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Catástrofe ancestral: e existências no liberalismo tardio
Catástrofe ancestral: e existências no liberalismo tardio
Catástrofe ancestral: e existências no liberalismo tardio
E-book293 páginas9 horas

Catástrofe ancestral: e existências no liberalismo tardio

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Sobre este e-book

"Catástrofes ancestrais são passado e presente; continuam nascendo mais do colonialismo e do racismo do que do horizonte do progresso liberal." Em Catástrofe ancestral – e existências no liberalismo tardio a antropóloga Elizabeth A. Povinelli denuncia o mundo ocidental e seu projeto iluminista como responsável pelas crises que hoje colocam a existência de toda a terra em risco. A catástrofe em curso se original na catástrofe ancestral, que se inicia na colonização, que amarrou mundos num processo em que a riqueza e bem-estar de alguns se fez em detrimento da miséria e poluição de outros. Lançando mão do trabalho de Glissant, Deleuze e Guattari, Césaire e Arendt, aliada a sua experiência de campo com povos aborígenes na Austrália, Povinelli focaliza a noção de existência para denunciar a violência colonial capitalista e sua agência destrutiva que construiu mundos a partir de cataclismas. Aqueles que se beneficiam até hoje do deslocamento global de materiais negam sua relação com a degradação à distância, negam a relação entre sua comida saudável, a água potável e o ar limpo que têm acesso com aterros tóxicos de outros lugares. A autora denuncia ainda a perversidade do liberalismo tardio, que reage às demandas de novos movimentos sociais anticoloniais e anticapitalistas extraordinariamente poderosos, reconhecendo apenas superficialmente as bases racistas e paternalistas de suas práticas coloniais, desculpando-se ou instituindo políticas inclusivas ou de cuidados ambientais, sem, no entanto, transformar o modus operandi do sistema, que continua operante. A saída possível para o atual estado de emergência é reconhecer o repertório de saberes e práticas dos povos subjugados que a cultura ocidental absorveu sorrateiramente através do domínio colonial, utilizando-o para seus objetivos extrativistas e expropriatórios e mantendo-o oculto sob os próprios valores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de ago. de 2024
ISBN9788571261761
Catástrofe ancestral: e existências no liberalismo tardio

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    Pré-visualização do livro

    Catástrofe ancestral - Elizabeth Povinelli

    capa

    Catástrofe ancestral

    existências no liberalismo tardio

    Elizabeth A.

    Povinelli

    tradução

    Mariana Lima e

    Mariana Ruggieri

    À minha família karrabing

    Especialmente à minha querida Kaingmerrhe

    Minha maravilhosa primeira bisneta

    Run, run, run, run,

    We run under the sun…

    Ainda que se enredem os caminhos

    do petróleo, ainda que as napas

    mudem seu lugar silencioso

    e movam sua soberania

    entre os ventres da terra,

    quando agita a fonte

    sua ramagem de parafina,

    antes chegou a Standard Oil

    com seus letrados e suas botas,

    com seus cheques e seus fuzis,

    com seus governos e seus presos.

    — PABLO NERUDA, A Standard Oil Co., 1940

    Prefácio à edição brasileira

    É um grande privilégio ter este livro publicado pela Ubu, que em 2023 publicou também Geontologias, na qual abordo a noção de geontopoder. Escrevo este breve prefácio de Carisolo, na região italiana do Trentino, vilarejo dos meus ancestrais paternos, enquanto absorvo as notícias das eleições recentes para o Parlamento europeu. Meus avós deixaram o vilarejo depois da Primeira Guerra Mundial, assim como muitas outras famílias daqui e de outros lugares. Nessa época, o norte da Itália – como o sul – era uma região pobre e precária. Muitas famílias foram para os Estados Unidos, outras para a Argentina e o Brasil. Os pobres e marginalizados do norte da Europa tiraram proveito, mesmo que não intencionalmente, das terras colonizadas mais radicalmente despossuídas das Américas do Norte e do Sul. Agora, a Itália, junto com a França e a Alemanha, está elegendo governos comprometidos com o fechamento de suas portas para os imigrantes.

    Catástrofe ancestral não focaliza essas questões diretamente. Mas espero que ofereça insights sobre essas condições sociais e políticas. O livro pede que acadêmicos, eu inclusa, reflitam sobre aquilo que deve ser nosso ponto de partida – a primeira condição do nosso trabalho. Algumas pessoas podem compreender os quatro axiomas que proporei neste livro como um conjunto de embates disciplinares. Eu discordo, porque muitas posições teóricas são partilhadas entre disciplinas. Catástrofe ancestral pergunta, independentemente do campo disciplinar, se devemos partir de uma afirmação sobre o que o mundo é e depois averiguar como essas condições ontológicas são distribuídas socialmente para que possamos organizar uma contrapolítica. Ou se devemos começar dos múltiplos entrelaçamentos sociopolíticos globais que tiveram início quando os navios europeus começaram a cruzar os oceanos Atlântico, Pacífico e Índico em busca de riquezas, e que continua a ser a matriz que determina quais deslocamentos são permitidos para certas pessoas, como e em que direção a riqueza se desloca, e a maneira pela qual as toxicidades e os danos são distribuídos. A diferença entre as afirmações ontológicas sobre os entrelaçamentos de existência e as afirmações sociopolíticas sobre os desarranjos coloniais e raciais de populações, topografias e epistemologias podem não parecer tão diferentes do ponto de vista da escolha das palavras. Afinal, estamos todos falando de entrelaçamentos! No entanto, apesar de aparentemente constituírem um chão comum, essas duas formas de mobilizar os entrelaçamentos diferem dramaticamente.

    Quanto focamos primeiro aquilo que o mundo é, suas regras imutáveis, abstraímos as próprias condições que buscamos compreender, a saber: por que, desde o período colonial, a riqueza se desloca em certa direção e o dano em outra? Observar aquilo que é possibilita talvez um espaço de implicação não implicada. Estamos todos implicados, na medida em que toda existência é entrelaçada e, portanto, meu corpo está implicado no seu, meus pulmões nos seus etc. Mas isso é algo que todos partilhamos, é um chão comum, um espaço de mutualidade. Mas esse espaço faz sentido quando começamos pelos navios negreiros que circulavam pelo Atlântico ou pelos espaços devastados da expansão colonial? Catástrofe ancestral tentar responder a essa pergunta justapondo uma série de abordagens da condição humana e mais-que-humana a partir dos anos 1950 – por exemplo, a perspectiva de Hannah Arendt sobre a condição humana e a perspectiva de Gregory Bateson sobre a biosfera versus as perspectivas de Aimé Césaire, Édouard Glissant e Vine Deloria Jr. sobre a esfera colonial. Argumento que aquilo que partilhamos é um conjunto de relações diferenciais entre formas de possessão e despossessão que começaram a emergir nesses navios e em todas as terras colonizadas. Essas relações não possuem um eixo único, embora eu disponibilize o conceito de geontopoder como uma ferramenta para compreender a governança dessas relações. Inúmeras pessoas nativas foram inseridas em discursos de despossessão / geontopoder de maneira diferente daquela das pessoas escravizadas. E pessoas imigrantes europeias despossuídas foram inseridas de maneira diferente daquela de seus pares do Oriente. Além disso, as justificativas da Europa continental e diaspórica para a despossessão de alguns e o acúmulo de recursos de outros mudavam e oscilavam conforme as críticas. Tudo isso para dizer que Catástrofe ancestral pede que consideremos que o mundo humano e mais-que-humano é um entrelaçamento sedimentar de uma história específica que poderia ter transcorrido de outra maneira – que seu legado e, portanto, aquilo que o mundo é poderiam ser diferentes. Mas, para fazer esse mundo, precisamos começar pelas condições sedimentadas, segundo as quais aquilo que partilhamos são as diferentes relações com a história colonial como uma presença condicionante.

    12 de junho de 2024

    Carisolo, Trentino

    Prefácio

    Terminei a última versão deste livro no começo da pandemia de covid-19 e em meio aos protestos do Black Lives Matter contra os assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor, Ahmaud Arbery e incontáveis outros estadunidenses negros. Diante desses acontecimentos, parece importante fazer alguns comentários iniciais para guiar leitores e leitoras neste texto.

    Em primeiro lugar, embora os capítulos tenham sido escritos e concebidos antes da pandemia, os diferentes discursos sobre a covid-19 e as diferenças nítidas do impacto do vírus sobre comunidades negras, latinas, asiáticas e indígenas assombraram minhas revisões finais – e continuam assombrando as páginas a seguir. Faço algumas referências explícitas às paisagens devastadoras da covid-19, mas escolhi não incluir essa crise imediata na discussão. Infelizmente, não acredito que a crise mude a questão fundamental deste livro: a de que os axiomas sobre os quais se constrói hoje um segmento do senso comum crítico – especialmente as afirmações de que a existência é entrelaçada – não possuem um conteúdo político a priori e só podem derivar sua política dos efeitos contínuos da catástrofe ancestral do colonialismo e da escravidão. Em outras palavras, o racismo e o colonialismo estruturais e seus efeitos devastadores sobre a saúde de corpos negros, pardos e indígenas – e dos seus territórios – existiam muito antes da covid-19. A catástrofe das mudanças climáticas, a exposição tóxica e as pandemias virais não estão por vir – não estão num horizonte distante, vindo na direção dos que olham para elas. Essas são as catástrofes ancestrais que começaram pela despossessão brutal dos mundos humanos e mais-que-humanos e a extração brutal do trabalho humano e mais-que-humano. Essas despossessões e extrações deram origem ao liberalismo e ao capitalismo e, com deles, a um maquinário maciço que nega a sua violência estrutural.

    Este livro toma essas violências históricas como ponto de partida e argumenta que toda teoria da existência – quer postule um entrelaçamento ontológico da existência, quer afirme alguma forma de objeto ontológico (hiper-, hipo- ou micro-) – deve ter como ponto de partida e objetivo final o desmantelamento dessa incessante catástrofe ancestral. Qualquer discussão que desvie a atenção do terreno físico e social sempre desigual dessa catástrofe em curso ou que comece por uma teoria geral do mundo humano e não humano contribui para o fortalecimento do capitalismo liberal tardio e de sua forma de negar seu maquinário tóxico. O título deste livro, Catástrofe ancestral, visa a extrair uma análise crítica das abstrações do planetário e do humano e inseri-la nos desdobramentos dinâmicos da violência liberal tardia – as maneiras como a catástrofe colonial amarrou e continua amarrando uma multiplicidade de mundos, ao mesmo tempo que concentra riqueza e bem-estar em alguns lugares e, em outros, corpos, miséria e poluição.

    Em segundo lugar, quando estou trabalhando em um novo livro, me imagino desenvolvendo um ponto de algum trabalho anterior. Este livro foi escrito para oferecer uma exposição mais completa de um conjunto de discursos críticos que surgiram à medida que a natureza de pressuposto do geontopoder se rompia. O geontopoder se refere à governança da existência humana e mais-que-humana, por meio das divisões e hierarquias da Vida e da Não Vida, e à existência tóxica que essa divisão deixa em seu rastro. Desde que escrevi Geontologias, estive particularmente interessada em um conjunto de afirmações teóricas críticas sobre a natureza da existência e da eventividade que surgiram na esteira do geontopoder. Comecei a chamar isso de os quatro axiomas da existência e queria entender não apenas o seu significado, mas também o que estavam provocando as suas várias abordagens. Também apresentei em Geontologias um conjunto de figuras que afirmei estar deslocando as quatro figuras do biopoder. Disse que as teorias críticas estavam tão seduzidas pela imagem de um poder que opera por meio da vida que não conseguíamos perceber os problemas, as figuras, as estratégias e os conceitos emergentes que, juntos, sugeriam que uma outra formação do poder liberal tardio fora crucial para o conceito de biopoder, mas havia permanecido ocultado por ele. As três figuras do geontopoder são o deserto, o animista e o vírus. Cada figura deveria constituir um sinal diagnóstico e sintomático dos modos como o geontopoder vem governando há muito tempo por meio do colonialismo de ocupação e agora é visto como uma ameaça àqueles que se beneficiaram dessa governança.

    Mesmo pensando no vírus como figura, tentei evitar a sua celebração como uma alternativa radical ao geontopoder. Argumentei que ser o vírus significa estar sujeito a intensas abjeções e ataques e que viver na vizinhança do vírus significava habitar uma crise existencial. Com a covid-19, isso se torna terrivelmente evidente. Talvez de maneira mais controversa, argumentei que, embora as retóricas e práticas de guerra se acumulem no entorno dele, o vírus não é nem amigo nem inimigo: ele é agnóstico com relação ao modo como o chamam.¹ O vírus é uma forma emergente ou residual de arranjos humanos / mais-que-humanos prévios. Ele opera de modo a criar uma nova morada, diagnosticando as estruturas e os contornos do poder à medida que segue o seu caminho. Isso parece terrivelmente verdadeiro neste momento. A covid-19 emergiu do capitalismo extrativista e foi disseminada pelo capitalismo do transporte. Ela devasta as comunidades indígenas pobres e as comunidades de cor porque essas comunidades corporificam o longo alcance da catástrofe ancestral do racismo e do colonialismo. Em vez de enxergar a covid-19 como uma analítica horripilante da corporificação do poder, como uma crítica devastadora do capitalismo liberal tardio – em vez de entender o capitalismo liberal tardio como a origem desse horror que estamos vivendo –, querem nos fazer considerar que o vírus é nosso inimigo. Em outras palavras, a covid-19 opera agora na estrutura daquilo que em Empire of Love chamei de saúde ghoul.² Certamente, o vírus da covid-19 não é nosso amigo. Mas tampouco é nosso inimigo. É uma manifestação das catástrofes ancestrais do colonialismo, da escravidão, da contínua destruição e despossessão da existência pela extração maciça e pela máquina de recombinação do capitalismo liberal tardio.

    Em terceiro lugar, este livro – e meu trabalho como um todo – surge da forma como meus pensamentos e minhas ações no mundo foram moldados pela minha longa intimidade com os membros antigos e atuais do Karrabing. Karrabing não é um clã, uma língua ou uma nação. É uma palavra da língua emmiyangel que significa o momento em que as vastas marés que caracterizam a região costeira do Noroeste daquilo que agora é conhecido como Austrália atingem o seu ponto mais baixo e estão para virar. É um grupo de parentes que se ajudam mutuamente. Muitas de suas terras estão localizadas na Baía de Anson, no Território do Norte. É um conceito, uma aspiração, um esforço para mobilizar o cinema, a música e a arte com o intuito de preservar os mundos indígenas, bloqueando as forças extrativas do liberalismo tardio e suas dimensões políticas, sociais e econômicas e mantendo um espaço aberto para o diferente na configuração atual do poder colonial de ocupação. O Karrabing é o modelo do que entendo por projeto social.

    Em quarto lugar, este livro enfia os pés em inúmeros debates e áreas acadêmicas nos quais outras pessoas são muito mais competentes. Não finjo conhecer esses debates com a mesma completude e nuances que elas. Ao contrário, procuro indicar esses debates no texto e nas notas. Vejo meu esforço principalmente como uma maneira de contribuir com energia e foco para um campo mais amplo de crítica anticolonial, decolonizante e ao liberalismo tardio.

    Por último, ao longo dos anos, criei uma série de termos mais ou menos especializados para descrever processos e dinâmicas do liberalismo tardio. Eu me escoro em muitos deles nos capítulos a seguir. Em vez de parar e defini-los à medida que aparecem, eu os apresento em itálico (como acima geontopoder, saúde ghoul e projeto social) e peço aos leitores e leitoras que consultem o glossário no fim deste livro, no qual incluo outros conceitos-chave. Há ali uma definição do termo e um guia para saber como ele se encaixa em meus outros textos. A ideia é apresentar uma compreensão mais profunda e significativa da trajetória de conceitos e autores que proporcionaram o rico vocabulário pelo qual esses conceitos enveredam.

    Introdução

    Este livro analisa quatro axiomas da existência que surgiram nos últimos anos em parte significativa da teoria crítica. São eles: o entrelaçamento da existência, a divisão desigual do poder de afetar terrenos locais e transversais desse entrelaçamento, a multiplicidade e o colapso do evento como condição sine qua non do pensamento político e a história racial e colonial que fundamentou ontologias e epistemologias ocidentais e o conceito de Ocidente. Para além dos axiomas, estou interessada nas lutas anticoloniais mais amplas das quais surgiram esses axiomas e numa formação reacionária, o liberalismo tardio, que tentou reformular, conter e redirecionar essas lutas. Apesar de tratar esses axiomas como enunciados teóricos distintos, argumento que são parte de um campo discursivo mais amplo do pensamento político e da ação que estão surgindo na esteira do geontopoder. Prestar atenção ao modo como eles operam é fundamental se quisermos evitar que sejam cooptados pelo capitalismo liberal tardio e pelo capitalismo intolerante. A ascensão do liberalismo intolerante xenofóbico, do capitalismo de juro zero e do ecofascismo, concomitantemente ao colapso do poder unipolar dos Estados Unidos, pode ser o sinal de uma nova reorganização do liberalismo.¹ Se assim for, então há muito em jogo no como, quando e desde onde construímos nossos conceitos – conceitos aqui entendidos como ação no mundo – nessa vacilação do poder do liberalismo tardio.

    O centro deste livro é uma investigação na temporalidade social desses axiomas – uma discussão sobre como a ordem e o arranjo desses axiomas criam diferentes imaginários de tempo e eventividade sociais e, portanto, diferentes narrativas sobre justiça social e ambiental. Por outro lado, estou interessada em uma tendência sintagmática de certas regiões da teoria crítica – mimetizada no modo como acabei de introduzir os axiomas – que começa (e às vezes termina) por um enunciado ontológico e (às vezes) escala ou desliza para ramificações sociais, políticas e históricas do enunciado. Este livro mostra como um arranjo sintático aparentemente aleatório desses axiomas afeta nossa habilidade de romper com aquilo que Sylvia Wynter chamou de super-representação de uma história específica do Homem.² Investigo quais pensamentos e ações se tornam visíveis quando começamos pela história colonial do entrelaçamento ocidental do mundo e quais poderes diferenciais são desencadeados nas várias regiões e modos de existência – no mundo do humano e do mais-que-humano –, em vez de se perguntar sobre as condições originais. Dito de outro modo, que questões se tornam inevitáveis quando partimos da força da história, em vez de começarmos com um enunciado sobre a ontologia?

    A resposta contida em Catástrofe ancestral não inverte apenas a ordem dos quatro axiomas; ela busca algo mais forte, ou seja, demonstrar que o axioma 1 não tem relevância política em si e por si e que pode muito bem funcionar como uma distração antipolítica se começarmos por ele a nossa abordagem do poder social. Argumento que a relevância política de qualquer enunciado sobre a existência nasce dos modos como o poder colonial entrelaçou a existência, gerando o capitalismo e seu parceiro governamental de longa data, o liberalismo, e, nesse processo, moldando a terra pela força materialmente distinta de suas atividades tóxicas. Em resumo, a condição original é uma condição racial e colonial, e não ontológica.

    Uma das primeiras coisas que vemos quando prestamos atenção ao modo como ordenamos esses axiomas é o efeito que eles têm sobre a nossa compreensão do colapso climático, ambiental e social contemporâneo – seja uma catástrofe por vir (la catastrophe à venir), seja uma catástrofe ancestral (la catastrophe ancestrale / historique). Quando entendida como por vir ou prestes a chegar, a catástrofe climática e ambiental é lida frequentemente como um tipo específico de evento, um evento futuro que constituirá um novo e dramático começo, uma morte radical e um renascimento radical. Seriam como o fim potencial de um tipo de ser humano e história natural. No geontopoder, esse imaginário do evento é um elemento-chave do imaginário do carbono – uma dobradiça proposicional que junta as ciências naturais e as ciências sociais e produz diferenças entre elas ao superpor os conceitos de nascimento, crescimento, reprodução e morte aos conceitos de evento, conatus / affectus e finitude. A catástrofe climática por vir se edifica, se intensifica e desmorona nesses conceitos de nascimento e morte, evento e finitude. A catástrofe ancestral não.

    A catástrofe ancestral não é o mesmo tipo de coisa-evento que a catástrofe por vir, tampouco opera a partir da mesma temporalidade. Quando começamos pela catástrofe do colonialismo e da escravidão, a localização do colapso climático, ambiental e social contemporâneo gira e sofre uma mutação, tornando-se algo completamente diferente. Catástrofes ancestrais são passado e presente; continuam nascendo mais do chão do colonialismo e do racismo do que do horizonte do progresso liberal. Catástrofes ancestrais provocam mais danos ambientais na esfera colonial do que na biosfera; mais na terra não conquistada do que no mundo todo; mais nas errâncias do que nos fins; mais nas rebeldias do que na guerra; mais nas manobras, na persistência e na teimosia do que na dominação ou na resistência, no desespero ou na esperança.

    A segunda coisa que vemos quando prestamos atenção ao modo como organizamos esses axiomas é uma abordagem muito diferente da verdade, do poder e da história. Acho que temos um vislumbre disso quando colocamos os pragmatistas estadunidenses Charles Sanders Peirce e William James em diálogo com o filósofo francês Gilles Deleuze, com o psicanalista francês Félix Guattari e com o poeta, filósofo e crítico martinicano Édouard Glissant.

    Em três ensaios precursores, A New List of Categories, How to Make Our Ideas Clear e The Fixation of Belief [Sobre uma nova lista de categorias, Como tornar nossas ideias claras e A fixação da crença], Peirce afirmou que a verdade não é derivável de abstrações formais ou estados gerais, mas é um hábito de pensamento situado e espalhado nas dinâmicas de transformação dos fenômenos da mente e dos hábitos da existência e responsivo a elas. A estranheza desse modo de pensar sobre a verdade não deve ser subestimada. Uma perspectiva pragmática da verdade não situa sua fonte na mente ou em um mundo acabado ou na passagem entre as condições da mente e as condições de um mundo estável. Mas a verdade não é considerada relativa nem em um sentido culturalista nem em um sentido multiperspectivista. A verdade não é nem relativa nem universalmente determinada; ao contrário, é um hábito que as regiões da existência (humana ou outras) adquirem. Em algum lugar, a gravidade se tornou um hábito da relação entre objetos. Esse hábito se espalhou até parecer uma lei universal.

    Para as mentes humanas, a verdade nos habita pelo vaivém da dinâmica entre crença e dúvida. A crença é um hábito da mente construído a partir de uma série de encontros com as regiões da existência, enquanto a dúvida é o registro corporificado da diferença entre a história da crença e os contínuos encontros com o mundo, ele mesmo sofrendo mudanças devidas ao nosso tratamento habitual dele e dos seus próprios modos de reação. A dúvida é uma espécie de rangido que expressa a diferença entre a parte do mundo que constituiu meus hábitos de crença e outras regiões do mundo dentro do meu mundo, mas invisíveis para mim.³ A dúvida é a pulga atrás da orelha de que alguma coisa não está certa entre os meus hábitos da mente e a existência dada ou cambiante do mundo. Juntas, dúvida e crença são superfícies mentais corporificadas das variações intencionais e não intencionais em uma região da existência; são o diferencial entre calma (crença) e irritação (dúvida), que expressa a diferença entre um dado arranjo da verdade e da existência no qual a verdade opera, incluindo o próprio sujeito. Portanto, a verdade não é uma coisa, mas uma evolução das habitações que se movem de dentro dela, porém fora de qualquer lei que a determine. Como escreveu Brian Massumi, o empirismo radical do pragmatismo peirceano "tem de gerar seu mundo a partir de um vir a

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