O documento resume um manuscrito inédito de Mário Ferreira dos Santos sobre o Brasil. O texto analisa o panorama do mundo e do Brasil na década de 1960, quando o país atravessava um momento difícil. O autor argumenta que, apesar do progresso científico-técnico, os problemas fundamentais da humanidade permanecem, como a busca pela paz verdadeira e segurança.
O documento resume um manuscrito inédito de Mário Ferreira dos Santos sobre o Brasil. O texto analisa o panorama do mundo e do Brasil na década de 1960, quando o país atravessava um momento difícil. O autor argumenta que, apesar do progresso científico-técnico, os problemas fundamentais da humanidade permanecem, como a busca pela paz verdadeira e segurança.
O documento resume um manuscrito inédito de Mário Ferreira dos Santos sobre o Brasil. O texto analisa o panorama do mundo e do Brasil na década de 1960, quando o país atravessava um momento difícil. O autor argumenta que, apesar do progresso científico-técnico, os problemas fundamentais da humanidade permanecem, como a busca pela paz verdadeira e segurança.
O documento resume um manuscrito inédito de Mário Ferreira dos Santos sobre o Brasil. O texto analisa o panorama do mundo e do Brasil na década de 1960, quando o país atravessava um momento difícil. O autor argumenta que, apesar do progresso científico-técnico, os problemas fundamentais da humanidade permanecem, como a busca pela paz verdadeira e segurança.
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BRASIL UM PAS SEM ESPERANA?
Mrio Ferreira dos Santos
So Paulo, SP Brasil Homenagem Pstuma "Brasil Um Pas sem Esperana? um manuscrito que nos deixou Mrio Ferreira dos Santos, falecido em 11 de abril de 1968, aos 61 anos de idade. Publicamos este manuscrito indito como homenagem ao conhecido Filsofo brasileiro, autor de mais de 70 obras filosficas. Contendo alguns aspectos fenomenolgicos do ho- mem brasileiro, a presente pesquisa fica inserida na I Dimenso do Tema geral da semana Filosfica, como uma valiosa contribuio para a nossa reflexo construtiva. O manuscrito foi elaborado nos anos de 1964/65, quando decla- rava o Pensador: ". . . idias pouco construtivas invadem o ambiente cultural brasileiro e " . . . atravessamos um dos momentos mais difceis de nossa histria" . P o r conseguinte, o trabalho deve ser interpretado, colocando-se no quadro das circunstncias daquela poca. Considerando a falta de preparo intelectual e cvico de nosso povo e desejando levar, sobretudo juventude, o conhecimento de nossa realidade, o Prof. Mrio Ferreira dos Santos escreveu esta obra como parte da coleo: "UMA NOVA CONSCINCIA, cuja finalidade era abrir novos horizontes nossa conscincia, uma conscincia do Brasil. Ela seria completada com a obra: "Brasil, Pas de Exceo, em uma seqncia de estudos referentes a nossa terra, que revelaria o carter de excepcionalidade que peculiar ao Brasil. Aps uma anlise em profundidade, quis finalizar com um vasto estudo concreto da realidade brasileira. Mas, infelizmente, s uma parte do manus- crito ficou terminada. A morte surpreendeu o Pensador em seu trabalho. Entretanto, o que conseguiu no campo editorial, numa luta insana para despertar em cada brasileiro o interesse pela cultura, MRIO FERREIRA DOS SANTOS especialmente pela Filosofia,, a prova cabal de seu amor pelo saber. Justifica, pois, a homenagem pstuma que prestamos ao Pensador, que dedicou quase 40 anos atividade filosfica. Redao I PANORAMA GERAL DO MUNDO E DO BRASIL A perplexidade do homem moderno em face do panorama do seu mundo, que se apresenta para ele no s comparando-o com o passado nem com as possibilidades do futuro, mas tambm, sobretudo, quanto realidade do presente, um tema que preocupa a todas as cons- cincias no momento atual. O desenvolvimento que verificamos no decurso da Histria, desde g, Idade Mdia, atravs do Renascimento, e da Idade Moderna, cha- mada a Idade Contempornea, verificamos, sobretudo no Ocidente, que, proporo que o ser humano foi encontrando solues de car- ter tcnico e cientfico, que beneficiaram sumamente as populaes e resolveram inmeros de seus problemas, contudo as grandes e mais profundas preocupaes continuaram de p. O homem no conseguiu resolver a seu contento aqueles mesmos problemas que aguavam a sua curiosidade, que desafiavam a sua inteligncia, no referente no s ao sobrenatural como tambm quanto a sua prpria realidade. Sem dvida ns observamos uma linha ascensional impressionante, que se deve ao progresso cientfico das grandes descobertas, no s sobre o nosso planeta como sobre o universo inteiro, como tambm as tremendas expanses dentro da prpria alma humana, invadindo- -lhe os mais recnditos lugares, onde parecia ser impossvel que ns, com os meios de que dispnhamos, seriamos capazes de penetrar; mas, simultnea e paralelamente ao desenvolvimento desses conheci- mentos e dessas conquistas porque a cincia se transformou, na mo do homem ocidental, numa tcnica de domnio das coisas, do mundo e do prprio homem os problemas mais agudos, mais exi- gentes, as perguntas que lhe aguaram a curiosidade atravs dos tempos, continuaram em p, no encontrando respostas satisfatrias de modo suficiente a apaziguar o seu esprito. E, proporo em que ele foi encontrando solues para uma srie de problemas de carter tcnico-cientfico, sua inquietao per- maneceu e permanece, no referente ao que ele , ao que ele significa, qual o seu verdadeiro papel e tambm o que o ultrapassa, o que o transcende, que continua exigindo-lhe respostas, um reexame das respostas religiosas e das respostas filosficas, j que ele sente que a prpria cincia no seria meio suficiente para lhe dar a soluo desejada. BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? Tambm o aumenta de bem-estar, as conquistas materiais, que pareciam ser suficientes para dar ao homem um estado de tranqi- lidade, de segurana, aumentaram a sua prpria insegurana e amplia- ram a faixa de preocupaes; e o homem verificou que a paz, a verda- deira paz, a mais desejada, a mais profunda, no era alcanada em nenhum setor, nem no mundo econmico, nem no mundo sociolgico, nem no mundo psicolgico, nem no mundo religioso, nem no mundo mstico. Sem dvida, no h conceito de que todos usem tanto e to poucos saibam o que realmente significa como o conceito de paz. Para muitos a paz nada mais que a ausncia da luta cruenta entre os seres humanos, organizados ou no; a paz seria apenas a ausncia do choque dos contrrios, seria a ausncia das oposies, seria apenas a estagnao, o que no genuinamente o que se deve entender por paz. Ora, se se estudar devidamente este conceito, como muitos o fizeram, e o fizeram em profundidade, verifica-se que ele realmente se funda na vontade e implica uma tranqilidade na ordem, no, porm, necessariamente na aniquilao dos opostos, nem do choque das antinomias, nem do plemos das oposies. A paz implica, necessariamente, a concrdia; implica a unio, ou, pelo menos, a cooperao dos opostos, para alguma realizao, para a consecuo de algo que no venha em prejuzo da natureza dos opostos; ou em suma, para atingir resultados que sejam convenientes natureza dos oponentes. Se a paz entre os homens no pode evitar a ntida compreenso da justia, tambm a paz dentro do homem no pode evitar a mesma compreenso. No nos adianta permanecer dentro de uma paz mera- mente aparente, uma paz dos tmulos. O que ns desejamos, e real- mente o desejamos, e o que realmente devemos desejar, a paz que se estabelece na feliz cooperao dos opostos, de modo a que os resultados obtidos sejam convenientes, benficos aos termos que entram nessa oposio, e que possam, deste modo, no s ampliar os benefcios prprios, como estabelecer, tambm, bases mais seguras para a sucesso dos acontecimentos; no s dos oponentes, como do que venha a decorrer no desenvolvimento do tempo. Mas uma paz mais verdadeira e mais desejada que aquela que apenas nos tranqi- liza dentro do campo das coisas de que necessitamos, que cria uma tranqilidade na ordem de consecuo desses mesmos bens, mas, sobretudo, aquela paz que tranqiliza a nossa mente, que d sereni- dade ao homem, interiormente, aquela paz que sobrevm quando o ser humano consegue compreender a si mesmo, saber qual o seu papel, ter uma noo clara do seu destino e ter confiana de que o MRIO FERREIRA DOS SANTOS que realiza, o que prope, o que empreende no venham trazei amanh, resultados adversos, perniciosos. A verdadeira paz aquela que se funda, no s nos coraes, no s na afetividade humana mas, sobretudo, na mente superior do homem, nas suas idias, nas suas concepes, na sua maneira de interpretar as coisas. Realmente esta foi sempre a aspirao do homem; ele aspirou paz em toda a gama de suas possibilidades, e alcanar um desfecho que fosse a plenitude da tranqilidade de sua alma, de seu esprito, de sua mente; aquela paz prometida na bem-aventurana de todas as grandes religies dos ciclos culturais superiores, aquela paz que consiste, propriamente, no termo final anelado por todos os homens que se dedicaram ao estudo das nossas vises transcendentais. O que fundamental no ser humano , sem dvida, o sentir-se um ser inseguro e tambm o que mais fundamental do seu anelo a segurana. A insecuritas, tema to profundamente analisado pelos msticos da Idade Mdia, o index mais perfeito do que somos em nossa ltima realidade. Porque somos deficientes, contingentes, sujei- tos aos azares dos acontecimentos, dispondo de meios defensivos mini- mos, e ainda agravados pela nossa ignorncia que faz com que nos sintamos inseguros, no s quanto ao nosso presente, mas, sobretudo, quanto ao futuro; este estado de insegurana nos acompanha desde que nascemos e certamente desde que fomos gestados. Mas depois que passamos por aquele estgio de certo amparo e de certa segurana de nossa vida intra-uterina, o prprio trauma do nosso nascimento a nossa sbita penetrao no mundo que nos parece hostil, inspito, contrrio, deve-nos marcar profundamente este sentir da nossa inse- gurana e, desde ento, no mais nos abandona, est presente em todas as nossas aspiraes, est presente em todas as nossas realiza- es, porque tudo o que o homem fez, tudo quanto o homem cons- truiu, tudo quanto imaginou tem sempre o estigma, da sua insegurana, a exigir-lhe solues que possam diminuir e at terminar esse estado em que ele se encontra de verdadeira trepidao, de verdadeiro medo ante o seu estado atual e sobretudo ante o seu futuro. O homem , assim, tambm filho da insegurana. No pode nem deve desprez-la, porque no s uma exigncia invariante da sua natureza, como tambm ela constantemente o interroga e o aula para que encontre a soluo de um instante que perdure, que ultrapasse o presente, que invada o futuro, e que lhe assegure aquele estado de equilbrio, de concrdia, e de reconciliao que o homem deseja. No se poderia compreender essa ansiedade pela paz que anima todos, em todos os tempos, se ns no fssemos, por natureza, seres inseguros, seres dominados pela insegurana, e tambm seres que, ao perserutar o futuro, nem sempre dispem de meios suficientes para BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? poder saber o que devemos fazer para evitar os perigos que nos ameaam, tanto os reais como, sobretudo, os imaginrios. A psicologia de profundidade deve, mais do que nunca, preocupar- -se com esse tema, porque se, ao mesmo tempo, o ser humano se apresenta para ns como uma entidade contraditria, j que sem dvida anelante de paz e tranqilidade, ao mesmo tempo agressivo e contendor, ao mesmo tempo contricante, parece-nos que ele se balana entre duas tendncias primordiais, fundamentais, originrias: uma que aspira paz, tranqilidade, concrdia, e, ao mesmo tempo, a que aspira luta, discrdia, ao dio, ao plemos. No foram poucos os filsofos que, ao se dedicarem a esse estudo, estar- receram-se ante a grande messe de razes favorveis paz, mas tam- bm a grande messe de razes favorveis guerra. Viram que o homem era um ser que se balanava entre motivaes opostas, umas que buscavam a concrdia, outras que aspiravam pela discrdia. Ento no souberam resolver esse problema ante essa oposio, concluindo uns que o homem por natureza um ser pacfico e outros que o homem por natureza um ser guerreiro. A verdade, porm, a mais profunda verdade psicolgica, aquela que sintetiza os opos- tos, que participa dos opostos, que partirn partim. o homem, simultaneamente, um ser aspirante de paz, e um ser aspirante de guerra, um ser que aspira concrdia e tambm discrdia, um ser que ama e um ser que odeia. E essas oposies no podem ser liquidadas; todas as tentativas de destruir uma em benefcio da outra malograram, porque quiseram violentar o que era da condio do prprio homem. Em face dessa realidade, s nos cabe procurar a soluo coope- radora entre os opostos, aquela que possa encaminhar-nos de modo que eles sejam convenientes prpria natureza do homem, no s considerado na sua estaticidade, mas tambm na sua dinamicidade, na sua cinematicidade; no s como indivduo, mas tambm como componente de uma totalidade, de um grupo, de uma srie, de um sistema e do universo cultural. Essas oposies colocam o homem aparentemente numa situao insolvel e parecem indicar que jamais encontrar uma forma de fazer coincidir os opostos numa realizao cooperacional. um postulado que exige uma demonstrao apod- tica, uma demonstrao fundada em princpios sobre os quais no possa pairar a menor dvida. E isto, esta demonstrao, nenhum dos partidrios dessa posio at hoje conseguiu fazer dentro das exign- cias rgidas,; de uma demonstrao profundamente lgica e dialtica. Muitos podero dizer, contudo, que tambm a prova dessa coope- rao entre os opostos no foi feita. Mas essa cooperao entre os opostos no exige tal prova, porque tem se evidenciado pela prpria experincia humana. Temos encontrado na vida social humana a MRIO FERREIRA DOS SANTOS oposio entre os contricantes, o plemos, contribuindo para realizar obras proveitosas. Contudo, ns no podemos deixar de reconhecer que a poca em que nos encontramos se caracteriza por esse aspecto; o homem de hoje, como o homem de sempre, de todas as eras, aspira pela paz e, no entanto, tambm tudo faz para fomentar a guerra, a luta, a discrdia. E ao verificar esse estado de coisas, e no sabendo como dar uma soluo s suas condies, a essa inevitabilidade dos opostos ele entra em estado de desesperana, ou seja, no espera, no aguarda, no se detm antes de tudo com a certeza de que lhe dar de modo seguro aquele estado de paz por ele desejado. Esse o verdadeiro panorama que encontramos no mundo atual; e a heterogeneidade, que ele revela, apenas de carter inconsciente. Em alguns povos notamos que o mpeto guerreiro ou pacfico mais acentuado que em outros mas, extensivamente, se h um impulso de discrdia, de dio, de guerra, h uma profunda aspirao da paz, que vem relatado, testemunhado, desde que temos conscincia de ns mesmos dentro da histria, por todos os movimentos de aspirao por um mundo melhor, em que os homens possam olhar face a face, olhos sobre os olhos, os braos estendidos de uns para os outros num amplexo fraternal, e que possam dizer com o corao e com as palavras: irmos, somos amigos, trabalhemos juntos, construamos juntos um mundo melhor para todos ns. Essas palavras incluem dentro delas uma longa problemtica, que vamos comear agora a analisar nos prximos captulos, para depois, de posse desses elementos tomados analiticamente, aproveit-los para fazer um estudo concreto da nossa realidade, da realidade brasileira, e podermos dar uma resposta a essa pergunta: Brasil, um pas sem esperana? II A INSEGURANA Tema realmente sugestivo e impressionante sem dvida este da insegurana humana. Fazendo parte de toda a nossa vida, como uma dimenso de ns mesmos; somos inseguros por natureza, pelo trauma de nosso nascimento e pela nossa situao ante o mundo, para o qual no o ser humano provido de suficientes instintos que o possam auxiliar com a garantia de que atinja os fins, no s os colimados pela espcie, mas tambm aqueles que so benficos ao indivduo. A perplexidade um sinal do prprio espanto que a vida nos provoca. Desde os nossos primeiros sinais, os primeiros vestgios de nossa conscincia, ns nos sentimos inseguros ante o mundo, que BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? provoca em ns as mais tremendas interrogaes, sem que saibamos dar as respostas devidas de que precisamos. Nenhum ser exige tanto e to prolongado amparo como ns. Levar uma vida humana avante exige cuidados, exige cura, porque a nossa vida insegura; a insecuri- tas, que nos envolve, est sempre a exigir o mximo de securits para que possamos sobreviver e preparar-nos para uma adaptao ao mundo e aprender a adapt-lo aos nossos interesses; por isso o homem precisa receber uma educao, educado, conduzido para a frente, para diante. Ele tem de receber ensinamentos dos mais expe- rientes e daqueles que o amparem, que normalmente so seus pais; tem de ser amparado em todos os seus movimentos e tambm para atender s suas mais mnimas necessidades. Entregue a si mesilo e natureza, ele no resistiria; e no resistiria, no somente no mo- mento em que nasce, como ainda por um prolongado tempo, at que adquira a tcnica e os meios sistemticos e com eles possa conseguir os bens de que necessita e anseia possuir. No h necesidade de procurarmos na histria humana os Vest- gios dessa insegurana porque ela to patente que se revela a cada passo e em cada uma de nossas obras; nada h que traga a marca do homem, que precisamente a presena da sua vontade e do seu entendimento, que no esteja contaminado, tambm, pela presena da insegurana. O.prprio desenvolvimento humano, a sua capacidade de modificaes tcnicas, as suas conquistas, o domnio que ele ter- mina por exercer sobre as coisas, tudo isso seria impossvel se n} fosse um ser inseguro, anelante de segurana. Se quisesse assistir fidelidade dos instintos: e disponibilidade de foras suficientes para enfrentar o meio ambiente, o homem estacionaria como estacionam os animais. A sua insegurana, por sua vez, obriga-o a desenvolver a sua inteligncia, a saber aplic-la cada vez mais para conquistar o domnio das coisas, a construir instrumentos por meio dos quais ele exercer a sua fora como causa eficiente, a fim de produzir, de conduzir para a frente, tudo quanto ele necessita para o seu bem. Ms longe de ns querermos afirmar que a nossa inteligncia mero efeito da nossa insegurana. Esta, por si s, no poderia ser a causa da nossa inteligncia, mas sim uma motivadora das nossas aes, uma estimuladora do nosso proceder, um aguilho que cons- tantemente nos agua para que cuidemos de ns mesmos, para que a cura se processe, pra que fujamos da insecuritas e para que alcan- cemos o mximo grau de segurana possvel. Sem esta segurana, sem este anseio de segurana, que uma conseqncia tambm das nossas deficincias porque no poderia algum ser inteligente almejar alguma coisa que j possusse esta insegurana a motivadora das nossas grandes aspiraes. No desejaramos nunca aumentar nosso poder, aumentar a soma de meios MRIO FERREIRA DOS SANTOS tcnicos de domnio do mundo se no nos aguasse constantemente esse estado de insegurana que constitui tambm parte da sua prpria condio humana. O ser humano toma conscincia de uma insegu- rana biolgica, fisiolgica; preocupa-lhe a sade do corpo, a presena das foras, o anseio de aument-las, para com elas poder realizar tudo quanto exigente para a sua manuteno e seu bem-estar. ele preocupado com sua insegurana psicolgica, com os estados emocionais heterogneos que o colocam, constantemente, em estados de oposio interna, de angstias, de contradies, que parecem venc-lo, projetando-se ainda na vida social, na vida familiar, na vida coletiva, na vida econmica, na vida do direito, na vida tica, e at na vida religiosa, onde esta insegurana est sempre presente. No quer ele apenas sentir-se amparado nesta existncia, porque, sendo inteligente, perscruta alm dos limites da vida meramente material e penetra por terrenos desconhecidos; tendo ele conscincia do seu desejo de mais e, conseqentemente, do seu desejo de per- feio, aspira finalmente a alcanar os estgios mais altos. E o homem, precisamente por isso, porque um ser capaz de colocar idealmente os termos finais da perfeio absoluta, pode transformar essa perfeio absoluta na medida qualitativa de tudo quanto faz e de todas as coisas que o cercam. Por ele poder avaliar, apreciar valores, pode julgar da maior ou menor convenincia de alguma coisa, no s por uma estimativa simples, que tambm o animal possui, mas por uma estimativa intelectual, por uma comparao daquilo que ele constri atravs dos seus conceitos e das suas abstraes, com os graus mximos perfec- tivos que correspondem infinitude da prpria perfeio. Assim o homem pode sentir se h mais justia ou menos justia, se h mais sabedoria ou menos sabedoria, se h mais dignidade ou menos dignidade, porque ele est apto a meditar, a pensar e a cons- truir o conceito de uma justia absoluta e perfeita, o conceito de uma sabedoria que abranja todas as possibilidades cognoscitivas; e como ele capaz de construir perfeies supremas, pelo menos na sua mente, sem que discutamos se h uma validez fora da mente humana, que na verdade h, ele pode ento comparar os atos justos da sua vida, as manifestaes da sua sabedoria, os testemunhos do seu poder; e ento pode estabelecer uma gradatividade, porque em tudo quanto alcana, em tudo quanto realiza, sente e sabe que pode e poderia ser melhor, ser maior, ser mais completo. essa capacidade de comparar tudo quanto constitui a sua experincia com as perfeies absolutas das quais ele no tem a posse atual, das quais ele apenas vislumbra a sua grandeza e a sua glria, das quais ele tem apenas uma posse virtual, o que chamamos de BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? tmese parablica (do grego timos, valor de apreciao, e parbola, comparao), esta comparao de valores, esta capacidade de comparar o que ele tem da sua experincia com a perfeio mxima, que ele no possui atualmente, mas que vislumbra virtualmente, permite ao homem poder realizar um julgamento de si mesmo, daquilo que faz, daquilo que empreende, e tambm de poder projetar uma promessa para si mesmo, um compromisso para si mesmo, de elevar-se cada vez mais. Se no fosse assim, no seria o homem um ser apto a realizar uma progresso; isto , avanar os graus (pro) para a frente (pro- gredir, de progresso do verbo latino gredior), de subir os degraus, porque, ento, se satisfaria com o que , sem mais aspiraes, sem mais desejos, seno aqueles mpetos naturais da sua animalidade. E a, precisamente, que o homem se distingue dos animais, porque estes apenas so animais, realizam apenas o que lhes impelem os impulsos naturais da sua constituio biolgica, fisiolgica e psquica. Mas o homem tambm impelido por uma orxis, por um apetite, por um apetecer para alguma coisa que est alm da sua prpria experincia, de alguma coisa que se coloca acima da sua atualidade, de alguma coisa que espera poder construir, que aguarda poder obter. esta a razo, a profunda razo porque a esperana est sempre com o homem, sua eterna companheira, sua eterna estimuladora. E eis tambm por que o tema da insegurana exige que se estude o da esperana. Porque o homem, dada a sua insegurana, e dada a sua tmese parablica, dada a sua capacidade de apreciar o que tem, com as perfeies que ainda no possui atualmente, seno virtualmente, pode esperar pelo ainda mo, pelo que ainda no , mas pelo que pode vir a ser. Ele pode aguardar pelo devir daquilo que no tem, mas que, se tivesse, melhoraria, exaltaria a sua prpria vida. Ele pode, assim, volver os olhos para o amanh, para o possvel do amanh, para um futuro realizvel, no qual possa vencer a inse- gurana, para atingir um estado de segurana plena, de plena cons- cincia, de certeza at, em que sua mente no mais trepide ante a possibilidade de crer, em que ela se manifestasse num assentimento firme e seguro de que est certa, absolutamente certa, sem possibi- lidade de errar. Eis por que onde h esperana h sempre uma f, porque a f este assentimento firme em o que ainda no se v, ainda no se toca, ainda no objeto dos nossos sentidos, mas cuja presena, cuja realidade aceitamos como verdadeira, sem que o nosso esprito trepide na dvida de ser falsa a nossa adeso. Assim, para com- preender-se a esperana, tem que se compreender a insegurana humana, pois o ser que atingisse a plenitude da segurana, a que MARIO FERREIRA DOS SANTOS no abalasse mais nenhum estado de insegurana, este nada mais poderia esperar, no seria animado pela esperana, nem tampouco pela f, porque j teria a posse atual da verdade, estaria plenamente satisfeito em si mesmo. A esperana, portanto, s pode caber quele que ainda no tem; a esperana o aina no, de certo modo o ainda no. Tema fabuloso que foi examinado por grandes filsofos de todos os tempos; se desejssemos fazer uma sntese, por pequena que fosse, das longas especulaes em torno dessa matria, teramos de nos derramar por pginas e pginas, o que no julgamos necessrio ante a finalidade dessa obra. E explicamos porque: o que nos interessa compreender bem a esperana humana ante a insegurana humana e a f humana; o que nos interessa dispor dos elementos suficientes para procedermos anlise de uma poca como a nossa em que vemos aumentar a insegurana, a desesperana e a ausncia de f. E como se o homem de hoje fugisse cada vez mais de si mesmo, se demitisse como homem, e muitos se demitem, buscando aproximar-se e a proceder como animais, a reagir como animais, a fazer renascer dentro de si instintos que j esto mortos, a deixarem-se arrastar pelos impulsos mais primitivos, que ainda exercem sobre ns um poder imenso, e nos transformam em verdadeiras coisas, ao sabor dos acontecimentos. Nesses momentos procuram afastar o olhar de si mesmos, da prpria personalidade humana, fugir do homem, enga- nar-se de um modo impossvel, da o tremendo ridculo que apresenta a desesperana moderna, que no consegue atingir o trgico, no sai do campo da farsa nem do grotesco, no consegue tanger a grandeza dos altos momentos estticos que o homem capaz de criar. Mas essa desesperana, esse estado de descrena, essa total falta de segurana no alguma coisa que acontece sem uma razo de ser, porque nada acontece sem uma razo de ser; h um princpio de onde tudo isso se origina, e h causas de onde tudo isso sobrevm. No nos basta que apenas registremos esses fatos, nem que os deploremos, nem tampouco que acusemos aqueles que foram avas- salados por essa queda. O que se impe para ns investigar tam- bm tudo quanto motivou o que acontece, e, quando essa anlise for feita com o necessrio critrio, verificaremos, ento, que o ser humano violentou uma srie de pontos importantes, uma srie de valores sagrados, que deveria respeitar sempre, e que no se poder violentar impunemente, porque, inevitavelmente, os prejuzos que de- correm so os mais malficos e tambm os mais terrveis. Colhe- remos o que plantarmos e se plantamos o mal h de se colher o mal. O bem s poderia surgir do mal por acidente, nunca per se, como tambm o mal no pode surgir do bem se no por acidente, e nunca BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? per se. Se a nossa sementeira tivesse sido boa, se as nossas sementes tivessem sido bem escolhidas, no poderamos hoje estar deplorando a colheita de frutos cidos que estamos fazendo. Mas, se erramos, devemos compreender que isso decorre das prprias condies do homem, da sua prpria natureza, que apta a escolher entre futuros contingentes, em fazer e poder deixar de fazer, em preferir o melhor e afastar-se do pior. Se o homem tem essa capacidade, o que comprovado pela experincia e pela sua prpria condio humana, e da raiz da sua natureza, o homem pode saber e deve saber que possui dentro de si todos os meios possveis para escolher o melhor e para realizar o melhor. Portanto, somos responsveis pelo presente, que o resultado do que escolhemos no passado; somos muito mais responsveis do que julgamos e uma covardia nossa querermos atirar essa responsabilidade ao Ser Supremo, fonte e origem de todas as coisas, como se Ele, maliciosamente, tivesse preparado para ns o estado de coisas vigente. Se uma grande voz perguntasse no Cosmos: Quem responde por tudo o que acontece e o que nos venha a acontecer de grave, de ruim e de pior? Se houvesse sinceridade, honestidade no ser humano, ele teria de responder: eu, apenas eu. III A ESPERANA Em face do exame da insecuritas do homem, paralelamente tmese parablica, conclui-se que o homem, em face do ainda no, em face do futuro, pode aguardar, esperar a realizao de algo que julga possvel. Esperar , portanto, uma atitude radicalmente huma- na, to profunda como a insegurana; uma virtude humana, porque h nela uma habitualidade do bem. E vimos que o amortecimento da esperana implica, necessariamente, uma f, um estado de assen- timento forte da nossa mente sem temor de erro, sem a menor trepidao. E o homem, este caminhante pela vida, sempre alimen- tado por uma esperana, como uma compensao para o estado de insecuritas em que vive. evidente que estamos hoje ante uma tremenda explorao em torno da amargura e do desalento, da desiluso e at da angstia, da qual tem vivido e vive o homem moderno. Sabemos como esses aspectos foram explorados pelas filosofias da existncia. Basta que volvamos os olhos para a literatura moderna, para que desde logo notemos que o desesperar uma inquietao acentuada, uma agudi- zao constante da nossa insecuritas, uma explorao em profundi- dade de tudo quanto nos coloca numa situao de dvida, de ansie- MRIO FERREIRA DOS SANTOS dade que , por sua vez, estimulada por uma publicidade que parece satanicamente dirigida. Multides penetraram na descrena e na completa falta de con- fiana, no s sobre o futuro do homem nesta terra como no futuro do homem numa vida posterior. Mas a verdade que, se passarmos os olhos atravs da histria, verificamos que o ser humano, todos vez que se deixa avassalar pela descrena, coloca-se numa situao insolvel, numa aporia constante, sempre ameaado de resvalar para um abismo que o tragar para todo o sempre. que, descrente, sem f, sente-se o homem completamente desli- gado de sua origem e desorientado quanto ao seu fim; perde a sua raiz primeira e o sentido da sua finalidade; e da desmoraliza-se ante os prprios olhos, a via que ele, como viandante, est percorrendo. Ento a angstia apodera-se de sua alma e v-se empolgado no torve- linho da prpria existncia. o desassossego que o domina. Busca todos os meios de fuga aos problemas que surgem, no sabe mais como enfrentar a realidade que o cerca, as guerras, as lutas, a irre- conciliao, a discrdia, a pobreza, as inquietaes econmicas e polticas; em suma, tudo' que pode abalar as ordens dentro das quais ele tem de viver. Em face desse espetculo, no de admirar que, cercado por circunstncias adversas, o pessimismo dele se aposse, a dor o invada at o mago, olhe seu semelhante como inimigo atual, e sinta-se finalmente, sem sentido, sem razo, sem porqu. A desesperana no se cinge a ser apenas uma tomada de conscincia pessimista das nos- sas possibilidades. Ela se agrava por uma angstia que cresce constan- temente; dela mesma surgem os frutos trgicos que ela produz. A tendncia para o nada passa a ser uma aspirao, porque a prpria existncia humana deixou de ter sentido. No apenas a conscincia da ameaa que nos cerca, no apenas a conscincia da nossa fra- queza e da nossa insegurana; que, a pouco e pouco, fortalece-se dentro de ns uma certeza: a da nossa inutilidade, a da nossa marcha para o abismo, a do nosso caminho para a morte; ento vive-se mor- rendo, morre-se morrendo, e no se v outro destino para ns seno o desfecho final, que passa a ser anelado como um trmino, como um descanso, como um basta, porque a prpria vida tornou-se impos- svel de ser vivida. Esta a trgica experincia que vivemos hoje. O ser humano constantemente arrojado e atrado por esse abismo; mobiliza-se toda a inteligncia e pouco resta da fora criadora do homem para julgar essa obra nefasta; e no de admirar que surjam filsofos que venham proclamar que, no plano metafsico, o mbito natural do ser o nada. BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? H umas palavras de Toms de Aquino que devem ser lembradas. Diz ele: No verdade que o movimento prprio de um ser que procede do nada dirija-se para o nada; a direo para o nada no um movimento prprio da natureza, a qual sempre se dirige para o bem, que o Ser. A direo para o nada apresenta-se precisamente pela falta desse movimento prprio. Diz ele em sua obra De Potentia, e diz bem, porque tudo quanto , quer afirmar-se, quer conservar-se, quer perdurar. O ser uma perdurao de si mesmo, o testemu- nho de si mesmo. Mas, perguntareis: no h um anelo para o nada? No h um desejo de estancamento, de niilitude? No h um cansao do prprio existir? No somos, seres humanos, tendentes para esse desfecho final? No. Tudo isso mentira. O que tem levado o homem a desejar o desfecho final da niilitude apenas a ansiedade de libertar-se do estado aportico, da angstia do desespero, da falta de f em que vive. O homem de hoje cansa-se tambm de no crer; cansa-se tambm de no ter esperana; cansa-se de angustiar-se. Ele no pode perdurar dentro desses estados, porque eles no lhe so naturais. O que ele na verdade deseja, o que na verdade apetece, o que na verdade quer, libertar-se desses estados impossveis, desses estados contrrios sua prpria natureza. No a sua liquidao, mas a liquidao desses estados o que ele quer na verdade; a niilitude da descrena; a niilitude da desesperana; a niilitude da angstia. Aqueles que dizem o contrrio mentem, exploram a fraqueza das mentes humanas, para dar-lhes a impresso de que esse desejo de nada um desejo de nada ser. Ao contrrio, um desejo desse destrutivo, desse nada que comprometeu a vida humana, que a angustiou, que a ensombreceu, que a tornou trgica. O homem mais uma vez volve-se para a vida; todo esse desejo, todo esse anelo, todo sse af oculta a sua verdadeira inteno; esta a verdadeira inteno do ser: afirmar-se, testemunhar-se, perdurar, fortalecer-se. Por isso que, radicalmente, ante a insegurana que somos e em que vivemos, a esperana a nossa salvao. uma exigncia da nossa vida. Dela no podemos nos afastar, dela precisamos, porque o desespero no pode ser a resposta s nossas grandes interrogaes, porque o nada, nada responde, o negativo apenas nega, e o homem quer, na verdade, afirmaes. A resposta verdadeiramente que ns pedimos essa: a que d positividade, a que testemunhe a sua prpria realidade. A nica maneira que temos de poder enfrentar o avassalamento de idias modernas, estimuladoras da angstia e do desespero, consistir, pre- cisamente, em desenvolvermos o tema da esperana como um tema antropolgico, como uma das especulaes mais importantes do MRIO FERREIRA DOS SANTOS homem; aprofundarmo-nos na sua radicalidade, verificarmos que ela fundamental para a manuteno do homem, que ela a melhor das respostas s suas verdadeiras aspiraes, que ela, enfim, a nica possibilidade de dar vigor vida presente, a anim-la para uma elevao cada vez maior. No poderemos anular a peonha da discrdia, da dvida, da descrena, da desesperana, que envenenam e fazem definhar tudo quanto h de positivo no homem, se no procurarmos na esperana este poder positivo, animador, revivificante, restaurador da sade mental do homem moderno. * * * Ns recebemos este termo esperana do latim spes, donde vem tambm o nosso esperar. Os gregos chamavam-na de elpis, desejar ou querer alguma coisa ardentemente, que do velle latino, querer, vem voluptas, voluntas, de onde volupttiosidade, volio, etc. Quem espera alguma coisa espera o ainda no, o que pode acon- tecer. Mas quem espera ardentemente por alguma coisa e a deseja, porque espera o que lhe ser um bem. No vamos nos interessar pelas discusses filosficas em torno desse tema, se no na medida e no alcance em que nos possa auxiliar para a finalidade desta obra. Todos os que a estudaram com profi- cincia encontraram nela o desejo ardente de algum bem para o qual a nossa ateno expectante se dirija, aguardando o seu suceder. Desse modo, encontra-se uma raiz da esperana nos movimentos afetivos. Ela pertence em grande parte afetividade; e dizemos em grande parte, porque tambm pode ser delineada pelo entendimento, clareada em seus termos, de forma que pode ser tambm um produto da cooperao entre a vontade e o entendimento. Mas outra caracterstica se notou: que aquilo que se aguarda, aquilo pelo qual se espera, algum bem que no fcil de obter, um bem difcil, um bem rduo, e precisamente por essa carac- terstica de ser rduo, que ele move com intensidade as nossas paixes. H na esperana, um apetite, uma orxis, um desejo para algo que um bem possvel, mas difcil de se alcanar, um bem que est no futuro, mas que se distingue de qualquer desejo comum por um aspecto especfico: que essa tenso expectante para algo determinado, e para algo que se tenha confiana de se conseguir, embora reconheamos que h maior dificuldade em obt-lo. Por isso os antigos psiclogos diziam que a esperana uma afeco, uma paixo original prpria do apetite irascvel; no uma simples BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? concupiscncia, porque acrescenta a confiana de que possvel vencer as dificuldades que possam ocorrer para a consecuo do objeto, e por isso que esse bem um bem rduo, rduo porque difcil de ser obtido. A esperana humana tem essas caractersticas; ela , sem dvida, um movimento da vontade, que tende para esse bem rduo, difcil de ser obtido, mas possvel, do qual ela tem a expectativa e a confian- a de obt-lo. E esta direo, esta orxis, dirige-se para as empresas humanas, para aquilo que podemos obter aqui na nossa vida, no decurso da nossa existncia, no s individual como das geraes; e tambm para algo que ultrapassa esta prpria vida, para algo que se coloca alm da nossa existncia. Deste modo, poderamos distin- guir dois tipos de esperana; uma esperana terrena, uma esperana para as nossas prprias realizaes, e uma esperana que ultrapassa a nossa vida, que aquela que surge na religio com o nome de esperana teologial. Porque, apesar dessa firmeza indefectvel que tem o ser humano quando espera com esperana que ir obter o bem rduo, o bem difcil, ele, contudo, sabe que nem tudo que ele deseja, que nem tudo a que ele aspira lhe ser dado' aqui, devido aos limites da sua exis- tncias, s deficincias do seu prprio ser. E ento, como ele tem um aspirar mais amplo, um aspirar que ultrapassa esses limites, e no pode admitir que este aspirar seja ruim e que ao mesmo tempo para ele a certeza de uma afirmao rigorosa e justa, aguarda que alcance depois aquela plenitude que no se pode conciliar com a sua limitao, que as suas deficincias no podem adequar-se mas que todo o seu ser afirma no ser uma impossvel, todo seu ser afirma que lhe foi prometido, pois h vozes interiores que lhe dizem que uma herana que lhe cabe. Por isso ele cr, ele confia, ele sabe que a sua esperana no ser defraudada, e que o bem anelado um dia lhe caber. Da dizer So Paulo, na sua Epstola aos Romanos, porque com esperana estamos salvos; que a esperana que se v j no espe- rana, porque algum v o que esperava, mais, se esperamos o que no vemos, com impacincia esperamos. Nos Salmos encontramos: Porque Tu, Senhor, s a minha esperana, minha confiana desde a minha juventude. E mais adiante diz ainda So Paulo: .. .Sabe- dores de que a atribulao produz a pacincia, a pacincia produz a virtude provada, a virtude provada a esperana e a esperana no ficar confundida. a esperana uma virtude teologial do cristianismo, mas tambm no podemos negar que ns a encontramos em todas as grandes religies dos grandes ciclos culturais, porque o homem no se com- MRIO FERREIRA DOS SANTOS pletaria a no ser por ela. Assim poderamos dizer, para dar uma definio a gosto nosso, de linha mattica, que a esperana a orxis de um ente racional, apta a promover uma tendncia extensiva, espectativa, consciente ou no, para um bem rduo, possvel, cuja posse ainda no atual, mas que julgamos atualizvel. Deste modo encontramos, da maneira como expomos, a esperan- a, primeiro como prpria de um ente racional, prpria de um ser inteligente, quando ela tem essas caractersticas, muito embora pos- samos falar, como mais adiante veremos, de uma esperana animal, da qual tambm tratou Toms de Aquino. Ela uma orxis, um apetite, um anelo desse ente racional, mas um anelo capaz de promover uma tendncia, promover uma srie de processos que se estendem no s numa atitude de espec- tativa mas tambm de promover aes dirigidas, as aes para um bem, para algo conveniente nossa natureza, mas um bem rduo, um bem de difcil consecuo, mas possvel; um bem que no esteja longe da nossa natureza; um bem que no esteja em contradio conosco, cuja posse, consciente ou no, no a temos, mas que julga- mos que se pode tornar atual. E dizemos consciente ou no, porque algumas vezes j temos e no sabemos que j possumos o bem anelado, que est virtualmente a nosso dispor, mas que no soubemos atualmente aproveitar todas as possibilidade que ele oferece. Por isso a posse no atual, no est realizada, e o bem se coloca para o futuro, mas para o nosso futuro. E a esperana, e importante considerar este aspecto da nossa definio, apta a promover uma tendncia, uma ao para este bem, porque uma esperana que fosse apenas passiva poderia muitas vezes defraudar-nos, enquanto que, tendo, porm, a confiana na obteno do bem, leva-nos a promover algo para consegui-lo, ns dele nos aproximamos com muito maior segurana. Assim esses impulsos que nos levam a realizar o desejado impli- cam a conscincia da indigncia por nossa parte de alguma coisa, e s estamos realmente amadurecidos para a esperana quando te- mos conscincia da nossa pobreza, do que nos falta; e s a que poderemos dirigir a nossa espera para o porvir, para a posse daquele bem desejado, a qual nos dar a satisfao do nosso desejo e o gozo que da decorre, que j uma paga ao' anelo que nos animou. Mas um dos pontos importantes da esperana est em considerar que este bem anelado, alm de rduo, possvel, porque o que vai distinguir a esperana da desesperana precisamente saber-se que o bem desejado impossvel de ser obtido. Quando surge em ns a essncia dessa impossibilidade, toda a nossa espera perde a sua BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? razo, deixa de ser segura, e ento parece intil e infundada. mister, para que ela se forme, que tenhamos confiana em obter esse bem rduo. Mas cuidado, para que essa nossa confiana no se transforme numa audcia, no se transforme tambm num otimismo vo, no se transforme num excesso que seria a presuno. A deficincia da esperana a desesperana, mas o seu excesso a presuno. E se desesperamos daquilo que nos possvel conse- guir, erramos, como tambm erramos quando presunosamente jul- gamos fcil a aquisio do bem que nos rduo. Estamos assim ameaados de dois extremos perigosos e que tm sido a causa de muitos de nossos males : desesperar ou presumir que fcil alcanar-se o que na verdade difcil. compreensvel, pois, que a esperana tambm possa ser alimentada; e ela tem muitos alimentos: um destes o saber, a prudncia, o conhecimento; porque, graas ao conhecimento, graas ao saber, graas tcnica, graas, em suma, a todas essas conquistas fundamentais do homem, podemos ampliar as possibilidades da nossa prpria esperana, porque pode- mos tomar mais possvel e conseqentemente menos rduo o bem desejado. Eis por que a esperana no se pode desligar de tudo quanto mais constitui a concreo do homem e est exigindo no s o amor, no s o afeto, no s a orxis, mas uma maior afetividade, um maior conhecimento, uma incitao da nossa tenso, um esforo, uma diligncia, um emprego de meios sistematizados para que tor- nemos possvel, e mais rpida, a consecuo do bem desejado. Temos de prosseguir a estudar estes pontos e, sobretudo, saber se dispomos desses meios, se com eles podemos contar, se podemos mobiliz-los para o nosso bem, e assim tornar fcil ampliar cada vez mais a resposta mais segura, mais certa, pergunta que fizemos: Brasil, um pas sem esperana? IV A ESPERANA HUMANA A presena da esperana no homem , ademais, a maior prova da sua racionalidade e uma das suas profundas diferenas para com os animais; no que no se possa falar tambm numa certa esperana animal, porque, como dizia Toms de Aquino, a observao dos ani- mais nos mostrava que eles se movem no s para os objetos presen- tes, mas tambm para os ausentes e futuros. Bastaria considerar o instinto admirvel das abelhas e de outros insetos, que armazenam provises para enfrentar o inverno, e dizia ele: Se o co v a lebre ou o falco v a ave muito distante, no se movem em direo MRIO FERREIRA DOS SANTOS sua presa e no esperam consegui-la; mas se a presa est perto, movem-se como sob a esperana de consegui-la. Mas o que falta nesta esperana o conhecimento prprio e formal do futuro pondo o objeto como possvel; a previso, o pressentir antecipado dado aos animais de maneira instintiva e impressa na sua estimao na- tural. Podem os animais, sem dvida, ordenar seus movimentos presentes para o futuro, dirigidos, positivamente, pelos seus instintos naturais, com aquilo que receberam da natureza. Mas a vontade do homem oferece distines muito grandes: que ele estabelece no s<5 uma mera estimao natural, mas como que uma estimao de carter racional. Ele compara valores, faz comparaes que ultra- passam as informaes que seus mpetos naturais lhe podem dar; h exigncias outras de comparaes que o animal no pode ter, h escolha de meios, de instrumentos, inclusive para preparar o caminho, para alcanar a atualidade do bem esperado, em cuja escolha h uma perfeita atuao, um perfeito processo racional que o animal no tem, porque toda a motivao animal puramente instintiva e no homem motivao de carter intelectual. Queremos com isso salientar que tambm a esperana tem um fundamento real em toda a vida biolgica e a tem porque a insecuritas no uma situao exclusiva do homem; a insecuritas prpria de todo ser finito, de todo ser deficiente, de todo ser que no atinge a completude absoluta de ser, como todo ser natural, todo ser que nasce, todo ser que tem um incio, todo ser que exige uma causa eficiente, outra que ele, para que ele seja; todo ser que no tem em si prprio a sua razo de ser e que no principia em si mesmo. E todo ser nestas condies revela uma situao de vacilao ante a existn- cia e busca conseqentemente colocar-se de modo a poder afirmar-se em si mesmo, a perdurar em si mesmo, conservar em si mesmo; da terem chegado alguns autores a dizer, que existe uma esperana cs- mica. Toda a natureza csmica uma grande esperana na sua pr- pria afirmao. Sim, analogicamente esperana humana, podera- mos admitir essa semelhana; mas a nossa esperana, aquela da qual teremos de tratar, distingue-se desta, porque a nossa no s se refere s coisas que podemos obter nesta vida, como tambm aos bens que so prometidos numa outra vida. Ento, medianamente entre essa esperana animal e csmica, po- der-se-ia colocar uma esperana biolgica. H, na vida, um apetite natural para afirmar-se. Todo ser vivo, racional ou no, tem uma tendncia nativa para seguir sendo o que , para realizar-se na plenitude de si mesmo, se no se desabrocha nele a conscincia dessa situao, como acontece na vida vegetal e animal. Contudo, no se BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? pode negar que h o que chamamos na linguagem popular de gana de viver, uma apetncia para seguir vivendo, para afirmar-se no futuro, uma tendncia para realizar o ainda no, um desejo de atua- lizao constante da sua prpria especificidade e da sua singulari- dade, um dirigir-se constante para o bem futuro, possvel, embora rduo. esta a razo por que possui a esperana razes muito mais profundas; em face da insecuritas humana, que no homem se torna conscincia, a esperana ressalta com mais vida, com mais fora e' tambm se torna conscincia; e esta a razo porque se apresenta dentro de uma estrutura ontolgica completamente nova, a forma do esperar humano; apresenta a atividade criadora completamente nova, porque tende toda aquela ao humana que for genuinamente criadora a fazer com que o ainda no se realize. Esta chamada esperana natural, que surge da nossa natureza, por todas essas razes de que falamos, no foi bem compreendida pelos escolsticos, porque estes, dirigidos apenas para a esperana teologal, nem sem- pre se preocuparam, como devera ser, com esse esperar ativo, que confia em suas prprias foras e nos recursos de que dispomos nessa expectao passiva e s vezes incerta, e que outras vezes otimista ativa, e confundiram-na com a despreocupao, com a confiana v, com a confiana mal fundada, com a falsa esperana, que o mero presumir de que possamos obter esses bens rduos e possveis, sem exigir de ns qualquer esforo, esperana de que ns, brasileiros, dela terrivelmente padecemos, e que ter de ser mais adiante um tema especialmente tratado. No se pode identificar a esperana apenas com o amor e o desejo; no somente amar, desejar, apetecer, ter orxis para algum bem futuro, ainda no possudo para que se manifeste a esperana; ela exige mais, ela exige esta promoo ativa, este tender extensista, e no meramente expectativo, para a obteno desse bem. No podemos esper-lo como alguma coisa que nos ser dada, mas como algo que conquistaremos. Temos de ter confiana em nossas foras e em nosso poder para alcan-lo e tambm nos meios que empre- garemos para obt-lo, mas cuidado sempre com a presuno, que precisamente um excesso da esperana, o excesso de orxis, o excesso do apetite, que julga que basta apenas apetecer, apenas desejar, para que alguma coisa acontea segundo este prprio desejo, este prprio apetecer. A verdadeira esperana, conseqentemente, exige esta promoo, exige esta projeo para o futuro, exige um projeto,: exige que. se esboce o que fazer. Deste modo, a verdadeira esperana determinasse a uma ao, e conseqentemente a uma prxis, e passa a atuar dentro do campo da prxis humana. MRIO FERREIRA DOS SANTOS Ela pode ser tambm uma esperana universal quando se espera por todo o bem, por todos os bens particulares, e quando a aspirao no se dirija apenas ao bem supremo, como prprio da esperana teologal, mas incluindo todos os outros ao alcance das nossas mos nos diversos lanos do caminho da nossa vida. Por isso que se percebe que da dinmica da esperana ter, como trmino final, a felicidade, e esta seria ento o apaziguamento da prpria rexis; no a apathia dos esticos, que a liqidao do nosso apetite, passando ns a sermos apenas entregues a nada aspirar, julgando j ter tudo que era possvel de ser aspirado. O trmino, que seria esta felicidade de plenitude, ns sabemos, e ningum ingnuo para acreditar o contrrio, no poderemos conseguir nesta vida, mas podemos, sim, alcanar bens particulares em nmero cada vez maior, sem que isto seja necessariamente um instrumento para destruir em ns a aspirao suprema, que carac- terstica da esperana teologal. Meditando bem sobre tudo isso, poderiam os homens religiosos no ter mais aquele temor que tiveram contra essa esperana humana, temor que levou alguns adversrios das idias religiosas a afirmar: alcance-se o bem-estar humano e adeus igrejas e religies, como se fosse verdadeiramente real que apenas anima o homem o desejo da obteno dos bens particulares, como se no houvesse, dentro de ns, um mpeto mais longnquo, um desejo de eternidade, um desejo de infinitude. Muitos homens religiosos temeram pela humanidade; mas, esta- riam totalmente errados? De certo modo sim e de certo modo no. De certo modo sim, porque, realmente, em muitos homens, a espe- rana teologal est abafada, est dominada pela aspirao dos bens particulares e prximos, e esta tem sido a razo por que quando eles os obtm, sentem-se de tal modo satisfeitos como completados no seu querer e no seu desejo, que no ouvem mais a voz de uma aspi- rao superior. Mas se no ouvem mais a voz porque seus ouvidos ensurdeceram, e no que esta voz se tenha para todo o sempre apagado' dentro deles; e a prova que em pouco tempo a prpria posse desses bens satisfazendo suas aspiraes anteriores no lhes mais suficiente para lhes dar a tranqilidade desejada. Outra vez a angstia deles se apossa, outra vez estreita-se a sua alma, outra vez encontram-se no desfiladeiro da amargura e a dis- crdia surge outra vez entre eles e a vida. Deles se apossa o tdio e o cansao e se no se pem a ouvir esta voz para a qual ensurde- ceram os seus ouvidos, deles se apoderar o desepero e com o desespero a sua liqidao. Podem procurar, depois, em todos os derivativos que inventaram, a sada para esta situao, mas sero BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? portas falsas que no daro acesso via de libertao mas vida de novas escravides, que tornaro o homem cada vez mais mise- rvel, cada vez mais infeliz. E esta realidade, que palpitante, que cotidianamente verificvel, que multiplicada nos exemplos que a vida nos oferece, deveria ser acentuada com maior intensidade por estes homens religiosos, temerosos dos bens materiais, para que mostrassem aos olhos de todos que esses caminhos so falsos e no levam aos fins desejados, mas sim a desvios da via real, que faz com que o homem se extravie e se perca no desespero e no inferno de uma vida sem finalidade e sem encontrar uma esperana de libertao. No queremos confundir as duas esperanas. Mal procederamos se assim o fizssemos; a esperana genuinamente crist no versa totalmente, seno muito parcialmente, sobre os bens deste mundo, mas tambm versa sobre eles, como veremos mais adiante. Mas este um objeto muito secundrio, porque o principal da esperana crist precisamente Deus, a bem-aventurana eterna, que objeto primrio da esperana crist que assim foi definida por So Toms, por Pedro Lombardo, e que encontramos, tambm, em So Paulo; esta bem-aventurana equivale vida eterna, proposta na revelao pelas escrituras. O reino de Deus apresentado nas escrituras como um objeto da nova esperana. Os cristos dos primeiros sculos esperavam comumente a manifestao gloriosa do reino de Deus, a vinda de Cristo, o juzo final e a bem-aventurana para os justos e a condenao dos pecadores. No se julgue, contudo, que dentro do pensamento cristo se tenha tomado uma atitude de desinteresse por este mundo, que no haja tambm uma esperana que se dirija s coisas deste mundo; So Toms claro em fazer esta anlise, o que vem provar, contra a opinio de muitos, que apenas julgam que s h um objeto da esperana, que a vida eterna. Este o objeto principal no sentido teologal, cristo, mas ao esperar tambm aqui, tambm das nossas coisas, ao esperar das coisas que nos so pr- ximas, a esperana dirigindo-se a bens futuros, rduos e possveis de possuir, mas bens nossos, prximos, desta vida, como ela vai exigir uma promoo, e se esta perfeitamente adequada para alcanar estes bens e ativa, ela se torna uma verdadeira virtude, porque veremos que ela viciosa quando cai ou no desespero ou na mera presuno. No vamos tratar nesta obra da esperana teologal; ela cabe aos livros que tratam de temas religiosos. Vamos tratar da esperan- a humana, dentro deste mundo, dentro das condies e do homem, e queremos saber se ns podemos possu-la, se ns podemos respon- der dizendo que sim, que h uma esperana para ns, isto , que podemos dar uma resposta positiva e oferecer um caminho quela pergunta que fizemos desde o incio: Brasil, um pas sem esperana? MRIO FERREIRA DOS SANTOS V DO DESESPERO E DA PRESUNO Ao tratarmos da esperana, mostramos que ela conhece dois caminhos viciosos: um por defeito, o outro por excesso. Por defeito temos o desespero; por excesso, a presuno. Desesperar um movimento inverso da orxls; contrrio ao da esperana; ambos referem-se a um mesmo objeto ou tema, mas em sentido inverso; se a esperana ativa e confiada na aspirao ao bem rduo mas possvel, a deseperana (ou o desespero) a repulsa a este bem, o fugir dele porque se considera que a sua consecuo impossvel. Desespera-se, ento, de consegui-lo; h uma retrao do homem, pois o objeto desejado aparece-lhe inacessvel. Eis por- que o desespero apresentado sempre na filosofia como uma priva- o da esperana. Mas mais, um retrocesso, uma repulsa at, porque ao mpeto da orxls, que aspira ao bem, corresponde o mpeto de fuga, de afastamento, ao julgarmos que o bem rduo no poss- vel de ser atingido. Ento o futuro se marca como uma impossibi- lidade, o rduo provoca uma intensidade emotiva de desespero, que , sem dvida, a repulsa a toda a esperana. Mas h muitos modos e formas de surgir a desesperana, tantas quantas as formas de surgir a esperana. A desesperana pode surgir porque no fomos capazes de bem analisar o que desejvamos, de modo a parecer impossvel a sua consecuo. Outras vezes ela surge tambm de um cansao, de uma deficincia da vontade em promover as aes necessrias para vencer o bem rduo. H, sem dvida, uma diferena gradativa entre deses- pero e desesperana. Pode-se estabelecer uma diferena na sua inten- sidade. Se o desespero uma desesperana, h nele a marca de uma tristeza, de uma mgoa, de uma insatisfao profunda, enquanto que a desesperana s vezes pode se apresentar mais leve, mais suave, mais conformada. Ns nos conformamos muitas vezes com a desesperana, mas nunca com o desespero, e eis a razo por que, se erramos em nossos clculos e recuamos por fraqueza da nossa vontade, a culpa desse desespero e dessa desesperana nos cabe. Somos ns que seguimos uma tendncia viciosa, somos ns que no tivemos o cuidado suficiente de analisar os fatos para saber at onde poderamos ir, quando no estamos viciados pela pusilanimidade e, muitas vezes, pela covardia. E muitos caem no abatimento, refugam da realizao de obras grandes e difceis porque so pusilnimes, por- que so covardes. . . . H desespero, porque ns o queremos; se bem o examinarmos, no podemos nos considerar desesperados porque no pudemos atin- gir, nesta vida, aquilo que no lhe proporcionado, porque isto seria, BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? pedir mais do que possvel pedir, seria como a rvore que se entregasse ao abatimento porque no tem olhos para ver, ou o pssaro que no tem aletas para nadar, ou o homem que no tem asas para voar. So faltas que no nos so devidas, so faltas de algo que no nos cabe nossa natureza, e um desespero, fundado nestas faltas, um desespero irracional, sem base, sem a justa apreciao. O que se precisa saber se realmente a desesperana constitutiva da existncia humana, do mesmo modo que constitutiva a espe- rana. Sim, se se pensasse que todas as iluses propostas pelos homens, que todos os sonhos que foram construdos, que todas as impossibilidades que foram imaginadas, deveramos t-las por direito, ento poderamos dizer que sim, que a desesperana seria constitu- tiva da existncia humana. Mas no foi dado ao homem a intelign- cia e com ela ele no superou as suas foras? Sem asas, ele no voa melhor e mais longe e mais alto que os pssaros? Sem aletas, no penetra ele nos mares e no os domina? No pode o homem cons- truir instrumentos que prolongam os seus meios de domnio sobre as coisas do mundo? No foi tudo isso dado ao homem graas ao emprego da sua inteligncia? Ento, o que no lhe deu a natureza tem-lhe dado o saber. O homem tem aumentado, multiplicado o seu poder, graas sua inteligncia e tambm, sobretudo, graas sua esperana, porque foi confiando nestas possibilidades e usando dos seus meios cognoscitivos e dos meios de domnio que ele foi alcanando, a pouco e pouco, os degraus mais altos da evoluo e do progresso tcnico-cientfico. Aqueles poetas romnticos que exploraram as nossas deficincias porque a natureza no nos deu certos poderes e, com isso, agravaram uma paixo, um estado emotivo do homem, esqueceram de mostrar quanto de grande a sua inteligncia lhes permitiu fazer e como superou tudo quanto a natureza lhe poderia dar. Por isto temos de olhar com muito cuidado os propagandistas do desespero, aqueles que constantemente exploram as nossas defi- cincias para acusar a nossa vida de um mal que vencvel e no de um mal que fundamentalmente prprio dela, do qual ela nunca se poderia libertar. H uma desesperana teolgica, que um prembulo, sem dvida, de todos os vcios, e da descrena, e da falta de caridade, e das grandes derrotas humanas. Esta surge da desesperao negativa, daquela falta de f, daquela descrena e do atesmo que provocam verdadeiras catstrofes no ser humano: descrena na tica e que produz, afinal, angstias, abatimentos, torturas, desiluses e, final- mente, um desejo incontido de niilitude, de extermnio, de aniqui- lao. Toda essa desesperana, provocadora de distrbios psquicos, termina por mostrar que todas as nossas empresas so difceis, que MRIO FERREIRA DOS SANTOS tudo surge em cores negras como vitrias impossveis, e ento a tristeza e o pessimismo, que sempre nos rondam, se aproximam dos desesperados, terminam por domin-los completamente, e o homem decai, e o homem perde a confiana em si mesmo, e o homem de- mite-se da sua prpria humanidade. H remdios contra essa desesperana. So muitos. As religies oferecem inmeros, mas tambm na vida prtica o homem encontra muitos outros. H necessidade de conhecer as nossas foras e as nossas possibilidades para que no abriguemos dentro de ns a esperana mal fundada. Ns, se olharmos ao nosso pas nesse mo- mento que ora vivemos, sabemos que a desesperana cresce, cresce assustadoramente, avassaladoramente, embrenha-se em todos os se- tores da vida nacional e parece como querer estabelecer um estgio definitivo, em que nos demitimos completamente do nosso papel histrico e nos consideramos, de uma vez por todas, uma nao sem esperana. Seriam estes que responderiam nossa pergunta: Brasil, um pas sem esperana? Diriam eles: sim, um pas sem esperana, e sem recuperao. Sem dvida que isso no uma impossibilidade; tambm pode- mos, como outros povos, cair numa desesperana sem fim e sem remdio, podemos repetir a histria, porque a histria tambm se repete. Mas o que resta saber de ns se queremos repetir essa parte da histria, ou se queremos repetir outra, a daqueles que vencem as suas derrotas, daqueles que superam as suas fraquezas, daqueles que se afirmam e vo buscar, na sua esperana positiva- mente bem fundada, o esteio e a fora para realizar alguma coisa de maior. Temos de tomar conscincia do momento que passamos. Somos responsveis pelo que vier a acontecer de melhor ou de pior. Vai depender exclusivamente da nossa escolha, da nossa ao, das promoes que fizermos; ou ficaremos numa expectativa passiva, dei- xando que a decadncia nos avassale, ou enfrentaremos o desafio da histria para nos impormos, como j nos impusemos algumas vezes, no decurso de nossa vida. Volveremos a tratar desse ponto, mas antes precisamos prosse- guir no estudo do desespero e da presuno. A presuno outro erro contrrio esperana. o segundo erro. uma grave enfermidade da nossa alma e muitas vezes esta- belece um desfecho fatal. Contrape-se esperana por excesso, por excessiva imoderao do prprio esperar. Presuno significa, eti- mologicamente, tomar excessivamente alguma coisa; e ela consiste, psicologicamente, no ato intelectual de pensar arrogantemente sobre a prpria excelncia, em julgarmos que o que possvel atingir no um bem rduo mas um bem fcil, um bem para o qual nos basta apenas uma expectativa passiva, porque adviria para ns como uma BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? decorrncia fatal. A presuno verdadeiramente destrutiva, porque a verdadeira esperana exige a promoo de atos para alcanar esses bens rduos e possveis, enquanto que a presuno que uma intem- perana no esperar, uma imoderao do prprio esperar, que nada faz, que nada realiza para atingir o bem, aguardando que ele nos sobrevenha, sem que de ns seja mister o uso de qualquer esforo. um erro imperdovel, porque leva desdia, no perseverao nos trabalhos e nas realizaes, leva a uma expectativa falsa, a uma aceitao sem fundamento e, conseqentemente, a presuno pode terminar por ser geradora de grandes desesperanas porque, no se alcanando o bem desejado, tende-se a atribuir a culpa no a ns, que nada fizemos para alcan-la, mas a uma entidade abstrata, como o destino, a fortuna, a sorte, o fato, ou at a acusar o prprio Deus por no termos obtido aquele bem para o qual nada fizemos para alcanar. E, se sofremos da presuno, ns, brasileiros, uma resposta ter- rvel daramos nossa pergunta: Brasil, um pas sem esperana? o que vamos analisar, onde passaremos a estudar o que h de posi- tivo em ns e o que h de negativo, porque s desse estudo nos ser possvel dar uma resposta devida a esta pergunta to exigente e to importante em nossos dias. VI O POSITIVO E O NEGATIVO EM NS Ao estudar as duas formas defeituosas, ou melhor, as duas formas viciosas, que se colocam frente esperana, vimos que uma delas se processa por defeito, que a desesperana, e a outra se processa por excesso, que a presuno. Na presuno, vislumbra-se, sem dvida, uma certa intemperana no esperar; tendo a esperana como objeto um bem rduo e possvel, o homem pode alcan-lo de duas maneiras: ou por suas prprias foras, ou, ento, por virtude de outro, ou at pela interveno divina. Em qualquer dos dois casos, pode dar-se um excesso de presuno, por confiar demasiadamente na prpria virtude e nos meios de adquirir esse bem, quando, na verdade, ele excede a capacidade pr- pria, e estende-se, assim, sujeito ao malogro, por julgar-se alcanvel o que se coloca alm das possibilidades, como h tambm presuno por intemperana no esperar um poder extra-terreno que, apenas movido pela misericrdia, d o bem desejado, sem que, na verdade, se tenham mritos, nem nada feito para consegui-lo. Ns, brasileiros, padecemos sobretudo dessas duas presunes: da primeira em menor escala, mas da segunda em grande escala. Da primeira, porque ainda poderamos estud-la de um outro modo, como aquele que julga fcil atingir a determinados bens rduos e MARIO FERREIRA DOS SANTOS possveis, mas nada faz para merec-los; e da segunda por permanecer nessa expectativa passiva, demasiadamente otimista mas v, por fal- tarem os meios postos em ao, as providncias, as promoes para obt-lo, e aguardar que tudo, em nossa vida, se possa solucionar pela interveno do poder de Deus. Na expresso popular, perdovel pela sua ingenuidade, mas expressiva na nossa imprevidncia: Deus brasileiro, julga-se que j nos cabe de direito, desde todo o sempre, que as coisas sucedam no pas de modo a acobertar as nossas falhas, os nossos erros, os nossos desmazelos, e que o resultado final no seja a conseqncia normal das promoes por ns feitas, ou da desdia nossa, mas que seja um bem gratuito, dado pela divindade na sua misericrdia e na sua magnanimidade, apenas em considerao por sermos brasileiros. E isso nos tem custado caro atravs dos tempos; no que pre- guemos a desesperana, mas o que no podemos defender a expec- tativa passiva, a desdia, a covardia para enfrentar as conseqen- cias dos erros cometidos, querer convencermo-nos de que basta apenas desejar uma coisa para possu-la, e esquecemo-nos sempre de que tudo isso exige o emprego de meios e promoes, sem os quais no possvel atingir aquele final por ns anelado. Ns, brasileiros, temos sido um povo imprevidente, um povo que no tem sabido organizar seu futuro; pior, que o tem desbara- tado no seu presente, que tem consumido com antecedncia os frutos do amanh, que o tem comprometido pelos erros. Diro: mas isso apenas fruto da nossa ignorncia, somos um povo de ignorantes, um povo que apresenta um dos mais altos ndices de analfabetismo. Mas esquecemos de outro aspecto importantssimo: provimos de raas imprevidentes, o ndio era imprevidente, tambm o era o negro, e no primava pela previdncia o prprio portugus. Era natural e normal que decorresse da uma tendncia imprevidncia e s pre- sunes viciosas, pecados do nosso povo. Temos tido, atravs dos tempos, elites que em alguns instantes puderam equiparar-se s mais elevadas elites do mundo. Mas no devemos esquecer que nunca fomos em toda a histria governados pelo povo, nunca o povo brasileiro participou realmente da adminis- trao pblica. Ela sempre esteve nas mos das elites polticas, econmicas e intelectuais. Se h uma imprevidncia do povo, tam- bm h uma imprevidncia dessas elites, e elas poderiam ter tido uma melhor concepo da vida, porque tinham meios de conhecer e aprender com a histria dos outros povos. Apenas uma parte da elite preocupou-se com o nosso destino. Outra parte preocupou-se apenas com os seus interesses e s preveniram o seu futuro e o estabeleceram com firmeza. Cuidaram do que lhes cabia apenas no mbito pessoal e familiar ou do seu grupo, e esqueceram-se do BRASIL UM PAIS SEM ESPERANA? mbito coletivo. Esses homens, aproveitando-se da pobreza do nosso povo, pobreza intelectual sobretudo, guindaram-se aos altos postos, para contriburem em desbaratar as grandes riquezas nacionais. Note-se que toda essa imprevidncia nacional no produto de uma escolha livremente realizada; a imprevidncia nacional , sobre- tudo, um motivo, e decorre da riqueza da nossa terra, das grandes possibilidades que ela nos oferece, dos meios relativamente fceis para a sobrevivncia. O homem que vive nas zonas frgidas do hemisfrio norte tem de ser previdente por uma necessidade de sobre- vivncia, porque as condies ambientais, circunstanciais, so-lhe to adversas que, se no tomar as providncias necessrias para enfren- t-las, no poderia perdurar. Mas o Brasil rico, a nossa terra dadivosa, nossos rios so piscosos, nossas matas ofereciam a caa fcil, as nossas rvores frutferas surgiam por todos os campos, nosso clima era benigno, no estvamos ameaados de catstrofes prprias das outras regies do mundo; tudo para ns tornava a vida fcil. A imprevidncia era uma decorrncia normal de tudo isto, porque no havia mister preparar-se para longos inversos, para um inverno cujo controle escapava aos meios humanos. O nosso homem, com poucos meios tcnicos, podia obter o alimento necessrio para a sua manu- teno, j que a conservao da sua vida no exigia tantos bens quantos exigem aqueles que moram nas zonas nrdicas e frias. E no sabiam disso os nossos intelectuais, e no sabia disso a nossa elite? E no tinha a nossa elite de despertar no povo uma conscincia sobre o amanh? No houve por acaso no Brasil homens de valor que ergueram sua voz e chamaram a ateno para esses aspectos? Por que esses homens falaram sozinhos, onde estava o coro para acompanh-los, onde estavam os companheiros para segui-los? A nossa histria rica de homens de valor, que se podem colocar no s paralelamente aos maiores homens do mundo como at supe- r-los. Mas parte da nossa intelectualidade, educada em livros estran- geiros, e apenas valorizando autores estrangeiros, nada fez para despertar em nosso povo a conscincia da sua verdadeira situao em face do mundo e do momento histrico em que vivia, e ento o colocou no estado em que estamos, numa situao histrica para a qual no estamos devidamente preparados, e por isso hoje estamos sofrendo, no Brasil, de uma dissoluo de idias, de uma confuso que sobretudo emanada ainda de certos intelectuais nossos que no conseguem formar uma conscincia brasileira. E tudo isso contribui para que continuemos pecando, e pecando por ignorncia, e perseverando nos mesmos pecados, nos mesmos erros, presos mesma presuno, crentes de que possvel surgir inesperadamente a soluo, e como ela no surge, a nossa presuno est perdendo a sua fora, e est ameaando passar para a deficincia MRIO FERREIRA DOS SANTOS e atirar o nosso povo a cair na desesperana. Ento iremos passar de um pecado para outro, iremos passar de um erro para outro. Pusemos demasiada esperana em homens que no estavam altura dos acontecimentos, cujo malogro foi uma decepo tremenda para as multides; pusemos demasiada esperana em solues que eram apenas teoricamente, e aparentemente, bem fundadas, mas que no correspondiam nossa realidade e por isso, na prtica, transforma- ram-se em malogros espantosos. Estamos nesta situao; estamos perdendo a presuno, sem dvida, mas no estamos encontrando a verdadeira esperana. Esta- mos, sim, ameaados de ser avassalados pela desesperana; portanto, os dois extremos no nos servem, nem a presuno nem o desespero, mas somente a esperana genuna, a esperana vlida, a esperana bem fundada, a esperana justa, a esperana que virtude e no pecado. VII ANALISE DOS ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS Uma anlise dialtica concreta do que consiste propriamente o povo brasileiro exige obra especial. No entanto, para o tema que esta obra aborda, basta consideremos alguns aspectos suficientes para nos assegurar dados que nos permitam dar uma resposta pergunta formulada. Considerando o povo brasileiro pelos seus fatores emergentes, pela sua emergncia, temos de consider-lo na sua tectnica, que se divide em duas estruturas: a estrutura hiltica, ou estrutura material do povo brasileiro, e a estrutura eidtica, a formal. A primeira corres- ponde mais matria, no sentido amplo que lhe dava Aristteles, e a segunda corresponde mais forma, no mesmo sentido daquele filsofo. Ora, hileticamente, isto, , na sua parte material, teramos de considerar o povo brasileiro dentro dos seus aspectos etnolgicos e examinar a constituio do nosso povo, que heterogneo. Temos um grande contingente de sangue ndio do mais variado, o qual, tambm, por vez, revelava uma heterogeneidade na parte eidtica, isto , nas suas formas culturais; um grande contingente de sangue negro e um grande contingente, hoje o maior, de sangue branco. Podemos dizer que etnicamente o povo brasileiro revela uma grande heterogeneidade e conserva aderncias de formas culturais prprias desses grupos tnicos que o formaram e que constituem uma verda- deira matria para sofrer novas informaes de carter sociolgico, de carter histrico, de carter jurdico, etc. Eideticamente, nos seus aspectos formais, temos uma unidade inegavelmente dada ao brasileiro pelo portugus, uma forma unitria de certo modo homo- gnea, porque todo o Brasil Brasil, ou como se diz popularmente: BRASIL UM PAIS SEM ESPERANA? tudo Brasil. E tudo Brasil mesmo; e uma grande verdade esta, porque encontramos, de norte a sul, de leste a oeste, uma certa homogeneidade eidtica ou formal, embora encontremos varincias etnolgicas muito profundas. O portugus conseguiu dar a este pas uma unidade que venceu e ultrapassou todas as peripcias e todos os perigos que a nossa histria registra. Temos de partir do seguinte: se etnologicamente temos um aspec- to negativo, devido heterogeneidade, e ainda presena de aderncias culturais heterogneas de vrios grupos culturais heterogneos, con- tudo temos uma unidade eidtica extraordinria, que devemos sobre- tudo grandeza da obra portuguesa, que aqueles que a estudam mais profundamente podero compreender. Como no nos cabe propriamente nesta obra fazer este estudo, registramos os seus resultados; mas se nos for possvel faremos no futuro um estudo em profundidade desses aspectos, justificando esta nossa tese em relao aos fatores emergentes, ou chamadas causas intrnsecas, como o eram estudadas pelos filsofos medievalistas, e que no tem pro- priamente diferenas essenciais ante o que dissemos. Quanto aos fatores extrnsecos, que so constitudos pelo ambien- te circunstancial e pelo ambiente histrico, pela causa eficiente, pela causa final, que tambm constituem extrinsecamente um ser, vamos deixar de estudar a causa eficiente, porque no somos um povo autctone. Quanto causa final, isto , para onde tendemos, o que desejamos, o que queremos, quais as nossas finalidades, tema a ser estudado oportunamente. Mas o que nos interessa fundamental- mente so esses fatores predisponentes, ou essas causas extrnsecas, que so constitudas pelo ambiente circunstancial e pelo histrico-social. Ora, se ns observamos bem o ambiente circunstancial, temos de incluir o geogrfico, o meteorolgico, o ecolgico, etc., tudo quanto se refere ao topos, ao lugar, ao ubi onde se d o Brasil. Estudando esse aspecto, verificamos que ele oferece aspectos positivos e tam- bm negativos: por exemplo, positivos no referente a certas facili- dades para o desenvolvimento da vida humana, para a sua manuten- o, para a sua perpetuao, porque o Brasil praticamente um territrio aproveitvel de norte a sul, de este a oeste, uma terra cheia de riquezas, uma terra que oferece meios extraordinrios para o desenvolvimento de um povo, mas tambm uma terra que, pelas suas condies, torna a vida fcil, torna a vida no to sujeits aos perigos, s intempries e s oposies, que outras regies do mundo nos mostram, o que no permite a formao de um esprito de imprevidncia, que fundamental para o desenvolvimento de um povo. Sabemos muito bem que os nossos ndios no eram suficien- temente previdentes, nem o foram os nossos negros, nem tampouco os portugueses que, embora tendo um grau de previdncia maior, no 1IARIO FERREIRA DOS SANTOS tinham o suficiente para assegurar ao povo uma ndole outra que ? que tem. Tambm se considerarmos os fatores do ambiente circuns- tancial, verificamos que essa previdncia no poderia ser estimulada, no poderia ser to motivada quanto o devera ser; da certas deficin- cias, certos aspectos negativos que revelamos. Quanto ao histrico-social, que seria a constituio do elemento tnico no seu aspecto social e sociolgico, temos de compreender o seguinte: primeiro, recebemos na formao cultural e histrica do Brasil um contingente de povos que estavam em graus muito prim- rios de cultura. Os nossos ndios representavam graus de decadncia de culturas superiores pr-colombianas; os negros, que vieram ao Brasil, na sua maioria vieram das regies mais recuadas em cultura e tcnica da frica. O elemento portugus, que veio para o Brasil, no representava, do ponto de vista tcnico e cultural, o mais alto que Portugal possua; a maioria dos que vieram para o Brasil foram agricultores, marinheiros, na sua maior parte analfabetos, ignorantes, homens que tinham uma determinada capacidade, um determinado conhecimento, dentro de um setor muito restringido. Tivemos realmente algumas grandes cabeas de Portugal que aju- daram muito na formao do Brasil colonial, que apresentou nveis extraordinariamente elevados de cultura, trazidas por elementos por- tugueses e alguns estrangeiros, mas no o suficiente para elevar a nossa grande massa que cada vez crescia, mas crescia em primiti- vismo, crescia em primarismo, de modo que a proporo de prima- rismo no diminuiu, e at em certos aspectos aumentou, porque o nmero que compunha as camadas superiores no cresceu nuir grau como devera, para que o pas se tomasse, com o decorrer do tempo, um pas culto, ou, pelo menos, em que a populao tivesse uir grau de tcnica e de conhecimento e de prudncia mais elevado para fazer uma compensao s deficincias que provinham de outras origens, e como naturalmente a presena das aderncias culturais inferiores tinham de atuar no nosso histrico-social, o homem que surgiu, as novas geraes, encontraram um ambiente circunstancial que no era muito propcio para o seu desenvolvimento. Tnhamos normalmente de permanecer como um pas primitivo e, enquanto a Europa progredia a passos largos, no podamos seguir o mesmo ritmo, pelo menos na sua generalidade, porque a grande massa, a parte hiltica da nossa populao, no estava altura desse desen- volvimento, apesar de termos tidos elites no Brasil comparveis s elites europias. Fazendo agora uma espcie de combinao de todos esses fatores, vamos encontrar uma sria de aspectos negativos no nosso povo que so provenientes destas condies; uma misria praticamente original, porque esta parte tnica brasileira, que constituiu a sua estrutura BRASIL UM PAIS SEM ESPERANA? hiltica, no era possuidora da tcnica nem de meios econmicos suficientes para um desenvolvimento posterior; e o Brasil um pas pobre, porque o nosso ndio no tinha capitais, no sentido econmico, nem o nosso negro, nem o portugus, que veio para o Brasil, nem posteriormente o estrangeiro, que veio como emigrante. De maneira que o Brasil sempre se desenvolveu como um pas carente de capitais, razo porque a sua economia tinha de sofrer certas restries, certas deficincias, que outros povos no sofrem, porque esses povos, pos- suindo capitais acumulados atravs de geraes, podiam, aplicando-o economia nova que surgia, atingir graus que ns no tnhamos possibilidade, porque no possuamos reservas de capital para tanto, nem reservas tcnicas, nem reservas administrativas; conseqente- mente, a pobreza, e at vamos dizer mesmo a misria brasileira, tinha que ser acentuada e no podia deixar de ser; era uma das nos- sas condies. Por outro lado, tnhamos outras dificuldades graves, que perturbaram a adoo de mtodos tcnicos europeus: uma certa indisciplina por parte dos nossos ndios e dos seus descendentes, por- que sabemos que os nossos ndios no tm o sentido do trabalho, da organizao disciplinada na economia; o ndio nunca poderia conceber uma ordenao de trabalho dentro de horrios prefixados; gosta de fazer apenas o que lhe agrada; o negro, por sua vez, tremendamente sacrificado, sujeito s grandes exploraes, experimentadas j na prpria frica, s considerou a liberdade no sentido da iseno de vnculos, apenas nesse aspecto genrico. Nunca sentiu a liberdade num sentido superior, como a capacidade de escolher entre futuros contingentes. Ele queria apenas libertar-se dessas algemas; mas quando se liberta dessas algemas, no capaz de criar uma disci- plina para si, ele no se organiza. Ele vai ter uma vida desorientada, desordenada e, em regra geral, cai no s como homem produtivo, como tambm na prpria organizao social. Dessa maneira o negro permanece na nossa cultura um tanto marginalizado, por razes sobretudo tnicas; e no ingressou ainda na cultura que temos, que uma cultura europia, de forma que ele no tem essa facilidade de se tornar um trabalhador, seno sob ameaa, porque, inegavelmente, do esprito negro, como tivemos oportunidade de mostrar em nosso livro A Invaso Vertical dos Brbaros, que o negro no tem uma concepo do trabalho em sentido livre, libertrio, de libertao do homem, mas sempre o trabalho como uma pena, como um castigo, como a determinao de um poder superior, que o ordena a trabalhar para produzir para outro, de maneira que o trabalho sempre olhado por ele como alguma coisa que o sinal de sua escravido, de sus limitao, de sua falta de liberdade. Esses dois elementos no se disciplinaram e os descendentes continuaram herdando esse esprito; de forma que, com esses ele- MRIO FERREIRA DOS SANTOS mentos hilticos, constitudos das raas negras, das raas ndias, que formavam o Brasil, ns no conseguimos estabelecer tipos de homens disciplinados para o trabalho. Tnhamos por outro lado o portugus que, com seu esprito de trabalho, ajudou a dar uma certa disciplina, sempre naturalmente inferiorizada, nunca alcanando aqueles nveis de coordenao e de estruturao desejada. Esses elementos representavam e representam ainda aspectos negativos, dentro da nossa vida social. Mas ningum pode negar que, apesar de tudo isso, com esse elemento, o portugus conseguiu realizar na Amrica obras grandiosas; quer dizer que esse elemento era disciplinvel, apesar de todas as suas deficincias. Mas o que mais notvel, e eis aqui o aspecto positivo, e que mereceria um estudo todo especial, a capacidade criadora, de autonomia, a capacidade inventiva para resolver problemas, que possui nossa gente, em que, com menor esforo, atinja os mesmos resultados. um dos aspectos positivos, extraordinrios do nosso povo, que tem de ser considerado. E nessa capacidade criadora o povo brasileiro precisa ser estimulado a criar, pois tem uma capacidade de impro- visao e de criao estupenda, que nenhum outro povo tem; e mister deixar que a iniciativa, no s particular como de grupo, se processe livremente, porque ela d solues espantosas. Como conseqncia do que havamos estudado, vendo a forma- o tnica do nosso povo, encontramos uma tendncia indisciplina, que muito normal em nossa terra e gerada por esse esprito que vem do ndio e do negro, que no tem capacidade de disciplinao prxima, seno remota. A disciplina tem de ser imposta e no livremente escolhida, no surge espontaneamente. Eis um aspecto negativo, que, contudo, no um defeito invencvel e pode ser corri- gido. Outro aspecto para ns tremendamente benfico, mas, tambm, tremendamente malfico, tem sido o que natural nas Amricas: o enriquecimento fcil. Na Europa, algum para chegar fortuna e riqueza, em geral, tem de acumular atravs de geraes e de muito esforo; na Amrica as fortunas se faziam da noite para o dia. Tal possibilidade era um estmulo para atrair aventureiros de toda parte, ansiosos desta fortuna; era natural que, n formao tnica dos povos americanos, a presena do homem de tipo aventureiro, do homem que vinha fazer a Amrica, tinha de ser muito grande. E esse homem, quando malogravam os seus sonhos e os seus ideais, sentia-se um frustrado, um postergado, um trado, e conseqentemente um elemento pernicioso, perturbador, revoltado contra tudo. Esse ele- mento, em vez de esforar-se em constituir um fator progressivo, tornava-se em geral um elemento que contribua mais para a disso- BRASIL UM PAS SEM ESPERANA? luo, inclusive para a propagao de idias europias dissolventes, que vinham perturbar e aumentar mais os nossos defeitos. Ora, se considerarmos tambm essas condies que possumos, de compreender que a nossa poltica, desde o momento em que se fundamentasse, nas suas razes, em bases populares, tinha de decair dos padres elevados que apresentou, por exemplo, no fim do Se- gundo Imprio, e at no incio da Repblica, porque o nosso povo, dada a sua pobreza, a sua misria, no s fsica como intelectual e tambm econmica, tinha de ser a presa fcil dos demagogos, e estes encontravam terreno frtil para semearem as suas idias e at as suas promessas feitas sem a menor considerao e sem a maior possibilidade prxima de execuo. Foram cometidos erros econ- micos, muitos deles copiados de pases estrangeiros, de condies totalmente diversas das nossas, que em vez de estimularem o desen- volvimento do pas cortaram de um modo violento o prprio pro- gresso da nao. Considerando todos esses aspectos positivos e negativos, temos de prosseguir ainda mais, comparando uns com os outros, para poder- mos compreender que o estado em que se sente psiquicamente o nosso povo hoje o de insegurana, que vai gestando uma desespe- rana, que vai marchar para o desespero, de conseqncias malficas que decorrem de todo o povo desesperado. VIII RESPOSTA PERGUNTA Agora realmente j estamos aptos a oferecer uma resposta pergunta Brasil, um pas sem esperana? E nossa resposta tem de ter uma prvia explicao. Em primeiro lugar, desde que o tema fundamental desta obra se cingiu esperana humana, a esperana do homem quanto conquista dos bens rduos e difceis desta vida, teremos de dizer que o Brasil um pas que pode ser realmente um pas de futuro melhor. um pas que ainda pode despontar na histria, como uma grande nao. Tivemos trs ou quatro grandes oportunidades histricas, que deixamos se perdessem por imprevidncia e incapacidade nossa. Nesta obra queremos citar o exemplo de Mau (*). Nada de mais grave, ponto crucial para ns, o momento mais importante da nossa histria, porque Mau foi o divisor de guas, foi o instante em que se abriram as portas do nosso destino. Se segussemos a linha recomendada por ele, se o tivssemos compreendido, se tivssemos * Mau (Baro e Visconde de) Irineo Evangelista de Souza (1813-1889). MARIO FERREIRA DOS SANTOS seguido as suas lies, hoje seriamos a maior nao do mundo. No entanto, perdemos aquela oportunidade; outras vieram; se ho sou- bemos aproveit-las, isso no impede que no se possa abrigar, em face dos aspectos positivos de que dispomos e dos negativos, que so vencveis aps as anlises que fizemos, que no se possa abrigar, repetimos, uma esperana bem fundada, uma esperana que no uma mera expectativa passiva, uma esperana que deve providenciar todas as promoes necessrias para que alcancemos uma situao melhor. H necessidade de que o povo brasileiro tome conscincia mais nti- da dos problemas nacionais, e no h outro caminho seno que ele se organize, para que tenha necessidade de estudar esses problemas e discuti-los, porque ser nessas discusses, nessas assemblias popu- lares, onde se debatero esses temas, que ele a pouco e pouco ir conhecendo os problemas e tambm haver possibilidade de se reve- larem os valores genunos do pas. A nossa concluso, em suma, a seguinte: podemos abrigar dentro de ns uma esperana com fundamentos reais e com exign- cias de promoes de carter ativo. O que no podemos admitir nem desejar para este povo a continuidade daquela confiana que era apenas uma expectativa passiva, que admitia a possibilidade de que as coisas acontecessem de modo benfico, sem nada providenciar para que assim sucedesse; esta esperana deve ser, de uma vez por todas, descartada da nossa vida, porque ela somente nos prejudicou. Precisamos compreender que, para receber alguma coisa de bom, devemos merecer, e para merecer, devemos dar em troca muito da nossa atividade e da nossa boa vontade. No basta apenas anelar, no basta apenas desejar, no basta apenas o querer. necessrio agir, necessrio uma prxis. Temos que criar uma prxis brasileira, que corresponda s nossas necessidades, e que possa fazer a cobertura completa de todas as nossas deficincias; e isso no pode deixar de ser seno por processos completamente diferentes e aparentemente falsos. Vamos dar a seguir algumas solues para o Brasil que podem ser aplicadas, por exemplo : dar nossa democracia no mais o sentido representativo, mas sim o sentido de democracia direta e cooperacional com mandato imperativo. Muitos diro: mas isso impossvel para um povo de ignorantes. Seria impossvel para um povo de ignorantes, se quisssemos que esta democracia direta e cooperacional funcionasse imediatamente. Mas, precisamente quando o povo for chamado responsabilidade das coisas pblicas, sentir a necessidade de preocupar-se mais com o que acontece, preocupar-se mais em conhecer, preocupar-se mais em saber. Este caminho, que,
BRASIL UM PAIS SEM_ ESPERANA? pensamos, s pode ser seguido por um povo eminentemente culto, pode ser seguido por ns, e deve ser seguido, porque ser o nico campo de culturalizao do nosso povo. E o caminho que cada um compreenda que tem uma respon- sabilidade com a coisa pblica, que tem responsabilidade sobre o destino da nao; dos males que nos acontecem, somos todos res- ponsveis. Estamos certos que muitos, ao lerem estas ltimas pginas, se colocaro numa posio de inteira descrena sobre as possibilidades por ns apontadas. Julgaro que este caminho no se adequaria a um povo cujo ndice de analfabetismo to alto, um povo que revela tambm uma incultura to grande; que esta soluo s seria admis- svel a povos j possuidores de um grau de cultura que os poderia guiar para se dirigirem a si mesmos com a mxima segurana. Mas pedimos ao leitor que assim pensar que medite bem sobre esta verdade prtica, que foi salientada por todos os sbios: aprende-se alguma coisa fazendo; o povo aprende o seu civismo cultuando a vida social, a vida histrica, d-se dentro do mundo da prxis, da prtica, no mundo da ao, e tudo quanto se d neste pela ao que aprende, pela ao que se adquire o conhecimento. No mundo especulativo, sim, h necessidade apenas das dedues, da especulao, mas no mundo prtico diferente, e o a que ns nos referimos, o de que tratamos nesta obra uma parte do mundo prtico, e aqui h necessidade de pr-se em ao; a criana no aprende a caminhar seno caminhando. Precisamos ensinar o povo brasileiro a caminhar, precisamos ensinar o povo brasileiro a ser um povo dirigente de si mesmo, e ele no poder aprender a fazer isso seno fazendo; e fazendo, e errando, e sofrendo, que ele vai aprender. Portanto, ns afirmamos: Brasil, um povo sem esperana? No. Um povo com esperana, mas com uma esperana ativa, com uma esperana que tem de ser posta em ao. Podem muitos argumentar que essas solues oferecidas sejam de impossvel realizao, e talvez no se venham a realizar no por uma impossibilidade intrnseca, mas porque no disponhamos de uma vontade resoluta para p-las em execuo. Esta possibilidade est includa na ordem das nossas condies. Mas o que no podemos deixar de afirmar que esta a nica soluo que nos resta; sem ela, nos tornaremos um pas sem esperana, porque no ter a seu favor nada de positivo que se ponha em ao para realizar o que deve ser feito em benefcio do seu futuro. Neste caso, seria ingenui- dade acreditar que seriamos capazes de colher aquilo que no foi de modo algum semeado.
Pe. Stanislavs Ladusãns - Significado e Ampliação Da Gnosiologia Pluridimensional (Revista Brasileira de Filosofia, V. 36, N. 147, P. 264-268, Jul.-Set., 1987)