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Independência do Brasil: A história que não terminou
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Independência do Brasil: A história que não terminou
E-book582 páginas7 horas

Independência do Brasil: A história que não terminou

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Sobre este e-book

Independência do Brasil: a história que não terminou, obra organizada por Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás, oferece ao leitor, duzentos anos após o grito do Ipiranga, uma discussão abrangente e elucidativa sobre um processo que até hoje desperta controvérsias e mal-entendidos.

Reunião de 12 artigos de autores especializados no tema e no período, o conjunto apresenta visões diversas sobre o processo político e econômico da época (crise do antigo sistema colonial, formação do Estado brasileiro, estrutura de classes) ao lado de estudos mais detidos de interpretações clássicas, bem como de temas como o mapeamento do território, a formação do mercado livreiro, a estrutura tributária da colônia e Império, rebeliões populares do período.

Ao mesmo tempo em que divulga algumas das pesquisas mais aprofundadas sobre o assunto, o livro contribui para que se tenha uma visão panorâmica do processo de Independência do Brasil. Trata-se, portanto, para os especialistas, de peça de atualização e discussão, e, para o público geral, de obra de informação e reflexão sobre um processo importantíssimo, mas de certa forma ainda inconcluso.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de set. de 2022
ISBN9786557171769
Independência do Brasil: A história que não terminou

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    Independência do Brasil - Antonio Carlos Mazzeo

    Independência: dimensões e passagens

    [a]

    Fernando A. Novais

    As dimensões da Independência

    Neste pequeno estudo, procuraremos apenas apontar as conexões mais importantes que vinculam o movimento da Independência de nosso país ao processo mais amplo e profundo da crise geral do antigo sistema colonial da época mercantilista. Efetivamente, da mesma forma que é impossível uma compreensão verdadeira da forma que assumiu a colonização portuguesa nas terras americanas sem relacioná-la continuamente às coordenadas estruturais daquele sistema, como procuramos indicar em trabalhos anteriores, pela mesma razão não se pode entender a separação e autonomização da colônia sem inserir esses eventos nos mecanismos de superação do antigo colonialismo. É, contudo, evidente que não se pode pretender dominar, num rápido ensaio de dimensões reduzidas, todos os componentes de um processo tão vasto e complexo; tudo quanto tentaremos são considerações gerais, demarcando as principais linhas de força desse decisivo ponto de inflexão da história do Ocidente, com vistas a um equacionamento fecundo do problema que abra caminho para novas indagações.

    Por outro lado, somente essa perspectiva possibilita superar certas distorções ou mesmo falácias a que não têm escapado os estudos correntes sobre a Independência do Brasil. Por exemplo, os estudos de história econômica, talvez por enfocarem uma única dimensão da realidade histórica, tendem muitas vezes a minimizar o significado da emancipação política: teria sido quase que simplesmente uma transferência de tutela, da portuguesa para a inglesa, a Inglaterra seria como que uma nova metrópole. Na realidade, nenhuma modificação fundamental teria ocorrido. Uma repercussão danosa dessa maneira de ver esse momento de nossa história é que os estudos de história econômica não se constituem, assim, em base para uma crítica das teorias do desenvolvimento, com as quais se procura equacionar a situa­ção latino-americana contemporânea. Para o historiador, o pecado capital dessas teorias é justamente igualizar em categorias genéricas as mais díspares situações históricas (veja-se, por exemplo, a noção de sociedade tradicional nas etapas de Rostow). Para que os estudos históricos, a nosso ver, possam servir de base para a revisão crítica das teorias de desenvolvimento e subdesenvolvimento, devem eles orientar-se para a identificação da peculiaridade de cada situação histórica específica.

    No polo oposto, os estudos tradicionais, mais antigos, de história geral do Brasil, por se aterem quase que exclusivamente aos aspectos políticos, acabam por conferir à emancipação política uma dimensão que ela não teve nem poderia ter. A análise por vezes minuciosa dos eventos políticos, centrada nos debates parlamentares do Primeiro Reinado, dão por vezes a impressão de que o centro de decisões de nossos destinos, em todos os níveis, se transferira realmente para dentro de nossas fronteiras, como se estivéssemos desvinculados do resto do mundo. Assim, a persistente dependência econômica acaba por parecer um resultado da inépcia da geração que promoveu a Independência, sem se levar em conta os parâmetros que balizavam a ação daqueles estadistas. A virtude necessariamente não está no meio, mas a procura de compreensão do passado tem de integrar (ou pelo menos tentar combinar) os vários níveis da realidade: os problemas econômico-sociais, o processo político, os quadros mentais disponíveis, a partir dos quais os atores do drama podiam apreender os problemas emergentes. O enfoque a partir da análise do sistema colonial e de sua crise talvez se possa constituir num caminho para essa compreensão.

    Mas há ainda uma terceira distorção que importa caracterizar. Alguns autores portugueses e brasileiros assumem, ao estudar a formação brasileira, uma postura fundamentalmente inversa da perspectiva aqui assumida: o Brasil nunca teria sido colônia, o sistema colonial é um fantasma. Tal visão prende-se, por um lado, à identificação de certas peculiaridades da colonização portuguesa (em confronto com a de outras metrópoles europeias), que são reais, mas não anulam as linhas mestras do antigo sistema colonial (que é uma estrutura global, subjacente ao processo conjunto da colonização europeia da época moderna), antes devem ser compreendidas a partir dessas linhas mestras. Por outro lado, sobretudo em autores portugueses de linhagem tradicionalista, esse enfoque resulta da constatação de que Portugal não acompanhou, na época mercantilista, o ritmo de desenvolvimento econômico das principais potências europeias: em suma, posto que detentor de extensas colônias, não assimilou os estímulos econômicos para desencadear no fim do período um processo de industrialização. Ora, este é efetivamente um dos problemas capitais da história portuguesa: identificar os fatores pelos quais, apesar da exploração colonial, retrasou-se a metrópole em relação ao conjunto da economia europeia. Mas a historiografia conservadora prefere sair do problema negando-o: é que Portugal não explorava as colônias, ou mesmo quiçá nem tinha colônias. É, porém, evidente que, com essa atitude valorativa (colonização boa, colonização má), não se caminha no conhecimento do passado histórico.

    Todavia, atente-se bem: se o Brasil nunca foi colônia, então a Independência torna-se um fenômeno incrivelmente nebuloso. Independência em relação a quê, ou a quem, se não havia dependência...? De fato, o afã de negar o sistema colonial leva necessariamente a caracterizar a Independência como uma secessão pura e simples. Mas os problemas continuam. Por que a parte, a maior parte, se separa do todo? Talvez por culpa das malignas ideias francesas que contagiaram ingratos súditos da protetora mãe-pátria; ou por causa dos erros dos governantes dessa fase conturbada, que não conseguiram timonear satisfatoriamente o barco do Estado. Mas é claro que com juízos de valor não se explicam fenômenos históricos. Os problemas persistem: por que tais ideias encontravam receptividade? Quais alternativas concretas se ofereciam aos estadistas que se debatiam com a crise? Positivamente, o maniqueísmo não é um bom método para interpretar a história.

    No melhor dos casos, essa perspectiva distorcida nos afirma que o Brasil se separou porque amadurecera para a emancipação. Se, porém, nos aprofundarmos na análise desse amadurecimento, esbarraremos inapelavelmente nos mecanismos profundos da crise do sistema colonial.

    Que se deve, pois, entender por crise do sistema colonial?

    Em primeiro lugar, não se pode pensar em crise de um sistema que não derive do próprio funcionamento desse mesmo sistema; noutros termos, o desarranjo não pode vir induzido de fora, pois nesse caso não se poderia falar em crise do sistema. Por esse motivo, o sistema colonial do Antigo Regime tem de ser apreendido como uma estrutura global subjacente a todo o processo de colonização da época moderna, como indicamos acima, e não apenas nas relações de cada metrópole com as respectivas colônias. Nessas relações particulares – ou, como se diz, nos sistemas coloniais português, espanhol, francês etc. – a crise dá sempre a impressão de vir de fora, porque na realidade procede do desequilíbrio do todo. Assim, é para os mecanismos profundos de estrutura que devemos nos voltar primeiramente, para depois irmos nos aproximando com segurança dos casos particulares.

    Ora, encarada no conjunto, a colonização dos séculos XVI, XVII e XVIII (e o movimento colonizador foi certamente um dos aspectos mais salientes da época moderna) apresenta-se-nos essencialmente marcada pela sua dimensão mercantilista; quer dizer, a ocupação e a valorização econômica das novas áreas pelos europeus – a chamada europeização do mundo – assume a forma mercantilista nesse período. E isso não decorre apenas da contemporaneidade dos dois fenômenos (expansão colonial e política mercantilista), já de si muito significativa, senão que se revela na análise genética (qual a posição e quais as relações com os demais componentes do Antigo Regime) da própria colonização europeia.

    Examinada nas suas origens, a colonização mercantilista aparece como um desdobramento da expansão comercial. Isso significa que ela não se confunde com seu ponto de partida: e, de fato, com a colonização a ação econômica ultramarina dos europeus ultrapassa a órbita da circulação de mercadorias para a da sua produção (o que envolvia povoamento etc.); mas significa também que se mantinham aspectos essenciais do primeiro movimento: e, de fato, o sentido básico se mantém, as mercadorias são produzidas para o mercado europeu. Logo, a função no conjunto continua a mesma; que vinha da exploração puramente comercial, que fora o grande movimento (descobrimentos) pelo qual se superara a crise da economia mercantil europeia no fim da Idade Média e início da Moderna. Pela expansão (séculos XV e XVI) superara-se a depressão monetária europeia e reativara-se a acumulação de capital por parte da burguesia mercantil. Ao se desdobrar em colonização, o movimento expansionista apenas aprofunda ou antes amplia esse mecanismo: desenvolve-se para ativar a acumulação de capital comercial na Europa, isto é, a acumulação por parte da burguesia mercantil, que é uma forma de acumulação originária.

    Analisada nas suas conexões com os demais componentes essenciais do mesmo conjunto (Antigo Regime), a mesma natureza da colonização se revela. Quais são, primeiramente, esses outros componentes? No plano político, a época moderna assiste ao predomínio do absolutismo, que foi a forma política preponderante nessa fase de formação dos Estados nacionais modernos; no nível econômico, a economia europeia assume a forma do chamado capitalismo comercial, fase intermediária e de formação do capitalismo, na qual as relações de mercado não dominam o conjunto da vida econômica, mas já o setor mercantil constitui-se no setor dinâmico da economia; na faixa da vida social, a sociedade estamental persiste, isto é, a estruturação a partir dos princípios do privilégio jurídico, mas já comportando numa das ordens (o terceiro estado) uma crescente diferenciação de classes: não é uma sociedade de classes, mas contém classes no seu bojo.

    As inter-relações entre esses vários componentes do Antigo Regime não são difíceis de perceber. À sociedade de ordens, já não feudal, ainda não burguesa, prende-se, de um lado, a forma ultracentralizada que assume o poder absolutista nos Estados monárquicos; de outro lado, os limites do desenvolvimento da economia de mercado ou a persistência de amplos setores pré-mercantis. A centralização absolutista e a teorização da origem extrassocial do poder (direito divino) aparecem como a única possibilidade de se manter a coesão numa sociedade tão essencialmente heterogênea, porque estruturada a partir de princípios distintos; a monarquia de direito divino absolutista se funda exatamente nesse relativo equilíbrio político de forças sociais, e o pressupõe. Com isso (persistência da nobreza, restos de relações servis, consumo suntuário não reprodutivo de parte do excedente etc.) ficam limitadas necessariamente as possibilidades de expansão do setor mercantil da economia e, pois, de ascensão da camada burguesa da sociedade; efetivamente, nessa primeira fase do capitalismo em formação, pelo fato de o lucro se realizar predominantemente na circulação sob a forma de capital comercial e, pois, a camada empresária não deter o domínio do parque produtor, o processo e o ritmo da acumulação se encontram de certo modo bloqueados, quer dizer, o setor de mercado da economia do Antigo Regime tem poucas condições de um intenso e rápido desenvolvimento autossustentado. Para manter-se crescendo, necessita de apoio extraeconômico, do Estado. Ora, exatamente, o Estado absolutista pode exercer essa função, dada a extrema centralização do poder; e mais: precisa exercê-la para fortalecer-se em relação aos outros Estados, pois nessa fase de formação os Estados se desenvolvem uns contra os outros. Daí a política econômica mercantilista, que no fundo visa essencialmente enriquecer o Estado para torná-lo forte, mas, ao fazê-lo, desenvolve a economia mercantil e acelera, pois, a acumulação de capital de forma primitiva. Assim se fecha o circuito das inter-relações.

    Nesse contexto, a colonização aparece claramente como um elemento da política mercantilista, visando os mesmos fins. Aos elementos internos (toda a política de privilégios, monopólios etc.) da política econômica somam-se os externos, colonização e política colonial: a aceleração no ritmo da acumulação de capital é o objetivo de todo o movimento. Daí a extensão quase diríamos surpreendente que o fenômeno assumiu na época moderna. Os mecanismos pelos quais a colonização se ajusta às funções que exerce no conjunto maior é que se devem denominar sistema colonial; e são basicamente o regime do exclusivo metropolitano do comércio colonial e o escravismo africano e o tráfico negreiro. Por esses componentes estruturais básicos, a colonização se desenvolve dentro dos quadros de possibilidades do sistema: e, ao desenvolver-se, promove a aceleração de capital comercial na Europa.

    Até aqui, as condições de equilíbrio. Mas o nosso problema é compreender a crise. Retomemos, portanto, a noção de crise engendrada no próprio sistema.

    É que a contradição é inerente à sua natureza, quer dizer, ao funcionar desencadeia tensões que, acumulando-se, acabam por extravasar seu quadro de possibilidades. Não é possível explorar a colônia sem desenvolvê-la; isso significa ampliar a área ocupada, aumentar o povoamento, fazer crescer a produção. É certo que a produção se organiza de forma específica, dando lugar a uma economia tipicamente dependente, o que repercute na formação social da colônia. Mas, de qualquer modo, o simples crescimento extensivo já complica o esquema; a ampliação das tarefas administrativas vai promovendo o aparecimento de novas camadas sociais, dando lugar aos núcleos urbanos etc. Assim, a pouco e pouco se vão revelando oposições de interesse entre a colônia e a metrópole, e quanto mais o sistema funciona, mais o fosso se aprofunda. Por outro lado, a exploração colonial, quanto mais opera, mais estimula a economia central, que é o seu centro dinâmico. A industrialização é a espinha dorsal desse desenvolvimento, e quando atinge o nível de uma mecanização da indústria (Revolução Industrial), todo o conjunto começa a se comprometer porque o capitalismo industrial não se acomoda nem com as barreiras do regime de exclusivo colonial nem com o regime escravista de trabalho.

    Tal é o mecanismo básico e estrutural da crise, no seu nível mais profundo, e ele não decorre de nenhum erro ou malevolência dos autores do drama, antes procede do próprio funcionamento necessário do sistema. É claro que não se pode nem de longe pretender explicar as ações humanas no curso dos acontecimentos direta e imediatamente por esses mecanismos de fundo. Mas, por outro lado e igualmente, não se pode prescindir deles numa compreensão global: eles são o ponto de partida, delimitam os marcos estruturais que condicionam imediata e indiretamente o curso da história. Quer dizer, a tarefa, verdadeiramente fascinante, do historiador será procurar as mediações que articulam os processos estruturais com a superfície flutuante dos acontecimentos.

    Considerado o Antigo Regime como um todo interdependente, bastariam esses mecanismos de crise no setor colonial para comprometer o conjunto. Mas nas próprias metrópoles, isto é, no centro dinâmico do sistema, as contradições emergem de seu próprio funcionamento. Aplicada a política mercantilista pelos vários Estados, as relações internacionais tendem a um belicismo crônico, que só pode se resolver pela hegemonia final de um deles. Internamente, nos vários Estados, e em função dessa mesma desenfreada competição, a política de fomento econômico vai se tornando condição de sobrevivência. Ora, não se pode implementar essa política sem promover o progresso burguês, rompendo assim o equilíbrio de forças sobre o qual se fundava o Estado absolutista: o estatismo econômico vai assim deixando de ser visto como uma alavanca para o desenvolvimento pela camada burguesa em vias de dominar todo o processo de produção, e o intervencionismo do Estado absolutista começa a ser visto como entrave. A burguesia começa a tomar consciência de si mesma e se incompatibilizar com o Antigo Regime. No centro dinâmico e na periferia complementar, a velha estrutura, aparentemente tão sólida, se compromete e começa a vacilar nos seus alicerces. Abre-se a fase de reformas, alternativa para a revolução.

    Nunca será demais insistir que esse esquema interpretativo não se propõe como sucedâneo dos estudos monográficos que devem iluminar cada processo específico; nem como modelo adaptável a toda e qualquer circunstância. Antes se apresenta como marco para as reflexões, ponto de partida e não de chegada. A tarefa decisiva, já o indicamos, consiste no estabelecimento das mediações que articulam a estrutura fundamental com a flutuação dos eventos. Para ser assim entendido, três observações parecem-nos indispensáveis.

    Em primeiro lugar, o arcabouço básico não pode conter nem mesmo moldar todas as manifestações do fenômeno, sendo a realidade histórica sempre muito mais rica, quase diríamos infinita em suas possibilidades. Assim, na colonização da época moderna, nem todas as colônias se conformam segundo as linhas do sistema; é o caso das chamadas colônias de povoamento, que discrepam da tendência geral. Mesmo nas colônias de exploração, que são as típicas, nem todas as manifestações da vida econômica, política, religiosa etc. exprimem-se segundo as linhas de força do colonialismo mercantilista. Basta pensar em certos aspectos da colonização dos países ibéricos, por exemplo, a catequese. De qualquer modo, o que sustentamos é que é a partir do sentido mais profundo do fenômeno, que o esquema interpretativo procura descrever, que se pode analisar e compreender as variações, e não o contrário.

    Também é indispensável ter presente, em segundo lugar, que os mecanismos acima descritos, por serem globais, só funcionam naturalmente no conjunto, isto é, encarando-se de um lado as economias coloniais periféricas e, de outro, as centrais europeias. As primeiras estimulavam o desenvolvimento econômico das segundas, dentro do sistema colonial do mercantilismo. Como, entretanto, a colonização se processou dentro de um quadro de aguda competição internacional, a assimilação dos estímulos advindos da exploração do Ultramar caía na arena das competições econômicas e políticas, podendo os estímulos transferir-se de umas para outras das metrópoles colonizadoras. Os exemplos de Portugal e Espanha vêm logo à mente.

    Finalmente, a terceira observação – e ela é a mais importante para entendermos a crise e nela inserirmos os movimentos de independência – é que o sistema, por assim dizer, não precisa esgotar suas possibilidades para entrar em crise e se transformar. O que chamamos sistema colonial, na realidade, é subsistema de um conjunto maior, o Antigo Regime (capitalismo comercial, absolutismo, sociedade de ordens, colonialismo) e se movimenta segundo os ritmos do conjunto, ao mesmo tempo que o impulsiona. Assim, não foi indispensável que se completasse a industrialização (no sentido de revolução industrial) de toda a economia central para que o sistema se desagregasse; bastou que o processo de passagem para o capitalismo industrial se iniciasse numa das metrópoles para que as tensões se agravassem de forma insuportável. É que, na realidade, o antigo sistema colonial se articula funcionalmente com o capitalismo comercial, e quando esse se supera, as peças do todo já não são as mesmas. Mais rigorosamente ainda, a competição entre as metrópoles europeias (inerente ao sistema, como indicamos) resolveu-se na segunda metade do século XVIII pela hegemonia inglesa; daí ser a Inglaterra a que primeiro abriu caminho no industrialismo moderno. Daí também, e contemporaneamente, essa nação ficar em posição de ajustar todo o sistema a seus interesses, a começar pelo enquadramento das colônias da Nova Inglaterra, até então bafejadas pela tolerância metropolitana. É sabido que esse esforço por enquadrar essas colônias de povoamento nas linhas da política mercantilista engendrou as tensões que resultaram na Independência dos Estados Unidos da América.

    A partir de então pode-se falar que a crise estava aberta – uma colônia que se torna nação independente ultrapassa totalmente o quadro de possibilidades do sistema. O último quartel do século XVIII e o primeiro do XIX foram efetivamente um longo período de reajuste do conjunto, com alternativas de movimentos reformistas e rupturas revolucionárias: a penosa superação, enfim, da dominação colonial nas Américas e do absolutismo político na Europa. Esse, a nosso ver, é o quadro de fundo a partir do qual se pode analisar o movimento de nossa Independência, para lhe dimensionar o verdadeiro significado histórico.

    Passagens para o Novo Mundo

    A revolução retrocedeu pela passagem de Sua Majestade Fidelíssima para o ­Brasil, e a guerra do Rio da Prata reuniu de novo os elementos. […] A revolução de ­Espanha e suas colônias, sendo da mesma origem, variou contudo nos resultados. Portugal, sem o poder real, o mais concentrado possível, não pode conservar suas colônias, e por consequência, sua independência.[1]

    São expressões de um panfleto famoso, contemporâneo do movimento de emancipação política. Duas implicações são para reter desses passos do doutrinário coevo: escrevendo pouco depois da proclamação da Independência (7 de setembro de 1822), ele a via no contexto de um processo revolucionário mais amplo, que se iniciara muito antes, e cujo curso fora retardado pela migração da corte portuguesa para a América; e, caso único na história, a antiga colônia passando a cabeça do império, o conflito da separação assumia caráter peculiar. São, ainda hoje, questões preliminares a qualquer estudo que vise a uma síntese compreensiva da emancipação política da América portuguesa: situar o processo político da separação colônia-metrópole no contexto global de que faz parte, e que lhe dá sentido; acompanhar, só então, o encaminhamento das forças em jogo, marcando sua peculiaridade.

    Assumindo essa postura, pode o historiador enfrentar o problema do recorte cronológico, ou antes, da periodização de seu objeto de análise. Pois é claro que a delimitação temporal flutua, alargando-se ou se contraindo, segundo a concepção que se encampe do fenômeno a ser estudado. E de fato, como indica a mais recente e alentada obra de conjunto sobre a história da Independência do Brasil[2], a historiografia, desde o início, apresentou essa variação, seja na datação da abertura do processo, seja na de seu encerramento; ora englobando todo o período de D. João VI no Brasil e levando o estudo até os limites do período regencial, ora restringindo-se aos acontecimentos entre 1821 (volta do rei para a Europa) e 1825 (tratado de reconhecimento). Mais ainda, preferindo a segunda alternativa (período restrito), o autor da importante obra lembra que, na historiografia, os autores que preferem uma periodização mais longa vinculam-se a uma perspectiva conservadora que acentua a continuidade, enquanto a perspectiva liberal, por isso mesmo preferida, explicitaria a ruptura. Ora, colocada a questão nessa dicotomia, fica de fora um terceiro caminho, que precisamente nos parece o mais acertado: encarar a Independência como momento de um longo processo de ruptura, ou seja, a desagregação do sistema colonial e a montagem do Estado nacional.

    Cumpre, portanto, explicitar, ainda que sinteticamente, a estrutura que se desagrega e a nova configuração que se vai formando, para situar e tentar compreen­der o processo de passagem, isto é, o movimento da Independência. Examinados isoladamente e em si mesmos, os eventos que levaram à separação entre a colônia e a metrópole, sem enquadrá-los no contexto maior de que fazem parte, têm dado lugar a uma visão do processo em que o acaso ganha importância, ou os erros ou acertos dos governantes passam a ser elementos decisivos de compreensão.

    Tangida pela invasão das tropas napoleônicas, a corte portuguesa (protegida pela esquadra inglesa) migrou em fins de 1807 e inícios de 1808 para a colônia americana; ocupada a metrópole pelo invasor estrangeiro, não havia senão que montar, na nova sede, todo o aparato do Estado e abrir os portos da colônia ao comércio internacional (isto é, das nações amigas). Mas a expulsão do invasor na metrópole (1814), coincidindo com a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido (1815), punha à luz a esdrúxula situação, em que se invertiam as posições; a insistência em mantê-la, por parte de D. João VI, levaria à Revolução Liberal de 1820 em Portugal, pressionado por uma opção. Para fugir a ela, teria o mesmo D. João VI, ao regressar à Europa, aconselhado seu filho, o príncipe regente D. Pedro, a cingir a coroa do Brasil antes que algum aventureiro lance mão dela; como o mesmo D. Pedro era o herdeiro da coroa portuguesa, o esquema dinástico se salvava, recompondo-se, com o tempo, a unidade. Mas a solução dinástica não resolvia os problemas do Estado: em que condições se manteria a unidade? Ora, nas Cortes de Lisboa, emanadas da Revolução Liberal, o problema não era apenas dinástico, mas político: assim, o que se intenta, uma vez imposta ao rei a volta à metrópole, é efetivamente a recolonização do Brasil; daí a reação das elites brasileiras, que conseguem envolver no seu movimento o príncipe D. Pedro, que guardara no espírito os conselhos do pai – e proclamou a Independência. Mas os problemas persistiam, nas suas dimensões dinástica e política, e a possibilidade da reunião das coroas acaba paulatinamente por incompatibilizar o príncipe com a nação recém-criada, ao mesmo tempo que abria caminho, em Portugal, para a reação absolutista de 1828. Enfim, o desenlace: abdicando em 1831, D. Pedro I (IV em Portugal) volta para disputar Portugal com seu irmão, o rei absolutista D. Miguel, a guerra prolongando-se até a vitória liberal em 1834. Pouco depois morria, aos 36 anos, esse quixotesco D. Pedro, proclamador da Independência do Brasil e implantador do liberalismo em Portugal, desamado em sua pátria de origem, que o acolheu, e herói na sua pátria de adoção, que o expulsou.

    O afeto dos brasileiros e o desamor dos portugueses pela mesma personagem, envolvida na dramática sequência de acontecimentos, está a indicar a precariedade dessa visão do processo que se cristalizou na mentalidade coletiva dos dois povos, daí extravasando para a historiografia. Os descaminhos ideológicos da memória social são às vezes insólitos, e a vertente conservadora da historiografia tendeu sempre a enfatizar a importância da participação portuguesa na Independência do Brasil. Essa a sua peculiaridade: foi uma iniciativa da metrópole, uma realização de seu príncipe. Daí a supor e depois afirmar que a colonização portuguesa fora, na realidade, a criadora da nação, o passo é curto; assim, a história da colônia começa a ser lida como algo desde o início destinado a desaguar na Independência nacional, num curioso exercício de profecia do passado. A colonização não envolvia exploração (até porque a metrópole não se desenvolvera), mas o semear da futura nação que, como uma fruta, num dado momento, amadurece para a secessão.

    Assim, os conflitos desaparecem, as tensões se esfumam, a ruptura se apaga; tudo se aplana na harmonia da continuidade. Mas, infelizmente, o curso da história envolve sempre, e ao mesmo tempo, continuidade (no nível dos eventos) e ruptura (no nível das estruturas), e sua compreensão pressupõe articular os dois níveis da realidade. Para tentar essa difícil articulação, é bom ter sempre presente que o movimento das estruturas cria o quadro de possibilidades dentro do qual se produzem os acontecimentos, pois se os homens fazem a história, não a fazem como querem. Dar sentido à série de eventos acima descrita implica, pois, situá-los nos movimentos de fundo, de que são a expressão superficial.

    Atentemos, preliminarmente, para o ponto inicial e para o ponto final do processo. No início, a extensa colônia da pequena metrópole absolutista; no fim, a nova nação politicamente independente e a implantação do liberalismo na antiga metrópole. Há, portanto, uma certa ligação entre o vínculo colonial e o absolutismo, da mesma forma que entre independência e liberalismo; tanto que, ao se romper aquele vínculo, entra em colapso a monarquia absolutista na metrópole. E o movimento de independência foi precisamente o encaminhamento da passagem de uma para outra situação. Cumpre examinar, portanto, em sua estruturação interna, o contexto inicial do processo e depois analisar os mecanismos da passagem.

    Colonialismo e absolutismo se articulam, na medida em que a colonização do Novo Mundo na época moderna desenvolveu-se predominantemente sob o patrocínio dos Estados absolutistas em formação na Europa. A rigor, a expansão ultramarina, que depois se desdobraria em colonização, ocorre paralela e contemporaneamente com a formação dos Estados nacionais, no regime de monarquias absolutistas; e ambos os processos – expansão ultramarina e formação das monarquias – reportam-se ao mesmo substrato comum: a crise do feudalismo, e são formas de superação dessa crise. A superação da crise do mundo feudal envolveu, como se sabe, um alargamento de mercados em escala mundial, tendo por centro a Europa, mas uma Europa dividida em Estados nacionais em franca competição. A centralização política, na medida em que se desenvolve, restabelece a ordem social estamental afetada pela crise e implementa a saída econômica em direção ao Oriente, à África, ao Novo Mundo. Na nova estrutura que se vai conformando, a circulação do capital comercial comanda o processo econômico, mas não domina a produção; vai depender do apoio do Estado para manter o ritmo de acumulação. O Estado absolutista, porque centralizado, tem condições de realizar essa política de expansão, ao mesmo tempo que precisa realizá-la, porque se forma em competição com os outros Estados. A política mercantilista estabelece, portanto, a conexão entre Estado centralizado e acumulação de capital comercial. Nesse contexto, a colonização vai assumindo sua forma mercantilista, isto é, vai se constituindo em ferramenta (entre outras) para a aceleração da acumulação primitiva de capital comercial nas áreas cêntricas. O mecanismo pelo qual se processava a acumulação originária da colônia para a metrópole era o regime do comércio exclusivo, o qual, para ser garantido, exigia a dominação política da metrópole sobre a colônia; como decorrência, para engendrar, nas colônias, uma produção mercantil que propiciasse a acumulação na metrópole, o trabalho se organiza em vários graus de compulsão, tendendo ao escravismo.

    Tais são as peças do antigo sistema colonial: dominação política, comércio exclusivo, trabalho compulsório; assim se promovia a acumulação de capital no centro do sistema. Mas, ao promovê-la, criam-se ao mesmo tempo as condições para a emergência final do capitalismo, isto é, para a eclosão da Revolução Industrial. Dessa forma, o sistema de exploração colonial engendrava sua própria crise, pois o desenvolvimento do industrialismo torna-se pouco a pouco incompatível com o comércio exclusivo, a escravidão, enfim, com a dominação política, ou seja, com o antigo sistema colonial. Tal é o movimento contraditório do sistema: ao se desenvolver, desemboca em sua crise, encaminhando-se para sua superação. A qual não ocorre sem a superação, pari passu, do absolutismo, que lhe servia de base.

    A crise do antigo sistema colonial[3] parece, portanto, ser o mecanismo de base, que antes buscávamos, que lastreia o fenômeno de separação das colônias, de que aqueles acontecimentos são uma manifestação específica. É dela que se tem de partir, se quisermos compreender a Independência do Brasil de forma a ultrapassar uma visão superficial dos eventos; o mecanismo de fundo oferece-nos o quadro estrutural e, por aproximações sucessivas, podemos focalizar outra vez os acontecimentos da separação entre a metrópole e a colônia. Tentemos, portanto, o caminho dessa reaproximação.

    Trata-se, antes de tudo, de inserir o movimento de independência no quadro geral da crise do colonialismo mercantilista; e, num plano mais largo, da desintegração do Antigo Regime, como um todo. Pois que o sistema colonial era parte integrante e articulada nessa estrutura global – a que Immanuel Wallerstein chamou modern world system –, sua crise e superação correram paralelas com a desintegração do absolutismo. Os mecanismos de base, antes explicitados, operam no conjunto, mas expressam-se diversamente nos vários segmentos particulares. Assim, é o conjunto da exploração colonial que estimula o conjunto das economias cêntricas; mas, na assimilação desses estímulos, competem vigorosamente os vários Estados europeus. As vantagens da exploração de uma colônia necessariamente não se localizam na respectiva metrópole, podendo ser transferidos para outros polos. E esse é precisamente o caso dos países ibéricos, pioneiros na colonização, mas declinantes a partir do século XVII, e especialmente de Portugal. Seria ocioso retomar aqui os estudos sobre o colonialismo informal das relações anglo-portuguesas a partir dos tratados de 1641 e seguintes. Igualmente, a maneira pela qual a crise se manifesta no caso luso-brasileiro tinha de assumir forma peculiar: aparece como que induzida de fora para dentro, quando na realidade se processa do todo para a parte.

    Mas essa posição de Portugal (e de suas colônias) no contexto do modern world system é já o primeiro passo em nossa análise. Em declínio desde o século XVII, a preservação da extensa colônia ia se tornando cada vez mais imprescindível para a manutenção do Estado metropolitano na Europa; a cessão de vantagens no comércio colonial era sua moeda nas negociações de alianças, sobretudo a aliança inglesa. Mas na medida em que o sistema se desenvolve e se encaminha para a constituição do capitalismo industrial, metrópole e colônia portuguesa não poderão ficar à margem: serão necessariamente afetadas, de um lado pelos influxos do industrialismo nascente, de outro pelo pensamento crítico do absolutismo, isto é, pelas incidências da Ilustração. Sob a pressão do industrialismo inglês, a presença da Ilustração francesa (por intermédio dos estrangeirados), enfim as hostes de Junot, nos desdobramentos da revolução em curso no Ocidente, Portugal vai sendo envolvido no torvelinho da crise do absolutismo e do colonialismo mercantilista. Não só Portugal, mas também o Brasil; o desenvolvimento econômico da colônia, ainda que dentro dos moldes de uma economia colonial típica, acabava por desencadear tensões que se agravam com a emergência do moderno industrialismo. Os colonos começam a se sentir mais brasileiros que portugueses na colônia – não é das piores desgraças o viver em colônias[4], diria um deles em 1802. O mesmo pensamento ilustrado que inspira reformas na metrópole estimula rebeldia e insurreições na colônia, e a mesma forma de pensar pode sofrer várias leituras, até mesmo contrastantes. Nada mais típico dessa ambiguidade do que as leituras metropolitana e colonial da obra entre todas famosa de Raynal.

    Os mecanismos de fundo – a transição para o capitalismo – no seu processo essencialmente contraditório engendravam tensões que, a partir de um certo momento (segunda metade do século XVIII), desencadeiam conflitos que obrigam a reajustamentos no todo e nas partes. O fato de a transição se completar primeiro num ponto do sistema – a Inglaterra – complica inextricavelmente a trama de tensões e conflitos. A Independência dos Estados Unidos (1776, que é quando se publica A riqueza das nações[b], matriz da nova economia política) marca a abertura da crise do Antigo Regime e do antigo sistema colonial; na Europa e na América, no Velho e no Novo Mundo, desenvolvem-se paralelamente as reformas e desencadeiam-se as insurreições.

    Reforma e revolução aparecem, assim, como vertentes do mesmo processo de reajustamento e ruptura na passagem para o capitalismo moderno, na segunda metade do século XVIII e primeira do século XIX. E, com efeito, o chamado despotismo esclarecido esforçava-se para promover, ao mesmo tempo, a modernização do absolutismo metropolitano e aberturas no sistema colonial. Portugal enveredou muito cedo por esse caminho, a partir do consulado pombalino (1750), mas é sobretudo a partir de 1777 (queda do Marquês de Pombal, com a morte de D. José) que se estimula mais claramente a nova política colonial do reformismo ilustrado. Tal reformismo, entretanto, não lograva abrandar, antes acentuava as tensões, e as inconfidências marcam o contraponto revolucionário do processo[5]. Essas são as linhas de força que se desenlaçam com a vinda da corte, em 1807, para o Brasil.

    Pode-se agora, ainda que sinteticamente, delinear as forças em presença na abertura do processo de independentização da colônia. Os mecanismos de fundo, como se procurou indicar, acentuavam a tensão entre a colônia e a metrópole, que em determinadas condições podia chegar ao conflito; mas essa tensão básica se desdobra em outras. Efetivamente, no antigo sistema colonial entre a metrópole, isto é, os colonizadores, e a colônia, isto é, os colonizados, situavam-se os colonos, ou seja, a camada dominante na colônia. Essa camada social é que encarnava (como projeto político) os interesses da colônia e se contrapunha à massa de escravizados, esta sim colonizada. A tensão colônia-metrópole se desdobrava, pois, em tensão entre senhores e escravizados. Por outro lado, na metrópole, aos interesses ligados ao comércio colonial, empenhados na manutenção do pacto, associavam-se ou se opunham interesses de outros estratos sociais (campesinato, produtores independentes, plebe urbana etc.). O Estado reformista ilustrado procurava mediar e equilibrar esse feixe de interesses conflitantes. No caso de Portugal, a situação se complica, pois a essas forças se somam os interesses do industrialismo inglês em ascensão. No Brasil, entre a massa de escravizados e o senhoriato, toda uma heterogênea e flutuante camada de funcionários, profissionais liberais, plebe urbana etc. tende a tornar mais complexo o quadro de tensões no encaminhamento do processo.

    Observado em conjunto, o complexo processo de desatamento dos laços coloniais da América que se desenrola a partir da segunda metade do século XVIII até as três primeiras décadas do XIX apresenta várias vias de passagem, que correspondem às diversas maneiras como se compuseram aquelas forças em jogo, qual das várias tensões predominou no conflito e, portanto, qual grupo ou classe social logrou a hegemonia. Tentemos fixar tais variações: a situação-limite, sem dúvida, é aquela em que a tensão entre senhores e escravizados se sobrepõe a todas as outras, e o processo se radicaliza e se aprofunda numa convulsão social; tal o caminho da revolução negra de São Domingos, liderada por Toussaint L’Ouverture e, depois, por Jean-Jacques Dessalines. O levante dos escravizados varreu a dominação dos colonos, resistiu à invasão inglesa e expulsou o exército enviado por Napoleão para a reconquista da ilha. No polo oposto, a tensão entre metrópole e colônia ganha a preeminência, mas é a metrópole que vence a contenda: é o caso das colônias inglesas das Antilhas, em que a metrópole – por ser o centro das transformações, em pleno curso da Revolução Industrial e predomínio econômico – consegue comandar o processo, abandonando o exclusivo, suprimindo o tráfico negreiro e depois a escravidão, e ainda podendo se dar ao luxo de manter o estatuto político das colônias. Entre as duas situações-limite, alinham-se aquelas em que a tensão metrópole-colônia foi a preponderante sobre as demais questões, mas são as colônias que levam a palma, e esse é o caso das colônias espanholas e portuguesas, como anteriormente já tinha sido o das treze colônias inglesas da América Setentrional. Deixemos de lado certas situações residuais, em que a metrópole, ainda que não hegemônica no conjunto, logra manter os laços coloniais, como é o caso de Cuba e Porto Rico, que se mantêm presas à Espanha.

    Vale fixar, nessa medida, para uma aproximação maior do modelo luso-brasileiro, aquela terceira via a que nos referimos acima: a tensão metrópole-colônia sobreleva todas as demais e a colônia se independentiza, isto é, a camada social de colonos consegue assumir a hegemonia na condução do processo de passagem. Aqui, três possibilidades se abrem: primeira, a emancipação se dá sob a forma republicana de governo e abole-se a escravidão, como é o caso das colônias espanholas; segunda, sob a forma republicana, mantém-se a escravidão, como fora o caso dos Estados Unidos da América; terceira, a libertação da colônia mantém a monarquia e preserva a escravidão, como é o caso do Brasil. A composição de forças que pôde ir se articulando no curso do processo para chegar a tal resultado é o que podemos agora analisar.

    Na segunda metade do século XVIII, impulsionadas pelos mecanismos estruturais da formação do capitalismo moderno, as tensões sociais agravam-se na Europa e nas colônias do Novo Mundo, e o encaminhamento político dessas tensões levou, de um lado, ao reformismo da Ilustração e, de outro, às tentativas revolucionárias. A partir da Independência dos Estados Unidos, agudizam-se as tensões e acelera-se o processo, para atingir na Revolução Francesa o seu ponto mais fundo de radicalização; ao mesmo tempo, estabilizando-se no Consulado, o movimento revolucionário tornar-se-á expansionista, atingindo Portugal (aliado da Inglaterra, que procurava conter esse expansionismo) em 1807. Reformas, insurreições, guerras internacionais pertencem, pois, ao mesmo e complexo processo de ruptura do Antigo Regime e de nascimento da sociedade burguesa contemporânea. Portugal e Brasil inserem-se nesse processo. O reformismo ilustrado, vigorosamente iniciado a partir de 1750 pelo Marquês de Pombal, não se atenua — antes acentua-se — após sua queda em 1777: sobretudo no que respeita à política colonial, inicia-se uma fase de maior flexibilidade, com o abandono das companhias privilegiadas de comércio e supressão dos estancos, ao mesmo tempo que se combate o contrabando e se estimula a diversificação da produção, a melhoria tecnológica etc. Correlatamente, em Portugal, prossegue-se o esforço industrialista (proibindo-se em 1785 as manufaturas têxteis na colônia) com vistas a superar o atraso, ao mesmo tempo que se procura, com inspiração nas memórias da Academia das Ciências de Lisboa, modernizar o país, removendo-se os arcaísmos. Todo esse esforço de recuperação, conduzido com persistência ao longo de anos, vinha obtendo êxito quando da invasão das tropas napoleônicas — o que altera substancialmente a situação, inviabilizando o esquema reformista e obrigando a duras opções.

    Paralelamente, na colônia, a política reformista não conseguia distender as tensões. Até certo ponto, pode-se dizer que, ao contrário, o surto de relativo progresso aguçava ainda mais a tomada de consciência da exploração colonial, redobrando

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