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Nos domínios do cerrado
Nos domínios do cerrado
Nos domínios do cerrado
E-book120 páginas1 hora

Nos domínios do cerrado

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Sobre este e-book

Lugar atravessado por longos períodos de estio, queimadas, ventanias de terra, calor, e povoado por uma classe média embrutecida, o Cerrado é uma espécie de não-lugar na literatura nacional. É por esse território áspero, onde tudo é limite, que se desdobram as narrativas de "nos Domínios do Cerrado", num registro fragmentário, em que cada conto é uma imagem que se soma a um mosaico que nunca está completo.


TRECHO:

"Ao passar ileso, já na saída para a rodovia Cândido Portinari, atordoado, não sabia qual era a natureza do automóvel que conduzia: se um milagre, um caixão motorizado, ou um rocinante mecânico que o levaria ao encontro dos moinhos que nunca conseguiria vencer – e foi com esse pensamento que mirou os canteiros de flores amarelas que se alastravam junto ao acostamento da estrada, uma companhia constante durante aquela interminável fuga pelos domínios do cerrado. Lembrou-se de quando Beatriz disse que essas flores amarelas eram conhecidas por girassóis mexicanos, e da tarde em que ela, após consultar um site de jardinagem, passou a ler em voz alta as suas características: capacidade de resistir à seca e ao calor, planta de eleição para jardins de inspiração desértica, erva daninha que dedica um amor paciente à escassez."
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de dez. de 2024
ISBN9788593478321
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    Nos domínios do cerrado - Daniel Francoy

    não existe

    Um trovão estremece o quarto. Édipa leva a mão até a mesa de cabeceira e alcança o telefone celular para verificar o horário, mas constata que a bateria do aparelho chegou ao zero. O marido já se levantou, fiel ao seu hábito de correr antes do amanhecer, mas o filho ainda dorme ao seu lado. Ao tentar acender as luzes, percebe que não há energia elétrica, lançando o dia no abismo da hora incerta. O que resta da madrugada vai se dissipando numa sombra que estende uma penumbra azulada e que, ao alcançar cada objeto, pousa sobre ele uma irreal camada de silêncio. Não há relógios de parede e não é possível ligar um eletrodoméstico que informe o horário. Calcula que é algo entre cinco e seis da manhã. Desce até o andar de baixo. Na cozinha, sobre o balcão da pia, há quatro copos com água até a metade, e, ao lado, um cacho de bananas que começam a apodrecer. A porta envidraçada da cozinha se abre para um quintal. Mais além, o muro, e, depois do muro, outro muro, encimado por concertinas de arame cortante. O céu é pálido, no limite do cinza, sujo em contraste com a fumaça branca que sobe das chaminés da pedreira, do outro lado da rodovia. Passa um caminhão que, pelo tremor que provoca no solo, Édipa imagina transportando uma carga incalculavelmente pesada. As árvores, destruídas pelo incêndio de algumas semanas atrás, ainda não recuperaram a sua folhagem, e ela vê, no galho mais alto, a silhueta escura de três pássaros. Édipa senta-se diante da mesa e percebe que o sono vai voltando para o interior dos olhos. Antes de voltar para a cama, anota num caderno que está aberto na mesa da sala de jantar:

    Não existe:

    O azul de Vermeer

    O amarelo de Van Gogh

    O vermelho de Goya

    Existirá o horror puro de Kurtz?

    novela vaga

    A conversa seguia sobre projetos adiados, ou, se iniciados, nunca terminados. Ícaro quis fazer graça e disse já sou mais velho hoje do que Kafka quando não terminou O Castelo, e Juarez respondeu com a minha idade, Mozart já havia composto o próprio réquiem, e foi então que Ícaro, no início da embriaguez, sentenciou: mas o que dói mesmo é ser mais velho do que Iggy Pop quando gravou Candy, e quis cantar, com uma inflexão grave na voz, Candy baby / life is crazy.  Acabou, é claro, por não cantar, mas ficou meio nostálgico, e pensou com amargura no que isso significava: estar velho não apenas para as grandes obras, mas, sobretudo, para as rimas ridículas.

    *

    Wladimir olhou para fora e percebeu que chovia. Era uma dessas chuvas finas de dezembro, que servem apenas para levantar a poeira e tornar o mormaço mais denso. Distraiu-se por um momento e, ao voltar a olhar para a rua, percebeu que não chovia mais. Um homem veio e comprou jornais velhos (é pro cachorro fazer xixi, explicou ao balconista). Mais uma vez solitário, Wladimir distraiu-se ao escutar um barulho vindo do telhado e olhou para o alto, pensando na inconveniência de ratos em meio a tantos livros velhos.

    *

    Suzana voltava de férias e era sempre a mesma história. Dedicava-se, nesses dias, a uma rotina de domingo: bebia uma cerveja enquanto preparava o almoço, almoçava diante da tevê, vendo novelas antigas, e fazia a sesta. Parecia haver, nessa rotina, não um prazer, mas o consolo de ter passado pelos anos mais difíceis e agora poder se dedicar a um calmo início de velhice. O filho passava mais da metade do mês viajando, então era como se morasse sozinha. Parecia que nada mais aconteceria além da aposentadoria: talvez um neto, em algum ponto futuro. O que deu errado foi a morte do menino. Era com isso que não contava, e o luto se assentou numa depressão movediça. Por isso ficamos todos preocupados quando ela disse que não voltaria mais ao trabalho. Aposto que nunca mais vai sair de casa, declarou Clóvis, amargo, mas também com um ar de revanche que já não se importava em esconder.

    *

    Diante do leão, solene na sua miséria, percebeu que o filho estava fascinado pela fera enjaulada. Entre duas grades, uma teia de aranha: os fios retesados e diáfanos, arabescos de luz. A aranha que a fiara parecia embalsamada, tamanha a sua imobilidade. Poucos passos depois, encontraram o elefante. O pesado animal parecia catatônico e a cabeça de Édipa foi longe, trazendo uma série de perguntas pueris. Como a gente sabe que um elefante está magro demais? Quantas formigas carnívoras são necessárias para reduzir um elefante ao seu esqueleto? Em algum momento, percebeu que o filho deixara de caminhar ao seu lado. Um coice de pânico atingiu o seu peito.

    *

    Wladimir havia lido o poema há muitos anos, num livro que pertencia a Verônica, e já nos dias seguintes passou a dizer que era um homem como o retratado nos versos: rosto de um sujeito opaco, que (ao esconder as suas crenças) prestava as devidas homenagens aos deuses locais, e que come o que se come. Era o que costumava dizer, em tom de brincadeira, quando ia almoçar com algum cliente e a pessoa perguntava se ele tinha preferências por algum tipo de comida ou restaurante. Contudo, havia ocasiões (sempre mais dolorosas) em que repetia o verso atento à sua verdade. Foi o que aconteceu ao conseguir o financiamento da casa mediante o pagamento de juros extorsivos; e ainda havia a possibilidade de explorar o verso durante um rompante de passivo-agressividade. Serve como exemplo justamente o final do seu casamento com Verônica. Durante uma das últimas brigas, sentenciou você sabe quem eu sou, querida. Eu sou um sujeito que come o que se come, e estar nesse casamento é comer merda todos os dias, depois ler um poema e dar um beijinho de boa noite.

    *

    Seu Moacir, que era o modo como os pais se referiam a ele, foi porteiro da escola Jardim de Gaia por mais de cinco anos. Era a escola onde Federico estudava e, durante o reencontro, a conversa girou em torno da criança e da escola. Emerson disse que o filho estava bem e perguntou a razão do porteiro ter saído do emprego. A verdade é que saíram comigo, respondeu, e acrescentou que fora dispensado ao se afastar por motivos médicos porque sofrera um acidente de motocicleta. Emerson disse eles são uns grandes filhos da puta, e por um momento o sentimento de revolta os irmanou. Foi quando se lembrou que Seu Moacir tinha um filho que morava fora do Brasil, e perguntou por ele. O velho afirmou que o rapaz ainda estava na Austrália e que não tinha planos de voltar. Emerson, após um instante de silêncio, arrematou, didático. Sabe como se chama isso, Seu Moacir? Êxodo, diáspora. É o que acontece quando a vida se torna inviável onde a gente está.

    *

    Dizer que havia comprado espumante, e não champanhe, tinha o efeito de criar um álibi que o libertava da culpa de ser incapaz de economizar. A bebida sequer estava em promoção; um prosecco da Serra Gaúcha na casa dos cinquenta reais, igual ao que havia bebido no Réveillon. Oito meses depois, não podia dizer que vivia um ano bom. Enquanto bebia, quis ouvir música; alguns dos seus prazeres culpados, ou quis que as músicas que ouvia adquirissem essa qualidade: a de um êxtase secreto, algo que tocasse um nervo, o que

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