Astor Antonio
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RESUMO Objetiva-se compreender os desdobramentos do momento de superao (constituio e dissoluo do topus moderno) da fase de crticas lineares aos princpios e a historiografia moderna e contempornea. O momento parece ser de posturas dialgicas, percebidas a partir da constante busca de significados das representaes historiogrficas e, sobretudo, dos sentidos pedaggicos do conhecimento histrico no momento presente. Esta postura implica necessariamente em inventariarmos os limites e as possibilidades do conhecimento a partir de trs perspectivas interligadas: a terica, a metodolgica e a historiogrfica. Palavras-chave: Histria; historiografia contempornea; teorias da histria; metodologia da histria.
1. Apresentao do tema
Tenho muito medo de um movimento intelectual se transformar num slogan, pois h sempre o perigo de autocomplacncia intelectual, ou seja, de se acreditar que se est no nico caminho correto, verdadeiro. Carlo Ginzburg. Todos ns, de uma ou outra forma, j nos sentimos desafiados e, porque no dizer, vacinados pelo enigma do momento histrico em que vivemos. um momento de profundas complexidades como qualquer outro momento, porm com a diferena de que agora experimentados o tempo presente com todas as suas temporalidades, com suas rupturas e permanncias, com suas linguagens e representaes. uma experincia multifacetada, coberta pelo nevoeiro da subjetividade. Tudo parece escorregar entre os dedos da mo como areia seca do deserto ou a se desmanchar no ar, como diria Berman em
Professor do Curso de Histria e do Mestrado em Educao da Universidade de Passo Fundo (RS). E-mail: [email protected]
2 sua obra24. A fluidez e a leveza so caractersticas circunstanciadas de um momento de saturao cultural, o qual poderamos denominar de Sptzeit modernidade tardia25. No momento em que vivemos a exaltao das experincias culturais em termos das disciplinas sociais discutir sobre cultura e conflitos sociais na historiografia contempornea pode parecer mera redundncia acadmica ou mesmo sinnimo de querer revisitar uma constelao de elementos formadores que j estariam consolidados no debate. Por outro lado, o debate em torno dos fenmenos culturais e os conflitos na disciplina histrica sempre me pareceu indigesta, especialmente, neste momento em que a chamada histria cultural parece estar em alta. No precisamos mais caracterizar os inmeros fatores e perspectivas que dariam histria cultural os seus devidos subsdios de certa plausibilidade nos mais diversos nveis. Porm, o avano historiogrfico destas tendncias propiciou seguramente a fragilidade de certezas dos conhecimentos que at ento no figuravam na pauta das discusses26. Sem dvida, os avanos e a receptividade entre os historiadores dos mtodos hermenuticos e fenomenolgicos gerou, num primeiro momento, certo mal estar, especialmente, naqueles que tomavam os quadros tericos modernos, provenientes do iluminismo civilizador, como aqueles nos quais seria possvel depositar confiana quanto as suas capacidades explicativas e de redeno do homem e da sociedade no futuro. No podemos esquecer do fato que tais teorizaes e postura totalizadoras tiveram a funo, entre tantas outras, de fazer morrer em ns a natureza humana. Eram arcabouos analticos de luta contra o caos, contra a violncia de um estado natural. Neste caso, a cultura tivera a funo principal de organizar, de classificar, de definir e a cincia, em seu turno, buscava exorcizar os temores da natureza, de reconciliar o homem com o seu destino e, sobretudo, compensa-lo pelo sofrimento e pelas privaes. Com certeza a crtica contempornea epistemologia racionalista e a crtica s grandes narrativas legitimadoras27, a crtica aos processos de modernizao e,
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Isto uma clara meno obra de BERMAN, M. Tudo que slido desmancha no ar. So Paulo: Companhia das Letras, 1986. 25 Este conceito foi discutido por MOSER, Walter. Sptzeit. In: MIRANDA, Wander Melo (org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte, Autntica, 1999, p. 33-54. 26 Vrios destes conceitos podem ser relidos a partir da obra recente de REIS, Jos Carlos. Histria & Teoria. Historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2003. 27 Ver especialmente CHAUVEAU, A.; TTARD, Ph. (org.). Questes para a histria do presente. Bauru: Edusc, 1999 e BODEI, Remo. A histria tem um sentido? Bauru: Edusc, 2001. Este questionamento j estava presente nas preocupaes de Walter Benjamin em LWY, Michael. Romantismo e messianismo.So Paulo:
3 especialmente, a crtica idia de progresso que assistimos brotar em todos os recantos das cincias humanas e, particularmente, na cincia histrica, no nos deve cegar frente ao fato, de que a idia de progresso no estivesse profundamente ancorada na mentalidade e nas estruturas coletivas do pensamento da cultura histrico-historiogrfica. Em duzentos anos de cultura historiogrfica da conscincia, a categoria progresso28 se incrustou profundamente nas estruturas da psique ocidental e, por que no oriental, atuando na conscincia histrico-coletiva. Para verificarmos isso, na prtica, basta perguntar para uma criana ou at mesmo aos adultos, confirmando a idia orientadora de que o futuro ir superar sempre - o presente e o passado, em termos de chances de vida e de possibilidades de felicidade. Ora, se a perspectiva do futuro no se operacionaliza no horizonte individual nem no coletivo, ento vem tona um obstculo na orientao do sentido temporal da prpria histria29. Essa orientao ser percebida atravs do distanciamento de um processo de desenvolvimento nas narrativas legitimadoras. O progresso como modelo de pensar um fator social, um conseqente fator mental dos princpios de conduta da vida e ele precisa ser colocado, como assim sendo, na ordem do dia, caso a histria como cincia deseje ocupar o espao da comunicao de experincias e do conhecimento histrico30. Por um lado, indiscutvel que no debate atual a categoria progresso (como ela se tornou fragmentria na compreenso da cultura) no consiga mais ser concebida sem profundas fissuras31. Para isso, as experincias histricas so poderosas demais. A tendncia crise, as conseqncias catastrficas da concepo tradicional, concebida como desenvolvimento histrico para o mundo moderno (especialmente nos setores scioeconmicos a partir da industrializao) j se tornou experincia coletiva comum. Cada um de ns que possui sensibilidade suficiente para perceber contradies estruturais entre o seu mundo e o da gerao passada, leva em considerao os resultados
Perspectiva, EDUSP, 1990, especialmente o Cap. 9 e 10; para a questo historiogrfica ver DIEHL, Astor Antnio. A matriz da cultura histrica brasileira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, Idem. A cultura historiogrfica nos anos 80. Porto Alegre: EVANGRAF, 1993. 28 Ver NISBET, Robert. Histria da idia de progresso. Braslia: Ed. UnB, 1985. 29 Ver especialmente captulo 4 do livro de DOSSE, Franois. A Histria. Bauru: Edusc, 2003. 30 Este aspecto no privilgio do pensamento histrico, mas abrange os mais diversos debates nas mais diferentes reas do conhecimento. A abrangncia do debate pode ser acompanhada em SCHNITMAN, Dora Fried (org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1996. Fizemos uma tentativa no livro Com o passado na cadeira de balano. Passo Fundo: UPF editora, 2006. 31 Em termos de debates recentes sobre a noo cultura sugere-se SEMPRINI, Andra. Multiculturalismo. Bauru: Edusc, 1999 e CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais. Bauru: Edusc, 1999.
4 prticos desse desenvolvimento como fatos observveis: na destruio ecolgica durante a explorao da natureza via industrializao; no desmedido e crescente potencial dominador do poder de blocos nos estados modernos; na profunda ruptura de possibilidades entre o mundo industrializado com as regies no industrializadas e, finalmente; na desertificao dos impulsos inovadores dentro do racionalismo institucionalizado pela cincia32. A cincia histrica no poder ser excluda da onda crtica ao progresso, se para o historiador a cons/cincia histrica apreendida atravs da experincia do passado significar alguma coisa. A crise da noo de progresso se configura na confrontao entre inteno e realizao especialmente a partir de trs vetores bsicos: a) o progresso moderno foi subsidiado pela esperana de que, atravs da unificao de razo filosfica e racionalidade cientfica pudesse ser instituda a paz interna das sociedades, bem como o delineamento da ordem internacional. As pessoas do sculo XX viveram desde grandes tenses at guerras mundiais, guerras locais, tendo como referencial um potente arsenal destruidor cientificamente produzido33. b) o progresso moderno constitui, na forma mais decisiva a sociedade do trabalho, na qual vale o crescimento da produtividade na base da constante automatizao, gerando nas sociedades industrializadas a crise da prpria sociedade do trabalho; c) a crena no progresso foi um fenmeno formador da identidade no autoentendimento das sociedades, de seus grupos e indivduos. A crise da noo de progresso leva crise de identidade e de legitimidade do conhecimento, que se faz visvel em diferentes setores, como por exemplo: a crise de legitimidade de sistemas polticos34. Da crise de orientao do sentido que essa crtica representa na cultura poltica e a cultura historiogrfica atual resulta o sintoma das crescentes revolues frustradas, atingindo em contrapartida ao progresso de maximizao das revolues otimistas crescentes onde o ideal de progresso comps o estmulo central para o iluminismo atravs do tempo relacionado ao espao.
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As conseqncias esto em GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade. 2. edio. So Paulo: Editora da Unesp, 1991. 33 Ver o texto de WITTROCK, B. Social Sciense and state development: Transformations of the discurse of modernity. In Rev. International Social Science Journal, 41 (1989): 497-507. 34 TOURAINE, Alain. Modernity and Cultural Specificities in Rev. International Social Science Journal, 40 (1989): 43-457, e a discusso realizada no mesmo nmero da revista citada, entre referncias de vrios cientistas, p. 533-584.
5 Portanto, por um lado, discutir a temtica da cultura e do conflito no modo de produzir o conhecimento histrico o mesmo que mapear a patologia do tempo presente, provocada pela mordida do enigma de compreendermos os conflitos da produo historiogrfica. Por outro lado, todos ns sabemos da dificuldade de se fazer um mapeamento mais completo ante a quantidade e diversidade da produo contempornea. Ento, preciso fazer uma seleo, pois humanamente impossvel ter domnio sobre a totalidade e aqui que enfrentamos o primeiro desafio. Quais so as obras paradigmticas para entender a complexa paisagem historiogrfica? Com todo o risco da impreciso e da parcialidade da leitura, tomo como sistema de referncia trs pontos: a) De onde se pode mapear os pontos do debate sobre cultura e conflitos na historiografia contempornea. Esta perspectiva do olhar analtico deve cobrir pelo menos os seguintes aspectos: as questes vinculadas s mudanas no pensamento historiogrfico; a questo da crise da razo histrica e do sentido do conhecimento histrico. b) Quais so os debates significativos internos e externos e como estes repercutem na produo historiogrfica contempornea? c) Quais so os pressupostos metodolgicos da anlise desta paisagem to dinmica e pluriorientada? J podemos perceber de antemo que a questo indigesta, mas podemos tentar compreende-la mesmo assim se partimos, metodologicamente, com a noo de cultura historiogrfica. Que possibilidades a noo cultura historiogrfica pode oferecer em detrimentos de outras formas de estudo como, por exemplo, a dos paradigmas, correntes tericas e etc.
6 cultura historiogrfica. Entendemos por cultura historiogrfica um conjunto de cinco matrizes com seus respectivos elementos interligados. A primeira matriz tem sua origem no debate proposto por Thomas Kuhn, com a publicao do livro A estrutura das revolues cientficas em 1962.35 Kuhn apresenta um debate sobre a noo de paradigma, as conseqncias para a cincia quando ocorre a chamada mudana paradigmtica e os fatores agentes dessa mudana. O debate desencadeado por Kuhn foi assimilado com diferentes graus de recepo na histria. Jrn Rsen ento props uma matriz disciplinar da histria como um modelo para a discusso terico-epistemolgica. A matriz de Rsen composta por cinco elementos: os interesses pelo conhecimento sobre o passado; as perspectivas tericas que orientam a pesquisa; as metodologias, as tcnicas de pesquisa e as diferentes fontes; as formas de representao do passado atravs das narrativas e, finalmente, as funes didticas dos conhecimentos histrico no contexto sociocultural.36 A segunda matriz tem seu foco centralizado nas formas de recepo tericometodolgicas e ideolgicas dos debates tericos na comunidade cientfica na prpria histria e demais cincias humano-sociais. Essas formas de recepo so constitudas de trs vetores: a ortodoxa, a adaptada e a crtica.37 A terceira matriz tem seu esforo concentrado sobre as experincias historiogrficas refletidas sobre a modernidade e ela e composta pelas naes modernizao, modernidade e modernismo. PARA UMA CULTURA HISTORIOGRFICA (complexidade da compreenso) PARA UMA CULTURA DIDTICA (complexidade da mediao)
matriz disciplinar da histria - histria como experincia matriz da recepo tericometodolgica e ideolgica - matriz das expectativas sobre a - histria como cincia modernidade 35 matriz dasAntnio. experincias sobre a DIEHL, Astor A cultura historiogrfica e insero hermenutica. Narrativa e controle da tragicidade na histria. In: Rev. Histria: debates e tendncias. Passo Fundo: Mestrado em Histria/CPH/RS, ps-modernidade - histria como didtica v.-02, n 1, 2001. P. 33-52. matriz esttico-narrativa da 36 A matriz disciplinar de Rsen est no livro Razo histrica. Braslia: UnB, 2001. Ver esta discusso no histria texto de DIEHL, Astor Antnio. A cultura historiogrfica e insero hermenutica. Narrativa e controle da - matriz didtico-pedaggica da tragicidade na histria. Op. Cit. 37 Discutimos essa matriz em DIEHL, Astor Antnio. A cultura histrica brasileira. Porto Alegre: Edipucrs, histria
1993, especialmente p. 26-27.
7 INTERMEDIAO
DE DO
relaes possveis
CAMPOS DE EXPERINCIAS
A quarta matriz apresenta as experincias historiogrficas sobre a ps-modernidade e ela composta pelo debate sobre a tenso entre modernidade ps-modernidade e as repercusses dessa tenso na disciplina histria. A quinta matriz representa o esttico-narrativo da histria e ela constituda a partir do debate em torno do texto histrico-historiogrfico e as respectivas representaes de estruturas e de sujeitos. E, finalmente, a sexta matriz representa as possibilidades do conhecimento histrico em termos de sua validade e legitimidade social e cultural numa sociedade em profundas mudanas estruturais. Com esse primeiro entendimento sobre a noo cultura historiogrfica podemos seguir adiante, dizendo que por processo de produo do conhecimento histrico compreendemos um conjunto de prticas desenvolvidas tanto em nvel acadmico como no acadmico. Observa-se, ultimamente, um amplo processo de produo de dissertaes e teses no contexto dos programas de ps-graduao e com isso, a socializao da pesquisa dos membros da comunidade de historiadores. Com esse aspecto no queremos afirmar que a socializao dos conhecimentos produzidos ocorra, necessariamente, com igual intensidade no contexto mais amplo da sociedade atravs da publicao de livros e artigos de acesso geral. Nesse sentido, trata-se de verificar a hiptese segundo a qual, apesar do anncio da crescente burocratizao, leia-se especializao da histria. Conseqentemente, a socializao do conhecimento pelos membros da comunidade cientfica na pesquisa est sendo ainda muito mais definida pela performance individual e singular do historiador.
8 Observa-se, tambm, a crescente institucionalizao e consolidao de cursos de ps-graduao num processo que poderamos denominar de interiorizao do conhecimento. Alm das questes institucionais e quantitativas da produo do conhecimento devemos considerar a cincia e a atividade cientfica como eminentemente sociais. A histria da cincia histrica se interessa pelos prprios cientistas em suas condies de trabalho. Nesse sentido, existem vrias alternativas conceituais para o estudo do processo de produo do conhecimento histrico. Entre estas alternativas destacamos: o conceito de comunidade cientfica, introduzido por Polany, presente em Merton e desenvolvido por Kuhn38, o conceito de ethos cientfico de Merton; o conceito de campo cientfico e habitus de Bourdieu39, bem como o de habitus na perspectiva de Norbert Elias. O processo de institucionalizao e consolidao da histria, como disciplina, bem como de constituio das coletividades de historiadores, compreende diferentes fases, no Brasil. A primeira fase compreende aquela que podemos denominar de vigilncia comemorativa, a qual carrega consigo a herana histrico-cultural da historiografia do sculo XIX.40 A sua produo intelectual e historiogrfica caracteriza-se por ensaios de cunho erudito, influenciado pela literatura de origem europia. So pensadores do Brasil, vinculados ou prximos do Estado. Os Institutos Histricos e Geogrficos e as Academias so exemplos dessa fase. Com posturas diferenciadas, suas caractersticas bsicas so a de ter a hegemonia de representar o Brasil. Essa perspectiva perdura em grande parte at meados dos anos 1970.41 A partir dos anos 1970 e 1980, com a criao dos programas de ps-graduao, entramos numa fase da cultura historiogrfica que caracterizada pela crise dos parmetros cientficos tradicionais e pela diversidade de histrias, porm fortemente institucionalizada nas universidades. Nessa fase assistimos, alm da interiorizao da produo do
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KUHN, Thomas. Op. cit. BOURDIEU, P. A economia das trocas lingsticas. So Paulo: Edusp, 1996; Razes prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus, 1996. BOURDIEU, P. Campo intelectual e projeto criador. Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. 40 BOURDIEU, P. Op. cit. 41 Ver DIEHL, Astor Antnio. A cultura historiogrfica brasileira (dcada de 1930 aos anos 1970). Passo Fundo: Ediupf, 1999.
9 conhecimento e sua correspondente profissionalizao, a emergncia de alternativas temticas e tericas.42 Com o fim do regime militar em 1985, a historiografia ingressou num perodo sob condies de democracia no Brasil. Com isso, as universidades passaram a gozar de uma relativa autonomia, estimulando um novo incremento institucionalizao atravs da vivncia departamental, oriunda da reforma universitria no final dos anos 1960. Essa institucionalizao gerou profundas descontinuidades que, neste perodo, se apresentam fragmentadas sob a forma de vrias especializaes e essas no regulam sua expanso por paradigmas fortes e dominantes. A departamentalizao do conhecimento histrico e dos prprios cursos de histria pode, para fins de compreenso, ser transposta geograficamente para as diferentes universidades. O departamento torna-se o lugar, por excelncia, da produo em histria. Nesse momento podemos identificar pelo menos trs tendncias. A primeira tendncia lembra uma orientao mertoniana, na qual ocorre a dissociao entre cincia e vida pblica. Desenvolve-se uma historiografia sob a jurisdio de uma comunidade cientfica orientada por um ethos especfico. Atravs desse ethos especfico e autnomo, procurou-se atingir os fins prprios da lgica cientfica. Nessa tendncia, a historiografia no deveria servir ao Estado, ao mercado, nem a quaisquer outros sujeitos sociais. A segunda tendncia prev o locus departamental, como sendo uma espcie de autor para a construo de redes em torno de objetos definidos pela vocao solving problems, estimulando-se, para tanto, a criao de laboratrios, arquivos e implementando linhas de pesquisa e reas de concentrao. A terceira tendncia consiste numa forte influncia francesa na cultura historiogrfica pela qual ocorre a recepo macia e uma aproximao da nova histria francesa com a histria cultural, fazendo da histria uma forma medial de comunicao entre passado e presente. Evidente est que a histria nova gerou uma revoluo na historiografia, como muito bem menciona Peter Burke.43 Mas, sua forte tendncia ao mercado medial acentuou a
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Fizemos isso em Cultura historiogrfica brasileira nos anos 1980. 2 edio. Passo Fundo: UPF editora, 2004. 43 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929 1989). 2. ed. So Paulo: ed. da Unesp, 1991.
10 sua patologia. Refiro-me a patologia do esgotamento e da sua perda de sentido em termos de busca dos parmetros modernos de cincia. Radicalizando essa tese, poder-se-ia falar de uma historiografia compensatria aos problemas contemporneos e de uma falta de perspectivas para uma possvel mudana social. Contudo, na verso atual, essa tendncia est se apresentando como uma historiografia especializada em objetos fragmentados (negros, mulheres, sem-terra, homossexuais, feiticeiras, imaginrio, cotidiano, etc.), com os quais ela se identifica, atuando como ator na sua representao. Ainda na situao atual temos uma verso historiogrfica que ruma para o encontro com a literatura, enfatizando as prefiguraes e discursos contextualizados. Nessa perspectiva rompem-se as fronteiras disciplinares da histria. De forma genrica podemos afirmar que apesar de trs tendncias identificadas isoladamente, elas ocorrem simultaneamente, mostrando-nos, sobretudo, que no h mais um conhecimento estabelecido de verdades absolutas e ltimas. Por mais paradoxal que possa parecer, a histria est em franca popularizao, e cada vez mais ela vem ocupando espaos nos diferentes meios de comunicao. Cada vez mais, a legitimidade da histria centra-se na pluralidade e na multiplicidade, no imediato e no tempo presente, causando a seduo do leitor atravs de uma narrativa aberta sem os dogmatismos de pensamento do sculo XIX. Por outro lado, assistimos um avano numrico considervel na produo de histrias municipais, locais, regionais e personalizadas. So cada vez mais produes em micro escala, que buscam a afirmao dos saberes locais, das identidades tnico-culturais e de posturas poltico-administrativo-municipais. Uma parcela considervel desses textos produzida fora dos parmetros universitrios e, portanto, do controle da comunidade cientfica. Apesar da inovao metodolgica e temtica da histria, no podemos deixar de mencionar a fugacidade do texto histrico e sua configurao terica, provocada pelo afronto tradicional razo histrica. Nos anos da dcada de 1980 e 1990, a cultura historiogrfica brasileira vem desenvolvendo-se num intenso debate em torno dos problemas apontados pela ps-modernidade. As clivagens desse debate localizam-se em
11 parte sobre a crtica da idia de progresso, da razo histrica e do prprio sentido do conhecimento histrico, as quais foram as molas mestras das perspectivas de modernidade. Por outro lado, as solues micro e culturais so tambm uma resposta ao processo de globalizao em forma de resistncia, de identidades e de culturas locais. Assim, os critrios de fundamentao moderna e validade da histria cincia esto hoje sob suspeita.44 Nessa constelao ampla existem dois parmetros bsicos que devemos considerar em relao cultura historiogrfica: (a) a formao da atividade cientfica na comunidade e (b) a estrutura e concepes na produo do conhecimento histrico45. Frente a essa tese, a hiptese plausvel nesse contexto a nossa constante busca de parmetros que possam configurar a performance da cincia histrica. Um desses parmetros o estabelecimento de elementos capazes de estimular premissas para um programa mnimo, mesmo que precrio para a disciplina. Tais premissas precisam constituir-se em meta-discurso, que consiga abranger as mais diferentes representaes localizadas. Tal meta-discurso dever dar conta dos elementos discursivos anrquicos, que querem romper com o personalismo historiogrfico existente, e aqueles cujo objetivo a configurao da disciplina histrica. A dificuldade est exatamente nesse ponto, que o xis nevrlgico da questo. Por outro lado, a constituio dos elementos dessa meta-discurso poderia estar historicizada, pois o dilogo ir apresentar experincias disciplinadoras e impulsos de emancipao46. Portanto, um primeiro aspecto a necessria (re)configurao entre o discurso terico e a razo prtica, entre o pensar representativo do mundo e a vivncia da experincia daqueles que objetivamos reconstruir num processo de atualizao do passado. A contemporaneidade do no-contemporneo implica em exerccios scio-culturais de interesses pelo conhecimento histrico. Tais interesses independentes do contexto revelam a capacidade do sujeito cognitivo consciente, reconstrudo atravs das prticas existenciais
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Em termos epistemolgicos procuramos discutir isso no confronto entre os paradigmas modernos e psmodernos em DIEHL, Astor Antnio; TEDESCO, Joo Carlos. Epistemologias das cincias sociais. Consideraes introdutrias de um debate. Passo Fundo: Clio Livros, 2001. 45 Os dois aspectos apontados no sero discutir aqui. Entretanto, seria por demais interessante vincula-los na relao especfica com os programas de ps-graduaes e a questo das regionalidades. 46 Ver mais em DIEHL, Astor Antnio. Cultura historiogrfica: memria, identidade e representao. Bauru: Edusc, 2002.
12 e do conjunto de tendncias do paradigma dominante. Esse aspecto por si s j gera um conflito, estabelecido entre o existencial do historiador e o paradigmtico de sua cincia. Nesse aspecto, no devemos confundir as prticas existenciais no-discursivas como, por exemplo, comportamento cotidiano, com discursos impressos sobre o cotidiano. Ou seja, a orientao de misturar experincias existenciais e textos de crtica historiogrfica. Alis, essa orientao faz parte da patologia da histria como cincia. Portanto, o foco central desse primeiro elemento o da histria como experincia ou espao das experincias. O segundo elemento da meta-discurso o das perspectivas orientadoras sobre o passado, ou seja, o conjunto de teorias, as quais do significado ao passado. atravs das perspectivas orientadoras que os interesses ajudam a compreender as transformaes temporais do homem, do seu mundo e a conscincia de seu reconhecimento como histrico. O terceiro aspecto constitutivo da meta-discurso as orientaes e regras metodolgicas, com as quais as experincias do passado so inseridas nas perspectivas orientadoras atravs da pesquisa e de todo arsenal tcnico de manuseio documental na significao das informaes. A insero das experincias do passado nas perspectivas orientadoras feita atravs das estratgias de pesquisa. O arsenal tcnico e as estratgias vo mudando conforme as orientaes tericas. O quarto elemento constitudo pelas formas de representao historiogrfica, atravs das quais so elaborados os textos e discursos sobre o passado. A dimenso textualdiscursiva compreende aspectos como memria, continuidade/ruptura, comunicao, identidade e sentido do tempo, vinculados a quatro estruturas narrativas: a exemplar, a tradicional, a crtica e a gentica.47 E, finalmente, o quinto elemento constitutivo da meta-discurso envolve as funes do conhecimento histrico no contexto social e individual. Em outras palavras, essas so as funes didticas do saber histrico, atravs das quais germinam novos interesses sobre as prticas scio-culturais. Exatamente nesse aspecto est presente a profunda vinculao entre presente e o passado.
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Estas estruturas narrativas da histria foram desenvolvidas por Jrn Rsen. Procuramos operacionaliz-las em DIEHL, Astor Antnio (org.). Vises da histria do planalto rio-grandense. (1980-1995). Passo Fundo: UPF editora, 2001, p. 17.
13 Portanto, entendemos que a performance da histria com plausibilidade cientfica passa necessariamente pelo estabelecimento desses cinco elementos constitutivos da metadiscurso em um programa epistemolgico mnimo. Independente da postura terica, esse meta-discurso possibilita, sobretudo, uma concepo da prpria possibilidade histrica e do seu desenvolvimento. No seria exagerado afirmar aqui, para finalizar a parte de contextualizao, que a prpria busca desse acordo tambm repleto de produtividade para a histria, pois a relao dialgica a maneira pela qual se revela a conscincia da produtividade. Sem dvida, o aparecimento da conscincia histrica constitui o aspecto mais importante de constituio da histria como disciplina moderna e este o parmetro de compreenso fundamental da historicidade do passado, bem como evidencia o reconhecimento intelectual contemporneo. Porm, no basta apenas a conscincia de que algo esteja mudando. preciso compreender a cultura da mudana e no mais o resultado final da mudana nas formas de produo e representao do conhecimento histrico. Nessa cultura da mudana deve chamar ateno para dois pontos da guinada. O primeiro ponto diz respeito ao abuso da interdisciplinaridade, especialmente com a sociologia da gente, a economia da negociao e na prpria histria com a proposta de estudos da contemporaneidade do nocontemporneo. O segundo ponto da guinada refere-se conscincia de que a verdade no est nos arquivos e o documento por si j no pode mais dar a resposta cabal da veracidade dos fatos. Com esta guinada, a histria passa a ser concebida como inveno controlada das experincias na suas temporalidades. Nesse sentido, a linguagem passa a assumir uma relevncia na busca da universalidade da experincia singular para a tomada de conscincia da contemporaneidade. exatamente esta fuso de horizontes que mostra a relao entre espao de experincias (tradio) e horizonte de expectativas (tempo)48. Esta perspectiva hermenutica empresta o sentido ltimo s cincias humanas e nos coloca como seres finitos, inconclusos que precisam da histria para encontrar o sentido da compreenso em relao amplitude da idia de tradio e a possibilidade de mudana no tempo presente. Parece-nos que estas as concepes que forjam o indivduo e o cidado
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14 modernos em identidades parciais e nem sempre harmnicas a partir do teatro da memria. Tal aspecto tornou-se ultimamente importante no debate pelo seu grau fragmentrio e subjetivo, o qual penetra na intimidade individual onde a noo de sinceridade pode se tornar um aval da verdade. Esta proposio poderia significar dentro dos parmetros mais ortodoxos do pensamento uma afronta aos critrios de cientificidade e de historicidade do conhecimento histrico. Entretanto, o dilogo com as tradies sempre ir supor valores e, fundamentalmente, os sentidos de valores como critrios negociados individual e socialmente dentro de um sistema de referncias. Se continuarmos nesta lgica de pensamento facilmente poder-se-ia levantar a hiptese de que o passado no existe. Existe isto sim a construo temporal de sistemas de referncias, dos quais brotam os sentidos e significados daquilo que denominamos passado e passamos a referenciar como histria. Mesmo com os sistemas de referncias estruturados heuristicamente ainda assim o passado nos prega peas: para uns o passado poderia ter sido...; outros gostariam que ele tivesse sido; ou ainda aqueles que perguntam sobre como possvel reconstitu-lo.... Alis, a histria o espao do tempo e o passado o campo no qual o real brinca de esconder com o pesquisar. O passado uma espcie de sombra de cada um de ns e somente ela nos faz perceber como, onde e quando nos influencia na vida. A compreenso desta problemtica coloca o passado como a possibilidade de futuro e ele um poderoso argumento para a cultura da mudana. Ento, o mapeamento e compreenso dos debates e conflitos na historiografia contempornea dividido em dois grandes leques. O primeiro busca cobrir o territrio dos debates temtico-tericos e o segundo avana sobre a compreenso da paisagem dos debates epistemolgicos e metodolgicos.
15 d) Debates em torno da memria: Walter Benjamin, Paul Thompson, Henri Bergson. e) Debates em torno da crise do Estado-nao: regionalidades, do local, do micro especialmente com Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, Jacques Revel. f) Debates em torno das representaes: Michel Vovelle, Roger Chartier, Georges Duby. g) Debates em torno da histria poltica ou da renovada histria poltica: Ren Remond. h) Debates em torno dos sujeitos histricos e biogrficos: camponeses, mulheres, operrios, bruxas, feiticeiras, prostitutas, homossexuais etc. i) Debates em torno da crise da histria das idias e a conceituao da histria intelectual: Robert Darnton, Franois Dosse, Ren Remond. j) Debates em torno dos sentimentos, da subjetividade, dos medos, da felecidade: Jean Delumeau. k) Debates em torno da modernidade e ps-modernidade: J. Rsen, Remo Bodei, Josep Fontana, Perry Anderson, Eric Hobsbawm, Boaventura de Souza Santos, Marchall Berman. l) Debates em torno da histria cultural: as peculiaridades, a compreenso - Lynn Hunt, Peter Burke, Jacques Revel.
16 e) Debates em torno da histria e narrativa: a histria como cincia da palavra e do texto Hayden White, J. Rsen, Claude Lefort, Eric Hobsbawm. f) Debates em torno da historiografia e cultura historiogrfica: Marie-Paule CaireJabinet. g) Debates em torno da interdisciplinaridade, multi e transdisciplinaridade: o objeto da histria. h) Debates em torno da histria e psicanlise: Michel de Certeau, Paul Ricoeur. i) Debates em torno da didtica da histria: o sentido do conhecimento histrico e as suas funes culturais.
5. Narratividade na histria
O termo narratividade foi introduzido no debate histrico-historiogrfico atravs da filosofia analtica da histria5, bem como, paralelamente, atravs das pesquisas sistemticas da teoria literria e da lingstica exegtica de textos.6 A narratividade abarca a especificidade lgica do leque de relaes da linguagem atravs da qual pessoas narram representaes do passado pela historiografia e literatura. Dependendo das relaes que so estabelecidas nas perspectivas de pesquisas sero tambm vinculados os princpios narrativos, frases, textos como elementos da narratividade, estruturas narrativas ou esquemas explicativos. Na rea do conhecimento histrico e sua respectiva teorizao, narratividade significa, em primeiro lugar, o fato que toda histria apresentada como um contar sobre o passado. Isso significa representar o passado como histrias. Se esse fato est estreitamente fazendo a ligao entre histria e narrao, o que posio indiscutvel, ento surgem, problemas quanto fundamentao mais exata em termos de teorias da histria. A questo central, por onde surgem os problemas de fundamentao, pode ser formulada a partir da construo do prprio conhecimento histrico. A narrativa, com sua
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WHITE, Morton. Foundation of Historical Knowledge. New York: 1965 e DANTO, Arthur C. Analytical Philosophy of History. Cambridge, 1965 (traduo parcial espanhola Historia y narracin. Barcelona/ Buenos Aires/ Mxico: Ediciones Paids, 1989). 6 STIERLE, K. Text als Handlung. Perspecktiven einer systematischen Literaturwissenschaft. Munique: 1975, especialmente p. 49-55.
17 seqncia, a qual culmina na sntese, estruturada atravs de aspectos externos do discurso sobre o passado ou ela vem estipulada a partir da relao conceitual interna da prpria histria? Em outras palavras, poder-se-ia afirmar que a narrativa seria uma resposta para a questo do j discutido problema da filosofia da histria, atravs do qual o passado ou no tornado histria. Essa questo traz tona um problema subjacente, mas no menos importante da narratividade histrica. Podemos ampliar o grau de complexidade da questo, se tomarmos a constituio da conscincia histrica, ou seja, a especificao de como a histria o passado constituda em histria no processo de anlise de pesquisa. Nessa perspectiva, podemos ento observar que a narratividade se tornou um dos problemas atuais do debate. A atualidade desse problema tambm vem, por um lado, da maneira especfica do desenvolvimento da histria cultural, vista pelo ngulo metodolgico e, de outro lado, pela crise paradigmtica que a histria vem enfrentando como cincia.7 A tentativa de buscar estruturas narrativas especficas para a histria e a multiplicidade de perspectivas tericas em jogo indica uma reviso dos conceitos bsicos do prprio conhecimento histrico. Dessa necessria reviso no se explica apenas o fato que o problema metodolgico, mas de que precisamos redefinir as relaes entre narrao e explicao e entre narrao e teoria. Portanto, compreende-se que a base clssica da narrao fora reduzida a uma forma de representao do passado em termos de estruturas didticas: as funes do conhecimento histrico em um dado contexto. Assim, uma reabilitao da narrativa histrica como algo especfico somente ser possvel se tomada como um dos critrios de plausibilidade do conhecimento histrico. Isso significa incluir na sua estrutura terica os elementos do discurso histrico como fonte fundamental da explicao. Arthur Danto procurou, atravs de sua anlise, discutir os esquemas narrativos da explicao histrica, mostrando que a oposio narrativa x teoria falsa, levando inclusive avaliaes errneas. Os aspectos levantados por Danto de forma alguma foram superados naquele momento, tanto que mereceram debates posteriores. Pelo contrrio, suas consideraes
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Ver aqui duas obras recentes DE DECCA, Edgar S.; LEMAIRE, Ria (Orgs.). Pelas margens. Outros caminhos da histria e da literatura. Campinas, Porto Alegre: Ed. da Unicamp, Ed. da Universidade-UFRGS, 2000 e CARDOSO, Ciro F.; MALERA, J. (Orgs.). Representaes. Contribuio a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000.
18 foram importante por chamarem a ateno para o significado da narrao, sua fundamental necessidade no processo de constituio da pesquisa e do conhecimento histrico, bem como na funo de teorizao na histria social e da histria cultural.8 Evidentemente, a caracterizao acima apenas delimitou a importncia da narratividade. certo que a narrativa sempre ir estar presente em textos com contedos histricos; que o espao da histria narrada est presente na interferncia de aes, na heterogeneidade dos fins e na contingncia; que a histria na sua prtica de constituio precisa ter presentes estruturas narrativas; que a narrativa e a teoria precisam estar minimamente em situao de complementaridade; que as teorias tambm precisam estar sujeitas ao contedo do debate da narrao. Nesse sentido, a questo de fundo proposta aqui de trazer a discusso das formas narrativas para dentro do debate mais geral, vinculando-as aos princpios das teorizaes, das metodizaes e didatizaes na constituio do conhecimento histrico. Fora disso, a discusso sobre a narratividade cair no esgotamento das formas estticas de representao do passado e em debates meramente tcnicos, vinculados as estruturas frasais onde o contedo histrico como conhecimento perder seu significado na tarefa de produzir possibilidades de conscincia. As possibilidades de conscincia colocam a narrativa no centro de questes fundamentais para a histria, podendo elas ser apresentadas como origem, como alegoria e como esttica. a) Narrativa como origem Em essncia toda narrativa um discurso fundador e nesse sentido pode designar uma constelao de ingredientes desse discurso9. Narrativa como origem pode designar um lugar privilegiado do passado e de uma recusa da modernidade, pois nesse locus convergem simultaneamente os impulsos restauradores e utpicos. Ela representa o retorno a uma harmonia anterior, perdida pelos processos de modernizao objetivos da sociedade. Buscar fundar um passado perdido
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DANTO, Arthur C. Historia e narracin. Barcelona/ Buenos Aires/ Mxico: Ediciones Paids, 1989.
Em termos de um rastreamento de teorias e percursos das lnguas e linguagens ver ECO, Umberto. A busca da lngua perfeita. Bauru: Edusc, 2001. No deveramos esquecer a possibilidade de outras leituras, ver KUPER, Adam. Cultura: a viso dos antroplogos. Bauru: Edusc, 2002.
19 articulado como se o ideal estivesse no passado. Nesse sentido, podemos constatar uma contradio entre nostalgia e vanguarda ou entre conservao e revoluo. O tempo representado como restaurao e como disperso, assumindo caracterstica alegrica, onde a restaurao estabelece o termo e a disperso o efmero. A narrativa como origem designa ento um salto (Sprung) para fora ou para alm da sucesso cronolgica que nivela os fatos numa linha de tempo linear. A origem quebra a linearidade do tempo, passando a operar com cortes no discurso.10 uma tentativa de fazer saltar do passado congelado para o contemporneo e do contemporneo para o passado quase como algo acidental e subjetivo. Assim, o passado congelado passaria a integrar o contemporneo agitado e esse, por sua vez, poderia fazer parte do passado, formando a heterogeneidade no encontro de experincias diferenciadoras naquilo que pode ser denominado de o contemporneo do no-contemporneo ou a idia de futuro que se tinha no passado ou ainda a idia de passado que se ter no futuro. Mas, a narrativa como origem representada como a vontade de um regresso e, sobretudo, mostra tambm a precariedade desse regresso. A precariedade aparece quando existe a conscincia de que s restaurado aquilo que foi destrudo. Nesse caso, o ato de querer restaurar indica o reconhecimento da perda, a lembrana de uma ordem anterior e a fragilidade dessa ordem. Ento, a restaurao sempre incompleta.11 Continuando o raciocnio, a narrativa sobre o passado via rememorao no implica apenas na tentativa de restaurao do passado, mas alavanca tambm uma transformao do presente de tal forma que, se o passado a for reencontrado, ele no fique o mesmo, mas seja tambm ele retomado e transformado. Nesse sentido, a relao estabelecida entre o passado e o presente implica no reencontro transformador de ambos. J no teremos mais um passado como ele realmente foi e um presente inclume interferncia do passado. Certamente nesse processo transformador existia um vnculo essencial entre narrativa e histria. A linguagem contida na narrativa uma espcie de reatualizao da origem e, portanto, ela possui uma vinculao com o futuro utpico no passado. , em ltima anlise, restabelecer os vnculos com as idias de futuro no presente e as idias de
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Ver CASSIRER, Ernt. Linguagem e mito. So Paulo: Perspectiva, 1972. Uma leitura interessante nesse aspecto a de VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e trgedia na Grcia Antiga. So Paulo: Brasiliense, 1988.
20 futuro que se tinha no passado. Ento, a tarefa da narrativa no apenas a restaurao do idntico esquecido, mas a possibilidade do diferente. Nesse sentido, o discurso ( logos) e onoma (que conhece), vinculando linguagem e histria, articula-se em combinaes diferentes, resultando da as vrias tradies histricas que nada mais so do que tradues do passado. Em outras palavras, as narrativas so tradues e leituras diferentes do passado que, dependendo das combinaes e nfases variadas, possibilitam as mais diferenciadas leituras interpretativas do passado. Porm, todas as possveis tradies possuem algo em comum. Todas elas demonstram serem incompletas e transitrias, mesmo que busquem a perfeio do passado. b) Narrativa como alegoria No sentido clssico, alegoria nasce da distncia histrica que separa o leitor do texto, cujo texto pode apresentar-se das mais diversas formas. Com essa premissa bsica, a alegoria torna-se: uma espcie de intervalo entre ambos; um escndalo do leitor em relao ao texto; e finalmente, como diz Schleimacher, a responsabilidade (o ponto chave) caber ao ato da leitura e no mais ao texto. Com essas trs perspectivas, alegoria a possibilidade de reabilitao da histria, da temporalidade, mas tambm a morte da linguagem humana na relao leitor-texto. Pois, ao mesmo momento que a narrativa possui historicidade, ela demonstra seu carter arbitrrio na medida que traduz a precariedade dela mesma. Seu desejo de eternidade corresponde a sua conscincia da precariedade da descrio do mundo. Parece ser essa a fonte da alegoria: a coexistncia entre efmero e o eterno. Ou como diria Baudelarie: a coexistncia da harmonia e da modernidade devoradora. exatamente dessa coexistncia contraditria que a narrativa experimenta sua viabilidade, a qual se encontra situada entre expresso e significao. Origina-se da o fato da alegoria apontar para a impossibilidade de um sentido eterno. Apesar dessa impossibilidade, ela tambm aponta para a necessidade de preservar temporalidades significativas recheando-as de historicidades, porm transitrias. Atravs da alegoria aprofunda-se uma relao trplice: a) a do sujeito clssico que podia afirmar uma identidade coerente entre si mesmo. A alegoria agora passa a sugerir precariedade da identidade coerente e verdadeira e nisso o sujeito construtor da totalidade coerente passa a vacilar;
21 b) a dos objetos que no so mais os depsitos da estabilidade ltima, passando agora pela decomposio e fragmentao; c) a do processo de significao, cujo sentido surge da corroso dos laos de experincias de sujeitos e objetos. Do aprofundamento da trplice relao acima exposta, ocorre a morte do sujeito clssico e o surgimento da forma alegrica do texto, passando a no existir mais a independncia entre sujeito e objeto; como tal tem-se a inexistncia de sentido prprio. A relao de dependncia entre sujeito e objeto propicia com que a alegoria (ela prpria) seja a fragmentao do real e a renncia da aparncia falsa de totalidade. Assim, a alegoria possibilita a produo abundante de sentidos sobre as runas (o passado) de um edifcio do qual no sabemos se ele existiu por inteiro ou se ele foi uma construo.12 Mesmo com a multiplicidade de significaes que podem ser produzidas pela alegoria, ela revela uma conscincia de momento da leitura. Ela ajuda a compreender a temporalidade, portanto, a transitrio e a fragilidade do presente.
c) Narrativa como esttica A ansiedade do mundo ocidental em perceber operacionalizados os princpios da modernidade (na sociedade, no Estado, no poder, nas artes...) levou-o a uma interpretao unilateral da prpria modernidade como sendo algo monoltico, perfeito e orientado para o futuro. Longe disso, a origem da modernidade assenta-se exatamente no contrrio dessa interpretao. Ela sugere a multiplicidade nas diferenas prticas discursivas que testemunham o conflito de experincias sociais, cientficas, polticas percebidas, sobretudo, nas formas artsticas.13 Somente muito recentemente, com a crtica acirrada aos parmetros da modernidade, percebeu-se com mais ateno que os fundadores da modernidade, sculo XVIII e XIX, buscam-se o pluralismo, a transitoriedade e a negao da autoridade constituda. O desafio da crtica aos modernos , portanto, duplo: primeiramente reconhecer a crise de identidade no a extino de seus princpios e retornar crtica razo instrumental dentro da
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Uma leitura interessante nesse aspecto a de VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e trajdia na Grcia Antiga. So Paulo: Brasiliense, 1988. Tambm WARNIER, Jean-Pierre. A mundializao da cultura. Bauru: Edusc, 2000. 13 Ver FERRY, Luc. Homo Aestheticus: a inveno do gosto na era da democracia. So Paulo: Ensaios, 1994.
22 atuao experincia do capitalismo avanado. O segundo desafio, ao nosso ver, deve tentar resgatar os impulsos utpicos do esclarecimento e buscar a complementaridade da modernidade. Em outras palavras isso significa dizer que atravs do desafio lanado, os discursos da cincia, da filosofia, da poltica e etc., na crise da modernidade no expressam apenas desintegrao e o sentimento de dificuldade em poder conciliar a racionalidade com os valores do passado. A interrogao ir bem mais alm, pois a esttica da modernidade no pode prescindir da leitura de metforas cifradas de vivncias e do conflito que a prpria experincia de gerao da condio moderna. Parece que so as metforas e os conflitos as chaves de compreenso da esttica na narrativa moderna. No so apenas os mega projetos polticos da modernidade que podem apontar para um novo mundo. Tambm a narrativa de fragmentos pode garantir a representao da capacidade de criao e de resignificao das experincias. Portanto, a questo metodolgica no est somente expressa nos textos, mas sim na possibilidade de leitura e releitura dos mesmos. Esto a alguns argumentos, entre tantos outros, sobre a atualidade da esttica no texto histrico. Sem dvida, a possibilidade de dilogo nesse ponto tensa e conflituosa. Certamente, isso ocorre por conta da mentalidade moderna moldada na cultura ocidental que considerou apenas a experincia da uniformidade moderna quando conjugou natureza, sociedade e narrativa. Nessa conjugao o espao, o tempo e o movimento dos modernos ficaram restritos aos (sub)textos estranhos a razo moderna. O redescobrimento do estranho na razo moderna motivou o alargamento do repertrio esttico dos textos e de ampliao de mecanismos metodolgicos capazes de caracterizar e compreender o moderno. Esses aspectos ajudam-nos a compreender a aproximao entre histria e literatura e a valorizao crescente da narrativa como fator de sustentao do texto histrico. O reconhecimento desse ponto de vista atraiu o discurso histrico contemporneo para um repertrio lingstico de ruptura da histria naturalizada com as cincias positivas. Estabelecem-se novas relaes entre sociedade e histria, especialmente (a) pela busca da dinmica multitemporal do tempo como expresso do rompimento com a totalidade e com a unidade eterna, diante da desintegrao das promessas de modernidade;
23 (b) pela busca da transitoriedade, cujos aspectos centrais so a novidade e efmero, a inveno e a subverso dos sentidos tradicionais; (c) pela negao da modernidade e do otimismo, que so valores expressos na linearidade no tempo, no progresso e na cincia como fatores de redeno da humanidade e (d) pela negao da autoridade da tradio historiogrfica com seu ideal universal. As formas de oposio tradio da mentalidade moderna buscam o ertico, a imaginao, o cotidiano, o mgico atravs da linguagem primeira capaz de resgatar a experincia e o tempo anterior histria cincia14. Cria-se assim um texto inundado pelo estranho, pela ironia, pelo transitrio, pelo corpo etc., envolto pela linguagem descomprometida pelo regramento cientfico moderno que, entre outras coisas, escondia a cotidianidade e a tragicidade no passado. Tais textos exercem atualmente um fascnio mgico sobre o leitor. Conseguem possibilitar, por vezes, uma capacidade de intermediao comunicativa entre os processos civilizadores e a subjetividade imaginativa do leitor. Contudo, por um lado, preciso notar que tais caractersticas em textos histricos so por vezes criticadas como sendo ps-modernos ou anti-modernos15 pelo seu dficit na produo de identidade. Claro est que a produo de identidade sofreu modificaes profundas ao longo da prpria constituio da modernidade. Assim, os defensores da modernidade jamais apostaram em uma nica identidade e uma verdade, mas, sobretudo, na multiplicidade de discursos concorrentes. Por outro lado, deixar fluir a insero esttica no deve significar a sua autonomia completa, pois isso tambm a afastaria do cotidiano das experincias, do social e do histrico. Se isso ocorrer teramos a ornamentao do texto sobreposto ao histrico e, consequentemente, nada mais do que um novo jogo de hostilizao ao passado, onde predominariam o gozo das formas do esteticismo tcnico e superficial. Em outras palavras, teramos apenas um paraso esttico de alienao e de escapismo.
6. Hermenutica e representao
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As teorizaes sobre o ps-modernismo, vistas a partir de vrias facetas do debate podem ser acompanhadas em HUTCHEON, Linda. Potica do ps-modernismo: histria, teoria, fico. Rio de Janeiro: Imago ed., 1991. 15 Fizemos essa crtica em Vinho velho em pipa nova: o ps-moderno e o fim da histria. Passo Fundo: Ediupf, 1997. Conferir a posio de diversos autores em LECHTE, John. 50 pensadores contemporneos essenciais. Do estruturalismo ps-modernidade. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
24 Hermenutica significa, primeiramente, o processo metodolgico da interpretao com o objetivo de compreender o significado quando um texto no entendido de imediato. Ela foi inicialmente arte da interpretao dos textos bblicos e jurdicos de forma normativa e ocasional. Alm dessa hermenutica normativa, Gadamer17 examina, sobretudo, na filosofia da hermenutica a possibilidade do compreender o seu significado numa espcie de teoria do conhecimento das cincias humanas, separando-as de explicaes das cincias naturais. De ambas as variantes da hermenutica possvel diferenciar o compreender histrico. A compreenso histrica ocorre no apenas no texto ou nas fontes, mas em toda ao humana do passado capaz de ser reconstruda dos documentos e das fontes orais. Nesse sentido, os restos de expresso das aes humanas no passado, contidos nas fontes recebem interpretaes compreensveis a partir de tradies, representaes de valor, significaes e de perspectivas de futuro. A compreenso histrica sempre ter ento presente a experincia atual de vida do historiador e, portanto, de uma pr-compreenso como ponto de partida. Entretanto, para que as aes do passado no estejam submetidas somente ao presente, preciso lanar mo de uma srie de regras e operaes, com as quais o contexto das aes e suas relaes possam ser reconstrudos e objetivados e assim possam ter um mnimo de universalidade, mesmo que precria18 e, diga-se de passagem, ela ser sempre precria. Essas regras e operaes possibilitam corrigir e, ao mesmo tempo, ampliar o horizonte de compreenso original dos intrpretes e separar deste compreender, aquilo que foi atribudo posteriormente pelo historiador sobre as intenes da prxis humana no passado. Requer-se assim uma interpretao crtica, tal como propem as cincias humanas para que se chegue ao sentido mais prximo possvel da veracidade e no nos chegue mascarado ou deformado por ideologias.19 Entretanto, iluso buscar o conhecimento histrico a partir de um modelo objetivista. Isso ocorre basicamente por duas razes: a) a compreenso entendida como
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Um bom exemplo para esse aspecto so as obras de VICO, Gianbattista. A cincia nova. Rio de Janeiro: Record, 1999 e DILTHEY, W. Aufbau der Geschichtlichen Welt in den Geisteswissenchaften. (Gesammelte Schriften. Stuttgart: 1958). 18 DOSSE, Franois. Paul Ricoeur revoluciona a escrita da histria. In: Rev. Margem. Faculdade de Cincias Sociais, PUCRS, n. 5, 1996. p. 9-30. Tambm em DOSSE, Franois (2001). Op.cit. p. 71-100. 19 GADAMER, H. G. Problemas epistemolgicos das cincias humanas. In: FRUCHON, Pierre (org.). O problerma da conscincia histrica. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 19.
25 um projeto lanado, ou seja, o historiador que se lana para alm do tempo, numa espcie de busca do significado antecipado, b) por que vivenciamos o tempo histrico, no qual o passado nos interpela constantemente. Nas duas razes apontadas, o passado , ao mesmo tempo, saber histrico e ser histrico. Evidentemente, que a essa altura importante entender o quadro complexo em formao, especialmente no sentido do pertenciamento a uma tradio e ao estabelecimento do crculo hermenutico, segundo Gadamer, cuja discusso vem de Schleiermacher. Tratase aqui de compreender o valor intrnseco dos argumentos de um autor, cujo texto pertence, em primeiro lugar, ao conjunto de obras e, em segundo, ao gnero historiogrfico de onde provm. Sua compreenso s acontecer se entendermos o texto no momento de criao, inserido na totalidade experimentada pelo seu autor. Portanto, o objetivo daquele que interpreta se fazer mediador entre o texto e a totalidade nela implcita e, nesse sentido, a hermenutica procura restituir e restabelecer o acordo.20 No seria exagero afirmar aqui que a prpria busca desse acordo a produtividade do processo histrico, pois estamos lidando com a possibilidade da distncia temporal quando nos remetemos ao passado (recuo no tempo). Esse remeter ao passado implica na produtividade de novas temporalidades a partir de um presente indefinido. O acordo facilmente rompido, pois recuamos no tempo com preconceitos. Esses preconceitos so vistos aqui no como particulares, mas como diretrizes da compreenso.21 Novamente, para que a significao do passado no seja perspectivada cegamente pelos preconceitos, preciso uma crtica hermenutica. A tarefa crtica da hermenutica deve distinguir os preconceitos que cegam, dos preconceitos que esclarecem. Obviamente, o objetivismo reducionista no teria mais nada a dizer frente esse impasse. Seria, portanto, necessrio ir a radicalidade dos pontos em questo. A crtica hermenutica deve denunciar o preconceito, surpreendendo-o de sua possvel validade. A reflexo de denncias dos preconceitos formada pela interrogao provocativa. O resultado disso o retorno renovado com uma tradio que se encontra na
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GADAMER, H. G. In: FRUCHON, P. Op. cit. p. 59. Ver SOUZA SANTOS, Boaventura de. Introduo a uma cincia ps-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. Ao nvel das preocupaes metodolgicas ver CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construes da realidade social. Bauru: Edusc, 2001.
26 origem deles, podendo esse encontro ser a constatao da alteridade. Nesse sentido, toda possibilidade de compreenso comea com algo que nos provoca. Estabelece-se ento uma situao dialgica de mediao entre o presente e passado. Evidentemente, a crise dos fundamentos da histria como disciplina com plausibilidade levou a discusso para campos polarizados. De um lado, esto aqueles que se mantm definidos por uma reconstituio estrutural do passado. Do outro lado, encontramo-nos de frente com aqueles que encerram o debate no nvel da racionalidade universal, deslocando-se para a reconstituio das representaes do passado. Essa bifurcao do debate caracteriza-se, por vezes, pela estigmatizao e em uma luta entre o bem e o mal. Nesse caso, ambos os lados fazem carecem e fecham-se para as possibilidades de dilogo, apesar de fazerem parte da mesma moeda. A relao dialgica a maneira pela qual se revela a conscincia da produtividade histrica na compreenso hermenutica. Sem dvida, o aparecimento da conscincia histrica talvez o aspecto mais importante da constituio da histria como disciplina moderna. A conscincia histrica, alm de ser o parmetro de compreenso fundamental da historicidade do passado, tambm a possibilidade do reconhecimento intelectual contemporneo do poder suportar e do ter que suportar o mundo nas suas mais diferenciadas significaes. A conscincia histrica, com esse qualitativo, mostra-nos que estar no mundo ainda no o parmetro da chave e muito menos da fechadura, de que a partir da histria teramos o conhecimento suficientemente infalvel e ideal para a revoluo dos modos de ser, das sensibilidades e, sobretudo, das sociabilidades.
7. Histria e representao
A rigor, todas as sociedades produzem suas representaes, com as quais reconstituem do passado, imagens, eventos, fatos, cronologias como aquilo que deveriam ser preservados para as futuras geraes. Evidenciamos nos itens anteriores que a histria no cumpre apenas uma funo cognitiva de construo dos conhecimentos. A histria, atravs da perspectiva pragmtica, tambm adquire socialmente formas de identificao coletiva, de explicao das origens e de legitimao da hierarquia estabelecida.
27 Com esse aspecto no estamos negando a legitimidade da histria como disciplina, mas afirmando que ela ultrapassa o nvel do relato e daquilo que representa em termos de contedos explicitados.22 Mas, por outra instncia, o conhecimento produzido constitui um capital simblico23 da sociedade que a produz, vinculado a um determinado tempo, espao e movimento. A representao, enquanto objeto da histria, tem sua existncia em abordagens e posicionamentos plurais. Essa compreenso permite pensar a histria como uma forma de representao que seleciona elementos do passado, objetivando-os sob formas discursivas e simblicas, que, por vezes, passa a ser compreendido como forma legtima de conhecimento da realidade social. Por outro lado, esse conhecimento passa a ser um lugar antropolgico-existencial a partir do qual se estabelecem relaes com o mundo e com os outros, projetando-se sonhos e utopias. Nesse sentido, o campo de atuao historiogrfica insere-se na constituio das representaes memorativas que, fundadas na concretude do real, na organizao e na estrutura social, so percebidas como espaos de manifestao de lutas sociais e do poder. As memrias historiogrficas, ento, podem ser tomadas como produtoras de representao capazes, pela sua recorrncia, de levar a fazer ver e a fazer crer, reforando os laos identitrios e legitimando prticas de excluso e/ou de incluso.24 Nessa perspectiva possvel lanar mo de uma srie de noes e conceitos relativos ao campo da memria. Le Goff discute a problemtica dos usos da memria coletiva na luta das foras sociais pelo poder, apontando, dessa forma, para os usos que se fazem da memria.25 Hobsbawm, ao indicar que a inveno de tradies utiliza a histria como a legitimadora das aes de determinados grupos e como fundamento de coeso social. 26 Halbwachs destaca a importncia da memria, a qual considera a partir de seus suportes
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Sobre os usos da histria, ver FERRO, M. As falsificaes da histria. 1981; LE GOFF, J. Memria. In: Enciclopdis Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da moeda, 1984. p.423-483. 23 BOURDIEU, P. O poder simblico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro, 1989 e CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1999. Ver tambm SARTORI, Giovanni. Homo videns: televiso e ps-pensamento. Bauru: Edusc, 2001. 24 BOURDIEU, P. O poder simblico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro, 1989 e CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1999. 25 LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas: ed. da Unicamp, 1990. 26 HOBSBAWM, E. J.; RANGER, T. A inveno das tradies. So Paulo: Paz e Terra, 1984.
28 sociais, das formas como ela socialmente construda e como se estabelecem os vnculos entre aqueles e o lugar social de quem os produz. O autor formula a noo de pertencimento a um grupo social com o mecanismo por meio do qual os indivduos so capazes de adquirir, localizar e evocar as suas memrias.27 J Fentress trabalha sob a perspectiva de que a memria histria e simultaneamente numa fora da histria; um meio de unificao e legitimao, mas tambm um fator de diviso e falsificao.28 Connerton analisa os rituais performticos da transmisso de memrias com atos de transferncia que tornam possvel recordar em conjunto, como mecanismos constitutivos da perpetuao de lembranas por uma dada sociedade, entre os quais situa as cerimnias comemorativas.29 Pierre Nora trabalha com a noo de lugares da memria, a qual permite inferir que o conhecimento histrico ainda memria, porque sacraliza, comemora e celebra. Tal noo remete questo da identidade coletiva que se expressa por um sentimento de referncia grupal que define os grupos, na busca de reconhecimento e no movimento de resgate de signos de pertencimento local.30 claro ao descrever, registrar e narrar acontecimentos considerados dignos de memorizao, situando-os quanto ao tempo, atos e sujeitos, constitui-se numa cronologia referencial e atingindo-se a fronteira onde a memria se torna histria.31 exatamente com essa qualificao que trabalha o historiador das memrias historiogrficas, dando-lhe uma dimenso de representaes em textos histricos.
HALBWACHS, M. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990. Um dos fundamentos deste debate est na raiz do conceito de cultura, ver: CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais. Bauru: Edusc, 1999. 28 FRENTESS, J.; WICKHAN, C. Memria social. Lisboa: Teorena, 1994. 29 CONNERTON, P. Como as sociedades recordam. Portugal: 1999. 30 D LESSIO, M. M. Memria: leitura de M. Halbwachs e P. Nora. In: Rev. Brasileira de Histria. So Paulo, n 25-26, set. 92 /ago.93. Uma discusso recente est em KELLNER, Douglas. A cultura da mdia. Bauru: Edusc, 2001 e em MATHEWS, Gordon. Cultura global e identidade individual. Bauru: Edusc, 2002. 31 LE GOFF, J. A histria nova. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 18.
29 O primeiro nvel o da situao da histria como disciplina com plausibilidade cientfica. Argumentvamos anteriormente que a produo do conhecimento histrico se deslocou das cincias fsico-biolgicas. Esta separao gerou para a histria um clima de crise dos seus critrios racionais e cientficos e, como conseqncia, instaurou na comunidade cientfica uma espcie de insegurana terico-metodolgica. Prprio dessa insegurana terica o fantasma da intransparncia na operacionalizao de conceitos, de categorias e teorias atravs da pesquisa e na possibilidade de releitura das fontes. Tambm nesse primeiro nvel temos conjugado uma valorizao cada vez maior do tempo presente no condicionamento dos interesses pelo conhecimento histrico. O presentismo assume a funo predominante sobre o passado, ou melhor, sobre a construo dos sistemas de referncia que por sua vez permitem dar sentido ao passado. Esta mudana nas perspectivas orientadoras sobre o passado resulta na passagem do paradigma analtico, totalizante, iluminista e cientfico para as tendncias fortemente influenciadas pela hermenutica. Nesse caso, a pesquisa se volta para a descrio densa de fragmentos, do micro e das experincias cotidianas. Tal processo poder-se-ia denominar por antropologizao da histria. Esse processo passvel de compreenso na medida que no paradigma analtico, a histria percebida como coero e a questo de fundo gira sobre a capacidade explicativa de sistemas complexos e estruturais, sejam eles econmicos ou burocrticos. Enquanto nas tendncias hermenuticas, a histria percebida como resistncia aos processos de modernizao e a questo de fundo gira sobre a capacidade de compreenso de especificidades, de aes e de liberdades, inseridas em tradies culturais. nesse momento que a histria perde dois dos seus pilares mestres de sustentao: o tempo linear e a concepo do progresso cumulativo. Agora, tornou-se mais importante do que dizer o qu mudou, mas entender o por qu da mudana. O o qu mudou, a anlise de crtica historiogrfica de obras em questo j deram conta. O por qu da mudana vinculase ao forte teor presentista das experincias reconstrudas do passado e ainda merecem ateno. Porm, destacamos um conjunto de quatro aspectos sintomticos agregados ao presentismo: i) a falncia dos paradigmas tradicionais da histria que se assentavam quase exclusivamente na concepo de progresso e na linearidade do tempo; ii) os paradigmas tradicionais pressupunham as revolues otimistas crescentes. Em outras palavras, tais concepes tinham embutidas orientaes de redeno das sociedades e da humanidade,
30 arrancando-a da servido do passado. O sentido teleolgico dessas teorias, a sua no realizao e, sobretudo, o avano descomunal do vetor instrumental causou uma profunda experincia de frustrao em relao ao futuro. Na medida em que o futuro frustra, o presente e o passado passam a ser o ncleo de ateno. O vetor retrospectivo da razo iluminista torna-se o aval de retorno idealizado ao passado. Em casos radicais, esse aspecto pode significar a fuga do presente/futuro frustrado para o passado de forma ideal e mesmo romntica; iii) metodologicamente, os conceitos estruturais pela nfase atual ao fragmento no conseguem mais captar as microrelaes do cotidiano ntimo das pessoas. Podemos afirmar que est havendo, portanto, a regraduao da rede metodolgica para poder capturar os gestos significativos do passado na reconstituio das histrias de vida. Aqueles e aquilo que fora higienizado pelos modelos analticos da razo iluminista so agora catapultados como sombras para o centro do palco. O pessimismo em relao ao futuro sombreado ainda mais por aquilo que poderamos chamar de formas de resistncia. O ideal no futuro passa ao passado como posio cultural ante ao avano dos processos de modernizao, institudos a partir do iluminismo; iv) tematicamente podemos observar um certo pessimismo em relao ao papel social do historiador. Ou seja, j no se percebe mais uma teoria subjacente da mudana social na produo do conhecimento histrico. Percebese, isto sim, um retorno s temticas micro perspectivadas como formas de resistncia que, por vezes, esto traduzidas em cortes quase libertrios e anrquicos de indivduos ou grupos frente histria estrutural e modernizadora. Essas temticas, genericamente, esto presentes em trs vnculos: a micro perspectiva dos temas de interesse, o cotidiano ntimo e a relao pblico x privado. Esses trs vnculos, por sua vez, podem ser cruzados com aspectos antropolgicos - a questo de gnero, por exemplo -, aspectos institucionais presdios, fbricas, etc -, ou ainda com aspectos culturais religiosidades heterodoxas, as fraquezas humanas, as representaes simblicas etc. Evidente est que ainda mais fcil perceber tais temticas e seus cruzamentos nas tendncias da nova histria, mas elas tambm aparecem correlatas ao marxismo, na tradio Max Weber e, diga-se de passagem, muito bem institucionalizadas nos programas de ps-graduao
31 O segundo nvel para a compreenso dos dilemas est relacionado com o fato de que essa situao descrita gera trs variveis novas: ao nvel da histria, ao nvel do social e ao nvel do historiador. Vejamos como estas variveis se apresentam assim: i) ao nvel da histria temos ento uma profunda mudana nos pontos de referncia e de apoio da histria como disciplina. At meados dos anos de 1970 tnhamos o debate canalizado sobre a dependncia, da autonomia estrutural e cultural. Predominava ainda uma viso rural-urbana da histria sob a perspectiva da histria da sociedade brasileira. Nesse debate estavam agregados fortes caractersticas de viso otimista e coletiva de histria, perpassada pelo critrio do progresso material e poltico da modernizao. A mudana consolida-se nos anos 1980 com as novas tendncias perpassadas, desta vez, pela viso cultural, pelo antropolgico e individual. Rompe-se a relao rural-urbana, entrando em nfase a viso social urbana na perspectiva da crtica modernizao e, metodologicamente, nas posturas da histria social e transdisciplinar. Alis, o cotejamento interdisciplinar da modernidade cede lugar ao multi e pluri quando so rompidas as fronteiras de identidade das diversas disciplinas sociais. Parece-nos atravs da anlise dos temas propostos, que neste processo de mudana houve um descuido dos historiadores com as questes filosficas da histria, as quais fundamentam as prprias orientaes tericas. ii) Ao nvel social, o conhecimento produzido por essa nova historiografia acentua a crise e a falta de perspectivas em relao aos projetos magnos do sculo XIX. Na tnica do quando o futuro frustra, o passado reconforta, a historiografia, centrada no individual, no regional, no tnico etc,. possui um potencial que possibilita o ressurgimento de novos mitos, tais como: os mitos tnicos mesclados com relaes econmicas nos separatismos; os mitos geogrficos com os novos espaos econmicos do consumo; os mitos temporais com a determinao de pocas; os mitos polticos com a idia da nao cultural e os biogrficos com o novo individualismo. Ainda ao nvel social podemos perceber uma aproximao entre a histria e a literatura, tematizada a partir de experincias cotidianas. As janelas do cotidiano so lastreadas em funo da fuga do pblico ao privado, o fechamento do indivduo em si e os temas religiosos msticos num evidente interesse pela filosofia da vida em oposio ao primado de generalizaes e das leis sociais. Adianta-se desta forma a precariedade do universal e da racionalidade instrumental. A multiplicidade representa um obstculo para as
32 teorias uniformizantes e, dessa forma, a unificao de especificidades culturais passa a ser problemtica, pois o contedo terico da individualidade est circunscrito pelas esperas da experincia social, dotada de coerncia e identidade, situadas nos limites das esferas institucionais, rituais e simblicas. iii) Ao nvel do historiador, a histria e o social em crise, na produo do conhecimento e, principalmente, nas funes didticas desse conhecimento se apresenta com trs caractersticas bsicas: (a) o conhecimento histrico produzido e sua intermediao didtica conseguem apenas alcanar uma postura crtica conformista da sociedade, pois, (b) o simples retorno ao indivduo e ao sujeito e seu fechamento em si quebra qualquer possibilidade de crtica estrutural, por exemplo, dos processos de dominao e explorao; (c) academicamente, o conhecimento historiogrfico, pela perda da teoria subjacente de mudana social, tornar-se-ia um discurso do politicamente correto. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BERMAN, M. Tudo que slido desmancha no ar. So Paulo: Companhia das Letras, 1986. BODEI, Remo. A histria tem um sentido? Bauru: Edusc, 2001. BOURDIEU, P. A economia das trocas lingsticas. So Paulo: Edusp, 1996. BOURDIEU, P. O poder simblico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro, 1989. BOURDIEU, P. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus, 1996. BOURDIEU, P. Campo intelectual e projeto criador. Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929 1989). 2. ed. So Paulo: ed. da Unesp, 1991. CARDOSO, Ciro F.; MALERA, J. (Orgs.). Representaes. Contribuio a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. CASSIRER, Ernt. Linguagem e mito. So Paulo: Perspectiva, 1972. CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1999. CHAUVEAU, A.; TTARD, Ph. (org.). Questes para a histria do presente. Bauru: Edusc, 1999. CONNERTON, P. Como as sociedades recordam. Portugal: 1999. CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construes da realidade social. Bauru: Edusc, 2001. CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais. Bauru: Edusc, 1999. D LESSIO, M. M. Memria: leitura de M. Halbwachs e P. Nora. In: Rev. Brasileira de Histria. So Paulo, n 25-26, set. 92 /ago.93. DANTO, Arthur C. Analytical Philosophy of History. Cambridge, 1965(traduo parcial espanhola Historia y narracin. Barcelona/ Buenos Aires/ Mxico: Ediciones Paids, 1989). DANTO, Arthur C. Historia e narracin. Barcelona/ Buenos Aires/ Mxico: Ediciones Paids, 1989.
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