Dentro da noite feroz: O fascismo no Brasil
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Sobre este e-book
Escrito às vésperas de ser incluído em dossiê produzido pelo Ministério da Justiça contra funcionários públicos, policiais e formadores de opinião antifascistas, Soares desdobra os acontecimentos relativos a Bolsonaro desde a campanha de 2018, passando por uma análise do lavajatismo no Brasil, o assassinato de Marielle Franco, a intrínseca relação de Jair Bolsonaro e sua família com as milícias do Rio de Janeiro, a atuação de religiosos fundamentalistas e uma suposta volta do Brasil à ordem e aos chamados valores familiares tradicionais.
De acordo com o autor, "a virilidade teatralizada na campanha e no governo de Bolsonaro, estendendo 28 anos de vida pública absolutamente coerentes e transparentes, nesse aspecto, seria posta de volta em seu lugar 'original e eterno', reafirmando a supremacia do macho, a superioridade da família tradicional, a regência exclusiva dos valores ditos verdadeiros, essenciais, naturais: esse é o apelo e a promessa implicada no bolsonarismo".
Arte da capa por Heleni Andrade.
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Dentro da noite feroz - Luiz Eduardo Soares
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Algumas considerações em torno da aplicabilidade da categoria fascismo ao caso brasileiro
A primeira questão que se impõe diz respeito ao fascismo como categoria analítica, que descreve um fenômeno histórico datado e identifica, em sua configuração multidimensional, as unidades mínimas significativas, no plano descritivo, de tal forma que se estabeleça um modelo, senão um conceito, capaz de qualificar experiências distintas da referência empírica original. Desse modo, seria possível aplicar a categoria, estendida, elevada a um grau de abstração superior e convertida em operador comparativo, a casos distantes no tempo e no espaço e cujos componentes, analiticamente destacados, formassem constelações de práticas, valores, crenças, organizações, padrões afetivos, dinâmicas políticas, projetos de poder e inserções no Estado e na sociedade que satisfizessem, ao menos parcialmente, as exigências do modelo. As diferenças seriam, portanto, admitidas, mas apenas enquanto não desfigurassem o modelo, cuja arquitetura, reitere-se, contemplaria várias dimensões – Daniel Felerstein, por exemplo, compreende o fascismo como ideologia, sistema político e prática social. Em outras palavras, seria razoável qualificar como fascistas determinados projetos de poder, atualizados ou prospectados, desde que neles fosse encontrado um conjunto suficiente de traços distintivos no total das dimensões identificadas ou em cada uma delas.
O problema não parece ser tanto elencar os traços, dada a acuidade dos estudos disponíveis sobre o processo italiano, quanto calibrar a suficiência, isto é, estabelecer as condições sob as quais diferentes realidades
poderiam ser consistentemente descritas ou qualificadas pela mesma categoria.
É verdade que seria sempre viável questionar os limites da elaboração formal, atribuindo metonimicamente o sentido geral do todo – o fascismo – às partes (subconjuntos na esfera de cada dimensão, analiticamente recortada), o que terminaria por transferir a dúvida à nova circunscrição: até que ponto uma parte (um elemento interno a uma dimensão; por exemplo, determinadas crenças ou certos procedimentos) apresentaria, em si mesma, características comuns suficientes para a parte ser considerada expressão do todo? Indo longe demais nessa direção, chegaríamos ao ponto de isolar um componente – o ódio, por exemplo – e postular que esse afeto guarda em si a substância essencial, e que, portanto, o ódio é fascista, todo ódio coletivamente destilado é fascista, e o fascismo é, em suma, o ódio convertido em afeto dominante dentro de um projeto de poder, plasmando práticas, visões de mundo e a definição do outro como inimigo a ser neutralizado ou eliminado. Não nego que essa apropriação seja possível e eventualmente rentável, tanto heurística quanto politicamente, mas seu caráter problemático talvez se revele pelo teste do movimento reverso, isto é, quando aplicamos ao processo histórico italiano dos anos 1920 e 1930 a hipótese do ódio hipostasiado como síntese descritiva e analítica suficiente. O risco das metonímias é alargar demais a categoria e diluí-la, esterilizando sua utilidade para identificar e distinguir. É como se renunciássemos a pensar o fascismo a partir do experimento histórico e devolvêssemos a configuração ideológico-político-social-imaginário-institucional ao léxico coloquial para empregá-lo como adjetivo – mais uma categoria de acusação.
Entre o rigor formalista, que idealiza o conceito, e a aplicação indiscriminada da categoria, são inúmeras as apropriações interessantes e úteis, cuja legitimidade, quer analítica, quer política, justifica-se. É o caso, a meu juízo, da imputação do epíteto fascista ao bolsonarismo – tomado como o conjunto empírico, a cada dia ampliado, de discursos e práticas (aí incluídas decisões governamentais) da lavra de Bolsonaro e de seus apoiadores. Em outras palavras, creio ser defensável e adequado denominá-lo fascista: a) politicamente, para evitar o jogo de linguagem diluidor cultivado pela mídia tradicional e por analistas liberais e conservadores que postulam a existência de uma polarização, no Brasil, opondo a direita no poder à esquerda oposicionista; b) sociologicamente, antropologicamente ou do ponto de vista da teoria política, porque estão reunidos elementos comuns seja ao experimento histórico europeu, seja à sua versão brasileira, o integralismo.
Razões políticas
Para ilustrar as razões pragmático-políticas, vale o relato seguinte. No dia do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, o jornal O Estado de S. Paulo publicou essa capciosa manchete: Difícil decisão
. Explicava: os dois candidatos são radicais e ocupam os extremos; Bolsonaro, de um lado, Fernando Haddad (do PT), do outro. Um à direita, outro à esquerda. Tratar-se-ia de uma linha contínua, ou um plano homogêneo, cujas pontas corresponderiam a excessos equivalentes, em certo sentido mutuamente comutáveis. Como se deduz, no centro estaria a virtude, o equilíbrio, a distribuição harmoniosa dos atributos que conformariam a boa governança, aquela supostamente desprovida de ideologia e exclusivamente voltada à gestão racional da coisa pública.
Observe-se que uma semana antes do pleito, Bolsonaro, em discurso inflamado para a massa de apoiadores que se aglomerava na principal avenida de São Paulo, falando de sua residência, no Rio de Janeiro, por meio de celular amplificado para a multidão, ameaçava eliminar fisicamente os petistas e os esquerdistas. Dezenas de milhares de pessoas vibravam a cada uma de suas imprecações. Antes, o futuro presidente exaltara (e ainda o faz) um torturador como seu herói. E dizia que o erro da ditadura militar (1964-1985) fora torturar e não matar. Teria sido necessário, afirmava, matar uns 30 mil
. Suas referências preconceituosas a quilombolas e aos povos originários, assim como a mulheres e gays, perfazem um repertório insultuoso inesgotável.
A partir de janeiro de 2019, já no governo, suas práticas têm buscado confrontar os poderes Legislativo e Judiciário, ofuscar a independência da mídia, hostilizar movimentos sociais, desconstituir a laicidade do Estado, cooptar as Forças Armadas (convertendo-as em apêndices do governo, em vez de instituições de Estado), afrouxar controles e regulações que garantiam ou visavam garantir direitos trabalhistas e prevenir ou mitigar desmatamento de florestas, invasões a territórios indígenas e ações policiais violentas. O exercício do poder Executivo tem se confundido com a agitação permanente da militância ultradireitista, nas ruas e nas redes, e a multiplicação artificial de focos de conflito, a partir de acusações a complôs comunistas e globalistas, disseminação de fake news e teorias conspiratórias sinofóbicas e filoamericanas, de inspiração trumpista.
Em manifestações dominicais, Bolsonaro desfila, a cavalo ou a pé, misturando-se com fãs e acólitos de verde e amarelo, as cores nacionais, sem máscara ou proteção, emoldurado por bandeiras do Brasil, dos Estados Unidos e de Israel, sob faixas que clamam pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e exigem Ditadura, já, com Bolsonaro
. Em 31 de maio de 2020, o presidente sobrevoou de helicóptero a manifestação em Brasília, que o saudava brandindo a agenda golpista usual, com o ministro da Defesa. Na semana seguinte, o vice-presidente Hamilton Mourão, general egresso do segmento mais radical dos militares que participaram da ditadura, publicou um artigo afirmando que o Judiciário – ao impor limites aos atos inconstitucionais do presidente – está se excedendo e que caberá às Forças Armadas dirimir conflitos institucionais, posição inicialmente secundada pelo procurador-geral da Justiça, que, em seguida, ante a reação da mídia e das redes sociais, desdisse o que dissera. Os ataques ao Congresso são acompanhados pela negociação com o chamado centrão
, grupo parlamentar tradicionalmente disposto a apoiar governos, uma vez pago seu preço em cargos e acesso a recursos. Já os ataques à Justiça correspondem a uma carga externa, que fortalece e potencializa a carga interna, conduzida por segmentos numerosos, formados seja por oportunistas, seja por magistrados, procuradores e promotores ideologicamente afinados com o projeto ditatorial. Essa dinâmica corresponde a uma corrosão progressiva das instituições republicanas, método que substitui os golpes ostensivos com tanques nas ruas, no estilo convencional que sofremos, os latino-americanos. O novo tipo, que retrata o figurino húngaro, foi descrito por Adam Przeworski[1] e tem sido evocado com frequência, traduzido como autoritarismo furtivo
nas intervenções públicas e nos escritos de alguns cientistas políticos brasileiros, como André Singer[2].
Nesse contexto, destacam-se