O túmulo no promontório - Livro 6
De Marcos Mota
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O túmulo no promontório - Livro 6 - Marcos Mota
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1. Literatura brasileira 869.93
2. Literatura brasileira 821.134.3(81)-34
Versão digital publicada em 2024
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Para Cristiane e Marcelo.
Se existe o demônio Legião, esse demônio é o Vento, com certeza.
Victor Hugo (Os trabalhadores do mar)
Sumário
Parte I
Prólogo
Despedida
Parte II
Antônio Feroz
Coração negro
A Dobra de Ouro
A magia do tempo
Viagem inesperada
Parte III
Do tombadilho à gávea
Nas Ruínas de Zara
O sétimo objeto
Tempestade à vista
Parte IV
Nasce Isaac Samus
Luta pela vida
Canto mortal
O kraken
Na ilha
Parte V
O túmulo
Adeus e olá
Epílogo
Parte I
Prólogo
Sou uma bibliotecária, mas, acima de tudo, também uma contadora de histórias. Não é minha intenção assustar as crianças.
Bem… talvez apenas um pouco.
O medo é um dos sentimentos mais poderosos que podemos experimentar, assim como o amor. Então, será interessante deixar pitadas de horror nesta história.
A bem da verdade, se eu não a estivesse contando para anões tão jovens, eu colocaria os fatos da forma como aconteceram. E teríamos uma história grotesca, de arrancar calafrios da espinha. Tudo foi muito pior do que o que estou narrando, mas eles ainda não têm idade para ouvir.
Por outro lado, também quero poupar a memória dos heróis de Enigma. Isaac, Gail, Arnie, Le Goff (ah, meu querido Lili), Aurora e Pedro merecem ser lembrados honrosamente.
Quanto a esses anões que estão diante de mim… precisam conhecer com detalhes a mitologia dos Objetos. Contudo, de uma maneira adequada para sua idade. Quando forem adultos, se quiserem a versão completa – afinal, nem todos se tornarão historiadores –, que pesquisem na biblioteca os manuscritos de Iannez.
Iannez. Engraçado. Ele viveu na época desses acontecimentos e dos que vieram após a divisão do reino, mas também já está morto. Sou a única anã viva que presenciou toda a luta pela posse dos Objetos de Poder, o ressurgimento de Hastur e o Segundo Aprisionamento. Quanta tragédia!
– Professora, o intervalo acabou. Quando vai nos contar mais sobre os Possuidores dos Objetos de Poder? – perguntou Emerson.
Tão jovem e tão interessado! Como me orgulho de meu trabalho! Durante trezentos e cinquenta anos, meu vigor é o mesmo quando se trata de contar como tudo aconteceu.
– Querido, vamos retomar a história, não se preocupe – respondo delicadamente, encarando o olhar curioso que me dardeja.
É inverno nas Terras Altaneiras. A vidraça das janelas é açoitada pela neve, como uma penitente vítima de flagelo, enquanto o vento assobia penetrante pelo buraco da fechadura da sala.
Esta talvez seja a última turma de anões alados que me ouvirá falar dos Objetos de Poder.
Eu os encaro com um olhar de benevolência, tentando amenizar a dor e o sofrimento que eles experimentarão com tudo o que estão prestes a ouvir.
– Estão todos aconchegados em seus lugares? – pergunto com um olhar afetuoso. – Estamos entrando na parte final de nossa história. Preciso que vocês estejam certos sobre tudo o que ouviram até aqui.
Ninguém se manifesta. Apenas um punhado de olhares inertes me golpeia no silêncio que se segue.
– Isaac detém os Dados de Euclides e, com isso, consegue prever muitos fatos que ainda acontecerão. O Objeto o transformou em um vidente, mas seu desejo é tornar-se um guerreiro, como Bátor. O que, de certa forma, já está ocorrendo.
Penso se devo avisá-los.
– Ah, crianças! Eu os poupei de muitos detalhes e fui obrigada a ocultar outros tantos. Isaac matou um homem pela primeira vez quando defendia a rainha Owl, na invasão ao palácio. Ele não é mais, nem de longe, um menino. Como vocês devem ter percebido, ele já se tornou um homem e está prestes a se tornar um verdadeiro guerreiro.
– O que o torna um guerreiro? Matar um homem?
Sou interrompida. Mas, com razão, preciso explicar melhor as coisas para eles.
– Oh, lógico que não, Marília. Um verdadeiro guerreiro não se dispõe a matar pessoas. Pelo contrário, ele poupa a vida delas. E foi para salvar a vida da rainha que um homem mau precisou ser morto. Percebem como as coisas podem se tornar bem mais complexas? Isaac estava no palácio com Gail, Bátor e Le Goff. Gail tem o Cubo de Random e consegue controlar as variáveis atmosféricas. Um superpoder, não?
As crianças se divertem ao ouvirem falar do poder do cubo.
– Bátor, o pai de Gail, é quem vai liderar a expedição cuja história vocês estão prestes a ouvir. Bem… liderar até certa parte da história… – digo com um lamento expressivo, indicando-lhes que algumas coisas não acabarão bem.
– Le Goff também vai com eles? – pergunta Matheus, um anão de olhos pretos com lindas tranças negras encaracoladas.
Contive um suspiro. Eles já sabem como eu amei Le Goff, o anão alado dono da memória mais poderosa que nosso reino já conheceu. Não queria dar pistas da calamitosa história que eles estavam prestes a ouvir. Por Mou! Como aquilo foi acontecer?
Segurei uma lágrima. Por cento e cinquenta anos, sempre me emociono quando chego a essa parte da narrativa. Mas eu sei que esses pequeninos anões voadores já estão preparados para ouvir.
– Claro que Le Goff foi com eles. Afinal, ele é o Possuidor do Pergaminho do Mar Morto, um poderosíssimo Objeto capaz de contar toda a história já ocorrida e, como vocês já sabem, também capaz de fazer uma pessoa viajar ao passado.
– Esse é o meu Objeto preferido, professora.
– Que bom saber, Massaki. Bem… Isaac, Bátor, Gail e Le Goff descobriram onde se encontra o último Objeto de Poder. O Objeto que pertencia aos anjos está em algum lugar no litoral leste de Enigma. Após jogar os dados várias vezes, Isaac descobriu que precisavam seguir para a cidade de Parveen.
– Arnie, Pedro e Aurora não estão com eles.
– Não. Não estão. Eles passaram por momentos terríveis na Montanha da Loucura, mas já não estão mais por lá também.
– O que vai acontecer agora?
A curiosidade das crianças é tocante, principalmente em se tratando das histórias do reino.
– Meus amores, embora vocês tenham se apegado a nossos protagonistas e eles sejam a chave para desvendar todos os mistérios do que aconteceu, nossa história não é sobre eles, mas sobre os Objetos que eles carregam. Por isso eu preciso me adiantar e falar sobre o sétimo Objeto de Poder.
– Eu gosto de ouvir falar de Aurora.
– E, eu, de Arnie.
– Le Goff é meu personagem preferido.
Um coral de vozes irrompeu o recinto, deixando-me constrangida, enquanto meia dúzia de anões trancavam a cara ao me ouvirem dizer que não contaria nada sobre seus heróis preferidos.
– Calma! Vocês saberão um pouquinho sobre cada um deles antes de eu começar a falar de Tom – expliquei.
– Eu não quero saber de Tom. Eu nem sei quem ele é… – resmungou um pequenino.
– Ele é o sétimo Possuidor – apostou outro.
– Se vocês gostaram de todas as histórias que ouviram até aqui, precisam confiar em mim. Eu falarei um pouquinho sobre cada um dos seus personagens mais queridos. Serei breve e vou me deter em situações que preciso contar para que vocês compreendam tudo sobre o último Objeto a ser encontrado.
– Haverá enigmas desta vez?
Eu sorri diante da pergunta de Alex, um anão tão peculiar quanto fora Le Goff. Um admirável aluno da Sétima Aldeia. Ele tinha problemas de visão, mas voava mais alto que qualquer outro ser alado.
– Lógico que haverá enigmas! Muitos deles! Deixem-me começar a narração, pois ela será longa, e talvez precisemos dividi-la em duas partes.
Despedida
A brisa vinda do mar já não aquecia mais como antes havia dias, mas soprava delicada na pele negra de Aurora, como na época em que ela vivera sua grande aventura na cidade de Matresi, em busca do Objeto de Poder das fadas. Era outono.
Muita coisa mudara. A notícia da morte de Huna já chegara aos ouvidos de Morgana. Aurora e sua avó choraram juntas, algo extremamente necessário quando se está de luto. Contudo, também decidiram ficar de bem uma com a outra.
Depois de tudo pelo que passara, a jovem fada crescera. E Morgana percebeu isso.
O Farol de Bron continuava imponente do outro lado da baía, misterioso, indecifrável, convidativo, enquanto as gaivotas voavam sobre as areias da praia de Bolshoi.
– Então, ficaremos por aqui? – perguntou Pedro, abraçando Aurora.
– Finalmente, temos tudo o que sonhamos. Voltamos para os braços de nossos familiares e estamos juntos.
Ela virou o rosto e beijou a face do aqueônio, que se manteve circunspecto.
Os olhos repuxados de Pedro miravam a figura grotesca e enorme sentada na pedra perto da água, onde as ondas quebravam e espumavam sem força. Era Arnie.
– Ele praticamente foi obrigado a vir comigo. Eu me joguei do alto da torre, porque apostava que ele iria se transmutar em um gato alado. Ele não teve escolha.
– Pare de se culpar, Pedro!
– Arnie está devastado, Aurora. Há dias, chegamos a Bolshoi. Estamos felizes por estarmos de volta ao lar. Ele não. Gigantes não são comuns nesta parte do reino, por isso todos o adoram e se divertem com ele. Foi muito bem recebido, mas está infeliz.
– Ele está infeliz por causa de Matera.
– Não somente por causa dela. Todos nós perdemos algo e nem por isso estamos depressivos. Eu perdi minha cauda…
Aurora se desvencilhou dos braços de Pedro e o encarou. Sua postura o interrompeu.
– Ele pode voltar para a terra dele quando quiser.
– Aurora, não fale assim. Ele pode escutar e entender errado.
– Ele está muito longe para nos ouvir.
– Ele está usando os braceletes, pode ouvir à distância.
– E você tem a Pena de Emily, pode ler meus pensamentos. Então olhe nos meus olhos.
Pedro encarou a fada e começou a escutar os pensamentos dela.
Pare de se culpar pelo gigante. Se você não o tivesse obrigado a ir para a Montanha da Loucura, ele jamais teria conhecido Matera.
– Ela morreu por ter desobedecido ao pai. Ela o fez porque estava apaixonada por nosso amigo. Ele se sente culpado – cochichou o aqueônio.
Arnie não matou a garota, foi um Objeto das Trevas. Ninguém tem culpa disso, Pedro. O que você acha que vale mais a pena: viver um amor verdadeiro, ainda que seja por um instante, ou nunca o ter conhecido?
Pedro se engasgou e não conseguiu responder. Esquadrinhou o manto de Lilibeth que emoldurava o corpo de Aurora. Os raios de sol incidiam sobre seu tecido vermelho coruscante. Ele a puxou para perto de si, abraçando-a.
– Não quero nunca perder você – disse o aqueônio.
O casal se manteve com o rosto colado um no outro, lado a lado. O abraço se manteve apertado. Não podiam distinguir se ouviam seu próprio coração ou o do outro.
A fada contemplou seu unicórnio, Chifrudo, que cavoucava a areia da praia do lado oposto àquele em que o gigante se encontrava. Ela se sentiu feliz. Agora era uma monarca. Lembrou-se do grimório herdado de sua mãe. Ela o estudava durante todos aqueles dias de paz.
Quando fosse possível, Aurora viajaria pelo reino à procura das duas outras monarcas. Precisava conversar com elas. Muito provavelmente já saberiam que Huna morrera.
Pedro não conseguiu ler os pensamentos da fada porque não estava olhando nos olhos dela. Ele continuava mirando a figura sombria de Arnie, assentado na pedra, olhando para o além-mar.
De repente, Chifrudo relinchou. Apenas Aurora ficou atenta à reação de seu unicórnio. Com o passar dos dias, eles vinham desenvolvendo uma comunicação própria. O animal emitia sons, e ela começava a entender o que ele queria dizer.
Quando a fada empurrou Pedro, desvencilhando-se do abraço, o que o aqueônio viu na face dela foi espanto.
Inicialmente, ela caminhou. Seus passos foram ganhando velocidade até que ela pisou a areia com a energia de um leopardo, fazendo com que Pedro a seguisse.
Arnie não percebeu o que acontecia. Estava absorto demais para se importar com fosse o que fosse.
O casal se afastou ainda mais do gigante, fez uma leve curva atrás de uns arbustos e parou, estarrecido. Chifrudo relinchou e, por fim, aquietou-se.
– O quê…? – Aurora não conseguiu completar sua frase.
– Le Goff? – exclamou Pedro.
O anão estava caído, tentando se apoiar no tronco fino da árvore que o escondia com suas folhagens. Parecia um trapo – um trapo esbranquiçado, devido à sua cor albina, cheio de hematomas vermelhos e roxos espalhados por todo o corpo.
– O que você está fazendo aqui? – perguntou finalmente a fada.
– Você está péssimo – comentou Pedro, sentindo pena do anão.
– Precisamos avisar Arnie.
– Não! Aurora, não! – implorou Le Goff.
Aurora e Pedro ficaram imóveis, confusos e angustiados. O anão estava ferido. Havia escoriações em seu rosto. Ele se apoiava revezando-se num braço e noutro, de tempo em tempo, enquanto tentava se erguer. Havia cortes em sua roupa.
– O que está acontecendo? Onde estão os outros? Isaac, Gail, Bátor? Quando você chegou?
O aqueônio tentou ler os pensamentos do anão, mas não conseguiu. Estavam confusos e transmitiam uma sensação de morte.
– Eles não vieram comigo, Pedro.
Le Goff enfiou a mão no bolso e retirou o Pergaminho do Mar Morto.
– Você usou seu Objeto de Poder – deduziu Aurora. – Você veio do futuro.
– Mas como somos capazes de vê-lo e conversar com você? – indagou Pedro.
– É uma longa história – respondeu Le Goff, retirando um alforje do outro bolso. – São os Dados de Euclides. Quando eles estão próximos do pergaminho, eles nos permitem fazer isso.
– Por que os dados estão com você? – perguntou Aurora, incrédula e cheia de temor. – O que aconteceu com Isaac?
– As coisas só pioraram depois que vocês foram embora, Pedro.
O anão emitiu um ganido, e a pele de seu rosto tremeu, sacudindo-lhe a barba.
– Arnie precisa ver você, Le Goff – disse o aqueônio.
Comovida, Aurora apressou-se a dizer que o gigante estava próximo.
– Não. Por favor, não o chame ainda – insistiu o anão.
O casal não compreendeu o mistério que se desenrolava diante de seus olhos.
– Pedro… – disse Le Goff com fraqueza na voz, como um moribundo. – Quando eu emprestei o pergaminho para que você e Arnie pudessem encontrar a localização de Aurora, vocês me fizeram uma promessa, lembra?
O aqueônio lembrava, mas não entendeu do que se tratava.
– Eu disse que um dia precisaria do seu Objeto e que você deveria emprestá-lo para mim quando chegasse a hora –