EVIDNCIA HISTRICA: O QUE OS HISTORIADORES VEEM - ANLISE CRTICA DA OBRA DE FRANOIS HARTOG1

Natania Aparecida da Silva Nogueira Sobre Franois Hartog Franois Hartog um historiador francs, nascido em 1946. Estudou na cole Normale Superieure, foi presidente da cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales

(EHESS) e membro do Centre Louis Gernet de pesquisa comparativa sobre as sociedades antigas e membro do Centro de Pesquisa Histrica (CDH). Em 1997, foi um dos fundadores da Associao de Historiadores. Foi aluno de Jean- Pierre Vernant e apreciador da obra de Reinhart Koselleck. Foi influenciado pelo estruturalismo, lingustica e antropologia. Hartog, atualmente , leciona na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales de Paris, onde ministra o seminrio de historiografia antiga e moderna. Sua pesquisa combina a histria intelectual da Grcia antiga, a historiografia e o estudo das formas histricas de temporalidade.
Transitando sempre na fronteira de prticas historiogrficas variadas, entre antigos e modernos, mas tambm nos limites de temporalidades distintas, entre o selvagem e o civilizado, Hartog oferece aos historiadores contemporneos uma reflexo original e erudita sobre os meandros do seu prprio ofcio2.

Hartog contribuiu para a formao e disseminao do conceito de regime de historicidade que ele define como os modos de articulao das trs categorias de passado, presente e futuro. Segundo Hartog, este regime de historicidade marcado por uma viso do presente que d nfase na memria para histria. Defende a reflexo sobre a existncia de regimes de historicidade para compreender como passado e futuro se entrelaam com o presente. Segundo Hartog, o tempo no o mesmo para todos os povos, ele experimentado de forma diferente, dependendo da poca ou local em que estudado.

Trabalho apresentado em outubro de 2013, ao Professor Dr. Francisco Falcon, na disciplina Teoria e Historiografia II, Seminrio Teoria e Mtodo em Histria, matria do curso de mestrado em Histria do Brasil, oferecido pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), de Niteri, Rio de Janeiro. 2 RODRIGUES, Henrique Estrada. Entrevista com Franois Hartog: histria, historiografia e tempo presente. Histria da Historiografia. Ouro Preto, n. 1, dez/2012, p. 352

A obra: Evidncia histrica: o que os historiadores veem

Evidncia da histria, o que os historiadores veem, uma coletnea de textos escritos por Franois Hartog. O livro divide-se em duas partes. Na primeira, com seis captulos, Hartog vai analisar a produo historiogrfica na antiguidade, passando por autores como Tucdides e Polbio. Na segunda parte, analisa a historiografia dos tempos modernos. O fio condutor da obra a evidncia da construo do saber histrico e as transformaes que ele sofre com o passar do tempo e com a consolidao da prtica historiogrfica e da profissionalizao do historiador. As anlises do autor direcionam-se para as diversas vises compartilhadas pelos historiadores da antiguidade at o tempo presente. Ainda no prefcio, deixa clara a necessidade de se refletir sobre o mtodo e sobre a importncia, nos vrios sentidos, a que a evidncia assume dentro do universo historiogrfico. Na primeira parte do livro, Hartog inicia suas consideraes a partir da historiografia grega. Os gregos praticavam uma historiografia com historiadores, mas no chegaram a criar uma histria cientifica. Essa s seria concebida no sculo XIX, uma historiografia que estabelece uma separao entre presente e passado. Tambm no foram os inventores da histria, ela est presente na narrativa de povos orientais, anteriores aos gregos, mais especificadamente na Mesopotmia, no final do terceiro milnio com a monarquia de Akkad3. Mas foram os gregos que inventaram o historiador. Vai ser com Herdoto que o historiador surge como uma figura subjetiva. No tempo de Homero, os registros feitos pelo aedo tinham como objetivo preservar a memria social do grupo. Ele era o porta-voz da comunidade, falava em nome do grupo e nunca assinava sua obra. Mas se o aedo era apenas um porta-voz, inspirado pela musa, o historiador reivindica para si o ttulo de autor, de escritor. Para os gregos, a histria faz-se no presente, no ver, no ouvir, no estar presente no momento em que o fato ocorre. O tempo, seja dos deuses, seja dos heris, o passado que certamente ocorreu, mas que escapa ao saber do historiador que olha a partir do seu presente.4 Essa histria do presente vai atingir seu pleno sentido na medida em que tem seus olhos no futuro.

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HARTOG, Franois. Op. Cit. p. 45. HARTOG, Franois. Op. Cit., p. 57-58.

Tucdides um dos autores antigos que mais receberam a ateno de Hartog em Evidencia da Histria. Tucdides coloca a autpsia (o fato de ver por si mesmo) no centro da sua epistemologia. Vai ser ele que ir fundamentar o saber produzido a partir dos dados que ela fornece. Ainda segundo ele, a nica histria verossmel a do presente, sendo o passado no verdadeiramente cognoscvel.5 Para Tucdides, o ver, mesmo que obtido por meio de um relato escrito, era mais valioso do que ouvir, por ele desprezado. O saber histrico se fundamenta na autpsia (o fato de ver por si mesmo) e se organiza com base nos dados fornecidos por essa; o olhar est no centro da histria, e a histria se faz no presente. Saber historicamente ter um conhecimento claro e distinto, tambm, o saphes skopein, ver claro, descobrir em sua clareza ou, ainda, saphos heurin, encontrar claramente, tornar evidente. Saber histrico ver.6 Para esse historiador, a histria verdadeira ou ela no histria e a verdade s pode ser encontrada naqueles que viram, presenciaram, testemunharam o acontecimento. Ele o primeiro a entender a histria como discurso da verdade. Se Herdoto foi o pai da histria, Tucdides foi o pai da histria verdadeira.7 O testemunho analisado por Hartog como uma questo importante para a histria como disciplina, tanto na antiguidade quanto nos tempos atuais. O testemunho, to valioso para os gregos antigos minimizado e, em alguns casos desprezado, por correntes historiogrficas dos sculos XIX e XX, retorna com fora em meados do sculo XX e, sob influencia das mdias modernas, ganha status de validao, de evidncia nas ltimas dcadas8. E o historiador? Ele tambm pode ser testemunha? Do ponto de vista prtico e epistemolgico, a testemunha no o historiador, e o historiador no deve assumir tal funo, ele deve se manter distncia da testemunha. Assim, ser testemunha no suficiente para ser historiador. No sculo XIX, com a histria cincia, o verdadeiro testemunho residia nos documentos. As vozes se tornaram fontes. Vai ser na dcada de 1980 que a testemunha passou a ser valorizada pela historiografia. A testemunha entendida como portadora da memria. Ela pode ser aquela que presencia ou vivencia um fato. Cita o caso da testemunha sobrevivente e usa, como exemplo, as testemunhas do holocausto. O testemunho como gnero literrio teria surgido na dcada de 1960. A colocao em primeiro plano da testemunha leva tambm a uma ampliao da noo
HARTOG, Franois. Op. Cit., p. 64 6 HARTOG, Franois. Op. Cit., p. 80 7 HARTOG, Franois. Op. Cit., p. 84 8 Entrevista do Franois Hartog. Programa Vereda Literria, 3 de dezembro de 1999.

de testemunha. Hartog retorna Grcia antiga para falar sobre o testemunho, vai a Roma e analisa a Bblia: o testemunho valida a narrativa, a testemunha como um fiador da histria, ele certifica sua validade, sua veracidade. Nas dcadas de 1980 e 1990: o historiador assume papel de testemunha em processos de crime contra a humanidade.
O testemunho de hoje em dia uma vtima ou o descendente de uma vtima. Esse estatuto de vtima serve de suporte sua autoridade e alimenta a espcie de temor reverente que, s vezes, a acompanha. Da, o risco de uma confisso entre autenticidade e verdade ou, pior ainda, de uma identificao da segunda com a primeira, no momento em que deveria ser mantida a separao entre a veracidade e a confiabilidade, por um lado, e, por outro, a verdade e a prova.9

Fazendo um paralelo com o caso brasileiro, podemos citar os testemunhos daqueles que sobreviveram perseguio e tortura do regime militar que vigorou da dcada de 1960 a 1980. Tal como as vtimas do holocausto, temos em ex-militantes de esquerda, verdadeiras fontes de informao sobre momentos dramticos dos anos de chumbo. Eles so, tambm, sobreviventes e sua memria, uma fonte de informaes. Na produo historiogrfica sobre esse tema, temos o historiador/testemunha, como, por exemplo, o caso de Jacob Gorender e sua obra "Combate nas Trevas", de 1987, a respeito da luta armada no Brasil. Retomando a historiografia antiga, Hatog vai para Polbio e a sua histria universal ou geral. Hartog situa Polbio entre os trs maiores historiadores gregos, depois de Herdoto e Tucdides. Polbio faz uso da retrica na construo da narrativa histrica. A narrativa prevalece em relao investigao. Polbio desejava fazer uma histria nova, a partir da conquista do Mediterrneo por Roma. Para colocar em prtica esse novo conceito de histria, ele se baseia na Potica de Aristteles e, a partir da, elabora sua histria universal. At ento a histria do mundo era local e dispersa. Essa histria universal se dava dentro do espao conquistado pelos romanos. Como autor, ele no apenas descreve mas aparece, tambm, como testemunha e ator. Sua obra ultrapassou, em volume, a de seus antecessores. Uma das razes para esse fato a longevidade de Polbio, que viveu mais de 80 anos. Ele um grego que se debrua sobre a histria romana buscando ver como Roma, do ponto de vista dos romanos.

HARTOG, Franois, Op. Cit., p. 227.

No captulo VI, ltimo captulo da primeira parte, Hartog volta sua ateno para Dionsio de Halicarnasso. Segundo a tese defendida por Dionsio, Roma uma cidade grega, desde sua fundao. Enquanto Polbio havia se dedicado a estudar a dominao romana, o cerne da pesquisa de Dionsio concentrou-se no estudo das origens de Roma. Para ele, os romanos seriam descendentes de gregos e, portanto, gregos autnticos. Ao contrrio de Tucdides, ele faz um histria do passado. (...) enquanto Tucdides demonstrava, em sua Arqueologia, que era impossvel escrever a histria do passado -, Dionsio , por sua vez, reivindica a continuidade desde os muthoi mais antigos.10 Para defender sua tese, ele se apropria de Ccero e retorna Guerra de Troia. Os romanos seriam nada mais do que descendentes de troianos. Ele baseava-se na genealogia, na etimologia e no testemunho. questionado sobre suas fontes e intimado a apresentar provas, evidncias, corroborem com suas afirmaes. Embora no tenha provas, age como se tivesse. Ele usa e abusa da retrica, o que, para M. Egger, desvaloriza sua obra histrica11. Sua obra, Antiquits, no necessariamente estudo sobre a origem de Roma, mas estudo sobre as origens. Para ele, reelaborar um passado, revistando uma cultura, inventar uma tradio. Ele usa de metforas ao justificar suas afirmaes, defendendo a origem grega de Roma. Ele estabelece uma srie de comparaes entre Roma e as cidades gregas, considerando Roma superior em muitos aspectos. Roma era um modelo, o futuro das cidades gregas. Ainda na primeira parte do livro, abre espao para se discutir a questo da memria e da histria, retomada mais frente. Apresenta a memria como tendo importncia significativa em determinados momentos da histria e, tambm, o seu contrrio. A memria, por vezes, aprece como sendo uma evidncia que deve ser explorada, em outros uma evidncia que deixa margem para erros e incongruncias. O oficio do historiador coloca-o sempre prximo narrativa. Ela, frequentemente, ser fruto da eloquncia e da retrica do historiador, muito mais do que dos dados apresentados pela evidncia. No final do sculo V a.C, reconhecia-se a importncia da fala e da escrita, o que levou ao desenvolvimento da retrica. A questo da narrativa ser um dos pontoschave do livro, sendo vista e revista em vrios captulos, tanto nos que tratam da historiografia antiga, quanto nos que versam sobre moderna/contempornea.

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HARTOG, Franois. Op. Cit., p. 121 HARTOG, Franois. Op. Cit., 131.

Os arquivos tambm encontram espao significativo nos escritos de Hartog, tanto os arquivos da antiguidade quanto os da atualidade. Ele reserva um subitem para o tema na primeira parte do livro e outro na segunda parte, no ltimo captulo. Hartog nos lembra-nos da importncia dos arquivos na constituio da histria cincia e de como foram e so, locais onde o historiador busca por evidncias. Faz um balano sobre os problemas enfrentados pelos arquivos na Frana, que passam pela legislao, conquistas e problemas com relao documentao, seu acesso e armazenamento.
Se os arquivos so a memria da nao, o dever de memria e a existncia (democrtica) de transparncia implicam que eles estejam em condies de ser facilmente pesquisados e no apenas por investigadores licenciados. Para questionar os arquivos, vem, desde ento, ao primeiro plano, um vocabulrio que se apoia tanto na crtica tradicional das fontes quanto na linguagem judicial. O arquivo , com efeito, uma testemunha, uma prova; fala-se de sigilo, de dissimulao e de confisso.12

No difcil encontrar nas palavras de Hartog similaridades com a questo dos arquivos no Brasil. Onde esto, como so tratados, o controle de gerenciamento da documentao produzida, os critrios estabelecidos para determinar o que precisa ou no ser arquivado, a eficcia da legislao, a ao do poder pblico e a questo do acesso. Dilemas franceses que podemos encontrar no Brasil, onde os arquivos ainda so poucos e raramente atendem s necessidades dos pesquisadores.
Quanto aos arquivos, sejam eles voluntrios ou involuntrios, escritos ou representados por imagens, transcritos ou gravados, eles so um objeto de histria de pleno direito, em mltiplas dimenses (materiais, institucionais e intelectuais); alis, arquivistas e historiadores haveriam de tirar maior proveito de refletir em comum a seu respeito.13

O convite reflexo acerca do papel e da importncia dos arquivos, dessa forma, ultrapassa as fronteiras nacionais e continentais. Nesse ponto, Evidencia da Histria uma obra que convida o historiador a refletir no apenas sobre sua prtica de pesquisa mas, tambm, sobre as condies em que pode se realizar. J na segunda parte do livro, Hartog comea falando sobre o olhar do historiador, a voz da histria. Destaca que, se a histria viso, ela tambm audio. Faz uma crtica aos historiadores que no veem nada desde que se ficou estabelecido que a histria se faz no passado. Inicialmente, parte para a anlise de historiadores franceses do sculo XIX. Segundo Hartog, para a historiografia liberal, essencialmente poltica, ser historiador resumia-se a ser um genealogista da identidade a fim de aspirar s altas funes de
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HARTOG, Franois. Op. Cit., 234. HARTOG, Franois. Op. Cit.,238.

historigrafo da liberdade na Frana.14 O historiador liberal um observador desligado, fora do campo ou da histria, que, apreendendo numa viso sinptica a verdade de seu objeto. Ele historiador escreve para um leitor a quem sua narrativa deve mostrar o progresso da histria. Alguns historiadores como Thierry e Barante recorrem a dois modelos: a pintura e o romance. Para isso, ele deve aceitar seu desaparecimento como autor. Para Thierry, faltava aos historiadores erudio, viso, imaginao e pintura.
(...) o historiador deveria tornar-se o olhar do romancista, ou seja, possuir seu controle de uma narrao capaz de colocar diante dos olhos do leitor (ante oculos ponere), de produzir algo de evidncia, recorrendo figura hipotipose.15

Michelet desestabilizou a diviso entre o visvel e o invisvel, sendo que o olhar fundamental tanto na relao com o mundo, quanto com as pessoas e com passado. Ele no se sente distante do seu tema, ele se considera possuidor de sua histria. Enquanto Thierry desejava escrever e produzir documentos, Michelet deseja mergulhar neles, nos arquivos. Michelet tambm valoriza a oralidade e a tradio popular. O historiador possui um olhar participante e aprende a ouvir a histria. Assim, para se saber ver o visvel tem-se que ouvir a histria. A histria no consiste nem em acompanhar as
crnicas nem em obter uma viso panormica do mundo, mas na penetrao , pelo olhar do historiador, de seu objeto: h um ato de histria.16

Uma nova gerao de historiadores, que segue a de Michelet, coloca o visvel como uma iluso, Hartog representa-a na pessoa de Fustel de Coulanges, que defende uma concepo de histria como psicologia, como uma cincia histrica da alma humana. O visvel est cercado de iluses e cabe ao historiador-observador dissip-las. Para Fustel, o historiador aquele que encontra os fatos, entre o visvel e o invisvel e consegue enxerg-los como realmente so. Dizer a verdade na histria, aps 1870, escrever uma histria sem iluses, uma histria que se ope quela preconizada por Michelet. Uma histria realista, baseada em um patriotismo despretensioso. Se Michelet valoriza o presente e v o historiador como um homem do presente, Fustel exige no s que se distancie dele, mas que o esquea. A veracidade da histria viria de uma observao e leitura exaustiva do documento. Ao se tornar uma cincia pura, a histria se torna, tambm, uma cincia limitada.

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HARTOG, Franois. Op. Cit., 145. HARTOG, Franois. Op. Cit., 147. 16 HARTOG, Franois. Op. Cit., 154.

A partir de Michelet, a histria ocidental mantm um discurso da verdade com a ambio de reencontrar a vida. Essa ambio retomada pelos Annales, com Lucian Febvre, por exemplo, que, com sua histria da resistncia, proclama que se interessa pelos vivos. Tornar vivo uma exigncia, refazer vida e refazer histria. escrever a verdadeira histria romper com narrativas parciais, superficiais e artificiais. Para Michelet, o historiador o nico que poder celebrar o ofcio dos mortos. Para Hartog, a histria deve ser escrita como um romance, mas sem ser um romance. Ao se tornar histria disciplina, a histria preferiu se basear no nas artes, mas nas cincias naturais. Vai ser Paul Ricoeur que vai elaborar uma reflexo sobre a questo da narrativa e sua relao com a histria e um questionamento sobre a evidncia da histria, onde declara ser impossvel existir histria sem um vnculo com a narrativa. Os Annales viraram as costas histria-narrativa, romperam com a histria historicizante. Hartog questiona o fato de acharem que uma sinnimo da outra, histrianarrativa aquela que reserva o primeiro plano aos indivduos e aos acontecimentos. Isso se deveu presso das cincias sociais para as quais o objeto no o indivduo, mas o grupo social e as sries. Ela deixa de ser poltica e torna-se econmica e social. Ela abandona a narrativa das origens e a narrao contnua dos feitos nacionais em favor da conjuntura. Ela se torna comparativa e quantitativa, O acontecimento deixa de ser visvel e legvel, A longa durao o novo tempo histrico que repudia a histria poltica e abandona a narrativa. O historiador constri seu objeto como um cientista, mas no como um romancista. Lucien Febvre defende uma histria mais cientfica ou verdadeira e pede que se reflita sobre sua elaborao, mas no questiona a narrativa da histria. Para Barthes o desaparecimento da narrativa na cincia histrica fez com que as cronologias fossem substitudas pelas estruturas. Renuncia-se narrativa sem question-la, debater sobre ela. Nesse ponto, Hartog retorna novamente antiguidade, com Ccero e Plutarco para chegar historiografia alem (Histria-Geschichte), que comea a se estruturar no final do sculo XVIII. Surge um novo quadro conceitual. Uma histria que avana, uma histria progresso ou evoluo, sobretudo progresso. Ela se define segundo a formula de Gustav Droysen, como conhecimento de si mesma, autocompreenso. Ela no formula a questo da narrativa. A histria em si os movimentos em sua narrao. Ela fala e exprime a si mesma.

O bom historiador o homem que se apaga diante da histria, aquele que a deixa falar sem interferir. Ao se tornar disciplina, a histria passa a desconfiar dessa viso romntica e deseja ser positiva, slida, baseada em fatos. Para isso, bastava frequentar constante mente os arquivos. Ela, assim, tornava-se conhecimento de si mesma. Ao renunciar histria-narrativa, segundo Hartog, cria-se uma nova forma de narrativa. Para Paul Ricoeur, nessa nova narrativa (e a ele cita Blaudel e seu Mediterrane) as interferncias e as diferenas constituem recursos de inteligibilidade. Assim, rejeitar o acontecimento no consistia em fazer desaparecer a narrativa, mas transform-los. Os questionamentos acerca da narrativa so recentes. Na dcada de 1960 houve uma reabertura do debate acerca desse assunto e a tendncia atual a de reconsiderar a questo da narrativa da histria. Nos anos 1970, esse debate foi marcado pela polmica acerca do positivismo, prejudicado pelas polmicas geradas acerca da validade da narrativa histria, comparada por autores como Hayden White com a narrativa ficcional. Deixando clara a influencia que recebeu do estruturalismo e da antropologia, Hartog passa analise do pensamento de Levi Strauss sobre a histria.
Ela , em primeiro lugar, a contingncia irredutvel: a expresso da potncia e da inanidade do acontecimento, diante da qual a anlise estrutural comea por inclinar-se, reconhecendo-lhe um lugar de destaque.17

A histria o que o antroplogo chama de histria dos historiadores (a disciplina e sua prtica). Esse olhar distanciado, praticado por Strauss, permitiu que ele fizesse uma anlise da histria dos historiadores como sendo ela o prprio objeto. Ele questiona o que Hartog chama de regime moderno de historicidade. Como um observador externo, ele pode proceder reflexo sobre a situao presente da histria da forma que um historiador talvez fosse incapaz de fazer, por estar participando do processo da sua construo. Ao examinar o procedimento da histria e da etnologia, Strauss conclui que o que as distingue no o objetivo, nem o objeto, mas a escolha de perspectivas complementares. A histria organiza seus dados com relao s expresses conscientes, enquanto que a etnologia considera s condies inconscientes da vida social.18 O historiador vai do implcito ao explcito enquanto que o etnlogo vai do particular ao universal.19 Sugere que os historiadores

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HARTOG, Franois. Op. Cit., p. 185. HARTOG, Franois. Op. Cit., 190. 19 HARTOG, Franois. Op. Cit., 191.

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e etnlogos trabalhem juntos. O restante do texto trata sobre os fervorosos debates travados entre histria e estruturalismo, Strauss e Annales, entre as dcadas de 1960 1970; Strauss provoca a reflexo entre os historiadores. No ltimo captulo, parte para a anlise de trs pontos: os problemas dos arquivos (do qual j tratamos), a questo do juiz e do historiador e a epistemologia da histria. E o julgamento da histria e do historiador? Esse o prximo item. Hartog comea esclarecendo o que significa julgar, do ponto de vista da histria. Para a histria, julgar no o mesmo que para um juiz. A princpio, espera-se que o julgamento da histria seja mais justo; ele tambm deve ser flexvel porque a realidade est sempre em movimento. Hartog situa toda a discusso no plano da temporalidade. Se julgar um indivduo, cujas aes ocorreram num passado no muito prximo, obedece a uma necessidade por justia e, tambm, por memria, definir juridicamente a imprescritibilidade de determinadas aes revela os traos de uma experincia particular de tempo. Segundo ele, o imprescritvel faz do ato cometido um ato sempre no presente, sempre disponvel lei. Hartog acredita que, para uma teoria do julgamento, deveria-se recorrer filosofia.
Espcie de presente eterno, ansioso por dominar o tempo ou, do mesmo modo, de o suprimir, nosso tempo se emprega a realizar a demonstrao de sua superioridade moral sobre o passado, bem como a antecipar o julgamento que a posteridade lhe dirigir. O historiador (do presente, mas no apenas ele) se encontra, em todo caso, preso, como cada um, dentro do crculo do presente.20

No que diz respeito epistemologia, Hartog cita trs obras que considera importantes: Temps et rcit, de Paul Ricoeur, Le futur pass, de Reinhart Koselleck e La raisonnement sociologique, de Jean-Claude Passeron. O livro tem um preldio dedicado a Michel de Certeau a quem nutre profunda admirao pela obra.

REFERNCIAS Entrevista do Franois Hartog. Programa Vereda Literria, 3 de dezembro de 1999. HARTOG, Franois. Evidncia da Histria: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2011.

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NICOLAZZI, Fernando. A histria entre tempos: Franois Hartog e a conjuntura historiogrfica contempornea. Histria: Questes & Debates, Curitiba, Editora UFPR, n. 53, jul./dez. 2010, p. 242.

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RODRIGUES, Henrique Estrada. Entrevista com Franois Hartog: histria, historiografia e tempo presente. Histria da Historiografia. Ouro Preto, n. 1, dez/2012, 351 371p. NICOLAZZI, Fernando. A histria entre tempos: Franois Hartog e a conjuntura historiogrfica contempornea. Histria: Questes & Debates, Curitiba, Editora UFPR, n. 53, p. 229-257, jul./dez. 2010.