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Senhora
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E-book362 páginas5 horas

Senhora

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Sobre este e-book

"Senhora", de José de Alencar, é uma das obras-primas do romantismo brasileiro, tecendo uma crítica social incisiva através de uma história de amor que desafia as convenções sociais e as expectativas de classe. Ambientado no Rio de Janeiro do século XIX, este romance narra a trajetória de Aurélia Camargo, uma jovem de origem humilde que, após herdar uma grande fortuna, se vê em posição de reverter o jogo social, comprando o amor de seu antigo noivo, Fernando Seixas, que a abandonara por uma dote maior.

Alencar, com sua prosa elegante e perspicaz, explora temas como o casamento por interesse, a hipocrisia das elites e o poder transformador do dinheiro, sem deixar de lado a complexidade dos sentimentos humanos e a possibilidade de redenção. "Senhora" é um retrato fiel e crítico da sociedade carioca da época, oferecendo ao leitor um panorama rico das dinâmicas sociais, dos costumes e da moralidade vigente.

Esta edição de "Senhora" convida a uma reflexão sobre o amor, o valor da integridade pessoal e as armadilhas do destino em uma sociedade regida pelo materialismo. A história de Aurélia e Fernando é um lembrete poderoso de que, mesmo diante das convenções e dos julgamentos sociais, a verdadeira essência do ser humano pode prevalecer.

Descubra "Senhora", um romance que combina drama, crítica social e um estudo profundo dos relacionamentos humanos. José de Alencar, neste trabalho, não apenas entreteve, mas também iluminou, desafiando seus leitores a questionar as estruturas de seu tempo. "Senhora" permanece relevante, cativando novas gerações pela sua história envolvente, personagens memoráveis e pela maestria narrativa de um dos maiores nomes da literatura brasileira."

SOBRE O AUTOR

José de Alencar, nascido em 1829 no Ceará, Brasil, foi um dos mais proeminentes escritores do século XIX. Reconhecido por suas obras românticas, como "Iracema" e "Senhora", Alencar contribuiu significativamente para a literatura brasileira, explorando temas como o amor, a natureza e a identidade nacional. Além de escritor, Alencar também foi político e jornalista, desempenhando um papel importante no cenário cultural e político do Brasil da época. Sua escrita eloquente e sua visão romântica da vida no Brasil colonial continuam a encantar leitores até os dias de hoje, solidificando seu lugar como um dos grandes nomes da literatura brasileira.
IdiomaPortuguês
EditoraLibrofilio
Data de lançamento18 de dez. de 2024
ISBN9782384613908
Senhora

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    Senhora - José de Alencar

    Introdução

    ¹

    ANTONIO DIMAS

    Mas não são apenas as casas que falam e revelam a vida, o espírito e o gosto dos donos. Falam também por sinais outros surdos-mudos que são os móveis.

    GILBERTO FREYRE

    Há anos raiou no céu fluminense uma mulher de fibra. Chamava-se Aurélia Camargo, e foi em sua homenagem que José de Alencar (1829-77) escreveu este romance. Com o tempo, Senhora (1875) transformou-se em marco de nossa literatura romântica, não por causa da beleza de Aurélia, lugar-comum entre heroínas da época, mas por sua determinação, incompatível com a figura feminina de então. Sob a extrema juventude e os dotes físicos e financeiros daquela deusa dos bailes e musa dos poetas, Alencar injetou dose tão alta de resolução pessoal que não há como admiti-la corriqueira. Quem, de tutano, surgiu antes de Aurélia? Com Senhora, Alencar reverteu o estereótipo da mulher frágil e submissa ao mando do macho. Pelo menos nos limites brasileiros. Com Senhora, Alencar solapou o território masculino e nele abriu fendas para a emergência futura de mulheres menos acuadas, mais tarde conhecidas como Capitu, Rita Baiana, dona Guidinha do Poço, Sinhá Vitória, Maria Moura, Gabriela, Nina, Rosalina, Diadorim — para ficar em pouco mais de meia dúzia.

    Com A moreninha (1844), Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) cravou em nosso imaginário a mocinha catita e pueril, cujo traço mais relevante é o da beleza e o da inocência, nada mais que isso. Os recursos mentais de que a moreninha Carolina dispõe destinam-se ao uso exclusivo do jogo amoroso repleto de peripécias, todas solúveis, no entanto, em favor de sua ligação final com Augusto, tido como resistente ao amor.

    Alguns anos se passaram antes que Aurélia Camargo entrasse em cena. Nem Iracema, a virgem dos lábios de mel que surge em 1865, nem as mulheres de Memórias de um sargento de milícias (1853) fazem parte desta contagem, que se interessa apenas por figuras que frequentavam a diminuta corte do nosso Segundo Reinado, entre 1831 e 1899, período de formação social da burguesia urbana nacional. A chegada de Aurélia, no entanto, não ocorre sem prévia preparação do leitor, ainda treinado pelos lances folhetinescos de narrativas em que a conquista do amor definitivo só se dava depois de superados os inúmeros obstáculos que compõem o catálogo romântico convencional: cartas anônimas, identidades trocadas, desaparecimentos súbitos, desníveis sociais flagrantes etc.

    Senhora desdenha tais recursos. Seu foco é outro. Mais que um reajuste social entre seres humanos de níveis diferentes, o que importa é o reajustamento pessoal entre eles, ainda que o dinheiro esteja por trás dessa engrenagem pesada. Senhora é vestibular para o romance de acento psicológico, que ainda surgiria antes de terminar o século. Sua meta é a intimidade das pessoas que pretendem boas maneiras e recato na circulação social, delas expurgando as convenções que as amargam. Tem lá sua malícia esse autor, Conselheiro do Império e figura vetusta, segundo a iconografia oficial!

    Em Senhora, Alencar enfoca a tensão dramática de tal maneira que se tornam irrelevantes as rotineiras peripécias secundárias que desviam o curso da ação. Ou se esfumam os eventuais predicados materiais que a preenchem, exceto aqueles que manifestam, quando necessário e de forma ostensiva, a opulência financeira de Aurélia.

    Do ponto de vista da narração, os dados colaterais, que costumam retardar o progresso da estória, só vêm à tona como dado causal imprescindível para que o enredo não fique destroncado. Alencar reduz esse recurso ao mínimo necessário e não se permite a extravagância. Por exemplo: o capítulo em que Aurélia se torna herdeira (2-viii), ou aqueles outros em que Fernando Seixas recupera um investimento de que até se esquecera, mas polpudo o suficiente para cobrir parte de sua dívida com Aurélia (4-vi e ix).

    Os atavios narrativos só vêm à tona, por exemplo, quando o narrador quer salientar a riqueza material que rodeia Fernando Seixas, o protagonista masculino que se deixara engolfar pela bolsa generosa (e vingativa…) de Aurélia, sua esposa. Ocasiões como essa, frequentes nos capítulos iniciais da terceira parte, abrangem o vestuário, os objetos de decoração, os móveis e até mesmo as refeições (3-ii e iii), que adquirem indisfarçável tonalidade erótica, em gesto sucedâneo e recatado como prescreviam as regras da época.

    Uma dessas regras, em plano que não o da moral, codificou que a narrativa folhetinesca, em plena expansão por causa do surgimento dos jornais, devia ser entrecortada, carregada de surpresas, de reviravoltas, de ganchos e de suspense como forma de escravizar ou de — vá lá um verbo menos grosso e mais atual — fidelizar o leitor. Nesta perspectiva, ia-se avolumando, passo a passo, a complicação narrativa como recurso de saturação de expectativas até que se precipitavam um desenlace, de preferência bombástico, e uma farta distribuição de recompensas e de punições. Isso Alencar evitou em Senhora, ao trocar o modelo extenso pelo compacto.

    Dividindo o romance em quatro partes de tamanho desigual (O preço, Quitação, Posse e Resgate), o romancista deu um quinau no leitor conservador ao oferecer-lhe, de mão beijada, logo no início, a sinopse do romance na primeira parte. Em O preço, acompanhamos a trajetória do par Aurélia-Seixas, desde o primeiro encontro até seu casamento problemático. E, ao mostrá-los sobrecarregados de problemas mal resolvidos, o narrador desrespeita, de novo, outra regra de ouro burguesa: aquela que prega as núpcias como o começo da felicidade permanente. Implodem-se, portanto, de saída, dois preceitos diferentes e caros à ilusão romântica: no plano da estruturação narrativa, vira pó o suspense obrigatório, que deveria reter cativo o leitor até a última página; no plano da realização pessoal, desdenha o narrador da prometida felicidade conjugal. A rigor, este primeiro bloco condensa o romance e é também uma antecipação, que adianta para o leitor convencional, ansioso permanente de surpresas e a elas afeito, os lances mais decisivos desse relacionamento. Em outras palavras: Alencar dispensa esse leitor convencional e requer um outro, menos formatado pelas artimanhas do enredo, sua única motivação. Como atitude, não deixa de ser uma reeducação estética.

    Nas primeiras páginas do livro, o narrador deixa claro que não vai se ocupar da vida social de Aurélia. Que isso não lhe interessa; que isso é de importância secundária, se alguma houver. Que o que lhe interessa é a vida íntima dessa mulher. E, por conseguinte, a vida íntima da sociedade de que ela faz parte. Nada de salão, de festa, de garrulice, de vidinha imediata. Não é da vida externa que se ocupa o narrador. Não é da vida grupal, social, gregária. É da interna. Da domesticidade, da entranha, do interior da engrenagem, metáfora que não é gratuita.

    Deve ser por esse motivo que o romance começa num espaço ilimitado — no céu fluminense — e termina em espaço restrito, numa câmara nupcial, cheia de sombras e silêncio (4-ix). Como recurso adicional e de aparência impensada, o narrador estreita o espaço para coadjuvar no estreitamento do foco. Do alto do céu caiu a estrela que, no final do livro, se arroja aos pés do homem amado, em movimento físico que copia a redução da deusa dos bailes para a escala do humano. Caiu a estrela; caiu a pompa. Nessa trajetória do alto para o baixo é que se dá, então, o paradoxo provocante: em espaço amplo e sem limites, Aurélia vivia no sufoco, no início, embora ostentasse o contrário. No final, o espaço é contido, mas nele Aurélia se desafoga a ponto de revelar que destina seu testamento, seu grande trunfo, a Fernando Seixas.

    O quesito espaço, neste romance, merece, aliás, mais exploração, não só como território ocupado pelo casal belicoso, mas também como área mais ampla em que evoluem, exibem-se e são observados, pela sociedade, Aurélia e Fernando. Um espaço íntimo e excludente em oposição a um outro, coletivo e mais compartilhado.

    Comecemos por um contraste marcante: as casas pobres em que moravam Aurélia e Fernando Seixas, ainda solteiros. Sobre a casa de Aurélia, o narrador é somítico. Pouco informa. Evade-se. Poupando-se da tarefa, ele aguarda a oportunidade do fausto, quando, então, poderá exibir-se à dona. Meia dúzia, apenas, de informações, proporcionais à modéstia em que a heroína vive com a mãe, viúva e doente, e um irmão, um pouco mais velho e lorpa, providencialmente falecido na juventude. Dentro dessa moldura, não é preciso cumular a moça muito além daquilo com que a dotou a natureza generosa. Assim, as poucas referências à casa modesta de Aurélia não vão muito além de uma salinha mal alumiada (2-iv) e de um velho sofá encostado à parede do fundo (2-iii). Desta habitação só ressalta o narrador um detalhe: a rótula, cuja etimologia (do latim rotula-ae) significa rodinha. Sua função, neste caso, não difere das antigas e famosas rodas dos expostos, onde, no Brasil colonial, eram exibidas e rifadas as crianças bastardas ou pobres. Neste cenário rente à penúria, Aurélia prepara-se, sem o saber, para a vitória posterior, quando a fortuna inesperada, resultante do infortúnio de seus pais, virá adornar ainda mais sua beleza. Concorrem, igualmente, para essa súbita elevação pessoal de Aurélia, o achatamento da mãe, envolta em uma mortalha de resignação (2-ii), e o do irmão, um espírito curto e tardio (2-ii).

    Se o espaço da protagonista só vai ser rendilhado depois do sopro de riqueza que a bafeja, o de Fernando não escapa do narrador tendencioso. Para ressaltar-lhe a conduta reprovável, o narrador mostra-o como um sultão pobre, paparicado pela mãe e pelas duas irmãs, ambas no caritó. No entanto, além da subserviência dessas mulheres ou da pobreza de seu entorno imediato, há dois outros dados que não podem passar incólumes: o primeiro é o contraste escancarado entre os pertences de uso coletivo da casa de Seixas, todos muito desgastados, e aqueles outros, bem conservados, que são propriedade dele tão somente; o segundo é a feição de deslocamento que caracteriza os objetos do rapaz.

    No primeiro caso, é patente o antagonismo entre o coletivo e o individual; entre a resignação e a arrogância; entre o anonimato e a ostentação, bem ao gosto do maniqueísmo romântico. Entre móveis sem o menor vestígio de verniz (1-v), junto ao papel amarelado da parede, sobre mesquinha banca de escrever (1-v), próximo a um velho sofá de palha escura (1-v), perto de um pano desbotado (1-v) misturam-se os pertences de Fernando Seixas: guarda-chuvas e bengalas, algumas de muito preço (1-v); finas essências francesas e inglesas (1-v); tinteiros de bronze dourado (1-v); toda a casta de pentes e escovas (1-v).

    Essa contradição não é difícil de perceber. Menos óbvia é uma outra, cuja composição sugere, de leve, a censura moral do narrador, que põe em dúvida a de Seixas. Ao detalhar os objetos que compõem o ambiente mais privado do protagonista, o narrador ressalta que a maioria deles não cumpre a função para a qual foram criados ou inventados. Em outras palavras, são objetos deslocados e sem serventia: é uma cômoda de cedro que também servia de toucador (1-v); é uma estante atravancada de rumas de livros, a maior parte romances (1-v), com pouca função prática; são seus tinteiros de bronze dourado sem serventia (1-v); são seus objetos de fantasia (1-v). Em resumo: um canto íntimo entulhado de coisas sem função; ou de aparência falsa; ou desgastadas ou deslocadas. Nada funciona a contento para o fim para o qual foi criado. Poderia estar aí um indício sutil do que pensava o narrador sobre aquela figura de falso nababo. Seixas vive num quarto pobre, mas limpo (1-v). O contraste entre suas coisas e as coisas da casa é óbvio. Tudo velho, deslocado e decadente como ele, que de jovem só mantinha a aparência. Suas roupas, de fino lavor, espalham-se e são exibidas. São parte de sua fantasia pessoal. Seus móveis, decadentes e comprometidos, ficam escondidos e, por sorte, não são portáteis. São estacionários (1-v) como seu proprietário, que se movimenta só pelo dinheiro.

    Uma última anotação sobre o espaço simbólico do romance, como gancho para ingresso na sua espacialidade social e cultural. Do luxo da casa de Aurélia ocupa-se o narrador em várias passagens, empenhado que está em ser solidário com a protagonista no sentido de espezinhar o arrivismo de Seixas. No lazer doméstico, nas festas eventuais, nas refeições do casal, nos passeios em volta da casa, há sempre oportunidade para que o narrador esbanje informação recheada de requinte. Mas é na divisão desse território doméstico, ocupado por Aurélia, Fernando, d. Firmina e a criadagem, que se esconde o balé da relação conflagrada em que rodopia o casal. Sem forçar a leitura, pode-se dividir a casa de Aurélia em três blocos, cada um deles destinado a um tipo de ação dramática: jardim, sala e alcova.

    Antes de mais nada é preciso repetir que ao caráter concentrado desta narrativa, que explora o drama de um desajuste conjugal, corresponde a concentração do espaço. Aurélia e Fernando transitam muito mais em casa que em lugares públicos, onde muito da tensão poderia esvair-se, onde muito do veneno recíproco poderia diluir-se. Se dependermos dos dois, pouco vamos conhecer do Rio de Janeiro da época. Há outros romances brasileiros que melhor se prestam a isso. É no interior da casa que bem se mostra o movimento contínuo de sístole-diástole que deles se apossa, por dentro e por fora do corpo. É ali que se comprime ou que se dilata a pressão implacável que os envolve. Pressão que Aurélia arquitetara e da qual se tornou sua refém, tanto quanto Fernando. Aurélia, por vingança; Fernando, porque se apequenava inteiro diante do terror pânico da mediania laboriosa (2-v).

    Não é preciso fazer nenhum enfadonho levantamento estatístico para perceber que o grosso das ações deste romance se passa no interior das casas. Sobretudo na de Aurélia, depois de rica. É nela, pois, que se atingem altas voltagens emocionais, uma vez que, como lembramos acima, Alencar dedica à noção romântica do casamento sua visão nem um pouco eufórica. É para a casa falsamente feérica de Laranjeiras, de onde todas as janelas do primeiro pavimento […] despejavam cortinas de luz (1-x), que convergem as graves divergências entre Fernando e Aurélia. No esforço de se apararem as arestas recíprocas, tais divergências serão esmerilhadas aos poucos e, de preferência, nas três áreas já destacadas da casa: no jardim, na sala e na alcova. De fora para dentro ou de dentro para fora, se quiserem, porque ordem mecânica nesse tumulto conjugal jogaria água na fervura desse relacionamento, cuja dinâmica narrativa se empobreceria. Em cada um desses ambientes, modela-se, portanto, um tipo de tensão.

    Se tomarmos o jardim como o extremo oposto da alcova, observamos que sua construção já obedece a certo planejamento e que, por isso mesmo, deixa ele de ser espaço de absoluta liberdade vegetal. As plantas e flores não se dispõem ali à vontade. Prevalecem uma razão e uma disciplina que as orientam e as controlam, que as dominam e as aprisionam, como se fossem espelho do relacionamento entre Aurélia e Fernando:

    Seixas desceu ao jardim, e percorreu os passeios sinuosos do prado artificial coberto de fina grama, e recortado à inglesa. Os tabuleiros de margaridas e boninas, abertas aos primeiros raios de sol, recamavam com suas coroas matizadas a verde alcatifa de relva. Fúcsias e begônias lastravam pelas grades das latadas compondo graciosos bambolins como os tirsos de flores caprichosas (3-i).

    Faz parte de velha tradição literária, retomada com entusiasmo pelo Romantismo, que o jardim seja área propícia ao encontro amoroso, ao descanso, à reflexão, ao relaxamento. É no jardim que os transtornos da vida cotidiana, cada vez mais áspera com o avanço da urbanização, se desfazem, porque as formas, as cores, os perfumes e os sons induziriam, teoricamente, à distensão. Deste clichê, ainda não superado, desvia-se mais uma vez Alencar neste livro, ao transformar essa área em espaço de beligerância, onde os personagens se atritam, se picam e se ferem, em escaramuças de espírito (3-v), imperceptíveis para quem os visse à distância. O jardim abafa, esconde e disfarça as rusgas do casal, mas salienta também a retranca em que Seixas anda vivendo depois que se casou.

    Em passagem significativa, assim que passa a morar na casa de Aurélia, quando tudo o que o rodeava ainda era novidade, Fernando Seixas desce ao jardim bem cedinho, depois de uma noite — a primeira! — em que fora duramente reenquadrado por Aurélia. Muito incomodado com a noite maldormida e bastante indócil, Fernando descobre que um mascate de quinquilharias arreara na calçada a caixa que trazia a tiracolo, e sentado no chão, com as costas apoiadas ao muro, fazia suas contas e dava balanço à mercadoria (3-i).

    Para não tocar no enxoval que ganhara de Aurélia, Fernando resolve comprar um pente e uma escova de dentes (3-i) do mascate. É em gesto rápido como esse, marcado pelo furtivo, que o narrador deixa escorrer, em poucas linhas, sua dubiedade com relação a Fernando, a quem se mostra restritivo, vez ou outra. Dubiedade, aliás, que não é muito diferente daquela que Fernando exibe ao longo de todo o romance. Solidarizam-se, pois, narrador e personagem. Como jeito sutil de indicar a fraqueza de caráter do marido de Aurélia, o narrador se vale de pequenos estratagemas que nos alertam: o momento do dia em que ocorre a ação, indeciso entre o escuro e o claro; o fascínio que Fernando sente pelas bugigangas que o mascate carrega em seu baú (de tesouro?); a indecisão do protagonista, que não sabe se chama ou não o vendedor; seu receio de ser flagrado pela vizinhança em comércio com um ambulante, nem um pouco à altura do poder que sua habitação projeta; o rosto apreensivo de Seixas, protegido por uma grade atrás da qual se esconde; a urgência da negociação irrisória e, por fim, a impressão de furto que Seixas passa ao mascate, que se evade depressa, temeroso de envolvimento com ação suspeita. Em suma, uma ação reversa: o trabalhador, de quem não se espera nobreza, é virtuoso; o janota, de quem se espera dignidade, age como pelintra. Não é por outro motivo que um comentário epigramático e no alvo, murmurado pelo mascate, resume bem a situação e revela a perspicácia de quem o diz: "Che birbone! (3-i), isto é: que malandro!; que velhaco!; que safado!; que molecão!", como queiram.

    Se no jardim é preciso manobrar, dissimular ou negacear, porque uma parte dele é franqueada à vista alheia, dos vizinhos ou dos criados, a alcova, seu extremo oposto, é espaço recluso, sem abertura para o exterior, interdito à curiosidade dos demais e, portanto, muito favorável à explosão da mais íntima emoção. Não é à toa que esse é o lugar onde Aurélia e Fernando se expõem do modo mais franco, onde verbalizam suas dores carregadas de mágoa recíproca, vertem suas frustrações e se purgam à vontade. É onde se lancetam sem dó nem piedade, e onde Aurélia se despenca, inteiramente esvaziada do orgulho que a mantinha em pé, diante de si, dos outros e de Fernando (4-ix). Na alcova, sem plateia de nenhuma espécie, os dois podem se despir, nem que seja de forma virtual. Sua área diminuta comprime ainda mais o volume emocional que assoberba os dois. Ou, se quisermos o contrário: é emoção demais para tão pouco espaço.

    Entre o jardim e a alcova fica, no meio, a sala. Não no sentido topográfico apenas, mas social, sobretudo. Porque é nela que se capricha na convencionalidade, na representação conveniente dos papéis sociais, no rapapé generalizado. Como ambiente fechado, mas aberto à ciranda social interna e externa, o salão da casa de Aurélia esmera-se no luxo, apetrechado que é para impressionar as visitas e para o conforto dos moradores. Os objetos de decoração, bem como sua particularização, que realça mais o valor material que sua eventual serventia, vão se avolumando na medida em que progride a narrativa e, por consequência, a tensão entre o casal. Se, no começo da estória, a sala mal se distinguia por si mesma, aos poucos vai ganhando importância e visibilidade, mais ainda por menção à quantidade de pessoas que nela cabem. Pelo meio da narrativa, finos cristais e corbelhas de prata (3-ii) já começam a entrar em cena, até que, na última parte, a sala, fartamente recheada do melhor que frequentava a casa, serve como cenário para o grande baile, o ponto mais alto da disputa que torturava Aurélia e Fernando. Na frente de todos, mas sem que ninguém percebesse, o casal se toca pela primeira vez e ensaia o rito da carnalidade, que, até então, não se cumprira. De forma sucedânea, no entanto, bem oblíqua e dissimulada.

    Quando se põe a desenhar os papéis masculino e feminino dos brasileiros urbanizados do século xix, Gilberto Freyre capricha nos contornos físicos para explicar os sociais, que com aqueles se misturam, se fundem e confundem. Com o habitual privilégio de sua plasticidade estilística, o sociólogo de Sobrados e mucambos esculpe uma figura feminina passiva e caricata, com o propósito de derrubá-la, em seguida, sob o argumento de que aquela imagem fragilizada aproveita apenas ao macho voluntarioso. Não é certo, afirma Gilberto Freyre, que o sexo determine de maneira absoluta a divisão do trabalho, impondo ao homem a atividade extradoméstica, e à mulher, a doméstica (cap. 4). Tamanho equívoco foi se moldando ao longo dos séculos, graças ao predomínio social de um sexo sobre o outro, e seu resultado mais eficaz e evidente constituiu-se na superioridade enganosa do masculino sobre o feminino. Assim como, anos antes, em Casa grande & senzala, Gilberto desmitificara a suposta inferioridade inata do negro, em Sobrados e mucambos o alvo é outro: não é mais o estigma da cor que está em pauta, mas o estigma do sexo; não é mais o negro do eito que está em jogo, mas a fêmea da sala e das alcovas; não é mais o espaço rural, mas o urbano. Na iniciativa de contestar e de transformar um juízo consolidado, interesseiro e perverso, o jovem estudioso, de olho no forte residualismo patriarcal deste país, advertia:

    A verdade é que a especialização de tipo físico e moral da mulher, em criatura franzina, neurótica, sensual, religiosa, romântica, ou então, gorda, prática e caseira, nas sociedades patriarcais e escravocráticas, resulta, em grande parte, dos fatores econômicos, ou antes, sociais e culturais, que a comprimem, amolecem, alargam-lhe as ancas, estreitam-lhe a cintura, acentuam-lhe o arredondado das formas, para melhor ajustamento de sua figura aos interesses do sexo dominante e da sociedade organizada sobre o domínio exclusivo de uma classe, de uma raça e de um sexo (cap. 4).

    Dentro dessa construção social em patamares, na qual um dos resultados perniciosos é o cerceamento da criatividade feminina, dá-se uma enfiada de prejuízos essenciais, um dos quais, ainda segundo o antropólogo, é o predomínio paradoxal da subjetividade masculina sobre a objetividade feminina, ambas também supostas e construídas, é claro. Segundo essa tese desenvolvida por Gilberto Freyre, em âmbito de forte marca patriarcal, vê-se inibida a excelência da mulher naquela zona da criação concreta (cap. 4), o que redundaria em enfraquecimento do pragmatismo feminino na atuação social. Estudando a história política e literária do Brasil durante a fase patriarcal, diz Gilberto,

    um traço que nos impressiona nos indivíduos da classe dominante — na maioria deles — é a preponderância do subjetivismo — embora um subjetivismo, em geral, ralo e medíocre. Encontramo-lo na literatura como na política. Especialmente durante o Império. Ao lado desse subjetivismo ralo, uma grande falta de interesse pelos problemas concretos, imediatos, locais. Uma ausência quase completa de objetividade. O que em parte se pode atribuir a pouca ou nenhuma intervenção de mulher naquelas zonas de atividade artística e política (cap. 4).

    Em suma: que da mulher não se esperasse outra atitude senão a rigorosamente doméstica, atrelada à cozinha, à sala de visitas, aos cuidados com as crianças e com a criadagem. Em bom e sonoro português: casa, criança e capela. Que se levantassem cedo para

    dar andamento aos serviços, ver se partir a lenha, se fazer o fogo na cozinha, se matar a galinha mais gorda para a canja, dar ordem ao jantar, que era às quatro horas, e dirigir as costuras das mucamas e mulecas, que também remendavam, cerziam remontavam, alinhavam a roupa da casa, fabricavam sabão, vela, vinho, licor, doce, geleia, etc. Mas tudo devia ser fiscalizado pela iaiá branca, que às vezes não tirava o chicote da mão (cap. 4).

    Nesse contexto de reclusão e de submissão à vontade masculina, não deve ter faltado alguma insolente que se atrevesse a desafiar os preceitos de então; alguma rebelde, jovem ou adulta, que, mesmo arriscando sua própria pele, se indispusesse contra mandamentos tão constritivos; alguma mocinha que afrontasse a tirania da barba espessa, fosse pela coragem, fosse pela insinuação; alguma nhanhã que virasse matrona. Cabe à história procurá-las, recuperá-las e valorizá-las. Mas cabe também à literatura conjecturá-las, ainda que de forma simbólica, mas sintomática de pulsões latentes. Aos poucos, nosso inconformismo e nossa curiosidade histórica vêm trazendo à tona umas aqui, outras ali, em galeria que se monta de modo intermitente. Chica da Silva das Minas, Joaquina do Pompeu do Ceará, Maria Quitéria da Bahia, Eufrásia Teixeira Leite do Rio, Veridiana Prado de São Paulo e Presciliana Duarte de Almeida do Rio Grande do Sul são alguns exemplos — se não quisermos escapulir dos limites dos séculos xviii e xix — que já encontraram seus biógrafos ou ainda esperam-nos.

    Foi essa uma das tarefas que Alencar tomou para si, além de delinear um vasto mapa cultural e histórico do país, projeto que deixou muito claro em seu clássico prefácio a Sonhos d’ouro (1872). Com seus

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