alguma
concluso?
Sem conter a alegria de ver que o cansao no derrotou o interesse, Ndia se apressa a
responder a mais uma investida da curiosidade. Bem lembrado, querido secretrio! diz ao
envolver o meu ombro com o calor da sua asa. Em 30 de abril de 2001, divulgado o relatrio da
Comisso Internacional liderada pelo senador estadunidense George Mitchell. Ao centro de sua
anlise est o profundo sentimento de desiluso de ambas as partes quanto ao processo de paz
iniciado em Oslo.
Do lado palestino, as maiores queixas dizem respeito construo dos novos assentamentos
e ampliao dos j existentes (a ponto de abrigarem o dobro da populao judaica que morava nos
territrios ocupados antes de 1993), deteriorao das condies de vida e ao impasse quanto
questo dos refugiados.
Por sua vez, o governo israelense acusa a Autoridade Palestina de permitir o uso de armas
ilegais, de dirigir operaes violentas e de no se esforar para evitar que seus territrios sirvam de
base aos grupos terroristas.
Diante destas constataes, o relatrio pede ANP que rechace publicamente o terrorismo,
tome medidas severas para prevenir suas aes e puna os executores. Ao governo de Tel Aviv, o
documento solicita o congelamento imediato da expanso dos assentamentos.
98
Mas esse texto, elaborado com a inteno de reduzir a tenso, sem entrar no mrito dos
problemas mais delicados, divulgado quando o panorama poltico israelense completamente
diferente em relao quele no qual havia sido concebido, o que faz com que ele caia no vazio.
Diante do agravar-se da situao, George W. Bush, presidente dos EUA, envia ao Oriente
Mdio o chefe da CIA, George Tenet, para mediar um cessar-fogo. Tenet pede a palestinos e
israelenses que tomem imediatamente providncias concretas e realistas para restabelecer a
cooperao em matria de segurana. Mas, apesar de chegar a um acordo provisrio em junho de
2001, a violncia aumenta vertiginosamente e abala os compromissos assumidos.
As coisas se complicam ainda mais aps os atentados de 11 de setembro contra o World
Trade Center e o Pentgono, nos Estados Unidos. No mesmo dia, tanques, blindados e unidades das
foras armadas judaicas se posicionam nas redondezas de Jenin, na Cisjordnia, e do campo de
refugiados prximo a ela, sinalizando que as operaes militares israelenses nos territrios
ocupados vo entrar numa nova fase. Menos de 24 horas depois, outros destacamentos entram em
Jeric e Ramallah e, em seguida, as cidades de Gaza e Rafah so atacadas com msseis lanados de
helicpteros e avies de combate israelenses.
Com estas medidas, Sharon pretende aproveitar o sentimento internacional contra o
terrorismo para levar adiante seu plano de eliminao dos lderes fundamentalistas e das clulas da
resistncia palestina que alimentam a Intifada. Os ataques no tm a menor preocupao de poupar
os civis, mesmo porque, com os olhos do mundo voltados para a apurao dos atentados nos EUA e
os preparativos da guerra contra o Afeganisto, so poucos os que manifestam sua indignao diante
dos mtodos utilizados pela represso israelense.
Preocupado em envolver os pases islmicos e do Oriente Mdio em sua campanha contra a
Al-Qaeda, Bush intima Sharon a sair das cidades palestinas recm-ocupadas e, junto a Tony Blair,
faz gestes para tentar frear a espiral de violncia que envolve os dois povos.
- Ser que as coisas vo se acalmar...?, pergunto sem convico.
- Como voc j deve estar prevendo, no! O trabalho diplomtico se torna ainda mais difcil
quando, em 17 de outubro de 2001, Rehavan Zeevi, Ministro do Turismo de Israel, assassinado
em Jerusalm por um integrante da Frente Popular para a Libertao da Palestina.
Em resposta, o exrcito judaico aperta o cerco na Cisjordnia. A ocupao provoca uma
nova onda de ataques suicidas, reivindicados por Hams e sistematicamente retaliados pelas foras
israelenses que atacam as instalaes da Autoridade Palestina e impossibilitam os deslocamentos de
Arafat.
Pressionado pelos Estados Unidos, o presidente da ANP prende alguns militantes de Hams
e de outros grupos da resistncia palestina provocando a ira de seus integrantes e fazendo despencar
o apoio popular sua liderana.
neste contexto que nascem as Brigadas dos Mrtires de Al-Aqsa que, oriundas das fileiras
de Al Fatah, adotam os ataques suicidas como arma de luta e, em aberta disputa com os setores
fundamentalistas, vo agir para tentar recuperar a confiana dos palestinos em Arafat e no seu
grupo. Ao contrrio de Hams e Jihad, as Brigadas no lutam para criar um Estado islmico, mas
sim pela instalao de um governo secular nos territrios da antiga Palestina. Sua estria ocorre em
29 de novembro de 2001 e, em janeiro do ano seguinte, seus lderes criam os esquadres de
mulheres Wada Idris, do nome da primeira mulher palestina a detonar a carga amarrada ao seu
corpo num ataque suicida realizado em Jerusalm.
Terminada a guerra no Afeganisto, Israel intensifica suas incurses militares nos territrios
da ANP e, em 4 de dezembro de 2001, inscreve a Autoridade Nacional Palestina em sua lista de
organizaes que apiam o terrorismo. Livre dos impedimentos colocados antes deste conflito, o
governo de Washington d carta branca mquina de guerra judaica alegando que Israel tem o
direito de defender-se.
Sob este guarda-chuva, o agressor assume o papel de vtima, pois, ao dizer que Tel Aviv age
em legtima defesa, se oculta o fato de que so suas tropas a atacar indiscriminadamente cidades,
povoados e territrios palestinos e a assassinar as lideranas-chave dos grupos de resistncia.
99
Paralelamente a isso, Sharon e Bush tratam de isolar e desqualificar Arafat alegando que ele
incapaz de controlar o terrorismo, e o primeiro chega a confessar seu arrependimento por no t-lo
matado quando da ocupao do Lbano.
O presidente da ANP est no meio de um intenso fogo cruzado. De um lado, EUA e Israel o
acusam de conivncia com os grupos terroristas; as foras armadas judaicas bombardeiam a sede da
polcia palestina, os presdios e as instalaes da Autoridade Palestina em Ramallah onde Arafat
mantido numa espcie de priso domiciliar pelos tanques e soldados israelenses que cercam o
prdio onde esto seus alojamentos. Do outro, o fato dele condenar publicamente o terrorismo
fundamentalista, fechar as instalaes de Hams e Jihad, congelar dezenas de contas bancrias que
movimentavam os recursos destes grupos, prender mais de 200 militantes e desativar uma fbrica de
munies atrai sobre si o descontentamento popular. Os palestinos, de fato, vem estas medidas
como uma forma de apoiar a poltica judaica e, ao no permitir a realizao das atividades
assistenciais destes grupos, a ANP acaba aumentando o nmero de pessoas sem acesso comida,
assistncia mdica e educao na Cisjordnia e na Faixa de Gaza.
Em fevereiro de 2002, a popularidade de Arafat despenca dos cerca de 70% em 1996 para
36%. A sua permanncia no poder, porm, garantida no s pelos contingentes armados fiis s
suas ordens, mas, tambm por no ter rivais altura, j que Yassin, lder espiritual do Hams, ocupa
um distante segundo lugar com 14% dos votos registrados nas pesquisas.
44
O fato de uma grande massa de palestinos no apoiarem nem Arafat, nem os lderes
fundamentalistas, leva Sharon a manter contatos com Ahmed Qorei e Mahmoud Abbas na tentativa
de criar um canal alternativo com personalidades da ANP tidas como mais sensveis s demandas
judaicas. Contudo, as manifestaes de apoio a Arafat inviabilizam os planos do Primeiro Ministro
israelense de excluir o presidente da Autoridade Palestina para detonar uma crise poltica de srias
propores no interior da ANP.
- S me pergunto qual deve ter sido a reao da sociedade judaica diante de todos estes
acontecimentos..., murmuro instigado pelo desejo de saber mais sobre este ator cujas aparies
raramente se distanciam da posio de seus governantes.
Ndia coa a cabea e depois de um solene Muito bem, vejamos... com o qual arruma as
idias, a coruja limpa a garganta para revelar que so 52 oficiais das unidades de elite do exrcito a
protagonizar um gesto inesperado. No final de janeiro de 2002, este grupo de militares graduados
assina um documento no qual apresenta a sua recusa a intervir nos territrios ocupados e convoca
oficiais e soldados a fazerem o mesmo.
No texto, os assinantes declaram que no h relao alguma entre a segurana do Estado
de Israel e as aes do Exrcito nos Territrios Ocupados cujo nico objetivo o de perpetuar o
nosso controle sobre o povo Palestino. E acrescentam: Ns que entendemos a forma pela qual o que
os comandantes nos ordenam nos Territrios destri todos os valores que absorvemos desde a
nossa juventude neste pas; ns que agora entendemos que o preo da Ocupao a
desumanizao do IDF e a corrupo da inteira sociedade israelense; ns que sabemos que os
Territrios no pertencem a Israel e que, no final, os assentamentos so destinados a serem
evacuados; de conseqncia, ns declaramos que no continuaremos a combater esta Guerra dos
Assentamentos; no continuaremos a lutar alm das fronteiras de 1967 para dominar, expulsar,
matar de fome e humilhar um povo inteiro; por isso, declaramos que continuaremos a servir as
Foras de Defesa de Israel em cada misso que sirva para a defesa de Israel. As misses de
ocupao e opresso no servem a este propsito e no participaremos delas.
45
O documento tem grande repercusso na mdia judaica, mas ao no ganhar adeses
significativas nos meios civis e militares acaba no tendo grande influncia na conduo da poltica
israelense, mas contribui para desgastar o apoio ao gabinete de Sharon. A direita comea a acus-lo
44
Dados extrados do artigo de Deborah Sontag, Conversando com os palestinos, em New York Times, edio
eletrnica em portugus.
45
Traduo produzida a partir do texto original divulgado atravs da pgina eletrnica www.seruv.org.il. IDF: Foras de
Defesa Israelenses, pela sigla em ingls.
100
de ser extremamente suave com os palestinos, enquanto a esquerda condena a violncia excessiva
das aes nos territrios ocupados. Ambos os plos, porm, convergem em um ponto: o Primeiro
Ministro, que se elegeu com a promessa de trazer paz e segurana a Israel, parece no ter um plano
para acabar com o conflito. Apesar das divergncias, os trabalhistas no saem do governo j que boa
parte de seus lderes aprova a necessidade de endurecer as respostas judaicas ao terror palestino.
Semanas depois, em 5 de maro de 2002, com o governo de unidade nacional preservado e
contando com o apoio explcito de Bush, Ariel Sharon responde publicamente a todos os seus
crticos: o objetivo [dos ataques] aumentar o nmero de baixas no outro lado. Somente quando
eles tiverem sido derrotados que poderemos negociar.
46
- Ao que tudo indica, as coisas prometem se complicar ainda mais. Ser que o mundo vai ficar
assistindo a briga de camarote?
A coruja ensaia um sorriso srio e triste. Em seguida, com a muleta apontada para o Atlas,
anuncia em meio a um longo suspiro que vale a pena dar mais uma olhada s reaes dos pases
rabes, ainda que estes no apresentem grandes novidades.
Pra variar, estas naes continuam presas entre dois fogos. De um lado, o governo de
Washington pressiona Egito, Arbia Saudita e Jordnia a rechaarem publicamente o terrorismo
palestino e a declararem sua vontade de trabalhar para pr fim a Intifada. Do outro, est a
necessidade de acalmar a populao de seus pases que gostaria de ver os regimes que a governam
apoiar abertamente o levante.
neste contexto que, em 17 de fevereiro de 2002, Abdullah, prncipe herdeiro da Arbia
anuncia que seu pas vai apresentar uma proposta pela qual o mundo rabe oferece a Israel a
normalizao das relaes econmicas e diplomticas em troca da sua retirada de todos os
territrios ocupados em junho de 1967.
O plano de paz saudita discutido em 27 de maro pela cpula da Liga rabe, em Beirute.
Os trabalhos iniciam sem a presena do presidente do Egito, do rei da Jordnia e do prprio Arafat,
impedido de sair de Ramallah. Com eles, outros 12 chefes de Estado deixam de participar da
cpula, mas enviam seus representantes. A resposta de Israel ao texto final do encontro no pode ser
outra: rechao total proposta da Liga.
Em 29 de maro, milhares de rabes ocupam as ruas de vrios pases para protestar contra a
ocupao israelense dos territrios da ANP e, sobretudo, contra a priso domiciliar de Arafat. Em
Egito, Jordnia e Sria, os manifestantes so agredidos pela polcia local que dispersa os protestos
com canhes de gua e bombas de gs lacrimogneo.
No Iraque, Saddam Hussein suspende por um ms a venda de petrleo ao ocidente e pede
aos rabes que faam o mesmo. Mas os pases produtores no tm a menor vontade e interesse de
comprar esta briga.
Na Lbia, Kadafi lidera marchas pelas ruas da capital e pede aos pases que tm fronteiras
comuns com Israel que dem livre trnsito aos voluntrios que desejam combater ao lado dos
palestinos. No Kuwait, o menos crtico dos aliados norte-americanos, o Parlamento emite uma
declarao sugerindo que o governo Bush seja mais justo ao lidar com o conflito. A esta lista se
unem as reaes oficiais do Egito que anuncia a suspenso dos contatos com Tel Aviv, com exceo
das negociaes diplomticas que podem ajudar os palestinos.
Com a arma do petrleo praticamente fora da jogada, as medidas adotadas pelas naes
rabes tm um efeito mais simblico do que prtico. O plano saudita torna-se, assim, mais um
documento na pilha de papis que marcam as tentativas de acordo com Israel.
- Mas, e a ONU...?
- Bom, ela se mexe, condena, reafirma princpios, mas nada obriga Tel Aviv a respeitar suas
Resolues. isso que vem acontecendo desde a fundao do Estado judaico na metade do sculo
passado.
46
Texto extrado de James Bennet, Anlise: israelenses e palestinos esto num impasse, esperando para ver quem
ceder primeiro, em New York Times, edio eletrnica em portugus.
101
Em 20 de dezembro de 2001, diante do agravar-se da situao nos territrios ocupados, a
Assemblia Geral das Naes Unidas condena os ataques israelenses contra os palestinos e d seu
apoio irrestrito ao presidente da ANP. Na mesma ocasio, o enviado especial da ONU ao Oriente
Mdio, Terje Roed Larsen, alerta que, aps 15 meses de Intifada, o desemprego j passa dos 35% na
Cisjordnia e dos 50% na Faixa de Gaza, sendo que 46% dos palestinos, ou seja, o dobro em relao
ao perodo que antecede o levante, vivem na pobreza.
Apesar de sua ao, os fatos ganham uma dinmica cada vez mais preocupante. No dia 10 de
fevereiro de 2002, um ataque areo israelense lanado contra as instalaes palestinas atinge o
primeiro andar do prdio onde esto os escritrios da ONU na cidade de Gaza ferindo dois
funcionrios. Num comunicado, o representante local das Naes Unidas se diz escandalizado pelo
fato de Israel utilizar bombas de grande potncia nas proximidades de reas residenciais densamente
povoadas.
Surdo a estas condenaes, um ms depois, o governo judaico ordena o inicio de uma
operao terrestre de grande envergadura. Milhares de soldados, apoiados por tanques, blindados e
helicpteros, ocupam vrias cidades da Cisjordnia e da Faixa de Gaza em represlia contra os
ataques palestinos.
No dia 13 de maro, o Conselho de Segurana da ONU aprova uma Resoluo proposta
pelos Estados Unidos na qual se pede o fim da violncia e a retomada das negociaes entre
israelenses e palestinos. O governo de Tel Aviv critica o seu contedo e, pra variar, no cumpre
suas determinaes. No fim do ms, a vez da Noruega apresentar uma sada para o conflito. A
Resoluo, aprovada pelo Conselho de Segurana por 14 votos a zero, entre eles o dos EUA, exige a
retirada imediata das tropas israelenses de todas as cidades palestinas.
Em resposta, o gabinete judaico anuncia que a operao recm-iniciada apenas o comeo
de uma longa campanha contra os militantes palestinos e convoca milhares de reservistas a
integrarem os contingentes do exrcito.
No dia 7 de abril, o Conselho de Segurana da ONU aprova por unanimidade a Resoluo
1403 na qual pede o cessar-fogo, a retirada imediata das tropas israelenses das cidades palestinas
ocupadas e sada o incio da misso de paz do secretrio de Estado norte-americano Colin Powell
ao Oriente Mdio.
- Com os Estados Unidos metendo a colher...
- No, querido secretrio, bom voc no se animar. Apesar das condenaes oficiais e do apoio
que elas recebem por parte dos EUA, o governo de Washington continua armando a mo judaica
contra os palestinos. E, ainda que, s vezes, seja impossvel apoiar Israel explicitamente, so
exatamente os equipamentos blicos do Tio Sam a proporcionar mais um massacre.
- Voc no est falando srio?!? ... Est?
- Infelizmente sim diz a coruja de cabea baixa e olhar abatido. Mas este um assunto que vou
tratar na ltima etapa do relato que vai...
11. Do massacre de Jenin ao Mapa do Caminho.
Nesta altura do trabalho, j no sei dizer se o que prevalece a alegria de estar chegando ao
fim de um esforo de reconstruo da histria ou o sentimento de tristeza presente na lgrima
recolhida pela asa que Ndia apia agora no meu ombro.
Firme em seu propsito de relatar o que seus olhos leram nas linhas da histria, a coruja se
recompe. Cansada pelo esforo, recosta vagarosamente o corpo na pilha de livros ao lado da qual a
primeira pgina do ltimo captulo aguarda, ansiosa, os traos da caneta. A luz do entardecer
ressalta as cores da ave, evidencia seus ferimentos e a expresso tpica de quem, ao se aproximar da
meta, mescla satisfao e sofrimento.
Com o olhar fixo no pr do sol que pinta o cu de vermelho, Ndia d o sinal de partida:
Prxima etapa: Jenin, Cisjordnia, abril de 2002. O ataque do exrcito judaico ao campo de
refugiados nas imediaes desta cidade comea nas primeiras horas do dia 3. A ao das tropas, que
102
se estende a outras localidades, uma retaliao ao ataque suicida realizado por Hams num hotel
onde um grupo de judeus celebra a Pscoa. O atentado, no qual morrem 28 pessoas, pe em marcha
a chamada Operao Muralha, uma ofensiva militar israelense que visa ocupar e destruir os focos
da resistncia palestina em Ramallah, Nablus, Belm, Qalqilya, Tulkarem, Hebrn, Jeric e Jenin.
Mas o alvo principal , justamente, o campo de refugiados prximo desta ltima cidade.
De 3 a 10 de abril, mil homens da infantaria apoiados por tanques, blindados, helicpteros
de combate e bulldozers enfrentam cerca de 200 palestinos das milcias de Hams, Jihad e das
Brigadas de Al-Aqsa armados de fuzis e explosivos.
47
A resistncia dos guerrilheiros surpreende os
soldados que s conseguem venc-la aps oito dias de pesados ataques nos quais morrem 23
militares israelenses e outros 143 so feridos.
Terminados os combates, o exrcito de Tel Aviv impede o acesso de jornalistas e voluntrios
de organizaes humanitrias ao que resta do campo de refugiados para que seus homens limpem a
rea. Uma vez liberada a entrada, a impresso comum a de que ocorreu um verdadeiro massacre.
O enviado especial da ONU, Terje Roed Larsen, no hesita em dizer que Jenin, onde viviam
cerca de 13 mil pessoas, foi cenrio de horrores que superam o entendimento humano e qualifica de
moralmente repugnante o fato de Israel impedir a entrada da ajuda humanitria aps os combates.
Por sua vez, o diretor da agncia das Naes Unidas para os refugiados, Peter Hansen, assim
descreve o que est diante de seus olhos: um inferno; e no exagero chamar isso de massacre,
termo que at agora evitei utilizar. Mas agora que vi a realidade com meus prprios olhos no
posso cham-la de outra maneira. Vi pessoas, cujas casas haviam sido destruda, em estado de
total comoo. Vi famlias tratando de desenterrar gente debaixo de montanhas de escombros,
pedao por pedao. Um especialista em terremotos que me acompanhava disse que h muito tempo
no via uma destruio em massa desta magnitude.
48
De acordo com o chefe do Estado Maior de Israel, Shaul Mofaz, a Operao Muralha em
toda a Cisjordnia teria provocado a morte de 250 palestinos e o ferimento de outros mil e 500.
Mas, pelas estimativas do prefeito de Jenin, Walid Abu Mues, s os mortos no campo de refugiados
e na rea por ele administrada seriam cerca de mil.
Nas demais cidades ocupadas pelo exrcito o grau de destruio menor, mas, alm dos
prejuzos s casas e aos prdios pblicos, inutilizada toda a infra-estrutura. Alm disso, jornalistas
47
Bulldozers: mquinas de 60 toneladas importadas dos EUA para a destruio rpida das construes em alvenaria.
48
Agncias AFP e DPA, Jenin fue escenario de horrores que superan el entendimiento humano: enviado de la ONU,
em La jornada, edio eletrnica.
Imagem do campo de refugiados de Jenin aps a sada do exrcito israelense.
103
do mundo inteiro recolhem denncias de soldados que usam palestinos como escudos humanos,
atiram em civis desarmados, ordenam a destruio de casas mesmo sabendo que famlias inteiras
ainda se encontram em seu interior e impedem que ambulncias atendam os feridos.
- Mas isso revoltante..., murmuro ao apoiar a testa na mo esquerda, enquanto a direita aguarda
impaciente a continuidade do relato.
Ndia balana a cabea em sinal de afirmao e, com a mesma voz triste e compenetrada,
continua: Diante dos acontecimentos, em vrias cidades europias se registram manifestaes
contra a ofensiva israelense nos territrio da Autoridade Palestina. Em Paris, 50 mil pessoas
realizam um ato de solidariedade onde Bush e Sharon so chamados de assassinos. Passeatas e
protestos concentram um bom nmero de manifestantes tambm na Blgica, Itlia, Espanha e
Alemanha.
No dia 15 de abril de 2002, a Comisso de Direitos Humanos das Naes Unidas, reunida
em Genebra, condena Israel por assassinato em massa de civis palestinos e reconhece o direito
legtimo das populaes da Cisjordnia e da Faixa de Gaza de resistir ocupao judaica. A
resoluo - aprovada com 40 votos a favor, 5 contra e 7 abstenes divide as naes da Unio
Europia que, at ento, haviam mantido uma postura unnime.
No mundo rabe, alm das retricas declaraes de seus governantes, as manifestaes
populares em apoio aos palestinos so duramente controladas pelos aparatos de segurana. Diante
do perigo representado pelos protestos, as elites, encurraladas pelos Estados Unidos, pressionam
Arafat para que este acabe com a Intifada e tome medidas duras contra os grupos radicais. O
objetivo de Washington levar a ANP e os governos rabes a aceitarem sem reservas as suas
condies para a soluo do conflito rabe-israelense.
Diante da consternao provocada pelas imagens da destruio, o Conselho de Segurana da
ONU aprova, em 19 de abril, o envio de uma misso de observadores para o campo de refugiados
de Jenin. Mas, devido s presses dos Estados Unidos e de Israel, a resoluo no prev que se
investigue a acusao de que o exrcito judaico teria se excedido no uso da fora durante as
operaes militares.
Sabendo que Terje Roed Larsen e Peter Hansen integrariam a comisso das Naes Unidas,
Tel Aviv deixa claro que seus membros deveriam ser escolhidos por sua capacidade tcnica e no
por sua inclinao poltica. Em seguida, veta explicitamente a participao dos dois enviados por
eles terem proferido palavras consideradas uma incitao contra o Estado judaico.
No mesmo dia, o Secretrio Geral da ONU, Kofi Annan, declara publicamente que Roed
Larsen, em seus muitos anos trabalhando para resolver o conflito palestino-israelense, sempre
atuou com objetividade, profissionalismo e compaixo e reitera sua total confiana no enviado.
49
Mas, no dia 2 de maio, pressionado por vrios pases, Annan dispensa a misso de investigao.
- Se o Secretrio Geral da ONU reage assim, ento os Estados Unidos devem estar aprontando pra
valer....
- Na verdade, os EUA mantm a ambigidade tpica das potncias imperialistas retruca Ndia ao
corrigir com a muleta levantada as generalizaes implcitas na minha fala. Para Washington, trata-
se de defender Israel sem perder toda a sua credibilidade junto ao mundo rabe.
- Mas, desse jeito, como tentar pr o p em dois sapatos?!?, questiono intrigado.
- No! responde firme a coruja enquanto senta e cruza as patas para relaxar e recuperar as
energias. Se assim fosse, Bush estaria tentando o impossvel quando, na verdade, o seu governo
trabalha no para resolver, mas sim para abafar as contradies que tendem a se tornar explosivas
para as prprias elites da pennsula rabe. Em outras palavras, mais do que tentar enfiar o p em
dois sapatos, se trata de garantir que ambos fiquem presos sob as mesmas botas.
Neste sentido, em 4 de abril de 2002, mal o ataque israelense s cidades palestinas acaba de
dar os primeiros passos, Jorge Bush acusa Arafat de trair as esperanas do seu povo porque, apesar
49
Agncias DPA e AFP, Tel Aviv declara a Roed Larsen persona non grata: objeta que indague la ofensiva en Jenin,
em La Jornada, edio eletrnica.
104
de renunciar ao terrorismo como instrumento de luta, ele no se ope energicamente aos grupos
armados da resistncia palestina. Para o Presidente norte-americano, esta omisso a causa da ao
do exrcito israelense que se v obrigado a reocupar as reas sob controle da ANP justamente para
atacar e destruir as clulas terroristas. Mas, mesmo reconhecendo o direito de Israel a se defender,
Bush deixa claro que, para criar as bases de uma paz futura, Tel Aviv deve deter as incurses nas
reas controladas pelos palestinos e se retirar das que suas tropas acabam de invadir.
Cinco dias depois, o representante do governo estadunidense no Conselho de Segurana da
ONU diz que seu pas est cansado de Resolues contra Israel e est disposto a lanar mo do
direito de veto caso se apresentem propostas neste sentido.
Em 21 de abril, o Sub-Secretrio de Estado para o Oriente Mdio, William J. Burns, visita o
campo de refugiados de Jenin num momento em que sua destruio pelas foras de Israel j tema
de duras crticas internacionais. Ao chamar a situao dos sobreviventes de terrvel tragdia
humana, Burns reconhece que o que aconteceu em Jenin causou enormes sofrimentos a milhares de
civis inocentes.
50
Trs dias depois, ao se referir sua visita, o Secretrio de Estado norte-americano,
Colin Powell, diz que este no constatou nenhuma evidncia de que o exrcito israelense tenha
promovido um massacre no campo de refugiados de Jenin.
Em 29 de abril, Washington leva Israel a levantar o cerco militar ao quartel-general de
Arafat em Ramallah, na Cisjordnia, e pressiona Tel Aviv a viabilizar uma sada que proporcione a
desocupao da Igreja da Natividade, em Belm, na qual continuam refugiados dezenas de
palestinos acusados de integrarem grupos terroristas.
No incio de maio de 2002, os Estados Unidos foram Arafat a aceitar uma Conferncia
Internacional sobre o Oriente Mdio. Encurralado, o Presidente da ANP adere idia, mas o
problema convencer Israel a se encontrar com ele, j que Ariel Sharon insiste na substituio do
lder palestino como condio para dar incio s negociaes.
- Agora s falta voc me dizer que os israelenses apiam as incurses das tropas judaicas na
Cisjordnia....
- Infelizmente, sim. Revoltados pelos ataques suicidas, 86% dos entrevistados pela BBC dizem
concordar com a Operao Muralha. Alm disso, mais da metade dos pesquisados se ope
retirada de Israel nas linhas de fronteira anteriores a 1967 e 46% deles acreditam que a soluo do
conflito pode vir pela via militar.
O apoio macio poltica de Ariel Sharon se mantm nas semanas seguintes graas a uma
intensa campanha de contra-informao na mdia nacional e internacional. Enquanto imagens e
relatos falam em massacre, ministros e porta-vozes se desdobram para declarar que tudo no passa
de acusaes sem fundamento e de mentiras cuja origem deve ser procurada no anti-semitismo que
reina em vrios pases. Ao reafirmar o direito do Estado judaico se defender dos ataques terroristas,
chega-se at mesmo a afirmar que a responsabilidade pela tragdia de Arafat e da liderana
palestina que fizeram do campo de refugiados um centro de terror e de ataques suicidas.
51
Mas o perdurar da Intifada d origem a trs elementos que desgastam a imagem do gabinete
judaico junto ao povo. O primeiro deles a recesso que devasta a economia do pas j que os
atentados suicidas e os demais enfrentamentos com a resistncia palestina afastam os turistas,
desencorajam os investimentos e levam ao fechamento de centenas de pequenas e mdias empresas.
O segundo diz respeito aos gastos militares. Ao destinar cerca de 6 bilhes de dlares
segurana, do incio da Intifada de Al-Aqsa a abril de 2002, o governo se v obrigado a adotar
medidas impopulares para controlar o dficit que, h meses vem marcando presena nas contas
pblicas. No dia 22 de maio, o parlamento judaico aprova um pacote que prev: a reduo de 2
bilhes e 700 milhes de dlares nos gastos governamentais, o aumento dos impostos de 17 a 18%,
50
Em Serge Schmemann, Autoridade dos EUA em Jenin v uma terrvel tragdia humana, em New York Times,
edio eletrnica em portugus.
51
A declarao acima do conselheiro de poltica externa de Ariel Sharon, Danny Ayalon, publicada em Serge
Shmemann, texto citado.
105
a elevao dos preos dos combustveis e a reduo mdia de 24% da ajuda do governo s famlias
numerosas.
O ltimo diz respeito ao clima de insegurana que persiste na sociedade judaica. Aps um
perodo de calmaria em funo da Operao Muralha, a morte de 16 pessoas provocada por um
homem-bomba nas proximidades de Tel Aviv, no incio de maio, revela a ineficcia das aes
repressivas do exrcito. Longe de sufocar o descontentamento palestino, estas acabam alimentando-
o dando-lhe motivos suficientes para retomar os ataques suicidas.
- Se este o panorama do lado israelense, quais as medidas que a Autoridade Palestina est
tomando para sair da saia-justa em que foi colocada pelo desenrolar dos acontecimentos?
- No difcil imaginar que, neste perodo, Arafat enfrenta uma crescente presso por mudanas.
De um lado, Sharon e Bush querem que a Autoridade Palestina submeta sua administrao a
reformas estruturais profundas e convoque as eleies para a presidncia da ANP. Do outro, pesam
sobre Arafat srias acusaes de corrupo, ineficincia e autoritarismo levadas adiante pelos
prprios grupos da resistncia.
De incio, o Presidente da ANP sugere a possibilidade de convocar as eleies, mas suas
falas so recebidas com ceticismo pelas foras que a ele se opem no interior do Conselho Nacional
Palestino, para as quais as mudanas que esto sendo viabilizadas no ameaam a sua permanncia
no poder e o controle real da mquina administrativa da Autoridade Palestina.
Entre o final de maio e o incio de junho de 2002, Arafat assina a chamada Lei Bsica. Trata-
se da Constituio da ANP que, h 5 anos, aguardava a aprovao do seu Presidente. Alm de
definir seus poderes como lder da Autoridade Palestina e descrever direitos, liberdades e deveres
dos cidados, o documento cria o cargo de Primeiro Ministro, redefine o aparato de segurana e
reestrutura os ministrios da ANP.
- Ndia, o que no entendo por que h tanta ingerncia de Israel e EUA num assunto que diz
respeito aos palestinos?!?
De olhos fechados e com a asa apontada em minha direo, a coruja assume a pose da
investigadora que, somando e analisando evidncias, traz luz o que os discursos e as intervenes
oficiais tratam de ocultar: Simples, querido secretrio! Ao tentar isolar e reduzir o poder de
representao de Arafat, Sharon quer uma reforma da ANP que eleve a tenso entre as foras da
resistncia palestina. De um lado, isso iria desgastar as possibilidades reais da ANP se transformar
num Estado independente e, de outro, criaria as condies que permitem aprofundar e justificar a
poltica de ocupao e colonizao existentes.
A este projeto se une o governo Bush para o qual as reformas no interior da ANP devem
redesenhar a sociedade palestina e, sobretudo, as relaes entre a ANP e os grupos radicais. Para
Washington e Tel Aviv, trata-se de transformar a ANP numa cpia dos regimes rabes (que falam,
no fazem e reprimem violentamente suas oposies internas) como condio necessria para
remodelar o mapa do Oriente Mdio.
Sabendo disso, enquanto Arafat tenta acomodar as coisas para evitar uma ulterior situao de
desgaste, Hams, Jihad, as Brigadas de Al-Aqsa e outros grupos menores no do trgua a Israel e,
longe de atender aos apelos do Presidente da Autoridade Palestina de suspender os ataques suicidas,
decidem manter viva sua ao em territrio israelense.
Diante da impossibilidade de det-los e de elevar a segurana da populao, Tel Aviv aprova
a construo imediata de um muro de at 8 metros de altura e 110 quilmetros de cumprimento
entre Salem e Qalqilya para separar trs regies autnomas palestinas do territrio israelense. Ao
custo de um milho de dlares por quilmetro, o projeto recomendado pelo exrcito, visa fechar
parte da divisa entre Israel e a Cisjordnia no esforo intil de controlar parte das rotas de acesso a
Israel usadas para a realizao dos ataques terroristas.
- Intil... porque?.
- De um lado, porque h vrias outras possibilidades de contornar este obstculo e, alm do mais,
os assentamentos judaicos na Cisjordnia no podem se beneficiar dele em termos de segurana. Do
outro, porque a construo desta longa serpente de concreto, destinada a se prolongar pela antiga
106
linha de fronteira entre Israel e a prpria Cisjordnia, vai agravar ainda mais as condies de vida e,
de conseqncia, a revolta dos palestinos, responde Ndia enquanto se levanta e vai se
aproximando das folhas do relato.
- Como assim?, pergunto intrigado e curioso.
- Acontece que este trecho do muro construdo em mil 150 hectares de terras palestinas
expropriadas por ordem militar israelense e das quais so arrancadas dezenas de milhares de rvores
frutferas e de oliveiras que constituem uma importante fonte de renda para os moradores da regio.
Se isso no bastasse, em vrios lugares a barreira de concreto vai separar as roas e as cidades
palestinas das principais fontes de gua e dos mercados, elevando assim a insegurana quanto
manuteno das j precrias condies de vida.
Some este pequeno detalhe aos resultados da pesquisa da Agncia Estadunidense para o
Desenvolvimento Internacional (US AID) pela qual 30% das crianas palestinas menores de 5 anos
sofre de desnutrio crnica e 21% de desnutrio aguda (nmeros que, antes da Intifada, eram,
respectivamente, de 7,5% e 2,5%). Acrescente o fato de que, com a ocupao e o fechamento de
vrios territrios por parte do exrcito judaico, os trabalhadores da Cisjordnia e da Faixa de Gaza
so impedidos de ir ao trabalho, elevando para 44,7% o ndice de desemprego e para 62% a fatia da
populao que vive abaixo da linha de pobreza.
52
Tempere o todo com as eliminaes seletivas, os
ataques areos, os seguidos toques de recolher, o uso de adolescentes como escudos humanos, as
prises em massa, o assassinato de civis palestinos, a destruio das casas dos militantes envolvidos
nos ataques contra alvos israelenses e ver que, a contas feitas, no faltam razes para que os
palestinos continuem alimentando a sua luta contra a ocupao militar dos seus territrios.
- Enquanto isso, o governo Sharon deve estar nadando de braadas..., comento irnico ao cortar a
fala da coruja.
Ndia permanece silenciosa. Aps alguns instantes, pisca os olhos e com as asas cruzadas
diante do peito dispara um impressionante a capacidade que vocs humanos tm de enfiar o p
na jaca!, que confunde meus pensamentos. E, ao ver que da boca semi-aberta no sai outra coisa a
no ser uma expresso de estupor, continua: Vimos h pouco que os problemas da economia
preocupam tambm os israelenses, causam descontentamento entre a populao e alimentam as
contradies presentes na poltica judaica. Um primeiro sinal de que Sharon est navegando em
guas agitadas vem do partido ultra-ortodoxo Shas que, rechaando os cortes do oramento
promovidos pelo Parlamento, leva Sharon a destituir os 4 ministros deste grupo que integravam o
seu gabinete.
Em 29 de outubro de 2002, o Partido Trabalhista que ameaa sair do governo caso o
Primeiro Ministro se recuse a reduzir a verba de 147 milhes de dlares destinada ampliao dos
assentamentos judaicos na Cisjordnia e na Faixa de Gaza. Mas, sabendo que esta medida minaria
suas bases eleitorais entre os colonos dos territrios ocupados, Sharon se declara disposto a
convocar novas eleies e, em poucos dias, as tenses no interior do governo tornam insustentvel a
manuteno do seu gabinete.
Mas isso no motivo de preocupao para o Likud. Ao contrrio, sabendo que as duras
respostas do exrcito de Israel aos ataques da Intifada levam gua ao moinho de sua candidatura,
Sharon no titubeia em acelerar a dissoluo do governo. Novas eleies so marcadas para 28 de
janeiro de 2003.
Nas semanas que precedem o pleito, o general Amram Mitzna se afirma como nova
liderana do Partido Trabalhista. Se eleito, o candidato a Primeiro Ministro diz que vai retirar todos
os assentamentos judaicos da Faixa de Gaza e parte dos que esto na Cisjordnia, retomar as
negociaes com os palestinos aceitando que Arafat seja seu interlocutor e, caso elas no tragam a
paz esperada, se compromete a construir uma barreira de segurana ao longo de toda a fronteira
52
Dados publicados em Justin Huggler, Peligro de crisis humanitria en Palestina por la reocupacin israel de las
ciudades cisjordanianas, em La Jornada, edio eletrnica. O ndice de desemprego do Centro Palestino de
Estatstica e foi divulgado em Palestinos Desempregados, Gazeta Mercantil, 23/08/2002.
107
entre Israel e os territrios ocupados. Considerado um representante da ala esquerda do seu partido,
Mitzna enfrenta srias dificuldades no s para batalhar o voto israelense, como tambm para unir
os trabalhistas, atingidos por uma profunda crise de identidade e pela queda nos ndices de
popularidade.
O perodo pr-eleitoral marcado pelo endurecimento da represso nos territrios ocupados,
tido como a melhor propaganda que o Likud poderia promover para demonstrar a seriedade do seu
compromisso com a segurana do Estado judaico.
Sobre este mesmo tema, as expresses dos partidos da direita radical ganham tons ainda
mais acentuados. O Heirut (Liberdade), liderado por Michael Kleiner, espalha cartazes nos quais
esto impressas as marcas vermelho-sangue deixadas por duas mos e os dizeres: Ou ns, ou eles.
Menos radical nas expresses verbais, o Ihud Leumi (Unio Nacional) defende que a terra
de Israel pertence exclusivamente ao povo judeu e apia a transferncia voluntria dos palestinos
para os pases rabes. Para os intelectuais judaicos como o historiador Herzl Shubert, esta expresso
no passa de um sinnimo de expulso forada, j que nenhum palestino quer abandonar a sua
terra voluntariamente e a verdadeira inteno da extrema direita tornar a vida dos palestinos to
insuportvel a ponto deles quererem se mudar voluntariamente para outro pas.
Por sua vez, Avi Lerner, porta-voz do Mafdal (Partido Nacional Religioso), considera
moralmente incorreta a idia de transferir os palestinos para os pases rabes, mas, como o Ihud
Leumi, apia a expulso de Yasser Arafat e se declara contrrio criao de um Estado palestino.
53
As eleies, que registram a absteno de 31% do eleitorado, vem o Likud passar de 19
para 37 deputados, enquanto os trabalhistas reduzem de 25 para 19 o nmero das suas vagas no
Parlamento. Diante da recusa destes ltimos de compor um governo de coalizo, Sharon garante a
maioria aliando-se ao Shinui (partido leigo de centro) e aos grupos de direita e extrema direita.
Desde o incio, o Primeiro Ministro deixa claro que o novo gabinete ter como base os
mesmos princpios que guiaram o seu mandato anterior e dever lutar por uma vitria definitiva
sobre o terrorismo. As diferenas diante da possvel criao de um Estado palestino so resolvidas
graas a uma posio conciliatria pela qual os partidos da coalizo governamental se
comprometem a discutir o assunto e a tomar uma deciso a esse respeito caso uma soluo poltica
de longo prazo inclua esta questo. De imediato, porm, o novo governo judaico reafirma a
necessidade de mudar o grupo dirigente da Autoridade Palestina e o fim dos ataques terroristas
como condio para a retomada das negociaes.
Ainda assim, para que ningum duvide de que Israel ser duro com os lderes da Intifada, no
dia 17 de fevereiro de 2003, o exrcito judaico assassina Riyad Abu Zeid, membro importante do
grupo dirigente de Hams, e, quinze dias depois, o Ministro da Defesa de Tel Aviv, Shaul Mofaz,
declara que as foras armadas vo intensificar a presso sobre as organizaes palestinas. Em 8 de
maro, mais uma confirmao de que estas promessas sero cumpridas: o exrcito usa msseis
lanados de helicpteros para matar 4 militantes de Hams e, entre eles, o chefe dos servios de
segurana do grupo, Ibrahim Al Makadma.
Seis dias depois, a Suprema Corte de Israel coloca a chancela legal s aes das foras
armadas rejeitando o recurso impetrado pela organizao judaica Mdicos pelos Direitos Humanos
que pede a proibio do uso das bombas de fragmentao nos territrios palestinos. Estes artefatos,
proibidos pela Conveno de Genebra, contm de 10 a 14 mil fragmentos metlicos de 4
centmetros que, aps a detonao, atingem um raio de 85 metros. Seu poder de matar e ferir
pessoas que se encontram nas proximidades dos locais atingidos ainda mais devastador quando se
trata de regies densamente povoadas. Em outras palavras, o prprio Poder Judicirio israelense
coloca-se acima da legislao internacional e, ao julgar que as bombas de fragmentao so
indispensveis na luta contra o terrorismo, legaliza o que os palestinos j conhecem h muito
tempo: para vencer sua resistncia no h excluso de golpes.
53
Dados publicados em Guila Flint, Extrema direita israelense quer sada voluntria dos palestinos, pgina eletrnica
da BBC em portugus.
108
- Pelo visto, todas estas investidas vo apertar ainda mais o cerco ao redor de Arafat?, pergunto ao
comentar o bvio desfecho desta situao.
- De fato, isso que acaba acontecendo. Diante das presses cada vez mais fortes vindas dos
governos de Washington e Tel Aviv, o Presidente da ANP sanciona as medidas constitucionais que
criam o cargo de Primeiro Ministro e reduzem os seus poderes. Mahmud Abbas, conhecido tambm
como Abu Mazen, a pessoa designada para ocupar o novo ministrio e, de conseqncia, para
restabelecer o dilogo com Israel. Mas Abbas - um dirigente da OLP que no conta com o apoio de
grupos organizados da resistncia palestina, no goza de popularidade junto ao povo e cuja fama
de ser flexvel aos interesses judaicos condiciona a aceitao do cargo troca de 13 dos 20
ministros da Autoridade Palestina. Com esta medida, ele no s busca aumentar sua autonomia em
relao a Arafat, como se prope a trazer para os crculos mais altos do poder pessoas interessadas
na desmilitarizao da Intifada, idia rejeitada pelos grupos fundamentalistas e radicais da
resistncia.
Aps um longo vaivm de contatos, ameaas e presses, no dia 29 de abril de 2003, o
Conselho Legislativo Palestino aprova por 51 votos a favor, 18 contra e 3 abstenes o nome de
Abbas para o cargo de Primeiro Ministro e grande parte da mudana ministerial por ele exigida.
Empossado, Abbas rechaa imediatamente todas as formas de terrorismo e pede o fim da ocupao
israelense nos territrios da ANP.
Obtido o que queria, Bush se diz pronto para entregar o Mapa do Caminho aos governos
palestino e israelense. Trata-se de um plano de paz elaborado por representantes dos EUA, Unio
Europia, Rssia e Naes Unidas, e considerado a ltima tentativa de pacificar os dois povos.
Mas a festa da posse manchada por acontecimentos que reafirmam ao Primeiro Ministro da
ANP a certeza de que no ter vida fcil. Pouco antes do Conselho Legislativo Palestino abrir a
sesso que o empossaria, o exrcito judaico lana duas operaes de assassinato seletivo. Na
primeira, perdem a vida dois membros das Brigadas de Al-Aqsa e, pouco depois, helicpteros
israelenses disparam seus msseis contra o carro no qual viaja Nidal Salama, responsvel pelas
Brigadas Abu Ali Mustaf, brao militar da Frente Popular de Libertao da Palestina no sul da
Faixa de Gaza. noite, outros dois palestinos so mortos ao tentar entrar numa rea de colonizao
judaica e, na madrugada do dia 30 de abril, um atentado suicida num bar prximo Embaixada dos
Estados Unidos, em Tel Aviv, deixa 4 mortos e cerca de 50 feridos.
Desde o incio, o mandato de Abbas experimenta o aperto pelo qual passa quem colocado
entre o prego e o martelo por foras sobre as quais no tem condies de exercer um controle direto.
Para obter o apoio dos Estados Unidos e a desocupao dos territrios da ANP, o Primeiro Ministro
palestino pressionado a combater duramente os grupos terroristas. Mas, por outro lado, se for levar
isso a srio, alm de atrair a rejeio dos palestinos, ele corre o risco de dar origem a uma
verdadeira guerra civil capaz de fazer implodir o que at agora foi construdo.
- Se no estiver errado, voc falou de um novo plano de paz, um tal de Mapa do Caminho. Daria
para voc delinear o seu contedo?, peo impulsionado pelo desejo de conhecer as perspectivas
que ele traz em seu bojo.
Ndia suspira. Em seguida, senta e se acomoda com a atitude de quem se prepara para uma
longa anlise. Pronta, a coruja usa o graveto-muleta para espetar o ar sua frente e com voz solene
declara que Desde as primeiras linhas do texto, o Mapa do Caminho localiza o aspecto que, no
entender de seus autores, abre perspectivas para a paz: Chegar-se- a uma soluo do conflito
palestino-israelense somente atravs do fim da violncia e do terrorismo, quando o povo palestino
tiver uma direo que aja com deciso contra o terror e tenha a vontade poltica de construir uma
democracia ativa alicerada na tolerncia e na liberdade; atravs da disposio de Israel a fazer o
necessrio para que venha a se estabelecer um Estado palestino democrtico; e com a clara e
inequvoca aceitao por ambas as partes da meta de um acordo negociado.
54
54
As citaes do Mapa do Caminho, e as demais referncias ao mesmo, tm como base o documento Hoja de Ruta
para una solucin permanente al conflito palestino-israeli basada en dos Estados divulgada atravs da internet pelo
109
O percurso que leva a este objetivo percorre trs etapas. A primeira prev o fim do terror e
da violncia, a normalizao da vida palestina e a construo de suas instituies. Neste sentido,
cabe ANP empreender esforos para prender, parar e reprimir indivduos e grupos que realizem e
planejem ataques violentos contra israelenses em qualquer lugar. Para isso, faz-se necessrio
reestruturar o aparato de segurana da Autoridade Palestina dando-lhe condies que permitam
enfrentar todos aqueles que tm vnculos com o terror, desmantelando a capacidade de realizar
aes terroristas e suas infra-estruturas.
Por sua vez, Israel no deve levar adiante nenhuma ao que prejudique a confiana,
includas as deportaes e os ataques contra os civis, os confiscos e/ou as demolies de casas e
propriedades palestinas, como medida punitiva ou para favorecer as construes israelenses, a
destruio das instituies palestinas e de suas infra-estruturas. Ao registrar avanos em matria de
segurana, as Foras de Defesa de Israel se retiram progressivamente das reas ocupadas a partir
de 28 de setembro de 2000 e as partes restabelecem o status quo existente antes de 28 de setembro
de 2000. A segurana das reas desocupadas pelo exrcito judaico deve ser entregue polcia
palestina sendo que as duas instituies so chamadas a cooperar para garantir o fim da violncia.
Enquanto isso, os representantes de EUA, Rssia, Unio Europia e Naes Unidas se
encarregam de supervisionar informalmente o cumprimento do plano e vo consultar palestinos e
israelenses para criar um mecanismo formal de superviso e regras que orientem a ao do mesmo.
Os pases rabes devem cortar o financiamento pblico ou privado e todas as demais formas de
apoio aos grupos que respaldam e mantm vnculos com a violncia e o terror. Eventuais doaes e
verbas oramentrias destinadas aos palestinos devem ser depositadas somente na conta do
Ministrio das Finanas da ANP.
Ao mesmo tempo, se deve criar em territrio palestino um comit destinado a elaborar uma
nova constituio. Esta deve ter como base uma forte democracia parlamentar, um governo
comandado por um Primeiro Ministro e deve ser comentada e debatida publicamente. A construo
das instituies palestinas deve contar com ministros que tenham poderes efetivos para levar adiante
as reformas que se fazem necessrias, garantir a autonomia dos Poderes Legislativo, Executivo e
Judicirio, e celebrar eleies livres.
Alm de facilitar a viabilizao deste processo, Israel deve implementar medidas que
melhorem as condies de vida dos palestinos levantando os toques de recolher, reduzindo as
restries movimentao de pessoas e mercadorias, permitindo o acesso total, seguro e sem
obstculos aos representantes de instituies internacionais e de carter humanitrio. No que diz
respeito aos assentamentos, Tel Aviv deve desmantelar imediatamente os que foram construdos a
partir de maro de 2001 e se compromete a congelar todas as atividades dos demais, incluindo o seu
crescimento natural.
Na segunda fase, os esforos se concentram na criao de um Estado palestino independente
com fronteiras provisrias e atributos de soberania, baseado na nova constituio, como etapa
intermediria rumo a um ajuste do seu estatuto permanente. Ao longo deste processo, EUA, Unio
Europia, Rssia e ONU realizam gestes para convocar uma conferncia internacional cujo
objetivo trazer paz ao Oriente Mdio. Por isso, os pases rabes so chamados a restabelecerem os
vnculos que tinham com Israel antes da Intifada de Al-Aqsa, a renovar os compromissos quanto
utilizao dos recursos hdricos, meio-ambiente, desenvolvimento econmico, refugiados, controle
dos armamentos e, claro, a colaborar na criao do Estado palestino.
Estes passos so acompanhados pela intensificao da superviso internacional das naes
que formularam o Mapa do Caminho s quais cabe dar por encerrada esta etapa promovendo o
reconhecimento internacional do Estado palestino e sua possvel condio de membro das Naes
Unidas.
Departamento de Estado dos Estados Unidos, em 14 de maio de 2003 e traduzido em espanhol na pgina eletrnica de
Rebellin em 06 de julho de 2003.
110
A ltima fase, a ser completada em 2005, prev o incio formal das negociaes destinadas a
chegar a um acordo permanente sobre a questo das fronteiras do Estado palestino, do status de
Jerusalm, dos refugiados e dos assentamentos judaicos na Cisjordnia e na Faixa de Gaza, alm de
fazer avanar as relaes entre Israel, Lbano e Sria. Estas teriam como base as Resolues 242,
338 e 1397 do Conselho de Segurana da ONU e seu ponto final seria colocado com a total
normalizao das relaes entre Israel e os pases rabes.
- Bom, no papel, est tudo muito bonito, mas quais so as chances deste plano se tornar
realidade?, pergunto desconfiado.
Ndia franze a testa, abre as asas e num profundo suspiro expressa um comentrio que soa
como uma sentena: Pelo que posso ver, seu objetivo propiciar um momento de calmaria antes
da prxima tempestade.
-Voc no est falando srio... Est?, pergunto assustado.
-Infelizmente, sim. Acontece que, h mais de 60 anos, o Oriente Mdio tido como uma rea de
extrema importncia para os interesses estadunidenses em funo das abundantes jazidas de
petrleo e gs natural presentes em seu subsolo. Ainda que a penetrao norte-americana na regio
tenha conseguido atrelar as elites dominantes ao armamento, presena de bases militares
estadunidenses em seu territrio ou ajuda financeira de Washington, a ausncia de uma soluo
definitiva para a questo palestina acaba sendo uma verdadeira pedra no sapato que machuca,
incomoda e dificulta o caminhar.
O fato dos palestinos constiturem um forte elemento da identidade rabe tem sido suficiente
para que os protestos em apoio sua causa e a prpria resistncia se tornem elementos que fazem
tremer as frgeis oligarquias que governam as naes daquela regio. Se isso no bastasse, a
ocupao do Iraque pelas tropas norte-americanas e o projeto do governo Bush de redesenhar o
mapa do Oriente Mdio com a fora dos seus exrcitos acirram as tenses no interior das naes
rabes e projetam um futuro cada vez mais incerto.
A pressa com a qual os EUA pretendem viabilizar o Mapa do Caminho no diz respeito
urgncia de resolver as contradies de um passado de injustias e agresses, mas sim necessidade
de criar as condies para a continuidade dos prprios planos. Ao que tudo indica, a postura
estadunidense procura fortalecer a frgil aparncia pela qual Washington usa a fora para a paz e
no para a guerra, ao mesmo tempo em que o fracasso do plano de paz lhe permite legitimar
intervenes bem mais pesadas tanto contra os palestinos, como em relao aos pases que apiam
sua resistncia.
- Voc est insinuando que o Mapa do Caminho no passa de uma farsa?.
- Exatamente!, responde a coruja com voz calma e firme.
- Mas ser que no h mesmo nenhuma chance para a paz?, teimo ao no abrir mo de acreditar
que o novo plano pode trazer algum avano nas relaes entre rabes e israelenses.
Pressionada pela insistncia, a ave se levanta e com a muleta apontada em direo noite
que j cobre a cidade, limpa a garganta para deixar ainda mais claras as razes que motivam sua
desconfiana: O que voc no consegue entender que Israel cumpre o papel de cunha dos Estados
Unidos no mundo rabe. Ao agir desta forma, o governo de Tel Aviv garante seus interesses, mas o
ritmo de penetrao da cunha e as batidas que a movimentam esto subordinadas geopoltica
norte-americana.
Voc deve estar lembrado de que foi atravs do conflito rabe-israelense que os EUA
suplantaram o controle colonial da Frana e da Gr Bretanha, minaram as relaes da antiga Unio
Sovitica com os pases da regio e posicionaram seus efetivos militares at mesmo nos territrios
considerados sagrados pelos muulmanos.
Em troca, de 1967 a 2002, a ajuda econmica e militar declarada do Tio Sam para Israel,
reajustada pela inflao norte-americana, j soma cerca de 146 bilhes de dlares. Isso sem contar
os emprstimos perdoados pelo Congresso dos Estados Unidos, os crditos comerciais, os repasses
das organizaes judaicas estadunidenses, os financiamentos para o desenvolvimento de armas
como os msseis Arrow, os tanques Mercava e o avio militar Lavi Fighter. Graas a todo este
111
apoio, o Estado judaico possui hoje um sistema de msseis e antimsseis de ltima gerao, 236
avies de combate F-16 (a maior frota de aeronaves deste tipo fora dos Estados Unidos), 50 F-4E
Phanton, 9 F-15 Eagle, 42 helicpteros Apache, 57 Cobra Attack, 38 CH-53D e 25 Back Hawk,
alm de um arsenal nuclear que os especialistas avaliam no ser inferior s 200 ogivas.
55
Diante de tamanho poder de fogo, no de estranhar que nenhum pas rabe declare guerra a
Israel e que o dedo no gatilho garanta a parte do leo no que diz respeito aos recursos essenciais
sua sobrevivncia.
Voc pode no saber, mas, por exemplo, em 9 de setembro de 2002, Israel chega a ameaar
uma nova interveno militar no Lbano por suspeitar que o governo de Beirute planeja desviar o
curso do rio Hasbani com o intuito de garantir o abastecimento de gua s cidades do sul do pas
castigadas por um prolongado perodo de seca. Como o Hasbani fornece entre 20 e 25% do precioso
lquido que entra no Lago de Tiberades, principal reservatrio de Israel, o governo judaico deixa
claro que no vai hesitar em utilizar suas foras armadas caso o Lbano resolva investir para suprir
s necessidades do seu povo.
56
Algo parecido, ainda que mais velado, acontece com a defesa dos assentamentos judaicos
nas colinas de Gol que hoje contam com, aproximadamente, 13 mil colonos. A posse desta regio
permite a Israel o acesso anual a cerca de 300 milhes de metros cbicos de gua do rio Jordo.
57
Estes recursos seriam preciosos para a prpria agricultura da Sria, mas, aps a derrota sofrida na
guerra do Yom Kippur, o governo de Damasco sabe que a via militar no lhe favorvel e pouco
pode esperar da diplomtica.
Diante deste quadro, no preciso ter profundos conhecimentos de estratgia militar para
entender que a paz entre Israel e os pases vizinhos no vai ser fruto da superao das contradies
que alimentam os enfrentamentos, mas to-somente da superioridade do poder de fogo judaico.
Mesmo que este no consiga calar os palestinos, a sombra de morte que suas foras armadas
projetam sobre a regio mantm os exrcitos regulares das naes rabes em seu devido lugar.
- E quanto s relaes entre palestinos e israelenses?, pergunto sem me dar por vencido.
Ao ouvir a pergunta j esperada, Ndia sorri, pisca os olhos e desenhando crculos no ar diz:
Se voc prestou ateno descrio que eu fiz do Mapa do Caminho, deve ter percebido que, mais
uma vez, a vtima colocada no banco dos rus. A pea-chave que ganha destaque em cada fase do
plano de paz o combate violncia palestina como se a origem do conflito tivesse que ser
procurada na brutalidade dos grupos radicais e no no processo histrico de ocupao/expulso
levado adiante pelos judeus.
Neste sentido, alm de ocultar as verdadeiras causas do conflito, o Mapa do Caminho impe
a aniquilao da estrutura da resistncia palestina como condio para o avano do processo de paz.
Em troca, pede que os palestinos apostem na boa vontade israelense de, na ltima fase das
negociaes, fazer concesses sobre temas que tm gerado srios impasses ao longo de mais de
meio sculo de histria: o status de Jerusalm, a questo dos assentamentos judaicos nos territrios
ocupados em 1967 e dos refugiados. Ou seja, antes se exige a desativao da estrutura organizativa
e militar dos grupos mais ativos para, em seguida, esperar que Israel cumpra a sua parte mesmo
sabendo que os palestinos no representam uma ameaa e suas reivindicaes podem ser relegadas
ao esquecimento.
Mas isso no tudo. A primeira etapa do plano de paz demanda tambm que a ANP
contenha a violncia e realize profundas reformas mesmo tendo que lidar com condies bem mais
precrias em relao s que existiam antes da Intifada de Al-Aqsa. Alguns nmeros ajudam a
visualizar o grau de destruio produzida pela ocupao dos seus territrios por parte do exrcito de
Israel.
55
Dados publicados em William Hartung e Frida Berrigan, Como armo EU a Israel, em La Jornada, edio eletrnica.
56
BBC, gua pode fazer Israel entrar em guerra contra o Lbano, pgina eletrnica da BBC em portugus.
57
Marta Tawil, Por qu Sria, em La Jornada, edio eletrnica.
112
De 28 de setembro de 2000 a 10 de maio de 2003, 85 mil e 664 hectares de terras palestinas
so confiscados, outros 11 mil e 461 hectares de roas so arrasados, 227 mil 985 rvores frutferas
so arrancadas, mil 162 casas de palestinos so completamente destrudas, os desabrigados so 40
mil e 415 e so cerca de 220 mil os que no podem mais contar com os empregos que tinham em
solo israelense.
58
Isso sem levar em considerao que, ao iniciar a retirada dos seus contingentes, as foras
armadas judaicas ampliam a devastao j existente. o que acontece, por exemplo, em Bet
Hanoun, norte da Faixa de Gaza, quando, ao sair da cidade, no final de junho de 2003, os soldados
derrubam casas, fbricas, pomares e arrasam roas.
59
Some agora o fato de que a maior parte da
infra-estrutura urbana est destruda e no vai ser difcil perceber o tamanho do desafio perante o
qual se encontram os palestinos.
- Bom, mas Israel tambm tem que se comprometer com algumas tarefas..., comento na tentativa
de entender melhor o outro lado da moeda.
Ndia me olha silenciosa. Em seguida, sem alterar o tom de voz firme e pausado continua:
Tudo o que Israel tem que fazer retirar cerca de 60 pequenos assentamentos construdos a partir
de maro de 2001, boa parte dos quais ou est desabitada ou no dispe de reas com edificaes
permanentes. Alm de no representar grande coisa, o prprio governo de Tel Aviv classifica estas
colnias como ilegais. A utilizao deste termo no casual. Ao sugerir a legalidade dos demais
assentamentos nos territrios ocupados, Israel j d a entender que a completa retirada destes
dificilmente ser objeto de negociao.
A bem da verdade, Sharon no se dispe sequer a aceitar o congelamento das colnias j
existentes. No dia 12 de maio de 2003, ao se encontrar com o Secretrio de Estado norte-americano,
Colin Powell, o Primeiro Ministro judaico insiste na necessidade de permitir o crescimento natural
dos assentamentos e encerra sua conversa dizendo: No vamos proibir que o melhor de nossa
juventude construa casas nestas colnias.
60
Quanto questo dos refugiados, as perspectivas no so melhores. Os planos de Israel para
eles so os mesmos que foram formulados por Moshe Dayan, lder do Partido Trabalhista e figura
de destaque na Guerra dos Seis Dias: No temos soluo para eles. Tero que continuar vivendo
como cachorros; quem quiser ir embora pode faz-lo.
61
A postura do governo Sharon difere nas
palavras, mas no nos fatos.
No dia 25 de maro de 2003, o gabinete israelense aprova por ampla maioria uma moo que
nega o direito de retorno dos cerca de 3 milhes e 800 mil refugiados palestinos expulsos aps a
proclamao do Estado de Israel. Na mesma reunio, a adeso ao Mapa do Caminho recebe 12
votos a favor, 7 contra e 4 abstenes, sendo que o sim ao plano de paz acompanhado por uma
lista de objees e reservas que, em seguida, so aceitas pelo governo de Washington. Duas
semanas depois, ao reiterar que nenhum refugiado palestino voltar sua terra, Sharon diz: Fui
claro no passado e o repeti [durante a reunio] em Acaba; a questo dos refugiados palestinos no
pode ser resolvida em territrio israelense e acrescenta que os Estados Unidos entendem a ameaa
que estes representam para a existncia do Estado judaico.
62
- Mas, pelo menos, o exrcito israelense deve pr fim s suas aes na Cisjordnia e na Faixa de
Gaza?, insisto na tentativa de fazer com que um fio de esperana atravesse a escura noite da
questo palestina.
58
Dados divulgados pelo relatrio do MIFTAH Palestinian Iniciative for the Promoton of the Global Dialogue and
Democracy, pgina eletrnica da entidade.
59
Em Said Ghazali, Amargo retorno a la normalidad en Gaza, em La Jornada, edio eletrnica.
60
Agncias DPA, Reuters, PL, AFP e Notimex, Arafat, un fracassado que debe estar fuera de la foto, sostiene
Powell, em La Jornada, edio eletrnica.
61
A citao da frase de Moshe Dayan foi extrada de Noam Chomsky, La solucin es el problema, em La Jornada,
edio eletrnica.
62
Agncias DPA, AFP e Reuters, Concesiones a palestinos, solo quando Abbas ponga fin a la violncia: Sharon, em
La Jornada, edio eletrnica.
113
- Voc no tem jeito mesmo..., comenta Ndia balanando a cabea. Eu mesma adoraria poder
dar esta notcia, mas a realidade me impede de faz-lo. Israel no abre mo de realizar incurses,
novas ocupaes militares, execues seletivas e represlias quando achar que estas medidas se
fazem necessrias para garantir a sua segurana. E os fatos demonstram que Tel Aviv est falando
srio.
Em 21 de junho de 2003, as tropas judaicas assassinam Abdal Kawasmeh, considerado o
nmero um de Hams na Cisjordnia. Trs dias depois, unidades do exrcito israelense realizam
uma operao de busca em Hebrn e prendem 150 palestinos. E, em 3 de julho, Mahmud Shawar,
um dos lderes das Brigadas dos Mrtires de Al-Aqsa morto em Qalqilya, norte da Cisjordnia.
Estas mortes so uma pequena parte dos 768 civis e militares israelenses e dos 2 mil 453
palestinos (dos quais, 2 mil e trs so civis) que perderam a vida desde o incio da Intifada de Al-
Aqsa at o dia 18 de agosto de 2003 e, com certeza, no contribuem para a reduo da tenso e nem
para a manuteno da trgua de trs meses decretada pelas organizaes radicais e fundamentalistas
palestinas para viabilizar o Mapa do Caminho.
63
Na verdade, s ao longo de julho de 2003, as disposies do plano de paz, que integram as
condies da prpria trgua, so violadas por Israel em 854 ocasies. Destas, 299 se referem a
disparos de tanques contra casas e bairros residenciais, 312 a ataques contra estabelecimentos
pblicos e privados, 60 a incurses noturnas das tropas judaicas, alm da instalao de 46 novos
postos de controle militar, do confisco de 474 hectares de terra de lavoura palestina para favorecer
os colonos judeus e da devastao de outros 351 para a construo do tal muro de proteo.
64
Estes dados so mais do que suficientes para mostrar que, apesar de aceitar formalmente o
plano de paz, o gabinete judaico no se preocupa em construir sua efetiva implementao, mas sim
em garantir a continuidade da poltica de sufocamento da vida palestina. Some isso recusa de
Sharon de libertar os cerca de 6 mil presos palestinos e ver que a postura de Tel Aviv no passa de
uma provocao que, ao ser respondida com novos ataques suicidas, trabalha para fazer recair sobre
eles o fracasso do plano de paz.
Em outras palavras, o Mapa do Caminho tende apenas a garantir um espao para o governo
judaico retomar flego, recompor suas fileiras, reestruturar suas medidas de segurana, acertar os
ponteiros com a opinio pblica israelense, enquanto prepara mais uma etapa de enfrentamentos
rumo construo do Grande Israel nos territrios da Cisjordnia e da Faixa de Gaza.
- Isso significa que, nesta luta, os palestinos no tm a menor chance?!?, pergunto desconcertado.
- Discordo! afirma Ndia olhando para o alto. No mximo, podemos dizer que os embates entre
palestinos e israelenses tendem a ganhar dimenses maiores e cada vez mais imprevisveis,
continua a coruja apontando o graveto-muleta em minha direo.
- Sinceramente, no entendo como voc pode afirmar isso depois do relato que acaba de fazer....
- Pois fique sabendo que praticamente impossvel derrotar a resistncia de um povo quando sua
identidade coletiva faz com que at as pedras se sintam palestinas e a vontade de construir um novo
amanhecer alimenta uma esperana que, de gerao em gerao, se materializa numa longa histria
de luta.
O quotidiano caminhar destes elementos pode ser vislumbrado at mesmo numa declarao
recolhida pelos reprteres da BBC. Ao encerrar sua entrevista, Shalhla Kaialy, cuja famlia foi
obrigada a deixar a palestina quando ela tinha 6 anos de idade e h mais de 50 vive num campo de
refugiados nas proximidades de Am, na Jordnia, diz: At hoje guardo a chave da minha casa. S
terei paz quando voltar. Nunca vou desistir disso.
65
63
Dados divulgados pelo relatrio do MIFTAH Palestinian Iniciative for the Promoton of the Global Dialogue and
Democracy, pgina eletrnica da entidade.
64
Dados divulgados em Maha Abdul Hadi, Palestina: informe sobre 854 violaciones israeles de la trgua em Julio, em
IOL/Rebellin, pgina eletrnica.
65
Silvia Salek, Palestinos vem com desconfiana novo plano de paz, BBC, pgina eletrnica em portugus.
114
Sorrindo, Ndia termina o relato envolvida pelo silncio que acompanha suas ltimas
palavras. Momentos depois, deixa a muleta na mesa e com um rpido bater de asas apia o corpo na
janela. Um gesto de despedida e seu vo atravessa o vu escuro da noite.
Desconheo o seu destino e os lugares por onde passar. Mas, enquanto os olhos procuram
na escurido o que j no conseguem ver, a muleta deixada nas folhas do relato o marco visvel de
uma passagem que prope uma tarefa permanente. Com a ponta dirigida para a cidade que dorme, o
pequeno graveto em forma de forquilha reafirma a necessidade de fazer com que um nmero cada
vez maior de pessoas possa entender os rumos da histria para construir um mundo onde haja tudo
para todos.
Por isso, se voc acha que a leitura deste livro ajuda a entender os desdobramentos da
Questo Palestina, no o maltrate deixando-o pegar p na estante da sua casa. Empreste este
exemplar, tire uma cpia ou d uma de presente a quem pode se interessar pelo seu contedo. O
debate das idias vai ajudar a abrir os olhos de muita gente, a ampliar os horizontes da compreenso
da histria e, sobretudo, a no se deixar enganar pelas aparncias que, como imagens no espelho,
tm a pretenso de mostrar como parte da realidade o que no passa de um simples reflexo.
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117
ATUALIZAES
12. Planos de paz... trilhas de guerra.
Manh de outono. Nuvens cinzentas tornam ainda mais triste o cu poludo da cidade e uma
garoa fina veste o bairro com seu manto gelado.
Pressionada pela preguia, a cabea percorre cada centmetro do travesseiro em busca de
algo que justifique a demora em abandonar o terno calor dos lenis. De repente, um vento frio
invade o quarto e, instantes depois, os ouvidos detectam o ritmado bater de um graveto que se
confunde com o tiquetaquear do relgio de parede.
Encontrados os culos, os olhos guiam as pernas no rastro do estranho rudo e, ao
vislumbrarem a silhueta de uma figura conhecida, procuram deter os passos que os separam dela.
De costas, a ave permanece indiferente aproximao do humano cujo andar vagaroso
expressa a decepo de um encontro indesejado. Antes que os lbios se abram em mornas palavras
de boas-vindas, a coruja vira o corpo e apontando o graveto em forma de forquilha que, um dia, lhe
serviu de muleta, em voz firme, declara:
- J passaram, 21 meses, 13 dias, 18 horas, 43 minutos e 17 segundos desde o momento em que
interrompi o meu relato sobre a Questo Palestina. Novos acontecimentos apressaram a minha
volta. Por isso, trate de tirar esse pijama horroroso, lave o rosto com gua bem gelada e assuma o
seu lugar de secretrio.
Na tentativa de fazer a lngua pegar no tranco, os braos ensaiam gestos que pretendem deter
a investida da ave. Apesar do esforo, os poucos neurnios em atividade s conseguem deixar
escapar um Mas... so s sete e quinze da manh...! que faz Ndia arregalar os olhos e franzir a
testa em sinal de reprovao.
- Sete e quinze da manh! - repete a coruja com voz irnica. Sono demais faz o crebro dos
humanos ficar lerdo a ponto de no conseguir ler as tramas que os poderosos preparam para garantir
seus interesses. A preguia dos pequenos abre caminhos s artimanhas com as quais os de cima
mandam e desmandam engordando a conta que os de baixo iro pagar!.
No silncio que toma conta da sala, as mos se levantam em sinal de rendio. Mudo, o
secretrio satisfaz as exigncias do pequeno ser cujo olhar segue de perto cada um de seus
movimentos. Minutos depois, o corpo j est sentado mesa diante dos instrumentos de trabalho.
Aliviada, Ndia abre um sorriso e encosta a ponta da asa no queixo com ar de quem procura
retomar o fio da meada:
- Pelo que lembro, o captulo sobre o Mapa do Caminho se encerra no perodo em que Mahmoud
Abbas primeiro-ministro da Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Em sua atuao, ele pede a reorganizao das foras de segurana, prope uma nova forma
de enfrentar o conflito com Israel e busca retomar as negociaes com o governo de Tel Aviv. Alm
das resistncias internas, os seus problemas aumentam na medida em que o gabinete liderado por
Ariel Sharon no se dispe sequer a estabelecer um canal de dilogo, o que enfraquece a posio de
Abbas na ANP.
Alm disso, o Estado judaico no mede esforos para dificultar a vida dos palestinos: toques
de recolher, confiscos de terra para a construo do Muro e a expanso dos assentamentos na
Cisjordnia, destruio de roas, pomares, casas, lojas, fbricas, prises em massa, assassinatos
seletivos de militantes, uso de adolescentes como escudos humanos para proteger as incurses do
seu exrcito contra eventuais respostas da resistncia, represlias, fechamento das passagens de
fronteira, imposio de bloqueios e postos de controle que dificultam os deslocamentos entre os
territrios, humilhaes constantes e um progressivo aumento dos assassinatos de crianas.
Sem condies de se manter no cargo, Mahmoud Abbas pede demisso no dia 06 de
setembro de 2003 e substitudo por Ahmad Qorei, presidente do Conselho Legislativo Palestino e
118
um dos principais negociadores dos Acordos de Oslo. Aliado de Yasser Arafat, de linha moderada e
com fcil acesso aos grupos da resistncia, o novo primeiro-ministro tenta restabelecer o cessar-fogo
junto s foras palestinas e abrir canais de dilogo com o governo Sharon. Seus esforos, porm,
revelam-se inteis na medida em que no s as foras de ocupao israelenses no do sinais de
querer reduzir a presso sobre a Cisjordnia e a Faixa de Gaza, como o prprio Sharon, em 26 de
dezembro de 2003, anuncia que vai intensificar os assassinatos seletivos dos membros da resistncia
palestina.
A promessa macabra do primeiro-ministro de Israel no demora a se tornar realidade. Ao
longo da primeira metade de 2004, os grupos armados palestinos vo perder algumas de suas
principais lideranas.
Em 7 de fevereiro de 2004, um ataque israelense mata Aziz Chami, chefe militar de Jihad
Islmica. Dois dias depois, a vez de Achraf Abu Libden, lder das Brigadas Abu Ali Mustafa,
brao armado as FPLP. Em 28 de fevereiro, assassinado Mohamed Ghoded, tido como um dos
mais importantes dirigentes das Brigadas dos Mrtires de Al-Aqsa. No dia 24 de maro de 2004,
helicpteros do exrcito de Tel Aviv matam o xeique Ahmed Yassin, fundador e lder espiritual de
Hams. Pouco menos de um ms depois, em 17 de abril, assassinado o seu substituo, Abdel Aziz
Rantisi. O prprio Arafat repetidamente apontado por Sharon como homem marcado para morrer.
Ao longo de 2004, s na Faixa de Gaza, o exrcito de Israel vai executar nada menos do que 45
lderes palestinos.
66
importante ressaltar que este tipo de ao viola a legislao internacional sobre a guerra,
da qual Israel signatrio, e atinge tanto os dirigentes dos braos armados da resistncia como os
lderes polticos que despontam em seu meio. Desta forma, Tel Aviv busca destruir a liderana
forjada na luta, respeitada em suas bases, reconhecida pela populao e que no se dobra s suas
demandas e planos.
Mas o assassinato seletivo no a nica forma pela qual Israel tenta minar a resistncia
palestina nos territrios ocupados. Sempre em 2004, a Faixa de Gaza vai conhecer tambm pesadas
incurses militares com as quais o exrcito judaico procura retalhar a resposta dos grupos armados
locais. Entre as mais duras est, sem dvida, a Operao Arco-ris. Iniciada em 14 de maio, seu
alvo a cidade de Rafah, prxima fronteira com o Egito. Doze dias depois, o saldo final
assustador: 62 palestinos mortos (dos quais 25 so menores de 18 anos), 280 feridos, 760 famlias
desabrigadas devido destruio de suas casas. A crueldade tamanha que o Conselho de
Segurana da ONU condena a operao por 14 votos a um e, em 23 de maio, o prprio ministro da
justia israelense a qualifica de prtica desumana e no judaica.
67
Diante dos acontecimentos e do avolumar-se das tenses no interior das foras de segurana
palestinas, em 17 de julho de 2004, Qorei apresenta sua demisso do cargo. Arafat, porm, pede que
retire o pedido, o que s aceito pelo primeiro-ministro da ANP aps garantir algumas mudanas na
composio do seu gabinete.
Terminadas as ltimas palavras, Ndia pisca os olhos e, pensativa, comea a andar de um
lado pra outro da mesa enquanto a antiga muleta parece traar no ar as prximas passagens do
relato. As mos acabam de pr no papel suas reflexes, quando a boca interrompe bruscamente a
concentrao da coruja com um Eu acho que voc est exagerando... que faz a ave virar
prontamente o corpo para a voz acusadora. De orelhas em p, Ndia espera que a lngua expresse a
razo de ser daquela interveno inesperada:
- O que quero dizer observa o secretrio em tom de desafio que voc fala dos palestinos como
se fossem todos anjinhos. verdade que, s vezes, Israel exagera na dose, mas no podemos
esquecer que est agindo em legtima defesa....
Disposta a colocar cada coisa em seu lugar, a ave senta, recosta o corpo na pilha de livros
que se ergue atrs dela e, aps um longo suspiro, inicia sua resposta em meio a um sorriso maroto:
66
Dados Publicados em Jennifer Loewenstein (43).
67
Declarao divulgada pelas agncias de notcias AFP, DPA e Reuters (5).
119
- Um dos problemas mais srios dos representantes da sua espcie a incrvel capacidade de perder
de vista a realidade quando atrados pelos reflexos com os quais os meios de comunicao apagam o
pouco que a memria lembra deste longo conflito. Para ser mais clara, vou responder sua questo
com um exemplo.
Imagine um grupo de ladres fortemente armados entrando na sua casa. Sem pedir licena,
derrubam a porta, batem em seus familiares, quebram seus pertences e, com o dedo no gatilho,
impem sua famlia anos de humilhao. Um dia, voc comea a ensaiar uma srie de reaes
contra seus agressores na tentativa de se livrar deles.
Agora pergunto: qual dos dois lados est agindo em legtima defesa?.
- Com certeza, eu!, responde o secretrio com convico.
- Pois esta tambm a histria recente do conflito entre palestinos e israelenses. A Guerra dos Seis
Dias, iniciada em junho de 1967, leva a uma durssima ocupao militar da Cisjordnia e da Faixa
de Gaza. O tempo passa e a destruio do lar palestino aumenta. Pouco a pouco, as naes do
primeiro mundo vo definindo seus interesses em relao aos dois lados do conflito tendo como
base no as preocupaes humanitrias, mas sim o quanto podem ganhar em termos comerciais e de
influncia sobre as naes do Oriente Mdio. assim que, quando convm, o legtimo direito
resistncia armada de um povo submetido ocupao militar estrangeira, reconhecido pela ONU e
pelas normas internacionais sobre a guerra, passa a ser condenado como ao terrorista baseada no
fanatismo religioso de grupos isolados ao mesmo tempo em que a represlia dos invasores pintada
com as cores da legtima defesa.
No caso palestino, o problema no est s no fato de que a vtima vai ocupar o banco dos
rus, mas sim que as aes das foras de ocupao so alardeadas como medidas justas e
necessrias para restaurar a ordem que as autoridades locais so incapazes de garantir e da qual a
fora ocupante precisa para fazer vingar seus planos. Realizada esta faanha, novas provocaes vo
levar os moradores da Cisjordnia e da Faixa de Gaza a se defenderem; e seus agressores israelenses
a agir com fora redobrada para esgotar os recursos da resistncia e for-la a uma negociao que
em nada respeita os seus direitos, mas que aos olhos do mundo ganha as feies de uma proposta
irrecusvel.
- Mas, desse jeito, at um plano de paz pode se transformar na trilha que leva exploso de um
novo conflito?!?, questiona a lngua assustada ao tomar conscincia de uma possibilidade
inesperada.
- isso que pretendo desvendar nos prximos passos do relato responde a coruja com expresso
sria e compenetrada. E vou comear pelos chamados Acordos de Genebra, oficialmente
apresentados nesta cidade da Sua, em 1 de dezembro de 2003.
Trata-se de uma proposta de paz nascida aps trs anos de negociaes secretas e cujos
principais artfices so o ex-ministro da justia de Israel, Yossi Beilin, o ex-ministro da informao
e da cultura da ANP, Yasser Abed Rabbo, com o apoio do ex-presidente dos Estados Unidos,
Jimmy Carter, e do prprio governo suo. O objetivo dos entendimentos, cuja minuta divulgada
mais de um ms antes, de ajudar a pr um ponto final nas grandes questes que alimentam o
conflito entre os dois povos: a criao do Estado Palestino, o status de Jerusalm, os assentamentos
judaicos na Cisjordnia e na Faixa de Gaza e o destino dos mais de 4 milhes de refugiados.
- E...seria muito pedir para voc sintetizar os principais pontos do documento?, sugerem os lbios
em busca de pequenos sinais de esperana.
Animada pelo interesse do secretrio, Ndia atende o pedido sem pestanejar:
- Mesmo no tendo nenhum valor oficial, as peas-chave dos Acordos de Genebra podem ser
resumidas nos pontos que seguem:
1. Israel aceitaria a criao do Estado Palestino, ao mesmo tempo em que este se comprometeria a
reconhecer o Estado de Israel como Estado judaico.
2. O territrio israelense seria constitudo pela rea por este possuda antes da Guerra dos Seis
Dias, em junho de 1967, acrescida por boa parte das terras de seus atuais assentamentos na
Cisjordnia e na Faixa de Gaza. Por sua vez, o Estado Palestino ocuparia os territrios restantes
120
das duas regies ampliados por uma faixa de terra no deserto do Negev como forma de
compensar as reas anexadas a Israel.
3. O Estado Palestino no teria exrcito prprio. Suas fronteiras seriam controladas por uma Fora
Multinacional que atuaria como elemento de dissuaso, supervisionaria as Foras de Segurana
Palestinas e s poderia se retirar da regio aps a aprovao do governo de Tel Aviv. Por sua
vez, as Foras de Segurana locais assumiriam, com as tropas multinacionais, o controle das
fronteiras, zelariam pelo cumprimento da lei e pela manuteno da ordem interna,
desempenhariam funes de polcia e de inteligncia, prevenindo o terrorismo e garantindo os
servios essenciais quando requisitados. Israel retiraria seus soldados e equipamentos blicos
dos territrios palestinos de acordo com um cronograma preestabelecido, mas manteria postos
avanados de vigilncia, uma pequena presena militar no vale do Rio Jordo e seus avies de
combate poderiam usar o espao areo palestino.
4. Os dois lados se comprometeriam a rejeitar todas as formas de terrorismo, bem como todas as
aes e as polticas que podem cri-lo e aliment-lo, o que inclui o desarmamento das milcias e
uma crescente cooperao entre as respectivas foras de segurana.
5. A cidade de Jerusalm seria dividida em dois blocos. Os bairros rabes da regio leste
integrariam o Estado Palestino. Os setores judaicos da mesma rea, bem como os subrbios de
Givat Zeev, Maaleh Adumim e a parte histrica de Gush Etzion ( exceo de Efrat) na
Cisjordnia seriam incorporados parte de Jerusalm destinada a ser capital do Estado Judaico.
O Monte do Templo pertenceria aos palestinos e uma fora internacional garantiria a segurana
e o acesso dos visitantes de todas as religies. Nesta rea, qualquer escavao arqueolgica ou
nova construo s poderia ser realizada com o consentimento de Israel.
6. No que diz respeito aos refugiados, o governo de Tel Aviv indicaria quantos deles se dispe a
aceitar em seu territrio. O Estado Palestino e os demais pases em que h pessoas nesta
condio fariam o mesmo e criariam normas especficas para incorpor-los populao local.
Os refugiados a serem transferidos para a Palestina, Israel ou outros pases teriam direito a uma
compensao financeira pela perda das propriedades nas naes em que estavam abrigados.
Realizada a escolha do lugar de residncia permanente, seria extinto o status de refugiado e
nenhuma nova reivindicao poderia vir a ser encaminhada a este respeito.
7. No caso de ser aceito por ambas as partes, este acordo iria substituir todas as resolues das
Naes Unidas e o que j tiver sido assinado entre autoridades e representantes dos dois povos.
- Bom, Ndia, primeira vista, no parece to ruim assim....
- S primeira vista!, rebate a coruja enquanto apoia o corpo no graveto para levantar-se.
- Sinceramente, no consigo ver o que poderia ter de to errado!, insiste a boca em tom de
justificativa.
A ave suspira e, olhando para o alto, alfineta:
- Dito por voc, no nada estranho. Apesar de suas lentes garrafais, seus olhos no conseguem
enxergar a um palmo do nariz...
- Isso no hora de brincar com coisa sria!, exclamam os lbios imediatamente interrompidos
pela voz da coruja que retruca:
- A questo, meu caro secretrio, que os Acordos de Genebra apenas parecem apontar uma
soluo definitiva para os problemas que, h dcadas, alimentam o conflito entre os dois povos,
quando, na verdade, buscam derrotar a prpria razo de ser da luta palestina.
Pra incio de conversa, necessrio sublinhar que, pela primeira vez, setores oriundos do
ncleo central do governo palestino admitem a existncia de Israel enquanto Estado judaico, ou
seja, como lugar onde a maior parte da populao reconhecida em funo de sua confisso
religiosa. Na prtica, isso significa que, tanto os rabes palestinos que moram no interior do
territrio israelense, como os refugiados (cujo direito de retorno s suas antigas terras garantido
pelas Resolues da ONU) no teriam direito cidadania plena da qual gozam os judeus que esto
ou pretendem voltar pra Israel.
121
Por outro lado, o nascente Estado Palestino no gozaria de soberania real sobre o seu
territrio. De fato, alm de no ter um exrcito prprio, seu espao areo poderia ser usado pelo pas
vizinho para fins militares, ao mesmo tempo em que o controle das fronteiras e das foras de
segurana internas seria realizado por tropas internacionais. Em outras palavras, apesar do exrcito
israelense vir a se retirar da Faixa de Gaza e de parte da Cisjordnia, o papel antes exercido pelos
soldados de Tel Aviv passaria a ser assumidos por um contingente multinacional cuja sada do
territrio palestino no dependeria de um pedido de suas autoridades, mas sim da aprovao de
Israel. Por este caminho, a atual ocupao militar da Palestina ganharia a feio legal de uma fora
de paz estrangeira para continuar interferindo na vida quotidiana do Estado recm-criado.
Se isso no bastasse, o texto dos Acordos de Genebra prev que dois teros do solo hoje
ocupado pelos assentamentos israelenses na Cisjordnia seriam anexados ao territrio de Israel que,
por sua vez, cederia uma faixa de terra da regio do Negev. Quem no conhece as condies do
terreno pode ser levado a crer que se trata de uma troca justa quando, na verdade, os colonos judeus
iriam ficar com as melhores terras e com o acesso garantido aos recursos hdricos da regio. Em
contrapartida, os palestinos seriam compensados com um pedao de deserto cuja possvel
transformao em terreno agrcola iria exigir investimentos elevadssimos a serem aplicados durante
um longo perodo de tempo. E tem mais. A aceitao deste item , na prtica, uma forma de
legalizar a violao da Quarta Conveno de Genebra (que probe a colonizao e a anexao de um
territrio ocupado por fora militar) e abre um precedente perigoso para as futuras negociaes
oficiais.
As coisas se complicam um pouco mais quando percebemos que esta medida colocaria em
cheque as possibilidades de consolidao e desenvolvimento da agricultura palestina, importante
fonte de sobrevivncia para centenas de comunidades rurais. Viabilizar esta diviso do territrio
significaria manter o controle da gua em mos israelenses e fazer com que os palestinos continuem
refns do fornecimento deste precioso lquido. De acordo com os dados disponveis, cada morador
dos territrios administrados pela ANP tem direito, em mdia a 65 litros de gua por dia quando
todo israelense pode usufruir, no mnimo, de 350. Sabendo que a Organizao Mundial da Sade
recomenda a disponibilidade mnima cotidiana de 100 litros por pessoa, no difcil imaginar que a
j escassa quantidade de gua fornecida aos palestinos continuaria a ameaar de perto o seu presente
e o seu futuro.
68
- Bom, mas voc no pode negar que o texto aponta uma sada tanto para a disputa de Jerusalm,
como para a questo dos refugiados....
- O problema de sua cegueira diz Ndia ao espetar o ar com o graveto apontado para os culos do
secretrio no est no fato dos olhos no verem o que o rodeia, mas sim destes lhe
proporcionarem a firme convico de que est enxergando bem e que, portanto, no precisa usar o
crebro para tentar desvendar o que se esconde por trs das aparncias. Isso leva-o a esquecer que,
desde a Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, Israel j expropriou 34% da rea de Jerusalm
Leste alegando razes de utilidade pblica e destruiu mais de duas mil construes palestinas para
dar lugar a conjuntos habitacionais destinados aos judeus. Mas o processo de expulso dos
palestinos no pra por aqui. Atualmente, o alvar de construo em Jerusalm Leste pode chegar a
custar 30 mil dlares e o processo de obteno do mesmo, s vezes, leva mais de cinco anos. Na
falta de alternativas, os moradores rabes deste setor de Jerusalm se vem obrigados a construir
sem permisso legal o que d administrao israelense as razes de que precisa para justificar as
novas ordens de demolio.
69
Alm disso, esta regio da cidade, majoritariamente rabe-palestina, tende a ser sufocada
pela ampliao do assentamento de Maaleh Adumim cujos 3 mil e 500 novos conjuntos
habitacionais iro separar de vez os territrios da ANP a norte e a sul de Jerusalm, impedindo
assim que a capital do futuro Estado Palestino tenha uma ligao direta com a Cisjordnia. Para
68
Dados publicados em MIFTAH (50).
69
Dados publicados em Observatrio da Palestina (52).
122
completar a obra, basta terminar o trecho do muro (cujos trabalhos j esto em andamento) que ir
isolar os remanescentes bairros de Jerusalm Leste das reas israelenses da cidade, da expanso de
Maaleh Adumim e, obviamente, dos territrios da Cisjordnia.
Terminadas as edificaes, os cerca de 195 mil palestinos desta regio acabaro vivendo
num presdio a cu aberto. Cercados pelo muro, os quarteires onde moram vo se transformar em
pequenos campos de concentrao
dos quais ser permitido entrar e
sair por um porto controlado por
soldados israelenses e s aps
obter uma autorizao especial
junto administrao judaica da
cidade. Desta forma, os palestinos
que tiverem suas fontes de renda
em Jerusalm ou precisarem se
deslocar para as reas da
Autoridade Palestina correm o
risco de passar por maus bocados
em funo dos mesmos
inconvenientes que j so parte da
vida quotidiana de amplas regies
da Palestina ocupada.
Resumindo, enquanto as
palavras dos Acordos de Genebra
alegam procurar uma possvel
soluo do conflito, os fatos
demonstram que Tel Aviv, h
dcadas, vem implementando
medidas para levar adiante uma limpeza tnica silenciosa que transforme toda a rea de Jerusalm
na capital nica e exclusiva do seu Estado. Ao agir desta forma, o plano do governo judaico d mais
um passo para inviabilizar a criao do prprio Estado Palestino. Sabendo que cerca de 40% da
economia da ANP depende do turismo e das atividades que giram em torno de Jerusalm Leste, o
progressivo controle desta rea vai acabar inviabilizando o acesso esta importante fonte de
recursos e sufocando possibilidades de desenvolvimento indispensveis viabilidade da prpria
Autoridade Palestina. Mais uma vez, a poltica israelense de criar fatos consumados joga por terra a
que parecia ser uma soluo vivel para uma das peas-chave do conflito.
No que diz respeito questo dos refugiados, na prtica, o texto dos Acordos cassa o direito
destes voltarem s terras das quais foram expulsos por Israel a partir de 1948. A Resoluo 194,
aprovada pela Assemblia Geral da ONU em 11 de dezembro daquele ano, diz que se deve permitir
aos refugiados que o desejarem de voltar o quanto antes a seus lares. Alm disso, compensaes
devem ser pagas tanto queles que decidirem no voltar como aos que tiveram suas posses
destrudas ou danificadas. O mesmo documento cria tambm uma Comisso de Conciliao,
composta por Estados Unidos, Turquia e Frana a fim de facilitar a repatriao, a reinstalao e o
progresso scio-econmico dos refugiados, bem como de avaliar os montantes das indenizaes. Os
trabalhos desta Comisso se encerram em 1964 e toda a documentao que atesta os bens e valores
a serem devolvidos ou indenizados depositada nos arquivos das Naes Unidas.
E tem mais. A prpria admisso do Estado de Israel na ONU, em maio de 1949,
condicionada ao cumprimento da Resoluo 194, sobretudo no que diz respeito ao retorno dos
refugiados palestinos, direito que, at abril de 2005, reafirmado 49 vezes. Ao aceitar abrir mo
dele, os Acordos de Genebra legitimam a histria de dominao israelense, frustram as esperanas
de mais de 4 milhes de refugiados e levam os palestinos a renunciarem definitivamente a uma das
principais questes que colocam o mundo diante da gravidade de sua situao.
123
Apoiada no graveto, a coruja no desgruda o olhar das folhas do relato espera de que o
silncio desperte novas inquietaes diante desta realidade to complexa.
Instantes depois, a lngua vence a paralisia provocada pelo desconcerto. Coada a cabea, a
mo direita do secretrio desenha no ar os gestos que a boca vai traduzir em palavras:
- Pelo visto, os Acordos de Genebra devem ser motivo de condenao entre os palestinos e de
comemorao para os israelenses...
- Nota cinco!, responde Ndia taxativa.
- Nota cinco...por que?!?
- Porque voc acertou s metade do desenrolar da histria.
- Voc no est querendo dizer que os prprios israelenses vo se posicionar contra estes
entendimentos....est?, pede a lngua temendo uma resposta afirmativa.
- Na lata! diz a ave enquanto levanta o graveto e comea a andar sobre a mesa. Do lado palestino,
o presidente da ANP, Yasser Arafat, envia uma carta lida durante a cerimnia oficial de assinatura.
Nela, sada os Acordos de Genebra como uma tentativa de encontrar o caminho da paz, aproveita
para condenar o Muro que Israel constri nos territrios ocupados apelidando-o de Muro de
Separao Racista e pede a implementao da Resoluo 194 da ONU que, por si s, viraria de
cabea pra baixo as concluses a que chegaram os negociadores.
No mesmo dia, Al-Fatah, o maior grupo da resistncia palestina, lana um documento no
qual condena veementemente a renncia ao direito de retorno considerado o fundamento do
consenso palestino, o centro da luta palestina, a justificativa da atual revoluo e o sonho de dois
teros do povo palestino. Em funo disso, afirma que sacrificar o Estado palestino para conseguir
o Retorno [dos refugiados] serve estratgia palestina em seu conjunto enquanto que sacrificar o
direito ao retorno para conseguir um pseudo-Estado com uma soberania limitada sacrificar os
direitos do povo, seus sonhos e aspiraes.
70
Hams, Jihad, e vrios outros grupos que compem a resistncia expressam condenaes
semelhantes. Ao longo de toda a primeira semana de dezembro, Cisjordnia e Faixa de Gaza
tornam-se palco de numerosos protestos. Milhares de pessoas realizam atos e manifestaes contra a
iniciativa de Genebra.
Em Israel, a rejeio aos Acordos j detectada pelas pesquisas de opinio realizadas em
outubro de 2003 logo aps a primeira divulgao da minuta de entendimento. No dia 15, o jornal
Yediot Aharonot mostra que 39% da populao apoia as posies do documento enquanto 59%
contra. Dois dias depois, outro dirio de notcias, o Maariv, divulga os resultados de outra
sondagem: 23% a favor, 57% contra e 20% de indecisos.
Na tentativa de se contrapor a esta situao, em 1 de novembro, dezenas de milhares de
pessoas celebram o oitavo aniversrio do assassinato de Yitzhak Rabin e apoiam a iniciativa de
Genebra como uma nova esperana para a paz.
A reao da direita israelense ligada aos colonos dos assentamentos no demora a aparecer e,
em 25 de novembro, apresenta o seu plano de paz. Nele completamente descartada toda
possibilidade de criao de um Estado palestino e de desmantelamento de qualquer colnia judaica
na Cisjordnia e na Faixa de Gaza. O projeto, que conta com o apoio de 14 parlamentares, prev a
concentrao de esforos para erradicar o que chama de terrorismo palestino, o abandono do
princpio da troca de terra por paz, a diviso dos territrios da antiga Palestina em 10 cantes (dois
dos quais seriam reservados aos palestinos) e a implementao de um sistema eleitoral moldado
para garantir uma maioria judaica automtica no interior do legislativo e do executivo.
No mesmo dia, o Partido Trabalhista divulga a sua verso de um possvel plano de paz que
tem vrios pontos em comum com a iniciativa de Genebra. Em seu documento se prev a criao de
um Estado Palestino, a retirada quase total dos territrios ocupados em junho de 1967, a
compensao com terras israelenses dos blocos de assentamento a serem anexados a Israel, a
diviso de Jerusalm de acordo com critrios prximos aos Acordos e o no reconhecimento do
70
Texto extrado do documento oficial de Al-Fatah (9).
124
direito de retorno dos refugiados palestinos na medida em que sua volta anularia o carter judaico
do Estado de Israel.
Uma semana depois, a organizao de rabinos, chamada Auto-salvao, divulga uma lei
religiosa que acusa de traio ptria os judeus que assinaram o documento de Genebra e pede que
os mesmos sejam julgados e condenados por este crime.
As reaes que se seguem fazem subir a temperatura poltica e colocam na ordem do dia a
possibilidade de enfrentamentos entre vrios setores da sociedade israelense. A motivao religiosa
de construir uma nao cujo territrio se estenda do Mediterrneo ao Rio Jordo, usada para dar
sustentao ideolgica implantao dos assentamentos na Cisjordnia e na Faixa de Gaza, comea
a entrar em rota de coliso at mesmo com as foras para as quais este mesmo objetivo deve
percorrer, momentaneamente, outras etapas.
Ciente da deteriorao da imagem de Israel no exterior, dos desafios internos e dos
problemas impostos pela resistncia palestina, o primeiro-ministro Ariel Sharon manifesta sua
posio contrria aos Acordos de Genebra, reafirma seu compromisso com o Mapa do Caminho
(que nunca respeitou) e se compromete a elaborar um novo plano no qual Tel Aviv apontaria seus
passos em direo paz.
- Se assim, ainda temos esperanas!, comemora a lngua acreditando ver uma luz no fim do
tnel.
- No seu lugar, eu no confiaria na possibilidade da nova proposta ser melhor da que acaba de ir
por gua abaixo, rebate a ave com olhar distrado e tom de voz que se debate entre a ironia e a
indagao.
- Mas, Ndia, afinal temos que acreditar que as coisas podem melhorar...pensamento positivo...!.
A coruja sacode a cabea, sorri e, piscando os olhos, diz:
- Vocs humanos so engraados. Negam-se a desvendar as tramas da histria, no tomam as
rdeas dos acontecimentos, e torcem para um resultado materialmente impossvel. Assim, criam
iluses que chamam de esperanas e, via de regra, acabam frustrados quando a dura realidade se
mostra nua e crua.
- Confesso que no consigo entender onde quer chegar...
- Simples! O plano de Sharon se apresenta ao mundo como uma prova do esforo israelense para
buscar uma sada pacfica para o conflito quando, na verdade, vai ser implementado e acompanhado
pela progressiva construo das condies que sufocam qualquer possibilidade de criar um Estado
Palestino vivel, afirma a coruja com expresso de quem deixa a entender que pode-se tirar com o
balde o que dado com a colher.
- Ser que d pra explicar isso direito?, pede o secretrio ao no querer se dar por vencido.
- pra j! atende prontamente a ave. O plano que Sharon divulga semanas depois, prev a
retirada de todos os assentamentos israelenses da Faixa de Gaza e de outros quatro localizados ao
norte da Cisjordnia (Ganim, Kadim, Sa-nur e Homesh). Esta escolha est alicerada em trs
fatores: a defesa militar, a viabilidade econmica e a necessidade de fortalecer a imagem de Israel
junto comunidade internacional.
No que diz respeito Faixa de Gaza, trata-se de colnias judaicas cujos custos em tropas e
equipamentos blicos atingem um patamar bem superior aos benefcios que Israel pode extrair em
termos econmicos. A proteo contra as ameaas da resistncia palestina nesta regio tem
demandado uma ingente quantidade de recursos que o prprio governo de Tel Aviv poderia aplicar
com resultados bem melhores em setores estratgicos e mais rentveis da economia israelense.
Mesmo saindo destes territrios, as foras armadas judaicas continuariam controlando as fronteiras
com Israel e com o Egito, o acesso pelo Mar Mediterrneo, o espao areo e se dariam o direito de
realizar ataques seletivos sempre e quando acharem necessrio. Em outras palavras, a Faixa de Gaza
se tornaria uma priso de segurana mxima para cerca de um milho e 400 mil palestinos.
Por sua vez, a retirada dos quatro pequenos assentamentos da Cisjordnia, pouco
importantes sob todos os pontos de vista, visa mostrar ao mundo que o plano de Sharon representa
um passo concreto em direo paz. Ao mesmo tempo, as dificuldades de enfrentar as oposies
125
internas sensibilizariam a opinio pblica europia e estadunidense quanto impossibilidade de
implementar uma soluo que respeite as recomendaes dos organismos internacionais.
Mas o plano no pra por aqui. De fato, a sada destes assentamentos prev que seus antigos
moradores recebam uma indenizao mdia de 390 mil dlares por famlia e sejam realocados em
moradias a serem construdas nos assentamentos da Cisjordnia que Tel Aviv pretende anexar a
Israel. De acordo com um relatrio divulgado em 30 de dezembro de 2004 pela entidade israelense
Paz Agora, o processo de colonizao dos territrios da ANP revela os dados que seguem:
Ao longo dos ltimos doze meses, h cerca de 3500 novas unidades habitacionais israelenses em
construo nos territrios ocupados.
Em 21 dos 155 assentamentos as novas edificaes ocupam uma rea fora dos limites que lhes
so prprios.
Constata-se a existncia de 99 postos avanados, ou seja, de tentativas de expanso das colnias
existentes bem alm do seu territrio, sendo que 15 deles j teriam casas de alvenaria
Alm destes dados, em 25 de fevereiro de 2005, o jornal israelense Yediot Aharonot noticia
que Tel Aviv pretende construir outras 6391 unidades habitacionais nos assentamentos da
Cisjordnia.
Resumindo, o plano proposto por Ariel Sharon cede um palmo de terra palestina, em nome
da paz, enquanto ocupa novas reas da Cisjordnia mesmo sabendo que esta medida vai solapar a
soluo do conflito baseada na existncia de dois Estados (Israel e Palestina) que convivem lado a
lado na paz e no respeito recproco.
- como jogar gasolina no fogo..., comentam os lbios entre a perplexidade e o desconcerto.
- O pior que as coisas no param por aqui diz Ndia ao abrir as asas em sinal de preocupao.
Acontece que o plano do primeiro-ministro israelense prev tambm que o seu pas vai continuar
controlando o fornecimento de gua, eletricidade, gs e combustveis aos palestinos e, at o incio
de 2008, no lhes ser mais permitido sair de seus territrios para trabalhar em Israel. Isso deve se
concretizar com o trmino das obras do Muro que Tel Aviv est construindo em volta da
Cisjordnia e que lhe permitir anexar nada menos do que 58% de seus 5 mil 715 quilmetros
quadrados.
Apesar de ter sua construo condenada por esmagadora maioria tanto pela Assemblia
Geral da ONU (em 21 de outubro de 2003 e em 20 de julho de 2004), como pela Corte Internacional
de Justia (que, em 09 de julho de 2004, por 14 votos a um, rejeitou como improcedentes todas as
justificativas alegadas por Israel), as obras continuam em ritmo acelerado. Alm de consolidar a
expropriao de centenas de quilmetros quadrados de terras da Cisjordnia, esta longa serpente de
concreto devora a renda de milhares de famlias palestinas. Uma pesquisa divulgada pelo jornal
israelense Haaretz, em 4 de fevereiro de 2004, revela que, nas regies onde a construo j foi
terminada, s 17,8% das famlias entrevistadas dispe de recursos suficientes para satisfazer suas
necessidades contra 62,8% que afirma ter estado nesta situao no perodo anterior ao incio das
obras na regio.
71
Com o fechamento das fronteiras da Cisjordnia e da Faixa de Gaza, Tel Aviv busca
generalizar uma importante queda na renda mdia per capita nos territrios administrados pela
ANP. Para voc ter uma idia de como as coisas podem ficar, basta dizer que antes do incio da 2
Intifada, em 28 de setembro de 2000, cerca de 135 mil moradores destas reas tinham seus
empregos fora delas e que o rendimento mdio per capita era de 2000 dlares/ano na Cisjordnia e
de 1600 na Faixa de Gaza. No final de 2004, o nmero de trabalhadores nestas condies cai para
34 mil e a renda mdia despenca, respectivamente, para 950 e 650 dlares/ano.
72
Alm da sensvel piora nas condies de vida dos palestinos, a plena realizao do plano de
Sharon ameaa o prprio atendimento dos problemas de sade. Levantamento divulgado pela
organizao Mdicos para o Mundo e pelo Crescente Vermelho (a Cruz Vermelha local) estima que
71
Dados publicados em Amira Hass (35).
72
Dados publicados em Ilene R. Prusher (56).
126
cerca de 10 mil pacientes portadores de doenas crnicas que hoje so tratados em hospitais
israelenses no podero ter acesso aos mesmos cuidados. Do mesmo modo, as duas entidades
calculam que, por ano, cerca de 100 mil mulheres grvidas vo enfrentar dificuldades bem maiores
na hora do parto e que 200 mil palestinos devem se deparar com restries ainda mais srias para
conseguir uma consulta com especialistas.
73
- Pelo visto, mesmo sem as incurses dirias do exrcito, a vida em terras palestinas deve se
transformar num pequeno inferno...
- Discordo!, diz Ndia ao levantar a asa esquerda para o alto.
- Do inferno?!?, interroga o secretrio sem entender a interveno da coruja.
- No. Deste pequeno que voc coloca antes dele. O problema continua a ave em tom nada
animador que suas iluses ainda desconhecem os outros aspectos com os quais Tel Aviv
pretende fechar o cerco em volta da Autoridade Palestina.
Aps sair da Faixa de Gaza, Israel j tem planos para viabilizar uma malha rodoviria de uso
exclusivo dos palestinos da Cisjordnia. Desta forma, as principais rodovias que, por dcadas, tm
servido de elo de ligao entre as principais cidades destes territrios seriam definitivamente
incorporadas ao sistema de transporte de uso exclusivo israelense para possibilitar ligaes de
rpido acesso entre Israel e todos os assentamentos judaicos.
Apesar de driblar parte dos bloqueios atuais, e de tornar aparentemente menos trabalhoso o
acesso aos enclaves em que dividida a rea da ANP, o sistema de desvios proposto vai criar novas
dificuldades. O trajeto entre as cidades de Tulkarem e Nablus, por exemplo, passaria dos atuais 27
quilmetros de rodovias amplas e em boas condies para um circuito secundrio de 40 quilmetros
que elevaria o tempo mdio de viagem de 35 para 75 minutos. A situao mais absurda estaria entre
o vilarejo de Bidia e a cidade de Salfit. Como o assentamento de Ariel impede que os palestinos
possam percorrer os 14 quilmetros de rodovia que separam os dois centros, a rota alternativa
proposta obrigaria os viajantes a um trajeto de quase 60 quilmetros.
De acordo com os estudos realizados pelo gegrafo dinamarqus Jan de Jon, a malha
rodoviria palestina levaria o fluxo de pessoas e mercadorias a transitar, obrigatoriamente, em
pontos que podem ser facilmente fechados e controlados pelo exrcito.
74
Como 94,3% das
exportaes da ANP destina-se a Israel, podemos concluir que, alm de continuar proporcionando o
controle dos deslocamentos internos, o novo sistema virio vai ampliar os custos do transporte dos
produtos agrcolas e industriais tornando menos competitivas as mercadorias palestinas.
Ao mesmo tempo, o governo de Tel Aviv promete intensificar o processo de expulso
silenciosa da populao rabe do seu territrio. Alm das medidas descritas ao tratar do setor leste
de Jerusalm, em julho de 2004 o parlamento israelense prorroga uma lei que nega o direito de viver
em famlia a milhares destes cidados que moram em Israel. Reafirmada em maio de 2005, a
legislao probe que israelenses casados com palestinos da Cisjordnia e da Faixa de Gaza possam
morar com seus cnjuges no interior do territrio judaico o que impe aos casais a dura escolha
entre longos perodos de separao ou a mudana para as reas da ANP.
Estas medidas, se somam s que vm sendo amplamente utilizadas por Israel na Cisjordnia
e na Faixa de Gaza para minar as fontes de renda palestinas. De 28 de setembro de 2000 a 23 de
maio de 2005, a organizao de direitos humanos MIFTAH registra o confisco de 232 quilmetros
quadrados de terras palestinas, a destruio de outros 73,6 de roas, a completa demolio de 7 mil
731 casas e a derrubada de um milho, 185 mil e 344 rvores de frutas ctricas e oliveiras tanto por
parte do exrcito israelense como dos colonos dos assentamentos judaicos na Cisjordnia, cujas
aes permanecem impunes. Este quadro agravado pelas prises em massa, que atingem sobretudo
os homens em idade de trabalho, e pelas mortes registradas no mesmo perodo. Enquanto os
73
Dados publicados em Agncias de notcias AFP e Al-Jazeera (4).
74
Dados publicados em Amira Hass (34).
127
israelenses somam um total de mil 113 falecimentos, dos quais 113 so de crianas, os palestinos
contabilizam nada menos do que 4 mil e 75 mortes, sendo que destas 880 so de crianas.
75
O cenrio sombrio das perspectivas futuras se completa com os dados do Banco Mundial.
De acordo com o relatrio divulgado em 31 de janeiro de 2005, o Produto Interno Bruto na
Cisjordnia e na Faixa de Gaza fecha 2004 com uma queda de 23% em relao ao registrado em
1999, ano anterior ecloso da Intifada. Caso os controles de fronteira sejam mantidos como esto,
as perspectivas para 2005 so de um crescimento de cerca de 0,4% seguido de uma queda de 0,8%
no ano seguinte. Mas, se houver um relaxamento das limitaes impostas pelos militares
israelenses, existe a possibilidade da riqueza nacional palestina aumentar em torno de 3,6% em
2005 e de 2,3% em 2006. Ou seja, na melhor das hipteses, a economia da ANP estaria longe de
recuperar o terreno perdido nos ltimos cinco anos.
76
Se isso no bastasse, alguns estudos prevem que a populao da Cisjordnia e da Faixa de
Gaza deve passar dos atuais 3 milhes e 600 mil moradores para algo prximo de 6 milhes e 600
mil em 2020. Feitas as contas, para absorver o desemprego atual e integrar ao mercado de trabalho o
contingente que vai se incorporando populao economicamente ativa, o futuro Estado Palestino
deveria poder contar com investimentos anuais da ordem de 5 bilhes e meio de dlares pelo menos
durante os primeiros dez anos de sua existncia. como se a cada 12 meses a ANP investisse um
valor superior ao atual produto interno bruto anual.
77
Pelo que apresentei at agora, no difcil perceber que a economia palestina, debilitada e
altamente dependente de Israel, no tem como proporcionar fontes de renda e recursos suficientes
para a sua sobrevivncia. De conseqncia, podemos concluir que o plano de Tel Aviv passa longe
de ter a paz como objetivo central de suas aes. Ao contrrio, Sharon aposta na possibilidade de
que a falta de recursos e investimentos nos territrios administrados pela ANP eleve a tenso interna
a ponto de fazer implodir as estruturas polticas, econmicas e sociais j existentes. Impossibilitados
de sobreviver em suas terras, os palestinos acabariam alimentando voluntariamente a limpeza tnica
silenciosa que Israel vem promovendo nos territrios ocupados e suas migraes para os pases
vizinhos deixariam campo aberto ampliao do Estado judaico sem provocar o grau de rejeio
internacional que poderia inviabiliz-la.
Instantes de silncio pesam como uma capa de chumbo sobre os olhares que Ndia troca
com o seu secretrio. O que os meios de comunicao vinham apresentando como esperana, ganha
cada vez mais as formas de uma miragem enganadora destinada a ocultar a sombra de morte que se
projeta sobre os palestinos.
Sabendo que entre o plano e sua realizao muitos acontecimentos ainda vo percorrer
aquela regio do globo, a curiosidade procura entender melhor as concluses da coruja:
- Os Estados Unidos e a ONU...partilham disso tudo?.
- Um bicho de cada vez responde a ave ao usar o graveto para desenhar no ar um arco que vai de
uma extremidade a outra da mesa. No que diz respeito ao velho Tio Sam, no de hoje que seus
representantes, via de regra, se abstm ou votam contra qualquer condenao ao Estado de Israel. O
que mais preocupa a evoluo da poltica estadunidense numa direo que prope sadas opostas
s que so aprovadas nas instncias internacionais.
Todos sabemos que o governo de Bill Clinton j sugeria a troca de reas palestinas ocupadas
pelos assentamentos judaicos por outros territrios israelenses a serem cedidos aos palestinos como
forma de compensao e entregava a Tel Aviv a deciso sobre o nmero de refugiados que poderia
aceitar no interior do seu Estado. Mas a administrao de George W. Bush aponta para uma posio
ainda mais favorvel aos interesses judaicos. Em vrias declaraes divulgadas ao longo de 2004 e
do primeiro semestre de 2005, Washington reitera que diante da realidade dos assentamentos
israelenses na Cisjordnia, na Faixa de Gaza e nas colinas de Gol (subtradas Sria na Guerra do
75
Dados publicados em MIFTAH (48).
76
Dados publicados pelas Agncias Internacionais (8).
77
Dados publicados em Omar Karmi (41).
128
Yom Kippur), irreal esperar que Israel volte s fronteiras que tinha aps o armistcio de 1949. No
que diz respeito aos refugiados, o presidente dos EUA deixa claro que estes podem voltar sim, mas
no s suas terras de origem. Para ele, o direito de retorno limita-se aos territrios do futuro Estado
Palestino. Ao que tudo indica, esta mudana de posio, rejeitada pela ANP, uma forma de
compensar os servios que os estadunidenses j pediram a Israel no Iraque e esto prestes a
encomendar diante da evoluo das relaes com a Sria e o Ir, rumo ampliao do controle
geopoltico de Washington sobre a regio.
No que diz respeito ONU e seus representantes nos territrios ocupados, parece que as
coisas esto mudando pra pior. Nos dois ltimos anos, Israel tem levado adiante duros ataques
contra a UNRWA, a agncia das Naes Unidas para os refugiados palestinos. Sabendo que s na
Faixa de Gaza a sobrevivncia de cerca de 600 mil pessoas nestas condies depende da
distribuio diria das 250 toneladas de comida fornecidas por esta entidade, as autoridades de Tel
Aviv tm agido tanto no sentido de dificultar esta ajuda humanitria como de remover aqueles
representantes que denunciam suas arbitrariedades nos territrios ocupados.
A descrio de alguns episdios vai ajudar a ilustrar esta postura. Em 30 de outubro de 2003,
por exemplo, Israel cancela a entrega de um carregamento de remdios, vitaminas e suplementos
alimentares destinado s crianas palestinas dos campos de refugiados da Faixa de Gaza que sofrem
de desnutrio ou so portadoras da sndrome de Down. Apesar de cumprir todas as exigncias
legais para liberar a carga, a doao enviada pela organizao estadunidense de ajuda crist, Holy
Land Trust, devolvida ao remetente sem nenhuma explicao.
Em 1 de abril de 2004, o exrcito israelense impe restries que obrigam a UNRWA a
suspender temporariamente a entrega da ajuda humanitria aos refugiados da mesma regio. Trs
meses depois, em 14 de julho, um comboio de 16 caminhes das Naes Unidas atingido por tiros
disparados pelo exrcito judaico nas proximidades de Beit Hanun, na Faixa de Gaza. A agresso
ocorre na hora em que o enviado especial da ONU, Peter Hansen (cujas intervenes no costumam
poupar criticas abertas), e os membros de sua comitiva param para observar um pomar de frutas
ctricas recm-arrasado pelos bulldozers das foras armadas israelenses. Nas declaraes do prprio
Hansen, a entrega dos gneros de primeira necessidade quela regio havia sido programada de
comum acordo com as autoridades militares que sabiam, inclusive, de sua presena.
No dia 3 de outubro de 2004, o exrcito israelense divulga imagens gravadas por um avio
no tripulado com base nas quais acusa a ONU de ter ajudado militantes do Hams a esconder numa
ambulncia um foguete de fabricao caseira. A cena, com base na qual se pede a destituio de
Peter Hansen, veiculada aps o fechamento de algumas reas palestinas para o incio da operao
Dias de Arrependimento que, em menos de duas semanas, vai deixar um saldo de 129 mortos, 550
feridos, 143 famlias desabrigadas, pesados danos infra-estrutura local, alm da demolio de 5
escolas pblicas e de um stio arqueolgico bizantino do sculo IV.
Apesar de mostrar que as acusaes no passam de uma farsa, j que se trata de uma maca e
no de um foguete, os funcionrios da ONU so colocados sob suspeita e esto, momentaneamente,
sem autoridade moral para denunciar mais um massacre perpetrado por Israel na Faixa de Gaza.
Conseguido o objetivo de calar a denncia de seus crimes, e diante das prprias evidncias, no dia
12 de outubro de 2004, o exrcito de Tel Aviv reconhece numa transmisso de rdio que a UNRWA
nunca transportou foguetes em nenhuma de suas ambulncias.
A tentativa de eliminar dos quadros das Naes Unidas os que pem o dedo nas feridas
ganha uma importante batalha em 20 de janeiro de 2005. Neste dia, os Estados Unidos bloqueiam
na ONU a manuteno de Peter Hansen como chefe da UNRWA depois deste ter sido acusado pelo
governo Sharon de ser um inimigo de Israel. Ao que tudo indica, trata-se apenas de mais um
captulo da trama pela qual Tel Aviv pretende desgastar e limitar ao mximo o papel da agncia
para os refugiados nos territrios ocupados. Sem ela, centenas de milhares de palestinos j teriam
descido para o abismo da fome e do desespero, o que transforma a prpria existncia desta
organizao num obstculo para a limpeza tnica a ser implementada.
129
- Bom, Ndia, o que voc acaba de dizer parece confirmar suas suspeitas em relao s verdadeiras
intenes do plano de Sharon. Mas agora gostaria de saber como esto as coisas do lado da
Autoridade Nacional Palestina, pede o crebro interessado em juntar as peas do quebra-cabeas.
Animada pela solicitao do secretrio, a coruja sorri e depois do costumeiro Muito
bem...vejamos..., com o qual busca reunir as idias, pisca os olhos e, levantando o graveto, diz:
- Ao longo do segundo semestre de 2004, em formas e nveis diferenciados, as foras palestinas
debatem a necessidade de reformar as instituies da ANP e de realizar eleies em todos os nveis.
A morte de Yasser Arafat, no dia
11 de novembro, por razes que
ainda permanecem obscuras,
apressa os tempos deste processo.
Aps o ltimo adeus da multido
ao velho lder, os vrios grupos da
resistncia comeam a marcar
posio diante do pleito que, em 9
de janeiro de 2005, vai escolher o
novo presidente da Autoridade
Nacional Palestina.
Entre eles, Hams e Jihad
Islmica deixam claro desde o
incio que no vo apresentar
candidatos prprios e nem apoiar
os de outras faces, pois se
opem aos Acordos de Oslo que
criaram a ANP. Ao mesmo
tempo, afirmam que vo participar das eleies para a renovao do legislativo palestino,
inicialmente marcadas para 17 de julho de 2005, e das administraes municipais que vo se
desenvolver em cinco fases a partir de dezembro de 2004. Esta deciso, porm, no implica a sua
renncia luta armada, mas com ela os dois grupos pretendem ocupar um espao de debate e
atuao poltica deixado vago at o presente momento.
Enquanto os setores de esquerda amadurecem o apoio a Mustaf Barghouti, a candidatura de
Al-Fatah disputada entre Mahmoud Abbas e Marwan Barghouti, este ltimo com maior aceitao
entre as novas geraes, mas com cinco condenaes a priso perptua pela justia israelense por
ser um dos lderes da 2 Intifada. Aps vrias idas e vindas, Marwan desiste, apoia Abbas, mas
condiciona o seu gesto ao cumprimento de 18 exigncias entre as quais esto a retirada de Israel dos
territrios ocupados como condio para dar incio s negociaes de paz, a no aceitao de
acordos parciais e provisrios com Tel Aviv, a manuteno do princpio da resistncia armada e a
realizao de eleies para a direo do Fatah at setembro de 2005.
Estes contrastes revelam uma divergncia que vai se aprofundando no interior de Al-Fatah
entre a gerao que assumiu a direo da ANP aps os acordos de Oslo (sobre a qual pesam
acusaes de corrupo e que est distante da resistncia popular propriamente dita) e os jovens do
grupo nos quais h tanto lderes da Intifada como dirigentes que s almejam cargos de poder no
interior das instituies palestinas.
Durante o processo eleitoral, Abbas apontado por Israel e pelos Estados Unidos como
parceiro ideal nas negociaes de paz e, ao contrrio do que ocorre com Mustaf Barghouti, o
exrcito judaico no impe restries aos seus deslocamentos no interior dos territrios ocupados.
Mas este no o nico percalo a colocar pontos de interrogao sobre a legitimidade do pleito.
Dos cerca de um milho e 800 mil palestinos da Faixa de Gaza, Cisjordnia e Jerusalm Leste que
teriam direito a voto, s um milho e 200 mil se inscrevem nas listas eleitorais. O voto no s
vetado aos mais de 8 mil presos reclusos nos crceres israelenses como aos refugiados que vivem no
Funerais de Yasser Arafat em Ramallah.
130
exterior. Ao contrrio do que ocorreu nas eleies para a presidncia do Afeganisto (nas quais
votaram nada menos do que 740 mil refugiados) e do que vai acontecer no Iraque (para cujo pleito
vrios pases chegam a montar esquemas especiais para garantir o voto dos iraquianos no exterior),
aos palestinos expulsos de suas terras negado o direito de escolher seus representantes. Apesar da
proximidade geogrfica, mais de um milho de refugiados maiores de idade no podem participar
da escolha de quem vai negociar com Israel o seu prprio futuro.
78
Problema semelhante ocorre no setor leste de Jerusalm. Como Tel Aviv pretende fazer
desta cidade a capital nica e indivisvel do Estado judaico, permitir o direito de voto aos cerca de
124 mil palestinos que poderiam participar das eleies implicaria num reconhecimento implcito
da necessidade de abrir mo desta reivindicao. O fechamento da maior parte dos postos de
cadastramento, somado a uma srie de restries e ameaas, leva a que s 6 mil moradores estejam
em condies de participar do pleito.
Apesar dos pesares e das dificuldades de realizar uma campanha eleitoral em territrios que
se encontram sob ocupao militar, 71% dos palestinos com direito a voto comparecem s urnas e,
com 62,3% das indicaes, escolhem Abbas como Presidente da Autoridade Nacional Palestina.
- O que no entendo diz o secretrio ao balanar a cabea a razo pela qual um poltico como
Abbas, sem sustentao popular e que pouco mais de um ano antes havia pedido demisso do cargo
de primeiro-ministro pode ganhar tamanha quantidade de votos....
- As razes so vrias... responde Ndia surpresa pela questo inesperada. Mais que atribuir o seu
sucesso a um nico elemento, diria que este o resultado de uma conjugao de fatores que remam
a seu favor. Alm do crescente apoio de Fatah depois que Marwan Barghouti retira sua candidatura,
da forma equilibrada pela qual se d a transferncia de poder no interior da OLP e da Autoridade
Palestina aps a morte de Arafat, da rapidez em marcar as eleies e da ausncia de oponentes das
correntes fundamentalistas islmicas, h dois elementos a serem considerados. De um lado, voc
no pode esquecer que a votarem so, praticamente, os palestinos da Cisjordnia e da Faixa de Gaza
que tm plena conscincia de estar escolhendo um presidente, cuja autoridade limitada por um
exrcito de ocupao estrangeiro, e no o novo lder da causa palestina. De outro, algumas
pesquisas apontam que quase 75% da populao destes territrios deseja um perodo de relativa
calma na medida em que seus recursos e fontes de renda foram se esgotando ao longo de mais de 4
anos de Intifada.
Neste sentido, h um ajuste momentneo entre as aspiraes populares e a viso do prprio
Abbas que quer o fim da luta armada, prope privilegiar o caminho da negociao e do dilogo
rumo construo de um Estado Palestino em toda a Cisjordnia e Faixa de Gaza. Mas, para que
isso se concretize, o presidente da ANP chamado a enfrentar seis desafios:
1. Conseguir e manter um cessar-fogo, por um prolongado perodo de tempo, tanto com os
militantes palestinos como com o exrcito israelense;
2. Reestruturar as foras de Segurana da ANP, lutar contra a corrupo e proporcionar uma
administrao transparente dos recursos disponveis;
3. Garantir o apoio dos Estados Unidos s reivindicaes palestinas;
4. Construir uma relao equilibrada tanto no que diz respeito s faces armadas da resistncia
como junto aos pases com os quais a ANP mantm relaes diplomticas.
5. Melhorar as condies de vida dos palestinos gerando fontes sustentveis de emprego e renda;
6. Negociar um acordo de paz que seja justo para ambos os povos.
Sabendo da monstruosidade destas tarefas e dos planos de Tel Aviv que apontam em sentido
contrrio, a gerao mais jovem de Al-Fatah, as faces islmicas e os grupos de esquerda da
78
Vale lembrar que, de acordo com as estatsticas divulgadas em dezembro de 2003 pela Alta Comisso das Naes
Unidas para os Refugiados, os palestinos que se encontram nesta condio somam cerca de 4 milhes e 136 mil. Destes,
s os que tem condies legais para se inscrever nas listas eleitorais entre os 920 mil refugiados da Faixa de Gaza e os
665 mil da Cisjordnia vo poder votar em 9 de janeiro de 2005. O mesmo direito, porm, negado aos que esto na
mesma situao entre os mais de um milho e 700 palestinos que, sempre de acordo com os dados da ONU, vivem na
Jordnia, entre os 413 mil da Sria, os 400 mil do Lbano e os 38 mil dos pases mais distantes.
131
resistncia palestina admitem que, tanto eles como os setores populares que representam,
encontram-se numa situao de esgotamento e de necessidade de recompor suas prprias foras. Por
isso oferecem a Abbas a chance de levar adiante suas propostas apostando que as mesmas sero
derrubadas pelos prprios acontecimentos, mas, ao mesmo tempo, rejeitam a avaliao presidencial
que define como erro a utilizao da luta armada durante a 2 Intifada. Basicamente, as lideranas
destes movimentos esto convencidas de que a nica maneira de levar Israel a ceder golpeando
profundamente a sua economia, que j tem mostrado sofrer os efeitos de suas aes sobre o turismo,
os investimentos, o nvel de renda e de emprego no interior de territrio administrado pelo governo
de Ariel Sharon.
- Bom, pelo menos, logo depois das eleies, o primeiro-ministro de Israel tem agido no sentido de
se aproximar dos palestinos libertando cerca de 900 presos, prometendo transferir ANP o controle
de 5 cidades da Cisjordnia e, sobretudo, comprometendo-se pessoalmente a fazer cessar toda
atividade militar contra todos os palestinos aonde quer que estejam na medida em que a resistncia
vier a pr fim a todos os atos de violncia dirigidos contra os israelenses.
79
Pode ser pouco, mas no
podemos negar que um bom comeo!, afirmam os lbios na tentativa de mostrar o que os olhos
da coruja parecem no querer ver.
Cutucada com vara curta, a ave permanece silenciosa. Passo a passo caminha entre as mos
do secretrio que repousam sobre a mesa. Em seguida, pra e, espetando com o graveto o peito do
humano que est diante dela, diz:
- Se o seu crebro de bicho metido a inteligente estivesse funcionando, me pouparia o trabalho de
agentar tamanho despropsito....
- Como assim?!? insiste a boca sem se dar por vencida. Todos os jornais j publicaram vrias
matrias sobre isso.
- Outro problema dos bpedes da sua espcie que basta uma autoridade falar e um punhado de
jornalistas publicarem sua lista de intenes para que estas sejam lidas como a concretizao de
uma nova realidade na qual vocs passam a acreditar cegamente sem conferir se o dia-a-dia
confirma o que anunciado pelos discursos de cima.
Aps Sharon se comprometer com o cessar-fogo e o mesmo ser assumido por Hams, Jihad,
Al-Fatah e outros 11 grupos armados da resistncia palestina, que, em 17 de maro de 2005,
acordam respeit-lo pelo prazo de 12 meses, o passar do tempo revela dados desconcertantes.
Catorze semanas depois das declaraes oficiais, as foras de ocupao israelense j tm violado o
compromisso assumido nada menos do que 5 mil 150 vezes. Em pouco mais de trs meses de
trgua, o exrcito de Tel Aviv assassina 32 palestinos, fere 366 e prende outros 840. Se isso no
bastasse, em 915 ocasies os soldados atiram na populao indefesa e seus destacamentos realizam
mil e 500 incurses em reas palestinas. Por sua vez, os colonos dos assentamentos judaicos da
Cisjordnia agridem palestinos desarmados em 167 ocasies enquanto as autoridades israelenses
confiscam mais de 32 quilmetros quadrados de terras palestinas e entregam notificaes para a
desapropriao de outros 10. Some a isso as invases de casas de supostos militantes, os
fechamentos das fronteiras, os bloqueios das principais linhas de comunicao e os trabalhos para a
construo do Muro e no s confirmar o nmero de violaes do qual falei como ter razes de
sobra para entender porque, hoje, 10 de junho de 2005, a manuteno da trgua est por um fio.
80
Se isso j no bastasse para acordar seus neurnios adormecidos, a promessa de libertar os
presos envolve s aqueles que ou no tm vnculos com a resistncia ou aos quais falta pouco para o
total cumprimento de suas penas. Mas, no mesmo perodo em que Israel liberta os 900 prisioneiros,
coloca na cadeia outros 840 palestinos, a maior parte dos quais na que Tel Aviv chama de deteno
administrativa. Esta modalidade pela qual algum pode ser encarcerado sem acusao formada e,
79
A citao acima refere-se declarao de cessar-fogo, anunciada em pronunciamentos separados de Ariel Sharon e
Mahmoud Abbas no final do encontro de cpula, ocorrido no dia 8 de fevereiro de 2005, e publicada em George
Rishmawi (57).
80
Dados publicados em Palestinian Information Center (55).
132
obviamente, sem julgamento, amplamente utilizada como forma de castigo coletivo pelo Estado
judaico ao qual pouco importa que esta seja expressamente condenada pelas normas internacionais.
Se isso no bastasse, a legislao israelense garante a legalidade da tortura contra quem
encontra-se detido nestas condies sendo que as confisses obtidas por este meio so aceitas como
vlidas pelos tribunais na hora em que as autoridades policiais resolvem transformar os
depoimentos obtidos em processos que levem imposio de penas mais duras. O quadro se
completa ao lembrar que, pelas normas militares vigentes, a priso administrativa renovvel por
tempo indeterminado e, ao poder ter como fundamentao provas secretas alegadas pelos servios
de segurana, o acesso aos documentos processuais negado tanto ao preso como ao seu advogado.
Graas a todos estes artifcios, a Associao dos Presos calcula que, de junho de 1967 a abril
de 2005, 25% dos palestinos tenha passado pelas prises israelenses sendo que 40 mil deles teriam
sido detidos a partir de 28 de setembro de 2000. A mesma organizao afirma que, ao todo, seriam
8 mil 814 os homens, mulheres e crianas que ainda se encontram nos presdios judaicos.
81
Acrescente agora o fato de Israel no ter ainda entregue ANP o controle de todas as cinco
cidades prometidas e a retomada, em 7 de junho de 2005, da prtica de assassinatos seletivos com a
morte do lder local de Jihad Islmica, Mraweh Jaled Kamil, em Qabatyah, na Cisjordnia, e no vai
demorar a enxergar o abismo que separa os fatos das declaraes oficiais, conclui Ndia ao secar
com a asa algumas gotas de veneno que escorrem pelo bico.
- Mas isso significa que...
- Sim, querido secretrio interrompe bruscamente a coruja -, significa que o prprio Abbas,
apesar de ainda contar com o apoio dos palestinos dos territrios ocupados, j comea a perceber
que tem pouco a apresentar para sustentar suas posies. A prtica de Tel Aviv derruba suas
tentativas de chegar a resultados palpveis para o conjunto da populao que representa e comea a
desgastar a sua imagem.
Contra o apoio s suas propostas jogam tambm as prprias declaraes quanto
necessidade de desarmar os grupos da resistncia palestina para que, aps as eleies para o
parlamento da ANP, vigore uma nica lei, um nico governo e um nico fuzil, o das foras de
segurana oficiais.
82
Mesmo considerando que esta seria a posio prpria de um governo no
interior do jogo institucional de um Estado j constitudo, no caso palestino, a ausncia de qualquer
soberania real sobre os territrios somada s aes do exrcito e dos colonos israelenses fornecem
s faces armadas a base real que vai lhes permitir aglutinar apoio popular suficiente para frear o
eventual uso da fora contra os militantes da resistncia. Em outras palavras, a impossibilidade de
usar os contingentes de segurana da ANP para proteger o povo das agresses judaicas, por si s,
evidenciaria o paradoxo de usar os mesmos contra as faces palestinas.
- Estou errado ou parece que a situao caminha rumo a um beco sem sada?, pergunta a lngua j
sem nimo.
- O problema, responde Ndia ao abrir as asas e assumir uma expresso sria que o projeto
israelense para a Cisjordnia e a Faixa de Gaza busca privar os palestinos de tudo o que essencial
dignidade humana e, por isso, leva adiante uma guerra permanente contra seus corpos, suas casas,
suas possibilidades de sustento e seus sonhos. Isso no promete nada alm de um regime de
apartheid que, dia aps dia, busca levar adiante uma limpeza tnica silenciosa que vai contar com o
apoio das grandes potncias na medida em que no vier a ferir seus interesses ou provocar situaes
cuja gravidade tornaria insustentvel a posio destes governos perante seus prprios povos.
Por sua vez, a opo pela resistncia armada palestina, em suas mais variadas formas, tende
a se afirmar novamente como um aspecto ao qual impossvel renunciar diante da ocupao militar
israelense. Por isso, caso os acontecimentos continuem caminhando nesta direo, a ecloso de uma
terceira Intifada parece ser apenas uma questo de tempo. Resta saber at a que ponto o
fortalecimento dos setores islmicos da resistncia no interior das administraes municipais e do
81
Dados publicados em Palestine News Network (54) e em Observatrio da Palestina (53).
82
A citao acima refere-se declarao de Mahmoud Abbas, publicada em Donald Macintyre (44).
133
futuro legislativo palestino pode levar a uma ampliao das formas e do impacto local e
internacional das aes que se opem ao projeto judaico.
Terminada sua fala, Ndia apoia o graveto na pilha de livros em cima da qual est uma
coletnea de poemas. Imvel, a forquilha parece apontar para um marcador que aparece entre as
pginas da mesma. Instigadas pela curiosidade, as mos abrem o texto no lugar indicado enquanto a
coruja se despede do secretrio antes de alar vo nos cus escuros da noite.
Sem demora, os olhos percorrem as linhas do poema escrito por Muin Bsaisso, cujo ttulo
soa a convite: Resista!. Instantes depois, o silncio da sala rompido por um leve sussurro que
revela em versos a dramtica e quotidiana resistncia do povo palestino:
Sacudiram um papel e uma sentena
diante do meu nariz.
Jogaram-me a chave da minha casa
O papel que me condenava
dizia: resista!
A sentena que me oprimia
dizia: resista!
A chave da minha casa
dizia: por cada pedra
de tua pequena casa: resista!
Uma batida na parede
e a mensagem que chegava atravs dela
de uma mo mutilada, dizia: Resista!
As gotas de chuva
sobre o telhado da sala de tortura
gritavam: resista!
Ndia foi embora deixando este sofrido renovar-se da esperana no gelado inverno da dor.
Sinal de que, por mais precisos e certeiros que sejam os planos dos poderosos, sua implementao
vai se deparar com a barreira levantada pela teimosa construo da primavera de paz e justia cujas
sementes h tempo vm sendo lanadas pelos pequenos nos sulcos da histria.
Emilio Gennari
Brasil, 10 de junho de 2005.
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53. _____________ . Prisioneros palestinos en detencin israeli, divulgado na pgina eletrnica de
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136
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58. RUBINSTEIN, Danny. The battle for the capital, publicado em Haaretz em 31/03/2005 e
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60. SORIANO, Lidn. Elecciones en Palestina, divulgado na pgina eletrnica de Rebelin em
09/01/2005.
137
13. Os novos passos de um velho pesadelo.
Tarde de quinta-feira. Uma aps a outra, as luzes da cidade comeam a brilhar na tentativa
de vencer a aliana entre o anoitecer e as nuvens de chuva. Raios e troves anunciam que est na
hora de procurar abrigo para escapar das pesadas gotas que antecipam o desabar da tempestade.
Entre milhares de seres que percorrem ruas e avenidas, um sujeito corpulento tenta vencer
rapidamente as poucas centenas de metros que o separam da porta de casa. Dedos inquietos
procuram as chaves do porto enquanto rajadas de ventos fazem a chuva cruzar com o seu caminho.
Instantes depois, as foras da natureza transformam o retorno ao lar numa verdadeira corrida
contra o tempo. Em meio tempestade, o corpo molhado reage com uma mistura de raiva e
ansiedade que dificulta o simples gesto de acertar a fechadura.
Uma vez em casa, a sensao de aconchego acalma o ego ao convenc-lo de que conseguiu
se livrar do pior. O alvio parece crescer a cada passo no interior da sala at que olhos e ouvidos so
feridos por percepes inesperadas. Na mesa da cozinha, um amontoado de recortes de jornal,
anotaes e papis com garranchos indecifrveis do vida a um verdadeiro ninho de palavras no
meio do qual uma pequena coruja se agita com gestos frenticos e sons incompreensveis.
- Ndia...? Voc est a?, pergunta o homem com o tom tpico de quem, ao sair de uma roubada,
se depara com uma situao que afugenta o sossego conquistado.
- Em carne, osso, penas e plumas!, responde a ave ao levantar a asa esquerda sem virar o corpo
para o seu interlocutor.
- Mas eu achava que fosse demorar bem mais..., dizem os lbios titubeantes enquanto as pernas
do um passo atrs.
- Pois errou feio, querido secretrio. Mal cheguei e j comecei a preparar o que preciso para
reconstruir a trajetria dos acontecimentos que marcaram as terras palestinas nos ltimos anos. Por
isso, trate logo de trocar essa roupa que fede a cachorro molhado, tome um banho rpido e sente
mesa, pois no h tempo a perder!, ordena a coruja com a autoridade prpria de quem sabe
enxergar o que invisvel aos olhos humanos.
Desconsolado e cabisbaixo, o secretrio tenta ganhar tempo. Pernas e braos parecem se
movimentar em cmara lenta, com gesto que expressam a frustrada esperana de deixar a realidade
fora da porta de casa.
Indiferente, a ave continua a escarafunchar os papis trocando-os de lugar, ordenando as
informaes neles contidas e emitindo sons que revelam o esforo de encaixar as peas de um
gigantesco quebra-cabea cujas formas se alteram ao incorporar elementos novos e inesperados.
Meia hora depois, cada folha ocupa o devido lugar em pilhas instveis e desajeitadas que
ameaam desmoronar a cada instante. Terminada a tarefa, um trovo ensurdecedor faz estremecer a
casa e empurra o homem para fora do quarto.
- Nossa! A sua rapidez em se arrumar diz que est louco para comear mais uma empreitada!,
cutuca Ndia sem esconder a ironia que acompanha suas palavras.
- Voc venceu..., reconhece o secretrio ao baixar a cabea como um condenado que aceita a
sentena.
Entre o barulho da chuva que martela os telhados, a pequena ave limpa a garganta, pisca os
olhos e aps o costumeiro Muito bem... Vejamos... que marca o incio das atividades aponta para
as folhas de rascunhos e com voz decidida ordena:
- Vamos traar os novos passos de um velho pesadelo!.
- Nossa! Isso para convidar seus eventuais leitores e leitoras...?!? Ou para faz-los desistir de
vez...?!?, investiga o secretrio ao abrir os braos.
- Nem uma coisa, nem outra - rebate a coruja sem pestanejar. Infelizmente, os acontecimentos dos
ltimos cinco anos apontam cenrios nos quais o projeto de o Estado de Israel voltar a ocupar as
terras da Palestina histrica ganha contornos tenebrosos.
- Ento...? Por onde vamos comear?, pede o secretrio ao bocejar.
138
- Ora, pelo lugar onde nos deixamos em junho de 2005, quando do nosso ltimo passar de olhos
sobre a Questo Palestina. Naquele momento, dizamos que a desocupao da Faixa de Gaza
planejada pelo Primeiro Ministro israelense, Ariel Sharon, iria ocorrer, mas que longe de
transformar o territrio costeiro em espao de liberdade, a presso do exrcito por terra, ar e mar
levaria seus 365 quilmetros quadrados de extenso a se converterem no maior presdio a cu aberto
do mundo. Paralelamente a isso, algo indesejado e imprevisvel comeava a se manifestar de forma
contraditria nas dobras do tempo e do espao da resistncia palestina.
Entre o final de maio e a primeira semana de junho de 2005, dois acontecimentos marcam o
calendrio poltico da Autoridade Nacional Palestina (ANP): o fortalecimento dos corpos policiais
fiis ao presidente Mahmoud Abbas e o adiamento das eleies para o Conselho Legislativo
Palestino
83
previstas para 17 de julho do mesmo ano.
Em 28 de maio, a polcia da ANP recruta 15.000 agentes entre os quais esto,
principalmente, militantes que participaram de movimentos de resistncia e hoje integram as fileiras
governamentais. A que parece uma manobra sensata para evitar a disperso de integrantes de grupos
armados, cujo desmantelamento insistentemente pedido por Israel, acaba se revelando uma
medida que visa acumular contingentes militarizados para pressionar Hams a aceitar o
desarmamento e, uma vez enfraquecido, iniciar o dilogo com Fatah.
A resposta do Movimento de Resistncia Islmica no se faz esperar. Em 9 de junho, Hams
adverte que no vai depor as armas e deixa claro que sua vitria nas eleies municipais de vrias
cidades palestinas, bem como sua participao no pleito para a renovao do Conselho Legislativo,
visam criar condies para fortalecer o brao armado do movimento. Dois dias depois, ao ver que
est perdendo apoio popular, Abbas recua e descarta publicamente o desarmamento da resistncia,
pelo menos at que Israel mantiver a ocupao militar dos territrios palestinos.
A fragilidade do grupo majoritrio da ANP se revela novamente em 4 de julho, quando o
seu presidente adia, por tempo indeterminado, as eleies do legislativo. A deciso viola os acordos
pactuados no Egito com todos os grupos da resistncia e se d pela possibilidade de Fatah ser
derrotado por Hams que participa do pleito pela primeira vez desde os Acordos de Oslo, em 1993.
- Confesso que esta atitude soa bastante estranha, sobretudo, por ela vir de um integrante histrico
de Fatah..., murmura o secretrio ao coar a cabea.
- Eu no diria isso - rebate Ndia ao sublinhar com um movimento das asas o teor de suas palavras.
Na nossa ltima atualizao, deixamos claro que a eleio de Abbas no elevava ao cargo de
presidente um lder da resistncia, assim como havia ocorrido com o falecido Arafat cuja histria
lhe possibilitava ter livre acesso a todas as faces. Abbas apenas um presidente e nada mais. Ou
seja, estamos falando de um burocrata pragmtico e distante do povo, assim como a maior parte do
atual grupo dirigente de Fatah que encontra nos cargos da ANP o caminho seguro para se manter no
poder, atender a interesses pessoais e aproveitar das benesses oferecidas pelo cargo.
Enquanto presidente, Abbas tenta impor sua autoridade para ter controle absoluto das
negociaes para um futuro acordo de paz com Israel que, com o passar do tempo, revela a
impossibilidade de incorporar as bandeiras histricas da luta palestina.
- Quem te viu... e quem te v..., sugere o ajudante ao terminar de escrever as palavras do relato.
- O problema de suas concluses precipitadas que elas tm como base dois elementos nefastos: o
desconhecimento da histria e uma preguia mental que transforma frases manjadas em sentenas
que nada explicam e pouco esclarecem.
Entre os aspectos que voc no leva em considerao est uma mudana profunda no perfil
de Fatah. Heterogneo desde a sua origem, este movimento rene uma ampla frente de foras,
unidas apenas pelo ideal de libertao da Palestina histrica.
Com a assinatura dos Acordos de Oslo, o setor que defende a resistncia armada
gradualmente neutralizado e eliminado das fileiras de Fatah que passa a assumir o novo papel de
partido de governo. Aqui est justamente a razo fundamental da distncia que separa o discurso da
83
O Conselho Legislativo Palestino o Parlamento da ANP.
139
prtica diria, pois no d para ser, ao mesmo tempo, um movimento de libertao nacional e uma
autoridade que administra um territrio sob ocupao militar estrangeira.
Isso no significa que, diante das particularidades da conjuntura, setores de Fatah no
radicalizem o discurso e passem a privilegiar uma atuao militante sempre e quando o aumento do
descontentamento popular faz cair sua aprovao interna e possibilita o avano da resistncia
islmica nos moldes propostos por Jihad e Hams. Por outro lado, um grupo crescente de Fatah
assume uma postura moderada, prpria do pragmatismo burocrtico. Os esforos em ser governo se
destinam, principalmente, a aumentar a militarizao para garantir a ordem e o controle das faces
mais radicais da resistncia como condio para manter abertas as negociaes de paz com Tel
Aviv, de cujas decises depende toda atividade econmica nos territrios palestinos.
Esta duplicidade desgasta Fatah na medida em que a ausncia de avanos significativos nas
negociaes de paz com Israel no mostra a postura oficial da ANP como sinnimo de flexibilidade
ttica no mbito de um processo de luta, mas sim como expresso de crescente indeciso e
claudicao. Ao tentar acomodar na burocracia da ANP as posies e os interesses de suas
tendncias internas, o grupo projeta uma imagem de indefinio e incoerncia entre as prticas
administrativas e as bandeiras histricas da resistncia. Neste sentido, o apoio a Hams comea a
crescer na sociedade palestina no porque as
pessoas esto aderindo aos setores do
fundamentalismo religioso, mas sim pela distncia
entre as aes e a retrica do prprio Fatah.
- Sendo assim, esta situao deve se agravar com a
evacuao da Faixa de Gaza..., sugerem os lbios
ao tentar recuperar os pontos perdidos na
interveno anterior.
- Exatamente!, confirma a coruja em tom de
aprovao. No dia 17 de julho, aps 38 anos de
ocupao israelense, inicia a evacuao dos cerca de
8.500 colonos presentes nos assentamentos da Faixa
de Gaza. Apoiado por um contingente de 60.000
efetivos, o processo se completa em 23 de agosto
sem grandes resistncias e com o desalojamento
forado de no mais de 300 pessoas. A relativa
tranqilidade da evacuao no se deve apenas ao
forte aparato militar e s polpudas indenizaes
disponibilizadas pelo governo, mas tambm ao fato
de que a instalao desta populao nas colnias
judaicas da Cisjordnia faz a ampliao dos
assentamentos andar a passos largos, o que, de
alguma forma, acalma as presses dos grupos
ortodoxos no interior do governo.
Se, antes do incio das operaes, os lderes
radicais do judasmo realizam manifestaes de at
50.000 pessoas junto ao Muro das Lamentaes e de
mais de 100.000 pelas ruas de Tel Aviv, no final de evacuao sua insatisfao contida pela
declarao de que o governo vai usar as novas edificaes em territrio palestino para anexar a
Israel, com continuidade territorial, reas no protegidas pelo Muro e, sobretudo, para completar o
cerco em volta de Jerusalm Oriental, reivindicada pela ANP como capital do seu futuro Estado.
Contudo, a sada da Faixa de Gaza produz uma ruptura no interior do Likud, partido de
governo ao qual pertence o prprio Sharon. Em protesto contra a retirada, considerada um passo
para fortalecer o terrorismo e minar a segurana de Israel, o Ministro da Fazenda, Benjamin
Netanyahu, apresenta seu pedido de demisso. A partir deste momento, ele comea a trabalhar a sua
Em azul claro, as reas desocupadas pela
evacuao da Faixa de Gaza.
140
indicao para o pleito de novembro de 2006 contando com o apoio dos empresrios e do ncleo
duro da direita do Likud.
Enquanto Israel movimenta suas peas no tabuleiro, a presena de 7.500 homens da
segurana de Abbas escalados para garantir que os militares israelenses no sejam atacados durante
a evacuao da Faixa de Gaza d origem aos primeiros atritos com as foras de Hams. Em 20 de
julho de 2005, quando a retirada dos colonos mal havia comeado, choques entre ativistas das duas
faces deixam 7 feridos.
Um ms depois, Abbas assume o controle formal da regio. Trata-se de um territrio
economicamente devastado e que, pelas declaraes de Badallah Frangi, um dos chefes de Fatah em
Gaza, precisaria de um fundo inicial de US$ 5 bilhes para se reerguer e de mais US$ 15 bilhes
para recuperar a infra-estrutura e construir as casas necessrias nas reas dos antigos assentamentos,
hoje reduzidos a um monto de escombros.
84
No campo da poltica local, a ANP tem que correr
contra o tempo para recuperar a desvantagem em relao a Hams que conta com forte apoio da
populao, para a qual o fim da ocupao no atribudo ao da Autoridade Nacional Palestina,
mas sim resistncia e ao sofrimento do povo da Faixa de Gaza.
Aps fixar em 25 de janeiro de 2006 a data para as eleies do Conselho Legislativo, Abbas
consegue a aprovao de Israel para que os servios de segurana da ANP tomem conta da fronteira
com o Egito sob a superviso direta da Unio Europia e com o controle em tempo real, via cmaras
de vdeo, do exrcito israelense. Ao mesmo tempo, assume o compromisso de restabelecer a ordem
na Faixa de Gaza e pr fim ao que chama de caos das armas.
Menos de 24 horas depois, cerca de 10.000 membros das Brigadas Ezedin Al Qassam, brao
armado de Hams, marcham na cidade de Gaza para reafirmar sua oposio ao desarmamento e
acusam Abbas de se submeter ingerncia de Tel Aviv. Os desmentidos do presidente da ANP so
colocados sob suspeita no pela postura da resistncia, mas sim pelas declaraes de Ariel Sharon
que, de Nova Iorque, afirma ter colocado o desarmamento de Hams como condio para permitir a
realizao das eleies palestinas e acrescenta que Abbas comete um grande erro ao permitir que o
Movimento de Resistncia Islmica participe do pleito.
- Parece um tiro de misericrdia..., indaga o secretrio ao apoiar o queixo na mo esquerda.
- Coisas piores viro - assegura a ave em tom calmo e nada animador. No momento, importante
resgatar quatro elementos que marcam o perodo pr-eleitoral.
O primeiro deles a forte retomada das aes militares israelenses na Faixa de Gaza. Alm
dos assassinatos seletivos, o exrcito impe um bloqueio aos territrios palestinos e, em 24 de
setembro, a aviao bombardeia alvos de Hams. Dois dias depois, 82 militantes desse grupo, boa
parte dos quais candidatos s eleies, so presos em uma nica noite, elevando para 379 o nmero
de ativistas capturados em uma semana.
85
A onda de violncia justificada por Sharon como resposta legtima aos ataques dos
foguetes caseiros palestinos e passa a ser apresentada junto exigncia de desarmar todos os
movimentos de resistncia como condio para voltar mesa de negociao com a ANP. Na
verdade, as duas posturas buscam fortalecer politicamente a posio do Primeiro Ministro no
interior do Likud em sua disputa com Netanyahu, criar as condies para aprofundar as divises na
resistncia palestina e, em caso de respostas armadas, ter uma razo para justificar novas operaes
nos territrios ocupados. Sem morder a isca, Hams, Jihad Islmica e outras 13 organizaes
recuam e, em 28 de setembro, anunciam sua deciso de suspender os ataques com foguetes Qassam
contra o sul de Israel.
O segundo elemento ganha vida quando Sharon percebe que vai perder a indicao do
Likud. No dia 20 de novembro, o Primeiro Ministro deixa o partido, pede a demisso do cargo, a
dissoluo do Parlamento e a convocao de novas eleies para maro 2006. Dias depois, j na
corrida eleitoral, se declara contrrio poltica de terra por paz, um dos eixos histricos das
84
Dados publicados em Reuters, DPA, AFP e La Jornada, 21/08/2005.
85
Dados publicados em DPA, AFP e La Jornada, 27/09/2005
141
negociaes com os palestinos, e se distancia tanto da direita radical, que reivindica a implantao
do Grande Israel, quanto do cumprimento dos Acordos de Oslo, base para a criao de um Estado
palestino independente.
O novo partido por ele fundado, o Kadima (Adiante, em hebraico), agrega vrios lderes
descontentes, entre os quais se destaca Simon Peres que, por seis dcadas, havia integrado o Partido
Trabalhista. Seu programa de governo aponta como uma das principais diretrizes a necessidade de
fixar as fronteiras definitivas de Israel, englobando toda a cidade de Jerusalm e os assentamentos
da Cisjordnia. Ao optar por uma postura unilateral, Sharon est apenas incorporando as mudanas
em curso na sociedade israelense quanto s relaes com os palestinos e ao desejo de manter o
carter leigo do Estado de Israel, o que transforma seu partido em franco favorito nas eleies que
se aproximam.
Mas a ascenso meterica do Kadima turbada no dia 5 de janeiro de 2006, quando uma
hemorragia cerebral atinge o seu lder mantendo-o em coma profundo at os dias atuais. Diante da
gravidade da situao e da comoo que se cria em volta do ocorrido, a direo do partido passa s
mos de Ehud Olmert que conduz o processo eleitoral aproveitando do impulso impresso por
Sharon, mas sem o preparo e o carisma de seu antecessor.
O terceiro elemento se desenvolve no campo palestino. Em 30 de outubro de 2005, a ANP
pactua com a resistncia o fim dos ataques contra Israel, mas as faces condicionam sua adeso
no ocorrncia de operaes militares de Tel Aviv. A notcia ganha destaque na imprensa
internacional e Sharon anuncia que vai suspender os bombardeios areos. Quanto s aes
terrestres, dois dias depois, o campo de refugiados de Jenin cercado por 40 tanques e dezenas de
blindados para o transporte de tropas com a misso de prender militantes de Hams.
A provocao no leva ruptura da trgua recm-aprovada e mantm Sharon no rumo
desejado para a sua disputa eleitoral. Por outro lado, as pesquisas de inteno de voto nos territrios
palestinos apontam um forte crescimento de Hams e, a seis dias das eleies, o instituto
independente Jerusalm Media and Communication Center apresenta uma situao de empate
tcnico entre Hams e Fatah.
Diante da evoluo dos acontecimentos, a ltima pea a ser resgatada a poltica do governo
Bush diante da possvel derrota do grupo de Abbas nas eleies. No dia 30 de dezembro, o Quarteto
(ONU, EUA, Rssia e Unio Europia) emite uma declarao de consenso na qual pede ANP que
tome medidas imediatas a fim de codificar em lei que os participantes de qualquer processo eleitoral
devem renunciar violncia, reconhecer o direito de Israel a existir e se desarmar.
Na impossibilidade material de realizar o desejo das foras que detm um peso considervel
na poltica palestina, a onze dias das eleies, Washington ameaa cortar toda ajuda financeira caso
Hams venha a ocupar algum cargo no futuro governo palestino. Por incrvel que parea,
justamente o pas considerado exemplo mundial de democracia que, no afunilar-se do processo
eleitoral, faz chantagens contra a vontade popular palestina para que esta opte pelos candidatos
afinados com os interesses de quem realmente manda.
- Mas, pelo que lembro, o tiro saiu pela culatra!, afirma o homem sem fazer cerimnias.
Ao ouvir a voz do ajudante, a coruja emite um longo suspiro, balana a cabea em sinal de
confirmao e comea a procurar as anotaes necessrias nas pilhas de papel em volta dela.
Encontrados, os preciosos registros so cuidadosamente retirados com o bico e colocados sobre a
mesa com a solenidade de quem apia um trofu no espao destinado memria.
Mais alguns instantes de silncio e...
- Resolvidos a enfrentar as ameaas para decidir livremente o prprio destino, em 25 de janeiro de
2006, os votos palestinos entregam a Hams nada menos do que 76 das 132 vagas do Conselho
Legislativo. O peso da vitria, inesperadamente esmagadora, pode ser visualizado na distribuio
dos assentos que sero ocupados pelas demais foras polticas: 43 para Fatah, 3 para a Frente
Popular de Libertao da Palestina (FPLP), 2 para a Terceira Via, 2 para Badil, 2 para Palestina
Independente e as 4 vagas restantes para os demais grupos.
142
Entre as principais razes da derrota de Fatah, os analistas polticos apontam sua impotncia
em atender s demandas populares tanto nas administraes municipais como na ANP, a corrupo
de seus dirigentes, a gesto dos servios de segurana (freqentemente destinados a prender
militantes da resistncia e impotentes diante das agresses de colonos e soldados israelenses), os
magros resultados obtidos por Abbas no campo da economia e das negociaes de paz com Israel,
alm das disputas internas de Fatah e da burocratizao de suas lideranas nos cargos da ANP.
Resumindo, o voto em Hams , sobretudo, um voto de protesto contra a ANP dirigida por Fatah,
cujo compromisso com os princpios da luta nacional palestina parece cada vez mais duvidoso.
Agora, se, de um lado, o resultado eleitoral demonstra que o povo palestino no est
disposto a assumir a democracia como simples referendo da derrota da resistncia, de outro, a
resposta das grandes potncias no tarda a cumprir as ameaas apresentadas antes do pleito.
Apesar de reconhecer que a vitria de Hams ocorreu em eleies consideradas vlidas, o
governo Bush lana o seu ultimato: o grupo islmico tem trs meses para dissolver seu brao
armado, reconhecer o direito de Israel a existir, renunciar publicamente violncia e ao terrorismo.
Do contrrio, os Estados Unidos suspendero toda ajuda financeira destinada aos palestinos.
Diante da recusa do Movimento de Resistncia Islmica, a Unio Europia se une a
Washington no boicote. Por sua vez, Tel Aviv suspende toda remessa de impostos e taxas
alfandegrias para a Autoridade Nacional Palestina, intensifica os assassinatos seletivos e as aes
militares nos territrios ocupados, ameaa impedir o acesso de trabalhadores palestinos a seus
postos em Israel, promete cortar todo abastecimento de energia eltrica e combustveis, fechar as
fronteiras ao comrcio e impor aos moradores da Faixa de Gaza uma dieta to rgida quanto basta
para no deix-los morrer de fome.
Para ter uma idia do impacto destas medidas sobre a economia dos territrios ocupados
basta pensar que, de acordo com o Banco Mundial, em 2005, o total das entradas da ANP soma US$
1,96 bilho, dos quais US$ 396 milhes correspondem aos impostos recolhidos diretamente, US$
1,1 bilho ajuda que vem do exterior e a quase totalidade da quantia restante s taxas alfandegrias
recolhidas por Israel e repassadas ao governo de Abbas. Trocado em midos, a comunidade
internacional se une a Israel no projeto de transformar em inferno a vida cotidiana nos territrios
ocupados para que o descontentamento popular leve rendio de Hams e aplane o caminho aos
planos internacionais para o Oriente Mdio.
Enquanto as negociaes entre Fatah e Hams para a formao de um governo de unidade
nacional progridem a passos lentos, Abbas no reluta em fazer o jogo do Quarteto. No dia 18 de
fevereiro de 2006, ao pronunciar o discurso inaugural do Conselho Legislativo Palestino, o
presidente da ANP pede a Hams que honre os Acordos de Oslo, o Mapa do Caminho (cujas
determinaes so sistematicamente descumpridas por Israel) e reconhea o direito de Israel a
existir. Uma semana depois, ameaa publicamente renunciar ao cargo caso isso no venha a ocorrer.
No final do mesmo ms, o boicote internacional j faz sentir o seu peso. A escassez de
mercadorias provoca forte alta dos preos de todos os produtos e a Coordenao para Assuntos
Humanitrios da ONU informa que, devido ao bloqueio dos acessos Faixa de Gaza por parte de
Israel, a entrada de alimentos cada vez mais escassa e suas reservas de trigo, acar e leo de
cozinha esto perto do fim. Por sua vez, o bloqueio dos recursos destinados ANP impede o
pagamento dos salrios dos 152.000 funcionrios pblicos que representam 14% do total de
empregos na Cisjordnia e 37% dos postos da Faixa de Gaza.
86
- Afinal, o que que Hams est propondo como programa de governo para despertar tamanha
onda de foras contrrias?, questiona o secretrio entre a curiosidade e o desconcerto.
- As propostas de Hams espelham a passagem da condio de movimento que tenta eleger um
bom nmero de parlamentares para dar vida a uma oposio consistente no interior da ANP de
partido de governo que, com maioria absoluta, se prepara a ocupar os principais ministrios. Por
86
Dados publicados em EL-HADDAD, Laila. ONU: un desastre si Israel corta los fondos de la Autoridad Palestina,
em Al-Jazeera / Rebelin 08/03/2006.
143
isso, mais do que um projeto pronto e acabado os 13 pontos a que pode ser resumida sua plataforma
mais espelham perspectivas gerais do que propriamente medidas destinadas a administrar os
territrios ocupados. Resumindo, podemos dizer que Hams busca fundamentalmente:
1. Acabar com a ocupao, construir um Estado palestino independente, soberano, com capital
em Jerusalm Oriental e rechaar tanto a poltica de acordos parciais como a de fatos
consumados de Israel;
2. No renunciar ao direito de retorno dos refugiados palestinos;
3. Trabalhar pela libertao dos prisioneiros e enfrentar as aes cotidianas da ocupao
(assassinatos seletivos, construo do Muro, violncia dos colonos, castigos coletivos etc.)
com as foras de segurana da ANP;
4. Fortalecer a resistncia com todos os meios disponveis por ser um direito legtimo do povo
palestino que, sob ocupao militar, busca a restaurao de seus direitos nacionais;
5. Caso Israel venha a reconhecer o Estado palestino e saia dos territrios ocupados em junho
de 1967, includa a cidade de Jerusalm, Hams se dispe a avaliar a possibilidade de criar
um mecanismo de negociao com Tel Aviv;
87
6. Uma profunda reforma administrativa da ANP a fim de combater a corrupo, criar
instituies pblicas e sociais sobre bases democrticas para assegurar a justia, a igualdade,
a participao, a pluralidade poltica, a garantia das liberdades pblicas e privadas, a diviso
dos poderes, a independncia da justia e o imprio da lei;
7. Refundar as instituies sobre bases nacionais e profissionais afastando-as do partidarismo e
de atuaes unilaterais;
8. Garantir os acordos assinados no Cairo, em maro de 2005, entre os vrios grupos da
resistncia palestina;
9. O compromisso de estudar com responsabilidade os acordos j assinados, procurando
salvaguardar os interesses do povo palestino e sem prejuzo dos limites neles estabelecidos;
10. Levar em considerao as resolues internacionais de referncia a fim de garantir a
salvaguarda dos direitos nacionais e inalienveis do povo, e em funo dos compromissos
recprocos com o Estado ocupante;
11. Assegurar a independncia das decises nacionais;
12. Reafirmar o acordo rabe e islmico, recuperando o apoio da Nao rabe Islmica ao povo
palestino e sua luta em todos os campos;
13. Estabelecer relaes construtivas e equilibradas com os demais pases do mundo e com as
instituies no-governamentais.
88
Em resposta a essas linhas gerais de atuao, em 22 de maro de 2006, a Organizao para a
Libertao da Palestina (OLP) emite um comunicado no qual rechaa a plataforma de Hams por
considerar inaceitvel o no-reconhecimento da existncia de Israel. Por sua vez, em mero respeito
ao processo democrtico, Abbas autoriza a posse do novo governo, mas ressalta que este deve
assumir os compromissos polticos j estabelecidos e no oferecer pretextos para Tel Aviv violar os
acordos assinados e impor unilateralmente solues e fronteiras definitivas.
Quatro dias depois, um Olmert que conduz o Kadima na reta final do processo eleitoral
israelense d uma resposta que soa como aberta provocao ao Movimento de Resistncia Islmica:
uma vez eleito, o novo governo do Kadima, aps uma consulta interna e com os Estados Unidos,
traar unilateralmente suas fronteiras e continuar tomando decises sem dialogar com os
palestinos, caso Hams resolva aplicar seu programa de governo.
Para mostrar o isolamento total do Movimento Islmico diante da comunidade internacional
e da maior parte dos setores da resistncia palestina, Saeb Erekat, principal negociador da ANP,
87
A base para esta colocao est na leitura histrica pela qual Israel s negocia quando os palestinos encontram-se em
situao de fragilidade, sendo que os melhores resultados obtidos at o momento coincidem com os perodos em que a
resistncia manteve Tel Aviv sob presso e colocou a questo palestina no mbito das preocupaes mundiais.
88
Resumimos aqui o contedo do programa conforme foi divulgado em HAMS. Proyeto para un Programa de
Gobierno de Concertacin Nacional, em CSCAweb / Rebelin 24/03/2006.
144
declara que no dar sua confiana a esse governo por ele no atender s questes que poderiam
garantir as demandas da populao e por no incorporar os interesses nacionais do prprio povo
viabilizados nos Acordos de Oslo e na construo da Autoridade Nacional Palestina.
- H uma coisa que continuo sem entender. Por que Hams teima em no reconhecer o Estado de
Israel se este j existe e to real a ponto de poder reduzir ao p os territrios palestinos?,
questiona o homem ao elevar o tom de voz.
- Simples, querido humano de cabea grande e olhos mopes. O que para voc no passa de
teimosia, para este grupo uma questo central para a sua sobrevivncia como movimento e para
manter de p a possibilidade futura de criar um Estado palestino que transforme bandeiras histricas
em realidade cotidiana.
Em primeiro lugar, Hams no reconhece Israel porque Israel no reconhece a Palestina
como Estado independente com direito autodeterminao. Isso s seria vivel com o retorno s
fronteiras de 1967, o fim dos assentamentos e a conseqente continuidade territorial da Cisjordnia,
alm de ter Jerusalm Oriental como capital. Mas esta no a postura nem dos governos israelenses
que administraram o pas aps a Guerra dos Seis Dias, nem um desejo de sua populao.
A indefinio das fronteiras de Israel tem sido um fator determinante para a poltica
inaugurada por Golda Meir em 1971, segundo a qual o povo palestino no existe e as fronteiras do
seu Estado na Palestina histrica esto determinadas pelos lugares onde vivem os judeus e no por
linhas traadas no mapa. Essa posio permite justificar a expanso territorial e introduzir o carter
judaico do Estado de Israel. Num processo que vai ficando cada vez mais claro, pedir a Hams que
reconhea o direito de Israel a existir implica em reconhecer Israel como Estado dos judeus, fechar
definitivamente as portas ao retorno dos refugiados palestinos e legitimar a marginalizao da
populao rabe e no-judaica que vive em seu meio.
Na mesma linha, vai se ampliando e consolidando uma mudana de entendimento do
processo de pacificao rabe-israelense pelo qual a histrica troca de terras por paz, determinada
pelas resolues da ONU, vem sendo substituda por acordos de paz cujo primeiro item da pauta o
desarmamento, o controle e a submisso dos grupos da resistncia autoridade central da ANP. O
curioso que o Quarteto exige dos palestinos que abandonem a violncia, mas no h a mesma
presso quando se trata de exigir isso tambm de Israel, cuja ocupao militar tm a populao civil
como vtima principal. No mximo, o governo de Tel Aviv repreendido pelo uso excessivo da
fora sempre que as operaes de suas tropas despertam comoo internacional.
Privada do legtimo direito de resistir militarmente a um exrcito de ocupao, a resistncia
palestina, que apenas responde s aes sofridas, sistematicamente colocada no banco dos rus,
enquanto Israel assume o papel de vtima e no de agressor, prprio de um exrcito de ocupao.
Prova clara de quanto acabo de dizer pode ser encontrada nas reaes operao Chuva de
Vero, iniciada por Israel em 26 de junho de 2006, depois que o brao armado de Hams e os
Comits de Resistncia Popular da Faixa de Gaza golpeiam um posto de fronteira deixando dois
soldados mortos, 4 feridos e um seqestrado. A resposta ao ataque, dirigido contra foras militares e
cujo resultado pretende trocar o soldado Gilad Shalit por presos palestinos, atinge profundamente a
infra-estrutura civil de Gaza e, em dois meses, mata nada menos do que 205 palestinos, a maior
parte dos quais de civis sendo que um tero do total de crianas. Os castigos coletivos (vetados
pela Quarta Conveno de Genebra, da qual Israel signatrio) e os crimes de guerra cometidos
pelo uso de armas proibidas em regies povoadas so repreendidos pela ONU apenas como uso
desproporcional da fora militar.
Pronunciadas as ltimas palavras, a sala mergulha num silncio de reflexo. Ave e homem
trocam olhares que confirmam a necessidade de perceber como os acontecimentos do presente no
so obra do acaso, mas sim de uma tenso histrica que amplia seu alcance e razo de ser na medida
em que a posio palestina vai se enfraquecendo no tabuleiro das relaes internacionais.
- Isso quer dizer que na Cisjordnia e em Gaza as coisas podem piorar ainda mais...?, sugere o
secretrio ao temer uma resposta afirmativa.
145
- Infelizmente, o que vai acontecer. Em 1 de abril de 2006, os atritos entre Hams e Fatah
deixam sinais claros de que um enfrentamento entre as duas faces est preste a eclodir. Com a
suspenso da ajuda financeira ANP, no h como pagar os salrios do funcionalismo cujos cargos
so ocupados em grande maioria por pessoas de Fatah. Sem dinheiro e com os preos nas alturas em
funo do bloqueio israelense, os servidores ameaam entrar em greve. Hams se defende alegando
que isso se deve s presses internacionais e, em 5 de maio, milhares de palestinos marcham nas
cidades de Gaza e Ramallah para ratificar seu apoio ao governo eleito sob o lema: melhor passar
fome do que ficar de joelhos.
89
Mas palavras de ordem no bastam para resolver problemas que se agravam dia aps dia. Os
choques armados entre as duas faces se intensificam deixando dezenas de mortos e centenas de
feridos. Ao perceber que o conflito pode levar a ANP imploso, o Banco Mundial solicita de Israel
e do Quarteto a liberao de recursos para pagar os ordenados. Em 10 de maio, Israel repassa o que
deve em impostos e quinze dias depois, autoriza a transferncia de armas leves e munies s foras
de Abbas sob o pretexto de que se destinam a deter atividades terroristas. Para completar a obra, em
30 de junho, tropas israelenses prendem 64 altos funcionrios de Hams (entre deputados, ministros
e prefeitos) numa operao de grande envergadura na Cisjordnia. No mesmo dia, a aviao reduz a
escombros a sede do Ministrio do Interior em Gaza e interrompe o fornecimento de eletricidade
causando a paralisao do abastecimento de gua potvel, de inmeras atividades industriais e
comerciais, das escolas e dos servios de sade.
Vendo a situao precipitar, no incio de julho, membros influentes de Hams, Fatah, FPLP,
FDPLP e Jihad Islmica presos nos crceres israelenses elaboram o Documento de Reconciliao
Nacional dos Prisioneiros Palestinos. O texto reafirma a luta do povo pela libertao dos territrios
ocupados em 1967, a construo de um Estado independente e a necessidade de manter o trabalho
diplomtico de negociao poltica; solicita que todas as faces cumpram o estabelecido pelos
acordos do Cairo, a incorporao de Hams e Jihad OLP (tida como nico e legtimo representante
do povo palestino) para revitalizar a instituio e preserv-la como frente ampla de coalizo
nacional e suprema autoridade poltica; reafirma o direito de exercer a resistncia contra a ocupao
em todas as suas formas, diz que esta deve se concentrar nos territrios ocupados em 1967 e
envolver todas as camadas populares.
O escrito aponta tambm a necessidade de elaborar um plano de ao poltica global, de
unificar o discurso sobre a base do programa de unanimidade nacional palestina, da legalidade rabe
e das resolues internacionais; a manuteno e a preservao da Autoridade Nacional Palestina e
uma completa reforma dos rgos da OLP para fazer prevalecer o domnio da lei; a construo de
um governo de unidade nacional que garanta a participao de todos os blocos parlamentares e que
goze do apoio popular, do respaldo da comunidade rabe e internacional a fim de combater a
pobreza e o desemprego e oferecer o maior apoio possvel aos setores que carregam a
responsabilidade da resistncia; a criao de um programa conjunto destinado a reanimar a questo
palestina em todos os nveis.
O documento reconhece tambm que a direo das negociaes faculdade da OLP e do
presidente da ANP sobre a base de objetivos nacionais a serem conquistados e implementados
sendo que todo acordo com Israel deve ser submetido ao Conselho Nacional Palestino ou a
referendo popular. No mais, reafirma a necessidade de lutar pela libertao de todos os presos
detidos, pela defesa dos direitos dos refugiados e pelo fortalecimento do processo democrtico;
prope que se trabalhe pela formao de uma frente nica de resistncia para dirigir e empreender a
luta contra a ocupao, coordenar aes conjuntas e construir uma instncia poltica unificada;
aponta a necessidade de reformar e desenvolver as instituies de segurana para que se tornem
mais eficazes na defesa da ptria e dos cidados, contra-arrestando a agresso e a ocupao
israelenses, ajudando a organizar e proteger a posse de armas nas mos da resistncia; e, por fim, a
necessidade de trabalhar pela ampliao do papel e da presena dos Comits de Solidariedade
89
Em AFP, DPA, La Jornada, 06/05/2006.
146
internacionais e dos grupos que lutam pela paz com o objetivo de respaldar a firmeza do povo em
seus enfrentamentos contra a ocupao, contra a colonizao dos territrios palestinos e o Muro de
segregao construdo por Israel.
90
Em 11 de setembro, tendo como base as concluses acima, Abbas e o Primeiro Ministro
palestino, Ismail Haniyeh, chegam a um acordo para mais uma tentativa de dar vida a um governo
de unidade nacional. O texto final visto como o reconhecimento implcito de Hams do direito de
Israel a existir. Dez dias depois, o Quarteto concorda em renovar a ajuda financeira por trs meses
como parte do esforo para retomar as negociaes de paz com Tel Aviv, mas exige o
reconhecimento explcito de Israel por parte do Movimento de Resistncia Islmica.
Esta postura no deve ser entendida como um mero pedido de esclarecimento a um governo
que est preste a assumir os cargos administrativos da ANP. Na verdade, os Estados Unidos no
querem um governo de unidade nacional em Ramallah, pois este dificultaria qualquer acordo com
Israel que previsse a renncia das bandeiras histricas palestinas, da que preferem o caos e o
esvaziamento da ANP a uma instancia que negocie com base em princpios considerados
inaceitveis. Por isso, de agora em diante, se dispem a retomar a regularidade da ajuda financeira
apenas como forma de sustentar a presidncia palestina e garantir sua confiabilidade poltica. Os
recursos so entregues diretamente a Abbas (e no ao governo da ANP) e h um controle mais
rgido da destinao final do dinheiro sob a alegao de que os pases doadores pretendem evitar
que a ajuda caia na mo do terrorismo.
Em 23 de setembro, coerente com sua posio histrica, Hams reafirma que no participar
de um governo que reconhea Israel, o que faz voltar estaca zero o processo em curso. At o final
de 2006, a conjuntura conhecer vrias tentativas de construir um gabinete de unidade nacional e o
aumento dos choques entre Fatah e Hams faz emergir o fantasma de uma guerra civil.
- E Israel? J realizou suas eleies para o novo governo?, indagam os lbios ao retomar um
assunto aparentemente esquecido pela coruja.
- O processo eleitoral israelense diz Ndia ao desenhar crculos no ar se encerra em 28 de
maro e num clima aptico que leva s urnas somente 57% das pessoas com direito a voto, a mais
baixa participao da histria. Dos 120 assentos do Parlamento, o Kadima consegue apenas 28, os
Trabalhistas 20, o ultra-ortodoxo Shas 13, o Likud 12, Israel Beitenu 11, a Unio Nacional 8, o
Partido dos Aposentados 8 e as demais vagas so distribudas entre grupos minoritrios.
Pouco mais de um ms depois, Olmert consegue formar um governo de coalizo com o
Partido Trabalhista, os Aposentados e o Shas. Sem perder tempo, em 4 de maio, o Primeiro
Ministro anuncia sua inteno de estabelecer as fronteiras permanentes de Israel antes de 2010 e
solicita aos legisladores que apiem um plano de retirada parcial da Cisjordnia por considerar que
o crescimento desordenado da colonizao pe em risco o futuro do pas. No seu entender, demarcar
os limites territoriais garantiria uma maioria judaica em reas econmica, poltica e militarmente
integradas e serviria de salva-vidas para o sionismo. O projeto implica em fechar dezenas de
pequenas colnias e postos avanados, dificilmente defensveis, e em anexar grandes blocos de
assentamentos de forma a garantir o acesso s melhores terras, aos aqferos subterrneos e a
bloquear o acesso palestino a Jerusalm Oriental.
Enquanto progridem as conversaes internas, a Comissria da Unio Europia para as
Relaes Exteriores, Benita Ferrero Waldemar, em visita a Jerusalm, joga um balde de gua fria
nas pretenses de Olmert. Ao reafirmar o entendimento europeu pelo qual uma paz duradoura s
pode vir da negociao com os palestinos, a comissria deixa claro que a Unio Europia no
reconhecer nenhuma fronteira unilateralmente fixada por Israel.
Mas os problemas do novo governo no param aqui. Alm das operaes militares na Faixa
de Gaza, nuvens escuras se aproximam da fronteira com o Lbano. semelhana do que ocorreu
pelas mos da resistncia palestina, o Hezbollah ataca um posto militar fronteirio matando 8
90
Resumimos aqui o contedo do texto conforme foi divulgado por FDPLP. Documento de Reconciliacin Nacional de
los Prisioneros Palestinos, em Rebelin 02/07/2006.
147
soldados israelenses e seqestrando outros 2 a fim de troc-los por 3 libaneses detidos por Israel
sem processo legal. Em resposta, a aviao de Tel Aviv bombardeia 20 posies do Hezbollah que,
por sua vez, dispara seus foguetes contra vrias cidades da Galilia.
- L vem mais uma guerra..., comenta o homem de queixo cado.
- Na mosca!, confirma a ave ao piscar os olhos. Apesar da tentativa da ONU de mediar o
conflito, no dia 17 de julho, as tropas israelenses cruzam a fronteira com o Lbano. Os bombardeios
se intensificam dia aps dia e, em menos de uma semana, cerca de 800.000 pessoas (20% da
populao libanesa) abandonam suas casas para escapar dos horrores da guerra.
- Quer dizer que bastou pouco para acender o estopim e detonar a carga....
- A bem da verdade, a ao do Hezbollah no passa de um pretexto que, de um lado, Israel usa
apostando na possibilidade de a guerra minar o apoio popular conseguido pelo grupo e levar a
populao local a se revoltar contra ele. De outro, a recusa inicial dos EUA em atuar a favor de um
cessar-fogo e a acelerada entrega de bombas teleguiadas e demais suprimentos militares revelam
que o governo Bush est convencido de que a paz na regio passa, ao mesmo tempo, pela
eliminao do Hezbollah e por manter Sria e Ir (supostos fornecedores do grupo xiita libans) na
ala de tiro de Israel.
Em 33 dias de conflito, a aviao israelense destri estradas, pontes, postos de gasolina,
lojas, indstrias destinadas produo civil, instalaes da ONU, milhares de casas e chega a atacar
comboios de civis organizados pela Cruz Vermelha Internacional e pelas Naes Unidas com
deslocamento previamente autorizado pelo comando de operaes israelense. A agresso contra o
Lbano deixa danos materiais estimados em US$ 3,6 bilhes, alm de causar a morte de 1110
pessoas (civis em sua maioria), sendo que a este contingente se somam centenas de mortes na
medida em que mais corpos so encontrados debaixo dos escombros e outros so vitimados pelas
bombas de fragmentao que no detonaram ao atingir o solo.
Apesar da mdia ter divulgado at a exausto as imagens dos foguetes Katiusha lanados
contra Israel, dando a impresso de um poder de fogo acima de qualquer expectativa, os nmeros
divulgados por fontes oficiais israelenses revelam uma realidade bem diferente. Em pouco mais de
um ms de hostilidades, a aviao de guerra de Tel Aviv atingiu mais de 7.000 alvos, o exrcito
lanou 2.500 bombardeios de artilharia e disparou dezenas de milhares de foguetes. De acordo com
a mesma fonte, o Hezbollah no teria disparado mais do que 4.500 foguetes causando a morte de
119 soldados, 43 civis e ferindo outras 75 pessoas.
91
Em 30 de agosto de 2006, ao avaliar os estragos do ps-guerra, o Centro de Coordenao
para a desativao de bombas da ONU identifica 359 pontos com mais de 100.000 fragmentos no-
detonados. Nas palavras de Jan Engeland, responsvel pela ajuda humanitria das Naes Unidas no
Lbano, o que mais revolta, e eu diria que completamente imoral, que 50% dos impactos das
bombas de fragmentao ocorreu nas ltimas 72 horas do conflito, quando j se sabia que havia
uma resoluo da ONU [ordenando o cessar-fogo] e sabiam que a guerra iria terminar. O que
restou desses artefatos ameaa agora a vida de milhares de civis que, aos poucos, tentam voltar
normalidade.
92
- O que eu no consigo entender como tamanho poderio militar teve que sair do Lbano com o
rabo entre as pernas..., comenta o homem intrigado.
- Simples, meu caro! Em primeiro lugar, necessrio dizer que a opo israelense de realizar
ataques indiscriminados para levar a populao a reagir contra o Hezbollah o principal motivo do
fracasso. De acordo com o ex conselheiro das foras de paz da ONU no Lbano, Timor Gorsel, a
presena do Hezbollah no sul do pas se limita a cerca de 700 guerrilheiros em tempo integral que,
por sua vez, contam com o apoio total de 20.000 camponeses, o que permite a eles se manterem
junto populao e ocultar suas bases de operaes, deslocamentos e sistemas de comunicao.
Essa integrao faz com que, em meio aos horrores da guerra, 70,9% da populao continue se
91
Dados publicados em Reuters, AFP, DPA, La Jornada, 05/10/2006.
92
Os dados e a citao foram publicados em AFP, DPA, La Jornada 31/08/2006.
148
mostrando favorvel captura dos soldados israelenses e nada menos do que 88% apie a
resistncia contra o exrcito de Tel Aviv.
93
Se isso no bastasse, o povo do Lbano comea a se perguntar para que serve o seu exrcito
de 75.000 homens se este no pode intervir para defender a populao civil agredida por Israel.
Alm de desgastar os ministros pr-ocidente, a reao popular legitima o Hezbollah como nica
fora capaz de resistir agresso de Tel Aviv. Some agora os protestos de rua que se espalham pelo
mundo e no ter dificuldade em entender porque o apoio interno a este grupo cresce na exata
medida em que os bombardeios procuram aniquilar suas estruturas .
- Sendo assim, as coisas no devem estar indo bem para Olmert, afirma o ajudante na tentativa de
fechar um captulo da histria.
- Voc tem razo. O desfecho negativo da guerra do Lbano reduz o apoio ao Primeiro Ministro e
setores do exrcito exigem a sua renncia. Na crise poltica que se instala com a abertura das
investigaes, Olmert busca fortalecer a posio do seu partido atraindo para o governo a extrema
direita liderada por Avigdor Lieberman que assume o cargo de vice Primeiro Ministro e a nova
pasta de Relaes Estratgicas. Com uma maioria parlamentar de 78 deputados, o Kadima mantm
o rumo traado e, em 1 de novembro de 2006, d incio operao Nuvens de Outono destinada a
deter os disparos dos foguetes Qassam da Faixa de Gaza e a libertar o soldado Gilad Shalit.
No incio de mais uma matana, Lieberman sugere que o exrcito israelense adote os
mtodos dos militares russos na Chechenia que, alm de derrotar o poder extremista, preparam uma
direo local alternativa. A declarao, que alguns jornais apresentam como um despropsito, na
verdade apenas confirma o que j est sendo trazido luz. Na edio de 15 de outubro, o Yediot
Ahronot havia divulgado que os EUA se dispunham a conceder US$ 42 milhes para criar uma
alternativa democrtica ao governo palestino, o que incluiria investimentos em educao, apoio a
organizaes e jornais de oposio a Hams, a contratao de conselheiros para assessorar os lderes
de Fatah, o aumento de 4.500 a 6.500 efetivos da guarda presidencial. Um ms e meio depois, em
30 de novembro, o mesmo peridico divulga que o objetivo imediato dos EUA o de preparar um
contingente confivel para um futuro choque com as foras de Hams na Faixa de Gaza, tendo o
general Keith Dayton como principal coordenador de segurana a servio da Autoridade Nacional
Palestina.
Somadas matana da operao militar israelense, as notcias desgastam Abbas. Pea ainda
indispensvel no tabuleiro estadunidense o presidente da ANP tenta jogar mais uma de suas cartas.
Em 16 de dezembro, comunica a deciso de adiantar as eleies presidenciais e legislativas. A
FPLP, a FDPLP e outras faces minoritrias rechaam a idia por no haver razo que justifique a
convocao de um novo pleito e pela falta de um consenso palestino. Hams rejeita a deciso de
Ramallah por consider-la uma tentativa de golpe e um passo em direo guerra civil.
Enquanto isso, a posio de Olmert no interior do governo de Tel Aviv torna-se
insustentvel. Na tentativa de ganhar flego no cenrio internacional, s vsperas do Natal, o
Primeiro Ministro israelense transfere aos cofres da ANP U$ 100 milhes em impostos retidos,
marca um encontro para fazer avanar o processo de paz e, em 26 de dezembro, anuncia a
construo de um novo assentamento na Cisjordnia. Se, de um lado, a deciso fortalece sua
coalizo de governo, de outro, inviabiliza srias negociaes de paz justo no momento em que Tel
Aviv estende a mo a Abbas para retomar o dilogo.
O crculo se fecha quando o Egito, mediador dos dilogos entre Fatah e Hams, transfere
grande quantidade de armas e munies s foras de segurana da ANP na Faixa de Gaza. De
acordo com a edio do Haaretz de 28 de dezembro de 2006, o governo do Cairo acaba de transferir
a Fatah, com o consentimento de Israel, nada menos do que 2.000 fuzis AK-47, 20.000 carregadores
e dois milhes de munies. No apagar das luzes de 2006, a possibilidade de uma interveno
armada da ANP na Faixa de Gaza ganha feies cada vez mais reais.
- Quer dizer que 2006..., introduz o homem ao tentar entender um ano conturbado.
93
Dados publicados em Reuters, AFP, DPA, La Jornada, 04/08/2006.
149
- Quer dizer que 2006 emenda Ndia sem perder tempo se encerra com perspectivas nada
animadoras. De um lado, os enfrentamentos entre Hams e Fatah na Faixa de Gaza se aprofundam
tornando-se mais freqentes e violentos. De outro, a operao Nuvens de Outono produz uma
verdadeira matana de civis. A que causa maior comoo ocorre no campo de refugiados de Beit
Hanoun com a morte de 18 pessoas de uma mesma famlia atingida por uma descarga de artilharia
enquanto dormia.
Diante da impotncia da ONU, dos vetos estadunidenses s resolues que condenam Israel,
das meras repreenses verbais da comunidade internacional e da ausncia de um movimento
significativo que denuncie os crimes de guerra no interior da sociedade israelense, o embaixador
adjunto de Tel Aviv, Daniel Carmon, responde aos pedidos das Naes Unidas para o fim imediato
da matana em Gaza dizendo que os
mortos na operao Nuvens de Outono
so vtimas do terrorismo de Hams. De
fato, se os terroristas palestinos no
atacassem constantemente Israel, se os
foguetes Qassam no fossem disparados
contra Israel o incidente de Beit Hanoun
no teria ocorrido.
94
Em resposta ao despropsito, dois
dias depois, a organizao de direitos
humanos, Human Rigths Watch divulga
um informe pelo qual de setembro 2005 a
novembro 2006, entre msseis, morteiros
e fogo de artilharia, Israel realizou cerca de 15.000 disparos contra a Faixa de Gaza, ao passo que os
militantes palestinos chegaram a lanar no mais de 1.700 foguetes, cujo alvo, conforme foi
reconhecido pelos comandos militares de Tel Aviv, geralmente errtico.
95
Diante da comoo que as imagens de destruio ameaam espalhar pelo mundo, em 17 de
novembro, a Assemblia Geral da ONU aprova uma resoluo majoritria que condena as operaes
militares na Faixa de Gaza e pede que a matana de Beit Hanoun seja investigada. Contudo, na noite
do mesmo dia, a fora area israelense retoma o disparo de msseis contra casas e prdios onde
moram supostos militantes palestinos. Os ataques so suspensos dois dias depois quando centenas
de moradores se colocam como escudos humanos em volta das casas que seriam provveis alvos
dos avies militares.
Enquanto as operaes blicas tendem ao fim, a situao na Faixa de Gaza ganha traos de
crise humanitria. Graas ao corte de energia, ao fechamento das fronteiras, ao bloqueio naval em
volta do territrio costeiro e aos seguidos bombardeios, 70% dos laranjais esto destrudos, fbricas
e oficinas esto paradas, a pesca que, antes de setembro de 2000 oferecia 823 toneladas de peixe por
ms, faz essa quantidade cair a no mais de 50 no final de 2006.
96
De acordo com a ONU, a asfixia econmica qual Israel submete a Faixa de Gaza deixa
80% de sua populao totalmente dependente da ajuda que vem do exterior. Informes do Fundo
Mundial da Alimentao e da Organizao para a Alimentao e a Agricultura (FAO), ambos da
ONU, alertam quanto ao fato de que a crescente pobreza e o desemprego obrigam 84% dos
habitantes de Gaza e 60% da Cisjordnia a viver da caridade externa. E, de acordo com a UNICEF,
em 2004, as crianas da Faixa de Gaza, de at os dois anos de idade, que sofriam de anemia e falta
de protena animal eram 46,5%, enquanto, no final de 2006, j atingiam 70%.
97
- Minha nossa! Que desastre!, prorrompe o homem indignado. Mas ser que em 2007 as coisas
vo melhorar?, pede a lngua quase em tom de splica.
94
Em AFP, DPA, Reuters, La Jornada 10/11/2006.
95
Os dados e a declarao foram publicados em AFP, Reuters, DPA, La Jornada, 12/11/2006.
96
Dados divulgados em ZIMMER, John, No pescars, em IPS / Rebelin 16/02/2007.
97
Dados divulgados em El Mundo, 17/03/2007.
150
- Seria muito bom se a simples passagem de ano trouxesse mudanas positivas, mas, infelizmente,
no assim - responde a ave ao lamentar com o olhar a frustrao do seu interlocutor.
Desde o incio de 2007, as relaes entre Fatah e Hams so caracterizadas por uma tenso
permanente. No dia 6 de janeiro, Abbas anuncia a reestruturao dos grupos de segurana da ANP,
o que pressupe a proscrio da Fora Executiva fiel ao Primeiro Ministro palestino, Ismail
Haniyeh. Em resposta, este contingente armado dobra seus efetivos para 12.000 integrantes, num
claro sinal de que no vai acatar as disposies anunciadas. Apostando no acirramento dos conflitos,
o governo Bush fornece U$ 86,4 milhes para os corpos policiais da Autoridade Nacional Palestina.
No incio de fevereiro, dirigentes de Hams e Fatah se encontram na Arbia Saudita para
negociar um acordo que ponha fim aos enfrentamentos. Aps 3 dias de intensos debates, a
Declarao de Meca tem como ponto central o reconhecimento de que a OLP se encarregar das
negociaes com Israel e o novo governo respeitar todos os acordos a serem assinados. Recebido
como mensagem de esperana para o fim da violncia interpalestina, o documento nada diz em
relao aos 3 pontos sobre os quais se ergue o boicote internacional realizado por EUA, Unio
Europia e Israel: o reconhecimento do Estado de Israel, a aceitao de todos os acordos anteriores e
uma clara renncia violncia por parte de Hams.
Sob forte presso internacional, Abbas adia, por tempo indeterminado, a formao do novo
governo palestino, o que deixa no ar a possibilidade de uma ruptura ainda mais grave. O perigo de
uma guerra civil parece afastado em 15 de maro, quando o presidente da ANP aprova o gabinete de
unidade nacional anunciado por Hams. O novo programa de governo aponta o fim da ocupao
sionista como pea-chave para a estabilidade e a segurana da regio e se compromete com a luta
pela autodeterminao do povo palestino e pela defesa de seus direitos e interesses nacionais com
base nos acordos e tratados j assinados pela OLP. Alm disso, reafirma o direito legtimo
resistncia vinculando seu fim ao fim da ocupao, obteno da liberdade, da independncia, do
direito ao retorno dos refugiados e da libertao de todos os presos polticos.
Ao comprometer-se com a busca do consenso, o novo governo prope uma reforma
profunda das foras de segurana, do judicirio e da administrao pblica, dando ateno especial
recuperao econmica de Cisjordnia e Faixa de Gaza.
98
- Bom, parece sensato e coerente..., comenta o homem ao acreditar que nem tudo est perdido.
- Objetivamente falando, as propostas do programa no poderiam ser outras. Mas, se, de um lado, a
Unio Europia aceita o consenso alcanado para ampliar por trs meses seus mecanismos de ajuda
ANP, de outro, o governo estadunidense mantm Hams fora de seus planos ao conceder mais
US$ 43 milhes para equipar e treinar a guarda presidencial palestina.
Em 11 de maio de 2007, novos incidentes entre Fatah e Hams voltam a marcar o cotidiano
da Faixa de Gaza. Apesar do compromisso com a trgua, estabelecido na Declarao de Meca, os
enfrentamentos entre os dois grupos no param. Pouco mais de um ms depois, Abbas dissolve o
governo de unidade nacional, decreta o estado de emergncia e convoca novas eleies.
Pressentindo o pior, o brao armado de Hams assume o controle dos quartis gerais da ANP
na Faixa de Gaza para impedir que contingentes armados neles entrincheirados pelo tenente-coronel
Keith Dayton assumam o controle da regio. Na operao, 30 palestinos so mortos e os feridos
passam de 70. Por elevado que seja, o preo pago bem menor do que viria a ser caso as foras de
Fatah tivessem sado dos quartis, levando o pequeno territrio a uma guerra civil.
Em resposta, Abbas nomeia polticos de sua confiana para substituir os membros de Hams
no gabinete de unidade nacional, declarado dissolvido pelo prprio presidente da ANP. Para reduzir
o desgaste poltico a que est sendo submetido, EUA e Unio Europia abrem linhas financeiras
para sustentar os trabalhos da Autoridade Nacional Palestina, ao passo que Israel reconhece no novo
gabinete um parceiro para a paz.
98
Resumimos aqui os principais pontos do programa do governo de unidade nacional veiculados em Rebelin
19/03/2007.
151
Frustrados os planos iniciais, Abbas declara fora da lei as milcias de Hams e, no dia 20 de
junho, responde proposta de Hams de retomar o processo de reconciliao com Fatah dizendo
que no haver dilogo com esses terroristas assassinos.
99
Por sua vez, o movimento islmico afirma que o governo de Ismail Haniyeh continua no
exerccio do poder a ele conferido pelo voto e sublinha que o novo gabinete palestino, liderado por
Salam Fayyad, tem como nica legitimidade a da administrao estadunidense e da ocupao
israelense.
Em 5 de julho, as fronteiras da Faixa de Gaza so seladas pelo exrcito de Tel Aviv. Sem
possibilidade de receber suprimentos e exportar seus produtos, 75% das indstrias do pequeno
enclave costeiro se vem foradas a paralisar totalmente suas atividades. A produo interna
despenca. Os poucos empregos disponveis esto ameaados. O pesadelo de uma crise humanitria
projeta mais sombras de morte sobre uma populao que teima em resistir.
Preocupado com o avolumar-se das oposies internas, o presidente da ANP pede ONU o
envio de uma fora internacional para permitir que a ajuda humanitria chegue aos 85% dos
moradores da Faixa de Gaza que dependem dela para sobreviver. Os EUA rechaam imediatamente
a idia, pressionam Israel para que liberte os 255 presos prometidos como forma de apoiar o aliado
em dificuldade e, em 2 de agosto, oferecem mais U$ 80 milhes para fortalecer as foras leias a
Abbas. Ironicamente, a liberao do dinheiro ANP ocorre 3 dias depois de elevar em 25% a ajuda
militar a Israel para um total de US$ 30 bilhes a serem entregues nos prximos 10 anos.
100
- As coisas so descaradas a ponto de fazer passar por palhaada qualquer atitude que merea o
apelido de esforo diplomtico..., sussurra o secretrio ao apoiar a testa na mo esquerda.
- Na verdade, as idas e vindas dos ltimos 18 meses, mostram que a Autoridade Nacional Palestina
no passa de um pseudogoverno cujas instituies no controlam nada e sequer permitem construir
uma estrutura administrativa da qual possa nascer um Estado soberano e independente. Sua fora
real no deita razes no apoio da sociedade civil, mas to somente na relao clientelista do elevado
nmero de famlias cujas rendas dependem diretamente dos empregos na sua burocracia e para cuja
manuteno so imprescindveis os financiamentos das grandes potncias. Esta realidade no s
reduz as possibilidades de resistncia, como coloca a prpria esquerda (que participa do governo) na
incapacidade de formular um projeto alternativo s traies do grupo majoritrio.
No cenrio de disputa pelos cargos que se instala aps os Acordos de Oslo, a luta pelos
direitos palestinos cede progressivamente o lugar a negociaes de paz que acabam reafirmando o
status quo. Nelas, Israel d a impresso de fazer concesses aos palestinos, mas continua se
recusando a tratar das questes centrais (o fim dos assentamentos, a situao dos refugiados e de
Jerusalm Leste); por sua vez, a ANP e a OLP tm suas vidas prolongadas pelo dinheiro que vem do
exterior, apesar das disputas internas, da corrupo, da ineficincia que caracterizam o cotidiano de
suas instncias.
Esta situao vai ficar escancarada aps o fracasso da cpula internacional de Annapolis, nos
Estados Unidos, em novembro de 2007. Pressionado pela crise econmica e sem resultados
internacionais a apresentar no pleito do ano seguinte, Bush convoca israelenses e palestinos a se
comprometerem com negociaes ativas e permanentes rumo a um acordo de paz definitivo a ser
alcanado antes do final de 2008. Preocupada com o tom conciliador de Abbas, parte da resistncia
desafia a proibio de realizar protestos imposta pela ANP e, em 27 de novembro, pe na rua
manifestaes expressivas em Hebrn, Ramallah, Belm, Nablus e outras cidades da Cisjordnia. A
polcia palestina reprime com truculncia qualquer ato contra a cpula de Annapolis, mas no
consegue evitar o constrangimento de mostrar ao mundo a falta de legitimidade do seu governo.
- Desse jeito, as coisas perigam se complicar ainda mais....
- E no pra menos. Enquanto o bloqueio Faixa de Gaza no disfara seu carter de castigo
coletivo, o desespero pela falta de produtos de primeira necessidade leva os moradores a abrirem
99
Em Reuters, DPA, La Jornada, 21/06/2007.
100
Dados publicados em DPA, AFP, Reuters, La Jornada, 30/07/2007.
152
uma brecha na fronteira com o Egito. Milhares de palestinos saem de Gaza para comprar o que for
possvel a fim de reduzir sua situao de penria. Mas esta chance tem os dias contados.
Pressionado por Israel e pelos EUA, o Egito fecha a fronteira e ordena ao exrcito de abrir fogo em
caso de novas ameaas de invaso.
Se a situao no territrio controlado por Hams piora a olhos vistos, a vida na Cisjordnia
no certamente um mar de rosas. Apesar da postura moderada e conciliadora de Abbas, nos
primeiros seis meses de 2008, o exrcito israelense submete o territrio administrado por Ramallah
a nada menos do que 4.650 incurses, causando 32 mortes e prendendo 2.436 pessoas.
101
Alm de
demonstrar aos palestinos que o governo Abbas s tem autoridade quando o exrcito de Israel
resolve conced-la, o fato novo que parte das operaes se destina a fechar orfanatos e associaes
beneficentes dirigidas por simpatizantes de Hams e, por isso, acusadas publicamente de manterem
supostos vnculos com a resistncia armada.
- Ser que o governo de Tel Aviv pirou? Qual o sentido de destruir comida, roupas, mveis e
propriedades destinadas ajuda humanitria?, perguntam os lbios incrdulos.
- A resposta a esta sua indagao retoma Ndia em tom calmo e esclarecedor vai vir no incio
de maro de 2008, quando a revista estadunidense Vanity Fair publica uma matria com base em
documentos confidenciais. Neles, os informantes provam que Mohamed Dahlan, homem forte de
Fatah na Faixa de Gaza, e Abbas mantiveram estreitos contatos com a CIA, o FBI e autoridades de
Israel em sua conspirao para derrubar o governo democraticamente eleito de Hams e, contando
com o mesmo apoio, preparam foras que, em coordenao com o exrcito de ocupao, visam
desmontar o que pode fortalecer Hams na Cisjordnia. As suspeitam so confirmadas em setembro
de 2008 pelas reportagens do jornalista israelense Nahom Barner e na edio de 26 de outubro do
jornal Haaretz segundo a qual Israel entrega aos corpos de segurana da ANP as listas de pessoas a
serem presas e a polcia palestina se encarrega do resto.
Em breves palavras, destruir orfanatos e associaes beneficentes no um erro ttico, mas
sim uma medida que visa conter o avano do movimento islmico nos territrios administrados pela
ANP, reduzindo suas possibilidades de apoio junto populao. O desgaste que isso provoca
imagem da ANP seria compensado pela ausncia futura de uma oposio real na Cisjordnia, pela
manuteno das benesses oferecidas pela Autoridade Nacional Palestina e por um ulterior
enfraquecimento do que resta da resistncia ativa contra projetos, posturas e propostas de
conciliao que alimentam as dvidas no governo Abbas.
Em 12 de agosto, um Olmert desgastado por acusaes de corrupo e incompetncia
apresenta ao presidente palestino um plano de paz pelo qual Israel aceita se retirar de 93% da
Cisjordnia ocupada e troca a rea restante por territrios do deserto do Negev junto Faixa de
Gaza. A proposta limita o retorno dos refugiados a casos excepcionais, nada diz em relao ao
status de Jerusalm e criao do Estado palestino. Distantes de tudo o que ajudaria Abbas a
reconquistar a legitimidade popular, as colocaes do Primeiro Ministro israelense so consideradas
mera perda de tempo e expresso de falta de seriedade. E no pra menos. Apesar de toda
cumplicidade, vacilao, flexibilidade e moderao nas relaes com Tel Aviv, a aceitao pblica
da possibilidade de uma paz definitiva com base em tamanho despropsito levaria imploso
imediata de toda a estrutura da Autoridade Nacional Palestina, algo que nenhum burocrata que se
respeite desejaria ver acontecer.
Aps o esperado fracasso, Olmert renuncia ao cargo em 19 de agosto e Tzipi Livni
encarregada de formar um novo governo sob a liderana do Kadima. Seus esforos so frustrados
pelos ultra-ortodoxos que saem da antiga coalizo e foram a convocao de novas eleies para
fevereiro de 2009.
Desde o incio da campanha eleitoral, a polarizao entre o Kadima e o Likud revela que o
tratamento a ser dispensado Faixa de Gaza ser um elemento determinante na disputa pelo voto.
101
Dados copilados atravs do levantamento mensal realizado pelo ex embaixador palestino na Argentina, Suhail Hani
Daher e divulgados, ms a ms, atravs do site Rebelin.
153
Ceder aos protestos da ONU contra o bloqueio da ajuda humanitria visto como sinal de fraqueza
diante de uma sociedade civil cada vez mais preconceituosa em relao populao rabe e mais
sensvel aos apelos internos que, por caminhos diversos, retocam o projeto sionista de ocupar a
Palestina histrica. As notcias pelas quais a populao de Gaza estaria beira do desespero no so
recebidas em Israel como conseqncias de atos desumanos de suas foras armadas, mas sim como
propaganda eficiente do pulso firme com o qual Tel Aviv se preocupa com a segurana do povo.
De pouco adianta o espernear do secretrio geral da ONU, Ban Ki Moon, ao denunciar que
as reservas de alimentos para os refugiados bastam apenas para 4 dias em funo da reduo dos
suprimentos que dos 70-80 caminhes dirios dos anos anteriores passa aos 15 atuais, e isso s nos
dias em que o exrcito decide abrir momentaneamente as fronteiras de Gaza. Do mesmo modo, so
recebidas como msica as palavras de denncia de Richard Falk, judeu estadunidense e relator
especial das Naes Unidas para os direitos humanos, ao descrever o que est sob os olhos dos
enviados da ONU na Faixa de Gaza: algo macabro. No sei ao que tudo isso pode ser
comparado. As pessoas tm falado no gueto de Varsvia como a analogia mais prxima dos tempos
modernos. No conheo nenhuma estrutura de ocupao que tenha durado tantas dcadas e que
aplique uma agresso to grave. A magnitude, a intencionalidade, as violaes do direito
humanitrio internacional, o impacto sobre a sade, a vida, a sobrevivncia e as condies gerais
justificam a denominao de crime contra a humanidade. Esta situao responde a um propsito
claro e direto das autoridades civis e do exrcito de Israel. So eles os responsveis disso tudo e
deveriam ser julgados por isso.
102
Diante da crueldade do bloqueio imposto por Tel Aviv, as faces da resistncia na Faixa de
Gaza decidem no renovar a trgua que, nos meses anteriores, havia significado a suspenso parcial
dos lanamentos de foguetes. Aps seis meses de relativa calma, alguns desses artefatos so
disparados contra a cidade israelense de Sderot. Apesar de no causar vtimas ou danos graves,
Israel usa a ao como pretexto para mais uma agresso que, a partir de 26 de dezembro, o mundo
vai conhecer pelo nome de Chumbo Derretido.
Diante do desenrolar dos acontecimentos, Abbas denuncia que a operao israelense no
s contra Hams, mas constitui, sim, um crime de guerra contra todos os palestinos. As palavras que
acusam Tel Aviv, porm, demonstram-se vazias e inconseqentes dias depois quando, em 28 de
dezembro, o presidente da ANP volta a condenar a ofensiva israelense, responsabiliza Hams pelos
ataques contra a Faixa de Gaza e pondera que os palestinos poderiam ter evitado isso se tivessem
mantido a trgua. Uma curiosa coincidncia com a declarao da Secretria de Estado
estadunidense, Condoleeza Rice, divulgada no mesmo dia, pela qual os Estado Unidos condenam
fortemente os repetidos ataques com foguetes de morteiro contra Israel e responsabilizam Hams
por romper o cessar-fogo e pela violncia em Gaza.
103
Em tons diferentes, Jordnia, Sria, Arbia Saudita, Iraque, Ir, Espanha, Frana, Alemanha,
Rssia, Itlia, Gr Bretanha, Argentina, Brasil, Chile, Vaticano, Unio Europia e o prprio
secretrio geral da ONU expressam seu rechao violncia em Gaza. Mas tudo no passa de uma
medida para consumo interno. Ou seja, trata-se de uma condenao formal que os governos no
podem deixar de fazer para acalmar o descontentamento popular diante de uma situao
injustificvel pelos caminhos habituais. De fato, alm das palavras, nenhuma medida concreta
encaminhada para impedir que Israel leve adiante mais um massacre. Enquanto o povo sai s ruas
para dizer no a Israel, na Cisjordnia, as manifestaes populares contra os bombardeios
israelenses so sistemtica e violentamente reprimidas pelas foras da ANP, em mais uma
demonstrao clara do abismo que se estabelece entre as declaraes oficias das autoridades e a
pratica cotidiana nos territrios ocupados.
Nos dias que seguem, os horrores da guerra e os bombardeios das estruturas da ONU na
Faixa de Gaza foram a acelerar a atividade diplomtica. Manifestaes que renem dezenas de
102
Em WALKER, Syd. Israel mata de hambre a Gaza por Navidad, em Rebelin 20/12/2008.
103
Em Reuters, DPA, AFP, La Jornada, 29/12/2008.
154
milhares de pessoas, protestos e presses internas levam os representantes governamentais dos
principais pases a apressar as negociaes para o cessar-fogo.
Venezuela e Bolvia suspendem as relaes diplomticas com Israel e anunciam que
acusaro Tel Aviv de delito de lesa humanidade contra o povo palestino perante a Corte Penal
Internacional. E no pra menos: com as fronteiras hermeticamente seladas, sob forte bombardeio,
sem acesso a remdios e alimentos, sem possibilidade alguma de procurar refgio fora do pas e
nem de buscar no exterior tratamento mdico adequado para os milhares de feridos, a populao da
Faixa de Gaza est literalmente presa numa jaula sobre a qual se abate uma tempestade de fogo.
Em meio aos horrores da guerra e em plena campanha eleitoral, Avigdor Lieberman, prope
lanar bombas atmicas no territrio costeiro, expulsar para a Jordnia todos os palestinos da
Cisjordnia, da Faixa de Gaza e os rabe-israelenses que se recusarem a jurar fidelidade a Israel
numa espcie de soluo definitiva para a questo palestina. Apesar de espelhar s uma parte do
pensamento da sociedade civil (pois h muitos judeus que protestam contra o genocdio em Gaza), o
discurso de Lieberman, denota um preocupante crescimento e aceitao de uma ideologia de carter
nazista que combina fundamentalismo religioso, racismo e nacionalismo. Ao que tudo indica, os
filhos das vtimas do holocausto aprenderam com seus carrascos os mtodos e as medidas
necessrias para um processo de limpeza tnica em pleno sculo XXI.
Pressionado pela resoluo da ONU que pede o cessar-fogo imediato, Israel pe fim aos
bombardeios em 18 de janeiro de 2009. O saldo
assustador. Do lado palestino, os prejuzos
materiais so estimados em cerca de US$ 2
bilhes, sendo que 4.150 moradias esto, total
ou parcialmente, destrudas e outras 20.000
apresentam danos mais leves. O arsenal usado
contra a populao de Gaza deixa 1.436
mortos, dos quais 492 so crianas, e mais de
6500 feridos. Os mais de 2.500 alvos atingidos
pelos bombardeios incluem 4 instalaes da
ONU, 16 centros mdicos, 18 escolas, 16
ambulncias, 51 edifcios governamentais, 150
lojas e a destruio da rede de saneamento
bsico a ponto de deixar 400.000 pessoas sem
gua potvel.
Do lado israelense, o exrcito reconhece
que os 767 foguetes lanados pela resistncia
no chegaram a produzir grandes estragos. Os
mortos so 13, 3 civis e 10 soldados, dos quais
3 vtimas de fogo amigo. Os feridos no
passam de algumas dezenas.
104
Diante da catstrofe, a comunidade internacional oferece US$ 4,5 bilhes para reconstruir a
economia da Faixa de Gaza, dinheiro a ser entregue diretamente Autoridade Nacional Palestina
para que o administre sem a participao de Hams. Diante da continuidade do bloqueio israelense,
que impede a entrada de materiais de construo indispensveis recuperao da infra-estrutura, a
parte dos financiamentos que chega a ser entregue se destina a fortalecer a ANP na Cisjordnia.
Pronunciadas as ltimas palavras, Ndia faz uma pausa. Um silncio aterrador toma conta da
casa. Rompida pelos troves da tempestade, a ausncia de sons e palavras expressa o desconcerto e
a tristeza em constatar, mais uma vez, que a geopoltica do poder se mantm totalmente indiferente
ao sofrimento humano.
104
Dados publicados em AFP, La Jornada 18/01/2009; AFP, DPA, The Independent, La Jornada 21/01/2009 e em
AKEL, Suhail e DAHER, Hani, em Boda de sangre impuesta al pueblo palestino, em Rebelin, 14/02/2009.
155
Ao perceber o peso da situao, a coruja se aproxima do secretrio cujas mos parecem
paralisadas. Apoiada a asa no ombro direito do ajudante, a ave pisca os olhos e pronuncia palavras
que mesclam encorajamento e urgncia:
- Precisamos continuar..., diz Ndia ao acariciar com suas penas o brao direito do ajudante.
- Eu sei..., confirma o homem ainda incapaz de segurar o instrumento de trabalho.
- Nesta altura - diz a ave ao andar vagarosamente sobre a mesa -, temos que entender o que est
mudando na sociedade israelense e permite legitimar prticas capazes de indignar o bom senso do
passado.
Alm do aumento da discriminao e das normas legais que vedam aos palestinos casados
com israelenses o direito de viverem em Israel sob o argumento de que constituem uma ameaa
potencial segurana, pesquisas revelam que entre 60 e 62% dos entrevistados querem que o
governo de Tel Aviv inste os cidados rabes a abandonar o pas.
Entre os elementos que explicam esta atitude, est o fato de que, aps a vitria de Hams nas
eleies de 2006, a palavra paz no entra em nenhum programa apresentado nos processos eleitorais
que marcam o calendrio poltico israelense. A mdia trata de mostrar desfiles assustadores de
Hams prometendo vingana. O medo da retomada dos ataques suicidas mais forte do que
qualquer outro medo e o pas persegue um estado de guerra permanente como pano de fundo em
funo do qual toda ao governamental parece legtima e justificvel.
Mas isso no tudo. A partir do segundo semestre de 2005, cresce o nmero de rabinos,
colonos e judeus ortodoxos para os quais a consolidao de Israel nas terras da Palestina histrica
representa um passo significativo rumo chegada da era messinica. Esse movimento, iniciado aps
a Guerra dos Seis Dias, em 1967, se fortalece na medida em que as opinies dos rabinos ganham o
respeito da juventude religiosa judaica e de seus seguidores que, apesar de representar cerca de 10%
da populao de Israel, tratam de assumir o controle do exrcito e dos aparelhos de segurana.
Apresentando-se inicialmente como voluntrios nos servios especiais de combate, em 2008, os
jovens oriundos de famlias ortodoxas j constituem mais da metade dos oficiais do exrcito e
ocupam posies de comando em 60% das unidades especiais.
105
Entre as expresses que visualizam como o sentimento religioso molda os setores-chave das
foras armadas, est a do rabino Israel Rosen num artigo publicado em vrios jornais e na edio do
Haaretz de 26 de maro de 2008. Ao descrever a semelhana entre os palestinos e os amalequitas,
Rosen cita a Tor para concluir que todos os palestinos devem ser aniquilados, homens, mulheres,
crianas e at seus animais. Para ele, os amalequitas do passado so todos aqueles que odeiam os
judeus por motivos religiosos, por isso podem emergir de etnias e religies diferentes ganhando
rostos e nomes prprios do seu tempo. Ao se transformar em executores de um mandamento divino,
os judeus estariam apenas cumprindo um dever previsto pelos textos sagrados.
Apesar da comoo que suas posies causam em Israel, vale a pena ressaltar que no se
trata de uma opinio isolada e, pela confirmao do prprio Haaretz, no time das lideranas mais
expressivas que apreciam a interpretao de Rosen, encontramos os rabinos Mordechai Eliyahu
(principal autoridade da corrente religiosa nacionalista de Israel), Dov Lior (Presidente do Conselho
de rabinos da Judia e Samaria a Cisjordnia), Samuel Eliyahu (candidato posio de principal
rabino de Israel), alm de lderes polticos como Ori Lubiansky, prefeito de Jerusalm.
Pouco mais de um ms antes da operao Chumbo Derretido, os rabinos Yitzak Shapira e
Yosef Elitzu publicam o livro A Tor do Rei - Leis sobre a vida e a morte entre os judeus e as
naes. Nele chegam a justificar que h razes para matar as crianas quando existe a evidncia
de que, ao crescerem, estas iro nos prejudicar; nesse caso, os ataques devem ir diretamente contra
elas e no contra os adultos.
106
Para eles, basta esta simples analise para justificar diante de Deus e
dos homens as milhares de crianas palestinas que j foram vtimas da ocupao israelense.
105
Dados publicados em AL-NAAMI, Saleh, Genocdio anunciado, em Al-Ahram Weekly/Rebelin 03/05/2008.
106
Em IGLESIAS, nxela, Un libro de rabinos justifica el asesinato de nios, em La voz de Galicia 20/11/2009 e
Rebelin 26/11/2009.
156
No por acaso, aps a operao Chumbo Derretido, alguns soldados denunciam a
brutalidade da fora militar utilizada, a ausncia de regras e limites para o combate, o dio e a
alegria de matar entre as tropas mesmo quando descarregados contra civis inocentes. Ao finalizarem
seus relatos, parte dos 26 soldados cujos depoimentos so recolhidos pela ONG israelense
Rompendo o Silncio, destaca o papel do rabinato militar que inspirava o uso desmedido da fora
com expresses tais como: No tenha compaixo, Deus te protege e o que fizer ser santificado. O
todo temperado pela noo messinica de que estavam travando uma guerra santa na qual os filhos
da luz lutavam contra os palestinos, filhos da escurido.
107
Por limitadas que sejam, as expresses acima nos ajudam a entender as mudanas em curso
na sociedade israelense e a represso destinada a calar toda organizao pacifista que questione as
justificativas militares que predominam no cenrio atual. A isso devemos acrescentar a preocupao
do governo com as redes sociais a ponto de criar programas para treinar centenas de pessoas a
vasculharem a internet com o propsito de responder ao que prejudica a imagem de Israel no
exterior e coloca obstculos ao consenso interno.
A limpeza tnica da Palestina histrica no exige apenas medidas de fora, mas tambm a
construo de um entendimento nacional e internacional que legitime a violncia e o crime de
Estado mesmo quando dirigidos contra a populao indefesa. Ao correr contra o tempo, Israel busca
ganhar mais terreno agora que a resistncia palestina no encontra os caminhos necessrios para a
construo de alternativas polticas e para substituir seus meios de ao cuja eficcia cada vez
mais questionvel.
- Se as coisas esto assim, ento no h o que esperar das eleies para o novo governo de Tel
Aviv..., diz o homem desconsolado ao balanar a cabea.
- Nos dias que antecedem o pleito de 10 de fevereiro, os discursos de todos os candidatos se
concentram no tema da segurana. Do Likud aos Trabalhistas passando pelo Kadima, a promessa
de agir com mo-de-ferro contra Hams e de fazer o possvel para que o Ir no chegue a ter
armamento nuclear.
Abertas as urnas, o Kadima consegue 28 assentos no Parlamento, o Likud 27, os
Trabalhistas sofrem uma derrota histrica caindo para 13, Israel Beitenu sobe a 15, Shas 11, Lista
rabe Unida 11, Judasmo Unido da Tor 5, Unio Nacional 4, Meretz 3. Tzipi Livni, do Kadima,
encarregada de formar o novo governo, mas na impossibilidade de conseguir uma maioria
parlamentar, cede o lugar a Benjamin Netanyahu, do Likud. Aps vrias idas e vindas, em 31 de
maro de 2009, empossada a nova coalizo que, ao todo, conta com uma maioria parlamentar de
69 deputados num total de 120 membros do Parlamento.
No mesmo dia, o recm-empossado Ministro das Relaes Exteriores, Avigdor Lieberman,
afirma que seu grupo no vai aceitar acordos que incluam a criao de um Estado palestino. Apesar
de contrariar o esprito dos planos de paz j negociados, a reao s suas afirmaes no mbito
internacional insignificante. Sobre esta base, em 20 de maio, Netanyahu reitera que Jerusalm
nunca ser dividida e permanecer para sempre como capital unificada de Israel. Trs dias depois, o
Primeiro Ministro expressa publicamente suas reservas em relao ao reconhecimento de um futuro
Estado Palestino, afirma que pretende dar continuidade expanso dos assentamentos na
Cisjordnia e dos bairros judaicos de Jerusalm Oriental, sublinha mais uma vez que os palestinos
devem reconhecer Israel como pressuposto para estabelecer uma nova rodada de negociaes.
Com as cartas na mesa, a posio da ANP cada vez mais complicada. Saeb Erekat,
principal negociador palestino, afirma que a postura de Netanyahu um retrocesso e implica na
continuidade do conflito entre os dois povos. Para Abbas, o Primeiro Ministro israelense est
sabotando toda iniciativa e esforo de paz j realizados. O problema, porm, que a fragilidade da
posio palestina to grande que, em Israel, todos sabem no passar de uma oposio verbal
passvel de ser superada com concesses que satisfaam a burocracia de suas instncias de governo.
107
Em GARA, Joven militar israeli: Las instrucciones eran claras: se tienes duda, mata. Em Gara/Rebelin,
17/07/2009.
157
Quem no est nada satisfeito o Presidente Barack Obama que v naufragar as boas
intenes dos discursos dirigidos aos povos rabes. Suas presses, aliadas s da Unio Europia
(que teme a ocorrncia de distrbios internos), levam Tel Aviv a adotar um discurso mais
diplomtico, mas igualmente indisfarvel.
No frigir dos ovos, Tzipi Livni, do Kadima, intervm no debate pblico ao dizer que Israel
precisa fazer sem falar, pois, historicamente, esta postura tem sido a mais eficiente. Sabendo que
tudo no passa de repreenses verbais, sem retaliaes comerciais, financeiras ou militares, Tzipi
relembra o caminho seguido pelos antecessores de Netanyahu: construir cada vez mais sem fazer
alarde, reafirmando posies e intenes que no precisam ser levadas a srio. O importante agir
para continuar criando fatos consumados, irreversveis e, com o tempo, passveis de esquecimento
ou aceitao pela comunidade internacional. Mais do que declarar Jerusalm capital indivisvel de
Israel no momento em que os movimentos islmicos radicais podem desestabilizar os regimes
rabes que se nutrem dos acordos de paz e do comrcio com Tel Aviv, trata-se de moldar
silenciosamente as condies materiais que permitem atingir este objetivo. Da e necessidade de
uma postura mais diplomtica, de expresses menos contundentes, da continuidade do jogo de
estender a mo para a paz sob condies que, de antemo, j se sabe que levaro recusa palestina e
ao conseqente rechao internacional desta recusa.
O problema, porm, est na composio do governo Netanyahu. De fato, os setores
ortodoxos e nacionalistas vem sua participao como a ocasio de ouro para derrubar toda
resistncia tica e moral s aes que reafirmam a necessidade histrico-religiosa de no abrir mo
de um nico metro de terra palestina. A fim de apressar a reconstruo do Grande Israel, seus
representantes no pretendem medir palavras e buscam transformar constrangimento diplomtico
em fonte de debate no interior da sociedade civil.
- Pssimas notcias para os palestinos..., comentam os lbios perplexos.
- E no poderia ser diferente!, confirma a coruja com um gesto que parece unir o passado ao
presente. No final de fevereiro, Fatah e Hams, com a mediao do Egito, voltam a negociar a
criao de um governo de unidade nacional que ponha fim diviso e viabilize um acordo entre as
principais faces da resistncia.
Em meados de maro, as conversaes apontam o 25 de janeiro de 2010 como data das
eleies presidenciais e legislativas da ANP. A impresso de que um acerto pode finalmente estar
prximo no passa, justamente, de uma impresso sucessivamente negada pela deteriorao das
relaes entre os dois grupos.
Em 4 de agosto de 2009, Fatah inicia seu Sexto Congresso com a presena de 2.250
delegados. Ao longo dos trabalhos no faltam discursos sobre as lutas ocorridas, a importncia e o
papel da resistncia, a condenao do Muro que Israel continua construindo em terras palestinas e
assim por diante. A retrica, porm, no consegue disfarar o inegvel distanciamento entre as
palavras e a prtica da ANP.
Dois meses depois, mais uma desagradvel surpresa abala a presidncia da Autoridade
Nacional Palestina. Em 2 de outubro, a delegao de Abbas nas Naes Unidas, em Genebra, retira
seu apoio ao informe do magistrado Richard Goldstone sobre os crimes de guerra cometidos por
Israel durante a operao Chumbo Derretido. Para alm das presses estadunidenses, fontes
palestinas revelam que o gesto teria como base duas razes inconfessveis: a existncia de um vdeo
no qual Abbas estaria tratando de convencer Ehud Barak, Ministro da Defesa de Israel, a continuar a
guerra em Gaza e uma gravao telefnica na qual Tayeb Abdel Rahim, Secretrio Geral da
Presidncia da ANP, avisa o chefe de Estado Maior de Tel Aviv, Dov Weiglass, de que as
condies esto maduras para a entrada do exrcito israelense em dois grandes campos de
refugiados, cuja queda acabaria com o governo de Hams em Gaza. Alertado por Weiglass de que
158
isso provocaria a morte de milhares de civis, Tayeb responde: todos eles elegeram Hams, razo
pela qual escolheram seu prprio destino, no ns.
108
Como prmio pela retirada do apoio ao informe, de acordo com o jornal israelense Maariv,
Abbas receberia de Israel a possibilidade de instalar uma nova rede de telefonia mvel atravs de
uma empresa dirigida por seu filho.
As notcias provocam manifestaes em vrias cidades palestinas pedindo a renncia de
Abbas, do chanceler Riad Kalki, do embaixador Ibrahim Khreishi e o julgamento dos trs como
colaboradores de Israel. Neste nterim, o alto comissrio para os direitos humanos da ONU, Richard
Falk, reconhece que a Autoridade Nacional Palestina em Ramallah traiu o seu prprio povo no
momento em que a comunidade internacional esteve preste a aprovar o informe Goldstone. E
lamenta como revelao assombrosa o fato de a representao da luta palestina na ONU ter minado
o informe.
109
Sob forte presso interna e diante dos impasses nas negociaes com Hams, o Presidente da
ANP, cujo mandato expirou h dez meses, marca eleies gerais para janeiro de 2010 e adverte que
no ser candidato reeleio. A OLP e Fatah rechaam a recusa de Abbas por temer que sua
deciso acirre as disputas internas a ponto de levar imploso das instituies.
A reao dos grupos da resistncia expressa reservas em funo da ausncia de um acordo
que incorpore Hams e pe em dvida s possibilidades do Quarteto vir a respeitar o resultado do
pleito em caso de vitria da oposio. Para Hams, a convocao destri os esforos de
reconciliao interpalestina e representa uma rendio da ANP s presses israelenses e
estadunidenses. Ao perceber a inviabilidade do pleito, em meados de dezembro, a OLP anuncia o
adiamento das eleies presidenciais e legislativas por tempo indeterminado e solicita a Abbas que
continue no cargo para evitar um vazio de poder.
Diante das seguidas situaes de desgaste, as negociaes com Hams chegam a um ponto
morto. Dia aps dia, a fragilidade da ANP diante de Israel ganha contornos cada vez mais
indisfarveis e preocupantes. No incio de janeiro de 2010, Abbas cede s exigncias estadunidense
de dialogar com Tel Aviv sem qualquer condio prvia, o que deixa no ar a desconfiana de que os
polticos palestinos venham a fazer concesses em questes fundamentais, mascarado-as de avanos
rumo criao de um Estado independente.
Antes do incio dos dilogos, que ocorreriam com a mediao de um diplomata
estadunidense, o anncio, em 11 de maro, de que Tel Aviv acaba de aprovar a construo de mais
1.600 casas nas reas de Jerusalm que, supostamente, viriam a integrar o territrio do futuro Estado
palestino, impede ANP de dar continuidade ao processo. A suspenso das negociaes aprovada
pela OLP e pela Liga rabe, mas conforme comentrio de Netanyahu e do vice-presidente dos
EUA, Joe Biden, o anncio das novas construes no passa de algo intempestivo, mas no
impeditivo para que, apesar dos atritos entre os dois pases, seja proposto um novo dilogo com
Abbas.
- Se as coisas esto assim, que futuro podemos esperar?, pede o secretrio na tentativa de
vislumbrar um sinal de esperana nas trevas que avanam alm da linha do horizonte.
- Pelo que vimos at o momento, possvel apontar algumas tendncias. Em primeiro lugar,
podemos dizer que o projeto de construir o Grande Israel na Palestina histrica consolida velhos
passos e abre um novo caminho sobre o qual j h negociaes em curso entre Tel Aviv e Ramallah.
Na inviabilidade material de um Estado palestino e no firme propsito de no voltar idia
de um nico Estado para dois povos, Israel manobra no sentido de manter sua pesada atuao
armada ao lado de aes que reduzam o desgaste internacional, corrijam a falta de consenso interno
e proporcionem uma aparente sada econmica aos palestinos que desistirem da resistncia.
108
Em Politicaltheatrics.org, Mahmud Abbas convenci Israel para continuar el ataque a Gaza, em Rebelin,
08/10/2009.
109
Em Al-Jazeera, 08/10/2009.
159
Concretamente, a poltica de colonizao da Cisjordnia j alcanou o que vrios dirigentes
da ANP reconhecem como ponto de no-retorno. As seguidas ampliaes dos assentamentos
existentes e a abertura de novas frentes de ocupao ilegal de terra palestina para futuras colnias,
para construo do Muro e do sistema de rodovias de uso exclusivo israelense j confiscaram 45,5%
do territrio da Cisjordnia. Do 54,5% restante, 10,6% ocupado por enclaves palestinos
completamente isolados do restante do territrio, o que, alm de segregar a populao destas reas,
coloca sob rgido controle toda possibilidade de desenvolvimento econmico e livre movimentao
de pessoas e mercadorias.
Por outro lado, a dependncia econmica em relao a Israel atinge nveis que deixam Tel
Aviv com a possibilidade de estrangular a qualquer momento toda fonte de recurso destinado
sobrevivncia da populao. Com mais de 75% das importaes vindas da economia israelense e
com 90% das exportaes destinadas a esse pas, basta pouco para que o exrcito faa sentir o peso
mortal de sua presena tambm na vida econmica, poltica e social da Cisjordnia.
No que diz respeito Faixa de Gaza, a situao simplesmente desesperadora. De acordo
com as agncias de ajuda humanitria, ao longo de 2009, Israel permitiu a entrada de apenas 41
caminhes carregados com materiais de construo, o que transforma em iluso qualquer esperana
de recuperao do territrio costeiro castigado pelas operaes militares e o bloqueio econmico.
Cerca de 46% da terra agrcola de Gaza est inutilizada, as atividades industriais enfrentam
uma paralisia crnica e as reas urbanas bombardeadas revelam altos ndices de contaminao por
metais txicos ou cancergenos como cromo, cdmio, cobalto, tungstnio, urnio e chumbo
utilizados nos artefatos despejados pelos ataques areos.
110
No momento em que escrevemos estas
linhas, 90% das casas sofrem cortes de eletricidade todos os dias, 48% das instalaes de sade
esto total ou parcialmente destrudas, a populao recebe atravs da ONU somente 25% dos
alimentos que garantiriam uma vida saudvel, o saneamento bsico est beira do colapso.
O estrangulamento deste enclave onde a resistncia palestina se mantm viva est dando
mais um passo com a construo de
um muro de ao e concreto na
fronteira com o Egito. Pelas
informaes disponveis, a nova
barreira contaria com painis de
ao enterrados dezenas de metros
debaixo da terra e conectados com
um sistema de bombeamento da
gua do mar para saturar o solo,
inundar os tneis existentes (por
onde passa um mnimo de alvio
populao e resistncia) e impedir
que novos sejam construdos.
Completada a obra com um
novo sistema de controle do acesso
martimo, a Faixa de Gaza ficaria
hermeticamente fechada ao mundo externo. Com a desculpa de garantir a soberania e impedir que
uma fronteira porosa subterrnea sirva aos propsitos de grupos terroristas, o Egito retribui as
concesses militares e financeiras recebidas dos EUA, isola Hams da base social que lhe deu
origem em seu territrio, acaba com o que pode proporcionar centelhas de bem-estar populao,
reduz o risco de ter que enfrentar bala uma nova invaso de palestinos desesperados e se reafirma
como aliado confivel nas relaes com o Ocidente e com Israel.
110
Dados publicados em NEW WEAPONS COMMITTEE, Los metales detectados en el cabello de los nios
palestinos de Gaza indican la existencia de contaminacin medioambiental, em New Weapons
Committee/Rebelin 20/03/2010.
A difcil tarefa diria de conseguir gua potvel em Gaza
160
- Alguma esperana para Jerusalm Oriental...?.
- Os estudos produzidos at o momento mostram o progressivo esvaziamento da populao rabe
que mora nesta regio da cidade. Iniciada em 1967, a limpeza tnica vem se acelerando nos ltimos
cinco anos em funo de vrios fatores. O primeiro deles diz respeito impossibilidade material de
um palestino construir legalmente a sua nova casa. Alm dos altssimos custos do alvar, da demora
em responder sua solicitao, da sistemtica reduo da rea destinada obra, menos de 10% das
demandas recebe resposta afirmativa. Arriscar-se a construir sem permisso oficial sinnimo de
receber um comunicado da prefeitura com a data da demolio.
Processo parecido ocorre em relao s moradias erguidas antes de 1967. Neste caso, basta
um simples relatrio do exrcito alegando razes de segurana, raramente comprovadas, para que a
famlia receba uma ordem de desocupao. Sem lar, muitos casais palestinos recm-formados no
tm outra escolha a no ser a de abandonar a cidade.
As reas desalojadas so imediatamente utilizadas para novas edificaes nas quais iro
morar judeus israelenses. Este movimento vem se acelerando nos ltimos anos. Em 2007, Israel
ergueu 46 casas em Jerusalm Oriental; em 2008 foram 1.761; no ano seguinte 1.512; e, de janeiro a
maro de 2010, so aprovados trs projetos governamentais para a construo imediata de mais
1.732 unidades habitacionais, sendo que, de acordo com o grupo israelense pela paz Ir Amim, j h
20.000 moradias em fase de obteno do alvar e outras 30.000 que o governo planeja construir
num plano que reduziria ao mnimo a presena rabe na cidade.
111
O segundo fator consiste na proibio, aprovada em 2003 atravs da Lei de Cidadania, pela
qual os casais formados por israelenses e palestinos sem identidade israelense ou sem permisso de
morar em Jerusalm so impedidos de viverem juntos nos territrios controlados por Tel Aviv. A
possibilidade de reunificao familiar s pode ocorrer em reas administradas pela ANP ou de
forma clandestina, no interior de Israel. As dificuldades criadas pela separao dos cnjuges tm
levado dezenas de famlias a sarem de Jerusalm Oriental.
Na mesma direo, encontramos a campanha de confisco das identidades israelenses de
palestinos que, de acordo com as sinalizaes da prefeitura de Jerusalm, vivem fora dos limites do
municpio. A quantidade de pessoas atingidas por esta medida vem aumentando ao longo do tempo,
passando de 222 em 2005, para 1.363 no ano seguinte e 4577 em 2008.
112
A possibilidade de
reverter esta situao bastante reduzida, depende de processos judiciais dispendiosos e cujos
veredictos so raramente favorveis.
O terceiro elemento dado pela atuao dos colonos que moram neste setor da cidade e que,
em 2009, tem se tornado mais contundente. Alm das humilhaes e das ameaas verbais, bandos
formados por jovens e adultos tm atacado e depredado lojas e casas levando o pnico entre a
populao palestina desprotegida.
Para completar a obra, temos os efeitos do Muro de separao (que impede a cerca de 55.000
palestinos o livre acesso ao trabalho e a qualquer atividade comercial), os problemas causados pela
crise econmica mundial e pelo baixo nvel dos servios municipais nas reas da sade, educao,
saneamento e coleta de lixo. O tratamento discriminatrio em relao ao setor ocidental de
Jerusalm mais um convite a deixar a cidade nas mos dos judeus.
Por tudo o que dissemos, os pesquisadores so unnimes em reconhecer um crescente
processo de judaizao do setor oriental de Jerusalm. De junho de 1967 a dezembro de 2009,
calcula-se que cerca de 35% de seus antigos moradores tenham sido forados a deixar a rea que
hoje conta com uma populao de 200.000 israelenses e 270.000 palestinos. Se as coisas
progredirem no ritmo atual, Tel Aviv vai completar a limpeza tnica deste setor em 2020. Pouco a
pouco, vai fazer cada vez menos sentido reivindicar Jerusalm Oriental como futura capital do j
invivel Estado palestino.
111
Dados divulgados em: The Independent, 31/08/2008; Pblico, 30/12/2009; La Jornada, 10/03/2010. Os planos
que se referem s construes futuras, foram publicados em International Middle East Media Center, En Jerusaln Este,
se planea construir 50.000 casas para colonos, em International Middle East Media Center / Rebelin, 14/03/2010.
112
Dados publicados em Mdia Monitor Network, 16/12/2009 e IPS, 10/09/2008.
161
- Mas ser que ningum vai fazer nada?, prorrompe o homem ao constatar que as possibilidades
do passado parecem se fechar inexoravelmente diante dos novos acontecimentos.
Frente pergunta j esperada, Ndia emite um longo suspiro. Em seguida abre as asas e, ao
olhar para as folhas do relato, responde:
- No momento, a questo palestina caminha rumo ao esquecimento, que deu o tom poltica
israelense e estadunidense dos anos 50, com eventuais idas e vindas em funo de espasmos de
revolta popular. Apesar dos crimes e dos abusos de Israel, as repreenses verbais e o silncio
cmplice da comunidade internacional no tm servido apenas para manter as relaes comerciais e
diplomticas com Tel Aviv, mas tambm para realizar com ele e atravs dele os passos da
geopoltica mundial.
Conseguida a dependncia do fornecimento de material blico e assessoria militar dos EUA,
os pases da Liga rabe tm mostrado que suas crticas envergonhadas no passam do nvel verbal e
nem apontam possibilidade de retaliaes econmicas nos moldes implementados ao longo dos
anos 70. Em relao Sria, Lbano e Ir, o exrcito de Israel mantm viva e azeitada a poltica do
dedo no gatilho, pronto a disparar ao menor sinal de ameaas. Isso sem contar que qualquer ao
armada contra o Ir no dispensar a atuao israelense como pea-chave de mais uma interveno
estadunidense na regio. No fundo, esta uma das cartas que, guardadas na manga de Tel Aviv,
permite chegar a graves atritos com os Estados Unidos e a Unio Europia na certeza de que as
grandes potncias acabaro perdoando qualquer ruptura dos acordos com os palestinos rumo a uma
paz que j sabem ser improvvel e distante de suas reivindicaes histricas.
Alm disso, justamente esse jogo de foras que est credenciando Israel a se tornar o 29
pas membro da OTAN, aps ter sido admitido no ncleo de naes que integram o Dilogo do
Mediterrneo
113
e ter realizado dezenas de treinamentos militares com as foras da prpria OTAN.
A velocidade com a qual a viso estratgica comum vai se transformar em incluso de fato e de
direito na Organizao do Atlntico Norte vai depender das reaes dos vizinhos rabes pr-
estadunidenses interessados em evitar que elementos da conjuntura internacional fortaleam o
crescimento em curso de movimentos de oposio junto populao local. Se tudo correr de acordo
com as previses, no h sinais de que, no futuro imediato, as aes armadas dos grupos que atuam
na fronteira entre o Imen e a Arbia Saudita, a evoluo da situao no Iraque, a poltica do Ir, a
atuao da Sria e as relaes de poder aps as eleies no Egito venham a representar uma
mudana significativa na evoluo da questo palestina de curto prazo.
Um elemento interessante, mas ainda incipiente, dado pela atuao de grupos pacifistas
israelenses preocupados com o carter racista e totalitrio que o Estado vem assumindo nos ltimos
anos. Alm das aes conjuntas com movimentos palestinos na luta no-violenta contra a
construo do Muro e das recentes manifestaes para frear a ampliao dos assentamentos, no h
nem projeto de atuao comum, nem atividade parlamentar, nem uma influncia na mdia que seja
capaz de sugerir aos israelenses a necessidade de ver o que a ao governamental tem conseguido
esconder de seus olhos.
Ao visualizar neste agrupamento uma possvel ameaa aos planos de governo, Tel Aviv no
tem poupado esforos para atacar as redes sociais que desmascaram seus crimes, reprimir
violentamente manifestaes pacficas e promover a criminalizao dos seus lderes. Se isso no
bastasse, desde meados de janeiro de 2010, o Ministrio do Interior vem negando vistos de trabalho
maioria dos cidados estrangeiros que atuam nas 146 ONGs presentes em Jerusalm Oriental e nas
reas administradas pela ANP, impe restries de acesso Cisjordnia e Faixa de Gaza e impede
que at mesmo parlamentares europeus entrem no territrio costeiro. A poltica de reduzir o nmero
de testemunhas no nova. A intensidade com a qual vem sendo aplicada leva a crer que o governo
Netanyahu se prepara para enfrentar com fora redobrada as expresses mais agudas da resistncia
113
O Dilogo do Mediterrneo um foro de cooperao do qual participam os pases da OTAN alm de Arglia,
Tunsia, Marrocos, Egito, Israel, Jordnia e Mauritnia.
162
para limitar o risco de que as mesmas desemboquem numa nova Intifada ou alimentem sentimentos
excessivamente contrrios s posies israelenses pelo mundo afora.
- E a resistncia palestina? Alguma idia sobre o que pode vir a acontecer com ela?.
- No momento, estamos assistindo tanto falta de eficcia das formas de luta j praticadas, como
ausncia de uma estratgia de ao minimamente unificada entre os grupos de oposio dentro e
fora da ANP, sem contar a tentativa em curso de esvaziar a influncia de Hams na Cisjordnia que
une os interesses do exrcito israelense aos de Fatah. De junho 2006 a fevereiro 2010, cerca de
1.000 militantes do Movimento de Resistncia Islmica foram presos pelas foras de segurana
palestinas ou nas incurses do exrcito israelense, sendo que outros 1.200 integrantes perderam seus
cargos na estrutura administrativa da ANP. No mesmo perodo, cerca de 150 instituies (entre
orfanatos, escolas, cooperativas, grupos de assistncia social s famlias dos presos, etc.) que
integravam uma suposta rede beneficente de Hams na Cisjordnia foram fechadas e tiveram seus
bens confiscados.
Pensada como pea fundamental para garantir o controle de Fatah na regio, esta poltica
acabou aumentando a popularidade de Hams na Cisjordnia a ponto de elevar os temores de uma
derrota esmagadora do grupo majoritrio da ANP em futuras eleies. Visto inicialmente como a
voz mais influente contra a ocupao israelense, o Movimento de Resistncia Islmica tem sua
popularidade reduzida na Faixa de Gaza, por ele administrada. Longe de ser fruto do sofrimento
provocado pelo bloqueio israelense, esta situao deita razes nas denncias de corrupo de alguns
funcionrios do governo e na percepo da juventude local para a qual a moderao poltica de
Hams demonstrada nas tentativas de articular um governo de unidade nacional diminui as
possibilidades de luta contra Israel.
Resta saber at a que ponto o descontentamento que borbulha nos territrios palestinos tem
chances reais de ganhar organicidade e consistncia a ponto de sustentar uma terceira Intifada ou, o
que parece mais provvel, vai produzir apenas enfrentamentos pontuais que, como espasmos de dor,
marcam a reao aos processos com os quais Israel fecha as portas construo de um Estado
palestino independente.
- Se as coisas esto assim, ento, a Autoridade Nacional Palestina est com os dias contados!,
conclui o secretrio sem pestanejar.
- Eu no teria tanta certeza rebate a coruja ao balanar a cabea. De um lado, j faz tempo que h
um descolamento entre o governo da ANP e as bases da resistncia que deram origem s Intifadas.
A coisa to escancarada que, alm dos absurdos j descritos nas relaes com Tel Aviv, Abbas se
ope ferrenhamente incluso de Marwan Barghouti, lder de Fatah preso em Israel, na lista dos
prisioneiros a serem trocados pela soltura do soldado Gilad Shalit que continua nas mos da
resistncia. Respeitado e com livre trnsito em todas as correntes que mantm bases organizadas,
sua presena e atuao dentro ou fora dos Territrios Ocupados poderia causar uma reviravolta
poltica a partir dos setores descontentes de Fatah que, apesar de minoritrios e enfraquecidos, no
desistem da resistncia contra a ocupao israelense.
Por outro lado, a Tel Aviv no interessa que a ANP feche as portas neste momento, mas sim
que ajude a legitimar politicamente o progressivo esvaziamento das demandas histricas palestinas.
Trocado em midos, trata-se de permitir a ampliao em pequena escala do que j vem ocorrendo
em algumas cidades. Estamos falando, da implantao de um pequeno parque industrial, com o
dinheiro dos pases doadores, na regio de Belm e da construo de alguns centros comerciais em
cidades prximas ao Muro, como forma de gerar emprego e renda que em nada obstaculizam os
propsitos da poltica de Israel, ao contrrio, a integram como a cenoura oferecida ao burro aps as
violentas bordoadas s quais foi, e ameaa ser, submetido.
O pouco que est sendo implementado faz pairar no horizonte a possibilidade de dar vida ao
que alguns chamam pomposamente de poltica de desenvolvimento de regies palestinas da
Cisjordnia capaz de melhorar a qualidade de vida dos seus moradores. A gravidade da situao
geral transformaria migalhas de bem-estar em base para avanos econmicos e para cooptar as
novas geraes. Aos poucos, a populao local se veria diante de um divisor de guas bastante
163
incmodo: abandonar a resistncia e participar de uma relativa melhora nas prprias condies de
vida, ou radicaliz-la e ter o inferno de Gaza como termo de comparao do que pode acontecer.
Graas a esses passos, que contam com o apoio da Liga rabe, do Quarteto e do prprio
Netanyahu, a ANP aposta em conseguir reduzir as presses internas e se manter de p tanto quanto
basta para assegurar nveis confortveis de esvaziamento da resistncia e de manuteno da ordem,
sempre sob estrita superviso do exrcito israelense.
Sem abrir mo da coero, Israel deve cozinhar a Cisjordnia a fogo lento na tentativa inicial
de legitimar o avano de seus planos para a Palestina histrica em reas onde, no momento, no h
como justificar uma ao de fora nos moldes aplicados na Faixa de Gaza e nem elevar a sufocante
presena militar a ponto de ter que dirigir ao exrcito parte sensvel dos preciosos investimentos que
sua economia precisa. Sendo assim, no lugar de jogar a ANP na fervura de uma agresso
politicamente insustentvel, trata-se de utiliz-la para continuar minando as bases ideolgicas e
materiais da resistncia na Cisjordnia.
Ao deixar que se oferea uma sombra de bem-estar em troca da submisso a uma ordem
interna cujo tutor oficial continua sendo o governo da Autoridade Nacional Palestina, Israel no
deixaria de pressionar os palestinos locais com sua ocupao militar, apenas levaria um interlocutor
sem poder a ajud-lo na dura tarefa de transformar o sonho do Estado palestino, do retorno dos
refugiados e de Jerusalm Leste como capital em coisas do passado.
Com estas medidas, a elite judaica no deixa de construir o Grande Israel, apenas procura
criar mais condies pelas quais uma nova reao da resistncia possa ser lida como recusa
injustificada de acatar uma soluo vivel e, de consequncia, seja usada para legitimar operaes
militares sem que a prpria resistncia saia do banco dos rus.
- Mas isso diablico!.
- No, querido humano de culos. Trata-se apenas de uma realidade atroz que precisa ser
acompanhada e enfrentada a fim de desmascarar seus propsitos e vislumbrar as contradies que
traz em seu seio. O futuro que nasce deste presente no traz boas notcias aos refugiados palestinos
e nem s famlias que, durante dcadas, alimentaram a fileiras da resistncia.
Destes setores ningum pode esperar o simples esquecimento de sua tradio de luta ou a
aceitao passiva da realidade que se prepara, mas sim a busca de um novo e sofrido caminho pelo
qual seja possvel fazer renascer o desejo de justia e liberdade apesar das traies que marcam os
passos do presente.
Pronunciadas as ltimas palavras, Ndia deixa a mesa forrada de papis e alcana a janela de
onde mergulha na escurido da noite.
Instantes depois, um raio une cu e terra provocando um trovo que faz tremer as paredes da
casa. O silncio da cidade violentado por um barulho ensurdecedor capaz de abalar o sono mais
pesado.
Talvez seja apenas um sinal de que o pior ainda est por vir. Talvez o anncio de que as
contradies alimentadas nas sombras precisam ser trazidas luz. Mas talvez seja apenas um
convite a sacudir o mundo do torpor e da omisso que, dia aps dia, anestesiam o sentimento de
indignao dos povos diante das injustias que marcam o cotidiano da histria.
Brasil, 31 de maro de 2010.
Bibliografia:
Alm do acompanhamento dirio das agncias de notcias internacionais, foram consultados
os estudos que seguem:
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Intifada / Rebelin 04/10/2009, traduo encaminhada atravs de lista eletrnica;
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3. AKEL, Suhail Hani Daher. Boda de sangre impuesta al pueblo palestino, em Rebelin
14/02/2009;
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26/12/2008, traduo encaminhada atravs de lista eletrnica;
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traduo encaminhada atravs de lista eletrnica;
11. ________________ . Construindo a contra palestina, em The Palestinian Information
Center / Rebelin 09/04/2008, traduo encaminhada atravs de lista eletrnica;
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13. ________________ . El outro circo electoral, em Al Ahram Weekly / Rebelin 05/11/2008;
14. ________________ . Estrangular Gaza at a morte enquanto finge ser a vtima, em Rebelin
26/12/2008, traduo encaminhada atravs de lista eletrnica;
15. ________________ . Fatah enfrenta sua mais profunda crise, em The Palestinian
Information Center / Rebelin 28/05/2009, traduo encaminhada atravs de lista eletrnica;
16. ________________ . Fatah ignora los problemas reales, limitndose a hacer proclamas
huecas, em Uruknet.info / Rebelin 12/08/2009;
17. ________________ . Hams no reconocer a Israel a cambio de castillos en el aire, em
Rebelin 06/02/2006;
18. ________________ . Israel acelera el ritmo de la limpieza tnica en Jerusaln, em The People
Voice / Rebelin 29/06/2007;
19. ________________ . Loucos pelo cargo, em Al Ahram Weekly / Rebelin 02/11/2009,
traduo encaminhada atravs de lista eletrnica;
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Rebelin 08/10/2009, traduo encaminhada atravs de lista eletrnica;
21. ________________ . Mexendo fundo, em Desert Peace / Rebelin 26/04/2008, traduo
encaminhada atravs de lista eletrnica;
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Obs.: Todos os materiais extrados do site Rebelin, constam da pgina de internet:
http://www.rebelion.org/seccion.php?id=17 focada na Questo Palestina. A data que segue cada
citao a da divulgao por este meio.
A lista eletrnica de tradues por mim produzidas e qual se faz referncia encontra-se no site:
http://groupsgoogle.com.br/group/chiapas-palestina/. Os textos citados esto sob o ttulo Vida na
Palestina.