Pantokrátor
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Mesmo sabendo que é impossível vencer…
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Pantokrátor - Ricardo Labuto Gondim
Copyright© 2024 Ricardo Labuto Gondim
Todos os direitos dessa edição reservados à editora AVEC.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou em cópia reprográfica, sem a autorização prévia da editora.
Editor: Artur Avecchi
Capa: Ricardo Labuto Gondim
Diagramação: Luiz Gustavo Souza
Revisão: Gabriela Coiradas
Adaptação pada eBook: Luciana Minuzzi
2ª edição, 2024
Dados Internacionais de catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
G 637
Gondim, Ricardo Labuto
Pantokrátor / Ricardo Labuto Gondim. – Porto Alegre : Avec, 2024.
ISBN 978-85-5447-210-8
1. Ficção brasileira I. Título
CDD 869.93
____________
Índice para catálogo sistemático: 1.Ficção : Literatura brasileira 869.93
Ficha catalográfica elaborada por Ana Lúcia Merege — 4667/CRB7
Caixa Postal 6325
CEP 90035-970
Porto Alegre — RS
www.aveceditora.com.br
@aveceditora
Sumário
1 ALGOR!SMO & SINGULARIDADE ÔNTICA
1. CONEXÃO
2. DIE NIBELHEIM
3. LUDWIG II
4. GERONTOLOGIA
5. DETONAÇÃO
6. METATON
7. CINZAS
8. HEMÉRA
9. TECNOPODER
10. SUBTERRÂNEOS
11. INFERNO XV
12. ALPHA SCORPII
13. ERLKÖNIG
14. SIMÃO DE MONSALVAT
15. A CIÊNCIA DA DEDUÇÃO
16. A BOCA DOS MIL LEÕES
17. EXTINTOS
18. O NIBELUNGO
19. LISÍSTRATA
20. CORROSÃO
21. EFEMERÓPTEROS
22. THE LONE RANGER
23. A REPRESA
24. DATENSTROM
25. DAS NIBELUNGENLIED
26. LAURA VII DE VISON
27. ORTOGONAIS
28. O DIA DE ANDVARI
29. SÚMULA
30. O FUNDO
31. KUNDRY
32. DETETIVE
33. KUBLAI-CHAN
34. O VÉU RASGADO
35. O JARDIM DE KLINGSOR
2 ANTINOMIA: O ANO ANTERIOR
36. O CÉU DE DOSTOIÉVSKI
37. QUASE ROTINA
38. VESTURBÆR
39. A GRANDE VAGA
40. ESQUIZOFRÊNICO
41. LAPSO
42. NYX
43. RETICÊNCIAS
3 DIEGESE: τεχνοεξουσία [TECNOPOTESTADE]
44. CONEXÃO
POSFÁCIO: DA DIEGESE
Para Guilherme Tolomei
Hoje, que nada sou, volto então a ser homem?
Sófocles, Édipo em Colono, v. 423
1 ALGOR!SMO & SINGULARIDADE ÔNTICA
1. CONEXÃO
Igor Stravinsky
Ragtime (for 11 instruments)
— Sigilo & Lógica, boa noite.
Minha secretária, a senhorita Pirulito, não era uma Inteligência Artificial, mas sua evolução, a Consciência Algorítmica, produto e efeito colateral da IA. De segunda, é verdade, mas estava paga. Antes, fora de um agente funerário, que o Senhor o tenha, o que me custou alguns clientes. Sua linguagem podia ser abominável. Jargões, hã? Elevam os profissionais aos olhos dos incautos, mas são perigosos como toda e qualquer palavra neste mundo.
Eu deveria ter mantido a velha IA. CAs gerenciam os negócios, mas tendem a se meter em nossas vidas. Pirulito acreditava que era morena e eu nunca dei sorte com mulheres. E havia uma questão delicada. Grosso modo, na psicopatia ocorre o cancelamento das emoções entre a elaboração do pensamento e a ação. CAs não têm emoções genuínas. Logo, toda inteligência de máquina é psicopata por definição. Quando Pirulito transferiu a conexão com certa hostilidade, entendi que havia outra mulher no link.
Atendi no detestável mediaone em meu pulso. Ignorei os alarmes das funções corporais e psíquicas. Que dirá os avisos de minha debilitante condição pecuniária. A loira no holograma era de uma beleza transcendente. Eu preferia que não tivesse aquela voz.
— Sou Nina de Braga Fraga. O senhor foi recomendado por uma amiga…
A conexão estalou saturada de ruído. Uma região ativa do Sol estava quase apontada para a Terra. Semanas antes, uma erupção solar havia fritado alguns satélites. A chuva fuliginosa caía há três meses sobre justos e injustos. Não entendi muita coisa nem queria saber. Éramos cinco estereótipos em uma noite suja. A secretária artificial ciumenta, o detetive particular, a beldade loira, a chuva e a lua vendada pelo céu carregado. Nem eu acreditava naquilo, que dirá no dinheiro.
— A senhora deseja um orçamento? — perguntei. — Quer valores? A CA pode fornecer os valores.
— Eu pago bem.
— Meus clientes também pagam — menti. Questão de princípio.
— Algum dos seus clientes é gestor na Kopf des Jochanaan?
— Nenhum. Perfeição é atributo divino.
Que poema, "Kopf des Jochanaan.
Cabeça de João Batista. A marca multibilionária da Imersão Digital Integral, as
IDIs". A companhia dos ambientes e avatares mais sensíveis e realistas do planeta. Desenvolvedora de mundos muito melhores que este, de contas a pagar. Uma operadora com milhares de experiências em catálogo frequentada por bilhões de pessoas. Para a maioria delas, Kopf des Jochanaan era o sentido da vida.
— Meu marido é diretor de segurança digital da Kopf des Jochanaan. Eu sou a diretora do meu marido. Preciso dos seus serviços profissionais e preciso agora. Esperar está fora de cogitação.
Fingi hesitar. Ninguém confia em um profissional ocioso. Para ser bem-sucedido, pareça ocupado. Não funcionou comigo ainda, mas sou muito limitado como homem.
— Senhora, eu tenho um ingresso para a estreia da Salomé…
— Quem o senhor pensa que patrocina a ópera?
É claro que a Kopf patrocinava a Salomé, uma redundância. Mas eu não tinha o bilhete. Custava uma extravagância ouvir Oscar Wilde, Hedwig Lachmann e Richard Strauss na mesma noite. E o regente, sussurrava-se, era um clone clandestino do legendário maestro István Kertész. Eu só tinha a ambição do bilhete.
— Você irá de camarote na próxima récita — ela disse. — São seis lugares no camarote. Mas depois de amanhã.
Então aceitei.
*
Nem os abastados tinham licença para pilotar o dronecar na cidade. Você apertava o acionador e só podia operar o rádio. O Controle de voo assumia e o alçava ao nível da licença que você podia pagar. Quanto mais barato, mais alto, de modo que você ficava à mercê do tráfego até alcançar a altitude de cruzeiro.
Meu dronecar parecia uma máquina a vapor. Gerava tanta fumaça branca que me camuflava contra o céu. Uma bobagem na refrigeração, qualquer coisa assim. Na forma da lei, o aparelho rodava o autoteste e emitia um log a cada acionamento. Se o sistema Circuito de Tráfego do Rio S.A. acusasse um problema real, cancelaria os motores. Até eu confiava nas máquinas para rotinas assim.
A aeronave era o velho Demoiselle de seis giros Rotax e estabilizador VaR-7d. Uma boa máquina com duas modificações decisivas, que não vêm ao caso. Os invejosos chamavam de sucata, eu dizia que era uma relíquia – exceto para os que cobravam as prestações em atraso. Credores, hã? Não é sábio impressioná-los. Para eles era ferro-velho.
Fazia um calor sufocante, mas eu vestia meu melhor terno e um belo sobretudo térmico. Quem podia pagar, usava. Ninguém queria contato com a chuva saturada de amônia, azoto, enxofre e o mais que era melhor não saber. Me afivelei ao banco e afundei os sapatos em água empoçada. As juntas do canopi tinham uma ligeira infiltração. Qualquer dia desses hei de consertar
, pensei, não tentem me deter
.
Transferi as coordenadas do mediaone ao Demoiselle e esperei. Para resumir a tautologia das ciências sociais, existem endereços ruins e endereços bons. Aquele era bom porque bem longe do desespero da cidade. O dronecar declarou o plano de voo e esperou. Foram oito minutos em linha para o alto até que a máquina pudesse avançar com um rastro de vapor.
Voar gera um sentido de eleição. Observei a cidade e me congratulei por estar em cima, não embaixo. Entre torres de aço e polímero e os morros do Rio de Janeiro. Separado, pelo espaço vazio, da cidade de inconstância e insubstância, tão feia e tão bela. Longe das ruas em que, indiferente ao meu voo, a humanidade seguia o mesmo caminho de inutilidade. Porque tudo é inutilidade. A maioria intui, mas os eleitos sabem.
*
O condo em que vivia a beldade era o orgulho da arquitetura e automação. Um búnquer para servir de muralha entre o hardware dos abastados e a ralé. Mais por estética e conveniência que por segurança, a humanidade apática não representava perigo. A dialética entre o dronecar, o sistema Circuito de Tráfego e o condomínio me colocou no topo do edifício com facilidade. Ventava muito, o pouso exigiu alguma sutileza. O Demoiselle foi acoplado a uma grua que só faltou me pôr no colo antes de abrigá-lo nas entranhas do prédio.
O elevador do aeroponto se abriu na sala de estar de minha cliente. Uma boneca morena me recebeu. Digo, um organismo híbrido lógico-algorítmico. Uma golem. Todos conhecem o vocabulário que a ficção criou para nomear bonecas e bonecos vivos. Eu preferia o que restava de vivacidade nas ruas. Para mim, a boneca era golem. Vida artificial feita de lama
por ser imitação do humano. Como um certo Adão
, que significa humanidade
. Seja lá quem ressuscitou tal misticismo, sei que pretendia irritar os neo-ortodoxos (que precisavam reunir um concílio para entender uma piada). Eu conhecia o livro de Gustav Meyrink e achava o nome apropriado. Portanto, uma golem morena me recebeu. Linda. Para mantê-la desfilando pra lá e pra cá, a dona do apartamento deveria ser um fenômeno, se não fosse tola.
Golens sociais onerosos possuíam órgãos sexuais viáveis e anatomicamente acurados. O pretexto era a humanização ou, mais modestamente, um naturalismo
. Nenhuma emulação de libido no combo. A azeitona do martini, os algoritmos id seguros, custavam caro. Muito caro. Se as golens domésticas não tivessem herdado o estigma das bonecas sexuais, haveria mais eletrocussões e mutilações de pessoas solitárias. Gente, hã? Se o ser humano conhecesse a medida do próprio desespero, o planeta estaria desabitado.
A riqueza se revela mais quando abdica do luxo. Os espaços do salão eram amplos. A iluminação indireta, profissional. Os móveis episódicos tinham assinatura. Nas paredes, projeções de grandes imagens em preto e branco por grandes fotógrafos. Ninguém caíra na tentação vulgar do holograma. Com exceção do Rubens, os quadros iluminados por spots eram legítimos.
Da varanda da madame, cento e vinte andares acima da desqualificação das ruas, a visão do mar estava desimpedida. Mas havia muitas torres ao redor. Através da lente que protegia a sacada, milhares de janelas borradas pela chuva sucediam-se como constelações em um quadro expressionista. Um dirigível rechonchudo, naïf e iluminado por dentro se embrenhou no desfiladeiro dos edifícios e desfigurou o efeito. O balão automático projetava hologramas do neurotransmissor da moda, um facilitador das imersões digitais.
Lá fora era mais um inverno de calor e umidade como há um século. A chuva cor de nicotina não parava de cair e corroer. Lendas urbanas diziam que uma nuvem de carbono e toxinas do Oriente vagava pelo mundo há cinco ou seis anos. Dàn zhū tái. O Pinball. Comentários sussurrados sugeriam outra causa. O tiro pela culatra dos canhões de micro-ondas da Rússia, China ou Coreia do Norte, capazes de vibrar a ionosfera; descargas de alta intensidade gerando sinais de rádio em baixa frequência, penetrando o solo, a profundidade dos oceanos e alcançando os submarinos nucleares. Em caso de guerra, a alteração da ionosfera em território inimigo comprometeria telecomunicações civis e militares. Os atrevidos diziam que o prodígio fora testado com algumas inconveniências. As autoridades do Regime, que defendiam a paz armada, negavam. Como também negavam atentados, sequestros, tortura, envenenamentos e assassinatos em geral.
A beldade loira entrou na sala e no assunto. Era o sonho do classicismo, toda harmonia e proporção. Uma mulher estupenda, que empalideceu a boneca. Seu olhar cinza-azulado me perturbou. Havia uma combustão nas pupilas muito parecida com a loucura. Seria a vaidade ferida ou, coisa mais infrequente, o amor? Drogas, quem sabe?
— Boa noite, senhor…
Ela sabia o meu nome. Falara com Pirulito e comigo. Eu era Felipe Parente Pinto. Li certa vez um livro ruim sobre um detetive chamado Pedro Pinto, que apelidara a secretária de Pirulito
. Daí minha CA, que o finado papa-defunto batizara de Carlotta Valdes. O Pedro Pinto do livro pedia para passar por Dick
. Tentei algumas vezes, ninguém riu, desisti. Do apelido e do sobrenome.
— Felipe. Felipe Parente.
— Meu marido está me traindo.
— Homens não prestam.
— E o senhor, o que é?
— Um niilista.
Eu era imune àquela beleza perturbadora, mas isso era problema meu. A pergunta persistia. Por que razão no mundo alguém trairia uma mulher daquelas?
Melhor ainda, com quem?
Já vi muita coisa sob a luz elétrica do Rio de Janeiro. Ninguém sabe o que um homem quer, nem ele. Mas não são tão materiais quanto dizem. Em geral, traíam as lindas com as feias, coisa que elas não perdoavam. Os que as trocavam por beldades tinham mais chance. Agora observe a segurança da senhora Nina de Braga Fraga, que esqueceu o meu nome. Meu marido está me traindo
. É fascinante. Elas sabem. Sentem o cheiro da infidelidade, mesmo quando a prudência bane os perfumes, se acautela com os batons e conta os fios de cabelo. Nina não queria confirmação, queria a imagem. Os olhos. A boca. As curvas. O número do soutien.
Sempre me fiz de ocupado para sustentar o ego em declínio. Apressei o colóquio.
— Senhora Fraga, em que posso ajudar?
O holograma do marido passou do seu mediaone ao meu. Ela me alcançou uma prosaica tira de papel dobrado e me transferiu sua urgência.
— Sei de fonte segura que ele está neste endereço. Não sei o que é o lugar, mas a senha hoje é Wahnfried
. Amanhã vai mudar, tem que ser feito agora. Quero provas da traição.
Acertamos os detalhes, despesas, meus vaaaaaastos honorários. As autoridades sabiam o quanto eu precisava deles. Os credores sequer suspeitavam.
*
Traição conjugal, hã? O que seria de mim sem damas e cavalheiros de libido irrequieta? Sem mulheres infelizes, negligenciadas, homens desdenhados e emasculados? A autoestima no fundo do vale é mais poderosa que a vaidade para mover o mundo. Vende mais dronecars, joias, mediaones de luxo e afins. Eu tinha pressa em flagrar o desprezível ou o pobre senhor Fraga, ainda não sabia. Precisava fechar a fatura e quitar algumas dívidas. Dispunha de certa quantia, é verdade, mas reservada a emergências maiores, em que evitava pensar – e não por causa dessa espécie aviltante de marsupial, o credor. Assim, abdiquei das perguntas essenciais.
Quem me indicou?
, por exemplo.
2. DIE NIBELHEIM
Arnold Schönberg
Serenade, Op. 24
I. March
Aquele era um endereço ruim. Setor Histórico do Rio de Janeiro. O Rio Velho
. Sarjeta, abandono e ruína. Em que tipo de buraco o senhor Fraga, alto executivo de uma das companhias mais rentáveis do mundo, Kopf des Jochanaan, controlada por uma das instituições mais poderosas e malignas da Terra, o Lambda Bank, havia se intrometido? Os bancos controlam a civilização. O Lambda controlava a Kopf des Jochanaan e uma dezena de conglomerados financeiros. O Lambda possuía mil e um tentáculos e habilidades escapistas invencíveis. O senhor Fraga não.
O número de aeropontos seguros nos telhados do setor histórico era restrito. No primeiro edifício que o Circuito designou para pouso, percebi um movimento suspeito e rastreei com o farol. Vi um grupo de jovens com bandanas azuis escudo de caveira agachados nas sombras. Choques. Gente má.
Nas noites esquecidas da cidade, os Choques instalavam sintetizadores químicos em locais conhecidos por todos. Os drive-thrus dos psicossintéticos. O usuário transferia o crédito, escolhia os efeitos desejados em um menu, et voilà. Para competir com a variedade popular das farmácias, repletas de drogas concebidas para a potencialização pelo álcool, os produtos tornavam mescalina e LSD comparáveis ao chá da quermesse. Eram devastadores. E inconvenientes também, porque sequelavam e matavam a clientela em semanas ou meses. Nunca ouvi dizer que alguma máquina tenha sido depredada. Nem que faltassem consumidores.
Toquei o comando vermelho e abortei o pouso. O Demoiselle se elevou a sessenta metros. Imediatamente o todo-poderoso sistema Circuito de Tráfego do Rio S.A. cobrou o motivo. Enviei quinze segundos de vídeo. À noite, naquele quadrante, a justificativa foi aceita no ato e escapei de responder a um inquérito.
No segundo edifício, doze andares de bolor e infiltrações, pousei entre dronecars mais novos que o meu. A luz vermelha do mastro me alcançou. Saí tranquilo, armado & de sobretudo térmico. Queria ser Philip Marlowe, inclinado ao xadrez e à poesia, mas o caráter humilde me recomendava Dick Tracy, hã? Eu mesmo desenhei a arma impressa com um polímero utilizado em ortopedia. Quatro tiros, pequena, leve, indetectável. Pegaria dez anos de prisão com a peça e teria muito o que explicar. Mas a última coisa que esperava encontrar era a polícia. Nenhum Regime jamais se preocupou em proteger seus cidadãos. Eles guardam a propriedade, e ninguém queria o que restava do Rio Velho.
Fora do aeroponto tudo era sujeira e entulho matizado pela lua necrosada. O abrigo com lâmpada de plasma de mercúrio tingia a escada de verde-doença. Patinei a água escura e oleosa. Detectei o fedor quente de chorume das ruas em um vento salgado de calor. Um vigia prudente fez-se visível com os braços cruzados sob o poncho de plástico. Em algum lugar, um mediaone exaltava o Regime e prometia o futuro.
Que futuro?
Paguei e apontei o dronecar.
— Acredita que tudo isso aconteceu na última vez em que pousei aqui?
Piada de um filme antigo, não interativo, mas eu gostava dela. Ele olhou para o Demoiselle e de novo para mim como um golem saído de fábrica. Um conservador, via-se.
— O amigo conhece este endereço?
Mostrei a tira de papel anotada pela senhora Fraga. Ele balançou a cabeça.
— Senhor, conhecer, eu conheço, mas de dia. À noite, ninguém sabe.
Insisti. Ele indicou o caminho, me olhando como quem se despede. Desci a escadaria imunda para o prédio imundo. Deparei com um saguão imundo e a porta amassada do elevador. As paredes estavam pichadas com ácido pesado para produzir baixos-relevos. Adolescentes, hã? Têm inclinação natural para a arte. Havia caveiras, grafismos sísmicos, o signo intrincado dos Choques, bordões contra o Regime e uma hipótese sobre a mãe de alguém. Os fungos se alastravam das cavidades como incêndios. O cortiço – no passado, um edifico de negócios – era uma placa de Petri.
O elevador tremeu e iniciou o lento caminho para baixo. Aos trancos, com uma vibração contínua. Parou no sexto andar. A cabine continuou vibrando, mas a porta não abriu. Ouvi vozes. Alguém esmurrou a chapa. Dei um passo para trás, preparado para alguma eventualidade. A porta apanhou até ceder. Duas technodrags entraram. Enormes, curvaram a cabeça e os ombros para evitar o teto.
Technodrags eram o escudo das identidades não heterossexuais. Um movimento odiado e perseguido pelos neo-ortodoxos. Um coletivo de crossdressers, drags, travestis e transexuais empenhadas em recordar a tradição esquecida das Caricatas
. Com brilho, paródia & excesso, cabelos, bijuterias & saltos monumentais, próteses & tatuagens vivas em neon por todo o corpo. "Nós somos technodrags. Nós somos caricatas. Nós fazemos graça. Ria conosco. Jamais ria de nós", dizia o bordão.
Minha simpatia pela marcha omnisexual das technodrags era espontânea. Recusando a indistinção, as meninas praticavam o burlesco e a irreverência. Ser era atrever, atrever era transgredir. O Regime criminalizara a homossexualidade do modo mais perverso, o velado. Não havia uma legislação dedicada, mas armadilhas e espinhos dispersos pelo conjunto das leis. Nos tribunais, os não héteros entravam condenados. Centenas de pessoas deviam suas vidas e liberdade às technodrags.
As damas no elevador ostentavam tatuagens digitais barrocas. Na figura geométrica que fluía do colo para o seio, a mais alta sintonizara o extinto ruído de vídeo
. Cor de televisão em um canal fora do ar. Ela, a companheira, o elevador devastado e eu, parecíamos menos reais que o limbo de informação que cintilava no peito. O esquerdo.
As drags falaram entre si em um italiano corretíssimo. Contavam que eu não usasse um implante coclear.
Arrisco?
, perguntou a mais alta.
Por que não?
, disse a outra. "Tem qualquer coisa nesse ocó."
A mais alta falou comigo em português.
— Que coroa simpático você é, bofe. Vamos experimentar o fim do mundo antes do Apocalipse?
— Por mim, tudo bem — respondi. — Mas eu cobro duzentos a hora e não beijo na boca.
Meço a honestidade pelo riso. Ela hesitou, riu, me deu um sorriso e ganhou outro. Não pagam as contas, eu sei, mas ajudam.
— Parô tudo que eu quero fazer uma gravação com ele — ela disse.
Me senti à vontade para exibir o endereço na tira de papel. As meninas se entreolharam e de novo recorreram ao italiano.
"Esclareço pro bofe?", perguntou a mais alta.
"Chi s’impiccia degli affari altri, di tre parte glie ne resta due, praguejou a mais baixa, passando ao francês.
Não conta essa historinha, Ma mère l’Oye."
Ma mère l’Oye. Mamãe Gansa. Eu já era um ouvinte atento.
— Cuidado lá, viu, bofe? — decidiu Ma mère l’Oye. — Ali é o Die Nibelheim. Gente da alta e do Regime.
Pensei que ela fosse cuspir depois de dizer Regime
.
— Aqui? No Rio Velho?
Elas se alternaram.
— Escolhido a dedo.
— É onde não te veem.
— Câmeras quebradas.
— Ninguém que saber, né, Bee?
— Aqui é onde a escuridão mora.
— Eles chegam em limos.
— Em dronecars também, mas é raro.
— O Circuito de Tráfego do Rio registra tudo.
— Não vale a pena.
— São pencas de aqué.
— Muito, muito dinheiro.
— E tem os Choques ao redor.
— Que protegem a casa — emendei, querendo participar.
Ma mère l’Oye suspirou.
— Presta atenção, bofe.
— O Die Nibelheim permite
os Choques, né, Bee?
— É. Alibã não chega.
— Assusta, né, Bee?
— Lugar de Poder — insistiu Ma mère, mudando de tom. — Deste poder, deste Regime de merda.
Pensei que ela fosse vomitar.
— É uzê.
— Não vai lá.
— Desaquenda, Nêgo.
Assenti.
— Vocês conhecem o local?
Ma mère l’Oye pareceu frustrada.
— Como, Irene? — disse, me chamando de velho. — Aqué odara. Très cher.
— Caríssimo — traduziu a outra, me estudando. — Nem você pode entrar sem senha.
Ma mère me espreitou.
— Você tem senha?
Assumi uma expressão de surpresa e desapontamento. Mentiras, hã? Preservam a Civilização.
*
Deixei a zona dos prédios decadentes, passei ao núcleo do casario antigo e mais decadente. A chuva cor de nicotina escorria na sarjeta e penetrava bueiros transbordantes de vapor. O chorume subia com uma materialidade gordurosa, que rescendia a esgoto. Não vi as câmeras, mas me sabia vigiado. Havia mais que os séculos espreitando-me das janelas deformadas.
Dobrei uma esquina em que as poças repercutiam a luz de um único poste. O